Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O HOTEL NEW HAMPSHIRE
Primeira Parte
O URSO CHAMADO STATE O'MAINE
No Verão em que o meu pai comprou o urso, nenhum de nós tinha ainda nascido - nem sequer tínhamos sido concebidos: nem o Frank, o mais velho, nem a Franny, a mais espevitada, nem eu, que fui o seguinte, nem os mais novos, a Lilly e o Egg. O meu pai e a minha mãe tinham nascido na mesma cidadezinha e tinham-se conhecido toda a vida, mas a "união" deles, como o Frank a designava, não tinha ainda tido lugar quando o Pai comprou o urso.
- A "união" deles, Frank? - costumava perguntar a Franny para o arreliar.
Embora o Frank fosse o mais velho, a mim parecia-me mais novo do que a Franny, e esta tratava-o sempre como se ele fosse um bebé.
- O que tu queres dizer, Frank - acrescentou a Franny -, é que ainda não tinham começado a fornicar.
- Não tinham consumado a sua relação - disse a Lilly uma vez. Embora fosse mais nova do que qualquer de nós, à excepção do Egg, a
Lilly comportava-se como se fosse a irmã mais velha, hábito este que a Franny achava exasperante.
- Consumado? - perguntou a Franny.
Não me lembro que idade tinha a Franny nessa altura, mas o Egg ainda não era suficientemente crescido para ouvir conversas do género:
- Muito simplesmente, a Mãe e o Pai só descobriram o sexo depois de o velho ter arranjado o urso - disse a Franny. - Foi esse urso que lhes deu a ideia. Era um animal obsceno e lascivo, sempre a esfregar-se nas árvores e a masturbar-se ou a tentar violentar cães.
- Ele só maltratou um cão uma vez - disse o Frank, aborrecido. - Não violentava cães.
- Mas tentou - disse a Franny. - Já conhecem a história.
- A versão do Pai - disse então a Lilly, com um enfado ligeiramente diferente do do Frank; é que, enquanto o Frank estava aborrecido com a Franny, a Lilly estava aborrecida era com o Pai.
E assim cabe-me a mim, o filho do meio e o menos obstinado, contar a história como deve ser, ou pelo menos aproximadamente. A história preferida da nossa família era a do romance entre o meu pai e a minha mãe: como é que o Pai comprou o urso, como é que a Mãe e o Pai se apaixonaram e tiveram, numa sucessão rápida, o Frank, a Franny e eu ("Zumba, zumba, zumba!", como dizia a Franny); e, após um breve período de repouso, como tiveram a Lilly e o Egg ("Plop, pchhhh...", segundo a Franny). A história que nos contaram quando éramos pequenos, e que depois repetíamos uns aos outros à medida que íamos crescendo, tem tendência a incidir nos anos que não nos foi dado conhecer, e de que só podíamos ter uma ideia através das múltiplas versões narradas pelos nossos pais. Consigo ver mais claramente os meus pais nesses anos do que naqueles anos que efectivamente posso recordar, dado que a minha memória dos tempos em que eu estava presente é influenciada pelo facto de terem sido tempos com altos e baixos - e sobre os quais a minha opinião tem altos e baixos. Mas em relação ao tal famoso Verão do urso, e à magia do namoro entre o meu pai e a minha mãe, já me posso permitir uma opinião mais objectiva.
Quando o Pai metia os pés pelas mãos a contar-nos a história, contradizendo uma versão anterior ou omitindo os nossos trechos predilectos, desatávamos a gritar que nem pássaros furiosos.
- Ou estás a mentir agora, ou mentiste da última vez - dizia então a Franny (sempre foi a mais brusca de nós todos).
Mas o Pai abanava a cabeça, com ar inocente.
- Mas vocês não estão a ver que já conseguem imaginar melhor a história do que eu me lembro dela? - desculpava-se ele então.
- Vai chamar a Mãe - ordenava-me a Franny, empurrando-me para fora do sofá.
Ou então era o Frank quem tirava a Lilly do colo, dizendo-lhe baixinho: - Vai chamar a Mãe.
E a Mãe era convocada como testemunha da história que suspeitávamos que o Pai estava a inventar.
- Ou então estás a esconder de propósito as partes mais picantes -acusava-o a Franny -, só porque pensas que a Lilly e o Egg são pequenos de mais para ouvirem falar na fornicação toda que houve nessa altura.
- Não houve fornicação nenhuma - dizia a Mãe. - Nesse tempo, não havia a promiscuidade e a liberdade que há hoje em dia. Se uma rapariga saísse e passasse a noite ou o fim-de-semana com alguém, até as amigas a consideravam uma desavergonhada, ou pior ainda; nunca mais lhe passávamos cartão. "Quem anda com ela é da mesma laia", costumávamos nós dizer. E "diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és".
E a Franny, quer tivesse oito, dez, quinze ou vinte e cinco anos, invariavelmente revirava os olhos e dava-me uma cotovelada, ou fazia-me cócegas; e se eu, por minha vez, lhe devolvia a gentileza, gritava:
- Pervertido! A apalpar a irmã!
E quer tivesse nove, vinte e um ou quarenta e um anos, o Frank sempre havia de detestar as conversas sobre sexo e as manifestações do género das da Franny; dizia logo ao Pai:
- Isso não interessa. Conta lá da moto!
- Não, continua antes a falar de sexo - pedia então a Lilly à Mãe, com total falta de humor, e a Franny metia a língua na minha orelha ou imitava o som de um traque com a boca no meu pescoço.
- Bem - dizia a Mãe -, no nosso tempo não havia à-vontade para falarmos de sexo com outras pessoas. Havia beijinhos e carícias, ligeiros ou mais ousados; geralmente isto passava-se nos carros. Havia sempre sítios isolados onde estacionar. Muito mais estradas de terra e, é claro, menos pessoas e menos carros, e nessa altura os carros eram mais espaçosos.
- Então quer dizer que podiam estender-se - dizia a Franny.
Com um franzir de sobrancelhas para a Franny, a Mãe continuava com a sua versão. Era uma contadora de histórias em quem se podia confiar, mas enfadonha - sem comparação com o meu pai -, e sempre que a chamávamos para verificar a versão de uma história arrependíamo-nos.
- Quase que é preferível deixar o velho continuar por ali fora - costumava dizer a Franny.
- A Mãe é mais séria - respondia o Frank, carrancudo.
- Ora, vai mas é brincar com o pirilau - retorquia a Franny - que logo te sentes melhor.
Mas com isso o Frank ficava ainda mais carrancudo e dizia:
- Se tivesses começado por perguntar ao Pai coisas sobre a moto, ou qualquer coisa de concreto, em vez de levantares estas questões gerais, como roupas, costumes ou hábitos sexuais, ouvias melhores respostas.
- Frank, diz-nos o que é o sexo - pedia a Franny.
Mas o Pai vinha em nosso auxílio, afirmando na sua voz sonhadora:
- O que eu vos digo é que nada disso podia ter acontecido hoje. Vocês podem pensar que têm mais liberdade, mas também têm mais leis. Essa história do urso não podia ter-se passado agora. Não nos tinham deixado tê-lo.
E nesse momento ficávamos todos de bico calado, e as nossas disputas cessavam bruscamente. Quando o Pai falava, até o Frank e a Franny podiam estar sentados suficientemente perto para se tocarem sem brigar; eu podia mesmo sentar-me tão perto da Franny que sentia o cabelo dela no meu rosto e a perna dela encostada à minha, mas se o Pai estivesse a falar nem pensava na Franny. A Lilly ficava sentada quieta que nem um morto (como só ela era capaz de fazer) ao colo do Frank. O Egg era ainda demasiado pequeno para dar atenção e muito menos para compreender, mas era um bebé calmo. Nem que fosse a Franny a pegar-lhe ao colo, continuava sossegado; e, se fosse eu a pegar-lhe, adormecia.
- Era um urso preto - dizia o pai -; pesava uns duzentos quilos e era um bocado mal-humorado.
- Ursus americanus - dizia o Frank em voz baixa. - Imprevisível.
- É verdade - respondia o Pai -, mas também, a maior parte das vezes, bastante dócil.
- Era demasiado velho para ser ainda um urso a sério - dizia a
Franny, com uma convicção quase religiosa.
Era nestes termos que o Pai em geral começava - foi nestes termos que começou da primeira vez que me lembro de ele ter contado a história:
- Era demasiado velho para ser ainda um urso a sério.
Dessa vez estava eu ao colo da Mãe, e lembro-me como me senti ficar ligado para sempre a este momento e lugar: eu ao colo da Mãe, ao meu lado a Franny ao colo do Pai, o Frank, direito e sozinho, sentado de pernas cruzadas no tapete persa coçado, com o nosso primeiro cão, o Sorrow (que um dia ficou a dormir, drogado com o cheiro nauseabundo dos seus traques).
- Era demasiado velho para ser ainda um urso a sério - começou o Pai.
Olhei para o Sorrow, um Labrador meigo e estouvado, e vi-o crescer no chão até atingir as dimensões de um urso, e depois envelhecer, mirrando ao lado do Frank, num emaranhado pestilento, até se tornar de novo um simples cão (apesar de que o Sorrow nunca seria "um simples cão").
Nessa primeira vez não me lembro da Lilly nem do Egg - deviam ser tão pequenos que ainda não tínhamos consciência da sua presença.
- Era demasiado velho para ser ainda um urso a sério - disse o Pai. - Já tinha gasto o último par de pernas.
- Mas eram as únicas pernas que ele tinha! - entoávamos nós (era a nossa resposta ritual, decorada pelo hábito) todos juntos, o Frank, a Franny e eu; e quando pudessem compreender a história, a Lilly e o Egg acabariam por juntar-se a nós.
- O urso já não gostava do seu papel de estrela - dizia o Pai. - Limitava-se a andar ao sabor dos acontecimentos. E a única pessoa, animal ou coisa de que gostava era daquela moto. Foi por isso que tive de a comprar quando comprei o urso. Foi por isso que lhe foi relativamente fácil abandonar o domador e vir comigo; a moto era mais importante para aquele urso do que qualquer domador.
Nessa altura, o Frank costumava fazer sinal à Lilly para ela perguntar, como era costume:
- Como é que se chamava o urso?
E o Frank, a Franny, o Pai e eu gritávamos em uníssono:
- State O'Maine!
Aquele estúpido urso chamava-se State O'Maine e o meu pai comprou-o no Verão de 1939 - juntamente com uma moto de 1937, marca Indian, com um sidecar de fabrico caseiro - por duzentos dólares e as melhores peças do seu guarda-roupa de Verão.
Nesse Verão, o Pai e a Mãe tinham dezanove anos; nasceram ambos em 1920 e foram criados em Dairy, no New Hampshire, e tinham-se mais ou menos evitado ao longo desses anos de infância e de juventude. Foi uma daquelas coincidências lógicas que estão por trás de muitas boas histórias que fez com que eles - para surpresa de ambos - acabassem por arranjar um emprego de Verão no Arbuthnot-by-the-Sea, um hotel de veraneio que, para eles, ficava muito longe de casa, dado que (nessa época e no seu espírito) o Maine estava a uma distância muito grande do New Hampshire.
A minha mãe era criada de quarto, embora não usasse farda para servir à mesa, e ajudava a preparar cocktails nas tendas montadas para as festas ao ar livre (em que participavam os jogadores de golfe, de ténis e de croquet, bem como os velejadores vindos das regatas marítimas). O meu pai ajudava na cozinha, transportava bagagens, tratava do relvado dos campos de golfe, velava para que as linhas brancas dos courts de ténis estivessem bem nítidas e direitas, e que as pessoas mais inseguras (que aliás nunca deveriam pôr os pés num barco) fossem ajudadas a embarcar e desembarcar no ancoradouro sem se magoarem demasiado nem ficarem todas encharcadas.
Tanto os pais da minha mãe como os do meu pai aprovavam estes empregos de Verão, mas para a Mãe e o Pai foi uma humilhação terem-se encontrado ali. Era o primeiro Verão que passavam fora de Dairy, no New Hampshire, e decerto imaginavam aquela chiquíssima estância de veraneio como um lugar em que eles próprios poderiam apresentar-se - valendo-se do facto de serem totalmente desconhecidos - também envoltos num certo fascínio. O meu pai tinha acabado os estudos secundários na Dairy School, uma escola particular para rapazes, e tinha sido admitido em Harvard, onde devia ingressar no Outono. Mas ele sabia que ainda havia de passar o Outono de 1941 antes de poder lá entrar, dado que tinha decidido ganhar o dinheiro necessário para custear os seus próprios estudos; mas no Verão de 39, no Arbuthnot-by-the-Sea, o meu pai achava preferível que os hóspedes e os outros empregados pensassem que ele ia directamente para Harvard. Mas com a minha mãe lá, que estava ao corrente da situação, o Pai foi obrigado a contar a verdade. Só poderia ir para Harvard depois de ter ganho o dinheiro suficiente para fazer face às despesas; já era, aliás, uma grande proeza o próprio facto de lá entrar, e a maioria das pessoas de Dairy, no New Hampshire, tinham ficado admiradas ao saberem que ele tinha sido admitido em Harvard.
Filho do treinador de futebol(*) da Dairy School, o meu pai, Winslow Berry, não tinha exactamente o perfil de um estudante universitário. Era filho único de um desportista, e o pai, a quem toda a gente chamava Coach(**) Bob, não era um homem de Harvard - nem, na verdade, ninguém pensaria que ele pudesse produzir material de Harvard.
Robert Berry tinha vindo do Iowa para o Leste depois de a mulher morrer de parto. Bob Berry era um pouco velho para ficar sozinho e ser pai pela primeira vez,
*. Sempre que nesta obra se faz referência ao futebol, trata-se do chamado "futebol americano", mais aparentado com o rugby do que com o futebol que se pratica em Portugal, que os americanos designam por soccer. (N. da T.)
**. Coach - treinador. (N. da T.)
- tinha trinta e dois anos. Veio para o Leste à procura de uma educação condigna para o seu rapaz, para o que decidiu oferecer-se ele próprio em troca. Vendeu as suas aptidões no domínio da educação física à melhor escola que lhe prometeu admitir o filho quando tivesse idade para isso. Mas a Dairy School não era propriamente um baluarte do ensino secundário.
Outrora podia ter aspirado a um estatuto semelhante ao de Exeter ou de Andover, mas nos primeiros anos do nosso século tinha entrado numa via de compromisso. Situada perto de Boston, admitia algumas centenas de rapazes que haviam sido rejeitados por Exeter e Andover, mais uma centena que nunca deveria ter sido admitida em parte nenhuma, e ministrava-lhes um currículo regular e criterioso - e mais rigoroso do que o da maioria dos professores contratados para lá ensinar; aliás, grande parte destes tinha sido igualmente rejeitada noutros lados. Mas, mesmo sendo um estabelecimento de segunda categoria entre as escolas secundárias da Nova Inglaterra, era de longe muito superior a qualquer escola pública da região, e, em particular, à única escola secundária da cidade de Dairy.
