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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM / Irving Wallace
O HOMEM / Irving Wallace

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ali, de pé, no escritório frio e desconfortável, àquela hora impreci­sa entre a noite e o dia, Edna Foster sentia-se extremamente apreensi­va e nervosa. Perguntou a si própria porquê e, instantaneamente, a memória levou-a até à fonte das suas preocupações.

Edna lembrava-se de que, desde a mais tenra infância, passada na moderna quinta de Milwaukee, os pais, de origem alemã, a tinham severamente educado segundo os princípios da constância, da esta­bilidade e da pontualidade. Sempre que ela exprimira qualquer so­nho juvenil de vaga aventura romântica, o pai, de bigodes e ar sole­ne, voraz leitor de almanaques e de livros de citações úteis, repetia-lhe literalmente as palavras de Alguém (raramente nomeado para que - desconfiava Edna - a elegante homília parecesse ser de sua pró­pria autoria). «Gottin Himmel- diria ele, olhando para o tecto e dirigin-do-se ao seu Deus luterano -, ela quer aventuras, aventuras român­ticas!» Depois, fitando Edna ameaçadoramente, recitaria a sapiência de Alguém: «As aventuras são um sinal de ineficácia. Os bons explora­dores nunca as têm.»

O pai - adivinhara ela mais tarde - tinha o inteiro apoio do seu Deus, porque se antecipava ao demónio luterano, profetizava-lhe as tentações e contra elas prévia e cuidadosamente se armava. O demó­nio de que o seu pai falava seduzia os fracos e os pecadores, não com os pecados banais de imoralidade e iniquidade, mas com os pecados que caracterizavam o século XX - a irregularidade e a confu­são. Como consequência deste ponto de vista paterno, os anos de formação de Edna Foster tinham sido regulados por meio de discipli­nas tangíveis: o relógio à cabeceira da cama, a relação por escrito das receitas e despesas na gaveta da secretária, o horário pregado na parede da cozinha.

Estas rígidas lições haviam sido de grande utilidade para Edna enquanto frequentava o colégio comercial de Chicago, quando tive­ra os primeiros empregos como secretária em Detroit e Nova Iorque, e especialmente quando viera trabalhar para O. C. - sim, mesmo ain­da como senador ele já era O. C, «O Chefe» -, no antigo edifício do Senado em Washington. Numa carta anormalmente comprida e qua­se indecifrável, o pai felicitara-a pelo prestigioso emprego no gover­no, como sendo o triunfo inevitável da educação que recebera.

Fora só depois da nomeação de O. C, da exigente e excitante campanha e da noite estonteante da eleição, só depois de tudo isto, quando seguira O. C. para a Casa Branca, munida do seu inseparável bloco de estenógrafa e de uma caixa especial de Kleenex, fora só então que descobrira que as normas paternas, segundo as quais ela sempre vivera, lhe estavam a causar sérias dificuldades. Ela sabia-se indispensável a O. C. devido à sua eficiência. Mas o que este não sabia era que a eficiência da sua secretária dependia do facto de ela ter a oportunidade de ser metódica. Desde o princípio, porém, o novo emprego parecia ter sido preparado pelo antigo demónio luterano, e nada conseguia expulsá-lo. Parecia frequentemente a Edna que o seu escritório estava cheio de utensílios possessos que troçavam da regularidade: os relógios tinham 30 horas, os calendários eram for­mados por meses de trinta e dois dias e os interruptores da luz não tinha qualquer indicação de apagar.

 

 

 

 

Como secretária particular do Presidente dos Estados Unidos da América, Edna Foster sentia orgulho pela sua posição - só recen­temente começara a encará-la como posição e não como emprego -e rira, deliciada, e acreditara em George Murdock quando este, es-tendendo-lhe um segundo martini no bar do duque Zeibert, lhe dis­sera: «Edna, se a esposa do presidente é a primeira dama da Nação, então você é a primeira secretária da Nação.» Uma das coisas que lhe agradavam em Murdock era precisamente a maneira inteligente como ele exprimia as coisas mais banais, o que era certamente devi­do ao seu treino como repórter. Mas o emprego - não, posição, posi­ção como George lhe repetia constantemente - também tinha os seus espinhos, costumava ela dizer-lhe, e o pior de todos, o mais desconcertante para alguém com um passado como o dela, não lho podia Edna confessar sem correr o risco de ele a achar inflexível e enfadonha e, consequentemente, sem qualquer encanto.

O pior de todos os espinhos, aquele de que só a si própria ela podia falar, era a emergência.

Já assim era na quinta de Wisconsin. O som dos passos do ra­paz da União Ocidental subindo pelo carreiro, a voz fraca e longín­qua do telegrafista a longa distância, tinham sempre significado emer­gência, e a emergência era a inimiga da ordem, da paz e da segurança. Esta inimiga, e só esta, perturba sempre a tranquilidade do pai, redu-zira-lhe a autoridade, e a sua ameaça assustava-a já então e ainda continuava a assustá-la. E agora, de entre todas as pessoas era prin­cipalmente ela, Edna, quem tinha o emprego - posição - no qual a emergência era uma visitante regularmente esperada todas as sema­nas, embora para ela constituísse sempre uma visitante inesperada, que a deixava tão desnorteada e esmorecida como se tivesse tido uma forte comoção.

Na noite anterior, já depois da meia-noite, havia ela recebido o tele­fonema do governador Wayne Talley, o ajudante mais íntimo do presi­dente, e a palavra que ele empregara fora precisamente emergência.

«Olá, Edna, acordei-a?»

«Não, não, estava apenas a ler.» Então reparou nas horas. «Acon­teceu alguma coisa?»

«Nada de especial. É o costume. Oiça, Edna, estará você já sufi­cientemente boa para recomeçar amanhã? Como vai essa constipa­ção?»

Ela tossira automaticamente. «Suponho que desta escapo. Sim, certamente que poderei recomeçar amanhã.»

«Gostaria que viesse bastante cedo. Ordens de O. C.» «Ordens são ordens», tinha ela respondido.

«Poderá cá estar por volta das seis horas da manhã? Eu sei que é duro, mas o caso é complicado. Os russos estão-nos a causar aborre­cimentos. O. O avistar-se-á de manhã cedo com Kasatkin. Quando se separarem será aproximadamente meio-dia em Francoforte, o que faz com que sejam aqui sete horas da manhã. Terá então uma conferência pelo telefone, da Alemanha para cá. Vamos atendê-lo no Gabinete Minis­terial, portanto pode contar com sete ou oito pessoas. E será melhor você estar presente no caso de ele ter algo de particular para ditar. Está bem?»

«Lá estarei, governador Talley.»

«Desculpe pregar-lhe uma partida destas, Edna, mas é um caso de emergência.»

Ei-la de novo, a inimiga, a emergência, erguendo-se contra uma Edna desconcertada.

Quando às cinco e cinco saía do seu apartamento de estilo vitoriano na Rua Southeast E, mesmo ao pé da Avenida de Nova Jérsia, já o motorista a esperava com o carro. Às seis e dez atraves­sava o Gabinete de Leitura da Imprensa, na ala ocidental da Casa Branca, e dirigia-se rapidamente para o seu escritório entre o Gabi­nete Ministerial e o Gabinete do Presidente.

Depois de ter acendido as luzes e pendurado o casaco, telefo­nara para o andar de baixo, a fim de que lhe trouxessem um café muito quente e uma torrada. Então, tremendo de frio enquanto espe­rava, ressentindo-se da hora matutina e da perda de duas horas de sono que tão necessárias lhe eram, ressentindo-se ainda mais da desconhecida emergência que viera perturbar as normas do seu tra­balho e a paz do seu espírito, começou subitamente a espirrar. Pro­curou apressadamente o pacote de Kleenex na bolsa de coiro, tirou um lenço, a tempo de tossir para ele, e depois passou-o pelo nariz vermelho e dolorido.

Tentando ignorar a dor que sentia entre as omoplatas, decidida a enfrentar corajosamente o dia que despontava, encaminhou-se a passo irregular na direcção do pequeno espelho pendurado na pare­de mais próxima do gabinete, que ostentava ainda o seu feio varão de segurança preso ao centro. Pestanejando com dificuldade, olhou para o espelho como para um inimigo, observando o carrapito casta­nho e esfiapado, a pequena ruga na testa, os olhos escuros e incha­dos da constipação, os papos por debaixo deles (sacos onde se ha­viam armazenado todas as horas extras que fizera), o nariz comprido, direito e brilhante, e por fim os lábios trémulos.

Virando costas ao espelho, encaminhou-se para o pente e para a caixa de pó-de-arroz que estavam sobre a secretária. Sentada dian­te da máquina de escrever, segurando o espelho da caixa de pó-de--arroz, esforçou-se desesperadamente por conseguir um aspecto de elegância eficiente. Sabia que tinha uma cara vulgar, mas, quando estava arranjada e descansada, era pelo menos sofrível. George Murdock afirmava que era mais do que isso, e ela queria acreditar nele, mas, quando tantas pessoas nos disseram já que a nossa cara tem carácter, sabemos pela certa que ela não é o que se pode cha­mar bonita. Era uma daquelas caras que não aguentavam tensões, insónias ou uma vulgar constipação.

Procurou então algo ou alguém sobre quem deitar as culpas do desastre dessa manhã. Não podia censurar George. Como era seu dever, sendo uma noite de semana e estando ela a fungar constante­mente, conduzira-a a casa cedo, depois do jantar. Também não se podia censurar a si própria por estar ainda levantada quando Talley telefonara, depois da meia-noite. Tentara ler, mas na verdade estivera pensando no milagre dos seus oito meses com George e especulan­do acerca dos meses que haviam de vir. Afinal, isso era extremamen­te importante para ela: o pensar e sonhar com George. Pela primeira vez nos trinta anos da sua vida, ela tinha a oportunidade de condes­cender consigo própria desse modo, seriamente, entregando-se a secretas esperanças para o futuro.

Durante seis anos O. C. e o seu lugar junto dele tinham sido suficientes para encher por completo o seu espírito. Agora, porém, não havia apenas o presidente mas mais outro, eram agora dois com igual importância na sua vida - quanto agradaria a George saber da sua augusta posição! -, e isto constituía um prazer em que valia a pena gastar o pouco tempo que lhe restava para pensar. Também não podia deitar culpas da sua cara desfeita dessa manhã sobre O. C. pelo facto de ele a obrigar a estar ali às seis horas da madru­gada. «Expulsa tal pensamento - pensou ela -; proíbe-o, pois é anti-constitucional. Não, O. C. não, ele estava inocente, um homem delica­do, maravilhosamente grande e que se encontrava agora tão longe dali, discutindo e lutando com os chefes comunistas acerca de Berlim, da África e dos planetas.»

Então descobriu o culpado, sentindo-se ao mesmo tempo enver­gonhada e desgostosa por ser alguém que ainda estava quente no túmulo. A sua cara chorosa, cansada e com rugas, datava do funeral do vice-presidente, havia dez dias. Apesar de ter chovido durante todo o funeral, todos tinham permanecido no seu lugar, os grandes, os po­derosos e até ela própria, encharcados até aos ossos, fixando o caixão molhado de Richard Porter, escutando a súplica pronunciada em voz alta pelo pastor: «A Deus Todo-Poderoso encomendamos a alma do nosso irmão que de entre nós partiu e entregamos o seu corpo à terra; a terra volta à terra, as cinzas às cinzas e o pó ao pó.» Contudo, ela tinha a certeza de que nem todos haviam estado a ouvir o que ele dissera, pois a maioria parecia estar voltada para dentro de si pró­pria, preocupada consigo mesma, devido ao choque da morte ful­minante do vice-presidente; parecia estar a tomar mentalmente a reso­lução de beber menos, de fumar menos, de comer menos, de trabalhar menos e de se fazer examinar mais vezes pelo médico. Até mesmo o presidente, no limiar da meia idade e forte como era, sempre pronto para o trabalho e um incansável robot no campo de golfe, fora ao Hospital de Walter Reed dois dias após o funeral, ou seja, no dia anterior à sua partida para Francoforte do Meno, para um exame físico completo.

O carácter de irrealidade do funeral episcopal estava ainda gra­vado no espírito de Edna. Ela sentira-se nessa altura tão isolada da cerimónia como agora se sentia isolada de tudo e de todos. A morte do vice-presidente não a afectara profundamente e, até onde ela po­dia observar, o mesmo sucedera com os membros que constituíam a família oficial, aos quais chocara apenas a sua rapidez, o ter-lhes mostrado a ameaça constante e inevitável que pesa sobre todos os mortais. A razão desta atitude - concluiu ela - fora a relativa falta de importância de Porter. O seu desaparecimento não deixara qualquer lacuna, não tornara a Nação mais fraca. Ele fora um homem bom e fanfarrão, um pouco semelhante a um comerciante afável, cheio de clichés, de política, de frascos de bombons e de anedotas, com que os caricaturistas tanto se regojizavam. Fora um político profissional e um candidato natural à vice-presidência, trazido para a campanha com o propósito de atrair o incerto Far West. Tinha conseguido tal objectivo e, morto, O. C. era o seu legado. Devido a Porter, O. C. era chefe do Executivo por eleição total do povo e não de uma maioria fechada. O pobre Richard Porter desempenhara o seu papel, servira o Partido e o eleitorado, e a vida prosseguira inalterável sem ele. Era a sétima vez na História que o governo ficaria sem vice-presidente e tal facto já não era de estranhar. O. C. era o único que contava, tanto para Edna como para o país.

Fechando a caixa de pó-de-arroz, Edna absolveu completamente o último vice-presidente no que dizia respeito à sua constipação e cara desfeita, e agora, de rosto composto e com o espírito mais desanu­viado, chegou-lhe ao nariz o cheiro do café que estava na secretária por detrás dela. Alguém da messe da Marinha devia ter entrado e saí­do silenciosamente, mas ela estivera tão profundamente mergulhada nos seus pensamentos que não dera por nada. Provou o café, quei-mou-se, soprou para o arrefecer e, finalmente, conseguiu bebê-lo todo, enquanto ia mastigando a torrada partida aos bocadinhos.

Por fim, sentindo-se melhor, perdoando ao dia o ter sido obriga­da a levantar-se tão cedo, perdoando tudo a todos, levantou-se da cadeira. No seu relógio de pulso, que era de platina e fora uma gene­rosa oferta da esposa do presidente, passavam agora vinte e seis minutos das seis horas. «Precisamente neste momento - pensou Edna -O. C. e os que o acompanhavam deviam estar a sair da Kaisersaal, a magnífica casa de jantar dos imperadores do Sacro Império Romano no palácio de Roemer, agora funcionando como Câmara Municipal de Francoforte». A imprensa europeia - e recentemente também os jornais americanos - habituara-se a chamar ao encontro do Presi­dente dos Estados Unidos com o Presidente do Conselho da Rússia Soviética a Conferência de Roemer, lembrando aos seus leitores que a Câmara Municipal de Francoforte fora durante a Idade Média o local em que os mercadores de todos os países se costumavam juntar para fazer os seus negócios.

«Bem - pensou de novo Edna -, O. C. já fez nesta manhã o seu negócio. Agora, enquanto se dirige para o Palácio Antigo de Mogúncia, o seu quartel-general em Francoforte, provavelmente vai reflectindo nos vários problemas que deverá discutir esta tarde (pelas horas de lá) ou esta manhã (pelas horas de cá) com os selectos membros do Gabinete e os chefes do Congresso.» Edna já tinha visto fotografias do quarto do presidente, que era em estilo gótico flamejante e se encontrava no rés-do-chão do Palácio Antigo - o Governo de Bona sugerira que o presidente usasse o Palácio Antigo como residência, em vez do Consulado dos Estados Unidos, do outro lado do rio Meno, pelo facto de aquele ser mais espaçoso e mais pitoresco e estar mais perto do Roemer -, e não ver esse palácio do século XIV era o que ela mais lamentava, visto não ter ido nessa viagem. Normalmente, Edna acompanhava o presidente nas suas viagens. Já fizera quatro com ele ao estrangeiro - terra de maravilha para uma camponesa de Wisconsin como ela -, mas perdera esta, além de outra ainda, por causa daquela sua maldita constipação. Francoforte era uma cidade que Edna não conhecia, e apesar de Tim Flannery, o secretário de Imprensa do presidente, lhe ter assegurado que não perdera nada em não ter ido, que a Francoforte do pós-guerra era uma metrópole industrial, monótona e do tipo das cidades suíças, nada possuindo de excitante senão os edifícios das I. G. Farben e da Rádio Estadual de Hesse, ambos monstruosidades modernas, ela sabia que isso não correspondia inteiramente à verdade. Sabia que os bombardeiros dos Aliados, que tinham arrasado a cidade antiga medieval em 1944, por um milagre inexplicável tinham deixado quase intactas duas maravi­lhas arquitectónicas, poeirentas e meio desmanteladas, do século xiv - a Catedral de Francoforte e o Palácio Antigo de Mogúncia, se­nhor de três histórias e actual residência do grupo presidencial. Edna tinha a consciência de que viajava do mesmo modo que trabalhava, com eficiência, e não se envergonhava de coleccionar palácios, cas­telos e museus, com que um dia educaria os filhos. A possibilidade dos filhos, para alguém que não era casada e para quem se aproxi­mava a altura em que poderia ser chamada solteirona, trouxe Edna novamente para a realidade e fez com que o seu pensamento mais uma vez se voltasse para George Murdock. Ela tinha pena de ter perdido o Palácio Antigo de Mogúncia para a sua colecção, mas con-solava-a a ideia de que não fora obrigada a estar separada de George durante uma semana inteira.

De repente sobressaltou-se ao reparar que tinha estado a sonhar acordada, de pé em frente da secretária, durante cinco preciosos minutos, e que entretanto, a três mil milhas de distância, em Francoforte, o presidente se aproximava do telefone do Palácio Antigo e que ela nem sequer ainda tinha feito os poucos preparativos necessários para o seu telefonema na sala do Gabinete de Ministros. Apressadamente procurou em cima da secretária a lista daqueles que deviam estar presentes durante a conferência telefónica, e não a encontrando supôs que Wayne Talley, segundo um hábito antigo, a deixara na secretária do próprio presidente.

Correndo agora, Edna abriu a porta mais próxima à sua esquer­da e atravessou a sala atapetada em direcção à secretária castanha e de aspecto maciço que se encontrava no extremo oposto do escritó­rio do presidente. Em cima do mata-borrão verde nada havia, e o suporte para cartas, no qual se costumava colocar o horário diário das entrevistas de O. C, estava igualmente vazio. Preocupada, olhou em volta, e então avistou a folhinha de papel que Talley lhe deixara, presa debaixo do telefone, aquele telefone enganadoramente vulgar, mas que representava a tão popular linha vermelha.

Pegando na folha, examinou a lista nela dactilografada: o pró­prio Talley, está claro; o ministro de Estado, Arthur Eaton, está cla­ro; o senador Selander, presidente do Senado; o deputado Wickland, presidente da Câmara; o senador Dilman, presidente interino do Senado; o general Fortney, presidente da Assembleia; o senador Stover, secretário-assistente dos Negócios Africanos no Departa­mento do Estado; o Sr. Leach, o estenógrafo. Oito ao todo. Nessa manhã viriam esses oito.

Estudando os nomes da lista enquanto se afastava lentamente da secretária do presidente, Edna ia praticando o seu jogo de dedu­ções. Não era necessário ser-se o Scott da C. I. A. ou o Lombardi do F. B. I. para se acertar num prognóstico, uma vez que nos fosse concedido um certo número de dados. Edna fez o prognóstico para si mesma, gozando quase tanto com este desporto como com os jogos de palavras cruzadas ou de Double-Crostic que costumava guardar para fazer nos fins-de-semana. A conferência telefónica de emergência feita pelo presidente, disse para si própria, seria quase inteiramente consagrada à África e às dificuldades relacionadas com a nova República de Baraza. A presença do secretário-assistente dos Negócios Africanos assim o indicava. Depois falariam de algum assunto a ser discutido em congresso, provavelmente a não apro­vada rectificação da renovação dos Estados Unidos como membro do Pacto da União Africana, assim como do aumento de auxílio eco­nómico às nações africanas recentemente independentes. A pre­sença de dois senadores, de um deputado e de um general assim o indicava. A comparência de Talley e do ministro de Estado, Eaton, não lhe dava qualquer ajuda no jogo, pois estavam sempre presen­tes quando O. C. falava, sempre ao seu lado, os seus confidentes e os seus outros dois «eus».

Sim, concluía Edna desconsolada, a África seria o assunto, o que prometia uma manhã monótona e cansativa. Conversas acerca de África não significavam quase nada para Edna. O que era afinal essa África? Era uma negra confusão de nomes loucos como Basutolândia, Niassalândia, Malagásia, Gambia, Daomé, Chad, Ruanda e, recentemente, Baraza. Por muito inteligente que uma pes­soa fosse, era impossível distinguir um país de outro, ou uma cara primitiva de outra, apesar daquelas vestimentas selvagens que eles usavam, apesar daqueles estranhos acentos de Oxford e Harvard com que eles se pavoneavam quando iam falar com o presidente. Era completamente impossível, e para Edna a África permanecia o Continente Negro, não tendo qualquer importância na sua existência diária. E - Oh, heresia! - ela suspeitava que todos aqueles países de ópera cómica não significavam muito mais para O. O, Talley ou Eaton do que para ela. Já a Rússia Soviética era outro assunto. A Rússia pode-nos arruinar e destruir tudo e todos, antes de alguns de nós terem tido a oportunidade de casar e ter filhos.

Ela passara em frente das portas em estilo francês que davam acesso ao caminho de cimento guarnecido de abas e colonatas. Lá fora - no que O. C. chamava o seu «pátio das traseiras» - a escuridão tinha desaparecido e a alvorada cinzenta ia-se tornando cada vez mais luminosa. Apesar de se estar já nos fins de Agosto, o Jardim das Rosas mantinha-se ainda todo em flor, com as suas rosas e mal­mequeres dominados pela exuberância dos crisântemos recém-flori-dos. Na extremidade do jardim verdejava a venerável magnólia de Andrew Jackson, dando sombra a parte da rotunda da Casa Branca e à varanda de Truman. Por um momento Edna sentiu-se tentada a sair e a ir ter com o polícia da Casa Branca que aparecera no cami­nho, para poder respirar profundamente o ar fresco da manhã e a reanimar-se completamente para a chamada de Francoforte. Mas o relógio de platina no pulso esquerdo unia-a implacavelmente ao de­ver. Deixou rapidamente o escritório do presidente e regressou à sua própria secretária.

Abrindo as gavetas, remexendo nelas e tirando coisas para fora, sentia-se finalmente ocupada como lhe era habitual e sem tempo para sonhar. Passados poucos minutos, com os braços magros so­brecarregados de blocos de notas, caixas de lápis, o bloco de este­nografia e cinzeiros sobresselentes, dirigia-se cuidadosamente para a porta da sala do Gabinete. Equilibrando a sua carga contra a mol­dura da porta, conseguiu agarrar o puxador, rodá-lo e abrir a porta com um encontrão.

Esperara encontrar Arthur Eaton já lá dentro. Normalmente ele era o primeiro a chegar. Encontrava-o sempre sentado a uma mesa comprida e de oito lados, como um caixão, curvando o seu perfil fino e aristocrático sobre rimas de papéis de notas. Mas nesse dia não estava lá. Em vez dele encontrou dois homens de fato-macaco ocu­pados em terminar a instalação de duas caixas de metal cinzento sobre a mesa do outro lado do Gabinete. Edna reconheceu a caixa maior, a que tinha um lado perfurado, como sendo o receptor e o altifalante que amplificaria a conversa confidencial do presidente, vinda de Francoforte, enquanto a caixa mais pequena era um sensível mi­crofone que transmitiria qualquer coisa que se dissesse na sala para o escritório gótico do Palácio Antigo de Mogúncia, onde devia estar instalado um sistema semelhante para uso do presidente.

Os homens de fato-macaco estavam tão absorvidos no seu tra­balho que nem deram pela entrada de Edna. Esta tossiu e disse:

-       Bom, dia senhores.

O mais novo, um técnico de terceira classe, olhou por cima do ombro.

Oh, bom dia, minha senhora. Isto estará pronto dentro de mo­mentos.

Então continuem. Temos ainda quinze minutos.

Edna pousou a insegura carga sobre a mesa. Depois dirigiu-se para os três pares de cortinas verdes que tapavam as portas de estilo francês e abriu-as, fazendo com que a magnólia de Jackson ficasse novamente à vista e que a luz filtrada da manhã inundasse a sala por detrás dela. Após ter sacudido a bandeira presidencial, para que esta caísse em boa posição, e de ter olhado para a bandeira americana que estava bem, Edna retomou a rotina familiar. Distribuiu blocos de notas, lápis e cinzeiros. Encheu as garrafas da água. Mal deu por que os homens experimentavam os aparelhos e depois se despediam.

Ainda não tinha terminado quando a porta do corredor se abriu. Assustada, Edna voltou-se esperando ver entrar Eaton, mas em vez dele viu dois dos agentes do Serviço Secreto da Casa Branca, o gor­do e corado Beggs e o nervoso e louro Spenny.

Fazem-na trabalhar cedo esta manhã, hem? - exclamou Beggs. -Só queria agradecer-lhe da parte de Ogden e Otis, Miss Foster - con­tinuou. Ela devia ter ficado com um ar espantado, pois ele acrescen­tou rapidamente: - São os meus rapazes. - Depois disse. - Fizeram um sucesso na escola com os novos selos de Baraza. Estamos-lhe todos muito agradecidos.

Não recebi mais nenhuns de África esta semana - disse Edna. -A maior parte do correio veio de Francoforte, da Alemanha, por via diplomática, portanto sem selo. Mas talvez ainda consiga arranjar al­guma coisa.

-       Qualquer serve, Miss Foster. Os rapazes também os podem usar em trocas. Mais uma vez lhe agradeço o que tem feito.

O colega, Spenny, tocou-lhe no braço, e ele espreitou para fora e disse:

-       Ali vêm eles, Miss Foster. Até à vista.

Mal os agentes do Serviço Secreto tinham desaparecido, entrou Leach acenando com a cabeça esquelética, transportando o seu ar perpetuamente fatigado e a máquina estenográfica portátil até à mesa, e sentou-se no seu lugar, duas cadeiras para lá do centro, onde se sentaria Eaton.

Edna ouviu mais passos ressoando nos ladrilhos do corredor e esperou. Apareceram três ao mesmo tempo no limiar da porta, e en­tão Talley e Stover recuaram para deixar passar Eaton. O ministro de Estado, alto, magro, envergando um magnífico fato cinzento de Sawille Row, de chapéu na mão, entrou com passo enérgico.

-       Olá, Miss Foster - disse na sua voz profunda e bem timbrada. - Desculpe a hora, mas sucede que O. C. precisa da nossa ajuda.

A aparência de Eaton e a sua evidente boa linhagem tinham sem­pre o condão de emudecer Edna, e, como habitualmente, não con­seguiu mais do que inclinar a cabeça e murmurar os bons-dias. Eaton pôs o chapéu sobre um banco e dirigiu-se para a cadeira em que Stover já colocara a sua pasta de crocodilo. Edna podia ver Eaton com os mesmos olhos com que o presidente, um seu velho amigo, o via, isto é, como um cidadão do Este, de excelentes antecedentes, ensinado segundo as tradições da Liga de Ivy, um homem cuidado­so, moderado e metido consigo, amadurecido dentro do bom gosto e ainda jovem no fim da sua meia idade. No que Eaton diferia de O. O era na questão das relações humanas. O presidente era mais alegre, mais cordial, mais expansivo. O presidente seria sempre eleito; Arthur Eaton seria sempre indicado.

Edna continuou a observar Eaton enquanto este tirava papéis presos com clips para fora da pasta e se sentava com eles à sua frente. Ela tinha a certeza de que ele era o homem mais atraente do Ministério. A imprensa gostava de o comparar a Warren Harding, mas isto não agradava a Edna pelo facto de Harding não ser aristocrata e a sua imagem histórica ser fraca. Ela tinha visto uma vez um retrato de James K. Polk e, embora tivesse ouvido dizer que Polk fora medío­cre e obscuro, ela sabia que ele era o homem da história americana com que Eaton mais se parecia. Tinham ambos o mesmo tipo de cabelo, macio, liso e brilhante, já acinzentado na testa e nas fontes. Os olhos eram grandes e profundos, o nariz levemente grego na sua linha, a queixada, assim como todo o rosto, ossuda e comprida. Ele encarnava a Virgínia, Andover, Princeton, e era perfeito.

Nesse preciso momento Edna viu-o levantar a cabeça dos pa­péis para escutar uma discussão entre o conselheiro da mão direita de O. C, Wayne Talley, e o seu próprio secretário-assistente dos Ne­gócios Africanos, Jed Stover.

O atarracado e eléctrico Talley batia com o dedo no ombro de Stover para dar mais ênfase ao que estava dizendo:

-       Estou-me nas tintas para os seus factos e números, Jed. Já fizemos o suficiente por Baraza, mais do que o suficiente, e você sabe-o bem. Quer que nos lancemos numa guerra contra aqueles macacos comunistas apenas por causa de um insignificante país me­tido na selva, que não é maior do que um campo de futebol? Quer lutar por causa de 30 000 milhas quadradas na África Ocidental?

Jed Stover, procurando desviar-se do matraquear do dedo de Talley, passou a mão pelas sobrancelhas e pelo bigode hirsuto e re­plicou calmamente:

São 33 000 milhas quadradas e têm uma população de 2 437 000 habitantes, Wayne. Tem ouro, grande quantidade de ouro, diamantes e minério de ferro. Além disso...

Não há ouro suficiente em todo o país para pagar o que ele nos pode custar em aborrecimentos.

Stover prosseguiu obstinadamente:

Além disso é, em certa medida, uma criação nossa, o nosso modelo a mostrar aos outros, Wayne. Não se pode dar a democracia a uma nação negra recém-formada e depois voltar-lhe as costas.

Temos lá modelos suficientes para mostrar. Temos a Libéria, o Gana e mais uma meia dúzia. Esse Pacto da União Africana era exce­lente quando foi criado. Papelada, boa propaganda. Nunca pensá­mos em o renovar. Agora, apenas porque Baraza faz parte dele, não vejo qualquer razão para que mudemos de opinião. Vocês, os dos Negócios Africanos, deixam-se absorver demasiado pelo vosso pe­queno mundo e não o conseguem ver como uma pequena parte de um mundo maior com problemas maiores. Vocês são como aqueles estudantes de suíças penteadas, cada um com uma especialidade durante toda a vida e que chegam até a pensar que a verdade acerca de Nancy Hanks é mais importante do que a Presidência, ou que o significado da democracia em São Marino é mais importante do que na Itália. Não tome esse ar magoado, Jed. Não estou a menosprezar todo o pesado trabalho que vocês fazem nem quão bem servem o governo, mas todos vocês têm tendência para ver as coisas através de um canudo. Na verdade é assim que eu penso e já discuti acerca disso muitas vezes com o presidente. Mas tenho a certeza de que o Arthur compreenderá este assunto ainda melhor do que nós.

Talley voltara-se para procurar o apoio de Arthur Eaton. Jed Stover, que estava pronto a responder-lhe à letra, foi imediatamente subjugado pela referência ao seu superior. Pareceu morder a língua e fazer um esforço para estar calado.

Eaton, que tinha estado a escutar atentamente, contraiu os lábios e olhou para o ajudante do presidente. Finalmente falou.

Jed e a sua repartição têm estado a fazer um excelente cargo, Wayne.

Isso já eu admiti - interrompeu Talley. - O que eu estava a dizer era que...

Eu ouvi o que você disse, Wayne - prosseguiu Eaton. Há mui­tos comentários a fazer sobre o que você disse. Pode ter a certeza de que O. C. e eu estamos perfeitamente a par de tudo o que se passa e do que deve ser feito.

Tendo testemunhado a luta de palavras, Edna Foster viu que chegara a vez de Wayne Talley ser subjugado. Eaton tinha tornado bem claro que ele próprio e O. C. tomariam as decisões finais acerca da intervenção na África. Tinha lembrado a Talley, de um modo muito subtil, que embora ele fosse o ajudante do presidente não era o seu principal conselheiro nem muito menos a sua «Grande Eminência», mas apenas um instrumento seu e um mensageiro. Ele colocara Talley no lugar que lhe era devido, não entre o presidente e o ministro de Estado, mas algures por detrás deles e separado deles. Mas fizera isso tão cuidadosamente que Talley não ficaria diminuído perante um funcionário inferior do Departamento de Estado.

Edna notou que o governador Talley reagia ao choque da subtil reprovação de um modo que lhe era peculiar antigamente. O olho direito, que era ligeiramente estrábico, começou a tremer involun­tariamente. O nariz carnudo tornou-se vermelho. Parecia menos segu­ro do seu fato aos quadrados, da camisa azul e da moeda de ouro adaptada a alfinete de gravata que ele costumava usar. Ele parecia, pensou Edna, o gerente obsequioso de uma retrosaria do Midwest a quem o patrão abastado tivesse acabado de recordar que já fora outrora um humilde empregado.

-       Além disso há ainda que tomar em consideração - dizia agora Eaton com um sorriso sério - que estamos a lidar com factos provavel­mente já pertencentes ao passado, não é verdade? O que eu sei, o que você sabe, Wayne, e o que você sabe, Jed, é útil neste momento, mas dentro de cinco minutos o presidente falar-nos-á de Francoforte. Depois de ter passado a manhã com os russos é provável que esteja de posse de novos factos, de novas ideias, e a nossa receita para uma decisão em África pode ter de ser consideravelmente alterada. Não concordam ambos?

Edna teve de fazer um esforço para não sorrir perante a diplomacia do ministro de Estado. Este tomara Talley e Stover como seus iguais e acalmara-os. Talley, resmungando e meneando a cabeça, deu a volta à mesa para se sentar ao lado do favorito de O. C. Stover, transbordando de satisfação, colocou-se no lugar em frente do seu superior.

Edna, reparando que Arthur Eaton acenava para alguém por de­trás dela, voltou-se e ficou surpreendida ao ver que todos os outros já se encontravam na sala do Gabinete. Adiantou-se rapidamente para indicar ao senador Selander e ao deputado Wickland os seus lugares. O senador Dilman não tinha esperado por ele e já se dirigira para a cadeira mais afastada do ministro de Estado e do ajudante do presi­dente. Era um facto compreendido por todos, sabia Edna, assim como também eia o compreendia, que Dilman não enfileirava com os outros, nem até mesmo com Selander e Wickland. Embora Dilman, como pre­sidente interino do Senado, estivesse agora encarregado de empu­nhar o martelo do presidente desde a morte do vice-presidente, era sabido que ele considerava esse cargo como um gesto político.

-       Desculpem ser o último! - ouviu-se uma voz ribombar à porta. Era o general Pitt Fortney, o texano das quatro estrelas, rígido e cheio de cicatrizes, descalçando as luvas de cabedal. - A S. A. C. tem-me estado a moer o ouvido desde Omaha. Não foi fácil escapar-lhe. - Entregou o casaco a Edna e encaminhou-se a passos largos para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se nela muito direito. Dirigiu-se a Eeaton: - Steiny telefonou-me ontem à noite. Ele pensa que o Primei-ro-Ministro Kasatkin significa negócio. Até o marechal Borov voou de Leninegrado para ir ter com eles. Talvez eu lá devesse estar com o presidente.

Eaton baixou os olhos para Fortney.

-       Acho que o ministro da Defesa, Steinbrenner, pode represen­tar o Pentágono muito bem, general. Tenho a certeza de que O. C. acha que você é aqui preciso.

Notando que o seu relógio de platina ainda lhes dava dois minu­tos até à hora da conferência, Edna Foster começou a dar a volta à mesa do Gabinete em direcção a Eaton e ao microfone portátil.

Ao passar junto do deputado Wickland viu-o inclinar-se sobre a mesa e perguntar a Talley:

Mas que ideia foi essa de o conde MacPherson ter voado de Buenos Aires para Francoforte? Ele devia estar hoje aqui, em Wa­shington.

Foi apenas um desvio de um dia - disse Talley. - O presidente pensou que vocês, os da Câmara, podiam passar mais um dia sem o vosso presidente. O. C. precisava lá dele.

Por causa da legislação do auxílio económico à África?

Provavelmente. Se O. C. vos disser do que se trata, vocês, os da Câmara, talvez não oiçam. Mas se o vosso próprio presidente vo-lo disser, então talvez já oiçam. MacPherson regressará amanhã a Washington.

Edna colocou-se por detrás de Eaton e ia-o precisamente infor­mar de que eram sete horas em ponto quando o telefone estridente­mente se pôs a tocar. Instantaneamente todos se calaram. Edna incli-nou-se entre Eeaton e Talley, ligou o interruptor no topo do altifalante cinzento, depois carregou no botão de «on» da caixa do microfone, ligou o volume de som para «altura média» e afastou-se.

Ainda não tinha chegado à sua cadeira e ao bloco de esteno­grafia, ao lado de Leach, quando uma voz longínqua e indistinta se fez ouvir no altifalante e depois começou subitamente a sair forte e clara.

-       Chamando de Francoforte do Meno, aqui fala o capitão Foss, do Corpo das Comunicações, chamando de Francoforte do Meno. Estão-nos a ouvir da Casa Branca, em Washington?

Calmamente o ministro de Estado falou para a caixa do micro­fone:

Daqui a Casa Branca, capitão. Fala o ministro de Estado. Estamos todos reunidos e prontos para a conferência telefónica.

Muito bem. O presidente espera para lhes falar.

Ouviu-se no altifalante uma troca abafada de palavras, depois uma descarga eléctrica e logo a seguir a voz apressada, vigorosa e sem cerimónia de O. C. encheu a sala do Gabinete.

Está lá, Arthur?

Estamos todos aqui, Sr. Presidente. Como tem passado? Está tudo a correr bem?

Corre tudo às mil maravilhas. Para falar francamente, acabei de dizer a MacPherson que ia apostar tudo no Dartmouth contra o Princeton, no próximo mês. Quero que você pergunte aos Rendi­mentos Internos da Nação se os meus ganhos são isentos de taxa, já que fizemos a aposta na Alemanha. Não se esqueça disso, Arthur.

Na sala do Gabinete todos riram esperando que o seu riso não fosse transmitido através do altifalante até Francoforte. A voz de O. C. fez-se de novo ouvir:

-       Interrompemos a entrevista de Roemer antes do meio-dia. Re­começaremos às duas horas. O nosso grupo ficou lá para almoçar, mas alguns de nós conseguimos escapar-lhes e à imprensa e vie­mos aqui para vos poder falar em particular. Tenho estado aqui sen­tado no escritório deste velho palácio - é frio que nem um demónio, Arthur, diga à Edna que foi muito esperta em não ter vindo - a confe­renciar com o embaixador Zwinn, com o ministro Steinbrenner e com o nosso prestável presidente da câmara. Um segundo, Arthur (Hou­ve uma longa pausa e depois O. C. recomeçou a falar). Tinha de me despedir do embaixador - ele tem de regressar a Dona - e de Steiny, que é preciso no Consulado. Bem, podemos começar agora. Há vários problemas que têm de ser discutidos imediatamente. Primeiro discu­ti-los-ei com vocês, e depois MacPherson substituir-me-á para falar especialmente com Harvey Wickland. A propósito, Harvey, quero que MacPherson descanse aqui esta noite, mas amanhã tê-lo-á de novo na cadeira de presidente.

Houve uma pausa e depois O. C. retomou o fio do discurso:

-       Arthur, Wayne e todos vós aí, o verdadeiro problema é o primeiro-ministro Kasatkin. Esquecera-me já quão manhoso e coriáceo o maldito pode ser. Ele parece resolvido a fazer-se difícil e depois destas longas horas com ele já nem sei das minhas costas. Estou decidido a sair daqui dentro de poucos dias, mas quero sair sabendo que não dei Nova Iorque, Detroit, Los Angeles, Bombaim e a cidade de Baraza aos Moscovitas, em troca do direito de continuar em Berlim. Wayne Talley inclinou-se sobre Eaton.

-       O. C. - disse para o microfone -, daqui fala Wayne. Isso está assim tão mau? Kasatkin fala mesmo a sério?

A resposta de O. C. através do altifalante foi impaciente:

-       Se ele fala a sério? Não tenho a certeza. É acerca disso mes­mo que nós temos de ponderar. Temos de decidir até onde é que podemos ir com eles. Foi por isto que vos quis consultar o mais cedo possível. Quando eu voltar lá esta tarde e me sentar em frente dos nossos amigos soviéticos quero saber que munições tenho ou devia ter. Por outras palavras, tenho de decidir até onde posso ir para mos­trar a Kasatkin e ao marechal Borov que estamos resolvidos a mantermo-nos firmes quanto a Baraza, a manter a sua independên­cia, até mesmo a lutar por ela, tornando claro ao mesmo tempo que queremos ser razoáveis e que, além de Baraza, temos ainda outros pontos mais difíceis e perigosos que nos preocupam e decisões mais importantes a tomar. Percebem?

Escutando isto, o ajudante do presidente, Wayne Talley, mos­trou a sua satisfação e arvorou um sorriso triunfante na direcção do secretário-assistente, Jed Stover.

Arthur Eaton falava agora na direcção da caixa do microfone:

Quais são as últimas acusações dos Soviéticos contra nós, Sr. Presidente?

Acerca de Baraza? - disse O. C. - Toda uma lista de argumen­tos para provar que os Estados Unidos se estão a tornar um inimigo em África, utilizando Baraza apenas como ponto de partida para um eventual domínio de toda a África. Eles sustentam que nós prepará­mos a independência de Baraza a troco da promessa de que eles seriam pró-democratas e anticomunistas. O Primeiro-Ministro Kasatkin jogou com isto toda a manhã. Tentou provar que nós não permitíra­mos que Baraza fizesse uma eleição justa e livre há três meses. Acu-sa-nos de a querermos manejar e disse que impuséramos o nosso fantoche, Kwame Amboko, como presidente. Sabem o que tem que­rido demonstrar? Que um dos nossos antigos programas de trocas financiara a vinda de Amboko aos Estados Unidos 15 anos atrás e que financiara igualmente a sua lavagem ao cérebro em Harvard. Está a ouvir, Arthur? Harvard ainda nos continua a causar aborreci­mentos a nós, homens de Princeton. - Ele soltou uma gargalhada mas era um riso sem alegria. Em seguida prosseguiu: - O Primeiro--Ministro Kasatkin chamou a atenção para a nova legislação anticomunista de Baraza, assunto que está a ser presentemente dis­cutido no Parlamento russo. Acusa-nos de estarmos por detrás dela. Espumou e vociferou que estávamos a fazer pressão sobre Amboko para conseguirmos que o Partido Comunista fosse decretado ilegal e que o programa de intercâmbio cultural com Moscovo acabasse.

Que argumentos apresentou o presidente para apoiar tal acu­sação? - perguntou Eaton.

Não tinha quaisquer argumentos concretos - retorquiu O. C. -Se eu tivesse ficado em casa, voltado a ler os vossos relatórios de Embaixada ou a tradução do Pravda, saberia agora exactamente o mesmo. Kasatkin argumentou que o auxílio económico que estáva­mos a dar a Baraza provinha dos fundos do nosso governo e não de um empreendimento particular e que nós ameaçáramos cortá-lo se Amboko não acabasse com o Partido Comunista e o intercâmbio cul­tural com Moscovo. Disse que nós temíamos o comunismo na África porque sabíamos que isso era o que os pretos queriam e precisavam. Disse ainda: «Aqueles desgraçados sabem que o comunismo lhes dá pão, enquanto a democracia lhes dá um voto e uma carta para o Edi­tor.» Ele é realmente um usurário muito esperto e desconfiado como tudo. Depois disse também que não só o nossa dinheiro fazia com que Amboko andasse de gatas perante nós mas que também estáva­mos a usar a nossa renovação do Pacto da União Africana para os subornar. Tudo se resumiu nisto - os soviéticos acusam-nos de usar Baraza para varrer o comunismo para fora de África para podermos explorar a população negra e controlar o ouro e o minério de ferro de Baraza. Eis o quadro, meus amigos. Pode parecer abstracto mas é realismo puro e é contra ele que temos de lutar.

Tem toda a razão, Sr. Presidente - retorquiu Eaton -, já temos ouvido falar disso antes. A questão é a seguinte - o que é que os Russos querem realmente de nós? No fim de contas foram eles que provocaram esta conferência em Francoforte para aplainar divergên­cias. O que é que eles sugerem?

  1. C. emitiu um sopro que transmitido pelo altifalante ecoou atra­vés da sala do Gabinete como uma palmada.

O que é que eles sugerem? Mas, meu Deus, Arthur, eles não sugerem, exigem. Sim, exigem que façamos uma de duas coisas, e reparem que ainda dizem que estão a ser razoáveis, prontos a transi­gir, que façamos uma destas duas coisas: ou liquidar o Pacto da União Africana - o A. U. R - liquidá-lo no Senado, sairmos dele - ou que mostremos as nossas boas intenções na África usando a nossa influência para conseguir que Baraza abandone a legislação contra o Partido Comunista nativo e contra o programa de intercâmbio cultu­ral com Moscovo. Aqui têm!

Porquê esta enérgica e súbita objecção ao A. U. R? - pergun­tou Eaton. - Quando primeiramente entrámos para o Pacto eles ape­nas mostram uma leve desaprovação.

Porque, segundo Kasatkin, quando primeiramente entrámos para o Pacto, os Soviéticos consideravam-no um fraco contrato em papel, reduzido a três países e prometendo apenas um pequeno auxí­lio económico. Mas agora consideram o novo A. U. R como uma ameaça. Eles argumentaram que ele abrange agora cinco nações africanas e assegura a nossa intervenção militar, quando necessária, para proteger esses países de agressão exterior. Os Soviéticos acu-sam-nos de estarmos a estabelecer em África uma nova doutrina Monroe. Não permitirão uma outra N. A. T. O. uma N. A. T. O. acabada de sair do ninho como estão a chamar ao A. U. R - a não ser que concedamos perfeita liberdade à sua própria ideologia em Baraza. Temos de escolher ou uma coisa ou outra, mas não ambas.

O deputado Wickland dirigiu-se então à caixa do microfone:

Sr. Presidente, o que acontecerá se quisermos conservar es­sas duas medidas: banir o comunismo de Baraza e continuar-mos como membros do novo A. U. R? O que pensa que Kasatkin fará?

O primeiro-ministro Kasatkin avisou-me - respondeu O. O, -que as tropas soviéticas ocupariam Berlim Ocidental e que redobra­ria de apoio aos seus aliados, dentro e à volta, da índia e do Brasil. Penso que desta vez fala a sério. E se o fizer estamos metidos numa guerra à mão armada e teremos de disfarçar o primeiro tiro.

Mas, Sr. Presidente - era a voz dolorosa e trémula do secretá-rio-assistente, Jed Stover -, isso é chantagem pura. Nós estamos comprometidos tanto com o A. U. R como em darmos a Baraza o direito absoluto de fazer como entender, e aparentemente Baraza quer subjugar o comunismo. Não censuro Amboko. Este possui uma liga democrática nova e ainda incerta. A sua minoria de comunistas é militante e perigosa. Se cedermos em qualquer desses pontos, sair do A. U. R ou obrigar Amboko a deixar os comunistas em paz, os vermelhos poderão infiltrar-se em qualquer nação livre da África e controlar o continente dentro de um ano.

O altifalante permaneceu mudo e nenhum dos que esperavam na sala do Gabinete ousou proferir uma palavra, até que por fim a resposta de O. C. veio através do altifalante desde a longínqua Francoforte.

Jed, todos nós, tenho a certeza de que compreendemos muito bem o jogo dos nossos amigos Soviéticos. Sabemos o que eles querem. Temos é de os impedir de o obter. A questão é onde havemos de os fazer parar e a partir de que altura os devemos com­bater. Em Baraza? Não sou dessa opinião. Não me agradaria nada ter de arriscar vidas americanas por causa de um pedaço de terra abandonado de Deus lá nos confins da África Ocidental. Não tenho qualquer honra em vir a ser o último Presidente dos Estados Uni­dos, aquele que encorajou a guerra e a destruição nuclear. Estou mais preocupado com a Alemanha, a índia e o Brasil do que propria­mente com a África.

Sr. Presidente - disse o senador Dilman do extremo oposto da sala, tamborilando nervosamente com os dedos na mesa. - Sr. Presi­dente - repetiu -, tenho a certeza de que tem razão no que diz, sim, mas se nos retirarmos da África, não só perderemos a África para a democracia, como mostraremos também aos Russos que somos fra­cos. Não estou a discordar do que disse, pergunto apenas...

Quem é que acabou de falar? - inquiriu O. C. - Não reconheci a voz.

Foi o senador Dilman, Sr. Presidente - respondeu Arthur Eaton.

Ah, Dilman - disse O. C. - Óptimo, Dilman. Bem, sabe, eu não me preocuparia muito com o facto de podermos perder a África. Essa gente sabe que nós estamos ao seu lado. Vêem o nosso dinheiro. Vêem que realmente estamos a fazer um esforço para achar uma solução para o problema dos direitos civis nos Estados Unidos. Quan­to ao facto de nos mostrarmos fracos perante os Soviéticos também não me preocupa. Quase que apostava em que eles já contaram os nossos I. C. B. M. Sabem que temos músculos. Não, eu penso que ganharemos mais mostrando que estamos prontos a negociar, a dar um pouco para recebermos um pouco, do que sendo impulsivos e teimosos. A questão é como proceder, como conceder, tornando explícito que somos os mais fortes, como chegar a um acordo com os Russos ao mesmo tempo que reassegurar aos Africanos que estamos ao seu lado e mostrarmos ao eleitorado que regressámos de Francoforte com uma vitória, que preservámos a paz do mundo. Arthur Eaton inclinou-se da cadeira:

Sr. Presidente, qual é a sua opinião acerca do ministro Kasatkin? Acha que ele é sincero? Acha que ele não meterá o pé no Brasil, em Berlim e na índia se fizermos uma concessão acerca do problema da África?

Oh, certamente, Arthur. Não tenho dúvidas acerca disso. Ele é um osso duro de roer e manhoso como um campónio, mas franco e honesto. Penso que ele quer viver e deixar viver, se não tiver por onde escolher. De qualquer modo, MacPherson e eu temos estado a discu­tir o assunto e chegámos a uma possível solução. Queremos a vossa opinião acerca dela. Escutem-me atentamente...

Edna Foster, toda a sua atenção concentrada no altifalante, tor­nou a cruzar as pernas, pronta a escrevinhar sinais no seu bloco de estenografia, se assim lhe exigissem. Sentado ao seu lado, Leach parou de martelar no teclado da sua máquina de estenografia. O silên­cio total da sala fez com que Edna levantasse a cabeça. Os rostos atentos dos conselheiros do presidente pareciam formar uma série de parêntesis humanos à volta do altifalante, enquanto cada um indivi­dualmente se preparava para absorver o que diria a seguir o chefe do Executivo em Francoforte.

Finalmente tornou-se a ouvir a voz familiar de O. O, vinda atra­vés do oceano que o separava daqueles que o escutavam. A sua voz soava premente e baixa:

-       Quando esta tarde voltar a entrar naquela sala de conferências do Roemer, juntamente com aqueles bandidos, quero anunciar-lhes que ainda esta semana o Senado renovará o Pacto da União Africa­na. Esta renovação é necessária - quero eu dizer-lhes - porque nos comprometemos com os nossos amigos africanos e não queremos faltar à palavra dada. Quero contudo assegurar a Kasatkin que nunca utilizaremos o Pacto, a não ser que tenhamos a certeza absoluta e positiva de que um poder estrangeiro está a tentar interferir militar­mente com os direitos soberanos dos membros do Pacto. Por outro lado, quero ainda dizer ao ministro Kasatkin que, porque queremos a paz em todo o mundo e não só na Alemanha, índia e Brasil, estamos prontos a usar a nossa influência moral em Baraza para convencer o seu chefe a não permitir que qualquer legislação particular contra o comunismo seja tornada lei. Penso que isso resolverá a questão e que poderei regressar a casa e dizer ao nosso povo que pode dormir sossegado em casa ainda por mais um ano.

«Preciso porém da cooperação de todos vós, tenho de saber o que podem fazer por mim e até onde posso ir com os Russos na con­ferência de hoje. John, quero que você consiga a aprovação do Pacto através do Senado o mais depressa que puder, mesmo que tenham de estar reunidos em sessão o dia todo. Simultaneamente, Harvey, quero que você obtenha da delegação da Câmara aquela medida de auxílio económico aos países do Pacto e a divulgue. Quero esse auxí­lio aos nossos amigos africanos publicado. Depois você, Arthur, pode mandar chamar o embaixador Wamba e dizer-lhe que temos de supri­mir aquela legislação anticomunista em Baraza. Diga-lhe que deixe os nativos da oposição terem o seu pequeno Partido Comunista. Nós trá-lo-emos constantemente debaixo de olho. Diga-lhe também que deixe os estudantes ir à Rússia em intercâmbio cultural. Disso que cuide ele. Diga-lhe que o facto de nos juntarmos ao novo Pacto da União Africa­na torna bem evidente que o continuaremos a auxiliar. Se ele puser quaisquer obstáculos, faça pressão sobre ele. Não tolerarei qualquer disparate. Estou decidido a ser o presidente que manteve a paz do mundo intacta. Agora, se estão de acordo com o que acabei de dizer, quero que vocês aí, os de Washington, me prometam que... que... espe­rem, é só um segundo, MacPherson está a gritar qualquer coisa...

De repente deixou de se ouvir a voz do presidente e através dos orifícios da caixa do altifalante saiu um leve ruído como o do rasgar de uma tela, depois um pequeno guincho, em seguida uma estriden­te descarga eléctrica e por fim um silêncio de morte.

Arthur Eaton tinha-se inclinado todo para a frente, colocando uma mão sobre a caixa do microfone como para a acalmar e, serena­mente, falou para dentro dele:

- Sr. Presidente, está lá, Sr. Presidente, não o conseguimos ouvir, perdêmo-lo. Tente outra vez, por favor, tente outra vez. – Permaneceu imóvel, a cabeça erguida, esperando uma resposta, mas nenhum som saiu. Sacudiu levemente a caixa do microfone com a mão. - O. C, daqui fala o Arthur. Está-me a ouvir?

O altifalante permaneceu mudo. Eaton olhou-o fixamente duran­te um momento e„depois levantou os olhos para os outros que se encontravam na sala.

-       Penso que interromperam a chamada. Temos de fazer nova ligação.

O general Pitt Fortney já se levantara e dirigia-se apressadamente para o telefone verde que se encontrava junto do cotovelo de Edna Foster.

-       Deixe-me ligar para o Corpo das Comunicações - ia dizendo. - Isto acontece às vezes com o altifalante. Farei com que eles reparem a avaria. Apanharemos novamente o presidente dentro de poucos minutos.

Enquanto o general Fortney ligava para o Departamento do Exér­cito, relatando a avaria das comunicações, vociferando o seu desa­grado, exigindo que reparassem a linha de contacto com o coman-dante-chefe, Edna Foster imaginou, como se estivesse a ver um Bruegbel animal, mil operários munidos de instrumentos de repara­ções correndo desatinadamente para cima e para baixo nas rampas do edifício do Pentágono.

As estrelas, as fitas e o rude acento texano do general Fortney assustavam-na sempre e ela procurava colocar-se num lugar tão afas­tado dele quanto possível. Como o general Fortney continuasse ao telefone, mesmo por cima da cabeça dela, Edna pousou o bloco, recuou a cadeira e levantou-se. Pegou no cinzeiro grande de prata e começou a percorrer a mesa do Gabinete, despejando os vários cin­zeiros nele. Aqui e ali, à volta da mesa, os participantes da conferên­cia telefónica tinham mudado de cadeira para discutir o relatório, feito pelo presidente acerca do que se passara na conferência do Roemer e como haviam de resolver o problema.

O senador Dilman tirava o celofane que envolvia um charuto Upmann, enquanto ia ouvindo o senador Selander e o deputado Wickland discutir a possibilidade de apressar a aprovação do Pacto da União Africana. Selander exprimia a sua confiança de que teria votos suficientes para obter a passagem do Pacto através do Sena­do. Contudo, para ganhar os votos necessários achava que teria de fazer certos jogos astutos nos vestiários e durante os chás do Hotel da Congregação. Ele detestava, admitia agora, fazer concessões acerca de o problema do importante Programa de Reabilitação dos Menores ser debatido pela Comissão do Trabalho e do Bem Público, mas talvez fosse necessário. Assim que se entrasse novamente em contacto com Francoforte, perguntaria ao presidente quanto podia conceder ao chefe do partido oposto para obter o seu apoio total ao A. U. P.'

Enquanto despejava o último cinzeiro, Edna podia ouvir o secre-tário-assistente Jed Stover e o governador Wayne Talley mais uma vez em desacordo. Stover dizia que qualquer fraqueza que o gover­no americano mostrasse em África iria imediatamente agravar os pro­testos dos negros dos Estados Unidos. Talley não estava de acordo e tentava reduzir Stover à posição de um estranho mal informado. Talley retorquiu que tanto ele como o presidente já tinham falado com o reverendo Paul Spinger e que este lhes tinha assegurado que a vasta e conservadora Sociedade Crispus, de que ele era o cabecilha e que ultrapassara a N. A. A. C. R em número e poder, ficaria satisfeita com a renovação do Pacto da União Africana.

- Wayne, não estou a falar da Sociedade de Crispus ou da N. A. A. C. R - dizia Stover. - Não tenho a certeza mas parece-me que elas já não representam a voz de protesto. A maior parte dos negros está a tornar-se impaciente com os seus esforços legalistas e arrastados. A maior parte dos negros quer as coisas todas resolvidas aqui e agora e está a virar-se para organizações mais agressivas, como a dos Tumentes. Não leu a declaração de Jeff Hurley que saiu no Post de ontem à noite? Ele disse claramente naquele discurso em Detroit que os Turnerites não cruzariam os braços enquanto no escritório do gover-nador-geral se estudava um registo ilegal de votos no Sul ou enquan­to a Sociedade de Crispus apelava para organismos mais altamente colocados. Hurley disse que eles estavam prestes a seguir uma nova política de demonstração contínua, e se tentássemos impedir a sua manifestação de protesto vingar-se-iam, exigindo olho por olho. Na sua opinião, qual vai ser a reacção deste grupo quando souber que o presidente está a forçar africanos a anular uma legislação pendente com o fim de agradar aos Soviéticos? Este e outros grupos seme­lhantes têm orgulho na liberdade inigualável de Baraza, costumam usar Baraza como modelo de igualdade de direitos e insistem continuamente que o que se passa lá é precisamente o que eles querem aqui. Penso que...

Oh, acabe com isso, Jed - disse Talley impaciente. - Não me venha pregar sermões e não faça O. C. perder tempo com esse dis­parate. Ninguém dá atenção aos Turnerites nem a outros idiotas como eles. Eles não significam nada, absolutamente nada. O reverendo Spinger afirmou ao presidente que os Turnerites eram um pequeno grupo que tinha deixado a Sociedade Crispus e que ele nem sequer se tinha dado ao trabalho de denunciar ou de se lhe opor porque não trariam quaisquer consequências nefastas. Acrescentou ainda que tinha de haver sempre alguns elementos que ferviam em pouca água. Jed, você tem de deixar de confundir as questões. Baraza é uma coisa. A nossa situação doméstica em relação aos negros é outra. Se o presidente pode contentar Baraza e ao mesmo tempo conter os Russos, então ele conseguirá uma maravilha diplomática. Quanto aos nossos problemas acerca dos direitos civis aqui na América, quando o Programa de Reabilitação dos Menores se tiver transformado em lei findarão os protestos dos negros. Descontraia-se, homem. Deixe O. C. agir como presidente. Ele governará as coisas por todos nós.

Existem compromissos a mais - disse Jed Stover frouxamente, mas parecia desamparado e disse-o mais para si próprio do que para qualquer outra pessoa.

Edna Foster, depois de ter despejado as cinzas do cinzeiro de prata para o cesto dos papéis, ficara de pé a observar e a escutar. Notou que Arthur Eaton, enterrado na cadeira de couro, os dedos comprimidos uns contra os outros, os olhos semicerrados, também tinha estado a observar e a ouvir, observando todos e escutando tudo.

Edna reparou que o general Fortney terminara os telefonemas para o Pentágono e marchava agora para o centro da sala em direc­ção a Eaton.

-       Bem, finalmente consegui que aqueles cabeças de burro se mexessem - anunciou Fortney. - Esta extremidade da linha foi toda verificada e está tudo em ordem. A nossa comunicação está excelen­te. O Corpo das Comunicações informa que a avaria se deu na outra extremidade. A linha foi cortada em Francoforte. Vão entrar em con­tacto com o nosso Centro Militar de Comunicações em Wiesbaden e com o nosso Consulado em Francoforte. Esperam que qualquer deles faça as devidas reparações.

Sabe mais ou menos quanto tempo levarão? - perguntou Eaton.

Dez minutos, não mais do que dez minutos - disse o general Fortney. - Portanto ainda temos um pequeno intervalo até que o pre­sidente fale de novo... Ei! MissFoster, que tal mandar vir café da messe dos oficiais?

Já tinham passado quase vinte minutos, e não dez, e a linha das comunicações que ligava o Palácio Antigo de Mogúncia, em Francoforte do Meno, à sala do Gabinete da Casa Branca em Washing­ton ainda não tinha sido reparada.

O general Pitt Fortney, que pedira a Edna que mandasse vir café, fora o único que não conseguira beber mais do que metade da sua chávena. Impaciente com a demora, irritado com a inexplicável inefi­cácia, não conseguia estar quieto um minuto, sentando-se e levan-tando-se, pegando no telefone, largando-o e tornando a pegar-lhe, descompondo o Corpo das Comunicações por ainda não ter conse­guido reparar a linha privativa do presidente. Ainda havia poucos minutos berrava ao telefone para um seu subalterno do Pentágono:

-       Que diabo, coronel, se não me arranja essas linhas depressa meto-me num avião da S. A. C. e vou lá eu mesmo consertá-las. Ago­ra despache-se!

Já não estavam todos reunidos à volta da mesa do Gabinete. O general Fortney, parecendo uma fera enjaulada e ofendida, anda­va para a frente e para trás junto do telefone. Jed Stover estava de pé em frente da estante dos livros, por debaixo da prateleira cheia de modelos de barcos, examinando os títulos dos vários volumes. Perto dele, encarrapitado no braço de uma cadeira, o senador Dilman acen­dia o coto do seu charuto, lendo ao mesmo tempo uma folha de papel que tinha na mão. Mesmo em frente da porta que dava para o escritório de Edna, o senador Selander e o deputado Wickland con­versavam um com o outro. O ministro de Estado, Eaton, de costas para os outros, as mãos cruzadas atrás, permanecia de pé, junto das portas de estilo francês, contemplando o Jardim das Rosas naquela sombria manhã de Agosto. O governador Talley fazia perguntas a Leach, o estenógrafo.

Foi assim que Edna Foster os encontrou ao regressar do seu escritório. Estivera a falar com Tim Flannery, o secretário da Impren­sa, para o informar de que a conferência telefónica, apesar de ainda interrompida, seria em breve restabelecida. Ao passar junto de Selander e Wickland, ouviu um fragmento da sua conversa. O senador Selander dizia:

-       Não vale a pena preocupar-se com o velho Hoyt Watson. Ele é o membro mais digno de confiança no Senado. Sulista ou não, tem consciência das nossas responsabilidades lá fora. Apoiará O. C. Quem me preocupa é esse vosso desordeiro da Câmara. Oiça lá, quando é que você resolve pôr o Zeke Miller na ordem mais o seu abjecto jor­nal? Ele nunca perde uma oportunidade de criticar a nossa participa­ção em África.

O deputado Wickland pôs-se imediatamente na defensiva:

-       Deixe-o comigo, eu meto-o na ordem. Ele gosta de O. C. Tem recebido grandes favores da parte dele. Se eu lhe disser que o pre­sidente quer o auxílio africano, certamente que Zeke Miller não se oporá.

O senador Selander não pareceu muito convencido:

-       Para alguém que gosta de O. C, é estranha a maneira como ele trata do Gabinete de O. C. Você viu o que ele deixou o Reb Blaser publicar no Citizen-American acerca de Eaton? Política suja, digo-lho eu.

Edna Foster, que se demorara para ouvir o fim da conversa, viu que ambos se voltavam para olhar para Eaton. Envergonhada de ter estado à escuta, dirigiu-se apressadamente até onde estava a sua bol­sa. Abrindo-a para tirar um cigarro, olhou disfarçadamente para Eaton, ainda junto das portas de estilo francês, contemplando o Jardim das Rosas. Perguntou a si própria se ele estaria a pensar no artigo de Reb Blaser no Citizen-American de Washington. Havia dois dias,'depois do jantar, George tinha comprado o jornal e deitado uma breve olhadela à pontuação de basebol e à história de Reb Blaser.

A caminho do seu apartamento, George tinha-lhe mostrado o artigo. Era dedicado à baixa moral do Departamento de Estado e revelava audaciosamente uma informação, «de alguém lá de den­tro», de que o ministro de Estado e a sua atractiva e social mulher, Kay Varney Eaton, estavam prestes a divorciar-se. A coluna mexeri­queira indicava que, nos últimos 365 dias, Kay Varney Eaton e o ma­rido tinham estado juntos apenas 68 dias. Na verdade, informava Reb Blaser, ela encontrava-se agora em Miami e fora vista em nightclubs na companhia de Cartnell, o famoso decorador, enquanto o seu marido, igualmente famoso, passeava sozinho na elegante mansão de Georgetown. «Esperemos apenas, tinha Reb Blaser concluído, que o nosso ministro de Estado seja melhor sucedido em manter a paz com a União Soviética do que com a sua esposa de 22 anos.»

Edna lembrava-se de ter achado a coluna de Blaser vergonhosa e criticara o editor, o congressista Zeke Miller, por ter permitido e en­corajado tais ataques. Tinha ficado espantada ao ouvir George de­fender tanto o Blaser como o Miller. O sentido das notícias publicadas por estes e a sua honestidade só lhe causavam admiração - dissera-Ihe então George. Edna tinha perdoado rapidamente a este, compre­endendo que ele, como membro do corpo da imprensa da Casa Bran­ca, defendesse e admirasse os seus.

De repente Edna notou que Arthur Eaton se tinha afastado da janela e a apanhara a olhar para ele. Ela corou e desviou a cara apres­sadamente. Reparou que o senador Dilman saía para o corredor, pro­vavelmente para ir à casa de banho, e então resolveu ir falar com Jed Stover, que se encontrava ainda junto das prateleiras dos livros.

Começou a andar na direcção do secretário-assistente dos Negó­cios Africanos, mas nesse momento a sua atenção foi atraída por um papel dobrado, caído no tapete verde, por detrás de Stover. Ela dirigiu-se rapidamente para ele, apanhou-o e abriu-o para ver a quem perten­cia. Viu que o cabeçalho tinha gravado em relevo: «Universidade de Trafford». No canto esquerdo estava, em letras mais pequenas, «Gabi­nete do Chanceler - Dr. Chauncey L. McKaye». Era dirigida a «Caro Senador Dilman». Não pretendendo ir mais além, mas incapaz de es­capar às palavras dactilografadas do parágrafo seguinte, Edna cons­tatou que o reitor da universidade escrevia ao senador, a pedido do deão, por causa do seu filho, Julian Dilman, aluno do 2.° ano, cujas notas tinham descido consideravelmente nos últimos tempos e que teria de ser examinado se assim continuasse. Ela reparou em palavras como «sem atenção» e «indelicado», e a frase «ultimamente mais inte­ressado em actividades exteriores do que em deveres escolares.»

Ela tornou a dobrar a carta, embaraçada por ter visto o seu con­teúdo, mas, pela primeira vez, Dilman surgiu aos seus olhos como um ser humano. De todos os que se encontravam na sala, o senador Dilman era o que ela conhecia pior. Isto devia-se ao facto de que, desde a subida de O. C. à Presidência, Dilman tinha vindo à Casa Branca menos vezes do que os outros. Só nos poucos dias que decorreram desde a morte do vice-presidente até à partida do presidente para Francoforte é que Dilman aparecera várias vezes juntamente com os chefes maiores. Mas agora aquela carta revelava-lhe a existên­cia de um filho, um filho que era um problema, e ele deixava de ser um senador a mais para se tornar num pai e num ser humano.

Notando que Dilman tinha tornado a entrar na sala e se dirigia para Selander e Wickland, Edna apressou-se a ir ao seu encontro.

-       Senador, encontrei isto no chão - disse ela. - Deve-a ter deixa­do cair. Desculpe, mas tive de a abrir.

O senador Dilman pegou na carta com um ligeiro sorriso.

-       Não tem importância. Muito obrigado.

Edna voltou-se a tempo de ver Wayne Talley aproximar-se de Eaton.

-       Arthur, já passa das duas horas da tarde em Francoforte. Pro­vavelmente O. C. já regressou à conferência. Acha que há alguma razão para continuarmos aqui à espera?

Eaton encolheu os ombros e disse, não só para Talley, mas para todos:

-       Penso que não temos mais nada a fazer senão esperar. O pre­sidente pode achar que o caso é suficientemente importante para atrasar a conferência. Pode ser que ele nos queira dizer mais alguma coisa.

Como se o atraso em estabelecer a comunicação fosse uma afronta pessoal, o general Fortney pegou no telefone mais uma vez. Pela centésima vez telefonava para o Corpo das Comunicações.

A caminho da sua cadeira e do seu bloco de estenografia, Edna abrandou o passo, escutando atentamente, pois pareceu-lhe ter ouvi­do o seu próprio telefone tocar no escritório ao lado. Tentava distinguir qualquer som sobre a voz de Fortney, quando ouviu o deputado Wickland, a pessoa mais próxima da porta aberta, chamá-la:

-       Miss Foster, o seu telefone.

Edna voou que nem uma seta para o escritório, deslizou por entre a mesa da máquina de escrever e a que tinha o aparelho de televisão e levantou o auscultador a meio do toque.

