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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DO REI / Juliette Benzoni
O HOMEM DO REI / Juliette Benzoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

           KETTERINGHAM HALL

Não fora o nevoeiro amarelo, gelado e penetrante, não fora o odor familiar combinado dos fumos de carvão e do lodo e Jean de Batz, ao desembarcar na doca da Torre, da qual não se distin­guiam, sequer, as ameias brancas, teria dificuldade em reconhecer que se encontrava em Londres. A atmosfera era o oposto daquilo a que estava habituado: os Ingleses, sempre tão frios, tão distantes, até tão desconfiados para com aqueles que chegavam de França, faziam prova de uma incrível solicitude. Até o Alien Office, o pi­cuinhas Gabinete de estrangeiros por onde se devia passar no mo-mento da passagem pela Custom House, o edifício da alfândega, se mostrou quase afectuoso na presença do casal idoso de imi­grantes, o conde e a condessa de Saint-Gérand, que Batz havia tra­zido com ele quando apanhara o barco, em Bolonha.

Era normal que a fragilidade do casal, a sua visível angústia, tivessem comovido o barão, mas que funcionários britânicos sen­tissem o mesmo, parecia milagre. Perguntaram-lhes o nome e es­tado com muita delicadeza. Tinham eles em Inglaterra amigos, família? Se não, poderiam indicar-lhes as associações de acolhi-mento fundadas a pensar nas gentes da nobreza, ou mesmo da rica burguesia, que se encarregariam de lhes fornecer um tecto, roupa, alimentação, enfim, um modo de vida? Era o caso: a filha deles e os netos estavam hospedados em casa de lorde Sheffield, no Sussex, onde eram esperados. Mostraram-se comovidos por um acolhimento que não esperavam, ao qual os funcionários da alfân­dega acrescentaram condolências pela «perda cruel» que haviam sofrido.

Batz foi recebido do mesmo modo e não escondeu o seu es­panto: desde o começo da Revolução, tinha vindo várias vezes a Inglaterra, onde tinha amigos e era a primeira vez que os Ingleses se mostravam tão corteses.

 

 

 

 

—   A que perda fazeis alusão, meus senhores? — perguntou ele. O funcionário que acabava de se inclinar perante ele fuzilou-o com um olhar indignado:

—  À do vosso Rei, siri Supunha que o seu fim atroz vos con­tristava...

—   Mais do que pensais! Mas não imaginava que a morte de um soberano francês nos valesse a simpatia dos Ingleses?

—   O que só prova que não nos conheceis! Nós somos gente de coração, sir. E toda a Inglaterra, como ireis constatar rapida­mente, se sentiu profundamente atingida pela morte do Rei Luís XVI, há dez dias atrás. É a barbárie pura... e nós não suportamos a barbárie. Nunca vereis isso no nosso país! O vosso passaporte, siri — acrescentou o burocrata, entregando-lhe o precioso papel.

O barão quase cedeu à sua mordacidade de gascão, fazendo notar àquele homem virtuoso que se tinha passado uma coisa parecida, século e meio antes, quando o «Protector Cromwell man­dara decapitar Carlos I, mas achou mais sensato não levantar qual-quer polémica. Se os funcionários britânicos se tinham tornado an­gélicos, era preciso aproveitar. Tal situação não duraria muito!

Ao sair da Custom House, Batz chamou uma carruagem, para onde fez subir o velho casal um pouco desorientado, desejando--lhe boa sorte à maneira inglesa e, sobretudo, o esquecimento rá­pido dos seus sofrimentos e angústias. Por fim, deu ao cocheiro a morada de lorde Sheffield, beijou uma última vez a mão sem anéis da velha dama, recusando-lhe os agradecimentos, recuou alguns passos e saudou, enquanto o condutor fazia virar o cavalo e se afastava na direcção de um crepúsculo que parecia instalado na ci­dade desde manhã.

Tranquilizado quanto à sorte dos seus companheiros de via­gem, ia fazer sinal a uma outra viatura quando o seu olhar foi atraí-do por um grande anúncio numa parede, no qual um apelo beli­coso contra a França flamejava em letras de dois pés de altura: Wari Wari French War.! O texto que se seguia convidava o gover­no do sr. Pitt a eliminar da superfície da terra o povo sanguinário que ousara massacrar o próprio Rei. Decididamente, havia algo de novo no reino de Inglaterra.

Acabou por se convencer de todo ao fazer falar o cocheiro en­carregado de o conduzir a Holborn, onde morava a sua amiga lady Atkins, quando se encontrava em Londres. Este assegurou-lhe que toda a cidade sentia, mais ou menos, o luto pelo Rei de França:

—   Logo que se soube a notícia, os jornais foram todos dispu­tados. O Morning Chronicle, sobretudo, que se atirava à «conduta diabólica» da vossa Convenção... e ao infame assassinato de Luís XVI...

—   Eh lá, devagar! Não é a minha Convenção.

—   Felicito-vos, siri... É verdade que nem sempre fomos irmãos, mas os reis, não o são eles todos, um pouco? Pelo menos quando se escrevem, chamando-se «Meu Senhor e Meu Irmão»? O nosso Jorge III ficou muito chocado ao saber do crime dos Franceses. Direi mesmo, espantado. Ordenou um luto severo e o encerramento do teatro real. Toda a Inglaterra está com ele, aliás, podeis ter a certeza, sir. Em cada bairro ides ver gente que vende o retra­to do vosso malogrado príncipe e também a imagem do seu mar­tírio! É demasiado terrível! O Rei assassinado e toda aquela pobre gente que teve que fugir para não conhecer a mesma sorte!...

Batz pensou que tinha dado com o cocheiro mais falador da profissão, mas sentiu, ao mesmo tempo, um certo conforto. Era verdade, nunca gostara muito dos Ingleses, mas o seu comportamento face aos acontecimentos por que ele passava de maneira tão cruel, o acolhimento que reservavam aos emigrados, dava-lhe es­perança no prosseguimento do seu combate: encontraria, seguramente, toda a ajuda desejável para arrancar a família real e sobre-tudo o jovem Rei Luís XVII à prisão. Um combate que tinha pressa de continuar... Temia tanto que o tempo fosse curto para aqueles que permaneciam dentro dos muros do Templo.

Os acasos da viagem e os enérgicos abanões de um mar inver­nal haviam conseguido tirar o barão do desespero sombrio para onde o malogro da tentativa de rapto de Luís XVI a caminho do cadafalso e da morte o havia atirado. Ao longo da sua cavalgada na direcção de Bolonha, sob o vento gelado do norte, ruminara a cólera, o desgosto, a decepção e o desejo de vingança. Fora traí-do: sabia por quem, mas tinha uma noção demasiado alta das suas responsabilidades para se lançar às cegas na procura da satisfação brutal e talvez rápida demais de um golpe de espada bem desferido. Todas as contas seriam ajustadas em devido tempo, a priorida­de absoluta era reclamada pela História e pela maneira como ele, Jean de Batz, a pretendia escrever... Primeiro, e antes de tudo, jun­tar-se a Anne-Laure de Pontallec, aliás Laura Adams e ao com­panheiro Ange Pitou, o jornalista Guarda Nacional, que já deviam ter chegado a Londres e o esperavam, sem dúvida, em casa de Charlotte Atkyns, onde marcara encontro, enquanto ele fazia a via­gem por Bolonha, onde possuía dois barcos com equipagens a toda a prova e dois armazéns discretos onde se podia guardar ma­terial de navegação, mercadorias... e candidatos à emigração. Laura e    Pitou, partidos para Saint-Malo no anonimato de uma diligência, uma semana antes dele, esperavam embarcar para Jérsia primeiro e  depois para Londres, a bordo de um dos navios de Marie-Pierre de Laudren, a mãe da jovem. Este itinerário complicado, mas pou­co susceptível de atrair atenções, justificava-se pela presença, numa dobra do vestido, de uma das mais belas pedras preciosas da épo­ca: o Grande Diamante azul de Luís XIV, pelo qual Batz esperava conseguir o suficiente para salvar a Rainha Maria Teresa e a sua tia Madame Elisabeth.

À medida que se dirigiam para o seu destino, as considerações político-caritativas do cocheiro tinham mudado suavemente para um monólogo acerca das surpresas da condição humana, assunto de enorme interesse, certamente, mas que Batz, perdido nos seus pensamentos, não ouvia. No momento preciso em que parou o cavalo, o cocheiro acabava, aliás, a sua peroração:

— ... e é por isso que eu digo que não há outra solução, senão fazer a guerra àqueles selvagens! Concordais comigo, sir?

— Oh, absolutamente — disse Batz, que já prestava atenção a uma personagem que se mantinha de pé diante da porta de lady Atkyns, esperando que lha abrissem.

Pagou a carruagem, subiu os degraus do pequeno alpendre sustido por colunas iónicas e juntou-se ao homem, que era grande e   seco, a despeito da espessa peliça que lhe cobria as pernas ma­gras, terminadas por sapatos de fivela de prata. Os cabelos estavam penteados à moda antiga, mas o chapéu, inclinado sobre uma orelha, pertencia ao tempo presente. Um longo nariz, arqueado, prometia esperar por um queixo agressivo, quando os dentes já lá não estivessem para os manter à distância.

A chegada do barão trouxe a diversão para uma espera que pa­recia prolongar-se:

—   Dir-se-ia que não está ninguém — disse a personagem com um meio sorriso que lhe fez subir a grande boca na direcção da orelha esquerda, mas já a quase infalível memória de Batz coloca­va um nome naquele rosto de perpétuo bom humor, parecendo uma máscara de comédia:

—   Peltier! — exclamou o recém-chegado. — Jean-Gabriel Peltier! Não sabia que estáveis em Londres?

Aparentemente, a memória do outro era tão boa como a sua:

—   Olha, vós também tomastes o caminho do exílio, meu caro barão?

—   Não creio que alguma vez vos tenha sido caro e não vejo porque seria diferente, aqui e agora. Venho simplesmente ver lady Atkyns...

—   Também tendes necessidade de dinheiro?

As sobrancelhas de Batz subiram um bom centímetro:

— Dir-se-ia que não perdestes o hábito de vestir as pessoas segundo as vossas cores! Não, não tenho necessidade de dinheiro.

—   Tendes sorte! A vida, aqui, é caríssima...

—   Também em Paris. Chegastes há muito tempo?

—   Parti no dia 21 de Setembro último, quando a França foi declarada uma «república una e indivisível» quando, ao invés, Mirabeau a tinha profetizado como geograficamente monárquica». Pus as pernas às costas e fugi para a costa, onde tive a boa fortu­na de encontrar o duque de Choiseul-Stainville. Foi ele que me aju­dou a atravessar o Canal.

—   E desde então, que fazeis?

— Que pode fazer um homem da pena? Escreve. Que pode fa­zer um jornalista? Jornaliza». Desde a minha chegada, publiquei a continuação do meu Tableau de Paris, sob o título Dernier tableau.

—   Que descreve?...

—   Os horrores do 10 de Agosto, os massacres de Setembro...

—   Estáveis lá?

—   N... ão, mas recolhi testemunhos incríveis, que produziram um grande efeito aqui.

—   Não tenho dúvida — disse Batz com um pequeno sorriso... — Portanto, renunciastes aos Actes des Apôtres. No entanto, tinham um certo sucesso?

Les Actes des Apôtres, cujo primeiro número apareceu em Outubro de 1789, era um curioso jornal que se queria contra-re­volucionário, mas que atacava, também, tanto os homens da Revolução, como o Rei e a sua família, acusados de se deixarem envolver numa situação tumultuosa. O conde de Rivarol e Jean--Gabriel Peltier, filho de um grande burguês de Nantes, enriquecido no comércio de Saint-Dominique e no tráfico de negros, foram os primeiros redactores, aos quais se juntaram, em seguida, nume­rosos entusiastas como Lally-Tollendal, Boufflers, Champcenetz, Langeron, Mirabeau o jovem, Tilly, Lauraguais, Montlosier...

Peltier lançou um grande suspiro:

—   Como os Apóstolos se dispersaram pelos quatro cantos da Europa, o fim era inevitável. Rivarol está em Hamburgo, outros aqui...

— Que vos sirva de lição. Os apóstolos de Cristo eram 12 e vós éreis uma boa quarentena.

—   Sem Rivarol não posso fazer nada. Não éramos nós a char­neira operária? O que não impede que continue a bater-me contra os vampiros que têm agora o reino nas mãos e que...

—   Dispensai-me ao resto! Gritar por cima dos telhados não ser­ve de nada, sobretudo quando se está longe do local. É melhor agir.

—   É essa a vossa intenção?

—   Naturalmente...

Falando sempre, Peltier não cessava de accionar, de vez em quando, a maçaneta de cobre brilhante da porta!

— Vedes bem que não está ninguém! — disse Batz, mais irritado do que gostaria.

Mas há sempre uma lição a tirar de tudo: mal acabava ele a fra­se e já a dita porta se abria, deixando passar a cabeça espantada de um homenzinho de lunetas que se desembaraçava de um aven­tal sujo:

— Os senhores estão aí há muito tempo? — perguntou ele com inquietação.

—   Há horas! — disse Peltier, sarcástico. — E quem é você, an­tes de mais nada? Onde está Blunt?

—   Eu sou Smuts, o guarda. Estava na cave e foi por isso que não ouvi os senhores.

—   Pode-se adivinhar facilmente o que fazia lá! O que quer di­zer que a sua patroa não está?

—   Milady termina sempre o ano no Norfolkshire — disse Smuts, sem dar a entender a insinuação, mas observando perfida­mente: o senhor devia sabê-lo, se o senhor pertence ao seu círcu­lo de amigos...

—   Certamente que sei, certamente, mas...

—   Um momento, cortou Batz. — Ela partiu há muito tempo?

—   Dois dias antes do Natal, sir... como sempre!

—   Alguém a veio procurar depois dessa data: uma jovem lou­ra acompanhada por um... gentleman? Uma senhora americana?

Por trás das lunetas, os olhos de Smuts arredondaram-se:

—   Eu não vi ninguém... Mas — acrescentou ele — só cá estou desde antes de ontem. Milady teve a bondade de me substituir por causa de um luto de família, na Cornualha...

—   E quem é que o substituiu? — continuou Batz, brincando com uma moeda de prata na ponta dos dedos.

—   Tom Weller, um dos criados que já era da confiança de sir Edward. Partiu logo a seguir para Ketteringham Hall.

—   E ele não lhe disse nada?

—   Não havia razão para tal. Se veio alguém, terá sido a lady Atkyns que ele deu conta. Posso ajudar-vos em mais alguma coisa, sir? — perguntou o guarda, mirando a moeda de prata, que não se fez rogada em ir parar à mão dele.

—   Não, obrigado. Eu vou lá...

Sem se preocupar mais com o jornalista, Batz rodou nos calca­nhares e desceu os degraus na direcção da carruagem, que, em todo o caso, o tinha esperado, mas Peltier acertou o passo pelo dele:

—   Ides a Ketteringham Hall?

—   Bem-entendido.

—   Hoje já é um pouco tarde... Tendes onde ficar esta noite?

—   Sem dúvida.

—   Posso perguntar onde? — insistiu Peltier com um sorriso insinuante.

Batz parou, com uma bota no degrau da carruagem:

—   Que vós sejais jornalista, de acordo... mas não achais que sois um pouco curioso demais?

—   Deformação profissional — disse o outro, com o rosto fal­samente contrito. — E não vejo porque razão a morada de um ho­tel seria um segredo de Estado.

O barão começava a pensar que ia ter dificuldade em se de­sembaraçar do importuno, um curioso tão inveterado, a última pes­soa que gostaria de acrescentar às suas bagagens:

—   Seja! — suspira ele. — Fico na residência Sablonnière, em Leicesterfields...

— ... em casa do bom sr. de la Sablonnière, que fez da sua casa o ponto de encontro de todos os imigrados endinheirados! Excelente cozinha... alojamento agradável... acolhimento à moda da velha França!

—   Espantar-me-ia muito se não estivésseis ao corrente.

—   Oh, estou ao corrente, estou: é lá que eu moro.

— A sério? Nesse caso, subi! Eu levo-vos lá.

Peltier não esperou que o outro o dissesse duas vezes. Enquanto Batz restituía a sua bagagem ao cocheiro, tratou de su­bir e acomodou-se no fundo da viatura com um suspiro de prazer. Por razões de economia, não utilizava as carruagens com frequên­cia, usando antes as pernas, mas com o cair da noite a carruagem era bem-vinda. Começou por agradecer ao seu hospedeiro através de um estado comparativo das diversas situações dos imigrados re­centemente chegados a Inglaterra. Presa dos seus próprios pensa-mentos, Batz só escutava com um dos ouvidos um discurso que não era, no entanto, falho de interesse:

— Encontra-se aqui, depois dos graves acontecimentos do últi­mo Verão, um belo mostruário de todo o povo francês, porque esta segunda vaga de fuga para o estrangeiro constitui o que eu chamo de emigração em pânico. Em 89, só uma parte da nobreza seguiu os calcanhares do conde de Artois e dos Polignac, mas agora, com esta nova fornada de nobres, temos aqui os velhos mestres de obras da Revolução, os constituintes, juntamente com esse flagelo do clérigo que é o ex-bispo de Autun, acompanhado pelo amigo Narbonne e também Mme. de Staêl. E o que é mais grave, quanto a mim, é que também estão a chegar comerciantes: talhantes, pa­deiros, sapateiros, artistas e até trabalhadores manuais: pedreiros, limpa-chaminés e ferreiros. Quanto a esses, não me preocupo: en­contrarão sempre maneira de ganhar a vida. Queixar-se-ão menos do que uma duquesa sem dinheiro, ou uma cortesã em dificulda­des... Mas, tenho a impressão de que não me escutais, barão?...

— Escuto — mentiu Batz. — Simplesmente, sinto-me pouco in­clinado para a discussão... não me queirais mal! Ah, chegámos!

A residência la Sablonnière estava à vista e em breve a carrua­gem parava:

— Eis-vos em casa — disse o barão, inclinando-se para abrir a porta.

—   É verdade... e vós? — perguntou o outro, embaraçado.

—   Tenho ainda uns pequenos assuntos a tratar. Ver-nos-emos mais tarde!

O mais amável dos sorrisos acompanhava o convite para des­cer e o importuno foi obrigado, embora não o quisesse, a confor­mar-se, já que esperava fazer de Batz seu sócio capitalista, pelo menos por algum tempo, e fazer-se transportar por ele até casa de lady Atkyns, junto da qual estava certo de encontrar a melhor das hospitalidades.

Com um suspiro de partir o coração, conseguiu descer da via­tura e ficou em pé, defronte do hotel:

— Quereis que peça um quarto para vós? — propôs ele em de­sespero de causa. — E talvez também uma mesa para o jantar?

—   O quarto, quero, o jantar é menos seguro — respondeu Batz, sempre afável. — É natural que demore...

—   Ah... posso, ao menos, depositar a vossa bagagem?

Pouco paciente quando não era necessário, Batz sentiu a mos-tarda a subir-lhe ao nariz, mas, adivinhando naquela insistência uma possível aflição, tirou da bolsa um guinéu:

—   Obrigado, mas neste saco há um objecto que desejo ofere­cer. O que podeis fazer por mim, por favor, é pedir que vos abram uma ou duas garrafas de bom vinho de Bordéus... e bebei-as se eu não vier jantar.

A moeda de ouro representava bastante mais do que quatro ou cinco copos da melhor lavra, mas o barão preservava, assim, o amor-próprio do jornalista, que aceitou sem mais cerimónias. A carruagem voltou a partir e uma meia hora mais tarde, tendo tro­cado, no alugador, a carruagem citadina pelo equivalente a uma sege de posta francesa, Jean de Batz deixou Londres, o espírito em paz, em direcção a nordeste. O que tinha a dizer à sua amiga Atkyns não era para as grandes orelhas de um jornalista cujas ideias políticas podiam mostrar-se flutuantes... Deixando ao co­cheiro o cuidado de o levar a bom porto, pegou num cobertor que cheirava a cavalo, envolveu-se nele, deitou-se sobre o assento, des­ceu o chapéu sobre os olhos e adormeceu, tão tranquilamente como se estivesse na sua cama...

 

Foi necessária a noite toda e três mudas para levar Batz, das bru­mas do Tamisa às de Yare, a 150 quilómetros da capital. As estradas de Norfolk não eram melhores do que as do norte de França e o fog não melhorava as coisas. Eram, portanto, quase dez horas quando a atrelagem franqueou os portões de Ketteringham Hall, um imen­so castelo da época da Rainha Ana, não muito belo, mas dando uma boa ideia da fortuna que fora precisa para o construir. Grande pro­prietário rural num Norfolk de vastos horizontes votados à lavoura, nos quais as propriedades adoptavam o aspecto de solares, sir Edward Atkyns tratava-o com um cuidado ciumento, mas não o ha­bitava, deixando o usufruto a uma esposa da qual vivia separado.

Esta era uma antiga actriz do teatro de Drury Lane onde, alguns anos mais cedo, a sua beleza ruiva de irlandesa provocara estragos, mais ainda do que um talento que desabrochava, sobretudo nas personagens mais apaixonadas do repertório. Ao contrário de Neli Gwynn, outra ruiva e antiga celebridade do teatro de St. Catherine Street, que tinha começado por ali vender laranjas, antes de subir à cena e mais tarde ao leito do Rei Carlos II para dali arrancar um título ducal, Charlotte Walpole era de muito boas famílias: filha natural e reconhecida de Thomas Walpole, parente próximo do antigo primeiro-ministro e do escritor que tanto amara Mme. du Deffand, recebera educação e instrução antes de se tornar rainha do teatro e lady na vida quotidiana. Tendo julgado este estatuto preferível ao primeiro, abandonou os palcos e preferiu tornar-se numa dama nobre, o que lhe valeu poder seguir o seu marido nas suas viagens, ser recebida em Versalhes e apresentada à Rainha. Um dia inolvidável para ela, que marcou o princípio de uma ad­miração, mesmo ligação apaixonada, que passou a votar, desde então, a Maria Antonieta. A Rainha torna-se o seu modelo, a sua referência em todas as coisas e lamentava não poder entrar numa corte que a fascinava. Entretanto, deixou o marido continuar, sozi­nho, uma viagem através da Europa e instalou-se em Versalhes pri­meiro, onde frequentou o círculo Polignac e depois em Paris, na rua de Lille, a fim de poder estar próxima das Tulherias onde, doravante, vivia o seu ídolo. Mas era inglesa e os começos da Revolução recambiaram-na para Inglaterra, para onde, aliás, o ma-rido exigia que regressasse. Desde então, vivia de olhos fixos nos acontecimentos de Paris e abria facilmente as portas da sua casa aos velhos amigos imigrados, na esperança secreta de que um dia a sua Rainha viria procurar refúgio no seu lar.

Batz conhecia-a desde aquela primeira viagem que fora, para ela, o caminho de Damas, mas as suas relações tinham-se restrin­gido após o começo do grande drama que agitava a França. Sabia que podia contar com ela e por várias vezes, um dos dois barcos bolonheses do barão tinha desembarcado em Southwold, ou Lowestoft, alguns desafortunados fugitivos, dos quais a generosa mulher se encarregara. Tinha, também, constituído um pequeno círculo de amigos franceses reconhecidos, junto dos quais recolhia todas as informações possíveis respeitantes a Maria Antonieta. Tinha-se sempre a certeza, ao chegar a Ketteringham Hall, de en­contrar um ou dois imigrados à lareira, esperando dias melhores.

Tendo-se deslocado várias vezes antes ao castelo, Batz foi re­cebido por Brent, o mordomo, com o máximo de entusiasmo que se pode esperar de um servidor britânico: uma inclinação do bus-to um pouco menos rígida, um meio sorriso no canto dos lábios e um:

— A chegada do senhor barão é uma grande alegria, a despei­to dos tempos infelizes. Milady ficará muito contente...

Tudo num tom de tristeza solene. Batz reparou, então, que Brent estava todo vestido de negro e que, à semelhança do Rei Jorge, Charlotte Atkyns tinha posto a sua casa de luto: no bali, bem visível, um retrato de Luís XVI, engrinaldado de crepe negro, esta­va enquadrado por duas armaduras de pé, cujas manápulas se apoiavam em dois montantes, fixos no pedestal, montando uma guarda pomposa que tinha algo de fantasmagórico, perto de dois candelabros carregados de velas.

Apenas os candelabros estavam acesos naquela sala onde rei­nava um frio glacial, a grande chaminé encarregue de a aquecer desprovida de qualquer fogo, sem dúvida julgado demasiado ale­gre para as circunstâncias. Batz não ficou surpreendido: entre os ingleses, uma certa frescura e correntes de ar eram consideradas como vivificantes, a canícula começando um pouco antes dos 19 graus. Se se sentiu comovido por aquela prova de comunhão com a sua própria Rainha, Batz, filho da doce Gasconha, não deixou de evocar, com nostalgia, os quentes fogos que flamejavam, em França, em belas chaminés: a sua viagem através do nevoeiro dei­xara-o transido. Esperava, a todo o momento, o regresso do mor-domo, mas foi a dona da casa em pessoa que apareceu, e a sua sumptuosa cabeleira ruiva fez entrar o Sol no hall lúgubre.

—   Vós, aqui? — exclamou ela em voz baixa mas calorosa. — Ah, meu amigo, não imaginais o bem que me faz a vossa presen­ça! Vindes chorar comigo, suponho?

Ela encaminhava-se para ele com as duas mãos estendidas e Batz, por um instante, sentiu uma espécie de deslumbramento: o vestido negro, o lenço e os punhos de musselina eram exactamen­te iguais aos que Maria Antonieta usava no Templo. O penteado, sob a touca esvoaçante, era a mesma e, tal como a estatura, a silhueta, assim como certos traços do rosto, lembravam a Rainha. O barão tem a impressão fugitiva de se encontrar perante a infeliz Rainha. Charlotte Atkyns era apenas um pouco mais jovem e os olhos azuis brilhavam com uma vitalidade que a angústia e a infelicidade haviam expulsado do seu modelo. Só a cor dos cabelos quebrava a ilu­são, mas, com a ajuda do pó-de-arroz, a ilusão podia ser recriada: corriam rumores de que os cabelos da Rainha tinham embranquecido... Com um respeito involuntário, beijou as mãos oferecidas:

—   Não tenho tempo para lágrimas, lady Charlotte! O meu Rei está morto e acreditei, por um instante, cair na loucura. Mas, ago­ra, tenho outro, ao qual devo toda a minha atenção, todos os meus esforços e todos os meus pensamentos.

—   Sem dúvida, mas não dais prioridade à mãe? É ela que é preciso salvar, agora. A criança-rei não passa da sua continuação natural, ela é que é a mais ameaçada... Mas não fiquemos aqui: de­veis ter necessidade de vos recompordes e vamos tomar o peque­no-almoço dentro de instantes.

Uma campainha, com efeito, tilintou nas profundezas do caste­lo quando a jovem parou de falar e ela enfiou o braço no do visi­tante para o conduzir ao salão onde era sempre servido, por volta das dez horas, a primeira e importante refeição do dia. Batz co­nhecia a decoração e o cerimonial, não ficando espantado ao penetrar numa vasta divisão ornamentada com retratos de família, na qual se encontrava um bilhar, um piano, diversos instrumentos de música, livros e jornais. No meio de tudo aquilo, várias mesas de chá suportavam, ora o bule e o material necessário, ora cesti­nhos com pequenos pães de várias espécies, boiões de natas fres­cas, açúcar, compotas e presunto, ora pratos quentes de ovos, sal­sichas ou flocos de aveia.

As pessoas instalavam-se, segundo as suas conveniências, noutras pequenas mesas, o que permitia isolarem-se um pouco com tal ou tal pessoa da sua escolha, ou chegar à hora desejada. Havia sempre convidados nos castelos ingleses e o pequeno-al­moço era a hora da liberdade. Uma vez saciados, podia-se sair para um passeio, para ler, tocar, ou simplesmente voltar para o quarto.

Charlotte Atkyns instalou o seu convidado e chamou um cria-do para o servir, após ter lançado amáveis bons-dias em volta. Estavam ali vários convidados, ocupados em nutrirem-se. Um de­les, à entrada de Batz, saltou da cadeira, abandonando os ovos me­xidos e acercando-se dele com as mãos estendidas, como momen­tos antes a dona da casa:

—   Meu caro barão! Mas que bom ver-te aqui! Vens-te juntar a nós!

—   Não. Só estou de passagem. Volto para Paris.

—   Tu és corajoso! Os ares não devem estar nada bons em Paris, farias melhor em ficar connosco, tu, que não tens laços...

— Tenho mais do que aqueles que pensas. E, sobretudo, tenho uma tarefa a cumprir. Mas tu, que fazes tu?

—   Nada. Vivo... e aborreço-me de morte!

Isso via Batz. Claude-Louis de la Châtre, conde de Nançay, te­nente-general dos exércitos do Rei, era um homem de acção e o barão gostava muito dele, a despeito de ele ter sido, não há muito, primeiro fidalgo de Monsieur. Comprometido no caso Favras, onde se tratava de raptar o Rei para o substituir pelo irmão, tivera que fugir, ao mesmo tempo que Monsieur abandonava tranquilamente Favras à justiça. Estava-se em 1790 e o infeliz marquês não teve direito à morte como fidalgo. Penduraram-no, simplesmente, na praça de Grève. La Châtre, esse, desapareceu, deixando em França os seus amores e a esposa. Esta, estupidamente casada por interesses mal contidos, era a filha do criado de quarto de Luís XVI. Era, também, uma megera declarada, com a qual o pobre La Châtre se entendeu pouco tempo, o suficiente, antes de encontrar a des­lumbrante condessa de Beaufort, esposa de um emigrado. Posta ao corrente, Mme. de La Châtre não perdeu tempo e juntou umas achas ao fogo, exigindo a separação, enquanto esperava por um divórcio que as novas leis tornavam possível. Ao mesmo tempo, in­tentava um processo contra Mme. de Beaufort por causa de um ter­reno que o seu marido teria dado à sua bela. A grande surpresa aconteceu quando descobriu que esta possuía o mesmo vírus pro­cessualista que o marido legítimo. Seguiu-se um interminável de-bate, no qual Batz teve um papel apagado mas primordial ao con­fiar, um ano antes, os interesses de Mme. de Beaufort a um tal Lullier, hábil agente de negócios da Rua Vendôme antes da Revolução e que ocupava, presentemente, o cargo importante de procurador síndico do departamento. Provido de uma fachada al­tamente republicana, Lullier geria com habilidade — e honestida­de! — os bens de certos emigrados, entre os quais La Châtre. O que não o impedia de dar à Revolução todas as provas políticas da sua lealdade e virtudes republicanas: aceitara mesmo pagar o «sa­lário» a quatro carrascos de Setembro, por terem trabalhado du­rante dois dias»!

O rosto angustiado do amigo desolou Batz:

—   Vieste aborrecer-te para casa de lady Charlotte? É pouco di­vertida, sem dúvida?

— Eu aborreço-me em Londres. Aqui, nunca — acrescentou o conde, pegando na mão da sua anfitriã para a beijar.

—   No entanto, vais ter de voltar para lá, em breve. Vamos precisar de agentes activos. Sei que tu e Montlosier têm fácil aces­so ao ministro Pitt: vai ser preciso trabalhar para preparar a Inglaterra para a recepção ao jovem Rei Luís XVII...

— E à Rainha, não é verdade? — repetiu Lady Atkyns. — É ela a mais ameaçada, é ela que deve ser salva em primeiro lugar!

—   Devia ter dito: a família real! E fica tranquilo, La Châtre, re­servo-te um papel! Para além de que és um dos raros emigrados ri-cos. Isso pode ser útil...

—   Eu também sou — disse Charlotte. — E estou pronta a com-prometer a minha fortuna pela Rainha... e os seus.

—   Eu sei. No entanto, as minhas orações, no momento pre­sente, não vão para além de um pequeno-almoço. Morro de fome — acrescentou, com um sorriso.

— Meu Deus! Somos imperdoáveis, o conde e eu, por vos man­ter em pé! Sentai-vos! Eu sirvo-vos!

Uma vez o seu hóspede alimentado e La Châtre virado para o seu próprio breakfast, lady Atkyns sentou-se ao pé de Batz, com uma chávena de chá na mão:

—   Agora, dizei-me em que vos posso ser útil, meu amigo. Para atravessar o mar numa estação destas, é preciso ter uma razão muito forte...

—   Com efeito. Pensava encontrar em vossa casa uma amiga, uma jovem americana que transporta, para mim, um... tesouro. Como sempre, a magia da palavra produziu efeito:

— Um tesouro? E vós confiaste-lo a uma mulher? — murmurou Charlotte Atkyns com uma sombra de decepção na voz.

—   Sim, porque era prudente. Laura Adams transporta, cosido na bainha do vestido, o grande diamante azul de Luís XIV, roubado do Guarda-Móveis e que eu tive a sorte de receber das mãos do duque de Brunswick, ao qual tinha sido oferecido o Tosão d'Ouro de Luís XV, do qual o diamante é a pedra mestra, para que ele re­nunciasse a marchar sobre Paris.

—   Ouvi esse boato em casa da duquesa de Devonshire. Então, é verdade?

—   A mais pura das verdades: a pilhagem das jóias da Coroa de França foi orquestrada por Danton e talvez, também, por Roland, para comprar os prussianos. Neste momento, não vos escondo que estou inquieto: Laura Adams, acompanhada pelo meu amigo, o jornalista Ange Pitou, devia estar em vossa casa. Dei-lhes o vosso endereço como ponto de encontro...

—   Fostes à minha casa de Londres?

—   Mal desembarquei: ninguém viu os meus viajantes, mas como o vosso guarda não abre facilmente a porta, pensei que po­deriam ter pensado que a casa estava vazia e decidirem-se pelo vosso castelo. Ora, constato, com tristeza, que não estão cá.

—   Por onde vieram?

—   Por Saint-Malo, onde a minha mensageira tem... facilidades e Jérsia. Partiram uma boa semana antes de mim e eu fui retardado em Bolonha por uma ligeira avaria no meu barco, sem contar com uma indisposição de Mme. de Saint-Gérand, que trouxe para cá com o marido. Apesar de um mar pouco clemente, já cá deviam estar...

Charlotte Atkyns pegou no bule para voltar a servir o seu hós­pede. Estavam agora, ela e Batz, sós. Vendo que se tinham ambos empenhado numa conversação íntima, La Châtre e as três outras pessoas presentes tinham-se esquivado com discrição.

—   Esse caminho é longo, perigoso. Vós próprio tivestes dissa­bores. Mas ponho-me a pensar: Por que não lhes indicastes o ho­tel de la Sablonnière?

—   Indiquei, especificando que não deviam instalar-se lá se vós não estivésseis em Londres, ou aqui. É uma excelente casa, mas é um ninho de espiões e nem todos são ingleses. Oh! Não vos escondo que estou inquieto... muito inquieto, mesmo!...

—   É compreensível. Que contais fazer, agora?

—   De certeza que não vou adormecer nas delícias da vossa casa, minha cara! Tenho que voltar.

—   E onde quereis ir?

— Ao encontro deles... Deve ter acontecido qualquer coisa...

—   Isso é insensato! Atraso não significa acidente, ou desgraça! Arriscais-vos a cruzar com eles sem os verdes, portanto, arriscais--vos a perdê-los.

—   Não posso ficar aqui sem fazer nada. Esta noite, com a maré, rumarei a Jérsia, onde tinha indicado alguns pontos de referência. Assim, pelo menos, saberei se passaram por lá. Minha cara amiga — acrescentou Batz levantando-se — agradeço-vos por este mo-mento delicioso passado convosco. Mandai vir a minha carruagem!

Por um instante, Charlotte quase se desfez em lágrimas: a che­gada do barão significava, para ela, mais do que uma visita em bus-ca de dois desconhecidos. Pendurou-se-lhe no braço:

—   Não partais já, por amor de Deus! Esperai por mim! Dei or­dem para prepararem a minha bagagem...

—   A vossa bagagem? Mas, para quê?

—   Para partir, evidentemente! Ao ver-vos chegar e sabendo com que facilidade atravessais o Canal, pensei que era a resposta às minhas mais íntimas interrogações! Quero ir a Paris, porque que­ro trabalhar para a libertação da Rainha! Toda a pressa é pouca numa tal causa...

—   Está fora de questão virdes comigo esta manhã. Já vo-lo dis­se, vou a Jérsia, não a Paris. Em seguida, se Deus quiser, voltarei para ir a casa de William Gray, o joalheiro de Bond Street...

—   Está bem. Nesse caso, vou convosco até Londres, ou espe­rarei notícias vossas, mas... caso não encontreis o vosso diamante...

— Se não o encontrar, é porque Laura Adams e Ange Pitou es-tão mortos, perdidos no mar, ou sabe Deus onde — grunhiu Batz. — Qualquer outra explicação é impensável...

—   Seja, seja! Não vos zangueis! É uma mera hipótese. Nesse caso, lembrai-vos que sou muito rica e que a minha fortuna está ao serviço da Rainha!

Comovido, Batz sorriu-lhe:

—   Perdão! Sei quão generosa é a vossa alma. No entanto, não podeis esquecer que tendes um filho...

—   E esse filho tem um pai, do qual herdará. Mas, ponho-me de novo a pensar, por que não virdes procurar-me, quer façais ne­gócio com William Gray, ou não? Se o diamante está perdido, eu dou-vos o dinheiro necessário... e poderei partir convosco!

—   Não, Charlotte! Paris tornou-se demasiado perigosa, sobre-tudo se a Inglaterra declarar guerra à França. Se necessário, ape­larei a vós. Mas, antes da vossa, ainda possuo uma fortuna... e o resto do Tosão d'Ouro! Mas prometo vir ver-vos se voltar a Londres...

20 minutos mais tarde, Batz deixava Ketteringham Hall, para desespero de La Châtre que, fechado no seu quarto, escrevinhava febrilmente cartas destinadas à mulher, a Lullier e, sobretudo, à sua querida amante, cuja separação lhe era dolorosa. Queria conven­cê-la a juntar-se-lhe, como já o devia ter feito há muito. Aquele processo estúpido ocupava-a tanto, que o preferia à vida agradá­vel que encontraria ao lado dele? Estava pronto a todas as loucuras por ela e sonhava fazê-la sua mulher, logo que o divórcio fos­se interposto... Nesse ponto, a Revolução era uma maravilha.

Mas ainda a tinta do longo discurso não tinha secado e já as ro­das da carruagem do barão, sobre o saibro da alameda, lhe davam a entender que o seu mensageiro do amor já tinha partido...

 

Ao voltar a Londres, Batz conservou a sua carruagem, cujos ca-valos foram mudados, assim como o cocheiro, ao mesmo tempo que se deslocava ao hotel de la Sablonnière, de onde — graças aos céus — Peltier estava ausente. Ali, assegurou-se de que o casal que procurava não fora visto e tomou todas as disposições para que o retivessem no caso de aparecerem e ele estar ausente. Tranquili­zado quanto a esse ponto, o barão fez-se conduzir ao porto, onde deu novas ordens ao capitão Grimaud, patrão do Marie Jeanne, um dos dois lugres bolonheses que lhe pertenciam. Um pormenor que todos os seus amigos de Paris, incluindo Marie Grandmaison, sua amante e querida companheira, ignoravam. Grimaud deveria esperá-lo tranquilamente no porto de Londres enquanto ele se des­locaria a Portsmouth e, dali a Jérsia, pela rota normal, a que to­mavam os barcos que asseguravam, mais ou menos, a ligação en­tre as ilhas anglo-normandas e o reino britânico. O que diminuia os riscos de perder Laura e Pitou, no caso de eles estarem a cami­nho. Com efeito, sempre meticuloso quando estabelecia um plano, Batz indicara aos dois jovens os albergues de Saint-Hélier, em Jérsia e em Portsmouth, que lhes poderiam servir de muda. Mas quando, no fim dos 120 quilómetros que separavam a capital do seu maior porto militar, foi parar ao albergue do Solent, não encontrara sinais dos viajantes em nenhuma muda e o estalajadeiro também não os tinha visto.

À medida que o tempo passava, que as esperanças se desva­neciam uma após a outra, Jean de Batz sentia a angústia aumentar. Uma angústia pela sorte de Laura e de Pitou, mais do que pela do diamante transportado pela jovem. Para além do mar, notavelmen­te calmo para um começo de Fevereiro, havia sempre um aciden­te a temer, ou a recusa de Mme. de Laudren em entregar uma filha reencontrada por milagre, quando a julgava morta, a novos perigos. Nesse caso, seria preciso recorrer a um daqueles passadores corajosos, mas por vezes ávidos, e sempre imprevisíveis, que transportavam, de noite, grupos de emigrados, nos seus barcos, em direcção aos cúters, ou brigues ingleses, que se aventuravam ao longo da costa para recuperar os infelizes. A viva imaginação de Batz, encorajada pela predição de Bonaventure Guyot, não cessa­va de lhe oferecer um leque de catástrofes, indo, por vezes, até ao limite do razoável.

A moral do barão baixava a olhos vistos quando embarcou para Jérsia. Falando com o capitão, soube que a população da ilha au­mentava de dia para dia. Sobretudo, muitos padres, vindos para se porem sob a protecção dos bispos de Bayeux e de Tréguier, emi­grados desde que tinham tentado impor-lhes o sermão constitu­cional. Esta invasão católica punha, mesmo, alguns problemas a lorde Beleare, o governador da ilha, um protestante genuíno, que não tinha vontade nenhuma de ver o seu território virar-se para o papismo. Felizmente, alguns emigrados ricos compravam proprie­dades, ou mandavam construir, o que lhes permitia alojar uma grande parte da sua gente, à qual era necessário conceder uma cer­ta liberdade de culto. Para grande satisfação da guarnição, quase totalmente irlandesa. Para além disso, Jérsia podia contar, para a sua defesa, com numerosos fidalgos, ávidos por se baterem, vindos juntar-se ao amável príncipe de Bouillon, ocupado a instalar uma espécie de correio entre a França e a Inglaterra, esperando poder pôr esse organismo ao serviço do conde de Artois...

Mas, no meio de toda aquela gente, o digno marinheiro não vira passar o casal que lhe descreviam...

 

O vento de noroeste soprava, mas a manhã estava quase boni­ta quando Batz pôs pé em terra na ilha. Um sol invernal, claro e pálido, jogava às escondidas com as nuvens de todos os tons de cinzento que percorriam o céu azulado, de um lado ao outro do horizonte. Estava-se no Inverno e não fazia calor, mas a cidade re­donda de Saint-Hélier repousava, quase primaveril, no ninho de verdura que formavam, em volta dela, as colinas, onde se dispu­nham jardins, ao abrigo de poderosos diques de rocha. Calçadas rochosas, das quais uma prolongava o molhe do porto e o Elizabeth Castle, de muralhas maciças erigidas sobre o baluarte construído à moda de Vauban, completavam as suas defesas. Tudo ali lembrava um canto de Inglaterra, com as casas baixas de cores variadas, as tabuletas enferrujadas pelo vento do mar, mas alegremente pintal­gadas. Um navio de Sua Majestade, fundeado no porto, no meio dos barcos de pesca, parecia uma galinha no meio dos seus pintos e nos cais a actividade era intensa. Construía-se à força de braços para alojar os refugiados, dos quais alguns nunca mais voltariam a partir. A vocação de Jérsia, que se poderia chamar a ilha dos banidos, não era a de dar asilo desde que a revolução de Cromwell para ali tinha empurrado os dois filhos de Carlos I, o Rei decapitado, juntamente com numerosos fiéis? Agora, acolhia com bonomia aqueles que eram escorraçados por um outro sismo e pela sombra de um outro Rei, tragédia gémea do Stuart assassinado...

Batz afastou a sua inquietação para um canto do espírito. Daquela ilha, de onde, como nesse dia, se viam as costas de França, mas que esta nunca conseguira submeter, este rochedo onde se juntavam homens de Deus e da guerra, por que não, portanto, fazer dela o abrigo sonhado para um pequeno Rei fugitivo, da mesma maneira que o foi para jovens príncipes perseguidos?... Já um plano se esboçava no espírito fértil do barão, enquanto se dirigia para a London Tavern, que indicara como ponto de encon­tro a Pitou. Seria mais fácil reunir ali o exército de bravos soldados, necessário à reconquista do trono, do que em Inglaterra...

No cais, um cúter, sem dúvida chegado há pouco, desembar­cava algumas pessoas: duas mulheres, das quais uma idosa, que era ajudada a passar a prancha, um padre e dois rapazes com pou­ca bagagem. Aquela gente vinha com um ar tão impressionante de infelicidade que Batz, maquinalmente, descobriu-se e saudou. Depois, com um encolher de ombros desencorajado, virou os calcanhares e dirigiu-se a direito para a taberna, franqueou a soleira, esquadri­nhou a sala com os olhos e teve uma exclamação de alegria: um homem bebia qualquer coisa de uma malga e o barão reconheceu imediatamente os cabelos rebeldes cor de palha: Ange Pitou, mas estava só e nada, nenhuma chávena abandonada, indicava que, no instante precedente, tivesse estado alguém com ele. Foi-se sentar ao pé dele.

—   Feliz por vê-lo, meu amigo! Começava a desesperar.

Sobre o rebordo de faiança, os olhos azuis, fatigados, do jovem, arredondaram-se com uma surpresa onde havia algum alívio:

—   Não tanto como eu, barão, não tanto como eu! Por que mi­lagre me apareceis esta manhã?

—   É muito simples: como não vos encontrei, nem em Londres, nem no Norfolk, vim ao vosso encontro. Onde está Laura?

O jornalista afastou a malga vazia e fez um gesto evasivo:

—   Ficou lá... em Cancale! Mas ficai descansado — acrescentou ele baixando a voz vários tons — eu tenho o diamante...

Batz examinou melhor o rosto do amigo e achou-o bizarro. Não gostou do ar falsamente indiferente, por trás do qual pensava descobrir uma dor qualquer.

—   Em Cancale? Que faziam lá, quando deviam embarcar em Saint-Malo?

Uma criada — rechonchuda e fresca, de touca e avental de tela branca e cheirando agradavelmente a lixívia — apareceu entre os dois homens e sorriu para Batz, que lho devolveu com os seus olhos cor de avelã:

—   Que posso servir-vos, sir? Se acabais de chegar, tal como este senhor, deveis ter fome?

—   Adivinhou! Tem café?

— Claro! Somos o melhor albergue da ilha. Come-se até melhor aqui do que em casa do tenente-governador!

—   Então, café, pão, presunto e um pouco da vossa deliciosa manteiga, que cheira a violetas.

Quando a rapariga se afastou, o sorriso de Batz apagou-se. — Voltemos à nossa conversa. Porquê Cancale?

—   Porque em Saint-Malo esperava-nos uma surpresa: quando batemos à porta da residência de Laudren, apareceu uma jovem criada. Era a criada de quarto de... Mme. de Pontallec, antes de esta se transformar em Laura Adams e aquela reconheceu-a imediatamente. Aterrorizada, aliás, porque tomou-a por um fantasma... Como quiséssemos entrar, ficou ainda mais assustada e tivemos que a levar até um albergue, um pouco mais longe, para que se decidisse a dizer-nos o que a assustava tanto. Creio que nunca adi­vinhareis, barão, a razão pela qual não poderíamos ver Mme. de Laudren!

—   Esta manhã, não tenho o espírito muito aberto a adivinhas. Está muito doente e a criada temia que a reaparição da filha a ma­tasse?

Pitou não se pôde impedir de rir:

—   Se fosse só isso! Eu disse que não adivinharíeis. Não so­mente Mme. de Laudren não está doente, como nada em felicida­de: acaba de casar com o genro...

—   O que é que está para aí a dizer?

—   Oh, ouvistes bem: Mme. de Laudren, crendo a filha morta e enterrada, deixou-se apanhar pelos encantos de Pontallec e casa­ram há pouco...

Batz guardou silêncio por alguns segundos, digerindo a notícia, que fez deslizar com um gole de café a ferver antes de perguntar:

—   E ela, Laura? Como recebeu ela a notícia?

— Tão mal quanto possível. Saiu do albergue a correr, mas, adi­vinhando-lhe as intenções, fui atrás dela e, com efeito, agarrei-a mesmo antes de ela chegar à casa da mãe. A jovem Bina, a criada, tinha-nos seguido, aterrorizada. Ambos conseguimos levá-la de volta para o albergue. Mandei depois a pequena de volta aos seus afazeres, recomendando-lhe a maior das discrições e comecei a falar. A batalhar, melhor dizendo: Laura queria, absolutamente, irromper pela casa da sua infância para se declarar bem viva e de­nunciar os crimes de Pontallec... Podeis imaginar as reacções que a sua entrada teria desencadeado! Segundo Bina — e acredito nela — não ficaria viva por muito mais tempo.

—   Um acidente «lamentável»? A mãe teria emitido alguns pro­testos?

—   Pelo que sei, nunca foi uma mãe muito calorosa. Por outro lado, creio-a cega de amor e isso é sempre grave quando uma mu­lher casa com um homem mais novo. Estou persuadido de que nunca acreditaria no sofrimento da filha às mãos de Pontallec e este jurar-lhe-ia a sua total inocência. Talvez até acreditasse, de boa fé, que ela estivesse realmente morta!

—   Talvez... Ele encontrou-se com ela no castelo de Hans e não a reconheceu'. De qualquer maneira, como conseguiu convencer Laura a não ir, a correr, contar a verdade?

—   Lembrei-lhe que tínhamos uma missão a cumprir e que o mal estava feito, que seria melhor deixar para mais tarde os as­suntos de família. O problema que tínhamos que resolver era o do embarque para Jérsia, já que não podíamos contar com a ajuda da nova marquesa. Foi Laura que encontrou a solução.

—   Em Cancale.

— Sim. Lembrais-vos, penso, de Joël Jaouen, o homem de con­fiança de Pontallec, com quem travei conhecimento no clube dos Amigos da Liberdade, nos começos da Revolução...

—   Como poderia esquecê-lo? — disse Batz, encolhendo os om­bros. — Foi graças a ele e à confiança que depositou em nós que soubemos o que se passava na Rua de Bellechasse e que pudemos intervir para subtrair aquela infeliz às manigâncias do marido...

—   Perdoai-me! Estou de tal modo atormentado que já nem sei onde tenho a cabeça! Recapitulando... Anne-Laure de Pontallec, o funeral discreto da filhinha, Jaouen, que tinha tentado, em vão, impedi-la de voltar a casa e que lhe disse que, caso ela precisasse de um refúgio que fosse para Cancale, para uma pequena casa que ele lá tem, que se chama Clos Marguerite e da qual uma vizinha e prima tinha a chave. E tinha acrescentado que, se ficasse em peri­go, seria sempre possível passá-la para Jérsia. Portanto, fomos a Cancale. Para meu grande alívio, confesso: o ar de Saint-Malo es­tava demasiado insalubre para o meu gosto...

—   Acredito. Portanto, foram até lá?