A Dairy School era precisamente o tipo de escola capaz de fazer acordos, como o celebrado com o Coach Bob Berry, que ficava a receber uma remuneração irrisória, contra a promessa de que o filho, Win, podia ser aí educado (gratuitamente) quando chegasse à idade. Nem o Coach Bob nem a Dairy School podiam pensar que Win Berry - o meu pai - havia de tornar-se um aluno tão brilhante. Harvard aceitou-o na primeira categoria de candidatos, mas ele acabou por ficar abaixo do nível que lhe daria direito a uma bolsa de estudo. Se tivesse vindo de uma escola melhor do que Dairy talvez pudesse ter obtido uma bolsa qualquer em latim ou grego; considerava-se um bom aluno em línguas e inicialmente pretendia diplomar-se em russo.
A minha mãe, que (por ser mulher) não podia ir para a Dairy School, frequentava o colégio particular feminino da cidade. Tratava-se também de um estabelecimento de ensino de segunda ordem, mas que no entanto representava uma melhoria relativamente à escola pública secundária, e constituía a única opção possível naquela cidade para os pais que queriam que as filhas fossem educadas separadamente dos rapazes. Ao contrário da Dairy School, que tinha dormitórios - e noventa e cinco por cento de alunos internos -, o Thompson Female Seminary era apenas um externato particular. Os pais da minha mãe, que por um motivo qualquer ainda eram mais velhos do que o Coach Bob, queriam que a filha se desse apenas com os rapazes da Dairy School e não com os outros rapazes da cidade. Dado que o pai da minha mãe era um professor reformado da Dairy School (todos lhe chamavam Latin Emeritus) e que a mãe da minha mãe era filha de um médico, nascido em Brookline, no Massachussets, e casada com um diplomado por Harvard, esta última achava que a filha podia aspirar ao mesmo destino. Embora a mãe da minha mãe nunca se tivesse queixado de o seu diplomado de Harvard ter atirado com ela para a província, para longe da sociedade de Boston, esperava que - graças a um casamento com um dos rapazes certos da Dairy School - a minha mãe fosse atirada de volta para Boston.
A minha mãe, Mary Bates, sabia que o meu pai, Win Berry, não era propriamente o tipo de "rapaz certo" da Dairy School que a mãe dela tinha em mente. Fosse ou não para Harvard, ele não deixava de ser filho do Coach Bob - e uma admissão adiada não era a mesma coisa que estar lá ou ter os recursos suficientes para lá poder entrar.
Os planos da Mãe, nesse Verão de 39, não eram propriamente risonhos. O pai dela, o velho Latin Emeritus, tinha sofrido uma apoplexia; a babar-se e sem dizer coisa com coisa, resmungando em latim, cambaleava pela casa de Dairy, entregue aos cuidados inúteis da mulher, a menos que a jovem Mary estivesse lá e olhasse por ambos. Aos dezanove anos, Mary Bates tinha pais mais velhos do que os avós da maioria das outras pessoas, e possuía o sentido do dever suficiente - se não mesmo a vocação - para pôr de parte a sua própria formação universitária e ficar em casa a cuidar deles. Tencionava aprender a escrever à máquina e trabalhar na cidade. Este emprego de Verão, no Arbuthnot, encarava-o ela como uma oportunidade de passar umas exóticas férias de Verão antes de se espetar numa qualquer estupidez de trabalho que o Outono havia de trazer. E ela bem sabia que com o correr dos anos os rapazes da Dairy School tornar-se-iam cada vez mais novos - até que já nenhum deles estaria interessado em lhe proporcionar o regresso a Boston.
Mary Bates tinha crescido com Winslow Berry, embora nunca tivessem feito um ao outro mais do que um aceno ou uma careta a indicar que se tinham reconhecido.
- Parecia que olhávamos para além um do outro, não sei porquê, não sei porquê - contou-nos o Pai quando éramos pequenos.
E é provável que as coisas tenham continuado assim até se terem visto pela primeira vez fora do local familiar em que ambos tinham crescido: a colorida cidade de Dairy e o pouco menos colorido ambiente da Dairy School.
Quando a minha mãe recebeu o diploma do Thompson Female Seminary, em Junho de 1939, verificou com mágoa que a Dairy School já tinha distribuído os seus diplomas e estava fechada; os rapazes mais interessantes, vindos de fora, já se tinham ido embora; e os seus dois ou três "janotas" (como ela lhes chamava) - de quem podia ter esperado um convite para o baile dos finalistas - também haviam partido. Não conhecia rapazes do liceu lá da terra, e quando a mãe lhe falou no Win Berry saiu a correr da casa de jantar.
- Já agora só faltava pedir também ao Coach Bob! - gritou para a mãe.
O pai, o Latin Emeritus, levantou a cabeça da mesa do jantar, onde dormitava.
- O Coach Bob? - perguntou ele. - Esse atrasado mental veio cá outra vez pedir o trenó emprestado?
O Coach Bob, a quem também chamavam Iowa Bob, não era nenhum atrasado mental, mas para o Latin Emeritus, a quem a apoplexia parecia ter embotado o sentido do tempo, o desportista contratado no Midwest não jogava no mesmo campeonato que a elite universitária. E anos atrás, eram Mary Bates e Win Berry ainda crianças, o Coach Bob tinha vindo pedir emprestado um velho trenó, em tempos célebre por ter estado parado durante três anos no pátio de entrada dos Bates.
- Aquele palerma ao menos tem um cavalo? - perguntara o Latin Emeritus à mulher.
- Não, vai puxá-lo ele mesmo! - disse a mãe da minha mãe.
E a família Bates ficou a olhar pela janela enquanto o Coach Bob punha o pequeno Win no assento do condutor, agarrava na boleia com as mãos atrás das costas e punha o trenó em movimento; este deslizou pelo quintal cheio de neve até à rua escorregadia, que nessa época ainda era ladeada por ulmeiros. "Ia tão depressa como se fosse um cavalo a puxá-lo", costumava dizer a minha mãe.
O Iowa Bob tinha sido o avançado mais pequeno que jamais jogara futebol na liga máxima, o Big Ten. Uma vez confessou estar tão exaltado que mordeu um defesa depois de o ter placado. Em Dairy, para além dos seus deveres para com o futebol, era treinador de lançamento de peso e orientava os que se interessavam por halterofilismo. Mas para a família Bates, o Iowa Bob era demasiado simplório para ser tomado a sério: um tipo fortalhaço, divertido e atarracado, com o cabelo tão curto que parecia calvo, sempre a correr pelas ruas da cidade, "com uma faixa de uma cor horrível atada à volta da cabeça", como costumava dizer o Latin Emeritus.
Em virtude de o Coach Bob ter vivido até velho, era o único avô de que eu e os meus irmãos nos lembrávamos.
- Que barulho é este? - costumava perguntar o Frank, alarmado, a meio da noite, quando o Coach Bob veio viver connosco.
O que o Frank ouvia, o que nós muitas vezes ouvíamos depois de o Coach Bob se ter mudado para nossa casa, era o ranger das flexões de braços e os grunhidos dos exercícios de abdominais no soalho do quarto do velho (ou seja, o nosso tecto) por cima de nós.
De qualquer forma, não foi o Win Berry quem acompanhou a Mary Bates ao baile dos finalistas. O pastor da família Bates, que era bastante mais velho do que a minha mãe, mas solteiro, teve a gentileza de a convidar.
- Foi uma noite bem comprida - contou-nos a Mãe. - Senti-me deprimida. Senti-me uma estranha na minha própria cidade. Mas passado muito pouco tempo esse mesmo pastor havia de nos casar, ao vosso pai e a mim!
Quando foram "apresentados", juntamente com os outros empregados, no verde irreal do relvado impecável do Arbuthnot-by-the-Sea, uma tal possibilidade nem lhes passava pela cabeça. Ali, até as apresentações do pessoal eram formais. Cada rapariga era chamada pelo nome, de uma fila em que se encontrava com as outras empregadas, e era apresentada a um rapaz entretanto chamado da outra fila formada pelos homens, como se ambos fossem formar um par num baile qualquer.
- Esta é a Mary Bates, recém-diplomada pelo Thompson Female Seminary! Vai ajudar no hotel e como recepcionista. Gosta muito de vela, não é verdade, Mary?
Empregados e empregadas de mesa, serventes dos courts de ténis e caddies do campo de golfe, pessoal dos barcos e da cozinha, moços de recados e para pequenos serviços, recepcionistas, criadas de quarto, empregados da lavandaria, um canalizador e os músicos da orquestra. Os bailes no salão eram muito concorridos; no Verão, as estâncias mais para Sul - como o Weirs, na Lacónia, e Hampton Beach - atraíam algumas das orquestras mais famosas. Mas o Arbuthnot-by-the-Sea tinha a sua orquestra privativa, que imitava, à moda do Maine - isto é, com frieza -, o som das grandes orquestras.
- E este é o Winslow Berry, que gosta de ser tratado por Win! Não é verdade, Win? Vai para Harvard no Outono!
Mas o meu pai tinha os olhos fixos na minha mãe, que sorriu e virou a cara - tão envergonhada por ele como por si própria. Nunca tinha reparado que elegante que o rapaz era; tinha um corpo tão rijo como o do Coach Bob, mas a Dairy School tinha-lhe transmitido as maneiras, o modo de vestir e de se pentear ao gosto das gentes de Boston (e não do Iowa). Parecia ser já um aluno de Harvard, o que quer que isso pudesse significar para a minha mãe nessa altura.
- E não sei mesmo o que é que isso significava para mim - contou-nos ela. - Acho que era o ar de distinção. Parecia um rapaz que sabia beber sem se embriagar. Tinha os olhos mais escuros e brilhantes que eu já vira e, quando se olhava para ele, tínhamos a certeza de que havia estado a olhar para nós, mas nunca conseguíamos apanhar-lhe o olhar.
O meu pai conservou este último dom durante toda a vida; quando estávamos ao pé dele, sentíamos sempre que nos tinha estado a observar atenta e afectuosamente - ainda que, quando o fitávamos, parecesse estar a olhar para outro lado, a sonhar ou a fazer projectos, a pensar em algo de complicado ou longínquo. Mesmo quando se encontrava completamente fora dos nossos esquemas e das nossas vidas, parecia estar a "observar-nos". Era uma estranha associação de indiferença e de ternura - e a primeira vez que a minha mãe a sentiu foi nessa faixa de relva verde e brilhante emoldurada pelo mar cinzento do Maine.
APRESENTAÇÃO DO PESSOAL: 16 HORAS.
Foi nesse momento que ela soube que ele estava lá.
Uma vez terminadas as apresentações e recomendado ao pessoal que estivesse pronto para os primeiros cocktails, o primeiro jantar e a primeira noite de diversões, o olhar da minha mãe cruzou-se com o do meu pai, e este aproximou-se dela.
- Só daqui a dois anos é que terei economizado o suficiente para ir para Harvard - disse ele de rompante.
- Foi o que pensei - disse a minha mãe. - Mas acho que foi formidável teres sido admitido - acrescentou rapidamente.
- Porque é que eu não havia de ter sido admitido? - perguntou ele. Mary Bates encolheu os ombros, gesto que tinha aprendido à força de nunca compreender o pai (dado que a apoplexia lhe tinha afectado a fala). Nesse momento, usava luvas brancas e um chapéu branco com um véu; estava vestida para "servir" na primeira festa no relvado, e o meu pai admirou a graciosidade com que o cabelo lhe emoldurava a cabeça - mais comprido atrás, afastado do rosto e preso ao chapéu e ao véu de uma forma simultaneamente tão simples e tão misteriosa que o meu pai ficou-se a contemplá-la maravilhado.
- O que é que vais fazer no Outono? - perguntou-lhe ele.
Ela voltou a encolher os ombros, mas talvez o meu pai tivesse visto nos olhos dela, através do véu branco, que a minha mãe ansiava que alguém a salvasse do futuro que previa para a sua vida.
- Fomos simpáticos um para o outro, nessa primeira vez, lembro-me perfeitamente - contou-nos a Mãe. - Estávamos ambos sozinhos num local estranho e sabíamos coisas um do outro que mais ninguém sabia. Nessa época, acho eu, isso já devia ser uma grande intimidade.
- Ora! Nessa altura não havia intimidade nenhuma! - disse a Franny uma vez. - Nem sequer os amantes se peidavam ao pé um do outro.
A Franny era de uma rudeza convincente - e eu costumava acreditar nela. Mesmo a sua linguagem estava avançada para a época - era como se ela soubesse sempre para onde ia; eu jamais havia de conseguir acompanhá-la.
Nessa primeira noite no Arbuthnot, a orquestra da casa tocava a sua imitação de som das grandes bandas da época, mas os clientes eram escassos, e mais escassos ainda os pares na pista de dança; a época ainda só ia no começo, e no Maine ela começa devagar, pois faz frio mesmo no Verão. O salão de baile tinha um soalho de madeira lustrosa que parecia estender-se para além dos alpendres abertos sobranceiros ao oceano. Quando chovia, era necessário cobrir os alpendres com toldos, pois a sala de baile era tão aberta de todos os lados que a chuva entrava e molhava a superfície brilhante da pista de dança.
Nessa primeira noite, por uma deferência especial para com o pessoal - e dado haver tão poucos hóspedes e a maioria destes se ter deitado cedo por causa do frio -, a orquestra tocou até tarde. A minha mãe, o meu pai e os outros empregados foram convidados a dançar durante uma hora ou mais. A minha mãe lembra-se sempre que o lustre do salão estava partido e Luzia um clarão baço e trémulo; coloridas manchas irregulares salpicavam a pista de dança, à qual aquela luz débil dava um aspecto tão liso e lustroso que o soalho parecia ter a textura de uma vela.
- Estou contente por ter encontrado aqui alguém conhecido - murmurou a minha mãe ao meu Pai, que a tinha convidado para dançar com um ar muito formal e que a conduzia agora com movimentos rígidos.
- Mas a Mary não me conhece - disse o Pai.
- Disse isso - contou-nos o Pai - para ver a vossa mãe encolher os ombros outra vez.
E quando ela o fez, dizendo para consigo que era impossível manter uma conversa com um tipo tão complicado - e talvez com a mania que era superior -, o meu pai ficou convencido que a atracção que sentia por ela não era uma ilusão.
- Mas eu quero que me conheça - disse-lhe ele. - E quero conhecê-la. ("Beaahrg!", exclamava sempre a Franny nesta altura da história.)