-       Está - respondeu - , aqui o escritório do presidente. Durante um momento não conseguiu ouvir nada além do som

ondulante que indica uma chamada a grande distância. Depois ou­viu uma voz desconhecida e longínqua que dizia:

Fala da Casa Branca? Quem é que está ao telefone?

Daqui fala a secretária pessoal do presidente, Miss Foster. Quem é que fala?

Oh, Miss Foster... Miss Foster... - e de repente Edna sentiu-se toda arrepiada porque a voz desconhecida chegava até ela trémula e frenética. - Miss Foster... daqui fala Zwinn... o embaixador Zwinn em Francoforte... Miss Foster... - a voz pareceu estrangular-se e depois gritou: - Aconteceu uma coisa terrível... uma terrível emergência... chame alguém... o Talley... chame o Talley!

Ao ouvir «emergência, uma terrível emergência», Edna come­çou toda a tremer, mal conseguindo segurar o auscultador.

-       Um segundo... um segundo, por favor... - Virou-se para a porta e gritou: - Governador Talley! Governador Talley, chegue aqui, algo de terrível aconteceu!

Talley irrompeu no escritório a correr, com uma expressão de espanto e curiosidade estampada no rosto, e olhou interrogativamente para Edna. Esta só conseguiu abanar a cabeça, e sem articular pala­vra meteu-lhe o auscultador nas mãos. Quando ele pegou no telefo­ne, ela afastou-se da secretária e viu a sala encher-se rapidamente com todos os outros, que olhavam para ela e para Talley interroga­tivamente.

-       Quem? - dizia Talley ao escultador. - Zwinn? Oh, embaixador, eu não sabia... - Parou tão abruptamente de falar como se lhe tives­sem cortado a garganta. Completamente calado, escutava o que lhe diziam e à medida que ia escutando os seus lábios começaram a mover-se_, mas permaneceram mudos, e o seu rosto tornou-se cada vez mais cinzento, até que por fim estava branco como a cal. Por fim falou. - Tem a certeza absoluta? O presidente? - E depois, ainda escutando, levantou a cabeça do bocal e olhou para Eaton e para os outros. - Sim, embaixador - dizia ele outra vez -, sim, eu compreen­do... nem posso acreditar... sim, sim, eu acredito em si. Eu dir-lhe-ei. A seguir ligaremos novamente para aí.

Talley pousou o auscultador no descanso e permaneceu pregado no chão, encarnando a perfeita imagem da incredulidade atordoada. Eaton dirigiu-se para ele devagar.

-       O que é que há, Wayne? O que é que sucedeu?

Talley tentou falar, tentou formar as palavras, mastigando-as e depois gaguejando-as.

O presidente... o presidente... o presidente morreu!

O quê - Eaton agarrou Talley pelo ombro e sacudiu-o rude­mente. - Que diabo está você para aí a dizer? Quem é que falou? O que lhe disseram?

Arthur, era o embaixador Zwinn. Parte do edifício em Francoforte... daquele maldito palácio velho, ruiu... e o tecto de duas salas abateu e uma delas era o escritório de O. C.... de onde ele nos estava a falar... Foi isto o que sucedeu, o que cortou a ligação, o que destruiu tudo... caiu em cima dele, em cima de todos eles... matou-o. O presidente morreu, Arthur, morreu.

Eaton estava lívido mas controlou-se.

Tem mesmo a certeza, a certeza absoluta?

Morto - soluçou Talley. - Morto instantaneamente. Blocos, blo­cos de granito caíram sobre ele, esmagaram-no. Já recuperaram o corpo, assim como os dos dois agentes do Serviço Secreto que se encontravam na sala com ele. Mortos, todos mortos. Oh, meu Deus... meu Deus, que catástrofe...

Nesse momento a porta do corredor abriu-se de repelão e Tim Flannery irrompeu que nem um furacão, gritando:

-       Já sabem? A Associação da Imprensa acaba de receber o bole­tim de Francoforte. O presidente... - Parou, os olhos indo de um para outro rosto, e pela expressão estupefacta de todos eles logo perce­beu que já sabiam.

Eaton, que se encontrava com o rosto escondido entre as mãos, levantou subitamente a cabeça.

-       O presidente está morto - disse. - Isso significa que o presi­dente da Câmara... Wayne... E o presidente da Câmara? O conde MacPherson também lá estava... que foi feito dele?

Talley não pareceu compreender o sentido das palavras. Eaton berrou:

Diabo, homem, MacPherson está vivo ou morto?

Vivo - murmurou Talley. - Ele... não sei bem... parece que foi também atingido... nada de sério... levaram-no para o hospital, onde estão a tratar dele. Esta é a maior tragédia da nossa história. A pior. O que é que nos vai acontecer a todos nós?

Eaton cerrou os olhos.

-       A nós? - repetiu. - Não foi só sobre o presidente que o tecto abateu, foi também sobre todos nós.

E quando ele tornou a abrir os olhos, Edna Foster tinha quase a certeza de que, pela primeira vez, lhos via humedecidos. Era difícil de dizer, porque também ela chorava, e de tal modo que não sabia se jamais conseguiria parar.

A noite caíra sobre Washington, envolvendo a cidade e toda a Nação num manto negro de dor e de luto.

As trevas tinham também penetrado no escritório oval do último presidente, onde todos aqueles que tinham trabalhado com ele, que o tinham conhecido e amado, que dele tinham dependido e precisa­do, enchiam agora os sofás e as poltronas ou permaneciam de pé nos cantos, esperando nem eles sabiam o quê e oferecendo a ima­gem viva do total desamparo e amargura.

Edna Foster, os olhos inchados, os lábios ainda trémulos, en­trou no escritório com as últimas edições dos jornais da noite e per­correu a sala sombria com um passo inseguro, distribuindo exempla­res. Além de todos aqueles que havia dez horas ali tinham estado no Gabinete, estavam agora presentes muitos outros mais. Edna reco­nheceu o procurador-geral, Clay Kemmler, o secretário do Tesouro Público, Vernon Moody, o director da C. I. A., Montgomery Scott, o senador Hoyt Watson, o almirante Alfred Rivard e mais uma dúzia, pelo menos, da mesma categoria. Todos os cantos e espaços da Sala Oval pareciam cheios, excepto um, e esse, o lugar vazio dessa noite, era a poltrona de coiro preto e espaldar alto por detrás da secre­tária do último presidente.

Ao acabar de distribuir os jornais, Edna reparou que ainda lhe restava um exemplar. O grupo que se encontrava junto das portas que dava para o Jardim das Rosas, formado pelo senador Selander, o deputado Wickland, o general Fortney e o secretário de Estado, Eaton, lia a primeira página do jornal que o senador Selander segu­rava. Ou antes, notou Edna, todos liam a primeira página, excepto Eaton, que se encontrava absorto em meditação.

Edna ergueu o jornal e logo lhe saltou à vista a primeira linha do cabeçalho: «O. C. MORTO EM FRANCOFORTE!» A segunda linha do cabeçalho, quase tão grande como a primeira, dizia: «O MUNDO CHORA O FIM TRÁGICO DO PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS.» A terceira linha, consideravelmente mais pequena, anunciava: «O presi­dente da Câmara, MacPherson, sucessor do presidente, é submetido a uma operação.»

À medida que lia o cabeçalho sentia um soluço que lhe ia subin­do pela garganta, mas conseguiu dominar-se e olhar para a metade inferior da primeira página. A história que se seguia em letras grossas de imprensa e repartida em quatro colunas começava assim:

Francoforte do Meno, 26 de Agosto.

O corpo despedaçado do Presidente dos Estados Uni­dos jaz em câmara-ardente numa sala privada da antiga cate­dral de Francoforte, enquanto todo o mundo civilizado chora a sua morte prematura.

O presidente teve morte instantânea - os ponteiros do seu relógio de pulso esmagado indicavam ainda 1 hora e 32 minutos da tarde (8 horas e 32 minutos da manhã pelas nossas horas) - quando uma ala do Antigo Palácio de Mogúncia ruiu e o esmagou. Com grande esforço, equipas da polícia e dos bombeiros da Alemanha Ocidental conseguiram retirar o cadáver de sob meia tonelada de destroços, na sua maioria blocos de granito e fragmentos de tijolo que caíram sobre o Chefe do Estado da América e sobre mais três homens que se encontravam na antiga e histórica biblioteca, onde o presidente fazia nesse momento uma chamada a longa distância para os seus conselheiros na Casa Branca. Por ironia do destino, o pre­sidente morreu nas ruínas de um dos edifícios do século xiv, da antiga cidade de Francoforte, poupados pelos bombardeiros dos Aliados na Segunda Grande Guerra.

Um oficial alemão, que deseja guardar o anonimato, infor­mou iradamente: «O palácio devia ter sido condenado depois da guerra. Não só contava já 600 anos, mas a sua estrutura tinha sido abalada pelos bombardeamentos e nunca fora reconstruída e reforçada como necessitava. Foi uma grande tragédia, e a perda de um dos mais populares e internacionais chefes executivos dos tempos modernos afecta tanto a Améri­ca como nós próprios.» Na ocasião do fatal acidente, o presi­dente estava no poder havia dois anos, sete meses e seis dias do seu mandato de quatro anos.

Entre os primeiros a apresentar condolências pelo ocor­rido conta-se o ministro Nikolai Kosatkin, da União Soviética, que estivera em reunião com o presidente durante esta última semana para debater certos e importantes problemas interna­cionais. O porta-voz oficial da U. R. S. S. comunicou à Impren­sa: «A conferência do Roemer pode ser considerada suspensa mas não cancelada. Fizeram-se certos progressos. Os pontos em discussão, porém, continuam ainda por resolver e devem ser retomados caso se queira preservar a paz do mundo. Aguar­damos ansiosamente a proclamação do sucessor do presi­dente, no governo dos Estados Unidos. Assim que tal facto for tornado público, esperamos poder marcar uma data para re­tomar as conversações».

Entretanto, os olhos de todo o mundo estiveram hoje con­centrados no Hauptwache Hospital de Francoforte, onde o sucessor constitucional do presidente, o conde MacPherson, veterano presidente da Câmara dos Deputados, ferido no mes­mo acidente, está a ser submetido a uma operação à espinha. Os três cirurgiões alemães, mandados vir de Munique, não fize­ram qualquer comentário acerca das probabilidades de salva­ção do presidente MacPherson, mas o embaixador dos Esta­dos Unidos na Alemanha, Paul F. Zwinn, informou os repórteres de que havia todas as razões para conservarem o optimismo.

A notícia estendia-se ainda por mais duas colunas e havia ainda muitas outras histórias semelhantes na primeira página, mas Edna Foster não sentia qualquer desejo de continuar a ler. Pondo de parte o jornal, notou que Wayne Talley e Tim Flannery segredavam no limiar da porta do seu escritório.

Talley voltou-se e dirigiu-se para Arthur Eaton.

Fique por aqui perto, Edna - disse. Depois, chegando ao pé de Eaton, disse: - Eles estão em comunicação permanente com Francoforte. Não sabem ainda nada acerca de MacPherson. Está quase há três horas na sala de operações. Tim conseguiu falar bre­vemente com o embaixador Zwinn. A primeira fase da operação foi bem sucedida, mas nunca se sabe. Contudo, todos se sentem mais descansados. Esperam que MacPherson possa prestar juramento assim que recuperar os sentidos da anestesia. Acho melhor o Tim e eu fazermos uma declaração à imprensa. Há mais de mil correspon­dentes importantes lá fora, reclamando informações.

Está bem - disse Eaton desinteressadamente.

Talley hesitou.

Eu sei como... como você ainda se sente, Arthur. Sei quão íntimo você era de O. C. Nem eu próprio me consigo habituar à ideia. Ando completamente atordoado. Quem é que alguma vez poderia ter sonhado tal coisa...

Vá fazer essa declaração - atalhou Eaton. Depois acrescen­tou: - Assim que tiver notícias de MacPherson faça-mo saber.

Está bem.

Edna viu Talley fazer-lhe sinal.

-       Edna - disse ele -, o Tim e eu precisamos da sua ajuda. Sei que é duro para si, mas temos de ditar qualquer coisa acerca do facto de MacPherson suceder a O. C. como presidente.

Contra vontade, Edna Foster fez que sim com a cabeça, odian­do esse momento de rendição, de verdade amarga, em que o seu chefe seria suplantado por outro. Seguiu o ajudante do presidente para o seu pequeno escritório, fechou a porta atrás de si e reparou que Tim Flannery já tinha armado duas cadeiras. Como ele e Talley estivessem já sentados, ela contornou a secretária para se ir sentar no lugar do costume, na cadeira móvel. Preparou o bloco de esteno­grafia, vários lápis afiados e esperou.

Flannery apontou para os lápis.

Não escreva nada ainda, Edna. Wayne e eu queremos primeiro discutir ieto. - Flannery tinha já passado para as mãos do ajudante uma rima de papéis em que Talley se enfronhara.

Está tudo aqui? - perguntou Talley, lendo ainda.

Tudo - respondeu Flannery. - Os rapazes da Comissão Judi­ciária investigaram isso e os magistrados também nos deram algum material; quanto ao pano de fundo, pusemos a trabalhar o Serviço de Informação Legislativa na Biblioteca do Congresso. Encontrará as Actas da Sucessão Presidencial de 1792,1886 e 1947 absolutamente completas, com os artigos convenientes assinalados. Depois há tam­bém uma série de datas legais e de fundo, tudo separadamente coor­denado.

Não é espantoso como se vai vivendo e nunca se pensa nes­tas coisas? - disse Talley. - Eu estava convencido de que sabia a maior parte destas coisas e não sei. Sei que oito presidentes antes de O. C. morreram no exercício das suas funções, mas não fazia a menor ideia que o mesmo sucedera a oito vice-presidentes.

-       Nove vice-presidentes, contando com o pobre Porter. Talley ergueu os olhos confuso.

-       Deus meu, esquecera-me completamente dele. O dia de hoje parece ter apagado tudo o mais.

Ouvindo apenas metade do que eles diziam, Edna fazia riscos no bloco. Depois, enquanto Talley continuava a ler, ela começou a escrever os nomes dos nove presidentes, incluindo O. C, que tinham morrido. Escreveu: William Harrison, Zachary Tayler, Abraham Lincoln, James Garbield, Warren Harding, Franklin D. Roosevelt, John F. Kennedy e por fim O. C. Depois contou-os - oito. Faltava um. Por fim lembrou-se e escreveu o nome de William McKinley entre Garfieid e Harding. A seguir tentou recordar os nomes dos vice-presidentes que tinham morrido no exercício das suas funções. Só conseguiu lem-brar-se de Elbridge Gerry, Henry Wilson, Garret Hobart e Porter e mais nenhum. Finalmente desistiu. De que é que servia estar a pensar nisso? Começou a sentir-se mal.

Ouviu a voz fatigada de Talley.

-       Eu julgava que quase todos os presidentes que não tinham acabado o seu mandato haviam sido assassinados, mas diz aqui que só quatro o foram.

-       Lincoln, Garfieid, McKinley e Kennedy - disse Flannery com os dedos apoiados na testa. - Harrison e Harding morreram, em parte, com uma pneumonia. A morte de Taylor foi devida à cólera-morbo. F. D. R. morreu de uma hemorragia cerebral. Parece incrível, mas O. C. foi o único a morrer num acidente. - Encolheu os om­bros. - Suponho que tinha de suceder alguma vez a alguém. - De­pois acrescentou com um ar desditoso - Mas por que é que tinha de ser O. C?

Edna tinha estado a observar Tim Flannery enquanto falava, e, por detrás de toda aquela fachada de um realismo forçado, havia uma certa doçura nele que a encantava. Era um irlandês alto, de cabe­los rebeldes e arruivado, com um pequeno bigode da mesma cor e uma cara larga e ingenuamente corada, agora inchada e manchada pela tristeza. O seu aspecto dava bem com os fatos de tweed com cotovelos de camurça que usava. Fora um jornalista do Midwest e escrevera vários livros de História altamente respeitados. Todos os do corpo da imprensa da Casa Branca gostavam dele e entre eles o seu George.

Foi a vontade de Deus - disse o governador Talley. O seu olho vesgo contemplou o tecto e depois regressou relutantemente para baixo, para os papéis nas suas mãos. - Bem, suponho que alguém tem de fazer isto. É melhor acabarmos com isto depressa... Deixe--me ver, Tim, diz aqui que o presidente da Câmara MacPherson com­pletará o mandato de O. C, isto é, será presidente durante um ano e cinco meses. Está correcto?

Sim, se lhe acrescentar ou tirar alguns dias - disse Flannery de um modo quase inaudível. Parecia estar a fazer um esforço para se controlar. - Todos os vice-presidentes anteriores que sucederam aos presidentes tinham mais do que três anos de mandato para concluir, excepto Fillmore, que exerceu o cargo durante dois anos e oito me­ses que restavam do mandato de Taylor, Coolidge, que terminou o mandato de Harding durante um ano e sete meses, e Lyndon Johnson, que desempenhou o cargo durante os quinze meses que restavam do mandato de Kennedy. MacPherson ainda será presidente durante um período de tempo suficientemente longo.

É verdade - disse Talley com um ar sério. - Diz aqui que esta é a primeira vez na nossa história que perdemos ambos os homens eleitos para nos governarem.

Nunca tal aconteceu - disse Tim Flannery. - Mas, como Clinton Rossiter escreveu no American Presidency, «Isto não é garantia para o futuro.» Como ele tinha razão! - Flannery apontou para a rima dos papéis. - Reparou na outra citação de Rossiter?

Qual delas?

Flannery inc!inara-se para a frente e apontou para um parágrafo na primeira página.

-       Aqui mesmo. - Leu-o alto. - Se estamos mal preparados para uma vaga dupla, então não estamos de maneira nenhuma preparados para uma vaga múltipla; e esta é a espécie de vaga, informaram-me certos colegas que costumam lidar com as leis da probabilidade, com que mais provavelmente teremos de lidar nos próximos cem anos.

Talley franziu o sobrolho.

-       Isso não me interessa. Estou apenas interessado nos factos, Tim, em mais nada. Estamos a enfrentar uma vaga dupla e não múlti­pla. Vejamos a Acta da Sucessão Presidencial de 1947, antes de ditar a declaração a Edna. - Ele começara a passar as páginas e por fim encontrou-a. - Aqui está ela. É clara e simples. Se a presidência e a vice-presidência ficarem vagas, «o presidente da Câma­ra dos Deputados deverá, depois de pedir a demissão do cargo de presidente e de deputado do Congresso, governar como presiden­te». - O seu olhar desviou-se para o fim da página. Sim, bastante explícita - presidente, vice-presidente, presidente da Câmara. Depois destes a ordem da sucessão é: presidente interino do Sena­do, ministro de Estado, ministro das Finanças, ministro da Defesa, procurador-geral e assim por diante, percorrendo o Gabinete. - Er­gueu a cabeça. - Já alguma vez algum presidente da Câmara este­ve tão próximo da presidência como agora?

Não, enquanto presidente da Câmara - disse Tim Flannery. -Um antigo presidente da Câmara, Polk, foi mais tarde eleito presi­dente. Mas nunca nenhum...

Bem, alguma vez tem de ser a primeira - disse Talley tornando a dar os papéis ao secretário da Imprensa. - Então é o presidente da Câmara, o velho e rabujento conde MacPherson em pessoa. Quem é que acreditaria que tal coisa fosse possível? Bem, é a lei e, como quer que nos sintamos, é melhor começarmos a ditar qualquer espé­cie de anúncio de imprensa.

Flannery deu um estalo com os dedos.

Esqueci-me de arranjar alguns dados acerca dos anteceden­tes de MacPherson. Isso também não pode faltar.

Certamente - disse Talley.

Flannery revirou-se na cadeira para dizer a Edna:

-       É capaz de fazer o favor de pedir ao deputado Harvey Wickland que chegue aqui? Ele pode-nos dar as informações que precisamos, por agora, acerca de MacPherson.

Edna levantou-se, foi rapidamente até à porta que dava para o escritório do presidente, abriu-a e então estacou surpreendida. Todos que se encontravam na sala apinhada estavam de pé, à volta de Arthur Eaton, que se encontrava no meio da sala, precisamente sobre a águia do escudo dos Estados Unidos tecida no tapete presi­dencial.

Edna voltou-se para Flannery e Talley.

-       Aconteceu alguma coisa! - exclamou. - Estão todos à volta do ministro de Estado.

Imediatamente Talley e Flannery se puseram de pé de um salto e correram para a sala, em direcção a Eaton. Como um autómato, Edna seguiu-os até ao centro do escritório oval.

Eaton, com voz seca e rouca, dizia alto:

-       Acabo de receber uma chamada de Francoforte. Tenho terrí­veis notícias para vos dar, terríveis notícias, o que lamento imenso. O presidente da Câmara, conda MacPherson, morreu na mesa de operações, há 10 minutos. A notícia foi confirmada. Agora o presi­dente da Câmara está também morto.

Um suspiro convulso elevou-se através da sala e ouviu-se algu­res alguém soluçar histericamente. Depois foi-se fazendo um silên­cio cada vez mais pesado.

Edna ouviu Tim Flannery, mesmo junto dela, murmurar para si próprio: - Uma vaga múltipla.

O primeiro que recuperou a fala foi o governador Wayne Talley.

-       Não acredito! - exclamou.

O segundo a falar foi Arthur Eaton.

-       É a verdade.

Foi então que o general Pitt Fortney gritou:

-       Mas, com mil diabos, quem vai ser o sucessor de O. C? Arthur Eaton ergueu a mão.

-       Segundo a Acta da Sucessão Presidencial de 1947, o próximo na linha é o presidente interino do Senado dos Estados Unidos.

Por uns estranhos e intermináveis segundos, a declaração do ministro de Estado ficou suspensa no ar, e os que a tinham ouvido ficaram imóveis deixando que ela penetrasse bem nos seus espíritos e sentindo-se como se as paredes cobertas de nichos e prateleiras cheias de recordações mortas estivessem prestes a precipitar-se sobre eles.

-       O presidente interino do Senado! - entoou o procurador-geral, como alguém que entoasse amém.

E imediatamente depois, todos ao mesmo tempo, conjuntamente, cada um na sala pareceu compreender quem era, quem era o próxi­mo Presidente dos Estados Unidos, e, imediatamente, todos ao mes­mo tempo, conjuntamente fixaram os olhos no único homem que se encontrava um pouco afastado, junto da secretária.

Todos pareciam fitar o senador Douglass Dilman. E Edna ficou aterrada ao ver que no olhar de todos, sem excepção, estava estam­pada uma expressão de horror.

Decorridos 30 minutos, o grupo, engrossado agora pela chega­da de outros membros do Governo, tinha-se reunido na sala do Gabi­nete de Ministros. Formavam um semicírculo à volta da mesa com uma abertura no centro para os representantes da imprensa, dois fotógrafos e dois homens da televisão. Anteriormente, enquanto espe­ravam, Eaton perguntara a Douglass Dilman se havia alguns paren­tes ou amigos que ele desejasse como testemunhas da cerimónia. Ele respondera em surdina:

-       Não senhor, nenhum.

Anteriormente, havia alguns minutos, Eaton tinha feito sinal a Edna e a Tim Flannery para lhe arranjarem uma Bíblia. Percorreram tudo, mas não conseguiram encontrar nenhuma cópia da Bíblia, até que Edna se lembrou de que estava uma na gaveta inferior da sua secretária. Tinha-a ido buscar e achara a Bíblia barata e em mau esta­do, uma Bíblia Gideon que ela pedira uma vez emprestada num hotel de Memphis durante uma viagem em que acompanhara O. C. e se esquecera de a devolver. Envergonhada, retirara a Bíblia Gideon da gaveta e entregara-a a Eaton.

Depois permaneceu de pé junto de Eaton, que se apoiara às costas da cadeira de coiro que ostentava a pequena placa «Ministro de Estado».

Ouviu Eaton perguntar ao senador Dilman:

Deseja que se abra nalguma passagem em particular? Ouviu Dilman responder:

Livro dos Salmos, 127-1.

Eaton folheou lentamente o livro e depois disse:

-       É isto? - «Excepto o Senhor que constrói a casa, trabalham em vão os que a constroem; excepto o Senhor que guarda a cidade, o guarda não faz mais que guardar em vão.»

Olhou interrogativamente para Dilman e este engoliu fazendo a maçã de Adão subir e descer, e respondeu:

-       Sim senhor, é essa.

Foi nessa altura que Noah F. Johnstone, presidente do Supre­mo Tribunal, surgiu à porta do corredor e atravessou a sala, ace­nando gravemente com a cabeça para os rostos familiares volta­dos para ele. Mesmo sem a toga, pensou Edna, mesmo com a gravata e o fato escuro, o presidente do Supremo tinha um aspecto imponente. Era um homem gigantesco, um pouco curvado e de andar irregular. O seu rosto, enrugado e grave, não denotava qualquer emoção.

Rodeou a mesa do Gabinete, penetrando na zona iluminada, acenou com a cabeça na direcção de Talley, depois na de Dilman e Eaton e tomou o seu lugar ao lado da antiga cadeira de O. C.

-       Está tudo pronto? - perguntou, a ninguém em particular, e depois aceitou das mãos de Eaton a Bíblia Gideon aberta, olhou de revés para ela e disse a Dilman: - Pegue no Livro Sagrado com a mão esquerda e levante a mão direita. Recitarei o juramento do car­go como está escrito no Artigo II, Secção 1, da Constituição dos Es­tados Unidos. Quando eu tiver terminado, repita, por favor, o jura­mento.

Estendeu a Bíblia a Dilman, que lhe pegou e a segurou com dificuldade na mão esquerda ao mesmo tempo que erguia tremula-mente a mão direita. O presidente do Supremo levantou também a mão direita e, martelando cada palavra, pronunciou o juramento do cargo.

Quando terminou, esperou.

Depois de uma pausa dolorosa, os lábios grossos de Douglass Dilman moveram-se e as palavras repetidas por ele saíram em voz baixa e modulada.

-       Eu, Douglass Dilman, juro solenemente desempenhar fielmen­te o cargo de Presidente dos Estados Unidos e, tanto quanto me for possível, preservar, proteger e defender a Constituição dos Estados Unidos.

Deteve-se e olhou em seu redor desorientado, como se procu­rasse um amigo entre as pessoas presentes. A luz dos projectores fazia com que as testemunhas do quadro histórico tivessem um ar fantasmagórico. Ele baixara a mão direita e subitamente o presidente do Supremo, Johnstone, adiantou-se, agarrou a mão direita de Dilman e abanou-a.

-       Sr. Presidente - disse o presidente do Supremo -, lamentamos profundamente a morte do nosso querido antigo presidente, mas a continuidade do governo e o bem-estar da Nação devem estar acima de qualquer indivíduo nestes tempos perigosos. Compartilhamos convosco o duplo fardo - e que Deus o abençoe e o proteja como o novo chefe executivo desta Nação e como o primeiro negro a tornar-se Presidente dos Estados Unidos.

 

Foi acordado pelo som abafado de uma discussão.

Sentiu uma dor aguda por detrás da testa quando se esforçou por escutar, separando o som abafado em dois sons distintos: o pri­meiro, agudo e feminino, zangado e indignado; o segundo, baixo e másculo, calmo e apaziguador.

Tinha a cabeça tão enterrada na almofada que, quando a volta­va, não conseguia ver as horas no relógio. A almofada, quase de tamanho duplo e enchida com penas de ganso, fora confeccionada por Aldora, que lha oferecera no dia em que tinham completado um ano de casados, havia já muito tempo, quando o seu casamento era ainda cheio de promessas e esperanças.

O fogo aceso da altercação do outro lado da parede do quarto continuava cada vez mais alto e incandescente. Ergueu-se sobre o cotovelo e conseguiu discernir que horas eram, no despertador colo­cado a um canto da mesinha de cabeceira. Eram 8 horas e 52 minu­tos e, embora o quarto estivesse escuro, ele sabia que isso era devi­do às cortinas e que lá fora já era manhã.

Lembrou-se de que tivera a intenção de se levantar mais cedo, mas esquecera-se de ligar o despertador antes de adormecer. A ala­vanca de desligar o telefone não tinha permitido que este tocasse e, completamente exausto, tinha-se deixado invadir cada vez mais pela sonolência. Era vergonhoso, pensou, sentindo mais a dor de cabe­ça. Como sempre, o pensamento de ter feito algo vergonhoso alar-mou-o. Os outros podiam permitir-se cometer erros, grandes e pe­quenos, mas ele não podia permitir-se nenhum, nem mesmo o mais pequeno. Várias vezes, durante a sua estada em Washington, tinha sonhado que caminhava sobre a água de um enorme aquário cujas paredes tinham olhos azuis pintados, olhando fixamente para ele. Este trémulo fragmento de sonho deixara-lhe sempre uma sensação de mal-estar.

Mas agora o anzol especial de humor que ele possuía, mas que não se atrevia a mostrar a ninguém, excepto a Wanda e aos amigos mais íntimos, pescou-o para fora do aquário e sentiu-se livre para admitir a si próprio que acabara de desempenhar o seu primeiro acto como Presidente dos Estados Unidos: dormira de mais.

Subitamente, a enormidade do que lhe sucedera na última noite e do que ele era sufocou-o pela sua irreal idade e forçou-o automati­camente a enterrar-se de novo na almofada.

Lembrou-se então de alguém lhe ter dito na noite anterior que ele, depois de se ter demitido oficialmente do Senado, se tornara Presidente dos Estados Unidos às 10 horas e 37 minutos da noite. Só chegara a casa à 1 hora da manhã e era-lhe quase impossível recordar-se do que se passara durante essas duas horas e meia. Lem-brava-se de ter assinado algo, de ter feito a sua primeira assinatura oficial; sim, tinha posto o seu nome na proclamação que o presiden­te MacPherson deveria ter assinado, exactamente a mesma que fora apressadamente preparada para ele e que deveria ter sido enviada de avião para Francoforte. Essa proclamação era o anúncio oficial do funeral de O. C. e do período de luto nacional pela sua morte.

Escutara os comentários do ministro de Estado, Arthur Eaton, e do governador Wayne Talley acerca da crítica Conferência do Roemer, e nada lhe ficara do que ouvira. Estivera sentado com eles, fumando charutos até lhe arderem os olhos e sentir a garganta empolada; esti­vera também preparando cuidadosamente outras notícias juntamen­te com Tim Flannery, aquele ruivo e simpático secretário da impren­sa. Depois outros tinham surgido à sua volta, senadores e deputados, que ele conhecia das horas de trabalho havia anos, e os membros do Gabinete de O. C, que ele mal conhecia. Todos tinham falado acerca de aproximações, de estratégias, de relações públicas e do Partido, e ele ficara grato por eles se terem dirigido a Eaton, a Talley e a Flannery, e não a ele próprio.

Quase que ficara fisicamente doente devido ao estado de ten­são em que se encontrara todo o dia e parte da noite. Só ficara livre depois da meia-noite, quando todos os outros se despediram e se retiraram. Fora então conduzido até um Cadillac estacionado junto do pórtico sul e lembrava-se de ter protestado contra a presença dos agentes do Serviço Secreto, que tinham entrado para o carro atrás dele, e contra a escolta da polícia que o tinha acompanhado até casa.

Recordou-se da cena passada em frente de casa, quando pedira a Hugo Gaynor, o chefe do Serviço Secreto que o tinha seguido até à sala de estar, que se fosse embora para casa e como Gaynor se mantivera inabalável na sua resolução de ficar. E lembrou-se que se rendera porque estava tão exausto que o seu único desejo era refugiar--se, sozinho, no quarto de dormir, longe dos olhos azuis à volta do aquário de vidro.

O som da discussão do outro lado da parede do quarto conti­nuava persistentemente. Provavelmente durara todo o tempo da sua introspecção. Por fim conseguiu desligar-se do dia anterior e descer ao presente, às horas que eram e à rotina da sua vida quotidiana, e compreendeu então o que se passava na sala. Era Crystal que discu­tia com um agente do Serviço Secreto.

Crystal fora-lhe arranjada por uma agência e começara a traba­lhar para ele durante o seu quarto mandato na Câmara dos Deputa­dos. Porque vivia sozinho, ela tornara-se ferozmente maternal no que dizia respeito ao seu conforto. Cinco dias por semana ela chegava às 8 horas e 30 minutos para lhe arranjar o pequeno-almoço, fazer a cama, limpar todo o apartamento e ir às compras. Trabalhava até ao meio-dia e meia-hora; a essa hora saía para ir tratar da sua própria família e da sua irmã, e regressava novamente às 3 horas e meia, ficando para lhe fazer e servir o jantar, só se indo embora, às vezes, às 8 horas da noite.

Como cozinheira era uma desgraça, deixava sempre queimar as torradas e era do tipo de criada de pé-descalço. Mas estava sempre pronta para tudo, era fiel, despachada e relativamente discreta, isto até quando lhe dera para falar, mencionando sempre o cunhado que estava empregado numa estação de serviço, acerca do Grupo dos Turnerites, que estava a dar cabo da única oportunidade que os de cor tinham de melhorar economicamente através daquele decreto de subsídio para a reabilitação dos negros de que se falava.

O motivo da discussão na sala tornou-se-lhe imediatamente claro. Crystal tinha chegado como de costume e deparara com o Serviço Secreto, o que não era usual. Dera-se então o choque daforça irresistível contra o objecto inamovível.

Douglass Dilman atirou com o cobertor eléctrico para o lado, levantou-se, compondo o pijama azul, enfiou os pés nas chinelas, pegou no roupão que estava sobre a cadeira e vestiu-o. Depois foi até à secretária e olhou-se no espelho. O cabelo, preto e ondulado, como sempre depois de dormir, estava todo levantado no alto da cabeça. Pegou no pente e passou-o pelo cabelo espesso, acamando-o. Esfregou os olhos injectados para os limpar e clarear. Examinou o rosto largo e grosseiro. Era um rosto negro, mas não negro retinto, e as suas feições eram negróides. Tinha a testa alta, o nariz carnudo e achatado, os lábios grossos e proeminentes.

Agora, na casa dos cinquenta, o seu aspecto era maciço e atar­racado, mas não gordo. Lembrou-se de que na noite anterior, quan­do Tim Flannery lhe perguntara a altura e o peso, lhe respondera que media cinco pés e dez polegadas (aumentando meia polegada para parecer mais alto) e pesava 180 libras. O seu aspecto, tinha-lhe uma vez dito um seu partidário de uma cidade importante, favorecia-o. O não ser muito alto, o vestir-se sobriamente, o que o tornava a antí­tese do jovem e temível peralvilho negro, juntamente com a maneira suave e cortês de falar e agir de caucasiano tomavam-no mais acei­tável aos eleitores brancos, enquanto as suas feições, nitidamente negras, o faziam digno da confiança e simpatia dos eleitores subal­ternos pretos. Frequentemente, no passado, ele desejaria poder per­tencer inteiramente ou a um ou a outro lado, como sucedia com os membros da sua família. Aldora, infelizmente já morta, tinha o cabelo castanho-claro, sendo muitas vezes confundida com uma espanho­la, o que, estava ele convencido, contribuíra para o que se passara. O seu filho Julian era tão preto como ele, mas possuía umas feições menos grosseiras que as suas. Mindy, a sua patética filha, era (ou fora, pois a última vez que lhe pusera os olhos em cima havia já seis anos) branca e linda, branca e encantadora, o que agradara à mãe, o preocupara a ele, o que enchera Julian de ressentimento e fizera com que Mindy se tornasse altiva e insuportável.

Julgou ouvir a voz aguda de Crystal através da parede. «Acor-dem-no!», exigia ela.

Apertou o cinto do roupão, abriu a porta, atravessou o pequeno vestíbulo e virou à esquerda em direcção à sala de estar.

Não estranhou a cena que se lhe deparou. Por debaixo do arco que ligava o hall de entrada à sala, estava Crystal, gorda e luzidia, enfiada no seu casaco castanho e deformado, segurando ainda os jornais da manhã numa das mãos e o inseparável e enorme cesto de papel (em que levava os restos de comida para o cão da irmã) na outra. Obstruindo-lhe a passagem estava Hugo Gaynor, o magro e velho chefe do Serviço Secreto, e o bem proporcionado ex-atleta da Califórnia Lou Agajanian, chefe do Departamento do Serviço Secreto da Casa Branca.

Foi Crystal quem primeiro viu Dilman. Acenou com a mão gorda e guinchou:

-       Senador, eles não me querem deixar entrar e eu tenho de fazer o pequeno-almoço!

Gaynor e Agajanian voltaram-se e tornaram-se instantaneamente respeitadores e humildes.

-       Sr. Presidente - disse Gaynor -, não fazemos a menor ideia de quem esta senhora seja. Não podemos deixar entrar aqui pessoas sem sabermos quem são, apenas porque dizem que trabalham para si. Pode imaginar o que...

Dilman acenou com a cabeça.

-       Ela é perfeitamente digna de confiança, Sr. Gaynor. Crystal é minha governanta há anos. Devia-o ter avisado ontem à noite... Olá, Sr. Agajanian, penso que já nos conhecemos... Bom dia Crystal. Agora já pode entrar.

Obedientemente, os agentes deram-lhe lugar para passar, o que fez com que Crystal arregalasse os olhos de admiração. Era quase cómico ver como no seu rosto negro e rude a indignação dava lugar ao triunfo, depois ao prazer e por fim à adoração. Bamboleou-se em direcção a Dilman e parou na frente dele, piscando os olhos.

Eu... eu quase me esquecia de dizer, senador... presidente... Sr. Presidente... mas quero ser a primeira a felicitá-lo, assim como da parte da minha irmã, do meu cunhado e dos miúdos.

Obrigado, Crystal, muito obrigado.

Ela começou a afastar-se, ainda com uma expressão de adora­ção no rosto, e depois parou.

-       Ontem à noite estivemos levantados até tarde e vimos tudo na televisão. Tivemos todos muita pena do que sucedeu aos outros, mas ficámos contentes que a sorte lhe tivesse calhado a si, já que tinha de calhar a alguém. Eu, eu estive mesmo para não vir esta manhã. Qua­se que tinha a certeza de que estaria na Casa Branca, com pessoas especiais para o servirem, e que não precisaria mais de mim. Dilman sorriu.

-       Por enquanto não irei para a Casa Branca, e pode ter a certe­za, Crystal, que precisarei então tanto de si como preciso agora.

Ela pareceu ficar extremamente aliviada.

-       Muito obrigada, Sena... Sr. Presidente.

De repente arreganhou os dentes num sorriso e disse:

Tenho de aprender como lhe hei-de falar agora. O que quer tomar nesta manhã especial? Alguma coisa também de especial?

O mesmo do costume, Crystal. Dê-me apenas uns quinze mi­nutos para tomar duche e me vestir.

Ela dirigiu-se para a casa de jantar e cozinha, baloiçando o cesto de palha, e Dilman sorriu para os agentes do Serviço Secreto.

-       Ela vem todos os dias - disse ele - e nos fins-de-semana traz também a sobrinha.

Gaynor disse:

Temos de o maçar por causa de uma lista completa dos seus empregados e amigos.

Tê-la-ão ainda hoje.

Sr. Presidente, atendemos também uns telefonemas.

Alguma coisa de importante?

Acho que nada de urgente. O ministro de Estado disse que desejava falar consigo quando o senhor se levantasse. Ah, sim, hou­ve também uma chamada pessoal, Telefonaram duas ou três vezes de Nova Iorque - era um jovem que disse ser seu filho.

-Julian?

É isso, Sr. Presidente. Deu o nome de Julian Dilman. Disse que voltava a telefonar às nove e meia.

Está bem. Agora é melhor que me vá arranjar. - Começou a andar e depois disse por cima do ombro: - Podem pedir a Crystal que faça qualquer coisa para comer. Devem estar a morrer de fome.

Muito obrigado, Sr. Presidente - responderam os dois agentes ao mesmo tempo.

O tom das suas vozes ecoava ainda nos ouvidos de Dilman en­quanto se encaminhava novamente para o quarto. Ele era sensível a todas as variações da fala dos seus colegas brancos. As mudanças de inflexão da voz constituíam a sua arma civilizada de ironia e supe­rioridade se usavam o insulto, mesmo quando se tratava de um de­putado. Essa era a sua melhor arma quando viam que uma pele era preta e vulnerável. Não se podia dizer que fosse uma falta de respei­to, mas podiam-se conhecer as suas vibrações. Ele lembrava-se do que se passara numa audiência da delegação, quando o general Pitt Fortney comparecera como testemunha perante ele e os outros. Ele fizera uma pergunta e a resposta de Fortney, no registo, estava per­feitamente fora de qualquer censura. Quando escrita, era uma res­posta sensata a um senador. Percorrendo oralmente as mesas da delegação, fora um general branco do West Point falando de cima para baixo para um preto qualquer. Talvez ele estivesse ultra-sensível nessa ocasião e em outras ocasiões mais recentes. Durante anos tentara dominar a sua sensibilidade excessiva, do mesmo modo que outros homens tentavam reduzir o peso excessivo. Era uma tarefa árdua e sem descanso. Podia ser conseguida. Mas então, de vez em quando, surgia uma súbita explosão de sensibilidade, assim como se aumentava subitamente de peso, e sofria-se com esse excesso.

Despindo o roupão e entrando para a casa de banho, concluiu que os dois chefes do Serviço Secreto, Gaynor e Agajanian, tinham sido corteses no seu comportamento. E pareceu-lhe razoável que as­sim sucedesse. Aos seus olhos delicados, um senhor presidente era um senhor presidente, quer se chamasse Grover Cleveland, Woodrow Wilson, Dwight D. Eisenhower, O. C. ou Douglass Dilman. O que con­tava para eles, para os seus empregos, para o seu futuro, para o seu orgulho, era proteger as libras de carne que lhes tinham sido confia­das, qualquer que fosse a sua pigmentação.

Tirou o pijama, abriu a porta do chuveiro e, depois de regular as torneiras, pôs a água a correr. Enquanto procurava o sabonete e a luva turca, perguntava a si próprio quantos outros brancos seriam tão corteses como os seus guarda-costas. Passou em revista as per­sonalidades cujos discursos e comentários brilhantes ele tinha ouvi­do, e cujos preconceitos ele conhecia: os deputados do Sul, os dele­gados do Norte, os reaccionários do Oeste os snobs da Liga de Ivy de Este. Um filho de Ham, pensou ele, na Casa Branca, no escritório oval da ala ocidental, no lugar mais alto existente naquela república vermelha, branca e azul, mas não preta. Apesar de Robert Kennedy ter predito, quando era procurador-geral, que dentro de trinta ou quarenta anos poderia haver um negro na Presidência, não houvera, então ou agora, ninguém de igual importância, por muito sábio ou liberal que fosse, que tivesse acreditado que tal pudesse acontecer ainda neste século. Contudo, isso acontecera, acidentalmente.

Ao entrar para o chuveiro, ele sabia que desde a noite anterior estava isolado e sozinho perante o que se passava lá fora, na capital e nas cidades dos cinquenta estados. A essa hora quão estupefacto o povo americano não deveria estar, ao saber que teria como presi­dente um intruso, um membro pertencente aos dez por cento da mino­ria preta do seu país de brancos.

Sentiu um arrepio, não provocado pelo contacto da água do chu­veiro mas por compreender plenamente, pela primeira vez, o que suce­dera e com que violência tal acontecimento seria ressentido.

Recordou o pequeno poema: How odd I of God I to choose I the Jews.

Em seguida, parafraseou-o: «Quão estranho Deus ter-me esco­lhido a mim, o ter escolhido alguém que já chegara suficientemente alto, demasiado alto para ter descanso e que não queria ir mais além do que já fora, alguém que desejava apenas limitar-se à sua altura legislativa onde a dúvida e a desconfiança ainda o mantinham como um objecto exposto que a ninguém ofendia e que ao mesmo tempo adoçava a boca à consciência liberal do Norte.» Então lembrou-se das palavras forçadas do presidente do Supremo, na noite anterior: «Que Deus o abençoe e o proteja... como o primeiro negro... Presi­dente dos Estados Unidos.»

Sentiu as pernas fraquejarem-lhe e o coração bater acelerada­mente dentro do peito. Havia um milhão de brancos aptos para tal lugar. Havia uns mil pretos que teriam escolhido audaciosamente e de bom grado a oportunidade enviada por Deus e tê-la-iam qualifica­do mesmo assim. Contudo, algo, algo de errado se passara lá em cima. O Senhor tinha apontado com o Seu divino dedo para o nome errado e agora era já demasiado tarde. Desejou censurar o Criador pelo seu erro, mas então - devido ao respeito pela memória da mãe, do pai e das tias, na terra do Midwest, devido ao temor do fogo do inferno anunciado na velha igreja de Michingan, na sala por detrás das ruínas do clube, quando ele ainda usava calções - sentiu-se estranhamente humilde perante Deus e o Seu Filho, e a sua amar­gura e medo, um medo realmente humilhante e profundo, transformaram-se em vergonha. Este não era o local indicado para ajoelhar, mas quando tivesse tempo iria pedir perdão e a ajuda de Deus.

Contudo, Jesus, por que tivera de ser ele, Douglass Dilman, que não era branco e que tinha medo de ser preto e que não possuía qualquer defesa?

Depois, enquanto a água, mais quente agora, lhe caía sobre o peito e a espuma lhe escorria pelo estômago e coxas, e que ele dis­traidamente se esfregava com a luva, deixando que a água dissol­vesse o sabão, pensou que a sua situação, apesar de ele não ser o homem indicado para ela, não era assim tão má. Recordou a noite anterior, ou antes, as primeiras horas dessa manhã, quando o carro da Casa Branca o conduzira a casa. O que acontecera então era, olhando para trás, encorajador.

Quando se tornara membro da Câmara dos Deputados, aluga­ra o apartamento superior da frente de um edifício de dois anda­res, em tijolo vermelho, entre a Avenida Geórgia e a Rua 16. As três divisões assoalhadas e a pequena cozinha, modestas e lim­pas, tinham sido suficientes para a sua existência de viúvo. O sítio era agradável, entre uma vizinhança outrora branca e agora forma­da por negros das classes altas. Mas o apartamento em breve se tornou pequeno para ele. O senador Espinosa, que estava a ficar velho e incompetente para o seu cargo, pedira a demissão quan­do estava a dois terços da duração do seu mandato. O governa­dor do seu Estado, para reforçar a sua posição com a vasta popu­lação de eleitores negros do seu Estado - que triplicara com o afluxo de famílias de cor vindas do Sul - e com os chefes da união liberal, designara Dilman para o lugar vago de Espinosa, durante os dois anos que restavam. Dilman, como senador, achara-se uma avis rara. Tendo deixado Washington para fazer uma campanha no distrito preponderantemente negro, para o seu quinto mandato na Câmara, regressara a Washington como senador designado. Pertencendo ao número reduzido dos negros que tinham alcança­do um lugar tão elevado no governo, fora então o assunto de arti­gos de primeira importância em revistas como a Life, o Look, o Time e o Newsweek, e o seu retrato aparecera nas capas do Ebony e Sépia. Sentira-se vagamente um bicho raro em exposição e fica­ra desconcertado, mas, encorajado pelos chefes do Partido, coope­rara com todos.

Fora durante este período de transição, quando se tornara o objecto de todas as atenções, quandc-o seu correio aumentara pro­digiosamente, quando recebera inúmeros telefonemas (principalmen­te de políticos e da imprensa), que chegara à conclusão de que o seu apartamento alugado era demasiado pequeno. A sala e a cozinha eram demasiadamente apertadas e achara que precisava também de um escritório e de uma biblioteca. Então começara a procurar um apartamento maior, mas as rendas pedidas tinham-no desencorajado. A pouco e pouco chegou à conclusão de que talvez fosse mais inte­ligente comprar uma casa. Washington era, apesar de tudo, a sua cidade adoptiva, e era provável que ele aí ficasse a viver durante os anos mais próximos. Enquanto fora senador designado, e apenas por um curto período de tempo, e enquanto não fizera a mínima ideia se tornaria a ocupar tal posição, tivera a esperança que depois pode­ria regressar ao seu antigo lugar na Câmara. E mesmo que tal não fosse possível poderia exercer facilmente a advocacia numa cidade em que, com uma população 55 % negra, um procurador negro de grande reputação teria certamente um número suficiente de clientes para o manter ocupado e seguro.

Guiado por intermediários, visitara três casa nas proximidades e achara as três demasiado caras para as suas magras economias. A quarta fora obra de um mero acaso. Encontrando-se uma manhã sentado à sua secretária no edifício do antigo Senado, vieram-lhe anunciar que o reverendo Paul Spinger estava na sala de espera e o desejava ver. Uma visita de Spinger nada tinha em si de extraordiná­rio. Spinger, como director da maior organização negra da América, a Sociedade de Crispus, viera muitas vezes visitar Dilman para discu­tir com ele a legislação dos direitos civis. Nessa manhã, porém, que Dilman soubesse, não havia qualquer assunto pendente para discu­tir. Mandara entrar o reverendo Spinger e o velho e enérgico clérigo--conferencista contara-lhe que ouvira dizer que Dilman queria com­prar uma casa. Se era verdade, acontecia que ele sabia de uma que ainda não fora posta à venda no mercado e cujo proprietário tinha urgência na venda, podendo portanto ser comprada por um preço razoável. Era uma casa de dois andares com dez divisões assoalha­das, na Rua 16, em Van Buren N. W., e pediam por ela a ninharia de 45 000 dólares. Era, dissera-lhe Spinger, um edifício sólido e antigo, que um dia poderia ser remodelado, mas que era suficientemente confortável e bem localizado no limite do bairro negro mais rico, per­to do Hospital General Walter Reed. Spinger sabia já de antemão da venda da casa, dissera ele, porque ele, a sua mulher Rose e um hós­pede tinham alugado o andar superior, havia já vários anos. O senho­rio habitava no rés-do-chão. Meio a brincar meio a sério, Spinger dis­sera que tinha esperanças em que Dilman se interessasse pela casa, pois, se outra pessoa a comprasse, poderia precisar das dez divi­sões e desalojar os Spinger. Mas o senador, raciocinara Spinger, sendo viúvo e com o filho num internato, certamente não precisaria de mais salas do que as do andar inferior.

O senador Dilman fora com o clérigo visitar a casa e ficara encan­tado com as árvores e o sossego da rua, com o pequeno relvado em frente da casa, com o caminho até ao vestíbulo de entrada, com as divisões espaçosas e confortáveis e os seus ornamentos do século XIX. Ajustara logo o preço com o proprietário e concluíra a transacção. Isto passara-se havia mais de cinco anos e nem uma só vez Dilman se arrependera do investimento que fizera. A essa casa da Rua 16, Dilman não só devia o prazer verdadeiro de possuir pela primeira vez um lugar que realmente lhe pertencia, mas também a sua amizade duradoura com Wanda Gibson. E fora ainda devido à casa que ele, na noite ante­rior, tivera o primeiro sentimento de ser aceite como o novo e acidental chefe executivo dos Estados Unidos.

A noite anterior, pensou ele. Então a sua memória deteve-se na noite anterior.

Tivera esse sentimento de aceitação, passava pouco da uma hora da manhã, quando o carro do Estado entrara na Rua Van Buren, levan­do Dilman ensanduichado entre os agentes do Serviço Secreto. Assis­tira então a um facto inaudito. A sua vizinhança era formada por negros que viviam bem mas que trabalhavam arduamente durante o dia, deitando-se geralmente muito cedo. Portanto, antes da meia-noite já a rua estava toda mergulhada no silêncio e na escuridão. Mas na noite anterior, quando ele chegara a casa, já depois da meia-noite, a rua estava toda iluminada com as luzes que jorravam das janelas das casas, e notava-se uma excitação como se fosse terça-feira de Carna­val. E depois, à medida que se aproximava de casa, Dilman reparou que a Rua Van Buren estava pejada de gente, vizinhos e não vizi­nhos, alinhados de ambos os lados da rua, para verem o novo Presi­dente da América.

Quando o carro parara em frente do seu relvado e ele saíra, o tamanho da multidão, quase mil pessoas, calculara ele, sufocara-o. Os rostos, alguns reconhecera-os ele, eram na sua maioria pretos, mas havia-os brancos aqui e ali, embora Dilman fosse incapaz de descobrir se pertenciam a repórteres, a agentes do Serviço Secreto ou simplesmente a pessoas que buscam sensações, daquelas que correm para ver um desastre. Fora na altura em que se dirigira para a porta de casa que os aplausos tinham rebentado - depois tinham crescido, transformando-se em vivas. Dilman tinha parado, profunda­mente comovido, acenara várias vezes com a mão e depois entrara para casa.

Ele adormecera tão rapidamente, supunha agora, porque, depois do primeiro temor e perturbação, depois da paralisia provocada pela mudança e elevação súbita de categoria, fora reanimado pela amiza­de e a aprovação com que o tinham recebido. Mas agora encontrava--se perante a luz crua da manhã. Fora-se a escuridão calmante da noite. Esperava-o a brancura incerta.

Fechou a torneira do chuveiro, embrulhou-se no lençol de banho, limpou-se rapidamente e entrou no quarto para se vestir. Aquele era um dia importante e talvez esperassem que ele se vestisse especial­mente para essa ocasião. Ainda pensou em vestir o fato preto dos domingos, mas depois achou que não era próprio para de manhã. Resolveu-se por fim pelo antracite, que comprara já feito no Garfinkel's para a sua primeira conferência como presidente temporário do Sena­do, durante a última viagem do vice-presidente ao estrangeiro, seis meses antes da sua morte.

Enquanto se vestia, o seu espírito ocupava-se em reviver mais um episódio da noite anterior, precisamente um que ocorrera poucos minutos antes de se ter deitado. Sentado na cama, perguntando a si próprio se os homens do Serviço Secreto o poderiam ouvir da sala de estar, ligara lá para cima, para os Spinger.

Mal o telefone começara a tocar, fora logo atendido. Reconheceu a voz de Rose Spinger.

-       Olá, Rose, espero não a ter acordado. Daqui fala o Doug. Ela respondera numa voz que a excitação tornava aguda.

-      Oh! Doug, esperamos que - céus, não devo continuar a chamar-lhe Doug, ou até mesmo senador ou senhorio.

Ele tivera um sorriso cansado para si próprio.

Por favor, Rose, nada de formalidades. Nada mudou entre nós. Eu...

Muito obrigada, Doug. Oh! Deus do céu, só de pensar nisso! Viu-nos lá fora, do outro lado da rua, no meio daquela multidão, a dizermos-lhe adeus?

Não tenho a certeza. Entrevi Wanda por um momento.

Claro! Estamos todos tão excitados. Temos pena daquilo que sucedeu na Europa, mas, se foi a vontade de Deus, estamos conten­tes que você aqui esteja para nos guiar. Precisamos de si, Doug, todos nós precisamos de si, e o reverendo diz que o que aconteceu é a mão da Providência... Oh!, céus, ele está-me aqui a dizer para estar calada e deixá-lo falar com a Wanda. Está bem. Só quero dizer--Ihe, pelo reverendo e por mim mesma, que, do fundo do coração, lhe desejamos força e coragem.

Muito obrigado, Rose, eu bem preciso delas.

O reverendo foi bater à porta de Wanda. Ela ainda está levanta­da. Pegará no telefone dentro de segundos.

Eu espero. Obrigado, Rose.

Durante os segundos em que esteve à espera, o seu espírito começou a trabalhar e trouxe-lhe à memória as primeiras imagens que tivera de Wanda Gibson. Quando comprara a casa havia cinco anos, e a escritura ainda estava a correr, fora convidado para jantar pelos Spinger, para celebrar a sua aquisição. Já encontrara os Spinger muitas vezes antes, mas sempre nas imediações da Colina do Capitólio ou por causa de negócios relacionados com a Socie­dade de Crispus, ou em festas dadas pelas embaixadas africanas perto do Sheridan Circle. Esta fora a primeira vez que ele aceitara um convite para ir a casa deles. Quando era deputado fora convida­do por eles duas vezes para jantar, mas recusara ambas pretextando qualquer desculpa. Como membro da Câmara, não quisera colo-car-se na posição de ter de responder a colegas brancos que o pudessem censurar por, sendo negro, se deixar influenciar pelo chefe da maior organização negra dos Estados Unidos. A sua timidez era ridícula, ele sabia-o bem, até porque outros congressistas negros e liberais brancos costumavam ir a esses jantares de uma maneira natural e apreciar os cozinhados de Rose Spinger. Depois disso, dissera a si próprio que, se o convidassem mais alguma vez, aceitaria o convite.

A sua usual timidez tinha-o apenas assaltado mais uma vez, pre­cisamente antes de assinar a escritura da casa. Perguntara então a si próprio o que é que os da Colina pensariam ao saber que um sena­dor possuía uma casa na qual permitia que vivesse o chefe do maior grupo da minoria da opressão da América. Ninguém, aparentemen­te, se preocupava com o que ele fazia em qualquer altura. No Sena­do, até à escolha surpreendente na reunião do Partido em que ele fora designado para servir como presidente interino da sociedade quando o vice-presidente Porter se encontrasse ausente ou doente, poucos pareciam ter reparado na sua existência. Ele era apenas um entre os cem nomes da chamada, raras vezes ausente, mas quase sempre silencioso e retraído. Não fazia discursos, não concedia en­trevistas, não apresentava contas e concordava com o Partido, com O. C. e com todos. Mesmo depois de ter preenchido o mandato incom­pleto de Espinosa como senador, de ter sido escolhido pelo Partido para concorrer por sua própria conta (com um forte apoio negro e trabalhista) contra um fraco adversário destruído por uma revelação vergonhosa quatro dias antes das votações e de ter sido reeleito para o Senado por seu próprio mérito, sentira-se sempre um intruso.

Aceitara o terceiro convite dos Spinger para jantar, não como senador mas como senhorio deles, e fora sem qualquer receio, sa­bendo finalmente que ninguém, nem mesmo aqueles porta-vozes sulistas como o deputado Zeke Miller ou o senador Bruce Hankins, se interessava por isso.

Tinham sido seis a jantar nessa noite em casa dos Spinger, ha­via cinco anos: os donos da casa, um engenheiro de cor e a mulher, que era professora e igualmente de cor, ele próprio, como convidado de honra, e Wanda Gibson. Fora o seu primeiro encontro com Wanda, e pela primeira vez, desde a morte de Aldora havia já muitos anos, ele percebeu que a afeição e o desejo se não tinham atrofiado dentro de si, mas tinham-se apenas sublimado.

Já nessa altura, havia cinco anos, Wanda não era uma rapariga, mas uma mulher feita, uma senhora - ele sempre a considerara como uma senhora - de 31 anos. Era licenciada em Economia pela Univer­sidade da Virgínia Ocidental; trabalhara para o seu professor favorito em Morgantown e em Charleston e seguira o professor, conhecido pelos seus livros liberais, até Washington, quando ele aceitara um emprego consultivo do governo na parte administrativa de Lyndon Johnson. Quando O. C. se tornara presidente e o professor de Wanda regressara à universidade, ela permanecera em Washington. Havia dois anos que tinha uma posição bem remunerada como secretária executiva do director dos Exportadores Vaduz, perto de Bethesda, Maryland.

Desde o princípio que, para Dilman, Wanda era um achado extraordinário. A sua inteligência e agudeza de espírito, o seu bom carácter e humor e os seus modos faziam parecer incrível que nunca se tivesse casado. Ao conhecê-la melhor, Dilman compreendeu a razão por que ela sempre evitara o casamento. Os pais, que tinham vivido na Virgínia Ocidental, onde o pai exercera a profissão de cozinheiro de segunda classe, lavador de pratos e porteiro num restaurante para mineiros, que servia refeições durante toda a noi­te, tinham sacrificado muito do seu conforto assim como o futuro dos dois irmãos mais novos para a educar e lançar naquela profis­são. Quando ambos os pais, primeiro um e depois o outro, tiveram de ser hospitalizados e depois entregues aos cuidados de um sana­tório dispendioso, Wanda aceitara toda a responsabilidade de os manter e olhar por eles, não só como filha, mas também como deve­dora. Ela tinha um fardo do qual não se podia livrar a favor do casa­mento para o qual fora feita. Mas o pai tinha morrido havia dois anos e a mãe havia menos de um e finalmente Wanda ficara livre para dispor de si própria.

Dilman sabia que ela esperara que lhe propusesse casamento na Primavera passada e ele não o fizera, o que criara, pela primeira vez, uma corrente invisível de infelicidade entre ambos. Ele sabia que a queria para esposa. Ele sabia que precisava dela. Competia-lhe a ele propor-lhe casamento e contudo, apesar de lhe poder declarar a sua afeição e amor e exprimir quanto precisava dela, sentia-se inca­paz de a trazer do andar de cima para o andar de baixo como sua mulher. Já pensara no assunto umas mil vezes desde a Primavera e sabia que era acto afirmativo e ele encontrava-se amarrado por inú­meros temores negativos. Tentara vezes sem conta restringir-se aos pequenos temores específicos, evitando o maior, até que por fim pu­desse ver o que restava e o que dentro de si mesmo censurava com desdém.

Wanda Gibson era mulata. Este era o centro da questão. Como mulata, o seu aspecto era mais para o lado branco do que para o negro. Na maior parte das comunidades até podia passar por uma branca. O seu cabelo, apesar de castanho e encaracolado, era ma­cio e comprido. Os olhos eram castanhos-claros, o nariz fino e arre­bitado, os lábios e a boca pequenos. O corpo era bem feito, cheio mas esbelto. Ela considerava-se uma mulher de cor, e vivia como tal. Mas, para Douglass Dilman, o modo como ela se considerava a si própria e como encarava a vida não eram garantias suficientes.

A incómoda cobardia que existia dentro dele e que o fazia evitar o casamento com a única boa companheira que tivera na sua vida consistia no medo em como ela pareceria a seu lado e em que medi­da isso afectaria a sua carreira política. Junto de Wanda ele pareceria mais preto. Wanda, junto dele, pareceria mais branca. Quaisquer que fossem os factos e a verdade, daria sempre a impressão de ser um casamento inter-racial. Poderia não desencadear quaisquer comen­tários em Washington ou no seu estado natal, mas, por outro lado, também poderia desencadear. Era um risco desnecessário. Em tem­pos como aqueles, faria virar o barco. Ou, pelo menos, poderia.

A solução de Dilman era fugir à decisão final. Os encontros platóni­cos semanais entre o senador e Wanda tinham continuado na sala dos Spinger, nos camarotes do Loew's Palace Theater e, ocasionalmente, no Goiden Ox ou na Estalagem Lincoln. Recentemente Dilman notara que os encontros se tornavam cada vez menos confortáveis, mais frios e distantes. Era como se estivessem ambos presentes cada um dese­jando a companhia do outro, mas agora, que ela estava livre do jugo paterno e que ele era o presidente temporário do Senado, encontra-vam-se separados por uma espessa grade de ferro que caíra entre eles. Podiam-se ver, podiam-se ouvir, mas não se podiam tocar. Eram dois seres, não um, e poderiam nunca vir a ser um, e Wanda Gibson, apesar do seu temperamento sempre igual e de toda a sua compreensão, começara a ressentir o fracasso de Douglass Dilman.

Desde que a sua antena sensível colhera e registara o seu desa­pontamento em relação a ele, Dilman adquirira recentemente o hábi­to de rever e de meditar acerca da sua amizade e da sua própria vida. Havia algumas semanas quase que chegara à decisão de a pedir em casamento e para o diabo com as consequências, se as houvesse. Afinal, perguntara a si próprio, como é que poderia ainda haver algu­ma coisa que o ferisse? Mas, nessa altura, a sua atenção fora desvia­da pela sua actividade e falsa importância de ficar a servir o Senado no lugar do vice-presidente. E agora, a coberto da noite, tinha sido escolhido pelo cruel destino. Tornara-se o Presidente dos Estados Unidos. A escolha a fazer era bem clara. Seria ele James Buchanan ou Grover Cleveland? Buchanan fora o único presidente solteiro. Cleveland fora o único chefe do Executivo a casar-se na Casa Bran­ca. Quando a escolha era assim posta na balança, o porteiro inclina-va-se mais para o lado de Buchanan. Um casamento pomposo, no Salão Azul, como o de Cleveland, diante do mundo inteiro e da im­prensa, um casamento com uma mulata que quase poderia ser toma­da por uma branca, só serviria para atiçar os inimigos da sua raça. A sua posição, já de si incerta e difícil perante um país dividido, seria ainda agravada.

Este fora o seu raciocínio, na noite anterior, enquanto esperava, com o auscultador na mão, que Wanda atendesse. Ele sabia que a sua decisão nada tinha de corajoso ou honesto. Era meramente con­veniente e política. Não resolvia nada, mas fugia apenas a um proble­ma pessoal para evitar um ainda mais temível.

Olhando para baixo, para o auscultador na sua mão esquerda, perguntara a si próprio por que razão, em tais circunstâncias, ainda estava a tentar falar-lhe, especialmente àquela hora. Não fazia a me­nor ideia do que lhe diria, mas contudo, como Presidente dos Esta­dos Unidos havia mais de três horas, ele sentia a necessidade de falar com alguém antes de adormecer e a única pessoa que se pode­ria interessar por ele, e tranquilizá-lo, seria Wanda. Enquanto espe­rava Wanda, o seu espírito voou para Mindy. A sua atitude em relação a ambas era apenas uma e a mesma. Evitava casar com a mulher de quem precisava, pela mesma razão que não procurava uma filha de quem gostava. Era negro e tinha medo.

Olá Doug. - Wanda falava-lhe através da linha que o ligava ao andar de cima e todavia nunca ela estivera tão longe.

Wanda, eu queria... queria desejar-lhe boa noite antes de me deitar.

Doug, é espantoso tudo o que sucedeu. O que lhe devo dizer? Devo dar-lhe os parabéns? Não soa lá muito bem.

Deve ter pena de mim, assim como de todo o país.

Não, não fale assim. Isso não é verdade. Foi terrível aquele acidente em Francoforte. Mas acontece, Doug, coisas dessas tam­bém acontecem. Lembra-se de uma conversa que uma vez tivemos acerca do que as nossas famílias estavam a fazer no momento em que lhes anunciaram a morte de F. D. R. e como se sentiram então? Sentiram-se como se o mundo fosse acabar, como se fossem morrer, como se não houvesse já qualquer esperança. E contudo nada lhes aconteceu, nem a nós. A vida continuou. Talvez diferentemente do que poderia ter sido, mas não muito. Bem, Doug, tenho a certeza de que O. C. era um homem bom e popular, mas não era como F. D. R., assim como MacPherson o não era. Sei que você será tão bom ou melhor do que qualquer deles. Não nasce ninguém especialmente designado para ser presidente. Milhares de homens poderiam tanto ser o presidente como o que lutou para conseguir o lugar. Se tinha de ser alguém, acho que não poderia haver pessoa mais indicada do que você.

Wanda, não... você conhece-me demasiadamente bem para dizer isso... conhece as minhas fraquezas...

Todos nós temos fraquezas, Doug. Seja sensato. Afaste-se e olhe à sua volta. Lincoln tinha as suas fraquezas e O. C. tinha tantas que nem se podiam contar e provavelmente muitas que nem as conhe­cíamos para as poder contar. Certamente que você tem fraquezas, mas é suficientemente forte para desempenhar o cargo. Não menos­preze a sua força. Eu não consigo esquecer o que você recusa lem-brar-se. Com a espécie de passado que teve, toda aquela pobreza, como conseguiu fazer toda a universidade e depois licenciar-se em Direito? Como conseguiu ser eleito quatro vezes para a Câmara dos Deputados e depois entrar para o Senado até chegar a presidente deste? Era preciso ter-se algo, Doug, era preciso ter-se muito. Eu conheço-o talvez tão bem como qualquer outra pessoa, talvez me­lhor do que ninguém, e tenho a certeza de que todo o país - uma vez que se refaça do choque de... da morte de O. C. - vê-lo-á como na verdade é, e terá orgulho em si...

Wanda, Wanda... eu sei que está a fazer os possíveis... e eu agradeço-lhe muito... mas, Wanda, eu sou preto... Amanhã duzentos e trinta milhões de americanos, ao acordar de manhã, vão descobrir que o presidente do seu país, um presidente que eles não elegeram, é preto.

Isso é verdade, Doug... Talvez seja bom para eles e para o país inteiro.

Talvez, mas pensarão eles assim?

Não sei, não sei o que pensarão, nem você tão-pouco. Só sei o que eu própria penso. Se você proceder agora como tem proce­dido até aqui, com determinação, honestidade, aprendendo o que tem a aprender, actuando como julga ser melhor, tenho a certeza de que tudo correrá bem.

Você... você agora parece menos segura do que diz, Wanda.

Pareço? Mas não estou. Acho que é porque estou preocupada consigo.

O que quer dizer com isso? Diga-me exactamente o que quer dizer.

Quero dizer, por favor não me interprete mal, Doug, conhe-cemo-nos demasiadamente bem para isso, mas o que eu quero di­zer é que será mau e penoso se você começar logo por entrar na Casa Branca sentindo-se um intruso, sentindo que é menos do que o que devia ser, sentindo-se desse modo porque... porque é de cor. Não me interprete mal, Doug, mas...

Percebo muito bem o que quer dizer. Tentarei evitar isso. Ten­tarei, com todas as minhas forças, mas - acho que tem razão - tenho medo... Também tenho medo por nós. Penso nisso também. Não sei quais as exigências do cargo, nem o que esperam de mim, excepto pelo que tenho visto e lido. Realmente não sei o que será a minha vida lá. Mais do que nunca preciso de a ver e de falar consigo. Não sei é se... é se mo permitirão.

Doug, você não pertence a ninguém. Não tem de esperar que alguém lhe dê licença para fazer o que quer, no que diz respeito à sua vida pessoal.

Tem toda a razão, Wanda.

É tarde, Doug. É melhor que vá dormir alguma coisa. Eu... eu aqui estarei. Telefone-me quando puder, a qualquer hora, e eu estarei sempre pronta a atendê-lo.

Telefonar-lhe-ei amanhã.

Em qualquer altura... Agora vá dormir e pense que todos nós estamos a seu lado. Boa noite, Doug.

Boa noite, Wanda, boa noite.