—   Sim, na carroça de um comerciante de ostras, orgulhoso por transportar um Guarda Nacional... e uma mulher bonita! Indicou--nos a casa de Nanon Guénec, a prima de Jaouen. É na direcção do Grouin, um local um pouco selvagem onde só há três casas, nas quais se inclui a Clos Marguerite.

— E essa Nanon Guénec acolheu-vos bem?

—   Encontrámos melhor: o próprio Jaouen... mas quão mudado! Ao princípio até pensámos que era outra pessoa...

A voz do jornalista acabava de baixar de tom até se transformar num murmúrio e, por um instante, calou-se, recordando o instan­te em que uma porta se abriu para as profundezas de uma casa, barradas pela grande forma de um homem que parecia ter cober­to o rosto com o colmo do telhado, de tal maneira a barba, o bi­gode e as sobrancelhas se juntavam aos longos cabelos que não viam um pente há muito tempo. Um homem de polainas, de socos e com uma camisa suja, da qual uma das mangas pendia, vazia...

Sob aquele matagal, os olhos deviam ver bem, porque reco­nheceu os visitantes. Com um grunhido que mais parecia um so­luço, quis voltar a fechar o batente da porta, que não tinha largado, mas Pitou foi mais rápido. Avançou um pé calçado com um espesso borzeguim e entalou-o na porta:

—   Não nos mandes embora, Jaouen! Precisamos de ti... Então, tinha-os deixado entrar, mas sem dizer uma palavra, indo-se sentar à lareira, já só quase com cinzas...

—   E então? — impacientou-se Batz.

—   Jaouen perdeu, em Valmy, um braço e os sonhos de glória. Teria preferido morrer, mas, por mais extraordinário que possa pa­recer, foi tratado... e bem tratado e foi mandado para casa. Então, foi para aquele asilo que queria oferecer a uma mulher, para ali viver como um selvagem, ou quase. Se a casa está mais ou menos é porque a velha Nanon trata um pouco dela quando ele lhe permite...

—   Lembro-me dele. Tinha uma tal força! Uma tal vitalidade! Por que milagre aceitou ele sobreviver?

—   Pode-se amar as ideias de liberdade, igualdade e fraternida­de sem abdicar da fé cristã. Para Jaouen, o suicídio é um crime sem perdão. Assim, continua a viver... A nossa chegada perturbou-o. Laura era, sem dúvida, a última mulher que ele esperava ver, no estado em que se encontra.

—   Continua a amá-la?

—   Sempre e cada vez mais, mas ela tratou do assunto com mui-ta inteligência e determinação. Durante mais de duas horas falou com ele, passeando ambos pela vereda que domina o mar. Eu fi­quei dentro de casa e aproveitei para mudar o uniforme pelo traje civil que tinha levado comigo. Sem dúvida, ela disse-lhe o que ele precisava de ouvir. Quando voltaram, os olhos de Jaouen tinham reencontrado um pouco de luz sob aquelas arcadas cobertas de pê­los. Ela disse-me que ele ia fazer com que eu pudesse chegar a Jérsia e, como eu protestasse, dizendo-lhe que devia acompanhar--me, respondeu-me: «Não, eu fico. Não sou indispensável para o su­cesso do nosso projecto e Joël precisa de mim. Tenho que o tirar deste marasmo em que se encontra, desde que foi ferido...»

—   Não tentou convencê-la?

—   Não, porque senti que não serviria de nada. Descoseu a bai­nha do vestido e entregou-me o diamante, dizendo-me que a fos­se buscar no regresso.

Batz, que retinha a respiração desde há momentos, deixou sair um suspiro de alívio:

—   Uf!... Cheguei a pensar que ela queria instalar-se naquele canto... tão próximo de Saint-Malo. Que são quatro léguas?

—   Eu também, mas não: sente, apenas, uma dívida de gratidão para com aquele homem que tentou abrir-lhe os olhos para o com­portamento do marido, que a tentou salvar dele... e dela própria. Não lutei contra a vontade dela: fiquei aliviado, creio, por já não ser necessário expô-la aos perigos do mar. Que estava muito mau quando chegámos a Cancale... Precisei de esperar alguns dias an­tes de Jaouen me dizer que estava tudo pronto, que seria para a noite seguinte...

—   Ontem à noite, portanto...

—   Com efeito. Por volta das dez horas acompanhou-me até uma pequena praia a que chamam Saucey. Estava lá uma barca e um pescador. Pouco depois vimos o cúter inglês fundeado a algu­ma distância. Parti... e aqui estou!

Pela primeira vez desde o seu reencontro, Batz sorriu para o seu fiel tenente. Por fim, a angústia fora-se. Graças a Deus, Laura não estava no fundo do mar, ou vítima de um mau encontro e, por isso, sentia uma alegria extrema, maior do que esperava...

—   Portanto, está tudo bem! Você vai-me dar a pedra e eu vou partir no navio que me trouxe... Não tem vontade nenhuma de ir a Londres, pois não? — acrescentou com súbita suavidade.

O rosto de Pitou iluminou-se, ao mesmo tempo que desapare­ciam as nuvens que lhe escureciam o olhar azul, no qual Batz lia como num livro aberto.

—   Vós... vós não precisais de mim?

—   Não mais do que de Laura, a partir do momento em que a pedra saiu de França. Além disso, não disse aos seus amigos que voltaria?

—   Disse. De qualquer maneira, tenho que passar outra vez por Cancale: achei mais prudente deixar lá o meu uniforme de Guarda Nacional. Tenho que ir buscá-lo...

—   Mas certamente! — disse Batz.

E desatou a rir, chamando a criada para pedir dois quartos: o seu navio só partiria no dia seguinte. Quanto a Pitou, iria, sem dú­vida, esperar vários dias, antes de conseguir um navio inglês, que se aventurasse a aproximar-se da costa bretã.

 

O dia que Batz passou em Jérsia — em companhia de Pitou, bem entendido! — passou-o, em parte, em visita ao príncipe de Bouillon, refugiado em Saint-Aubin, no domínio comprado pelo seu pai adoptivo, o duque Godefroy, príncipe de Turenne.

Era uma personagem curiosa, este príncipe, adoptado com o consentimento dos Estados de Bouillon, em 1791. Puro nativo de Jérsia, originalmente chamava-se Philippe Dauvergne, filho de Éli­sabeth Le Gueyt, uma linda filha da ilha e de um simples tenente da marinha inglesa, que pretendia estar ligado à família do con­quistador de Jerusalém através de um ramo muito antigo, que remontava ao século XIII. As ditas pretensões deviam ter parecido autênticas, já que o velho duque decidiu fazer dele seu filho e con­firmou esta decisão nas suas disposições testamentárias.

Marinheiro de coração como o seu pai natural, o jovem Philippe assumiu o peso de uma das mais ilustres linhagens euro­peias com prazer evidente e perfeita naturalidade. Inteligente, ti­nha uma alma cavalheiresca e um coração sensível e generoso. Os infelizes que desembarcavam em Jérsia encontravam, por parte dele, um acolhimento compreensivo. De cabelos louros e olhos azuis, largura de ombros normanda, para não dizer britânica, era também um alegre pândego, cujas aventuras galantes não tinham conta. A sua única mania era aquele título de príncipe, que lhe soava agradavelmente aos ouvidos e lhe permitia reinar sobre uma pequena corte onde instalara uma etiqueta quase como em Versalhes.

Recebeu os visitantes inesperados com um entusiasmo que aqueceria o mais gelado dos corações, mas que se ensombrou quando Batz o informou dos seus projectos: tirar a família real do Templo, de maneira dispersa, para não renovar os erros de Varennes, mas sobretudo o pequeno Rei Luís XVII, sobre quem pousavam, presentemente, todas as esperanças daqueles que eram perseguidos em território francês.

Aceitaria o príncipe oferecer ao rei-criança o asilo inexpugná­vel de que ele tinha necessidade e reunir em torno dele as forças necessárias à reconquista do trono?

Mal tinha acabado de falar e já as lágrimas subiam aos olhos do príncipe. Demasiado emocionado para falar, pousou as mãos nos ombros de Batz e abraçou-o:

—   Eu, cavaleiro do Rei? Seu protector e mais humilde servo? Nunca me ofereceram nada tão magnífico e exaltante!

—   Eu é que fico feliz, monseigneuri Nunca duvidei, por um único instante, de que aceitaríeis, mas entendamo-nos bem: trata--se do Rei, unicamente do Rei! Nunca o conde da Provença, que se faz chamar regente de França, o deve substituir ou vir para aqui viver com ele. Apenas a Rainha — com a filha, bem entendido — se isso for possível, e vós sabeis bem como ela abomina o cunhado...

Bouillon não sabia de nada, nunca tendo posto os pés na Corte, mas à evocação de Maria Antonieta, com quem muitos ho­mens sonhavam, o seu olhar brilhou, ao mesmo tempo que se lhe esboçava já na cabeça um romance, na grande tradição do amor cortesão.

—   Saberei defender os dois contra o mundo inteiro, juro-vo-lo pela minha fé e pela minha honra! Não ficais algum tempo, barão?

— Não, parto para Londres amanhã de manhã, mas o meu ami­go Pitou, que regressa para França, ficará aqui ainda alguns dias. Se Vossa Alteza tem alguma mensagem para fazer chegar à Bretanha, ele estará na London Tavern até à partida do próximo »correio celeste», como os vossos navios são chamados pelos infe­lizes que desesperam à espera deles...

—   Onde quer ele desembarcar?

—   Perto de Cancale.

—   Vou tratar disso pessoalmente! Será levado a bom porto!

 

Uma semana mais tarde, sob um céu sem lua e um mar enca­pelado, um vigia, postado na falésia de Grouin, como quase todas as noites, avistou um navio a bordejar com precaução ao longo da costa. Agitou então uma lanterna de furta-fogo, da qual libertou a luz segundo um código bem estabelecido. O brigue, por seu lado, emitiu três sinais luminosos. O homem correu na direcção de algumas «casas de confiança» onde, em esconderijos, estábulos, ce­leiros, esperavam refugiados, para se dirigirem à praia de Saucey. Eram cada vez mais numerosos desde a morte do Rei...

Entretanto, o navio inglês lançava ao mar um escaler tripulado por dois marinheiros. Pitou entrou nele e remaram com força na direcção do local de desembarque. Ao aproximarem-se, apare­ceram várias silhuetas negras. Uma mulher carregando nos braços uma criança, dois padres, um homem armado até aos dentes e duas raparigas...

Pitou saltou para terra, mas antes de se afastar tomou a crian­ça nos braços, permitindo que a mãe pudesse embarcar com mais facilidade, entregando-lha de seguida sem que aquela acordasse. Era um bebé cuidadosamente embrulhado em lãs, deixando ape­nas entrever a pontinha do nariz. Pitou sorriu para a jovem:

—   Vai correr tudo bem — disse ele. — Tende coragem! É um bom barco.

—   É do mar que tenho medo. As vagas são tão fortes...

—   As vagas são a profissão dos marinheiros e estes são exce­lentes. Boa sorte!

Permaneceu ainda um momento no local, vendo o escaler afas­tar-se, dançando nas ondas. Uma rajada de vento apanhou-lhe o amplo capote, que se enfunou como uma vela e quase lhe levou o chapéu. Teve a impressão que as vagas estavam maiores e, maqui­nalmente, fez o sinal da cruz, invocando a Virgem Maria que a jo­vem, há pouco, lhe fizera lembrar. Em breve não via mais nada senão a silhueta delicada do brigue, com o velame reduzido. Por fim, após um tempo que lhe pareceu incrivelmente longo, as velas ga­nharam volume e o navio salvador fundiu-se na noite. Pitou, desco­briu, então, que tinha frio e lançou-se pela vereda cuja entrada tinha avistado à chegada. Alguns minutos mais tarde, corria pela charneca na direcção da casa de Jaouen. Tinha pressa de reencontrar Laura, o sorriso naqueles olhos negros, para lhe dizer que tudo ia bem e que o perigoso diamante azul de Luís XV estava em segurança nas mãos do barão. Além disso, tinha pressa de a levar para longe daquela ter­ra bretã, que lhe tinha valido outra decepção, outra ferida.

Mas por mais que batesse e chamasse à porta e às janelas, nin­guém lhe respondeu. O vento levou-lhe a voz até aos ouvidos de Nanon Guénec. A anciã dormia pouco e nas noites de tempestade não dormia mesmo nada: rezava pelos desconhecidos que abriga­va, por vezes, e que preferiam sempre o perigo do mar à raiva dos homens. Pegou na sua grossa manta de burel, calçou os socos e saiu sem qualquer lanterna: a charneca, conhecia-a como ninguém e Clos Marguerite ficava próxima.

— Para que é esse barulho todo? — gritou ela quando se apro­ximou do homem cuja silhueta apercebera. — E antes de mais, quem sois vós?

—   Sou eu, Ange Pitou. Sabe quem sou, não sabe? Por que é que ninguém me responde? Dir-se-ia que não está ninguém?

—   Não está ninguém...

—   Para onde foram, então?

—   Venha comigo. Tenho uma carta para si... e também o seu uniforme.

Nanon já se tinha virado na direcção da casa. Pitou seguiu-a sem nada dizer, o espírito cheio de pontos de interrogação, mas consciente da fadiga após uma travessia difícil e ávido por um can­to de lareira.

Tendo-se desembaraçado do capote molhado, foi-se sentar num dos assentos talhados no granito da grande chaminé e segurou, com prazer, na malga de cidra quente que a anfitriã lhe ofereceu. O líquido estava a ferver, mas ele bebeu-o com avidez, sem pres­tar atenção aos protestos do seu esófago: era boa, aquela chama que se lhe colava ao corpo!

—   Partiram ambos... ou Jaouen foi acompanhar Laurra... a al­gum lado?

Aquele «algum lado» não podia significar, para ele, outra coisa senão Saint-Malo, onde ela devia ter querido regressar.

—   Partiram ambos. Joël barbeou-se, por fim, e lavou-se. Leva­vam os dois um saco cada e ele deu-me as chaves da casa como sempre que sai. Mas leia! Talvez essa carta lhe diga tudo!

Ela estendeu-lhe um bilhete dobrado, simplesmente, porque a confiança não se preocupa com sinetes, ou outras barreiras. Nanon não o tinha lido. De resto, não havia grande coisa para ler:

 

«Perdoe-me não ter esperado por si, escrevia a jovem. Temos uma tarefa a cumprir, Jaouen e eu. Seja nosso amigo, não nos procure e volte para Paris. Encontrar-nos-emos lá um dia, pode ter a certeza...»

 

Com um suspiro exagerado, Pitou voltou a dobrar a carta.

—   Não é difícil adivinhar para onde foram! Partiram como e em que direcção?

—   Por ali — disse Nanon, estendendo o braço para oeste. E a pé!

—   Bem! Quatro léguas não é muito... — murmurou ele, recor­dando o trote executado entre Hans e Pont-de-Sommevelles em tempo recorde por Laura e ele próprio. A falsa americana era sóli­da sob a sua aparência delicada...

Virando e revirando a carta entre os dedos, como se esperasse extrair, assim, mais informações, Pitou sentiu-se desamparado. Foi talvez, nesse instante, que tomou consciência do seu amor por Laura, escondido aos seus próprios olhos, tanto como aos dos outros — pelo menos assim pensava! — sob a máscara da amizade e da solicitude. Reencontrava a angústia sentida quando foi deixada nas mãos dos prussianos', à qual se juntava, desta vez, um terrível sentimento de ciúmes: fora com Jaouen que ela partira, Jaouen, cujos sentimentos apaixonados pela esposa de Pontallec, Pitou nunca ignorara. E não era difícil adivinhar a que intenções obedeciam, fugindo assim sem esperar pelo seu re­gresso, sabendo perfeitamente que Pitou se teria oposto, com todas as suas forças, a uma acção qualquer, em Saint-malo ou al­gures, contra o novo casal. Assim, Laura recusava-lhe a protec­ção, o apoio sem falhas que ele queria ser para ela, a fim de se meter numa aventura insensata... e com um maneta como acrés­cimo!

Por trás das suas lunetas, Nanon Guénec observava o seu visi­tante sem dizer nada, adivinhando muito bem o que lhe ia na ca-beça. Após um certo tempo, ele virou-se para ela:

—   Importa-se de me dar o meu uniforme, por favor? Com a sua permissão, vou-me mudar...

Ela foi-lhe buscar o pretendido e indicou-lhe a divisão a seguir à sala comum. Em seguida, avivou o fogo sob a panela que tinha preparado na véspera, procurou bolos de trigo e toucinho e pre­parou uma refeição:

—   Quatro léguas são quatro léguas! — disse ela quando Pitou reapareceu. — Senti-las-á menos com o estômago aconchegado. Vai ter com eles, claro?

—   Não. Ela proibiu-mo! Vou só a Saint-Malo apanhar a dili­gência de Rennes para regressar a Paris.

—   Pela diligência? Ela não sai todos os dias...

—   Eu espero — disse Pitou, detestando e esperando, ao mes­mo tempo, essa espera. Que outra coisa havia de fazer?

Mas não houve qualquer espera. Ao chegar à cidade pirata, Pitou soube que a diligência sairia de Rennes dois dias depois e só tinha duas horas até apanhar a ligação. Passou pelo albergue do patrão da muda, comeu sem prazer, limitando-se a escutar os sons, os fragmentos de conversação que não lhe ensinavam nada, resis­tindo com vontade indomável, extraída da cólera e do desgosto, à vontade de ir observar os arredores da residência de Laudren, não se permitindo, sequer, uma pergunta à gentil criada, visivelmente enternecida pela sua face melancólica e olhos azuis... Sem se preo­cupar com aqueles que a amavam, Laura Adams acabava de esco­lher, segundo ele, o nome de Anne-Laure de Pontallec. Ele não ti­nha o direito de se meter nos assuntos dela.

Com a morte na alma, foi-se instalar na carruagem e na quin­ta-feira de manhã, às cinco horas, retomava o seu lugar ao lado do cocheiro, na boleia da «carroça» que o levaria a Paris no espaço de uma longa semana. Teria preferido uma viatura mais rápida para esse regresso interminável, no qual cada etapa lhe lembraria uma vinda tão agradável, mas, além de um Guarda Nacional, via­jando sozinho numa carruagem rápida se tornar suspeito, não ti­nha dinheiro suficiente para uma despesa dessas. No momento da sua separação, Laura e ele tinham partilhado a quantia entregue pelo barão de Batz e não restava grande coisa...

 

   AS INQUIETAÇÕES DO CIDADÃO LEPITRE

Enterrada numa poltrona instalada a um canto da chaminé do seu belo salão oval, Marie Grandmaison observava a dança das chamas e o avermelhar das brasas. Pela primeira vez, desde há semanas, sentia-se bem, descontraída, o espírito livre de todos os pensamentos negros que a atormentavam após a partida de Batz, tirando-lhe o sono e o apetite. Mas, graças a Deus, o medo termi­nara! Ao menos por algum tempo, e era esse mesmo tempo que a jovem queria saborear, sabendo que não duraria muito, já que o seu amante não era dos que rompem com um combate antes de ele ter terminado. Mais tarde ou mais cedo voltaria a partir e ela reen­contraria as suas angústias, mas, para já, o presente era maravilho­samente liso e doce: Jean estava presente, a alguns passos dela, no gabinete de trabalho onde fazia as suas contas, classificava notas e consultava os jornais e gazetas empilhadas durante a sua ausência.

Estava-se a 15 de Fevereiro de 1793. Lá fora fazia frio. A neve acolchoava o jardim, duplicava a espessura dos telhados, transfor­mava a terra negra e os caminhos intransitáveis em magníficos ta­petes brancos, por vezes arranhados pelas patas das aves. Caíra com abundância às primeiras horas do dia, criando um grande si­lêncio. Um magnífico cofre para a concha de doce calor e felici­dade, no qual Marie se enroscava como um gato...

Jean chegara por volta da meia-noite, quase sem barulho, se­gundo o seu hábito, mas o ouvido fino da jovem ouvira o ligeiro rangido do portão e o passo do cavalo sobre o cascalho ainda seco do pátio, antes mesmo de a descida desvairada de Biret-Tissot, pela escadaria abaixo, acordar os ecos da casa. O fiel criado também não dormia muito nos últimos tempos; tolerava mal que o seu patrão percorresse as grandes estradas sem ele, mas para esta viagem ao outro lado da Mancha Batz mostrara-se inflexível: a protecção de Marie estava antes de tudo. Sobretudo depois do atentado de que a jovem fora vítima no dia da execução do Rei...

Apenas o tempo de enfiar umas pantufas, atirar uma manta por cima da camisa de noite e Marie corria, também ela, na direcção do recém-chegado, chorando de alegria e alívio. Por fim, ele chegara!

Ele recebeu-a nos braços, repreendendo-a por sair assim, tão--pouco vestida, para o frio mordente da noite, levantou-a do chão e levou-a para o quarto dela, dizendo a Biret:

—   Prepara-me qualquer coisa! Morro de fome!

Era verdade, tinha fome, sede, frio, mas como era bom enfiar o rosto gelado na seda viva daquela cabeleira, sentir o coração de Marie bater contra o seu! Desde Bolonha, para onde o mar intratá­vel o atirara, que pensava nela, no seu sorriso, na sua doçura, no seu corpo. E quando a apertou contra si, aquele corpo tão suave, pensou apenas em fundir-se nele, num aniquilamento feliz, no qual se apagavam a lassitude, a decepção e todos os sofrimentos. Fez amor com ela com uma fome e uma violência que a surpreen­deu e encantou, porque a jovem podia, assim, medir a necessida­de que ele tinha dela...

—   Sou um bruto — confessou ele, arrependido. — Ainda por cima, devo cheirar a cavalo... a bode! Perdoa-me!

—   Não faz mal, o importante é que tu amas-me! E não achei assim tão desagradável! — disse ela, rindo. — Posso lembrar-te, agora, que tens fome?... E que o tabuleiro que Biret trouxe deve estar frio?

—   Não tem importância! A discrição é uma virtude grande de-mais nele, para se queixar do resultado...

O tabuleiro estava lá, com efeito, depositado em frente da porta, mas não tinha qualquer prato quente ao lado da garrafa de vi­nho de Champagne: uma terrina de lebre, queijo, pão e compotas deveriam conseguir saciar o viajante, que colocou o tabuleiro so­bre o leito após ter enchido de bolhas saborosas os dois copos que acompanhavam a refeição.

— Mmmmh! Que bom! — saboreou Marie, de olhos fechados, bebendo o vinho em pequenos goles.

—   O champanhe foi feito para momentos de alegria, meu co­ração, mas mais ainda para o amor. Dá sempre vontade de reco­meçar. E depois, é ainda mais delicioso — acrescentou ele, dei­xando cair na boca da jovem umas gotas que os lábios desta recolheram; mas, a seguir, defendeu-se contra novas arremetidas.

—   Primeiro come e depois conta-me tudo! É uma vergonha es­tar tão feliz quando outros estão tão infelizes!

— Não vejo nada de vergonhoso nisto! Quer gozemos este ins­tante, quer não, a sorte dos que estão em perigo não muda. Aliás, até pode ser que um dia destes nós próprios também venhamos a ser infelizes. Portanto, gozemos enquanto podemos!

Começou a devorar, com o apetite de um homem que passou horas a cavalo e, durante um momento, Marie contentou-se em o observar.

Por fim, perguntou:

—   A expedição foi satisfatória?

—   Sob todos os aspectos... enfim, quase! William Gray, o joa­lheiro de New Bond Street, esqueceu a fleuma ao ver o que eu lhe levava. Nem sequer discutiu o preço. Pela simples razão de que soube, imediatamente, a quem o iria vender...

— À Coroa de Inglaterra, suponho?

—   Supões mal. Arriscar-se-ia a um muito mau negócio, ao pas­so que deve ter na manga um cliente extremamente afortunado. Pagou. Eu podia ter recebido a quantia em guinéus sonantes e pe­sados, mas preferi letras de câmbio sobre... vários bancos. Temos, assim, uma fortuna com que preparar as augustas evasões...

—   Oh, fico tão feliz! E agora, fala-me de Laura e Pitou. Eles vêm de diligência desde Bolonha, imagino?

Batz ficou a olhar para o bocado de queijo no garfo, como se lhe quisesse mal.

—   Não. Quando disse que a viagem quase me satisfizera, dis­se-o por causa de Laura. Oh, involuntariamente, claro! Nunca mais a vi desde que nos separámos aqui. Ficou na Bretanha e foi Pitou que levou o diamante. Mas só até Jersey.

Uma nuvem de inquietação assomou aos olhos claros da co­mediante:

—   Não lhe aconteceu nada de mal, ao menos?

—   Não, mas aconteceu-lhe «um„ mal. Pouco vulgar, aliás...

Batz restituiu o relato que ouvira na London Tavern. Concluiu dizendo que Pitou voltara a partir para a Bretanha a fim de encon­trar Laura e trazê-la de volta.

—   Que história! Suspirou a jovem. — Aquele Pontallec parece--me uma boa imitação do diabo! E a mãe da nossa pobre Laura deve estar louca!

Jean encolheu os ombros, desiludido.

—   Achas que sim? Examinemo-la com lucidez. A ex-Mme. de Laudren atingiu os 40 anos e, pelo que sei, ainda é bela. Desde a morte do marido, que amava, que afundou a dor no trabalho, to-mando o lugar dele à cabeça de um negócio importante de armamento naval. Só se lembrou que era mãe quando recebeu um novo golpe: quando soube que o filho, Sebastião, acabava de morrer no mar. Quanto à filha, não lhe suscitava qualquer interesse. Deixou--a aos cuidados das criadas, a um convento, a uma madrinha e a um padrinho.

—   Eu sei isso tudo, Nem sequer veio ao casamento dela, na ca-pela de Versalhes...

—   Justamente! O genro, não o conhecia, ou quase. Talvez nem nunca o tivesse visto antes de ele se lhe apresentar após a morte prematura da filha e do caso de Somme-Tourbe, onde lhe meti al­gumas polegadas de ferro no corpo: o casamento tinha sido arran­jado por intermédio da Rainha'. Ora, se nunca viste Pontallec, pos­so assegurar-te que é muito sedutor e que não tem menos de oito ou nove anos do que ela. Não deve ter tido grande dificuldade em conquistar aquele coração solitário, como se diz nos romances. Parece que ela está fora de si!

Enquanto escutava o amante, Maria, de braços cruzados, anda­va de um lado para o outro no quarto. Por fim, disse:

—   Eu sei que Pitou não podia ter agido de outro modo, já que ela se queria ocupar daquele homem à deriva, mas não gosto nada da ideia de a ter deixado para trás. Crês que esta caridade súbita é a verdadeira razão? No lugar dela...

—   Sim? Que terias feito no lugar dela?

—   Creio... que teria tentado qualquer coisa para pôr termo a um tal escândalo... e salvar a minha mãe — apesar de os laços nunca terem sido estreitos! — porque, com um tal homem, essa mu­lher está em perigo, se tem fortuna.

—   Oh, eu pensei nisso tudo. E Pitou também, que ardia de de­sejo de voltar para o pé de Laura...

Levantou-se e tomou Marie nos braços para a obrigar a sentar--se ao pé dele, sobre o leito:

—   Se eles ainda não voltaram para Paris, não devem tardar. E tenho absoluta confiança em Pitou... Ele ama-a demais para não fazer tudo para a proteger. Oxalá acontecesse o mesmo com ela!... Voltemos a nós, minha doce, minha bela, minha querida, pequeni­na, Marie!

A continuação pertencia àqueles momentos de amor que Marie, no fundo da sua poltrona, revivia com delícia. Houvera muitos, de-pois da paixão que os tinha atirado para os braços um do outro, desde que Jean a arrancara ao teatro dos Italianos, onde ela en­contrara o sucesso, para a instalar naquela bela casa de Charonne — comprada em nome do irmão dela, director dos Correios, em Beauvais, mas pertencente, na realidade, ao barão de Batz, como muitas outras casas em Paris. Ali ela era a castelã, recebia com gra­ça aqueles que ele lhe pedia para acolher, mas, de facto, era o refúgio mais seguro e mais caloroso do conspirador e, até ao mo-mento, apenas os fiéis do Rei, os verdadeiros amigos, lhe conhe­ciam o endereço e ali se encontravam.

A sineta do portão interrompeu os sonhos agradáveis da jovem. As visitas diurnas não eram numerosas e o Inverno tornava-as ain­da mais raras. Era, sobretudo, com o cair da noite, que as pessoas vinham a casa de Batz, onde os quartos estavam sempre prontos para os hóspedes que o encerramento das barreiras de Paris im­pedia de voltar para casa. Marie levantou-se para ver quem era o recém-chegado, mas Biret-Tissot já se encaminhava para acolher o homem que se apresentava. Ela não o conhecia e não ficou, por-tanto, surpreendida, quando ele não se dirigiu ao salão, indo di­rectamente para o gabinete onde trabalhava o barão.

No entanto, era demasiado feminina para não ser curiosa e, quando ouviu os passos do criado nas lajes do vestíbulo, saiu para o questionar.

— Quem é? — perguntou ela sem elevar a voz.

Biret aproximou-se dela na ponta dos pés e cochichou:

—   O cidadão Lepitre... É um dos comissários da Comuna, que vigiam a torre do Templo. Foi graças a ele que... miss Laura e Mme. Cléry se puderam instalar na rotunda, perto da muralha'. Vi-o lá umas duas ou três vezes e o senhor barão conhece-o bem.

—   Nunca veio aqui, que eu saiba?

—   Não e deve ter havido uma razão muito forte para ele se aventurar a vir aqui. Disse-me que tinha a maior das urgências em falar com o senhor...

—   Com efeito. Não o conheço, mas o menos que se pode dizer é que não trazia um ar muito tranquilo. Ao atravessar o pátio, olhava para todos os lados, como se tivesse medo de ser visto...

Que Lepitre estava inquieto, saltara logo aos olhos de Biret quando lhe abrira o portão e não escapou a Batz quando aquele foi introduzido no seu gabinete. Deixando cair a pena com que es­crevia, levantou-se vivamente e aproximou-se do visitante.

—   Vós? Aqui?... Que se passa, meu amigo? Pareceis muito perturbado... sem fôlego... e gelado — acrescentou, após ter tocado nas mãos geladas do visitante. — Fostes perseguido?

—   Não... Não, graças a Deus!... Peço-vos... desculpa por ter vin­do... importunar-vos, mas era absolutamente necessário...

—   Sentai-vos e descansai um pouco. Comereis connosco daqui a pouco, mas, entretanto, bebei isto!

Batz meteu-lhe nas mãos um copo de aguardente fabricada pelos camponeses da sua região de Armagnac, da qual tinha uma pequena reserva. Lepitre aceitou com uma careta de reconheci-mento, bebeu o conteúdo de um trago, engasgou-se, ficou violeta e, finalmente, recobrou a cor normal e um fácies mais sereno.

—   Obrigado!... É boa... mas muito forte!

—   Também, não se bebe assim! — comentou o barão, servin­do-lhe nova dose. — Aquecei um pouco o copo nas mãos... e di­zei-me o que vos traz!

—   Está-se a preparar uma conspiração para salvar a família real... e eu estou metido nela!

As sobrancelhas trigueiras do barão levantaram-se.

—   E como é que eu não sei de nada?

—   Correm rumores que após a tentativa de raptar o Rei antes do cadafalso vós fugistes para Inglaterra...

—   Fiz uma viagem a Inglaterra — corrigiu Batz secamente. — Não fugi. Não é o meu estilo e os que me conhecem sabem-no bem. Quem é que está à cabeça?

—   O cavaleiro de Jarjayes e Toulan...

—   Toulan? Um dos vossos colegas comissários no Templo? E um dos mais rigorosos? Sempre tratou os prisioneiros sem grosse­rias, mas com severidade.

—   Bem, parece que tem a confiança da Rainha!

E Lepitre contou como, no último dia 2 de Fevereiro, o gene­ral-cavaleiro de Jarjayes recebera em sua casa um homem, do qual tinha todas as razões para desconfiar, mas que, no entanto, se afir­mara mensageiro da viúva real, transportando, aliás, um bilhete es­crito por ela.

Que Maria Antonieta tivesse escolhido Jarjayes, a quem pedir socorro, não tinha nada de extraordinário. Esse militar de alta pa­tente, nomeado marechal-de-campo e chefe-adjunto do depósito da Guerra, em 1791, era, sem dúvida, um dos mais devotados à causa real e provara-o em várias ocasiões. Através da mulher, com quem casara em 1789 — tinha então 34 anos! — tornara-se fami­liar de Versalhes.

Logo que foi nomeado para o estado-maior com o posto de co­ronel, encontrou-se várias vezes com os soberanos. Com efeito, Louise Quelpée de La Borde era uma das 12 primeiras aias da Rainha que, como Mme. Campan, velavam pelas suas jóias e fi­nanças. Um casamento bem conseguido, porque Louise não era uma adolescente saída de um convento: era viúva, em primeiras núpcias, de Philippe Hinner, o mestre-harpista da Corte, de quem Mme. Cléry fora aluna. O Rei e a Rainha tiveram, portanto, ocasião de ver várias vezes o cavaleiro de Jarjayes e de lhe apreciar o va­lor. São de espírito, de inteligência rápida, de uma fidelidade e de­voção a toda a prova, Jarjayes sabia conciliar o respeito mais pro­fundo e a franqueza mais sincera, não receando dizer, por vezes, verdades difíceis de ouvir. Luís XVI sabia que podia contar com ele e, tal como a Batz, encarregou-o de várias missões. Depois de Varennes, tornou-se no intermediário discreto entre a Rainha e o jovem deputado Barnave, imbuído das novas ideias e até fundador do clube dos Jacobinos e que, durante a terrível viagem de regres­so de Varennes, caiu sob os encantos de Maria Antonieta, com a qual trocou correspondência: o cavaleiro recebia nas algibeiras as comunicações de Barnave, a Rainha tirava-as e metia, em seu lu­gar, as suas. Estas trocas, porém, não levaram a nada. Vendo que a Rainha não seguia nenhum dos seus conselhos, Barnave regressou à sua cidade natal, Grenoble, que era também a de Jarjayes. No seguimento, a Rainha, quase prisioneira nas Tulherias, utilizou com bastante frequência o cavaleiro para a sua correspondência secreta. Entre outros, com o embaixador da Áustria, o conde Mercy-Argenteau, reformado em Bruxelas. Não terá sido estranho, portanto, que após a morte do marido e sabendo-se em perigo, Maria Antonieta, na ausência de Batz, não sabendo se este voltaria, ou não, tenha pedido socorro ao seu fiel correio.

Com Toulan, a história era outra.

Este originário de Toulouse de 32 anos, livreiro e comerciante de música de seu ofício, estabelecido primeiro na Rua Saint-Honoré e depois na Rua du Monceau-Saint-Gervais para estar mais perto do Hôtel de Ville, era um dos mais acirrados defensores da Revolução. Dotado de espírito vivo e bastante trocista, ficara conhecido devido a alguns discursos incendiários, pronunciados de pé sobre uma ca­deira no Palais-Royal, e pela sua participação activa nas jornadas do 20 de Junho e, sobretudo do 10 de Agosto: fora dos primeiros a en­trar nas Tulherias. Inteligente, de boa índole, afirmava-se como ad­versário feroz da realeza em geral e do Rei em particular. Tudo títu­los que lhe haviam valido ser nomeado para a vigilância do «tirano» aprisionado no Templo. Ora, que aconteceu? Mal entrou em fun­ções, ante o olhar horrorizado da família real, receosa pela sua che­gada, no espaço de dois dias, o seu ódio e preconceitos deram lu­gar a uma profunda admiração pela bondade dos prisioneiros, pela sua doçura e pela extrema dignidade sob circunstâncias tão terríveis. Mantendo um exterior severo — e as suas convicções republicanas — François Toulan mudou de atitude sem levantar suspeitas junto dos colegas. A morte do Rei encheu-o de desgosto, de horror e de medo pela sorte das três mulheres e do pequeno rapaz que perma­neceram cativos. E uma ideia impôs-se-lhe: era preciso tirá-los dali e permitir-lhes deixarem a França, onde já não tinham qualquer papel a desempenhar. No seu espírito, o pequeno Rei já não ostentava o título pomposo de Luís XVII e combateria qualquer tentativa para o instalar no trono. Não passava de uma criança infeliz e ele esperava que pudesse ter uma existência livre, como toda a gente...

— Conheço Toulan desde a sua instalação em Paris com a jovem mulher Françoise — disse Lepitre. — Quando aqui cheguei — talvez não saibais que eu era professor de retórica no colégio de Lisieux? — fui, mal abriu um pensionato na Rua Saint Jacques, em 1790, no-meado professor de belas-letras no colégio de Harcourt... que vai fechar, aliás! Se bem que não pertencesse ao meu bairro, ia muitas vezes a casa de Toulan e reencontrámo-nos na Comuna. Tínhamos prazer em dialogar em latim, em recitar, juntos, obras de Pindare...

Adivinhando que o seu hóspede partia para um dos seus dis­cursos floridos, cheio de citações que eram o seu pecado venial, Batz interrompeu-o:

—   Vamos ao que importa, caro amigo! Eu já sei tudo isso, por-que, como deveis saber, antes de admitir seja quem for, informe-me. Dizei-me, antes, o que é que o vosso Toulan foi propor a Jarjayes.

—   Um plano que ele concebeu para fazer evadir a família real. Evidentemente, o cavaleiro não se deixou ir com essa simplicida­de, mas Toulan tinha um bilhete escrito pela Rainha em pessoa e Jarjayes conhecia bem a letra dela. Dizia, entre outras coisas, que, para ela, Toulan se chamava Fidèle... Difícil de duvidar depois daquilo, não é verdade?

—   Difícil, com efeito. E depois?

—   O cavaleiro exigiu uma condição: falar, ele mesmo, com a Rainha!

—   Não era exigir de mais e correr um grande risco?

—   Sem dúvida. No entanto, Toulan conseguiu. O cavaleiro de Jarjayes entrou no Templo na noite de 7 de Fevereiro vestido como o acendedor de candeeiros que vai lá todos os fins de tarde, a vara ao ombro. Habituados à sua presença regular, as sentinelas dei­xam-no passar, a maior parte das vezes sem lhe pedirem a carta.

— Excelente! — exclamou Batz. — Uma ideia genial! Portanto, ele viu a Rainha?

— Viu e pôde trocar algumas palavras com ela, ao mesmo tem­po que Toulan se ocupava do casal Tison, aqueles horrorosos, que era suposto servirem os prisioneiros, mas que não passam de es-piões, cheios de ódio e fel. Dos quais a Rainha desconfia como do fogo! Depois, Toulan conseguiu fazer passar dois outros bilhetes e foi acordado o plano definitivo.

—   E então?

—   É isso! Numa destas noites, quando a guarda estiver, por exemplo, sob a responsabilidade do vosso amigo Cortey, o acen­dedor de candeeiros, que vai por vezes com um ou dois dos filhos, será substituído, de novo, pelo cavaleiro. Chegará mais cedo do que o previsto e voltará depois, aflito, à procura dos filhos, como se se tivesse esquecido deles (a guarda já não será a mesma) e fará sair o Rei e a sua irmã vestidos com os trajes imundos dos filhos. Ao mesmo tempo, a Rainha e Madame Élisabeth sairão vestidas com os uniformes que nós teremos levado aos bocados. Terão, também, os salvo-condutos habituais dos guardas.

—   E durante esse tempo todo, os Tison, cruzam os braços? — Serão neutralizados — murmurou Lepitre, com uma voz que começou, subitamente, a tremer.

O que afectou desagradavelmente o ouvido fino do barão:

Lepitre não devia gostar muito do papel que lhe tinham reservado...

—   E depois, uma vez a família real fora do Templo? — Mudar-se-á na pequena casa que os Jarjayes têm em Vaugirard e partirá para Inglaterra. O cavaleiro fará o que for preciso, mas... — Mas, o quê?

Lepitre baixou o nariz.

— Para realizar tudo isto, é preciso dinheiro e nós não o temos. Os Jarjayes estão, praticamente, arruinados e Toulan não é rico. A Rainha aconselhou-nos a irmos ter com o sr. de Laborde, o antigo arrematante dos impostos régios...

Batz deu um salto:

—   Laborde? Sua Majestade tem a desculpa de não estar a par dos factos, senão saberia que não podemos esperar nada desse ho­mem, que já recusou ajudar o Rei... e também os irmãos dele, aliás! Não deve acreditar muito num regresso da monarquia...

—   Isso sabemo-lo nós os três e não estamos menos embaraçados por isso...

— ... e pensastes em mim?

—   Sim, senhor barão, sabeis muito bem que pensámos em vós desde o início, mas uma vez mais não estáveis presente e, se vim esta manhã, foi à sorte.

—   Fizestes bem — disse Batz, rindo. — Vou falar com o cava­leiro de Jarjayes. Por agora, apaziguai os vossos medos! Vamos al­moçar e ficareis recomposto por completo.

O professor de belas-letras levantou para ele um olhar de cão escorraçado.

—   Saber-vos connosco é um grande conforto, mas, no entan­to, não me sinto tranquilo.

—   Neste género de empresa é difícil estar-se tranquilo, mas é verdade que vós me pareceis pouco à vontade. Que papel vos re­servaram, a propósito?

—  Arranjar os trajes, fazê-los entrar no Templo a meias com Toulan... e reduzir os Tison ao silêncio!

—   No que diz respeito ao dinheiro, assim como à compra dos trajes e o resto, encarrego-me eu. Faço tenção de dizer ao cavalei­ro que estou pronto a financiar a operação, porque não chega fazê--los sair do Templo, é preciso, também, levar para fora de França os nossos caros prisioneiros. É... o confronto com os Tison que vos atormenta?

Lepitre encolheu-se na cadeira como se tivesse frio, esfregou as mãos e, finalmente, deixou sair:

—   Sim... Eu não sou um homem de mão... muito menos um herói. Sou um modesto professor de belas-letras... e morro de medo!

A sua expressão metia tanta pena que Batz não se pôde impe­dir de rir.

—   Não acredito! Quem salvou Mme. Cléry e miss Adams do pe­rigo que representava o municipal Marinot?

—   Senti uma vontade irresistível de as ajudar. Quanto a Marinot, apenas vos preveni. Não fui eu que o matei...

—   Não, fui eu! Mas vós fostes dos nossos na tentativa infeliz para salvar o Rei e...

—   Estive convosco de todo o coração, mas não fiz nada. Estava aterrorizado e na manhã de 21 de Janeiro fiquei enfiado em casa... — ... na companhia de dois guardas, eu sei.

—   Não. Na companhia da minha mulher. Nenhuma força hu­mana teria sido capaz de me arrancar de lá. Portanto, prefiro pre­venir-vos, barão: à medida que o plano se vai definindo, vou fi­cando cada vez mais aterrorizado...

Era lastimável, com efeito e Batz pensou na famosa frase de Romeu e Julieta, de Shakespeare: «Só tenho medo do teu medo.» Lepitre devia conhecê-la, mas o barão escusou-se de a citar em voz alta. Naquele género de empresa, o antigo professor representava o elo fraco da cadeia que, ao quebrar, poderia deitar tudo a perder...

— No entanto — gaguejou o infeliz, quase em lágrimas — gos­tava tanto de vos ajudar! Eu quero, sabeis, eu quero! Mas não te­nho defesa contra mim próprio!

—   Vamos, acalmai-vos! A partir do momento em que o sabemos, podemos aligeirar-vos o fardo. Os uniformes são algum pro­blema para vós?

—   N...ão! Não... posso fazê-lo, mas...

—   Tendes medo dos Tison? Tratarei disso com o sr. de Jarjayes. Vamos para a mesa, entretanto: eis a campainha que nos convida... Mas Lepitre tinha algo mais para dizer:

—   Já me esquecia! Toulan e o cavaleiro também contam comi­go para os passaportes da família real. Sou presidente da comissão que os entrega...

Batz, que se dirigia já para a porta, para a abrir para o seu hós­pede, virou-se, subitamente brusco:

—   E então? — disse ele. — Onde é que vós vedes a dificulda­de? Tendes tudo na mão: os impressos, os carimbos e talvez as ac­tas todas assinadas pela Comuna?

—   Sem dúvida, mas...

—   Se tendes medo que a vossa mão trema ao preenchê-los, tra­zei-mos. Saberei, podeis crer, fazê-los conforme com tudo. Mais verdadeiros do que os verdadeiros!

—   Nesse caso...

Lepitre tinha respondido com a ponta dos lábios, nada con­vencido, e esse pormenor não escapou ao barão. No entanto, fez como se nada tivesse percebido, pensando que iria ser necessário, ou vigiá-lo, ou afastá-lo da conspiração. Esta última solução, radi­cal, não o satisfazia: comissário no Templo e à cabeça do serviço oficial de passaportes — podia sempre fabricá-los ele próprio, Batz sabia como, mas os fugitivos não estariam tão protegidos como sob a égide dos seus inimigos — Lepitre era difícil, se não impossível, de substituir... Portanto, teria que ser vigiado, mas a quem confiar tal tarefa? O ideal seria o Guarda Nacional Pitou, cujo uniforme lhe permitia entrar em todo o lado. Simplesmente, onde estava Pitou e quando regressaria? Toulan e Jarjayes deviam querer raptar os pre­ciosos prisioneiros o mais rapidamente possível e Batz concordava com eles... O melhor seria, talvez, tranquilizar Lepitre!

O instante parecia favorável. Reconfortado pela boa refeição, os vinhos generosos e o sorriso de Marie, o professor, propenso a enternecimentos, confiou à sua anfitriã que tinha composto, em companhia de Mme. Cléry, um romance, A Piedade Filial, inspirado pela morte do Rei e dedicado ao jovem Luís XVII, romance que apresentara à Rainha. E, retirando um papel da algibeira, começou a ler:

 

       «E por que choras, minha mãe?        No teu olhar fixo em mim        vejo o amor e o medo.

       Vejo toda a tua alma...»

 

À medida que os versos se desenrolavam, os olhos marejavam--se-lhe de lágrimas. Acabou, fungando furiosamente, o texto, cujc fim era consagrado a Madame Élisabeth:

 

       «Ah, lembra-te dos últimos votos

       que, ao morrer, o teu irmão exprimiu:

       fica junto de minha mãe

       e os seus filhos terão duas.»

 

Para lhe dar tempo de se recompor depois de acabar, ajudado por um grande lenço para estancar a emoção, Marie aplaudiu con entusiasmo, intimando Jean, com um olhar severo, a fazer o mesmo

— É muito belo, na verdade! — exclamou ela. — Quanta almm nesse poema e como vós o declamais bem! A Rainha deve ter sen tido uma verdadeira consolação ao ouvi-lo...

— Creio que sim, porque recebi o mais belo dos agradecimen tos. Quando voltei ao Templo, oito dias mais tarde, fizeram-me en trar no quarto de Madame Élisabeth e tive a alegria inexprimível de ouvir o meu romance cantado pelo jovem Rei, acompanhado ao clavicórdio — um velho clavicórdio encontrado por mim no celeiro do Templo e que mandei afinar! — pela pequenina Madame Royal... Ah, que momento! Sua Majestade não conteve as lágrimas e    todos nós, aliás, chorávamos...

Batz, que achou a anedota um pouco forte demais, quase per­guntou se o casal Tison também tinha chorado e se tinha apre­ciado aquele momento tão emocionante. Mas conteve-se: era pre­ciso aproveitar, o melhor possível, a emoção em que se banhava Lepitre, levada ao auge pelos elogios de Marie. O professor de be­las-letras gozava um momento de intensa admiração por si próprio...

—   Caro amigo — censurou-o ele suavemente — parece-me que correstes grandes riscos nessa ocasião e que eu ignorava. Face aos projectos que me haveis confiado, fizestes, talvez, prova de uma nobre imprudência e ser-vos-á necessário, doravante, ter mais cuidado... ficar um pouco na retaguarda, trabalhar numa sombra mais espessa. Na verdade, seria trágico se a vossa devoção vos pu­sesse demasiadamente em perigo...

—   Quereis que me retire? — sugeriu Lepitre, uma nota de es­perança na voz.

—   Não, creio que sois indispensável. Mas vou fazer-vos uma proposta e suplico-vos que não vejais nela qualquer ofensa, qual-quer atentado ao vosso desinteresse. Tenciono entregar-vos, nos dias mais próximos, uma... certa soma... em ouro, para que no pró­prio dia da nossa empresa possais deixar o país com Mme. Lepitre e       viver para lá das fronteiras da maneira que vos convier...

—   Exilar-me? Mas... e a minha escola?

—   Receio que, mais tarde ou mais cedo, sejais obrigado a re­nunciar a ela. Portanto, é melhor antecipar esse facto. Tereis ape­nas que abrir outra, em Londres, por exemplo, para as numerosas crianças emigradas e depois, quando tudo estiver terminado — porque tudo terminará um dia! — voltardes para a Rua de l'Observatoire... a menos que o novo Rei, reconhecendo, com todo o mérito, vos proponha a direcção de um colégio real. Ou, melhor ainda, uma cadeira no colégio de França?

A esta gloriosa evocação, as estrelas multiplicaram-se nos olhos um pouco ternos de Lepitre. Nunca fora sedutor: baixo, de ventre redondo, além de uma ligeira claudicação, o bravo homem não tinha nada de Apolo, mas perante as perspectivas abertas por Batz, quase ficou belo. O seu anfitrião fez deslizar o último argu­mento:

—   Naturalmente, partireis ao mesmo tempo que a família real. Tratarei disso pessoalmente...

As estrelas ainda brilhavam quando o professor de belas-letras concordou.

—   Muito bem, meu amigo — suspirou Marie quando ele desa­pareceu — fizestes dele um outro homem.

—   Era o que eu esperava. Ainda bem que reparastes.

—   Estava triste de morte à chegada. Mas contais com ele na conspiração? Não é muito tranquilizador.

—  Quando ele entrou, há bocado, eu ignorava toda esta cons­piração, mas acho-a interessante...

—   E ele é que é a alma?

Batz desatou a rir:

—   Deus do céu, não! Este infeliz está dividido entre o desejo de se devotar ao serviço do Rei e o medo dos perigos que isso lhe pode acarretar. Enquanto os planos estiverem no papel, sente a força de um leão, mas quando tomarem consistência, ficará tão me­droso como uma lebre. Dito isto, meu anjo, vou a Paris... passan­do pelo convento.

Como se o frio exterior acabasse de entrar na casa, Marie acon­chegou sobre os ombros o xaile de lã fina e pêlo de cabra do Tibete, de um belo vermelho-profundo, que Jean lhe trouxera de Londres.

—   Tradução: não vos verei esta noite... nem, talvez, nos próxi­mos dias?

—   Esta noite não, com efeito. O cavaleiro de Jarjayes, com quem quero encontrar-me, vive na Rua Helvétius', tal como o nos­so amigo Roussel. Dormirei em casa dele. Abraçai-me enquanto te­nho alguma hipótese de vos agradar. Não será o caso daqui a uma hora...