O ruído de um motor começou a sobrepor-se ao som da orquestra, e muitos pares que dançavam abandonaram a pista e foram ver o que se passava. A minha mãe ficou contente com a interrupção: não sabia o que dizer ao Pai. Caminharam, sem dar as mãos, até ao alpendre que dava para os embarcadouros; sob as luzes que oscilavam nos fios suspensos sobre o cais, viram um lagosteiro a fazer-se ao mar. O barco tinha acabado de depositar no cais uma moto de cor escura, que estava agora com o motor a roncar - a acelerar, talvez para expulsar dos seus canos e tubos o ar húmido e salgado. O condutor parecia querer regular o ruído do motor antes de embraiar. À moto estava ligado um sidecar, no qual se descortinava um vulto escuro, disforme e imóvel, como um homem tolhido pelo excesso de roupa.
- É o Freud - disse alguém do pessoal. E outros empregados mais velhos gritaram:
- É verdade! É o Freud! É o Freud e o State O'Maine!
O meu pai e a minha mãe pensaram que State O'Maine era o nome da moto. Nessa altura, ao ver que o auditório tinha desaparecido, a orquestra parou de tocar e alguns músicos vieram também juntar-se às pessoas que estavam no terraço.
- Freud! - gritava a assistência.
O meu pai costumava contar-nos como se tinha divertido a imaginar o verdadeiro Freud, a qualquer momento, entrar de moto pelo alpendre e, sob as luzes suspensas que ladeavam a rampa bem pavimentada que dava acesso aos carros, apresentar-se ao pessoal. Pronto!, lá vem o Sigmund Freud, pensou o Pai: estava a ficar apaixonado e, a partir daí, tudo era possível.
Mas é claro que não se tratava desse Freud; estava-se no ano em que esse Freud morreu. Este Freud era um judeu vienense, coxo e com um nome impossível de pronunciar, que nas temporadas de Verão em que tinha trabalhado no Arbuthnot (desde 1933, ano em que havia deixado a Áustria) passara a ser conhecido pelo nome de Freud devido à sua aptidão para aliviar as angústias tanto do pessoal como dos hóspedes; era um verdadeiro animador de espectáculos e, já que era judeu e natural de Viena, o nome de "Freud" parecera perfeitamente natural a alguns dos estrangeiros espirituosos e excêntricos que se hospedavam no Arbuthnot-by-the-Sea. O nome revelou-se ainda mais apropriado quando, em 1937, o Freud chegou para a temporada de Verão numa moto nova de marca Indian com um sidecar que ele próprio tinha construído.
- Quem é que vai montar atrás de si e quem é que vai sentar-se no sidecar, Freud? - perguntavam-lhe para o arreliar as raparigas que trabalhavam no hotel, porque ele tinha cicatrizes tão horríveis e as feições tão desfiguradas por marcas de varíola que mulher alguma jamais poderia apaixonar-se por ele.
- Ninguém vai andar comigo na moto senão o State O'Maine - respondeu o Freud, e soltou a capota de lona do sidecar.
Dentro deste, estava sentado um urso, negro como fuligem, mais musculoso do que o Iowa Bob e mais desconfiado do que um cão vadio. O Freud tinha trazido este urso de um acampamento de lenhadores no norte do estado e havia convencido a direcção do Arbuthnot de que podia amestrar o animal para divertir os hóspedes. Quando emigrara da Áustria, o Frçud tinha chegado a Boothbay Harber, num barco proveniente de Nova Iorque, com duas qualificações profissionais inscritas em maiúsculas nos seus documentos de trabalho:
EXPERIÊNCIA COMO AMESTRADOR
E TRATADOR DE ANIMAIS
BOAS APTIDÕES EM MECÂNICA
Não havendo animais para treinar, arranjava os carros no Arbuthnot e preparava-os adequadamente para a imobilidade em que passavam a estação baixa, altura em que ia para acampamentos de lenhadores e para fábricas de papel trabalhar como mecânico.
Durante todo esse tempo, conforme mais tarde contou ao meu pai, tinha procurado um urso. Os ursos, dizia o Freud, estavam onde estava o dinheiro.
Quando o meu pai viu o homem desmontar da moto sob o alpendre do salão de baile, admirou-se com o entusiasmo do pessoal mais antigo; quando o Freud ajudou aquele vulto a apear-se do sidecar, o primeiro pensamento da minha mãe foi que o passageiro era uma mulher muita velha - talvez a mãe do motociclista (uma mulher corpulenta, enrolada numa manta de cor escura).
- State O'Maine - gritou alguém da orquestra, começando a tocar trompete.
A minha mãe e o meu pai viram então o urso começar a dançar. Afastou-se do Freud a dançar, erguido nas patas traseiras; depois deixou-se cair sobre as quatro patas e deu uma ou duas voltas curtas à roda da moto. O Freud pôs-se de pé na moto e bateu as palmas. O urso chamado State O'Maine começou também a bater palmas. Quando a minha mãe sentiu o meu pai pegar-lhe na mão - eles não estavam a bater palmas - não lhe resistiu; correspondeu-lhe com igual pressão da sua mão, sem que nenhum deles desviasse os olhos do corpulento urso que fazia habilidades à sua frente, e a minha mãe pensou: tenho dezanove anos e a minha vida está a começar.
- Sentias mesmo isso? - costumava perguntar a Franny.
- Tudo é relativo - dizia a Mãe -, mas foi o que senti, sim. Senti a minha vida começar.
- Poças! Caneco! - exclamava o Frank.
- Foi de mim ou do urso que gostaste? - perguntava o Pai.
- Não sejas palerma - respondia a Mãe. - Foi de tudo junto. Foi do começo da minha vida.
E aquela frase tinha o mesmo cunho encantatório da outra frase do Pai sobre o urso. ("Era demasiado velho para ser ainda um urso a sério.") Eu sentia-me preso àquela história quando a minha mãe dizia que aquilo tinha sido o começo da sua vida; era como se eu pudesse ver a vida da minha mãe, como a moto, depois de acelerar durante muito tempo, arrancar finalmente e lançar-se para a frente com impetuosidade.
E o que é que o meu pai estaria a pensar ao agarrar na mão dela só porque um lagosteiro qualquer tinha trazido um urso para a sua vida?
- Sabia que o urso havia de ser meu - contou-nos o Pai -, não sei como.
E talvez tenha sido também esta percepção - o facto de ter visto algo que havia de ser seu - que o fez pegar na mão da minha mãe.
Já estão a ver por que motivo fazíamos tantas perguntas quando éramos pequenos. Tratava-se de uma história vaga, do tipo das que os pais preferem contar.
Nessa primeira noite em que viram o Freud e o seu urso, o meu pai e a minha mãe nem sequer se beijaram. Quando a orquestra parou de tocar e os empregados se retiraram para os dormitórios dos homens e das mulheres - que eram uns edifícios ligeiramente menos elegantes, separados do corpo principal do hotel -, o meu pai e a minha mãe desceram até ao embarcadouro e ficaram a olhar para a água. Se falaram, nunca nos contaram o que então disseram. Deviam lá estar atracados alguns veleiros elegantes, e no Maine havia sempre pelo menos um ou dois lagosteiros mesmo nos embarcadouros particulares. Também lá havia provavelmente um bote, e talvez o meu pai tenha sugerido a ideia de um passeio de barco, o que a minha mãe provavelmente recusou. Nessa altura, Fort Pepham era uma ruína e não a atracção turística que é hoje; mas, se houvesse luzes na costa de Fort Pepham, seriam visíveis do Arbuthnot-by-the-Sea. Na ampla foz do rio Kennebec, em Bay Point, também havia urna bóia de sino e uma luz, e nesse ano longínquo de 1939 talvez houvesse um farol em Stage Island - o meu pai nunca se conseguiu lembrar. Contudo, naquela época, é provável que a costa estivesse mergulhada na escuridão, de modo que, quando o veleiro branco vogou em direcção a eles - talvez vindo de Boston ou de Nova Iorque, mas de qualquer maneira vindo do sudoeste e da civilização -, a minha mãe e o meu pai devem tê-lo visto nitidamente e tê-lo observado com atenção durante todo o tempo que levou a chegar ao cais.
O meu pai apanhou a amarra largada do barco; ele costumava contar-nos como tinha ficado em pânico sem saber o que fazer com ela - atá-la a qualquer coisa ou atá-la - quando o homem de smoking branco, calças pretas e sapatos de polimento pretos saltou agilmente do convés e subiu a escada que conduzia ao cais, pegando na corda que o meu pai segurava. Sem esforço, o homem conduziu a embarcação até à extremidade do cais e atirou de novo a corda para bordo.
- Podes ir! - gritou ele para alguém dentro do barco.
A minha mãe e o meu pai afirmavam não ter visto marinheiros a bordo, mas o veleiro deslizou em direcção ao largo - com as suas luzes amarelas afastando-se como pedaços de vidro que se afundam -, e o homem de smoking branco voltou-se para o meu pai e disse:
- Obrigado pela ajuda. São novos aqui?
- Somos os dois - disse o Pai.
As roupas impecáveis do homem não tinham sido afectadas pela viagem. Para princípio de Verão, ele estava muito bronzeado, e ofereceu à minha mãe e ao meu pai cigarros que trazia numa elegante cigarreira negra. Mas
eles não fumavam.
- Esperava ainda chegar a tempo para a última dança - disse o homem. - Mas vejo que a orquestra já se foi embora.
- Pois foi - disse a minha mãe.
Aos dezanove anos, a minha mãe e o meu pai nunca tinham visto ninguém como este homem,
- Ele tinha uma segurança obscena - disse-nos a Mãe.
- Tinha dinheiro - acrescentou o Pai.
- O Freud e o urso já chegaram? - perguntou o homem.
- Já - respondeu o Pai. - E a moto também.
O homem de smoking branco fumava avidamente, mas com elegância, enquanto olhava para o hotel mergulhado na escuridão; eram poucos os quartos que tinham luz, mas cá fora as lâmpadas suspensas que iluminavam os caminhos, as sebes e os embarcadouros brilhavam no rosto bronzeado do homem, tornando-lhe os olhos mais pequenos, e reflectiam-se na superfície negra e ondulante do mar.
- O Freud é judeu, sabiam? - disse o homem. - Foi bom ter conseguido sair da Europa naquela altura, não acham? A Europa vai tornar-se um lugar impossível para os judeus. Foi o meu corrector quem me disse.
Esta notícia, dada com tal solenidade, deve ter impressionado o meu pai, ansioso por entrar em Harvard - e no mundo - e ainda sem ter consciência de que uma guerra iria interromper-lhe os projectos durante algum tempo. O homem de smoking branco fez com que ele pegasse na mão da minha mãe pela segunda vez nessa noite, e de novo ela retribuiu com igual pressão, enquanto educadamente aguardavam que o homem acabasse de fumar o cigarro e se despedisse ou continuasse a falar. Mas ele limitou-se a dizer: - E o mundo também vai tornar-se um lugar impossível para os ursos!
Quando ria, mostrava uns dentes tão brancos como o smoking, e com o vento o meu pai e a minha mãe não ouviram o silvo do cigarro a apagar-se no oceano - nem o veleiro que se aproximava de novo. De repente, o homem encaminhou-se para a escada e só quando deslizou rapidamente pelos degraus abaixo é que a Mary Bates e o Win Berry compreenderam que o veleiro branco ia a passar por baixo da escada no momento exacto de o homem se deixar cair sobre o convés. Não houve cabos a passarem de mãos. O barco, com as velas recolhidas, mas virando docemente por acção de outra força motriz, rumou para sudoeste (mais uma vez em direcção a Boston ou a Nova Iorque) - sem temer a viagem nocturna -, e a última coisa que o homem de smoking branco lhes gritou perdeu-se no roncar do motor, no ruído do casco ao bater na água e no vento que impelia as gaivotas (semelhantes a chapéus de festa, cobertos de penas, oscilando à tona de água depois de bêbedos os terem atirado para lá). Durante toda a vida o meu pai desejou ter ouvido o que o homem disse.
Foi o Freud quem disse ao meu pai que quem ele tinha visto era o proprietário do Arbuthnot-by-the-Sea.
- Já, não há dúvida que era ele - disse o Freud. - É assim que ele vem, só umas quantas vezes em cada Verão. Uma vez dançou com uma rapariga que trabalhava aqui a última dança; nunca mais a tornámos a ver. Uma semana depois veio outro tipo buscar as coisas dela.
- Como é que ele se chama? - perguntou o Pai.
- Talvez seja mesmo Arbuthnot - respondeu o Freud. - Disseram-me que é holandês, mas nunca ouvi o nome dele. O que vos posso dizer é que sabe tudo sobre a Europa!
O meu pai estava morto por fazer perguntas sobre os Judeus; mas sentiu a minha mãe dar-lhe uma cotovelada nas costelas. Estavam sentados há horas num dos relvados do campo de golfe - ao luar, o verde transformara-se em azul, e a bandeirinha vermelha do golfe agitava-se ao vento. O urso chamado State O'Maine estava sem açaimo e tentava coçar-se esfregando-se no frágil mastro da bandeirola.
- Anda cá, estúpido! - chamou o Freud; mas o urso não lhe ligou nenhuma.
- A sua família ainda está em Viena? - perguntou a minha mãe ao Freud.
- A minha única família é a minha irmã - respondeu ele. - E não sei nada dela desde Março do ano passado.
- Em Março do ano passado os nazis anexaram a Áustria - disse o meu pai.
- Já! Está-me a dizer isso a mim! - retorquiu o Freud.
O State O'Maine, frustrado com a falta de resistência do pau da bandeirola às suas comichões, arrancou-o do buraco e atirou-o para longe com uma patada, fazendo-o voltear no ar.
- Valha-me Deus! - exclamou o Freud. - Se não saímos daqui, ele ainda começa a cavar buracos no campo de golfe.
O meu pai voltou a enterrar a ridícula bandeirola marcada com o número 18 no respectivo buraco; nessa noite, a minha mãe tinha sido dispensada de "servir" e ainda trazia a farda de criada de quarto; pôs-se a correr à frente do urso, chamando por ele.
Era raro o urso correr. Bamboleava-se - e nunca muito longe da moto. Esfregava-se tanto contra ela que a tinta vermelha do guarda-lamas brilhava como se fosse cromada e a parte cónica do sidecar estava amolgada pela força que o urso fazia contra ela. Era frequente ele queimar-se nos escapes por se ir esfregar contra a moto antes de o motor ter arrefecido, de modo que havia mechas de pêlo chamuscado agarradas aos tubos, como se a própria moto tivesse sido em tempos um animal peludo. O State O'Maine, por sua vez, tinha peladas espalhadas pelo corpo ou zonas chamuscadas e castanhas - da cor desmaiada das algas secas - contrastando com a pelagem negra.
Aquilo que o urso tinha exactamente sido ensinado a fazer era um mistério para toda a gente - até mesmo para o Freud.