Depois de ter desligado, tentara analisar a conversa entre ambos. Ela encorajara-o e falara-lhe de uma maneira afável e contudo, especi­almente para o fim, ele sentira-a distante. Ainda assim, pensara, en­quanto estendia o braço para apagar a luz e se metia debaixo dos cobertores, por muito desapontada que ela estivesse com ele, estava ao seu lado e isso já era alguma coisa de reconfortante; então senti-ra-se invadido pelo sono e adormecera.

Acabou de fazer o nó da gravata, vestiu o casaco e consultou o relógio de pulso. Tinha receio de que a longa viagem feita pelo seu espírito desde os acontecimentos da noite anterior até aos cinco anos da sua amizade com Wanda tivesse durado uma hora. Ficou agrada­velmente surpreendido ao ver que só tinham passado seis minutos. Ocorreu-lhe que fizera uma descoberta que nenhum cientista fizera antes dele. Descobrira algo mais veloz que a velocidade da luz: a memória. O pior era que, por muito veloz que fosse, a memória nunca parava.

Resolvido a não fugir mais ao presente desconhecido para se refugiar no passado, saiu do quarto e encaminhou-se resolutamente para a sala de estar. Lou Agajanian estava sentado numa cadeira, por debaixo do arco que conduzia ao hall de entrada, fumando um cigar­ro. Imediatamente o chefe do Departamento da Casa Branca se pôs de pé de um salto, numa postura de deferência.

Sr. Presidente, o patrão, quero dizer, o Sr. Gaynor, foi dormir um pouco. Um outro agente, o Sr. Prentiss, veio-o substituir. Está na cozinha guardando a porta das traseiras.

Óptimo. - Dilman apontou para a cadeira. - Por favor, sente-st, Sr. Agajanian.

O chefe do Departamento do Serviço Secreto da Casa Branca permaneceu de pé, enquanto Dilman entrava para a pequena casa de jantar, com janela para a rua. Reparou que, em vez da usual toa­lha amarela do pequeno-almoço e da loiça de todos os dias, Crystal tinha posto a mesa com a toalha branca das grandes ocasiões e com a loiça enfeitada do serviço bom. Era óbvio que, para ela, se tratava de uma ocasião. Divertido, gritou para a cozinha:

-       Vamos a isso, Crystal, já aqui estou!

Mal se sentara, Crystal veio correndo da cozinha e colocou o sumo de laranja diante dele.

-       Aqui estão também os ovos e o bacon, Sr. Presidente! Antes de pegar no copo, examinou as mensagens escritas em tiras de papel junto do telefone: o seu filho Julian telefonara da Univer­sidade de Trafford («Voltará a telefonar»); o ministro de Estado, Eaton, telefonara de casa («Para saber como estava»»); o secretário da Imprensa, Tim Fannery («Por favor, para lhe reservar algum tempo hoje cedo»); o governador Wayne Talley («Voltará a telefonar dentro de pouco tempo»). Eram estas as mensagens. Supunha que devia ter havido muitas centenas se o número do seu telefone viesse na lista e não fosse apenas conhecido de uma meia dúzia de pessoas.

Enquanto bebia o sumo de laranja, tão ácido que o obrigava a fazer caretas, debruçou-se e puxou o monte de jornais para junto de si. Assinava cinco: dois diários de Nova Iorque e três jornais de Whashington, um dos quais uma publicação da imprensa negra.

Percorreu rapidamente com os olhos os cabeçalhos das primei­ras páginas. No espalhafatoso jornal de Nova Iorque leu:

«A Nação sufoca! Um negro como Presidente dos Estados Uni­dos da América!»

No jornal moderado de Nova Iorque leu:

«O senador Douglass Dilman prestou juramento como presidente na noite passada: o primeiro negro a alcançar o cargo mais elevado da Nação.»

No jornal pró-administrativo de Washington leu:

«O Congresso e os eleitores reúnem-se para apoiar o senador Douglass Dilman.»

No jornal pró-segregacionista de Zeke Miller, de Washington, leu:

«O acaso faz um senador negro chefe executivo da Nação. A delegação judiciária reúne-se para um debate constitucional; os cidadãos protestam: lei 'injusta' da maioria pela minoria.

O deputado Miller prediz:

- Discórdia, desunião, violência.»

No jornal negro de Washington leu:

«Aleluia! Direitos iguais finalmente! O presidente de cor do Sena­do torna-se presidente de todos nós! O mundo aplaude a verdadeira democracia!»

Várias coisas eram logo evidentes. Ele não seria para ninguém um simples empregado público que, pela lei da sucessão, se tornara Presidente dos Estados Unidos. Para ambos os extremos, e também para os do meio, ele seria o «Negro» que se tornara presidente. Para a imprensa da sua própria raça era o homem de cor, o Moisés negro que viera para libertar o seu povo da escravidão e conduzi-lo à salva­ção. Para a imprensa dos inimigos da sua raça, representada pela cadeia do jornal congressista de Zeke Miller, ele era um bicho preto e feio que saíra debaixo de uma rocha para saciar a sua sede de vin­gança no perfumado Sul, para destruir a Grande República, impon­do a igualdade entre bestas negras e pagãs e seres humanos bran­cos e cristãos, para corromper as suas castas filhas com as suas negras ideias. Para a imprensa das sensações ele era um objecto raro, extravagante, no momento actual uma história, que mais tarde se poderia transformar num objecto sério de luta. Para a imprensa do seu Partido ele era ainda um senador que precisava de ser apoiado. Para a imprensa moderada, conservadora e atenta, ele era - tornou a pegar no diário respeitável e equilibrado de Nova Iorque e leu nova­mente o cabeçalho - «O primeiro negro a alcançar o cargo mais ele­vado da Nação.»

Douglass Dilman reflectiu acerca dessa frase. Era verdadeira e justa. Mas quantos, negros ou brancos, seriam assim tão justos? Len­tamente os seus olhos percorreram as colunas do jornal datado de Washington. Trazia uma sólida reportagem do seu juramento e da tragédia em Francoforte que a ele conduzira, apoiada por citações de Tim Flannery explicando a Acta da Sucessão Presidencial de 1947. No fim da última coluna vinha a sugestão para o leitor ver a página 16 do jornal de Nova Iorque.

Dilman pousou o garfo e afaça, pegou no jornal de Nova Iorque, abriu-o na página 16 e dobrou-o em quatro para mais facilmente o poder ler. Logo encontrou o artigo intitulado «O Homem da Casa Bran­ca», e então recostou-se na cadeira para ler o que se seguia:

Às dez horas e trinta e cinco da noite de ontem, prestou juramento o novo Presidente dos Estados Unidos, que sucede assim ao seu popular antecessor, morto antes de ter completa­do o seu mandato de quatro anos. Tal facto, em si mesmo, não é um acontecimento histórico nem fora do usual. Já sucedeu oito vezes ao longo da nossa história. Na passada noite, porém, pela primeira vez, houve uma diferença.

Quando os presidentes Harrison, Taylor, Lincoln, Garfield, McKinley, Harding, Franklin D. Roosevelt e John F. Kennedy morre­ram no exercício das suas funções, os seus mandatos inacabados foram preenchidos por homens que tinham sido seus companhei­ros no governo, que estavam em segundo lugar na linha de suces­são, que tinham aparecido ao seu lado durante o eleitorado e que pertenciam à mesma raça e cor. Embora a aceitação pública e congressional de um presidente substituto nem sempre se fizesse sem atritos - como o testemunham as dificuldades com que teve de lutar Andrew Johnson quando sucedeu a Abraham Lincoln, em 1865 -, a transição era pelo menos suficientemente familiar para não causar qualquer distúrbio nacional.

Contudo, a actual subida do senador Douglass Dilman à presidência para preencher o mandato inacabado do seu popu­lar antecessor apresenta numerosos problemas que merecem a nossa atenção. Pela primeira vez na nossa história não foi um colega de campanha do presidente, nem um seu colega no go­verno, nem o segundo na linha de sucessão, nem o seu vice-presidente, quem veio ocupar o lugar vago por aquele, mas, em certa medida, um intruso. Pela primeira vez um senador e não o vice-presidente, um funcionário legislativo escolhido pelos cole­gas do seu Partido e não pelos eleitores, subiu ao elevado car­go. E, pela primeira vez, digamo-lo abertamente, um homem de cor, um membro da raça negra, foi acidentalmente lançado para o comando supremo, e contra isso não há qualquer cláusula legislativa.

Não há qualquer razão, do nosso ponto de vista, para que um negro não devesse ser Presidente dos Estados Unidos. Esti­vesse o país educado e preparado para o receber, tivesse ele votado nele espontaneamente e o tivesse eleito para o elevado cargo, seria este um momento significativo na nossa história e na do mundo inteiro. Todos os homens de boa vontade e de bom coração têm trabalhado para esse momento e desejado que ele chegue. Infelizmente, porém, este esquizofrénico país da liberdade anda ainda tacteando o seu caminho em direcção à igualdade. Priva ainda os negros dos seus direitos civis, exclui-os dos empregos remunerados, recusa-lhes um alojamento, uma instrução e acomodações públicas decentes. Como Nação vive­mos ainda numa era de crescimento - a dos primeiros passos cambaleantes desde a incerta tolerância e decência até à igualda­de completa - e, assim, vivemos ainda numa era de quedas cons­tantes e nódoas negras.

Deste modo, uma república que continua a oprimir os dez por cento da sua população negra, e que se encontra dividida por demonstrações, lutas e ódios racistas, descobre, de repente, du­rante a noite, que vai ser governada por um componente da mi­noria que ela manteve sempre numa posição de servilismo. Foi esta a Nação que acordou esta manhã e esfregou os olhos incré­dula, ao descobrir que um negro governava o leme do seu barco, um negro era o seu piloto e dirigente constitucional. Numa época atormentada e vergonhosa, em que os negros têm ainda de ser conduzidos até às escolas protegidos por guardas armados, em que os negros só podem utilizar casas de banho separadas, em que os negros só se podem sentar na retaguarda dos autocarros municipais, numa época destas, um negro alcançou o lugar mais elevado do país, sentando-se onde se sentara Washington, e tor-nando-se o rosto e a voz da América perante o mundo exterior.

O problema levantado por um negro na presidência é real e é grave. O problema não é o problema do presidente Dilman, mas antes o problema de cada um dos seus duzentos e trinta milhões de compatriotas americanos. Agora os Estados Unidos já não têm meio século de tolerância para crescerem até atingir o seu ideal de igualdade para todos os cidadãos. Impõe-se hoje, aos Estados Unidos, a necessidade imperativa de atingir imedia­tamente esse ideal, de aceitar imediatamente um negro como chefe, de aceitar imediatamente os negros e os brancos como iguais. O fracasso, por parte de qualquer estado ou membro da comunidade democrática em atingir essa maturidade será um golpe a todo o país, enviar-nos-á novamente cambaleantes para a beira do abismo sobre o qual nos baloiçámos, em direcção à destruição, nos terríveis meses e dias que precederam a Guerra Civil. Se voltarmos novamente atrás, se cairmos agora, todos os homens aqui, e toda a humanidade em geral, sofrerão uma morte da alma como poderão sofrer uma morte do corpo num holocausto nuclear.

Não é esta a manhã indicada para recapitular os erros que esta república praticou em relação aos negros, nem para defen­der a causa dos seus direitos civis. É suficiente notar que, embo­ra a Constituição exclua deste cargo qualquer pessoa que não tenha nascido cidadão americano ou que ainda não tenha trinta e cinco anos de idade, não exclui ninguém pela pigmentação da sua pele não ser branca. Um negro tornou-se Presidente dos Estados Unidos e não há qualquer razão neste mundo para que não deva ser presidente.

Os racistas do Sul e os insensatos do Norte, cujos precon­ceitos raramente dão resultado, não podem negar os negros americanos, quando lhes é dada a oportunidade, são, em com­paração com os seus irmãos brancos, igualmente inteligentes e capazes de alcançar a riqueza, o sucesso ou a fama. Basta olhar­mos para os exemplos que temos de tal facto. A pele escura não impediu Jan Matzeliger de inventar a sua máquina, não impediu Frederick Douglass de se tornar um conferencista e um escritor brilhante, não impediu Booker T. Washington de se tornar um grande educador, não impediu que Mathew Henson ajudasse Peary a descobrir o Pólo Norte, não impediu Paul Laurence Dunbar de compor as suas líricas imortais, não impediu que Marian Anderson, Duke Elligton, Lionel Hampton, Jesse Owens, Joe Louis, Mahalia Jackson e W. O Handy fornecessem passa­tempos ao mundo inteiro.

Nem tão-pouco os milhões de pessoas que esta manhã aca­baram de acordar podem provar que os negros, nos raros casos em que, no passado, nos serviram em política e no governo, agiram com menos sabedoria, coragem ou prudência que os seus irmãos brancos. Ebenezer Bassett foi nosso ministro no Haiti. Jonathan Wrigth foi juiz associado do Tribunal Supremo da Carolina do Sul. Jefferson P Long serviu na Câmara dos De­putados dos Estados Unidos. Blanche K. Bruce serviu no Sena­do dos Estados Unidos. Recentemente, Robert C. Weaver admi­nistrou o Departamento do Alojamento dos Estados Unidos e a Agência das Finanças Internas. E. Frederick Morrow trabalhou como ajudante administrativo do Presidente Eisenhower. Ralph J. Bunche serviu nas Nações Unidas. Andrew Hatcher trabalhou como secretário associado da Imprensa do Presidente Kennedy. Cari Rowan trabalhou como director da Agência de Informação dos Estados Unidos, sob o Presidente Lyndon Johnson. Douglass Dilman foi presidente interino do Senado dos Estados Unidos durante a administração de O. C.

Todos estes chefes eram cidadãos negros dos Estados Uni­dos. Tinham ganho o direito de nos guiar, de nos ajudar, não porque os seus antepassados de cor nos tivessem ajudado a libertarmo-nos e a defendermo-nos na Guerra da Revolução, na Guerra de 1812, no Exército conferado de Lincoln e Grant, na Primeira e na Segunda Grande Guerra, na Coreia, mas porque faziam parte do nosso todo, de cada um de nós, compartilhan­do os mesmos riscos e os mesmos objectivos. Agora um deles, na verdade um de nós segundo as leis legadas pelos Pais Fun­dadores, tornou-se o nosso presidente. A questão principal não é se Douglass Dilman está à altura da sua tremenda responsabi­lidade, mas se nós próprios estamos à altura da nossa respon­sabilidade como americanos.

É hoje o primeiro dia do mandato do Presidente Dilman, do seu período de julgamento e do nosso, o primeiro dia dos dezassete meses que se estendem à nossa frente e nos quais estamos com o temor provocado pelo exame de frias estatísti­cas. De entre os duzentos e trinta milhões de cidadãos america­nos, vinte e três milhões são negros e supõe-se que a grande maioria destes aceitará o novo presidente. Com base nas recen­tes cifras de votos, excluindo os negros e os brancos do Sul, podemos afirmar que há talvez uns quarenta milhões de cida­dãos brancos liberais e progressistas e supomos que a maioria destes cooperará com o novo presidente.

Por outro lado, há quarenta e sete milhões de brancos nos catorze Estados do sólido Sul, e tememos que a maioria deles rejeitará o nosso novo presidente. Sempre baseados nas recen­tes cifras de votos, podemos afirmar que há trinta milhões de reaccionários extremistas no Este, Norte e oeste, e é provável que a maior parte destes recuse cooperar com o novo presi­dente.

Qual é o resultado obtido? É provável que sessenta e três milhões de entre nós sigam Douglass Dilman e que setenta e sete milhões estejam contra ele. Onde colocaremos os restantes noven­ta milhões de cidadãos, os que seguem os chefes quando lhes é indicado quem hão-de seguir, as listas sem fim dos indecisos, a grande massa do centro, com rostos e sentimentos reais, que tanto podem ir para um lado como para o outro? Como reagirão a um negro na presidência? Darão crédito aos racistas ou aos reac­cionários, ou tomarão em conta os argumentos dos democratas verdadeiros e moderados? Ou reagirão de acordo com sentimentos há muito escondidos e reprimidos em relação aos negros? O que pensarão do fermento racista que existe neste país há já vinte anos? Algo das aspirações dos novos e militantes negros terá penetrado no mais profundo da sua consciência? Ou, pelo contrário, foi a propaganda dos segregacionistas que se introdu­ziu nos seus espíritos?

A verdade é que a maioria de todos nós tem, em relação aos negros, um conhecimento limitado - limitado à mulher-a--dias de cor que vem duas vezes por semana a nossa casa, limitado ao jogador negro de basebol que faz perder ou ganhar um jogo, limitado ao mecânico da garagem, ao empregado da loja ou ao cantor de blues visto e ouvido numa noite de sába­do. Para esta maioria branca, o bom negro é-lhe tão desconhe­cido como lhe foi outrora o coração do continente negro da África. Não convivendo pessoalmente com os seus compatriotas de pele escura, conhecendo a sua luta apenas através dos jor­nais, evitando há muito qualquer compromisso nesta questão por se encontrarem demasiado ocupados com os seus empre­gos e aumentos, as suas compras e o ir buscar as crianças à escola, estes cidadãos brancos deparam subitamente com a necessidade imperativa de tomar uma decisão histórica pes­soal.

Ei-los, nesta estranha manhã, formando a vastidão dos não contados, olhando fixamente, com curiosidade ou espanto, com orgulho ou ressentimento, para um senador-de meia idade, de cabelo ondulado, pele escura e rosto africano, o qual suplantou um chefe por eles escolhido, e cuja voz e imagem representam agora a voz e a imagem de todos eles nos negócios internos da Nação.

Esperamos agora pela sua decisão. Pela parte que lhes toca, pedimos-lhes que não façam qualquer julgamento antes de terem praticado um exame de introspecção e de sã inteligência. E quando, dentro de muito em breve, chegarem ao ponto de decidir se aceitam o Presidente Dilman como um deles, como um de nós, e cooperar com ele para o bem comum, ou se o repudiam como um estranho inferior que se disfarçou como um de nós, pedimos-lhes ainda que, na véspera da sua opinião pessoal, reflic­tam demoradamente num último ponto.

O julgamento de um homem de cor na Casa Branca não pode nem deve ser baseado na interrogação se ele será ou não um bom presidente, se será melhor que Harding ou pior que Kennedy, Lydon, Johnson ou O. C, mas sim se os seus juízes, os produtos da América livre, já atingiram a suficiente maturidade, já cresceram o suficiente, já se tornaram suficien­temente cidadãos, para permitir que um ser humano seu com­patriota, experimentado e sabedor da sua profissão, os sirva e os represente.

O futuro imediato não está nas mãos do nosso primeiro pre­sidente negro. Está nas nossas próprias mãos, para o melhor ou para o pior.

Por um largo espaço de tempo, Douglass Dilman permaneceu sentado à mesa da casa de jantar, segurando o jornal que de uma maneira franca e inteligente lhe mostrara exactamente quais as con­dições e os julgamentos que o esperavam, para lá da protecção da sua casa de negro e da sua vizinhança negra.

Depois pousou o jornal na mesa, ao lado do pequeno-almoço em que mal tocara. Sabia que se devia sentir consolado e até mesmo esperançado com o que acabara de ler. Contudo, a apreensão e os temores sentidos nessa manhã tiravam-lhe qualquer possível opti­mismo. Pensou: Sim, lá fora há homens justos e de boa vontade; eles existem na verdade. Mas também sabia, por anos de observação dolo­rosa, anos de compromisso e de humilhação para poder sobreviver e progredir, que havia poucos homens como aquele ou aqueles que tinham escrito aquele artigo justo e sério.

Dilman não era nem um homem de grandes voos de imagina­ção, nem um sonhador, nem um agitador apaixonado; ele sabia isso e tinha-o sempre sabido. Era um homem inteligente e formalmente educado. Era um homem de experiência no campo que escolhera, a política, no qual o conhecimento das frases superficiais que andam de boca em boca, um certo talento de argumentação, a habilidade de sorrir, o dom da concessão e um conhecimento dos factos eram o suficiente.

O centro duro e realista do seu espírito reflectiu acerca do elo­quente contexto do artigo. Se todos os homens da América o lessem e se deixassem impressionar por ele, poderia entrar na Casa Branca sem qualquer receio. Mas, vendo bem as coisas, o que representava real­mente aquele jornal de Nova Iorque? Era um jornal da manhã, o mais apreciado pelos intelectuais do país. A sua circulação total diária era de 800 000 exemplares. Quantos dos 800 000 leitores leriam a letra miúda da página do artigo? E quantos dos duzentos e trinta milhões que compunham toda a Nação saberiam mesmo da sua existência? Era um pequeno seixo tentando derrubar um Golias de preconceitos - um pequeno seixo e não um pedregulho.

O telefone, à sua esquerda, pôs-se a tocar fazendo-o acordar, com um sobressalto, da meditação em que se encontrava mergulha­do. Precipitadamente lançou mão do auscultador e puxou-o para si desajeitadamente, quase o deixando cair dentro do prato dos ovos.

-       Está lá?

Era uma chamada de fora, de Trafford, Nova Iorque. Ele espe­rou.

Está... está lá... - Reconheceu imediatamente a voz nervosa e aguda do seu filho Julian. - Pai?

Sim, Julian. Como estás?

Eu? O que é que isso interessa agora? Deus meu, Pai, acorda-ram-me a meio da noite para me darem a notícia. Eu nem queria acreditar. Ainda estive para lhe telefonar logo, mas tive medo de o acordar. Tenho tentado toda a manhã...

Eu sei, disseram-me.

Acho que lhe devo dar os parabéns. Posso ser um dos primei­ros a felicitá-lo?

-       Certamente que sim. Obrigado, filho. Julian continuou animadíssimo.

-       Todos estão excitados com o facto, pai. Cá na escola não se fala noutra coisa. Os rapazes até faltam às aulas, e vêem-se grupos inteiros vadiando pelo terreiro, cantando e celebrando.

Enquanto o filho continuava a descrever as actividades da Uni­versidade de Trafford, Dilman notou que num ano inteiro aquela era a primeira vez em que ele falava na escola com entusiasmo. Julian não quisera ir para a universidade negra. Fora obrigado pelo pai a matri-cular-se e nunca cessara de se rebelar contra ela e de se queixar dos colegas. Agora o orgulho substituíra as queixas.

-       Não compreendo o motivo de tão grande contentamento - interrompeu Dilman. - Perdemos um bom presidente.

Certamente que perdemos, pai, mas, meu Deus, não perce­bo? De um golpe ganhámos mais do que alguma vez poderíamos ter sonhado. Agora temo-lo aí. Acabou-se a vil e penosa luta. Um sim­ples gesto do pai pode resolver tudo. Eles têm de ceder, pois o pai é o presidente! - Ele quase que gritava de júbilo. - Conseguimos ata­lhar caminho. Obteremos os nossos direitos sem...

Julian - disse Dilman asperamente. Ele tinha de pôr um ponto final àquele Julian no País das Maravilhas. - Não andes por aí a citar ou a repetir o que vou dizer. Isto é estritamente pessoal, compreen­des?

Certamente, certamente...

Nada mudou, pelo menos para melhor. A estrada à nossa fren­te é tão longa e difícil hoje como o era ontem.

Não diga isso, pai, nunca. Por uma vez deixe de ser tão con­servador. O pai está demasiado perto do quadro. Não pode ver quão grande ele é. Digo-lhe que...

Já me disseste o suficiente - cortou Dilman. - Discutiremos isso noutra altura. Hoje tenho muitas coisas a tratar. E tenho a certeza de que o mesmo se passa contigo.

Sim, mas não hoje, pai. Meu Deus, têm-me hoje tratado como se eu fosse o presidente.

Dilman lembrou-se instantaneamente da carta do chanceler Chauncey McKaye, da Universidade de Trafford.

O chanceler McKaye também fe felicitou? - perguntou Dilman levemente irónico.

Não, ainda não, mas...

Penso que nem o fará. Ele só felicita os bons alunos. Ouve, filho, eu gostava de falar contigo...

Eu também gostava. Quando é que se muda para a Casa Bran­ca? Queria lá ir com o grupo e ver o interior e...

Não sei ainda. Sabê-lo-ei dentro de poucos dias. Quero-te cá o mais cedo possível, mas sem os teus amigos, desta vez. Há algo que quero discutir contigo.

Está bem. - Julian parecia desconsolado - Quando posso ir até aí? Estou livre na próxima terça-feira.

Então está combinado para terça-feira. Vens ter comigo à ala oeste da Casa Branca. Deixo ordens para que te deixem entrar. Agora porta-te como deve ser e não faltes às aulas.

Não se preocupe, pai. - Hesitou e depois disse, baixando a voz - Estava a pensar... pergunto a mim mesmo como se sentirá ela esta manhã.

Não penses nisso - disse Dilman rudemente. - Até terça-feira e obrigado pelo telefonema.

Depois de ter desligado, Dilman pensou na referência indirecta do filho a Mindy, aquela cujo nome não se podia pronunciar, a intocável, a expatriada da família e da raça, e também ele perguntou a si próprio como estaria ela nesse momento. Teria agora notícias dela? Ele sabia o que a escolha envolvia. Valeria a pena abdicar da sua condição de branca em troca do trono devido à filha de um presidente negro? Mes­mo ao formular a pergunta para si próprio, ele já sabia qual a resposta, e respirou aliviado quando o telefone começou a tocar estridentemente mais uma vez.

Desta vez era a sua secretária do Senado, Diane Fuller, e porque ela falava de uma maneira quase inaudível e nervosamente atabalhoada, ele percebeu que ela se encontrava entre brancos. Recebeu as suas felicitações e soube então que estava no escritório de Edna Foster, na Casa Branca. Diane explicou que a secretária particular de O. C. a tinha mandado chamar para ir buscar a enorme afluência de cabogra-mas e telegramas enviados a Dilman e levar os mais importantes ao seu apartamento, no caso de ele querer ver as mensagens logo de manhã cedo.

Quando Diane começou a ler os nomes afixados nos telegramas de parabéns - um do presidente da U. R. S. S., outro de Sua Santidade o Papa, outro do Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, outro do Presi­dente da França, outro do secretário-geral das Nações Unidas, outro do Presidente Amboko de Baraza - Douglass Dilman interrompeu-a.

-       Diane, você deixa tudo isso em cima da secretária de Miss Foster - disse ele. - Diga-lhe que estarei aí dentro de pouco tempo. Quanto a si, regresse ao meu escritório no Senado para atender as chamadas telefónicas. Telefonar-lhe-ei mais tarde.

Quando acabou de falar, a sua sensibilidade foi atacada por um pensamento perturbador. A secretária particular do presidente, a secre­tária do último presidente, telefonara para o edifício do Senado para que a secretária de cor de Dilman fosse buscar as mensagens e lhas levasse. Por que razão Edna Foster não lhe tinha simplesmente tele­fonado ou ela mesmo trazido as mensagens? Este teria sido o caminho mais lógico e o mais eficiente. Sena porque ela nunca tinha vin­do antes a um bairro negro? Ou estaria ele ultra-sensível? Seria ape­nas porque ela fora a secretária de O. C, e que não só estava triste pela morte deste como também não estava segura quanto ao seu futuro papel?

Decidido a pôr termo àquelas convulsões de sensibilidade, levan-tou-se da mesa. Pegaria no chapéu e faria o que mais estava a tentar evitar. Mandaria que o levassem até ao ns 1600 da Avenida da Pen­silvânia.

Antes que tivesse tido tempo de sair da casa de jantar o telefone pôs-se de novo a tocar. Pegou no auscultador. Desta vez era uma chamada ainda de mais longe. A telefonista anunciou uma chamada vinda da Quinta de Fairview, nos arredores da Cidade Sioux, lowa. Ela repetiu o número para onde queria ligar e perguntou se era aquele o número indicado. Dilman assegurou-lhe que era aquele o número e perguntou-lhe quem falava.

Num tom de voz de mestre-escola, ela pronunciou o nome de quem tentava a ligação. Ao ouvi-lo, Dilman não pôde reprimir um sorriso. Era o Juiz em pessoa e Dilman sentiu-se radiante. Nunca ninguém tratara o Juiz por outro nome, e Dilman, que era membro da Câmara quando o Juiz acabara precisamente de sair da Presidência dos Estados Unidos, conhecera-o superficialmente, mas admirara enormemente o feitio impertinente e franco do velho e míope ex-pre-sidente. O Juiz, que, muito antes de se tornar um veterano do Sena­do e Presidente dos Estados Unidos, fora secundário juiz de paz municipal, tinha tão poucas probabilidades de então ser eleito que fizera toda a sua campanha sem vacilar, com uma candura espanto­sa, sem se vender a ninguém (não havia necessidade disso, já que a sua candidatura era considerada sem esperança). Quando, com gran­de espanto de todos, ele obteve a presidência, o Juiz entrou no car­go como senhor absoluto de si próprio. O ter verificado que podia falar como lhe aprouvesse, assim como o facto de ter alcançado já uma idade em que nada se ambicionava e em que não havia espe­ranças de um segundo mandato, tinham feito dele um dos mais indi­viduais, independentes e revificantes chefes executivos dos tempos modernos. Quando gostava de um homem, gostava mesmo dele, quer fosse branco ou preto, um membro do Partido ou da oposição, inteligente ou estúpido, e dizia-o em palavras tão redundantes que os seus inimigos ficavam furibundos e a Nação inteira o adorava. Nos três encontros que o Juiz tivera com Dilman, um enquanto presi­dente e dois mais tarde, em conferências do Partido, ele mostrara que gostava de Dilman como pessoa. Não tomara qualquer atitude protectora ou complacente. Gostava de Dilman e dissera-o aberta­mente, e Dilman gostava de qualquer pessoa que gostasse dele e sentira-se lisonjeado.

-       Faça a ligação... - deu por si a dizer à telefonista de lowa.

O auscultador emitiu um som de motor a falhar e subitamente a voz fanhosa do Juiz fez-se ouvir.

Está lá, Sr. Presidente Dilman?

Sim, Juiz, como vai...?

Da parte de um Fulano que foi enforcado no posto público a um outro que está prestes a ser enforcado no mesmo lugar, desejo-Ihe muitas felicidades. Doug, quero que você entre na Casa Branca seguro de si e cheio de coragem e que os faça a todos andar direitos. Oiça o que ouvir, veja o que vir, lembre-se sempre de que é o patrão e não o Tio Tom. Você pensa o que pensa, diz o que acha e, quando vir que é preciso, mande-os todos para o diabo. Lembre-se disto! Com excepção daqueles confederados que pensam que o velho Jeff Davis é o presidente, você tem o Partido ao seu lado, a partir de hoje. E os que não estiverem, diga-me, que eu vou lá metê-los na ordem. Telefonei-lhe apenas para, de minha parte e da minha cara-metade, lhe desejar muito boa sorte. Nós bem sabemos que você bem pre­cisa dela!

Deu-lhe um ataque de tosse e Dilman esperou, meneando estupi­damente a cabeça, e quando deixou de ouvir tossir, disse:

Juiz, agradeço-lhe imenso a sua atenção. Não sei como lhe agra­decer.

Ainda não fiz nada por si, portanto nada tem que me agrade­cer. Mas vou-lhe dizer uma coisa. Eu e a minha cara-metade vive­mos aqui nesta terra de ninguém e tudo o que possuímos são va­cas, ar fresco e tempo, e tempo temos até de sobra. Portanto escute-me, meu rapaz, e não se esqueça disto: se alguma vez pre­cisar de mim, não de dinheiro, mas de algum conselho ou ajuda, venha cá ter comigo e então dar-lhe-ei um bom pequeno- -almoço campesino, falaremos e resolveremos o que é preciso fazer. Se por acaso não puder cá vir e eu ainda conseguir mexer estes ossos, diga-me alguma coisa e eu irei ter consigo. Não se esqueça. Pro­mete?

Não me esquecerei, Juiz, esteja descansado.

Só mais uma coisa, Douglass, e trata-se de um favor. - Fez uma pausa e depois disse impertinentemente - Estou-me nas tintas que você vire toda a Casa Branca de pernas para o ar, mas há uma coisa que eu quero que não faça - é que não se atreva a tirar o meu retrato da Sala Verde! Boa sorte, Sr. Presidente, e Deus o abençoe!

Rindo para si próprio, Dilman colocou o auscultador no descan­so. No mundo havia mais do que escritores decentes de artigos de jornais. Havia homens como o Juiz. A manhã já lhe sorria.

O telefone voltou a tocar. Dilman olhou para o relógio de pulso. Já eram 10 horas menos um quarto. Impaciente, levantou o auscul­tador.

Está?

Muito bom dia, Sr. Presidente. Daqui fala Wayne Talley. Estou na Casa Branca com o ministro de Estado, Eaton. Temos alguns assuntos urgentes para discutir, mera rotina, mas têm de ser tratados. Tenciona vir cá esta manhã, ou prefere que nós vamos a sua casa?

la mesmo agora a sair para a Casa Branca - disse Douglass Dilman.

Desligou e então ocorreu-lhe que aquela podia ser a última cha­mada que receberia no seu telefone privativo, cujo número não vinha na lista, la para uma casa com muitos telefones, ligações para todos os estados e para todos os países, e o número do seu telefone seria conhecido em todo o mundo.

Saiu da casa de jantar para ir buscar o chapéu e deixar para sempre a sua casa de negro e os seus vizinhos negros, la agora tentar viver numa nova casa e numa nova comunidade, que não ti­nham sido feitas para um negro, mas para um homem de todo o povo, porque só um homem desses podia ser Presidente dos Esta­dos Unidos - isto é, um homem que estava certo de ser um homem, e de mais nada.

Durante a breve conversa do governador Wayne Talley com Dilman, Arthur Eaton estivera sentado num dos dois sofás pretos da sala de recepções do presidente, a Sala do Peixe, assim se passara a chamar depois de O. C. para lá ter levado um gigantesco peixe e o ter pendurado numa das paredes.

Arthur Eaton mal ouvira a conversa, tão absorvido estava nos seus pensamentos. O seu espírito continuava persistentemente fixo à ideia da perca de O. C, o seu amigo mais íntimo - na realidade o seu único amigo, visto que ele era uma pessoa que nunca encorajara quaisquer relações pessoais ou íntimas com outros homens. Eaton estava no governo, na carreira diplomática, desde que se lembrava de si próprio. Os seus pais, quando ainda eram vivos e ricos, teriam ficado horrorizados com qualquer lugar no governo abaixo da carrei­ra diplomática. Concorrer a um lugar, depender dos outros para o obter, era algo em que nem pensava. Como consequência, Eaton nunca encarara a hipótese de concorrer a um lugar, embora lhe tives­sem aparecido várias oportunidades. O pai, antes de morrer - o que ocorrera quase simultaneamente com a perca da sua fortuna -, colo-cara-o na carreira diplomática e ele nela continuara durante todos aqueles anos.

Podia recordar facilmente muitos dos seus lugares anteriores. Houvera aquele pequeno começo como delegado na U. N. E. S. C. O., em Paris. Houvera a nomeação como delegado para as Nações Unidas, em Nova Iorque. Houvera três cargos de embaixador em três cantos do Globo. Houvera transferências especialmente agita­das, que requeriam equilíbrio, firmeza e inteligência aguda, nos tem­pos de Eisenhower, Kennedy e Lyndon Johnson. Houvera um perío­do de desânimo, quase de tédio, quando as transferências pareceram tornar-se confusas, cada uma assemelhando-se à anterior, com as mesmas mesas polidas, as mesmas pastas de pele, os mesmos tratados, os mesmos rostos orientais, semíticos, asiáticos ou euro­peus, pronunciando as mesmas expressões restritas do escalão das negociações diplomáticas. Eaton apreciava o protocolo, os modos distintos, os jogos limitados do espírito, e contudo encontrava-se então já farto de tudo isso. Fora um período em que se sentira apa­nhado num labirinto. Vida opressiva, ainda pior pelo facto de que Kay e ele tinham vivido até ali para além das suas possibilidades, pois assim estavam habituados a viver, e ele tornara-se cada vez mais dependente da fortuna da mulher. No que dizia respeito à sua carreira, não tinha grandes esperanças quanto a qualquer mudan­ça ou promoção e na sua vida particular nunca gozara de qualquer liberdade. Fora O. C. quem o libertara e lhe oferecera a grande opor­tunidade da sua vida.

Desde os anos em que tinham frequentado juntos a universi­dade, Eaton admirara sempre o vigor e a exuberância inesgotável de O. C. Apesar de apenas de tempos a tempos os seus caminhos se terem cruzado, Arthur Eaton observara sempre de longe o au­mento da importância política de O. C. Observara o amigo desafiar e vencer adversário após adversário, em eleições cada vez mais importantes, observara, com um misto de admiração e inveja, O. C. tornar-se uma figura nacional. Não ficara surpreendido quando a assembleia escolhera O. C. para porta-bandeira do partido, na ter­ceira votação, mas ficara realmente espantado quando Tim Flannery lhe telefonara de St. Louis para lhe comunicar que O. C. necessita­va da sua ajuda na campanha e que queria que ele fosse imediata­mente ter com ele.

Nessa altura Eaton encontrava-se entre duas missões e, momen­taneamente livre, fora logo ter com O. C. Para Arthur Eaton, naquela suite do hotel de St. Louis, O. C. fora como sempre tinha sido, apenas mais seguro de si, mais exuberante, mais estimulante. O. C. fizera direc­tamente a sua proposta. Como candidato do partido tinha bastantes conhecimentos dos negócios internos para se bastar a si próprio, mas - admitira O. C. candidamente - até aí tivera poucas oportunidades de se dedicar a problemas internacionais e então, no que diz respeito a negócios estrangeiros, era uma autêntica nulidade. Nesse campo pre­cisava portanto de ajuda e conselho. Implorara a Eaton que pedisse um período de ausência do Departamento de Estado e que se lhe juntasse na campanha para a presidência, como conselheiro dos negócios estrangeiros.

Embora a ideia de acompanhar alguém numa horrível viagem de campanha, trocando quartos de ar condicionado e mesas poli­das por insignificantes quartos de hotel, comida ma! cozinhada e políticas locais desgrenhadas, fosse de pôr os cabelos de Eaton em pé, este aceitara a proposta sem qualquer hesitação. Houvera duas razões para esta imediata aceitação. Uma delas fora a oportu­nidade que se lhe oferecera de fugir de Washington, de Kay e dos seus cansativos amigos da alta sociedade e de um trabalho que o sufocava. A outra razão, e a mais excitante, fora a promessa de O. C: «Ajude-me a ganhar as eleições, Arthur, e eu farei com que você tenha um lugar no Gabinete, não a vender selos ou preocu-par-se com os índios, mas um lugar mais importante. Ajude-me agora e, no próximo ano, ajudar-me-á a governar o país e a maior parte do mundo.»

Tudo se passara exactamente como O. C. prometera. Duas horas depois de o seu adversário se ter considerado vencido e de O. C. ter sido eleito presidente, Arthur Eaton recebera, em Georgetown, um telefonema do próprio O. C. Mal Eaton tivera tempo de o felicitar já ele lhe perguntava: - Arthur, você tem algum ini­migo entre os membros do Senado? - Eaton não se lembrava de nenhum. Então O. C. dissera: - Acha que eles concordarão com a sua nomeação? - E Eaton perguntara: - Que nomeação? - Então O. C. soltara uma gargalhada de satisfação e gritara através da linha: - Como ministro de Estado, meu amigo. Você é o primeiro membro do meu Gabinete, e seja bem-vindo a ele.

Deste modo se tornara ministro de Estado e, com Talley coloca­do entre O. C. e ele próprio, ajudara o presidente a governar o país. Tinham sido dias estimulantes e de aventura, aqueles dias dos pas­sados dois anos e sete meses tinham sido a sua fonte de juventude. Não só era uma alegria acordar cada manhã, como também Eaton encontrara a independência necessária para se libertar do jugo do dinheiro que o prendia à mulher. Podia finalmente ignorar o seu des­dém, o seu pedantismo, as suas qualidades insignificantes, a sua dedicação ao movimento social e o seu salão artístico de avant-garde. Na verdade podia agora alegar uma devoção por algo que importava muito mais: a sobrevivência do seu país. Este fora o escudo com que sempre se defendera da ira aguçada de Kay. A sua técnica de o atacar não variara com os anos; só se intensificara. Ela continuara a dar gol­pes na sua virilidade e, quando descobrira que já não o conseguia abater como anteriormente, começara a intensificar as suas viagens fora de Washington. Deixara-se ver em público com inúmeros homens jovens e brilhantes. Eaton nunca se preocupara com o que ela fazia nem com os seus companheiros em particular. Mas, livre dela, come­çara a gozar cada vez mais a companhia das mulheres jovens e soltei­ras de Washington, que lhe prestavam atenção e o apreciavam. Tivera apenas duas curtas relações amorosas, pois ele tinha consciência dos perigos que estas lhe podiam acarretar, mas tinham sido recom­pensadoras, por lhe terem mostrado que era ainda capaz de ter prazer no amor e na companhia e que valia mais do que aquilo que a mulher tentara fazer dele.

E devia todo este orgulho e todo este prazer à protecção e à amizade de O. C, a quem ele venerava como amigo e respeitava como chefe. Havia vinte e quatro horas atrás, o futuro de ambos pa­recera brilhante. Tinham à sua frente anos de governo juntos - o res­to daquele mandato e quase que certamente um segundo mandato. Havia vinte e quatro horas, a ressurreição de Eaton, como pessoa, e uma pessoa muito importante, era certa. E então, repentinamente, com o desmoronar do velho palácio de Francoforte, todas as suas esperanças e projectos se desmoronavam também. Ele sabia por­tanto que a sua dor não era apenas devida à perca do amigo, mas também à perca de algo de si próprio.

Durante toda a trágica e infindável noite em Georgetown, a se­guir ao juramento de Dilman como presidente, recebera e ouvira os membros do grupo de O. C. e os chefes do partido. A maior parte da conversa fora acerca de como preservar a unidade do partido, agora que um negro era o seu chefe. Lembrava-se de que também tinham falado um pouco acerca de como preservar igualmente a unidade da Nação. Falara-se ainda, especialmente os sulistas, em pôr em dúvida a validade da constitucionalidade do Acto de Sucessão de 1947, e falara-se em reviver alguns aspectos do antigo Acto de Posse do Cargo de 1867, entre os quais o que permitia ao Senado tentar impedir que o presidente demitisse os membros nomeados para o seu Gabinete. Em resumo, recordava Eaton, a preocupação deles não girava à vol­ta da destreza de Dilman em desempenhar o cargo ou de como o deveriam guiar, mas de como o haviam de impedir de ser presidente, ou, falhando esta tentativa, de como o haviam de controlar, de lhe retirar todos os poderes, para que a Nação não se tingisse de preto e para que os presentes não perdessem os cargos em favor de ho­mens de cor e de partidários dos negros.

Durante toda a noite Arthur Eaton não se deixara envolver por tais discussões. A sua inteligência sofrera uma obstrução emocio­nal e ele só conseguira pensar nas consequências imediatas da noite fatal, na actual condição do país e de si próprio sem O. C. como guia. Mesmo quando os outros se retiraram e ele tentara dor­mir, ainda não adquirira a compreensão total de que, embora outro homem se tivesse tornado presidente, esse outro devia tomar cons­ciência de que era ainda o país e o governo de O. C, e que qual­quer sucessor seria apenas um mero guarda das ideias e dos ideais de O. C, os quais o próprio Eaton devia continuar a pronunciar e a apresentar.

Só agora, na Sala do Peixe da Casa Branca - um salão que, como o Escritório Oval, fora restaurado por O. C. depois da administração de Kennedy -, depois de ter ouvido Talley ao telefone e depois de ter revisto o que acabara de rever mentalmente, Eaton assentara a ideia do que deveria ser feito. Ele tinha um papel, apesar de tudo, e talvez esse fosse agora mais importante do que jamais fora. Devia ignorar todos aqueles estúpidos esquemas acerca de impedir Dilman de exer­cer o seu cargo. Devia-se devotar - decidira Eaton - em manter O. C. tão vivo quanto já alguma vez fora. Só assim se poderia salvar os Esta­dos Unidos de O. C. e dele próprio, e, simultaneamente, só assim Arthur Eaton poderia continuar a ter uma vida com sentido.

Mantinha-se direito, sentado no sofá, olhando para Wayne Talley, que estava de pé junto da secretária e tomava notas numa folha de papel pousada ao lado da antiquada máquina de escrever que perten­cera a Woodrow Wilson.

Que conta fazer, Wayne? - perguntou.

Dilman vem a caminho. Ele é um verdadeiro amor. Não estou a dizer que seja estúpido - que diabo, ele já por aqui anda há muito tempo para isso. Mas ignora totalmente o que na realidade se passa e o que é preciso fazer-se. Só de pensar nisso sinto-me mal. Os sena­dores mais antigos do partido reúnem-se cada vez que há um novo congresso na Sala das Conferências do edifício do Senado para ele­ger um presidente temporário. A ideia é escolher um deles como subs­tituto do vice-presidente, quando este tem de se ausentar da cidade. Nove vezes em dez, votam no membro mais antigo entre eles. Não há qualquer regra de votação, mas é uma espécie de gesto de cortesia, um costume, escolher o senador que tem mais anos de serviço. É esta a razão por que Rydberg ocupou o cargo durante tanto tempo. «Papá M atusalém» lhe chamavam. Depois os médicos obrigaram-no a pedir a demissão e, assim, o Senado teve de o substituir, para mais com Porter sempre em viagem. Portanto tiveram de se reunir novamente para votar. Assim, o que sucede desta vez? Com todas aquelas lutas sangrentas em Detroit, em Chicago, em Memphis e em Dallas, provocadas pelos negros, com todas aquelas marchas de protesto e boicotagem a piorar - do que se lembra uma meia dúzia de fulanos espertos? Decidem fazer da eleição um gesto político, um gesto democrático, dando o honorífico cargo a um negro, para fazer calar os manifestantes e para lhes provar que só pretendemos o bem deles. O senador Selander, o membro mais antigo e o que, em condições naturais, deveria ter sido escolhido para presidente interino, apoia tam­bém a sugestão. Assim, Selander sai da reunião, telefona-me e diz-me que transmita o que se passa a O. C. para saber se ele aprova. Ora, nesse dia, O. C. estava de tal modo ocupado que nem se interessou por quem havia de ocupar aquele insignificante lugar de presidente interino do Senado e disse que estava bem, que até talvez fosse bom para o partido eles fazerem o que achavam melhor. Assim, a união do partido escolhe Douglass Dilman e põe a resolução perante todo o Senado. Depois, por um mero acto de rotina, a oposição apresenta o seu próprio candidato, o senador Riggings. A proposta da oposi­ção é rejeitada, a resolução inicial a favor de Dilman é posta em vota­ção, aceite, e Dilman obtém aquele lugar idiota onde nada se faz. Quem diabo pensaria então que o vice-presidente morreria subita­mente pouco depois disto? Quem diabo imaginaria que o quarto na linha de sucessão alguma vez poderia vir a ser o presidente dos Esta­dos Unidos? Na realidade, quem sabia até, naquele dia em que rotinei­ramente se reuniram e votaram, que o presidente interino do Senado era o quarto na linha? Eu sempre pensei que fosse o ministro de Estado. Pensei que fosse você, Arthur, apesar de, na altura, isso não interessar para nada. Portanto, por razões políticas e publicitárias, pusemos lá em exibição aquele pobre mercenário do partido, o nosso homem de cor, um homem que não possuía capacidade para gover­nar o que quer que fosse.

Como é que você sabe isso? - perguntou Eaton calmamente.

Douglass Dilman esteve durante quatro mandatos na Câmara e dois no Senado e que fez ele durante todo esse tempo? - disse Talley com veemência. - Enviaram-no para Washington devido aos tempos que vão correndo, deram-lhe um cargo honorífico no Senado por cau­sa dos tempos, e então sucede um acidente por que ninguém espera­va, e pronto, apanhamos com um incapaz, cuja presença só significa um terrível potencial de preocupações. - Ergueu as mãos ao céu. - O quarto na linha que se torna Presidente! Repito, Arthur, quem jamais poderia imaginar uma coisa destas?

Sempre havia uma possibilidade - disse Eaton. - Li esta manhã que o que sucedeu agora poderia muito bem ter sucedido nas seis ultimas semanas de 1961. Nessa altura o presidente da Camará, Rayburn, morreu e não foi substituído, e se então o presidente Kennedy tivesse sido assassinado, e juntamente com ele o vice-presidente Johnson, teríamos tido o quarto na linha, o presidente interino do Sena­do, Hayden, como Presidente dos Estados Unidos.

Mas o Dilman! Qualquer pessoa teria sido melhor que o Dilman.

Bem, se ele não proceder como deve - disse Eaton -, você e os seus amigos senadores só têm de se culpar a vós próprios. Como expediente vocês jogaram com a política em vez de exercer um julga­mento, e mesmo só por uma vez já foi de mais.

Arthur, não me venha ensinar o que deveria ser feito depois de o caso já se ter dado. Nós jogamos sempre com a política. É esse o nosso ofício. Ora política não é, necessariamente, uma palavra suja. Implica negociar, dar e tomar, significa andar de harmonia com os tempos, fazer o que as pessoas querem, mesmo quando não se te­nha a certeza que é o melhor para elas. A maior parte das vezes a política produz bons resultados. E usualmente, quando jogamos com a política, calculamos acertadamente, e o que sucede então é útil não só para nós próprios como também para a maior parte do povo. Desta vez, porém - abanou tristemente a cabeça -, como eu estava a dizer, tomámos apenas uma decisão de importância ínfima e tomámo--la para acalmar o grupo manifestante. Quem diabo podia prever que conduziria a uma coisa destas?

Contudo, conduziu ao que está à vista - disse Eaton. - Sugiro que esqueçamos o passado e que consideremos o presente. É a altura de sermos realistas, de tentarmos fazer o melhor que puder­mos numa situação por assim dizer difícil. - Fez uma pausa e olhou fixamente para Talley. - Penso que isto seria o que O. C. quereria que fizéssemos.

O olho torto de Talley revirou-se e ele engoliu em seco, como sempre acobardado perante a menção do nome de O. C.

Sim, acho que tem toda a razão - disse, afastando-se da se­cretária, abanando a folha de papel que tinha na mão. - Bem, você pode ver que estou a tentar fazer o melhor que posso. Estou a tentar fazer uma lista dos primeiros deveres de Dilman. Só Deus sabe como ele os conseguirá resolver.

Wayne, ele certamente conta com os conselhos e a ajuda dos mais experimentados - disse suavemente Eaton. - Há já muito tempo que o cargo se tornou demasiado grande para um homem só. Afinal, que se exige de um presidente? É o Chefe do Executivo vigiando a execução das nossas leis, exercendo importantes poderes de nome­ação e demissão. É o Chefe de Estado, o que acolhe uma torrente infindável de visitantes nacionais e estrangeiros. É o comandante-chefe do Exército, da Marinha, das Forças Aéreas e Marítimas, ainda com o Pentágono ao colo. É o árbitro de ambas as Câmaras da Colina do Capitólio, com poderes para influenciar a actividade do Congres­so e para anular as suas resoluções por meio do veto. É o embaixa­dor americano para todo o mundo, fazendo negociações com chefes de outras nações, fortalecendo os nossos tratados, seleccionando diplomatas estrangeiros, usando o meu próprio Departamento de Estado pouco mais do que como um computador. E isto, Wayne, é apenas o começo para qualquer presidente. Pense nas tarefas me­nos importantes - governa o seu partido político, molda a opinião pública, faz com que a sua voz seja ouvida nos Estados Unidos, actua como superpolícia em acções que variam desde lutas e tumultos sociais até ao monopólio dos grandes negócios.

Arthur Eaton reparou que Talley estava a ficar impaciente e sorriu.

- Desculpe estar a dar-lhe um resumo que você já conhece até bem de mais, mas esta é uma manhã própria para relembrar quais os factos da vida de um presidente. Que homem só, nesta complexa época, pode cumprir a tarefa de todos os homens ao mesmo tempo? Nem um Hércules o conseguiria. Qualquer presidente moderno sabe isso. Roosevelt, Truman, Eisenhower, Kennedy, Johnson, todos eles sabiam isso e delegaram o poder a especialistas. O único que tentou fazer tudo sozinho foi o Juiz. Isso durou um ano, e meteu-se em tal enrascada que foram necessárias várias centenas de peritos para o tirarem dela. O próprio O. C. disse-me um dia que o nosso método de eleger e de depender de um só presidente estava tão fora de moda como o uso da caleche e que o que este país precisava actualmente era da eleição de um quadro completo de presidentes, pelo menos cinco, todos a trabalhar em comum. Como não podia fazer isso, O. C. fez o melhor que podia fazer. Pegou em si, Wayne, depois de você ter perdido a eleição, em mim próprio e em mais uma meia dúzia de outros do partido e utilizou-os como presidentes assisten­tes, o que resultou maravilhosamente.

Talley fungou.

Optimamente, Arthur, eu sei isso. Você sabe isso. Talvez todos os rapazes da escola o saibam. Mas sabê-lo-á porventura o nosso novo presidente?

É provável. Se ele não compreende o que é a delegação do poder, penso que o compreenderá dentro de uma semana.

Quem me dera estar tão certo disso como você, Arthur. Não se trata de um homem como qualquer outro. É um homem de cor, um produto de uma raça que tem sido empurrada há um século ou mais, que está habituada a que lhe digam o que deve fazer e que se ressente de tal facto. Se se dá o poder a um indivíduo desses, o poder de ele próprio impelir, pode acontecer que ele queira todo esse poder só para si. Pode arruinar-nos.

Eaton pareceu concentrar-se durante um momento. Por fim er­gueu os olhos.

Talvez você tenha razão. Por outro lado é possível que a cor dele, a história do passado da sua raça, possa agir em nosso benefí­cio. Baseado no que sei da sua actuação na Colina do Capitólio, pos­so afirmar que ele é um homem tímido e inseguro, um bom ouvinte, um bom ortodoxo e um homem agradável em tudo. A noite passada pedi ao senador Selander para me ler o registo da votação de Dilman durante a última sessão. Ele concordou com O. C. e com o partido em todos os decretos maiores da legislação. Penso que isso é um bom presságio para todos nós.

Arthur, ele ainda não era Presidente dos Estados Unidos nessa altura.

Não era, mas agora, que o é, é provável que esteja mais assus­tado e mais desejoso da nossa ajuda do que nunca. Pelo menos eu prefiro pensar assim. Não concordo com todas essas medidas extre­mistas de retirar Dilman da presidência ou de lhe criar obstáculos no caso de ele permanecer legalmente como nosso presidente. Não vejo qualquer razão para que o contraditemos desde que não tenhamos provas de que ele não quererá cooperar connosco. Acho que nós devemos fazê-lo ver as coisas como O. C. as vias e como as resolve­ria no futuro. Se conseguirmos isso, com certeza que o mandato ter­minará sem percalços. E penso que a nossa orientação deve come­çar já a partir deste momento. - Apontou para a folha de papel na mão de Talley. - Diga-me qual a lista dos assuntos que Dilman tem a resolver imediatamente.

Ainda perturbado, Talley sentou-se na ponta de um sofá e con­sultou a folha de papel.

Deixe-me ver - hum! -, ele assinou a proclamação do funeral de O. C. e do período de luto nacional, ontem à noite, não assinou? Sim, !embro-me que sim. Bem, ele terá de ir esperar o avião do funeral, amanhã.

Gostaria que Grover lllingsworth tomasse conta disso - disse Eaton. Depois acrescentou: - De qualquer modo, deixêmo-lo fazer os preparativos para a procissão, os serviços religiosos na Casa Bran­ca e o próprio funeral. Ele é o melhor chefe de protocolo que já algu­ma vez tivemos, mas é ainda melhor a tratar de... de assuntos delica­dos como este. Já o enviei ao Arizona no jacto de O. C. para trazer Hesper.

Talley ergueu rapidamente a cabeça.

-       E que faremos acerca de Hesper? - Deverá Dilman encontrar-se com ela?

Eaton não respondeu logo. Pensou em Hesper, a graciosa mu­lher de O. C, que se encontrava agora viúva, com um filho órfão de pai e sozinho na sua casa de Verão de Phoenix. Já tinha falado com ela. Ela tinha suportado corajosamente o choque, como era de espe­rar de uma mulher como ela. Como Kay, ela pertencia ao Movimento Social Feminino e tinha urna grande fortuna pessoal, mas, diferente­mente de Kay, era sensata e doce. Apaixonadamente dedicada ao filho e às obras de caridade, sobreviveria bem à sua perda.

Não sei, Wayne - disse Eaton. - Talvez Dilman devesse ir apre­sentar os seus respeitos à primeira dama, mas acho que nenhum de­les se sentiria à vontade. Temos ainda um ou dois dias diante de nós. Vou pensar nisso. - Apontou com a mão para as notas de Talley. -Continuemos.

Ele tem de prestar juramento junto do pessoal da Casa Branca.

Esta tarde.

E de preencher algumas vagas, a maior parte delas deixadas por secretárias sulistas.

-       Estou a ver. Óptimo, a Edna pode começar a arranjar candidatas. Talley voltou de novo às notas.

-       Tim Flannery diz que as notícias da imprensa revelam uma grande preocupação. O país inteiro acusou um grande choque. - Ergueu os olhos. - Talvez pudéssemos fazer desaparecer o medo das pessoas se lhes mostrássemos e elas pudessem ver até que ponto ele é inofensivo. Penso que talvez lhe pudéssemos preparar um discurso pequeno e apagado, para ele ler na televisão.

Não penso assim - disse Eaton resoluto. - É ainda demasiado cedo. O seu aparecimento pode inflamar em vez de acalmar. Tente­mos, por agora, mantê-lo fora das vistas, deixemos que o país saiba que, mesmo sob Dilman, o governo não se alterou, que as coisas continuam na mesma.

Por que não o fazemos falar numa sessão conjunta do Con­gresso? Truman fez isso depois da morte de F. D. R.

Fê-lo não ligando aos protestos dos seus colegas. Não, Wayne, isso também não me agrada. Continuo na minha: é melhor mantê-lo junto da secretária ainda durante algum tempo até que os ânimos se acalmem.

Está bem.

Faça os necessários preparativos para que ele almoce ama­nhã com os chefes do Senado e da Câmara.

Óptimo - disse Talley, assentando no papel. - E quanto ao gabinete de ministros? Devo-os convocar todos hoje para uma reu­nião?

Eaton abanou a cabeça.

-       Hoje não. E nem sequer amanhã.

-       Não parecerá estranho se ele não o fizer? Eaton humedeceu o lábio inferior.

Não o quero a presidir uma reunião do Gabinete sem que o tenhamos instruído completamente. Temos primeiro de o informar acerca dos desejos, planos e projectos de O. C. Só então ele saberá como proceder. - Endireitou o corpo. - Vou dizer-lhe o que devemos fazer, Wayne: começando esta tarde e durante os próximos dias, faça com que os diversos membros do Gabinete lhe venham fazer visitas de cortesia, mas de modo que nenhum discuta quaisquer problemas políticos. Quanto a Dilman, ele deverá pedir a cada um que permane­ça no seu cargo e que o sirva como serviu O. C.

E se ele se opuser ou tiver quaisquer restrições a fazer?

Não se oporá, Wayne. Ele não os conhece e precisa já de um Gabinete experimentado. Não teve ainda tempo para pensar em qual­quer outra pessoa. É verdade, não se esqueça de lhe lembrar que, depois da morte de F. D. R., Harry Truman também pediu a cada membro do Gabinete de Roosevelt que continuasse a exercer o seu cargo. E Lyndon Johnson fez exactamente o mesmo. Bem, o que se segue agora?

Esta manhã uns doze embaixadores, pelo menos, já pediram entrevistas. O embaixador Rudenko quer discutir o recomeço da Conferência do Roemer.

Atendê-lo-ei eu próprio.

Depois, o embaixador de Baraza, Nnamdi Wamba, está extre­mamente animoso.

Vou dizer a Jed Stover que o despache. Amanhã vou enviar alguém até Baraza para conferenciar com o presidente Amboko. Quero fazer o que O. C. tencionava fazer - preparar o caminho para um acordo com os Russos fazendo com que os Africanos não sufo­quem os comunistas em troca da nossa renovação do Pacto da União Africana. Quero sondar Amboko. Quando estivermos preparados, poderemos então dizer a Dilman como há-de proceder em relação a Baraza.

Depois o embaixador indiano e...

Limite-os também a visitas de cortesia. Nada de negócios oficiais até à próxima semana. É o suficiente para mantermos Dilman ocupado?

Talley fez que sim com a cabeça.

-       Certamente, mas há...

Nesse momento bateram à porta e ambos se viraram.

-       Sim? - gritou Talley.

A porta abriu-se e Edna Foster espreitou para dentro da sala.

-       Sr. Ministro Eaton, há uma chamada pessoal para si, de Miami Beach. É a Sr.a Eaton. Pode atendê-la agora?

Eaton pareceu hesitar e depois disse rapidamente:

-       Certamente. Muito obrigado, Miss Foster.

-       Na linha dois, por favor - disse Edna, e fechou a porta. Eaton ergueu-se empertigadamente do sofá e dirigiu-se para o telefone.

Arthur, se prefere que o deixe sozinho... - disse-lhe Talley.

Não vale a pena.

Eaton carregou num botão do telefone e pegou no auscultador.

- Querida Kay, como estás? Ouviu-a troçar do cumprimento:

Querida Kay, como estás? Meu Deus, se alguém te ouvisse julgaria que acabaste de sair do campo de ténis. Como consegues uma coisa dessas, Arthur? Como consegues manter-te calmo e imperturbável perante um massacre? Pensei que pelo menos estives­ses no meio de alguma vigília fúnebre, amarfanhado pelo desgosto da morte do teu querido O. C. Nada te leva a beber, Arthur?

Talvez tu sejas bem sucedida naquilo em que outros falharam, querida.

O riso dela ecoou pelo fio, e, depois de uma pausa, a sua voz tornou-se mais séria.

Ouvi a notícia quando regressávamos ao hotel, antes da meia--noite. Interromperam a música em todas as estações para a transmi­tirem. Aqui na Florida houve uma autêntica barafunda. E esta manhã a coisa continua. Até o criado negro que me serviu o pequeno-almoço recusou a gorjeta que eu lhe queria dar. «Por hoje já tenho o sufi­ciente, madame», respondeu-me. Os brancos então, estão lá em baixo no vestíbulo, mal-humorados, queixando-se e destilando ódio contra os negros. É o suficiente para uma pessoa ficar aterrorizada. Não sabes de nenhum esconderijo seguro, Arthur? Ou já não te aterrori­zas mais?

Já não, Kay.

É tudo o que tens a responder, Arthur? Não pareces estar à vontade. Está aí alguém na sala ao pé de ti?

Está sim.

Ora, isso não devia embaraçar o casal Eaton, pois não? Agora somos propriedade pública, pertencemos a todos. Sabes que o artigo de Reb Blaser merecia ser publicado em todos os jornais. É verdade que merecia. Acabei mesmo agora de o ler. Fiquei a saber que os Eaton caminham para o divórcio. Devo acreditar no que li?

Acaba com isso, Kay. Ele pretendia atingir caça mais grossa nesse artigo.

Acho que neste momento não há caça mais grossa do que tu, meu caro. O que é que dizem?... Ah!... já sei... que estás a uma pole­gada da presidência, li eu.

Ainda não tive tempo para pensar nisso.

Pois bem, eu tive, Arthur. Também, durante todos estes dias a única coisa que tive foi tempo. A noite passada nem conseguia ador­mecer a pensar nisso. Foi por um triz que isso não aconteceu. Que teria acontecido se esse negro, chamado não sei o quê, estivesse com O. C. e MacPherson em Francoforte? Agora, tu serias o presi­dente e eu a primeira dama da Nação. E tu não te podias divorciar de uma primeira dama, pois não, Arthur? Já alguma vez se viu tal coisa? Finalmente, o rancor dela já lhe estava a fazer perder o controlo.

-       Kay, pára com isso. Neste momento estou ocupado. Pode­mos...

A voz dela tornou-se subitamente séria:

-       Arthur, queres que eu volte agora para casa? Se precisas de mim...

Ele pensou quantas e quantas vezes precisara dela no passado, mas agora precisava apenas de paz no espírito. Teve o desejo de lhe dizer precisamente isto, mas a presença de Talley fê-lo dominar-se.

Continua as tuas férias, Kay. Será a melhor solução para am­bos.

Paciência - respondeu ela calmamente, e desligou.

Ele ficou com o auscultador na mão, sem a oportunidade de se despedir, o que constituía sempre para ele um embaraço quando estavam outras pessoas na sala. Fingiu que se despedia.

-       Adeus, Kay - disse para o auscultador mudo, e tornou a colocá-lo no descanso.

Reparou que Talley estava concentrado a tomar notas na folha de papel, já toda escrita. Tinha a certeza de que Talley adivinhara o que se passara entre Kay e ele e mais ressentido ficou com esta por ela o ter atormentado quando sabia que ele não estava sozinho.

Permanecendo junto do telefone, Eaton perguntou:

E quanto ao resto da lista dos assuntos que Dilman tem de tratar imediatamente?

Oh - disse Talley endireitando-se como se estivesse profun­damente absorvido no trabalho que estava a fazer e não tivesse reparado que Eaton já desligara o telefone. Começou rapidamente a enumerar o resto da lista: - Terá de responder a uma lista intermi­nável de mensagens de chefes de Estado. Provavelmente algo sucin­to e cortês, para lhes dar confiança. Para o Primeiro-Ministro Kasatkin talvez fosse conveniente mandar um telegrama maior, em resposta ao dele. Penso que Tim Flannery e nós os dois nos deveríamos lançar imediatamente à tarefa de ajudar Dilman a fazer uma comu­nicação, séria e levemente ambígua, à imprensa, comunicando que entra para o cargo com um sentimento de responsabilidade perante O. C. e perante todo o povo americano que votara em O. C, e que o barco do Estado é ainda o barco de O. C, e que, embora esteja apenas temporariamente ao seu leme, fará o melhor que puder.

-       Óptimo - disse Eaton. - Informe Dilman e Tim Flannery que nos reuniremos hoje às três horas.

-A seguir...

O telefone começou a tocar ao lado de Eaton. Este pegou no auscultador, pedindo a Deus que não fosse a Kay outra vez. Afinal era apenas Edna Foster, anunciando que o congressista Zeke Miller se encontrava no vestíbulo da imprensa, acompanhado por um dos seus assistentes, e que Miller dissera que precisava de falar urgente­mente com Eaton e com Talley. Prometera que não roubaria mais de cinco minutos.

Que lhe devo responder? - perguntou Edna.

Diga-lhe que estamos aflitos de tempo, mas... - considerou a necessidade ver o congressista Miller, que ele achava desajeitado e enjoativo, mas então lembrou-se de que, se queria agir como O. C. agia, devia ser político e diplomata ao mesmo tempo. - Muito bem, Miss Foster, mande-o entrar. - Depois dirigiu-se em direcção à porta que dava para o corredor.

Quem é? - perguntou Talley.

Zeke Miller quer ver-nos por uns minutos. Acho que temos de o atender.

Absolutamente - respondeu Talley. - Ele representa uma gran­de força, especialmente agora.

Eaton abriu a porta e, como se estivessem numa cena de teatro, o deputado Zeke Miller precipitou-se imediatamente para dentro da Sala do Peixe com uma pasta debaixo do braço e apertou a mão a Eaton e a Talley, que se erguera da cadeira. Depois Miller apresentou o rapaz desen-gonçado, de grandes óculos e lábios finos, sobrecarregado com uma enorme pasta castanha, que o seguira para dentro da Sala, como sendo um tal Casper Wine.

Zeke Miller deu uma volta completa à Sala do Peixe, transpirando por todos os poros, e ordenou imperiosamente ao assistente que se sentasse.

-       Sente-se ali, Casper. - Depois disse a Eaton: - Casper Wine é o advogado constitucional mais jovem e mais esperto da Colina do Capitólio. Presta-nos grandes serviços, a nós, os da Assembleia Judi­ciária da Câmara.

Miller deu uma reviravolta e extraiu um lenço azul da algibeira das calças. Levou-o ao nariz, assoou-se, e depois, fazendo do lenço uma bola, limpou o suor da testa, do rosto e do pescoço. Eaton observava os movimentos e as reviravoltas nervosas de Miller com crescente re­pugnância. Em todas as ocasiões em que fora obrigado a estar junto de Miller, retirara-se sempre com a sensação de que teria estado me­lhor na companhia de uma víbora. Eaton achava o aspecto do deputa­do sulista repulsivo. Não que Miller fosse especialmente feio, mas o seu aspecto era o de um verdadeiro fanático intolerante. Era de esta­tura não muito baixa, forte, e não podia estar quieto um segundo. Havia algo de ameaçador nele, como se fosse uma mola pronta a sol-tar-se e a retalhar os que se encontravam ao seu alcance.

Miller era semicareca, tinha um nariz comprido, pontiagudo e cheio de pequenas veias, e uma boca quase sem lábios, que ele mexia continuamente, pondo à mostra uma série de dentes amarela­dos. A sua pequena estatura, como a sua pequena inteligência, era resistente e flexível. Os seus fatos eram caros, mas vistosos. Nem o dinheiro proveniente da indústria têxtil do pai, nem a herança do lado da mãe lhe tinham dado qualquer distinção. Os anos que passara lon­ge do Sul tinham-lhe modificado o sotaque regional, que ele utilizava, dizia-se, quando lhe convinha, nos anos das eleições.

Quando ia com destino aos tablados das eleições da sua terra, viajando pelas estradas de terra argilosa e vermelha e pelas alame­das cobertas de magnólias, Zeke Miller transformava-se no verdadei­ro sulista, e a voz que vibrava através das salas da Casa Branca como as cordas esticadas de um banjo tornava-se mais branda, mais cheia e meliflua, ao censurar a conspiração dos comunistas africanos por minarem a América, reduzindo-nos a uma única família de mestiços, e trazendo, como consequência disso, o bíblico Armageddon, que varrerá o nosso governo cristão da face da terra. «A salvação da América - dizia Miller frequentemente - estava em conter a infiltração da praga negra por meio da mais estrita segregação e, por último, em meter os defensores da destruição em barcos e enviá-los para a sua África nativa.» Nos raros momentos joviais dos seus discursos, Miller costumava atribuir as suas piadas ao decrépito papagaio verde do pai, ou reler citações adequadas do Antigo Testamento. Não esquecia nunca que o avôzinho Braxton Z. Miller possuíra escravos, que eram pacíficos e reconhecidos e que a tal facto se devia a segrega­ção paterna. «Como os profetas deixaram dito - gostava Miller de dizer -, não trabalharás a terra com um boi e um burro juntamente.» Nesse momento Zeke Miller acabou de se limpar, dobrou o lenço e meteu-o no bolso das calças.