 

Uma hora mais tarde, com efeito, no «camarim de teatro» que arranjara na sacristia do convento deserto da Madeleine de Traisnel, na Rua de Charonne, Batz procedia a uma das suas mudanças de personalidade, das quais tinha o segredo. Desdenhando para essa noite o resmungão cidadão Agricol, ou o silencioso agua­deiro da Rua des Deux-Portes, optou pelo cidadão Hans Müller, um jovem alsaciano, cândido mas fervoroso republicano, vindo da sua Colmar natal para se instalar em Paris, a fim de poder ver, mais de perto, as grandes coisas que ali se desenrolavam e os grandes actores, de feitos admiráveis. O resultado foi obtido à custa de uma peruca loura e frisada, enormes lunetas que mais pareciam fundos de garrafa, bolas de látex colocadas nas bochechas para arredon­dar o rosto e vestimentas apertadas mas quentes — filho do Su­doeste, Batz era friorento! — podendo convir tão bem a um do­méstico de burguês, como a um pequeno professor primário. Um furioso sotaque germânico disfarçava-lhe por completo a voz. Com efeito, para além dos seus conhecimentos de alemão, inglês, ou ita­liano, um dos seus talentos consistia em adoptar, da maneira mais natural deste mundo, o sotaque que mais lhe agradasse. Para tal in­dumentária, a neve justificava as botas curtas, o grosso manto usado por cima de uma carmanhola à moda e o tricórnio usado, à moda antiga, enfiado até às sobrancelhas, e até a grossa bengala, de madeira nodosa, que podia servir como moca e que continha um longo e sólido punhal.

Assim equipado, Batz embrenhou-se, em passo largo, pelas ruas cheias de neve, tentando evitar a valeta central, onde a brancura fora substituída por lama negra. O caminho era longo, mas os jar­retes de aço deste homem de 32 anos permitiam-lhe cobrir grandes distâncias antes de experimentarem uma verdadeira fadiga. No en­tanto, era já noite fechada quando, à luz das raras lanternas que deixavam ver poças de claridade rodeadas de sombras densas, puxou a campainha da residência em tempos propriedade de Lulli. Uma mulher veio abrir-lhe a porta, sem dúvida uma criada. Batz pediu--lhe o «cidadão Jarjayes da parte do cidadão Toulan...». Sem dizer uma palavra, a mulher rodeou-o com um olhar crítico e depois de­sapareceu, deixando-o só num vestíbulo glacial. Ao cabo de um instante, um batente da dupla porta ao fundo abriu-se, deixando passar um homem vestido de negro, cujo porte era o de um militar e o rosto, um pouco severo, o de um ser inteligente e reflectido. Após ter examinado por um instante o visitante, fê-lo entrar num pequeno salão onde, graças a um bom fogo e grandes cortinas de seda azuis, cuidadosamente esticadas, reinava um agradável calor.

—   Que se passa? — perguntou o cavaleiro. — Por que é que Toulan não vem ele próprio? E, antes de mais, quem é você? Dis­seram-me «Müller». É isso?

—   Foi isso que eu disse, mas não passa de um pseudónimo. Eu sou o barão de Batz.

—   Não se parece nada com ele.

—   A ideia é essa! — disse Jean, rindo-se. — Assim, reconhecer--me-íeis? — acrescentou ele tirando a peruca e as lunetas fumadas. — Não gostaria de escarrar diante de vós as bolas que me arre­dondam as bochechas...

Mas já o general se descontraia:

—   É melhor assim. Sentai-vos... e ponde isso tudo de novo: é mais prudente. Portanto, vistes Toulan?

—   Não. Vi, hoje mesmo, Lepitre, que foi a minha casa ao aca­so, na esperança de que eu tivesse voltado.

—   É verdade, dizia-se que tínheis emigrado. O que teria sido uma coisa prudente, após a vossa louca tentativa para arrancar o Rei à sua sorte. Tentativa para a qual eu teria gostado que me ti­vésseis chamado.

—   Para quê? Para que o traidor que nos denunciou acrescente um nome à sua lista?

—   Talvez eu o tivesse podido denunciar? Creio conhecer bem os meus contemporâneos.

—   Também eu pensava conhecê-los, mas o homem é falível, como sabeis, sem dúvida... e não venho aqui para discutir aquilo que chamais a minha «louca tentativa», que teria, sem dúvida, di­reito à etiqueta de heróica se tivesse tido êxito. Acrescento que não emigrei: passei simplesmente por Inglaterra para lá realizar um as­sunto de dinheiro. Dinheiro de que tendes necessidade, segundo Lepitre. A propósito, sabeis que este Lepitre pode ser o elo fraco desta vossa empresa? O homem está morto de medo.

—   Creio que exagerais. É verdade que não é nenhum Bayard, mas leva tão a peito a sua devoção para com a Rainha e os filhos, que faz o seu melhor contra uma fraqueza bem humana. E eu estou persuadido de que conseguirá. Além do mais, é-nos indispensável...

—   Para os passaportes?

— Com efeito. Os que nos arranjar resistirão a qualquer exame sério, o que não aconteceria com papéis falsos, por mais bem exe­cutados que fossem.

Batz absteve-se de dizer que tinha dado conforto aos senti-mentos realistas do professor, abrindo-lhe horizontes muito simpá­ticos. Era evidente que o sr. de Jarjayes não era fácil de manobrar. Era daqueles homens que, uma vez a decisão tomada, não se dei­xam deter por qualquer obstáculo nem aceitam qualquer crítica. Aqueles que admitia para trabalhar com ele deviam ser inatacáveis. Batz preferiu passar a outro assunto:

—   Lepitre disse-me que o vosso plano está pronto, mas que o ponto fraco é o dinheiro. Eu estou pronto a dar-vos tudo aquilo de que necessitarem. Disponho de fundos consideráveis, destinados, aliás, à salvação do Rei e dos seus... Estou persuadido de que se­rão empregues com conhecimento de causa. Mas, antes do mais, de onde vem essa grande confiança que dais a Toulan, que eu co­nheço como um dos mais irredutíveis republicanos agregados ao Templo... Ele ter-vos-ia dado um bilhete?

Jarjayes encaminhou-se até uma secretária, puxou uma gaveta escondida e tirou um pequeno papel que devia ter sido dobrado várias vezes e desdobrado com pena.

—   Ei-lo. Conheceis a letra da Rainha?

—   Conheço... É a dela, sem dúvida — confirmou Batz, presa de súbita emoção ao ler aquele pequeno fragmento, no qual Maria Antonieta escrevera:

 

«Podeis ter confiança no homem que vos falará da minha parte, entregando-vos este bilhete. Nós chamamos-lhe Fidèle. Os seus sentimentos são-me conhecidos: há cinco meses que não variam. Mas não confieis demasiado na mulher do homem que está aqui fechado connosco. Não me fio nela nem no marido...»

 

—   Creio que Sua Majestade vos previne, neste bilhete, contra os Tison, um casal hipócrita e odioso, pretensamente ao seu servi­ço. Representam o obstáculo mais difícil de transpor... e a princi­pal razão para o pavor de Lepitre. Ter-lhe-íeis confiado a tarefa de os «eliminar»? Ele não o conseguirá...

—   Eu sei, é um grande problema. Ainda por cima porque a Rainha recusa que nos desembaracemos deles de forma radical...

—   Conseguistes, segundo me disseram, falar com ela durante alguns instantes?

—   É verdade, tinha-o exigido antes de dar a minha confiança a Toulan. Ah, barão, como hei-de dizer-vos o que senti ao reen­contrá-la naquele quarto de chão irregular, as paredes cobertas de mau papel verde, de grandes desenhos! Os móveis não valiam mais e acharam que seria agradável colocar sobre a chaminé um relógio representando a Roda da Fortuna! Que ridículo!

Sob a influência de uma emoção súbita, a carapaça gelada do cavaleiro acabava de estalar, para grande satisfação de Batz, que se sentia pouco à-vontade.

—   Ela mudou muito? — perguntou ele docemente.

—   Sim e não. Continua muito bela, muito digna, muito orgu­lhosa, mas os cabelos estão brancos e o rosto transporta os traços do desgosto.

—   É preciso fazer de maneira que outras dores não se juntem às que já sofreu. Eu sou-vos dedicado, general. Confiais-me os por-menores do vosso plano?

— Obrigado... do fundo do meu coração! Portanto, eis o que decidimos fazer nesse dia. Lepitre falou-vos nos uniformes dos municipais?

—   Falou. Posso arranjar-vo-los, se não souberdes como.

—  Tinha pensado mandá-los confeccionar pela minha mulher e Mme. Lepitre, mas a dificuldade está nos chapéus...

— Precisareis de dois: o mais simples seria se Toulan e Lepitre esquecessem os deles nos aposentos das prisioneiras com alguns dias de intervalo. Tereis os vossos uniformes dentro de três dias...

—   Levá-los-emos para lá peça a peça. A Rainha e Madame Éli­sabeth vesti-los-ão. Sua Majestade sairá primeiro, na companhia de Lepitre. A guarda do Templo não é de recear: basta mostrar a car­ta para que as sentinelas os deixem passar. Além disso, os munici­pais usam uma écharpe tricolor que afasta qualquer suspeita. Al­guns minutos mais tarde, Ricard...

—   Quem é esse?

—   É o primo de Toulan, também ele muito devotado. Fará o papel do acendedor de candeeiros que vai em busca do filho que teria esquecido na torre, ao fazer a ronda. Esse miúdo será Madame Royale disfarçada com a vestimenta suja: calças, carmanhola e     um velho chapéu com peruca:

—   E Madame Élisabeth?

—   Essa será a última, vestida com um dos uniformes, na com­panhia de Toulan. Quanto ao pequeno Rei, temos um problema, porque é muito jovem, muito curioso e muito falador para desem­penhar um papel, mas Toulan teve uma ideia: como ele é franzino muito leve, será Turgy que o transportará num cesto de roupa suja. Conheceis Turgy?

—   Conheço, pois! E pergunto-me por que razão eu não via esse fiel criado, que consentiu em ser fechado no Templo para conti­nuar a providenciar a alimentação de Suas Majestades e evitar eventuais tentativas de envenenamento. A ideia parece-me boa, mas será preciso adormecer a criança. E, a propósito, por que não fazer o mesmo aos Tison?

—   Porque eles tomam as refeições à vez, em baixo, ao pé dos municipais...

—   Diabo! E eles não têm... uma fraqueza qualquer por vinho, ou outro produto qualquer?

—   Têm. Tabaco de Espanha. São loucos por ele e para os ama-ciar, Toulan arranja-lhes algum de tempos a tempos...

—   É disso que precisamos! Vou arranjar algum... à minha ma­neira e posso assegurar-vos que dormirão bem. Assim, a Rainha fi­cará satisfeita e não será derramado sangue. Mas voltemos à saída da Rainha. Por que confiá-la a Lepitre, que pode quebrar?

—   Justamente! Não «quebrará» se estiver na companhia dela, porque lhe vota uma espécie de culto e a força de alma de Sua Ma­jestade impedi-lo-á de falhar.

—   Sim — disse Batz sem mais comentários. — E depois?

—   Uma vez fora do Templo, juntar-se-ão todos a mim na Rua de la Corderie, onde estarei à espera com uma carruagem.

—   Só uma para tanta gente? Quereis reeditar Varennes? Pela primeira vez, Batz viu Jarjayes sorrir:

—   A Rainha disse exactamente a mesma coisa. Não me apetece nada dividir a família, mas penso que teremos de o fazer. Talvez três cabriolés: um para a Rainha, o Rei e eu, o segundo para a pequena Madame e Lepitre e o terceiro para Toulan e Madame Élisabeth. Turgy e    Ricard voltarão ao Templo no dia seguinte como se nada tivesse...

—   E para onde ireis?

—   Isso ainda não está decidido. Talvez para Le Havre, onde um dos meus amigos nos pode arranjar um barco. É aí que nos faz fal­ta o dinheiro...

Batz levantou-se e foi até ao espelho da chaminé para pentear a peruca, colocar as lunetas e assegurar-se de que o disfarce esta­va de novo perfeito:

—   Estou a ver que tenho muita coisa a fazer. Ocupai-vos uni­camente da fuga do Templo. Eu encarrego-me de tudo o resto: car­ruagens, rumo, mudas, barco... Le Havre não me diz nada: os portos mais próximos de Paris estarão vigiados assim que a fuga for conhecida. Prefiro os maus caminhos de Cotentin e o embarque para Jérsia, onde o príncipe de Bouillon já se está a preparar.

—   É mais longe, portanto, mais perigoso...

— ... e é mesmo por essa razão que o acho preferível.

—   Não estou de acordo! Temos que voltar a falar. De qualquer maneira, devemos discutir o assunto com os nossos associados. Estão previstas reuniões na Rua de l'Observatoire, em casa de Lepitre...

—   Mais? Ele ainda morre de medo antes da data prevista! E, a propósito, já há uma data prevista?

—   Nos primeiros dias de Março. É preciso agir rapidamente. Com o Rei morto, os ódios viram-se para a Rainha... Onde posso esperar por vós?

—   A algumas casas daqui vive o meu amigo Balthazar Roussel. Ele saberá sempre onde me encontrar. Aliás, vou passar a noite com ele.

—   Será prudente meter outras pessoas num assunto tão confi­dencial?

O olhar do barão tornou-se glacial:

—  Roussel foi daqueles que arriscaram as vidas no dia 21 de Janeiro. Devia escoltar o falso Luís XVI sabendo perfeitamente que seria apanhado, o que permitiria ao Rei fugir em paz. Se o recu­sardes, recusais-me a mim.

— Não tenho escolha. Trazei-me, então, aquilo de que necessito.

—   Gosto dessa franqueza! Até à volta, senhor de Jarjayes! Quando chegou à rua escura, Batz levava consigo um sentimento de mal-estar que não conseguia explicar. Não era falta de confiança em Jarjayes. Sabia-o direito como a lâmina de uma es-pada, um verdadeiro cavaleiro no espírito da Idade Média, um ho­mem de absoluta bravura, servida por um total desprezo pelo pe­rigo. O seu ponto fraco era acreditar, talvez demais, que os outros eram talhados segundo os mesmos padrões. E Batz lamentava que tivessem atribuído a Lepitre um papel muito mais importante do que o primitivamente anunciado: os trajes, os passaportes, as reu­niões em casa dele e, ainda por cima, a responsabilidade da eva­são da Rainha! Era demais, como o explicou ao seu amigo Roussel.

Este era o mais alegre companheiro que possa haver. 25 anos, possuidor de rendimentos, vivia à larga da fortuna deixada pelo pai, um grande negociante de produtos das ilhas da América, aos quais os acontecimentos dos últimos anos o tinham convencido a renunciar. Um belo rapaz moreno, amante das mulheres e dos vi­nhos de escolha, dos cavalos e do perigo, escolhera conspirar por amor ao desporto e ao sabor picante que o perigo trazia à sua vida de grande burguês. Devido a essa disposição de espírito bastante senhorial, votava por Batz uma admiração absoluta e uma dedica­ção total pela bravura louca e inteligência deste, assim como por um sentido de teatro que ambos partilhavam. Sempre admiravelmente vestido a despeito das modas bizarras impostas pelos revolucionários, não hesitava em se transformar num limpa-cha­minés, ou num trabalhador dos esgotos, se as circunstâncias o exigiam.

Acolheu o seu chefe, do qual ignorava o regresso, com entu­siasmo:

—   Já desesperava de vos rever um dia, barão... e aborrecia-me de morte! Paris não é Paris quando não estais!

—   Porque achais que a Paris actual se parece com a de outros tempos? Não me lisonjeais muito associando-me a essa ideia!

—   Bah, talvez seja menos elegante, mas é mais apaixonante. Arrisca-se a vida cada vez que se sai de casa.

— Acertastes — aprovou Batz, deixando-se cair numa poltrona confortável com um suspiro de felicidade. — Um dos vossos vizi­nhos está em vias de elaborar, com muito cuidado, uma missão — nada má, aliás! — para salvar a família real.

—  Ora aí está uma boa notícia! Vós estais metido nela, natu­ralmente, e eu também, a partir de agora! Aposto que o vizinho em questão é o cavaleiro de Jarjayes. Tem a cara distante e tenebrosa de um conspirador...

—   Apostai e ganhareis! Brincadeiras à parte, há, no projecto, al­gumas lacunas... ou antes, incertezas, que me inquietam.

—   Contai-mas. Temos muito tempo, porque, claro está, jantais comigo?

—   E, se não vos incomodar, também dormirei aqui. O regres­so a Charonne será demasiado perigoso.

—   Mais uma boa notícia! Estragais-me com mimos. Vou dizer a Taupin que prepare um quarto.

A casa era grande, com efeito, confortável e até luxuosa. Per­tencera em tempos a la Gourdan, célebre patroa de um bordel ele­gante, que contara entre as suas pensionistas a jovem e deslum­brante Jeanne Bécu, antes de se tornar condessa du Barry e favorita real. Por alguma contemplação para com os tempos perturbados, Roussel fechara a maior parte, mantendo em actividade apenas um apartamento de três divisões, onde Batz gostava de ir.

Os dois amigos jantavam tranquilamente, falando do projecto Toulan Jarjayes, quando se fizeram ouvir pancadas violentas na porta exterior, ao mesmo tempo que uma voz poderosa gritava:

— Abri! Em nome da Nação!

Por um instante confusos, os dois homens trocaram um olhar, antes de Balthazar Roussel se precipitar para uma janela que dava para a rua. Nela estava uma tropa de seccionistas armados de sa­bres. O punho de um deles servia de aldraba.

—   Que quereis? — gritou o jovem.

Aquele que parecia o chefe levantou a cabeça:

—   Já vos disseram para abrir! Que esperais?

—   Que me digais a que devo visita tão agradável — ripostou Roussel com insolência.

—   Escondeis um emigrado perigoso! O barão de Batz, que aca­ba de regressar a Paris. Abri, senão arrombamos a porta.

—   Eu vou lá! — disse Batz, tomando uma rápida decisão. — Dizei a Taupin que se esconda!

—   Quereis entregar-vos?

—   Não! Vou brincar aos bons servidores, meu amigo. Eu sou Hans Müller, o vosso “oficioso alsaciano».

—   Meu Deus! — disse Roussel, rindo. — Já vi tudo!

Mas já Batz descia as escadas, de archote na mão e fazia fun­cionar os ferrolhos:

—   Endrrai, zidadãos — exclamou ele no seu melhor sotaque. — Zois muito bem-vindos! Não é nezezzárrio arrombar a porrda!

— E tu, quem és? — perguntou o barbudo enfeitado com fitas tricolores que encontrou à sua frente.

—   Hans Müller, de Golmar, zidadão. Drrabalho em caza do zi­dadão Rouzzel...

—   E dizes que somos bem-vindos?

—   Brrocurrais o Patz, ezze mizerrável, gue guerria zalvarr o Gabezudo? Endão, repido: zois buito bem-vindos — Finde! Eu mostrro-vos o gaminho...

E precedeu amavelmente os quatro homens pela escadaria aci­ma, falando sempre e conseguindo que lhe mostrassem a ordem de prisão, que, à medida que caminhava, ia lendo como se fosse o mais belo dos textos. Sob a sua condução, a casa foi visitada de fio a pavio, sem que tenham descoberto o que quer que fosse. Entrando no jogo, o próprio Roussel recebeu-os com perfeita indi­ferença e ficou a vê-los vasculharem a casa sentado num pequeno fauteuil. Sabia que o esconderijo onde estava fechado Taupin, por trás de uma estante, não era fácil de encontrar. E, de facto, não o encontraram.

A visita terminada, «Müller», sob a ordem do patrão, foi à cozi­nha aquecer vinho com canela, que Roussel, sem qualquer rancor, ofereceu aos «bons cidadãos» que, para cumprirem o seu penoso dever, saíam de noite e sob um frio que se podia combater melhor na cama. Foram-lhe reconhecidos:

— Tu deves ter inimigos, cidadão — comentou o chefe da ex­pedição. — Alguém que te quer mal denunciou-te falsamente, na esperança de te criar problemas.

—   Oh, nos nossos dias, isso é quotidiano. Cada vez temos mais dificuldade em saber se quem nos aperta a mão é amigo ou inimigo.

— O melhor, se queres saber, é não apertar a mão a ninguém. Boa noite, cidadão! Vamos embora, pessoal! Voltamos para o quartel...

Assim que os seccionistas partiram, Batz e Roussel permitiram--se apenas uns momentos de brincadeira e cumprimentos mútuos. Esta aparição da polícia não era nada tranquilizadora.

—   Voltei a Paris a noite passada — disse Batz. — Como é que já sabem do meu regresso?

—   O medo, meu amigo! Eis o grande inimigo. Apodrece até aqueles que cremos mais determinados.

—   Talvez. No entanto, tenho dificuldade em acreditar que o homem, cuja assinatura vi na ordem de prisão, se tenha transfor­mado em inimigo. Não tem interesse nenhum nisso.

—   Quem é?

—   Lullier, o procurador que tinha um escritório na Rua de Vendôme, antes da Revolução. Fez favores a muitos jovens estroi­nas da nobreza e da burguesia com falta de dinheiro e até de al­guns menos jovens. Gere os bens de emigrados e até lhe confiei os interesses de Mme. de Beaufort, a dama do coração do meu amigo La Châtre. Pessoalmente, sempre tive excelentes relações com ele e não estou a ver por que razão me perseguiria! Vós sois demasiado jovem e demasiado rico para poderdes ter uma ligação comercial com ele.

—   Se é o mesmo Lullier que é procurador-síndico da Comuna, as suas novas funções devem tê-lo feito mudar a maneira de ver as coisas...

—   É o que iremos saber em breve. Amanhã, quando sair da­qui, vou a casa dele.

—   Sob esse disfarce?

—   Não. Emprestais-me um fato?

—   Isso é uma loucura! Vão mandar-vos parar imediatamente...

—   Veremos! Vamos, meu amigo, acrescentou Batz com um sorriso — não vos atormenteis assim por causa de um fato! Voltareis a vê-lo! Eu sou um homem muito cuidadoso!

 

Na manhã seguinte, com efeito, tendo trocado o velho tricór­nio por um elegante chapéu alto redondo e a carmanhola por um fraque cinzento-escuro sob o capote negro que trazia à chegada, Batz, com uma bengala na mão, deixava discretamente a casa da Rua Helvétius e chegava à praça do Palais-Égalité, onde apanhou um fiacre, indicando que se queria dirigir ao Hôtel de Ville. A dis­tância não era muito grande, podia tê-la feito a pé sem qualquer dificuldade. Mas o tempo tinha-se suavizado durante a noite e a neve derretia-se um pouco por toda a parte, transformando as ruas em lodaçais enegrecidos e fazendo com que qualquer homem, cui­dadoso com os seus trajes, se obrigasse a evitá-las. Por outro lado, convinha que a sua personagem entrasse de carruagem no pátio da casa comum...

 

         ONDE AS COISAS SE COMPLICAM

O temível tribunal da Comuna, no qual reinava o suiço Pache, o Rousseau dos pobres, reconvertido aos excessos revolucionários, era guardado por uma espécie de exército pouco tranquilizador, recrutado entre os coupe-jarrets de Héron e os tapedurs de Mail­lard. Ao homem hisurto, por barbear e armado como um barco de guerra, que lhe barrava a passagem, Batz contentou-se em decla­rar:

— Devo ver, com urgência, o cidadão Lullier por razões que in­teressam à Comuna.

Tudo num tom tão cortante e acompanhado por um olhar tão glacial, que o proposto resmungou uma coisa qualquer para si pró­prio e, como o visitante não pareceu compreender, fez-lhe sinal para o seguir. Um minuto mais tarde, Batz penetrava num vasto ga­binete que desabava sob a papelada, os registos e os documentos. No meio de tudo aquilo, um homenzinho enfezado, pálido, que parecia ainda mais pequeno para o enorme chapéu emplumado pou­sado sobre uma cadeira, assinava, uns após outros, folhetos pousados diante de si, após percorrê-los com olhos de especialista.

À entrada do elegante visitante, que os seus olhos vivos reco­nheceram imediatamente, reteve com dificuldade um movimento para se levantar, como fazia sempre para os seus bons clientes, lembrando-se mesmo a tempo da importância da sua personagem.

— Sempre em vias de assinar seja o que for? — exclamou Batz com bom humor. — Devíeis tomar atenção, meu caro Lullier: essa mania pode tornar-se perigosa... Por exemplo, quando vos deixais ir e assinais uma ordem de prisão contra mim.

Todos os sinais da inocência caluniosa se estamparam imedia­tamente no rosto do procurador-síndico:

—   Eu? Uma ordem contra vós? Nunca!

—   Segundo o que Roussel acaba de me contar, o papel que os que, a noite passada, lhe invadiram o domicílio da Rua Hélvetius, agitavam, parecia exactamente isso.

—   Mas é impossível, impossível! Oh, senhor b... senhor Batz, só pode ser um erro qualquer!

—   Também assim penso e foi por isso que vim ver-vos com tanta simplicidade. Seria uma grande pena se uma sombra tão de­sagradável viesse manchar as nossas excelentes relações passadas, presentes... e futuras. A propósito, tendes notícias da cidadã Beau­fort? O processo dela contra a cidadã La Châtre vai de vento em popa?

—   Tenho algumas esperanças. A partir do momento em que a cidadã La Châtre quer recorrer ao divórcio republicano, as coisas devem arranjar-se e conseguiremos, estou certo, um acordo equi­tativo, que deverá satisfazer ambas as partes.

À medida que falavam de negócios, Lullier transformava-se, reencontrando, com toda a naturalidade, por trás do funcionário picuinhas, o procurador hábil e amável. Era, com efeito, com um talento extremo, sem esquecer o seu lucro pessoal, que geria com discrição os bens de certos emigrados. Foi, portanto, com bastante naturalidade que concluiu o seu discurso:

—   Mas faláveis ainda há pouco do futuro? Teríeis algumas ideias... interessantes? — acrescentou ele baixando a voz vários tons.

—   É verdade — respondeu Batz, jogando o mesmo jogo. — Adquiri recentemente alguns bens, para a aplicação dos quais terei necessidade de conselho. Por outro lado, creio saber que merca­dorias, como o sabão e as velas, vão faltar e...

—   Chhh! — disse Lullier, levando o dedo à boca. — É melhor evitar aqui esse género de assunto.

—   Bah! Eu falo convosco onde vos encontro, meu caro amigo, sois vós que dirigis o debate.

—   Não peço mais, mas fora daqui. Por que não ides, uma noite destas, a minha casa? Aí estaríamos perfeitamente tranquilos: con­tinuo sem mulher e sem filhos! E nunca saio.

—   Com satisfação, meu caro Lullier! Portanto, fica assente: irei à Rua Vendôme... ou será na Rua de la Grande-Truanderie, como me disseram?

Lullier não conseguiu impedir-se de rir:

—   Esse último endereço não era conveniente para um homem das minhas funções — disse ele, designando o chapéu. — Dora-vante é no n.° 15 da Rua Louis-le-Grand. Sabei que sereis ali sem­pre bem recebido... com toda a segurança e sejam quais forem as circunstâncias — acrescentou ele com um olhar que provocou na espinha do barão um arrepio de alegria.

—   Nunca duvidei — disse ele suavemente. — Mas, então, e a ordem de prisão?

—   Mesmo que traga a minha assinatura, não sou perdido nem achado, mas vou tratar de saber quem está por trás de tudo isso!

Os dois homens apertaram-se as mãos, como que para assinar um pacto e separaram-se. Batz deixou o Hôtel de Ville cantarolan­do uma ária. Não somente acabava de evitar um grande perigo, como conseguira um refúgio no próprio campo dos raivosos man­da-chuvas de Paris. Como consequência, estava de excelente hu­mor ao voltar para o querido retiro solitário de Charonne. Pensava até que o dia tinha sido completamente feliz quando Biret-Tissot lhe disse que Ange Pitou acabava de chegar e que estava com Ma­rie no salão oval.

—  Miss Adams não está com ele?... Deve ter ido para o quarto dela...

—   Não, senhor barão. Ele está só.

—   Só?

A alegria do instante precedente apagou-se tão subitamente que lhe fez medo, mas não se demorou nessa impressão tão-pou­co habitual. Se Laura não tinha regressado com Pitou, era preciso saber porquê.

Ao entrar na grande divisão tépida e acolhedora, viu Pitou sentado, perto da chaminé, com Marie. Esta segurava as mãos do jovem e no seu encantador rosto reflectia-se todo o desgosto es­crito, com todas as letras, no do jornalista. Batz sentiu-se empali­decer:

—   Onde está ela? — perguntou ele sem se incomodar com pe­rífrases. Não está... morta, ao menos?

—   Não — disse Marie. — Simplesmente, ninguém sabe onde Laura se encontra a esta hora. Mas Pitou dir-vos-á o que se passa...

Este estendeu ao seu chefe a última carta de Laura, contentan­do-se em precisar:

—   Ao chegar a Cancale, encontrei a porta fechada. Nanon Gué­nec, a vizinha, deu-me isto...

—   Sangue de Cristo! — rugiu Batz quando acabou a breve lei­tura. — Devia ter desconfiado que ela preparava qualquer coisa deste género quando não a vi em Jérsia! Tentou encontrá-la?

— Ela não o queria — disse Pitou com um encolher de ombros acabrunhado. Confesso que lhe obedeci sem muita pena: sentia--me de tal modo cansado, desencorajado! Hoje, estou arrependido: ei-la na natureza, só, sob a protecção de um maneta...

—   Não! Fez bem! O seu tempo e a causa que defendemos são demasiado preciosos para serem perdidos à procura de uma mu­lher que eu ainda acabo por achar completamente louca!

—   Não sejais demasiado duro, Jean — pediu Marie. — Pensai um pouco no que ela deve ter sentido ao saber que a própria mãe se tinha deixado seduzir por Pontallec, ao ponto de lhe tomar o lu­gar, ainda quente, no leito deste?

—   Tendes uma imaginação! — resmungou Batz. — Admito que deve ter sido horrível, mas eu creio-a capaz das maiores toli­ces assim que esse homem aparece no horizonte. Em Hans, fiquei persuadido de que ainda o amava e isto confirma o meu julgamento!

—   Não é fácil julgar uma mulher como ela — disse Marie — e não creio que o amor tenha algo a ver com a decisão que ela to­mou. Inclinar-me-ia mais para um desejo de vingança... ou de pro­teger a mãe... de lhe abrir os olhos?

—   Elas nunca foram chegadas. Se a mãe está apaixonada, não terá senão um desejo: desembaraçar-se da filha. Ou então, talvez afaste Pontallec, mas Laura voltará a ser Anne-Laure... e a vítima es-colhida por esse miserável.

—   Não — assegurou Marie. — Eu dou-lhe toda a minha con­fiança. Aliás, ela diz que voltará. Penso que é preciso esperar e re­zar a Deus! O homem que a acompanha é de confiança, Pitou?

—   Joël Jaouen? Absoluta, se bem que tenha sido o compa­nheiro de infância de Josse de Pontallec e seu faz-tudo. Conheço‑o e sei quanto amor sem esperança ele vota pela nossa amiga. Deixar-se-á matar para a defender, mas aquele que era uma força da natureza tem um braço amputado. É mais fácil eliminá-lo nes­sas condições. Se Pontallec lhe põe a mão em cima, não lhe dará quartel, porque é extremamente rancoroso. E uma vez Jaouen mor-to... Laura não será argumento de peso!

— Oh, duvido! — suspirou Batz. No entanto, nas circunstâncias actuais, não posso enviar ninguém a Saint-Malo. Temos muito que fazer aqui. Onde está Devaux?

—   No vosso gabinete de trabalho. Há mensagens que ele tem que descodificar.

—   Venha, Pitou, vamos ter com ele e entretanto eu conto-lhe o que me disse o cavaleiro de Jarjayes...

O menos que se pode dizer é que o plano de evasão, tal como se encontrava naquele dia, não levantou qualquer entusiasmo a Mi­chel Devaux, o fiel secretário de Batz, ou a Pitou. Se os projectos de Toulan e do cavaleiro lhes pareceram generosos, inteligentes e até hábeis, o anúncio das hesitações angustiosas de Lepitre tiveram pior efeito:

—   Um homem assim tão-pouco seguro, pode deitar tudo a perder — declarou Devaux. — Para que um plano assim tenha su­cesso, não pode ter a mínima falha. Ora, eu vejo uma enorme. Le­pitre é um bravo homem, cheio de boas intenções, mas não é um homem bravo, e depositar esperanças num sobressalto de coragem é insensato. É arriscar demasiado, barão!

Havia uma reprovação na voz do jovem e Batz sentiu-a, tan­to mais que aqueles reparos respondiam aos seus pensamentos mais íntimos.

—   Eu vou-me limitar a assistir a uma das famosas reuniões, a dar-lhes o dinheiro de que precisam e a preparar a saída de Fran­ça dos prisioneiros... mas à minha maneira. Nem pensar em deixá‑los partir todos juntos e pelo mesmo caminho!

—   Sem dúvida, mas acontece que não temos o tempo neces­sário para pôr de pé tudo isso. Vós acabais de regressar de Lon­dres e se calhar ainda não vos disseram que aqui as coisas mudam com muita rapidez. Receio que a vigilância da Rainha tenha sido reforçada. Temos aqui uma carta vinda da Alemanha: assim que foi conhecida a morte do Rei, o seu irmão, Monsieur, deu todos os si­nais de uma grande dor, vestiu de luto, mas declarou-se logo re­gente de França com a bênção dos príncipes do Reno, mas não a do imperador da Áustria: este reclama a regência para a Rainha Maria Antonieta, sua irmã, e reclama-a em voz bem alta. Como os seus exércitos estão nas fronteiras, o povo de Paris leva-o muito a sério e as cabeças levantam-se contra a Austríaca. Os nossos valentes conjurados disseram-vos que todos os dias os energúmenos vão até às janelas da prisão urrar à morte?

—   Não, eles esqueceram esse... pormenor — resmungou Batz, cujo rosto se tinha ensombrado. — Tem razão, é preciso agir rapi­damente...

—   E não é tudo! Ainda há outros que gostariam de se atribuir a regência: os Girondinos, dos quais muitos são nossos «amigos». Votaram a morte do Rei para se desembaraçarem dele. Agora, ve­riam com bons olhos o «príncipe real», como lhe chamam em voz baixa, levado a um trono constitucional com que sonham desde a Legislativa, com um Conselho de regência composto de vários de entre eles!

—   Eu era capaz de aderir a esse projecto como um mal menor — disse Batz de olhos no chão. — Mas que tenham enviado o meu Rei para o cadafalso, não posso admitir. No entanto — acrescen­tou ele, levantando bruscamente os olhos — o que acaba de me dizer supõe um começo de fractura no seio da Convenção. Podemos experimentar tirar proveito disso...

—   Que ides fazer?

—   Eu? Nada... mas o cidadão Agricol vai reentrar de serviço e vai-se juntar, esta noite, à sua velha amiga Lalie, a tricotadeira, na taberna da Truie-qui-file. É preciso saber o que se passa entre os Jacobinos... e também entre o povo de Paris.

— O povo? — deixou sair Devaux com brutalidade. — Esse co­meça a rebentar de fome, o que não lhe melhora o humor...

 

Era o menos que se podia dizer. Quando várias horas mais tar­de o «cidadão Agricol» entrava com o passo gingão habitual dessa personagem, sempre entre dois copos de vinho, na Rua de la Tixanderie, onde se encontrava a sua taberna preferida, foi travado por um ajuntamento composto, sobretudo, por mulheres em fúria ocupadas no cerco a uma padaria e por um padeiro que, visivelmente aterrorizado, se esforçava, com os dois braços em cruz, por proteger a sua loja de uma devastação certa. Mas os seus apelos à calma, os olhos cheios de lágrimas, as súplicas da esposa apavorada, não chegavam aos ouvidos das mulheres, que o apelidavam de abusador, causador da fome do povo, mau cidadão e até — sabe Deus porquê? — apoiante dos aristocratas. O infeliz bem se esfal­fava, gritava, que não recebera farinha e que, sem esse material, não podia fazer pão, mas pregava no deserto. Em breve, aliás, as mais furiosas — não as mais necessitadas: essas contentavam-se em chorar, desencorajadas, à parte do sururu — seguraram-no ser­vindo-se dos braços dele estendidos, enquanto uma trupe lhe in­vadia a loja e o colocava sob uma lanterna com a intenção visível de o pendurar ali. O cidadão Agricol julgou, então, que era tempo de intervir.

—   Cidadãs! Cidadãs! — gritou ele com voz de estertor, o que podia dar que pensar a quem já tinha ouvido a voz asmática da personagem — Que ides fazer? É assim que se comportam aque­las que devem ser, para todo o mundo, o modelo das mulheres re­publicanas?

O sólido bordão que segurava na mão ajudou-o bastante a che­gar à primeira fila, mesmo em frente do padeiro que, liberto dos apoios forçados, se deixou cair no pavimento lamacento, abraçan­do as pernas daquele socorro inesperado. As cabecilhas recuaram maquinalmente. Sob a aparência de republicano autêntico, abun­dante sistema capilar cinzento e hisurto, o corpo prolongado por um ventre artificial, a grande carmanhola e o gorro ornado com uma enorme roseta, Batz, que era de altura mediana, mas atleta, parecia formidável. Uma das megeras, no entanto, apostrofou-o.

—   O qu'é que tu te 'tás pra aí a meter, oh tu? O modelo das mulheres republicanas tem fome...

—   Mas tu nã tens um ar assim tã esfomeado. 'Fás, até... bem redondinha — apreciou ele, com um sorriso que lhe descobriu os dentes amarelos e enegrecidos.

No entanto, a mulher, que estava no limite da obesidade, pare­ceu avaliar o eufemismo que fez rir as companheiras...

—   N'é por mim que falo! — disse ela em tom menos agressi­vo. — Eu até me contento com pouco... mas é as outras todas! Têm miúdos, que choram de fome...

—   E tu achas que vã ficar saciados se enforcarem este pobre cidadão?

—   É p'ra dar o exemplo.

—   O exemplo de quê? Um padeiro, se nã vender pão, de que é que vive? Ele nã faz isso por diletantismo, sabes, porque é uma profissão dura.

A mulher fez uma pausa, os olhos em ponto de interrogação:

—   Diletan... Qu'é qu'isso quer dizer?

—   Por prazer! — disse Batz, dividido entre a vontade de rir e a de dar umas bofetadas. Fora inteligente empregar uma palavra como aquela face a tais fúrias! — É uma palavra da minha provín­cia —, acrescentou ele.

Tinha esquecido o padeiro sempre aos seus pés, mas este lem­brou-lho endireitando-se:

—   Mas, cidadão, a minha profissão, também a faço um pouco por prazer. Porque gosto dela e sinto-me infeliz por nã poder fa­zer pão.

Aquelas palavras recolheram um murmúrio de aprovação. Infe­lizmente, nesse instante, uma das mulheres, que vasculhava a padaria, reapareceu brandindo um pequeno saco de farinha, tão grande como um melão...

—   Mas podes fazê-lo com isto? A menos que prefiras guardá-lo p'ra ti, poltrão, bandido!

Uma nova onda de cólera atirou as mulheres sobre o pobre ho­mem, que viu chegada a sua última hora demasiado depressa. Num instante, Batz sucumbiu sob o número, não ousando servir-se do bordão para desancar as furiosas e o padeiro viu-se empoleirado numa escada de mão vinda não se sabe de onde, ao mesmo tem­po que alguém corria a procurar uma corda. Uns minutos mais e o homem seria enforcado. Soluçava até partir o coração, sem con­testar a resolução das assaltantes, quando uma nova voz se fez ou-vir: fria e cortante, pertencia a uma grande mulher que poderia ter 45 anos, de rosto duro mas quase sem expressão. Vestida como qualquer mulher do povo, os cabelos cinzentos bem arranjados sob uma boina branca, tricotava enquanto andava, a bola de lã desenrolando-se da grande algibeira do avental azul. A sua voz aca­bava de gritar:

—   Há alguma entre vós que saiba fazer pão?

Todas as cabeças se viraram para ela. Lalie Briquet, a tricota­deira, era bem conhecida no bairro por causa da excelência da sua obra e da sua assiduidade às sessões do clube dos Jacobinos, ou da Convenção. Dizia-se, mesmo, que se dava bem com Robespier­re, que lhe acenava sempre com a cabeça, amigavelmente, quan­do passava perto dela. Além disso, ela impressionava pela calma, pela frieza, pelo rosto imóvel, onde não aparecia qualquer senti-mento. Se calhar, não sentia nenhum, desde que perdera o marido e a filha? O seu único defeito: gostava de beber um bom copo, mas não era a única e, aliás, nunca perdia o controlo.

—   Porque é que perguntas isso Lalie? — perguntou uma das mulheres. — Sabes bem que nã sabemos fazer pão. Senã, nã esta-ríamos aqui...

—   E quereis matar o padeiro?

—   Queremos, porque guardou a farinha p'ra ele.

—   Nã farias a mesma coisa se tivesses mulher e dois filhos? A farinha que encontraste só dá p'ra fazer um pão...

—   Talvez, mas era dever dele dá-lo e como, de qualquer ma­neira, não serve p'ra mais nada, a gente enforca-o.

Lalie, que fez de conta que tinha encontrado uma pequena di­ficuldade ao tricotar, levantou os seus olhos cinzentos e frios para a mulher:

—   És uma asneirenta, Euphèmie! Se tu queres farinha, só tens que a ir buscar onde ela `tá... por exemplo, em casa do cidadão Hulot, na Rua des Deux-Portes. Nã há qualquer família e o cora­ção dele é tã seco como uma pedra, mas nã lhe falta nada. Há de tudo na cave dele... Se quereis enforcar alguém, mais vale que seja ele...

—   Sim — disse a mulher com um fulgor de medo nos olhos — mas ele é um dos membros da Comuna e tem o braço comprido...

—   Também tu... a partir do momento em que pretendes dispor da vida de um inocente!

A réplica caiu num silêncio absoluto. Esquecendo o padeiro, que morria de medo empoleirado na escada, as mulheres reagru­param-se para um conciliábulo animado, de onde saiu o grupo que devia libertar o padeiro e fazer uma pequena visita ao cidadão Hulot. Uma delas atirou à ex-futura vítima:

—   Vai aquecer o teu forno! Vamos trazer-te aquilo de que pre­cisas...

O homenzinho fugiu como um coelho perseguido e enquanto a coorte feminina se dirigia para o seu novo objectivo, Lalie e o ci­dadão Agricol acharam-se sós.

—   Muito bem, minha cara! — apreciou o último. — Pode-se di­zer que tendes jeito. O cidadão Hulot arrisca-se a passar um mau quarto de hora...

—   Amplamente merecido, podeis crer! Mais avarento e egoísta não há — disse num tom diferente aquela que era, na realidade, a condessa Eulalie de Sainte-Alferine, convertida em mulher do povo para poder espiar e assim vingar-se do convencional Chabot, que lhe violou e matou a filha.

Mas não durou mais do que um instante, após o qual Lalie Bri­quet retomou o seu papel:

—   Nã tens sede, tu, cidadão Agricol? Eu cá bebia qualquer coi­sinha!

De braço dado, os dois cúmplices encaminharam-se tranquila-mente para a Truie-qui-file, onde Rougier, o patrão, os recebia sem­pre com prazer. Entretanto, iam conversando.

— As coisas vão mal na Convenção — disse Lalie — e, entre os Jacobinos, o caldeirão ameaça ferver. A luta recomeçou entre os Gi­rondinos e os homens de Robespierre, Danton e Marat. Os segun­dos acusam os primeiros de monarquismo maníaco e os primeiros acusam os segundos de quererem instaurar o Terror, sufocando toda a liberdade. Só se juntam para gritar «ó da guarda» contra a Convenção, que acusam de incapacidade como governante. É claro que é escusado gritar pela anexação do ducado des Deux-Ponts, no Reno, do condado de Nice e do principado do Mónaco, ninguém sabe o que se passa, ao mesmo tempo que o exército do Reno co­meça a perder os lugares conquistados. Dumouriez ainda mantém a Bélgica, mas já pensam em exigir a cabeça dele: parece que quer entregar o território aos austríacos e passar-se para o inimigo...

—   Na esperança de que a Rainha, se vier a ser regente, o faça duque? — troçou Batz... — a menos que se vire para o regente», que se entronizou a si mesmo...

—   Talvez. Em todo o caso, será mau para a Rainha...

Gritos e urros cortaram-lhes a palavra. Uma tropa de revolu­cionários, armados de sabres e chuços, acompanhados de mulhe­res talvez ainda mais ferozes, cruzou-se com o casal para chegar à Rua Vieille-du-Temple. Todas aquelas gargantas gritavam aos qua­tro ventos: «À morte a Austríaca! À morte a loba e mais as crias!...»

—   É isto todos os dias — murmurou sombriamente Lalie. — Responsabilizam-na pela miséria que grassa e que provoca cóleras cegas, mas também pelas derrotas dos exércitos face aos compa­triotas dela.

—   A Rainha, agora, é francesa!

—   Ora vamos, Batz, e quem é que vai acreditar nisso? Nem se-quer vós. Ela nunca foi francesa e não é agora que o vai ser.

—   No entanto, é inevitável, por causa do filho!

—   Credes que ela espera vê-lo chegar ao trono? No estado em que as coisas estão, podemos perguntar-nos durante quanto tem­po a guarda do Templo poderá resistir aos magotes de loucos que lá aparecem todos os dias a percorrer as muralhas...

—   Nós temos um plano para fazer fugir a família toda...

—   E está pronto, esse vosso plano?

—   Não é meu, mas parece-me bom.

—   Tem uma hipótese de sucesso, se agirdes rapidamente, muito rapidamente... De qualquer maneira, se tendes um papel para mim, estou pronta...

—   Não duvido, mas... vós sois infinitamente preciosa naquilo que fazeis...

Chegaram à taberna. Ali, bebendo um vinho «de se lhe tirar o chapéu» que Rougier guardava para os seus clientes mais fiéis, falaram disto e daquilo sem nunca abordar assuntos inquietantes. Ninguém, que observasse ou escutasse aquele casal de meia-idade, que demonstrava convicções revolucionárias tão vigorosas, poderia imaginar que na realidade se tratava de dois conspiradores realistas dos mais perigosos. Beberam e voltaram a beber à saúde da Nação, enquanto a algumas ruas dali as clientes do padeiro pu­nham alegremente a saque as reservas do cidadão Hulot, meio morto de medo...

Ao deixar a sua amiga Lalie, Batz continuava sonhador. E ain­da mais o estava no dia seguinte à noite, quando se deslocou à Rua de L'Observateur, para a reunião em casa de Lepitre.

O local não fora mal escolhido. A Rua de L'Observatoire, ou mais exactamente o beco de Longue-Avoine, onde o professor de belas-letras instalara a sua pensão para rapazes, era um local de­serto, isolado, rodeado pelos jardins de antigos conventos deser­tos, onde não se ouvia qualquer ruído, salvo os miados de um gato, desejoso de fugir aos rigores do Inverno e voltar ao seu can­to à lareira. Não havia o perigo de ver aparecer os municipais e ou­tros seccionistas, que não gostavam de se aventurar, sobretudo de-pois de cair a noite, para lá da barreira de Saint-Jacques. O único inconveniente era a distância para os homens que vinham da Rua du Monceau-Saint-Gervais, como Toulan, ao passo que Batz tinha oportunidade de passar a noite na sua casa da Rua de la Tombe--Issoire, bastante próxima.

Toulan agradou-lhe. Era, como ele, um Meridional, mas de Toulouse! A sua figura fina, o olhar franco, o sotaque da região na voz sonora, o bom humor que lembrava o de Pitou, formavam um conjunto como o barão gostava. O entendimento entre os dois ho­mens foi, de imediato, perfeito. Para Toulan, Batz era uma espécie de herói:

—   Convosco junto de nós — disse-lhe ele — as nossas hipó­teses de sucesso são bastante maiores. O sr. de Jarjayes disse-me que nos iríeis ajudar financeiramente?

—   É verdade. Trago-vos aquilo de que tendes necessidade — disse Batz, tirando da algibeira um saco de dimensões médias, cheio de ouro. — Para além disto, o meu secretário partiu para o Contentin, a fim de ali preparar um barco, graças ao qual o nosso jovem Rei poderá chegar a Jérsia sob a minha direcção. Por outro lado, a Rainha...

—   A Rainha não aceitará separar-se do filho — cortou Jarjayes, que, visivelmente, não gostava muito de ver o recém-chegado assumir a direcção das operações. — E nós achamos que Suas Ma­jestades devem ir por Le Havre... e directamente para Inglaterra...

—   É preciso que a Rainha saiba que a separação é indispensá­vel para o sucesso do plano. O Rei pode ir com Madame Élisabeth, sua tia, mas não com a mãe. Ele representa a esperança de França e não podemos correr o risco de o ver partir com a mãe, sobre quem se concentram, de momento, ódios mais fortes do que antes honravam Luís XVI. Uma criança dissimula-se mais facilmente do que uma mulher, cujo rosto é demasiado conhecido... Em Jérsia, o príncipe de Bouillon reuniu forças e está à espera. De qualquer maneira, o jovem Rei ficará mais seguro ali do que em Inglaterra. Para a Rainha, e seguindo o vosso desejo, enviei um dos meus ami­gos preparar um outro barco, uma outra passagem. Depois, Sua Majestade poderá juntar-se ao filho. Dito isto, se não aceitais, reti­ro-me...

—   O barão tem razão — cortou vivamente Toulan. — É melhor assim e eu vou seguir o conselho dele... — Depois, voltando-se para Batz: — Pensais que estareis pronto a tempo? Estimámos que a data de 7 de Março poderia servir. Nessa noite, Lepitre e eu es-taremos de serviço, e na guarda haverá alguns simpatizantes.

—   Dentro de seis dias? Parece-me bem. Resta saber como é que estão as coisas. Os uniformes?

—   Um deles foi já entregue em grande parte. Falta um: aquele que Lepitre deve levar.

—   Ainda não está terminado — disse precipitadamente o in­terpelado. — Não é assim tão fácil de confeccionar. Nem de o pas­sar sob o nariz dos guardas. O mais difícil são os chapéus...

—   Eu já arranjei maneira de deixar o meu com Madame Élisa­beth — disse Toulan. — Por que é que não fizeste o mesmo?

—   Tentei, na outra noite, mas a mulher do Tison fica alerta quan­do vou ter com as prisioneiras. Não pude...

—   Está bem — disse Toulan. — Eu encarrego-me. Onde estão os passaportes?

—   Ah, isso é outra história! — disse o professor, cada vez mais nervoso. — Desde que a Inglaterra nos declarou guerra, os passa-portes são numerados e até eu tenho dificuldade em tirá-los. Além disso, tenho a impressão de que sou vigiado desde há algum tempo...

—   Eu não vos disse já para me trazerdes os formulários em branco? — cortou Batz. — Trataremos ambos dos números e já vos expliquei que tinha maneira de os preencher...

—   Sim... sim, é verdade! Bem, escutai! Eu... vou tentar na pró­xima semana.

—   Porquê na próxima semana?