O seu "número" a dois, realizado ao fim da tarde, antes de começarem as festas ao ar livre, representava um esforço mais para a moto e para o Freud do que para o urso. O Freud dava voltas e voltas, com o urso no sidecar, com a capota tirada - e o urso parecia um piloto numa carlinga aberta e sem comandos. Habitualmente, o State O'Maine usava um açaimo em público: uma coisa em couro vermelho que lembrava ao meu pai as máscaras que por vezes se usavam no jogo do lacrasse. O açaimo fazia o urso parecer mais pequeno; mirrava-lhe ainda mais o focinho já de si enrugado e alongava-lhe o nariz, a ponto de ele fazer lembrar mais do que nunca um cão demasiado grande.
Iam dando voltas e mais voltas e, no momento exacto em que os hóspedes já aborrecidos iam voltar às suas conversas e deixar de prestar atenção àquela extravagância, o Freud parava a moto, desmontava mantendo o motor a trabalhar, e dirigia-se ao sidecar para arengar ao urso em alemão. As pessoas achavam muita graça a isto, em grande medida porque achavam piada a ouvir falar alemão, mas o Freud insistia até o urso, lentamente, se apear do sidecar e subir para a moto, sentando-se no lugar do condutor, com as poderosas patas da frente no guiador e as patas traseiras demasiado curtas para chegarem aos apoios dos pés ou aos pedais. O Freud entrava então no sidecar e ordenava ao urso que arrancasse.
Mas não acontecia nada. O Freud sentava-se no sidecar, a protestar por estarem parados. O urso, carrancudo, agarrava no guiador, dava solavancos no selim, balançava as patas para trás e para a frente, como se estivesse a andar na água.
- State O'Maine! - ouvia-se então gritar.
O urso acenava com a cabeça, com uma espécie de dignidade embaraçada, e ficava no mesmo lugar.
O Freud, agora praguejando num alemão que toda a gente adorava ouvir, apeava-se do sidecar e aproximava-se do urso, que se encontrava aos comandos, tentando mostrar ao animal como funcionava a moto.
- Embraia! - dizia o Freud, assentando a enorme pata do urso sobre a embraiagem.
- Acelera! - gritava ele, fazendo roncar o motor com a outra pata do urso.
A moto do Freud, uma Indian de 1937, tinha a alavanca das mudanças ao lado do depósito da gasolina, de modo que, durante um momento aterrador, o condutor tinha de tirar uma mão do guiador para meter as mudanças.
- Mete a mudança! - ordenava o Freud, metendo ele mesmo a primeira.
E com isto o urso começava a atravessar o relvado montado na moto, com o motor roncando num regime baixo e constante, sem acelerar nem abrandar, mas avançando resolutamente em direcção aos elegantes hóspedes, vestidos a preceito - os homens, mesmo recém-chegados das suas actividades desportivas, usavam chapéu; no Arbuthnot-by-the-Sea, os homens usavam fatos de banho com peitilho, embora nos anos 30 o tronco nu se tivesse tornado cada vez mais vulgar. Mas não no Maine, claro. Os ombros dos casacos, tanto de homem como de senhora, tinham chumaços; os homens usavam calças brancas de flanela, muito largas e folgadas; as mulheres em trajo de desporto usavam ténis e meias brancas de algodão por baixo dos joelhos; as que se tinham "vestido para jantar" usavam vestidos naturalmente cintados, quase sempre com mangas de balão. Todos juntos formavam uma colorida balbúrdia quando o urso se precipitava sobre eles perseguido pelo Freud.
- Nein! Nein! Seu imbecil!
E o State O'Maine, cuja expressão sob o açaimo era um mistério para os hóspedes, continuava em frente, fazendo apenas ligeiros desvios, qual massa informe inclinada sobre o guiador. - Estúpido animal! - gritava o Freud.
O urso afastava-se - passando sempre sob um dos toldos montados para a festa sem derrubar as estacas de suporte e sem levar atrás as toalhas de linho branco que cobriam as mesas com a comida e o bar -, perseguido pelos criados através dos extensos e luxuriantes relvados. Os jogadores de ténis aplaudiam dos courts, mas quando o urso se aproximava mais deles abandonavam o jogo.
Quer soubesse ou não o que fazia, o facto é que o urso nunca chocava contra nenhuma sebe nem andava demasiado depressa; também nunca desceu para os embarcadouros para tentar entrar a bordo de algum iate ou de um lagosteiro. E o Freud acabava sempre por o apanhar quando os hóspedes já tinham visto o suficiente. Montava na moto atrás do urso e, encostando-se bem ao largo dorso do animal, conduzia-o a ele e ao veículo de novo para o recinto da festa.
- Como vêem, há apenas umas pequenas arestas para limar! - gritava ele para o grupo. - Uns grãos de areia na engrenagem, mas nichts de preocupante! Para a próxima vão ver como ele já se sai bem!
E o número era este. Sempre o mesmo. Era tudo o que o Freud tinha ensinado ao State O'Maine; e ele afirmava que era tudo o que o urso era capaz de aprender.
- Este urso não é lá muito inteligente - disse o Freud ao Pai. - Quando fiquei com ele, já era velho de mais. Pensei que fosse uma boa aquisição. Foi apanhado quando era pequeno. Mas os lenhadores não lhe ensinaram nada. De qualquer forma, aquela gente não tem educação. Também não passam de animais. Ficaram com o urso como mascote, alimentaram-no o suficiente para o manter em bom estado de saúde, mas limitaram-se a deixá-lo vadiar e tornar-se preguiçoso. Exactamente como eles. Acho que este urso apanhou o vício da bebida por causa dos lenhadores. Agora não bebe, não o deixo, mas só faz o que quer, está a perceber?
O Pai não estava a perceber. Achava que o Freud era maravilhoso e que a Indian de 1937 era a máquina mais linda que alguma vez tinha visto. Nos dias de folga, o meu pai levava a minha mãe a passear pelas estradas da costa, os dois muito juntos a apanharem o vento fresco e carregado de sal. Mas nunca estavam sozinhos: a moto não podia sair do Arbuthnot sem o State O'Maine no sidecar. O urso ficava furioso se a moto tentasse partir sem ele; era mesmo a única coisa que podia fazer correr aquele velho urso. E é espantoso como um urso pode correr depressa.
- Vá, tente ir dar uma volta - disse o Freud ao Pai. - Mas é melhor empurrar a moto pelo caminho de acesso até chegar à estrada, antes de pôr o motor a trabalhar. E na primeira vez não leve a pobre Mary consigo. Vista muita roupa grossa, pois se ele o apanhar enche-o de patadas. Ele não fica enfurecido, fica apenas excitado. Vá lá, tente. Mas se passados alguns quilómetros olhar para trás e ele ainda for a correr atrás de si, é melhor parar e trazê-lo de volta. Senão ainda tem algum ataque de coração ou acaba por se perder; ele é tão estúpido! Não sabe caçar nem fazer nada. Se não lhe derem de comer fica desamparado. É um animal doméstico, já não é um animal a sério. Só é duas vezes mais inteligente do que um pastor-alemão. E isso não é ser suficientemente inteligente para o mundo, como deve calcular.
- O mundo? - perguntava sempre a Lilly, de olhos arregalados.
Mas o mundo para o meu pai, no Verão de 39, era algo de novo e de acolhedor, com as tímidas carícias da minha mãe, o troar do motor da Indian de 37, o cheiro forte do State O'Maine, as noites frias do Maine e a sabedoria do Freud.
Este coxeava, como é evidente, devido a um acidente de moto; não lhe tinham tratado da fractura como deve ser. "Discriminação", lamentava-se o Freud.
Era um homem baixo, forte, sempre alerta como um animal e com um tom de pele peculiar (como uma azeitona verde que tivesse cozido lentamente até ficar quase castanha). Tinha o cabelo preto e lustroso e um estranho tufo desse mesmo cabelo na face, logo por baixo de um dos olhos: um tufo de pêlos sedosos, maior do que a maior parte dos sinais, pelo menos do tamanho de uma moeda, mais característico do que qualquer outro sinal de nascença e tão natural no rosto do Freud como uma lapa agarrada a uma rocha do Maine.
- Isto é devido ao meu cérebro ser tão descomunal - disse o Freud à Mãe e ao Pai. - O meu cérebro não me deixa espaço na cabeça para o cabelo crescer, de modo que este fica com ciúmes e vai crescer onde não devia.
- Talvez fosse pêlo de urso - disse o Frank, uma vez, com ar sério. Quando ouviu isto, a Franny desatou aos gritos e agarrou-se-me ao pescoço com tanta força que mordi a língua.
- O Frank é mesmo de todo! - exclamou ela. - Mostra-nos mas é o teu pêlo de urso, ó Frank!
Nessa época, o pobre do Frank estava a entrar na puberdade; era precoce e tinha muita vergonha por causa disso. Mas nem sequer a Franny nos conseguia distrair da magia magnetizante do Freud e do urso; ficávamos tão fascinados com eles quanto os meus pais devem ter ficado naquele Verão de 1939.
O Pai contou-nos que havia noites em que acompanhava a minha mãe até ao dormitório e lhe dava um beijo de despedida. Se o Freud estivesse a dormir, o Pai soltava o State O'Maine, que estava preso à moto, e tirava-lhe o açaimo para o urso poder comer. Depois levava-o à pesca. A moto ficava coberta por um oleado, montado como uma tenda aberta, e que protegia o State O'Maine da chuva; o Pai deixava os apetrechos de pesca enrolados numa das abas do oleado para essas ocasiões.
Iam ambos para o cais de Bay Point, que ficava para lá dos ancoradouros do hotel e onde havia um grande movimento de lagosteiros e de outros barcos de pesca. O Pai e o State O'Maine sentavam-se na extremidade do cais, e o Pai atirava a linha, iscada com amostras feitas de colheres, a fim de apanhar pescadas-polacas, e dava-as ainda vivas ao State O'Maine. Só uma noite é que houve uma zanga entre eles. Em geral, o Pai apanhava três ou quatro pescadas, o que era suficiente - tanto para ele como para o State O'Maine -, e em seguida voltavam para casa. Mas uma noite não havia meio de as pescadas morderem, e decorrida uma hora sem uma picadela no anzol o Pai levantou-se para se ir embora e fez menção de prender o urso à corrente e de lhe pôr o açaimo.
- Vamos embora - disse ele. - Esta noite não há peixe no mar. O State O'Maine não se mexeu.
- Anda! - insistiu o Pai.
Mas o State O'Maine também não queria deixar o Pai ir-se embora do cais.
- Grrrrr! - rosnou o urso.
O Pai sentou-se e continuou a pescar.
- Grrrrr! - lamentou-se o State O'Maine.
O Pai lançou a linha vezes sem conta, mudou de amostras, tentou tudo.
Se tivesse podido ir procurar lingueirões no lodo dos baixios, teria tentado pescar ao fundo para apanhar solhas, mas o State O'Maine zangava-se cada vez que ele fazia menção de sair do cais. O Pai considerou a hipótese de saltar para a água e nadar até terra; em seguida, podia ir à socapa até ao dormitório chamar o Freud, após o que voltariam ambos com comida do hotel para trazerem o State O'Maine. Mas, passado um bocado, o Pai resolveu entrar no jogo do urso:
- Pronto, está bem! Queres peixe? Então vamos apanhar peixe, raios me partam!
Pouco antes de amanhecer, um pescador de lagostas veio até ao cais para se fazer ao mar. Ia recolher as lagosteiras e trazia algumas novas para colocar, e - infelizmente - também trazia isco. O State O'Maine farejou o isco.
- É melhor dar-lho - aconselhou o Pai.
- Grrrrr! - rosnou o State O'Maine.
E o pescador de lagostas lá deu o isco todo ao urso.
- Havemos de o indemnizar - disse o Pai. - Vou já tratar disso.
- Eu sei do que é que gostava de "ir já tratar" - respondeu o outro. - Gostava de meter esse urso nas minhas lagosteiras e usá-lo como isco. Gostava de o ver comido pelas lagostas.
- Grrrrr! - rosnou o State O'Maine.
- É melhor não o irritar - aconselhou o Pai ao pescador, que concordou.
- Já, esse urso não é lá muito esperto - disse o Freud ao Pai. - Devia tê-lo avisado. Às vezes tem um comportamento esquisito com a comida. Os lenhadores davam-lhe comida de mais; estava sempre a comer uma data de porcarias. E agora, às vezes, decide que ainda não comeu o suficiente - ou que quer uma bebida ou outra coisa qualquer. Não se esqueça: nunca se sente à mesa antes de lhe ter dado de comer. Ele não gosta disso.
Por este motivo, o State O'Maine era sempre bem alimentado antes dos seus números nas festas ao ar livre - pois as toalhas de linho branco estavam sempre carregadas de hors d'oeuvres, de peixes crus preparados de forma exótica, e se o State O'Maine estivesse com fome podia haver sarilho. Mas o Freud empanturrava-o antes de actuar, e o urso, de barriga cheia, conduzia a moto calmamente. Segurava o guiador com ar plácido, e mesmo enfadado, como se a maior necessidade física que iria sentir de seguida fosse a de dar um pavoroso arroto ou de fazer funcionar os seus grandes intestinos de urso.
- O número é estúpido e eu estou a perder dinheiro - disse o Freud. -Este local é demasiado extravagante. Só os snobs é que cá vêm. Devia ir para um lugar com pessoas um pouco mais rudes, aqueles onde há salas de bingo e não apenas bailes. Sítios mais democráticos, onde se aposta nas lutas de cães, está a perceber?
O meu pai não estava a perceber, mas era indubitável que o seu interlocutor gostava imenso desses lugares, menos elegantes do que o Weirs na Lacónia, ou mesmo que Hampton Beach.
Lugares onde houvesse mais bêbedos e dinheiro que escorresse mais facilmente para um espectáculo com um urso. O Arbuthnot era requintado de mais para um homem como o Freud e um urso como o State O'Maine. Era mesmo demasiado fino para apreciar aquela moto: a Indian de 1937.
Mas o meu pai compreendeu que o Freud não era suficientemente ambicioso para sair dali. Para ele, o Verão no Arbuthnot não apresentava dificuldades; o único problema era que o urso não se tinha transformado na mina de ouro que o Freud esperava. O que ele queria era um urso diferente.
- Com um urso tão rapado como este - disse ele à minha mãe e ao meu pai - nem pensar em melhorar o meu rendimento. E se se vai actuar em locais baratos, arranjam-se outros problemas.
A minha mãe agarrou a mão do meu pai e apertou-a com força, como se fosse um aviso - talvez porque o estivesse a ver a imaginar esses "outros problemas", esses "locais baratos". Mas o meu pai estava a pensar nas propinas de Harvard; ele gostava daquela Indian de 1937 e do urso chamado State O'Maine. Não tinha visto o Freud fazer o mais pequeno esforço para ensinar o urso, e o Win Berry era um jovem cheio de confiança nas suas capacidades; o filho do Coach Bob imaginava que podia fazer tudo o que imaginasse.