Digo-lhes uma coisa - murmurou -, aqueles repórteres lá fora quase que me esmagavam. Queriam-me agarrar qualquer coisa, con­quanto que apanhassem a sua história. Parecem ser rapazes duros a valer.

Você lá sabe, Zeke - disse Talley jovialmente. - Você mesmo faz um pouco parte deles.

Oh!, não, isso não é verdade, governador - disse Miller. - Os poucos jornais que o meu pai e eu controlamos não che gam a nada.

-       Pela primeira vez, Miller notou o olhar de Eaton fixo nele e virou-se ligeiramente para ele. - Tenho coisas muito mais importantes em que pensar do que preocupar-me com os meus jornais. Já agora aprovei­to para lhe dizer, Sr. Ministro de Estado, que não tive nada a ver com o que aquele idiota do Reb Blaser publicou nos nossos jornais. Fiquei furioso quando tomei conhecimento da coisa e disse ao Reb que, se ele voltava a usar os meus amigos em boatos escandalosos, eu faria com que nenhum jornal decente lhe aceitasse qualquer arti­go. Portanto, Sr. Ministro, não quero que haja qualquer mal-entendido entre nós. Nada tenho contra si ou contra a sua esposa. Pelo contrário, até estou do seu lado. Aliás, estou do lado de todo o grupo de O. C. e de todos os do nosso governo constitucional. Actualmente estou mais do seu lado do que já alguma vez estive. Não, senhor, tem a minha palavra de honra que tal não voltará a acontecer.

-       São desnecessários tantos protestos, congressista- disse Eaton.

-       Acredito que foi um erro e aceito a sua promessa de que tal não voltará a suceder. Eu já quase esquecera o desagradável incidente. Você tem razão, temos assuntos mais importantes a tratar agora.

A boca de Miller abriu-se num sorriso, revelando duas fileiras de dentes manchados de nicotina.

-Também eu tenho coisas muito mais importantes em que pen­sar. Se se sentarem, serei rápido no que tenho para dizer. Vou dar--Ihes um relatório do que se está a passar na Colina, com o objectivo de salvar este pobre país.

Eaton e Talley sentaram-se no sofá, mas Zeke Milier permaneceu de pé, abriu a pasta e extraiu dela um monte de papéis presos com um clip.

-       Sabe o que é isto? - perguntou, segurando os papéis, en­ quanto deixava cair a pasta. - Isto é o povo americano unido numa única voz de protesto contra o maior perigo e humilhação do nosso século - contra o facto de se deixar um nigger1 político e ignorante sujar a Casa Branca e andar para aí a querer dirigir-nos.

Eaton não procurou esconder o desagrado que sentia. Sabia que Milier usava a palavra nigger quando andava à caça de votos de bran­cos no Sul, mas, como sucedia com a maior parte dos seus colegas, limitava-se a dizer negro na arena pública da Casa Branca. Agora em­pregara nigger, o que, concluiu Eaton, era devido ao estado de raiva em que se encontrava.

Congressista Milier - encontrou-se Eaton a dizer -, o Presiden­te Dilman não anda para aí a dirigir ninguém. Até porque ainda nem teve tempo para isso, mesmo que o desejasse.

Você espere, espere só e veja- retorquiu Milier. - Antes que o possa remediar deparar-se-lhe-á um Gabinete de niggers, assim como o serão todos os ajudantes administrativos e embaixadores, e pode estar certo de que ele encontrará homens brancos para seus criados e raparigas brancas para suas secretárias. É por isto que todos têm estado à espera. - Milier soluçou, descreveu uma reviravolta aperta­da e veio de novo plantar-se diante de Eaton e de Talley. - Por um minuto esqueçam os resultados secundários e vejam os resultados imediatos. Veja aqui, nas minhas mãos, alguns exemplos dos tele­gramas que nos submergiram, a mim, ao Hankins e aos outros, e nem todos são provenientes do Sul. Deixo-os aqui para vocês lerem. Recebemos mais de dois mil telegramas, desde ontem à noite, pe-dindo-nos para afastarmos o Dilman do cargo e para protegermos o país. Não me venha com discursos racistas ou segregacionistas, porque isto agora é outra coisa. Há já quase três anos, o povo deste glorioso país ouviu os vários candidatos e elegeu o homem que dese­java para o representar. Agora, subitamente, encontra-se dirigido por alguém que nunca escolheu e que ainda por cima não tolera. Eu

 

1 Nigger, termo pejorativo americano de negro. (N. do T.)

 

chamo a isto um crime legal. Digo-o aqui e agora, perante vocês, e gritá-lo-ei de cima dos telhados: se permitir que esse nigger do Dilman se sente na cadeira de O. C, haverá uma revolução. Dentro de um mês nadaremos no sangue derramado por corpos brancos e negros. O deixar que esse intruso nos seja impingido desfará a nossa unida­de e o nosso progresso, degradar-nos-á aos olhos do mundo e pro­mete corrupção e ruína. - Fez uma pausa, os olhos esbugalhados indo de Eaton a Talley e vice-versa, depois deixou escapar um soluço e continuou: - Sei o que ambos estão pensando, ou talvez não saiba, mas posso garantir-lhes que não sou nenhum extremista. Sou um legislador progressista que quer o que é justo. Certamente que fui educado na crença de que nós temos o nosso lugar na terra e que os negros têm o deles, e foi assim que Jeová fez as coisas. Mas sou um homem do partido e sempre o serei, se Deus quiser. Quando o parti­do teve de curvar-se perante o Supremo Tribunal, que o forçou a ceder perante os negros, eu moldei o meu procedimento segundo o dele. E é o que ainda hoje faço. Como junto com os negros, ando a cavalo com eles e deixo os meus filhos frequentarem a mesma escola que a deles, porque tal é a lei. Até aqui, tudo bem. Tenho feito tudo juntamente com negros, quer goste ou não, mas, diabos me levem, há uma coisa que certamente não farei: não deixarei um negro sentar-se na cadeira em que o general Washington se sentou e tentar mandar em mim. Talvez um dia, se fosse a vontade de todo o eleitorado, preto e branco, eu me curvasse. Se ele fosse eleito por voto popular, eu não me oporia. Mas da maneira como a coisa se passou, não, nunca!

Miller tirou novamente o lenço azul da algibeira e passou-o furio­samente pela cara suada.

Talley torceu nervosamente as mãos.

Zeke, ele foi votado para senador...

Pelos estafermos dos comunistas do Norte - interrompeu Miller.

Apesar de tudo ele foi votado para senador, e o Senado votou nele para presidente interino, e legalmente estava na linha de suces­são. Não vejo o que possa fazer contra isso.

Ah! - exclamou Miller. - Foi por isso que eu trouxe o Casper Wine comigo. Conhece a Constituição tão a fundo que a podia ter assinado juntamente com Hancock. Um grupo de alguns de nós, constituído por homens que se preocupam com o que está a aconte­cer ao país e que acreditam na justiça, reuniu-se durante a maior parte da noite e esta manhã, e resolvemos trazer aqui o Casper para ver o que se podia fazer antes de o Dilman se tornar presidente.

Ele já é presidente - disse calmamente Eaton. - Vi-o prestar juramento ontem.

Um procedimento ilegal, foi o que viu - disse Miller. - Casper e todos nós discutimos essa questão. No Acto de Sucessão há imensos pontos fracos por onde se pode pegar para conseguir anular a coisa. Estamos a preparar esta reclamação preliminar para a Assembleia da Câmara Judiciária. Estou agora aqui porque pensei que o Sr. Ministro devia ser o primeiro a tomar conhecimento do que pretendemos fazer. Afinal, se ganharmos, o senhor é o primeiro a ser directamente benefi­ciado. Se conseguirmos desclassificar Dilman, irá substituí-lo, por elei­ção especial, se necessário for. Estamos só a tentar torná-lo presidente, Sr. Ministro.

Deveria sentir-me grato - disse friamente Eaton -, mas estou apenas interessado em cumprir a lei.

Miller afastara-se deles.

-       Casper, leia-lhes o que descobrimos.

Casper Wine esforçava-se já por tirar um enorme processo da sua pasta castanha.

Eaton abanou a cabeça.

-       Não temos tempo para ler qualquer processo. O Presidente Dilman vem a caminho da Casa Branca e há muita coisa a tratar. Sr. Wine, esqueça a leitura do processo e diga-nos, pelas suas pró­prias palavras, o que aí está.

Casper Wine olhou desesperadamente para Miller através das grossas lentes dos seus óculos.

Miller encolheu os ombros e disse:

-       Está bem, faça-lhes a vontade, Casper.

O míope advogado constitucional pôs o processo mesmo em fren­te dos olhos, ficando assim com a cara toda tapada. Foi passando as folhas vagarosamente, uma a uma, lendo-as para si, e finalmente pou­sou o processo no colo. Começou então a falar, numa voz hesitante de falsete, não fixando os olhos em Eaton ou Talley, mas passeando-os pela Sala, de processo à carpete, da carpete aos sapatos do seu pro­tector, dos sapatos novamente ao processo.

-       É difícil... ham... difícil reduzir o nosso recurso a um número restrito de generalidades sem... ham... sem mencionar as buscas que fizemos em Actos... ham... Actos de Sucessão precedentes e na história constitucional - disse ele. - Tentarei resumir o nosso caso. - Fechou os olhos por detrás das lentes espessas e depois tornou a abri-los, ao mesmo tempo que abria a boca. - Se abrirem a Constituição no Artigo II, Secção 1, Parágrafo 6, lerão que, se tanto o presidente... ham... presidente, como o vice-presidente, morre­rem, então o Congresso terá o direito de apontar - cito textualmen­te - «que oficial deverá então actuar como presidente 'até que' um novo presidente seja eleito». Por três vezes o governo aprovou um projecto de lei estabelecendo... ham... estabelecendo a sucessão, e o último, de 1947, dizia que o presidente da Câmara deveria vir a seguir na linha, depois dele o presidente interino do... ham... do Senado, e depois o ministro de Estado. Segundo este projecto de 1947, dentro da estrutura da Constituição, é altamente duvidoso se... ham... se Dilman, esse Douglass Dilman, se pode presente­mente tornar Presidente dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, o texto da Constituição diz claramente... ham... claramente que o sucessor deve ser um «oficial», e o peso da opinião legal é que Dilman, como senador, o presidente da Câmara e o ministro de Esta­do, não são, tecnicamente, oficiais. Se Dilman não é um «oficial», como se pode tornar presidente? Talley voltou-se para Eaton:

-       Isso é um ponto, Arthur.

Eaton franziu o nariz e abanou a cabeça.

Demasiado fraco. Acho duvidoso se se pode transformar um Acto de Sucessão num mero resultado romântico.

Veremos - disse Casper Wine. - Mas suponhamos... ham... suponhamos que tem razão, Sr. Ministro. Seguidamente vamos a uma maior prova. A Constituição afirma claramente que o sucessor deverá... ham... deverá... e eu dou grande importância a isto... deverá «actuar como presidente» até que «um novo presidente seja eleito». Resumindo, o senador Dilman pode actuar como presidente, num sentido de guarda honorífico, como actuou como presidente do Senado, até que se faça uma eleição especial em todo o país para se escolher um novo e legal presidente por quatro anos.

Eaton abanou novamente a cabeça.

-       Não vejo isso assim. Num passado ainda recente, oito vice-presidentes sucederam a oito presidentes mortos, e não actuaram como presidentes, mas exerceram o cargo como verdadeiros pre­sidentes.

-       É verdade, mas exerceram o cargo anticonstitucionalmente - teimou Wine. - O primeiro erro foi cometido quando William Harrison morreu, em 1841. O Gabinete dirigiu-se ao seu sucessor, John Tyler, designando o Vice-Presidente dos Estados Unidos presidente actuante, fórmula que era correcta. Tyler, desejando o poder, as honras e o título de um presidente eleito, ignorou... ham... ignorou o Gabinete e fez de si próprio um verdadeiro presidente, falando acerca da sua «subida à presidência», apesar dos protestos da maioria dos senadores. Os ou­tros sucessores não fizeram mais do que seguir o seu acto ilegal e despótico. Quase todos...ham... todos esses sucessores, como Harry Truman e Lyndon Johnson, têm sido atacados pela imprensa. Mas a coisa ficou por aí.

Zeke Miller pôs-se de um salto novamente diante de Eaton.

-       Desta vez, Sr. Ministro, as coisas não ficarão assim. Cumpri­remos fielmente a nossa amada Constituição. Se Dilman não é um oficial, então não é susceptível de ser eleito para a presidência. Se é um oficial, então será eleito para actuar como presidente, somente até que possamos fazer uma eleição especial no país, para votar um presidente conforme a lei - esperemos que V. Ex.a mesmo, Sr. Mi­nistro.

Eaton levantou-se do sofá.

Esqueça-se de mim. Eu não sou o objectivo.

Claro que é - disse Miller excitado. - Seis ministros de Estado anteriores tornaram-se depois presidentes, mas tal nunca sucedeu com um presidente interino do Senado. O senhor é o nosso melhor candidato.

Congressista Miller - disse Eaton, aborrecido -, não poderá ter qualquer candidato durante os próximos dezassete meses, pela sim­ples razão que já tem um presidente... Sr. Wine, agradeço-lhe muito o seu processo. Nada poderei fazer por ele. Não os impedirei, a si ou ao congressista Miller, de apresentar a vossa descoberta perante a Câmara Judiciária. Posso apenas advertir-vos que é meu dever servir o presidente Dilman até que receba ordens contrárias.

O congressista Zeke Miller arrepanhou a boca num sorriso.

-       Muito bem pensado, sim senhor. Deixa-nos carregar com a bola e fica de lado. Acredite-me, Sr. Ministro, que não se arrependera. - Procurou a pasta e fez sinal a Casper Wine para se levantar. Parou em frente de Talley. - Preciso de todos vós, governador. Estou absolutamente resolvido a deitar mão de todos os recursos legais que existam para impedir que esse Dilman venda a nossa herança a esse magote de terroristas negros dos Turnerites ou àqueles guinchadores de hinos da Sociedade de Crispus ou da N. A. A. C. R Poderá dizer a Dilman que poderá brincar aos presidentes ainda durante uns dias, mas é melhor dizer-lhe também que não se inco­mode a mudar-se para a Casa Branca. - Piscou os olhos. - Gosto desta velha casa, gosto da cor com que a pintaram agora.

Depois de Miller e de Wine se terem ido embora e de os seus passos se terem deixado de ouvir no corredor, a Sala do Peixe ficou completamente silenciosa. Eaton e Talley não olharam um para o outro. Eaton ocupou-se em meter um cigarro na sua boquilha de prata e em acendê-lo. Depois de ter tirado algumas fumaças, os seus olhos cruzaram-se finalmente com os de Talley.

Não gosto deste homem, não gosto mesmo nada dele - disse Eaton.

É um parceiro sujo, disso não há dúvida. Mas eu compreendo a massa de que é feito. Percorri o Estado dele com O. C. e vi lá tone­ladas de Millers. Quando se viu isso, pode saber-se como ele se sen­tirá ao ver Dilman na presidência.

Acredite-me, Wayne, nada tenho contra Dilman pelo facto de ele ser preto. Na verdade não tenho quaisquer preconceitos raciais.

Nem eu - disse Talley apressadamente.

Falando mais para si próprio do que para Talley, Eaton continuou:

-       Nunca poderia estar do lado de Miller, de Hankins ou de qual­quer outro por essa razão. Realmente até me sentiria na obrigação de defender o Presidente Dilman contra tais ataques. - Reflectiu no que ia dizer a seguir. - Se alguma vez me opuser a Dilman, e me encontrar, contra a minha vontade, no meio da multidão dos Millers, será apenas por duas únicas razões. Uma delas é se Dilman desem­penhar o cargo como um presidente negro em vez de como presi­dente de toda a Nação, se mostrar qualquer favoritismo quanto aos da sua raça em detrimento do país considerado como um todo. Oporme-ei igualmente a ele se deixar arrastar por más influências, rejei­tando o programa e o grupo de O. C. - Depois acrescentou: - Não me anteciparei ao aparecimento destas duas causas.

Bem, Arthur, os veteranos da Colina estão bem mais preocupa­dos - disse Talley. - O senador Hankins acha que a única maneira de preservar o programa de O. C. é conservar o seu Gabinete. Têm estado a tentar descobrir um meio de reduzir o poder de demitir de Dilman.

Sim, tenho a impressão de ter ouvido algo desse género a noite passada.

Estão preocupados com o facto de Dilman tomar posse do cargo, depois demiti-lo a si e substituí-lo por qualquer amigo negro ou por um liberal branco, que o adule. Estão preocupados que isto não só venha pôr fim ao programa de O. C. mas que também enfra­queça a linha de sucessão.

Eaton contraiu os lábios.

Acho que eles estão a fabricar fantasmas de palha para os deitar abaixo.

Querem jogar pelo seguro, Arthur. Enquanto você por aqui estiver, eles sentem que há alguém para vigiar Dilman, para fazer com que ele fale a linguagem de O. C. Depois, também, sentem-se todos um pouco fatalistas, e com razão, e querem ter a certeza de que, se alguma coisa acontecer a Dilman, você cá estará para lhe suceder, você e nenhum outro, negro ou branco, que não represente a plataforma do partido.

Estou a ver - disse pensativamente Eaton. - Façam o que fize­rem, é melhor terem a certeza de que estão dentro dos limites impos­tos pela Constituição.

Estou com curiosidade de saber o que é que eles pretendem exactamente - disse Talley. - Sabemos o que Miller e os rapazes da Câmara estão a fazer, mas continuo na dúvida quanto ao senador Hankins. Acho que lhe vou telefonar. - Encaminhou-se para o tele­fone, mas, quando chegou ao pé dele, hesitou. - Não, parece-me que não vou telefonar ao Hankins. Seria como se ouvisse o Miller pela segunda vez. - Deu um estalo com os dedos. - Já sei. - Levan­tou o auscultador e marcou um número. - Edna? Daqui fala o gover­nador Talley. Seja boa rapariga e ponha-me em contacto com o sena­dor Hoyt Watson. Provavelmente ainda está em casa... Sim, sim, eu espero.

Do outro lado da sala, Arthur Eaton esperou também. Quando ouviu Talley obter a ligação e começar a fazer perguntas ao senador Watson, tirou a ponta do cigarro da boquilha e substituiu-a por um novo cigarro. Reparou, surpreendido, que era a primeira vez, nos últimos dez anos, que sentia a necessidade de fumar cigarro após cigarro.

Com a atenção concentrada no minúsculo ecrã do aparelho de televisão, assente sobre a pequena mesa, Sally Watson ouviu o pai dizer:

Um segundo, governador Talley, espere só um segundo. Levantou a cabeça da chávena de café e viu o pai apontar com o dedo para a televisão.

Sally - gritou, para conseguir dominar o ruído -, importas-te de baixar isso um pouco?

Certamente que não, pai. - Pousou a chávena, esticou o braço e reduziu o som.

-Assim está melhor, querida. - O senador Hoyt Watson virou de novo o rosto, semelhante ao bico de um pássaro, para o bocal e retirou a mão com que o tapara. - Pronto, governador, importa-se de repetir a pergunta?

Tornando a pegar na chávena do café, Sally fixou de novo os olhos na televisão. O horrível filme da catástrofe de Francoforte tinha terminado e agora começavam a transmitir um documentário, que se via ter sido preparado à pressa, a biografia de Douglass Dilman.

Como que fascinada, observou a cena irreal da Sala do Gabinete da Casa Branca, na noite anterior, enquanto o senador Dilman presta­va o juramento presidencial. Embora já tivesse visto Dilman várias ve­zes nos corredores do edifício do antigo Senado e em reuniões sociais de Washington, reparava agora que nunca pensara nele verdadeira­mente como sendo um indivíduo. Em grande plano, no ecrã da televi­são, tornava-se uma pessoa, na verdade uma pessoa muito negra, mas, apesar de tudo, um homem, um homem de cabelo levemente ondulado, olhos bondosos e com o costume de esfregar o lábio infe­rior no superior. Agora o filme mostrava cenas da infância de Dilman: cenas decorridas num bairro pobre e sujo de uma cidade do Midwest, onde Dilman tinha nascido havia mais de cinquenta anos, depois foto­grafias de uma criança desengraçada, vestida com absurdos vestidos de renda, e, depois ainda, fotografias aborrecidas de edifícios escola­res. À medida que o filme se ia desenrolando, o interesse de Sally Watson foi diminuindo e a sua cabeça começou a latejar.

Encheu pela terceira vez a sua chávena de café, esperando que o pai não desse por isso, e perguntou a si própria em que altura daquela horrível festa da noite anterior teria trocado o vodka pelo whisky. Não conseguia lembrar-se de quando o fizera, mas lembra-va-se por que o fizera: fora porque o vodka nenhum efeito lhe produ­zira e ela queria algo que tornasse a noite suportável, para mais com aquela infindável e cansativa conversa de Grim Reaper acerca da morte de O. C. Ela tinha consciência de que, cada vez mais, ia fazen­do misturas de bebidas, nas festas, resolvida a atingir rapidamente um estado de euforia, e, cada vez mais frequentemente, os restos de tal estado se faziam sentir no dia seguinte, em que ela se via obriga­da a livrar-se deles por meio de novas bebidas.

Enquanto bebia a terceira chávena de café, tentou concentrar--se no ecrã da televisão. Mas agora era o pai que respondia a Talley e, porque a altura do som do aparelho estava baixa, era a voz do pai que sobressaía, de tal modo que a sua voz e a imagem no ecrã se fundiam e criavam uma grande confusão.

Porque a voz do pai era mais viva que o filme, e o dominava, ela desistiu de ver para escutar. O pai, de estatura elevada, imponente e autoritário, de cabelo branco e gravata preta, dizia, numa voz arrasta­da, ao telefone:

- Certamente que não estou contente com o aspecto que as coi­sas estão a tomar, governador, e os meus eleitores também não vão ficar satisfeitos. Não me agrada ter alguma coisa a ver com Hankins ou com Miller ou com o seu grupo de Klu Klux Klan, mas ao mesmo tem­po tenho de concordar com eles em que o país atravessa presente­mente uma fase de crise. Como a eles, a mim também não me agrada ter um negro como Chefe do Executivo, mas não me agrada por ra­zões diferentes. Penso que o país ainda não está suficientemente pre­parado para ter como presidente um homem de cor, e prevejo uma luta sem fim. Acho que Dilman, apesar de o conhecer pouco, não está à altura das exigências do cargo. É um homem educado, modesto, um bom membro do partido, mas não acho que tenha o estofo de um presidente. Pode prejudicar-nos grandemente, a não ser que o tenha­mos sempre com a rédea bem curta. Contudo posso assegurar-lhe sinceramente, governador, e pode repetir as minhas palavras ao minis­tro de Estado, nunca seguirei Miller na tentativa de fazer acrobacias legais para o impedir de exercer um cargo que a Constituição lhe confere. Para isso nunca contribuirei. Por outro lado, parece-me que o que o senador Hankins se propõe fazer tem muita razão de ser.

Parou para escutar o que Talley lhe dizia, acenando levemente com a cabeça.

Visto que o pai não estava a falar e que o som da televisão não era mais do que um mero zumbido indistinto, Sally concentrou a sua atenção no café, como se essa concentração pudesse ajudar a eliminar os restos da noite passada. Se não tivesse bebido tanto na reunião de Leroy Poole, poderia agora estar em melhor forma e a manhã poderia ter sido bastante interessante. Durante os vinte e seis anos da sua vida, não se lembrava de uma única manhã que tivesse sido tão rica em promessas de excitamento, de troca de contos e ditos.

Sally Watson era uma rapariga que precisava de agitação e de barafunda para florescer. Estas estimulavam-na e davam um signifi­cado aos seus dias vazios. Quando reinava a confusão, o escân­dalo, a possibilidade de aventura, ela sentia-se mais rica. Nunca teria chegado a saber isto acerca de si própria se não tivessem sido três pequenos e quase infrutíferos esforços de introspecção e adap­tação com três psiquiatras, nos últimos oito anos. Sabia também que, quando a vida lhe não fornecia este estimulante, os seus dias tornavam-se desprovidos de significado, e então procura enchê-los com drogas e bebidas.

Desprezava essa sua necessidade, essa sua fraqueza, e inve­java as outras mulheres que controlavam a sua agitação com os ma­ridos, os filhos ou as canseiras. Estava tangivelmente marcada pelo seu fracasso. Podia agora ver a marca, enquanto bebia o café, o risco branco no pulso direito, lembrando-lhe permanentemente a horrível época em que o cortara, num esforço supremo. Isso passara-se ha­via sete ou oito anos, depois de a terem expulso de Rodcliffe, por causa da festa da marijuana (o senador Watson «arranjara» as coisas de modo que ela saísse da escola sem escândalo), e depois de ter tentado trabalhar numa agência de publicidade em Nova Iorque (o senador Watson «arranjara» o emprego), e depois de ter fugido para Vermont com o músico porto-riquenho (o senador Watson «fizera» com que o casamento não aparecesse nos jornais, conseguira anulá-lo e deportar o rapaz). Esse fraco esforço para se destruir fora já há muito tempo, mas a cicatriz lembrara-lhe o que tentara, e culpava o pai por isso, embora o amasse verdadeiramente, e também a mãe, que vivia em Roma com o parasita do seu segundo marido, que era conde e que ela odiava e admirava ao mesmo tempo, e culpava igual­mente a madrasta, de quem não gostava, apenas por ser uma intru­sa e uma maçadora.

Sim - disse para consigo própria - , aquela manhã, com a morte de O. C. e um negro na presidência, poderia ter sido bem excitante. Sendo alguém para quem a morte era sinónimo de paz e a quem tal ideia agradava, não sentia nada perante a morte de O. C. Na verdade, ficara indiferente perante a morte do presidente porque este, apesar do pedido do pai, recusara-se a arranjar-lhe um emprego na Casa Bran­ca, e, quando ela mencionara tai facto no jantar anual do Congresso dado pelo presidente, troçara dela por brincadeira, o que não a diver­tira mesmo nada, mas, pelo contrário, só conseguira humilhá-la. Por­tanto, os recentes acontecimentos não constituíam qualquer perca, apenas um ganho, no que dizia respeito à aventura. Um presidente negro - meu Deus, o diabo devia andar à solta na cidade a essa hora! Se não fosse o sentir ainda os efeitos do que bebera na noite anterior, poderia ter estado ao telefone desde o romper do dia.

Reparou que a chávena de café já estava vazia e que o pai falava novamente. Tentou não dar atenção ao que ele dizia e continuar a pensar, mas a voz dele era demasiado potente para ser ignorada.

- Muito bem, eu explico-lhe, governador Talley - dizia o senador Hoyt Watson. - Como fez notar, o senador teve sempre o direito de aprovar as nomeações do presidente para o Gabinete. Ele faz a sua escolha e nós aprovamos. Tem porém na mão todo o poder de demitir. O que quer dizer que não pode nomear sozinho, mas pode demitir. Você citou o Acto de Posse do Cargo de 1867. Hankins tem todas as informações acerca disso. Foi um Acto de carácter vingativo. O seu objectivo era dar ao Senado o controlo total do Presidente Andrew Johnson. Foi a única vez em que o Senado tentou travar os poderes de demissão do presidente. Mas já se sabia então que era anticons-titucional, e foi declarado como tal, uns sessenta anos mais tarde, pelo Supremo. Agora Hankins não vai cair no mesmo erro, e nenhum de nós quer uma repetição do que sucedeu no passado. Hankins, porém... o quê? O que disse, governador?

Escutou durante uns segundos e depois, aparentemente, inter­rompeu Talley.

- Não, acalme-se, governador. Repito-lhe que nada faremos fora da lei do país. O Hankins ainda não formulou nada por escri­to - penso que o fará dentro de um ou dois dias -, mas tenciona submeter imediatamente um processo de sucessão revisto ou mesmo novo. A ideia é que, se alguma vez esta espécie de tra­gédia tornar a acontecer, o sucessor à presidência actuaria ape­nas como procurador, como um presidente temporário, até que se pudesse eleger um presidente e um vice-presidente para ter­minar o mandato inacabado. Quanto à nossa presente situação, Hankins quer - e eu estou plenamente de acordo com isso - uma cláusula retroactiva declarando que, com o fim de preservar a presente sucessão à presidência, como decretada em 1947, aque­les que se seguirem na linha de sucessão não poderão ser demi­tidos sem o consentimento de dois terços do Senado. Resumin­do, o ministro de Estado, Eaton, não poderá ser demitido, nem sequer o ministro das Finanças, Moody, ou o procurador-geral, Kemmler, os dois a seguir na linha. Penso que... - parou de falar abruptamente, a cabeça branca inclinada para o lado, e depois continuou: - Não, não sei se é constitucional. Mas pode servir--nos até que seja experimentado. Também não faço a menor ideia se Dilman assinará tal cláusula ou se a recusará - não o conhe­ço, ninguém o conhece -, mas se é um homem de boa fé, acho que verá quão razoável é esta solução e que a aceitará. Penso que este projecto poderá chegar até à secretária de Dilman sem grandes comentários. Não quero de maneira nenhuma que pare­ça que estamos a tentar manietar Dilman devido à sua raça. Na realidade, governador, considero este novo projecto da Lei da Sucessão, de Hankins, não apenas como algo que nos poderá servir agora, nesta emergência, mas como algo que nos poderá servir no futuro, de modo que outros sucessores não possam demitir os seus herdeiros potenciais e encher o Gabinete com pessoas da sua própria raça, crença ou partido, ou com incom­petentes que sejam seus aduladores ou parentes. Vou agora pre­cisamente daqui para o Capitólio, para ver se posso ajudar Hankins na redacção. Não quero que tenha o aspecto de uma medida vingativa, mas de uma medida útil no presente e no futuro. O que diz, governador? Arthur Eaton quer falar? Está bem, pas-se-lhe o telefone.

Ouvindo o pai mencionar pela segunda vez o nome do ministro de Estado, Sally Watson prestou maior atenção. Agora que o pai escutava Eaton, ela inclinou-se para a frente, com a esperança de ouvir a voz sedutora de Eaton através do telefone, mas era impossível ouvir alguma coisa àquela distância, do outro lado da mesa.

Por fim, desligou a televisão, levantou-se e, silenciosamente, começou a juntar a loiça do pequeno-almoço que estava em cima da mesa. Normalmente, no dia da saída da criada, ela e a madrasta cos­tumavam lavar a loiça. Mas a madrasta saíra cedo para um pequeno--almoço das Filhas da Confederação, e Sally não tinha paciência para fazer tal trabalho sozinha.

Deitou os restos do pequeno-almoço no caixote do lixo e espe­rou que o pai terminasse a conversa.

O senador Watson dizia nesse momento:

-       Concordo, Arthur, concordo com tudo o que diz. Será judi­cioso. Farei com que o seja. Mantê-lo-ei sempre a par do que se for passando... Deixe-me acrescentar, pois até agora ainda não tive essa oportunidade, que lastimo muito a tragédia ocorrida... Eu não era tão íntimo de O. C. como você, mas respeitava-o muito. É um terrível golpe para o país. São as realidades da vida. Façamos o melhor que pudermos... Boa sorte, Arthur, boa sorte para ambos.

Donde estava, Sally viu o pai pousar o auscultador, limpar a boca com o guardanapo e levantar-se. Parecia demasiado absorvido para reparar nela, mas ela esperou, desejosa de falar com alguém que acabara de falar com Arthur Eaton.

-Pai...

Oh, olá querida. Pensei que te tivesses ido vestir. Tenho de me aviar. Já estou atrasado.

Pai, estive a ouvir tudo o que disseste. A coisa é perigosa, não é?

Durante um momento, ele olhou atentamente para ela.

-       Bem, perigosa não é precisamente a palavra. Um novo presi­dente cria sempre um certo número de problemas, seja ele quem for, mas quando é da raça de Dilman, em tempos como os que correm, bem, os problemas são certamente maiores.

Sally passou os dedos pelo seu cabelo louro.

-       Até arrepia pensar quão perto Arthur Eaton estava da presi­dência. Não teria sido maravilhoso?

Hoyt Watson desapareceu na sala ao lado, e depois reapareceu com o chapéu e a bengala.

-       Bem - disse -, com Eaton tudo teria sido mais fácil. Um bom homem, o Eaton.

Sally não pareceu satisfeita.

-       Acha que Arthur Eaton ainda poderá vir a ser presidente? Hoyt Watson bateu pensativamente com a bengala no chão da cozinha.

Não é provável, Sally. Se percebeste o que estive a discutir com Talley, deves saber o que se passa.

Tenho uma ideia.

O deputado Miller gosta de imaginar que é o John C. Calhoun. Deves lembrar-te que Calhoun costumava dizer que não se deve acre­ditar que todos os homens nascem livres e iguais. Tal afirmação, dizia ele, era baseada em factos contrários à observação do universo. Bem, mas agora o tempo contradiz Calhoun e o tempo e a lei dizem que todos os homens são livres e iguais, quaisquer que sejam as rea­lidades. Em resumo, por muita nostalgia que eu sinta pelo passado, fundei toda a minha carreira no progresso e no respeito pela lei. O deputado Zeke Miller não pensa assim, e, onde antigamente pode­ria ter tido um enorme público para aplaudir e sustentar os seus senti­mentos, hoje só encontrará um terço desse público. Ele quer impedir Dilman de se tornar presidente. Está a tentar tornar realidade um sonho do passado. Não conseguirá repelir Dilman simplesmente por­que ele é preto e fazer com que Eaton seja eleito porque é branco. Dilman é o nosso presidente, por muito estranho que isso nos pareça.

E quanto à nova lei acerca da qual estava a discutir?

Mesmo, mesmo que a consigamos, ela não irá mudar muito as coisas, na realidade. Impedirá apenas Dilman de demitir Eaton, Moody, Kemmler e o resto do Gabinete de O. C. A nossa ideia é preservar esse Gabinete para que Dilman seja obrigado a seguir as ideias de O. C. e os desejos do partido. Então, como prova da nossa boa von­tade, nós concordámos em não eleger outro presidente interino do Senado para que ninguém preceda a linha de sucessão do Gabinete de O. C. durante o resto do mandato inacabado. Em vez disso, os nossos membros da Câmara e do Senado irão desempenhando o cargo de presidente, cada um por sua vez, por ordem alfabética e durante uma semana. Isto estará também no processo.

Se essa lei for aplicada fará com que Arthur Eaton seja o presi­dente, quero dizer, se algo acontecer a Dilman, não é verdade?

Sim, certamente - disse Hoyt Watson. - Mas nada acontecerá a Dilman. Já tivemos todos os acidentes que deveríamos ter, e Dilman é um homem novo, da idade de Eaton, e forte que nem um touro, tenho a certeza. - Watson fez uma pausa e fixou a filha com olhos penetrantes. - Qual é a razão desse súbito interesse pela política, Sally? Isto é mais do que eu esperava de ti neste último ano. Sinto--me encantado.

Sally foi na direcção do pai, tirou-lhe o chapéu das mãos e colo-cou-lho na cabeça.

-       Não estou especialmente interessada em política, pai. Estou interessada em Arthur Eaton. Tenho uma enorme admiração por ele. Gostaria de o ver como primeiro homem do país - depois de si, claro.

Hoyt Watson riu-se.

Nem penses em mim. Tenho tudo o que quero da vida. Quanto a Eaton... - baixou os olhos para ela e depois disse: - Ouve lá, o teu interesse pelo nosso ministro de Estado não será meramente pes­soal? Estou a lembrar-me. Acho que te vi, durante muito tempo, na companhia dele, na festa de Allan Noyes.

Acho-o o homem mais atraente de Washington.

A mulher dele também é da mesma opinião - disse Hoyt Watsorf; piscando um olho. Beliscou ao de leve a face de Sally, deu meia volta para ir-se embora e depois parou. - Diz atua mãe que provavelmente chegarei tarde para jantar. Vou ver se consigo telefonar-lhe depois.

Foi-se embora, deixando Sally ligeiramente ressentida por ter designado a madrasta como mãe. Mas a irritação desapareceu rapi­damente quando tentou recordar tudo o que o pai dissera acerca de Arthur Eaton e da sua posição actual no governo.

Depois de ter posto os pratos no lava-loiça dirigiu-se para o seu quarto, espaçoso e pintado de cor creme. Abriu as cortinas da janela e viu que o dia estava levemente soalhento. Foi até à cama de casal, que estava numa autêntica confusão devido às reviravoltas do seu sono agitado de ébria, e puxou rapidamente a coberta para cima. Dirigiu-se para o toucador e sentou-se para fazer a maquilhagem.

O seu olhar pousou num retrato a cores que ela tirara, havia dois anos, precisamente depois da eleição de O. O, quando ela fizera o papel de bela sulista naquela estúpida sátira do Clube da Imprensa.

Examinou friamente o retrato. Quando Arthur Eaton olhava para ela seria isto o que ele via? O cabelo louro repuxado para cima e encara­colado num dos lados, os olhos francos e cor de esmeralda, o nariz pequeno e ligeiramente arrebitado, o grão de beleza no canto esquer­do da boca, acentuando os lábios carnudos.

Certamente - lembrou ela a si própria sem precisar de voltar-se para o espelho - que o retrato tinha já dois anos. Não mostrava as profundas olheiras, fruto de vinte e quatro meses de bebidas e barbitúricos. Contudo sentia-se hipnotizada pelo retrato. A sua pele era maravilhosa, branca de leite e perfeita, tanto nessa altura como agora. Não era porém o rosto vulgar de uma rapariga bonita. Havia algo escondido por detrás dele que era selvagem e doloroso, embora o seu aspecto exterior fosse infantil e caprichoso. Mas era um rosto interessante - concluiu ela -, muito interessante, e não estava ainda muito estragado - pelo álcool e pelos remédios com que costumava combater a insónia e o ódio emocional que sentia por si própria. De­pois, havia mais do que o retrato podia revelar.

Impulsivamente, não pensando já na maquilhagem matinal, levantou-se e despiu o roupão. Dirigiu-se até ao meio do quarto e parou em frente do espelho alto, tão em pose quanto lhe era possí­vel, em soutien e collants. Os estragos do desequilíbrio interno não tinham atingido a sua figura esguia e harmoniosa. Os seios manti-nham-se altos e cheios, o ventre liso, as coxas e as pernas esbeltas e quase perfeitas.

Sentindo-se satisfeita, tornou a vestir o roupão e regressou ao banco para se dedicar à maquilhagem e a Arthur Eaton. Relembrou o tempo feliz que passara com este e então, como por encanto, os vestígios do que bebera na noite anterior dissiparam-se completa­mente.

Tivera sempre a consciência da sua presença, pelo menos des­de que se tornara ministro de Estado, e o seu rosto, incrivelmente sedutor e levemente sensual, assim como os seus modos distintos, tinham-lhe despertado sempre a atenção. Mas, nessa altura, ela não pensara muito nele, certamente não mais do que se pensa no herói de uma fita de cinema, porque a maior parte das vezes o via na companhia da mulher, a imaculada, altiva e fria Kay Varney Eaton, e não havia qualquer relação real que se pudesse estabelecer entre eles.

Mas Sally era um receptáculo de boatos, procurava boatos, armazenava boatos, e um dos que lhe chegaram recentemente aos ouvidos, de fonte segura, era que Eaton e a mulher se tinham sepa­rado. Este boato parecera-lhe verdadeiro quando, havia seis sema­nas, quatro festas atrás, se encontrara ao lado dele num jantar de gala dado pelo ministro da Defesa, Cari Steinbrenner. Eaton fora sozinho. Nem sombras de Kay Varney Eaton. Encontrara-o igual­mente só no banquete ao ar livre de Tim Flannery. E, quando o presidente nacional do partido, Allan Noyes, dera o seu grande cocktail e jantar, durante a canícula, e que muitos hóspedes, entre eles ela própria, tinham ido tomar banho na piscina, já de noite, ficara mais do que nunca certa de que Eaton se livrara da sua antipá­tica esposa.

Enquanto acabava de pintar os olhos, tornou a rever as suas relações com Arthur Eaton. O primeiro dos seus três encontros públi­cos, o de Steinbrenner, fora largamente explorador. Percebera que Eaton tomara consciência da presença dela, não apenas como pes­soa, mas como uma rapariga bonita e interessante. Fizera-lhe per­guntas acerca dela própria, de uma maneira bastante formal mas igualmente insistente, e ela contara-lhe tudo o que achava que ele devia saber.

Na festa de Flannery ele aparecera vestido com um casaco e umas calças de sport, que o tornavam irresistível, e ela levara a blusa de seda, decotada e da cor dos junquilhos, a saia amarela de shantung e as pernas sem meias. Estivera alegre durante toda a festa, e ele fora ter com ela, lembrando-lhe coisas que lhe contara acerca de si mesma e depois, pela primeira vez, contou-lhe alguma coisa da sua própria vida e sentimentos.

A festa de Noyes fora a melhor. Depois de a maior parte dos convi­dados se ter ido embora, ele continuara sentado na cadeira de lona, junto da piscina, bebendo calmamente brande e seguira-a com os olhos quando ela saíra da cabana em direcção à piscina. Ela sabia que, com o seu pequeno biquini branco, constituía um desejo para qualquer olhar masculino. Mais tarde, enquanto se secava, sentara-se aos pés dele, acompanhando-o no brande e, quando era já muito tarde e na festa já só quase restavam os dois, reparara que o pai já se havia ido embora e que tinha de chamar um táxi para regressar a casa. Então Eaton insistira em levá-la no seu carro até Arlington.

Ainda se lembrava de que, durante o percurso, estavam ambos ébrios, ela pelo menos estava e ele devia-o estar quase, sentara-se enroscada junto dele e segurando-lhe a mão quando ele a soltara do volante e cobrira a dela firmemente. Na rua escura, diante da casa dela, ele deixara o motor a trabalhar ainda durante algum tempo e depois, sem tirar os olhos do seu rosto, desligara-o.

É ainda muito nova - dissera ele. - Parece-me que nunca encon­trei ninguém como você.

Espero que não. Não há ninguém, em parte alguma, como eu.

Suponho que tem centenas de rapazes para a manterem cons­tantemente ocupada.

Podia ter, mas não tenho. Nem um. - Esperou, mas ele perma­neceu calado, confuso, e então ela teve de o ajudar. - Já não tenho paciência para aturar crianças inexperientes. Já tive todos os jovens intelectuais, patriotas dedicados, ex-estudantes que estão a subir, que podia suportar. É demasiadamente cansativo. Se não posso ter o que quero, então prefiro não ter nada.

Ele levara uma eternidade para dizer a frase seguinte:

-       O que quer então, Sally?

Apesar do seu estado, ela conseguira manter o controlo.

Oh, não sei. Talvez alguém como o marido da Sr.a Eaton.

Está a troçar de um velho, Sally. Não é justo.

Você não é velho, e eu, nem por sombras, estou a troçar.

Estou vendo... Também eu devo fazer uma confissão, Sally. Você foi a pessoa com quem me tenho sentido melhor nos últimos tempos. Não tenho muito tempo livre, excepto certas noites. Talvez você me permita telefonar-lhe um dia destes, para jantarmos juntos.

O seu coração quase estalara de alegria.

-       Quando quiser! - Endireitou-se de repente no banco, estendeu-se por cima do volante, segurou o rosto dele, espantado, com uma mão, e beijou-o nos lábios. - Pronto - dissera ela. - Agora sou uma mulher perdida e você não pode abandonar-me. Ficarei à espe­ra desse jantar.

A manhã seguinte havia sido a sua melhor manhã desde há muitos anos. Mas, durante todo esse dia e nos dias seguintes, ela esperara em vão pelo seu telefonema e começara a pensar que con­fiara demasiadamente na promessa dele e na sua própria esperança. Ou ele estava ébrio e indiscreto nessa altura, e agora, novamente sóbrio, esquecera todo o assunto, ou avaliara a situação e decidira que um membro do Gabinete, casado, não poderia ter nada, por muito inocente que fosse, a ver com a filha neurótica de um senador, que para mais tinha metade da sua idade. Depois, no meio da sua miséria e da bebida, Sally decidira que a mulher dele devia ser a única culpa­da. Apesar dos boatos, Kay Varney era a sua mulher e estaria para voltar para casa ou, provavelmente, já lá estaria: aí estava a razão, e agora adeus encontro e adeus jantar.

E depois, na outra noite ou manhã - esquecera-se já quando lera o artigo de Reb Blaser -, Arthur e Kay Eaton estavam - vinha preto no branco nos jornais, quer fosse boato ou não vinha nos jor­nais - separados, a um passo do divórcio. O efeito que lhe provocou tal notícia foi semelhante ao de meia dúzia de vodkas. Subiu às nu­vens, ficou a dez milhas do chão e quase entrou em órbita. As suas esperanças ergueram-se também, juntamente com ela. O facto de Arthur Eaton ainda lhe não ter telefonado, como lhe prometera, signifi­cava apenas que estava ocupado com o seu trabalho e não que esti­vesse preso pelo seu dever de marido.

Na sua excitação, Sally tivera vontade de lhe telefonar, zan-gar-se amigavelmente com ele por não ter cumprido a sua pro­messa, mas o seu instinto refreou-a. Também - dissera consigo própria - teria sido de mau gosto, depois da publicação daquele maravilhoso artigo de Reb Blaser. Eaton telefonar-lhe-ia. Estava mais certa disso do que nunca. Se o não fizesse tornar-se-iam em breve a encontrar, e dessa vez faria com que ele ficasse a saber o que ela sentia por ele. Ontem tinha mesmo começado a pensar em procurar encontros acidentais, mas a tragédia de Francoforte viera estragar tudo. Sendo filha de um senador, sabia bem o que isso significava. Arthur estaria ocupado durante algum tempo, mais ocupado do que nunca.

Terminou a maquilhagem e sentiu-se contente com o resultado. Dirigiu-se ao armário para escolher o vestido apropriado para aquele primeiro dia de uma nova administração, um dia que colocara o seu Arthur (desde o artigo de Reb Braser começara a considerá-lo como seu Arthur) à distância de um passo da presidência. Tirando vestidos para fora e rejeitando-os, ia perguntando a si própria como poderia provar o seu amor a Arthur Eaton. Está claro que podia dar-se-lhe inteiramente - não era difícil - e fazer com que ele se sentisse novamente jovem e gozasse o que certamente Kay Eaton lhe não dava. Contudo esse dar era demasiado fácil e raramente garantia uma con­tinuação de relações. Os homens maduros exigiam muito mais. Que­riam uma mulher que se interessasse por eles, pela sua vida, pela sua carreira, uma mulher que se preocupasse tanto com eles como eles mesmos. De noite, uma mulher podia ressuscitar o ego de um homem, na cama. Mas os dias tinham mais horas. As mulheres com sucesso, as grandes cortesãs da França, por exemplo, as amantes dos chefes, mulheres como Madame de Pompadour, sobreviviam e permaneciam no topo porque eram não só amantes como também companheiras. Como poderia ela ser a companheira de uma figura pública já de tão grande sucesso, a figura mais importante do Gabi­nete do presidente? Como poderia ela ser de alguma utilidade a um homem que já possuía tudo?

No momento em que se decidia pelo tailleur azul e o tirava do cabide, algo lhe atravessou o espírito. Lembrou-se da conversa do pai. Era evidente que Arthur Eaton ainda não tinha tudo. A sua posição no Gabinete estava insegura. Ao mesmo tempo era o seguinte na linha de sucessão à presidência. O senador Hankins e o pai estavam a traba­lhar no sentido de manter a sua posição dentro do Gabinete e acredi­tavam no sucesso da sua tentativa. O deputado Miller trabalhava no sentido de o fazer imediatamente presidente, mas o pai não achava isso possível. Era claro que Arthur Eaton precisava de ajuda. Pergun­tou a si própria que espécie de ajuda lhe poderia dar. Se conhecesse esse Dilman, se o conhecesse bem, como mulher poderia conseguir o que assembleias inteiras não conseguiriam. Poderia convencer Dilman de que Arthur Eaton lhe era indispensável, assim como ao país, que não só deveria conservá-lo como ministro de Estado, mas deveria con-ceder-lhe grande parte dos poderes presidenciais. Mas ela não conhe­cia Dilman e portanto esse projecto não era realizável. Depois teve o pressentimento de que conhecia Dilman e então lembrou-se porquê. Era por causa da festa da noite anterior, aquela em que se embriagara, e porque uma jovem chamada Harriet Post, secretária do Senado e tão louca como ela, a levara a uma festa literária das pessoas da avant--garde de Washington, pessoas pretas e brancas pertencentes à clas­se baixa. A festa fora dada por um poeta negro, escanzelado, homos­sexual e provavelmente talentoso, no seu apartamento desarrumado e quase desprovido de móveis, na Avenida da Geórgia.

Estavam lá pelo menos quarenta pessoas entrando e saindo cons­tantemente, a maior parte das quais negras, todas bebendo, todas falando da morte de O. C, todas discutindo a subida do presidente da Câmara, MacPherson, à presidência, e Sally não se divertira muito. Ultimamente aceitava sempre um convite para uma festa de brancos e negros, porque era diferente, porque poderia significar alguma excita­ção. Ao contrário da família, não tinha quaisquer ressentimentos con­tra os negros. Na realidade, devido à educação que recebera no Sul, considerara-os sempre atractivos, pois constituíam algo proibido e consequentemente exótico, e ainda porque ouvira certas histórias acer­ca dos homens. As histórias não eram verdadeiras, sabia-o por experi­ência própria. Quando saíra do colégio e se dera com a multidão de jazz de Harlem, dormira com dois rapazes de cor, pertencentes a uma banda, antes de ter fugido com o porto-riquenho. Essas duas curtas relações tinham sido desapontamentos fatigantes, nem melhores nem piores que todas as outras que tivera com rapazes brancos. Talvez tivesse esperado de mais. Talvez os músicos negros não tivessem sido capazes de dar o suficiente por conhecerem a sua origem sulista.

A festa da noite anterior fora um autêntico aborrecimento. Ou­vira Harriet falar do convidado de honra, Leroy Poole, e na verdade parecia-lhe já ter lido alguns dos seus palavrosos ensaios sobre os anos que vivera em Harlem e dos direitos civis, e novamente ela esperara de mais. Leroy Poole não tinha nada o aspecto de um autor. Era baixo, gordo, negro, e estava sempre alagado em suor. Mostrava-se arrogante e preocupado apenas consigo mesmo, sabendo tudo e dando opiniões acerca de tudo e de todos em Washington e no mundo inteiro. Repetia várias anedotas escolhi­das, ridicularizando MacPherson, que todos então julgavam ser o novo chefe do Executivo.

Sally lembrava-se que Poole lera em voz alta várias passagens da sua segunda novela, ainda inacabada, passagens narrativas e amar­gas, que não faziam sentido e não tinham qualquer piada quando uma pessoa estava meio ébria. Depois de o terem aplaudido, explicara a ideia da novela e, por um momento, a atenção de Sally fixara-se nele. Era difícil recordá-la claramente na manhã seguinte, mas era algo acerca do futuro próximo dos Estados Unidos, algo acerca de uma súbita epidemia de febre bubónica num concelho cuja maior parte da popu­lação era negra, um concelho semelhante a alguns da Carolina do Sul ou da Luisiana, que tem uma população 80% negra, mas em que a minoria branca mantém o controlo devido às ligações que tem com o mundo exterior. Então, para impedir que a epidemia se espalhe, esse concelho é posto de quarentena em relação ao resto do Estado e ao resto do país. Ninguém pode entrar nem sair. Depois de uns meses de isolamento, a população desse concelho é 90% negra e 10% branca, e assim têm de viver durante vários anos.

- Estão vendo? - guinchara Leroy Poole, agitando o manuscrito na sua mão gorda. - Estão vendo o que vai suceder? Gradualmente os negros começam a dominar a votação, a compra e venda, as leis e o trabalho. E, em breve, o governo, as escolas e o comércio estão nas mãos dos negros. E que sucede aos restantes brancos, à pobre minoria? Não calculam? Os negros contratam as mulheres brancas para criadas e os homens brancos para seus ajudantes. Agora os brancos só podem utilizar a retaguarda dos autocarros, as escolas segregadas, pequenas e piolhosas próprias para brancos, e os ne­gros governam todo o concelho. Que me dizem a isto, amigos? Que me dizem desta azeda parábola?

Sally não se lembrava de mais nada da novela, ou talvez Leroy Poole nada mais tivesse contado. Achava-a bastante moderna e crua e perguntava a si própria se ele a acabaria, e, se a acabasse, como seria recebida.

Enquanto se vestia chegou à conclusão de que, por coincidência, a deslocada fantasia de Leroy Poole, na noite anterior - bem, apenas uma pequena parte -, se tinha tornado realidade com a subida de Douglass Dilman à presidência. Lembrando-se de Dilman, lembrou--se da noite anterior, quando se encontrara ao lado de Leroy Poole num sofá velho, ouvindo-o discursar acerca de Dilman.

Veio-lhe ao espírito a relação, Poole e Dilman, e não o que Poole estivera a dizer. Um editor negro propusera a Poole escrever uma biografia do senador Douglass Dilman, visto que Dilman era um dos negros de posição mais elevada no governo. Poole não ficara muito entusiasmado com a ideia, mas como precisava de dinheiro para terminar a sua novela aceitara o encargo. Chegara a Washington havia algumas semanas, Dilman aceitara cooperar com ele e tinha estado praticamente a viver com o senador, colhendo informações acerca do seu passado, da sua carreira política e das suas ideias, e começara já a escrever o livro encomendado. Ela recordou uma passagem da conversa de Poole, dirigida a alguém, a Harriet ou a ela própria. «Conheço melhor o senador Dilman do que ele se conhece a si pró­prio, mas não o diga a ninguém!» Então soltara umas gargalhadas estridentes e, depois disso, elatrocara-o pela garrafa de whisky.

Subitamente começou a gerar-se algo no espírito de Sally, e esta parou de abotoar a blusa para não interromper o pensamento. Poole dissera que Dilman era viúvo, tendo apenas um filho e mais nin­guém. Isso passara-se na noite anterior, quando Dilman era sena­dor. Esta manhã, ele era o Presidente dos Estados Unidos, ainda viúvo, com um filho e mais ninguém. Quem tomaria conta da parte social da sua vida, da parte que competia a uma mulher? Um presi­dente novo nomeava sempre pessoal novo. Quem nomearia Dilman para sua Primeira Dama, para sua secretária social, para organizadora de festas? Era provável que ele mantivesse grande parte do pessoal de O. C. e da primeira dama, mas, mesmo assim, haveria sempre vagas que teriam de ser preenchidas e certamente que haveria de­missões. Sally passou em revista pelo menos umas seis raparigas sulistas suas amigas que nunca trabalhariam, ou que os maridos ou famílias nunca as deixariam trabalhar sob as ordens de um negro, quer fosse o presidente ou não.

Encontrara a solução - exultou Sally para si própria. - Certamente que haveria na Casa Branca uma vaga para uma rapariga branca de alta condição social e política como auxiliar do novo presidente, uma rapa­riga que tinha muitos amigos negros e que portanto podia, de uma ma­neira natural, guiar o presidente no mundo da sociedade branca que o rodeava. Haveria uma vaga que ela poderia ocupar, e, ocupando-a, aju­daria aquele negro maravilhoso e de olhar bondoso que se tornar chefe do Executivo, e, ajudando-o, tornando-se-lhe indispensável, ela poderia representar Arthur Eeaton dentro da Casa Branca. Deste modo, poderia tomar-se a companheira de Arthur no mais alto grau.

Só lhe faltava uma peça no puzzle, e, uma vez que a colocasse, todo o quadro teria sentido e o seu futuro estaria assegurado. A peça que faltava era a imagem daquele que apresentaria ao novo presi­dente o oferecimento dos seus serviços. Mas também essa ela pos­suía. Era Leroy Poole, vivendo com Dilman, escrevendo acerca de Dilman - a noite passada o biógrafo de um senador, hoje de manhã o historiador dum presidente.

O seu espírito encaixou a última peça no puzzle, e a imagem que ela viu e aceitou de braços abertos foi a dela própria e de Arthur Eaton, esboçados pela sua imaginação: ministro de Estado Arthur Eaton e Sr.a Sally Watson Eaton.

Correu para o telefone creme junto da cama e, enquanto levan­tava o auscultador, ia tentando desesperadamente lembrar-se do nome do hotel de Leroy Poole. Não era o Shoreham, nem o Mayflower, nem o Hilton, nem o Willard... Que estaria aquele pobre negro gordo a fazer em lugares luxuosos como aqueles? Eliminou os grandes ho­téis. Tentou concentrar-se. Era um hotel qualquer, barato, no centro da cidade, e com um nome ridículo. Ouvira-o mencionar várias vezes na noite anterior. Era na... na, sim, na Rua F... mas, céus, onde... onde...? Ah, sim... Paraíso... era isso... o Hotel Paraíso, na Rua F.

Levantou o auscultador e ligou para as informações...

Quando a campainha do despertador parou de tocar, Leroy Poole abriu os olhos, travou o despertador, atirou com o cobertor para o lado, deitou-se de costas na cama e começou a fazer os seus exercí­cios matinais, mantendo uma perfeita imobilidade.

Durante cinco minutos executou o exercício espartano, um sistema místico de sua própria invenção, só conhecido dele. Começando a praticá-lo, pensou que aquele seu ritual diário teria espantado qualquer pessoa, principalmente se fosse branca. Enquanto a maior parte dos homens pratica exercícios violentos para fortalecer os músculos e o físi­co, Leroy Poole fazia um exercício que consistia apenas em permanecer imóvel na cama, contemplando primeiramente o seu corpo gordo, de­pois revendo o seu passado.

Uma vez, perguntando a si próprio se tal inactividade física pode­ria ser correctamente considerada como um exercício, Leroy Poole procurara a palavra no Dicionário Webster. Exercício era, entre outras coisas, «esforço para treino ou melhoramento, quer físico quer intelec­tual ou moral». Contente com a definição, continuara a praticar a sua estranha forma de exercício, usando o nome habitual.

O exercício matinal de Leroy Poole seguia sempre uma rotina invariável. Depois de acordar e de se destapar, fixava os olhos no monte de carne à sua frente, no peito flácido e na barriga proeminen­te e mole, metidos num enorme pijama de algodão. Algumas vezes examinava as mãos e os dedos gordos como salsichas. Não se preocupava com esta obesidade da carne porque lhe tinham dito que era o resultado de glândulas e não de glutonice. Preocupava-se po­rém com o facto de que a flacidez exterior, tão injustamente em con­tradição com a dureza interior, fazia com que fosse mais difícil, para os outros e para ele próprio, levar a sério os seus sermões agressi­vos e a sua cruzada escrita.

Visto que nenhum esforço físico poderia reduzir o seu corpo à mesma dureza do espírito e coração, Leroy Poole compensava isto tentando diariamente fortificar o que permanecia invisível debaixo do crânio e da pele. Como Richard Wright, um ídolo da sua juventude, Leroy Poole aprendera há muito que «há homens contra os quais eu era impotente, homens que podem violar a minha vida consoante a sua vontade», e cuja superioridade injusta e selvagem deve ser com­batida, mesmo até à morte. Ele tinha de endurecer a sua vontade contra os arames farpados dos homens brancos: nenhum dinheiro, nenhum conforto, nenhuns raciocínios intelectuais, nenhumas pro­messas para o futuro, nenhuma aceitação e aprovação branca podia ser permitida ou aceite para negar a miséria e a humilhação que ele e a sua família haviam sofrido, que estavam a sofrer, ou podia modificar e enfraquecer a determinação que existia no seu espírito e coração. Eram estes os músculos - os músculos internos do justo ódio que Leroy Poole tentava fortalecer e sustentar todas as manhãs. O exercí­cio praticado era bem simples: recordava o passado e sentia-se nova­mente forte.

Nem sempre era fácil. Esta manhã não fora fácil. A festa da noite anterior havia-o amolecido e os restos desse amolecimento ainda permaneciam dentro dele. A culpa não fora das bebidas, pois nada bebera. Devia a sua abstinência menos à educação baptista da sua infância do que ao facto que a bebida tornava pretos e brancos igual­mente tolos, mas, enquanto os brancos se podiam permitir tais lap­sos, o mesmo não sucedia com os pretos. O amolecimento trazido da festa era causado por ter sido convidado a ler alto uma passagem da sua última novela e a contar parte da história, pelo que fora aplau­dido e adulado, de modo a acreditar, por breves instantes, que afinal a vida não era assim tão má.

Era essa uma das coisas que o impediam de fazer o exercício nessa manhã. A outra era que ele desprezava o trabalho que deveria fazer durante as próximas semanas. Lamentava o ter de abandonar as suas polémicas, os seus artigos e ensaios irados acerca das suas experiências de negro e acerca das suas ideias sobre a igualdade, pelos quais pouco lhe pagavam, para empreender uma biografia política que nada lhe traria de proveitoso senão dinheiro. Lamentava também o ter de atrasar a sua grande novela, que provocaria um terramoto mora) que abalaria os fanfarrões do Sul e os tolerantes pretensiosos do Norte para fora dos seus pólos fixos do preconceito. Lamentava o atrasá-la para alimentar a vaidade de leitores negros estúpidos e ignorantes que queriam gozar a subida ao Congresso de um dos da sua cor.

E havia algo mais que o afligia. Tinha vergonha de si próprio pela mentira que ia pregar ao seu povo, tornando numa figura heróica aquele remendão que, por meio de servilismo e de lamber de botas, se tornara senador. Se ao menos tivesse de apresentar ao seu povo a figura de um bravo e verdadeiro chefe negro como Jeff Hurley, o seu querido amigo, o seu superior nos Turnerites, nesse caso seria uma empresa nobre e honrosa. Mas sabia também que os Hurleys não subiam a congressistas naquele mundo de caras pálidas. Somen­te a mão-cheia dos Dilmans conseguia isso. Leroy Poole apoquenta-va-se por ter de gastar aquele dia precioso a escrever notas acerca da última entrevista com Dilman, a preparar as perguntas para a en­trevista seguinte, e depois a gastar vários meses a escrever aquela biografia idiota.

Já que não podia fazer a sua própria obra - disse para consigo mesmo -, então, pelo menos, devia estar nas barricadas, no iocal em que a acção se desenrola, em que a luta pela liberdade seria finalmente ganha, exactamente do mesmo modo que os brancos tinham ganho a luta em Concórdia e Bunker Hill. Sentia-se deses­perado quanto ao fiasco dos Turnerites em Hattiesburg, Mississipi, no dia anterior. Soubera já havia algum tempo, dissera-lho Hurley, que o primeiro passo do novo programa estava planeado para o dia anterior, à tarde. Só soubera o resultado na noite anterior.

Porque ihe tinham oferecido uma boleia e porque tinha trabalho ainda a fazer, saíra cedo da festa, apesar dos protestos de todos. As ruas encontravam-se estranhamente desertas, mas tal facto era devi­do, supunha ele, à morte de O. C; toda a gente devia estar em casa ou nos bares, com o nariz colado aos aparelhos de televisão. Tivera uma conversa com o fulano que lhe dera a boleia, um rapaz da Universidade de Harvard, acerca da morte do presidente e do que ela poderia significar para a causa deles, e ambos concordaram que não significava nada. Desde a ocasião em que Theodore Roosevelt con­vidara T. Washington para a Casa Branca, nenhum presidente bran­co se revelara melhor do que qualquer outro. Ainda não eram dez horas quando Leroy Poole chegara ao pequeno hotel de três anda­res, mesmo ao lado de uma leitaria, com o seu néon vermelho anun­ciando: «Paradise Hotel».

Entrara no minúsculo vestíbulo com o tapete sujo e sete cadeiras e dirigira-se pachorrentamente para a secretária da recepção. Não es­tava ali ninguém. Espreitando para dentro do escritório, vira o jovem empregado sentado a uma mesa, com a cabeça apoiada nos braços cruzados, ressonando levemente. Leroy Poole dera a volta à secretá­ria, tirara a sua chave do prego onde se encontrava pendurada e de­pois encaminhara-se para o pequeno elevador. Parara junto do guichet dos jornais para comprar a última tiragem, mas este já estava encerra­do. Desapontado, porque contara ver a notícia da demonstração do Mississipi, pensara ainda em sair para ir à procura de um jornal, mas nesse momento avistara um, dobrado em cima de uma cadeira. Quan­do o desdobrara vira que era uma das primeiras edições da noite, e que os títulos anunciavam a morte de O. C. e a sucessão do presidente da Câmara, MacPherson, à presidência.

Leroy Poole pegara no jornal e levara-o para o seu quarto, no segundo andar, e, assim que fechara a porta à chave, procurara os resultados da demonstração dos Turnerites. À medida que ia pas­sando as páginas e nada via, começara a pensar que o jornal fora impresso demasiado cedo para trazer a notícia. Mas encontrou-a na página dezoito.

A notítica era breve: «Para contra-atacar o terror do renascimento do Klu Klux Klan no Mississipi, um grupo negro activista, os Turnerites, enviara doze membros, vestidos com túnicas e capuzes pretos, para cercarem um armazém pertencente a um Grande Dragão do Klan local. O proprietário branco correra para fora do armazém, desmasca­rara um dos assaltantes e atirara-lhe com ácido sulfúrico à cara, ce-gando-o para o resto da vida; os negros, então, enfureceram-se e agre­diram o chefe branco do Klan, partiram todas as montras e danificaram a maior parte da mercadoria do armazém; nessa altura, a polícia arma­da, acompanhada dos seus cães, chegara ao local, e dois dos Turnerites tinham ido, muito feridos, para o hospital do concelho e os outros dez para a cadeia.»

O relatório da notícia enfurecera Leroy Poole por dois motivos. Primeiramente, porque relatava que os Turnerites tinham replicado à violência do Klan com um assalto pacífico, se não dramático, e que, como sempre, tinham sido brutalmente atacados; e em segundo lugar porque aquela horrível história, que merecia uma notícia na primeira página, que podia inspirar uma revolução nacional, fora enterrada numa das últimas páginas, devido a que o Presidente dos Estados Unidos tivera a infeliz ideia de morrer.

Este fracasso, juntamente com outras frustrações e desaponta­mentos, subiu-lhe de novo ao espírito, no momento em que o des­pertador tocara de manhã. Não seria fácil praticar o seu exercício diário, e, durante alguns segundos, considerou a hipótese de não fazer o exercício desta vez, mas reconheceu que não se devia permi­tir qualquer fraqueza interior.

Depois disso, começou o exercício.

Alabama. Flor estadual: a camélia. Árvore estadual: o pinheiro do sul. Divisa: «Nós temos coragem para defender os nossos direitos.» Os direitos de quem, seus patifes* O pai, colhendo algodão, velho, velho aos quarenta anos, morto aos quarenta e um, de falta de alimen­tação, pneumonia e medo. A mãe, criada, cozinheira, lavadeira, escra­va («Oiça lá sua velhota, já conhecemos essa sua conversa fiada de negra; portanto, se está demasiado doente para vir trabalhar, fique em casa e não ponha cá mais os pés»). A irmã mais velha, prostituta dos brancos, a porca sem vergonha. O irmão mais velho, alto coeficiente nos testes de inteligência, engraxador de sapatos. O seu primo favo­rito, sério, quase professor. Passeando pelo bosque com um rapariga branca educada. Visto. No dia seguinte seis agarraram-no e mataram-no. leroy, a esperança da mãe, o mais novo, fugindo aterrado, escon-dendo-se aterrado, sempre aterrado e esfomeado. Espezinhado e ape­drejado pela garotada, roubando, uma, duas, três vezes, querendo livros, querendo tudo, não tendo nada, mas espancado, cuspido, ame­açado, amaldiçoado e aterrado, sempre aterrado.

Pensilvânia. Flor estadual: o loureiro da montanha. Árvore estadu­al: o abeto. Divisa: «Virtude, Liberdade e Independência». Emprego numa firma de permutas. Odiado e mal pago. Nenhum amigo. Não servido nos restaurantes. Não quartos em pensões. Nada de nada.

Apenas liberdade para ler, ler e ler. Escola superior. Solitário, isolado. Aterrado, escrevendo bons artigos em inglês, divertindo uma rapariga branca. Ela curiosa. Alguns encontros para discutir acerca de literatu­ra. Descoberto. Rapazes amigos «protegendo-o». Nas traseiras do giná­sio, à noite. Deitando-o por terra, arrancando-lhe as calças, as cuecas, brandindo lâminas, depois rindo («Não o suficiente para se cortar, ne­gro, mas mantém-no abotoado ou perdê-lo-ás»). Humilhado, aterrado, abandonado. O Norte ainda pior que o Sul por causa da falsidade. O Norte pior, porque não havia mais nenhum sítio para onde ir.

Cidade de Nova Iorque. Harlem de Nova Iorque. Flor: nenhuma. Árvore: nenhuma. Divisa: «Não queremos a sua filha, senhor, só quere­mos metade da liberdade dela.» O ghetto negro de Harlem. Esquálido, nojento, pobreza, perigo. Facas, heroína. Pulgas, arrendamentos e jan­tar de latas. Escutando as vozes de Nova Iorque, brancas: «São uns analfabetos sem recursos a quem nada se pode confiar, são os crimi­nosos, estariam melhor no seu lugar.» Escutando as vozes de Harlem, vozes negras: «É uma gente mesquinha, cheiram pior do que nós, têm mais medo de nós que nós deles, não prestam para nada.» Conversa fiada. Aprender, melhorar, escapar, isso é tudo o que conta. Lendo livros. Encontrando um escritor de revistas numa livraria, descobrindo que pagam pelo que se escreve. Escrevendo, escrevendo, escreven­do, escrevendo primeiramente coisas tolas para brancos, pelo dinhei­ro, não se vende; então, escrevendo, no estilo Leroy, acerca do que está dentro dele, cru, verdadeiro, e a pequena revista dizendo «volte outra vez», e o editor judeu, um bom judeu, dizendo «você escreve, nós compramos». Escrevendo, escrevendo e nunca parando até que o seu povo faça a cena, a cena americana, mas é tudo ainda muito lento. Necessidade de gritar, de protestar. Necessidade de falar com alguém, a mãe demasiado longe, demasiado aterrada. Ligando-se a todos os movimentos L A. A. C. R Demasiado lenta. Sociedade de Crispus. Demasiado lenta. Algo novo, os Turnerites, activos, não ater­rados. Melhor. Muito melhor. Senhor, que tem contra o meu casamen­to com a sua filha? O que tem ela de tão especial? E, senhor, quem diabo é o senhor para se julgar melhor do que eu?