—   Porque no serviço de passaportes está alguém de quem des­confio... e para a semana não está.

O punho de Batz abateu-se sobre a mesa em redor da qual se sentavam os quatro homens à luz de duas velas. Em redor, as som­bras moviam-se.

—   Chega! Vós morreis de medo, Lepitre, e esse medo põe-nos a todos em perigo. Quereis, ou não, fazer a vossa parte do trabalho?

— Eu nunca disse que não queria fazer o que me mandam — gritou subitamente o professor com uma bizarra voz aguda. — E estou consciente dos perigos que todos corremos. É justamente por isso que entendo tomar todas as precauções necessárias! A Rainha sabe a que ponto lhe sou devotado. Não me agradeceu já ela, en­viando-me alguns dos seus cabelos, também alguns do Rei, do pe­queno príncipe, de Madame Royale e de Madame Élisabeth, que eu encerrei neste anel?

Estendeu uma mão trémula, ornamentada com um grande ca-chucho vidrado, no qual estavam arranjadas, harmoniosamente, di­versas mechas de cabelo de diferentes cores.

—   Ela agradeceu cedo demais! — disse Batz, implacável. — E recordo-vos que vos ofereci salvaguarda e dinheiro em terra es­trangeira.

Mas Lepitre não ouvia nada. Lançara-se num longo discurso, re­cordando todos os seus bons ofícios para com os prisioneiros, que Batz não escutou. O seu julgamento estava feito: aquele homem, que ajudara com tanta inteligência Laura e Mme. Cléry quando elas saíram do Templo, que até as tinha salvo, parecia ter esgotado to-das as suas reservas de coragem. O medo, ao crescer, provoca tais resultados. O barão nem sequer tentou discutir. Ao deixar a pen­são, um momento mais tarde, disse, apertando a mão de Toulan e depois de Jarjayes:

—   Já tendes o dinheiro. Quanto ao que prometi, estará pronto a tempo. Até posso, se quiserdes, arranjar as carruagens... mas pen­so que devemos agir como se aquele infeliz não existisse.

— Ele é indispensável! — cortou o cavaleiro. — Esqueceis que ele é o único, com Toulan, a entrar no Templo todos os dias. Ad­mito que atravessa um período que todos nós conhecemos antes de entrarmos em acção, mas estou certo de que, chegado o momento, fará a sua parte sem fraquejar.

—   Deus vos oiça!

Mas não acreditava.

E tinha razão. Quando chegou o dia 7 de Março, os uniformes não estavam prontos, faltavam dois passaportes... e Lepitre, metido na cama, tremia de febre, na qual havia mais medo do que doen­ça. À chegada de Batz, que fora constatar in locco o fenómeno, ju­rou que era má-sorte e que não era preciso desesperar. Bastaria ar­ranjar outra data, que aquela fora demasiado próxima, e tomar medidas mais sérias, exigidas pelos mais recentes acontecimentos. Depois de os deputados «Montagnards» terem acusado os «Girondi­nos» de quererem restabelecer o trono, constitucional sem dúvida, mas um trono, depois de o povo de Paris, trabalhado por uns e por outros, atribuir, mais dia menos dia, as culpas de tudo à Conven­ção, que ele julgava incompetente, a guarda do Templo tinha sido reforçada. Era mais difícil entrar lá e, sobretudo, sair...

Ao deixar o «doente», Batz foi-se encontrar com o seu velho amigo Le Noir, o antigo tenente de polícia do reino no tempo do caso do Colar da Rainha. Este homem de 60 anos, de espírito sub­til e bom observador dos seus contemporâneos, soubera conser­var uma espécie de rede de amigos e correspondentes, o que fa­zia dele um dos homens mais bem informados. A sua casa na Rua des Blancs-Manteaux encerrava uma quantidade enorme de ar­quivos e documentos e ele sabia sempre muitas coisas sobre mui-ta gente.

Na grande divisão que lhe servia de gabinete e biblioteca e onde estava quase sempre, recebeu Batz com o seu sorriso um pouco cáustico e um pequeno fulgor familiar que lhe brilhava sem­pre por trás das lunetas quando o via chegar. Do mesmo modo, Batz teve automaticamente direito ao copo de Borgonha que lhe serviu, mal se sentou, o velho malfeitor convertido ao serviço da­quele que o livrara dos trabalhos forçados:

—   E então, meu caro barão? Eis-vos de volta de Inglaterra.

—   Não me digais que o ignoráveis? Sempre pensei que tínheis olhos em toda a parte...

—   Não, mas cá me arranjo para saber o mais possível acerca dos feitos e gestos das pessoas que me interessam... nas quais es-tais incluído. A encantadora Marie está boa? Deve ter ficado feliz por vos rever.

— Ela não duvidava de mim, ao contrário de outros, que acha­ram que me deviam inscrever na lista de emigrados. Aliás, confes­so que desde o meu regresso tenho a impressão de ter estado au­sente durante anos. Muda tudo tão depressa neste país!

—   Parece que é isso que lhe dá tanto encanto...

—   Um encanto que me escapa um pouco. Deixei uma cidade inquieta com as consequências do crime que cometeu, silenciosa, furtiva e reencontro-a prestes a atirar-se sobre a Convenção que le­vou ao poder com tanto entusiasmo.

—   Como sempre, deixa-se levar. A partir do momento em que as gentes da dita Convenção decidem devorar-se mutuamente. O que tinha de acontecer, aliás: é a eterna luta dos parisienses con­tra os provincianos. Sobretudo os Girondinos, claro!

—   Que parisienses engraçados! Robespierre nasceu em Arras, Danton em Arcis-sur-Aube, Marat no principado de Neufchâtel e Hébert em Alençon...

—   Ora, os Girondinos são iguais. Brissot, o fundador, é filho de um estalajadeiro de Chartres, Pétion, o antigo presidente da câmara de Paris é, também, da Beauce e Vergniaud nasceu em Li­moges, mas todos têm um laço comum. O que lhes permite reivindicar o poder, cada um pelo seu clã. Danton lançou a desor­dem ao reclamar um novo recrutamento de 300000 homens para restabelecer a situação dos exércitos que estão em vias de evacuar da Bélgica... por causa dos Girondinos, traidores à Pátria. Enviou comissários a todas as secções para informar o bom povo do que se passa. De repente, passou a ver tudo vermelho. Por outro lado, os nossos Montagnards fizeram melhor ainda, perante o pouco en­tusiasmo levantado por mais um novo levantamento de dinheiro: a criação de um Tribunal Revolucionário, encarregado de julgar todos os inimigos internos e permitir às novas tropas atacá-los por trás...

—   Um Tribunal Revolucionário?

—   Sim. Para «pôr fim à audácia dos grandes culpados e dos ini­migos da causa pública»! Foi nestes termos que hoje mesmo o pin­tor Louis David e o pastor Jean Bon Saint-André apresentaram a coisa à Assembleia, como um voto da secção do Louvre. Mas fo­ram Bentabole e Tallien os primeiros a ter a ideia... O que quer dizer que, a partir de agora, ninguém está em segurança no território de Paris... e mesmo de França, porque esta jurisdição de ex­cepção vai, sem dúvida, ter filhos.

—   Senhor! Onde vamos parar?

—   A tempos ainda mais difíceis. Primeiro que tudo, e de cer­teza, a condenação à morte dos Girondinos, primeiros visados e depois... vós, eu, a Rainha...

—   A Rainha? Ela, perante tais juízes?

—   Que serão, sem dúvida, bastante... expeditos. Oh, podeis ter a certeza de que ela não terá direito às mesmas deferências que o Rei. Odeiam-na e a infeliz viverá um calvário, se...

—   Se não a salvarmos. Credes que não penso nisso?

—   Eu sei que pensais. Nem sequer há mais ninguém que o pos­sa conseguir. No entanto...

—   Que quereis dizer?

—   Que precisais de cumplicidades seguras, homens sem falha, capazes de ir até ao fim.

—   Eu sei. Acabo de ter um exemplo!

—   Ah!

Le Noir deixou o seu fauteuil, pegou na bengala pousada perto de si e começou a andar no gabinete, uma mão atrás das cos­tas. Finalmente, parou diante de Batz:

—  Era, portanto, verdade? Cochichou-se acerca de uma cons­piração.

—   À qual eu pertencia e que até financiei... — disse Batz, que não tinha qualquer razão para não dizer a verdade ao seu velho amigo.

Este deu uma pequena risada:

—   O diamante azul vendeu-se bem?

—   Não fiquei descontente. Quanto ao projecto que acabais de evocar, não se pôde realizar por culpa de um único homem. Cheio de boa vontade, mas morto de medo à aproximação da data fixada, preferiu meter-se na cama.

— A evitar absolutamente, claro! No entanto, pode ser que te­nhais evitado outros... obstáculos inesperados. Repito, é preciso que estejais seguro dos vossos companheiros, tanto como de vós próprio.

—   Pensais em Lemaitre, que introduzi em minha casa tão imprudentemente?

—   Bem entendido! Porque, não o esqueçais, tereis poucas hi­póteses de saber se, entre aqueles que pretendem ajudar-vos, não se insinuou um outro agente do conde de Antraigues...

Batz tem um gesto de impaciência:

—   Por piedade, não me acabrunheis mais! Fui inconsciente ao deixar-me levar pela simpatia e não páro de me reprovar. Se não tivesse aceite Lemaitre, talvez o meu Rei ainda estivesse vivo... e li­vre!

—   Não vos censureis! Arriscastes imenso e o Destino estava, sem dúvida, contra vós. No caso presente, a vossa tarefa é, pelo menos, tão difícil como aquela e é por isso que vos lembro que o conde de Antraigues está bem vivo e que, do seu refúgio de Men­drisio, na Suíça, continua a orientar agentes parisienses, dos quais ignoramos quase tudo... e que estão prontos a tudo para impedir que a Rainha recobre a liberdade. Sobretudo, se o pequeno Rei es-tiver com ela...

—   Por causa da regência? — interrogou Batz, entristecido.

—   Bem entendido! Monsieur, que se proclamou regente du­rante a menoridade do seu sobrinho, só tem a temer a concorrên­cia que lhe podem fazer as forças austríacas, que a apoiariam a Rainha em massa, ao passo que a ajuda dos príncipes alemães será bem pequena. Basta que a Rainha desapareça e que a criança mor­ra de doença... ou outra coisa qualquer, e o conde de Provença tornar-se-á no Rei Luís XVIII no minuto seguinte, reunindo doravan­te, à sua volta, todas as forças realistas. Podeis ficar seguro de que os agentes de Antraigues não andam por aí para ajudarem Maria Antonieta a fugir...

—   Sabeis onde está Lemaitre, neste momento?

— Não. Desapareceu depois do assassinato do Rei. Creio saber que se esconde na província. Onde, ignoro-o, mas não me espan­taria muito se estivesse para aí a aparecer...

—   Paris é muito grande! — suspirou Batz. — Mas, enfim, vós tínheis-me falado, após o fracasso da minha tentativa, numa taber­na onde se reúnem os homens de Antraigues e onde ele »faz re­crutamento» quando se arrisca a vir aqui sob o pseudónimo de Marco Filiberti. Uma taberna da qual vós não me quisestes dar o nome, sob pretexto de que, ao precipitar-me, arriscaria grandes dissabores. Agora, poderia ser-me muito útil.

Le Noir teve apenas uma ligeira hesitação:

—   De facto, há duas: a Procope e a Trois-Pampres, na Rua de la Lanterne.

—   A Procope? O quartel-general de Danton, Marat, Camille Desmoulins, Legendre e Fabre d'Églantine, que vão lá como bons vizinhos?

—   Justamente! Onde se pode uma pessoa esconder melhor, senão no seio do inimigo... ou supostamente, já que os homens de Antraigues têm relações ocultas com essa gente? Sei que o cavalei­ro Despomelles e Duverne de Praile vão lá com frequência. Além disso Zoppi, o patrão, é italiano, como Corazza. Os que vêm da península são lá bem acolhidos. Aconselho-vos, no entanto, a não irdes lá. Sois o principal adversário deles e conhecem-vos bastan­te bem! Quanto à Trois-Pampres, é extremamente perigosa e desa­conselho-vo-la fortemente.

Batz reflectiu durante alguns instantes, pesando no que acabava de ouvir. Em seguida, levantou-se e apertou a mão do seu velho amigo.

—   Vou enviar à Procope o Pitou, para cheirar. Obrigado por me ajudardes desta maneira, meu caro Le Noir. Ainda mais porque sois mação e não deveis trazer a Rainha no coração!

—   Porque me achou «parcial» no caso do cardeal de Rohan, me tirou a minha tenência e me transformou num bibliotecário? Não fi­quei descontente, no fundo, por sair daquela história insensata. E depois, apesar de ser mação, o que ela sofre há meses... e sobre-tudo o que a espera, dá-me direito à piedade. Se puder ajudar-vos a salvá-la, fá-lo-ei...

—   E o pequeno Rei?

—   Pobre criança! Duvido que suba alguma vez ao trono. Tem inimigos a mais... e de todas as espécies, mas, também ele, sobre-tudo ele, gostaria de ver escapar a um destino demasiado dramáti­co. Para acabar com as tabernas de que falávamos, os homens de mão recrutam-se, sobretudo, na Trois-Pampres.

—   Aí irei eu mesmo, disfarçado... Mas, dizei-me, caro amigo, não pensais em emigrar?

—   Por que o faria eu e para onde? Morrer de miséria nas mar­gens de um rio estrangeiro qualquer? Sinto-me bem aqui, em mi­nha casa. Além disso, na minha idade, já não temos medo de muita coisa. E resta a minha insaciável curiosidade: gosto de ver as coi­sas e as gentes de perto. E depois... enquanto os meus raros ami­gos tiverem necessidade de mim...

Ao deixar a Rua des Blancs-Manteaux, Batz pôs-se à procura de Pitou para o mandar tomar ar ao café Procope, mas não o encon­trou.

— Está de guarda não sei onde — disse-lhe a senhoria, uma in­sinuante pessoa de uns 40 anos, que não escondia uma certa in­clinação pelo seu inquilino, mas não devia tardar. — Quase não sai do quarto, ultimamente — acrescentou ela com um sorriso cúm­plice, dando a entender que os encantos da casa eram superiores às tentações do exterior...

De facto, há um certo tempo que Batz não via o guarda-jorna­lista, mas nunca lhe teria passado pela cabeça atribuir essa ausên­cia a um romance com uma criatura daquela natureza. E já que pitou não devia «tardar»>, decidiu esperá-lo na rua, interessando-se pelo vizinho livreiro, por exemplo.

Pitou estava justamente em contemplação na frente da dita loja e não parecia muito apressado em voltar para casa. Batz juntou-se-lhe.

—   Tenho trabalho para si — começou ele. — Gostaria que fosse...

—   É-me impossível ir seja onde for — cortou o jovem, os olhos postos nos livros expostos na montra. — A Guarda Nacional, quan­do não está de serviço, deve poder responder a qualquer requisi­ção, de dia ou de noite. É a lei, depois da abortada tentativa de cerco à Convenção, nos últimos dias. Assim o decidiu Garat, o novo ministro do Interior. Não estamos presos, mas quase!

—  Por que é que não me informou? Podia-me ter enviado um bilhete. Começava a ficar inquieto...

—   Oh, ter-vos-ia dado notícias mais tarde ou mais cedo, mas não vos escondo que me interrogo desde há alguns dias. Estou com vontade de me demitir...

—   Está louco? Isso seria assinar a sua perda. Já o censuram por se ausentar demasiado. Se se demite, torna-se suspeito...

—   Eu sei — disse Pitou entredentes e sempre sem olhar para o companheiro — mas estou farto de viver como um soldado, na caserna. Preciso de ar.

Batz não comentou de imediato. Tomando Pitou pelo braço, obrigou-o a deixar a sua contemplação para dar alguns passos com ele na direcção da casa do jornalista. Este pôs toda a sua atenção na ponta das botas bem engraxadas.

—   E esse ar de que tanto precisa, gostaria, certamente, que ti­vesse um gosto salgado? Como aquele que se respira na Bretanha?

—   Sim — disse o jovem após uma ligeira hesitação. — Não me queirais mal, mas só de pensar que ela está só, lá, face àquele ban­dido do Pontallec, sob a protecção de um maneta, fico doente. Nem... nem sequer durmo como deve ser!

A mão de Batz apertou com mais força o braço onde se apoia­va e a sua voz tornou-se mais quente.

—   Crê que eu não penso nela, também? Se os acontecimentos não estivessem a tomar um rumo feio, seria o primeiro a dizer-lhe que atirasse o uniforme às ortigas e apanhasse a posta de Rennes. Talvez até fosse consigo — acrescentou ele com um suspiro que, desta vez, fez levantar os olhos de Pitou.

—   Vós? Por que faríeis vós isso? Salvaste-la do massacre e re­colheste-la por piedade, mas não é verdade que para vós ela não passa de um pião no vosso tabuleiro?

Após olhar por alguns segundos para aquele olhar azul onde lia uma acusação, o barão sorriu:

—   Ela é alguém que amo muito... e Marie também — apressou--se ele a acrescentar. — Além disso, nós tínhamos concluído um pacto... Um pouco de paciência, Pitou! Para já, todos os nossos es­forços devem ir num único sentido, que você sabe perfeitamente qual é... e eu preciso que você se mantenha no seu posto, onde pode ser de uma utilidade extrema! Depois...

Fez com a mão um gesto evasivo, que Pitou traduziu:

—   Poderemos ir para onde quisermos se não estivermos mortos?

—   Exactamente! Volte para casa. A sua senhoria espera-o com impaciência.

—   Oh, essa! — disse Pitou, encolhendo os ombros. — Se não fosse tão boa dona de casa já me tinha mudado. Enquanto isso, como é que vai o vosso... último plano?

—   Por água abaixo! Graças a alguém que não conseguiu ven­cer o medo... Até breve, Pitou! Mande notícias a Marie...

Era a ela, com efeito, que pertencia, oficialmente, a casa de Charonne, se bem que tivesse sido Batz a pagá-la e era em seu nome que o correio ia endereçado. Apenas uma inclinação dife­rente da letra indicava o verdadeiro destinatário. Para além do seu apartamento da Rua Ménars, no qual tinham sido apostos os selos judiciais após a morte de Luís XVI, o barão não possuía mais nenhum domicílio legal, o que não o impedia de ter várias outras ca­sas sob nomes falsos e um certo número de amigos sempre pron­tos a oferecer-lhe hospitalidade. Mas era evidente que o seu lar verdadeiro era em Charonne e ao pé de Marie.

Ao voltar para lá, nesse dia, ficou surpreendido por ver no pá-tio uma carruagem de viagem, mais ou menos enlameada e Biret--Tissot ocupado a descarregar as bagagens em companhia de Blaise Papillon, um pequeno criado de 15 anos, irmão da Marguerite do mesmo nome que fora criada de camarim de Marie Grandmaison e que se ocupava da roupa branca.

—   Quem é que chegou? — perguntou Batz.

—   Uma dama Meelemunster de Delft — informou-o Biret com um piscar de olhos, designando com a cabeça o cocheiro, que transportava uma grande mala com a ajuda puramente decorati­va de Blaise, porque aquele era da mesma estatura de Biret, um grande tronco bebedor de cerveja, ainda por cima. — É uma ami­ga de Madame, do tempo em que trabalhavam no teatro, uma e outra...

—   Não conheço! Ela tem intenção de ficar muito tempo, já que são amigas?

— Isso é que eu não sei, senhor barão — respondeu Biret, re­tomando o tom compassado do servidor de uma grande casa. Mas não duvido que o senhor barão o saberá muito rapidamente: as da-mas estão no salão oval...

Deixando os outros dois com o descarregamento, Biret precedeu o seu patrão no vestíbulo e desembaraçou-o do chapéu e do capote de gola dupla antes de lhe abrir a porta do salão. Marie es­tava ali, com efeito, na companhia de uma mulher, da qual Batz só viu, a princípio, o dorso, mas a cascata de cabelos ruivos caindo sobre o vestido de veludo castanho guarnecido com um lenço enorme e com punhos de renda de Malines, assim como a voz, que se exprimia em francês, mas com um curioso sotaque que se diria flamengo sem conseguir desembaraçar-se da sua origem britânica, só podiam pertencer a uma pessoa.

—   Minha cara Charlotte — exclamou ele — é um verdadeiro milagre ver-vos aqui!

A dama virou-se com uma exclamação de alegria e, levantan­do-se rapidamente, precipitou-se para ele com as duas mãos estendidas, como o teria feito em Kettenrigham Hall.

—   Meu amigo! Meu Deus, como é bom ver-vos de novo! Não imaginais a que ponto esta viagem me pareceu interminável!

Ele beijou as duas mãos oferecidas e depois guardou uma para conduzir a visitante para o pé de Marie.

—   Acredito. Dizem-me que chegais de Delft... engalanada com outro nome que não consegui decorar. Espero que me perdoeis!

—   Até eu tenho dificuldade! — disse ela rindo — mas o único meio, para uma inglesa, de chegar a Paris, é passar pela Holanda. Desde que o sr. Pitt declarou guerra ao vosso governo, é impossí­vel obter passaporte para França, que, aliás, só serviria para me en­viar para a prisão, uma vez passado o Canal. Ora, acontece que te­nho bons amigos na Holanda. Eles deram-me tudo aquilo de que eu necessitava: papéis falsos-verdadeiros, carruagem, cocheiro a toda a prova e tudo aquilo que poderia fazer de mim uma rapari­ga dos Países Baixos muito decente...

—   Espantar-me-eis sempre! No entanto, por que viestes? Não duvidais, espero, que sois muito bem-vinda, mas por que correr tantos riscos?

—   Oh, é muito simples — disse ela sem abandonar o seu sorriso — venho salvar a Rainha e o pequeno Rei...

Como se fosse a coisa mais simples deste mundo! Mas disse-o com tanta convicção que Batz não pôde evitar um sorriso:

—  Há semanas que não pensamos senão nisso, que fazemos planos, que experimentamos, sem nunca chegar ao resultado es­perado. E vós...

—   Eu trago-vos uma ideia... e ouro.

—   Ouro? Como é que o conseguiu?

—   Muito simplesmente. Aquela grande mala, tão pesada, que aflige tanto os vossos serviçais, tem um fundo falso, difícil de des­cobrir. Esse fundo falso está cheio de ouro.

—   Não é o que nos faz mais falta — aprovou Batz — mas nes­te género de empresa quanto mais tivermos, melhor! Vejamos a vossa ideia?

Antes de responder, Charlotte foi-se colocar diante de um gran­de espelho Régence colocado sobre uma consola, contemplou-se por um instante, satisfeita e perguntou:

—   Como me achais?

—   Mas... muito bela — disse Marie.

—   Comparada com os retratos que pude ver, não achais que tenho algumas semelhanças com a Rainha? A mesma estatura, o mesmo porte de cabeça, o mesmo... Oh, sei muito bem que os meus cabelos são ruivos e os dela louros, mas posso aclará-los...

—   Meu Deus! — interrompeu Marie, que acabava de com­preender. — Não pensais substituí-la?

—   É evidente que sim — murmurou Batz com uma admiração que não procurou esconder. — Uma ideia sublime, de devoção, porque ocupar o lugar dela é a vossa condenação à morte, minha cara Charlotte...

—   É um risco a correr — disse lady Atkyns com bom humor. — Talvez possamos negociar a minha liberdade com um resgate. Sou muito rica, como sabeis? E talvez encontreis o meio de me ar­rancar ao cadafalso se esse resgate não for suficiente?

— Não tenho tido grandes resultados, nos últimos tempos, nes­se género de aventura — disse Batz com amargura. — Mas... de qualquer maneira, não creio que o vosso plano seja realizável. A Rainha mudou muito... Os cabelos dela estão brancos e, pelo que me disseram, os seus belos olhos azuis estão descoloridos pelas lá-grimas... Além disso...

—   Além disso, eu sou actriz... e muito boa. Aposto que consi­go parecer-me com ela o suficiente para enganar os guardas, pelo menos por algumas horas... as suficientes para lhe permitirem a fuga.

— Mas, enfim, por que faríeis isso? — protestou Marie. — Ain­da sois, jovem, bela, rica, amada e tendes um filho?

—   Digamos que... por desporto! — exclamou lady Atkyns com bom humor e depois, mudando de tom: — Quanto ao resto, talvez seja menos amada do que pensais. Creio que não faria grande fal­ta ao meu filho, alimentado pelo pai... e está a chegar a idade em que a imagem que contemplo aqui desaparecerá. Quanto ao amor, já não faz parte da minha vida. Enfim, gostaria que me deixásseis desempenhar este papel... o mais belo de toda a minha carreira e, se ele me conduzir à guilhotina, terei a impressão exaltante de morrer em cena. O cadafalso não passa de um teatro a céu aberto. Bem ou mal, ali só se representa uma cena, uma cena que não po­demos bisar, tão sublime ela é...

Sempre de pé em frente do espelho, a actriz, direita, contem­plava, com uma espécie de orgulho, o seu reflexo, revestido de uma inegável majestade. Lentamente, levou a longa mão cuidada ao pescoço frágil, como que para lhe medir a resistência ao ferro. Por fim, sorriu:

—   Sim... creio que farei um grande papel!

Como resposta, Batz encaminhou-se até ela, pegou naquela mão e levou-a aos lábios com infinito respeito.

—   Se não houver outro meio, Charlotte, poderemos experimen­tar. Mas só se não houver outro meio!

—   É preciso, a qualquer preço, arranjar um, pelo menos — ex­clamou Marie, com os olhos marejados de lágrimas. — Só a ideia de tal sacrifício é insuportável!

—   Se a liberdade da mulher que mais admiro neste mundo ti-ver este preço — disse lady Atkyns — penso que o deveis aceitar. Primeiro, porque também vós pertenceis ao teatro e depois, por-que sabereis que morri feliz.

 

Na manhã seguinte, Marie recebeu, por um moço-de-recados, uma carta de Pierre Roussel, na realidade destinada a Batz. Conti­nha uma outra, escrita por Lullier, que cumpria a promessa:

 

«Aquele que vos denunciou chama-se Louis-Guillaume Armand. É um daqueles esbirros ordinários prontos a tudo, que não servem para nada, cuja profissão é a espionagem e o prazer a denúncia. Falaremos mais quando nos virmos, mas não venhais cá agora, seria perigoso. Quanto a Armand, ter-vos-ia reconhecido há uns dias, na muda de Abbeville. Mandei-o para a prisão por ultraje a um ma­gistrado e denúncia caluniosa de um cidadão tão honradamente conhecido como Roussel... mas como ele passa o tempo a espiar os outros detidos e a fazer jogo duplo, depressa sairá de lá. Des­confiai! Esse homem odeia-vos!”

 

Batz não precisou de ler duas vezes aquela carta sem assinatu­ra, que queimou logo de seguida no fogo da chaminé. Fora inútil, da parte de Lullier, descrever-lhe aquele Armand, que Batz conhe­cia melhor do que ele, senão melhor. Originário de Château-Por­cien, nas Ardenas, de 30 anos, servira, durante um certo tempo, nos dragões e depois na gendarmeria real. Desertor nos princípios da Revolução, nela desabrochara como uma erva daninha num edi­fício em ruínas, ali encontrando a atmosfera que convinha à sua alma perturbada. Fez-se agente provocador e mostrou do que era capaz num caso de notas falsas, no qual foi cúmplice e que de­nunciou, enviando para a morte vários dos seus companheiros. Na­turalmente, foi pago, após o que foi visto no Palais-Royal, onde gastava, nas mesas de jogo, os denários de Judas. Batz, que igno­rava esse pormenor, encontrou-o no famoso número 50 da galeria Montpensier, em casa das damas de Sainte-Amaranthe. O homem tinha boa pinta e advogava ideias realistas que estava longe de sen­tir, mas às quais, durante um certo tempo, Batz aderiu. Acreditava--o sincero e convidou-o para sua casa, na Rua Ménars. Ali encon­trou Marie, que morava lá então e a paixão sombria que ela despertou nele revelou a realidade do seu carácter, brutal e falso. Ao mesmo tempo, Benoist d'Angers, que estava ao corrente da his­tória das notas falsas, avisou o amigo. No mesmo dia, Batz, ao che­gar a casa de Marie, encontrou o indivíduo prestes a abraçá-la à força e pô-lo na rua depois de lhe ter aplicado uma bela sova. Nun­ca mais o viu.

O miserável tinha, sem dúvida, aprendido a caracterizar-se e a dissimular-se sob aspectos diferentes e era isso que mais inquieta­va Jean. Se Armand o tinha visto em Abbeville, como é que ele próprio, cujo olhar era tão aguçado, tão perspicaz, não o tinha re­conhecido?

No futuro, teria de ter mais cuidado. E, sobretudo, proteger Marie.

 

           O ALMOÇO EM CASA DE TALMA

Batz não voltou a ver o cavaleiro de Jarjayes senão uma vez, em casa deste. Perante a impossibilidade de raptar a família toda de Luís XVI, Toulan e ele próprio, tendo afastado Lepitre, estavam resolvidos a raptar apenas a Rainha: com toda a evidência era ela a mais exposta. Durante alguns dias, acreditaram no sucesso do seu plano: a instâncias da cunhada e da filha, Maria Antonieta tinha aceitado fugir só; mas na véspera do dia que deveria ver a sua liberdade o pequeno Rei adoeceu. A atmosfera da torre não tinha nada de salubre. Durante toda a noite, a mãe e a tia perma­neceram à cabeceira dele e, chegada a manhã, a mãe sentiu que não poderia aceitar a liberdade à custa de tão cruel separação. Mesmo sabendo que entre a tia e a irmã o pequenino teria todo o amor, todos os cuidados possíveis, seria arrancar-lhe o coração levarem-na para longe dele. Então, escreveu um daqueles bilhetes tão frágeis, tão fáceis de dobrar, tão pequenos, no qual mostrava o que sentia. Jarjayes estendeu-o a Batz por altura dessa última entrevista.

 

«Tivemos um belo sonho, eis tudo, escrevia Maria Antonieta, e nele descobrimos uma nova prova da vossa devoção para comigo. A minha confiança em vós é sem limites... mas não conseguiria dei­xar os meus filhos e esse pensamento não me traz qualquer des­gosto.»

 

Batz meteu o bilhete nos dedos trémulos de emoção que lho haviam oferecido:

—   E ficais assim? Abandonais o combate?

—   É preciso. O problema é insolúvel. Sem Lepitre...

—   Esse já está curado? — zombou o barão com desdém.

—   Está desesperado. Reconhece o medo e os últimos aconte­cimentos só o vieram aumentar.

—   Ofereci-lhe uma hipótese de escapar para sempre, emigran­do com os augustos prisioneiros. Prometi-lhe uma pequena fortu­na e também mandar-lhe a mulher. Aquele imbecil não quis com­preender que, ao não agir como um homem durante algumas semanas, condena-se a viver com medo durante tanto tempo como aquele que durar este governo... a menos que acabe no cadafalso. Que ides fazer, a seguir?

—  Partir. Sua Majestade conseguiu fazer chegar até mim, por Toulan, os últimos objectos que o Rei não pôde entregar à esposa antes de morrer: o sinete com as armas de França, o anel de casamento e uma pequena caixa contendo cabelos do Delfim, de Ma­dame Royale, Madame Élisabeth e da Rainha, que nunca abando­nava desde que o isolaram dos seus. Estavam depositados no arquivo da prisão numa embalagem que Toulan pôde desfazer e refazer de modo idêntico, após ter substituído algumas bugigangas. Devo levá-los para Bruxelas e entregá-los ao conde de Fersen.

Batz franziu as sobrancelhas.

—   Fersen? Porquê a ele?

—   Porque nos conhecemos bem, porque ele sempre teve boas relações com monseigneur o conde de Artois, de quem a Rainha gosta, ao contrário do irmão, o conde da Provença. É a ele, em de­finitivo, que são destinados o anel e o sinete, assim como os ca-belos. Além disso, levo uma carta da Rainha e outra de Madame Élisabeth. Mas podeis sempre contar com Toulan...

Batz guardou um momento de silêncio. Não tinha nada contra o sueco, a não ser o facto de o seu nome ter estado demasiado li-gado ao da soberana, a ponto de Monsieur ter ousado fazer um requerimento ao Parlamento de Paris para que os filhos do Rei fos­sem declarados bastardos. De facto, via, naquela missão, um pre­texto para dar notícias a Fersen, e talvez pedir-lhe socorro. Teria sido mais fácil mandar Jarjayes directamente a Hamm, ter com o conde de Artois; mas, no fundo, talvez fosse por o cavaleiro ter servido de correio entre a Rainha e o sueco, um papel que já antes desempenhara para a correspondência antes estabelecida com o deputado Barnave...

—   Bem — suspirou ele, levantando-se para sair. — Resta-me desejar-vos boa viagem. Mme. de Jarjayes parte convosco?

—   Não, ela apenas ficou para o nosso projecto. Vai-se juntar à família e à nossa filha em Livry. Aliás, ela não quer emigrar. E vós, barão, que contais fazer?

—   Oh! eu, eu sou como Toulan: um meridional teimoso.

—   Ides continuar? — perguntou Jarjayes, com um clarão no olhar.

—   Bem entendido! Reconheço que é impossível tirar a família toda do Templo de uma só vez, mas não renuncio, nem pela Rai­nha, nem, sobretudo, por Luís XVII. É ele a esperança de França... mesmo que esta não se dê conta. Deus e São Cristóvão vos aju­dem! Se Mme. de Jarjayes precisar de ajuda, dizei-lhe que se dirija ao vosso vizinho Roussel. Ele sabe sempre onde me encontrar.

Não se sentia bem. Aquela história do anel e do sinete desa­gradava-lhe. O desejo da Rainha de fazer sair do país aquele de­pósito sagrado não tinha nada de natural: era preciso pô-los ao abrigo da rapacidade e badalhoquice dos revolucionários. Mas confiá-los a Fersen, que não fora grande amigo de Luís XVI, para por sua vez os entregar àquele cabeça de vento d'Artois, tinha qualquer coisa de chocante. Para ele, seria melhor confiá-los a Deus, na esperança de serem entregues, chegado o momento, ao novo Rei de França. Este, entre outros, tinha uma tia, Marie-Élisa­beth, mais velha 12 anos do que Maria Antonieta, mulher de gran­de piedade e sabedoria, há muito tempo religiosa e abadessa em Innsbrück. No entanto, teria sido preciso que a Rainha tivesse pen­sado nela, mas parecia que o seu coração e espírito estavam mais ligados com mais firmeza a Axel de Fersen do que à própria irmã. Enfim, o importante era que ele, Batz, soubesse onde procurar es­sas relíquias chegado o momento.

Entretanto, a paisagem era cada vez mais sombria. Tal como temiam Le Noir e Batz, o novo Tribunal Revolucionário, presidido por Montané, não tardaria a inspirar um medo que, no decorrer dos meses, se transformou em terror. Um certo Fouquier-Tinville foi eleito — por maioria — acusador público e em pouco tempo se tornou evidente que não havia verdadeira justiça, ou piedade, a esperar de um homem que, aliás, ignorava quase tudo sobre direito.

Ora, enquanto a Convenção paria este tribunal que, no mês se­guinte, se iria transformar numa empreitada de massacres, Vendée sublevava-se, sob pretexto de resistir ao recrutamento forçado. Na realidade, para combater aqueles que tinham ousado matar o Rei e       que perseguiam Deus. Pela primeira vez na História, foram os camponeses que foram buscar os seus senhores para os levarem ao combate. 100000 homens levantaram-se e começaram a perse­guir as gentes de uma república que não queriam e que, para eles, representava obra de Satã.

Nas fronteiras, as coisas não iam melhor. Dumouriez, que amea­çara marchar sobre Paris com as suas tropas para levar ao trono Luís XVII, foi derrotado em Neerwinden pelo príncipe de Cobourg — com o qual iria em breve, entender-se. E quando a Convenção envia comissários, exigindo-lhe contas, vai pura e simplesmente fazê-los parar por intermédio dos austríacos.

Porém, em Paris, continuava a existir uma certa vida mundana em volta dos homens públicos, das raras embaixadas e dos meios do teatro, a despeito das dificuldades de aprovisionamento, da ca­restia dos alimentos e dos produtos de primeira necessidade, como o       sabão e a cera. A miséria, como sempre, atacava o povo, sem to­car no conforto daqueles que podiam pagar.

É assim que, na encantadora casa que possuía na Rua Chanterei­ne, ao fundo de uma alameda de verdura traçada entre duas grandes residências, a bailarina Julie Careau, esposa do actor Talma, gostava de receber os seus amigos, cuja maior parte pertencia a esse grupo girondino sobre quem as nuvens se começavam a amontoar. Manti­nha a mesa sempre, literalmente, posta, para aqueles, sempre nume­rosos, que chegavam para jantar ou almoçar entre amigos. Um modo de vida dispendioso que agradava a Julie, que era bastante rica.

No tempo, não muito afastado, em que ela era uma das estre­las da Ópera, Julie, a quem as más-línguas chamavam ,fácil», tive­ra algumas aventuras bastante rentáveis, com, por exemplo, o con­de Alexandre de Ségur, do qual teve um filho, o duque de Chartres e dois ou três outros amantes aristocráticos — falava-se também de Mirabeau, morto numa casa que lhe pertencia! — o que nunca a impedira de professar em voz alta as novas ideias. Esta rainha da dança e do prazer estava firmemente agarrada às suas convicções republicanas e discutia-as frequentemente com paixão.

Tendo saído de cena, Julie tinha, então, um salão muito con­corrido, sobretudo depois de, dois anos antes, ter casado com Talma, o célebre actor trágico, herói do teatro da Rua de la Loi (ex--Richelieu) onde, com a ajuda do amigo, o pintor David, tinha imposto o traje de época nos dramas e tragédias que representa­va. «Tendo aderido às novas ideias, Talma está na origem da cisão de 1791 na companhia da Co­médie-Française. Levando alguns camaradas, deixou a velha residência de Guénégaud para se ins­talar no edifício da futura praça Collete, inaugurado em 1790 e que viria a ser o teatro da Nação». De época romana, essencialmente, já que o nobre drapeado das togas convinha a um físico de tal modo cesariano, que se po­deria perguntar se o pai dentista teria tido alguma coisa a ver com o filho. Alguns dias após o casamento, Julie, que era mais velha sete anos do que o marido, dava-lhe dois gémeos, a quem chama­ram Castor e Pollux, na melhor tradição dos contemporâneos de Virgílio e Horácio.

 

Um mês de Abril frio, mas claro, substituía os rigores do Inver­no quando, nessa tarde, Batz, de chapéu sobre a orelha e bengala na mão, seguia pela alameda saibrosa que ia dar ao pavilhão do casal Talma. Fora no café Corrazza que, mais ou menos dois anos antes, travara conhecimento com o actor, que lhe fora apresentado pelo seu amigo deputado-pastor Julien de Toulouse, também ele grande admirador de Julie Careau e habitué da Rua Chantereine. Os dois homens tinham simpatizado, através de gostos literários comuns. Batz, que sempre amara o teatro, admirava, como conhe­cedor, o jogo do actor e os seus esforços para «limpar o pó» ao repertório e aos hábitos da cena francesa. Além disso, ambos co­nheciam bem a Inglaterra, tinham ali amigos e apreciavam Shakes­peare. Era ao grande Will, aliás, que o jovem François-Joseph Tal-ma, cujos estudos recém-acabados o levaram a Londres para se juntar ao pai cirurgião-dentista, para naquela cidade aprender a mesma profissão, devia ter-se desviado dos lenços mais ou menos odorantes dos seus contemporâneos para tomar consciência da sua própria vocação e virar-se para o teatro, onde encetou uma carreira após ter regressado ao seu solo natal. Homem inteligente, não desprovido de humor, Talma representava uma espécie de recrea­ção na vida tumultuosa e carregada de obscurantismo do conspi­rador, do qual ele ignorava, aliás, o actor ignorava tudo. Conhe­cendo as ideias decididas de Julie — partilhadas pelo marido — Batz evitara sempre pô-lo ao corrente das suas actividades. E nes­sa noite ele ia, portanto, a casa de Talma para distrair um pouco o espírito, beber um copo, rilhar qualquer coisa e falar disto e daquilo... sabendo muito bem que iria ali encontrar pelo menos uma meia dúzia de Girondinos, o que lhe permitiria actualizar-se sobre a actualidade convencional.

Ao desembocar no pátio onde o elegante pavilhão, precedido de um grande patamar em meia-lua, se enquadrava com dois edi­fícios separados, que continham os alojamentos dos criados e a co­zinha, viu que o próprio Talma caminhava à sua frente. Ia chamá-lo cordialmente quando o viu obliquar para a esquerda, em vez de se encaminhar a direito, na direcção da casa e, depois de um único olhar para as janelas iluminadas, como se temesse ser visto, precipitar-se na cozinha. Intrigado, Batz seguiu-o na ponta dos pés e tentou espreitar para o interior. Mas a humidade mantinha os vi­dros embaciados e, não vendo nada, decidiu-se a entrar após ba­ter discretamente à porta.

O espectáculo que descobriu fê-lo sorrir: uma grande mulher de avental, gorro e cabelos brancos, que era Cunégonde, a cozi­nheira, acabava de desembaraçar o actor do longo manto com grandes virolas e instalava-o numa cadeira colocada sob a grande chaminé, no fogo da qual um pote negro deixava escapar um fumo odorífero.

—   É canja de galinha, meu patinho — dizia ela no momento em que Batz fazia a sua aparição. Vou arranjar-vos um bom prato... O que é que quereis, vós?

O fim do discurso, evidentemente, era dirigido ao intruso. Este sorriu, tirou o chapéu e saudou:

—   Falar um pouco com este cid... quero dizer, com o senhor Talma — corrigiu ele, sem temer que o chamassem à razão para os valores revolucionários, de tal maneira aquela cozinha, com os seus cobres brilhantes, as suas faianças azuis e brancas e os seus armários antigos bem polidos cheirava ao Antigo Regime e aos tempos tranquilos, quando havia o bom gosto de viver. — Vi-o quando caminhava à minha frente na alameda e quis juntar-me a ele.

—   Não o podeis deixar um pouco em paz? Ele vem aqui mui-tas vezes depois das repetições, para repousar, comer alguma coi­sa e escapar um pouco à balbúrdia que vai por esta casa noite e dia... Aqui está em minha casa e eu sou a única a tomar conta da saúde dele!

—   Nesse caso, perdoe-me por ter invadido assim o seu domí­nio. Vou-me retirar...

—   Não façais tal, meu caro barão! — exclamou Talma, rindo. — Cunégonde tem um ar feroz, mas não morde. E tem razão quan­do diz que venho aqui procurar um pouco de paz. Aliás, é nesta cadeira que estudo os meus papéis, a maior parte do tempo. Sen­tai-vos ao pé de mim e aceitai um copo de vinho.

—  Por que não uma canja também para ele? — interveio Cu­négonde, seduzida pelo sorriso encantador que fazia cintilar os olhos cor de avelã do recém-chegado.

—   Ora, que boa ideia! Não faz calor nenhum, esta tarde — aceitou Batz. — E cheira tão bem, a sua canja!

Um instante mais tarde, o nariz em cima de tigelas gémeas, os dois homens comiam uma espécie de delicioso consommé, capaz de dar forças a um morto. Durante alguns instantes, Batz gozou a calma repousante daquele entreacto, ao canto da lareira. Como di­zia Cunégonde, aquela cozinha era a sua casa. A sua própria cama estava ali, à moda camponesa, mas, através de uma porta espessa que se encontrava ao fundo, podia-se aceder à copa e a outra co­zinha, cheia de barulho e agitação, onde entravam e saíam, quase sem qualquer interrupção, criados carregados de pratos, compotei­ras, cestos de pão destinados àqueles que sustentavam, na casa, um zunzum bastante perceptível a partir do porto de Cunégonde.

—   Dir-se-ia que há, esta tarde, um ajuntamento em vossa casa, caro amigo? — notou Batz aceitando uma segunda tigela.

—   Como se não soubésseis que é assim todas as tardes e noi­tes, mas admito que hoje é maior do que habitualmente. É que as coisas vão mal na Convenção para os nossos amigos da Gironda. Ouvi dizer que se trata de eleger uma Comissão de Salvação Pú­blica, composta de uma dezena de pessoas, que acabará por retirar à Assembleia o pouco poder real que ainda lhe resta. Ora, sabendo que iria encontrar em minha casa todos aqueles que se opõem a esta brilhante ideia, vim para aqui...

—   E fizestes bem, meu patinho! — opinou a cozinheira. — Dei­xai Madame Julie ocupar-se deles: ela adora...

—   Uma Comissão de salvação pública? — repetiu Batz, sonha-dor. — Isso quer dizer que a França vai ter um líder de várias ca­beças, como a hidra de Lema... e o Conselho dos Dez de Veneza? Passamos a ser uma república?

—   Veneza também é uma república — suspirou Talma, não sem lógica. — A diferença está em que essa é sereníssima... o que está longe de ser o caso na nossa.

— Já há uma Comissão de segurança geral, que age contra os particulares, por conta da Convenção, mas que não lhe presta con­tas. Que fará esta? A mesma coisa, sem dúvida, mas desta vez contra a Convenção. Quem é que propôs esta nova máquina de opressão?

— Não sei exactamente — disse Talma encolhendo os ombros — mas podemos tentar adivinhar: vejo muito bem Marat, Hébert e Dan­ton na origem do projecto. Se quereis saber mais, ide até lá dentro...

Ainda não tinha acabado a frase e já a porta exterior se abria sob a acção de uma mão determinada: envolta num xaile atirado sobre o vestido de cetim vermelho, que lhe fazia sobressair o tom de pele ruivo, Mme. Talma fez a sua aparição. Ou antes, a cidadã Talma, porque as novas regras da cortesia frívola e honesta entra­ram com ela, afastando as conveniências fora de moda:

— Bem me parecia que estavas aqui! — exclamou ela. — Toda a gente está perturbada, esta noite, e tu ficas aqui a comer a tua sopa como um velho camponês que volta do campo! E tu, cidadão Batz, também cá estás?

—   Chegámos juntos — defendeu-se o interpelado levantando--se, na intenção de beijar a mão da dona da casa, mas esta per­maneceu com os braços cruzados sobre o xaile e um peito que se desejaria menos infantil.

—   Há momentos em que gostaria muito de ser um velho cam­ponês que volta dos campos — grunhiu o actor. — Aliás, não pas­so de um! Labuto com todas as minhas forças nos campos da su­blime literatura teatral e acontece-me muitas vezes precisar de repouso...

—   E eu tenho repouso, eu? Estou permanentemente ao serviço dos nossos amigos e da liberdade!

— A dos outros. Não da minha! Em todo o caso, é menos can­sativo fazer andar as pernas do que o cérebro. E tu nem sequer a desculpa da dança tens!

—   Censuras-me por isso, agora?

—   Cara amiga — cortou Batz, que detestava acima de tudo es­tar no meio de uma disputa doméstica — só te peço que me dei­xes seguir-te, mas talvez pudéssemos deixar o mestre repousar um pouco? Teve uma jornada fatigante...

—   Impossível! É preciso que ele venha! Temos ali os nossos ami­gos todos: Condorcet, Vergniaud, Brissot, Barbaroux, Gensonné, Buzot, Pétion, Roland... David está a chegar e talvez também Mme. Roland!

—   Uma mulher na tua corte! E logo essa? Grande novidade! — troçou Talma:

Com efeito, muito poucas mulheres, ou mesmo nenhuma, se aventurava no salão da antiga estrela da Ópera, que as preteria, de longe, aos homens, com os quais tinha sempre a certeza de de­sempenhar o papel principal.

—   Não sejas ridículo! Eu não recuso a sociedade das mulheres, pelo contrário! Acontece que algumas, como Mme. Roland, não acham a minha casa digna da presença delas. Felizmente, não são todas dessa opinião e esta noite temos cá miss Adams!

Batz, que comia a sua canja, engasgou-se.

—   Miss Adams? — emitiu ele quando recuperou a voz, após Cunégonde lhe ter batido no dorso com vigor, como se batesse um tapete. — Que Miss Adams?

—   Laura Adams — informou graciosamente Julie, que sabia ser encantadora. — É uma jovem americana, a quem acabo de alugar uma das minhas casas da Chaussée-d'Antin. Ela é de Boston, mas chegou da Bretanha, onde tinha uns assuntos de família a tratar. Era parente da­quele pobre almirante John Paul Jones, que perdemos o ano passado...

Por mais inverosímil que pudesse parecer, não havia qualquer dúvida. Aliás, poderia existir mais alguma Laura Adams, para além da inventada por Batz?

—   Ah! ficarei muito feliz por conhecê-la! — exclamou ele. — Tenho muitos amigos entre os americanos de Paris e se for uma pessoa agradável...

—   Agradável? Ela é, simplesmente, adorável! — exagerou Tal-ma. — Só a vi uma vez, quando veio assinar o contrato de arren­damento, mas ficámos seduzidos, Julie e eu!

—   Só peço para entrar nesse coro de admiração — disse Batz com um sorriso que, desta vez, não lhe fez cintilar os olhos.

—   Vinde, então! — disse Julie, tomando-lhe o braço.

Tirado da sua cadeira e da sua chaminé, Talma seguiu, com-pondo-se à ideia de rever a encantadora americana, que Batz mal acreditava ainda que fosse verdadeiramente aquela que trouxera ao mundo, com um toque de varinha mágica, num dia do Verão passado...

Mas era mesmo ela, vestida com um vestido ligeiro de cetim cor de marfim sob uma gola de palhaço do mesmo tecido, verde-amêndoa, de longas mangas terminadas por punhos de organdi. Sentada numa preguiceira, de cálice de champanhe na mão, Laura conversava alegremente com um belo jovem que Batz conhecia de vista, como toda a Paris, por tê-lo aplaudido na sala Favart, mas também por ser das relações de Marie, senão amigo, com a qual cantara e representara várias vezes quando ela ainda pertencia ao teatro: era o tenor Jean Elleviou, por quem todas as mulheres an­davam loucas: Não sem alguma razão, aliás: um verdadeiro Adónis — e ainda por cima viril, segundo parecia — com magníficos cabelos cortados curtos, mas de um louro tão brilhante que se po­deria pensar que tinham sido penteados com folha de ouro, um rosto regular de tez corada, de sorriso deslumbrante, tinha olhos de um azul-escuro, cujo olhar podia ser sedutor. Ao aproximar-se, Batz juraria que o belo cantor estava, justamente, em vias de se en­tregar à tarefa de seduzir a falsa americana. O que o pôs de imediato de mau humor. Assim, quando Julie o levou até à jovem para fazer as apresentações, contentou-se com uma saudação muito seca e um:

— Oh! Eu já tive a honra de conhecer miss Adams! Nós temos... amigos comuns, mas eu pensava que já tinha partido para os Estados Unidos...

Se pensava embaraçar Laura, enganou-se. Se os olhos negros dela brilharam, se as faces coraram, foi apenas de prazer.