Já tinha antes decidido que, após o Verão no Arbuthnot, partiria para Cambridge, alugaria um quarto e arranjaria trabalho - eventualmente em Boston. Iria fazer um reconhecimento da região de Harvard e empregar-se nas imediações, de modo que logo que tivesse o dinheiro suficiente poderia matricular-se. Assim, pensava ele, talvez conseguisse mesmo arranjar um emprego a meio tempo e ir para Harvard. Estes projectos tinham agradado à minha mãe, dado que uma viagem de ida e volta de Boston a Dairy fazia-se com facilidade nos comboios da Boston & Maine, que nessa altura funcionavam com regularidade. Já estava a imaginar as visitas do meu pai - longos fins-de-semana - e talvez mesmo as ocasionais visitas (ainda que dentro das conveniências) que poderia fazer a Cambridge ou a Boston para o ver.
- Mas tu percebes alguma coisa de ursos? - perguntou ela. - Ou de motos?
Mas também não lhe agradava a ideia de que - se o Freud não tivesse vontade de se separar da moto ou do urso - o Pai fosse correr os acampamentos de lenhadores com ele. O Win Berry era um rapaz forte, mas não ordinário. E a Mãe imaginava esses acampamentos como locais ordinários, de onde o Pai não sairia o mesmo - ou nem sequer sairia.
Mas não precisava de se preocupar. Os acontecimentos daquele Verão e o seu desfecho estavam manifestamente predeterminados, muito mais inexoravelmente do que quaisquer projectos banais que o meu pai e a minha mãe pudessem ter para o futuro. O Verão de 39 era tão inevitável como a guerra na Europa, como em breve seria conhecida, e todos eles - Freud, Mary Bates e Winslow Berry - não eram mais do que meros joguetes impelidos por aquele Verão, como as gaivotas ao sabor das violentas correntes da foz do Kennebec.
Numa noite de fim de Agosto, depois de a Mãe ter servido o jantar e ter acabado de calçar os ténis e vestir a saia comprida com que jogava croquet, foram chamar o Pai ao quarto para socorrer um homem ferido. O Pai atravessou a correr o relvado do croquet, onde a Mãe estava à espera dele com um malho ao ombro. As lâmpadas penduradas nas árvores, de ar natalício, iluminavam o campo de croquet de uma forma tão fantasmagórica que -aos olhos do meu pai - a minha mãe "parecia um anjo com um malho na mão".
- Venho já ter contigo - disse-lhe o Pai. - Há uma pessoa ferida. Ela acompanhou-o, e a outros homens que vinham com ele, e foram todos a correr para o embarcadouro do hotel. Acostado ao cais estava um grande navio cheio de animação e todo iluminado. A bordo tocava uma orquestra com uma secção de metais demasiado grande; o forte cheiro a combustível e a gases de escape misturavam-se no ar salgado com o odor de fruta espremida. Era como se uma enorme taça de ponche de frutas estivesse a ser servida aos convidados e estes entornassem a bebida por cima deles ou a utilizassem para lavar o convés. Na extremidade do cais estava um homem deitado de lado, a sangrar de uma ferida na face: tinha tropeçado a subir a escada e feito um golpe na cara, ao bater num gancho de acostagem.
Era um homem grande, com a cara a brilhar à luz do luar; quando alguém lhe tocou, sentou-se imediatamente. - Scheiss! - disse ele.
O meu pai e a minha mãe reconheceram a palavra alemã para "merda", que tinham aprendido nas numerosas actuações do Freud. Com a ajuda de vários jovens vigorosos, o alemão foi posto de pé. Tinha sangrado abundantemente sobre o seu smoking branco, que parecia suficientemente largo para lá caberem dois homens; a faixa azul e negra que trazia à cintura assemelhava-se a uma cortina; o lacinho a condizer com a faixa estava-lhe colado ao pescoço como uma hélice retorcida. Tinha o rosto inchado e cheirava intensamente ao ponche de frutas servido no barco. Gritou para alguém. De bordo chegou um coro de vozes que falavam em alemão, e uma mulher alta e bronzeada, com um vestido de noite de rendas amarelas, subiu a escada que conduzia ao cais como se fosse uma pantera vestida de seda. O ferido agarrou-se-lhe e inclinou-se tanto para ela que a mulher, não obstante a sua força e agilidade evidentes, foi empurrada de encontro ao meu pai, que a ajudou a manter o equilíbrio. A minha mãe notou que ela era muito mais nova do que o homem e também alemã - falando-lhe de uma maneira fluente e cacarejante, enquanto ele continuava a balir e a gesticular, com ar estúpido, para os membros do coro de vozes alemãs que tinham ficado a bordo. O casal acenou-lhes do cais, e depois da rampa de acesso.
À entrada do Arbuthnot, a mulher voltou-se para o meu pai e disse, tentando esmerar-se na pronúncia:
- Ele fai precisar de pontos, ja! Echpero que tenham um médico. O chefe da recepção murmurou para o Pai:
- Vá chamar o Freud.
- Pontos? - perguntou o Freud. - O médico vive em Bath e está sempre embriagado. Mas eu sei como coser uma pessoa.
O recepcionista saiu a correr em direcção ao dormitório e gritou para o Freud:
- Pegue na moto e vá buscar o doutor Todd! Pomo-lo sóbrio quando chegar. Mas, por amor de Deus, vá já!
- Vou levar uma hora, e é se conseguir encontrá-lo - respondeu o Freud. - Sabe que sou capaz de dar uns pontos? É só arranjar-me a roupa adequada.
- Isto é diferente - disse o recepcionista. - Acho que é diferente, Freud. Quer dizer, o tipo. É alemão, Freud. E o golpe é na cara.
O Freud desembaraçou o corpo bexigoso e cor de azeitona da roupa de trabalho e começou a pentear o cabelo húmido.
- A roupa - disse ele. - Tragam-ma. É complicado de mais ir buscar o doutor Todd.
- A ferida é na cara, Freud - disse o Pai.
- E o que é uma cara? - perguntou o Freud. - Só pele, ja! Como nas mãos e nos pés. Já cosi montes de pés. Cortes de machados e de serras nesses estúpidos lenhadores.
Lá fora, os outros alemães do barco estavam a trazer baús e bagagem pesada percorrendo o caminho mais curto do cais até à entrada - isto é, atravessando o décimo oitavo green.
- Olhem para aquelas bestas - disse o Freud. - A fazerem mossas no relvado para a bolinha branca ir lá parar.
O chefe dos criados entrou no quarto do Freud - era o melhor quarto do dormitório dos homens e ninguém sabia como é que ele o tinha conseguido - e começou a despir-se.
- Tudo menos o casaco, palerma. Os médicos não usam casacos de criados.
O Pai tinha um smoking preto que condizia mais ou menos com as calças pretas do criado, e trouxe-o ao Freud.
- Já disse um milhão de vezes - opinou o chefe dos criados - que devia haver um médico que vivesse mesmo no hotel.
Tinha a sua piada vê-lo quase nu a dizer isto com uma certa autoridade. Quando o Freud se acabou de vestir, respondeu-lhe:
- Mas há.
O recepcionista correu à frente dele até ao corpo principal do hotel. O Pai ficou a observar o chefe dos criados, que fitava desanimado a roupa abandonada do Freud; não estava muito limpa e cheirava intensamente ao State O'Maine; era evidente que o criado não queria vesti-la.
O Pai deu uma corrida para apanhar o Freud.
Os alemães, agora na rampa de acesso que conduzia à entrada, arrastavam um grande baú pelo cascalho fora; na manhã seguinte, alguém teria de alisar o caminho com um ancinho.
- Não há pessoal suficiente nechte hotel? - berrou um dos alemães. Estendido como um cadáver sobre o imaculado balcão da copa, entre a casa de jantar e a cozinha, o alemão grande que tinha um lenho na cara jazia com a cabeça assente no smoking dobrado, que nunca mais voltaria a ser branco; a hélice do lacinho negro pendia-lhe frouxa na garganta e a faixa estava subida.
- O médico é de confianza? - perguntou ele ao recepcionista.
A jovem valquíria de vestido de rendas amarelas segurava-lhe na mão.
- Excelente - respondeu o recepcionista.
- Especialmente a coser - disse o meu pai. A minha mãe apertou-lhe a mão.
- Acho que echte hotel não é lá muito cifilizado - disse o alemão.
- Ach! Mas ichto fica no meio da selfa - acrescentou a sua bronzeada e atlética acompanhante, desculpando-se logo com uma gargalhada. - Os colpech não são tão mauss como isso, crreio eu - disse ela, dirigindo-se ao Pai, à Mãe e ao recepcionista. - Acho que não prrecisamoch de um médico muito bom parra trratar dichto.
- Dechde que não secha iudeu... - acrescentou o alemão, e tossiu. O Freud estava na copa, embora ninguém o tivesse visto; tentava com dificuldade enfiar uma agulha.
- Echtou cerrta que não é iudeu - disse, rindo, a princesa bronzeada. - Não há iudeus no Maine!
Mas quando viu o Freud já não parecia tão segura.
- Guten Abend, meine Dame und Herr - disse o Freud. - Was is t los?
O meu pai disse que o Freud, com o smoking preto e com a cara deformada pelas bexigas, ficava com uma figura tão insignificante que dava logo a impressão de ter roubado a roupa que trazia vestida; e, ainda por cima, esta parecia ter sido roubada a pelo menos duas pessoas diferentes. Até o seu utensílio mais visível era preto - um carrinho de linhas que o Freud segurava com umas luvas de borracha cinzentas, das que eram usadas pelos lavadores de pratos. A melhor agulha que se tinha encontrado na lavandaria do Arbuthnot parecia demasiado grande na mãozinha do Freud, como se ele tivesse escolhido uma agulha de coser velas de barcos. E talvez fosse esse o caso.
- Herr Doktor? - perguntou o alemão, empalidecendo. A ferida parecia ter parado de sangrar instantaneamente.
- Herr Doktor Professor Freud - respondeu o Freud, aproximando-se e olhando de soslaio para a ferida.
- Freud? - perguntou a mulher.
- Já! - respondeu o Freud.
Quando deitou o primeiro cálice de uísque na ferida do alemão, o líquido escorreu para os olhos do ferido.
- lups! - exclamou o Freud.
- Estou cego! Estou cego! - gemeu o alemão.
- Nein, nicht cego - afirmou o Freud. - Mas devia ter fechado os olhos.
E despejou outro copo na ferida; em seguida meteu mãos à obra.
De manhã, o gerente pediu ao Freud para não actuar com o State O'Mai-ne até os alemães se irem embora, o que aconteceria assim que tivessem carregado de provisões o seu enorme navio. Mas o Freud recusou-se a continuar vestido de médico; insistiu em consertar a moto com o seu fato-macaco; e foi neste traje que o alemão o encontrou junto ao lado dos courts de ténis que dava para o mar, não exactamente escondido do recinto principal do hotel e dos campos de jogos mas num afastamento discreto. O alemão, com o rosto enorme e cheio de ligaduras inchadíssimo, aproximou-se cautelosamente do Freud, como se aquele pequeno mecânico de motos fosse o inquietante irmão gémeo do Herr Doktor Professor da noite anterior.
- Nein, é ele - disse a mulher bronzeada, agarrada ao braço do alemão.
- O que é que o nosso médico iudeu echtá a arranjar echta manhã? - perguntou ele ao Freud.
- Este é um dos meus passatempos - respondeu o Freud, sem levantar os olhos.
O meu pai, que ia passando as ferramentas ao Freud - como um assistente ao cirurgião -, agarrou com mais força a chave-inglesa de três quartos de polegada.
O casal alemão não viu o urso. O State O'Maine estava a coçar-se contra a cerca dos courts de ténis - esfregando violentamente as costas na rede de metal, grunhindo de satisfação e balouçando-se a um tal ritmo que parecia estar a masturbar-se. Para que ficasse mais à vontade, a minha mãe tinha-lhe tirado o açaimo.
- Nunca vi uma moto como echta - disse o alemão ao Freud, com um ar sarcástico. - Tenho a impressão que não passa de uma lata, já? O que é isso de Indian? Nunca em tal ouvi falar.
- Devia experimentar dar uma volta nela - disse o Freud. - Não quer?
A alemã pareceu ficar pouco segura acerca da ideia, ou seja, perfeitamente segura de que não queria ir, mas o alemão mostrou-se visivelmente interessado. Aproximou-se da moto, tocou no depósito da gasolina, percorreu com os dedos o cabo da embraiagem e acariciou o punho das mudanças. Agarrou no guiador e fez girar o punho do acelerador com um movimento brusco. Apalpou o tubo de borracha macia - que, entre todo aquele metal, mais parecia um órgão vital exposto - por onde a gasolina corre do depósito para o carburador. Abriu a válvula do carburador, sem pedir autorização ao Freud; tacteou-lhe o interior, ficou com os dedos molhados de gasolina e limpou-os ao assento.
- Não se importa, Herr Doktor? - perguntou o alemão ao Freud.
- Nada! Pode ir - respondeu o Freud. - Dê uma volta nela. Assim era o Verão de 39: o meu pai percebeu como é que ele ia terminar, mas não podia fazer nada.
- Eu não podia deter os acontecimentos - dizia sempre o Pai. - Eles aproximavam-se, tal como a guerra.
A Mãe, junto à cerca dos courts de ténis, viu o alemão montar na moto e pensou que era melhor voltar a pôr o açaimo ao State O'Maine. Mas o urso resolveu embirrar com ela; abanou a cabeça com força e começou a coçar-se ainda mais violentamente.
- O arranque é de pedal, ja? - inquiriu o alemão.
- É. Carregue no pedal que ela começa logo a trabalhar - disse o Freud.
Alguma coisa na maneira como ele e o Pai se afastavam da moto levou a jovem alemã a juntar-se-lhes; tal como eles, recuou uns passos.
- Vamos a ichto! - disse o alemão, e carregou no pedal.
Logo ao primeiro ronco do motor, antes ainda da primeira aceleração, o urso chamado State O'Maine ergueu-se com as costas apoiadas na vedação do court de ténis, com o pêlo áspero do amplo peito todo eriçado; olhou fixamente através do court central para a Indian de 1937, que se preparava para ir a algum lado sem ele. Quando o alemão meteu a primeira e começou, bastante timidamente, a atravessar o relvado para atingir um caminho de cascalho que havia perto, o State O'Maine deixou-se cair sobre as quatro patas e investiu. Já ia a toda a velocidade quando atravessou o court central e interrompeu um jogo de pares - voaram raquetas e bolas em todas as direcções. O parceiro que estava a jogar à rede achou por bem proteger-se com ela, e fechou os olhos quando o urso passou por ele a correr.
- Urrr! - urrou o State O'Maine, mas o alemão, sentado na Indian de 37 com o motor aos roncos, não podia ouvi-lo.
A alemã, porém, ouviu-o e voltou-se - ao mesmo tempo que o Pai e o Freud - para ver o urso.