À medida que este exercício prosseguia, e a força ia aumentando com a lembrança ardente da opressão, Leroy Poole começou a sentir-se vigoroso e resoluto. Decidiu fazer mais um minuto de exercício an­tes de se levantar. O seu espírito regressou ao Sul, a ofensas pessoais, a recordações de ser vaiado na rua, de ser enxotado para a retaguarda de um autocarro, a humilhações que testemunhara, a recordações do primo sendo expulso do local onde se votava, do seu melhor amigo a ser expulso, aos gritos, da escola branca. O seu espírito fazia esses exercícios de levantar, deitar, esticar, dobrar; o seu espírito saltava o trampolim e corria durante uma milha, até o sangue lhe bater nas têm­poras, respirar com dificuldade e o ódio lhe queimar o sangue e fazer com que o coração batesse mais depressa e a vontade nunca afrou­xasse.

A campainha do telefone veio pôr termo ao exercício.

Satisfeito com a preparação feita para todo o dia, levantou-se da cama e, descalço, apressou-se em direcção ao telefone, junto do sofá. Sentou-se e levantou o auscultador, fazendo votos para que fosse Jeff Hurley, com um relatório completo do sarilho do Mississipi, ansioso por saber qual a opinião de Leroy Poole, como membro do quadro de estratégia dos Turnerites.

-Sim, está lá?

-       Oh, olá. Espero estar a falar com o quarto que pretendo. É Leroy Poole, o escritor, quem está ao telefone?

A voz do outro lado da linha surpreendeu-o, porque era, indiscu­tivelmente, a voz de uma sulista.

Sou eu próprio, Leroy Poole.

Espero não vir interromper o seu trabalho, Sr. Poole. Daqui fala Sally Watson. Lembra-se de mim?

O nome não pertencia a nenhuma senhora das suas relações. Isto não o surpreendeu, pois o seu número era bastante reduzido. Contudo, ocasionalmente, senhoras de clubes telefonavam-lhe para que ele fizesse uma conferência.

Não tenho a certeza, minha senhora. O nome não me é estra­nho.

A noite passada - disse ela, parecendo algo impaciente -, encontrámo-nos a noite passada na festa dada em sua honra. Eu estava lá com uma amiga. Sou a filha do senador Hoyt Watson.

Recordou-se dela. A loira bem feita que se irritava por tudo.

-       Certamente - disse ele -, certamente. Como é que alguém se poderia esquecer de si? - Engoliu em seco, pois não estava ainda preparado para falar desse modo com uma rapariga branca, pelo me­nos enquanto a lembrança da sepultura do primo e da sua própria humilhação, nas traseiras do ginásio, estivessem vivas dentro de si. - Tive grande prazer em a conhecer, Miss Watson.

-       E eu tive grande prazer em o ouvir ler extractos da sua novela. Acho-a maravilhosa.

Maravilhosa - pensou ele - uma novela selvagem em que os brancos eram reduzidos à minoria de 10%, num imaginário concelho americano.

Sinto-me satisfeito por ver que tem um espírito suficientemente aberto para gostar dela - disse ele.

Não se deixe enganar pelo meu sotaque ou pelo record de votação do meu pai - replicou ela. - Tenho a minha própria persona­lidade, e conto, pelo menos, cinquenta negros entre os meus ami­gos. - Fez uma pausa e depois disse: - Deve estar muito excitado com as notícias desta manhã.

Que notícias? - perguntou ele.

Acerca do novo presidente.

Oh, isso. Li a notícia a noite passada. Acho que não há nada de especialmente excitante no facto de MacPherson se tornar presi­dente. Ele...

MacPherson? - Ela quase gritou o nome através do telefone. -Quer dizer que não sabe?

Ele ficou completamente desorientado.

Não sei o quê? Acabo de acordar e...

MacPherson também morreu. Um da sua cor prestou juramento como presidente, a noite passada. Foi o seu amigo Douglass Dilman.

A notícia continuou a vibrar-lhe ao ouvido. Permaneceu sentado, mudo e incapaz de raciocinar, como se um raio o tivesse atingido.

Está lá, Sr. Poole?

Eu... sim... eu... tem a certeza? Não posso acreditar.

É verdade. A notícia está espalhada por toda a parte. Ninguém fala de de outra coisa. Bem, estou contente por ter sido eu a dar-lhe a notícia...

Miss Watson, pôs-me K. O. É melhor que eu vá ligar o rádio para descobrir o que se passa. Agradeço muito as suas...

Sr. Poole - exclamou ela, aflita -, na verdade eu telefonei por causa de outra coisa. Queria discutir consigo um assunto pessoal...

Olhe, telefone-me daqui a dez minutos, está bem? Estarei aqui. Obrigado, Miss Watson.

Tornou a colocar o auscultador no descanso, quase certo de que tudo não passava de um brincadeira de mau gosto, levantou-se e pe­gou no pequeno transístor. Ligou-o já com a certeza absoluta, de que ela estivera a brincar com ele. Como diabo é que um fulano de cora­ção de coelho como Dilman se podia tornar Presidente dos Estados Unidos? Ele era apenas um senador de segundo grau e, ainda por cima, negro. Diabos levassem aquela idiota histérica mais a sua brin­cadeira sádica de sulista.

Pôs o som do transístor na altura máxima e foi submergido pela voz pontifical de um locutor. Escutou incrédulo e depois começou a mover o botão para captar outras estações. Ouviu noticiários. Ouviu análises interpretativas. Ouviu discussões. Ouviu reportagens do ho­mem da rua. Ouviu relatórios de Londres, Paris, Moscovo, Roma, Tóquio. Miss Watson tinha razão. Era verdade. O seu rapaz, Dilman, era o chefe do Executivo da América. Deus Todo-Poderoso!

Escutou durante cinco minutos, até possuir todos os dados e tê--los assimilado, e depois desligou o rádio. Deambulou pelo quarto, metido no seu largo pijama, tentando adaptar-se à ideia e convertê-la num fac-símile da realidade. A dada altura interrompeu o passeio e os pensamentos para ligar para a recepção e pedir ao empregado que mandasse o porteiro à leitaria ao lado buscar um café e um bolo de farinha, vencendo qualquer resistência com a promessa de uma extravagante gorjeta de meio dólar.

Retomou o passeio para cá e para lá, indo finalmente parar na casa de banho. Depois de se ter barbeado rapidamente, cortando-se duas vezes, de ter tomado banho e de se ter vestido, o seu espírito descera da surpresa da notícia e centrara-se nele próprio. Que signi­ficava toda aquela agitação para Leroy Poole?

As semanas de intimidade com Dilman tinham tornado evidente que o senador, agora presidente, era um solitário. Sempre que Poole pedira os nomes de parentes ou amigos a quem ele pudesse consul­tar acerca de informações mais objectivas, Dilman repelira tal ideia. «Quase que não tenho ninguém que me seja íntimo» - dissera. Ocasio­nalmente, Poole conseguira vários nomes: o filho de Dilman, Julian, na Universidade de Trafford; a tia solteirona de Dilman, Beatrice, em Los Angeles; o antigo protector de Dilman, e ainda o seu chefe político no Estado natal, o chefe da União, Slim Dubowsky; o inquilino de Dilman, o reverendo Paul Spinger; o presidente nacional do partido, Allan Noyes; o grande amigo de Dilman da Segunda Guerra Mundial, o procurador jurídico liberal Natham Abrahams, em Chicago. «E são todos, Leroy», dissera Dilman nessa ocasião. «A realidade é que, com excepção tal­vez de Nat Abrahams, você conhece-me tão bem, ou melhor, do que qualquer deles.»

Da lista dos seus amigos, via agora Poole, ele próprio era um dos três que estavam em Washington, ali à mão, pronto a conceder amiza­de e conselhos. Em resumo, as suas relações com Dilman podiam trazer-lhe algum proveito, agora que Dilman era o chefe do país.

Em primeiro lugar, a biografia, já que o assunto andava em to­das as bocas, não seria apenas um outro livro com uma tiragem de 3000 exemplares, mas seria um panorama íntimo de um novo presi­dente, de que se poderiam vender 100 000. Era uma coisa que pode­ria fazer Leroy Poole rico. Em segundo lugar, e mais importante, ha­via as suas relações com o presidente; as entrevistas marcadas para a semana seguinte dar-lhe-iam acesso à figura mais poderosa dos Estados Unidos.

Dilman, segundo Leroy Poole, era um fraco e um criado público, que gastara tantos anos a pronunciar as opiniões do partido, que se tornara num simples ventríloquo dos seus superiores brancos. Nada tinha de original, nem tinha qualquer ideia dinâmica ou progressista de sua própria iniciativa. A sua cabeça era um receptáculo de trivialidades. Mas era uma cabeça, e alguém que se encontrasse perto dele podia enchê-la de ideias. Poole sentiu-se excitado perante tal possibilidade. Com grande esforço, talvez pudesse fazer com que Dilman engolisse, digerisse e regurgitasse as exigências dos Tumentes pela igualdade absoluta. E poder-se-ia ir muito mais longe. Grandes negros - vigorosos e brilhantes como Jeff Hurley - poderiam ser nomeados para altos e importantes cargos do governo. Talvez isso fosse possível se houvesse alguém que guiasse o braço de Dilman e por vezes até o forçasse.

Leroy Poole saiu da casa de banho para ir ver quem batia à porta, com a convicção de que o destino lhe concedera uma missão futura única na sua vida. Finalmente, como nunca até então, de um modo bem mais efectivo que os seus ensaios e livros ou até mesmo que o seu trabalho no quadro dos Turnerites, ele poderia ajudar a colocar o seu povo no lugar que lhe era devido.

Recebeu o café, juntamente com a informação de que já tinha o creme e o açúcar dentro, e o bolo de farinha, e relutantemente entregou ao rapaz três quartos de dólar, pelo pequeno-almoço e gorjeta. Depois de ter fechado novamente a porta sentiu-se menos preocupa­do com a extravagância que acabara de cometer. Ele encontrava-se agora na ascensão, potencialmente rico, potencialmente o salvador do seu povo.

Depois, gradualmente, enquanto se enterrava no sofá para beber o café e mastigar o insípido bolo de farinha, a convicção de que pode­ria ser útil a si próprio e a cada negro através de Dilman foi esmore­cendo. Dilman, apesar do que acontecera, era ainda, e apenas, o ho­mem que Poole conhecia e desprezava. Dilman vivia tão aterrado perante os brancos como outrora vivera o próprio Poole. Dilman nunca tentara desligar-se do mundo servil e de salamaleques dos «Tios Toms» e das «Tias Jemimas». Era um traidor, que usava a sua cor num Estado onde isso interessava, para conseguir um cargo, e a rejeitava na Câmara do Senado, onde isso ainda interessava mais. Como é que alguém que estava constantemente a tremer poderia assimilar uma ideia nova? Como é que se poderia alcançar alguém que fugia sempre à respon­sabilidade?

Na realidade, o velho caboz de coração de coelho podia até rejeitar agora a biografia - pensou Poole com um arrepio. Naqueles últimos minutos a biografia tornara-se tão valiosa para Leroy Poole como se fosse um first folio de Shakespeare. Quando era apenas um obscuro senador, Dilman tivera medo da biografia, encolhendo-se perante qualquer atenção. Fora preciso a intervenção do editor ne­gro mais importante da América e a pressão de vários chefes negros, como Spinger, para convencer Dilman de que uma pequena e ino­fensiva biografia política ser-lhe-ia mais útil do que prejudicial.

Assim que Poole chegara a Washintgon, deparara-se-lhe um Dilman reservado e com a língua presa no que dizia respeito à sua vida particular. Sabiamente, Poole conduzira o senador para discus­sões acerca da sua carreira política. Como tais factos tinham sido publicados, Dilman mostrara-se mais falador e amável. Recentemen­te Poole conduzira-o de novo para a sua vida particular, e Dilman, finalmente habituado e resignado com as entrevistas e com mais con­fiança naquele que o entrevistava (que não lhe contara as suas rela­ções com os Turnerites), ajudara um pouco mais, mas não fora ainda aberto e franco. Se Dilman se mostrara tão receoso até aí - pensou Poole -, como não se mostraria agora, quando cada uma das suas palavras poderia ser examinada por cidadãos desconfiados ou hostis? Mandaria ele convocar Leroy Poole para lhe comunicar que a projec­tada entrevista já se não realizava? Ou evitaria simplesmente Poole, adiaria entrevistas e deixaria que o projecto definhasse e morresse?

Leroy Poole pôs de lado o recipiente do café, limpou as migalhas da boca, pegou no telefone e pediu uma chamada para a secretária de Dilman, Diane Fuller, no edifício do antigo Senado. Disseram-lhe que a linha estava ocupada e Poole esperou. Depois ouviu a sua voz agitada e a sua linguagem deturpando a gramática, como sempre sucedia quando ela se encontrava sob tensão. Poole mostrara-se sempre galanteador com a rapariga, porque havia muito que aprendera que as secretárias pessoais são personagens importantes, algumas vezes até outros eus, e mesmo que Diane o não fosse ele gostava de jogar pelo seguro. Como sempre, Poole saudou-a efusivamente e deu-lhe os para­béns pela ascensão do seu patrão.

Oh, que dia! - resmungou ela. - Montes de telefonemas, o que não tem graça nenhuma. Não sei o que se passa, Leroy.

Então não a quero reter, minha bela - disse Poole amavelmente. - Só queria saber em que pé estou. Tenho uma entrevista com ele depois de amanhã, por volta das duas horas da tarde. Tinha prometido conceder-me uma hora inteira. Mas agora que se mudou do Senado para a Casa Branca quero ter a certeza se a entrevista ainda se realiza e onde. Ele já teve tempo para falar nisso?

Leroy, tanta coisa sucedeu que ainda nem lhe pus os olhos em cima. Só consegui falar-lhe uma vez pelo telefone, nada mais. Não sei onde está ou quais os seus planos. Tenho a sua entrevista marcada no calendário. Na primeira oportunidade que tiver, hoje ou amanhã, lembrar-lha-ei.

Obrigado, minha jóia. Escute, quero ser razoável. O pobre rapaz apanhou com um país inteiro em cheio em cima da cabeça. Se ele estiver muito ocupado depois de amanhã, diga-lhe que eu posso esperar. Mas tente arranjar-me uma entrevista para esta semana, mesmo que seja mais curta que o combinado.

Pode ficar descansado, Leroy. Telefonar-lhe-ei... Oh! Cá estão outros três telefones a tocar. Adeus.

Leroy Poole enterrou-se mais na cadeira, com o telefone ainda no colo. Certamente que tinha material quase suficiente para fazer a biografia sem precisar de outras entrevistas com Dilman. Podia ir ver outras pessoas, o que ainda não fizera até aí. Todavia não era essa a questão. Ele queria manter o contacto pessoal com Dilman. Não devia combater por nada inferior a isso.

O telefone começou a tocar quando ainda o tinha no colo, e ele pegou no auscultador.

Está?

Sr. Poole? Daqui Sally Watson novamente. Lembra-se? Disse--me para voltar a telefonar-lhe.

É verdade.

Já ouviu a notícia directamente?

Miss Watson, não só ouvi a notícia como também estou a tentar assimilá-la - disse ele. - É uma autêntica surpresa saber, de repente, que alguém que se conhece e com quem se contacta se tornou presi­dente.

Foi por isso mesmo que eu lhe telefonei, Sr. Poole. Espero não estar a ser presunçosa. Se estou, diga-mo. Para ser absolutamente franca consigo, mesmo apesar de mal o conhecer... bem, na verdade sinto como se o conhecesse... tenho lido tantas obras suas... queria pedir-lhe um favor.

Ele ficou intrigado. Que diabo poderia ele fazer por uma rapariga branca e rica, cujo pai era um potentado no Senado?

Diga de que se trata Miss Watson. Se for algo que eu possa fazer, sentir-me-ei contente por servi-la.

Quero dizer, não costumo andar por aí a pedir favores a toda a gente - disse ela. - Nunca, na minha vida, fiz tal coisa. Mas talvez você não se importe. Conheço grande número de pessoas. Talvez algum dia o possa ajudar nalguma coisa... não que você precise, com o génio que tem.

A impaciência começou a suplantar a curiosidade de Leroy Poole.

-       Diga, então, do que se trata.

Ela pareceu soprar o pedido pelo telefone.

-       Quero que me ajude a conseguir um emprego junto do Presi­dente Dilman.

O pedido surpreendeu-o.

-       Um emprego junto dele? Não sei se terei assim tanta confiança com ele para lhe fazer tai pedido, Miss Watson - disse Poole. - O seu pai não poderia fazer isso melhor do que eu? De qualquer modo, sempre foram colegas no Senado, e do mesmo lado.

-       Sim, eu sei - disse ela rapidamente -, mas isso seria estranho por mil e uma razões. Além disso, o meu pai não conhece o Presidente Dilman tão bem como o senhor e, mesmo que o conhecesse, ser-lhe-ia difícil dirigir-se a ele a pedir-lhe o que eu quero. - O tom da voz dela tornou-se suplicante; - O senhor estará constantemente com o presidente. Ser-lhe-ia fácil. Tenho a certeza de que ele o atenderia.

Leroy Poole endireitou-se, grato por ser considerado como con­selheiro de Dilman. Avaliou o pedido. As relações dela eram impor­tantes. Intervindo a seu favor, nada tinha a perder. Quem faz um favor fica com um devedor. Era bom ter investimentos lucrativos. Quando tornasse a ver Dilman - se tornasse a vê-lo -, atirar-lhe-ia com a pro­posta e, quer Dilman dissesse que sim, quer dissesse que não, pelo menos ficaria seu devedor.

Miss Watson, penso que seria melhor dizer-me que espécie de emprego pretende.

Quero ser a secretária social do presidente.

Desculpe a minha ingenuidade, Miss Watson, mas em que consiste precisamente tal emprego?

Todos os presidentes têm uma secretária social na Casa Bran­ca. Às vezes a mulher tem também uma. Mas agora não há primeira dama, portanto o presidente precisará de alguém competente e com experiência para ambos os empregos. A secretária social ajuda o presidente no que respeita à sua vida social, fazendo listas, enviando convites, fazendo os telefonemas para as festas, cocktails, jantares, reuniões sem protocolo na Casa Branca. Tanto O. C. como o Presi­dente Johnson tiveram secretárias sociais maravilhosas, mas o Pre­sidente Dilman precisará de alguém ainda melhor. Os seus proble­mas são mais complexos. Não tendo mulher ou filha, precisará de alguém que conheça todas as camadas da sociedade de Washing­ton. E, bem por ser de cor, poderá querer alguém que... bem, o Sr. Poole sabe... que seja compreensivo, etc. Acho que tenho os requisi­tos necessários.

Ela entrara nos terrenos de Poole e ele atacou-a.

-       De onde é, Miss Watson?

Ela pareceu ficar desconcertada.

-       Quer dizer, onde nasci e cresci? Nasci na Luisiana. A minha mãe vive em Nova Orleães. Bem, agora está em Roma, mas... e o meu pai, bem, o senhor sabe, ele é...

Como irá parecer, Miss Watson, uma filha da confederação a trabalhar tão ligada a um negro?

Já lhe disse o que penso. Não tenho sentimentos desses. Fui educada no Este. Viu-me na festa de ontem à noite. Gosto do seu povo.

Eu não quero dizer como irá parecer-lhe a si, Miss Watson. O que quero dizer é como irá parecer a seu pai. Mesmo que Dilman a aceite, acha que o seu pai permitirá tal coisa?

Sr. Poole, nem o meu pai nem ninguém me anda para aí a agitar com uma bandeira confederada - disse ela levemente irada. -Já atingi a maioridade. Sou tão americana como o senhor ou o presi­dente. Pertenço a mim mesma e faço o que me apetece. Quero um emprego em que as minhas relações possam ser úteis. Acho que esse é o emprego que me convém. Além de tudo, penso que pode­rei ser útil ao presidente. Posso enviar-lhe um resumo da minha experiência e habilitações para lhe mostrar. Posso também enviar--Ihe uma lista de pessoas, até membros do Gabinete, que me reco­mendariam. Não me quer ajudar?

Miss Watson, gosto da maneira como põe as coisas e vou ajudá-la. Farei tudo o que puder.

Quando? Tem alguma ideia? Gostaria de me candidatar antes que outros comecem a andar à volta dele.

Suponho que o verei esta semana. Se ainda antes disso falar com ele pelo telefone mencionarei logo o seu pedido. Como disse, farei tudo o que puder. Seja qual for o resultado, telefonar-lhe-ei.

Deixe-me dar-lhe o meu número do telefone.

Espere, não tenho nenhum lápis aqui.

Bem, não faz mal, eu tenho o meu telefone privativo. Vem na lista em Watson, Sally, no livro de Arlington. Nem sei como lhe hei-de agradecer.

Agradeça-me apenas se eu for bem sucedido. Se for, faça com que me convidem algum dia destes para um dos jantares na Casa Branca.

Farei mais. Terei lá centenas de cópias do seu livro à espera de serem assinadas. Obrigada, Sr. Poole. Viverei presa ao telefone. Adeus.

Pousando o telefone, Leroy Poole atravessou o quarto em direc­ção à secretária de pinho sobre a qual estava a sua máquina de escrever portátil, descobriu um lápis e escreveu uma nota a mencio­nar Sally Watson: «se e quando». Depois ajoelhou-se, abriu a mala que se encontrava por debaixo da secretária e tirou dois dossiers. Um continha a transcrição dactilografada das suas entrevistas com Douglass Dilman. O outro estava cheio de notas de investigações, artigos de jornais e fotocópias de artigos de revistas, tudo dando informações sobre Dilman e a sua vida pública, sobre as leis e a história do Senado e sobre o Estado natal de Dilman e a sua políti­ca; e havia ainda outro material com ele relacionado, como informa­ções acerca de outros negros que tinham servido ou serviam ainda o Congresso.

Regressando ao sofá, colocou o dossier das investigações no chão e abriu o que continha as folhas dactilografadas à sua frente. Pôs de lado as páginas cobertas de notas a lápis da sua última con­versa com Dilman, quatro dias antes, que ainda não tinham sido dactilografadas. Começou a estudar o que já estava dactilografado, o resultado de, pelo menos, duas dúzias de sessões com Dilman, as suas perguntas e as suas respostas.

A campainha do telefone fê-lo interromper o curso dos seus pen­samentos. Apressadamente fechou o dossier, entalou-o entre a per­na e o braço da cadeira e pegou no auscultador, fazendo votos para que fosse o telefonema que tanto desejava.

Está lá?

Uma chamada a longa distância, de Memphis, Tennessee. Fala o Sr. Leroy Poole?

Exactamente.

Um momento, por favor. A sua linha tem estado ocupada. Tenho de ligar para o seu interlocutor.

Telefonista, de quem é a chamada?

Ham... do Sr. Jefferson Hurley. Um momento, por favor. Leroy Poole teve um sorriso de satisfação. Hurley não se esquecera dele, apesar de tudo. Ocupado como estava, tendo-se mudado de Topeka para Memphis, obviamente para estar mais perto de Hattiesburg, Mississipi, Hurley tivera ainda tempo para o consultar. Poole exultava, não tanto com o facto de ser um membro do círculo interno dos Tumentes, mas principalmente por ser o amigo de Jeff Hurley.

Enquanto esperava ouvir a sua voz grossa e profunda, que nunca deixava de o emocionar, recordou a imagem de Jeff Hurley, a quem ele tão raramente vira nos três anos desde que se tinham conhecido numa reunião da Sociedade Crispus, no lado oriental de Nova Iorque. Hurley era um belo gigante, com trinta e três anos, portanto um ano mais velho que Poole, um génio educado por si próprio, cor de chocolate, resoluto e destemido, mais inteligente do que qualquer homem bran­co, não temendo nenhum ser humano, branco ou preto. O Grupo dos Turnerites fora uma criação de Hurley, extraída do coração morto da Sociedade Crispus, uma grande e vibrante assembleia, secretamente colocada no trilho da acção directa e imediata para conseguir a igual­dade, sem mais tardanças.

Hurley dera ao grupo aquele arrogante nome por causa da admi­ração que tinha pelo bravo lavrador e pregador negro Nat Turner, que ousara revoltar-se contra a escravidão, na Virgínia, em 1831. Com cinco homens que o tinham seguido, Turner percorrera todo o con­celho de Southampton, transformado num Moisés negro, resolvido a conduzir os seus filhos para fora do Egipto em direcção à liberdade. No decurso da sua revolta, chacinara sessenta brancos. A liberdade não tinha sido ganha, e mais de cem homens de cor tinham morrido como represália, mas marcara-se um ponto. O Sul nunca mais se sentiria seguro com os seus escravos.

Os Turnerites de Hurley não queriam marcar nenhum ponto. Não desejavam conduzir o povo eleito para a Terra Prometida. O seu objecti­vo era fazer dos Estados Unidos a Terra Prometida, aquela que era pro­metida na Constituição, e fazê-lo pela força, se fosse necessário. O cer­co do dia anterior, em Hattiesburg, Mississipi, fora o primeiro movimento para tal fim. Se ele, ou qualquer acção turnerite que se lhe seguisse, encontrasse oposição, Hurley prometera, como o Moisés branco dos judeus, como o Moisés dos pretos, Nat Turner, responder «dente por dente». Os chefes sulistas tinham vociferado bombasticamente contra ele, os chefes do Norte tinham-no criticado por impaciência e intolerân­cia, e a Sociedade Crispus de Spinger (da qual muitos Turnerites eram ainda membros) pedira-lhe que cumprisse o processo de lei. Agora, em Hattiesburg, Hurley e o seu grupo tinham sido atacados fisicamente e feridos sem qualquer causa justa. Aqueles que ainda se lembravam dos artigos violentos de Hurley na imprensa, perguntar-se-iam agora: «Cum­prirá ele a ameaça feita?»

Enquanto esperava, com o telefone na mão, Leroy Poole não ti­nha quaisquer dúvidas acerca disso. Nas comunidades de todos os povos distinguem-se os homens dos rapazes por uns fazerem e os outros falarem. Hurley era dos que faziam e Leroy Poole adorava-o. Não era só a autoridade de Hurley o que atraía Poole, mas o sedutor aspecto do homem, o cabelo negro, curto e brilhante, os olhos sérios e transparentes, o nariz aquilino e os dentes brilhantes. Ele era o ser humano que Leroy Poole desejaria ser, mas já que tal metamorfose era impossível, Poole sentia-se grato simplesmente por poder estar ao lado de tal ser humano para sempre. Para Poole, o maior sentimento de segurança que já tivera em toda a sua vida fora-lhe dado pelo braço gigantesco de Hurley à sua volta, pelo riso comunicativo de Hurley e pelas instruções electrizantes de Hurley. Leroy Poole dera apenas uma parte de si próprio, na amizade, a muitos homens negros e a algumas mulheres negras, mas Jeff Hurley (quer Jeff o soubesse ou não) era o único de ambos os sexos por quem daria a vida.

Vinda da longínqua Memphis, ouviu a voz envolvente de Hurley:

Leroy? Estás aí?

Jeff... Jeff... como estás tu?

Desconfio que sou o Fulano que conhece o Fulano que conhe­ce o novo Presidente dos Estados Unidos. Que me dizes acerca disso? Fala-me do choque...

Ainda agora não posso acreditar em tal coisa.

Não sei qual foi a reacção por essas bandas, mas, por aqui, poder-se-ia pensar que o próprio Nat Turner tinha conquistado o governo dos Estados Unidos. Quase todos os brancos de Memphis estão apopléticos. Até mesmo aqui, em Beale Street, os nossos irmãos estão estáticos, cheios de alegria por dentro, mas com medo de a exteriorizar.

A questão é... o que é que tu pensas, Jeff?

Ainda não sei o que pensar. Não sei nada acerca de Dilman, excepto por algumas coisas que me disseste nas tuas cartas. Per­cebi que não tens grande consideração por ele. Uma vez até lhe cha­maste parvo.

Chamei? Bem, talvez isso fosse demasiado forte. Ele não está exactamente do lado dos sulistas. Até agora tenho a impressão de que ele está menos interessado pela igualdade do que pela sua pró­pria sobrevivência. Sabes, Jeff, parece-me daquele género de pesso­as que nem querem parar para ajudar quando vêem alguém atrapalha­do ou a ser maltratado. Tudo o que quer é que o deixem em paz.

Talvez isso fosse compreensível ontem, mas hoje é um novo dia, e ele verá que ninguém o deixará em paz. A questão é quem chegará primeiro e com mais força, e então terá de mostrar se é um idiota medricas ou se é um homem de cor destemido. Não tenho grandes esperanças, Jeff.

A voz de Hurley permaneceu calada durante algum tempo. Poole esperou pacientemente, e por fim a sua voz fez-se de novo ouvir.

Veremos, muito em breve descobriremos o que vale o nosso homem. As coisas estão a resolver-se rapidamente, Leroy, e não vamos deixar ninguém ignorá-las.

Foi horrível o que sucedeu em Hattiesburg. Ficou alguém real­mente cego?

Sim, o Simon, pobre diabo. Completamente cego. E Marvin sofreu uma fractura de crânio, mas viverá! Os outros dez estão bem, tão bem quanto se pode estar naquelas celas nojentas.

Quando é que os vão deixar sair de lá?

Sair de lá? - resmungou Hurley amargamente. - Vão a julga­mento dentro de um ou dois dias...

Vão a julgamento? - gritou Leroy Poole. - Jesus, que fizeram eles além de passearem pacatamente com aqueles trajes? E o Grande Dragão que atirou com...

Leroy, Leroy, você sabe muito bem como é. Aquela gente não pode fazer nada de mal, do mesmo modo que nós não podemos fazer nada de bom. As culpas atribuídas aos nossos rapazes têm o comprimento de uma milha. Quebra da paz, incitamento à desordem, assalto... atiram-lhes com tudo o que há no livro. O pior de tudo é que quem vai ler a sentença é um juiz de concelho chamado Everett Gage. Temos a biografia dele. Duas vezes, em dez anos, deixou escapar linchadores comprovados. E construíram um cemitério especial, num pântano qualquer, apenas para abrigar os negros que ele já senten­ciou aos trabalhos forçados.

Que vamos fazer, Jeff?

Vou para Little Rock dentro de uma hora, e se o juiz Gage fizer o que espero, provavelmente instalarei uma base de operações em Shreveport. Então, se for necessário, alguns dos nossos farão o que tem de ser feito.

Isso significa... ?

Isso mesmo.

Leroy Poole sentiu-se subitamente nervoso.

Jeff, uma coisa. Falaste de sentença. Os nossos rapazes não negarão a acusação?

Certamente.

Então, e o julgamento?

Não to mencionei para poupar tempo. Leroy, estás há muito tempo afastado do teu Sul.

É verdade.

A voz de Hurley chegou aos seus ouvidos mais violentamente.

Há uma coisa que pode pesar na balança: que um procurador importante apele em nosso favor. Algo que os force a pensar duas vezes, que os force à moderação. Foi essa a razão principal por que te telefonei.

Que posso eu fazer, Jeff?

Dir-te-ei o que fiz e o que podes fazer. Já ouviste falar de Nat Abrahams...?

O advogado?

Aquele que conseguiu livrar uns mexicanos na Califórnia, e que cometeu aquela grande façanha para a N. A. A. C. R, em Ohio. Tentei comunicar com ele, em Chicago. Já lá não estava. O associa­do, um fulano chamado Hart, disse-me que ele ia a caminho de Whashington. Expliquei-lhe a urgência do nosso caso e perguntei--Ihe onde poderia contactar com ele em Washington. Hart disse-me que Nat Abrahams estava a recusar todos os casos criminais, pois encontrava-se comprometido com algo novo na vossa cidade. Leroy, gostaria de...

Poole interrompeu-o, lembrando-se de que tinha estado a importuná-lo enquanto escutava:

-       Espera, Jeff, ocorreu-me algo. Esse Nat Abrahams é aquele... quando Dilman me deu os nomes de parentes e amigos para entre­vistar, ele nomeou Nat Abrahams, de Chicago, como um dos seus melhores amigos.

Hurley assobiou.

-       Óptimo. Melhor do que eu poderia esperar, la pedir-te que fos­ses ter com Abrahams, quando ele chegasse, e lhe fizesses o espe­cial pedido de interceder por nós no assunto. Mas assim o caso torna-se mais fácil, muito mais fácil. Quando é que estás outra vez com Dilman?

Bem, agora que ele é presidente...

Tens de o ver. - Era uma ordem, e Leroy Poole prestou aten­ção. - Tens de o ver - repetiu Hurley -, e quando o vires faz com que ele saiba o que sucedeu com os Tumentes no Mississipi, o que suce­deu ao seu povo. Diz-lhe que gostarias que ele obtivesse do seu ami­go Nat Abrahams uma pequena ajuda a nosso favor. Diz-lhe que estamos desesperados, diz-lhe o que queiras. Precisamos de Abrahams e, por muito ocupado que ele esteja, não o vejo a dizer não ao Presidente dos Estados Unidos.

Poole estava preocupado.

Também não vejo Abrahams a dizer não a Dilman, mas tenho a certeza de que posso ver Dilman a dizer-me não a mim. Devias ver as minhas notas das nossas conversas. Ele é um cobarde.

Já lhe perguntaste qual a opinião dele acerca dos Turnerites?

Certamente. Fez ham! Ham e gaguejou todo o tempo, acobar­dado. Está nas minhas notas.

O tom de Hurley tornou-se mais feroz.

Manda-me uma cópia das tuas notas sobre Dilman. Tudo. Em troca, enviar-te-ei hoje algo, uma informação que talvez te ajude a transformar o Dilman de uma galinha num galo de combate. Tenta o melhor que puderes, Leroy, de todos os modos possíveis. Faz com que o teu homem da Casa Branca consiga que Abrahams nos ajude. Se fores bem sucedido, ter-nos-ás feito um grande serviço, e tere­mos alcançado uma grande vitória.

E se o não conseguir, Jeff?

Então teremos de fazer como estava combinado.

Não... não me agradaria nada, Jeff.

E pensas que a mim me agrada? Mas agora é isso ou nada. Já fomos suficientemente espezinhados. Talvez seja esta a altura de darmos um arranque forte.

Está bem, Jeff.

Em primeiro lugar, antes de falares com o presidente certifica-te de que Nat Abrahams está em Washington. Uma vez que o saibas, fala com Dilman, porque quer tenha de ser de uma maneira ou de outra, da legal ou da outra, tem de ser rápido. Temos de andar ligeiros de aqui em diante.

Num comboio rápido e trepidante era completamente impossível fazer-se a barba como devia ser, mesmo que fosse com uma máquina eléctrica. Para tal era necessária a mão de um cirurgião e a concentra­ção de um yogi. Ele não possuía nenhum destes atributos naquela manhã cinzenta e tristonha. Censurou a mão que tremia e o espírito que vagueava com as espantosas notícias que ouvira em Akron, na noite anterior. Por causa delas estivera acordado a maior parte da noi­te, analisando-as, remoendo-as, e algumas horas de sono não tinham acalmado a perturbação.

Resmungando, Nat Abrahams desistiu.

Enquanto desligava o fio da tomada e o enrolava à volta da má­quina de barbear, ia observando o resultado da sua operação no pe­queno espelho amarelo da barulhenta e acanhada casa de banho. Uma barba rala e irregularmente feita, mas Deus tinha-lha concedido assim - concluiu ele - e nenhuma engenhoca eléctrica podia modificar o trabalho do Criador. Não que Nat Abrahams se preocupasse muito com isso. O gémeo entrevisto no espelho, com a madeixa rebelde de cabelo castanho, a testa alta, as sobrancelhas espessas, os olhos encovados, o nariz aquilino entre as maçãs do rosto salientes, a boca divertida, o queixo proeminente, todo o conjunto pálido, magro e afilado, fora sempre o seu amigo e companheiro leal durante os anos da maior parte das suas aventuras idiotas e quixotescas. O gémeo de 6 pés e 1 polegada - não só o rosto, mas toda a estrutura óssea - tinha assusta­do alguns clientes (bem, talvez alguns maçadores), perdido alguns júris e irritado alguns juízes. Conquistara-lhe Sue. Colaborara com ele no ganho de grandes prazeres e de não menor reputação. Quem poderia pedir mais?

Sorriu, troçando de si próprio. Quem poderia pedir mais? Podia ele. Podia pedir algo mais... dinheiro... dinheiro, e em grande quanti­dade. A necessidade desinteressada de dinheiro, depois de o ter tra­tado durante anos como um intruso que lhe fazia perder tempo, era a única coisa no mundo que o poderia ter posto naquele comboio tre­pidante para Washington, na sua época de mais trabalho, em Agos­to. Entregara os seus numerosos clientes a Felix Hart, entregara os seus três filhos à avó, e arrancara Sue das suas mil e uma actividades de esposa e mãe, para obter o que ignorara durante toda a vida: o pote de ouro que, por fim, se tornara uma necessidade. Nada, além da necessidade, o teria obrigado a ir à caça do tesouro.

Nat Abrahams colocou os suspensórios e fê-los estalar nos om­bros. Os suspensórios, olhados pelos seus inimigos como uma afectacão, tinham-se tornado de ta! maneira parte dele próprio que já nem dava por eles. Quando, ocasionalmente, reparava neles, sentia-se feliz por se lembrar que não eram, nem nunca tinham sido, uma afectação. No seu primeiro ano na Faculdade de Direito tinha com­prado o seu primeiro par de suspensórios e usara-os como se fosse um talismã para o ajudar a atingir e a honrar a espécie de tabuleta que sempre desejaria: Lincoln, de Lincoln & Herndon, Advogados, ou Darrow, de Darrow & Sissman, Procuradores de Leis. Tinha a cer­teza de que não merecera nem metade de cada tabuleta, mas tinha igualmente a certeza de que o talismã lhe lembrara sempre os ideais de Lincoln e de Darrow.

Contudo, naquela manhã sentira os suspensórios tão apertados e inconfortáveis como se fossem uma consciência culpada. Aquela via­gem a Washington seria indicada para ele? O especialista de coração, o seu velho amigo Greenberg, tinha-lhe afirmado que não tinha outra alter­nativa. «Nat, certamente que a Associação Americana dos Advogados não discorda que os seus membros sejam bem pagos. Tens vivido duran­te toda a tua vida segundo a regra de ouro: 'Não faças aos outros o que não desejarias que te fizessem a ti.' Agora chegou a altura de fazeres por ti o que tens feito aos outros. Sobrevivência, Nat, não por qualquer preço, pois que o que Avery Emmich te oferece não é qualquer preço, mas o teu preço. Homens mais jovens, com corações mais novos, em­punharão a tua espada para proteger a minoria e a liberdade civil; por­tanto deixa correr as coisas. Já tiveste um aviso, uma insuficiência coronária. Nem todos os homens têm essa sorte. Portanto, faz o que te digo e o que a Sue quer. Faz a tua cruzada. Vai para Washington, assina o contrato, faz fortuna e depois regressa e compra a tua quinta. Vive para que os teus filhos possam honrar o pai e não o seu túmulo. Vai para Washington, Nat.»

Estas palavras ecoavam ainda no seu ouvido, juntamente com o apito do comboio. Bem, se tinha alguma qualidade era a da obediên­cia. Por isso ali estava, na Capitol, L.da, a pouco mais de uma hora de Washington.

Saiu da casa de banho e dirigiu-se para o quarto, apenas ilumina­do com a minúscula luz junto do seu beliche e uma réstia de luz que se filtrava através da cortina verde da janela. Pegou no colete e no casaco e vestiu-os. Colocando o relógio no pulso, procurou ver as horas. Sim, faltava uma hora e cinco minutos para chegarem a Washington.

Inclinou-se para ver se Sue já estaria acordada. Ela encontrava--se de costas para ele. O seu rosto frágil e pequeno estava enterrado na almofada, e o cabelo curto estava todo emaranhado. Escutou-a a respirar, sentindo por ela o mesmo amor que em cada momento dos seus dezoito anos de casados. Estava tão profundamente adormecida e tão longe de toda a confusão deste mundo que ele se censurou por a ter mantido acordada até tão tarde na noite anterior, por causa das notícias que ouvira em Akron.

Tocou o seu ombro nu.

- Sue, querida...

Ela ergueu o ombro, tornou a deixá-lo cair e voltou a cabeça ainda com os olhos fechados. -Hum?

São horas de acordar. Estamos quase a chegar.

Obrigada.

Estás acordada, Sue?

Estou.

Tens uma hora para te arranjares. Se te despachares, podere­mos tomar juntos o pequeno-almoço. A carruagem-restaurante é a segunda a contar para trás. Estou lá à tua espera.

Está bem.

Ele endireitou-se, pegou na sua pasta e dirigiu-se para a porta.

-       Nat...

Ele parou, voltou-se e viu-a apoiada sobre o cotovelo, com os olhos bem abertos, a olhar para ele.

Nat, é verdade o que me disseste a noite passada... ou foi um sonho?

Não foi um sonho, querida.

Não - disse ela lentamente. - Já temia isso. Pobre Doug, na Casa Branca! Não me refiro apenas ao facto de ele ser de cor. É que ele é tão... tão sensível e... metido consigo. Nat, vão crucificá-lo.

Abrahams franziu o sobrolho.

Ele é mais duro de roer do que muita gente pensa, e também mais esperto. - Fez uma pausa. - Talvez seja o melhor que podia ter acontecido... quero dizer... ao país.

Acreditas realmente nisso?

Querida - disse ele evasivamente -, nunca sei absolutamente no que acredito até ter tomado o pequeno-almoço e ter fumado a minha primeira cachimbada. Pergunta-mo então. Agora despacha-te. Espero-te no restaurante.

Uma vez sozinho no corredor do comboio, tentou compreender em que é que acreditava. Parando em frente da última janela da carrua­gem, colocou a palma da mão de encontro ao vidro, primeiro tendo ainda consciência das árvores que deslizavam perante ele, e depois perdendo completamente a noção do cenário. O seu espírito voou para a cena que testemunhara na estação enquanto esperavam pela partida do comboio, no dia anterior.

Quando ele e Sue tinham chegado à Capitol Ld. el Chicago, dez minutos antes da hora da partida do comboio, já sabiam da morte súbita do presidente em Francoforte. Em toda a estação, fora do comboio e mesmo dentro dele, Abrahams vira, nos rostos dos passageiros e dos funcionários, a mesma expressão de incredu­lidade e angústia que observara quando daquela terrível ocasião em que o Presidente John F. Kennedy fora morto com uma bala em Dallas.

Afastando-se da janela, Abrahams tentou classificar as várias qualidades de dor existentes. Tinha a certeza de que o público rea­gira perante a morte de O. C. em Francoforte do mesmo modo que reagira perante a do Presidente Kennedy em Dallas, e que era muito diferente de como reagira perante a morte de Franklin D. Roosevelt em Warm Springs. O. C. era quase tão novo como Kennedy e igual­mente vigoroso. A maior parte das pessoas considerava O. C. mais como um irmão mais velho do que como um pai, porque fora o seu chefe do Executivo durante um período inferior a três anos e elas não se tinham tornado totalmente dependentes dele. A sua morte súbita tinha-as chocado consideravelmente - isso era evidente por toda a parte -, mas o que parecia tê-las chocado mais era a verificação de que a juventude e a força invencível, acompanhadas da esperança e da ambição, protegidas pela couraça do sucesso e do poder, pudes­sem tão fácil e rapidamente ser destruídas. Assim - pensou Abrahams -, a mágoa pública tomara aforma de incredulidade. Quando Roosevelt morrera - e também disso Abrahams se lembrava muito bem -, o pre­sidente tinha sido uma parte íntima da vida e das experiências de cada um durante tantos anos que a perda não fora apenas a do chefe de família sempre presente, mas a perda de uma grande parte da vida pessoal de cada um.

Depois de o comboio ter deixado Chicago, Nat e Sue Abrahams tinham falado acerca da tragédia e do seu significado, tinham lido as últimas edições dos jornais, e em seguida ele entregara-se ao seu tra­balho. Embora Abrahams tivesse votado por O. C, não sentira qual­quer atracção por ele, e assim não sofrera com a sua perda. Enquanto trabalhava nas notas para o seu encontro com Gordon Oliver, o repre­sentante de Emmich em Washington, ia pensando que MacPherson desempenharia o cargo tão bem como O. C. o desempenhara. Não haveria qualquer traumatismo nacional.

O resto da tarde, passada no comboio, fora ocupado com traba­lho, breves adormecimentos, leitura e conversas acerca dos filhos, da nova posição que se vislumbrava e da utopia que seria possível depois disso. Tinham ido até ao bar tomar uns martinis e depois jan­tado. Abrahams acompanhara Sue até ao beliche, onde as camas já estavam preparadas. Ela dissera-lhe que se sentia cansada e que desejava ir cedo para a cama.

Acompanhado da sua pasta, regressara à sala para estudar as propostas dos procuradores de Emmich. Quase nem dera que ha­viam chegado a Akron, que eram já onze horas e um quarto e o com­boio ia um pouco atrasado. Mas então, espreitando casualmente pela janela, notara, com curiosidade crescente, um grande grupo formado pelos funcionários e maquinistas do comboio, que moviam excitada­mente os lábios e gesticulavam para toda a gente.

Uns minutos mais tarde, quando o Capitol Ld. se pusera de novo em movimento, o empregado negro do bar precipitara-se na saia com as notícias. MacPherson morrera também em Francoforte. O senador Douglass Dilman, um homem de cor, acabava de prestar juramento como Presidente dos Estados Unidos.

Doug Dilman!

Nat Abrahams levara muito tempo a acalmar a forte emoção sofri­da perante a incrível promoção do seu velho amigo. À meia-noite Abrahams regressara ao beliche. Através da escuridão chegara até ele a voz sonolenta de Sue, dando-lhe as boas-noites. Ele sentara-se na beira da sua cama e contara-lhe o que ouvira. Ela acendera a luz azul junto da sua cabeça e ele pôde ver que ela tremia de emoção. Dera-Ihe um comprimido para dormir e depois tinha discutido o caso até que a voz dela se tornara pastosa e finalmente se calara, revelando que tornara a adormecer. Mais tarde, ele deitara-se também, mas não conseguira adormecer. Mantivera-se acordado, o espírito em confu­são, depois de já terem saído de Pittsburgo havia uma hora. Assim chegara a manhã, e assim se ia aproximando cada vez mais de Wa­shington, uma cidade totalmente transformada pela subida ao cargo mais elevado da Nação do único homem de cor que ele conhecera bem e que permanecera seu amigo desde o primeiro encontro, du­rante a Segunda Grande Guerra. Ainda na semana anterior Abrahams recebera uma carta de Dilman em que este se mostrava radiante com a ida de Abrahams a Washington. Dilman insistia para que se encontrassem durante a sua estada ali. Tinha até marcado a data para o jantar de reunião. Abrahams pensou se tal compromisso ain­da se manteria e, em caso afirmativo, como se encontraria o amigo.

Suspirando, Nat Abrahams afastou todas e quaisquer especula­ções do seu espírito e caminhou rapidamente, abrindo portas pesa­das, até à sala e daí até à carruagem-restaurante. Com excepção de meia dúzia de passageiros brancos, absorvidos na leitura de jornais de Pitsburgo, a carruagem parecia ter-se transformado numa assembleia de funcionários dos caminhos-de-ferro. Vários deles, jun­tos a alguns criados negros, estavam reunidos no extremo oposto da sala, mergulhados em importante conversa.

O atarracado chefe de mesa, com uns óculos sem aro enterrados na sua cara de prussiano, adiantou-se rapidamente para indicar uma mesa de Abrahams. Enquanto este se sentava diante dos copos transparentes e dos talheres de prata resplandecentes, embalado pela cadência do comboio, aquele colocou diante de Abrahams a ementa, o registo da encomenda e um lápis.

Não preciso da ementa - disse Abrahams. Pegando no regis­to escreveu o que desejava: cereal, torrada francesa, chá. Depois preencheu a lista de Sue: grapefruit, torrada melba, café. Entregou os registos ao chefe. - Não mande servir o café até a minha mulher chegar.

Muito bem, senhor.

Abrahams indicou o extremo oposto da carruagem. Aposto que estão a falar do presidente Dilman.

Não se fala de outra coisa. Não têm feito nada de jeito desde que isso sucedeu. - Inclinou-se mais para Abrahams e segredou: - Até parece que Cristo veio pela segunda vez à terra.

Esperêmo-lo.

O chefe de mesa esteve prestes a dizer qualquer coisa, mas pareceu mudar de opinião e murmurou:

Pertencerá o senhor, por acaso, ao governo?

Deus me livre - disse Abrahams. - Só se isso me livrasse do sofrimento de pagar as taxas.

O chefe inclinou-se ainda mais.

Estamos desconfiados de que os nossos próximos carrega­mentos, nos meses vindouros, serão mais de negros, se o senhor sabe o que quero dizer.

Não vejo porquê - disse Abrahams secamente. Apontou para o registo. - Se não se importa mande-me já o chá.

Depois de o chefe de mesa se ter afastado rapidamente, Abrahams observou a imagem que o homem lhe fizera surgir no espírito - milhares de camionetas, cheias de negros, que invadiam Washington para tomar posse das suas novas nomeações. Con­tudo, só podia imaginar esta cena como uma caricatura, porque, conhecendo Dilman como ele o conhecia, sabia que era profunda­mente ridícula. Uma das desvantagens de Dilman - pensara sem­pre Abrahams - era que ele se afastava sempre dos grandes da sua raça, com medo de que o acusassem de favoritismo. Dilman acreditava que todos os homens tinham sido criados iguais e deviam herdar direitos iguais; o temor impedia-o porém de mostrar as suas crenças. Em vez disso, tinha tendência para praticar uma espécie de segregação ao inverso, de dentro para fora. Abrahams sabia que era um julgamento demasiado duro para um homem tão bom e sensível, mas sabia igualmente que era em grande parte verda­deiro.

A memória levou-o aos princípios do ano de 1945, quando, como capitão, fora nomeado para a Divisão Militar de Justiça do Corpo Geral dos Advogados e Juízes, Departamento do Exército, no edifício do Pentágono. Encontrara-se instalado a uma secretária no mesmo cubí­culo de vidro com o tenente Douglass Dilman. Abrahams conhecera vários negros quando frequentara a Faculdade de Direito da Universi­dade de Chicago, mas nunca tivera qualquer contacto íntimo com eles. Nunca possuíra qualquer sentimento especial e forte em rela­ção aos negros, excepto um certo ressentimento intelectual pela opressão e escravidão a que tinham sido submetidos na América. O pai, professor de filosofia, livresco e impecável, e a mãe, sempre activa a defender causas e sem temor na língua (uma espécie de Margaret Fuller cuja tese mestra fora o movimento abolicionista), tinham-no educado de uma maneira tão natural que chegara à idade adulta sem quaisquer preconceitos raciais.

Na realidade, Abrahams nem sequer possuía o sentimento de tolerância em relação aos negros, como sucedia com muitos dos seus amigos intelectuais e progressistas. Para ele, a palavra tolerância já continha em si uma pequena porção de preconceitos - era-se amá­vel com certas pessoas, tratávamo-las como iguais, aceitávamo-las, mas o facto de sermos tolerantes em relação a elas implicava que elas eram diferentes. Para Abrahams, os negros eram homens que podiam ser de um negro mais ou menos escuro, assim como os bran­cos podiam ser mais morenos ou mais pálidos. Todos os homens eram homens, e alguns eram estúpidos e outros inteligentes, alguns mais aborrecidos, outros mais interessantes, alguns piores, outros melhores, e outros nem bons nem maus, independentemente de serem pretos ou brancos, castanhos ou amarelos. Era esta a atitude de Abrahams quando entrara para o exército e ela não se modificara depois.

O estar fechado num cubículo juntamente com um oficial negro nada tinha de especial para ele, excepto que achara Dilman tímido e respeitador para além do que requeria a diferença das patentes, e que não se sentira certo quanto à atitude de Dilman. A sua incerteza não estava relacionada com os seus próprios sentimentos quanto à cor de Dilman, mas antes quanto à sensibilidade do próprio Dilman em rela­ção ao facto de Abrahams ser branco. Mas porque eram obrigados a estar tão perto um do outro, dedicando-se aos mesmos casos e traba­lhando nas mesmas condições, a atitude de Dilman modificara-se pouco a pouco.

A intimidade entre ambos começara com a linguagem comum das legalidades militares, e depois passara para a linguagem comum de homens intelectualmente iguais. Não só trabalhavam juntos como estavam diariamente juntos no bar do Pentágono e saíam para os respectivos alojamentos no mesmo transporte. Chegaram até ao ponto de contarem a sua vida um ao outro, os respectivos gostos e aversões, fraquezas e aspirações humanas, embora Dilman nunca fosse tão expansivo nesse assunto. Gostavam um do outro como homens e a amizade entre ambos tornara-se mais forte quando foram nomeados juntos para Londres, depois para Paris e por fim para a Alemanha Ocidental ocupada. Abrahams chegara finalmente à con­clusão de que o triunfo de tal amizade fora devido a que, um dia, Dilman deixara de o considerar como um branco e portanto como um estranho.

Depois da guerra ambos tinham exercido a advocacia em Chica­go, ele com escritório no Loops e Dilman no lado sul. Embora soubes­se que Dilman era casado, não conhecia a mulher dele, pois ela não o acompanhara quando ele estivera em Washington. Em Chicago, Abrahams vira-a três vezes e, conhecendo Dilman como ele o conhe­cia, percebeu a razão por que ele a não levara para Washington. Aldora Dilman, embora de ascendência negra, tinha a pele e as feições de uma branca. Abrahams achara-a nervosa, amargurada, envergonha­da da cor do marido, e observara que ela bebia de mais. Onze meses depois de se ter instalado em Chicago, Dilman mudara-se subitamen­te com a mulher para um outro estado de Midwest.

Ocasionalmente, nos anos que se seguiram Abrahams reunira--se várias vezes com Dilman, desviando-se frequentemente do seu ca­minho para o fazer. Depois de um constrangimento inicial, Dilman acei-tara-o sempre como um velho amigo. Abrahams soubera do trabalho de Dilman para organizações e para grandes corporações trabalhistas negras. Não ficara surpreendido quando lera que Dilman concordara em concorrer para a Câmara dos Deputados e ficara comovido quan­do Dilman ganhara. Visto que os casos de Abrahams o obrigavam a deslocar-se frequentemente a Washington, encontrara-se então mais vezes com o seu velho amigo.

Nesses encontros, durante os quais abordavam quase todos os assuntos, Abrahams aprendera a não tocar num, embora o entrevisse em grande parte. Percebera silenciosamente que Aldora se tinha recu­sado a acompanhar o marido congressista a Washington. Agradara-Ihe saber, indirectamente, que Aldora dera um filho a Dilman alguns anos antes. E não lhe causara qualquer choque saber que Aldora morrera com a idade de quarenta anos. Não mandara a Dilman quais­quer palavras de condolências. Pressentira sempre que este não gostava de discutir essa área negra da sua vida particular.

Os anos, que os tornaram mais velhos, deram a cada um deles, de modo diferente, uma identidade própria. O nome de Abrahams começou a ser conhecido pela sua intervenção em casos envolvendo opressões legais de minorias. O nome de Dilman tornara-se ainda mais conhecido devido aos seus quatro mandatos na Câmara dos Depu­tados, à sua nomeação para a vaga no Senado dos Estados Unidos, à sua eleição como presidente interino do Senado na ausência do vice--presidente. E agora, a culminar, aquele acontecimento espantoso que se dera na sua vida e na vida e história dos Estados Unidos.

Abrahams despertou das suas recordações, notando o criado a olhar fixamente para ele. Reparou então que estava a abanar a cabe­ça perante os acontecimentos e que o criado estava preocupado por julgar que ele estava a abanar a cabeça ao pequeno-almoço à sua frente.

Está tudo bem, senhor? - perguntou o criado.

Perfeitamente, obrigado.

Comeu rapidamente o cereal, para não deixar arrefecer a torra­da. Enquanto comia, pensou que tinha de afastar o problema de Doug Dilman do seu espírito. A sua preocupação imediata devia ser o assun­to pessoal que o trazia a Washington. Dentro de quarenta minutos chegariam à estação e depois iriam pela Avenida de Massachusets até ao Mayflower Hotel. Então, enquanto Sue telefonasse aos filhos e à mãe e desfizesse as malas, ele combinaria um encontro com Oliver, o presidente da Corporação das Indústrias Águias para negociarem. O que resultasse desse encontro podia ser crucial para os anos futu­ros da sua carreira - e da sua consciência.

Pousando o garfo e a faca, Abrahams abriu a pasta e tirou as propostas mais recentes, enviadas pelos conselheiros legais de Emmich. Enquanto bebia o chá, revendo as propostas já familiares, Abrahams sentiu-se divertido por ver como a linguagem legal e for­mal do documento fora dominada pela personalidade imperiosa daque­le. Quase se podia imaginar a corporação acobardada dos advoga­dos, ouvindo as ordens secas de Emmich e depois tentando pô-las por escrito. Todos os parágrafos eram Emmich puro. Declarações cur­tas e secas, imperativos bombásticos, a linguagem limitada e inflexível dos patrões milionários, a elite do poder, que quase esquecera já o som das respostas que empregam as palavras possivelmente, com­promisso e sugerir. Encerrados nas suas torres de marfim, protegi­dos pelas armas mágicas do dinheiro, que venciam qualquer resis­tência, os Emmichs não conheciam a palavra não, quando esta lhes era dirigida.

Vira Avery Emmich apenas uma vez na sua vida, havia menos de um ano, e a conversa, ou antes, o monólogo de Emmich fora curto e objectivo. Este tinha ido a Chicago para concluir uma aquisição de produtos químicos. O milionário mandara chamar Nat Abrahams à sua suite, e Abrahams, surpreendido por Emmich o conhecer, fora ter com ele levado pelo espanto e pela curiosidade.

Avery Emmich, filho de um emigrante alemão, era um homem gordo e atarracado, já no fim da casa dos sessenta. Durante os vinte minutos da entrevista mostrara-se tão eficiente e sem humor como uma máquina calculadora importada.

Queria saber como você era - dissera Emmich sem mais pre­âmbulos. - Não parece ter um coração sensível.

Sou um procurador - dissera Abrahams - e um trabalhador.

Sim. Recentemente, alguns julgamentos seus chamaram-me a atenção. Fiquei impressionado.

Impressionado?

Parece espantado - dissera Emmich.

E estou - respondera Abrahams. - Do que sei e li acerca de si, não o imaginaria impressionado com alguém que tivesse defendido mexicanos, negros e pequenas corporações.

Jovem, estou-me nas tintas para quem você defende. Fiquei impressionado porque pegou em casos difíceis e ganhou. A habili­dade e a força impressionam-me sempre. Quanto ganha por ano?

Abrahams dissera-lho e Emmich emitira um grunhido de satisfa­ção. Sem qualquer outra pergunta, Emmich dissera a Abrahams o que pretendia. Pretendia o próprio Nat Abrahams. Queria Nat Abrahams em Washington. Explicara que as Indústrias Águias e os seus interesses múltiplos - produção de algodão, fábricas têxteis, produtos químicos, minas de cobre e estanho, companhias de seguros, linhas de navega­ção - tinham uma vasta rede de representações legais. Explicara que nunca estava satisfeito com o que tinha, que queria a melhor colabora­ção e que estava pronto a pagá-la bem. Explicara que Washington era um ponto fraco, pois o governo, mesmo com um presidente sensato como O. C, estava a meter cada vez mais o nariz nas empresas parti­culares. Emmich queria lá o melhor que possuía, as melhores inteligên­cias, as melhores vozes, as melhores vigilâncias legais.

Abrahams ouvira tudo isto, fascinado mas desinteressado. Mes­mo enquanto escutara, não conseguira ver-se a abandonar aquela gente desesperada, que precisava dele, em troca de um emprego mais lucra­tivo. Os Emmichs do mundo, sabia-o ele desde sempre, defendiam as empresas livres - o que era louvável; mas referiam-se às empresas livres para eles próprios, e não a uma sociedade económica livre - o que já era menos louvável. Ele sabia que os Emmichs queriam os com­petidores, os consumidores, os trabalhadores, até o próprio governo, controlados pelas suas definições de liberdade.

Abrahams começara a abanar a cabeça quando Avery Emmich o informara quanto valeria em dólares a sua pessoa na sua corpora­ção. Ficara estonteado com a soma mencionada. O salário anual anunciado era superior ao que ganhara durante os últimos quatro anos de trabalho exaustivo. Depois disso, não voltara a abanar a cabeça. Escutara atenta e interessadamente. Espantara-o o modo como Emmich se antecipara às suas reservas não formuladas. Pe-diam-lhe apenas para representar a corporação como procurador, nem mais nem menos. Pediam-lhe para falar pela corporação so­bre os assuntos legais e legislativos, e para informar e aconselhar as corporações em actividades respeitantes aos negócios. Não lhe pediam que comprometesse os seus ideais ou atitudes. Não lhe pediam que agisse contra a sua boa consciência. Não lhe pe­diam que sacrificasse qualquer parte da sua liberdade como indi­víduo. As indústrias Águias seriam o seu patrão. Nat Abrahams, o empregado. Abrahams seria ele próprio. Emmich queria-o tal e qual como era.

E fora então que Abrahams compreendera o sentido da oferta. Cada grande companhia precisava do seu liberal básico para ostenta­ção, assim como cada companhia precisava do seu negro básico.

Aquela visita à suite de Emmich fora o princípio de tudo. Apesar da excitação de Sue perante a oferta, e da sua própria tentação pelo que subitamente se tornara possível, Abrahams agarrara-se a certas reservas quanto ao caso e quanto à própria mudança. Odiara a ideia de desistir de uma profissão que adorava, de se deslocar a ele e à família por dinheiro. Contudo, o dinheiro era a única coisa que lhe poderia garantir anos suplementares de vida e a segurança da mu­lher e dos filhos. Detestara a ideia de se dedicar a uma associação de companhias financeiras e impessoais, com os quartéis-generais em Atlanta, que não tinha outro objectivo senão os lucros monetários e que considerava as pessoas como membros da Segurança Social.

Todavia era uma corporação dessas que lhe prometia a liberdade individual incondicionada.

Apesar de as Indústrias Águias o bombardearem constantemente com telefonemas, Nat Abrahams mantivera-se indeciso. Tornara as negociações tão difíceis quanto possível, na esperança de que isso tornasse desnecessária a sua decisão. Recusara fazer um contrato de sete anos com as Indústrias Águias, insistindo que três anos eram o suficiente. Emmich baixara para cinco anos. Abrahams mantivera-se inabalável. Emmich concordara com os três anos. Abrahams exigira mais dinheiro, mais benefícios, definições positivas da sua posição, e a tudo Emmich acedera. Finalmente, Sue dissera-lhe que ele estivera a tentar criar um monstro onde o monstro não existia. E ele admitira que ela tinha razão.

Conversara seriamente com Sue acerca do assunto. Encararam juntos o problema do aviso da sua coronária. Encararam também o facto de que viviam apenas do que ele ganhava e que, além das apólices do seu seguro de vida, uma casa meio hipotecada e uma ridícula reserva de papéis de crédito, nada tinham para viver no futuro. Ele nunca ganharia o suficiente para viverem mais desa­fogados, para gozar uma semi-reforma, para comprar a quinta que ambos desejavam.

Numa manhã quente de domingo, com Roger, David e Deborah no banco de trás do velho carro, tinham ido até perto de Wheaton, Illinois, para ver a quinta mais uma vez. A linda casa, a cerca recente­mente pintada de vermelho, o cheiro da maquinaria, da erva verde e castanha, dos campos de trigo e aveia, tinham-nos encantado de novo. De regresso a casa, as crianças dormitando beatificamente no banco de trás, Sue e ele tinham divagado sobre o que poderia ser a sua vida em tal quinta. Ele poderia ficar ainda ligado à firma, servir como con­sultor, uma vez por semana, nos casos mais importantes. Poderia finalmente dedicar o seu tempo a escrever - a dar forma ao seu sonho -, o que poderia ser mais útil do que os casos particulares que defendia. Poderia dirigir a quinta. Poderia viver ao ar livre, viver mais satisfeito consigo próprio, ter tempo livre para Sue e para os filhos. E, acima de tudo, poderia viver. Durante três anos, poderia ter tudo isso, se quisesse.

Na manhã seguinte, Nat Abrahams telefonara a Avery Emmich para combinarem o contrato. Dentro de um mês, tinha ele prometido, estaria preparado para ir para Washington, encontrar-se com Gordon Oliver e moldar o contrato na sua forma final. E depois tomara opção na quinta perto de Wheaton.

- Nat...

Ergueu a cabeça ao som da voz de Sue e viu-a instalando-se na cadeira à sua frente.

-       Onde é que tu estavas? - dizia ela - Devias estar a um milhão de milhas daqui.

Ele sorriu.

-       Não tão longe... - e pensou: «somente à distância que se pode alcançar dentro de três anos».

Enquanto ela começava a comer o grapefruit, ele lembrou ao criado o café e a torrada melba, e depois enfiou as propostas de Emmich na pasta.

Qual é a reacção dos criados daqui perante Dilman? - pergun­tou ela com a boca cheia.

Acho que estão satisfeitos por o próximo na linha de sucessão ser alguém da sua própria cor.

Nem todos estão contentes - disse Sue. - Estive mesmo agora a falar com o empregado da nossa carruagem. Disse-me que a maior parte dos seus amigos se sente contente com o facto de um negro poder mostrar que é capaz de governar tão bem como qualquer outro homem. Mas o nosso empregado disse-me que não está assim tão contente porque ele é uma pessoa consciente e os seus amigos não. Diz que pensa no futuro, e que se sente assustado. Pensa que o país não está ainda preparado para ter um negro a chefiá-lo. Pensa que isto vais despertar uma atenção especial para o negro e poderá provocar mais ressentimento e antagonismo. Nat, devias ter visto a cara dele en­quanto falava. Tão... aflita.

Para Abrahams era ainda muito cedo para discutir a sua própria aflição. Enquanto pensava no que havia de dizer a Sue, reparou que a atenção desta fora desviada por três pessoas que, nesse momento, se sentaram na mesa do outro lado da coxia. Era um casal de meia idade, obviamente rico, e um jovem igualmente de meia idade, o cabelo cheio de brilhantina, recém-barbeado, prazenteiro e anafado, vestido com um fato de viagem cinzento de Oxford.

O anafado jovem de meia idade falava excitada e barulhen­tamente enquanto ia limpando os óculos ao guardanapo.

-       Bem, depois disso, interrompeu-se a reunião e ligamos a tele­visão - dizia ele. - Digo-vos sinceramente, não estávamos preocu­pados com a competência desse tal Dilman, pois isso não interes­sa, nos tempos que vão correndo. O governo da Nação é dirigido por leis da assembleia, e O. C. tinha lá algumas boas cabeças. A nossa preocupação está naquilo em que um presidente não pode ser assim tão bem controlado, como entrevistas, discursos políti­cos, etc. Essa gente - quero dizer, como Dilman - é esquerdista, disso não resta dúvida. Agora que um deles está no poder, poderá favorecer os comunistas. Não me interprete mal, Harold, não estou a dizer que Dilman seja um vermelho; o que digo é que pode ter uma certa simpatia por eles, estabelecer relações, deixá-los entrar aqui e tomar o controlo. Bem, Harold, nós não vamos deixar que isso aconteça - não senhor.

O homem baixou então a voz e dirigiu algumas confidências aos companheiros, e Abrahams desviou a cabeça. Deu com os olhos em Sue, pálida e desconsolada. Antes que ele a pudesse consolar, ou-viu-se o som de um garfo batendo num copo. O jovem de meia idade continuou com o barulho, ligeiramente voltado à procura do criado. Um criado alto e de cor acorreu prontamente.

Até que enfim! - gritou o jovem anafado com uma jovialidade trocista. - Que acontece com o serviço? Estão todos, hoje, dema­siado ocupados a dirigir o governo, não?

Desculpe, senhor - disse o criado. - Estava à espera que pre­enchesse o seu registo.

Oh! Por Deus, nós, desgraçados que somos, não sabemos escrever - disse o jovem de meia idade piscando o olho. - Vamos lá, Sam, uma rodada de Sanka.

O criado permaneceu um momento calado e depois, vagarosa­mente, com calma dignidade, voltou-se e dirigiu-se para a cozinha da carruagem-restaurante.

Os três do outro lado riam agora em coro, e depois inclinaram-se uns para os outros, cochichando. Abrahams não queria ouvir nem uma palavra do que eles diziam. Remexeu o chá com a cabeça inclinada para baixo, para que Sue não lhe visse a cara. Acabou o chá e, não se sentindo com disposição para fumar o cachimbo, pegou no jornal.

-Oh! Nat...

Abrahams foi forçado a levantar a cabeça.

Sue estava quase a chorar.

Estou como o nosso empregado, Nat, terrivelmente assusta­da. Doug precisa tanto de amigos!

Ele tem amigos - disse Abrahams rapidamente. - Tenho a certeza de que ninguém em Washington está preocupado com isso.

Ela olhava fixamente para a página do jornal que ele deixava voltada para ela.

Nat, se o que dizes é verdade... e eu... eu consigo ler o teu jornal de pernas para o ar... porque é que dobraram a guarda em volta dele?

Querida, não te aflijas. É uma mera rotina. Sempre que há um novo presidente dobram os agentes do Serviço Secreto à sua volta. Agora despachemo-nos e saiamos daqui. - Tentou sorrir. - Preocupa--te em tomares conta do teu marido e deixa o Serviço Secreto tomar conta de Douglass Dilman.