— Mas como sois protocolar, meu caro barão! — disse ela em inglês, estendendo-lhe uma mão, sobre a qual ele foi obrigado a inclinar-se. — Sabeis muito bem que não tenciono voltar para um país que não me diz nada. Como vai Marie?

—   Bem. Pensava que já não vos lembráveis dela... e de nós?

— Tenho excelente memória e já tinha intenção de a ir ver. Mas cheguei a Paris há pouco... a tempo de me instalar.

—   Devíeis falar francês — interveio Talma, que falava, também ele, a língua de Shakespeare. — Já bem basta termos de passar, muitas vezes, por originais.

Em seguida, sem respirar, acrescentou, em francês:

—   Os outros já estão à mesa, a julgar pelo barulho que vem da sala de jantar. Por que não estais com eles?

—   Justamente, fazem demasiado barulho! — disse o tenor com uma pequena careta. — E eu sinto-me feliz por estar aqui a con­versar um pouco com miss Laura! Ainda por cima porque não vou poder ficar: tenho que regressar ao teatro. Estais a estragar-me es­tes derradeiros instantes...

—   Não tenhais pena! — disse Laura rindo-se. — Vinde ver-me a minha casa. Moro na Rua du Mont-Blanc, número 44 — acres­centou ela, os olhos em Batz. — Como ainda não estou completamente instalada, saio pouco.

—   Eis um convite que não recusarei! — exclamou Elleviou com um entusiasmo bem meridional, que apenas encontrou eco no co­ração do barão. Este contentou-se em oferecer a miss Adams uma saudação um pouco rígida:

—   Dais-me a honra de vos conduzir à mesa? — perguntou ele.

—   Não, desculpai-me. Vim apenas passar uns momentos com Mme. Talma, mas, efectivamente, há muito barulho e eu não compreendo nada da política francesa. Se me permitis, retiro--me...

A bela Julie — de facto, não o era assim muito, de tal modo era delgada, o decote mostrando lamentáveis covas nas clavículas — associou-se àquele desejo entusiasmada, já que tinha pressa, justamente, de se juntar àquele grupo fechado, onde se debatia, entre as ostras e as terrinas, aquela nova Comissão de Salvação Pública que não parecia colher muitos adeptos. Confiando Laura a Talma, ordenando-lhe que se lhe juntasse assim que levasse a amiga à carruagem, meteu o braço ornamentado com largas pulseiras de ouro no de Batz e conduziu este até à sala do festim.

—   Vinde fazer ouvir a vossa voz! Esta noite, precisamos de um observador imparcial!

—   Credes verdadeiramente que o sou? Eu sou gascão, minha cara anfitriã e, na nossa região, temos tendência para tomar partido e a defendê-lo até á última. Pode acontecer que me junte ao tumulto...

—   Pode ser que isso me divirta! Sendo assim não mudais de convicções?

—   Nunca... desde a noite dos tempos! A divisa da minha famí­lia é «In omni modo fidelis». O que quer dizer...

— ... Sempre fiel! Isso é muito belo... Posso lembrar-vos, no en­tanto, o nosso código actual de civilização? Há já uns bons momentos que esquecemos as leis e falamos como em Versalhes.

Batz arredondou o braço ao inclinar-se para a anfitriã:

—   Dar-me-ás a honra, cidadã Talma, de aceitar o meu braço para te conduzir ao banquete republicano?

O que ela fez rindo e ambos franquearam a soleira da sala de jantar, enquanto Talma conduzia Laura até ao pequeno cabriolé li­geiro e elegante que esperava na alameda com outras viaturas. O cocheiro que se encontrava na boleia desceu para abrir a porti­nhola.

—   Voltamos para casa, Jaouen! — disse-lhe ela após ter ofere­cido a mão a Talma que, após este dever cumprido, se apressou a regressar à cozinha onde o esperava Cunégonde e os seus pratos!

Realmente, gritava-se demais em sua casa e não tinha vontade nenhuma de enrouquecer para se fazer ouvir. A propósito... senti­ra uma pequena falha, há pouco, ao retomar o diálogo de Carlos IX... Uma gemada talvez fosse aconselhável?

—   Vou fazer-vos uma imediatamente, meu patinho — aprovou a anciã. — Não há nada melhor para aclarar a voz!

Os que povoavam a elegante sala de jantar de Julie e se agita­vam em volta da longa mesa carregada de flores e candelabros, onde choravam longas velas rosa, talvez precisassem do inocente remédio, porque era a ver quem gritava mais alto. Todos aqueles homens estavam ainda sob o efeito da emoção que se apoderara de todos na Convenção, quando o projecto da Comissão de Sal­vação Pública fora proposto e pretendiam partilhá-la com a anfi­triã.

—   Eu disse-lhes — clamava Buzot — que o projecto deles era perigoso porque dava a um punhado de privilegiados um direito específico da Assembleia: o de fazer leis, já que a Comissão pode­rá tomar medidas provisórias que são sempre leis definitivas em matéria de Salvação Pública! Ao que Marat me respondeu...

Mas Batz não escutava. A voz dele, aquela voz de bronze que podia fazer-se ouvir no clamor mais forte de uma batalha, perma­neceu muda. Apenas o seu corpo estava presente naquela refeição deliciosa. O seu espírito continuava ligado a Laura, dividido entre a cólera e uma alegria enorme, que ele não julgava tão viva, por vê-la de novo. No entanto, a cólera levava vantagem. Há quanto tempo estava em Paris? E por que golpe de magia a encontrava ele, elegante e bem-vestida, num salão onde não pertencia, usufruindo, aparentemente, do estatuto lisonjeiro de rica estrangeira? Uma casa — se bem que alugada — no bairro da Chaussée-D'Antin era cara, a carruagem e os vestidos também e no pescoço de Laura, assim como nos punhos, vira cintilar diamantes, num belo conjunto de brincos, colar e pulseiras. Quem pagava tudo aquilo? Um homem, sem dúvida — ela parecera-lhe deslumbrante! — mas quem? Pela primeira vez na sua vida Jean experimentou um sentimento bizar­ro, amargo e profundamente desagradável, que não conseguia ana­lisar, mas sobre o qual qualquer mulher o esclareceria: chamava-se ciúme... Admiti-lo-ia, sem dúvida, com muita dificuldade.

Subitamente, entre duas enérgicas participações na discussão, Julie apercebeu-se do estranho comportamento do seu convidado:

—   Que se passa contigo cidadão? Não te ouvimos, não comes, não bebes... nem pareces estar connosco! O que se diz aqui não te interessa?

—   Sim, claro, mas tudo isto me preocupa muito. Tenho medo que os teus... que os nossos amigos se encaminhem na direcção de grandes problemas. Já se diz nas praças e nos cafés que Robespier­re, Marat, Danton e outros se querem desembaraçar dos Girondinos.

— Isso é certo, mas eles saberão defender-se — disse ela com exaltação. — E Talma também!... mas, já agora, onde está ele?

—   Foi acompanhar miss Adams...

—   Isso já foi há muito tempo! É preciso que ele se junte a nós! David deve estar a chegar e se ele não estiver aqui para o acolher, ficará descontente...

De repente, parecia realmente inquieta. Batz só vira uma vez o pintor dos Serments — primeiro dos Horaces e depois do Jogo da pela, que conheceram um imenso sucesso — mas fora suficiente para descobrir nele um orgulho que rasava a arrogância e um ca­rácter vingativo, o que devia fazer com que não fosse fácil convi-ver com tal homem. Se bem que fosse íntimo da casa e inspirador da revolução do guarda-roupa de Talma, esperava sempre o mes­mo acolhimento em cada uma das suas visitas: o tapete vermelho e    o casal Talma prostrado sobre ele.

—   Descansa! — disse-lhe ele, levantando-se. — Vou procurar teu esposo.

Não era aquela, com efeito, uma ocasião maravilhosa para se esquivar? Ao passar pelo vestíbulo, pegou no seu chapéu, na ben­gala e encaminhou-se na direcção da cozinha onde, como espera­va, encontrou o actor trágico na sua cadeira, uma manta sobre os ombros e uma tigela apertada entre as mãos, bebendo em pequenos goles, deliciado, a gemada pedida. A entrada de Batz fê-lo le­vantar uma sobrancelha duvidosa:

—   Ela chama-me?

—   Sim. Diz que David não deve tardar e que se não estais lá para o receber...

—   Meu Deus, tinha-me esquecido desse! Gosto muito dele e admiro-lhe o talento, mas gostaria que não se tomasse sempre por Júpiter! Temos que ir! — acrescentou ele, entregando a tigela e a manta à anciã.

—   Eu, não. Só vim de passagem. Tenho que regressar. Tenho assuntos a tratar com Lecoulteux, que vós conheceis! Apresentai as minhas desculpas à vossa adorável esposa e apressai-vos para onde o dever vos chama! Ver-nos-emos em breve.

E lançou-se no exterior, ao mesmo tempo que Talma voltava, suspirando, para a sua casa iluminada. Era o momento: na alameda, Batz cruzou-se com um homem que caminhava com a dignidade solene de um senador romano, levantando bem alto uma cabeça bela, a despeito de uma boca carnuda, engrossada por um ligeiro tumor, que lhe dava um ar de desdém desagra­dável, a meio caminho entre um longo nariz e um queixo vo­luntário. Os olhos frios fixavam, a maior parte do tempo, de ma­neira arrogante, mas apenas afloraram Batz com insolência, como se se tratasse de um objecto sem importância, não mere­cendo a menor saudação.

Devolvendo o desdém, este endireitou os ombros ostensivamente, quase esperando que o outro lhe exigisse explicações, con­tando mesmo com elas: uma boa querela e porque não um duelo, apaziguar-lhe-ia os nervos. Mas aquela imitação de Romain nunca manejara, certamente, outra coisa senão os pincéis, pelos quais — era preciso admiti-lo — passava, por vezes, o clarão do génio. Seria pena, aliás, privar a Arte de um tal homem! Um instante mais tarde, Batz encontrava o seu cavalo, montava-o e deixava a Rua Chantereine.

Mas não para ir muito longe. A elegante artéria dita Rua du Mont-Blanc, cujo nome substituía desde há pouco o de Mirabeau, estava suficiente próxima e Batz sabia bem que não dormiria se não regulasse as suas contas com a ex-marquesa de Pontallec. Al­guns minutos mais tarde chegava diante da casa dela.

A casa, provida de um pequeno jardim, era de dimensões mo-destas, comparada com as vastas e magníficas casas que a rodea­vam: a residência Necker, d'Épinay, ou de la Guimard, proclama­vam o poder do dinheiro. A mais próxima era aquela em que morrera Mirabeau. Fora ornamentada com uma placa de mármore negro sobre a qual, a pedido de Talma, o poeta Chénier mandara gravar:

 

«A alma de Mirabeau exalou-se destes lugares homens livres, chorai! Tiranos, baixai os olhos!»

 

Tendo os tempos mudado, ao mesmo tempo que a imagem do tribuno no espírito do povo, a placa acabava de ser retirada, ao mesmo tempo que o nome da rua era substituído, provisoriamen­te, pelo nome de um cume alpino, cuja pureza não podia ser con­testada.

O que não era o caso de Mirabeau.

Quanto à casa de miss Adams, a sua arrumação era simples: um corpo central, marcado por divisões e encimado por um arredon­dado, janelas de consola e uma porta ornamentada com uma car­ranca. O pátio só tinha espaço para duas carruagens e o jardim, do qual se apercebia a folhagem por cima do único andar, não devia ser maior. À entrada, uma grande campainha que Batz, sem sair da sela, agitou com autoridade.

Alguns instantes de espera, depois o som de passos no saibro do pátio e, por fim, uma voz pouco amável perguntando quem vi­nha àquela hora da noite.

—   Não é assim tão tarde — disse o barão secamente. — E miss Adams, que vi em casa de Talma e que acaba de entrar, pode, cer­tamente, receber-me.

—   É possível, mas isso não me diz quem sois.

—   Jean de Batz — anunciou este, evitando dar a ouvir o seu título aos ecos da noite. — Algo me diz que miss Adams espera a minha visita...

Provando que tinha razão, a porta abriu-se quase de seguida sob a mão única de um homem de força, vestido com a sobrieda­de de um mordomo ou de um intendente, cujo braço esquerdo era prolongado por um gancho de ferro que devia constituir uma arma fantástica. Os olhos, frios e cinzentos, encararam o recém-chegado:

—   Com efeito, creio que vos espera! — disse ele com lentidão.

Mas Batz já sabia quem ele era:

—   Você é Joël Jaouen, não é verdade? Pitou falou-me de si.

—   É um bom amigo. Entrai, eu trato do vosso cavalo. Miss Adams está no salão de música, a segunda porta à esquerda do vestíbulo...

Batz encontrou-a sem dificuldade e, depois de ter batido dis­cretamente, penetrou numa divisão que devia o seu nome a uma grande harpa dourada disposta ao pé de um tamborete coberto de seda verde e ornada de trabalhos em talha que, por cima das portas, compunha ramos de instrumentos. A própria Laura estava sen­tada numa cadeira perto da chaminé, os braços cruzados sobre o peito, vestida com um traje de interior em fina lã branca, simples como o vestido de uma noviça, cujas amplas mangas escondiam as mãos. Não se levantou para acolher o visitante, contentando-se em lhe indicar uma poltrona colocada à sua frente:

—   Vinde sentar-vos aqui. Vão trazer-vos café.

Mas ele continuou a examinar a sala, pequena e encantadora, com as talhas de um verde-doce, realçadas por ligeiros filetes de ouro, as cortinas de veludo cor de marfim e os móveis forrados de seda. Deu uma pequena risada bastante desagradável:

—   Estais bem instalada. Quem paga tudo isto?

A intenção de ferir acendeu um clarão nos olhos negros da jo­vem, mas ela permaneceu impassível.

—   Eu mesma. Em casa de quem pensais que estais?

—   Fizestes fortuna?

—   Isso é dizer muito. Digamos que encontrei certos bens. Mas, se quiserdes sentar-vos ao pé de mim, em vez de palmilhar este sa­lão, avaliando cada coisa como se fôsseis um comerciante, talvez vos pudesse explicar aquilo que não compreendeis?

Ele decidiu-se a pousar os olhos nela, reencontrou um olhar cuja gravidade o surpreendeu, após o tom ligeiro que empregara nas suas primeiras palavras e foi, lentamente, ocupar o assento que ela lhe apontava. Nesse instante, Bina entrou, trazendo um tabu­leiro carregado de chávenas e uma cafeteira, que pousou sobre uma mesinha colocada entre as duas personagens.

Batz observou a rapariga com interesse:

—   Se não me engano, esta jovem era a vossa... quero dizer, a criada de quarto de Mme. de Pontallec?

— Não vos enganais. É Bina, com efeito. Ela... definitivamente, penso, aderiu à minha causa. Obrigada, Bina, eu sirvo — acres­centou ela, levantando-se.

O instante seguinte pertenceu ao odor do excelente café, do qual Batz bebeu uma primeira chávena com um prazer visível.

—   E se me explicásseis? — suspirou ele, por fim. — Já não compreendo nada.

—   Oh, a minha história é muito simples. Digamos que a sorte teve um pequeno papel nela. Mas, primeiro, dai-me notícias de Pi­tou. Ele foi ter convosco sem problemas? E depois, voltou para o quartel?

Desta vez, Batz sorriu para aquela mulher, que não conseguia desvendar. Ora o irritava, ora o encantava.

— Acho que sim, que devemos começar por ele. Qualquer ou­tra inquietar-se-ia com o diamante azul...

—   O diamante não passa de uma pedra, ao passo que Pitou tem um coração de ouro. Não tem qualquer comparação...

—   Então, ficais a saber que vai tudo bem por esse lado. Pitou retomou o serviço, mas está mais ou menos consignado à casa em que vive. Além disso, sente-se muito infeliz...

—   Não por minha causa, creio?

—   E por quem havia de ser? Tive bastante dificuldade em im­pedi-lo de voltar para a Bretanha. Estava persuadido de que vós corríeis perigo...

—   Enquanto Josse de Pontallec viver, estarei sempre em peri­go, mas são essas as regras do jogo. Odeio-o tanto quanto o amei, creio, mas, agora, jurei que seria a sua perdição. Será ele ou eu, porque não há espaço suficiente na terra para ambos.

—   Por causa do casamento dele com a vossa mãe?

—   Não. Porque ele matou-a! E agora, escutai-me!

 

Laura estava a ser sincera quando, ao deixar Pitou, lhe decla­rara querer ficar em Cancale para tentar arrancar Jaouen ao inferno em que vivia depois da perda do braço e das suas esperanças de vir a ser, um dia, um grande soldado, mas, mal o barco que trans­portava o seu amigo para Jérsia se afastou, compreendeu que tinha uma segunda intenção e que todo o seu ser recusava a monstruo­sidade de um casamento fora do normal. Se bem que nunca tives­sem sido próximas, não queria mal à sua mãe, sabendo, por uma cruel experiência própria, quanta sedução se exalava de Josse de Pontallec quando ele o queria. Também sabia que o marquês nun­ca fazia nada sem uma intenção cuidadosamente calculada e, na ocorrência, fácil de adivinhar: pôr as mãos nos bens dos Laudren que permaneciam inteiros, já que a nova marquesa de Pontallec nunca emigrara. As casas, o armazém de armamento, tudo estava à mercê das suas garras e seduzir uma mulher mais idosa do que ele, que não conhecera outra vida senão a de trabalho forçado para lutar contra o desgosto deixado pela morte do marido e, sobretu­do pela do filho, não devia apresentar grandes dificuldades.

No dia seguinte à partida de Pitou, Laura disse a Jaouen:

—   Preciso de regressar a Saint-Malo. Você vem comigo?

—   Onde fordes, eu vou. Estava certo, aliás, de que mo propo­ríeis...

E partiram na carroça do comerciante de ostras, a mesma que trouxera Laura e Pitou. Em Saint-Malo, após passarem pelo contro­lo, ela com o passaporte americano e ele com a sua carta de civismo, instalaram-se naquele albergue da Morue Joyeuse, situado a alguns passos da residência de Laudren, onde Bina tinha revelado à sua antiga patroa o estranho estado da sua família. Sem medo de ser reconhecida pelo estalajadeiro Le Coz: a infância de Anne-Lau­re desenrolara-se, sobretudo, em La Laudrenais, a casa familiar de Saint-Malo, em Komer, o pequeno castelo na floresta de Paimpont e no convento, que abandonara para casar com Pontallec na ca-pela de Versalhes. Na Rua Dugay-Trouin, não a conheciam muito.

A razão invocada para a sua estadia residia no desejo de uma rapariga, filha dos livres Estados unidos da América setentrionais, encontrar raízes familiares bretãs, com as quais a haviam embalado durante a sua infância em Boston. Além disso, como estava acompanhada por um herói de Valmy, ficava ao abrigo de qualquer desconfiança por parte das autoridades. Instalou-se, portanto, num quarto cuidadosamente escolhido em função de uma janela de onde podia vigiar a idas e vindas da residência familiar.

Durante os dois primeiros dias, os movimentos foram quase nulos, até que Joël Jaouen, que não tinha qualquer razão para se esconder, conseguiu deitar a mão a Bina e levá-la até à sua antiga patroa. Sem nenhuma dificuldade: desde sempre, a pequena bretã estivera apaixonada por ele. Há meses que ignorava o que lhe ti­nha acontecido e reencontrá-lo, de repente, numa rua de Saint--Malo, se bem com um braço a menos, enchera-a de alegria. Oh, ela não ignorava os sentimentos que Jaouen sentia pela jovem marquesa, mas, de cabeça ligeira e coração simples, Bina conten­tava-se com pouco: viver perto dele, esperando que um dia ele acabaria por reparar em como ela era encantadora, chegava-lhe. Julgava-o morto e ao revê-lo, de repente, de pé diante de si e bem vivo, sentiu uma tal alegria que tê-lo-ia seguido até ao fim do mun­do. Mas foi apenas até ao albergue do tio Le Coz, para ali encon­trar miss Adams e de novo sentiu um momento de alegria.

O que Bina lhe contou inquietou a jovem: na antevéspera, quando regressava sozinha de la Laudrenais, ao chegar a Saint-Ser­van, a carruagem ligeira que transportava a mãe de Laura fora pa­rada por indivíduos de má-cara, no momento em que entrava pela porta de Dinan. Após terem-na molestado, os indivíduos aconse­lharam-na a deixar a cidade imediatamente, se não queria ver os seus entrepostos, os dois navios que esperavam no cais e até a sua casa, serem pasto das chamas até às fundações.

—   Mme. Marie-Pierre não é medrosa — continuou Bina — e vós sabei-lo bem, Mlle. Anne-Laure — nunca conseguira chamá-la de outra forma — mas, quando voltou, o senhor marquês lançou enormes gritos. Segundo ele, a ameaça era séria e acabou por con­vencer Mme. a afastar-se, ao menos por algum tempo, deixando os negócios nas mãos do bom sr. Bedée, que vós conheceis e que é o braço direito dela, desde a morte do esposo.

—   E ela aceitou? — perguntou Laura, a quem esta história da carruagem atacada lembrava qualquer coisa'. — Isso não se pare­ce nada com ela.

—   Ela teve mesmo medo, creio. E depois, o senhor marquês foi muito firme: ou ela permitia que ele a conduzisse a Jérsia, ou ele iria ter com o irmão do Rei, monsenhor de Provença, que está na Alemanha, a fim de, pelo menos, ter a certeza de que servia para al­guma coisa. Assegurou-lhe que, se aceitasse, faria a travessia entre Jérsia e Saint-Malo para velar pelos interesses de ambos e servir-lhe--ia como espécie de correio. Acrescentou que, pelo menos, não se atormentaria por aquela que lhe era mais querida no mundo...

—   Diz-me, Bina — interveio Jaouen — tu sabes muita coisa! Dir-se-ia que não perdeste aquele bom hábito de escutar às portas, ou espreitar pelos buracos das fechaduras?

—   Quando se gosta das pessoas, interessa-se por elas — pro­testou a jovem, ofendida...

—   Além disso — cortou Laura — acontece que é útil. Continua, Bina!

—   Bem... não há muito mais a dizer. A última noite, partiram ambos a pé e em grande segredo para apanharem um barco que o senhor marquês arranjou algures.

—   Isso é vago! — grunhiu Jaouen.

—   Não imaginas, com certeza, que me incluíram no segredo? — insurgiu-se a jovem. — Já bem basta que eu saiba onde foram...

A notícia daquela partida aterrorizou a filha de Marie-Pierre. Menos por causa do lugar para onde a sua mãe aceitara ir e mais pela aceitação em si. Deixar-se levar assim por Pontallec, aceitar dele fosse o que fosse, até abandonar tudo o que dava razão à sua existência: aquele armazém de armamento naval que conduzia com punho de homem, contra ventos e marés e que conseguira, até à data, proteger dos predadores do novo regime. Como não compreendera ela que, indo para Jérsia, se bem que muito próxi­mo, não deixava de ser uma emigrada, cujos bens caíam automa­ticamente sob a alçada da lei, podendo ser confiscados? E, mais in­compreensível ainda, o jogo de Pontallec. Como pretenderia ele apropriar-se daqueles bens que tanto cobiçava?

Era verdade que o bom do Hervé Bedée, que conhecia a má-quina administrativa da casa Laudren tão bem como a patroa, era a honestidade em pessoa e, além disso, conhecia suficientemente bem os métodos de Marie-Pierre para os continuar, mas havia ali uma falha qualquer, um buraco, qualquer coisa que escapava a Laura...

A menos que Pontallec — não conseguia chamá-lo pelo nome próprio! — se tivesse ligado a novos patrões? Ela sabia há muito, pelo que lhe tinha dito Batz, das relações ocultas do irmão do Rei — aquele que Maria Antonieta apelidava de Caim! — com certos deputados da Constituinte e depois da Legislativa. E a Convenção? Os agentes daquela raposa, prestes a tudo, até ao crime, para ob­ter, por fim, a Coroa, não negligenciavam, certamente, o novo po­der e Pontallec era um deles!

—   Que fazemos? — tinha perguntado Jaouen, enquanto Bina regressava à casa. Vamos a Jérsia?

— Vai ser preciso, penso, prepararmo-nos para isso. Preciso de ver a minha mãe!

—   Então, para isso, mais vale, se calhar, voltar a Cancale! Lá, teremos mais facilidades do que aqui.

—   Sem qualquer dúvida. Partiremos amanhã de manhã.

—   Por que não já?

—   Quero tentar uma entrevista com o sr. Bedée. Foi sempre bom comigo quando eu era criança. Foi ele que se encarregou do pagamento do meu dote e talvez me possa ajudar a ver as coisas um pouco mais claras.

—   Ides revelar-lhe quem sois?

—   Saberá calar-se melhor do que Bina. Tenho absoluta con­fiança nele...

Mas estava escrito algures que Laura não iria ver o sr. Bedée, nem voltaria a partir para Cancale. No momento em que saía do albergue para se dirigir aos escritórios do porto, um cortejo apareceu na rua, formado, sobretudo, por curiosos em volta de dois pes­cadores transportando um corpo envolto em cobertores sobre uma maca improvisada. Uma brusca agitação naquela rua calma, que parou diante da residência de Laudren, onde um dos dois munici­pais, que o escoltava, bateu com força. Um brusco pressentimento atirou Laura na direcção daquela gente, logo seguida por Jaouen.

—   Que se passa? — perguntou este após ter afastado a jovem com uma mão autoritária.

—   É Marie-Pierre... enfim, quero dizer, a cidadã Laudren. Um pescador de Rothéneuf, que a conhece muito bem, encontrou-a nos rochedos, como se a maré a tivesse atirado para ali...

—   Está morta? — perguntou Laura com voz fraca.

—   Não... mas talvez fosse melhor, pelo que dizem! Quanto a saber o que fazia ela lá, toda encharcada, toda rota...

—   Deve ter querido fugir do país — disse alguém — e falhou.

—   Fugir? Isso não parece nada dela! A Marie-Pierre é de pedra dura, como nós! Seria preciso matá-la para a fazer abandonar o seu comércio, os seus navios... e os seus homens!

— A propósito de homens! Ond'é que `tá o marido novo?

Era precisamente a pergunta que Laura fazia a si própria, te­mendo saber a resposta. Subitamente, tomou uma decisão. A porta da residência acabava justamente de se abrir, revelando os ros­tos assustados de Bina, de Mathurine, sua mãe e de dois criados já idosos: atirou-se logo a seguir à maca improvisada, não permitin­do que Jaouen a impedisse:

—   Eu também entro! — disse ela, simplesmente. Depois, um momento mais tarde: — Deixa-me entrar Bina!

Assustada, a jovem criada permaneceu hirta. Então, a sua mãe meteu-se:

—   Quem sois vós?... De onde conheceis a minha filha?

Mathurine era dura de roer. Há anos ao serviço de Mme. de Laudren, copiara-a, o seu tom, por vezes, era ainda mais áspero, as maneiras mais autoritárias do que o seu modelo.

— Então, Mathurine — disse Laura secamente — não me digas que não me reconheces? Bina reconheceu... e é menos inteligente do que tu... E, por amor de Deus, não grites!

Um pálido raio de sol, insinuando-se pelas altas fachadas cin­zentas, iluminou vivamente, naquele instante, o rosto da jovem.

Com os olhos subitamente semicerrados, Mathurine esboçou um si­nal da cruz, que reteve mesmo a tempo:

—   Senhor! Meu Deus, não é possível? Men...

—   Nada de nomes! — sussurrou Joël Jaouen. — Entramos e fa­lamos lá dentro!

Com autoridade, afastou aqueles que pretendiam entrar atrás dos maqueiros. Dirigiram-se para a grande escadaria de madeira magnificamente torneada, terminada por uma antiga figura de proa pertencente a um navio chamado Fortune e que pacientes poli-mentos tinham desembaraçado dos ataques do sal e da água do mar. Fora o pai de Anne-Laure que a pusera ali, como símbolo du­plo de sorte e riqueza. Bina precedia os carregadores para lhes abrir as portas. Laura e Mathurine seguiam-na com Elias e Guéno­lé, os dois criados que olhavam para a jovem com uma alegria mis­turada com algum receio, mantendo-se um pouco à parte, como se ela fosse um ser sobrenatural regressado do Além. Ninguém fala­va. Só se ouviam os passos sobre o soalho e os gemidos daquela que transportavam para o seu quarto.

Sem um olhar para a decoração severa, quase espanhola, mas magnífica, se bem que pouco feminina, da qual Marie-Pierre de Laudren fizera o seu canto íntimo — tornada «armador>, limitara-se a recuperar o quarto do mestre! — Laura agradeceu generosamen­te aos carregadores, dos quais um era o pescador que encontrara a sua mãe. Deu-lhes um pouco do ouro que ainda possuía, o que os fez corar de prazer, mas, sobretudo, deixou falar o seu reco­nhecimento, sabendo bem que o que acabava de acontecer em fa­vor de Marie-Pierre era a velha solidariedade das gentes do mar e não a ganância do lucro... Em seguida, encaminhou-se para o lei-to onde Mathurine e Bina depositavam a sua patroa e cortavam, com grandes tesouras e o máximo de precaução, as vestes rasgadas e molhadas. Marie-Pierre devia sofrer de várias fracturas por-que, a despeito da sua inconsciência, escapavam-se gemidos dolo­rosos da garganta e a respiração parecia difícil.

Fisicamente, a nova Mme. de Pontallec não se parecia com a fi­lha. Era pequena, morena, de aparência frágil, a despeito de uma extraordinária majestade natural que lhe permitia dominar todos aqueles que trabalhavam sob as suas ordens, mesmo os capitães mais curtidos. Sabiam-na inteligente, justa, mas inflexível, a partir do momento em que tomava uma decisão. Apesar de um endure­cimento dos traços, devido aos hábitos de comando, guardava res­tos de uma beleza mais próxima do sol espanhol do que das bru­mas bretãs. Era dela que a filha herdara os grandes olhos negros, tão profundos e expressivos...

—   O que é que terá acontecido? — lamentou-se Mathurine, la­vando, com infinita doçura, o sangue seco de várias feridas. — E ele, o belo senhor, onde está ele?

Lembrando-se bruscamente de quem a ajudava naquele mo-mento, olhou para esta com um olhar cheio de pesar:

—   Desculpai-me, Mlle. Anne-Laure, não devia ter dito isto?

—   Porquê? Porque esse homem foi meu marido antes de o ser dela? Nunca dirás metade do mal que penso dele. Espero, com todo o meu coração, que ele tenha morrido no que parece ter sido um naufrágio...

—   O mar estava encapelado a noite passada, mas não estava assim muito forte — disse o médico que Guénolé introduziu nes­se instante. — E Tudal, o pescador que a encontrou, não viu qual-quer sinal de naufrágio... É estranho, não? Vejamos os estragos!

Laura conhecia o doutor Pèlerin, que se ocupava da família já antes do seu nascimento. Era um antigo cirurgião de marinha que muito viajara, muito vira e, sobretudo, muito aprendera. Das suas viagens trouxe um grande conhecimento das plantas e da mecâni­ca humana, que lhe foi útil depois de, há 30 anos, ter pousado o seu saco em terra, no seguimento de um ferimento no joelho di­reito que o deixou coxo, mas, fora esse inconveniente, na inteira posse dos seus conhecimentos.

Tendo-se desembaraçado do capote e da casaca, tomou conta da sua paciente, sem olhar para ninguém e começou o seu exame, apalpando com os dedos, curtos e largos, mas extraordinariamen­te leves, os membros e o corpo. E o rosto ia ficando mais sombrio à medida que ia prosseguindo.

—   Ela tem várias fracturas, mas, sobretudo, a caixa toráxica está quebrada. Daí esta respiração penosa e barulhenta. Ainda bem que está inconsciente, porque, à parte enchê-la de ópio e repor os os­sos das pernas no lugar, não vejo que mais possa fazer por ela...

—   Isso quer dizer que a minha mãe vai morrer? — perguntou Laura.

Ao ouvir estas palavras, Pèlerin levantou a cabeça e ficou mudo por alguns instantes, olhando, com estupor, para o rosto virado para ele do outro lado do leito:

—   A pequena Anne-Laure! — exclamou ele por fim. — Então, não estais morta?

—   Como vedes!

—   Então... era mesmo o vosso marido, aquele que Mme. de Laudren desposou há algumas semanas? Disseram que tínheis sido massacrada em frente da prisão da Força, ao mesmo tempo que a infeliz princesa de Lamballe.

—   No entanto, estou viva... mas fiz de maneira que me acredi­tem morta. Sobretudo, o sr. de Pontallec! Fez tantos esforços para se tornar viúvo que eu devia-lhe essa satisfação — ironizou ela. — Evidentemente, não imaginava, por um só instante, que ele ousaria desposar a minha mãe...

—   Ele tentou matar-vos?

—   Várias vezes.

—   Não me espanta. O homem é mau, pelo menos sempre o julguei como tal, mas... tem encanto e tudo o que pude dizer à vos­sa mãe para a fazer desistir do casamento caiu em saco roto. Sa­beis muito bem como ela era quando qualquer coisa lhe tocava o coração! E onde está ele, agora?

—   Tudo o que sei é que, com a minha mãe, embarcou a noite passada para Jérsia — disse Laura com um gesto de ignorância. Talvez se tenha afogado?

—   Acreditais que sim?

—   A despeito dos meus desejos, tenho dificuldade em acredi­tar...

— Também eu. Nenhum naufrágio foi assinalado, daqui a Can­cale.

—   Então, dizei-me, como ficou ela assim... neste estado?

O médico abanou a cabeça com uma careta significativa, retomando o trabalho. Durante uma hora não se ouviu mais nada por trás das cortinas de veludo púrpura senão uns fracos gemidos, mas os olhos da paciente permaneciam fechados e a sua respiração pa­recia ir enfraquecendo. Quando tudo acabou e a ferida pôde, por fim, repousar, cuidadosamente ligada com linho imaculado, o mé­dico foi ter com a jovem.

—   Viestes com a intenção de reaparecer... de forma oficial?

—   Ainda não sei. Até agora, tenho vivido sob um nome e uma personalidade emprestadas... e que me continuam a ser úteis aqui.

—   Então, aceitai um bom conselho: ficai com eles! E tentai conseguir que os daqui se calem.

—   Tomais-nos por quem, doutor? — insurgiu-se Mathurine.

—   Eu não estava a falar de vós — disse ele, dando-lhe uma pe­quena pancada no ombro, com um sorriso. — Mlle. Anne-Laure deve permanecer quem é... e quem sois vós, neste momento?

—   Laura Adams, de Boston, Massachusetts.

—   Uma americana? Não é má ideia. Muito bem, sede quem di­zeis até termos a certeza de que Pontallec está morto. Até lá...

—  Eu sei, doutor! Estou habituada. Enquanto espero, vou ficar aqui... até ao fim! — acrescentou ela com um olhar para a mãe.

—   Então, portas fechadas, minha cara! Portas bem fechadas! Aliás, não creio que demore muito. Voltarei de madrugada.

 

— Anne-Laure...

A voz era fraca, mas conseguiu penetrar no sono, a bem dizer frágil, no qual a jovem tinha caído depois da meia-noite. Endirei­tou-se na poltrona colocada perto do leito e viu que a mãe a olha­va, a cabeça ligeiramente virada para ela. Rapidamente, pôs-se de joelhos ao pé dela.

—   Mãe! — murmurou ela, sem se dar conta de que as lágrimas lhe vinham aos olhos. — Haveis-me reconhecido?

—   Uma mãe... reconhece sempre os seus filhos... mesmo... uma mãe... como eu!... Tenho sede!...

Restava um pouco de chá de tília na chaleira fria, pousada numa das mesinhas-de-cabeceira. Laura acrescentou-lhe mel e, passando-lhe o braço sob o pescoço, ergueu-lhe o busto, que lhe pareceu muito leve. A paciente bebeu alguns goles e deixou-se cair para trás.

—   Não vos sentis um pouco melhor?

— Não... cada inspiração é mais fatigante do que a anterior... Resta-me... pouco tempo, minha filha! Há pouco, ouvi-vos... com o médico, mas não consegui falar... Agora sei... que me casei... com um criminoso...

—   Onde está ele?... Naufragastes?

—   Não... não creio. No barco... senti-me doente... Ele... deu-me qualquer coisa de beber... e acordei na água... Pensei que ia mor­rer, mas sei nadar... e, ao debater-me, bati num bocado de madei­ra... uma prancha, à qual me agarrei... Fazia escuro... não via nada e o mar... encapelava-se... vagas mais fortes... mais altas... foi uma dessas que me atirou contra os rochedos... várias vezes... a dor!... Uma dor terrível... e não me lembro de mais nada.

—   Um pescador encontrou-vos em Rothéneuf. Ele sabia quem éreis. Pediu socorro e trouxeram-vos para aqui. Mas não havia qualquer sinal de naufrágio... nem de Pontallec.

—   Ele... deve estar... em Jérsia... É um... monstro! Um monstro e eu entreguei-vos a ele...

—   Eu hei-de encontrá-lo, mãe! Hei-de «vingar-nos»!

—   Preocupai-vos, antes, em viver!... Escutai!... Oh, meu Deus... um pouco mais de força... por piedade! Escutai! Antes... deste ca­samento ímpio... tomei precauções... realizei alguns negócios e reu­ni... ouro. Pus tudo... escondido... em Komer... em vossa casa. Ide ter com Conan Le Calvez! Ele vos dará tudo... o que... pus de lado... para os dias maus... que sentia chegarem! Reuni tudo... e ide-vos embora!... Não o procureis! Ele... será sempre... o mais forte!...

—   Não! Não! Virá o dia em que pagará! Juro-o!

Quase gritara e esse grito acordou Mathurine e Bina, que ela tinha mandado descansar por algum tempo. Estas viram a jovem ajoelhada ao pé da mãe e esta erguendo as mãos, num gesto de súplica. Pararam na soleira.

—   Não — suspirou Marie-Pierre. — Abandonai-o a Deus! Eu quero morrer... e não reclamo vingança...

Dolorosa, Laura leu, nos olhos sombrios da mãe, tão parecidos com os seus, uma prece ardente que a revoltou:

—   Ainda o amais? Depois de tudo isto?

—   Perdoai-me!... mas... é verdade!... Creio que ainda o amo...

 

—   Foram as últimas palavras que ela pronunciou — suspirou Laura. — Devem-lhe ter custado um terrível esforço. Asfixiava e, pouco depois, vomitou uma grande quantidade de sangue, preci­samente no momento em que o doutor Pèlerin voltava. O fim chegou muito depressa... e eu apercebi-me que sentia desgosto... muito mais do que imaginava...

Visivelmente, Laura revivia aqueles últimos instantes ao pé de uma mãe que conhecera tão-pouco. Batz respeitou por um mo-mento aquele silêncio antes de perguntar docemente:

—   Partistes logo de seguida?

—   Não. Enquanto ela ficou na sua casa, não me resolvi a deixá--la. Algo me impedia. Não podíamos escondê-la por muito mais tempo. Estava preocupada com o funeral, mas como fazê-lo? Já não há igreja nem padres dignos desse nome... Foi então que Mathuri­ne me entregou as últimas vontades da minha mãe. Eram surpreen­dentes, mas próprias do seu carácter: não tendo podido enterrar o meu irmão mais velho, Sebastião, desaparecido no oceano Índico, pedia que o seu corpo fosse confiado ao mar, sem qualquer fausto, como um simples marinheiro... Jaouen foi ao porto com o sr. Bedée e não teve qualquer dificuldade em obter o que pretendia: uma bar-ca de pescador que, de noite, conduziu o corpo da minha mãe até ao largo... e lá o deixou. A bordo, vestido de marinheiro, estava um verdadeiro padre, um verdadeiro... Em seguida, fui a Komer.

—   E voltastes para aqui. Mas, por que não para nossa casa? Se não vos tivesse reencontrado esta noite, durante quanto tempo teríamos ignorado o vosso regresso?

—   Durante pouco tempo, juro! Estava determinada a ir a Cha­ronne um destes dias. Primeiro, para abraçar Marie, depois, para vos confiar o cuidado da minha pequena fortuna...

Batz desatou a rir:

—   Nunca as mulheres desejaram tanto entregar-me dinheiro. No outro dia, foi lady Atkyns, em casa de quem nos devíamos en­contrar em Londres e que desembarcou em França, com ouro in­glês, para salvar a Rainha. E hoje...

—   Aceitai ajudar-me! — suplicou Laura. — Só tenho confiança em vós...

Ele levantou-se e, inclinando-se para ela, apoiou as mãos no braço da poltrona onde ela se encontrava:

—   Então, porquê tudo isto? — disse ele numa voz baixa e ín­tima. — Por que não viestes directamente ter comigo?

Estava tão próximo que ela lhe podia sentir o aroma a lavan­da, couro e tabaco louro. Mas era-lhe impossível confessar que cada vez menos suportava a ideia de se encontrar a três em casa dele, testemunha quotidiana do seu amor por Marie, da mútua e terna cumplicidade de ambos. Ao reencontrá-lo, há pouco, senti­ra um baque no coração e esse coração começara a cantar de ale­gria. E como ele continuava a repetir: «Porquê?» deu uma peque-na risada constrangida, que julgou estúpida e encolheu-se na poltrona.

—   Não voltei só. Trouxe comigo Jaouen e Bina. Era impossível atravancar-vos assim...

—   Razão inválida: a casa é grande.

—   E depois... estou metida noutra guerra, agora. Jurei abater aquele Pontallec de má sorte e não tenho o direito de vos arrastar para essa aventura.

—   Outra razão inválida! Esqueceis que já lhe enfiei algumas po­legadas de ferro nas costelas? E que, como agente do conde da Provença, ele faz parte dos meus inimigos pessoais? Por fim, es­queceis o nosso pacto?

Era de mais. Com um gesto brusco, empurrou-o, obrigando-o a dar-lhe passagem:

— Não esqueço nada de tudo isso, mas, tendo uma vingança a saciar, retiro-vos o direito que vos dei de dispor da minha vida. Foi por isso que quis ter uma existência própria, já que o Céu me con­cedia os meios. O sr. Bedée, que doravante é portador de todos os meus segredos, deu-me uma carta para um amigo seguro, notário em Paris. Foi ele que me encontrou esta casa e me pôs em con­tacto com Julie Careau. Simpatizámos uma com a outra.

Desequilibrado, por um instante, pelo ataque de Laura, Batz foi-se encostar a uma cómoda e, com os braços cruzados no pei­to, contemplou a jovem, tão encantadora, com os magníficos ca-belos de um louro-acinzentado que deixava cair pelos ombros. Pensou que Pontallec era, sem dúvida, um grande imbecil, à parte os seus instintos predadores, mas tinha, mesmo assim, algumas desculpas: ao passar da personagem de pequena marquesa, apa­gada e tímida, para a de uma livre americana, a ex-Anne-Laure de­sabrochara, modificara-se de maneira extraordinária. Elegante, se­gura de si própria, estava na plena força das suas qualidades... e que belas qualidades! Ao ouvi-la reivindicar o seu direito a dispor dela mesma, o barão não se pôde impedir de sorrir, com aquele curioso sorriso de lobo, de belos dentes brancos, que punham em chamas os seus olhos cor de amêndoa. O seu olhar era tão inten­so que Laura desviou o seu.

—   Nunca pensei enviar-vos para a morte — disse ele doce-mente. — Queria, simplesmente, arrancar-vos a vós própria. O pacto está, portanto, moralmente rasgado... mas, não credes que poderíamos ainda trabalhar juntos?

A reacção foi espontânea:

—   Só peço isso! No fundo, se aluguei esta casa, foi também para vos oferecer um asilo mais em Paris, e num bairro de que tan­to gostais, já que a vossa casa da Rua Ménars está selada.

Ele levantou uma sobrancelha irónica e pegou-lhe numa das mãos, que abriu para lhe beijar a palma:

—   Para mim? A sério? Mas não apenas para mim, claro? Supo­nho que reservais um pequeno lugar para... Elleviou, por exem­plo?

Passando da ternura para a cólera, Laura corou e arrancou a sua mão da dele:

—   Por quem me tomais?

—   Por uma jovem encantadora... e que gosta de agradar, o que é natural. Quanto ao nosso tenor, está longe de ser repulsivo. De-víeis ouvi-lo em Alexis, ou o desertor, é irresistível. Pelo menos, é o que dizem as mulheres...

—   Eu vi-o e resisti muito bem!

— No entanto, parecíeis muito próximos um do outro, ainda há pouco? E convidaste-lo...

— Mas, por que vos meteis? Não tenho direito a alguns amigos? Acho-o encantador... mas é tudo.

O suspiro que Batz lançou podia ter apagado o grande lustre de cristal suspenso sobre as suas cabeças, se estivesse aceso:

—   Aceitemos o vaticínio e ficai-vos por aí. Poderíeis lançar-vos numa aventura inútil e até... perigosa.

—   Perigosa? — disse Laura, encolhendo os ombros. — Onde fostes buscar isso?

—   Rua da la Loi! É lá que mora a amante dele, a bailarina Clo­thilde Mafleuroy, da Ópera. É muito bela, mas é a mais ciumenta das mulheres, a mais vingativa que conheço e louca pelo amante. Seria até capaz de enviar uma rival para o cadafalso.

—   Não exagerais um pouco?

—   Como bom meridional que sou? Não. Se tendes um fraco por esse rapaz, tende cuidado com Mafleuroy! Porque não gostaria de ver a grande dama que sois desempenhar, sem saber, o papel desagradável de papalvo.

—   O que é que isso quer dizer?

—   Que Elleviou está apaixonado por uma mulher muito jovem que se parece um pouco convosco, aliás, e que eu conheço bem. É casada com Sartine, o filho do último tenente da polícia, mas, antes dos massacres de Setembro, ela e a mãe animavam uma lu­xuosa casa de jogo do Palais-Royal pertencente a um crioulo rico, o sr. Aucane, que é o protector confesso das damas de Sainte-Amaranthe. Depois dos tumultos, retiraram-se para Sucy, para uma propriedade também pertencente a Aucane... e disseram-me que Elleviou vai lá com frequência, em segredo, após o espectáculo. Portanto, das duas uma: ou ele tenta, ao cortejar outra mulher, atrair sobre ela a cólera da sua Clothilde, ou espera, seduzindo--vos... esquecer a delicada Émilie. De qualquer maneira, ficais avi­sada!

—   Meu Deus, como é agradável escutar o que acabais de me confiar! — murmurou Laura. — Sois uma pessoa do género de Átila, não é verdade? Por onde passais as ilusões deixam de cres­cer?

Ele pôs-se a rir e depois, tomando o rosto da jovem entre as mãos, depositou-lhe nos lábios um beijo, o mais doce que ela al­guma vez recebeu:

—   Sois-me demasiado cara para que vos deixe desencaminhar por gente indigna de vós...

E foi-se embora...

 

       O SAPATEIRO CHAMADO SIMON

No dia 14 de Junho, na escadaria da torre do Templo, um Guar­da Nacional, que montava guarda pela primeira vez no terceiro andar, olhou em volta, como alguém que descobre um mundo des­conhecido. E, de facto, era-o, porque nesse andar estavam encer­radas a Rainha, as princesas e o pequeno Rei. O guarda fazia parte da secção Le Pelletier, na qual era conhecido sob o nome de Forget. Era Jean de Batz.

Desde há duas horas que ia e vinha, com a arma ao ombro, perto das estreitas portas vidradas, guarnecidas de cortinas brancas plissadas, que lhe dissimulavam as prisioneiras. Aquelas portas separavam a escadaria da antecâmara e antecâmara das outras di­visões. Dentro de poucos minutos, <<Forget» entraria naquela ante-câmara para render um outro guarda. Entretanto, não perdia um minuto desse tempo que lhe era concedido, anotando mentalmen­te certos pormenores, como a largura da escadaria, o número de sentinelas dispostas na estreita escada de caracol de pedra, consta­tando também, encolerizado, que a vigilância era maior do que no tempo em que Luís XVI ali viveu os últimos dias. Já nessa época o patriota Palloy, o demolidor da Bastilha, tinha edificado, em torno do recinto do velho torreão medieval, um muro de seis metros de altura, guarnecido de uma única porta, guardada dia e noite. E, na própria torre, ainda havia mais gente do que antes...

O rés-do-chão estava ocupado pelos municipais e seus comis­sários, delegados da Comuna à vigilância dos cativos. A intervalos regulares, quatro ou cinco deles subiam para render os camaradas, já que a vigilância dos prisioneiros devia ser constante, de dia e de noite. No primeiro andar, havia um outro posto, ocupado pelos Guardas Nacionais, cujos oficiais se alojavam nos torreões de esquina. O segundo, onde o Rei vivera com o seu fiel Cléry, esta­va vazio desde a partida deste último, cerca de um mês depois da execução. Por fim, no terceiro, estavam prisioneiros a criança real e as três mulheres, que eram espiadas constantemente pelo casal Tison, encarregado, oficialmente, de os servir, mas que, na reali­dade, eram os espiões mais activos que o ódio pode suscitar. En­tão, que esperava Batz, das suas medidas e observações, face a um dispositivo tão pesado? Bem, justamente, muita coisa.

Uma das cavilhas mestras do seu plano de evasão era o seu amigo Cortey, pasteleiro da Rua de la Loi, que aceitara, corajosa-mente, no dia 21 de Janeiro último, representar um papel prepon­derante no rapto do Rei, do qual tinha a corpulência, no caminho do cadafalso. Era um realista de alma e coração e não mudava de opinião. Entrado muito cedo na Guarda Nacional, o seu valor, o seu sentido de justiça e o seu ascendente sobre os homens tinham fei­to dele um chefe obedecido e respeitado. Comandava a secção da Rua Le Pelletier, encarregada, mais especialmente, da vigilância do Templo onde, com a sua tropa, montava frequentemente guarda. Amigo de longa data de Batz, era ainda ele que o tinha inscrito nas listas sob o nome de Forget, cuja aparência era a de um homem de uma trintena de anos, de cabelos desgrenhados entrançados e gran­de bigode gaulês. Desde o seu «alistamento», o guarda Forget cum­pria os seus deveres com grande exactidão. O que obrigava o barão de Batz a estar muito tempo ausente de Charonne.

Bem diferente, mas tão preciosa, era a segunda cavilha mestra: o cidadão Michonis, antigo vendedor de limonadas, que dera sufi-cientes provas de civismo à Comuna para se ver outorgado com o posto de director das prisões. Vangloriava-se mesmo, para assentar a sua personagem, de se ter sentado num desses «tribunais» de lou­cos, encarregados de «julgar» os prisioneiros por ocasião dos mas­sacres de Setembro. Com 58 anos — mais 20 do que o seu amigo Cortey! — escondia sob um aspecto rebarbativo de «revolucionário» verdadeiras convicções realistas... e um grande amor pelo dinhei­ro. Batz encontrara-o em casa de Cortey e sabia que podia contar com ele, tanto como com o próprio pasteleiro. Com tais homens, esperava alcançar os seus fins...