- Gott! Que selfacharia! - gritou ela, caindo para o lado desmaiada, para cima do meu pai, que a depositou gentilmente na relva.
Quando o alemão deu pelo urso a correr atrás dele, ainda não tinha conseguido orientar-se; não sabia bem para que lado era a estrada principal. É claro que se a encontrasse podia distanciar-se do urso, mas enquanto não conseguisse sair dos estreitos caminhos e passeios do recinto do hotel, e dos campos de jogos, jamais atingiria a velocidade necessária.
- Urrr! - rosnou o urso.
O alemão inflectiu para o campo de croquet e continuou em direcção às tendas onde estavam a preparar tudo para o almoço ao ar livre. O urso alcançou a moto em menos de vinte e cinco metros, tentando desajeitadamente montar atrás do alemão - como se o State O'Maine tivesse finalmente aprendido as lições de condução do Freud e estivesse disposto a fazer com que o espectáculo se realizasse como devia ser.
Desta vez, o alemão não quis deixar o Freud cosê-lo, e mesmo este último confessou que isso seria uma tarefa demasiado difícil para ele.
- Livra! - comentou o Freud para o meu pai. - Eram pontos de mais para mim. Eu jamais suportaria ouvi-lo berrar aquele tempo todo.
Por este motivo, o alemão foi transportado para o hospital de Bath pela Guarda Costeira. O State O'Maine foi fechado na lavandaria, de modo a que a alegação de que o urso era um "animal selvagem" pudesse ser sustentada.
- Ele feio da Jiarresta - disse a alemã quando voltou a si. - Defe terr ficado irritado com o barulho da moto.
- Uma fêmea com crias pequenas - explicou o Freud. - Serr traiçoeira nesta época do ano.
Mas a gerência do Arbuthnot-by-the-Sea não ia permitir que o assunto se resolvesse assim tão facilmente. E o Freud sabia isto.
- Vou-me embora antes de ter de falar novamente com ele - disse o Freud ao Pai e à Mãe.
Ambos sabiam que ele se referia ao proprietário do Arbuthnot, o homem de smoking branco que aparecia de vez em quando para a última dança.
- Estou mesmo a ouvir esse figurão: "Bom, Freud, você conhecia os riscos que havia, pois discutimos esse assunto. Quando aceitei ter aqui o animal, concordámos ambos que isso seria da sua responsabilidade." E se ele me disser que sou um judeu com sorte (para começar, por estar nesta maldita América), deixo o State O'Maine comê-lo - disse o Freud. - Não preciso dele nem dos seus cigarros de luxo. De qualquer modo, isto não é o meu tipo de hotel.
O urso, nervoso por estar fechado na lavandaria e preocupado ao ver o Freud arrumar a sua roupa na mala assim que acabara de ser lavada - ainda ia húmida -, começou a rosnar baixinho.
- Urrr! - suspirava ele.
- Cala-te! - gritou o Freud. - Também não és o meu tipo de urso.
- Foi por minha culpa - disse a minha mãe. - Não lhe devia ter tirado o açaimo.
- Aquilo foram só umas dentadinhas de amor - disse o Freud. - As unhas desta besta é que cortaram mesmo aquele sacana!
- Se ele não tem puxado o pêlo do State O'Maine - disse o Pai -, talvez as coisas não tivessem corrido tão mal.
- Claro que não - disse o Freud. - Quem é que gosta que lhe puxem os pêlos?
- Urrr! - queixou-se o State O'Maine.
- O teu nome devia ser esse: Urrr! - disse o Freud ao urso. - És tão estúpido que nunca disseste outra coisa.
- Mas o que é que vai fazer? - perguntou o Pai ao Freud. - Para onde é que pode ir agora?
- Vou voltar para a Europa - respondeu o Freud. - Eles lá têm ursos inteligentes.
- Mas têm os nazis - disse o Pai.
- Dêem-me um urso inteligente, e que se lixem os nazis - disse o Freud.
- Eu tomo conta do State O'Maine - propôs o pai.
- Pode fazer uma coisa ainda melhor - sugeriu o Freud. - Pode comprá-lo. Duzentos dólares e toda a sua roupa. Esta aqui está molhada - gritou ele, atirando com a roupa.
- Urrr! - grunhiu o urso, com ar desanimado.
- Cuidado com a língua, Urrr! - disse-lhe o Freud.
- Duzentos dólares? - perguntou a Mãe.
- Isso é tanto quanto recebi aqui até agora - exclamou o Pai.
- Sei muito bem quanto é que já lhe pagaram - disse o Freud. - É por isso que são só duzentos dólares. É claro que isto inclui também a moto. Já percebeu porque é que precisa de ficar com a Indian, ja? O State O'Maine não entra em carros; fazem-no vomitar. Uma vez um lenhador qualquer prendeu-o com a corrente dentro de uma furgoneta. Eu assisti à cena. Este estúpido deste urso arrancou a portinhola traseira, partiu o vidro da rectaguarda e maltratou o tipo que ia a guiar dentro da cabina. Por isso não seja parvo. Compre a Indian.
- Duzentos dólares - repetiu o Pai.
- E agora a roupa - disse o Freud.
Deixou as suas coisas todas molhadas no chão da lavandaria. O urso tentou ir atrás deles até ao quarto do meu pai, mas o Freud disse à minha mãe para ficar com o State O'Maine cá fora e para o acorrentar à moto.
- Ele sabe que você se vai embora e está nervoso, coitado - disse a Mãe.
- Ele só sente a falta da moto - respondeu o Freud.
Mas deixou o urso subir as escadas até ao andar de cima, embora o Ar-buthnot lhe tivesse pedido para não o deixar fazer isto.
- Para que é que me interessa agora o que eles permitem ou não? - exclamou o Freud, experimentando as roupas do meu pai.
A minha mãe vigiava a entrada; não era permitida a presença de ursos nem de mulheres no dormitório dos homens.
- A minha roupa fica-lhe toda muito grande - disse o meu pai ao Freud quando este já estava vestido.
- Ainda estou a crescer - respondeu o Freud, que nessa época já devia andar, no mínimo, pelos quarenta anos. - Se tivesse tido roupa como deve ser, agora seria mais alto.
Ele tinha vestido três calças do meu pai, umas por cima das outras, dois casacos com os bolsos atafulhados de roupa interior e de peúgas, e ainda tinha um terceiro casaco ao ombro.
- Para quê preocuparmo-nos com malas? - perguntou ele.
- Mas como é que vai para a Europa? - perguntou-lhe a Mãe, baixinho, para dentro do quarto.
- Atravessando o oceano Atlântico - respondeu o Freud. - Entre para aqui - disse ele à Mãe.
Agarrou nas mãos do meu pai e da minha mãe e juntou-as.
- Vocês ainda são novos - disse-lhes ele. - Portanto, oiçam: vocês estão apaixonados. Vamos partir desse princípio, ja?
E, embora a minha mãe e o meu pai nunca tivessem admitido tal coisa um ao outro, ambos anuíram enquanto o Freud lhes segurava as mãos.
- Muito bem - disse o Freud. - Daqui decorrem três coisas. Prometem-me que vão estar de acordo com as três?
- Prometo - disse o meu pai.
- E eu também - acrescentou a Mãe.
- Muito bem - disse o Freud. - Eis a primeira: vocês vão casar-se imediatamente, antes que haja quem vos faça mudar de opinião. Está entendido? Casam-se, ainda que isso vos exija sacrifícios.
- Está bem - concordaram os meus pais.
- E agora a número dois - disse o Freud, olhando apenas para o meu pai. - Prometa-me que vai para Harvard, ainda que isso lhe exija sacrifícios.
- Mas nessa altura já estarei casado - exclamou o meu pai.
- Eu disse que isso lhe ia exigir sacrifícios, não disse? Prometa-me que vai para Harvard. Vai aproveitar todas as oportunidades que lhe aparecerem neste mundo, mesmo que sejam de mais. Um dia, as oportunidades acabam-se, está a perceber?
- De qualquer modo, quero que vás para Harvard - disse a Mãe ao Pai.
- Ainda que isso me exija sacrifícios - disse o Pai, mas concordou em ir.
- Chegámos à número três - disse o Freud. - Estão prontos? Voltou-se para a minha mãe, largando a mão do meu pai e ficando apenas a segurar a da minha mãe.
- Perdoe-lhe - disse o Freud -, ainda que isso lhe exija sacrifícios.
- Perdoar-me o quê? - perguntou o Pai.
- Perdoe-lhe só - respondeu o Freud, olhando apenas para a minha mãe, que encolheu os ombros. - E tu - gritou para o urso, que andava a farejar debaixo da cama do Pai.
O State O'Maine, que tinha encontrado uma bola de ténis debaixo da cama e estava com ela na boca, assustou-se.
- Gorp! - fez o urso, regurgitando a bola.
- Tu - prosseguiu o Freud - talvez um dia fiques grato por teres sido salvo do mundo repugnante da natureza!
E foi tudo. Foi um casamento e uma bênção, como a minha mãe costumava dizer. Foi uma bela cerimónia judaica à moda antiga, costumava dizer o meu pai. Para ele, os judeus eram um mistério - tal como a China, a índia, a África e todos os lugares exóticos onde nunca tinha estado.
O Pai prendeu o urso à moto com uma corrente. Quando ele e a Mãe se despediram do Freud com um beijo, o urso tentou meter a cabeça entre eles.
- Cuidado! - exclamou o Freud, e tiveram de se afastar. - Ele pensou que estávamos a comer qualquer coisa - disse o Freud, dirigindo-se à Mãe e ao Pai. - Atenção aos beijos ao pé dele, pois não os entende. Pensa que se está a comer.
- Urrr! - grunhiu o urso.
- E façam-me um favor - disse o Freud -, chamem-lhe Urrr, pois é tudo o que ele sabe dizer, e State O'Maine é um nome estúpido.
- Urrr? - estranhou a minha mãe.
- Urrr! - confirmou o urso.
- Muito bem - disse o Pai. - Passa a ser Urrr.
- Adeus, Urrr - despediu-se o Freud. - Auf Wiedersehen! Ficaram a ver o Freud durante muito tempo, enquanto este esperava no cais da Bay Point por um barco para Boothbay. E quando, finalmente, um lagosteiro o levou - embora os meus pais soubessem que em Boothbay o Freud embarcaria num navio maior -, repararam que dava a impressão que o lagosteiro ia levar o Freud à Europa, atravessando o sombrio oceano. Ficaram a olhar o barco que se afastava a baloiçar ruidosamente, até parecer mais pequeno do que uma andorinha do mar ou mesmo um maçarico perdido no mar. Nessa altura, já não conseguiam ouvi-lo.
- Então nessa noite foi a primeira vez? - perguntava sempre a Franny.
- Franny! - exclamava a Mãe.
- Bem, vocês disseram que se sentiram casados - respondia a Franny.
- Não interessa quando foi - dizia o Pai.
- Mas foi, não foi? - insistia a Franny.
- Isso não interessa - dizia o Frank.
- Não interessa quando - dizia a Lilly, com o seu ar misterioso.
E isso era verdade - no fundo, não interessava quando. Quando saíram do Verão de 39 e do Arbuthnot-by-the-Sea, a minha mãe e o meu pai estavam apaixonados - e, no espírito deles, casados. No fim de contas, tinham-se prometido ao Freud. Tinham ficado com a Indian de 1937 e com o urso, que agora se chamava Urrr, e quando voltaram a Dairy, no New Hampshire, dirigiram-se em primeiro lugar à casa dos Bates.
- A Mary está de volta! - gritou a mãe da minha mãe.
- Que geringonça é essa em que ela vem? - perguntou o velho Latin Emeritus. - Quem é que vem com ela?
- É uma moto e aquele é o Win Berry! - respondeu a mãe da minha mãe.
- Não, não! - insistiu o Latin Emeritus. - Quem é o outro! E o velho olhava para o vulto entrouxado dentro do sidecar.
- Deve ser o Coach Bob - disse a mãe da minha mãe.
- Esse atrasado mental! - exclamou o Latin Emeritus. - Que diabo traz ele vestido com este tempo? Não sabem vestir-se no Iowa?
- Vou casar com o Win Berry! - anunciou a minha mãe aos pais, entrando de rompante. - Esta é a moto dele. O Win vai para Harvard. E este... é o Urrr.
O Coach Bob foi mais compreensivo. Gostou do Urrr.
- Gostava de saber o que é que ele faria num campo de futebol - dissera o antigo avançado do Big Ten. - Mas não seria possível cortar-lhe as unhas?
Era um disparate fazer outro casamento; o meu pai achava que a cerimónia do Freud tinha sido suficiente. Mas a família da minha mãe insistiu para que eles fossem casados pelo pastor congregacional que havia convidado a Mãe para o baile de finalistas. E assim fizeram.
Foi uma cerimónia pequena e simples. O Coach Bob foi o padrinho e o Latin Emeritus deu a mão da filha, só resmungando uma vez uma frase qualquer em latim; a mãe da minha mãe chorou, consciente de que o Win Berry não era o homem de Harvard destinado a levar a Mary Bates de volta para Boston - pelo menos para já. E, durante toda a cerimónia, o Urrr ficou sentado no sidecar da Indian de 37, onde o mantiveram calmo à custa de biscoitos e arenques.
A minha mãe e o meu pai tiveram uma curta lua-de-mel sozinhos.
- Então nessa altura é que foi! - gritava sempre a Franny.
Mas provavelmente não foi, já que não passaram a noite em lado nenhum. Apanharam um comboio para Boston de manhã muito cedo e passearam em Cambridge, imaginando-se a viver ali um dia, com o Pai a frequentar Harvard; e voltaram ao New Hampshire no comboio da noite, chegando na madrugada do dia seguinte. O seu primeiro leito nupcial deve ter sido a cama de solteira da minha mãe em casa do Latin Emeritus - que foi onde a minha mãe ficou a morar enquanto o meu pai procurava arranjar dinheiro para ir para Harvard.
O Coach Bob teve pena de ver partir o Urrr. Estava certo de que o urso podia ser ensinado a jogar na posição de defesa, mas o meu pai disse ao Iowa Bob que o urso ia ser o ganha-pão familiar e o meio de custear as propinas. E assim, uma noite (depois de os nazis terem tomado a Polónia), já com um cheiro a Outono no ar, a minha mãe deu um beijo de despedida ao meu pai no campo de jogos da Dairy School, sobre o qual dava directamente a porta das traseiras do Iowa Bob.
- Olha pelos teus pais - disse o Pai à Mãe. - Eu vou voltar para olhar por ti.
- Balelas - resmungava a Franny.
Por uma razão qualquer, esta parte aborrecia-a. Nunca acreditou nela. E a Lilly também costumava impacientar-se e pôr-se a olhar para o ar.
- Calem-se e prestem atenção à história - interrompia sempre o Frank.