Depois de ter preso o fecho de segurança que ligava o coldre do revólver junto do ombro à correia da cintura, Otto Beggs enfiou o casaco preto e gasto. Dirigiu-se até à secretária, pegou na carteira de couro, esfregou o polegar na estrela de prata do Serviço Secreto, que se encontrava pregada lá dentro, para lhe dar boa sorte, e me-teu-a no bolso de dentro do casaco.

Sentiu o estômago contrair-se com fome e contudo não se sen­tia ainda pronto a enfrentar Gertrude e os rapazes ao pequeno--almoço. Sentia-se especialmente bem nessa manhã e queria sabo­rear aqueles minutos sozinho antes de se arriscar a perder essa sen­sação de bem-estar perante os seus inimigos, lá em baixo.

Cantarolando para si próprio, Beggs passeou pelo quarto velho e desarrumado, compondo-o aqui e acolá, e depois foi até à secretária arrumar os três álbuns com o seu nome impresso em letras de oura em cada um. Revendo as suas actividades das últimas vinte e quatro horas, era estranho que se sentisse tão bem.

Trabalhara onze horas em vez de oito, depois de o patrão, Lou Agajanian, chefe do Departamento da Casa Branca, o ter acordado para lhe dizer que fosse mais cedo para substituir um dos agentes de noite que estava doente com um vírus. Depois houvera toda aquela pressão e nervosismo quando se soubera a notícia que o presidente e o presidente da Câmara tinham morrido, quando os correspondentes e metade dos membros do governo tinham invadido a ala ocidental. Para tomar as coisas ainda piores, não só Agajanian, mas também Hugo Gaynor, o chefe do Serviço Secreto, tinham andado sempre por ali, atrás de cada um, nervosos e irritados. Fora de rebentar com os nervos de uma pessoa. E depois, em vez de lhe dar algum sossego em casa, Gertrude encorajara os parentes dela a virem visitá-los, inclu­indo o chato do irmão, Austin, a mulher e os pingentes dos miúdos. Estivera numa casa infernal e, a dada altura, por volta da meia-noite, ele tentara escapar, alegando que ia comprar cigarros. Dirigira-se logo ao fundo do quarteirão para ir beber umas cervejas à Estalagem do Cami­nho, mas esta estava cheia de negros selvagens e ébrios e ele regres­sara de novo a casa, amargurado, para ficar a ver a televisão até às três da madrugada.

Antes de ter desligado o aparelho, ouvira uma notícia interessan­te, que depois fora confirmada e que fizera com que ele estivesse acor­dado, a pensar, até quase ao amanhecer. A notícia interessante fora que o desmoronamento do tecto do Antigo Palácio de Mogúncia não só matara O. C. e MacPerson, mas também dois agentes do Serviço Secreto. Beggs conhecera-os bem. Um era o ajudante de Agajanian, o assistente-chefe do Departamento da Casa Branca, Gene Sonenberg, e o outro era o agente especial da Casa Branca, Leo McCune, os úni­cos de cinquenta anos do Departamento que estava acima de Beggs.

Deitado na cama, estimulado pelo que a tragédia lhe tomara possível, Otto Beggs fizera uma simples subtracção e uma adição. A subtracção consistira em tirar Sonenberg do seu lugar como ajudante em Agajanian e em tirar McCune do lugar a seguir na linha, para ocupar o lugar. Ambos tinham desaparecido. A adição consistira em pôr um sinal de mais à frente do seu nome. Ele vinha a seguir, era o próximo a ser eleito para tomar o lugar de Sonenberg como assis­tente-chefe do Departamento da Casa Branca. Tal promoção traria pro­vavelmente outras promoções. Uma vez que se deixa de estar de pé, a receber ordens, e se passa a estar sentado, a dar ordens, o mundo está nas nossas mãos. Depois dessa promoção ele poderia tornar-se, um dia, chefe do Departamento da Casa Branca, depois chefe substituto do Serviço Secreto e depois chefe-ajudante da Segurança, até que, finalmente, se tornaria chefe do Serviço Secreto, às ordens do ministro das Finanças. Dado o primeiro passo de gigante, o resto seria mais fácil de alcançar. E ele tinha tempo. Estava apenas no princípio da casa dos quarenta. Nos meses anteriores, Gertrude quisera convencê-lo de que estava já demasiado velho para conseguir alguma coisa melhor, e ele começara a acreditá-la, mas agora, subitamente, sentia-se novamente jovem e de novo naquela estrada que lhe parecera tão recta e fácil quando a iniciara em Carvalhis, Oregon, e continuara em Seul, na Coreia.

Na noite anterior, voltando-se e tornando a voltar-se na cama, perguntara a si próprio quando teria saído da estrada, onde, e como, e se, na verdade, alguma vez teria chegado a sair dela. Tentara reviver a sua curta jornada, de tal modo presente no seu espírito nos últimos anos que só a conseguia reviver como uma experiência sempre pre­sente e não pertencente a um passado.

Na Universidade do estado de Oregon ele fora invencível. Com excepção da sua cara inocente e risonha de bebé e da sua cabeça pequena, todo ele era formidável. Era grande, atlético, extraordinaria­mente ágil e rápido para o seu peso de cento e noventa libras. De­pressa se tornara o chefe da equipa de futebol, conduzindo-a à vitó­ria no Rose Bowl, já no último ano do seu curso, sendo mesmo galardoado por ter sido escolhido por votação para a segunda equi­pa do Ail-American da Imprensa Associada. Era uma figura popular e as raparigas competiam umas com as outras para lhe ganharem as atenções. Gertrude era uma delas; não era bonita, mas atraente e esperta. Ganhara a gratidão dele ajudando-o nos trabalhos de casa, e ganhara o seu respeito deixando que ele a beijasse e acariciasse, mas não lhe permitindo ir mais longe. Quando se formara já se namo­ravam a sério.

Quando o nomearam segundo-tenente da marinha, antes de o enviarem para a Coreia, casara com Gertrude e tivera uma lua-de--mel de três dias com ela, no Parque Nacional de Yellowstone. De­pois de ter desembarcado na Coreia do Sul, a tensão da batalha recor-dara-lhe o tempo do futebol e não sentira qualquer temor. Quando um oficial superior lhe ralhara por ter corrido um risco desnecessário com gasolina e lhe chamara «demasiado estúpido para ter medo», Beggs sentira-se orgulhoso. Numa noite frígida, antes do Natal, duran­te o seu décimo primeiro mês na Coreia, perto de Hagaru-ri, tornara--se um autêntico herói. Quatro marinheiros feridos encontravam-se em território inimigo e a artilharia chinesa não deixava que a equipa de socorro os fosse ajudar. Enraivecido, Beggs agarrara numa metralhadora e, atirando-se para a frente, ora deitando-se no chão ora levantando-se, dizimara os chineses e recuperara pessoalmente os quatro companheiros feridos. Por tal feito recebera a mais alta con­decoração militar americana, a Medalha Congressional de Honra, por valor em acção.

No escritório oval da Casa Branca, a medalha fora colocada ao peito de Otto Beggs pelo presidente Eisenhower. Houvera então colu­nas de fotografias e histórias, e um dos presentes de Gertrude fora o primeiro álbum. Ofereceram-lhe então dúzias de empregos executi­vos bem remunerados, e ele aceitara o melhor. Depois largara-o a aceitara outro, e depois um terceiro e um quarto, e também esses ele largara. Depois de Oregon e da Coreia, os empregos pareciam-lhe monótonos e insípidos. O que ele queria era o perigo, a ameaça, o permanente estado de alerta.

A sua nostalgia, nos sonhos que tinha quando estava acordado, era por aquele momento de clímax na Casa Branca, quando o Presiden­te Eisenhower lhe tinha dado a Medalha de Honra. Não tinha emprego, mas também não se sentia preocupado com isso, pois Gertrude pusera de parte algum dinheiro e ele costumava dizer aos amigos que «andava à procura do emprego que lhe convinha». Então, uma tarde, na cadeira de um barbeiro, folheando uma revista, encontrara exactamente o que procurava. Nessa revista vinha um artigo comemorando a morte de um oficial da polícia da Casa Branca que fora atingido a tiro em frente da Casa Blair, quando da tentativa de assassínio do Presidente Truman por dois porto-riquenhos. A sempre vigilante polícia da Casa Branca e os agentes do Serviço Secreto que estavam de guarda tinham salvo a vida do presidente. Depois a história continuava com a explicação do papel da polícia da Casa Branca como ramo do Serviço Secreto, e com a história e as arriscadas aventuras do próprio Serviço Secreto, desde o tempo do assassínio do Presidente McKinley, quando a sua primeira responsabilidade se tornara proteger a vida do presidente.

Entusiasmado com aquele emprego raro, que punha em primeiro lugar a coragem e que prometia drama, Otto Beggs escrevera ao che­fe do Serviço Secreto, Ministério das Finanças, Washington, relatando o seu passado, o seu interesse e pedindo uma posição como agente especial da Casa Branca.

A resposta fora rápida. Beggs fora convocado para fazer uma pro­va. Entusiasticamente, fizera o teste do Serviço Civil dos Estados Unidos, o exame escrito de quatro horas, o teste de memória do Serviço Secreto e o rigoroso exame físico. Transpusera facilmente todos os obs­táculos, incluindo as entrevistas pessoais. Recebera a nomeação para o Serviço Secreto, com o salário inicial de 5000 dólares por ano, com a certeza de que, quando adquirisse mais experiência, lhe aumentariam gradualmente o salário para 10 000 dólares anuais, e, uma vez que se tornasse inspector do último grau, poderia ganhar 16 000 por ano.

Apesar do dinheiro do salário não se poder comparar com o que poderia ganhar no comércio, como Gertrude lhe estava sempre a lem­brar, ele ripostava-lhe que era mais do que suficiente para o que eles necessitavam. Dissera-lhe que estava de novo a servir o país, o que valia qualquer sacrifício monetário, e que o prestígio que ele iria adqui­rindo através desses anos poderia fazer dele uma figura política com a fortuna necessária para garantir o futuro deles. Não lhe disse, porém, que o que ele na verdade sentia era que lhe estavam a pagar para ele se divertir.

E, na realidade, para Otto Beggs o princípio do novo emprego revelara-se prometedor. O entusiasmo crescera quando frequentara a escola especial de treino do Serviço Secreto em Washington. Instruí-ram-no no uso das mais modernas espingardas, revólveres e metra­lhadoras. Ensinaram-lhe judo, primeiros-socorros, combate contra incêndio, a saltar de pára-quedas, psiquiatria. Fora iniciado nos misté­rios da guerra atómica, biológica e química. Quando concluíra o treino básico, perguntaram-lhe que posição dentro do Serviço Secreto mais lhe interessava. Fora franco. Ele sabia que geralmente os principiantes tinham de passar dois anos em prática, prendendo falsificadores e burlões, antes de serem considerados aptos para um emprego de elite na Casa Branca. Todavia sentira que o seu passado lhe garantia o pedi­do de nomeação imediata para o departamento exclusivo da Casa Bran­ca. Não tinha qualquer interesse em perseguir criminosos. Desejava apenas proteger o chefe da Nação dos possíveis assassinos. Tendo recitado o seu papel, esperou confiadamente. Não esperara durante muito tempo. A ordem viera do próprio ministro das Finanças. Otto Beggs fora nomeado para membro do Departamento da Casa Branca. Não ficara surpreendido. Ele sabia que a antiga Medalha de Honra tivera alguma influência no caso.

O primeiro ano fora agradável, apesar de lhe ter causado um certo desapontamento. Esperara que os seus inspectores do segundo andar da ala oriental da Casa Branca reconhecessem o seu méri­to incontestável, nomeando-o imediatamente para um lugar junto do presidente. Em vez disso, encontrara-se entre a polícia que guardava a entrada oriental, depois a sul, depois a ocidental, da Casa. Quando fora designado para guardar os filhos do Presidente Kennedy e de­pois as filhas do Presidente Lyndon Johnson, as suas esperanças tinham tornado a subir.

Cheio de coragem e optimismo em relação ao seu futuro, nos primeiros dias dessa nomeação insistira em comprar uma casa que lhes pertencesse. Impulsivamente adquirira uma pequena e confor­tável residência de dois andares na Avenida Connecticut. Alegrara--se com a pechincha, mas Gertrude não escondera a sua apreensão. Apesar de toda a vizinhança ser ainda formada por brancos da classe média, estavam só à distância de poucos quarteirões de uma secção de negros da classe baixa. Beggs não se preocupara com isso. Tinha a certeza de que os negros se conservariam onde estavam. Se, por acaso, invadissem a vizinhança, Gertrude e ele poderiam ven­der a casa com lucro. Nessa altura já teria sido promovido, o ordena­do aumentado e poderiam ir viver para uma casa muito mais cara, nos arredores de Washington. Gertrude não se mostrava muito convencida. Ela sentia que a invasão negra estava iminente e que o mesmo não sucedia com a promoção do marido.

Como sempre, Gertrude tivera razão em ambas as coisas. A invasão negra começara lentamente no perímetro, e depois estava a avançar, para o centro, mais rapidamente. Os proprietários bran­cos, prosperando nos seus empregos e negócios e vendo a opor­tunidade de obter lucros extra, tinham vendido as suas casas e ti-nham-se mudado para outros locais. As ruas da vizinhança, pelas quais Beggs gostava de passear à noite, em breve se tornaram povoadas por uma gente na sua terça parte negra e que, uns anos mais tarde, aumentou para duas terças partes. No lugar favorito de Beggs, uma taberna de esquina conhecida pelo nome de Estala­gem do Caminho, com o seu bar, as suas bebidas e a sua varie­dade de máquinas de jogo, começara a notar--se também uma trans­formação. No princípio, quando Beggs lá ia tomar a sua cerveja da noite, costumava reunir-se com um certo número de vizinhos bran­cos, homens que eram seus iguais e que respeitavam o seu impor­tante lugar. Gradualmente, porém, os seus amigos foram desaparecendo um a um, restando apenas estranhos de pele escura, ho­mens com os quais Beggs nada tinha de comum.

De vez em quando, vencido pelos gritos cada vez mais frequen­tes de Gertrude, exigindo que se mudassem, acompanhara a mulher até aos arredores, como Silver Spring e Bethesda, para verem as casas à venda. Era pelos filhos, Ogden e Otis, pela melhoria das suas condições escolares, que ele fazia isso. Mas as novas casas pseudo--colonias eram demasiado caras. Depois de cada uma dessas explo­rações infrutíferas, Beggs prometera à mulher, que cada vez se mos­trava mais aflita, que a promoção não tardaria e que então a mudança seria possível.

Incrivelmente a promoção não havia meio de chegar. Dentro da Casa Branca e nos grandes espaços à sua volta, Otto Beggs era transferido de um lugar sem importância para outro igual. Outros agentes rodeavam o escritório oval do Presidente, iam para onde quer que ele fosse, viajavam com ele. Beggs permanecia preso à rotina e a um trabalho periférico. Quando O. C. fora eleito, as suas esperanças mais uma vez tinham subido. Uma mudança na ocupa­ção da Casa Branca prometia sempre uma mudança nas suas ocupa­ções. E, na realidade, houvera uma mudança. Encontrara-se designado para o vestíbulo da ala ocidental, ocupado principalmente pela imprensa e por visitantes que queriam falar com O. C. Não se importara, pois gostava dos repórteres, que eram importantes e que ocasionalmente o mencionavam nas suas histórias. Mas Gertrude não o deixava em paz.

Um dia, antes de entrar de serviço, pedira para falar com o chefe do Serviço Secreto, Hugo Gaynor. Aguardara na sala de espera, toda apainelada e com uma carpete vermelha, e expusera embaraça­damente o que pretendia. Gaynor mostrara-se impaciente, evasivo, e prometera a Beggs que seria tomado em conta para a próxima pro­moção. Aborrecido, Beggs procurara o seu chefe imediato, Lou Agajanian, no escritório do Serviço Secreto, junto do vestíbulo da ala ocidental, e Agajanian dissera-lhe também que ia ver o que poderia fazer. Pouco tempo depois, enquanto comia na messe do presiden­te, no andar de baixo, ouvira por acaso alguns colegas seus, que não tinham reparado nele, analisarem-se um ao outro assim como a cole­gas ausentes. Parecera-lhe ouvir citar o seu nome. Ouvira expres­sões como «cavalo de trabalho» e «não muito esperto» e «vivendo no passado». Não tivera a certeza se se referiam a ele e preferira acreditar que não. Não repetira o que ouvira a Gertrude, que se tornara dema­siado antagónica para continuar a ser a sua confidente, mas pensara no caso durante muitas noites a fio, na Estalagem do Caminho.

O que pensara fora que, embora gostasse do seu emprego, este fora um grande desapontamento para ele. Desde o princípio que to­mara como certo que o emprego lhe prometia responsabilidade, pe­rigo e aventura, oportunidades sem conta para um homem provar a sua coragem. Em vez disso, saíra-lhe um emprego como qualquer outro, com tantas aventuras como um lugar de repartição pública. Talvez o desapontamento, a monotonia do serviço diário, o tivessem amolecido. Talvez a rotina o tivesse tornado menos vivo, menos entusiasta, menos agudo e agressivo. Talvez Gaynor e Agajanian tivessem visto isso e sen­tissem que ele não era digno de confiança para ser um dos seis a dez agentes designados para proteger o presidente, ou que merecesse tor-nar-se inspector. Não sabia.

Todavia, apesar da recente rabugice de Gertrude para que dei­xasse o Serviço Secreto e entrasse para o negócio de propriedades juntamente com o seu bem sucedido e famigerado irmão Austin, ele não se decidia a fazer a troca. No negócio poderia arranjar dinheiro mas encontraria também o permanente anonimato. Como agente, sem­pre tinha a esperança de se poder tornar conhecido. Podia igualmen­te, apesar da rotina, sentir que estava num centro de vida onde qual­quer coisa podia acontecer. Certa vez fora entrevistado por um jornalista qualquer sem importância, um fulano chamado George Murdock. Bem, apesar do que ouvira aos grandes repórteres, Murdock não era assim tão sem importância. O seu Sindicato dos Três Esta­dos sempre possuía doze jornais, mesmo que alguns deles fossem apenas semanais. De qualquer maneira, aquele Fulano, George Murdock, perguntara-lhe o que lhe agradava e o que não lhe agrada­va na profissão de agente. Não se lembrava da resposta que dera, mas o que Murdock lhe atribuíra fora: «Para mim, a atracção que o Serviço Secreto exerce é semelhante à da maior parte dos empregos que fazem respeitar a lei. Mas não o considero apenas como um simples emprego. Se assim o considerasse, já o teria trocado há muito por posições mais lucrativas que me foram oferecidas. Ele encerra mais coisas que um simples emprego. Como agente, sentimos que estamos a prestar um serviço real a toda a gente. Há sempre o suficiente para nos manter permanentemente alerta. A rotina é algo que não existe nele. Talvez não seja tão excitante como normalmente as pessoas pensam, mas cada minuto que passa é um minuto de tensão, e não há margem para erros. O nosso treino mais importante é competir contra o que é súbito. Bem, quando se tem de estar permanente­mente alerta contra o que é súbito não se tem tempo para se estar aborrecido.» George Murdock dera-lhe uma cópia da entrevista tal e qual como aparecera no Sandusky, de Ohio. Supunha que nunca nin­guém importante, como o presidente, Gaynor ou o Agajanian, a tinha lido. Mas ele lera-a. Estava na página sete do seu terceiro álbum.

Tudo isso passara pela sua cabeça na noite anterior, antes de ter adormecido. Agora, completamente vestido, pronto para o peque-no-almoço e o serviço diário que começava dentro de uma hora, con­tinuava de pé, imóvel, em frente dos álbuns. Abriu o que estava em cima, na página sete. Lá estava. Tornou a ler a citação de Murdock. Lembrava-se dela correctamente, palavra por palavra.

Otto! - gritou-lhe Gertrude, lá de baixo, da escada. - Otto, que­res ver os teus filhos antes de irem para a escola, ou não?

Vou já - respondeu ele, quase alegremente.

Sentia-se bem. Estava impaciente para ir para o trabalho. O vestí­bulo da ala ocidental devia assemelhar-se, nesse dia, a um manicómio. Seria entrevistado sobre o Sonenberg e o McCune, que tinham morrido em Francoforte juntamente com o presidente, na noite anterior. Pensaria no que deveria dizer, durante o caminho até à Casa Branca. Poderia ser que estivesse demasiado ocupado para poder dizer alguma coisa. Sabia que Agajanian ou Gaynor deviam estar à sua espera.

Saiu, com um passo elástico, do quarto e desceu as escadas, tão leve e rápido como se movera em Oregon e na Coreia. Embora pesasse agora duzentas e dez libras em vez de cento e noventa, e talvez o seu corpo estivesse mais gordo devido à cerveja, sentia-se orgulhoso de ainda ser forte, rápido e sem uma polegada de gordura.

Entrou na sala de jantar, onde Gertrude, no seu usual desarranjo matinal, tentava forçar Ogden, de dez anos, e Otis, de oito, a não deixarem nada nos pratos. Enquanto se sentava reparou, como já lhe acontecera várias vezes nos últimos tempos, que Gertrude, ou­trora agradavelmente magra e esbelta de figura, se tornara aguçada no nariz e boca e flácida debaixo do roupão cheio de nódoas. Repa­rou também que nem ela nem os filhos lhe tinham dado sequer os bons-dias. Desta vez não permitiria que qualquer falta de respeito viesse perturbar a sua boa disposição.

-       Bem, Gertie, quais são as más notícias de hoje? - disse com um sorriso.

Quase que se esquecera quanto esta saudação, que ele come­çara a usar ultimamente para se antecipar aos ataques histéricos da mulher, a enfurecia.

A cabeça dela virou-se na direcção dele, ameaçadora como o cano de uma metralhadora.

A que horas te deitaste ontem?

Não sei bem. Duas ou três. - Pôs manteiga e doce nas suas bolachas. - Não podia despregar os olhos do ecrã da televisão. Que noite!

Aparentemente não foste capaz de despregar os olhos da tele­visão durante o tempo em que o meu irmão cá esteve. Suponho que foste para aquele horrível bar!

Só lá fui comprar cigarros. - Partiu um bocado de uma bolacha e saboreou-a com prazer. - Depois parece-me que andei a pé por aí. Estava muito agitado com toda aquela coisa de Francoforte.

Eu nem sabia o que havia de dizer a Austin. Ele só pretende ajudar-te. Mesmo que seja meu irmão, não tem qualquer obrigação de o fazer.

Agradeço muito - disse Beggs ironicamente. Fixou os olhos nas cabeças dos filhos. - Ogden... Otis... onde está a vossa boa edu­cação? Nem sequer ainda ouvi olá!

Ambas as cabeças loiras se levantaram e baixaram.

-Olá, pai... Olá!

«Olham para mim como se olha para uma parede» - pensou ele. Gertrude fizera um trabalho bem feito, incitando-os contra ele. Havia uns anos atrás ter-se-iam precipitado sobre ele, pedindo-lhe que contasse mais histórias dos desafios de Oregon, das batalhas da Coreia, os peri­gos do seu emprego na Casa Branca. Nessa altura olhavam para ele com admiração. Só o ataque diário e aberto de Gertrude reduzira o seu heroísmo e autoridade passados ao presente símbolo do seu fracasso.

Decidiu não os perder inteiramente.

-       Bem, rapazes, vai ser um grande dia o de hoje, na escola, com um novo presidente, hem?

A voz irada de Gertrude fez cair uma cortina de discórdia entre os filhos e o pai.

Falas como se fosse uma boa notícia. Tens um presidente negro. Tens dois filhos numa escola predominantemente negra. Têm ambos medo que os escorrassem e os maltratem.

Por que é que vês sempre as coisas tão negras? - perguntou Beggs. - Por que é que tudo tem de ser assim tão mau?

Porque é mau, é mesmo mau - disse Gertrude, atirando com o guardanapo de papel amarrotado para cima da mesa. - Queres real­mente agora uma má notícia? Não me importo de ta dar. Soube-a agora mesmo pelo leiteiro. Os Schearers vão mudar-se para outro sítio. Já puseram a casa à venda. Nem tiveram a coragem de no-lo dizer. Tive de o saber pelo leiteiro.

Automaticamente as sobrancelhas de Beggs arquearam-se de surpresa. Os Schearers eram os últimos dos antigos, os seus velhos amigos que tinham continuado junto deles. Gertrude e ele encontra-vam-se com os Schearers pelo menos duas vezes por semana.

Gertrude continuou:

Ele deve ter conseguido o novo emprego que queria. Bem, pelo menos eles têm algum juízo. Têm o juízo suficiente, mesmo que tu não o tenhas. E eu penso nos rapazes agora, especialmente agora, e em nada mais.

Também eu penso neles - ripostou ele zangado. Fez uma pau­sa, para se controlar, e depois disse: - Vai haver uma grande mudan­ça, precisamente agora. Não ouviste na televisão, nem leste nos jor­nais?

O quê? Li o quê?

Sonenberg e McCune estavam na mesma sala que o presi­dente, em Francoforte. Também morreram. Isso significa que o lugar de assistente do Agajanian na Casa Branca está vago, e eu sou o próximo na linha. Significa um sólido aumento.

Gertrude pareceu esvaziar-se de aborrecimento.

Oh! Essa! Já ouvi essa antes. Tens algum contrato que afirme que o obterás?

É a minha vez, Gertie. O chefe Gaynor sabe que eu sou o pró­ximo da linha. Além disso, eu estava a pensar - sentia-se manhoso, com confiança em si próprio - que o facto de nos termos mantido nesta vizinhança vai ajudar-nos. O novo presidente é negro e, conhe­cendo eu a política de Gaynor como a conheço, tenho a certeza de que este lhe quer ser agradável. Gaynor sabe onde nós vivemos e tal facto mostra que eu não tenho qualquer espécie de preconceito - na realidade, mostra que até gosto dos negros e que me dou bem com eles. Gaynor pensará que a minha promoção será agradável aos olhos do Presidente Dilman.

-       Tenho a certeza de que Dilman nem sabe que tu existes – disse Gertrude - e também não tenho a certeza de que Gaynor o saiba, considerando os últimos anos. - Ele ficou furioso com esta observa­ção, principalmente em frente dos rapazes, mas, antes que lhe pudes­se responder, já ela estava de pé, empurrando Ogden e Otis para a porta, enfiando-lhes os braços nos casacos. - Ponham-se a caminho - dizia ela - e tenham cuidado ao atravessar as ruas, e, se houver algum sarilho, vão ter com o director.

Otis já passara a porta, mas o mais velho, Ogden, ficara para trás.

Pai, a noite passada Júnior Austin disse que há sempre um feria­do quando morre o presidente. Espero que seja verdade.

Quando chegar à Casa Branca vou tratar disso - disse Beggs alegremente.

-       Ah! - riu Ogden - Isso só quando as galinhas tiverem dentes. Corado, Beggs gritou:

-       Se lhes consigo arranjar esses malditos selos da secretária do presidente, também consigo... - Era já demasiado tarde. O filho mais velho já se fora embora.

Desencorajado, esperou enquanto Gertrude entrava de novo na casa de jantar. Ela tentou puxar o cabelo para trás, desimpedindo o rosto, abotoou o roupão e depois ergueu a cabeça e fixou o marido nos olhos. As linhas duras e ameaçadoras tinham desaparecido da sua tes­ta e boca. Quando falou, o seu tom era mais implorativo que acusador.

Otto, eu sei quanto essa promoção significa para ti, e... e espe­ro que a consigas - disse ela. - Sei o que o Serviço significa para ti e todos esses excitamentos e os álbuns. Mas há mais na vida, Otto. Mesmo que consigas essa promoção...

Consegui-la-ei - disse ele com força.

Está bem, acredito. Mas, mesmo assim, teremos de pedir dinhei­ro emprestado e de economizar bastante para podermos comprar uma casa melhor numa vizinhança mais... mais decente e própria para os rapazes.

-       Cá nos arranjaremos; é tudo o que conta. Ela deu uns passos em frente.

Por que tornas as coisas tão difíceis para ti e para nós, Otto? Já faz um ano que Austin concordou que entrasses para a Chevy Chase, como sócio. Não é nenhum favor de cunhado. Ele está a ganhar dinheiro às mãos-cheias. Quer expandir-se. Ele respeita-te, apesar... apesar de se entusiasmar, às vezes demasiado, com o seu sucesso. Está sempre a dizer que uma pessoa com o teu passado seria útil no seu negócio.

Não preciso da caridade de ninguém - e então da dele ainda muito menos.

Ela implorou:

Otto, não se trata de caridade. Terias de trabalhar para conse­guires alguma coisa. Há seis meses parecias mais cordato. Foi por isso que eu lhe pedi que te emprestasse aqueles livros sobre em­préstimos de propriedades para que pudesses estudar e fazer os exames. Possivelmente nunca chegaste sequer a abri-los. Devem estar a apodrecer dentro da gaveta da secretária. Mas tu és suficientemen­te esperto para conseguires isso. Olha como entraste tão depressa para o Serviço Secreto, passando todos aqueles testes, quando o qui­seste. Podias tirar o curso de agente de propriedades. Farias com que o negócio do Austin rendesse o triplo.

Fazendo o quê? Andando em casas cheias de correntes de ar, a mostrar a casais idiotas a vista, os quartos, as retretes? E isso é vida, depois do que eu vivi? Escuta, Gertie, deixa as coisas comigo, deixa-me cá fazê-las ao meu modo e prometo-te...

O telefone tocou na sala e ele parou.

-Vou atender- disse Gertrude. - Provavelmente é a Mae Schearer. Saiu da casa de jantar. Ele começara a comer o seu iogurte, quando a viu regressar.

-       Otto, é o chefe Gaynor a telefonar-te da Casa Branca.

Ele deu um salto da cadeira, sentindo um súbito palpitar nas têm­poras.

-       Eu sabia, eu sabia. Diz-lhe que vou já. Atendo lá em cima. Queria saborear o triunfo sozinho. Precipitou-se para fora da casa de jantar e galgou os degraus da escada dois a dois. Mal podendo respirar, agarrou no auscultador do telefone que se encontrava em cima da secretária.

-       Está... podes ligar, Gertrude... está?

Ouviu-a ligar, depois ouviu a voz longínqua de uma secretária a dizer-lhe para esperar um momento, e por fim ouviu a voz rouca de Gaynor, tão bem-vinda nessa manhã.

Beggs? Daqui fala o chefe Gaynor.

Bom dia, chefe, la mesmo agora partir para aí. Teve sorte em me encontrar ainda em casa. Tive muita pena do que sucedeu ao Sonenberg e ao McCune.

Acontece, acontece - disse Gaynor, impaciente. - Só desejáva­mos que eles pudessem ter feito alguma coisa para salvar a vida do presidente. Bem, o que está passado está passado. Temos uma mis­são a cumprir, e hoje é mais difícil do que nunca. Beggs, telefonei-lhe para lhe dizer que fomos forçados afazer algumas mudanças por aqui...

O seu coração deu um salto.

Sim, certamente.

E tivemos de fazer umas trocas nos três serviços. Sei que você está no serviço da manhã-tarde. Mas por enquanto vamos pô-lo agora no da tarde-noite. Não precisa de vir cá agora. Descanse. Entrará às quatro horas da tarde e sairá à uma hora da manhã.

O seu coração bateu mais aceleradamente. -O senhor... o senhor mencionou mudanças, chefe. Isso é tudo? Quero dizer, só o tempo?

Na realidade, não, e ainda bem que você me lembrou. Um segundo, parece-me que há outra chamada... não, afinal está tudo bem. Sim, você terá outra missão. Lou Agajanian disse-me que você se dá bem com os negros.

Isso é verdade, chefe - disse ele apressadamente. - Vivo aqui em Connecticut, no meio deles, há anos. Alguns dos meus melhores amigos...

Óptimo - interrompeu Gaynor. - Nós nomeámo-lo para ser um dos doze agentes especiais que guardarão pessoalmente o Presi­dente Dilman. Que tal?

Confuso, esperou que o chefe Gaynor lhe dissesse o resto, mas chegou à conclusão de que ele nada mais tinha para lhe dizer.

Não... não percebo, chefe. Quer que eu guarde o presidente? É essa a minha nova missão?

Sabia que ficaria contente. Agajanian disse-me que era um trabalho que você sempre desejara.

Beggs sentiu-se frenético.

-       Chefe, isso era o que eu desejava há quatro ou cinco anos atrás. Mas agora o caso é totalmente diferente. Eu... eu tenho a pri­mazia, agora que McCune morreu. Sei que o Sonenberg deixou uma vaga de inspector. Imaginei que o procedimento legal... quero dizer, imaginei que essa vaga de assistente do Lou seria...

Já está preenchida, Beggs. - O tom do chefe Gaynor era brusco e formal. - Há uma hora dei o nome do agente especial Roscoe Prentiss para o Ministério das Finanças e eles concordaram.

Prentiss? - Beggs mal se podia controlar para não gritar ao telefone. - Ele entrou para o serviço quatro anos depois de mim. Está no fim da lista. Sou eu que...

Espere um minuto, Beggs, acalme-se. Você está a criar um siste­ma de primazia que não existe. O tempo de serviço no Serviço Secreto não existe nos regulamentos. Certamente que é um factor - tem-no sido sempre quando fazemos promoções. Mas tentamos igualmente colo­car o homem adequado na missão adequada numa altura adequada.

Beggs sentiu-se tremer de justa indignação.

-       Quem é o Prentiss? Que tem ele que eu não tenha? – Então ocorreu-lhe a razão. - Não me diga. Já sei. É porque ele é de cor. Foi promovido a inspector porque é negro.

Fez-se um momento de silêncio do outro lado da linha e, por fim, chegou até ele a voz de Gaynor, num tom menos brusco.

Não estou em posição de dizer qual foi o factor decisivo, Beggs. Eu... - a sua voz tornou-se mais baixa, mais confidente, numa igual­dade de homem para homem. - Só quero expor-lhe o caso sob o ponto de vista de um ser humano razoável para outro; que fazia você no meu caso? Desde a noite passada que estamos numa situação rara, pois temos um presidente negro. Não acha justo que pelo me­nos um dos seis executivos do Serviço Secreto pertença ao povo dele? Se eu não fizesse isso, ele poderia sentir que estávamos a ser parciais e mostrar-se pouco benévolo em relação ao Serviço.

Foi o Presidente Dilman quem pediu isso?

Não, não, ele nem sequer sabe disso. Foi apenas algo que nós achámos conveniente nesta altura.

Diabos, chefe, não é justo, diga lá o que disser. Isso é discrimi­nação contra mim, porque sou branco. É não me darem o que eu mereço. Não me agrada nada.

Beggs, estamos numa altura em que precisamos de ser razoá­veis. O facto é que lhe estamos a dar algo melhor, algo que você sempre desejou, um lugar mesmo junto do Presidente dos Estados Unidos. Na realidade, e Lou falará depois disso consigo, haverá um... um aumento simbólico. E para o futuro lembrar-nos-emos de si. Agora procure levar a coisa menos a peito e vá ter com Lou às quatro horas. Até à vista.

Sem ouvir nada, Otto Beggs pousou o auscultador. A vida enga-nara-o mais uma vez. Sabia que fora vencido. O seu olhar dirigiu-se para a porta, mas não se sentia com coragem para enfrentar a Gertrude.

Arrastou os pés até à janela do quarto e olhou para a rua movi­mentada. Havia muita gente a passar, na sua maioria negra. Até en­tão, a sua atitude em relação a eles estivera sempre entre o ressenti­mento e a tolerância. Agora sentia-se azedo perante eles todos. Porque o chefe queria engraxar um novo presidente que era negro e que não merecia ser presidente, Otto Beggs fora posto de lado em favor de um colega cujo único predicado era a sua pele negra. E o pior de tudo era que lhe atiravam com mais alguns pence, dizendo-lhe que arriscasse a sua vida para proteger a de um político de cor.

A injustiça de que estava a ser alvo sufocava-o. Ele, um herói da guerra, que quase dera a vida pelo seu país, que quase fora morto por tentar proteger aqueles idiotas que tudo o que sabiam fazer era estar entrincheirados a salvo, mandar, de vez em quando, umas balazinhas, e andar atrás das coreanas. Ele, que recebera a Medalha de Honra das mãos de Eisenhower, tinha de estar às ordens de um presidente negro, cujo único feito de guerra fora estar sentado no Pentágono. Deus do céu, para onde caminhava o mundo?

Estava finalmente pronto a enfrentar a Gertrude.

Saiu do quarto e desceu as escadas. Ela estava à espera, ao fundo das escadas, sem pestanejar, enquanto os seus dedos mexiam distraidamente nas franjas do roupão e o observava a descer as es­cadas. Ele sentiu que tinha o rosto lívido e sabia que ela o notava, e estava-se nas tintas para isso.

Olhou para ela fixamente e ela não disse nem uma palavra.

-       O meu serviço foi mudado. Só vou para o trabalho às quatro horas. Tenho ainda bastante tempo e quero empregá-lo. Onde diabo estão aqueles livros de propriedades? - disse Otto.

Ela engoliu antes de responder, acenando rapidamente com a cabeça.

-       Vou... vou procurá-los e trago-tos já, Otto.

Levantou a saia comprida do roupão para se mover mais rapida­mente e subiu apressadamente as escadas. Ele sentiu-se satisfeito com o procedimento dela. Dessa vez ela tivera suficiente respeito por ele para não lhe dizer mais nada.

Ao fim da tarde, ainda sentada à sua secretária, Edna Foster aper­tava com força as mãos uma na outra, enquanto observava George Murdock, que lia a curta carta que ela retirara momentos antes da máquina de escrever.

Os seus olhos não largavam o noivo. Este passava os dedos pelo cabelo, loiro e ralo, e depois pelas faces pálidas, e em seguida coçava o queixo e o nariz aquilino.

Os seus olhos, pequenos e translúcidos, tornaram-se mais peque­nos quando os levantou da folha de papel e os ergueu para ela.

-       Não, Edna, não lha entregues, ainda não.

Ela tornou a pegar na sua carta pedindo a demissão, dirigida ao Presidente Dilman, tossiu e disse:

Esperam que todo o pessoal faça o mesmo.

Flannery disse-nos que o Presidente Dilman ia manter todo o pessoal de O. O E anunciarão também que ele manterá igualmente todo o seu Gabinete. Precisamente como fizeram, ao princípio, Harry Truman e Lyndon Johnson.

George, é impossível. Como é que eu posso trabalhar para ele depois de ter trabalhado para O. O?

Os olhos de Murdock tornaram-se ainda mais pequenos.

É essa a razão, Edna?

Não sei - disse ela rapidamente. - Ele tem a sua própria secre­tária, lá no edifício do Senado. Ela é de cor e deve compreendê-lo melhor do que eu. E, para mim, seria tão difícil!

George Murdock abanou a cabeça.

Não, isso não é verdade, Edna. Tu conheces o trabalho. A outra rapariga não. Dá~lhe uma oportunidade. Tu mesma admitiste que nem o conheces. Ainda nem falaste com ele hoje.

Ele está há horas fechado na sala do Gabinete de Ministros com o Eaton, o Talley e todos os outros. Mesmo que eu o conhecesse, seria...

Ela parou e escutou. Ouviu o som de muitos passos saindo da sala do Gabinete e caminhando no chão de azulejos do corredor. Disse então:

-       Acabaram agora, George. É melhor ires-te embora. Ele pode entrar aqui e não pareceria bem.

George Murdock levantou-se e ela imitou-o, sentindo-se então contente por não ser mais alta do que ele, embora suspeitasse que era por ele usar uns talonetes especiais nos tacões. Ele dirigiu-se para a porta que dava para o corredor.

- Pensa duas vezes, Edna, antes de te demitires. Podes ajudá-lo. E talvez fosse também melhor para nós dois o estares agora ocupa­da. Até logo à noite.

Ficando sozinha, com a carta na mão, Edna tornou a lê-la e en­tão, pegando na caneta, acrescentou uma vírgula que faltava. Ela sabia que George era mais esperto do que ela, e por isso tomava sempre em consideração o seu conselho. Mas desta vez não era ele quem tinha razão, porque não podia ver a barafunda que ia dentro dela, e não tinham tido tempo para discutir acerca disso. Todavia George apercebera-se do que estava na base do seu desconforto. Ele não acreditara que ela se quisesse demitir por causa da perda de O. C. Forçara-a a confessar que pensava que uma secretária de cor poderia servir melhor um presidente negro.

Perguntava agora a si própria o que é que a sua demissão signi­ficava. Por que é que pensara que Dilman deveria ter uma secretá­ria de cor? Ela nunca possuíra sentimentos fortes contra ou a favor dos negros. Na verdade, através de toda a sua carreira nunca tivera um contacto íntimo com eles. Para ela eles não eram pessoas, mas uma questão de controvérsia que, durante os últimos dois anos, rodo­piara à volta do escritório de O. C. e que entrara e saíra da sua máquina de escrever como um problema de direitos civis. Como O. C, ela era a favor deles. Como Lincoln, ela não acreditava na escravi­dão, discriminação ou preconceitos. Considerara-se sempre progres­sista e de espírito aberto e querendo sempre o que era certo.

Nunca se lhe depara o problema de conhecer realmente bem um negro, ou de ter de trabalhar intimamente com um. Na noite ante­rior, o problema surgira-lhe e durante todo aquele dia, cheio de emo­ções, ela tentara avaliá-lo. Sem definir precisamente porquê, chega­ra à conclusão de que devia demitir-se. Fizera vários rascunhos da carta, sempre que tivera algum tempo livre, e finalmente dactilografa-ra-a. Telefonara para o vestíbulo da ala ocidental, onde se apinhavam os membros da imprensa, para apanhar qualquer notícia que hou­vesse, e pedira a George que viesse ter com ela, mas só tinham con­seguido estar juntos durante uns cinco minutos.

Perguntou a si própria se veria o Presidente Dilman ainda nesse dia. Este chegara, mas já tarde, de manhã fizera uma breve aparição perante os microfones da televisão e da rádio, apenas para exprimir, em não mais do que trinta palavras, a sua mágoa perante a perda nacional e para prometer que a continuidade do antigo governo não seria alterada.

Depois disso passara toda a tarde na sala do Gabinete, ladeado pelo ministro de Estado Eaton e pelo governador Talley, recebendo che­fes do Congresso e vários embaixadores, aprovando os preparativos do funeral, assinando uma proclamação mais pomposa num período de luto, preparando uma declaração para toda a Nação. Só houvera uma alteração nos planos. Edna tinha feito o horário para que os membros do Gabinete o visitassem separadamente, um a um. Dilman, porém, insistira em os receber em grupo, durante cinco minutos. Talley saíra do Gabinete para lho comunicar, e Edna tomara as necessárias disposições. A primeira reunião do Gabinete durara sete minutos, e, segundo Tim Flannery, o Presidente Dilman pedira um minuto de ora­ção silenciosa por O. C. e McPherson, e depois fizera um pequeno discurso prometendo que tentaria servir o país, continuar os progra­mas de O. C. com a ajuda de todos eles, e concluíra pedindo a todos que se mantivessem nos seus cargos.

Edna ouviu vozes abafadas no corredor e depois o som de pas­sos em direcção ao Escritório Oval. A intuição disse-lhe que o Presi­dente Dilman se encaminhava para a sua secretária, pela primeira vez, no primeiro dia do seu cargo, indubitavelmente seguido pelos guarda-costas do Serviço Secreto.

Quis assegurar-se que assim era.

Foi silenciosamente até à espessa porta que separava o seu es­critório do Escritório Oval. No meio da porta, à altura dos olhos, havia um minúsculo ralo com uma lente de aumentar. Eram muito poucos os visitantes, até mesmo membros do Governo, que davam pela existên­cia do ralo. Ocasionalmente, O. C. mostrava-o jovialmente a alguns hóspedes ilustres. Ele gostava de dizer, para grande embaraço de Edna: «Foi a minha mulher, Hesper, quem mandou fazer ali aquele ralo, para que Miss Foster me possa trazer sempre debaixo de olho. Temos um grande número de secretárias bonitas por aqui, sabem?» Na verdade, o ralo fora feito para que a secretária particular do presidente pudesse, despercebidamente, espreitar para dentro do Escritório Oval, para ter a certeza, antes de entrar, de que o chefe do Executivo nao estava ocupado com visitantes.

Edna Foster pôs-se em bicos dos pés e colocou o olho direito em frente do ralo.

A lente aumentava a secretária de O. C, feita de madeira do H. M. S. Resolute, um barco que fora devolvido à rainha Vitória pelo ministro americano James Buchanan, num esforço para ajudar a pro­curar uma expedição que se perdera no Árctico. Uns anos mais tarde, a rainha Vitória reenviara uma parte do barco ao Presidente Hayes, no formato de uma secretária. A partir de então fora sempre conhecida pelo nome de secretária Buchanan.

Edna distinguia perfeitamente, enquanto observava a venerável secretária, os numerosos presentes do Japão, Equador, Itália e Baraza, trazidos por emissários ao Presidente. Igualmente visíveis eram os retratos emoldurados da mulher e do filho adolescente de O. C.

Baixando a vista, Edna podia distinguir o centro da sala, até ao símbolo presidencial bordado no tapete verde. Olhando para a direi­ta, via a antiga cadeira estofada de O. C, colocada entre dois sofás.

Além dos móveis, o Escritório Oval estava vazio.

Subitamente a porta do corredor abriu-se e entrou um agente do Serviço Secreto, aquele que se chamava Beggs, e começou a abrir a corrente. Um momento depois entrou o Presidente Dilman. Ninguém o seguia.

Sabendo que aquela era a sua primeira visita como chefe Exe­cutivo do país ao que era agora o seu escritório e que o fora de todos os presidentes desde 1909, Edna Foster observou a cena, fascinada.

Douglass Dilman chegara hesitantemente até ao meio da sala. Permaneceu aí, como se não soubesse para que lado se virar ou o que fazer, como alguém que não tivesse a certeza de ter encontrado a morada certa. Edna examinava-o. Embora o ralo o aproximasse e o aumentasse, parecia-lhe mais pequeno do que na noite anterior. A sua cara negra e larga reflectia a mais perfeita confusão. Esfregou o nariz e voltou-se lentamente, olhando para as três janelas por detrás da secretária e para as duas bandeiras, a americana e a presidencial. Finalmente o seu olhar fixou-se na própria secretária.

Edna sentiu o coração apertado, não por não ser O. C. quem ali se encontrava, não por ser um estranho que estava no seu lugar, mas pelo desamparo que a expressão e a atitude de Dilman evidenciavam.

O seu fato antracite parecia demasiado novo, demasiado descon­fortável e comprido nas mangas. Tinha o aspecto do proprietário de uma sapataria, enfarpelado no seu fato domingueiro, à espera de uma entrevista por causa da nova licença.

Sentiu que devia ir ter imediatamente com ele, antes que ele viesse ter com ela.

Afastando-se do ralo, Edna Foster dobrou a carta de demissão, pegou na lista das chamadas e mensagens urgentes que preparara para o presidente e no bloco de estenografia, e, abrindo nervosa­mente a porta, entrou no escritório presidencial.

Bom... bom dia, Sr. Presidente.

Como está, miss Foster? Estava... estava mesmo agora a per­guntar a mim próprio onde estaria.

Houve um número infinito de chamadas e mensagens. Algu­mas podem ser importantes. Não quis estar a interromper as suas reuniões, no... no primeiro dia mas... - Pegou na lista e entregou-lha. - Dactilografei-as detalhadamente. Se quiser ditar.

Começou a encaminhar-se para a cadeira do costume, junto da secretária de O. C, mas Dilman não se mexeu donde estava. Então ela parou e esperou.

Os olhos dele estavam fixos na secretária. Depois desviaram-se para os sofás, do outro lado da sala. Indicou um sofá.

-       Acho que ali estaremos mais confortavelmente instalados. Ela acenou com a cabeça, dirigiu-se rapidamente para a porta que dava para o Jardim das Rosas, acenou para um agente do Ser­viço Secreto e fechou-a. Depois começou a andar em direcção à outra porta aberta, a que dava para o corredor.

Dilman, que chegara junto da cadeira estofada, disse:

Que está a fazer? Espantada, Edna respondeu:

Estou a fechar as portas para ficarmos isolados. Dilman não escondia a sua preocupação.

Não. Deixe essa aberta.

-       Sempre me disseram para o fazer, para as fechar. O que tiver para ditar - pode ser pessoal.

Mas deixe essa porta aberta - disse Dilman. Ela estava surpreendida com a severidade dele.

Bem, eu - encolheu os ombros. - Muito bem, Sr. Presidente.

Antes que ela pudesse chegar ao sofá, ele cortou-lhe o cami­nho. A sua aflição era óbvia.

Deixe-me - acho que é melhor eu explicar-lhe, disse ele rapi­damente. - Penso que posso ser honesto consigo. Afinal você era a secretária confidencial de O. C...

Certamente - disse ela admirada.

Dilman hesitou. Os seus olhos estavam pregados no chão. -Uma vez o Presidente Eisenhower nomeou um negro, E. Frederic Morrow, para um cargo executivo na Casa Branca. Morrow pediu uma secretária à delegação da Casa Branca. Eram todas rapari­gas brancas especialmente treinadas. Ninguém quis aceitar o em­prego. Segundo Morrow: «Nenhuma quis a honra de trabalhar para um patrão de cor.» Portanto Morrow permaneceu sentado no seu escritório da Casa Branca, sem secretária e sem saber o que havia de fazer. Depois, ao fim do dia, apareceu-lhe timidamente uma rapariga branca. Ela sabia que Morrow estava aflito e sentia que não cumpria o seu dever se não se oferecesse para o emprego. Quando a rapariga branca apareceu, disse Morrow, «deixou ficar a porta aberta atrás dela, como protecção, e recusou entrar e sen-tar-se» - Dilman fez uma pausa. Nunca pude esquecer isto. No Senado ficava sempre com uma porta aberta quando estava a tra­balhar com alguma secretária branca ou quando tinha alguma visi­tante branca. Acho... acho que trouxe o mesmo sentimento comi­go aqui para a Casa Branca. Desculpe a minha sensibilidade, Miss Foster. Agora, pelo menos, já pode compreender.

Comovida, Edna teve vontade de desatar a chorar. Quando Dilman levantou os olhos para ela, procurou controlar a voz, mas sentia-a a tremer.

-       Penso que a porta do presidente deve estar fechada.

Foi até à porta que dava para o corredor, fechou-a com força, e, sem olhar para ele, sentou-se no sofá.

Dilman estava ainda de pé, por detrás da cadeira estofada. Nem olhava para a lista que tinha na mão.

O governador Talley disse-me que eu devia anunciar ao pes­soal da Casa Branca que quero manter todos os membros. É ver­dade?

Sim, Sr. Presidente.

Começarei por si, Miss Foster. Fica?

A medida que ele ia falando, ela separara do bloco de estenogra­fia a carta de demissão e depois enterrou-a na algibeira da saia.

Sim, Sr. Presidente - encontrou-se a dizer. - Sentir-me-ei hon­rada em ficar. Obrigada.

Agradeço-lhe - disse ele com um pálido sorriso. - Então você é a minha primeira nomeação como Presidente dos Estados Unidos. Depois tratarei das outras.

Eficientemente ela abrira já o bloco de estenografia, pegara num lápis e esperava.

Ele ainda nem sequer consultara a lista. Os seus olhos estavam fixos nas três pinturas navais colocadas sobre a pedra da chaminé.

-       Miss Foster, lembra-se do que Harry Truman disse, depois de F. D. R. ter morrido e de ele próprio se ter tornado presidente? Disse: «Sinto-me como se a Lua, as estrelas e os planetas tivessem caído em cima de mim.» E aos repórteres disse: «Tenho às costas a mais terrível responsabilidade que algum homem já teve. Se vocês cos­tumam rezar, então rezem por mim.» E Lyndon Johnson? Esquece­remos alguma vez a sua saída do avião, no Aeroporto de Andrews, acompanhando o caixão do Presidente Kennedy? Lembra-se, Miss Foster, ele foi aos microfones e disse: «Farei o melhor que puder. É tudo o que posso prometer. Peço a vossa ajuda - e a de Deus.» Pois bem, Miss Foster, é assim que eu me sinto. Precisamente como Harry Truman e Lyndon Johnson se sentiam.

Edna tentou encontrar a voz.

Penso que todos compreendem isso, Sr. Presidente.

Compreenderão mesmo? - Olhou para ela distraidamente. -Não sei.

Rezarão por si e... ajudá-lo-ão. Sei que o farão, do mesmo modo que ajudaram Harry Truman e Lyndon Johnson. As coisas não são diferentes agora.

Os olhos dele estavam fixos nela.

-       São diferentes, são... Eles não eram pretos. Depois, subitamente, sorriu.

-       Certamente, ainda que ninguém dê a sua ajuda, podemos con­tar sempre com a de Deus. Apesar de tudo, nós não sabemos se Ele é branco ou preto.

E então sentou-se na cadeira estofada e sentiu-se pronto para começar.

 

Recostado no assento de trás do carro à prova de bala da Casa Branca, Douglass Dilman sentia-se nessa manhã como se sentira todas as manhãs da semana anterior, como se fosse um prisioneiro que era transferido de casa para a cela.

Através do pára-brisas do carro podia ver a escolta de motos que o precedia, acedendo e apagando luzes vermelhas. De cada lado do car­ro rugiam mais motos. Atrás de si podia ouvir o barulho do carro de protecção que transportava o resto dos seus guarda-costas.

Dentro do luxuoso carro, a liberdade era muito restrita. No as­sento da frente, o motorista e o homem sentado ao lado eram agen­tes do Serviço Secreto do Departamento da Casa Branca. Atrás, à distância de um braço de Dilman, sentado de lado num banco, ia o agente Beggs. Era verdade que nenhum deles tinha os olhos fixos nele. O olhar do motorista dirigia-se para a frente, o outro agente examinava o panorama da 16.a Rua à sua direita e Beggs examinava os peões e os edifícios à sua esquerda.

Douglass Dilman enterrou mais o chapéu na cabeça, por causa do vento que entrava pela abertura da janela automática ao lado do motorista. Depois observou atentamente as zonas por onde passara tantas vezes, durante os anos em que pertencera apenas a si próprio e em que quase ninguém se importava se ele estava vivo ou morto. Reconheceu a Academia Hebraica, a Igreja Metodista, o Hotel Woodner, o Hotel Meridian Hill, o Hotel 2400, a Embaixada da Bulgária, as casas inglesas de tijolo vermelho e pilares brancos, que tantos ne­gros recém-chegados tinham comprado aos brancos. Dentro de pou­cos minutos o carro levá-lo-ia para longe de tudo aquilo, pela Praça de Lafayette até à Avenida Executiva e à entrada sul da Mansão Exe­cutiva.

Dilman aguardara com terror a inevitabilidade daquele impor­tante dia. E ei-lo chegado. Tinham dito a Dilman que a viúva de O. C, Hesper, tratara já da remoção dos seus objectos pessoais e da mobí­lia e também dos do marido da Casa Branca, no dia anterior, assim como o governador Talley e Edna Foster tinham removido os objec­tos pessoais de O. C. do Escritório Oval da ala oeste, havia tês dias.

Durante umas longas e dolorosas horas da noite anterior, Dilman, com a ajuda da sua governanta Crystal, da sua secretária do Senado, Diane Fuller, de Rase Spinger e de dois homens do Exército, tinha jun­tado e embalado em caixotes os seus parcos e usados haveres. Dilman recusara a ajuda de qualquer pessoa da Casa Branca: Edna Foster, o criado particular de O. C, Beecher, ou qualquer membro do pessoal da Casa Branca, incluindo a governanta, os criados ou os porteiros. Embora Flannery lhe tivesse proposto permitir que os jor­nais publicassem fotografias da modesta sala de estar da sua casa, ele não quisera quaisquer críticos intrusos a meter lá o nariz. Também não permitira que o reverendo Spinger ou Wanda Gibson descessem as escadas para o ajudar. No seu novo papel, Dilman compreendia que não poderia continuar a tratar Spinger como um amigo, mas apenas como o chefe da maior organização negra americana. Quanto a Wanda, a sua presença poderia fazer os agentes do Serviço Secreto pensar quais seriam as suas relações com ele, e alguém poderia divulgar isso à imprensa, que, pelo seu lado, poderia distorcer a informação.

Apesar de ter falado brevemente com ela pelo telefone, todas as noites antes de se deitar, não a vira ainda depois de pessoalmente ter assumido a presidência. Ela não o censurara pela sua falta, pois essa não era a sua maneira de ser. Mas ele suspeitava de que tinha pena dele, pelas suas fraquezas, o que era justificável da parte dela.

Através da janela pôde ver que saíam nesse momento da 16.a Rua. Subitamente sentiu-se aterrado. Tentou definir o seu terror. Não era só o facto de ter deixado o seguro anonimato do rés-do-chão da sua modesta casa de dois andares para ir viver, durante um ano e cinco meses de vida, naquele segundo andar da Casa Branca, estra­nho, parecido com um museu e constantemente exposto. Isso era já suficientemente mau, mas ter de ser o inquilino intruso numa man­são sustentada por uma população que nunca antes lhe permitira viver no meio dela, fazendo parte dela, nas suas grandes ruas e nas áreas desenvolvidas, isso... O pior de tudo era levarem-no cada vez para mais longe da única mulher a quem amava no mundo e que se preocupava com ele. Dentro de poucos minutos seria enterrado vivo numa prisão em que ela o não poderia visitar e para a qual ele não ousava mandar chamá-la. Perguntava a si próprio durante quanto tem­po esperaria ela pela sua libertação, ou se alguma vez esperaria. Po­deria perdê-la. Se a perdesse, então ficaria só, completamente só, num mundo hostil. Era essa possibilidade que o aterrava.

Desviou os olhos da janela até à cara aborrecida do agente do Serviço Secreto, sentado junto dele. Perguntou a si próprio qual seria o motivo da infelicidade do agente. Talvez, concluiu Dilman, que a sua expressão denotasse apenas, na realidade, a ansiedade pela sua responsabilidade.

O nome completo do agente era Otto Beggs, lembrava-se Dilman. Estivera no serviço da tarde de guarda ao Escritório Oval, durante toda a semana. Esta manhã tinha aparecido ao nascer do sol, apre-sentando-se novamente e dizendo que hoje o seu serviço não era contínuo, mas que seria de quatro horas agora e quatro horas à tar­de. Juntamente com as três mulheres, Beggs ajudara a dirigir os ho­mens do Exército que transportavam os caixotes para o enorme ca­mião militar. Tiveram também de transportar algumas peças do mobiliário de Dilman, como uma pequena secretária de quarto e o respectivo banco, um sofá de couro castanho, um candeeiro alto com um abat-jour pintado à mão por Aldora, havia já tantos anos, e a ca­deira Revels. A cadeira Revels era o móvel de que Dilman mais se orgulhava. Recebera-o como presente da organização do partido, depois da sua eleição para o Senado dos Estados Unidos. Embora fosse uma cadeira genuinamente John Henry Belter de pau-rosa com um painel acolchoado nas costas e um assento de veludo feito à mão em Nova Iorque, em 1865, tinham-lhe dito que o seu valor real consistia no facto de que, em 1870, pertencera a Hiram R. Revels, do Mississipi, o qual fora o primeiro negro a sentar-se no Senado dos Estados Unidos.

Dilman deixara o resto da mobília na casa, para que Rose Spinger pudesse alugar o seu andar mobilado, de modo a receber uma ren­da mais alta. Depois de o camião do Exército ter partido com rumo à Casa Branca, seguido por um carro do pessoal presidencial, transportando Crystal e Diane Fuller, que dirigiriam o desembalar, Beggs e os outros agentes do Serviço Secreto tinham esperado para escoltar o próprio Dilman.

Ainda cheio de pânico provocado pelo pensamento de perder Wanda para sempre, Dilman resolveu interrogar Beggs. Devia ser dis­creto, prevenindo-se a si próprio. Mas também precisava saber o que era possível.

- Hã! Sr. Beggs.

O agente do Serviço Secreto voltou a cabeça.

Sim, senhor- sim, Sr. Presidente?

Gostava de lhe fazer uma pergunta.

O que queira, Sr. Presidente. Desculpe ter de estar com os olhos na rua enquanto falo, mas faz parte do meu dever.

Apesar de não ter tido ainda tempo para me elucidar acerca das funções do Serviço Secreto, penso que o seu Departamento tem como missão proteger-me a todas as horas, não é verdade?

-Sim, senhor, desde 1901. Título 18, Código dos Estados Uni­dos, Secção 3056, revista e aprovada pelo 82e e 83Q Congressos -recitou Otto Beggs. Depois continuou: - Sujeito ao Ministério das Finanças, o Serviço Secreto dos Estados Unidos está encarregado de proteger a pessoa do Presidente dos Estados Unidos e os mem­bros da sua família imediata.

-       Já concluíra isso - disse Dilman. - Ainda não estive um se­gundo fora da sua vista, durante esta semana, excepto quando fui à casa de banho ou estive a dormir. Tem de ser sempre assim? Não há nenhuma altura em que eu possa sair sozinho para ir ver uns.. uns amigos?

Beggs abanou a cabeça.

Desculpe, Sr. Presidente. Como é que o podemos proteger se não estivermos ao pé de si?

Não posso acreditar que todos os presidentes tenham sido seguidos por agentes durante todos os minutos dos seus manda­tos-disse Dilman.

É verdade. O Sr. Truman tentou dar uns passeios sem nós, o general Eisenhower tentou ver-se livre de nós para jogar o seu golfe em paz e o Sr. Kennedy tentou escapar-se para ir tomar banhos de mar, mas nunca o conseguiram, nem por um minuto, pelo que sei. O Sr. Johnson era mais compreensivo nalguns aspectos, mas O. C. tentou escapar uma vez para ir a uma festa, em Foxhall Road à uma da manhã. Apanhámo-lo. Dilman ficou pensativo.

Digamos que eu mantivesse a coisa completamente secreta, mas que tivesse de ver alguns amigos sozinho?

Pode estar com quem quiser sozinho, Sr. Presidente, mas não pode ir até eles sem ser guardado.

E se eu o ordenasse?

Beggs voltou a cabeça, com uma expressão de espanto na cara vermelha e gorda.

-       Não podia, Sr. Presidente, desculpe a ousadia, mas é a lei. O chefe Gaynor tem o poder legal de o impedir de fazer qualque movimento físico que ele considere perigoso. É um bocado embara­çoso, Sr. Presidente, mas, como eu já disse, é a lei.

Dilman rendeu-se.

-       Obrigado, Sr. Beggs.

A conversa deixou-o ainda mais agitado do que nunca acerca de Wanda e de si próprio. As circunstâncias tinham tornado impossí­veis quaisquer relações futuras. Só a poderia ver dentro das condi­ções do agente, e, supunha ele, dentro das próprias condições dela, isto é, publicamente, o que faria com que a antiga amizade de ambos fosse conhecida de todos. Então, mais uma possibilidade lhe veio ao espírito, e ele pensou nela.

O trânsito está um bocado mau - disse o motorista. - Faz-nos levar mais cinco minutos, Sr. Presidente. Importa-se se pusermos a sereia a tocar?

Prefiro que não - disse Dilman. - Não há pressa.

Não tinha pressa nenhuma de enfrentar o que tinha à sua frente. Expulsou do espírito o encontro com Wanda. Pensaria nisso mais tarde. Tentou concentrar-se nos problemas imediatos. Edna Foster telefonara-lhe, ao pequeno-almoço, para lhe ler o seu horário desse dia. Teria uma hora para estar nos seus aposentos da Casa Branca, para conhecer melhor as salas históricas que constituíam agora o seu novo lar, e para conhecer o pessoal e indicar onde deveriam colocar a sua mobília e objectos pessoais. Depois seguiam-se os compromissos matinais: uma reunião de meia hora com o ministro de Estado Eaton e o governador Talley; uma reunião de uma hora de todo o Gabinete, a primeira, sem contar com o breve encontro em que lhes pedira que ficassem nos seus cargos; uma breve entrevista com o seu filho Julian que vinha de Trafford para o ver; uma breve entrevista com o seu biógrafo Leroy Poole, que telefonara tão insis­tentemente.

O almoço, lembrou-se, seria com os chefes do estado-maior que vinham do Pentágono. Durante a tarde teria conferências com os chefes da maioria e da minoria do Senado e da Câmara dos Deputa­dos, conferências com os directores da CIA e do FBI, uma conferên­cia com Tim Flannery, uma conferência com o administrador do Cré­dito Federal, uma conferência com o embaixador da Rússia. Só tinha livres as horas entre as cinco e as oito, para que pudesse pôr em dia as suas leituras oficiais. Depois das oito da noite seria a melhor oca­sião do dia e da semana, pois teria um jantar privado e sem protocolo na Casa Branca, na companhia de Sue e Nat Abraahms.

O pensar em tudo o que tinha a fazer antes do jantar fê-lo sentir todo o cansaço e desconforto provocados pela tensão acumulada durante os passados sete dias. Ele nem podia acreditar que já passa­ra toda uma semana desde que se tornara Presidente dos Estados Unidos. Mesmo agora, na sua cápsula protectora e mecanizada, rumo à Casa Branca, não se sentia como um presidente se devia sentir, como quer que fosse que um presidente se devesse sentir. Talvez, pensou, isso fosse devido a que não estava ainda apto a responder às exigências pedidas pelo ramo executivo. Os acontecimentos da passada semana não tinham estado nas suas mãos, tinham-se desen­rolado em pompa e trágico esplendor até ao seu clímax, como se fossem dirigidos pela força de um Ser Supremo. Ele não passara de um mero observador. E estava grato por isso e estava igualmente grato ao governador Talley e ao ministro Eaton, que tinham tido a gentileza e a inteligência de falar por ele quando a sua voz devia ser ouvida.

Recordou então o funeral de O. C. A sua memória rodopiou como um caleidoscópio, mostrando-lhe apenas fragmentos de cor em rápida mudança, quase imagens multicores e abstractas de vidros escorre­gadios. Havia a imagem, batida pela chuva do fim da tarde, dele pró­prio, do Gabinete e dos chefes militares e do Congresso no Aeropor­to Internacional de Dulles, quando o jacto 809 da Força Aérea aterrara, vindo de Francoforte, e dele saíram os caixões que continham os corpos de O. C. e de MacPherson. Havia a imagem da manhã seguinte, quando se encontrara com a viúva de O. C, que regressara do Arizona amortalhada na sua dor e que fora ao seu encontro, am­parada pelo filho adolescente e pelo ministro Eaton. Tinham ido juntos até à Sala Este da Casa Branca, onde se encontrava o caixão de O. C, envolto na bandeira nacional, com pesados candelabros em cima e rodeado de velas cintilantes e da rígida guarda de honra. Havia a imagem do meio-dia seguinte, do sol brilhando sobre os milha­res de pessoas agrupadas ao longo da Avenida da Pensilvânia, en­quanto ele caminhava lentamente atrás dos tambores com crepes, atrás da carreta funerária puxada por cavalos, atrás da viúva, do filho e dos parentes de O. C. Caminhava ao lado do Juiz e de dois outros ex--presidentes, em direcção à Rotunda do Capitólio, onde fora dispara­da uma salva de vinte e um tiros, a banda da marinha tocara /-/a/7 to the Chief e onde se tinham cumprido os breves serviços religiosos. Havia a imagem do próprio funeral, mais uma vez ao sol do meio-dia, mas longe da vista do público, com ele próprio, o Juiz, outros ex-presiden-tes e o Gabinete de O. C, no cemitério da família, nos terrenos por detrás da herdade familiar, perto de Concord, New Hamsphire.

Depois o caleidoscópio da sua memória transformou-se de ama­relo num conjunto de cores misturadas. Havia a imagem dele pró­prio, ladeado por Eaton e Talley, na Sala do Gabinete - fora incapaz de regressar depois ao Escritório Oval de O. C. - cumprimentando os inúmeros chefes de nações que tinham participado no cortejo e as­sistido ao enterro. Lembrava-se de ter recebido o Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, o Presidente da França, o presidente dos deputa­dos da Rússia, o chanceler da Alemanha, o rei da Bélgica, o presi­dente do conselho do Japão e mais uma meia centena de outros, entrando, conversando e indo-se embora, durante aquelas estranhas horas. Havia a imagem, menos clara, mas mais firme, dele próprio na Sala do Peixe, anteontem, mergulhado na breve, mas viva, discus­são com o Juiz, bem mais directa e encorajadora que todas as for­mais discussões com outros ex-presidentes, que as pequenas trocas de palavras com os senadores e deputados seus conhecidos, com os chefes do partido ou com os membros da equipa de O. C. Havia a imagem dele próprio, fechado no escritório da imprensa de Tim Flannery, no dia anterior, sendo informado das lutas que tinham reben­tado como barris de pólvora, lutas entre brancos e pretos, não orga­nizadas mas selvagens, no Tennessee, na Louisiana, no Texas, na Califórnia, no Missouri e em Michigan. E a imagem de Tim Flannery a ler alto a primeira relação da opinião pública acerca do Presidente Douglass Dilman - a favor dele: 24%; contra ele: 61 %; indecisos: 15 % - e a lembrança do seu desapontamento interior perante esta relação, tão diferente da suposição e esperanças expressas no jor­nal moderado de Nova Iorque que o reconfortara na semana ante­rior. E depois a imagem de Tim Flannery e de outros ajudando-o a compor apressadamente a declaração em que pedia a união e o apoio nacional, prometendo a aderência aos princípios defendidos por O. C, lembrando aos Americanos que os olhos do mundo e da história estavam postos neles.

-       Sr. Presidente... - era Beggs que se dirigia a ele, que rapida­ mente escondeu o caleidoscópio da memória no seu espírito e er­gueu os olhos - chegámos à Casa Branca.