A despeito das aparências, levou da sua facção, no Templo, uma verdadeira satisfação e a certeza de que, mau grado a vigi­lância reforçada — e se bem que Toulan tivesse desaparecido para se esconder — a evasão da família real era possível, desde que escolhesse uma noite em que Cortey e os seus homens — vários de entre eles haviam sido ganhos para a causa — estivessem de guar­da ao mesmo tempo que Michonis, cujo título de director das pri­sões acumulava com o de comissário municipal. O que lhe permi­tia ir com muita frequência ao Templo.

Levou também uma tristeza misturada com cólera porque, du­rante esse dia foi-lhe dado aperceber, por fim, os nobres prisio­neiros. Viu a Rainha, sempre imponente e bela sob os seus crepes negros e os seus cabelos encanecidos e ensinar a ler o pequeno Rei, que lhe pareceu um pouco pálido. Viu Madame Élisabeth e a sobrinha, de mangas arregaçadas e as mãos numa celha, lavando algumas roupas frágeis com uma segurança que o confundiu. Aquelas jovens nunca haviam conhecido senão o esplendor dos palácios reais — Versalhes, o inimitável! — servidas por uma mul­tidão de servos atentos aos seus menores desejos e aceitavam aquela incrível reviravolta da sorte com uma paciência e uma sub­missão absoluta à vontade de Deus. Por um momento, Batz ouviu mesmo Madame Royale rir e pensou em Laura que, depois do en­contro de ambas, nas Tulherias, sentia pela pequenina uma verda­deira ternura, a de uma mãe pela sua filha perdida...

Desde há dois meses que Batz não via a jovem e Marie quase tão-pouco: dedicava-se por completo à personagem do guarda For­get, que lhe permitia estar no coração da conspiração. Cortey, com efeito, alojava-o numa dependência da sua pastelaria. Dali, prosse­guia a tecelagem daquela teia de aranha que decidira espalhar por Paris. Graças aos fundos importantes de que dispunha, arranjara complacências, diga-se mesmo cumplicidades, nos meios mais di­versos, da polícia à Comuna e à Convenção. Sem contar, claro, com um sólido núcleo de jovens fidalgos, ardendo de desejo de se de-votarem à causa real. A sua grande habilidade consistia em manter toda essa gente afastada uma da outra. Com raras excepções, cada um deles ignorava tudo dos outros conjurados. Com efeito, Batz ainda se perguntava se não cometera um enorme erro ao convocar nas caves da Tombe-Issoire e na véspera da morte de Luís XVI uma tão grande reunião: quase 500 pessoas. Fora, na verdade, abrir as portas à traição: uma vintena teria, talvez, sido suficiente, mas, na ocasião, era prisioneiro do tempo. Ninguém imaginava que a execução se seguisse imediatamente à condenação à morte... Des­ta vez, estava decidido a não operar senão através de acções pon­tuais, necessitando somente de um número reduzido de partici­pantes.

Entretanto, o seu trabalho de sapador contra a Convenção dava já os seus resultados: no dia 31 de Maio último, Lullier, procurador--síndico da Comuna — e seu amigo — levantara, através de um dis­curso inflamado, a assembleia contra os Girondinos, se bem que moderados, mas a quem Batz não perdoava por terem votado a morte do Rei. Lullier tivera uma tarefa fácil: o general Dumouriez, que era por eles, acabava de se passar definitivamente para o ini­migo, ao qual entregara os comissários que lhe haviam sido enviados pelo governo. Ao mesmo tempo, os bairros, trabalhados por al­guns oradores particularmente convincentes — dos quais Danton e Marat, jogando assim, sem o saberem, no tabuleiro do barão — haviam-se lançado ao assalto da Convenção, estabelecida nas Tulhe­rias. Resultado: àquela hora, os Girondinos, em fuga e perseguidos, dispersavam-se pela província para ali voltarem a reunir os seus sim­patizantes. A sua inspiradora, a jovem e encantadora Mme. Roland, estava prisioneira na Abadia e Batz lamentava um pouco o facto porque se tratava de uma mulher, mas ela repetira muitas vezes que sentia um verdadeiro prazer no espectáculo da Rainha descendo cada vez mais baixo no inferno da degradação e da humilhação.

Batz sabia o que podia provocar o amor ou o ódio de uma mu­lher no comportamento de um homem. Bela, inteligente, culta, co­locada no centro do mundo político, naquele ministério do Inte­rior, cujo esposo, totalmente devotado a ela — porque bastante mais velho — era o titular, Manon Roland fascinava os Girondinos, dos quais muitos estavam apaixonados por ela. Pretendia-se musa do ideal revolucionário e no seu salão falava-se muito de virtude, justiça, liberdade, estoicismo e Plutarco, mas era ferozmente hostil a toda a forma de realismo, desde que fosse constitucional. As suas aspirações iam no sentido de um governo ideal onde tudo seria claro, limpo, próprio, que velaria, sobretudo, pela dignidade de um povo que ela apelidava de «abrutalhado, correndo para festas ridículas e saciando-se com o suplício dos infelizes entregues à sua fe­roz suspeita».

Se bem que lhe reconhecesse um valor real, Batz não gostava de Mme. Roland. Ela jogara e perdera e agora só lhe restava espe­rar por um julgamento, do qual, sem dúvida, não sairia senão para colocar a sua cabeça encantadora na máquina de morte instalada doravante, permanentemente, na praça da Revolução, face a uma enorme e grotesca Liberdade, de cartão, entronizada no pedestal da estátua de Luís XV. Quase quotidianamente, com efeito, a Comissão de Salvação Pública e o seu corolário, o Tribunal Revolu­cionário, para ali enviavam as suas vítimas. Estavam em vias de ins­talar um regime de terror como regra de governação. Tanto pior para aqueles que, mesmo com as melhores intenções deste mun­do, tinham trabalhado para que se chegasse àquele estado...

Quando a guarda foi rendida no Templo, Batz, retomando o caminho da secção Le Pelletier, encontrou-se nas fileiras ao pé de Pitou, que Cortey reclamara para a secção do Louvre para o incor­porar como «elemento excelente». Mas os dois companheiros ape­nas trocaram um olhar e só depois, já em liberdade, é que pude­ram falar sem receio, enquanto se dirigiam para uma taberna onde os homens da secção se deslocavam habitualmente.

—   Então? — perguntou Pitou. — Resultados?

—   As coisas vão bem. Restam-nos alguns pormenores e espe­rar que estejamos de guarda ao Templo ao mesmo tempo que Mi­chonis. E você, em que estamos com a pequena Tison?

Graças a Lullier, com efeito, Batz descobrira o esconderijo onde a Comuna mantinha sob vigilância a filha que era a maior garantia da fidelidade dos pais: simplesmente na antiga casa dos Tison, na Rua Portefoin, sob a vigilância do amigo Bourdon, que lhes arran­jara o posto no Templo, e da esposa deste. Os dois eram «puros» e ninguém teria posto em dúvida o seu civismo. Vigiavam, portanto, Pierrette com solicitude, mas o tio Bourdon gostava do bom vinho — que se tornara raro, sobretudo para as bolsas modestas! — e o tabaco fino, ao passo que a sua esposa confessava, corando, um fraco pelos licores doces e amêndoas.

A conselho do barão, Pitou arranjou maneira de se encontrar com Bourdon na taberna, meteu conversa, deixou entender que ti­nha um tio na pastelaria e conseguiu, finalmente, fazer-se convidar para a Rua Portefoin, onde apareceu um belo dia, levando duas garrafas de Bordéus provenientes das caves de Charonne e um saco de amêndoas fornecidas pelas reservas da casa Cortey. Mos­trou-se respeitoso para com as damas, admirando discretamente a jovem Pierrette, que, de resto, era encantadora, foi convidado a voltar e em duas semanas tornou-se amigo da casa. Os Bourdon teriam visto nele um bom partido para a jovem, mas ela não era fi­lha deles e apenas os Tison podiam decidir. Conhecendo o carác­ter difícil do casal e a raiva permanente em que se mantinham de-vido à separação da filha, julgaram mais prudente não lhe dar parte da assiduidade do cidadão Pitou. Teriam tempo de falar quando acabassem com a Loba e os seus Lobinhos!

À pergunta do seu chefe, Pitou fez uma careta e encolheu os ombros:

—   Digamos que também tudo vai bem desse lado, mas não vos escondo que gostaria que isso não durasse muito tempo. Ela é gen­til, aquela pequena, e não gostaria de lhe dar muitas ilusões! Aliás, não faço nada para isso e mantenho-me num papel de irmão mais velho atencioso, o que tranquiliza aqueles a quem devemos, na realidade, chamar guardas. Sobretudo, o tio Bourdon, porque a mulher, que ainda tem pretensões a seduzir, parece imaginar que eu vou lá por causa dela!

—   E... não é o caso?

—   Estais a brincar? Ela tem bigode.

—   Pobre Pitou! Mas tranquilize-se! Mais alguns dias de paciên­cia e poderá... ser obrigado a ir ter com a sua família na província. Conhece o nosso plano?

—   De cor! — assegurou Pitou, que começou a recitá-lo: — che­gado o dia, arranjo maneira de levar a cidadã Bourdon e Pierrete a comer uns gelados e a fazer algumas compras no Palais-Royal. Como é o local mais movimentado de Paris, arranjo maneira de me perder da dama de bigode e ser encontrado por dois compadres que me levarão para um lugar tranquilo, onde permaneceremos a noite toda. Evadir-nos-emos de manhã, mas, ao mesmo tempo, um dos nossos irá ao Templo dizer que Pierrette desapareceu. O que porá em alvoroço os pais e os precipitará para fora da torre du­rante o tempo suficiente para que possais raptar a família real... e já agora, para onde contais levá-los?

—   Vai ser assim: carruagens diferentes estarão na Rua Charlot e Rua du Temple. A Rainha irá para minha casa, em Charonne. O pequeno Rei, conduzido por d'Hyde de Neuville e Roussel, partirá imediatamente para o castelo de Abondant, casa dos Tourzel, de onde irá para Jersey. Juntar-me-ei a ele antes do embarque e de-pois da partida da mãe para os Países Baixos, para casa da irmã Marie-Christine, em companhia de lady Atkyns e sob a guarda do meu amigo Rougeville, que você não conhece.

—   O cavaleiro que está apaixonado por Maria Antonieta? En­tão, ele não emigrou, como Fersen, ou os Polignac?

—   Estava preso nas Madelonnettes desde o julgamento do Rei. Foi Michonis que o tirou de lá. Desde então, tem estado escondi-do em Vaugirard, em casa da sua amiga Sophie Dutilleul, a actriz. Arde de desejo de lutar pela Rainha!

—   Restam Madame Royale e Madame Élisabeth.

—   Irão para casa de Laura. O nosso amigo «Sévignon» levá-las-á. Ficarão lá alguns dias, tempo suficiente para que as coisas acalmem. Em seguida, irão para Inglaterra por Bolonha, onde tenho tudo pre­visto, em direcção a Ketteringham Hall, para onde Charlotte Atkyns já terá regressado. Talvez com a Rainha, se Sua Majestade o desejar...

—   Ela desejará, sobretudo, juntar-se ao filho.

—  Sem dúvida, mas, no imediato, será melhor que não fiquem juntos. O Rei Luís XVII acaba de fazer oito anos. É preciso prote­gê-lo e não fazê-lo refém da Áustria. Em Jérsia, impregnável, será protegido por forças francesas e inglesas. Depois, e se conseguir-mos a vitória, a mãe juntar-se-lhe-á para se tornar regente.

—   Ele é demasiado jovem para viver só no meio de homens — insurgiu-se Pitou.

— Mme. de Tourzel e a sua filha Pauline também irão para Jér­sia. E, bem entendido, Madame Élisabeth e a pequena Marie-Thé­rêse juntar-se-lhe-ão quando elas quiserem.

—   Parece-me tudo bem organizado — grunhiu Pitou. — E eu, no meio de tudo isso, que faço? Fico em Paris e torno-me genro dos Tison? Bela perspectiva!

—   Só se isso lhe agradar — disse Batz, rindo. — Proponho-lhe que me espere em Charonne, jogando às cartas com Marie e os dois guarda-costas, Devaux e Biret-Tissot. A Grandmaison não tem razão nenhuma para abandonar a sua casa. E, acredite, vai ficar feliz por, finalmente, não ter lá a convidada. Ver lady Atkyns partir para os nevoeiros de Londres é o seu maior desejo.

—  Elas não se entendem? Custa-me acreditar: Marie é uma an­fitriã... perfeita, tão graciosa, tão amável...

—   A inglesa revelou-se francamente invasora. A casa de Cha­ronne não tem muito a ver com um castelo inglês e Charlotte, sen­tindo-se mais ou menos enclausurada, dá a entendê-lo. Além dis­so, só sonha em correr para o Templo, atirar-se aos pés da Rainha e suplicar-lhe que a deixe tomar o seu lugar.

—   O que é bastante corajoso, parece-me?

—   Confesso que pensei nisso por um instante, mas, por maior que seja o talento dela, já não é possível. A Rainha mudou muito: tem, agora, algo de imaterial, de usado, que é muito difícil de imi­tar sem um longo período de observação, as maneiras não são su­ficientes... E depois, chegamos sempre à mesma questão: a Rainha não quer abandonar os filhos.

Dizer que Marie desejava ver lady Atkyns regressar a Inglater­ra revelava algum eufemismo. A despeito da sua paciência e cora­ção generoso, achava o tempo demasiado longo, quase desejava abandonar uma casa que adorava, mas que não sentia como sua, para voltar para o seu apartamento da Rua Ménars. A inglesa esta­va em toda a parte, metia-se em tudo, encontrando sempre ma­neira de conduzir a conversação para o assunto que a obcecava: Maria Antonieta. Falava dela o dia todo, tocava na harpa as modas de que a Rainha gostava, falava a Marie, sem fim, naquele dia ma­ravilhoso, em Versalhes, quando conhecera a soberana. Além dis­so, os raros regressos de Batz já não permitiam qualquer instante de intimidade: Charlotte açambarcava o barão cada vez com mais insistência sobre a questão que não cessava de formular: quando contava ele levá-la ao Templo? Como se fosse fácil responder-lhe.

Na sua impaciência, Charlotte quisera aproximar-se da torre onde definhava a sua Rainha, instalando-se em casa do amigo de Batz, o advogado Yves Cormier, que morava na Rua du Rempart, perto do Templo. Avisado por Batz, consciente do sofrimento de Marie, aquele declinou a honra com cortesia, mas também com fir­meza, explicando a sua recusa pela saúde vacilante da sua esposa, uma frágil crioula, filha de um armador de Nantes, especializado na «madeira de ébano». Sujeita a crises nervosas e doentiamente ciumenta, Mme. Cormier não suporta qualquer mulher nas suas proximidades, com a única excepção de uma camareira de idade que a criara. O que não impedia o advogado bretão de estar sem­pre pronto a entregar-se à causa.

Nessa noite, após uma rápida passagem pela Rua de la Loi, o Guarda Nacional Forget tomou o caminho do velho convento de la Madeleine: o barão de Batz saiu de lá, já noite fechada e seguiu, em passo de passeio, para a casa de Charonne. A notícia que le­vava encheu Marie de alegria e apreensão, ao mesmo tempo que Charlotte Atkyns desatava a chorar antes de enviar aos Céus uma prece fervorosa de acção de graças: o rapto da família real estava marcado para o dia 21 desse mês de Junho.

Foi uma bela noite para Marie: teve, por fim, o seu amante só para si e ele amou-a com uma paixão que traduzia, melhor do qualquer palavra, a que ponto ela lhe fazia falta. Parecia não se sa­ciar dela. No entanto, à medida que os minutos mágicos decorriam, Marie sentia-se invadir lentamente pela tristeza e, quando, por fim, ele adormeceu, ela contemplou longamente o rosto daquele ser que era toda a sua vida. Como acontece com muitos homens de acção, o sono nunca o vencia por completo. Sob a serenidade do repouso, sentia-se, nos movimentos quase imperceptíveis do nariz, sensível como o de um cão de caça, ou da boca, que bastaria um nada para que acordasse totalmente lúcido, a mão já estendida para a espada que nunca abandonava a sua cabeceira. Marie sen­tiu que decorreriam dias e dias antes de voltar a ter um momento de felicidade comparável àquele que acabava de viver. Sabia que ele não lhe pertencia por completo, talvez porque o barão também não pertencia a ele próprio. Aquela bela mecânica, aquela força em repouso, aquele coração orgulhoso e nobre estavam, inteiros, ao serviço do Rei, mesmo que, e sobretudo, não passasse de um rapazinho de oito anos. Tinha de resignar-se! Tentar desviar Batz do caminho que escolhera era arriscar-se a perdê-lo para sempre e Marie sabia que estava pronta a aceitar fosse o que fosse, uma se­paração, uma ferida, em nome da alegria de sentir de novo aque­le coração bater contra o seu, aquela respiração misturar-se com a sua. Com uma infinita doçura, levantou-se, como habitualmente, para ir fazer um pouco de toilette. Sabia que ele gostava, ao acor­dar, de a encontrar fresca, encantadora e perfumada, os belos cabelos castanhos, tão lisos e brilhantes como a seda, presos por uma fita de cetim claro. Mas desta vez ele não lhe permitiu que se afas­tasse. Por instinto, os braços retiveram-na, envolvendo-a:

— Fica! — murmurou ele sem abrir os olhos. — Quero con­servar-te o mais tempo possível...

Com um suspiro de felicidade, ela colou-se de novo a ele. A aurora ainda vinha longe... pelo menos assim o esperava.

 

Durante esse tempo, Pitou fora advertir Laura para se aprontar para a data escolhida... e constatou, uma vez mais, quão difícil era estar com a jovem a sós. Jaouen estava sempre presente, ciumen­to e desconfiado, velando por ela como um cão pelo seu osso. Da amizade que ligara os dois homens, pouco restava. Desde que reencontrara Laura e a ajudara a juntar-se à mãe, o bretão tinha uma grande tendência para a considerar como sua propriedade. O seu ciúme ia para qualquer homem escorreito que se apresentasse na Rua du Mont-Blanc e Laura vira-se forçada, várias vezes, a fa­zer-lhe observações. Mas ele tinha uma maneira de dizer «Não que­ro que vos façam mal!», que ela deixava-se facilmente vencer pela indulgência, reconhecendo que, de qualquer modo, necessitava acautelar-se: o homem era muito bem capaz de provocar o vazio em volta dela se não prestasse atenção.

Nessa noite, Pitou teve que parlamentar quase como se se tra­tasse da rendição de uma cidade e zangou-se:

—   Tu tornaste-te impossível, camarada! Por este caminho, nin­guém se pode aproximar desta casa sem agitar uma bandeira bran­ca. No entanto, tu sabes que eu sou um amigo?

—  E és sincero, pelo menos? Desde que te passaste para o ini­migo...

—   Eu? Passei-me para o inimigo?

—   É evidente, parece-me? Tu já não és republicano.

—   Porque tu, tu ainda és? — soprou Pitou, sufocado. — A República levou-te o braço e não te deu nada em troca. Nem sequer uma pensão mínima!

—   Foi na guerra e a guerra tem azares. Ser maneta não muda a maneira de pensar e eu penso sempre que Liberdade, Igualdade e Fraternidade são as mais belas palavras da língua francesa...

— Na condição de não as meter todas no mesmo saco. Eu pen­sava como tu, mas vi demasiados horrores e cortar cabeças pare­ce-me um meio demasiado mau de praticar a igualdade! A Repú­blica dos bebedores de sangue não me interessa... e tu esqueces que... miss Laura quase foi vítima dela!

—   Ela foi, sobretudo, quase vítima de Pontallec, esse cão da-nado! É dele que eu preciso de a desembaraçar! Depois, creio que ela passará a pensar como eu e a olhar para um futuro onde não haverá reis, aristocratas...

— ... obstáculos entre o filho de um guarda de caça e a filha dos Laudren, ex-marquesa? — insinuou docemente Pitou, que co­meçava a compreender.

Mas Jaouen não estava pronto a revelar as suas intenções, se bem que para o jornalista elas parecessem claras como a água.

—   Não digas asneiras — grunhiu ele. — Sei muito bem que, com revolução, ou sem ela, e enfarpelada com uma ridícula iden­tidade americana, ela permanece, para mim, como uma grande dama, mas o que eu não quero é que a ponham de novo em pe­rigo, arrastando-a para não sei que conspiração...

A zanga de Pitou mudou para inquietação:

—   Quem é que falou de conspiração? — perguntou ele seca-mente.

—   Tu, talvez? — respondeu Jaouen com um sorriso curioso. — Em todo o caso, esse maldito barão de Batz, que ousou confiar-lhe uma missão perigosa, enviando-a a Inglaterra... Esse, gostaria que não voltasse a pôr aqui os pés!

—   Esqueces que a caminho de Londres ela estava sob a mi­nha guarda e que, sem ti, ela estaria lá, agora. O que é que se passa contigo, Jaouen? Não és capaz de distinguir o verdadeiro do falso, tu, que eu conheci sensato e inteligente? Batz salvou-a de uma morte horrível, a mesma da infeliz princesa de Lamballe, decepada viva. Eu sei: eu estava lá enquanto tu corrias para a fronteira para te bateres pelas tuas ideias. Não me venhas dar li­ções! E, já agora, gostaria de saber o que... miss Adams pensa da tua maneira de ver as coisas. Entretanto, vai-lhe dizer que estou aqui!

—   O que é que tu lhe queres?

—   Não te diz respeito!...

Jaouen ia, sem dúvida, continuar a discutir quando Laura apa­receu no vestíbulo onde se desenrolava a cena, vinda do jardim onde fora colher flores. À vista do amigo, o seu rosto, um pouco pensativo, iluminou-se:

—   Pitou! Enfim, decidiu-se a vir ver-me! Começava a inquietar--me, sem notícias de ninguém...

—   Como vedes, nunca se deve desesperar. Tenho tido muito que fazer — disse ele com uma desenvoltura que contradizia o olhar na direcção de Jaouen. — Preciso de vos falar. Podemos dar uma volta pelo jardim? O ar está tão doce...

—   Mais do que pensais! Acabo de vir de lá, mas só me apete­ce para lá voltar — disse Laura, estendendo as flores a Jaouen. — Vamos sentar-nos sob as árvores! Joël, diz à Bina para nos trazer vinho fresco.

—   Eu próprio o trago.

—   É inútil — apressou-se a declarar Pitou, que não tinha von­tade nenhuma de que o mordomo viesse patrulhar à sua volta. — Obrigado, mas não tenho sede e até tenho uma ligeira enxaque­ca.

—   Então, nada de vinho! Venha — disse Laura, metendo o bra­ço no do amigo — a frescura vai-lhe fazer bem...

Caminharam por alguns instantes em silêncio sobre a areia sua­ve, chegando, em passo vagaroso, a um banco de pedra sob um caramanchão. Só então Laura perguntou, após ter escrutinado o rosto sombrio do seu companheiro:

—   É uma simples visita de amizade ou tem algo para me dizer?

—   Tenho algo para vos dizer, mas não vos escondo que hesi­to...

—   Porquê, meu Deus?

—   Por causa de Jaouen! Acabo de ter com ele uma... oh, qua­se uma altercação. Primeiro, ele não queria que eu vos visse e de-pois não escondeu que detesta Batz e que o seu mais caro desejo é que não tenhais o menor contacto com ele... nem comigo, aliás! Dir-se-ia que procura guardar-vos só para ele.

— Que estupidez! — exclamou Laura, subitamente muito corada. — Admito que ele é demasiado zeloso e até já o repreendi. Já o mandei apresentar desculpas a Elleviou, que quase pôs na rua há alguns dias...

—   A sério? De qualquer maneira, não foi por falta de republi­canismo?

—   De republicanismo? Não, é porque não vê nele senão um bobo indigno de pisar o chão de uma casa honesta... De facto, só suporta mulheres...

—   É o que eu pensava: está apaixonado por vós e Otelo é um aprendiz ao pé dele. Infelizmente, no caso do assunto que aqui me traz hoje, arrisca-se a ser perigoso. Ele está ao corrente do que Batz vos confiou por ocasião da vossa última entrevista?

—   Não. O que ele me disse foi só para mim e não vejo qualquer razão para o repetir a quem quer que seja. Trata-se... de um acontecimento importante?

—   Muito e sabeis que vós e esta casa deveis desempenhar um papel...

—   Ignoro qual. Mas deve tratar-se de... receber alguém?

—   Sim. Duas mulheres, mas, na verdade, vou aconselhar Batz a escolher-lhes outro asilo. Com Jaouen, a vossa casa deixa de ser segura. Sabeis que ele só sonha em converter-vos às «ideias revo­lucionárias», porque considera que é a vossa única hipótese de vi-ver, por fim, senão feliz, pelo menos tranquila?

—   Oh, duvido disso há muito — disse Laura, rindo. — Ele falou--me disso pela primeira vez quando, vindos da Bretanha, tentou con­vencer-me a fugir de Pontallec. Deve ter alguma esperança, mas co­nhece-me suficientemente bem para saber que é difícil fazer-me mu-dar de opinião. O regime actual provoca-me repulsa. Julie Talma veio ver-me ontem: ela, que as tem todas, essas ideias, chorava pelos ami­gos girondinos, perseguidos e ameaçados de morte. Está cheia de medo por Talma e pelos filhos. Portanto, não estou nada perto da conversão. Mas, você falou em duas mulheres? Quem? Serão...

Ela pensava na Rainha e Pitou compreendeu-a:

—   Não. Não é ela... mas sim a filha e a cunhada. Compreen­deis, certamente, que depois do que acabo de saber, devo preve­nir o barão...

Mas Laura não o escutava. Com as lágrimas nos olhos, sorria para uma imagem que, visivelmente, a enchia de felicidade:

—   Marie-Thérése! — murmurou ela com as mãos juntas, como que numa oração. — Ela vem para minha casa, para o pé de mim? Oh, meu Deus!

Pitou, impiedoso, acalmou-lhe o entusiasmo.

—   Não conteis com isso! Em vossa casa, sim, mas numa casa onde o manda-chuva é um revolucionário confesso, nem pensar. E esquecei o que acabo de vos dizer!

Levantou-se e inclinou-se para se despedir com uma frieza completamente nova, mas ela estendeu as mãos e agarrou-se à manga do uniforme dele:

—   Não parta! Por piedade, Pitou, fique! Dê-me tempo para me recompor. Senti-me tão feliz, há um instante...

—   Também o barão o pensou, mas, mais uma vez, mais vale nem sonhar. Jamais Batz fará aquelas pobres mulheres, já tão so­fredoras, correrem semelhante risco!

—   Quem as traria? Batz?

—   Não. O marquês de La Guiche! Portanto, imaginai!

As lágrimas da jovem secaram de repente. Levantou-se por sua vez, bem direita no seu vestido de musselina branca com um gran­de lenço aberto sobre o pescoço e o princípio dos ombros.

— Não diga nada a Batz! — intimou-o ela. — Juro-lhe, pela me­mória da minha filha, que ficarão aqui em perfeita segurança! Pre­firo despedir Jaouen.

—   Seria a última coisa a fazer. Vingar-se-ia.

—   Tem razão... então, faço de outra maneira. Estou pronta a sa­crificar tudo neste mundo por aquela pequenina, pela alegria de a ver sob estas árvores, neste jardim. Não me prive dessa felicidade, Pitou! Juro-lhe que serei digna.

Ela implorava, levantando para ele os seus grandes olhos ne­gros, aos quais ele sabia, desde há muito, que não podia resistir, mas havia a sua amizade para com Batz e a sua lealdade sem fa­lha, para com ele e para com a causa. E havia também aquele ju­ramento prestado, num dia de Verão, a Maria Antonieta, quando ela ainda vivia nas Tulherias'...

— Acredito em vós — disse ele docemente — e farei tudo para que não sejais privada dessa grande alegria... mas não me peçais que não diga nada a Batz! Cabe-lhe a ele decidir.

—  Farei de maneira a que Jaouen se afaste. Defenda a minha causa, peço-lhe! Preferia morrer a...

— Não deveis ir tão longe — sorriu Pitou. — Ainda precisamos de vós...

Beijou-lhe a mão e virou-se; ela reteve-o ainda:

—   Pode dizer-me... em que dia será?

—   No dia 21, à noite...

Fiel à sua palavra, Pitou relatou a Batz o que se passara no jar­dim de Laura. O barão escutou-o com atenção, reflectiu por um instante e depois declarou:

—   Eu ocupo-me de Jaouen.

—   Que ides fazer?

—   Retirá-lo da vida activa... por algum tempo: quando aquela cara Laura e as princesas estiverem em segurança fora de França, ser-lhe-á devolvida a liberdade.

—   Ele pode escapar-se.

—   Espantar-me-ia muito e eu preciso da casa de miss Adams. Falta-nos o tempo para preparar outro asilo... É verdade que podia enviar as princesas para Seine-Port, para casa do meu amigo Gou­verneur Morris, o embaixador americano, mas um simples vestido bonito põe-no em transe: seria capaz de fazer a corte à filha de Luís XVI e Madame Élisabeth não aceitaria ficar numa casa onde há fes­ta todas as noites.

— No entanto, seria um esconderijo perfeito! — apreciou Pitou, sonhador.

—   Oh, isso é verdade, mas Madame Élisabeth seria capaz de levar de novo a sobrinha para o Templo, só por não a poder levar para um convento...

 

No dia 21 de Junho, Joël Jaouen que, seguindo as ordens da sua patroa, fora fazer compras nas lojas do Palais-Egalité, desapa­receu subitamente. Prevenida, Laura não o procurou, por fim ali­viada por poder dedicar-se por inteiro à espera do momento ma­ravilhoso que a noite próxima lhe traria...

Nesse dia, que era o do solstício de Verão, o tempo estava hú­mido e fresco. A Lua, no seu quarto minguante, não apareceria se-não de madrugada e não atrapalharia. Por volta das seis horas da tarde, 30 homens deixaram a secção Le Pelletier sob o comando de Cortey. Polidos, engraxados, de espingarda ao ombro, os Guardas Nacionais desfilaram em boa ordem pela avenida em direcção ao Templo. Como ameaçava chuva e como — por uma sorte incrível! — não fazia calor, os homens levavam o capote regulamentar so­bre os uniformes azuis, cruzados por arreios brancos. Jean de Batz, ou antes, o soldado Forget, marchava no meio dos seus camaradas. Esforçava-se por não pensar em nada, atento no desempenho do seu papel. No entanto, logo que passaram diante da porta de Saint-Denis, não se pôde impedir de virar a cabeça para o imóvel em forma de proa de navio que marcava o canto da Rua de la Lune. Reviu-se, cinco meses antes, de pé naquele local, de óculo no olho, procurando desesperadamente no meio da multidão os ros­tos daqueles que esperava, ao mesmo tempo que saía da bruma a carroça verde transportando o Rei para o cadafalso. Escutava o si­nistro, incessante rufar dos tambores e o seu próprio grito, ape­lando a um povo petrificado de terror, pedindo socorro por um ho­mem bom e justo, cujo único defeito era o de não ter permitido que se fizesse fogo sobre os seus súbditos... E reencontrava, intac­tos, a raiva e o desespero que se tinham apoderado dele, ao ver-se impotente. Nessa noite, era preciso vencer!

Ao som de um tambor — alegre desta vez! — a pequena es­colta prosseguiu a marcha sob o olhar bonacheirão dos passantes, perseguida por uma turba de miúdos que se esforçavam por os imitar. Por fim, chegaram à torre do Templo e Batz inspirou pro­fundamente no momento de franquear a soleira, usada por tantos passos desde que ali ressoavam os sapatos ferrados dos cavaleiros de manto branco e cruz vermelha...

Seguiram-se as formalidades habituais: a guarda descendente sai dos seus postos, Cortey, impassível na aparência, recebe a pa­lavra de passe e, ao mesmo tempo que se afastam aqueles que vol­tam para suas casas, uma parte dos recém-chegados vai instalar-se na sala do primeiro andar. Os outros, sobem. Nesse momento, Mi­chonis aparece, aperta a mão de Cortey e saúda os outros. Está sorridente, Vai tudo bem. A noite cai. E depois, de repente, ou-vem-se gritos, soluços e também uma galopada: os Tison acabam de saber que a filha deles desapareceu. Ao galgarem a escadaria, dir-se-ia que enlouqueceram. A mulher grita e soluça no meio das lágrimas; o homem exige que os deixem ir à procura dela. Os mu­nicipais, que acham aquele barulho excessivo, tentam acalmá-los, mas nada feito. Então, com um sorriso irritado, Michonis deixa, por fim, sair:

— Ide! Mas arranjai-vos de maneira a voltardes depressa, senão sois vós que podeis desaparecer. Deixem-nos passar! — ordena ele.

O casal eclipsa-se, ao mesmo tempo que Michonis, obrigado a um instante de severidade, reencontra o sorriso bonacheirão. É preciso mostrar-se indulgente, de vez em quando!... Restam os car­cereiros. Está tudo tão calmo e está tanto calor naquele espaço fe­chado que iriam, de boa vontade, beber qualquer coisa fresca nas tabernas que pululam em volta do Templo e além disso, à noite, não são precisos. Tranquilizados pela reputação sem mácula de Cortey e Michonis, tentam, após o conselho directo de um dos guardas, pedir uma pequena permissão, que lhes é concedida de modo agradável. E ei-los de partida! E o tempo passa: é à meia--noite, quando vão render as sentinelas das prisioneiras, que Batz e aqueles que estão por dentro da conspiração sobem para vestir as três mulheres com longos capotes trazidos nessa noite. Quanto ao pequeno Rei, Batz faz de maneira a fazê-lo sair apertando-o contra si, sob o capote, que é amplo. Luís XVII é pequeno, leve, quase franzino e na torre, que já durante o dia não é muito clara, as sombras são numerosas e densas quando a noite cai...

Quanto a Simon, estava previsto desembaraçarem-se dele du­rante o tempo necessário à operação. Simon, com efeito, repre­senta um perigo tão grande como os Tison. Este antigo sapateiro de 50 anos, que não passava de um remendão, nunca conseguira nada na vida. Como a sapataria não ia lá muito bem, tentara a «res­tauração», abrindo uma tasca na Rua Dauphine. Sem grande suces­so. Viúvo e com o encargo de uma filha da sua defunta mulher, voltou a casar-se com Marie-Jeanne Aladame, dona de casa, sólida comadre e boa trabalhadeira, cozinhando bem e cuidando melhor dos doentes. O que lhe permitiu tratar os marselheses feridos no dia 10 de Agosto no antigo convento dos Cordeliers, próximo da sua casa. Porque a grande sorte de Simon fora a de se instalar, com a esposa, naquilo que mal se poderia chamar um apartamento — três divisões, duas delas sem janelas! — a dois passos de Danton, de Marat, de Fabre d'Églantine, de Chaumette e de alguns outros com quem se ligou amigavelmente. Odiando o poder real, viu na Revolução a ocasião para sair de apuros e, de facto, deve aos seus novos amigos o posto de comissário da Comuna, encarregado principalmente do Templo, raramente abandonando um posto que lhe lisonjeia a vaidade e lhe permite gozar, ao longo do dia com as «hu­milhações da Austríaca, das duas outras garças e do pequeno lobo». Protegido pessoalmente por Marat e até Robespierre, sabe--se intocável e abusa com frequência. Ninguém, entre os soldados do Templo, gosta dele e alguns, como Cortey, ou Michonis, detes­tam-no, ao mesmo tempo que desconfiam dele. Importa, portanto, afastar, por essa noite, essa personagem tão incómoda como re­pugnante. Às 11 horas da noite, a coisa está feita. Um bilhete de Marat, do qual crê conhecer a letra, é-lhe trazido por um «munici­pal». O seu «amigo» pede-lhe que vá ter com ele urgentemente de-vido a um assunto sério.

Simon apenas hesita um instante. Está tudo tão calmo esta noi­te! E depois, pode-se contar com Cortey e Michonis, aqueles «pu­ros», para velar por tudo, caso aconteça alguma coisa.

—   Vou lá! — confia ele a Michonis. — Não me demoro muito.

Precisaria, no entanto, de chegar a pé ao bairro do Ódeon e voltar... Por volta da meia-noite, os guardas que vão subir para ren­der os do terceiro andar preparam-se. Batz e os dois outros, de­signados para as portas que dão para a escadaria, vestem os gran­des capotes.

—   Está toda a gente pronta? — pergunta Cortey. — Então, em frente!

A pequena tropa deixa a casa da guarda, enfia pela escada de caracol, quando, de repente, em baixo, se ouvem gritos:

—   Alto! Alto!... Que ninguém se mexa!

Cortey abafa uma praga. É a voz de Simon, de Simon, que re­gressou de modo extraordinário, de Simon, que sobe as escadas a quatro e quatro, juntando-se à pequena tropa:

— Alto! — grita ele ainda, meio sufocado pelo esforço. — É pre­ciso chamar os homens. Passou-se qualquer coisa de anormal, mas felizmente tu estás aqui — acrescenta ele na direcção de Cortey.

—   Porquê chamar os homens? — pergunta este.

—   Porque sim! Depois, trataremos de Michonis. É um traidor. O que é que tu queres, tu?

As últimas palavras são dirigidas a Batz. Pálido como um morto, o barão, que vê escoarem-se as esperanças por causa daquele triste espião, segura ao longo da perna uma pistola na mão cris­pada. Cortey, que compreendeu, coloca-se entre ele e Simon:

—   Ele não te quer nada. Tens de o compreender, cidadão Si­mon, Michonis é da «terra» dele. — Em seguida, dirigindo-se a Batz: — Acalma-te, meu rapaz, deve haver um engano qualquer. Vamos já tratar dele...

—   Espantar-me-ia muito — chia Simon. — Ele vai ter que ir ao Hôtel de Ville explicar-se. Está lá em cima?

—   Sim, está lá em cima — responde Cortey, que resiste mal à vontade de estrangular o maldito remendão, mas na torre todos es-tão alerta, a começar pelos municipais. Acabaria tudo numa catás­trofe.

—   Bom, eu vou lá! Mas, antes disso, chama os homens!

—   Não vejo razão nenhuma para isso, mas se te dá prazer...

E faz o chamamento, sem qualquer perigo, já que as princesas ainda não tomaram o lugar dos guardas. Não falta ninguém e, tal como os outros, Batz responde presente quando Cortey grita «For­get»...

Satisfeito, Simon continua a sua ascensão, acompanhado de quatro municipais, que vão escoltar Michonis ao Hôtel de Ville. Al­guns instantes mais tarde, os homens voltam a descer, enquadran­do um Michonis que não tem um ar muito inquieto.

— Já viste semelhante burrice? — lança ele a Cortey. — Eu, um traidor, depois de todas as provas que dei da minha lealdade!

—   Deve haver um engano qualquer...

—   Bem entendido! Não te atormentes, eu terei a última pala­vra.

—   Onde está Simon?

—   Lá em cima, claro. Ficou com o meu lugar... mas juro-te que não será por muito tempo!

E não diz mais nada, os municipais, achando que ele estava a falar demais levam-no, mas com alguma deferência. Cortey trocou um olhar com Batz:

—   Bem, o incidente está encerrado. De qualquer maneira, é preciso render os camaradas lá de cima.

O tom tinha uma imperceptível interrogação que Batz perce­beu: aquilo queria dizer que iam permanecer um bom tempo na companhia do malfadado Simon. Seria ele capaz de o suportar?

Certamente! Até podia ser interessante. Com um ligeiro sinal de ca-beça, o barão aprova e retomam a subida da escadaria.

No terceiro andar tudo está tranquilo. A rendição efectua-se e os homens rendidos descem. «Forget> ficou de guarda às portas vidradas, diante das quais Simon anda de um lado para o outro como um tigre na jaula. Por trás, Batz imagina com desespero as três mulheres que não sairão esta noite e cuja decepção deve ser tremenda. Observa com horror o homem atarracado, pequeno, de fácies vulgar, mesmo inquietante, de lábios grossos e olhos um pouco fora das órbitas... No entanto, decide-se a falar-lhe:

— Foi uma sorte, cidadão Simon, que tenhas podido ser avisado de uma manigância!

—   Que estás para aí a dizer? — pergunta o remendão, que é um pouco duro de ouvido e que interpreta mal quando não está de frente para o seu interlocutor.

—   Que tiveste muita sorte em descobrir esta conspiração — gri­ta Batz, forçando a voz nasalada que acompanha a personagem de Forget.

O outro lança-lhe um olhar furioso:

—   Não foi sorte nenhuma. O que acontece, é que as pessoas sabem que eu sou um homem de bem, um verdadeiro patriota...

—   Ah, isso é verdade! Mas como é que aconteceu, essa... sorte?

—   Não te diz respeito! Trata de montar a tua guarda e pára de gritar, estoiras-me os ouvidos!

A vontade de dar um correctivo à personagem grosseira ardia‑lhe, mas Batz calou-se e continuou o seu calvário até à hora da rendição. Ao voltar para a secção Le Pelletier, de madrugada, no meio de uma tropa menos disciplinada do que na véspera, e onde se comentavam os acontecimentos da noite, conseguiu aproximar‑se de Cortey:

—   E... os nossos amigos que esperavam cá fora?

—   Foram prevenidos. Sob o pretexto de que me queria asse­gurar de que tudo estava tranquilo no quarteirão, fiz uma ronda... com apenas sete homens, aqueles em quem tinha confiança. Parti­lhámos o trabalho e voltámos.

Sempre marchando, Batz virou-se para deitar um olhar para o velho torreão. À luz da claridade avermelhada de uma aurora anunciadora de vento, pareceu-lhe mais sinistro ainda do que ha­bitualmente.

—   Não olhes! — murmurou Cortey. — É mau para a coragem. O que eu gostaria de saber é como e por quem foi Simon preve­nido?

—   Eu encarrego-me disso! — cochichou Batz.

Sabia, com efeito, que não conseguiria dormir enquanto igno­rasse de onde vinha o pé em que acabava de tropeçar, mas, por agora, o inquietante era a sorte de Michonis. Prometeu a si próprio ir ver Lullier ao Hôtel de Ville assim que se desembaraçasse da far­da de Guarda Nacional. Era o mais importante! Em seguida, voltaria para Charonne para repousar um pouco e fazer o ponto da situação. Aqueles que estavam à espera, assim como Laura na Rua du Mont-Blanc, já deviam saber, pelos amigos postados em redor do Templo, que o golpe falhara e não era preciso ter uma grande imaginação para lhes adivinhar a decepção.

Transgredindo excepcionalmente os seus hábitos, na pressa de saber o que acontecera ao director das prisões, Batz dispôs-se a mudar de aspecto em casa de Cortey, cuja vantagem era a de apre­sentar várias saídas, mas não quis correr esse risco suplementar. Michonis em pessoa apareceu na cozinha do pasteleiro, onde este e o companheiro recobravam forças com café, pão e presunto. Foi recebido com o alívio e a alegria que se imagina:

— Já te imaginávamos a caminho do cadafalso! — disse Cor­tey, estendendo-lhe uma chávena de café...

— Cheguei a acreditar por um momento, mas sabei ambos que me defendi como um diabo, não hesitando em arrastar pela lama aquele velho demónio do Simon, que acusei de beber demais e de ter visões. É tão tinhoso que não tem amigos e a minha sorte foi Pacha, o presidente da câmara, estar no fundo da cama cheio de tosse...

—   Compareceu perante quem? — perguntou Batz.

O rosto de Michonis abriu-se num largo sorriso.

—   Perante o cidadão procurador-síndico Lullier, ora! — disse ele num tom suave. — Um homem encantador! Tão compreensi­vo! E não creio que tenha em grande estima aquele Simon... Dir--se-ia que a vossa organização se aguenta, barão? As minhas felici­tações!

—   Não estou certo de os merecer. A nossa sorte, neste caso, é que Lullier é sujeito a insónias e acha mais cómodo viver no seu gabinete a maior parte do tempo.

—   Enquanto isso, é preciso saber de onde veio a súbita clari­vidência do remendão...

—   Fique tranquilo, sabê-lo-emos em breve.

A exemplo de Lullier, Simon não saía muito da torre do Tem­plo e não fazia, na Rua des Cordeliers, senão breves aparições. O seu título de comissário fascinava-o e, a partir da manhã seguinte à noite em que desempenhara um papel ainda mais importante do que imaginara, decidiu instalar-se no local: arranjaram-lhe um can­to para dormir e Marie-Jeanne só teria que lhe levar tudo aquilo de que tivesse necessidade, como no tempo do Rei faziam Cléry e a mulher. Todavia, como se estava no Verão e como o calor come­çava a invadir Paris, não resistiu à vontade de sair, caída a noite, para ir beber um copo nos arredores da Muralha. Após, claro, se ter assegurado de que tudo estava no seu lugar, na fortaleza e que os prisioneiros estavam em boas mãos.

As tabernas eram numerosas nos arredores, mas ele tinha as suas preferências pela Épi-Scié, na avenida do Templo, não muito longe da oficina das figuras de cera do senhor Curtius. Bebia-se ali vinho de Suresnes, que não era dos melhores de França, mas que Simon apreciava. Além disso, o patrão, Guérin, era originário de Troyes, tal como o sapateiro, Por fim, a mulher do taberneiro, Fan­chon, era uma bela criatura de 40 anos, loura e abundante, mas que pousava sobre as coisas e as pessoas um olhar frio, indecifrá­vel. Além de que falava raramente e esse silêncio envolvia-a num mistério que muito impressionava Simon. Ia lá por ela, tanto como pelo vinho, mas apenas para delícia dos olhos, porque não ousaria fazer o menor avanço: aqueles que ousaram, descobriram, rapidamente, que ela tinha garras.

Uma vez instalado no Templo quase para sempre, deslocava-se todas as noites à Épi-Scié, passava lá uma hora e, quando o reló­gio da taberna marcava as dez e meia, voltava a partir para retomar o que ele chamava «o seu posto de comando», deixando en­tender que, sem a sua vigilância, o venerável torreão não passaria de uma grande barafunda... Naturalmente, ninguém ignorava o pa­pel importante que acabava de desempenhar numa imensa conspiração destinada a raptar aquelas que ele apelidava, graciosa-mente, de «badalhocas». Se bem que nunca dissesse como o co­nhecimento da dita conspiração lhe chegou ao conhecimento.

Nessa noite, à hora habitual, Simon esvaziou o seu copo, deu as boas-noites à companhia e deixou a taberna para voltar para o Templo. Uma tempestade ameaçara durante todo o dia, mas limi­tara-se a uns tantos trovões. A noite estava quente e negra, apenas um pouco mais fresca sob as árvores da avenida. Simon parou um instante antes de mergulhar no buraco negro da Rua Charlot. Tirou o barrete vermelho para enxugar a fronte à manga da camisa... e viu-se no chão, de nariz na poeira, ao mesmo tempo que uns dedos, que lhe pareceram duros como ferro, lhe apertavam a gar­ganta: um homem, que não podia ver, pesava-lhe, com todo o seu peso, no dorso.

—   Então, Simon? — disse-lhe ao ouvido uma voz grave, pro­funda, que nunca tinha ouvido antes. — Continuas a gabar-te das tuas proezas? Simplesmente, não dizes tudo e eu quero saber mais. Quem te preveniu, na noite do dia 21?

Meio estrangulado, o remendão não pôde emitir senão uns sons informes. Então, Batz retirou uma mão, mantendo com a ou­tra, fechada, a cabeça do homem contra o solo. Simon respirou, tossiu e gemeu: a mão livre armara-se com uma lâmina, da qual sentiu o gume no pescoço...

— Não sei — disse ele, por fim... — Alguém me abordou e me deu um papel, dizendo que eu devia voltar imediatamente para o Templo.

—   E que dizia o papel?

—   Que Michonis... é um traidor!

—   Mais nada?

—   Bem... Sim... ai!

A lâmina começava a penetrar-lhe no pescoço.

—   Mentes! — rugiu o homem, cujos joelhos lhe magoavam tan­to o dorso. — Que se passou nessa noite? Fala ou corto-te a gar­ganta... mas não de um só golpe, como aquela guilhotina de que tu gostas tanto!... Docemente... pouco a pouco.

Simon teve um estertor de terror. A avenida estava deserta e es­tava só, nas mãos daquele demónio que o ia matar.

—   Pára, cidadão!

—   Não sou nenhum cidadão e tenho horror a que me tratem por tu. Falas?

—   Falo... Falo! Um homem abordou-me quando eu ia pela rua do Templo. Ele disse... o que acabo de dizer... mas acrescentou que iam libertar as prisioneiras nessa noite... que Michonis tinha decidido tudo porque lhe tinham prometido... muito dinheiro...

—   Quem era essa boa alma?

—   Não... não sei!

—   Ora vamos! Tenho a certeza de que o conhecias, senão tê--lo-ias levado à Comuna para depor, mas ele deve ter-te dito que queria que a glória recaísse sobre ti...

—   Sim... sim, é isso!

—   Podia ser uma armadilha e tu não terias acreditado nele se se tratasse de um desconhecido. Portanto, o nome dele!

Mais persuasiva do que nunca, a lâmina fez escorrer sangue:

-      Chama-se... Sourdat! É... um «conterrâneo»

—   É de Troyes en Champagne como tu? O tenente de polícia de lá?

—   Já não é — gemeu Simon. — Ele mora em Paris, agora...

—   Onde?

—   Não sei.

—   Oh! mas sim, tu sabes... Esse bravo homem deve ter-te dito onde o poderias encontrar... em caso de necessidade? Uma pessoa tão bem informada é uma coisa preciosa. Vamos, mais um pequeno esforço!

—   Em... em Chaillot! Rua du Coeur-Volant... 634!

—   Ora bem, chegámos!... Ainda uma pequena pergunta: é um realista, esse Sourdat, um dos maus, porque está ao serviço de Pro­vence, mas, de qualquer modo, um realista. Como é que o conhe­ceste?

—   Em Troyes... tivemos negócios em conjunto...

—   Quando ele estava na polícia e tu eras filho do carniceiro? Às vezes convém! Bem, boa noite, Simon! Mas, um bom conselho, não te levantes já! Conta até 100 e não vires a cabeça: eu sou capaz de te espetar esta faca nas costelas de uma distância... suficiente!

Docilmente, Simon começou a contar, ao mesmo tempo que Batz se levantava e, sem fazer mais ruído do que um gato, desa­parecia nas sombras mais densas geradas pelos castanheiros. De bastante longe olhou para a sua vítima, viu-a levantar-se após ter gritado «100!» e correr para as profundezas da Rua Charlot.

O que acabava de saber era de uma extrema importância. Não tinha necessidade de voltar a interrogar Le Noir. Este, desde a morte do Rei, prometera-lhe pormenores ainda ignorados sobre aque­les «realistas' muito especiais, aquele verdadeiro clã inimigo que, para melhor servir Monsieur, estava decidido a destruir a Rainha, o pequeno Rei e, porque não, a sua irmã e a tia. Nicolas Sourdat, para Batz, queria dizer Antraigues. Como é que o aranhiço de Men­drisio e os seus fanáticos podiam ter descoberto os seus planos? Precisava de o descobrir.