Eu, pelo menos, não sou tão casmurro como os meus irmãos e irmãs. Limitava-me muito simplesmente a imaginar como é que a Mãe e o Pai se teriam beijado: cuidadosamente - enquanto o Coach Bob distraía o urso com uma brincadeira qualquer, de modo a que o Urrr não pensasse que o meu pai e a minha mãe estavam a comer alguma coisa que não partilhavam com ele. Beijar era sempre arriscado nas imediações do urso.
A minha mãe contou-nos que sabia que o meu pai lhe seria fiel, pois o urso não o deixaria em paz se o visse beijar alguém.
- E o Pai foi fiel? - perguntava a Franny com os seus incríveis modos.
- Pois com certeza - respondia o Pai.
- Ah, sim! Até aposto - dizia a Franny.
A Lilly parecia sempre preocupada, e o Frank costumava olhar para outro lado.
Estava-se no Outono de 1939. Embora ainda não o soubesse, a minha mãe já estava grávida - do Frank. O meu pai percorria a costa Leste na moto, e a sua peregrinação pelos hotéis de veraneio - a música das grandes orquestras, as multidões do bingo, os casinos - levava-o cada vez mais para o Sul, à medida que as estações se iam sucedendo. Quando o Frank nasceu, na Primavera de 1940, estava ele no Texas; nessa altura, o Pai e o Urrr viajavam com um grupo que se chamava Lone Star Brass Band. Os ursos eram muito populares no Texas, mas uma vez, em Fort Worth, um bêbedo tentou roubar a Indian de 1937 sem saber que o Urrr dormia acorrentado à moto, e um tribunal do Texas condenou o Pai a pagar as despesas de hospitalização do homem; isso e a longa viagem de regresso ao Leste para dar as boas-vindas ao seu primeiro filho custou-lhe uma boa parte do dinheiro que tinha conseguido ganhar.
Quando o meu pai voltou a Dairy, a minha mãe ainda estava no hospital. Deram o nome de Frank(*) ao Frank porque o meu pai disse que era isso que eles seriam sempre um para o outro e para a família: francos.
- Balelas - costumava dizer a Franny.
Mas o Frank sentia-se muito orgulhoso das origens do seu nome.
O Pai ficou com a minha mãe em Dairy apenas o tempo suficiente para a engravidar outra vez. Depois, partiu com o Urrr para Virgínia Beach e para as Carolinas. Foram expulsos de Falmouth, em Cape Cod, no 4 de Julho, e voltaram para casa ter com a Mãe, em Dairy - para se restabelecerem -, logo após o desastre. A Indian de 1937 gripou um rolamento em Falmouth durante o desfile do Dia da Independência, e o Urrr teve um acesso de fúria quando um bombeiro de Buzzards Bay tentou ajudar o Pai a repará-la. Por infelicidade, o bombeiro trazia consigo dois Dálmatas, uma raça de cães
*. Frank - franco. (N. da T.)
que não é propriamente famosa pela sua inteligência; para não desmerecer da sua reputação, os Dálmatas atacaram o urso no sidecar. O Urrr decapitou um deles com a maior das limpezas e foi no encalço do outro pelo meio da formação do Osterville Men's Softball Team, onde o imprudente cão tentou esconder-se. O desfile foi assim posto em debandada, o bombeiro de Buzzards Bay recusou-se a continuar a ajudar o meu pai com a Indian, e o xerife de Falmouth escoltou o Pai e o Urrr até à saída da cidade. Dado que o urso se recusava a andar de carro, foi uma escolta muito fatigante, com o Urrr sentado no sidecar da moto, que teve de ser rebocada. Foram precisos cinco dias para encontrar as peças para reparar o motor.
Pior ainda, o Urrr tinha ficado com um certo gosto pelos cães. O Coach Bob tentou tirar-lhe o hábito de os mutilar, ensinando-lhe outros desportos: ir buscar bolas, aperfeiçoar a cambalhota para a frente - mesmo o ficar sentado -, mas o Urrr era demasiado velho, além de não ter sido contemplado com a fé nos exercícios físicos que o Iowa Bob possuía. Para mais, o Urrr tinha descoberto que abater cães não exigia grandes correrias; se fosse astuto - e ele era astuto -, os cães viriam ter com ele.
- E então aí é o fim - observou o Coach Bob. - Que pinta de defesa que ele teria dado!
Assim, o Pai tinha o Urrr quase sempre acorrentado e tentava que ele usasse o açaimo. A Mãe dizia que o urso andava deprimido - achava-o cada vez mais triste -, mas o Pai respondia que o Urrr não o estava nem um bocadinho.
- Está apenas a pensar em cães - observou o Pai. - E está muito contente assim preso à moto.
Durante o Verão de 40, o Pai viveu em casa dos Bates, em Dairy, actuando à noite perante as multidões de Hampton Beach. Conseguiu ensinar um novo número ao Urrrr, a que chamava "o pedido de emprego" e que permitia poupar a velha Indian.
O Urrr e o Pai exibiam-se no coreto de Hampton Beach. Quando se acendiam as luzes, o Urrr estava sentado numa cadeira, envergando um fato de homem com o talhe completamente modificado e que tinha pertencido outrora ao Coach Bob. Logo que as gargalhadas esmoreciam, o Pai entrava no coreto com um papel na mão.
- Nome? - perguntava o Pai.
- Urrr! - respondia o urso.
- Ah, sim! Urrr - dizia o Pai. - E quer um emprego, não é verdade, Urrr?
- Urrr! - repetia o urso.
- Já sei que se chama Urrr, mas não quer um emprego! - prosseguia o Pai. - Embora diga aqui que não sabe escrever à máquina, nem mesmo ler, além de que tem um problema de alcoolismo.
- Urrr - concordava o urso.
A assistência por vezes atirava fruta, mas o Pai costumava alimentar bem o Urrr antes do número; aquilo não era o mesmo tipo de pessoas que tinha encontrado no Arbuthnot.
- Bem, se não sabe dizer mais nada para além do nome - continuava o Pai -, das duas uma: ou se meteu nos copos esta noite ou é demasiado estúpido até mesmo para saber despir-se sozinho.
O Urrr não respondia.
- Então? - perguntava o Pai. - Vamos lá ver se é capaz de se despir.
Vá lá!
E, nessa altura, o Pai puxava a cadeira do Urrr, que dava uma daquelas cambalhotas que o Coach Bob lhe tinha ensinado.
- Ah, então sabe dar cambalhotas - dizia o Pai. - Mas que jeitoso! Vá, a roupa, Urrr. Vamos lá a tirá-la.
Por uma razão qualquer, a multidão achava imensa piada ver um urso despir-se; a minha mãe detestava este número - dizia que não era justo expor assim o Urrr perante uma assistência tão rude e desordeira. Quando o Urrr se despia, o Pai tinha geralmente de o ajudar a tirar a gravata, pois de outro modo ele impacientava-se e acabava por arrancá-la do pescoço.
- Estou a ver que você é esquisito com gravatas, Urrr - comentava então o Pai.
A assistência de Hampton Beach delirava com isto.
Quando o Urrr acabava de tirar toda a roupa, o Pai dizia-lhe:
- Bom, agora não pares: podes tirar a pele de urso.
- Urrr? - admirava-se o urso.
- Tira a pele de urso - repetia o Pai, começando a puxá-la com cuidado.
- Urrr! - bramia o urso, fazendo a assistência gritar assustada.
- Meu Deus, é um urso de verdade! - exclamava então o Pai.
- Urrr! - grunhia o Urrr, e começava a perseguir o Pai, correndo ambos à volta da cadeira.
Nessa altura, metade dos espectadores desaparecia na noite, fugiam aos tropeções pela areia da praia até à água, mas havia sempre quem ficasse a atirar mais fruta e copos de papel com cerveja morna.
Uma vez por semana, representavam os dois um número mais simpático (para o Urrr) no casino de Hampton Beach. A Mãe tinha conseguido aperfeiçoar muito o estilo do Urrr a dançar e costumava abrir o baile com ele, rodopiando ambos pela pista de dança vazia ao som do número de abertura da orquestra do casino, sob o olhar estupefacto dos pares amontoados à sua volta - um urso atarracado e curvado para a frente, vestido com o fato do Iowa Bob, de pé sobre as patas traseiras e arrastando-as com uma surpreendente graciosidade conduzido pela minha mãe.
Nessas noites, o Coach Bob ficava a tomar conta do Frank. A Mãe, o Pai e o Urrr voltavam para casa pela estrada junto ao mar, parando para olhar a rebentação das ondas em Rye, onde se erguiam as casas da gente rica. A costa do New Hampshire era ao mesmo tempo mais civilizada e mais decrépita do que a do Maine, mas a fosforescência da rebentação das ondas em Rye deve ter lembrado aos meus pais as noites do Arbuthnot. Segundo nos diziam, paravam sempre ali no regresso a Dairy. Uma noite, o Urrr não quis sair de Rye.
- Julga que eu o vou levar à pesca - disse o Pai. - Olha, Urrr! Não tenho nem carreto, nem isco, nem anzóis, nem cana, parvo!
E mostrava as mãos vazias ao urso. O Urrr parecia desnorteado; os meus pais aperceberam-se de que ele estava quase cego. Lá conseguiram convencê-lo de que não iam à pesca, e levaram-no para casa.
- Como é que ele se fez tão velho? - perguntou a minha mãe.
- Até já começou a mijar no sidecar - disse o meu pai.
A gravidez da Mãe - desta vez da Franny - já ia bastante adiantada quando o Pai partiu para a época de Inverno, no Outono de 1940. Tinha decidido "bater" a Florida, e as primeiras notícias que a Mãe teve dele vieram de Clearwater e depois de Tarpon Springs. O Urrr tinha arranjado uma doença de pele esquisita - uma infecção do ouvido provocada por um fungo qualquer que se desenvolvia nos ursos -, e os negócios não iam prósperos.
Isto aconteceu pouco antes do nascimento da Franny, nos finais do Inverno de 1941. Quando ela nasceu, o Pai continuava fora, e a Franny nunca lhe perdoou a Sua ausência.
- Suspeito de que ele sabia que ia ser uma rapariga - gostava a Franny de dizer.
E depressa chegou o Verão de 41, antes de o Pai regressar de novo a Dairy - para logo engravidar a minha mãe, desta vez de mim.
Prometeu-lhe então que não a ia deixar sozinha outra vez, pois já tinha conseguido - após uma passagem bem sucedida por um circo de Miami - pôr de parte o dinheiro suficiente para entrar para Harvard no Outono. Podiam ter um Verão descansado, só indo actuar em Hampton Beach quando lhes apetecesse. O Pai tiraria um passe de comboio para Boston, para ir assistir às aulas, a menos que arranjasse um alojamento barato em Cambridge.
O Urrr envelhecia de minuto a minuto. Todos os dias tinha de se lhe pôr nos olhos uma pomada azul-clara, com a consistência da mucosidade das alforrecas, que ele tirava logo esfregando-se nos móveis. A minha mãe começou a notar peladas alarmantes um pouco por todo o corpo, cada vez mais magro e flácido.
- Está a perder o tónus muscular - disse o Coach Bob consternado. - Tem de fazer exercícios de halteres ou de corrida.
- Basta tentar afastar-se na Indian - disse o meu pai - que ele desata logo a correr.
Mas quando o Coach Bob quis fazer a experiência, o Urrr nem se mexeu; até isso já lhe era indiferente.
- Com o Urrr - disse o Pai -, a familiaridade produz um certo desdém.
Tinha trabalhado com o Urrr o suficiente, durante muito tempo, para poder entender o desespero do Freud com o urso.
A minha mãe e o meu pai raramente falavam do Freud; com "a guerra na Europa", era fácil imaginar o que lhe podia ter acontecido.
As lojas de bebidas de Harvard Square vendiam um uísque muito barato da Wilson, Thafs Ali, mas o meu pai não gostava de beber. O Oxford Grill, em Cambridge, costumava servir cerveja nuns copázios de vidro com a forma de balões de conhaque, mas levando um galão(*) cada um. Quem conseguisse beber esta quantidade num período de tempo reduzido, tinha direito a outra dose grátis. Mas o Pai só lá ia beber uma cerveja normal depois das aulas, e ia logo a correr apanhar o comboio para Dairy, na North Station.
O Pai tentou fazer o curso o mais depressa que podia, para se formar no mínimo de tempo; e conseguiu fazê-lo, não porque fosse mais inteligente do que os outros estudantes de Harvard (era mais velho, mas não mais inteligente, do que a maioria deles), mas porque perdia pouco tempo com amigos. Tinha uma mulher grávida e dois filhos pequenos, o que dificilmente lhe deixava tempo para ter amigos. O seu único divertimento, dizia ele, era ouvir na rádio os relatos de basebol. Poucos meses depois de terem terminado os campeonatos nacionais, o Pai ouviu na rádio a notícia do ataque a Pearl Harbor.
Eu nasci em Março de 42 e chamo-me John - de John Harvard. (A Franny chamava-se Franny porque de certo modo o nome ligava com Frank.) A minha mãe não se limitava a cuidar de nós; tinha também de tratar do Latin Emeritus e de ajudar o Coach Bob com o velho Urrr. Também ela não tinha tempo para amigos.
Nos finais do Verão de 42, a guerra era uma realidade que se impunha a toda a gente; já não era apenas "a guerra na Europa". E embora gastasse pouca gasolina, a Indian de 1937 foi remetida para o estatuto de alojamento do Urrr, deixando de servir como meio de transporte. A febre patriótica alastrou pelos recintos universitários de todo o país. Era permitido aos estudantes receberem senhas de açúcar, que a maior parte dava à família. No espaço de três meses, todos os conhecidos que o Pai tinha em Harvard foram mobilizados ou ofereceram-se como voluntários. Quando o Latin Emeritus morreu - seguido, pouco tempo depois, pela mãe da minha mãe, que morreu durante o sono -, a minha mãe recebeu uma modesta herança. O meu pai antecipou voluntariamente a sua convocação para o serviço militar e partiu para a recruta na Primavera de 43, com vinte e três anos.
Deixou assim o Frank, a Franny, eu e a Mãe em casa da família Bates, e deixou igualmente o pai, o Iowa Bob, a quem tinha confiado a tarefa pouco aliciante de cuidar do Urrr.
O meu pai escrevia para casa a contar como a recruta era uma boa maneira de pôr em ruínas os hotéis de Atlantic City.
*. Cerca de 4,5 litros. (N. da T.)
Todos os dias tinham de lavar o soalho de madeira e desciam para a praia pelas passadeiras de tábuas para os exercícios de tiro nas dunas de areia. Os bares que existiam ao longo destes estrados fartavam-se de ganhar dinheiro com os recrutas, mas não com o meu pai. Ninguém lhes perguntava a idade; os recrutas, na sua maioria mais jovens do que o meu pai, usavam as suas insígnias de atiradores e bebiam aos seus sucessos. Os bares estavam cheios de empregadas de escritório vindas de Washington e toda a gente fumava cigarros sem filtro - excepto o meu pai.