Reparou então que o carro parara já diante do Pórtico Sul. Um grupo de homens, um terço dos quais brandindo grandes máquinas fotográficas, estava colocado entre o caminho e a entrada. Beggs inclinou-se para a frente para abrir a porta de trás, mas já um polícia da Casa Branca se lhe adiantara. Antes de sair do carro, Dilman olhou para a sua esquerda. O que se lhe deparou, e que lhe pertenceria agora durante os próximos dezassete meses, como já pertencera a Jefferson, a Jackson, a Lincoln e a F. D. R., amorteceu-lhe momenta­neamente a apreensão. Da vasta área inclinada de relvado verde, manchada aqui e ali pela ferrugem outonal, desprendia-se uma rusti-cidade pastoril e no meio dos bordos japoneses do Presidente Cleveland jorrava continuamente o repuxo de uma fonte. Para lá dos vidoeiros e dos ulmeiros, lá longe, podia distinguir a alta grade de ferro que cercava o parque privativo do presidente e o protegia do tráfego da Avenida Executiva do Sul. Para lá da cerca, podia ver o majestoso obelisco de mármore branco do Monumento a Washington. A gran­deza exigida da parte do ocupante da mansão abateu-o e a apreen­são invadiu-o de novo.

Beggs e o polícia esperavam à porta do carro. Dilman arrancou-se do fundo assento estofado do carro, ignorando a ajuda oferecida por aqueles, e saiu do carro. Somente uma pessoa, da dúzia que por ele esperava, lhe era familiar, e essa pessoa era Tim Flannery.

Flannery precipitou-se para a frente, para lhe apertar a mão.

-       Seja bem-vindo a sua casa, Sr. Presidente - disse ele.

Não é um grande prazer para mim, Tim - disse Dilman -, da­das as circunstâncias.

Pois não - concordou Flannery. Depois a sua atenção foi des­viada pelo trabalho. - Sr. Presidente, autorizei três fotógrafos do De­partamento da Imprensa a tirar algumas fotografias suas. - Voltou-se, acenando com a mão. - Vamos a isso, rapazes.

Enquanto o carro se afastava, deixando Dilman em pose rígida em frente do relvado e do Monumento a Washington, os fotógrafos lançaram-se sobre ele, agachando-se e disparando as máquinas. Dilman acenou com a cabeça, incapaz de sorrir, e depois moveu-se em direcção à entrada. Os fotógrafos acompanharam-no sempre acocorados, disparando mais fotografias, enquanto os presentes, a polícia da Casa Branca, os agentes do Serviço Secreto e os jardi­neiros se afastavam para lhe dar passagem.

Encontrava-se a meio da colunata da entrada quando um negro de estatura média, com carapinha branca a condizer com a sua gra­vata branca, de rosto retinto e solene a condizer com o fato imaculadamente preto, se lhe dirigiu.

-       Sr. Presidente - disse ele -, eu sou Beecher, o criado de quarto do último presidente.

Dilman parou e estendeu-lhe a mão. Hesitante, o criado aper-tou-lha.

-       Sinto-me contente por o tornar a ver, Beecher. Lembro-me de si quando das recepções do Congresso a que aqui assisti. - Fez uma pausa e depois acrescentou: - Não sei quais são os seus planos, mas agradar-me-ia que continuasse no seu emprego, isto é, se gostasse de trabalhar para mim.

Pela primeira vez, um sorriso enrugou a cara impassível do criado.

Muito obrigado, Sr. Presidente. Nada me agradaria mais. - In­dicou a entrada sul. - Uma parte do pessoal da Casa Branca encon-tra-se na Sala de Recepções Diplomáticas, esperando para lhe dese­jar as boas-vindas. Depois de ir ter com eles, conduzi-lo-ei aos seus aposentos, no segundo andar.

Muito bem - disse Dilman.

O criado de quarto adiantou-se-lhe para lhe abrir a porta e Dilman entrou na Sala de Recepções Diplomáticas. À entrada hesi­tou. Umas cem pessoas, pelo menos, estavam alinhadas na vasta sala circular, mobilada com móveis do século XVlll. Havia mulheres com uniformes domésticos brancos e azuis, muitas de avental e algumas vestidas com fatos de secretárias ou com saias e blusas. Havia homens de fato-macaco, com fatos de caqui e com fatos e gravatas pretas. Ocupavam toda a Sala, alinhados contra os retra­tos a óleo de muitas primeiras damas - reconheceu os de Dolley Madison e Jacqueline Kennedy - ao longo dos armários, por entre os móveis e de costas para as pinturas murais das Quedas do Niagara e da Baía de Nova Iorque.

-       Esta é uma parte do pessoal da Casa Branca - segredou o criado de quarto a Dilman.

Todos os olhos estavam fixos em Dilman, olhos curiosos, olhos interrogadores. Dilman atravessou lentamente a carpete oval até ao meio da Sala de Recepções.

Tossiu para aclarar a garganta.

-       Não tenho tempo para vos conhecer individualmente, neste momento, e apertar-lhes a mão, mas sinto-me comovido com esta recepção. Gostaria que fizessem uma coisa - espero que não leve muito tempo -, mas gostaria que cada um de vós, a começar pelos que estão junto da porta, levantasse a mão e me dissesse o seu nome e emprego.

Voltou-se para a sua esquerda, para os que estavam mais perto da entrada e em frente do armário de vidro, e cada um por sua vez levantava a mão, uns hesitantes, outros bem estendida e com segu­rança, e ia anunciando o seu nome e posição na Casa Branca. Dilman estava espantado com a variedade de pessoal. Lera ou ouvira já que havia 132 divisões naquela casa a serem cuidadas e que trinta e oito polícias guardavam os seus corredores, entradas e saídas, e que quatro mil pessoas possuíam passes de segurança para o serviço interior e exterior da Casa Branca.

Dilman porém nunca esperara uma coisa tão espantosa como aque­la. Os homens e as mulheres a identificarem-se incluíam polícias, che­fes, ajudantes de cozinha, criadas de quarto, mordomos, carpinteiros, especialistas do ar condicionado, lavadeiras, electricistas, maquinistas, pintores, telegrafistas. Dilman sabia que alguns eram mais importantes do que outros, mas não os distinguiu de qualquer forma. Entre os impor­tantes contava-se a governanta, Sr.a Crail, e os membros do Escritório Social, da Ala Este, a secretária social de O. C. e Hesper, Miss Laurel, com as suas doze assistentes, entre elas duas secretárias.

A identificação levou mais tempo do que Dilman supusera, e quando o último se acabou de apresentar, o chefe caiigráfico - que escrevia todos os convites e cartões da Casa Branca-, Dilman acla­rou a garganta pela segunda vez.

- Muito obrigado a todos - disse ele. - Sei que alguns de vós se tornaram indispensáveis ao governo desta casa. Alguns de vós servi­ram presidentes desde o tempo de Herbert Hoover e Franklin Roosevelt, e outros desde o tempo do Sr. Truman, do General, do Sr. Kennedy, do Sr. Lyndon Johnson e do Juiz. Mas sei que todos vós, antigos e novos, servistes eficiente e lealmente O. C. e a primeira dama. Alguns de vós, sentindo a sua falta ou tendo outros planos, podem desejar ir-se embora para outros empregos. São livres de o fazer, é claro, e compreenderei os vossos motivos. Espero porém que a maior parte de vós continuará a servir nesta casa, pois sei que a vossa - a vossa lealdade é dirigida a um alto cargo e a nenhuma pessoa em particular. Se ficarem, quero apenas dizer-vos que é esse o meu desejo e que conto com todos vós. Não posso prometer que a vida desta casa seja como tem sido até aqui. Ninguém pode substi­tuir O. C. Mas a vida desta casa em si própria, a rotina, o serviço àqueles que aqui vêm, deve continuar inalterável.

Fez uma pausa, os olhos no tapete creme, e depois acrescentou com um ligeiro sorriso: - Talvez agora o vosso trabalho até seja mais fácil. Sem contar com o meu filho, que está interno na faculdade, vivo sozinho, pois sou viúvo, tenho poucos amigos e interesso-me pouco por relações sociais, se exceptuarmos as que me são impostas. Sim, as minhas exigências pessoais devem tornar a vossa tarefa mais fácil, mas devem lembrar-se que a Casa Branca não é só a minha casa, mas é também a vossa, e quero que continuem a orgulhar-se dela e dos vossos empregos. Tenho a esperança de que vós cá permaneçam. Espero conhecê-los melhor dentro de pouco tempo. Muito obrigado - muito obrigado a todos.

O criado de quarto, Beecher, encontrava-se ao lado de Dilman, e da multidão do pessoal veio rapidamente ao seu encontro o chefe do Serviço Secreto, Hugo Gaynor, e o adjunto militar de O. C, o bri-gadeiro-general Robert Faber. Houve uma pequena quantidade de aplausos quando o general Faber, o chefe Gaynor e Beecher o con­duziram para fora da Sala de Recepções e entraram no largo corre­dor com a sua interminável carpete vermelha.

-       Excelente, Sr. Presidente - ia dizendo o adjunto militar. - Tenho a certeza de que todos desejarão servi-lo.

Guiou Dilman para a esquerda. Enquanto iam pelo corredor, o chefe Gaynor disse:

-       Ali é por onde sairá todas as manhãs. A porta a seguir é a entrada de serviço dos empregados e fornecedores. - Apontou para a frente. - O escritório de Miss Crail, que é a governanta e um autên­tico demónio, a seguir o escritório do almirante Oates, que é o médi­co da Casa Branca, do outro lado a loja das flores - que mantém a velha casa enfeitada - e aquelas portas além dão para a cozinha principal. Esta possui um elevador que vai dar à copa, no primeiro andar, e à sua copa particular, no segundo. Foi Ike quem mandou instalar essa copa no segundo andar - gostava sempre de tomar qualquer coisa à noite, antes de se deitar.

O general Faber e o chefe Gaynor fizeram meias continências ao agente à paisana e ao polícia sentados a uma mesa, no corredor, en­quanto estes se punham de pé de um salto e respondiam à continência.

-       Cá estamos - disse o chefe Gaynor. Saiu da carpete vermelha e, passando por baixo de um arco, chegou a um pequeno vestíbulo. - Este é o seu elevador particular, Sr. Presidente. Leva-o directamente para os seus aposentos no segundo andar.

Carregou num botão e Dilman observou as luzes indicativas dos andares irem-se acendendo e apagando até à do rés-do-chão. O criado de quarto abriu a porta do elevador e segurou-a.

Gaynor e eu deixamo-lo aqui - disse o general Faber. - Tenho a certeza de que quererá ir ver o que se passa nos seus aposentos priva­dos. Se precisar de alguma coisa lá em cima, o Beecher e a Miss Crail estarão ao seu dispor.

Agradeço muito a vossa ajuda - disse Dilman.

Entrou no pequeno elevador e Beecher fechou as portas duplas e carregou no botão para o segundo andar. Enquanto o elevador ia subindo, Dilman entreteve-se a inspeccioná-lo. Era atapetado de ver­de, tinha três espelhos nas três paredes e dois na porta dupla à sua frente. Era a primeira vez, depois de se ter barbeado, havia já algu­mas horas, que se via ao espelho. O cabelo ondulado, apesar do tónico, estava espetado como sempre. O rosto negro e largo era tão negróide como sempre. A improbabilidade de tudo aquilo atacou-o com redobrada força. Ele era preto e estava ali.

Saiu para um outro pequeno vestíbulo, quase chocando com um bengaleiro. O criado de quarto virou à esquerda e Dilman seguiu-o.

-       Este é o vestíbulo oeste do segundo andar - informou Beecher.

O vestíbulo, demasiado comprido e vasto para se chamar corre­dor, parecia a Dilman uma galeria, pois ocupava quase toda a largura da Casa Branca.

Vai de este a oeste - disse o criado - e divide os apartamentos do segundo andar. Todas as divisões importantes dão para este ves­tíbulo. Ali ao fundo - e apontou para a secção este -, do lado sul, que dá para o relvado das traseiras e para o Monumento a Washington, estão as principais salas - entre elas o escritório Executivo, embora os Kennedys, os Johnsons e o último presidente o tivessem também usado como sala de estar. É aí que se encontra a Varanda de Truman. A seguir é a Sala do Tratado e depois o famoso Quarto de Lincoln.

E ali, naquela ponta? - perguntou Dilman.

-Ali são os quartos do Estado, Sr. Presidente. O Quarto Rosa dos hóspedes, a Sala de Lincoln, onde há um óptimo aparelho de televi­são, o Quarto Império dos hóspedes.

Dilman observou o enorme vestíbulo. Uma das paredes era forra­da com estantes e a do lado oposto tinha um canapé e várias cadeiras, por debaixo de modernas pinturas americanas de índios. Na parte mais afastada do vestíbulo encontrava-se uma secretária e um piano.

Dilman fez um gesto para a sua direita.

-O que há ali?

Uma suite privada, Sr. Presidente. Dá para a sala de O. C. e de cada lado dela ficam os quartos usados pelo presidente, pela primeira dama e pelo filho. A copa também se encontra aí. As janelas dão todas para o Jardim das Rosas. Gostaria de lhe mostrar...

Por enquanto ainda não, obrigado - disse Dilman. - Primeira­mente gostava que me indicasse onde é que as minhas coisas estão a ser desembaladas.

No Quarto da Rainha - na verdade o Quarto Rosa de hóspe­des - lá em baixo, ao fundo do hall. Calculámos que não seria usado nos tempos mais chegados e era o melhor sítio para pôr as coisas até que o Sr. Presidente conhecesse o suficiente da casa para saber onde queria colocá-las. Eu levo-o até lá, Sr. Presidente.

Atravessaram o hall, entraram num pequeno vestíbulo para o qual dava uma luxuosa casa de banho e uma sala, e finalmente chegaram ao Quarto Rosa de hóspedes, de onde saíam, nesse momen­to, dois agentes do Exército levando os últimos caixotes vazios.

No quarto encontrou Crystal de joelhos sobre o tapete branco, empilhando a sua colecção extremamente restrita de livros de Direi­to, de História, enciclopédias, as novelas de Dickens e todos os livros policiais de que gostava. Diane Fuller, também de costas para ele, arrumava os seus papéis em cima de uma mesa coberta com um pano de veludo vermelho.

Sem as incomodar, deitou os olhos pela sala. Pensou que ainda no dia anterior devia ter estado maravilhosamente bonita, mas nessa manhã encontrava-se num verdadeiro caos. Com excepção da ca­deira Reveis, as peças baratas do seu mobiliário destoavam no meio de toda a magnificência da sala, toda alegremente decorada de ver­melho e branco. Os montes dos seus objectos, desde os cinzeiros até aos álbuns de fotografias, pareciam dúzias de feias tocas de tou­peiras. Empilhada em cima da cama de dossel estava uma monta­nha de fatos seus, pendurados nos cabides e metidos em sacos plás­ticos.

O quarto hoje não está muito digno de uma visita de qualquer rainha- murmurou ele.

Pô-lo-emos novamente em ordem dentro de pouco tempo - disse Beecher rapidamente. - Muitas rainhas dormiram já neste quar­to, e uma das últimas foi a Rainha Isabel li da Grã-Bretanha. Aqui dei­xou, como presente, aquele espelho por cima do fogão de sala. Diz-se que a cama pertenceu a Andrew Jackson. A cadeira brasonada...

Dilman porém já não o ouvia. Crystal e Diane Fuller tinham-se voltado ao som das vozes e, nesse momento, gemendo e resfolgando, Crystal punha-se de pé.

-       Obrigado, Beecher - disse Dilman. - Acho que agora é melhor eu ir ajudá-las. Neste momento não preciso de si.

Assim que o criado de quarto se retirou, Dilman chegou-se ao pé de Crystal, segurou-lhe no braço gordo e sorriu para a sua cara reluzente.

Então, Crystal, que tal vai isso? É um pouco diferente das mi­nhas cinco divisões de Van Buren, não é?

Sr. Presidente, isto não é uma casa em que se viva. Isto parece mesmo um museu. Eu, por mim, até teria medo de ir à casa de banho, aqui!

Dilman nu-se.

-       Em breve se habituará. - De repente ficou sério. - Isto é, se quiser. Crystal, ainda não tive a oportunidade de falar consigo sobre o assunto. Continuará, como até aqui, a ajudar-me?

Ela encolheu os ombros e o seu braço estremeceu.

A ajudar em quê, Sr. Dilman... Sr. Presidente? De boa vontade o faria, mas o que há para ajudar com todo esse pessoal por aí?

Cuidar de mim, é isso que poderá fazer, Crystal, como o tem feito até aqui. Todos esses criados que vê são para outras pessoas -visitantes, dignitários, hóspedes. Eu preciso de alguém que saiba fazer o meu pequeno-almoço, limpar os meus colarinhos e que sai­ba onde pôr as minhas chinelas. Façamos de conta que nada mu­dou, Crystal, com excepção da morada. Continuaremos na mesma base, mas tentarei arranjar-lhe um aumento de ordenado. Que me diz?

Digo que sim, e que Deus o abençoe! - exclamou Crystal. -Talvez algum dia ainda venha a escrever um livro acerca de como o presidente realmente é, e me torne rica, famosa e...

Dilman riu-se.

-       Eu sabia que podia contar consigo.

Reparou que Diane Fuller estava à escuta junto da mesa coberta com o pano de veludo vermelho. Tentou não franzir a testa. Apesar de parecer estranho, enquanto Crystal pertencia àquele lugar, o mesmo não acontecia com Diane. Os seus modos desajeitados e respeitadores, a sua falta de equilíbrio, os seus fatos extravagantes (o que ela usava nessa manhã era cor de laranja com bolas amarelas), as suas pernas tortas, os seus maneirismos nervosos e gaguejados, tudo isso fazia com que ela fosse menos útil ali do que no seu escritório do Senado, onde ele a podia relegar para a máquina de escrever. Para mais, não queria trazer para a Casa Branca muitos da sua própria cor. Isso criaria boatos desagradáveis. Todavia havia ainda Diane, esperando. Devia fazer algu­ma coisa.

-       E quanto a si, Diane? - perguntou ele. - Gostaria de continuar ao meu serviço?

Ela respondeu com dificuldade.

Cer... certamente, se... senador. Eu... - eu não tenho para onde ir, e além disso...

Além disso o quê?

Isto é... é... na verdade muito excitante.

Está bem. Temo muito que isto, agora, não seja o mesmo que dantes. Conservarei a secretária pessoal de O. C. porque ela já está familiarizada com a rotina do Cargo Executivo e pode-me guiar. Con­tudo eles podem sempre empregar mais uma secretária, lá em baixo, na ala este. Dir-lhes-ei para a colocarem lá.

Fi... ficaria muito grata, se... senador. - Depois emendou rapi­damente: - Quero dizer, Sr. Presidente.

Crystal tinha-se aproximado e fez um gesto abrangendo toda a sala. O que é que fazemos de toda esta tralha?

-       Continuem a arrumá-la de modo a saberem onde está cada coisa - disse Dilman. - Assim que descobrir que divisões vou usar, poderemos começar a mudar tudo para os seus respectivos lugares. Não se preocupe com isso. - Consultou o relógio de pulso. – Na realidade, não tenho já muito tempo para tratar do caso. Vou ver se descubro onde vai ser o meu quarto.

Saiu do Quarto Rosa de hóspedes, durante um momento per-deu-se no caminho, depois conseguiu escapar ao labirinto de quar­tos para ir encontrar Beecher, o criado de quartos, passeando pacien­temente para cá e para lá, no hall.

Desculpe tê-lo feito esperar - disse Dilman. - Comecemos por arranjar um quarto para esta noite. O que sugere?

Bem, há aqueles quartos de hóspedes...

Não, esses não.

Então restam-nos dois outros, neste andar, que possam ser usados - disse o criado de quarto. - Aquele ali ao fundo é o mais usado por outros presidentes. É bastante espaçoso e tem uma esplên­dida casa de banho - até a banheira tem gravada a águia presiden­cial. Era o quarto de O. C. antes de ele...

Esse também não me agrada - disse Dilman.

Mas não repetiu o que lhe passou pelo espírito: que o eleitora­do podia inconscientemente ressentir-se que um político da mino­ria preta fosse imediatamente dormir na cama em que o seu popu­lar O. C. dormira durante dois anos e sete meses, que um negro dispusesse dessa cama enquanto o escolhido por eles dormia num caixão debaixo da terra.

-       E que mais há? - perguntou Dilman. - Você mencionou ainda outro...

Sim, Sr. Presidente. Há o Quarto de Lincoln, ali mesmo adiante.

Julguei que fosse apenas uma peça de museu. Tem sido usa­do recentemente?

Muitas vezes, Sr. Presidente. Quer vê-lo?

Beecher começou a andar pelo hall, com Dilman a um passo atrás dele. Subitamente o criado virou à esquerda, abriu uma porta e esperou que Dilman entrasse.

Dilman tencionava entrar directamente no quarto, mas algo nele o fez parar. Pela primeira vez, nessa manhã, não se sentia nem um visitante, nem um intruso. Um acidente da história trouxera-o até ali, e subitamente, naquele quarto, sentia-se parte do sítio, empenhado no seu papel e pertencendo à sua história. Pela primeira vez, naquela manhã, ele não se sentia deslocado. Era a sua imaginação a traba­lhar, disse para consigo mesmo, e todavia sentia debaixo da pele o calor de ser desejado.

Silenciosamente observou o Quarto de Lincoln. Era um quarto antiquado e simples, demasiado calmo, demasiado equilibrado e bom para permitir a entrada da violência, do ódio e do temor. Sabia que fora outrora o Gabinete de Lincoln, e a placa sobre o fogão de sala lembrava que, dentro daquelas paredes, Lincoln assinara a Procla­mação da Emancipação, proibindo a escravidão nos Estados Unidos e dando a liberdade a quatro milhões de indivíduos da raça de Dilman.

A cama do próprio Lincoln, maciça e enorme, dominava todo o quarto.

-       De que é feita? - perguntou Dilman.

O criado de quarto aproximou-se, espantado.

Como, Sr. Presidente?

A cama. De que é feita?

Oh! É de sólido pau-rosa, Sr. Presidente. Observe a linda cabe­ceira trabalhada. Tem oito pés de altura. A cama tem nove pés de comprimento.

Não era suficientemente comprida - disse Dilman. - Lincoln tinha mais do que isso.

Depois examinou as mesinhas de cabeceira cobertas com um pano de veludo e os candeeiros vitorianos, de cada lado da grande cama. Examinou a secretária, o espelho e a mesa manchada sobre a qual estava uma das cinco cópias do Tratado de Gettysburg, escrito pela mão do próprio Lincoln. Todas aquelas peças tinham sido compradas pela Sr.a Lincoln, e todas elas tinham provavelmente perten­cido ao próprio Lincoln: o retrato de Andrew Jackson, as cadeiras forradas de veludo amarelo e verde, a secretária, o relógio estilo Im­pério, tudo. Até o tapete figurativo, tão semelhante aos que cobriam o chão do casebre em que a mãe o criara até à idade adulta, dava a Dilman uma sensação de conforto. Mesmo em frente, emoldurado pelas janelas, podia-se ver a agulha do Monumento a Washington.

Penetrou mais no quarto e no cinzeiro viu uma carteira de fósfo­ros com a inscrição «A Casa do Presidente».

Por cima do ombro, disse ao criado:

Tem a certeza de que o quarto é normalmente usado?

Certamente, Sr. Presidente. Theodore Roosevelt e Calvin Colidge dormiram nesta cama. Os filhos de Teddy Roosevelt, seis deles, dormi­am aqui frequentemente, todos ao mesmo tempo. F. D. R. fez com que o seu assistente, o coronel Louis Howes, dormisse aqui, e Margaret Truman também dormiu aqui, assim como a mãe de Mamie Eisenhower, a Sr.a Doud. O Presidente e a Sr.a Kennedy usaram este quarto enquanto esta­vam a pintar o deles. A Sr.a Jacqueline Kennedy gostava particularmente desta cama. Costumava dizer que se parecia com «uma catedral». Mais tarde, sempre que os pais do Presidente Kennedy, o ex-embaixador Joseph Kennedy, e a Sr.a Rose Kennedy, vinham cá de visita, ficavam neste quarto. Os parentes de Lyndon Johnson também costumavam dormir aqui, e o filho de O. O, Freddie, dormia sempre neste quarto quando vinha cá durante as férias.

E Lincoln - disse Dilman.

Sim, e Lincoln.

Dilman olhou para a gigantesca cabeceira de pau-rosa, pintada a verde e branco. Ninguém no mundo, disse para consigo mesmo, podia opor-se a que ele ocupasse o Quarto de Lincoln, e menos que todos Abe Lincoln, do Illinois.

Muito bem, vai ser este - disse simplesmente, e saiu para o hall. Quando o criado o alcançou, Dilman parou a pensar em algo.

Há mais alguma coisa, Sr. Presidente?

Perguntava a mim próprio que quarto me será mais acessível quando quiser trabalhar à noite.

Bem, Sr. Presidente, há a sala de estar de Lincoln de um lado, e a Sala do Tratado do outro, e, passando um quarto, há a sala em que O. C. e a maior parte dos presidentes trabalharam e descansaram à noite.

Que sala é essa?

É conhecida por vários nomes, incluindo o de Sala Oval ama­rela e o Escritório Executivo. Quer que lho mostre?

Dilman caminhou ao lado do criado através do hall.

É um escritório? - perguntou Dilman.

É uma sala para todo o serviço, Sr. Presidente. O. C. costu­mava usá-lo como sala de estar, biblioteca, escritório particular. Dalley Madison mandou-o forrar de damasco amarelo e quase todas as suas peças, a carpete oval, o papel da parede, os estofos dos dois sofás e de algumas cadeiras Luís xvi, são amarelas. O. C. costumava sentar-se numa cadeira estofada, de couro verde, à secretária de embutidos verdes, enquanto a primeira dama se sentava do outro lado, para ler. Nas noites quentes iam até à varanda de Truman, sentavam-se nas cadeiras compridas de lona, bebiam chá gelado e conversavam. Quando algum Chefe de Estado vinha aqui de visita, costumava recebê-lo neste quarto, e depois desciam com ele a esca­daria até ao vestíbulo de entrada da Casa Branca, onde a Banda da Marinha tocava os seus programas e depois iam para a casa de jantar do Estado, no primeiro andar... Ora cá estamos nós, Sr. Presi­dente. Eis a Sala Oval amarela.

As portas brancas estavam abertas de par em par, e Dilman en­trou na grande sala dourada, impressionado com a sua luminosidade, com a sua riqueza, com o lustre de cristal, com o candelabro junto da janela da direita, com os Cézannes na parede ao pé de si.

Dilman girou lentamente sobre si próprio para poder observar tudo bem, quando, subitamente, estacou surpreendido. Ele e o cria­do de quarto não estavam sozinhos. Havia outra pessoa na Sala Oval amarela.

Ela estava inclinada sobre a secretária que se encontrava por detrás do sofá mais próximo, abrindo e fechando gavetas, profunda­mente concentrada na sua tarefa. Quando se ergueu e suspirou, Dilman pôde ver que não era tão alta como lhe parecera, porque andava sempre tão direita que isso lhe aumentava a estatura. Estava vestida com um fato preto sem qualquer enfeite e, erguido da cara e sobre os seus cabelos cinzento-loiro, tinha um véu de luto. Mesmo antes de ela o pressentir e se voltar, Dilman já sabia quem ela era.

A primeira dama de O. O ajeitou o véu. Os seus olhos nada revelavam além do reconhecimento. O seu rosto de cinquentenária, de maçãs salientes, não mudou de expressão, mas permaneceu com a mesma tristeza fria e fleumática.

Dilman sentiu a maçã-de-adão subir-lhe e descer-lhe na gargan­ta, numa incapacidade absoluta de saber como se lhe dirigir. Encon-trara-a ocasionalmente nos jantares anuais dados por O. C. aos mem­bros do Senado. Vira-a três vezes durante a semana do enterro. Nunca trocara com ela mais do que umas frases incoerentes. Não se lembrava sequer do nome dela; só se lembrava de que se chamava Hesper, a famosa e admirada Hesper, que fora uma das poucas primeiras da­mas a trazer um pouco de estilo e graça à Casa Branca. Não se lhe podia dirigir designando-a pelo nome próprio como qualquer cida­dão, embora soubesse que ela já não era a primeira dama, pois o título e a eminência tinham-lhe sido roubados pelo destino. Ela era apenas, e acima de tudo, a viúva de O. C.

Voltou-se para o criado de quarto, como a pedir ajuda, mas re­parou que Beecher recuava, preparando-se para sair da sala.

Dilman encarou-a.

Bom dia. Desculpe tê-la interrompido desta maneira. Tinham-me dito que já se fora embora...

O pedido de desculpa deve ser meu e não seu, senador Dilman. Na verdade, mudei-me ontem. Foi muito gentil da sua parte o ter sido tão paciente e ter-me concedido a semana inteira. Mas a noite passa­da lembrei-me de que tinha deixado aqui uma parte da correspon­dência pessoal do meu marido. - Tocou na secretária que ele usava sempre quando trabalhava de noite, até tarde.

Espero que tenha encontrado o que queria - disse Dilman de­sajeitadamente. - Talvez queira procurar mais alguma coisa. Eu... eu tenho outras coisas que...

Ela ergueu a mão enluvada.

Não, por favor, senador. - Ergueu o pacote de cartas, preso com um elástico. - Tenho tudo o que queria. Sei que hoje é o dia da sua mudança e não quero estar a perturbá-lo. Mas, por um lado, estou contente que nos tenhamos encontrado assim, longe das mul­tidões e da miséria.

Não sei se lhe exprimi adequadamente todo o meu pesar pelo que sucedeu - disse Dilman -, ou os meus pêsames. Felizmente te­nho esta oportunidade de os confirmar. Todos nós somos menos sem O.C.

Ela observava-o calmamente.

-       Agradeço-lhe muito, senador Dilman. É muito generoso.

A sensibilidade de Dilman viera-lhe à flor da pele e então teve consciência do modo como ela se lhe dirigia. Apesar da sua boa educação e dos seus modos correctos, ela não o tratara nem uma só vez por Sr. Presidente. Para ela, ele fora um senador, e era ainda um senador, e não lhe reconhecia a ascensão. Ou pior, olhava-o como a um inferior, um negro inferior, indigno de substituir o marido como chefe executivo.

Mas imediatamente Dilman pôs de lado o pensamento de insulto intencional ou inconsciente. Ela não o estava a diminuir de modo al­gum. Estava a ser injusto, exageradamente susceptível à sua própria convicção da sua inferioridade. Procurou compreender melhor a dor daquela mulher. Ela vivera durante longos anos de ambição política, com os seus prós e contras, segurando a mão de um companheiro. Encorajara-o, desejara e aspirara juntamente com ele, e com ele com­partilhara a vitória final. De repente, porém, quando ele se encon­trava nos píncaros do poder e da glória, a coroa fora-lhe arrebatada e a sua página na história rasgada ao meio. Ela não podia ainda permitir que ambas lhe fugissem. Tinha de as segurar por ele. Por debaixo da sua dor controlada, havia nela uma recusa em aceitar a injusta realida­de. Para ela, só podia haver um presidente, um Sr. Presidente, e esse era o seu próprio. Não deixaria que ele fosse destronado tão cedo, talvez nunca. Não seria infiel ao seu amor e aos seus sonhos comuns. Não aceitaria qualquer usurpador.

Dilman sabia o que lhe era pedido. Devia sossegá-la.

Quero acrescentar ainda uma coisa - disse ele. - Considero--me como um inquilino temporário desta casa. Se ela pertence a al­guém, é ainda a si e ao seu marido. Ganhou a sua residência aqui. Eu não. Tenho perfeita consciência disso. Quero que continue a sentir que esta é a sua casa. As suas portas estarão sempre abertas para si e para o seu filho.

Sim - disse ela distraidamente -, agradeço-lhe muito.

Deu nervosamente alguns passos, depois foi até ao sofá amarelo junto do fogão de sala e sentou-se, com a cabeça inclinada. O mal-estar de Dilman aumentou. Quis ir-se embora.

-       Eu... eu penso que deve preferir ficar sozinha. Vou-me embora. Ela ergueu a cabeça e falou como se o não tivesse ouvido.

Também tem um filho, não tem, senador? Não me lembro bem.

Tenho. Um rapaz de vinte anos na Universidade de Trafford. Na realidade ele vem hoje cá ter comigo.

É maravilhoso ter-se um filho. O meu está em Andover. - Os olhos dela abrangeram a sala inteira. - Ele gostava tanto de viver aqui. Sentia-se tão orgulhoso e excitado. Nisso é parecido com o pai -tem o sentido da história.

Dilman não soube o que responder. Quis mudar a conversa para fora do assunto da Casa Branca. Porque era difícil falar com ela atra­vés da secretária, deu a volta a esta e sentou-se num canto do outro sofá.

-       Já fez alguns planos? Vai ficar em Washington? Ela abanou a cabeça.

Não me parece. É claro que Freddie voltará para a escola. Por mim acho que me vou instalar na nossa casa de Phoenix. Há tanto, tanto para fazer. Quero examinar todos os papéis de O. C. Princetown está a preparar uma Ala Presidencial para os receber. Depois há mui­tos historiadores que querem escrever biografias do meu marido. Acho que o devem fazer. E acho que o meu dever, por muito difícil que seja, é cooperar com eles. - Fez uma pausa. - A propósito, Miss Laurel - a nossa secretária social - consentiu em acompanhar-me, para lhe ajudar a responder aos milhares de cartas que tenho recebi­do e ao resto. Penso que receberá a demissão dela hoje. Espero que não se importe.

Não me importo nada - disse Dilman apressadamente. Ela pertence-lhe.

Ela tornou a observá-lo atentamente.

Disseram-me que vive sozinho. Quem governará a casa por si?

Tenho a certeza de que se governará a si própria.

Não. Precisa de alguém. Há tanta coisa. Precisa de uma mulher. Procure uma - pelo menos, uma secretária social com experiência.

Tentarei arranjar alguém - disse ele. - Tenho sorte ainda em ter Miss Foster.

Ela ser-lhe-á útil, mas a sua acção é limitada. Tenho ainda de o informar que pedi a Miss Foster que arranjasse e ordenasse os papéis do meu marido e mos enviasse - sabe, para os biógrafos. Prometo-lhe que não lhe tomarei muito tempo.

Tanto Miss Foster como eu faremos tudo o que esteja ao nosso alcance para a ajudar. Quero fazer tudo o que me seja possível para preservar a memória de O. C. Acerca de qualquer assunto, não hesi­te em vir ter comigo.

Ela olhava fixamente para ele.

Há ainda mais uma coisa - disse lentamente, mas não acres­centou mais nada.

Por favor, o que queira...

Ela endireitou-se. O seu modo de falar tornou-se mais firme e directo.

-       Talvez não devesse dizer o que lhe vou dizer. Não me interprete mal. Não estou a ser presunçosa. Posso estar a ser movida por uma emoção pessoal, mas acho que o que me dá forças para falar é a minha preocupação pelos milhões de americanos que votaram no meu marido, o ampararam e dele dependiam. - Respirou fundo e depois continuou. - Nada do que eu possa fazer daqui em diante, nem a com­pilação das suas cartas e documentos, nem a publicação dos seus discursos e da sua vida, nada disso poderá conseguir um décimo do que o senhor poderá, senador Dilman. O senhor é o único capaz ver­dadeiramente de preservar a memória de O. C. e os ideais pelos quais ele deu a vida. O senhor, e mais ninguém, poderá servir os seus eleito­res e as gerações futuras, que ficarão gratas pelo que ele conseguiu. Só o senhor pode ser o seu melhor monumento comemorativo.

O pedido dela perturbava e espantava Dilman e o fardo que ela lhe estava a colocar aos ombros fazia-o curvar interiormente. Nada disse, mas continuou na expectativa, desejando que o seu rosto não revelasse a sua consternação.

Ela prosseguiu:

-       Daqui em diante, sentar-se-á na cadeira em que O. C. se deve­ria sentar, durante estes críticos dezassete meses. Segurará na cane­ta em que ele devia segurar quando assinasse as suas propostas e le­gislações. Tomará decisões sobre assuntos internos e externos, decisões que ele já tomara e que não teve oportunidade de levar a efeito. Estará rodeado por homens inteligentes e bons, o governador Talley, o ministro de Estado Eaton, o procurador-geral Kemmler, o general Fortney, tolos eles nomeados por O. C, que com eles conta­va e cujos conselhos seguia. - Fez uma pausa. - Não, não tenho o direito de lhe pedir o que lhe vou pedir, senador Dilman, porque o meu marido já morreu e eu já não sou a mulher de um presidente, mas uma cidadã qualquer e viúva. Todavia, pedir-lho-ei como mera cidadã, uma entre milhões que o colocaram no cargo para nos con­duzir. Peço-lhe que tente - que tente o melhor que puder - agir durante os próximo dezassete meses como se o Salvador tivesse ressusci­tado O. C. dentro da sua cabeça e do seu coração. - Subitamente a sua voz e a sua compostura quebraram-se. - Oh! Eu sei que não poderá ser O. O, mas... - Levou a mão aos olhos húmidos e murmu­rou: - Oh! Perdoe-me...

Ele levantara-se do sofá, comovido, para consolar aquela mulher generosa, mas então, ao aproximar-se dela, com o braço estendido, pôde ver a mancha negra da sua mão junto da sua cara branca. Sentiu um arrepio, e endireitou-se, tentando encontrar as palavras adequa­das.

Ouviu bater ao de leve à porta, atrás de si. Assustado, girou sobre si próprio.

-       Sr. Presidente? - Uma mulher jovem, de cabelos platinados e elegantemente vestida dirigia-se-lhe desde a porta. - Sou Miss Laurel, a secretária social da Casa Branca. Recebi um telefonema de Edna Foster, que está preocupada com o atraso do Sr. Presidente. O ministro de Estado Eaton e o governador Talley estão no seu escritó­rio, e depois da reunião do Conselho...

Dilman acenou distraidamente com a cabeça e depois voltou-se para olhar para a viúva de O. C. Esta encontrara um lenço e limpava os olhos com ele.

Com voz firme, Dilman disse-lhe:

-       Tem a minha promessa, minha senhora. Qualquer assunto que eu trate, de hoje em diante, pensarei antes de agir- pensarei primeira­mente em O. O Nunca poderei ser o ho mem que ele era, excepto numa coisa. Amo tanto o meu país como ele o amou e farei tudo para preservar a sua segurança e o seu bem-estar, aconteça o que acontecer.

Afastou-se dela rápido, e, ao fazê-lo, expôs a viúva de O. C, pela primeira vez, à vista de Miss Laurel, que permanecia ainda no limiar da porta. Miss Laurel emitiu um som abafado ao ver o lenço e as lágrimas daquela, e passou por Dilman a correr, exclamando:

-       Hesper querida - que foi? Que sucedeu? Não chore, querida - ficará tudo bem.

Dilman fugiu para o hall, mas a promessa de Miss Laurel à viúva de O. C, repetida várias vezes, perseguiu-o até ao elevador. Ficará tudo bem. Nesse momento, se a alquimia fosse possível, teria ven­dido a alma ao diabo para que O. C. regressasse. Porque sabia que nunca poderia ser O. C, porque era fraco e era preto. Depois pen­sou: uma folha de papel original é branca, mas o carvão é preto, e, muitas vezes, a cópia de carvão, por muito fraca que seja, é quase igualmente útil. Tentaria. Tentaria com todas as suas forças. Quando carregou no botão do elevador já se sentia melhor.

Sentado na cadeira junto da secretária Buchanan, no Escritório Oval do presidente, Arthur Eaton cruzou as pernas, deixou cair no colo a lista dos assuntos a tratar, que tinha preparado para a reunião do Gabinete, e apertou o nó da gravata azul-marinho. Tirou da algibeira a boquilha de prata, meteu nela um cigarro, acendeu-o e aspirou-o deliciado, enquanto observava divertido o passeio impaciente de Wayne Talley para cá e para lá, no escritório.

Calma, governador - disse Eaton. - Poupe-se para a reunião do Gabinete.

Se houver reunião - resmungou Talley. - Por que terá ele de se atrasar num dia destes? Só teremos metade do tempo necessário para falar com ele.

-       Não será preciso tanto quanto julga - disse Eaton. Continuou a observar Talley enquanto este ia até às portas de vidro, espreitava para o Jardim das Rosas, emitia um som indistinto, ia até à primeira janela, que dava para o relvado sul, e depois veio até à secretária presidencial.

O braço de Talley apontou para a secretária.

Olhe para isto. Levaram tudo, até mesmo o relógio, as canetas e a cadeira estofada. Não deixaram nada que pertencesse a O. C...

Com excepção de nós próprios - disse Eaton com um sorriso.

Sim, certamente. Se conseguirem esse novo projecto da Lei de Sucessão, você estará safo. E eu? Sei lá o que se passará daqui a um mês?

Nada se passará daqui a um mês, Wayne. - Eaton descruzou as pernas e segurou a lista dos assuntos a tratar na reunião. - Escu­te, Wayne, o Dilman é o presidente. Aprenda a viver com tal facto. Desde o princípio que eu já sabia que o protesto de Zeke Miller não seria aceite, e na realidade não foi. Afinal, quando a lei escrita é obs­cura, segue-se a lei não escrita, que são os precedentes históricos.

E estes diziam nove vezes em cada dez que o próximo na linha de sucessão se tornará presidente, e acerca disso não há tão-pouco eleições especiais. Dilman era o próximo a ser eleito, e agora é o chefe. Não percamos mais energias a remoer isso. Vamos mas é ao que interessa.

Talley implantara-se em frente do ministro de Estado.

Muito bem, Arthur, vamos ao que interessa. Sabe que o novo projecto da Lei de Sucessão do senador Hankins vai ser hoje aprova­do pela assembleia geral na Sala das Reuniões do Senado? Só uma modificação foi sugerida pelo Conselho Legislativo. Quando um pre­sidente morre e o próximo na linha se torna presidente temporário, o novo presidente e o vice-presidente serão eleitos pelo Colégio Eleito­ral por um mandato completo de quatro anos e não apenas pelo tempo que resta do mandato inacabado.

Sim, ouvi falar nessa modificação. Mas não sabia que o projec­to ia ser aprovado hoje.

A assembleia não tocará numa palavra no que diz respeito a si e ao resto do Gabinete de O. C. Ficará tal e qual como está. Dilman não o poderá demitir a si ou a qualquer outro membro do Gabinete sem o consentimento do Senado. Na realidade, a linha de suces­são permanecerá exactamente na mesma como estava no dia em que O. C. e MacPherson morreram. Nenhum novo presidente da Câmara nem nenhum novo presidente interino do Senado terá prece­dência sobre si. É assim, Arthur.

Eu sei.

Como presidente da assembleia, Hankins apresentará o pro­jecto amanhã ou depois. E será aprovado.

Será mesmo?

Certamente que sim. E agora, para facilitar as coisas, Zeke Miller está a introduzir um projecto semelhante, a mesma espécie de linguagem, na Câmara. A Assembleia Legislativa da Câmara não o reprovará.

Talvez.

De certeza, Arthur. A questão é - Dilman assiná-lo-á ou não?

Não faço a mínima ideia - disse Eaton aborrecido. Irritava-o que o arrastassem para esses assuntos ensarilhados de legislações.

Eaton deixou de olhar para Talley. Fechou os olhos e continuou a fumar o seu cigarro. Certamente que pensara nesse novo projecto da Lei de Sucessão. Como teria podido não pensar nele? Todos os do círculo íntimo de O. C, no partido, na imprensa, a sua própria mulher, Kay, lhe recordavam permanentemente que ele era o próxi­mo na linha da sucessão à presidência. Mesmo que tivesse perma­necido surdo ao que lhe tinham dito na semana anterior, teria sido impossível não reconhecer a sua nova posição com a chegada dos três agentes do Serviço Secreto, designados pela lei para o proteger, como o homem número dois do Governo.

Agora, quer lhe agradasse quer não, tinha o novo projecto da Lei de Sucessão do senador Hankins, como um contexto que o pu­nha no lugar de sucessor de Dilman, como presidente, sem contar com quem a Câmara e o Senado elegessem para seus presidentes, sem contar com quem Dilman escolhesse para o seu Gabinete. Sob muitos aspectos era um assunto embaraçoso, a espécie de acção que Eaton deplorava, pois era tão cruamente política como ilógica. Se fosse aprovado mostrava a Dilman que o Congresso não confiava nele como pessoa (nem como negro), que o Senado o despojava dos seus poderes inerentes de demissão, que o Senado se instituía seu guardião. Além disso, por muito ambíguo que estivesse escrito, dizia ao país para fechar um olho no que dizia respeito à Constitui­ção, pois, apesar de a Constituição conceder ao Senado o direito de aprovar uma nomeação presidencial, não lhe concedia o direito de controlar uma demissão presidencial. Em resumo, um parágrafo do contexto do documento era obscurecido com uma legalidade duvi­dosa, que, todavia, estava sabiamente escondida por detrás da lin­guagem de um novo projecto da Lei de Sucessão. O cinismo e o raciocínio político que tinham dado origem ao projecto e que o iam apresentar e fazer aprovar não agradavam a Arthur Eaton.

Além disso, Eaton odiava ser lançado para o campo de Hankins e Miller. Estes não pertenciam ao seu género de pessoas. Ele des­prezava a sua maneira de tratarem as coisas. Publicamente, defen­diam que uma situação especial do governo requeria uma medida especial para o combater e assegurar a continuidade do governo. Privada e secretamente, esses mesmos homens concordavam em que, mesmo que esse parágrafo tornasse o projecto anticonstitucional, levaria tanto tempo a ser examinado pelo Tribunal Supremo e a ser rejeitado, que, por essa altura, o Presidente Dilman já teria cumprido o resto do mandato, sob a alçada do Senado, e o que acontecesse depois não interessava. O que interessava era que a nação fosse protegida contra o seu actual presidente.

Eaton não se queria meter com esses políticos e o seu projecto, e prometeu a si próprio ficar de lado, tão longe da intriga duvidosa quan­to fosse possível. Tinha uma missão a cumprir, uma missão que era suficiente para um ser humano - fazer com que os Estados Unidos fossem guiados na direcção indicada pelo seu amigo O. C.

Abriu os olhos e deparou com Wayne Talley, mais uma vez à sua frente.

-       Arthur - disse Talley -, o Dilman falou-lhe por acaso no projecto de Hankins?

-A mim, não.

E se alguém falar acerca dele, na reunião do Gabinete?

Duvido que alguém fale nisso - disse Eaton. - Visto que diz respeito a cada um dos membros do Gabinete, para os proteger con­tra o presidente, por que razão algum deles havia de falar nisso? Certamente que eu próprio também não teria coragem de falar acer­ca dele.

-       E se for o próprio Dilman a faiar acerca do projecto? Eaton pensou nessa hipótese.

Não, ele também não falará acerca dele - disse confiadamente. - Temo-lo visto em acção durante toda a semana. Ele até tem medo de abrir a boca. Escuta, preocupa-se, recua. Não tem qualquer opi­nião forte ou definida acerca de qualquer coisa no governo, excepto que não quer sarilhos. Penso que se não quer intrometer. Se conse­guir terminar o mandato de O. C. sem virar o barco, acho que ele sentirá que conseguiu tudo o que queria.

O quê?

Provar que um negro pode ser presidente e não deixar a Nação pior do que ela estava.

Talley não pareceu ficar convencido.

Espero que sim. Vejamos como reage em relação àquele dis­curso na televisão que preparámos para ele. Se o aceitar verbalmen­te, tal e qual como o escrevemos, prometendo ao país que servirá apenas como transmissor do programa de O. C, então penso que tem razão.

Quando é que lhe deu o rascunho do discurso?

Ontem à noite, quando ele ia a sair.

Eaton acenou com a cabeça.

- Então saberemos isso hoje. Afinal ele vai dizê-lo amanhã - amanhã ao fim da tarde, não é? - e devia...

Eaton não acabou a frase. Inclinou a cabeça para ouvir o som de passos que se aproximavam, no caminho de cimento lá fora. Pôs--se de pé, e ele e Talley puseram-se numa atitude atenta e respeitadora, enquanto o agente do Serviço Secreto, que se encontrava no jardim, saudava Dilman e o polícia da Casa Branca abria as portas de vidro.

Dilman entrou no Escritório Oval acenando com a cabeça.

Sr. Ministro... Governador...

Sr. Presidente - disse Arthur Eaton.

Bom dia, Sr. Presidente - disse Wayne Talley.

Dilman deixou-se ficar de pé, em frente deles, com um sorriso confuso nos lábios.

Sei que venho atrasado. Desculpem. Estava a tentar guiar a mudança e a tentar descobrir onde se encontravam as coisas, quando encontrei por acaso a... a primeira dama...

Oh! Quer dizer a Hesper - disse Eaton. - Pensei que se tivesse mudado ontem.

Bem, parece-me que se esqueceu de qualquer coisa - disse Dilman. - De qualquer maneira, estivemos a conversar um com o outro - uma senhora encantadora - e é esse o motivo por que chego atrasado. Temos ainda algum tempo antes da reunião do Gabinete?

Só quinze minutos - disse Talley. - Podemos tocar em todos os pontos se começarmos já.

Estou pronto - disse Dilman. Dirigiu-se para a secretária e, com óbvia relutância, sentou-se por detrás dela, na cadeira de coiro verde--claro e de costas estreitas, que substituíra a tão famosa cadeira de O. C, com controlo eléctrico para se levantar e inclinar.

Eaton tornou-se a instalar no sofá junto da secretária do presi­dente e Talley puxou uma cadeira de assento de palhinha. Enquanto Talley tomava o memorando das mãos do secretário de Estado, Dilman levantou uma das mãos.

-       Antes de começarmos - disse ele -, devo lembrar-lhes que nunca assisti a uma reunião do Gabinete e muito menos como seu presidente. Suponho que o nosso encontro da semana passada não se pode considerar como uma reunião. Quanto a uma reunião a va­ler... - Encolheu desajeitadamente os ombros.

Talley olhou de relance para Eaton e depois dirigiu-se a Dilman.

Apesar de não haver regras fixas de procedimento, Sr. Presi­dente, há um certo número de práticas que são tradicionais. Como sabe, o senhor é o membro que preside, e, como sabe também, os dez membros do Gabinete sentam-se consoante a sua ordem de sucessão. Geralmente o presidente reúne o Conselho duas vezes por semana, usualmente às terças e quintas, mas isto é altamente falível. Truman e Eisenhower acreditavam nessas reuniões regulares do Conselho. Já o mesmo não sucedia com Lincoln, Wilson e Kennedy, que preferiram discutir os problemas em conferências indi­viduais com os membros do Gabinete ou com os seus conselheiros. Outros membros do governo que ache que podem ser úteis podem também ser convidados a assistir. F. D. R. tinha usualmente Harry Hopkins nasala...

Espero que também esteja presente, governador Talley - disse Dilman.

Muito obrigado, Sr. Presidente. Agora as reuniões servem para aclarar ideias e opiniões, trocar informações especializadas, etc. Dão--Ihe uma oportunidade de ouvir uma diversidade de conselhos, reac­ções às suas próprias opiniões e de obter alguns conhecimentos de peritos. A coisa em si é bastante informal e, porque as conversas não são gravadas, pode ser bastante livre. Truman tinha uma secre­tária particular que tirava algumas notas. Eisenhower nomeou uma secretária especial do Gabinete para preparar o memorando e para tirar as linhas gerais do que se ia tratando, mas isso nunca mais foi feito depois dele. O Sr. Presidente pode abrir a reunião apresen­tando quaisquer problemas que tenha em mente. Ou pode simples­mente pedir aos membros, desde o ministro de Estado até ao minis­tro da Saúde, Educação e Assistência, para exporem o que têm a relatar ou a discutir.

Escutando, Eaton interveio.

-       Desculpe-me, Governador... Sr. Presidente, quero acrescentar aqui uma observação que fiz, ao assistir a tantas reuniões do Gabinete de O. O Não fique desapontado se não se chegar a grandes conclu­sões. Os membros do seu Gabinete são especialistas em campos dife­rentes. O. O descobriu que o ministro do Interior não tinha qualquer interesse ou conhecimento sobre os problemas de - bem, digamos, do meu ministério do Estado. E o director-geral do Correio é mais indicado em se preocupar com a questão do desenho de um novo selo ou do favoritismo político no Departamento do Correio que o procurador-geral, que é cheio de factos, números e preocupações acerca da vota­ção dos negros. Penso que foi para evitar este interesse burocrático, ou por qualquer outra razão, que o presidente Kennedy procurava conhecer pequenos elementos que lhe descobrissem os factos, de modo a podê-los discutir, em primeiro lugar, com uma meia dúzia de conselheiros inteligentes. Certamente que não tinha um horário fixo de reuniões de Gabinete ou do Conselho da Segurança Nacional. O mes­mo sucedia com O. C, que gostava de obter os factos de qualquer pessoa dos dez Ministérios, dos peritos, entre os dois milhões que tra­balham no ramo executivo, e depois reunir-se com o governador Talley e comigo mesmo, talvez mais um ou dois outros, e debater os proble­mas até chegar a uma conclusão. - Eaton fez uma pausa. - Penso, Sr. Presidente, que poderá determinar, dentro em breve, se prefere apoiar-se no Gabinete em geral ou em conselheiros que ache inteligentes e úteis.

Os dedos de Dilman fizeram girar o charuto visível no bolso supe­rior do seu casaco.

-       Penso que não procederei mal seguindo a orientação de O. C. Só que...

Eaton aguardou, curioso de ver se Dilman teria alguma qualifica­ção inesperada.

-       ... pergunto a mim próprio se o país não se sentirá melhor em relação a mim se souber que me encontro regular e formalmente com o Gabinete de O. C. Poderá então ver claramente o que estou a fazer. Enquanto que, de outro modo, pode ficar preocupado com o que eu estarei a fazer por detrás das portas fechadas.

Era um ponto sensato e razoável, disse Eaton para consigo pró­prio, e contudo não tinha a certeza se Dilman não estaria a oferecer resistência à sua orientação ou a tentar impor a sua individualidade.

Eaton decidiu continuar cautelosamente.

Talvez tenha razão, Sr. Presidente. Penso que estará apto a decidir que caminho tomar dentro de poucas semanas. Até lá, pode ir tentando as reuniões do Gabinete.

Sim - disse Dilman. Virou-se para Talley. - Sobre que vamos nós hoje falar na reunião, governador?

Lembrando ao presidente que só tinham sete ou oito minutos antes da reunião, Talley abordou rapidamente os vários problemas do me­morando. Havia o Pacto da União Africana. A renovação dos Estados Unidos como nação membro, com a promessa de defender a inde­pendência das novas democracias africanas, estava a ser apresenta­da ao parecer do Senado. O. C. quisera a ratificação, planeara falar acerca dela e depois assinar o Pacto. Isso satisfaria a África. Simulta­neamente, O. C. tencionava fazer pressão sobre o Presidente Amboko de Baraza para desistir da legislação anticomunista ao nível local e para reatar os intercâmbios culturais com Moscovo. Isso satisfaria a Rússia. Depois, para concluir o tratado de paz deixado incompleto em Francoforte, o Presidente Dilman e o Presidente Kasathkin teriam de combinar uma outra conferência internacional. Talley pensava que não se deviam reatar as conversações em Francoforte. O Presidente da França oferecera já hospitalidade no seu país. Podiam escolher um local perto de Paris.

Quanto aos negócios internos - disse Talley -, o maior esforço, aquele a que O. C. deu a maior parte da sua energia, é o Programa de Reabilitação das Minorias. Tenho a certeza de que o conhece bem, Sr. Presidente.

Não tão bem como o devia conhecer nesta altura - disse Dilman. - Naturalmente que, como senador, segui o seu desenvol­vimento. Inúmeras pessoas tinham muitas coisas a dizer-me acerca dele, tanto dentro do Congresso como fora dele. Mas está há tanto tempo na Assembleia Legislativa que tenho estado à espera da for­ma final da medida.

Já está na sua forma final - disse Talley. - Irá agora para a Subcomissão do Emprego. De qualquer modo, como ouvirá dentro em breve, a maioria do Gabinete é a favor dele. O procurador-geral, Kemmler, o ministro do Interior, Ruttenberg, o ministro do Trabalho, Barnes, todos estão preparados para ir à Colina do Capitólio lutar por ele. O. C. achava que o Programa não só seria um tiro para a nossa economia, mas seria também a única solução para... para a questão dos direitos civis. Temos a relação da maioria dos chefes brancos e ne­gros responsáveis que concordam com ele, Sr. Presidente.

Sim, eu sei - disse Dilman. - Sei que a Sociedade Crispus, a NAACP e a Liga Urbana o aprovaram, com certas reservas.

Eaton não só estivera a escutar o que Talley dissera, como esti­vera também a observar o rosto largo e negro do presidente. Excepto uma expressão de continua ansiedade, ele nada traia de afirmativo ou negativo. Nos rostos caucasianos familiares, Eaton era sempre capaz de ler as respostas interiores: o fechar, o expandir, uma dilata­ção, uma expansão, o franzir de qualquer parte do rosto era, às ve­zes, tão eloquente e revelador como as palavras. Naquele rosto pre­to e estranho, Eaton não conseguia ler qualquer reacção. A negrura escondia os pensamentos de Dilman tão bem como a mais negra noite sem lua.

O instinto de Eaton, considerado por O. C. e por ele próprio infa­lível, levou-o a uma rápida decisão. Continuar a sobrecarregar Dilman com mais informações seria inútil agora. Este jà tomara consciência das questões básicas, como O. C. as considerava. Era o suficiente, por agora. Se necessitasse de mais alguma coisa, a reunião do Gabi­nete fornecê-la-ia.

Eaton endireitou-se e olhou para o relógio de pulso.

Temo que estejam já à nossa espera, na Sala do Gabinete. Talley protestou.

Há ainda...

-       Já esclareceu o presidente sobre os principais pontos, Wayne. É o suficiente. - Levantou-se e sorriu para Dilman. - Tenho a certeza de que já está farto de tudo isto, Sr. Presidente. Eu por mim estou.

Dilman sorriu também.

-       Fico-lhe muito grato pela sua compreensão, Sr. Ministro. Sinto-me como um computador sobrecarregado de electricidade. Tenho medo de que algo se avarie ou que se dê um curto-circuito.

Eaton esperou que o presidente se levantasse e o precedesse. Depois, juntamente com Talley, seguiu Dilman através do Escritório Oval, através do cubículo de Edna Foster até à fresca Sala do Gabi­nete.

O grupo de O. C. estava já presente e sentado, levantando-se imediatamente à entrada de Dilman. Este tomou o seu lugar na bela cadeira ao centro da mesa, o único lugar da mesa onde havia uma pasta e perto da qual estava um telefone. Espalhados pela mesa ha­via vários cinzeiros de cerâmica, alguns parcialmente cheios, garra­fas de prata com água, copos, pilhas de notas e documentos perten­centes aos membros do Gabinete.

Quando o presidente se sentou e Eaton tomou o lugar junto dele, os outros sentaram-se também. Talley foi para o seu lugar, no extremo oposto da mesa, perto do fogão de sala e do retrato de George Washingon. Em frente de Talley estava sentado o outro não membro do Gabinete, o Embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Slater.

O olhar de Eaton varreu a mesa, passando em revista a assistên­cia: o ministro das Finanças, Moody, o ministro da Defesa, Steinbren-ner, o procurador-geral, Kemmler, o ministro das Comunicações, Guthrie, o ministro do Interior, Ruttenberg, o ministro da Agricultura, Allen, o ministro do Comércio, Purcell, o ministro do Trabalho, Barnes, o ministro da Saúde, da Educação e da Assistência, Sr. Cummins. Eaton conhecia-os todos bem. Apesar das diferenças de idade e dos seus antecedentes - alguns tinham sido professores da universidade, outros homens de negócios, outros políticos -, tinham formado sem­pre um clã cheio de vida e sem cerimónia. Mas isso fora noutro tem­po, sob a chefia informal daquele que os nomeara, os conhecera e os respeitara.

Nessa manhã, Eaton podia ver que o comportamento deles era diferente. Permaneciam calados, silenciosos, com uma atitude interrogadora perante o seu novo Chefe Executivo. Este não passava de um estranho para eles, assim como eles não passavam de estra­nhos para ele. No pós-choque, Dilman pedira-lhes que continuas­sem nos seus respectivos cargos para o ajudarem, e eles tinham aceitado. Agora encontravam-se frente a frente com alguém com quem tinham tido um contacto nulo, um homem cujo espírito des­conheciam, cujos desejos constituíam um mistério para eles, um homem separado por uma barreira de cor, que tornava a compre­ensão entre eles quase impossível. Isso reflectia-se nos seus olhos inquietos, e provavelmente espraiava-se pelos cérebros por detrás desses olhos, calculava Eaton. Podia estar enganado, disse a si pró­prio. Mas duvidava.

Perguntou a si mesmo por que motivo a reunião ainda não come­çara, e então notou que Douglass Dilman tirara um envelope do bol­so interior do casaco e revia algumas notas escritas a lápis nas cos­tas do mesmo.

Dilman colocou o envelope sobre o mata-borrão da pasta à sua frente e passou os olhos pelo pessoal do Gabinete à sua volta.

- Vamos iniciar a nossa primeira reunião - disse Dilman. - Sei que nos encontrámos já na semana passada, mas não posso considerar isso como uma conferência de assuntos do governo. Agora, não devemos caminhar desencontrados. Devemos ir para a frente todos juntos. Eu não os conheço, herdei-vos. E vós não me conheceis, herdastes-me. Temos porém o poderoso factor em comum que é a nossa mútua fé nos ideais representados por O. C.

Dilman inclinou-se para a frente e pegou no envelope escrito nas costas.

-       Ao deixar o segundo andar da Casa Branca para vir a esta reunião encontrei-me por acaso com a viúva do último presidente. Estivemos a conversar e, à vinda para baixo no elevador, tirei algu­mas notas sobre a nossa conversa. Fiquei comovido ao ver que, neste período de profunda dor pessoal, a sua preocupação máxima é que eu, como sucessor do marido, continue a defender o seu programa pelo bem-estar de todo o povo da Nação. Esta boa senho­ra pensava não em si, mas nos outros. Esperava que eu fosse a solução para as suas preocupações, o transmissor e o continuador do que o marido construíra.

Dilman pousou o envelope e os seus olhos deram a volta à mesa.

-       Estou hoje aqui para vos garantir que, dentro das minhas limita­ções, procurarei servir os Estados Unidos de modo a fazer desapare­cer as preocupações da primeira dama quanto ao programa à nossa frente, e de modo a assegurar aos milhões que votaram em O. C. Que o seu apoio não foi em vão.

O estalar dos aplausos foi instantâneo e surpreendeu Arthur Eaton. Não se lembrava de ter assistido a uma manifestação dessas no tempo de O. C. Olhou de relance para o negro à sua esquerda, curvado para a frente, a cabeça baixa, as mãos uma sobra a outra em cima do mata-borrão, e pela primeira vez Eaton perguntou a si próprio se, por detrás daquela máscara impassível e obtusa, não haveria a esperteza e a intuição necessárias para ganhar as boas graças. Então ocorreu a Eaton que talvez Dilman não tivesse sido elei­to para o Congresso por um mero acidente político, mas que fora elei­to porque era suficientemente esperto para julgar as pessoas e fazer uso delas. Contudo esta avaliação de Dilman era tão drasticamente oposta à opinião que Eaton dele fizera na semana anterior que não estava pronto a aceitá-la. Era mais provável que Dilman tivesse ganho vantagem devido ao clima emocional criado pela morte de O. C, clima esse que afectara não só os ouvintes como também o próprio Dilman.

Eaton olhou para Talley, ao fundo da mesa, e este piscou-lhe o olho. Então Eaton compreendeu a razão por que Talley piscara o olho e do que acabara de suceder. Dilman fizera a sua promessa. Não cami­nharia fora da sombra de O. C.

Dilman dirigia-se-lhes de novo.

-       Nesta reunião não tenho quaisquer problemas ou legislação específicos acerca dos quais pedir o vosso conselho. É ainda dema­siado cedo. Exceptuando o meu conhecimento dos assuntos, como senador, e de algumas informações que obtive dos conselheiros do último presidente, não estou ainda muito apto a falar acerca do que O. C. tinha de enfrentar e que eu tenho agora de enfrentar em seu lugar. Necessito de todas as informações que possa obter, tão depressa quanto possível, e qualquer sugestão que tenhais para me dar ser-me-á de grande utilidade. Portanto, nesta reunião, pelo me­nos gostaria que cada um de vós, especialista nos vossos próprios campos, falasse acerca dos seus problemas, para que eu possa com­preender os meus. Hoje, falareis vós e eu escutarei. Para a próxima semana talvez tenha um papel mais construtivo. Vós sois dez, onze com o embaixador, e, se cada um de vós falar durante cinco minutos, ficarei suficientemente informado para sentir que tivemos um bom começo e sairei daqui a tempo de manter um dia pesado com outros compromissos. Sr. Ministro Eaton, quererá iniciar a minha educação?

Eaton tentou sorrir.

-       O Sr. Presidente está a ir tão bem que acho que sois vós quem nos poderá educar. Na realidade há um certo número de problemas de política externa de natureza urgente que precisam de ser resolvi­dos.

Eaton começou a relatar animadamente ao Gabinete a última conversa com O. C. e os desejos deste até ao momento em que morrera. Cuidadosamente andou à volta do que Talley tentara dizer a Dilman no Escritório Oval. O Presidente Kasatkin e o Conselho Russo suspeitavam da intervenção dos Estados Unidos na África.

-       Os Russos - disse Eaton - acham que a nossa renovação como membro do Pacto da União Africana, prometendo aos países africa­nos apoio económico e ajuda militar se a independência viesse a ser ameaçada do exterior, é um golpe de provocação em relação a Moscovo. Em resumo, uma outra NATO. Contudo, disse O. O, os Russos tolerariam o nosso Pacto se cessássemos de encorajar a legislação anticomunista em Baraza. Quase as últimas palavras de O. C. foram que devemos ceder com honra e mantermos um caminho moderado para assegurar a paz mundial. O. C. queria a renovação do Pacto e queria também dar aos Russos o seu osso - a nossa promessa de que Baraza não prosseguiria nas suas medidas anticomunistas. Esta semana, como ministro de Estado, tomei duas medidas - convoquei o embaixador Slater das Nações Unidas para conferenciar com o embaixador de Baraza, e enviei o secretário as­sistente dos Negócios Africanos, Stover, à cidade de Baraza para conferenciar com o Presidente Amboko. Talvez o embaixador Slater gostasse de ihe expor as conclusões a que chegou nas suas conver­sações.

O embaixador nas Nações Unidas, um diminuto ex-professor de História, célebre pela sua eloquência, lançou-se num relato detalha­do das suas conversações com o embaixador Wamba, de Baraza. Em tais conversações tornara-se claro que, embora Baraza temesse o abandono americano pela não renovação do Pacto da União Afri­cana, o pequeno país temia igualmente dar liberdade à sua minoria de nativos comunistas. O embaixador Wamba não fazia quaisquer promessas. A decisão teria de vir do Presidente Amboko.

Aqui Eaton tomou de novo a palavra. A longa conferência de Stover com o Presidente Amboko reflectira os mesmos temores e indecisões.

Eaton voltou-se na cadeira para Dilman.

Amboko quer vê-lo pessoalmente, Sr. Presidente, antes de tomar qualquer resolução. Se me dá licença que seja franco, penso que ele acha que, por o Sr. Presidente ser um negro americano, enquanto ele é um negro africano, o senhor será mais condescendente com ele e lhe prometerá desafiar a Rússia. - Eaton pôde ver Dilman torcer-se ligeira­mente na cadeira, mas achou que já era tempo de fazer Dilman ver que podia haver pessoas de fora que se quisessem servir do facto de ele ser preto. - Sr. Presidente, seja o que for que o nosso amigo africano lhe tenha para dizer, o caminho foi-nos já distintamente traçado por O. C. Não podemos arriscar uma guerra nuclear para servir os interesses de um minúsculo país africano. Isso pode ser discutido detalhadamente antes da chegada de Amboko. Suponho que terá de recebê-lo.

Sim - respondeu calmamente Dilman -, penso que deverei recebê-lo.

Seguidamente Eaton expôs um resumo da Conferência de Roemer, e disse que prometera receber o embaixador russo, Rudenko, para falarem acerca da possibilidade de uma conferência em ou perto de Paris, para combinarem uma data mutuamente satisfatória. Depois, sentindo que já estava a dominar a mesa havia muito tempo, Eeaton disse rapidamente a Dilman que a política dos negócios estrangeiros se tornara tão complexa que saíra dos âmbi­tos do seu ministério do Estado para numerosos outros ministérios, como o da Defesa e o das Finanças.

Então, o ministro da Defesa, Steinbrenner, um milionário som­brio, ponderado e fechado, pertencente à força aérea, expôs a posi­ção do país na corrida das armas, dando ênfase ao número de reser­vas dos projécteis nucleares e à situação do país quanto às bases de além-mar. Excepto no que dizia respeito ao recente desenvolvimento do míssil guiado Demi John, a principal força dos Dragon Flies, Steinbrenner deplorava o facto de que, em material de guerra, os Estados Unidos estivessem tão atrasados em relação aos Russos. Queria maiores despesas para seleccionar unidades como os Dragon Flies. Além disso, queria uma reorganização do Pentágono, especi­almente no que dizia respeito ao alargamento dos destacamentos militares e à aceleração da produção dos fornecedores do exército subsidiados pelo governo.

Imediatamente o ministro das Finanças, Moody, lhe saltou em cima, protestando contra o custo de uma reorganização do Pentágono e opondo-lhe parte de um programa de auxílio ao estrangeiro. Escu­tando a voz áspera do conceituado banqueiro, Eaton tirou um cigar­ro, meteu-o na boquilha de prata e acendeu-o. Já ouvira tudo aquilo antes e podia ver que o mesmo sucedia com Dilman, e Eaton tentou esconder o aborrecimento que sentia crescer em si. Enquanto Moody discursava acerca da natureza dos gastos, de taxas, de economia, Eaton manteve-se alheado. Então, subitamente, o ministro das Finan­ças mencionou o orçamento do proposto Programa de Reabilitação das Minorias, e imediatamente surgiram seis vozes, de cada lado da mesa, a quererem impor-se umas às outras.