Mas, ao voltar, num passo agradável de passeante, para a Rua Helvétius e para a casa do seu amigo Roussel, Batz começou a per­guntar-se se não seria mais simples ir à Suíça e liquidar aquele ho­mem que tanto odiava. Morta a besta, morto o veneno...

Simplesmente, a Suíça ficava longe e Batz não tinha tempo a perder com os acasos de uma longa viagem. Precisavam dele em Paris.

 

         AS ÁGUAS DE PASSY

O que Simon não disse a Batz foi que na manhã daquilo a que ele chamou o seu «grande caso» se tinha dirigido à rua por trás de Saint-Honoré, vestido com o seu melhor fato, azul debruado a es­carlate, que acabara de mandar refazer, e com o rutilante barrete frígio na cabeça, que é, como toda a gente sabe, a coroa do pa­triota, a fim de ali se encontrar com o homem que já fazia tremer Paris: o grande Robespierre. Este vivia na casa, mas, sobretudo, na família do marceneiro Duplay, cujas filhas eram a sua devoção, menos do que a mãe delas, que montava em volta do Incorruptível uma guarda que atingia as raias do sequestro, tal era o medo de que o «grande homem» escapasse daquela nova família, reunida em volta dele. Tinha mesmo conseguido reenviar para Arras a própria irmã dele, Charlotte de Robespierre, fazendo-lhe saber que era in­desejável. Pode dizer-se que Simon tem alguma dificuldade em fa­zer-se aceitar, a despeito do seu aparato revolucionário, mas esta­va ainda debaixo de grande excitação e gritou tão alto que obteve autorização para subir a pequena escadaria que levava ao santo dos santos.

Robespierre recebeu-o. Não durante muito tempo. Apenas o suficiente para ouvir o relato — resumido, para não abusar de um tempo demasiado precioso! — do que se passara no Templo, na véspera ou, pelo menos, daquilo que o seu visitante pensava sa­ber, mas o olhar frio não permaneceu durante muito mais tempo atento por trás das lunetas redondas cercadas de aço. Foi por pou­co que não disse a Simon que tinha sonhado e, como o outro se recriava na sua consciência de «bom patriota», recomendou-lhe silêncio completo acerca de uma aventura de que o homem se sen­tia um pouco orgulhoso demais.

— Espalhar uma tal história — deixou cair Robespierre — seria dar a outros contra-revolucionários a ideia de empreender no­vas tentativas.

Simon saiu, desiludido e renunciou a abordar o assunto na Co-muna, ou dentro das muralhas do Templo, mas era muito difícil fi­car calado quando, na EpiScié, encontrava os bebedores habituais! Sabe-se como, sem contar tudo, deixava entender que uma grande catástrofe fora evitada graças a ele...

Iria, aliás, receber a sua recompensa. Mal Simon partiu, Robes­pierre reflectiu no que lhe acabavam de contar. Verdadeiro ou fal­so, exagerado ou não, acontecera qualquer coisa e essa coisa exi­gia que se pensasse nela e que uma decisão de urgência fosse tomada, na qual já ele meditava há momentos. De imediato, foi ter com Chaumette, que era um dos protectores do homenzinho, para um rápido inquérito. Pomposo e declamatório de seu hábito, aque­le que se fazia chamar Anaxagoras, em memória do famoso Spar­tiate, executado pelo seu republicanismo, aquele que tinha lido Émile de Rousseau, declarou-lhe que o Émile em questão «era mui-to mais honrado, como sapateiro, do que um imperador» — é muito simples, ele próprio era filho de um sapateiro de Nevers! — e que Simon era digno de toda a confiança. Além disso, era casado com uma mulher exemplar, «boa esposa, boa dona de casa e sa­bendo tratar dos doentes e dos feridos».

O resultado de tudo aquilo foi a cena dilacerante que decorreu no Templo, na noite de 3 de Julho...

São mais ou menos dez horas da noite quando as prisioneiras são arrancadas aos seus leitos por um grupo de comissários da Co-muna, enfeitados de plumas tricolores e rodeados de municipais. Um deles segura na mão um papel e lê-o, verdade seja dita, com voz pouco segura: aquela gente vem, por ordem da Comissão de Salvação Pública e da Comuna, separar o pequeno Rei da sua família: deve receber uma educação republicana, que aquelas mu­lheres não saberiam dar-lhe...

Maria Antonieta olha para aqueles homens sem compreender. Não é possível aquilo que lhe anunciam? Levarem-lhe o filho, tão jovem, tão delicado? Quando, por fim, compreende, a sua reacção é violenta:

—   Nunca!

Correu a colocar-se em frente do leito onde o pequeno acaba de acordar devido ao barulho e às luzes. Faz uma muralha com o corpo, mas o pequeno Rei também já compreendeu que querem separá-lo daquelas três mulheres que são todo o seu universo. Então chora, grita. A sua mãe tenta acalmá-lo, mas ele protesta violentamente. Durante uma hora grita-se, discute-se, suplica-se, ameaça-se, segundo o campo em que se encontram as persona­gens, até que, por fim, um dos comissários decide fazer subir a tro­pa para levar a criança à força. Sacudida pelos soluços, Maria An­tonieta deixa a filha e a «irmã» levantar Luís e vesti-lo. É ela que, em lágrimas entrega a criança, que chora, àqueles homens, que ela sabe, agora, serem capazes do pior. Encontra ainda a força para perguntar:

—   Para onde o levais?

—   Para o segundo andar, para o apartamento do pai. Descan­sa, cidadã, ele será bem tratado...

—   Ele deve tornar-se um homem como todos os outros — gru­nhe um dos acólitos. — O cidadão Chaumette disse que lhe quer fazer perder qualquer ideia da sua classe...

É o fim. Os homens saíram, levando o pequeno lavado em lá-grimas — as três mulheres ouvi-lo-ão chorar e gritar durante dois dias! — as portas voltaram a fechar-se. Aniquilada pela dor, a Rai­nha deixou-se cair sobre o leito vazio e chora, também ela. Só na manhã seguinte saberá qual o educador escolhido pelos novos se­nhores para o seu filho: Simon, o sapateiro, um homem horrível e que transporta escrito no rosto o seu ódio. Um dos guardas, apie­dado, cochichou-lhe que a mulher de Simon é uma óptima pessoa, carinhosa, limpa e capaz de tratar de crianças, mas este género de dor não se pode apaziguar...

Nos primeiros dias, o desgosto do pequeno Luís parece incon­solável, a ponto de Simon não ousar levá-lo ao jardim e a Comis­são de Salvação Pública enviar uma delegação para ver o que se passa. Mas quando a dita delegação chega a casa do estranho «pre­ceptor» do pequeno Rei, encontra este limpo e vestido convenien­temente — no estilo revolucionário, claro! — e em vias de jogar às damas com Simon. A Rainha, essa, não passa de uma sombra desolada...

É por Cortey, cujo crédito permanece intacto e que pode ir ao Templo quando quer, que Batz sabe da separação. Pela primeira vez, aquele homem, tão senhor de si mesmo, entra num frenesim de cólera tal que certos objectos do seu gabinete de trabalho pa­gam as despesas e deixam estupefacto Devaux, Marie e lady Atkyns, testemunhas mudas da explosão. Um verdadeiro furor de Gascão, violento e devastador... mas breve.

—   Aquele Simon, eu mato-o! — clama ele em conclusão, dei­xando-se cair numa poltrona.

— Não conseguirás — nota Cortey — os dois amigos, como to-dos os da equipa, apagaram, mesmo em privado, o «vós», que pode revelar-se perigoso — nem Simon, nem Marie-Jeanne saem do Templo. Aliás, nem sequer têm vontade: a sua felicidade é total.

—   Felicidade! — ruge Batz, pronto a descontrolar-se de novo.

—   Evidentemente! Pensa um pouco no que eles vão ganhar não fazendo nada, ou quase; ele seis mil libras por ano e ela qua­tro mil. Em letras, claro, mas, para eles, é uma fortuna. Além dis­so, moram no antigo apartamento do Rei!

—   De qualquer maneira não é Versalhes! — ironisa Devaux.

—   Para eles? Quase. Depois do tugúrio da Rua des Cordeliers, os móveis e as tapeçarias, se bem que modestos, que atribuíram ao Rei, parecem-lhes o cúmulo dos luxos. Têm um leito de cortinas, cadeiras Luís XV, uma pequena secretária, um tapete e livros. Si­mon pode, também, beber todo o vinho de Suresnes que quiser e sem lhe custar um centavo! Levam-lho lá!

—   Isso é interessante! — nota Batz, por fim calmo...

—   Que vais fazer?

—   Por agora, nada. Seria prematuro e uma loucura completa, mas Simon não perde nada por esperar: pela honra do meu nome, sobre a espada de d'Artagnan, juro que me há-de devolver o meu pequeno Rei! Mas, para já, tenho mais em que pensar!

—   A primeira coisa é raptar a Rainha! — exclamou Charlotte Atkyns. Espero que não tenhais renunciado?

—   Não, mas é preciso pensar, minha cara amiga, que nos en­contramos perante o mesmo problema encontrado por Toulan e Jarjayes: ela nunca aceitará partir deixando o filho nas mãos de Simon. É preciso recomeçar tudo, rever tudo! A propósito, suponho que os Tison estão mais assanhados do que nunca?

—   Já não há Tison — disse Cortey. — Na manhã em que le­varam o pequeno Rei, a mulher Tison, que tinha denunciado Tou­lan, Turgy e muitos outros, enlouqueceu. De verdade! Atirou-se aos pés da Rainha, chorando, gritando e pedindo perdão. O arrebatamento do pequeno foi a gota de água... não direi regeneradora, porque terríveis crises de nervos se seguiram. Foram precisos oito homens para a fazer sair do Templo e levá-la ao Hôtel-Dieu, onde ficou sob a vigilância de uma mulher...

—   E o marido?

—   Continua o seu serviço, mas mudou, também ele. Não en­louqueceu, mas parece compreender o que sofre a Rainha. En­tão, serve-a com muito mais respeito, porque pensa na sua Pier­rette.

—   No entanto, é preciso continuar a desconfiar...

—   Talvez sim — disse Marie com ar sonhador. — E talvez não. Eu creio que uma verdadeira dor, um grande sofrimento, pode ser contagioso. Ele viu a mulher enlouquecer e chorar pelo pequeno príncipe, ao qual se tinha apegado, sem dúvida...

O rosto agudo de Batz perdeu a sua expressão tensa e sorriu para a jovem:

—   Oh, vós, meu coração, até encontraríeis desculpas no diabo em pessoa!

—   Mais ainda do que imaginais — disse ela, rindo. — Sempre pensei que o diabo éreis vós...

 

Dois dias mais tarde, o cidadão Agricol e a sua amiga Lalie apa­nhavam o barco no porto de Saint-Pol para irem respirar o ar puro da aldeia de Passy e beber alguns copos das suas águas. Para os seus amigos da Truie-qui-file, o cidadão Agricol, que ia com fre­quência à província, em «negócios», acabava de regressar de Ne­vers, onde se interessava muito — deu-o a entender entre duas cervejas bem generosas — pelos bens dos emigrados. Desta vez, a sua ausência fora mais longa do que habitualmente e tinha sido acolhido por um chuveiro de censuras a propósito do «abandono» em que deixara Lalie Briquet, cuja má-cara todos podiam ver.

—   'Tás com sorte por encontrá-la aqui — cochichara-lhe o pa­trão Rougier, à sua entrada na taberna. Ultimamente, quase não sai de casa. Hás-de ver a cara dela...

Não era brilhante, com efeito: os olhos encovados por trás do vidro brilhante das lunetas, as linhas do rosto repuxadas, Lalie não vira entrar o amigo. As suas mãos, raramente inactivas, haviam dei­xado escapar o trabalho de tricô que nunca a deixava e a mulher olhava lá para fora, através das pequenas cortinas sujas, com ar au­sente...

—  Eu vou tratar dela, não te preocupes! — afirmou o cidadão Agricol, antes de se dirigir para ela, clamando:

— Ora, ora, Lalie, o que é que se passa?

Ela sobressaltou-se, mas um ligeiro sorriso suavizou-lhe o rosto.

—   Pensava em ti — murmurou ela. Depois, apressando-se a re­tomar o tom vulgar que ela usava habitualmente: — Já me per­guntava se me tinhas esquecido?

—   Sabes muito bem que nunca t'esqueceria e que t'és a mu­lher da minha vida... — exclamou ele com uma grande risada. — Eu vou já tratar de ti! Primeiro, vamos beber um copo. Traz-nos uma das tuas garrafas a correr, Rougier... e bebe connosco!

Era um dos convites a que o taberneiro se sentia incapaz de re­sistir. Enquanto corria à cave, Batz deslizou no banco até ficar de frente para a sua amiga:

—   Que tendes, Eulalie? Estais doente?

—   Sim... e não! Não vos posso explicar aqui... sufoco... e creio que esta cidade me faz cada vez mais horror!

Havia uma angústia real nos olhos cinzentos que se levantavam para ele.

—   Falaremos disso amanhã... amanhã — continuou ele em in­tenção de Rougier, que voltava com a sua garrafa e os copos lavados de fresco — levo-a para fora, para respirar. Começa a fazer muito calor nesta cidade e eu, que acabo de regressar do campo, acho-o muito penoso!

—   Vais voltar para Nevers?

—   Não, p'ra tão longe, não! Vamos só até Passy. Conheço lá um bom médico que trata das águas e n'é burro nenhum! Ele há--de dizer-nos o que fazer...

—   Ora bem! — aprovou o taberneiro. — Boa ideia! Confesso que tens razão quando dizes qu'aqui lá muito quente! A minha mulher passa metade do tempo na celha da lixívia, cheia de água e    a outra metade na cave... ond'há tant'água qu'até parece que to­mou banho! Se não precisasse dela p'ra comida, pedia-te qu'a le­vasses também.

—   Isso pode-se arranjar assim que virmos o médico — disse Batz sem hesitar. — Faço-te esse serviço de boa vontade.

—   Sempre disse qu'eras um gajo porreiro! — afirmou Rougier.

Eis porque, no dia seguinte, os dois amigos tomavam o caminho do Sena para irem respirar para Passy. Chovera durante a noite, o que refrescara um pouco a atmosfera. A manhã estava azul e quase fresca quando embarcaram, mas havia muita gente no barco que ia até Nantes e como só havia gente inofensiva, contentaram-se, a maior parte do tempo, em ver Paris desfilar perante os seus olhos.

Até ao princípio da Revolução, Passy, uma linda aldeia de vi­nhateiros, fabricantes de telhas e cultivadores, sobre a qual se es-tendiam as velas de dois moinhos, conhecera um grande progres­so. Devia-o à sua situação entre o Sena e o bosque de Bolonha, na vizinhança do castelo de la Muette, onde por vezes a Corte per­noitava. Às suas águas termais, descobertas no século precedente e declaradas «boas para as intempéries quentes das vísceras», a que se tinha juntado que eram igualmente «balsâmicas e propícias para combater a esterilidade das mulheres». De repente, foram ali cons­truídas algumas casas sumptuosas, assim como casas de má fama, uma sala de baile e um teatro de marionetas, destinados a distrair os curistas vindos para comungar das cinco fontes ferruginosas.

Com os tempos difíceis, as belas casas haviam-se esvaziado sob o vento da emigração ou da morte. Assim aconteceu com a en­cantadora propriedade, onde a princesa de Lamballe viveu os anos em que se retirou da Corte, na qual reinavam os Polignac'. As dis­tracções haviam rareado, mas as águas guardavam os seus clientes fiéis, realmente mais doentes do que os de antigamente e que, se eram menos barulhentos e menos elegantes, tinham a vantagem de dar à aldeia um ar mais calmo e camponês.

«A propriedade continua a existir. É uma das últimas a possuir um jardim bastante grande. A entrada é pela Rua dAnkars e é, desde há muitos anos, a embaixada da Turquia

Ao desembarcar no pontão correspondente à barreira de Passy, próximo de Chaillot, Lalie, antes de seguir o seu companheiro pelo caminho que levava ao estabelecimento termal, fechou os olhos, afastou os braços e inspirou profundamente, como se acabasse de sair de um lugar sufocante. Ao mesmo tempo, uma espécie de se­renidade iluminava-lhe o rosto:

—   Meu Deus, como este ar é doce, fresco e agradável! Sentis este perfume a tília?

—   Além há um pequeno albergue com uma ramada. Quereis ir repousar lá um momento enquanto eu vou ver se o médico que, creio, era o Dr. Vollard, vos pode receber já?

Ela abriu os olhos e sorriu-lhe, metendo o braço no dele:

—   Eu não preciso de médico nenhum, meu caro Jean. Aquilo de que sofro, que me tira o sono e o apetite, é o desgosto, o hor­ror. Ao meter-me nesta personagem de Lalie Briquet, tenho medo de ter subestimado a minha resistência. Não imaginava que chegaria a este estado e espero sinceramente que possa continuar a ser-vos útil, mas há momentos em que duvido assustadoramente...

—   Que se passa, então?

—   Não me digais que ignorais onde se reúnem agora aquelas a quem chamam as tricotadeiras? A Convenção e os Jacobinos perderam muito do seu interesse desde que a guilhotina está a fun­cionar. É ao pé do cadafalso que é preciso estar sentada para as­sistir ao espectáculo. Desde que os Girondinos são caçados por toda a França, os Montagnards gritam vitória. São os homens de Danton e, sobretudo de Marat que comandam a dança e reclamam, todos os dias, um pouco mais de sangue ao Tribunal Revolucioná­rio. Oh, é repugnante!

—   Sois obrigada a juntar-vos às outras? O vosso «amigo« é Ro­bespierre, portanto, o mais importante?

—   Se assim se pode dizer! Mas ainda não tem plenos poderes. Danton e ele odeiam-se e ele espera a sua hora. Quanto a recusar juntar-me às minhas... companheiras, bastou-me dizer que preferia ouvir os «belos discursos aos gritos de morte e gemidos das víti­mas para que me olhassem de lado. Há uma, sobretudo, uma cer­ta Phrosine Grouin, que não gosta de mim, que me observa muito e que me disse: «Não serás um pouco aristocrata, la Briquet? Os dis­cursos, são vento! O sangue é que conta e uma boa patriota deve sentir-se satisfeita por ver escorrer o sangue daqueles que beberam o nosso durante séculos»... Se não fico com elas, denuncia-me... e eu não posso morrer, ainda não... não antes de ver Chabot subir, um dia, por aquela escada...

Preocupado, Batz arrancou uma erva e pôs-se a mastigá-la.

—   A vossa situação, com efeito, corre o risco de se tornar in­sustentável. Pensava que tínheis os nervos mais sólidos, confesso. Não assistimos juntos à execução dos pretensos ladrões do Guar­da-Móvel?

—   É verdade e suportei aquilo bastante bem, mas este horror quotidiano... esta nascente de sangue que escorre inexoravelmen­te. Imaginai que há três dias executaram um rapaz de 15 anos!

A voz de Lalie quebrou a estas últimas palavras e desatou aos soluços. Sem dizer nada, Batz tomou-a nos braços e levou-a para se sentar sob a ramada do pequeno albergue que tinham visto e de onde se divisava o estabelecimento termal — uma grande casa agradável no meio de um belo parque — e o curso brilhante do Sena. Ali, bateu com o punho na mesa de madeira em bruto, o que fez acorrer uma atenta criada de saiote curto e touca de musselina com uma roseta. O cidadão Agricol pediu-lhe vinho fresco e qual-quer coisa para comer para a sua amiga, que não se sentia bem. A jovem era encantadora: apressou-se por aquela mulher que lhe pa­recia tão triste. Aquele lapso de tempo permitiu ao barão reflectir...

Após ter comido e bebido, »»Lalie» sentiu-se melhor.

—   Ides ficar aqui com juízo, repousando e ides esperar-me — disse-lhe ele. — Para vos confessar a verdade, não viemos aqui unicamente para apanhar ar. Tenho que ver uma coisa na aldeia e penso que neste canto ficareis bem...

—   Por que não o dissestes mais cedo? Assim, só atrapalho.

— Não! Podia muito bem vir sozinho, mas pareceu-me que po­dia juntar o útil ao agradável... e vós necessitais de descontrair um pouco! A paisagem é bonita, este terraço está cheio de sombra e podeis observar as idas e vindas dos curistas. É muito divertido, ve­reis.

Mal tinha acabado a frase quando um homem de meia-idade, bem-vestido e que vinha, sem dúvida, de beber o seu copo de água, saiu das nascentes entregando-se a um exercício curioso: executava, cantarolando, uma espécie de marcha saltitante, contava cinco passos, fazia uma pirueta, repartia, contava cinco passos, fazia outra pirueta e assim sucessivamente.

—   É maluco? — perguntou Lalie, siderada.

—   Não. É um curista. Recomendaram-lhe, após beber, o exer­cício «apoderado» que podeis admirar! Até já!

Partiu, sossegado: Lalie já não tinha vontade de chorar.

A distância entre as águas e a Rua du Coeur-Volant, onde Si­mon dissera que vivia Nicolas Sourdat, era maior do que Batz pen­sava. Pôs-se a correr através dos vinhedos e só abrandou o passo nos arredores do seu objectivo, depois de se ter informado duas vezes. Descobriu, por fim, um beco, barrado pelo muro coberto de terra de uma propriedade. O local, tal como o conjunto de Passy, era agreste e encantador e a casa ocupada pelo antigo polícia de Troyes respirava calma e tranquilidade sob a hera que a cobria. Batz postou-se num pequeno bosque, onde uns arbustos lhe ofe­reciam abrigo suficiente para poder observar. Não que tivesse in­tenção de ali permanecer durante muito tempo. Tudo o que queria era saber se o homem de Antraigues morava mesmo ali. De seguida, trataria de estabelecer um posto de observação melhor: juntamente com Simon, este promovido a carcereiro de Luís XVII, Sourdat tornava-se deveras interessante.

Não teve de esperar muito: as janelas estavam abertas e Batz apercebeu a poderosa silhueta que gradualmente se aproximou até ficar enquadrada, por um instante, pelas folhas verdes... Sourdat ti­nha o aspecto de quem, bem instalado, se sente em sua casa. Ad­quirido este facto, Batz ia-se retirar quando um homem, de chapéu alto redondo, que usava de forma elegante, vestido com uma casaca ligeira creme, raiada de negro e calças coleantes negras, metidas em botas de cano curto, reviradas, saiu da casa, uma haste de reseda na lapela, bengala ligeira na mão, se meteu pelo caminho das vinhas. Ao passar, deitou um olhar indiferente àquele revolu­cionário barbudo cujo gorro vermelho se parecia com um enorme galo e prosseguiu o seu caminho fazendo trejeitos com a bengala.

A mão de Batz apertou com mais força o sólido cacete que fa­zia parte da sua personagem, lamentando amargamente que não fosse a sua fiel bengala-espada. Era verdade que, bem manejado, o pesado bastão constituía uma arma temível. A vontade de se servir dele era grande, mas estava muito sol, o caminho era aberto e via-se alguns vinhateiros no trabalho, senão teria sido uma alegria indizível comportar-se como um assaltante comum e espancar o elegante passeante, que não era outro senão Josse de Pontallec.

Batz voltou a encontrar, intacto, o desejo de matar que se apo­derara dele no ano anterior, quando fora de encontro ao marquês à saída do albergue de Somme-Tourbe'. Maior ainda, se possível, porque, no espaço de um relâmpago, Batz viu o perigo que aque­le homem, agora em Paris, representava para Laura. A despeito do juramento de vingança que ela fizera sobre o cadáver da sua mãe, Batz estava certo de que, em caso de afrontamento, a jovem sairia derrotada. Era preciso impedir tal a todo o custo, mas, antes, pre­cisava de saber o que viera Pontallec fazer a Paris. Que ele se alo­jasse em casa de Sourdat não era surpreendente: o agente de Mon­sieur só podia dar-se com o de Antraigues. Seguiu-o, portanto, a uma distância suficiente para não ser notado, se bem que tivesse no seu disfarce uma confiança absoluta: só alguém com olhos de lince descobriria o barão de Batz sob a roupa do cidadão Agricol.

Voltando para trás, fez o caminho inverso já percorrido. Iria Pon­tallec ao estabelecimento termal? A sua saúde parecia perfeita e não devia necessitar de qualquer cura de água mineral. No entanto, teve que se render à evidência: era para lá que ele ia. Batz viu-o pene­trar no parque, sempre no mesmo passo descuidado e entrar no pa­vilhão que abrigava uma das cinco nascentes. Hesitou um instante e precipitou-se, depois, para o pequeno albergue, de onde levou a sua amiga Lalie, que começava já a achar a espera demasiado longa:

— Vem, cidadã! — declarou ele em voz alta e bastante inteligí­vel. — O médico disse-me que precisas de beber desta água qua­se miraculosa.

E arrastou-a para o pavilhão em passo de corrida:

—   Vou ser obrigado a entregar-me à ginástica ridícula da qual já vimos o espectáculo e que eu já vi muitas vezes? — protestou ela, tentando refreá-lo.

—   Não. Para as mulheres, é outra coisa... Vinde depressa!

Graças a Deus, havia muita gente em volta da nascente, onde duas mulheres estavam de serviço, de avental azul, mas Batz viu logo a sua caça: estava ao pé de uma coluna, um copo de água na mão que, aliás, não bebia. Tinha o ar de esperar algo ou alguém... Deixando Lalie perto da nascente onde se fora servir, Batz iniciou um movimento circular destinado a colocá-lo por trás do marquês. A atmosfera, saturada de humidade, não era tão agradável como antes, os coristas não eram os mesmos de antigamente, gente da corte e ricos burgueses, cujos perfumes combatiam, então, o forte odor ferruginoso. Tinham dado lugar, na maior parte, a homens e mulheres do povo, arvorando a roseta tricolor nos gorros vermelhos ou brancos e que não tinham meios para perfumes orientais.

Passaram-se vários minutos, até que Pontallec emitiu um: <Ah, até que enfim!» de satisfação. Uma personagem, vestida com uma bela casaca azul emergiu da bruma ligeira, segurando na mão o obrigatório copo de água e aproximou-se do marquês. Batz pôde ver que também ele trazia na lapela uma haste de reseda, sem dú­vida um sinal de reconhecimento, que permitia aos dois homens terem o ar de dois velhos amigos que se encontram por acaso. Mas da haste de reseda Batz subiu para o rosto e reteve, a tempo, uma exclamação de surpresa: era Louis David, o pintor, o amigo de Tal-ma, membro, há pouco tempo, na Comissão de Salvação Pública. Mas não havia tempo a perder com pontos de interrogação. Batz permaneceu no seu lugar e aguçou as orelhas:

—   Trazeis notícias? — perguntou David, após uma troca de cumprimentos.

—   Trago, com as saudações do cidadão Lecarpentier, cujos po­deres excedem os de Contentin no que diz respeito à região de Cancale e Saint-Malo. Somos amigos desde há pouco, no segui-mento do drama que custou a vida à minha esposa e quase me custou a minha...

—   Que se passou?

—   Caímos numa armadilha. Tínhamos sido avisados — discre­tamente! — de que um dos navios da minha mulher que, até ao nosso casamento, era o armador Laudren, deveria deixar sub-rep­ticiamente o seu porto de matrícula para se dirigir a Jérsia e colo­car-se à disposição do príncipe de Bouillon. Como nos recomen­daram o maior dos segredos, a fim de desmascarar quem nos tinha traído, fomos para bordo noite fechada, apenas com três servos, mas estavam à nossa espera e o navio levantou ferro logo que che­gámos, ao mesmo tempo que nos prendiam. Para levar a cabo o plano previsto — que era deitar a mão a toda a frota Laudren — era preciso que desaparecêssemos. A minha pobre Marie-Pierre, drogada, foi atirada ao mar rapidamente. O corpo dela foi encon­trado na manhã seguinte. Tive a mesma sorte, mas mais longe e, sem um pescador providencial, que me recolheu no momento em que, já sem forças, me ia afogar, não estaria aqui hoje. Naturalmente, desde o meu regresso a Saint-Malo, apresentei queixa ao ci­dadão Lecarpentier...

—   A morte da vossa esposa desgosta-me, mas sinto-me feliz por terdes saído incólume, Que pretendeis fazer, agora?

—   Retomar os negócios da defunta cidadã Pontallec ao serviço da República. Uma parte era com Espanha, o que deixou de ser possível dada a situação na Europa. Resta o serviço corsário, bas­tante difícil e a caça da baleia. Dois dos nossos navios partiram na Primavera para os bancos da Terra Nova e dois outros permane­cem à disposição do governo, que poderá indicar-me tal ou tal mercado interessante...

—   Vou tratar disso. Mas, era suposto trazerdes notícias? — Com efeito. Parece que tivestes de fazer face, recentemente, a uma tentativa de rapto da família do Cabeçudo?

—   Oh, uma suposta conspiração, descoberta pelo sapateiro Si­mon — um homem que, aliás, bebe de mais! — Robespierre limi­tou-se a encolher os ombros e a aconselhar silêncio quando se fa­lou nisso na Comissão.

—   Faz mal. A conspiração era verdadeira. Para além dos nos­sos, que deviam assegurar a defesa das costas de Jérsia, um barco de pesca devia esperar, na enseada de Saint-Enogat, perto de Di­nard, para levar a Bouillon o bastardo que se faz chamar Luís XVII.

—   O bastardo? — espantou-se David. — Onde fostes buscar isso?

—   À realidade, meu caro. Ninguém, no séquito do Cabeçudo, duvidava de que o Delfim não devia nada ao gordo Luís, mas sim ao belo Fersen. Ao ponto de o conde de Provença se ter apoderado do Parlamento para exigir que a ninhada fosse declarada bas­tarda.

—   Ignorava isso. É verdade que eu não frequentava muito essa gente. Mas voltemos ao vosso barco de pesca: como é que o des­cobristes?

—   Neste género de negócio, há sempre alguém com a língua demasiado comprida, sobretudo depois de ter bebido. Depois da minha aventura, Lecarpentier fez um inquérito apertado. E ele tem os seus métodos para fazer falar os recalcitrantes. O patrão pescador, um certo Pleven, disse-lhe tudo o que ele precisava de saber. Depois, foi só mandá-lo para a guilhotina.

Por trás da sua coluna, Batz cerrou os punhos e fechou os olhos, num pensamento desolado por aquele bravo, perfeitamente honesto, tinha a certeza, mas demasiado simples para resistir aos golpes torcidos daqueles malvados. Tinha que se ocupar da viúva, admitindo que também não a tinham matado... Entretanto, agrade­ceu mentalmente ao senhor, que lhe permitira ir, naquele dia, às águas e surpreender aquela conversação: sabia, agora, que aquela parte da costa bretã era impraticável para chegar a Jérsia e que, se queria fazer sair de França o seu pequeno Rei, teria de procurar uma rota alternativa...

O som do seu nome trouxe-o de volta à conversação dos dois ho­mens, abandonada por alguns instantes, mas sem qualquer surpresa: haviam tirado tudo o que havia para tirar daquele pobre Pleven!

—   Conheceis esse homem? — perguntou o pintor.

—   Batz? — escarrou Pontallec. — Para mal dos meus pecados: esse bandido tentou matar-me o ano passado, no decurso de um desses assassinatos tão bem regulamentados, que são a vergonha da nobreza e que são apelidados de duelos. Na ocasião, tinha-se juntado ao duque de Brunswick e, lançado na pista dele, tentei im­pedi-lo. Esse homem é um demónio da pior espécie. Podeis ter a certeza de que vai continuar a tentar arrancar a Austríaca ao seu justo castigo. Era amante dela, claro!

—   Também ele? — sussurrou David, apesar de tudo um pouco surpreendido.

—   Como sois uma alma simples! Ela teve muitos, podeis crer! Conheço-a bem!

—   Dir-se-ia que não gostais muito dela?

—   Odeio-a e pergunto a mim próprio por que espera a Co-missão de Salvação Pública para a enviar para o inferno, para o pé do Cabeçudo. Que Batz consiga libertá-la?

—   Não, estai tranquilo, velaremos por isso e conto que, em breve, também ele será levado a julgamento. Enquanto essa Messalina viver, a República estará em perigo. Eu também a odeio e espero com impaciência o dia em que a verei a caminho do cadafalso... mas, de momento, cidadão, não vejo qualquer razão para manter as nossas relações secretas. Por que não me acompanhas à Comissão, a fim de tu próprio entregares a mensagem de Lecar­pentier?

—   Porque ele não o deseja. Prefere que me mantenha no meu lugar tranquilo de armador ao serviço da República. Ele diz que quanto menos se souber de mim, mais poderei ser útil. Foi por isso que me enviou a ti, que és mais discreto e menos exposto dos ou­tros membros da Comissão. Sabes calar-te e conheces os homens. Portanto, pensa apenas nos meus conselhos: enviai Batz e a ex-Rai­nha para o cadafalso! Ficareis muito mais tranquilos. E agora dei­xemo-nos! Volto.

—   Voltas para a Bretanha?

—   Esta noite, talvez, ou amanhã. Esperarei lá por notícias tuas! Lembra-te que há um espectáculo que eu não quero perder...

—   Não o perderás. Obrigado pelo teu civismo. Saberemos recompensar-te...

Por fim, os dois homens separaram-se. Pontallec foi o primeiro a afastar-se. David permaneceu ainda um instante encostado à co­luna, triturando entre os dentes a sua palhinha de reseda, que aca­bara de retirar da lapela. Batz aproveitou para se pôr ao largo e procurar Lalie, que esquecera por alguns instantes. Por fim viu-a, mas esta não parecia estar muito preocupada pela sua ausência. Sentada num banco de pedra, fixava qualquer coisa que Batz ain­da não tinha apercebido. O barão colocou-se à frente dela, tapan­do-lhe a vista. Ela fez um gesto de impaciência para o afastar:

—   Senta-te, cidadão Agricol, assim não vejo nada.

—   E que vês tu assim de tão interessante? — perguntou ele, obedecendo.

—   Aquilo! — indicou ela com um movimento do queixo.

«Aquilo» era, perto da nascente, Chabot, ocupado com uma bela rapariga, a quem se esforçava, rindo, por fazer beber água, coisa que ela recusava obstinadamente, rindo também. Era loura e en­cantadora, operária, sem dúvida, mas vestida com a garridice ina­ta que é apanágio das mulheres que trabalham na moda, na cos­tura ou na lingerie. Manifestamente, ela acordava no convencional palpitações que não tinham nada de platónico porque, tendo pou­sado o copo, atraiu-a a si com um gesto brutal, rodeando-lhe a cin­tura, ao mesmo tempo que a mão livre se insinuava no pescoço da jovem para se aventurar pelas curvas que inchavam, formosas, sob o corpete florido. Sob a força do desejo, o rosto do antigo capu­chinho crispava-se, enquanto o olhar, perturbado, assustava a companheira. Ela repeliu-o e desatou a correr da direcção da saída. Na­turalmente, ele seguiu-a...

—   Aquele porco! — rugiu Lalie. — Sempre o mesmo sátiro, em perpétuo cio! Até quando emporcalhará ele a superfície da terra? Batz, que seguia o casal com um olhar sonhador, respondeu:

—   Por mais pouco tempo, espero! Tenho projectos para ele. — A sério?

—   Sim... ou antes, tenho um grande projecto, já há algum tem­po, mas hesitava no homem com quem começaria. Este encontro foi providencial: Chabot será o tal.

—   Que vais fazer?

— Creio que, para começar, vou... convidá-lo para jantar!

—   O quê?

—   Pois! Não se apanham moscas com vinagre e ele é exacta-mente a espécie de verme que eu quero introduzir no seio da Con­venção... Louco por mulheres, descontente com a sua sorte e so­nhando com o luxo e a riqueza, vai tornar-se o utensílio de que eu necessito. Resta encontrar o pretexto!

Sempre conversando, dirigiam-se para a saída quando Batz pa­rou de novo:

—   Perdoa-me, cidadã! — retomou o cidadão Agricol, pensan­do naqueles que iam e vinham à sua volta. — Quase me esquecia do teu problema! O melhor é eu levar-te a casa de uma amiga mi­nha. Ficarás bem e...

Lalie pousou vivamente a mão no braço dele:

—   Não. Esquece isso tudo!... Fico onde estou...

— Mas...

—   Nem mas, nem meio mas! Fizeste muito bem em trazer-me aqui! A água fez-me muito bem... e a paisagem também! Rever aquele homem — acrescentou ela mais baixo — chamou-me ao meu dever. Devo continuar, custe o que custar. Se morro antes de conseguir o que espero...

—   Fica tranquila! O homem não me escapará!

Pouco desejosos de esperar pelo barco de carreira, tinham de­cidido procurar uma viatura que se dirigisse para o Ranelagh quando um casal, parado sob uma moita de madressilva lhes cha­mou a atenção. O homem era Louis David e parecia muito emo­cionado. Com o chapéu na mão, devorava visivelmente, com os olhos, o seu belo encontro. Porque ela era verdadeiramente bela: grande e de aspecto elegante, a sua finura, destacada por um ves­tido negro, simples, mas cintado por uma fita azul-celeste, igual à que lhe segurava os cabelos castanhos e lustrosos, tinha grandes olhos negros, traços finos e segurava pela mão uma rapariguinha de seis ou sete anos que se parecia com ela. Uma coisa era certa: se David estava fascinado, a bela desconhecida parecia mais assustada do que encantada por se encontrar face a ele.

—   Ora bem, é preciso azar — suspirou Lalie. — Certamente, não imaginava encontrá-lo no meio dos artistas, num canto tão tranquilo!

—   Conhecei-la? — sussurrou Batz que, sentindo sempre algu­ma dificuldade em tratar por tu Mme. de Sainte-Alferine, regressa­va, sempre que podia, às formas normais de delicadeza.

—   Sim. É Mme. Chalgrin. É a mulher de Joseph Vernet, o céle­bre pintor...

—   Chalgrin? O arquitecto?

—   Sim. Tem, pelo menos, mais 20 anos do que ela e emigrou há pouco tempo. Ela não quis segui-lo. Primeiro, porque se sentiu seduzida pelas ideias novas de liberdade e fraternidade e depois para não abandonar o seu irmão Carle e a família dele, de quem ela gosta muito. Ficou, portanto, com eles no Louvre até ao assal­to das Tulherias, no último 10 de Agosto e, sem dúvida, o medo persegue-os. Aparentemente, não foram longe, já que ela está aqui...

—   Como é que sabeis tudo isso?

—   O tricô, meu amigo, o tricô! — respondeu ela com um bri­lho da sua antiga garridice nos olhos. — Sabeis que as minhas pe­quenas obras me valeram alguma notoriedade na profissão! Foi assim que ganhei a convivência com algumas damas do Louvre e, em primeiro lugar, com Mme. Fanny Vernet, a mulher de Carle. Foi através dela que conheci a cunhada, Émilie Chalgrin.

— E David no meio de tudo isso? Aquela jovem não parece en­cantada com o encontro...

—   Compreendo-a. Ele está apaixonado por ela, mas não é correspondido e ela até tem medo. Aquele homem é brutal, violento e de um orgulho infernal: não aceita uma recusa!

—   Mas é casado, parece-me...

—   Sim e tem dois filhos, mas ouvi dizer que a mulher o dei­xou quando viu os esboços aterrorizadores que ele levou para casa, depois dos massacres de Setembro, aos quais assistia como espectador apaixonado.

Entretanto, Mme. Chalgrin, que parecia num suplício, procura­va visivelmente uma escapatória. O seu olhar caiu sobre Lalie e, com um gesto de desculpas para com o seu interlocutor, encami­nhou-se rapidamente para ela, rebocando a pequenina Françoise:

—   Cidadã Briquet? Mas que sorte! Justamente, estava a pensar visitá-la um destes dias. A minha pequena Françoise precisa de vestuário para o próximo Inverno e a senhora faz coisas tão lin­das!...

—   Não desejo nada melhor...

— ... mas — cortou David, que seguira a jovem — o melhor seria a cidadã... Briquet? É isso?... a cidadã Briquet ir a sua casa. Dê-lhe a sua morada!

Compreendendo que ao tentar escapar acabava de cair numa armadilha inesperada, Mme. Chalgrin empalideceu. O cidadão Agricol decidiu acorrer em seu socorro e deu uma grande risada:

—   Bem, nos dias de hoje, isso nã se faz! Talvez a cidadã nã queira que tu saibas ond'é o ninho dela? Talvez tu lhe queiras can­tar uma serenata e isso nã agrade ao marido dela?

O pintor envolveu o descarado com um olhar de desprezo:

—   E que tens tu com isso? Conheces-me?

—   Nã tenho essa honra, mas até podias ser um fidalgo, o que nã me espantaria muito! É mesmo deles: correr atrás das mulheres bem-feitas!

David segurou o insolente pela carmanhola:

—   Tem cuidado, homenzinho! Eu chamo-me Louis David, per­tenço à Comissão de Salvação Pública e tu podes vir a pagar caro as tuas maneiras! Agora, desaparece, se não queres ver com que lenha me aqueço!

—   'á bem, `tá bem! T'és quem és, mas digo-te que o cidadão Agricol nã tem medo de ninguém, porqu'é um bom patriota... e amigo de Marat! E esse também n'é p'ra brincadeiras!

E virou-lhe as costas, mas, durante a troca de palavras, Lalie ti­nha feito sinal à jovem para se afastar, o que ela se apressou a fa­zer e quando David a procurou, a jovem e a filha tinham desapa­recido.

—   Onde está ela? — grunhiu o pintor virando-se para Lalie, que olhou para ele beatificamente por cima das lunetas.

—   Não vês, cidadão? Foi-se embora...

—   Por onde?

—   Por ali — respondeu ela, apontando, bem entendido, para o lado contrário.

—   E tu tens a morada dela? Toma cuidado com a resposta.

—   Porquê? Não tenho nada a temer. Ela não me deu morada nenhuma, mas isso não me aflige porque ela sabe onde me pode encontrar.

—   E onde é que te podem encontrar, cidadã?

—   Na Rua du Coq, número 5, ou na taberna da Truie-qui-file... ou ainda nos jacobinos; raramente falto às sessões e o cidadão Ro­bespierre conhece-me! Até já lhe fiz um colete!

Tudo num tom tão calmo que David não insistiu. Repondo o chapéu na cabeça com um golpe do punho, virou os calcanhares e desatou a correr na direcção indicada por Lalie.

—   Acabamos de fazer mais um inimigo — notou Batz, seguin­do-o com o olhar.

—   Ao ponto a que chegámos, isso já não tem qualquer impor­tância. Espero que Mme. Chalgrin tenha o bom senso de fazer as malas e pôr uma certa distância entre este homem e ela...

 

Chegada a noite, Batz, acompanhado de Pitou e Devaux re­gressou, sob o seu aspecto habitual, à casa da Rua du Coeur-Volant. Os três homens, mascarados, estavam armados até aos dentes, não tendo o barão a menor intenção de dar a mínima hipótese a Pon­tallec. Estavam postas de parte as cortesias do duelo: queria abater, definitivamente, aquela besta malcheirosa. Tanto pior para Sourdat, se tentasse ajudá-lo! Seria mais um homem de Antraigues a menos!

O final do dia tornara-se tempestuoso e a noite estava quente, sem a mínima brisa. Nas casas das imediações, apenas as persianas dos andares térreos estavam fechadas. Todas as outras janelas es­tavam abertas para a obscuridade dos quartos. Por vezes, a luz amarela de uma vela evocava um leitor ou uma mulher ocupada com a sua correspondência. Apenas a residência ocupada pelo an­tigo tenente de polícia de Troyes estava fechada como um cofre--forte. Todas as persianas estavam bem fechadas e nenhuma luz se filtrava através delas.

—   Tendes a certeza que há gente lá dentro, barão? — cochi­chou Pitou. — A casa tem um ar vazio.

—   Ou então — disse Devaux, esbofeteando-se — esta gente tem medo dos mosquitos. Espero que não me dêem razão! Que fa­zemos?

— Escalamos a parede e entramos — decidiu Batz. — E depois, vós dois tendes de mostrar como tratais as fechaduras recalcitrantes!

Coberta de vegetação, a parede era fácil de escalar. Os três ho­mens viram-se sem dificuldade sobre a relva de um jardim. Batz avançou na direcção da escadaria, mas Devaux deteve-o:

—   Deve haver uma porta nas traseiras, para assuntos de servi­ço. Deve ser mais fácil de abrir do que a da frente.

Tinha razão. Encontraram a entrada, que os dedos ágeis do se­cretário não tiveram qualquer dificuldade em abrir, sem o menor ruído. A casa era pequena e não havia criados. Se havia um, dormia no interior ou na aldeia. Mas tiveram que percorrer os dois an­dares, primeiro com cuidado, depois sem qualquer precaução, para se renderem à evidência: não havia ninguém.

Melhor ainda, dir-se-ia que não era habitada há muito: cadeiras e lustres estavam cobertos de panos e havia poeira.

—   É incrível! — sussurrou Batz. — Esta manhã vi um homem

a esta janela e esse homem era Sourdat. Vi-o várias vezes no tempo da Constituinte. Sabeis bem que nunca esqueço um rosto.

—   E vistes, de seguida, sair Pontallec? — perguntou Pitou.

—   Até o segui. Vamos ver à cave!

Mas a cave não lhes disse nada de novo. Encontraram ali dois tonéis vazios, uma certa quantidade de garrafas também vazias, material para as encher e até alguns frascos cheios, mas com mui-ta poeira...

—   Não compreendo nada — rugiu Batz. — Devem ter partido para qualquer lado!

—   Pontallec deve ter partido esta tarde, como o ouvistes anun­ciar — disse Pitou. — Talvez o outro o tenha acompanhado? Ou talvez tenha voltado para Troves?

—   Em todo o caso — anunciou Devaux, que descia do andar onde tinha permanecido — devem ter dormido bem. Sob os panos e colchas que os cobrem, há lençóis em duas camas e estão amar­rotados. Seria preciso saber a quem pertence esta casa!

—   É difícil fazer essa pergunta a uma municipalidade recente, que deve estar ocupada, sobretudo, na venda das residências aris­tocráticas antigas como bens nacionais! Esse género de curiosida­de aponta-nos facilmente como suspeitos — disse Batz...

— Bah! — replicou Pitou — um pobre Guarda Nacional à pro­cura do pequeno bem que pertenceu a um defunto tio jardineiro no Ranelagh não deve levantar grandes suspeitas?

—   Talvez. Experimente!

Mas no dia seguinte, 13 de Julho, uma jovem normanda apu­nhalava Marat, o Amigo do povo, na banheira. Chamava-se Char­lotte Corday, vinha de Caen onde, desde há semanas, ouvia os Gi­rondinos refugiados acusar o Amigo do povo de todos os males de que sofriam. Jovem e bela, Charlotte sabia que se sacrificava, mas esperava, assim, permitir o regresso dos seus amigos ao poder...

Nesse dia e nos seguintes, Paris rugiu de raiva e recomeçou a ferver como o caldeirão de bruxa em que se tinha tornado. Nove jovens, que haviam agredido o deputado Léonard Bourdon, cópia mais suave de Marat, foram enviados ao cadafalso. Um pouco por toda a parte pegou-se em armas sem muito bem se saber contra quem e Pitou viu-se de prevenção para fazer face a qualquer eventualidade. Prudente, Batz voltou para Charonne...

 

         E O VINHO DE CHARONNE!

Havia momentos em que Laura se perguntava se a sua vida teria ainda algum sentido. Desde a noite em que tinha esperado, até à aurora, pelo rolar das rodas da carruagem que trariam aquela que, no fundo do seu coração, ousava chamar de «Marfe Thérèse», com a nota de ternura que teria reservado para com a irmã mais velha de Céline, que esses momentos se multiplicavam, transportando-a quase até aos dias sinistros da Força, onde esperava a morte como uma libertação e também como o único meio para se jun­tar, por fim, à sua pequena filha'.

Também Bina velara. Com uma gravidade de que a sua patroa a pensaria incapaz, a jovem, avisada do que se preparava, recusa­ra afastar-se por alguns dias, como Laura lhe propusera, a fim de não se comprometer em caso de infelicidade.

—   E para onde ia eu?

—   Podias regressar a Saint-Malo, já que a tua mãe continua a tomar conta da casa...

—   Para morrer de tédio? Vós é que sois a minha família agora e eu vou onde vós fordes.

—   Arriscamo-nos a ir parar ao cadafalso, Bina!

—   Talvez, mas terá valido a pena! — E acrescentara com um sorriso radiante: — Servir uma princesinha infeliz, mesmo se só por alguns dias, que sonho e que aventura!

Ora, o gosto pela aventura existia para aquela oriunda de Saint--Malo de 20 anos — a mesma idade de Laura — nas veias da qual corria o sangue de gerações de marinheiros embarcados em navios corsários e de mulheres sólidas, habituadas a encarar a realidade por vezes bem desagradável. O que não quer dizer que não se in­surgissem contra essa realidade.

Fora ela que, de manhã e ao chamamento da campainha da porta, encontrara, por baixo da porta, um bilhete, que se apressa­ra a entregar a Laura. Continha apenas quatro palavras: «O caso fa­lhou», sem assinatura. A decepção fora tão cruel que tinham cho­rado juntas, mas Bina fora a primeira a recompor-se:

—   O que não se faz num dia, faz-se no outro — disse ela, pa­rodiando César Borgia sem o saber.

Esta confiança optimista no futuro era, justamente, aquilo de que necessitava Laura naquele dia para fazer face, com o rosto apa­rentemente sereno, ao regresso de um Jaouen envergonhado e ra­bugento. Foi Bina a primeira a vê-lo:

—   Pode saber-se por onde andaste, cidadão Jaouen? — per­guntou ela no estilo de uma esposa que surpreende o seu «homem» a regressar a casa com as botas na mão. — Esperámos-te toda a noite.

—   Ela... ela também? — interrogou ele com um olhar eloquen­te para o andar de cima.

—   Bem entendido, ela também! Nos tempos que correm, quan­do as horas passam sem trazerem alguém da casa, fica-se preocu­pado.

Então, ele contou como encontrara na pastelaria Cortey, onde fora fazer compras, um «veterano» de Valmy, que um golpe de baio-neta tinha tornado coxo. Tinha falado, claro e, para festejar o acon­tecimento e beber à saúde da Nação, o coxo tinha proposto ao seu irmão de armas ir ao Palais-Royal, onde não faltavam os cafés. Des­locaram-se ao café Février, essa cave ilustre devido à morte do convencional Le Pelletier de Saint-Fargeau, assassinado na véspera da execução de Luís XVI pelo antigo guarda do corpo Pâris. Segundo ele, os bons patriotas, aqueles que sabiam o que é derramar o seu sangue pelo país, gostavam de se encontrar lá. E, de facto, o coxo tinha-se encontrado com dois «amigos» e tinham bebido, cada um contado a sua história, evocando tal ou tal acontecimento das suas campanhas. Dos copos passaram às garrafas, até que todos eles es­tavam tão bêbedos que já nem viam bem... e Jaouen tinha acordado no dia seguinte, deitado de borco sobre uma mesa de mármo­re, no outro lado da qual o seu novo amigo — que se chamava Branchu! — roncava desalmadamente. A cave estava vazia, à ex­cepção do patrão, que rogava àqueles clientes memoráveis que se fossem embora para poder fazer a limpeza. Um enérgico encontro com uma celha de água afastara os vapores da bebida, o suficien­te para encontrar, de novo, o sentido da realidade. Afastaram-se, de qualquer modo um pouco aborrecidos, mas prometendo reve­rem-se e Jaouen regressara a Cortey para ir buscar as provisões e regressar à Rua du Mont-Blanc.