Eaton tentou distinguir cada uma das vozes, o que era difícil; então adivinhou-as, pois as vozes diziam quase todas a mesma coi­sa, mas em linguagens diferentes, consoante os diversos campos a que pertenciam. Favoreciam unanimemente o Programa de Reabilitacão das Minorias e não queriam restrições quanto ao seu orça­mento. O ministro do Trabalho, Barnes, dizia que o Programa criaria empregos e garantiria prosperidade. O ministro da Agricultura, Allen, dizia que os lavradores estavam satisfeitos porque o Programa absor­veria os alimentos que lhes sobejavam, enviando-os para as áreas subdesenvolvidas. O ministro do Interior, Ruttenberg, dizia que o Programa o ajudaria a desenvolver e a conservar os recursos natu­rais como Ike fizera com a WPA. O ministro do Comércio, Purcell, falava das suas estradas nacionais e vias públicas, o ministro da Saúde, Educação e Assistência, Sr. Cummins, falava do seu pro­grama de expansão dos edifícios escolares, e o ministro das Comu­nicações, Guthrie, falava da promessa de mais ramos do correio e mais carteiros.

As ideias voavam, e apesar da unanimidade inicial havia repen­tinamente trocas de palavras azedas. Ouvindo aquele fogo cruzado, em que participava quase todo o Gabinete, Eaton sentiu-se satisfeito. O génio de O. C, disse para consigo mesmo, tornara possível tal vitalidade e excitação intelectual. Eles ali estavam, não sufocados pelos monólogos fastidiosos tão correntes nos gabinetes anteriores e divididos por departamentalismos. Eaton recordou uma conversa que tivera, havia vários anos, com um membro do Gabinete de Franklin D. Roosevelt, acerca de uma reunião típida, durante a qual, enquanto o ministro do Trabalho, Francês Perkins, discursava sobre os seus problemas, Harry Hopkins, James Farley e Cordell Hull tinham esta­do absolutamente na lua, e Robert Jackson e Henry Morgenthon tinham trocado piadas sobre outros assuntos. Só o presidente, sempre inte­ressado em tudo e todos, escutara Perkins.

Eaton observou o presidente Dilman de revés. O seu rosto negro estava tão fechado e impassível como nunca. As suas mãos permane­ciam imóveis, mas os seus olhos atentos moviam-se de um orador para outro.

De repente, ouviu-se uma palmada na mesa, e uma voz domi­nando todas as outras. Todos se calaram imediatamente, com a aten­ção centrada no procurador-geral, Clay Kemmler, cujos olhos cruéis estavam mais duros e cujo queixo proeminente estava mais saído do que nunca.

- Por que não pomos ponto final em toda esta discussão dispa­ratada acerca do Programa da Reabilitação das Minorias e em todas essas questões secundárias e desacordos sobre os aspectos econó­micos, e não falamos directamente acerca da única coisa que é im­portante nesse decreto? - perguntou Kemmler. - Temos o problema dos negros desde o dia da Reconstrução, e foi apenas desde a admi­nistração de Eisenhower, Kennedy e Johnson que tal problema cha­mou a nossa atenção, pois até aí os negros tinham-se mantido cala­dos e estavam pobremente organizados, e então é que foi o diabo. Quando O. C. subiu à presidência, a situação continuava na mesma. A sua administração tinha de descobrir algo depressa, ou então assistir a massacres diários de brancos e pretos. Então ele pensou em como F. D. R. fizera surgir a WPA, para manter ocupados os desemprega­dos, com o fim de os afastar de revoltas abertas. Depois pensou na antiga noção da Liga Urbana de um Plano Marshall doméstico para ajudar os negros a evoluírem rapidamente através de um aumento de rendimentos e educação, preparando-os assim para a igualdade total. Foi assim que nasceu o MRP e é essa a única razão da sua existência.

O procurador-geral Kemmler pareceu respirar fundo, depois virou-se para o Presidente Dilman e inclinou-se sobre a mesa apon­tando com um dedo na sua direcção.

-       Sr. Presidente, só há um aspecto desse decreto que deve ser tomado em consideração - é o que tem como finalidade ajudar o seu povo e consequentemente o seu país.

Eaton pôde ver que, embora o rosto largo de Dilman permane­cesse impassível, as suas mãos apertaram-se mais uma de encontro à outra, até os nós escuros dos dedos ficarem quase brancos.

-       Sr. Presidente - prosseguiu o procurador-geral -, espero que tenha tempo, dentro em breve, para visitar o nosso Ministério da Justi­ça e para percorrer a nossa Secção dos Direitos Civis. No tempo de Kennedy e depois no de Johnson, tínhamos lá a trabalhar uns cem homens e mulheres, entre advogados, investigadores e secretários. No tempo de O. C. tínhamos duzentos, nessa Secção. Na semana pas­sada, desde que o senhor, um negro, subiu à presidência, tivemos de aumentar o nosso pessoal para duzentos e cinquenta e dentro de um mês o número deverá ser de trezentos. Porquê? Porque a sua súbita ascensão lembrou duplamente ao negro médio o que lhe falta. Ele está farto de se manter na forma, de barriga vazia, esperando a sua cidadania e aprendizagem. Está farto da Sociedade Crispus e da NAACP, que lutam com livros de Direito. Quer acção. Há esse grupo dos Turnerites, para designar apenas um de entre mil outros que estão surgindo, todos acesos, não exigindo a nossa acção, mas actuando por sua própria conta, e ameaçando praticar todas as espécies de horrores. E há o Klan, e os seus rebentos, duplamente revificados por­que temem que a sua administração seja antibranca e vingativa, e es-tão-se a aprontar para qualquer espécie de violência. Só uma coisa pode pôr termo à guerra civil que está à nossa frente, e essa é a apro­vação imediata e a implantação efectiva do Programa de Reabilitação das Minorias. Talvez não resolva tudo permanentemente, mas tornará a conduzir este país à normalidade e dará ao meu Ministério uma opor­tunidade de controlar o que se passa. Recomendo vivamente, por causa da questão racial e de mais nada, que o senhor, assim como O. C. pensava, lance todo o peso e todo o prestígio do seu cargo na realiza­ção de tal projecto.

O procurador-geral parou ofegante e Eaton pôde observar que, depois daquela catadupa, pouco restava para discutir. Olhou para o Presidente Dilman, cuja expressão se mantinha ainda inalterável.

Eaton disse:

-       Sr. Presidente, penso que já passa da hora. Se deseja manter o seu horário de compromissos...

Dilman acenou com a cabeça, metendo o envelope de novo na algibeira, e depois, pestanejando em direcção a Kemmler e depois em direcção aos outros, tentou falar. A sua voz era quase inaudível.

-       Esta noite vou começar a estudar pormenorizadamente o Projec­to do Programa de Reabilitação das Minorias - disse. - Antes da próxi­ma reunião é provável que convoque alguns de vós, individualmente, para obter mais informações acerca dele, assim como sobre Baraza e outros assuntos. Sr. Ministro Eaton, agradeço-lhe o discurso que o senhor e outros conselheiros de O. C. fizeram para a minha estreia na televisão, amanhã. Está excelente e exprime inteiramente os meus sen­timentos. Apresentá-lo-ei como está escrito, apenas com uma leve modificação. Não falarei acerca do Projecto das Minorias até que o tenha estudado e o compreenda melhor. Em todo o caso, acho que o discurso assegurará ao país que não lhe vou impor um... um governo negro... ou um governo diferente, mas um governo como o que teve sob o último presidente. Muito obrigado a todos. A reunião continuará para a próxima vez.

Levantou-se e dirigiu-se rapidamente para a porta, desapare­cendo no escritório de Edna Foster.

Imediatamente os vários membros do Gabinete se prepararam para partir, sendo poucos os que se atrasavam, pois cada um tinha um duro horário de compromissos. Dirigindo-se para a porta, a maior parte deles exprimia a sua satisfação por Dilman «cumprir as suas obrigações», e «não causar sarilhos» e «escutar os conselhos». Eaton foi o último membro a deixar a sala e, antes de poder partir, Talley agarrou-o por um cotovelo e levou-o até ao canto mais afastado da sala.

Então o que pensa, Arthur? - perguntou Talley.

Penso que tudo correu muito bem - disse Eaton. - Parece resol­vido a seguir-nos. Apresentará o nosso discurso ao país, amanhã. Não podemos pedir mais.

Talley fez uma restrição.

Sim, e aquilo que ele disse no fim, acerca de querer modificar o que tínhamos posto sobre o Projecto das Minorias, de o querer estudar para que o possa compreender? O que significa isso, Arthur?

Significa, Wayne, que ele precisa de mostrar alguma dignidade como indivíduo, para provar que não é um simples papa-galo. Ele é uma pessoa, uma pessoa que por acaso é negra, e quer, pelo menos, ler o projecto mais importante dos últimos vinte anos relacionado com o seu povo. Faz sentido. No seu lugar, eu faria o mesmo.

-       Mas acha que o temos nas mãos? Eaton franziu a testa.

Desculpe-me, governador, mas eu não poria as coisas nesse pé. Eu diria que O. C. o tem a ele, e que ele tem O. C, e isso é o suficiente para mim.

Amém - disse Talley. - Eu diria que a si cabe todo o mérito.

Nem todo - disse Eaton. - Hesper também teve algum.

Continuo a dizer você - disse Talley. - Foi você quem a con­venceu a estar lá em cima quando ele lá estava, a falar-lhe como ela lhe falou. Ninguém resiste a uma viúva. Seria o mesmo que atirar a mãezinha pela janela fora ou pisar a bandeira. Você é um génio, Arthur. Sinto-me agora como se tivéssemos O. C. de novo no escritório pre­sidencial.

  1. C. está no escritório presidencial - disse Arthur Eaton. -E nós vamos conservá-lo lá.

Douglass Dilman recostou-se na cadeira e contemplou o filho do outro lado da secretária Buchanan.

Desde a sua chegada, havia dez minutos, o rapaz mantivera-se num estado de grande entusiasmo. Felicitara profusamente o pai. Contara alegremente os pormenores da sua viagem de comboio desde Nova Iorque, acompanhado pelo homem do Serviço Secreto que lhe aparecera na Universidade de Trafford, havia seis dias. Comu­nicara orgulhosamente que todos os passageiros do comboio iam absorvidos num jornal ou numa revista cheia de fotografias do Presi­dente Dilman. Contara a excitação da sua viagem no automóvel da Casa Branca, dos fotógrafos que o tinham rodeado no vestíbulo da ala oeste, e dos quais fora libertado por Tim Flannery.

Momentaneamente silencioso pela sua primeira visita ao Escritó­rio Oval, Julian quisera depois saber tudo acerca deste. Dilman con­duzira rapidamente o filho numa volta à sala, indicando-lhe as curiosida­des históricas. Mostrara a Julian o selo do Chefe Executivo impresso no tecto branco, a carabina Spencer usada pela primeira vez por Lincoln e actualmente pendurada na parede, o chão de cortiça entre a carpete e as portas de vidro ainda picado dos sapatos de golfe de Eisenhower, as leves marcas dos tacões dos sapatos sob a madeira da secretária Buchanan, feitas pelo filho de Kennedy quando gatinhava para debaixo dela, e a cabeça de leopardo embalsamada, oferecida pelo Presidente de Baraza a O. C, e que a primeira dama autorizara a ficar na Casa Branca. Quando tinham regressado de novo para junto da secretária vazia, Julian perguntara se o pai poderia pôr os seus próprios objectos sobre ela. Dilman replicara:

- Certamente, quando tudo tiver sido desembalado. Da próxima vez que aqui vieres, verás o troféu da Liga Forense sobre a secretá­ria, assim como os retratos emoldurados da tua mãe e o teu. - Am­bos tinham pensado, instantaneamente, no nome e no retrato não mencionados.

Agora Dilman observava o filho, mais do que o escutava, en­quanto este prosseguia nas suas efusões. Julian contava como os acontecimentos da semana passada tinham excitado os alunos da Universidade de Trafford. Examinando o rapaz, Dilman admirou-se, mais uma vez, que Julian tivesse quase vinte anos. A indumentária janota -casaco de ombros estreitos, as calças apertadas, a camisa branca de colarinho alto e com goma, a gravata italiana, os sapatos ingleses pon­tiagudos - acentuava a sua fraca constituição e pequena estatura. O cabelo curto de Julian estava cheio de brilhantina, os olhos saíam esbugalhados do seu rosto preto retinto, no centro do qual se alarga­vam as narinas. As mãos, constantemente animadas, muito lavadas, as unhas arranjadas, eram quase demasiadamente delicadas, em con­traste com o seu rosto africano.

Julian tinha, temia Dilman, uma certa falta de naturalidade e de equilíbrio. Enquanto a irmã se parecia fisicamente com a mãe, Julian herdara alguns traços do carácter desta: ficava rapidamente deprimi­do, era demasiado estouvado e demasiadas vezes venenoso. Tinham sido esses traços que levaram Dilman a resolver que o rapaz estaria mais seguro numa escola negra, entre os seus, do que numa escola sulista não segregada, que poderia ser um depósito potencial de pólvora.

Observando o filho, Dilman perguntava a si próprio se teria agido bem. Julian tinha-lhe pedido para ir para a famosa Universidade da Caro­lina do Sul, que fora dessegregada à força - cinco negros frequenta-vam-na então, e faziam-no sob a protecção da polícia armada -, argu­mentando que se queria habituar à igualdade que lhe era devida e que tinha todo o direito de beneficiar da famosa Faculdade de Direito da Universidade. Dilman recusara deixar entrar o filho para essa explosiva instituição. Nessa altura, dissera, e tentara acreditar, que fazia isso para bem do próprio Julian, para o proteger do ódio, do ostracismo e, possi­velmente, da violência física. Mais tarde, após as frequentes discussões com Wanda acerca da sua decisão, Dilman perguntara a si próprio se não teria agido considerando menos o bem do filho do que o seu próprio bem. A entrada do filho de um senador para uma Faculdade da Carolina do Sul teria levado Dilman para os jornais, frisando a sua negridão e diferenciação em relação aos outros constituintes, e isso teria sido mais uma desvantagem política para ele do que uma vanta­gem, e teria prejudicado a causa negra em geral.

Dilman podia ver agora, porém, que o frequentar uma faculdade completamente branca podia ter tido um efeito salutar sobre Julian. Não só teria dado uma resposta às suas exigências juvenis em rela­ção à igualdade, mas ter-lhe-ia dado um sentido de responsabilidade social e escolar, uma maior maturidade, e ter-lhe-ia modificado os seus acessos de ressentimento. Dilman podia ver que a Universidade de Trafford não lhe fora benéfica. Se beneficiara alguém fora ape­nas o próprio Dilman, para que a opinião pública acerca da sua pró­pria vida se mantivesse mais calma. A paz que Dilman ganhara ao pôr o filho no abrigo seguro e isolado de uma escola negra fora cus­tosa para o rapaz. A frustração de Julian alimentava a sua ira. A se­gregação em relação aos seus - «aquela Harlem académica», cha­mara uma vez Julian a Trafford - fizera-o menos apto para se tornar um cidadão do país considerado como um todo. A segregação im­posta pelo pai fizera com que Julian se desinteressasse da vida à sua volta e da sua educação.

Continuando a inspeccionar o filho, Dilman tentou dizer a si pró­prio que agira ajuizadamente, com uma noção da realidade que Julian não possuía. Como pai, Dilman protegera o filho. Nessa manhã, não havia em Julian qualquer traço de amargura, do ressentimento e do desequilíbrio de temperamento usuais. Parecia entusiasmado, feliz até. Mas escutando mais atentamente, Dilman não se podia enganar a si próprio. O rapaz não se sentia feliz por estar em Trafford, mas sim por ser um filho do presidente em Trafford. O seu prazer não era devido ao facto de ter ganho mais atenção e respeito da parte dos seus colegas de cor. Já tivera muito disso, como filho de um senador. O seu prazer era devido ao facto de membros da faculdade branca, membros da imprensa branca e árbitros raciais brancos das cidades dos arredores de Nova Iorque o terem tratado com deferência.

-       Ena, Pai! Gostava que tivesse ido àquele chá na biblioteca da Faculdade de Direito, ontem - dizia Julian. - Com excepção de alguns estudantes de honra, eu era o único não formado. Julgar-se-ia que eu era uma celebridade ou qualquer coisa no género, pelo modo como aqueles professores brancos andavam à minha volta, a fazerem-me perguntas acerca do pai e do seu passado, de como se dera no Direito Comercial e onde praticara, e se continuara a interessar-se pelo Direito depois de ter entrado para o Congresso. Digo-lhe, aquilo só visto. Até mesmo o deão das admissões tentou saber quais os meus pla­nos, se eu já falara com o pai e se vinha ter consigo aqui, à Casa Branca. Imagine, até o próprio deão...

Dilman viu que já era tempo de pôr termo àquele entusiasmo do filho. Interrompeu-o.

-       Julian...

Julian parou, olhou para a cara do pai, e esperou desconfiado.

-       Estou muito contente por seres assim tão popular- continuou Dilman -, mas diz-me uma coisa. O chanceler McKaye também an­dou à tua volta?

A expressão de Julian mostrou que suspeitava de uma arma­dilha qualquer, e os seus olhos salientes rolaram como sempre que se tornava cauteloso.

Não - disse ele. - Porquê?

Bem - disse Dilman -, é que recebi uma carta dele, antes da morte do nosso último presidente.

Julian tentou uma táctica evasiva, mas sem grande convicção.

Está a falar acerca do pai lá ir à escola para falar no Dia dos Fun­dadores? Ouvi vagamente falar em que o iam convidar. Espero que...

Sabes muito bem que não foi esse o convite que o chanceler McKaye me enviou - disse Dilman aborrecido. - Era um convite, sim, mas para discutir o que se passava contigo. Informou-me que estás prestes a alcançar um F, pelo menos, numa cadeira, e é provável que não mantenhas o grau de passagem em outras duas cadeiras. Se a tua média for além de C, terás de te apresentar a exame. Sabes o que isso significa. Não só precisarás de obter graus de passagem, mas precisarás também de tirar uma média B para que te aceitem na Facul­dade de Direito. Devo dizer-te que fiquei espantado, Julian. A tua média era entre o B e o C. Queixavas-te de que o currículo era demasiado fácil. Agora, de repente, esta queda. O chanceler informou-me que te mostras rebelde, desatento, e mais interessado por actividades exte­riores do que pelas aulas. Antes de falar com ele, desejava falar con­tigo. Fomos sempre francos um com o outro, Julian. Mais do que nunca, estamos numa época em que a franqueza é precisa. Que se passa contigo naquela escola, Julian?

Julian estivera todo o tempo a torcer-se na cadeira. Agora mos-trava-se sombrio.

Nada - disse ele. - Tenho andado muito ocupado, é tudo.

Ocupado com quê?

Bem, estou no quadro administrativo dos estudantes de Carver Hall, e há o Clube do Debate, e ultimamente têm-nos sobrecarregado com trabalhos para fazer em casa.

Tens-te aguentado até aqui.

E depois há a Sociedade Crispus. Agora que pertenço a uma das Assembleias Nacionais e ao Conselho Consultivo Nacional dos Estudantes de Crispus tenho de ir mais vezes a Nova Iorque. Pergun­te ao seu amigo Spinger a quantidade de trabalho que isso acarreta. De qualquer maneira não se preocupe, eu...

-       Estou preocupado, sim, Julian. Não me oponho às tuas acti­vidades extras. Quanto a mim, podes tê-las, mas apenas se não interferirem na tua verdadeira tarefa, que é tirares o teu curso de Direito.

Dilman pôde ver o veneno vir ao de cima no rosto do filho e Julian apertar os lábios para impedir que eles tremessem.

-       Não estou de acordo consigo - disse Julian com voz metálica.

-       A minha verdadeira tarefa não é obter uma pasta de carneira preta para que possa exercer no lado sul de Chicago, como o senhor, pro­tegendo o meu povo em insignificantes processos civis. A minha tarefa é proteger os direitos do meu povo sob a Constituição, fazendo com que ele não seja espezinhado. Posso conseguir isso melhor dedi­cando o meu tempo à Sociedade Crispus, lutando por todo o meu povo, do que tentando tirar o meu curso numa faculdade negra, para que possa vir a ser um advogado negro, para representar os negros em assuntos que não interessam para nada. O meu principal dever é ajudar o país a endireitar-se para que, quando me forme em Direito, seja um advogado negro, e possa viver entre as pessoas e não ape­nas entre as pessoas negras, e possa representar clientes de todas as cores - é esse o meu dever e a minha tarefa. Não me interessa o que o pai possa dizer, mas o pai pôs-me à força naquela faculdade, para me conservar no meu lugar, para que eu me conservasse um negro, como fazem os brancos...

Dilman já ouvira tudo aquilo antes, mas nunca pronunciado com tanta indignação. Conteve a sua própria cólera, resolvido a ser mo­derado com o rapaz.

-       Não tentei conservar-te negro, ou qualquer outra coisa, Julian -        disse ele. - O que és, o que vieres a ser, está nas tuas próprias mãos. Certamente que há grandes injustiças contra nós, mas temos ganho terreno e ganharemos ainda mais, e algum dia, legalmente, este país será o país de todos.

-       O pagamento está atrasado há cem anos - disse Julian irado.

-       Já não esperamos mais. Agora chegou a altura de recebermos o que nos é devido.

Dilman olhou para as suas próprias mãos sobre a secretária.

Estão a pagar-nos pouco a pouco - disse calmamente. -A escravidão e o cativeiro desapareceram já. A segregação está a desaparecer. No teu tempo as coisas serão já mais fáceis do que no meu, e mesmo assim olha o que um negro como o teu pai conseguiu alcançar neste país. Tanto os brancos como os pretos me colocaram no Congresso...

Dentro das condições dos brancos - disse Julian. Apressa­damente, acrescentou: - Não quero ser desrespeitador, mas o que quero dizer...

Julian, olha onde eu estou sentado, olha para a sala em que estás...

Julian agarrara-se à mesa.

-       Não era intenção deles que o pai aqui viesse parar, eles não o querem aqui. Nós queremo-lo, mas eles não. - A sua voz tornara-se de novo metálica. - Não lhe contei tudo o que tenho ouvido.

Dilman quis pôr termo àquela cena penosa com alguém do seu próprio sangue, alguém que não compreendia.

Eu sei o que se passa, Julian - disse ele. - Apesar de tudo, estou aqui e isso exprime bem a nossa situação no nosso país. É uma prova do que é possível. Tentarei cumprir a minha missão aqui, e tudo o que quero de ti é que deixes de tentar modificar o mundo e que te concentres em aprender qualquer coisa na Facul­dade...

Pai, eu vou contar-lhe, eu vou contar-lhe - interrompeu Julian. - Todos nós pensamos que é quase um milagre o senhor estar onde está. Tem a oportunidade única de fazer, em pouco tempo, o que o nosso povo e todos aqueles que morreram e sofreram não puderam fazer durante um século. Pode obrigar os brancos...

Não vou obrigar ninguém a fazer nada. - A voz de Dilman torna­ra-se áspera. - Eu sou o Presidente dos Estados Unidos e não o presidente da população negra ou qualquer outra coisa...

Vou contar-lhe, de qualquer modo... escute, pai, escute por favor... tem de saber o que o nosso povo diz lá fora... dizem que se o senhor fosse o Presidente dos Estados Unidos, inteiramente, seria óptimo, mas não é... não será... será exactamente o que os outros foram antes... o presidente dos brancos...

As mãos de Dilman apertaram-se fortemente uma de encontro à outra, até formarem uma bola.

-       Já chega, Julian, já chega. Lembra-te de quem és e de quem eu sou, e que sou eu quem está encarregado de te orientar para que penses e procedas como deve ser... eu, e não os idiotas dos teus amigos.

Rabugento, Julian largou a secretária e enterrou-se na cadeira.

Está bem, se... se não quer falar...

Não me atormentes. E pára de te comportares como um garoto.

Não estou de modo algum a atormentá-lo. Estou apenas a pensar em como o pai sempre quis que fôssemos negros da sua espécie, e como nenhum de nós o queria, nem a mãe, nem a Mindy, nem eu. Sempre invejei a Mindy por ter nascido com sorte e se ter posto a andar, enquanto eu nasci assim e fiquei preso. Sempre que quis remediar isso, tornar-me uma pessoa como as outras, como a Mindy, o pai não me deixou e continua a não me deixar.

À primeira menção do nome da filha, Dilman começara automa­ticamente a examinar o escritório, para ver se todas as portas esta­vam fechadas aos ouvidos inimigos. Vendo que todas estavam bem fechadas, tornou a olhar para o filho.

Não quero falar sobre a Mindy aqui.

E também não quer falar sobre mim - disse Julian amargamente. - Trocaria o meu lugar com o dela, agora mesmo, se pudesse.

Não estejas tão seguro disso - disse Dilman. - Todos os negros que passam por brancos não são assim tão felizes. A ilusão...

-       Ela governa-se bem - disse Julian. Dilman olhou fixamente para o filho.

-       Como é que sabes? - perguntou. - Como é que sabes que ela se governa bem?

O embaraço imediato de Julian era evidente.

Penso... penso eu. Se não se governasse não teria vindo ter consigo, agora, que é presidente? Se não se sentisse bem fingindo-se branca, não teria vindo viver para a Casa Branca?

Pareces saber muito coisa acerca dela - disse Dilman. - Tens estado em contacto com ela, não é verdade?

E se estivesse?

Estou espantado, é tudo - disse Dilman, e doía-lhe o ela tê-lo renegado, e depois teve vergonha do medo que lhe surgiu no espí­rito. Quando Mindy atravessara a linha que separava os brancos dos negros, tinha-se afastado por completo de tudo aquilo que formara a sua antiga vida. Só ela sabia a sua identidade e o seu segredo. Agora não estava sozinha. Compartilhara o seu segredo. A ameaça que tal facto representava oprimia-o. - Ela não tem medo? Por que razão se arriscaria ela a deixar-te saber?...

Não sei o que ela é ou onde está - disse Julian. - Um dia, há um ano e meio, recebi uma breve nota dela, lá na Faculdade, como se tives­se caído do céu. Precisava desesperadamente de dinheiro para uma emergência qualquer. Imaginava que eu devia receber uma pensão do pai. Pediu-me um empréstimo em dinheiro. Disse-me que o enviasse pelo correio sob um nome diferente, para a posta restante da principal estação de correios de Nova Iorque. Assim fiz. Depois disto tentei en­contrar aquele nome nas listas de Nova Iorque. Não existia. Talvez ela use vários nomes. De qualquer modo, escrevi-lhe, usando esse nome, e há alguns meses ela pagou o que me devia. Havia uma outra nota dela. Conseguira uma posição melhor, não dizia qual. Dava-se com muita gen­te e frisava que eram brancos. Oh! Ela governa-se optimamente. Obteve direitos iguais, porque nasceu com a cor da sorte, como os brancos. Tudo o que lhe peço é que me deixe trabalhar a sério, do lado de fora, para conseguir a mesma aceitação e a mesma decência.

A Mindy procede mal - disse Dilman. - A fraude é uma coisa má. Julian, tu obterás a tua aceitação e a tua decência abertamente, sob as tuas próprias condições. O. O lutou por isso, e podes dizer aos teus amigos que eu farei o mesmo. - De repente sentiu-se cansa­do. - Mudei-me hoje, mudei para esta - apontou através das portas de vidro - «plantação». - Sorriu frouxamente. - Esta é a nossa casa por um ano etal, Julian. Haverá um quarto parati, durante osfins-de-semana e férias. Quando regressas a Trafford?

Hoje, ao fim da tarde.

Muito bem. Por que não vais até lá acima - alguém te indicará o elevador para o segundo andar - e não deitas uma vista de olhos por aquilo? Vale a pena. A Crystal está lá, precisamente neste momento. Arranja-te qualquer coisa para o almoço, e depois podes ir ao criado de quarto que te mostre um quarto para ti. Irei ter contigo antes de te ires embora.

Julian levantou-se, já calmo.

-       Desculpe-me por... por eu não concordar consigo, pai. Continua­rei com o meu trabalho na Sociedade Crispus, mas tentarei também trabalhar mais na Faculdade. Pode escrever isso ao chanceler.

Aliviado, Dilman sorriu abertamente.

-       Obrigado, filho. Abre aquela porta, atravessa a sala contígua e irás dar ao vestíbulo. Não há perigo de te perderes.

Assim que Julian saiu, Dilman consultou o cartão dactilografado que tinha como cabeçalho: Os Compromissos do Presidente.

Dilman pegou no auscultador do telefone interno e carregou na campainha. Ouviu imediatamente a voz agradável de Shelby Lucas, o secretário dos compromissos, herdado de O. C, responder do outro lado:

Sim, Sr. Presidente?

Que tal vai o meu horário, Sr. Lucas?

Cerca... cerca de 10 minutos adiantado, Sr. Presidente.

O Sr. Poole já chegou?

Está na Sala do Peixe, Sr. Presidente.

Por favor, mande-o entrar.

Pousando o auscultador, Dilman tentou libertar o espírito dos pen­samentos relacionados com o filho, das suas acusações e de Mindy, e concentrar-se no que devia dizer a Poole. Lembrou-se de quão im­pressionado Julian ficara ao saber que um escritor da envergadura de Poole empreendera a tarefa de escrever a biografia do pai. Dilman, desde o princípio, não estava assim tão impressionado. Achava Poole repulsivo à vista, deficiente em objectividade e mais ilógico que Julian acerca da igualdade de direitos dos negros. Pertencia à raça dos chauvinistas, a réplica negra dos Zeke Millers. Havia nele algo de untuoso e falso. As suas perguntas, rebuscadas e bem preparadas, pareciam, frequentemente, não ter qualquer relação com a sua curio­sidade ou interesse.

Dilman suspeitava que, por detrás da deferência de Poole pelo seu biografado, havia ironia e desprezo. Não podia ter bem a certe­za, mas a sua sensibilidade acusava tal suspeita sempre que o seu biógrafo saía do seu escritório do Senado ou da sala de estar da sua casa. Já várias vezes Dilman se sentira tentado a desistir do projecto. Não desejara uma busca na casa de arrumações da sua vida passa­da. Não quisera aquele livro escrito sobre si, embora fosse publicado por uma casa editora negra, e, provavelmente, para leitores negros. Dilman temera que o livro fosse também lido por constituintes bran­cos, que pudessem decidir que ele não era próprio para seu deputa­do e votar contra ele na próxima vez. Contudo, porque o reverendo Spinger e outros chefes negros queriam o livro como uma inspiração para os jovens negros, para os afastar da violência e para lhes mos­trar o que um deles tinha conseguido numa democracia, Dilman con­tinuara a cooperar.

Por várias vezes, desde que prestara juramento como presiden­te, Dilman pensara profundamente sobre o livro, perguntando a si próprio se deveria permitir a sua publicação, agora que o seu papel mudara. Era certo que presidentes anteriores tinham deixado que fizessem a sua biografia durante os seus mandatos. Mas eles não tinham tido os problemas que ele tinha. Não fora capaz de chegar a uma decisão. Poole telefonara-lhe tanto durante toda a semana e ele evitara-o tantas vezes que por fim se vira obrigado a atendê-lo. Ao telefone notara logo que a atitude de Poole se tornara ainda mais humilde e respeitadora. Dilman aceitara os parabéns e desejos de feli­cidade do seu biógrafo e ouvira um discurso sobre a grande impor­tância do livro, aumentada agora pelo facto de o biografado ter subido de senador a presidente. Sem se comprometer quanto à continuação do livro, Dilman concordara receber Poole o mais de­pressa possível, e dissera-lhe para combinar uma entrevista com o secretário. Desde então, Dilman estivera demasiado ocupado para pensar em Poole ou no livro, mas agora era outro pequeno problema que tinha de resolver.

A porta do corredor abriu-se de par em par e o secretário Lucas disse para alguém ainda não visível:

-       Por aqui, Sr. Poole.

Leroy Poole entrou. A porta fechou-se nas suas costas e ele pa­rou inclinando o rosto obeso e murmurando:

-       Sr. Presidente dos Estados Unidos. - Depois avançou em direc­ção à secretária com a mão gorda estendida. - Mais uma vez os meus melhores votos de felicidades, Sr. Presidente. Penso que nós todos te­mos muita sorte em ter alguém com a sua experiência para nos guiar.

Dilman levantou-se da cadeira e a sua mão desapareceu no gordo aperto de mão de Poole, o que fez pensar que era como se apertasse uma mão com uma luva de boxe calçada. Depois apon­tou para um sofá.

-       Sente-se, Leroy.

Poole enterrou-se no sofá, com os braços abertos como se qui­sesse abraçar toda a sala.

O escritório parece tão diferente do que tenho visto em foto­grafias. Quase que se espera encontrar uma sala de trono, conside­rando que é o escritório mais importante do mundo.

Um dos mais importantes - corrigiu Dilman.

Sim, os outros devem considerar os deles igualmente impor­tantes - disse Poole.

Certamente. Não quero ser abrupto, Leroy, mas temo que aqui não possa perder tanto tempo com entrevistas como no edifício do Senado. Portanto é melhor começarmos...

Dilman parou. A porta por detrás de Poole tinha-se aberto, e Julian estava no seu limiar, preocupado e vexado, com o agente do Serviço Secreto Sperry junto dele.

-       Des... desculpe vir interromper desta maneira - disse Julian -, mas fui até ao vestíbulo, como me disse, e este senhor agarrou-me e pediu-me o meu passe, e eu não tinha nenhum. Disse-lhe quem era, mas ele pôs-se a brincar comigo e depois disse que eu não podia ir lá para cima até se esclarecer o caso.

Dilman acalmou o filho com um gesto.

-       Muito bem, Julian... Sr. Sperry ...

O agente do Serviço Secreto pôs-se ao lado de Julian.

-      Desculpe, Sr. Presidente, eu tinha quase a certeza de que era o seu filho, mas não podia tomar qualquer responsabilidade sem que ele fosse identificado ou que me dessem qualquer ordem nesse sentido.

Dilman acenou com a cabeça.

-       Fez bem, considere-o identificado como meu filho e peça ao chefe Gaynor que lhe tire um passe permanente para a Casa Bran­ca. - Dilman reparou que Poole estava de pé, examinando Julian. Imediatamente, Dilman fez as apresentações. - Julian, apresento-te Leroy Poole, o escritor que tanto admiras.

Os olhos de Julian tornaram-se mais esbugalhados ao adiantar--se para apertar a mão a Poole.

Isto é uma honra, Sr. Poole...

É um prazer também para mim, Sr. Dilman. Tencionava encon-trar-me consigo, pelo menos uma vez, antes de terminar a biografia do seu pai.

Li todos os seus artigos - disse Julian. - Até ouvi, uma vez, um discurso seu, lá na Faculdade.

Na sua Faculdade? Lembro-me do seu pai me ter dito. Está em Trafford. Não é assim?..

No ramo dos estudantes da Sociedade Crispus.

-       Já me lembro - disse Leroy Poole. Dilman interrompeu o diálogo.

Desculpe, Leroy, mas não tenho muito tempo livre. Sr. Sperry, é capaz de conduzir o meu filho até ao segundo andar?

Obrigado, pai - disse Julian. Os seus olhos demoraram-se em Poole. - Muito prazer em o conhecer, Sr. Poole.

Quando a porta se tornou a fechar, Poole regressou ao seu sofá.

Tem um belo rapaz, Sr. Presidente. Não me lembro de me ter dito que ele era um membro da Sociedade Crispus.

Tenho a certeza de que deve ter isso nos seus apontamen tos - disse Dilman. - Na realidade, ele pertence agora a uma das suas Assembleias Nacionais. Vamos ao nosso encontro?

Estou pronto, Sr. Presidente. Tenho estado a pensar no livro...

Também eu, Leroy. Cheguei a uma decisão. Não me agrada a ideia da sua publicação agora, mas quero ser justo. Tem trabalhado muito nele, e espera obter um certo lucro. Não tenho o direito de o privar disso. Portanto...

Não tem o direito de privar o país - disse Poole. - O livro foi concebido como uma história que inspirasse o nosso povo. Devido às circunstâncias e à sua ascensão, Sr. Presidente, tenho a certeza de que inspirará o povo de todo o país, qualquer que seja a sua cor. Levará a uma compreensão da sua pessoa, a um melhor sentimen­to entre as raças e apresentará a sua melhor e mais verdadeira ima­gem, a única existente.

Escutando Poole, Dilman lembrou-se de ter ouvido Edna Foster dizer o que soubera pelo namorado, George Murdock: que editores de Nova Iorque tinham ido ter com muitos membros do corpo da im­prensa para que estes escrevessem as suas reminiscências sobre O. O, e tinham pedido a vários também que escrevessem rápidas bio­grafias do novo presidente. Ocorreu a Dilman que nenhum membro do corpo da imprensa que empreendesse tal tarefa o conhecia tão bem como Poole, nem possuía tantos factos acerca da sua vida. Se as biografias eram inevitáveis, então devia encorajar uma que fosse boa.

-       Está bem, Leroy - encontrou-se a dizer -, não é preciso dizer mais nada. Concordo com a sua biografia. Só ponho uma condição.

Quando era senador, parecia razoável permitir a um editor negro publi­car o livro. Agora que o destino me fez presidente do país, penso que isso pareceria mal. Acho que o livro deverá ser publicado simultanea­mente pelo editor negro com quem fez o contrato e por uma casa editora branca de Nova Iorque. Insisto neste ponto.

Parece-me bem - disse Poole. - Na verdade até me parece uma excelente ideia. Telefonarei ainda hoje para o meu agente literá­rio em Nova Iorque. Digo-lhe que têm de ser dois editores ou ne­nhum. Não haverá problema. A coisa importante agora é o final do livro. Tenho de o modificar. Agora há um novo clímax e um novo final, e temos de falar acerca disso, e...

Leroy, eu já não tenho tempo para isso. Desejaria tê-lo, mas... não podemos ter mais entrevistas.

Poole pareceu ter sido fulminado.

Senador... Sr. Presidente... Santo Deus, não posso escrever acerca do senhor e não mencionar a sua subida à presidência, como o primeiro presidente negro.

Não se preocupe - disse Dilman. - Eu digo-lhe o que tem a fazer... concluirá o livro com a nota da minha mudança para a Casa Branca, que teve lugar hoje. Terminará o livro tendo eu sido presiden­te por uma semana.

-       Para isso são necessárias algumas entrevistas. Dilman hesitou.

Não posso prometer nada, Leroy. Eis o que sugiro. Faça uma lista das últimas perguntas e mande-mas por Miss Foster. Ditarei as respostas uma noite destas, quando tiver uma hora livre. Tem a mi­nha palavra... fá-lo-ei o mais depressa possível. Se lhe faltar ainda alguma coisa, pode vir aqui ter comigo rapidamente, uma ou duas vezes, para o próximo mês. É o mais que lhe posso prometer, Leroy.

Bem, já que tem de ser - disse Poole com um ar infeliz. - Está bem, cá me arranjarei. Será um bom livro, isso lhe garanto eu.

Tenho a certeza de que será. - Dilman empurrou a sua cadeira para trás. - E é tudo. Acho que agora está tudo combinado. - Espe­rou que Leroy Poole se levantasse e se fosse embora, mas este não se mexeu. Intrigado, Dilman aguardou.

Ah! Sr. Presidente - disse Poole -, há ainda uma outra coisa, se me puder conceder um minuto ou dois.

Bem - começou Dilman, desconfiado.

-       Só um minuto ou dois - implorou Poole.

Observando as gotas de suor na testa do escritor a aumenta­rem, Dilman sentiu pena dele.

Muito bem, Leroy, de que se trata?

Trata-se de todas as opressões que se verificam por todo o país contra o nosso povo - disse Poole apressadamente -, e em especial de um caso que, casualmente, tenho seguido. Parece simbolizar o pior de tudo. Tem lido aquilo acerca do julgamento em Hattiesburg, no Mississipi?

Está a falar daqueles Turnerites? - disse Dilman. - Vi a notícia nos jornais da manhã, esta semana. Não tenho seguido o caso de perto.

É um assunto revoltante - disse Poole com crescente agita­ção. - Os Turnerites postaram-se pacificamente em frente da casa de um homem do Klan. Foram violentamente atacados, um ficou cego e o outro coxo para o resto da vida. Ainda por cima foram presos em vez dos seus agressores brancos. Agora estão à espera da sentença do juiz Everett Gage, um dos segregacionistas mais flagrantemente viciosos do subsolo branco racista. O julgamento foi uma farsa, e parece-me que é o campo de batalha ideal para pôr termo às práti­cas discriminatórias daqueles tribunais locais sulistas e introduzir neles um vestígio da democracia legal. Acho que o procurador-geral devia intervir - é um assunto em que ele devia intervir. Mandou-lhe a rela­ção completa do caso?

Dilman franzira a testa, tentando discernir a causa da ansiedade e interesse de Poole num caso semelhante a tantos outros.

Não - disse ele. - Isto não é um assunto federal. É um assunto estadual e comunitário.

Mas estão a fazer uma palhaçada de todo o nosso sistema judicial...

Leroy, não o percebo. Porquê toda essa preocupação acerca de um julgamento obscuro e isolado? - Fez uma pausa. - Será que você é um turnerite? Nunca lho perguntei antes, mas pergunto-lho agora.

Meu Deus - disse Poole. - Estou do lado da Sociedade Crispus. Sou demasiado sedentário e tímido para fazer parte de algo tão vio­lento como o novo grupo dos Turnerites. Admiro-os apenas, assim como todas as minorias inteligentes os deviam admirar. Depois de todas as suas palavras, este é o seu primeiro acto público, e estão a ser legalmente linchados. O meu interesse reside apenas nisso, Sr. Presidente. Tenho grande simpatia por eles.

Embora estivesse inexplicavelmente perturbado, Dilman tentou manter uma expressão impassível.

Desculpe, Leroy, mas tenho menos simpatia por esses Tumentes que você. A maior parte daqueles discursos inflamados e irresponsá­veis do chefe deles não me agrada.

Jeff Hurley? Porquê, senador Dilman... Sr. Presidente... ele é um grande homem. Eu... eu tive várias oportunidades de o encontrar, de o ouvir falar. Ele não é nenhum fala-barato selvagem como esses segregacionistas brancos. É inteligente, tem bom coração e reflecte simplesmente a opinião da... da população negra.

Dilman sentiu-se fraquejar, mas não quis ceder.

Leroy, já pisámos este terreno, indirectamente, nas nossas en­trevistas para o livro. Conhece a minha posição. Sou negro, tenho ple­na consciência dos meus direitos, agora mais do que nunca. Quero que nos seja feita justiça, a nós, negros, do mesmo modo que a quero para os mexicanos, porto-riquenhos, judeus ou católicos. Mas, Leroy, vivemos num país com a sua civilização, educado a viver segundo as leis ditadas pela maioria. Não se consegue obter o que se quer que­brando a cabeça dos outros.

Na guerra consegue-se. E a guerra é o que temos neste país.

Não, Leroy, como americanos desistimos dessa solução em Appomatox. Já avançámos muito por outros meios. Iremos mais lon­ge pelo mesmo caminho.

Mas, neste preciso momento, o senhor pode fazer tanto por nós, pela justiça, agora que é presidente - suplicou Poole.

Leroy, o que quer que eu sinta cá dentro, como negro, não posso, como presidente americano, fazer mais do que O. C, o Juiz, Johnson ou Kennedy fizeram antes de mim.

Poole inclinou-se para a frente, a sua cara de lua cheia distorcida pela angústia.

-       Então recorro a si, não como presidente, mas como negro. Há algo pessoal que pode fazer e que ajudará aqueles turnerites márti­res e que porá a questão com mais força perante todo o país. Ouvi dizer que um grande advogado de Chicago está agora em Washing­ton. Trata-se de Nathan Abrahams, a espécie de homem que tem consciência destas injustiças. Ele poderia salvar os turnerites, mesmo depois do julgamento, apelando do veredicto e da sentença. Sei que uma vez o senhor o mencionou como um velho amigo seu. O seu prestígio...

Dilman sacudiu a cabeça vigorosamente.

Não, Leroy. Não posso pedir isso a Nat Abrahams. É verdade que ele é um velho amigo meu. Está na cidade e falámos pelo telefo­ne há apenas dois dias. De facto, ele até cá vem jantar comigo hoje. Mas nunca me passaria pela cabeça influenciar a sua actividade. Se precisa assim tanto dele, por que não lhe telefona? Ou diz a esse Hurley para lhe telefonar?

Hurley tentou. Ouvi eu dizer. Disseram-lhe que Abrahams estava empenhado agora noutro assunto. Mas se o senhor, como amigo dele, na sua posição...

Absolutamente impossível - disse Dilman. - Se ele o não pode fazer por Hurley, acho que o não devo pôr na posição de ter de o fazer por mim. - Depois acrescentou: - Especialmente até porque, apesar do que possam ser os detalhes do julgamento do Mississipi, não gos­to da maneira como Hurley encara as coisas. Tenho pena, Leroy.

Bem, também eu tenho pena - disse Poole em voz baixa. -Desculpe-me, mas acho que está a cometer um erro.

Tenho cometido muitos erros como indivíduo - disse Dilman. -Espero cometer menos como chefe Executivo deste país. Tenho tanta consciência da minha cor e das injustiças praticadas contra os da mi­nha raça como você. Talvez o que sucedeu - o encontrar-me nesta cadeira, neste escritório, e o agir com dignidade e responsabilidade em relação a todas as raças, tendo em vista toda a Nação e o mundo - possa contribuir mais para deitar abaixo as barreiras de preconceitos do que qualquer outra coisa. É um sonho que tenho. Não o quero destruir preocupando-me com pequenas rixas ou usando a minha influência sobre os amigos. Tenha paciência, Leroy. Muito se fará ain­da. - Fez uma pausa. - Esta nossa conversa é, claro está, particular. Não quero ver nada disto no seu livro.

Leroy Poole levantou-se.

- Certamente, Sr. Presidente. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Muito obrigado por me ter atendido. Enviar-lhe-ei a minha lista de perguntas. Espero voltar a vê-lo em breve. Voltou-se para se ir embora, quando pareceu lembrar-se de qualquer coisa e regres­sou apressadamente até junto da secretária.

Sr. Presidente, quase que me esquecia, mas prometi a alguém dizer-lhe isto. Encontrei uma jovem senhora, muito conhecida em Washington - muito competente, segundo me disseram -, que dese­ja candidatar-se para o lugar de sua secretária social. É...

Pensava promover uma das empregadas do pessoal da Casa Branca. Penso que ninguém de fora...

Ela é a filha do senador Watson. Dilman não pôde esconder o seu espanto.

Do senador Watson? Tem a certeza? Ele é sulista...

Isso é verdade. Mas a filha, Sally Watson, é diferente. Não a conheço muito bem, mas estivemos a conversar. É absolutamente alheia a racismos, é progressista e conhece toda a gente da cidade, naturalmente. Está morta por se candidatar ao emprego, se estiver vago, claro.

Está vago. - Dilman tentou pensar. Três secretárias importantes do pessoal de O. C, pelo menos, se tinham demitido. Mary Lou Rand, a secretária da imprensa da primeira dama, fora uma delas. Miss Lau­rel, a secretária social da primeira dama, fora outra. Não procurou examinar os verdadeiros motivos de tais saídas. Lembrou-se do conse­lho que lhe dera a viúva de O. C, nessa manhã. Hesper dissera que ele precisava de uma mulher na Casa Branca para governar as inúme­ras funções sociais executivas. Era de primordial importância que fosse uma mulher com requisitos especiais. Durante a manhã Dilman ainda pensara em contratar uma rapariga negra, esperta e com personali­dade. Depois pusera de parte tal ideia. Não havia nenhuma rapariga negra que ele conhecesse que tivesse o estofo social para presidir a jantares formais, fazer o papel de dona de casa junto dos chefes de Estado, juízes do Supremo Tribunal, congressistas, embaixadores. Não conhecia nenhuma que tivesse a educação e o savoir faire neces­sários. Para mais, uma rapariga negra trazida por ele para a Casa Bran­ca e para tal posição provocaria mais especulações iradas da parte da imprensa, dizendo que ele estava a povoar a Casa Branca com os da sua raça.

Contudo, pensou ele, uma secretária social branca traria igual nú­mero de dificuldades, se bem que diferentes. Apesar de esperar poder encontrar a jovem conveniente, que tivesse contacto com o governo e a sociedade de Georgetown, a ideia de ter uma rapariga branca tão perto dele, na Casa Branca, era perigosa. Também isso poderia criar ressentimentos e dúvidas. Todavia, tinha de ser alguém, e para fazer o que Hesper aconselhara, arranjar uma pessoa eficiente, tinha de ser uma rapariga branca.

Pensou no nome dito por Poole. Recordava-se vagamente de ter lido algo acerca de Sally Watson no Post de Washington, no Star e no Citizen-American, de Zeke Miller. Sendo filha de um senador, ela devia conhecer toda a gente e saber o que era próprio e correc­to. E Poole dissera que ela era liberal, de espírito aberto e «estava morta» por obter o emprego. A pouco e pouco a sugestão ia agra­dando a Dilman. O facto de nomear a filha de um senador sulista para um emprego social na Casa Branca podia ser mais útil que prejudicial, sob o ponto de vista das relações públicas.

Dilman deparou com Leroy Poole ainda de pé diante dele. Acenou com a cabeça.

Sim, o emprego está vago - repetiu. - Estava apenas a pensar nos prós e nos contras, mas suponho que a primeira coisa a fazer é conhecer essa senhora e saber algo acerca dela.

Penso que a devia ver, pelo menos, Sr. Presidente. Acho que ficará bem impressionado.

Muito bem, vê-la-ei. Pode telefonar-lhe da minha parte?

Imediatamente.

Os olhos de Dilman fixaram-se no cartão dos compromissos e depois no seu relógio de pulso. Estava ainda adiantado no horário. Teria uns quinze minutos entre a sua última entrevista da manhã e o almoço com os chefes-adjuntos do pessoal.

Muito bem, Leroy. Diga a Miss Watson para cá estar às 12,15. Não lhe dê falsas esperanças. Diga-lhe simplesmente que a verei.

Será um prazer, Sr. Presidente. - Poole começou a voltar-se, quando a vista do pórtico sul da Casa Branca, para lá do Jardim das Rosas, o fez parar. - Oh! Que linda vista! Subitamente deu um estalo com os dedos. - Uma última coisa, Sr. Presidente. Visto que vou ter­minar a sua biografia com a sua mudança para a Casa Branca, acho que não seria mau se fosse dar uma vista de olhos ao que se passa lá em cima.

Está tudo numa confusão, hoje...

Exactamente - disse Poole com entusiasmo crescente. - Que­ro ver a mudança, o desemalar das coisas, os vários quartos. Nunca lá estive em cima.

A imprensa e o público não são normalmente admitidos nos aposentos privados do presidente.

Não repetirei a ninguém os detalhes, prometo-lhe. Preciso sim­plesmente de uma imagem visual geral. Será o fim do livro.

Dilman encolheu os ombros, com indiferença, o seu espírito es­tava já nos próximos nomes do cartão das entrevistas.

-       Vá lá, Leroy, se lhe faz falta. Mas não incomode ninguém e não se demore. Informarei o Serviço Secreto onde você vai.

Tocou para Edna Foster para prevenir o Serviço Secreto de que o Sr. Poole podia ser admitido no segundo andar para uma rápida visita. Depois tocou para o Sr. Lucas para que inscrevesse Miss Watson para as 12,15, e para mandar entrar o próximo visitante.

Recostou-se na cadeira verde, exausto das acusações do filho, dos pedidos especiais do seu biógrafo e ressentido com todo aquele papaguear acerca da sua falta de consciência de ser negro, de ser um homem de cor na América que podia (se quisesse, diziam) libertar o seu povo da escravidão e conduzi-lo até à Terra Prometida.

Através das portas de vidro podia ver a figura rotunda de Leroy Poole encaminhando-se para a entrada do rés-do-chão. Como era pos­sível que alguém tão incapaz, tão palrador, tão ridículo, pudesse fazer com que um homem na sua posição se sentisse tão censurável, inquie­to e atemorizado? Para o diabo com os Pooles e os Hurleys, pensou subitamente. Não tinham uma responsabilidade tão grande e portanto podiam pensar, dizer e fazer o que queriam. Só tinham um pequeno pau para manejar. Mas ele, como presidente, herdara um grande cacete. Nunca se devia esquecer de o usar com sabedoria se alguma vez o usasse. Então, inesperadamente, os seus pensamentos voltaram-se para Wanda Gibson, a quem ele não podia ver, e para a solução que se for­mara no seu espírito, e começou a sentir-se mais seguro do que estava antes.

Depois de Leroy Poole ter abraçado Crystal através do enorme espaço criado pela corpulência de ambos, depois de lhe ter chamado, de brincadeira, Mammy Dolley Madison (ele adorava-a, pois elafazia--Ihe lembrar o calor que recebera da mãe na infância), fez uma cara trocista e feroz através do luxo da Sala Rosa em direcção a Diane Fuller. A escanzelada secretária fingiu que lhe queria fugir, guinchando, en­quanto Poole lhe beijava a face magra e lhe beliscava as nádegas.

Depois tornou a pegar eficientemente no seu pequeno livro de notas e começou a escrevinhar apontamentos sobre a descrição daquela sala histórica no dia da mudança de Dilman. Sem ter neces­sidade de encontrar os olhos daquele Tio Tom do criada de quarto, tinha plena consciência da desaprovação altiva deste perante a sua extroversão desabrida.

Enquanto escrevia, Leroy Poole ia pensando quanto o criado de quarto Beecher tinha de comum com Douglass Dilman: homem, tu és certamente um branco falsificado, como Massah, e, homem, talvez te dês bem agora assim, mas nada disso te servirá no Dia do Julgamen­to, porque não és branco, e porque também não és preto, e não irás mais alto que o purgatório e o limbo.

Antes de ter encontrado Crystal e Diane no Quarto Rosa, o cria­do levara Poole a dar uma volta cuidadosa ao segundo andar da Casa Branca. Noutra altura, quando era ainda jovem, tal visita poder-Ihe-ia ter ficado no espírito como algo de memorável. Ver que um pobre rapaz preto como ele podia ser conduzido em elevadores e através de corredores por guarda-costas do presidente, e podia per­correr os esplendores íntimos da Casa Branca, conduzido pelo cria­do de quarto do presidente, teria sido um ponto culminante na sua vida. Nessa manhã isso de nada valia para ele, e estava tão distraído como se caminhasse no edifício moderno de escritórios da Rua 44, em Manhattan, para ir visitar o seu editor.

Durante dez minutos fora guiado para dentro e para fora do gran­de hall para dentro e para fora do Quarto Oval amarelo, da Sala do Tratado, do quarto de dormir de Lincoln (aqui tivera o seu único sobres­salto, deparando com as roupas de Dilman numa pilha sobre a cama), ouvindo sempre o papaguear histórico daquele criado altivo e puxa­do a quatro alfinetes. Enquanto Dilman fingia tirar algumas notas, sabendo que poderia obter o que precisasse no excelente guia da Associação Histórica da Casa Branca, toda a sua atenção estava concentrada no encontro com uma pessoa algures numa daquelas salas poeirentas.

Cristo, pensara ele, quanto não teria custado toda aquela tralha só para manter um político no luxo durante quatro anos, enquanto milhões de pessoas do seu povo não tinham o suficiente para sair das suas choupanas fedorentas, sujas, podres e superpovoadas? Para o diabo com tudo aquilo, com as cadeiras vitorianas na Sala do Tratado, com os candelabros de cristal comprados pelo Presidente Grant, com os vasos Monroe no Quarto Oval amarelo, com o retrato de Ben Franklin por Greuze - tudo isso arranjado à custa de mais dinheiro do que o total dos altos salários dos empregados da Secção dos Direitos Civis do Ministério da Justiça.

A sua mísera entrevista com aquele servil Judas preto do Dilman, verdadeiramente mais amarelo, na sua medula, que preto, enfurece-ra-o, não vendo qualquer coisa que não fosse o seu fracasso. Lá estavam os seus valentes irmãos, naquela câmara de torturas do Sul, sofrendo um julgamento vergonhoso perante o canalha de um juiz de concelho. Lá estava o seu amigo Jeff Hurley e o esperto Valetti, e o resto dos seus irmãos pretos arriscando a vida em Little Rock ou em Shreveport, onde cada hotel segregado era tão seguro como o Álamo. E ali estava ele, um dos membros secretos não registados com quem eles mais contavam, a quem o chefe ordenara convencer aquele traidor do presidente a pedir a outro provável traidor o advo­gado judeu a dar uma ajuda à justiça. Eles estavam na linha de fogo, esperando uma palavra sua, as suas esperanças e o seu último ape­lo à decência, dependentes dele, e ele falhara. Compreenderia Hurley quão desesperadamente ele tentara sair-se bem da sua missão? Acre­ditaria Hurley que ele fora incapaz de fazer com que um preto, que era amarelo, se tornasse num preto que fosse um verdadeiro negro? Havia três dias, porém, o correio trouxera-lhe uma breve carta de Hurley e uma última esperança. Se essa esperança se realizasse, poderiam tornar a ser optimistas. Se também isso falhasse, então iria tudo pelos ares. Poole estremeceu ao recordar o plano turnerite de último recurso. E assim caminhara atrás do criado de quarto, não olhando para os objectos de arte que constituíam o orgulho e a he­rança da América - não dele, pois a América o rejeitara -, não olhan­do para aquela decadência que lhe era estranha, mas procurando o único objecto animado que precisava de encontrar.

Acabou de tirar as notas do Quarto Rosa, tornou a afivelar a sua máscara de jovialidade, disse umas graças a Crystal e a Diane e des-pediu-se delas.

Já vimos todos os quartos? - perguntou ao criado de quarto.

Não todos. Siga-me, por favor.

Penetraram num corredor, depois entraram no Quarto Imperial vermelho e branco, passaram por uma pequena casa de banho com uma carpete - uma carpete na casa de banho, Jesus! - e depois foram até à sala do canto sudeste.

-       Esta sala é a única que ainda não viu - anunciou o criado. - É a sala de estar de Lincoln, ligada ao quarto, que já visitou.

A mobília é do fim do Império e Vitoriana. As cadeiras têm as cos­tas em pau-rosa laminado e são quase únicas no seu género. A sala convida à calma, à solidão e tem uma esplêndida vista sobre Washington e Georgetown. Talvez a única nota moderna e discordante na sala seja...

O criado, mal entrara na sala de estar de Lincoln, parara e empertigara-se todo.

-       Desculpe, senhor- disse a alguém que estava a um canto da sala -, não o incomodaremos, Sr. Dilman. Andava apenas a mostrar a um hóspede do presidente...

Quando ouviu o nome, Leroy Poole passou à frente do criado e entrou na sala de estar, onde Julian Dilman estava enterrado numa cadeira vermelha estofada, em frente de um aparelho de televisão ligado.

Poole acenou com a mão, à laia de saudação.

-       Hei, Julian - disse prazenteiramente.

Julian pôs-se de pé de um salto, tão cheio de atrapalhação e contentamento como se o próprio Lincoln tivesse entrado na sala.

Olá, Sr. Poole. É um prazer tornar a vê-lo. Foi uma grande hon­ra tê-lo conhecido lá em baixo. O senhor nem imagina como eu o admiro. Gostaria muito de conversar um dia consigo acerca dos seus ensaios.

E por que não agora? - disse Poole. Virou-se para o criado impassível. - Importa-se, Jeeves?

Não me importo nada, senhor - disse Beecher. - Já completá­mos a visita. Faça o favor de tocar a campainha, quando quiser ir-se embora.

O criado foi de costas até ao limiar da porta, depois voltou-se e desapareceu rapidamente.

Poole seguira o criado até à porta. Depois, fechando esta, disse a Julian:

-       Aquele mordomo... aposto que Harriet Beecher Stowe está a escrever um livro acerca dele, neste preciso momento.

Julian riu-se, apertando as mãos uma de encontro à outra, ra­diante por ser o único ouvinte de um bon mot do grande autor. Diri-gindo-se para a cadeira mais próxima do filho do presidente, Poole exultava silenciosamente por ter encontrado o objecto de arte ani­mado de que andara à procura.

-       Sente-se, Julian- disse Leroy Poole. - Só tenho um par de minutos, mas gostaria de ter uma conversa consigo.

Poole instalou-se confortavelmente num sofá, enquanto que Julian, mostrando-se embaraçado por um velho filme do Oeste en­cher o ecrã do aparelho de televisão, dizia:

Eu... eu estava apenas a passar um bocado do tempo antes de ir apanhar o comboio de regresso a Trafford. Deixe-me desligar isto.

Assim nunca saberá qual foi o fim da fita - disse Poole.

Não me importo - disse Julian. Foi contrafeito até ao aparelho e desligou-o. Depois, envergonhado, sentou-se ao lado de Poole. -Tenho melhor gosto do que isso, acredite ou não - disse ele. - Leio muito.

Que espécie de livros? - perguntou Poole.

Bem, os clássicos, claro está - disse Julian nervosamente.

Pensei que me tivesse dito que lia os meus artigos.

E leio! Essa é a verdade, Sr. Poole, e o que leio mais agora é a literatura de protesto, que acho mais importante.

Poole abandonou a sua maneira de falar arreliadora e acenou solenemente com a cabeça.

Muito bem - disse ele. - Desejaria que o seu pai pensasse o mesmo.

Que quer dizer com isso, Sr. Poole?

Tenho vindo a conhecer o seu pai bastante bem, Julian, por­tanto não lhe estou a fazer qualquer crítica adversa à sua notável inteligência, mas... não, não acho justo estar a discutir isso com...

Julian quase caiu da cadeira, de impaciente que estava.

Por favor, Sr. Poole, continue! Conheço muito bem o meu pai, e conheço tanto os seus defeitos como as suas qualidades.

Hum! - murmurou Poole. - Está bem, então. Acho apenas que ele não está tão perto do seu povo e dos seus problemas como devia estar. Penso que está já há muito tempo neste centro esterilizado de compromissos e separado das realidades da miséria dos negros e das injustiças praticadas contra eles.

-Tem absolutamente razão - disse Julian fervorosamente. – Ele foi sempre assim, pelo menos até onde me lembro, desde que é um político dependente do apoio dos brancos. Para dizer a verdade, até estávamos a discutir acerca disso precisamente quando o senhor entrou no escritório.

Poole pôs a sua máscara de espanto inocente.

Não está a brincar?

Ele obrigou-me a ir para a faculdade negra - continuou Julian impetuosamente. - Agora objecta que dedico demasiado tempo à Sociedade Crispus. Eu acusei-o por ele não encarar o que é, o que temos contra nós, e ele zangou-se comigo.

Não está a brincar? - repetiu Poole. - Bem, que manhã lhe demos os dois! Sabe daquele sarilho no Mississipi por causa dos Turnerites?

Oh, sim!

Pedi ao seu pai que fizesse interferir o procurador-geral no assunto, para endireitar aquele julgamento torto. Se ele não pudesse fazer isso como presidente - eu sei sob que pressão ele está - pedi-Ihe para fazer um favor pessoal a Jeff Hurley. Pedi-lhe para conseguir que o seu amigo Nat Abrahams...

Eu conheço o Nat. É um grande tipo.

Bem, pois pedi ao seu pai que persuadisse o Nat a apelar da condenação, quando saísse o veredicto. Aparentemente, o Nat está comprometido numa outra coisa qualquer, mas não poderia dizer não ao seu pai, ao presidente, se este lho pedisse. O seu pai não quer pedir.

Não quer? - disse Julian. Depois acenou com a cabeça. - Isso é verdade, não deve querer. E especialmente agora. Ele é contra a igual­dade pela força. Eu sou como o senhor, estou de acordo com o que escreve, Sr. Poole. Penso que esse é o único caminho que temos a seguir. Contudo, nada poderá fazer o pai mudar. Não tem razão, mas ele é assim mesmo.

Você pode mudá-lo - disse Leroy Poole. Preparara o ataque. Uma pausa e depois esta abertura, antes da verdadeira bomba rebentar. Podia já ver o princípio. Os olhos de Julian tinham-se infla­mado.

Eu - Julian fez uma careta. - Quer dizer que quer que lhe peça que ajude os turnerites do Mississipi?

Leroy Poole deixou cair a sua máscara de afabilidade. A sua gorda cara tinha uma expressão feroz. Era o convidado de Jeff Hurley e o negociante final antes do cataclismo.

-       Julian, eu não me encontrei consigo nesta sala por acaso. Fingi que queria ver as salas. Na realidade andava à sua procura. Sabe por­quê? Porque aqueles turnerites de Rattiesburg têm de ser salvos. Ne­nhum negro pode permitir tão flagrante injustiça e humilhação. Sei que Hurley marcou uma linha em Hattiesburg. Se aqueles canalhas a pisa­rem, haverá sarilho e dos grandes - nada de conversas, Julian, mas verdadeiro sarilho - para o seu pai, para todo o país, para si e para mim. Estou a tentar impedir que as coisas sejam feitas violentamente. Quero estar do lado da lei, como o seu pai. Muito bem, ou ele tem de intervir, ou então tem de arranjar alguém do governo ou particular, alguém de peso para mostrar àqueles canalhas que a Idade Média já acabou há muito. É este o caso, Julian. Eu tentei, mas falhei. Você é a única esperança. Quero que vá ter com o seu pai e o convença a agir.

Julian teve um sorriso forçado e amedrontado.

-       Sr. Poole, eu... eu faria tudo... estou sempre a tentar... mas isso não posso fazer. O meu pai quase que me pôs fora do escritório por causa de algo de menos importância. Mal abra a boca acerca desse assunto, ele puxar-me-á as orelhas até mas arrancar... cortar-me-á a mesada, fará com que eu deixe a Sociedade Crispus, Deus sabe o que mais. Já temos discutido acerca do protesto activo. Não vale de nada. Não posso voltar lá a falar-lhe.

Leroy Poole susteve a respiração. Eis chegado o momento de atacar, a precisa altura para lançar a bomba.

-       Julian, não estou a pedir-lhe para ir ter com o seu pai, estou a ordenar-lhe que vá... como um membro do Grupo Turnerite a outro.

Ficou satisfeito com o resultado do impacte. Os olhos de Julian quase que saíram das órbitas, a boca escancarou-se e o queixo ficou descaído. O instinto de conservação fez com que o seu magro corpo se encolhesse ainda mais, como se tentasse esconder-se na invisibi­lidade. Os olhos aterrorizados de Julian iam de Poole para a porta e da porta novamente para Poole.

Julian procurou desesperadamente articular qualquer reacção coerente, e depois conseguiu gaguejar:

-       Eu... eu... Jeff prometera-me que seria secreto... que ninguém saberia nem daqui a um milhão de anos... era a condição... ficar no corpo secreto. Isto é... não é...

 

 

                                                                CONTINUA

 

 

Não se trata de uma traição, se é isso que quer dizer, Julian -disse Leroy Poole rapidamente. - Temos uma pequena organização pública, mas a massa do icebergue escondida debaixo de água é a secção maior e mais efectiva. Eu sou um membro secreto, e o mes­mo sucede consigo. Nunca saberia que o era se Hurley não me tives­se escrito no outro dia a dar-me essa informação. Ninguém sabe nem nunca saberá, excepto o Hurley, o Valetti e eu. Quando nós entrámos para o grupo, jurámos fazer tudo o que nos ordenassem. A mim orde-naram-me que escrevesse panfletos de propaganda. Assim fiz. Depois ordenaram-me que pusesse o seu pai do nosso lado. Segui as or­dens e tentei. A si... a si ordenaram-lhe que permanecesse na Socie­dade Crispus, frequentasse a Assembleia de Estudantes deles em Nova Iorque, e assim fez. Depois foi designado para obter informa­ções internas para nós, acerca dos locais de sarilho, dos pontos fra­cos e fortes...

 

 

 

 

 

E tenho feito tudo isso, é isso que tenho estado a fazer, e é o suficiente - murmurou Julian.

Agora não, Julian - continuou Poole, inflexível. - Agora tem mais a fazer, porque a sua situação mudou. O seu pai é o presidente deste país. Você é o filho dele, e isso conta para alguma coisa. Você é um de nós e nós somos seus irmãos, e isso conta ainda mais. Vá ter com ele...

E se eu falhar, como lhe aconteceu a si? Sei que falharei, eu sei. O que acontecerá então?

Preocupar-nos-emos com isso depois. O que. eu quero saber é se vai abandonar o Hurley e o grupo. Vê-lo-á hoje? Falará com ele?

A voz de Julian saiu rouca. -Sim.

Muito bem. - Poole colocou as mãos sobre os joelhos e levan-tou-se. - A que horas estará na Estação Union?

Às 5 horas.

Lá estarei - disse Leroy Poole.

Dirigiu-se para a porta, mas a voz trémula de Julian chegou até ele antes de ter podido tocar na maçaneta.

Sr. Poole... tudo isto... tudo isto se deve manter em segredo.

Julian, por quem nos toma? É tão secreto como sempre o foi. Confie em Jeff Hurley. Ele é o maior negro que já alguma vez nasceu neste país. Ele é o nosso salvador, é o nosso futuro. Façamos apenas o que ele nos disse, cada um de nós, e talvez em breve sejamos livres, sem medo já de nada, sem medo de ninguém, sem medo de sermos secretos e que nos descubram. É assim, Julian. Vá ter com o seu pai e faça com que o seu primeiro acto como presidente seja um acto cora­joso, e então ele ficará na história e terá merecido dormir na cama de Lincoln - e o mesmo lhe sucederá a si.

Esperando que o presidente terminasse o telefonema, Sally Watson olhou furtivamente para o relógio de pulso. Eram 12 horas e 23 minutos. Estivera com o presidente quase oito minutos, falara quase todo o tem­po, e contudo não tinha a certeza de o ter impressionado. Tinha ainda sete minutos - dez, no máximo - para provar que poderia ser-lhe útil na Casa Branca. Ainda não recuperara o fôlego, depois do súbito telefone­ma de Leroy, da ida de automóvel até à Avenida da Pennsylvania, da passagem através da multidão dos jornalistas no vestíbulo da ala oci­dental, da imediata entrevista cara a cara com o novo presidente.

Tentou rever a primeira metade daquele importante encontro. A negrura dele não a desconcertara. Na verdade, ela achara até as suas feições bastante exóticas e... 

 

                                                                 

 

                                                   

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