—   Não foi grave — concluiu Bina, magnânima. — Se passaste um bom bocado, não vale a pena arrependeres-te! Vai-te lavar e depois vai pedir desculpas a Mlle. Laura.

—   Não. Prefiro ir lá agora. Mas sê gentil e arranja-me um café! Tenho uma dor de cabeça terrível.

Laura aceitou as desculpas com uma graça extraída de uma consciência um pouco duvidosa: Jaouen deveria sempre ignorar que, se o golpe da véspera tivesse sido bem sucedido, teria acor­dado numa casa que Cortey possuía em Bercy, onde guardava al­gumas das suas mercadorias e onde Jaouen teria permanecido sob vigilância estreita durante a permanência das duas princesas em casa de miss Adams, onde, uma vez libertado, não encontraria nin­guém. Aqueles que tinham arranjado aquilo teriam feito de manei­ra a que ele pensasse ter sido raptado...

Sabendo que aquele homem a amava e lhe era devotado, Lau­ra não se podia impedir de sentir vergonha ao pensar no que ele poderia ter sofrido, mas também sabia que ligar a sua sorte à de Madame Royale teria exigido esse sacrifício, ligeiro, em compara­ção com a felicidade de velar por «ela» e segui-la no seu exílio. Agora, o sonho desvanecera-se, aquele sonho suficientemente se­dutor para a fazer renunciar a tudo, até à sua vingança... até ao seu amor por Jean de Batz, pelo qual ela já não tinha ilusões, e tinha a impressão de estar no centro de um enorme vazio...

Não recebera qualquer notícia, ninguém viera, nem sequer o seu amigo Pitou, ou Julie — os Talma tinham desaparecido depois da fuga dos Girondinos, não vendo mais ninguém senão David, que estendia sobre eles um braço sarcástico, mas protector. Nem sequer Marie Grandmaison, que por vezes vinha buscá-la para percorrerem as lojas! Falavam de tudo e de nada, iam comer um gelado ou beber um chocolate e depois Marie, sempre estreitamente guardada por Biret-Tissot, voltava para a sua casa de Charonne, que provocava em Laura o efeito de um paraíso perdido. Viver ali era exaltante, apaixonante, mesmo quando vários dias se escoavam sem ouvir a voz quente e alegre que lhe dava alma e cujo eco fa­zia bater com mais força o coração de Laura. E arrependia-se, ago­ra, por ter escolhido aquela solidão, aquela casa onde esperava se­cretamente que Jean viesse, de vez em quando, procurar refúgio e onde apenas estivera uma vez.

Nessa manhã, desceu até ao seu pequeno jardim, onde Jaouen estava ocupado a aparar uns buxos. Sentia que ele a evitava depois da sua aventura e desejava aligeirar a atmosfera. Permaneceu um momento a observá-lo, admirando a habilidade do maneta: o gan­cho de ferro segurava nos ramos, que a foice cortava rente. Como ele parecesse não se aperceber da sua presença, ela suspirou:

—   E se nós partíssemos para a Bretanha, Jaouen? Tenho von­tade de voltar para casa.

—   Lá já não é a vossa casa — disse ele evitando olhá-la, sa­bendo bem que ela usava, naquela manhã, o vestido de musselina branca de que ele gostava e que ela vestia com brilho, descobrin­do com tanta graça o começo dos ombros e o longo pescoço fle­xível, sobre o qual deslizava um caracol de cabelos cor de cinza.

—   Em Komer estou sempre em casa.

— Talvez... mas que faríeis vós lá? Rezar, chorar na capela, ver as nuvens a correr por cima da floresta?

Ela apanhou uma haste de buxo que ia cair e acariciou a face com ela:

—   Não seria assim tão mau! Tenho tido a impressão de que é lá o meu verdadeiro lugar. Mas, pensava, sobretudo, em Saint--Malo. É lá que devo ir se quiser apanhar Pontallec. Ele pensa que é o único herdeiro da minha mãe e, mais tarde ou mais cedo, vol­tará lá. Não é homem para deixar uma fortuna escapar-lhe.

—   Isso sei eu há mais tempo do que vós, mas ele agora não passa de um emigrado. A municipalidade meteu a unha na fábrica de armas... e no resto. Que havia ele de ir procurar lá senão pro­blemas? Tal como vós, aliás, se vos mostrais por lá...

Subitamente abandonou o seu trabalho e virou-se para ela:

—   O que é que se passa? Estais farta da vida parisiense e dos vossos amigos?

Deus, como estava bela naquela manhã! O Sol acariciava-lhe os cabelos de reflexos prateados, nos quais Jaouen sonhava afundar, um dia, o rosto. Fitas de cetim azul retinham, negligentemente, uma massa sedosa, que, a cada instante, parecia prestes a desfazer-se.

Laura desviou os olhos daquele olhar que a devorava:

— Acontece que me aborreço porque me sinto inútil...

—   Credes que eu não sei a quem quereis tanto ser útil? A esse Jean de Batz que veio cá na outra noite e que nunca mais voltou? Que significa ele para vós?

Estava a ir longe demais. Laura, ferida, talvez porque Jaouen ti­vesse acertado, tornou-se instantaneamente na grande dama que não queria ser:

—   Está a esquecer-se, Jaouen! Nunca lhe dei o direito de julgar os meus amigos e ainda menos os meus sentimentos por eles. É para si que a vida de Paris não vale nada, é você que devia voltar para a sua terra!

A cólera é contagiosa. Laura viu subir a de Jóel e, por momen­tos, pensou que ele ia atingi-la, mas sob o olhar imperioso da jo­vem, o homem acalmou-se:

—   Não. Ficarei. Precisais de mim.

—   Não tenho assim tanta certeza. Falemos francamente, Jaouen, confessou-me, em tempos, professar ideias que não partilho. Por essas ideias derramou o seu sangue, o que as torna, para mim, in­finitamente respeitáveis, mas não toque nas minhas!

—   Como podeis vós permanecer ligada a elas? O Rei morreu!

—   O Rei nunca morre: é a lei das dinastias. Luís XVI morreu, mas Luís XVII vive. É uma criança e precisa que a sua mãe viva.

—   No entanto, odiais-la!

—   Não foi você mesmo que me explicou que não tinha razão? Acabemos com isto, Jaouen e façamos uma combinação! Se você se sente incapaz de me servir sem intervir nas minhas acções, sem fazer todos os esforços para afastar os meus amigos, sem tentar prejudicá-los — colocando-me assim em perigo — prefiro que re­gresse à Bretanha. Não preciso de uma pessoa na qual não possa depositar confiança...

Ele pareceu, de súbito, uma criança infeliz:

— Já não tendes confiança em mim?

— Não disse isso e depende de si se já não a tiver. Quero a sua palavra!

—   De que não tentarei nada contra os vossos amigos, sejam eles quais forem? Tende-la, mas...

—   Não quero mas, Jaouen!

—   Sim. Uma apenas! Se eles fizerem, seja o que for, que vos possa fazer sofrer, encontrar-me-ão. Sou devotado apenas a vós! A mais ninguém! Não se deve pedir a um cão de guarda que faça po­lítica. Não é realista, nem republicano e apenas conhece o seu dono. Se este é atacado, morde. Sou exactamente assim... Compreendeis?

Com as pálpebras ela fez sinal que sim e depois, sorrindo, pou­sou a mão no braço válido:

—   Obrigada, Jaouen! Nunca duvidei... mas faça melhor cara ao seu antigo amigo Pitou! Você trata-o muito mal e ele não o merece.

—   Isso é outra coisa. Quando o conheci, era um homem ardente na defesa dos Direitos do homem e da liberdade...

—   E assim continua. Os homens é que mudaram desde então e Pitou nunca admitirá que se mate indiscriminadamente, que se mate nas prisões, que um tribunal fanático e tacanho envie seja quem for para o cadafalso, que se pilhe e que se roube. Além dis­so, aconteceu uma coisa a Pitou que ele não esperava: teve um en­contro com a Rainha'...

—   E depois?

—   É uma experiência estranha — suspirou Laura. — Há qualquer coisa nela que atrai e fica. Um camponês, dos mais rudes, pode falar alguns minutos com ela e sente imediatamente, nos cal­canhares, as esporas de ouro do cavaleiro. O que lhe estão a fazer é indigno, imundo: arrancar-lhe o filho para o lançar nos braços de um bruto ignorante! Quem sabe se a deixarão ficar com a filha... aquela pequena Marie-Thérèse tão querida, tão... Oh, Jaouen, é im­possível ver aquela pequenina sem passar a amá-la...

—   E vós amai-la?

—   Sim... Ao vê-la, pareceu-me ver Céline com a mesma idade. São coisas que acontecem na vida e eu não paro de tremer por ela... e pelo seu irmãozinho.

—   Devíeis ter-me dito isso mais cedo! — murmurou Jaouen, voltando a pegar na sua foice. — Teríamos evitado, vós e eu, mui-ta confusão...

Laura não teve tempo de perguntar ao seu jardineiro amador o que queria ele dizer com aquilo: Bina chegava, anunciando que o «cidadão Devaux» esperava no salão e, esquecendo Jaouen, Laura precipitou-se. Aquela visita significava novidades da parte de Batz e ela tinha imensa pressa de as receber!

No tempo em que habitava a casa de Charonne, Laura tinha-se ligado àquele jovem secretário, arrancado à Tesouraria real, tornada nacional. Era um rapaz de 28 anos, amável, cortês, culto, trei­nado, como o barão, em todos os exercícios do corpo, mas de uma calma natural, pouco falador, filósofo e dotado de um certo sentido de humor. Acolheu-o, portanto, com verdadeiro prazer e com uma ligeira reprovação:

—   Por que é que nunca me vem ver?

—   Vedes bem que não é verdade, porque aqui estou — sorriu ele, beijando a mão que ela lhe oferecia.

—   Mas, vem por iniciativa própria, ou em serviço?

—   As duas coisas. Como se falou no vosso nome a propósito do almoço que terá lugar no domingo, ao meio-dia, propus vir tra­zer-vos o convite.

—   Um convite? O barão vai dar uma festa? Será o momento próprio?

— Primeiro, não é ele que convida, é M11e. Grandmaison. De-pois, trata-se de reunir alguns amigos a outros que o são menos, mas que é preciso seduzir, guardando o tom de uma festa cam­pestre. Portanto, se estais de acordo, virei buscar-vos às dez ho­ras. É inútil recomendar-vos que estejais bela: não se poderia acrescentar nada ao vosso brilho de hoje. E agora, permiti que me retire.

—   Como? Já? Mas, acabais de chegar!

—   Podeis acreditar que me sinto desolado, mas Paris está de novo em ebulição: procede-se aos funerais de Marat — deveis ter ouvido os canhões — e o cortejo que se formou não tem nada de tranquilizador. Francamente, até é bastante agitado: Robespierre re­cusou que se leve o Amigo do Povo para o Panteão. Então, deci­diu-se enterrá-lo nas Tulherias, em frente da Convenção, depois de terem colocado o seu coração num relicário na abóbada do clube dos Cordeliers. É mais prudente regressar a horas...

—   O coração desse monstro numa igreja? E o Rei na vala co­mum!

—   Bah, o pequeno cemitério de la Madeleine é, certamente, mais santo do que um santuário do qual o senhor deve ter deser­tado há muito, perseguido pelos berradores avinhados que se ins­talaram lá... Venho buscar-vos no domingo?

—   Com alegria!

—   Ah, já me esquecia! Levai bagagem, Marie gostaria que fi­cásseis alguns dias com ela...

—   Para a ajudar a suportar a inglesa?

—   Não. Lady Atkyns deixou-nos há três dias. Correu o boato de que iam transferir a Rainha para a Conciergerie e então ela ar­ranjou uma casa na Rua de Lille e o barão ajudou-a. Com ela, a re­cepção de domingo não seria possível! Beijo-vos as mãos...

E foi-se, deixando Laura encantada. No entanto, não era assim tão ingénua que imaginasse que Batz procurava atordoar-se numa festa para esquecer o pungente fracasso do último mês: aquele almoço de-via ter um significado profundo, uma intenção secreta e perigosa, mas a ideia de respirar de novo durante alguns dias o mesmo ar de Jean e vê-lo viver enchia-a de alegria: era um verdadeiro presente do Céu! Preparou-se com um cuidado extremo. O mais difícil foi fazer ver a Bina e, sobretudo a Jaouen, que não precisava dos serviços de ambos para aqueles dias no «campo». A jovem criada de quarto, por mais conformista que fosse, não aceitava que uma «dama» se pudes­se deslocar sem a sua camareira. Quanto a Jõel Jaouen, mostrou-se hostil, ao ponto de ela o lembrar de que gostava de viver a sua vida como muito bem entendia e ver quem muito bem lhe apetecia.

Chegado o domingo, tomou lugar no fiacre trazido por Devaux com a agradável impressão de partir de férias. Além disso, sentia‑se bela, no seu vestido de musselina branca, cujo único orna-mento era uma aplicação de rosas pálidas em redor do decote pro­fundo, revelado pelas pregas transparentes do grande lenço atado nas costas por um nó. Uma capeline redonda, de palha, aureolava‑lhe o rosto e fazia sobressair o brilho dos olhos negros. O conjun­to, simples, não deixava de ser de uma perfeita elegância e Devaux cumprimentou-a por isso.

—   O barão ficará contente — acrescentou ele — mas pergun­to-me se não estais um pouco sedutora de mais? Tenho medo que sejais a mais bela entre as que vão estar em volta da mesa dentro em pouco. E não sois vós que deveis seduzir Chabot!

—   Chabot? Ouvi bem?

—   Sem qualquer dúvida: é bem ele.

—   O monge despadrado, o monstro que tem mais sangue nas mãos do que todo o resto da Convenção, aquele que violou...

Por meio de Batz e sobretudo por meio de Marie, conhecia a horrível história das damas de Sainte-Alferine, que a transtornara. Ao saber que iria encontrar aquele miserável, sentiu-se tão pertur­bada que Devaux ousou segurar-lhe na mão:

—   É, mais uma vez, verdade, cara amiga e foi essa a razão por-que vos vim buscar, para ter tempo de vos preparar. Agora, escu­tai-me e, sobretudo, ficai persuadida de que é o sr. de Batz que fala pela minha boca! Chabot vai ser hoje o convidado privilegiado de Marie Grandmaison. É Marie que recebe alguns amigos, conven­cionais e banqueiros, aos quais pediu que levassem esse Chabot, estrela das crónicas: curiosidade feminina bem desculpável e Batz, como seu amante, estará presente porque é normal. Não esqueçais que, salvo para os amigos mais próximos, a casa de Charonne per­tence a Marie...

—   Compreendo, mas por quê esse almoço? Por quê Chabot?

—   Porque o barão espera corrompê-lo sem muita dificuldade e, depois de corrompido, servir-se dele a fim de apodrecer sufi-cientemente a Convenção, a Comuna e o resto, para os destruir. Portanto, organiza uma pequena festa na qual, com um outro con­vidado, um verdadeiro americano, esse, vós sereis o elemento... exótico. Chabot adora os Americanos, nos quais vê os pais da nos­sa revolução. Por outro lado, o coronel Swan tem excelentes rela­ções com a Convenção graças à casa de importação-exportação que montou na Rua de la Réunion. Essa casa permite-lhe despejar sobre a república ondas de carne e peixe salgado, cereais e legu­mes secos, sem contar com os abastecimentos da Marinha, o óleo de baleia, as peles, a pólvora, a lona e o tabaco. Além disso, montou em Passy uma destilaria de rum, a fim de concorrer com os in­gleses e, no ano passado, instalou uma fábrica de curtumes. Para a Convenção, foi uma verdadeira cornucópia esse homem...

— Mas, enfim, não deve fazer isso por amor à arte e nunca ouvi dizer que a república fosse rica.

—   Não é assim tão pobre! Além disso, Swan dá-lhe crédito, contentando-se em receber uma parte dos despojos das residências reais e senhoriais: móveis, espelhos, sedas, rendas, quadros. Abrem-lhe de boa vontade o Mobiliário nacional... É até possível que possua alguns dos vossos móveis da Rua de Bellechasse — concluiu Devaux com um pequeno sorriso.

—   É horrível! — exclamou Laura, escandalizada.

—   Não, é um homem de negócios astuto. O barão gosta muito dele, ainda por cima porque tem liberdade de acção em toda a Fran­ça, sobretudo nos portos e junto dos capitães dos navios. Serve, mesmo, de intermediário para pagar aos mestres das embarcações até Inglaterra e debaixo do nariz de Pitt. Um pormenor: foi ele que levou para Hamburgo o rubi Côte de Bretagne, de que vós, segura-mente, vos lembrais, o vendeu e depois recuperou para o entregar à Convenção. Estará lá para dar confiança a Chabot e também para se tornar vosso amigo. O barão pensa que ele vos pode ser útil.

—   Fazer-me amiga desse traficante?

—   Por que não? Primeiro, não é mais americano do que vós. É um escocês cujos pais emigraram para Boston quando ele tinha 11 anos... e é também um verdadeiro herói! Sobretudo para vós, que nascestes em Boston e cujo pai era negociante de chá — disse De­vaux, que acrescentou com um sorriso:

- Nunca ouvistes falar da Tea Party, que marcou o começo da guerra da Independência?

Laura franziu as sobrancelhas com o esforço que fazia vascu­lhando a memória:

—   Parece-me que Batz mo contou quando me ajudava a entrar na pele da minha nova personagem. Não foi o assalto levado a cabo por um bando de falsos Índios contra um navio carregado de chá, depois de os negociantes de Boston terem recusado pagar o enorme imposto que os Ingleses cobravam por essa mercadoria?

—   Foi isso mesmo! Muito bem, James Swan era um desses índios. Em seguida, não cessou de combater e terminou a guerra com o posto de coronel. Depois, arruinado por especulações infe­lizes, veio para França, para ver se a erva aqui era mais verde, ins­talou-se primeiro no Havre, em Rouen e por fim em Paris, em 1788. Eis o que precisais de saber sobre ele.

—   Obrigada, mas crê, realmente, que poderei iludir esse ho­mem?

—   Certamente — disse Devaux, rindo francamente. — Ele sabe mais acerca de vós do que vós própria: conheceu o vosso pai!

—   Entretanto...

—   Vamos, ficai tranquila! Sabeis bem que Batz nunca deixa muita coisa ao acaso! Acrescento que o vosso «compatriota» tem muito desejo de vos conhecer.

—   Sendo assim, tanto melhor! Mas não tenho muita certeza do contrário...

 

Laura nunca tinha visto a casa de Charonne com aquele ar de festa. Todas as janelas de vidros brilhantes estavam abertas para o jardim cheio de flores. As tílias e os buxos exalavam aromas, es­tes misturados com os odores vindos da cozinha. A longa mesa estava posta no pavilhão redondo, cujas portas-janela deixavam ver os cristais e a prataria dispostos sobre uma toalha de damas­co de uma brancura de neve. Flores no centro de mesa, flores no salão oval que Laura conhecia tão bem e onde lhe parecia haver uma multidão.

Marie veio acolher a sua amiga à soleira, onde a abraçou antes de deslizar o seu braço sob o dela para fazer as apresentações. Sorridente e graciosa como de costume, elegante, também, num ves­tido de musselina branca quase igual ao de Laura, parecia, no en­tanto, diferente do habitual: mais nervosa, mais tensa, também mais pálida sob a ligeira maquilhagem que pusera, mas que não enganou Laura. Esta, no entanto, não teve tempo de se fazer per­guntas nem de as fazer: um grande diabo, cujos cabelos ruivos cor­tados curtos pareciam fazer prova de uma alegre independência, interpôs, subitamente, a sua longa silhueta ossuda entre as duas mulheres e o resto dos convidados:

—   Miss Adams! — clamou ele com tanto barulho como se se tratasse de uma carga de cavalaria. — Eis-vos, por fim! Não me es­quecestes, espero?

O sotaque que condimentava aquelas palavras interditava qual-quer erro. Laura sorriu e estendeu uma mão, sobre a qual ele se dobrou em dois:

—   Bom dia, coronel Swan — disse ela. — Também eu me sin­to feliz por o voltar a ver. Não sois vós inesquecível?

—   Marie pensou que era tempo de vos reunir — disse a voz indolente de Batz, vindo, por sua vez, inclinar-se sobre a mão da jovem. — E como ela reunia hoje os seus amigos...

Por mais preparada que estivesse para o rever, o coração de Laura falhou um batimento, ao mesmo tempo que os lábios quen­tes lhe afloravam os dedos. E quando Jean se endireitou, quando o olhar dos seus olhos cor de avelã encontrou o seu, não encon­trou neles qualquer traço de ironia, que era a expressão habitual, mas sim uma que ela não lhe conhecia, ávida e admirativa. Mas foi apenas por um instante. Já se afastava, deixando Marie prosseguir a apresentação dos «amigos»... que, à excepção do banqueiro Be­noist d'Angers, ela não conhecia. Os avisos de Michel Devaux não tinham sido inúteis: aquele almoço não era outra coisa senão o le­vantar do pano sobre uma peça escrita por Batz e aquelas pessoas, como ela própria, eram os actores, conscientes ou não. O que ex­plicava, sem dúvida, o rosto pálido de Marie e a inquietação que lhe ia nos olhos.

Para além de Benoist, havia três outros banqueiros: um certo Jauge e os irmãos Frey, dois austríacos atraídos a Paris pelo seu «en­tusiasmo pelas ideias novas». Para escapar ao «jugo de um tirano» imperial, tinham deixado Viena, com os seus milhões e a sua jo­vem irmã Léopoldine, para se fixarem em Paris, onde tinham mer­gulhado nas delícias do clube dos Jacobinos, dos quais se proclamavam apoiantes indefectíveis. Ao chegarem a França tinham, desde a sua passagem por Estrasburgo, renegado o seu velho nome judeu Drobuska pelo de Frey que, em inglês, significa liberdade. O mais velho tinha, até, adoptado o prenome romano de Junius, ao passo que o seu irmão permanecia Emmanuel como antes. O ex­terior deles era austero e, se bem que usassem o uniforme revolu­cionário, esse era negro, apenas animado pelo gorro vermelho que cobria os cabelos de «corte filosófico». Nos Jacobinos, mostrava-se muito respeito àqueles grandes carácteres de nobres estrangeiros decididos a tudo para viverem o seu ideal. Pelo contrário, a sua irmã, uma jovem de 16 anos, loura como o trigo e com os olhos azuis mais belos que podia haver, era uma verdadeira beldade. Quanto a Jauge, era um daqueles agentes, semibanqueiros, semi-corretores, hábeis no lançamento de negócios e em «caçar pom­bos». Laura ficou surpreendida por reconhecer nele um dos seus vi-zinhos da Rua du Mong-Blanc. Ele saudou-a com um ar alegre, de­clarando-se encantado por ter, por fim, ocasião para a abordar...

Havia também deputados: Delaunay, d'Angers, como Benoist, de quem era amigo, assim como o antigo pastor Julien de Toulou­se, também ele presente em Charonne. Ambos tinham trazido ami­gas, duas belas mulheres, uma delas era aquela dama de Beaufort, que Batz fizera cliente de Lullier e pela qual o pobre La Châtre de­finhava em Inglaterra. A beldade esquecia-o alegremente nos bra­ços do antigo pastor, com quem ela vivia uma paixão pouco de acordo com as antigas funções do deputado. Delaunay, esse, esta­va acompanhado por uma encantadora actriz, Louise Descoings, com a qual parecia entender-se às mil maravilhas. Aqueles dois homens eram casados com mulheres respeitáveis, retidas nos seus feudos eleitorais... Laura viria a saber, pela continuação, que toda aquela gente estava devotada a Batz.

O que não acontecia com os três outros convidados: o velho poeta La Harpe, pedagogo de renome e autor de tragédias por ve­zes indigestas, convidado para uma espécie de respeitabilidade a uma reunião de aspecto um pouco galante e sobretudo Chabot, convidado de honra com o colega Basire, um oriundo de Dijon, com o qual ele se entendia apenas superficialmente, julgando-o um pouco fraco nas suas convicções revolucionárias.

Excepcionalmente, Chabot fizera a toilette. Renunciando ao seu desarranjo habitual, o capuchinho despadrado usava camisa de co­larinho alto e gravata branca sob uma espécie de sobrecasaca cas­tanha. Até se penteara e, sob o gorro encarnado, ao qual ninguém o faria renunciar, os cabelos castanhos, ligeiramente grisalhos, mostravam algumas ondulações do mais gracioso efeito.

Quando se viu face a ele e encontrou aquele olhar impudente e friamente apreciador, Laura reteve um arrepio de desgosto, ao mesmo tempo que um pensamento assustador lhe atravessava o espírito: Batz não a fizera vir para seduzir aquele monstro? Mas tran­quilizou-se rapidamente: era pela loura Léopoldine Frey que Cha­bot se interessava. Após tê-la felicitado por pertencer à nação que tinha «visto nascer a Liberdade, esperança do mundo inteiro», apressou-se a juntar-se à jovem austríaca.

—   Aquele homem adora carne tenra — cochichou Batz ao seu ouvido. — Os vossos 20 anos devem parecer-lhe uma eternidade! Ela não pôde impedir-se de rir:

—   Não imaginais a que ponto me sinto aliviada. Por um ins­tante, tive medo...

—   De quê? Nós não deitamos pérolas a porcos.

—   Mas... e aquela rapariga?

—   Talvez seja menos «rapariga» do que imaginais... Ocupai-vos de Swan! É preciso que sejais amigos...

Passou-se à mesa. Chabot, sentado à direita de Marie, teve um olhar deslumbrado para os talheres, o centro de mesa de prata dourada, os cristais brilhantes, a toalha tão branca, as flores. Tudo naquela casa o encantava porque aquilo era tudo com que sempre sonhara sem nunca o conseguir alcançar. No entanto, sentia-se fei­to para uma existência brilhante e confortável. Lamentava apenas uma coisa: não tinham colocado Léopoldine perto dele, mas sim do outro lado da mesa, o que lhe permitia admirá-la, sem dúvida, mas não respirá-la ou aflorar-lhe a mão e o vestido sedoso.

Como dona de casa completa, Marie preocupou-se com ele, fa­zendo-lhe perguntas com uma graça que lhe permitiam valorizar--se, interrogando-o sobre a sua família e aptidões. Então, ele pôs-se a falar abundantemente da «sua virtuosa mãe que moía a farinha para fazer pão, a fim de poupar dinheiro e dar pão branco aos seus filhos». Filhos particularmente brilhantes, dos quais ele era a estre­la! Não era verdade que aos «14 anos» fora encarregue de três tur­mas de matemática ao mesmo tempo no seu pensionato de Rodez? Um verdadeiro milagre! Mas havia mais:

—   Saído do noviciado, para onde tive que ir para felicidade da minha santa mãe, afrontei os furores do fanatismo dos padres e dos monges ao fazer usufruir as crianças protestantes das mesmas li­ções que dava às crianças católicas. Imaginais o que eu sofri, en­tão? Ao ponto de ter sido forçado a fugir do convento...

Esta última tirada desencadeou o entusiasmo e levou uma lágrima aos belos olhos de Léopoldine. Aplaudiram-no, felicitaram o herói e Junius Frey declarou no tom pomposo de que tanto gos­tava:

—   Tu és um homem de raro mérito, cidadão Chabot! Qualquer personagem, por mais elevada que seja, não pode deixar de se sentir honrado e feliz por se poder aproximar de ti. Gostaria muito que fôssemos amigos.

—   Serei eu o honrado, cidadão Frey — respondeu Chabot, o olho sobre Léopoldine, toda corada, cujos olhos baixos permitiam que os cílios, de um comprimento encantador, fossem admirados.

Naturalmente, a assembleia fez coro e, ajudada pelo desfile de pratos refinados, regados por vinhos que Chabot jamais bebera, a atmosfera descontraiu-se, envolvendo o convidado de honra nas de­lícias um pouco debilitantes que marcam as boas e longas refeições.

Passou-se ao salão para o café e os licores. Estava ali mais fres­co graças aos estores de tela que defendiam as janelas contra os raios excessivos do Sol e todos se refastelaram com satisfação nas poltronas, canapés ou sofás, de almofadas gordas e sedosas. Cha­bot aproveitou para se aproximar daquela que mais o interessava. Chegara o momento do ataque:

—   É assim que eu compreendo a vida! — suspirou Benoist. — Uma agradável residência, bons amigos, belas mulheres, uma re­feição sublime! Que mais é preciso para a felicidade de um ho­mem?

—   Um governo que não faça de maneira que todas essas delí­cias tão naturais se tornem, em breve, inabordáveis — respondeu Julien de Toulouse, cujas riquezas não estavam de acordo com os seus gostos, nem sobretudo com os de Mlle. de Beaufort, cuja mão segurava na sua.

—   Estás a fazer alusão — disse Delaunay — à moção entregue há quatro dias na Convenção por Fabre d'Eglantine, que pede a aposição dos selos judiciais nos cofres e escritórios de todas as companhias financeiras de seguros e bancos? Estou de acordo. Dir--se-ia que Robespierre, cujo porta-voz é Fabre, quer empobrecer a França por todos os meios. Não somente não se tenta reaver a quantidade de prata que os aristocratas, assustados com a Revolu­ção, levaram para Inglaterra, ou para outros sítios, como ainda a querem tirar a restante aos bancos franceses...

A voz um pouco arrastada do coronel Swan fez-se ouvir:

—   Esqueceis a guerra! Como é que quereis reaver o dinheiro que está em Inglaterra? Pitt opor-se-á com todas as suas forças.

—   Pitt, sempre Pitt! — continuou Delaunay. — Deixemos esse espantalho de cartão e ocupemo-nos dos negócios do nosso belo país. Eu não estava na Assembleia no dia 16, no momento da mo­ção. Como é que Fabre propôs esse projecto dos selos judiciais so­bre os bancos?

—   Por minha fé — murmurou Chabot, que escutava de orelhas bem abertas — não sei nada sobre o assunto.

—   É pena — continuou Benoist d'Angers — porque é muito importante. Não seria para conseguir uma grande soma de dinheiro?

—   Dinheiro? Um homem de Robespierre? — indignou-se o ex-­capuchinho. — Estás a sonhar, cidadão! Robespierre é incorruptí­vel, todo o mundo o sabe!

— Mas Fabre, não. O nosso amigo Basire, aqui presente, sabe‑o bem, já que o conheceu quando ele vivia de expedientes, ac­tuando em teatros miseráveis, ou tentando fazer miniaturas sem ter talento.

—   É um poeta! Não foi laureado nos Jogos Florais de Toulou­se, que lhe valeram a rosa de ouro que pôde juntar ao seu nome?

—   Eu sou de Toulouse, eu — cortou Julien — e posso assegu­rar-te que ele nunca ganhou os Jogos Florais, por mais que to tenha dito. No entanto, concedo-lhe algum talento em poesia: a sua can­ção «Chove, pastora...» é um sucesso. Mas há muito que esse talento não lhe dá nada e está sempre sem dinheiro. Entretanto, e para vol­tar à moção, não vejo como poderia ele conseguir alguma coisa...

—   É simples! — troçou Benoist. — Amanhã, os selos vão ser apostos, atando-nos os pés e as mãos, mas dentro de dois ou três dias Fabre virá ver-nos, a uns e a outros e propor-nos-á, por meio de uma bela soma, levantar os selos. O que nós aceitaremos. Quando terminar a sua tournée, terá ganho uma fortuna!

—   Estamos à espera! — interveio Junius Frey — e já estamos prontos para pagar, podendo assim continuar os nossos negócios, mas tenho repugnância em untar as patas a esse palhaço. Aquele que, suficientemente poderoso para ser ouvido, o ultrapassar, far‑me-á muito feliz... mesmo que fazendo algum negócio.

—   Seria bem-feito para Fabre! — suspirou La Harpe que, tam­bém ele poeta, detestava o colega — mas seria desonesto.

—   Acho que não! — disse Delaunay encolhendo os ombros. Seria política, como a compreendem os Ingleses, dos quais faláva­mos há instantes. Os deputados deles ao Parlamento têm todo o direito de fazer fortuna servindo-se dos seus conhecimentos. Entre nós, entretemo-nos com grandes palavras, belas frases, mas por trás de tudo isso há quem faça o seu pé-de-meia, enquanto homens de valor excepcional... como o nosso amigo Chabot aqui pre­sente — que a sua modéstia me perdoe! — estão praticamente na miséria sem poderem tomar o lugar devido de representantes do povo! No que me diz respeito, ficaria encantado se alguém tirasse o tapete a esse Fabre. Que pensas, Batz? Tu, o homem das finan­ças por excelência, não dizes nada.

—   Porque não tenho nada a dizer. Escutar-vos é suficiente: apenas exprimis a verdade e eu estou de acordo convosco... Mas não poderíamos escolher outro tema de conversação? Aborrecemos as nossas belas companheiras...

Anne-Marie de Beaufort desatou a rir e cessou, por um mo-mento, de agitar o seu leque de marfim gravado a ouro, cujo pai­nel representava uma cena campestre.

—   De maneira nenhuma, meu caro amigo, e creio falar em nome de todas. Seríamos uns espíritos bem pobres se os negócios do nos­so país... e os dos homens que amamos não nos interessassem. Até, tenho a certeza, a mais jovem de nós. Não é verdade, Léopoldine?

—   Tens toda a razão, cidadã! Filha e irmã de banqueiros, vivi sempre no meio dos negócios e confesso que me interesso pelo assunto.

—   No entanto, na tua idade, devias sonhar com o amor?

—   E sonho... espero, de todo o meu coração, encontrar na­quele que... hei-de amar um ser sensível e bom, preocupado com a minha felicidade, tanto como com a sua. Um homem que tenha a grandeza de alma dos meus irmãos e também o seu talento, para dar à vida as cores a que estou habituada...

—   Não tens, portanto, gosto pelo bucolismo tão na moda ain­da há pouco? Amor e uma cabana não te chegariam?

—   Por quê uma cabana, quando se pode ter uma mansão ou uma residência particular, como a nossa? Seria estúpido — acres­centou a bela rapariga, lançando um olhar tímido a Chabot, sentado perto dela.

— E sobretudo — disse este com um ardor que a custo conse­guia conter — seria extremamente indigno de ti! Tu mereces os mais belos palácios, cidadã!

—   Não peço tanto... Acima de tudo, quero ser amada.

Mais um segundo e Chabot lançar-se-ia numa verdadeira de­claração. A um sinal de Batz, Marie quebrou o encanto e propôs um passeio no jardim. O calor do dia começava a diminuir e as grandes tílias projectavam uma sombra extremamente agradável. A jovem abriu o caminho na companhia de La Harpe, que tinha ten­dência para amuar um pouco, despeitado por ver Chabot açam­barcar a atenção da companhia.

—   Vinde recitar-me os vossos últimos versos — disse-lhe ela metendo o braço no dele. — Todas estas histórias de dinheiro me aborrecem e preciso de ouvir coisas belas...

O ancião abriu-se como uma flor à aurora. Se bem que tivesse apreciado a carne e os vinhos, achara a reunião muito aborrecida. Falar de política quando havia mulheres tão belas e a hora era tão propícia ao prazer dos sentidos! A companhia de Marie fê-lo reen­contrar o bom humor e, durante um longo momento lançou-se numa espécie de retrospectiva das suas obras. Mas ela escutava-o sem nada dizer e, finalmente, ele teve a impressão de que ela es­tava longe e queixou-se, retomando, por instinto, o tratamento por vós dos tempos corteses:

—   Não vos interesso, não é verdade?

—   Sim... mas pensava... Oh, perdoai-me, mas pensava no que tendes vivido até hoje. É verdade que estáveis naquele famoso jan­tar, no qual Cazotte fez umas predições muito estranhas?

O ancião olhou-a com uma espécie de terror e depois, baixan­do a voz para não ser ouvido senão por ela:

—  Não gosto muito de ouvir falar disso, mas é verdade que es­tava lá. Foi em 1788, em casa do príncipe de Beauvau e discutia-se animadamente Voltaire, os enciclopedistas, La Fayette também e aquele ar de liberdade que a guerra da Independência americana soprava sobre a França. Estavam lá académicos como o próprio príncipe, grandes damas e também Jacques Cazotte, que conhecera um grande sucesso com o seu Diable amoureux. Tinha-se bebido muito e todos sonhavam como uma revolução como a dos Ameri­canos. Foi então que Cazotte, que não dissera grande coisa até en­tão, tomou a palavra para anunciar que ela estava a caminho, essa revolução, mas que não seria, talvez, como todos a esperavam.

—   Ele predisse tudo o que tem acontecido desde a queda da realeza?

— E mais ainda. Quanto a Condorcet, disse que ele morreria no chão da prisão após ter bebido, para escapar ao carrasco, o veneno que trazia sempre consigo em todas as circunstâncias. Quanto a Chamfort, disse que, pelas mesmas razões, cortaria os pulsos com 22 golpes de navalha de barba e que Bailly subiria ao cadafalso como muitos amigos políticos seus. E como a duquesa de Gramont se ria, dizendo que pelo menos as mulheres estavam excluídas daqueles sombrios vaticínios, ele anunciou-lhe que também ela subiria ao ca­dafalso na carroça do carrasco, os cabelos cortados e as mãos atadas atrás das costas, com muitas outras grandes damas... e até maiores do que ela. Ela empalideceu, mas recompôs-se rapidamente afir­mando: «Não sei que crime poderei ter cometido...» Ele respondeu-lhe que ela estaria tão inocente como as outras vítimas. «Ides ver, exclamou ela, que ele até me vai recusar o meu confessor!» Cazotte, nesse momento, declarou: «O último a subir para o cadafalso com o seu confessor será o Rei de França!» A duquesa fugiu aos gritos...

—   É assustador — murmurou Marie. — E vós, senhor La Har­pe, predisseram-vos a mesma coisa?

— Não, mas a mim, o ateu, o velho libertino, Cazotte anunciou que morreria cristão.

—   Não ouso perguntar-vos se acertou?

Ele sorriu para a jovem gentilmente:

—   Creio bem que me é impossível responder-vos. Acrescento que Cazotte predisse a sua própria morte na guilhotina. — Ele disse que muitos morreriam, não é verdade?

—   Sim... todos aqueles que pretendessem permanecer fiéis às suas convicções, à sua fé... ou simplesmente à sua razão. Uma razão que não tem muito a ver com aquela, de papelão, que está a ser ins­talada nas igrejas. Mas, assustei-vos e peço-vos que me desculpeis.

—   Não. Fui eu que vos interroguei, porque receio tudo isso há muito tempo. Ainda mais uma pergunta: alguém sabe onde está Cazotte?

—   Na prisão da Abadia...

—   Voltemos para dentro, sim?

Voltaram para a casa, para onde os outros convidados também regressavam. O dia terminava. Chegara a hora da partida e despe­diram-se em volta das viaturas na glória de um magnífico pôr do Sol, prometendo voltarem a encontrar-se em breve. Batz, que se mantivera discreto durante a maior parte do dia, notou, com satis­fação, que Chabot aceitava com prontidão partir em companhia de Léopoldine e os seus irmãos, em vez de se juntar a Basire na viatura de Benoist. Apenas este, que bebera demais, partiu com o ban­queiro angevino. Delaunay e o seu amigo encarregaram-se de La Harpe e de Jauge, também ele, abusara do vinho tinto. Julien e Mme. de Beaufort já tinham partido...

Apenas um se mostrou decepcionado: James Swan esperara poder conduzir a casa a sua bela «compatriota». Saudou-a com um desgosto de tal modo evidente que provocou um sorriso a Batz:

—   Creio — disse-lhe ele como consolação — que as ocasiões para a rever não vos faltarão. Velarei por isso...

A Laura disse:

—   Swan é um homem precioso, um verdadeiro amigo e espe­ro sinceramente que as vossas relações sejam boas.

A jovem não o contradisse. Era verdade que era atraente, aque­le alegre folgazão, aquela força da natureza habitada por um ver­dadeiro génio do comércio. Inspirava-lhe simpatia porque a jovem descobrira sob o exterior expansivo um homem fino, sabendo es­cutar e, sem dúvida também, calar-se. Assim, foi com um tom na­tural que ela o convidou a visitá-la na Rua du Mont-Blanc quando, dentro de alguns dias, para lá voltaria. Jaouen não teria qualquer razão para acolher mal aquele filho da Liberdade.

 

Logo que Biret-Tissot fechou o portão sobre a última viatura, Batz, sem falso pudor, tomou Marie nos braços para lhe dar um beijo entusiasta.

—   Estivestes maravilhosa, meu amor! Nunca vos agradecerei o suficiente por este sucesso. Todos os nossos convidados partiram encantados. É verdade que vos esforçastes. Obrigado...

—   Se vós estais satisfeito, então eu estou feliz — murmurou a jovem com a sua doçura habitual.

Laura, que a observara durante uma boa parte do dia, estava persuadida de que a jovem se sentia, pelo contrário, bem pouco feliz. E, pela primeira vez, Batz não parecia reparar nisso. Estava, por completo, entregue à alegria de ver o seu plano tomar o ca­minho do sucesso.

—   É verdade, trabalhastes bem: Chabot partiu com os Frey; pa­rece que foi apanhado pelo encanto de Léopoldine... — aprovou Devaux.

—   E quando ele conhecer a residência deles da Rua d'Anjou, esse encanto vai continuar... Sobretudo se Junius, como é sua in­tenção, lhe propuser um apartamento na casa!

—   Para lá ficar até quando?

—   Até ao casamento. Nós decidimos, os Frey e eu, que Chabot casaria com Léopoldine, o que nos deixará as mãos e os pés livres! Marie deu um grito de protesto:

—   Quereis casar aquela criança com aquele bruto e os irmãos dela estão de acordo?

Batz tomou o braço da jovem para a levar para dentro de casa.

—   Já ouvi isso da parte de outra pessoa — disse ele com um sorriso na direcção de Laura. — Mas podeis apaziguar os vossos corações compadecidos, minhas senhoras: a jovem Léopoldine não é irmã deles, é uma bastarda do imperador da Áustria, educada na galanteria e já não ignora grande coisa das artes do amor. Quanto aos Frey, já sabeis quem eles são: banqueiros judeus vienenses pin­tados com as cores da Revolução, com o fito de aqui fazerem dinheiro...

—   Como é que conhecestes essa gente, barão? — perguntou Laura.

—   Através de um amigo, o conde de Proly, um húngaro que conheci no convento das damas de Sainte-Amaranthe. Um homem encantador, bastardo do príncipe de Kaunitz, o famoso ministro e amante da imperatriz Maria Teresa. Ora, Proly, que está em Paris, mora em casa deles. O resto virá naturalmente...

—   E pensais introduzir Chabot nesse meio?

— A introdução já está feita. Agora, é preciso fazê-lo morder o isco. Junius Frey fará isso muito bem.

—   O jogo não será perigoso? O homem pode reagir, denunciar...

—   É possível, mas o jogo, como vós dizeis, minha cara Laura, vale a pena. Chabot é o verme que eu introduzo no fruto podre da Convenção e das Comissões. Fará dentro dele, espero, estragos su­ficientes para os destruir. Vamos, meus amigos, bebamos uma últi­ma taça de champanhe a este belo dia e vamo-nos deitar. Merecemos bem!

O repouso, no entanto, iria ser adiado, Marie e Laura subiam os primeiros degraus da escadaria para se irem deitar quando, no portão, a campainha soou com o toque iniciado por Batz para os fre­quentadores da casa: um toque isolado, dois toques seguidos, um toque isolado... Marie estremeceu como se temesse alguma coisa:

—   Quem poderá ser a esta hora?

— Só pode ser um amigo. Ide repousar, meu amor, irei ter con­vosco mais tarde.

As duas mulheres subiram, mas lentamente, para poderem ver quem entrava. Eram dois: Michonis e o cavaleiro de Rougeville, que começaram por pedir desculpa: já tinham chegado há mais tempo, mas tinham esperado pela partida das viaturas, para se assegurarem de que mais ninguém sairia:

—   Michonis tem uma notícia importante — disse Rougeville. — Creio que fizemos bem trazer-ta. No Verão, as pessoas que vão até ao campo não chamam a atenção.

Era um homem pequeno de uns 36 anos, de rosto voluntario­so, marcado por vestígios de varíola, com espessos cabelos louros e olhos vivos. Batz conhecia-o há muito e gostava muito dele de-vido à sua bravura louca e generosidade. Sabia-o loucamente apai­xonado por Maria Antonieta, a despeito das aventuras femininas que o atraíam para o mundo do teatro. Conduziu-os para o seu ga­binete de trabalho após ter ordenado que lhes preparassem dois quartos, já que lhes seria impossível regressar a Paris, uma refeição e, bem entendido, vinho fresco.

—   Então, essa novidade? — perguntou ele enquanto os seus convidados de última hora se restauravam com visível prazer.

—   Estive, ao meio-dia, em casa de Procope — respondeu Mi­chonis limpando a boca. — Falei, durante um momento, com Dan­ton e Camille Desmoulins. Disseram-me que dentro de alguns dias a Rainha será transferida para a Conciergerie.

—   Era de prever — disse Batz, lembrando-se do que motivara a mudança de lady Atkyns para a Rua de Lille.

—   Nessa altura, não passava de um rumor como muitos. Des­ta vez está decidido e eu fui prevenido na qualidade de director das prisões.

—   Sabes o que isto quer dizer? — interveio Rougeville. — Vão julgá-la, logo a seguir...

Não teve coragem de articular as palavras que lhe vinham à boca, mas a sua súbita palidez falava por ele. Batz compreendeu o que ele sofria.

—   Ainda não foi feito — disse ele, querendo tranquilizar-se. — E pode ser que seja mais fácil tirá-la da Conciergerie do que do Templo. Primeiro, porque não teremos de lutar contra a sua recu­sa de partir só. Resta saber quem vai guardá-la e se será possível comprar essa gente.

—   Fornecer-te-ei os pormenores todos que quiseres — disse o antigo vendedor de limonadas. — Mas será preciso estar seguro da colaboração da Rainha. Se ela estiver prevenida, se estiver de acor­do, será mais fácil. Mas não terá confiança em ninguém, na Con­ciergerie...

—   Conclusão, será preciso arranjar alguém de quem ela não duvide. Tu, Rougeville, por exemplo. Ela viu-te em acção duas ve­zes: no dia 20 de Junho, quando tu lhe serviste de escudo e no dia 10 de Agosto. Ela reconhecer-te-á.

De pálido, o cavaleiro passou a púrpura:

— Vê-la... falar-lhe? Por essa felicidade estou pronto a morrer.

—   Mais tarde, se não te importas! Tu vais poder entrar todos os dias na prisão, Michonis. Será possível ires acompanhado por Rou­geville, fazendo-o passar por... teu adjunto, por exemplo?

—   É perigoso, mas nisto tudo é perigoso. Evidentemente, será preciso que os guardas se habituem a ele antes de o introduzir no calabouço e isso vai exigir um pouco de paciência.

—   Não muita — cortou Rougeville. — Se eles a deixarem lá apenas alguns dias antes de a julgarem...

—   Seremos avisados. De qualquer maneira, Michonis será avi­sado. E para que tenhais liberdade de acção, ficai a saber que dou um milhão a quem salvar a Rainha!

—   Um milhão? — murmurou Michonis.

—   Sim. Será teu no dia em que ela sair de França. Com vós os dois, bem entendido.

Os olhos do director das prisões iluminaram-se. Batz adivinhou que ele evocava a velhice dourada, que pagaria o perigo corrido. De facto, o antigo vendedor de limonadas não estava muito longe de ver no seu amigo uma espécie de deus da Fortuna. Teve um grande sorriso:

—   Magnífico! E tu tens um plano?

—   Talvez! Penso nele desde que se falou dessa transferência... da qual tu serás um elemento importante?

—   Sim. Serei daqueles que irão buscá-la ao Templo.

—   Então, por que não imaginar a operação inversamente? Por que não imaginar que uma bela noite, munido de uma ordem ar­ranjada por mim, tu irás buscar a prisioneira para a levar ao Tem­plo com o pretexto, justamente, de que há uma conspiração para a raptar? Entretanto, Rougeville terá estado com a Rainha e ter-lhe-á entregue uma soma, em ouro, destinada a comprar quem lhe pa­recer susceptível de ser comprado.

—   Sim, mas como adverti-la quando me apresentarem a ela? Não poderei falar-lhe e entregar-lhe um papel será difícil, se ela es-tiver guardada à vista.

Batz não respondeu imediatamente. Reflectiu enquanto anda­va, como era seu hábito. E de repente parou diante de um vaso de flores pousado sobre uma cómoda. Eram grandes cravos cor-de--rosa. Pegou num e examinou, por instantes, a espessa vagem verde de onde saíam as pétalas denteadas. Em seguida, estendeu-o ao cavaleiro:

—   Tu és jovem, podes ser galante e estamos no Verão. Usarás uma flor como esta na betoneira: um papel fino irá enrolado no caule. A Rainha há muito que não cheira flores e ninguém verá, com certeza, inconveniente, em que tu lha dês, sobretudo na pre­sença do orgulhoso revolucionário Michonis. Que dizes?

Como resposta, Rougeville atirou-se ao pescoço de Batz e abra­çou-o.

 

 

                                                          CONTINUA

 

 

             DOIS CRAVOS COR-DE-ROSA

Laura pegou numa das asas do grande tabuleiro de ameixas que acabava de colher com Marie para o levar à cozinha, onde o jovem Rollet procedia, há dois dias, à confecção das compotas. A colheita fora boa: o Verão quente, mas não demasiado seco, dera magníficos resultados e o pomar da actriz regurgitava de frutos tão inchados de açúcar que a pele, por vezes, estalava. Marie pegou numa ameixa e trincou-a.

 

 

 

 

—   Estão verdadeiramente deliciosas, este ano — disse ela. — Há tantas que não vamos conseguir comê-las todas...

—   Nós, na Bretanha, metemos o excedente numa pipa para fa­zer aguardente — disse Laura.

—   Nós também, claro, mas nos outros anos dávamos ameixas ao bairro todo: as crianças vinham apanhá-las. Também as mandá­vamos para a casa de saúde do Dr. Belhomme. Os que têm vinhas davam um pouco de vinho, mas agora cada um vive fechado para si. Toda a gente tem medo de toda a gente. É muito triste!

—   É lamentável. É por isso que estais tão melancólica?

—   Oh, sem dúvida. Paris tornou-se tão perigosa que hesitamos aventurar-nos para as compras mais simples... e até esta casa já não é o que era. É verdade que se conspirava nela, mas...

 

                                                                                Juliette Benzoni

 

 

                      

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