O Pai contou que todos falavam romanticamente numa "última farra" antes de partirem para além-mar, embora fossem muito menos os que a faziam do que os que a apregoavam; o Pai, pelo menos, teve a sua - com a minha mãe, num hotel de Nova Jersey. Desta vez, por sorte, não a engravidou, pelo que, durante algum tempo, a Mãe se circunscreveu ao Frank, à Franny e a mim.
De Atlantic City, o meu pai foi para uma antiga escola secundária a norte de Nova Iorque, para aprender criptografia. Depois foi enviado para Chanute Field - em Kearns, no Utah - e seguidamente para Savannah, na Geórgia, onde já tinha actuado uma vez com o Urrr, no velho hotel De-Soto. E, finalmente, foi Hampton Roads, e a partida para "a guerra na Europa", onde o meu pai tinha a vaga sensação de poder ir encontrar o Freud. Ele acreditava que ao deixar três rebentos com a minha mãe estava a garantir o seu regresso são e salvo.
Foi colocado na Força Aérea, numa base de bombardeiros em Itália, onde o maior perigo era dar um tiro a alguém quando se estava bêbedo, levar um tiro de alguém que estivesse bêbedo, ou cair nas latrinas por causa de uma bebedeira - o que sucedeu efectivamente a um coronel que o meu pai conhecia; e cagaram-lhe em cima várias vezes antes de darem por isso e o tirarem de lá. Além disso, o único risco que havia era apanhar uma doença venérea com uma prostituta italiana. Ora, como o meu pai não bebia nem se pôs a fornicar, saiu ileso da Segunda Guerra Mundial.
Deixou a Itália a bordo de um navio da Marinha de Guerra que o levou até Trinidad e ao Brasil - que "é como a Itália, mas em português", escreveu ele à minha mãe. Daí voou para os Estados Unidos com um piloto que tinha ficado "apanhado" pela guerra e que se divertiu a fazer voos rasantes com um C-47 sobre a rua principal de Miami. Lá de cima, o meu pai reconheceu um parque de estacionamento onde o Urrr tinha vomitado após um espectáculo.
A contribuição da minha mãe para o esforço de guerra - embora fizesse trabalho de escritório para a sua alma mater, o Thompson Female Seminary - consistiu em formação hospitalar; fez parte do segundo curso ministrado pelo hospital de Dairy para preparar auxiliares de enfermagem. Cabia-lhe fazer um turno semanal de oito horas, e ficava de prevenção para substituições, que aliás eram frequentes, por haver uma grande falta de enfermeiras. Os seus locais de trabalho preferidos eram a enfermaria da maternidade e a sala de partos; ela sabia o que era ter um bebé naquele hospital sem ter o marido ao pé. Foi assim que a minha mãe passou a guerra. Logo após o seu regresso, o Pai levou o Coach Bob a um desafio de futebol profissional, no Fenway Park, em Boston. De volta a casa, quando se dirigiam para a North Station para apanharem o comboio para Dairy, encontraram um colega do Pai, de Harvard, que lhes vendeu um Chevrolet coupé de 1940 por seiscentos dólares - um pouco mais do que custava um novo; mas estava impecável e a gasolina era ridiculamente barata, da ordem dos 4,5 cêntimos o litro; o Coach Bob e o meu pai dividiram a despesa do seguro, e assim a nossa família teve por fim um carro. Enquanto o meu pai concluía a sua formatura em Harvard, a minha mãe ficava com a possibilidade de nos levar - ao Frank, à Franny e a mim - às praias do litoral do New Hampshire, e uma vez o Iowa Bob conduziu-nos no carro até às White Mountains, onde o Frank ficou todo picado quando a Franny o empurrou para cima de um ninho de vespas.
A vida em Harvard tinha mudado; os quartos estavam superlotados; o Crimson tinha pessoal novo. Os estudantes de línguas eslavas reivindicavam o mérito da descoberta do vodca pela América; ninguém o misturava com outra bebida - era bebido à russa, frio e de um só trago, em pequenos copos de pé -, mas o meu pai manteve-se fiel à cerveja e mudou as suas nucleares para Literatura Inglesa. Deste modo, procurava mais uma vez acelerar a conclusão dos seus estudos.
Já não havia muitas orquestras na região. Os salões de baile estavam em declínio como locais de diversão. E o Urrr estava demasiado decrépito para continuar a actuar. No primeiro Natal após ter saído da Força Aérea, o meu pai trabalhou na secção de brinquedos da Jordan Marsh e engravidou a minha mãe outra vez. Agora seria a vez da Lilly. Se as razões para chamar Frank ao Frank, Franny à Franny e John a mim foram bem concretas, não houve nenhum motivo especial para chamarem Lilly à Lilly - circunstância esta que muito lhe desagradaria, se calhar mais do que pensávamos, e talvez mesmo para o resto da sua vida.
O Pai formou-se no curso de Harvard de 1946. A Dairy School tinha acabado de contratar um novo reitor, que falou com o meu pai no Harvard Faculty Club e lhe propôs um lugar de professor de inglês e de treinador de duas modalidades desportivas, com um ordenado inicial de dois mil e cem dólares. É provável que o Coach Bob tenha dado uma palavra ao novo reitor nesse sentido. O meu pai tinha nessa altura vinte e seis anos: aceitou o lugar na Dairy School, embora sem o entusiasmo de quem pensa ter encontrado a vocação da sua vida. De qualquer forma, isso significava poder finalmente viver com a Mãe e connosco, na casa dos Bates, em Dairy, e junto do pai e do Urrr - o seu velho e decrépito urso. Nesta fase da sua vida, os sonhos do meu pai eram nitidamente mais importantes para ele do que a sua formação, talvez mesmo mais importantes do que nós, os filhos, e decerto mais importantes do que a Segunda Guerra Mundial "Do que todas as fases da sua vida", costumava corrigir a Franny).
A Lilly nasceu em 1946, tinha o Frank seis anos, a Franny cinco e eu quatro. De repente tivemos um pai - como se fosse pela primeira vez. Até então ele tinha estado ou na guerra ou na universidade ou em tournée com o Urrr. Para nós era um estranho.
A primeira coisa que fez connosco, no Outono de 46, foi levar-nos ao Maine, onde nunca havíamos estado, visitar o Arbuthnot-by-the-Sea. Tratava-se, evidentemente, de uma peregrinação romântica para o meu pai e para a minha mãe - uma romagem para recordar os velhos tempos. A Lilly era muito pequena para viajar e o Urrr demasiado velho, mas o Pai insistiu para que o urso nos acompanhasse.
- Por amor de Deus, o Arbuthnot também faz parte do passado dele - disse o Pai à Mãe. - Nunca seria a mesma coisa ir lá sem o velho State O'Maine!
Assim, a Lilly ficou com o Coach Bob, e a Mãe pôs-se ao volante do Chevrolet coupé de 1940, com o Frank, a Franny e eu, mais um grande cesto de comida de piquenique e um monte de cobertores. O Pai pôs a Indian de 1937 a funcionar e foi nela com o Urrr no sidecar. E foi assim que fizemos essa viagem, incrivelmente devagar, pela tortuosa estrada que corria junto à costa, muitos anos antes de existir a auto-estrada do Maine. Levou horas para chegar a Brunswick; e demorou mais de uma hora até passar Bath. Logo a seguir, vimos as águas escuras e encapeladas da foz do Kennebec misturando-se com as do mar, e Fort Popham, e as cabanas dos pescadores na Bay Point - e a corrente atravessada na via de acesso ao Arbuthnot. A tabuleta dizia:
FECHADO DURANTE TODA A TEMPORADA!
O Arbuthnot devia estar encerrado já há várias épocas. O Pai deve ter-se apercebido disso quando tirou a corrente e a nossa caravana seguiu em direcção ao velho hotel. Os edifícios, desbotados e esbranquiçados como ossos velhos, erguiam-se abandonados e entaipados até acima; as janelas visíveis tinham os vidros partidos ou pendiam dos gonzos. A bandeirinha do décimo oitavo buraco tinha sido espetada numa fenda entre duas tábuas do terraço onde era o salão de baile; aquela bandeirola, esvoaçando sobre o Arbuthnot-by-the-Sea, fazia-o evocar um castelo tomado após um longo cerco.
- Santo Deus! - exclamou o Pai.
Nós, os miúdos, apertávamo-nos em torno da minha mãe e não parávamos de nos lamentar. Estava frio, havia nevoeiro e aquele lugar assustava-nos. Tinham-nos dito que íamos visitar um hotel de veraneio, mas, se aquilo é que era um hotel, não era coisa de que gostássemos. Grandes tufos de erva irrompiam pelas fendas abertas nos courts de ténis, e o relvado do croquet dava pelos joelhos do meu pai, coberto com uma variedade de erva dos pântanos de folhas serrilhadas que costuma crescer espontaneamente junto ao mar. O Frank cortou-se numa cancela velha e começou a choramingar. A Franny queria por força ir para o colo do Pai. Eu pendurei-me nas ancas da minha mãe. O Urrr, todo tolhido pelo reumatismo, recusou-se a sair da moto e vomitou no açaimo. Quando o meu pai lho tirou, o urso encontrou qualquer coisa no lixo que começou a tentar comer; era uma velha bola de ténis, que o Pai lhe tirou e arremessou para longe, na direcção do mar. Na brincadeira, o Urrr começou a ir atrás da bola, mas depois pareceu esquecer-se do que estava a fazer e acabou por sentar-se a olhar de revés para os cais, entortando os olhos. Provavelmente, mal os conseguia ver.
O embarcadouro do hotel estava a desfazer-se. A casa dos barcos tinha sido varrida para o mar por um ciclone que tinha havido durante a guerra. Os pescadores haviam tentado utilizar os velhos cais como ponto de suporte para as suas armadilhas de pesca feitas com redes esticadas dali até ao cais dos pescadores de lagostas na Bay Point, onde um homem, ou um rapaz, parecia estar de sentinela com uma espingarda.
- Ele está ali para atirar às focas - explicou o Pai à Mãe, a quem aquela figura longínqua de arma em punho tinha assustado.
As focas eram a principal razão de a pesca com paliçadas nunca ter tido grande êxito no Maine: as focas penetravam na zona cercada, banqueteavam-se com os peixes que tinham caído na armadilha, e voltavam a sair. Deste modo, além de comerem uma grande quantidade de peixe, estragavam as redes, pelo que os pescadores não perdiam uma oportunidade de as abater a tiro.
- É o que o Freud chamaria "uma das rudes leis da natureza" - disse o Pai.
E insistiu para que fôssemos ver os dormitórios onde ele e a Mãe tinham ficado instalados.
Para eles aquilo devia ser muito deprimente - para nós, era apenas alheio e desagradável -, mas tenho a impressão que a minha mãe estava mais perturbada com a reacção do meu pai perante a decadência do Arbuthnot do que propriamente com o que tinha acontecido àquele que fora outrora um grande hotel de veraneio.
- A guerra modificou muitas coisas - disse a Mãe, com o seu famoso encolher de ombros.
- Santo Deus! - repetiu o Pai. - E pensar o que isto podia ter sido! Como é que puderam dar cabo de tudo? Não eram suficientemente democráticos - explicou-nos ele, como se pudéssemos entendê-lo. - Tem de haver uma maneira de estabelecer critérios, de ter bom gosto e de não ser tão orgulhoso que vá tudo por água abaixo. Tem de haver um compromisso razoável entre o Arbuthnot e um buraco qualquer como Hampton Beach. Santo Deus! - continuou ele a vociferar. - Santo Deus!
Fomos atrás dele dar a volta aos edifícios arruinados e aos antigos relvados agora cobertos por um matagal hirsuto e emaranhado. Encontrámos o velho autocarro usado para transportar a orquestra e o camião dos serventes dos campos de jogos - estava cheio de tacos de golfe ferrugentos.
Eram estes os veículos que o Freud arranjava e mantinha a funcionar; agora já não funcionariam mais.
- Santo Deus! - exclamou o Pai. Ouvimos o Urrr a chamar-nos de muito longe.
- Urrr! - bramia ele.
Ouvimos dois tiros de espingarda, igualmente longínquos - pareciam vir do cais da Bay Point. Acho que todos nos apercebemos de que aqueles tiros não tinham sido para uma foca qualquer. Tinham sido para o Urrr.
- Oh, não, Win! - exclamou a minha mãe.
Agarrou em mim e desatou a correr; o Frank corria descrevendo círculos agitados em torno dela. O Pai corria com a Franny ao colo.
- State O'Maine! - chamou ele.
- Matei um urso! - gritava o rapaz do cais. - Matei um urso de verdade!
O rapaz usava umas calças de ganga com peitilho e uma camisa de flanela macia; tinha os joelhos à mostra, o cabelo cor de cenoura espesso e lustroso dos salpicos da água salgada, o rosto pálido coberto por uma borbulhagem esquisita e os dentes estragados. Não devia ter mais de treze ou catorze anos.
- Matei um urso! - berrava ele.
Estava muito excitado, e os pescadores que se encontravam no mar deviam estar a interrogar-se sobre o motivo daquela gritaria. Com o ruído dos motores e do vento, não conseguiam ouvi-lo, mas foram aproximando lentamente os barcos do embarcadouro, para ver o que se passava.
O Urrr jazia no cais, com a cabeçorra deitada num rolo de corda alcatroada, as patas traseiras dobradas sobre o corpo e uma das pesadas patas da frente a apenas alguns centímetros de um balde de isco. A vista do urso estava tão má desde há tanto tempo que ele deve ter confundido o rapaz de espingarda em punho com o Pai com a cana de pesca. Talvez até se tenha vagamente lembrado de já ter comido muitas pescadas naquele cais. Mas quando se dirigiu para lá e se aproximou do rapaz, o nariz do velho urso ainda conseguiu farejar o isco. O rapaz, que estava a olhar para o mar - à cata de focas -, deve ter-se assustado com a maneira como o urso o cumprimentou. Era um bom atirador, embora àquela distância qualquer azelha tivesse acertado no Urrr, atingiu-o com dois tiros no coração.
- Valha-me Deus, eu não sabia que ele tinha dono! - exclamou o rapaz da espingarda, dirigindo-se à minha mãe. - Não sabia que ele era um animal de estimação.
- É natural que não soubesses - sossegou-o a Mãe.
- Por favor, desculpem-me - disse o rapaz ao Pai, mas este não o ouviu.
Sentou-se no cais, junto do urso, pegou-lhe na cabeça e pousou-a no seu colo; apertou o focinho de encontro a si e chorou sem se conter. Chorava com certeza por algo mais do que o Urrr. Chorava pelo Arbuthnot, pelo Freud e pelo Verão de 39; mas nós, os miúdos, estávamos muito aflitos, pois nessa época tínhamos tido mais tempo para conhecer o Urrr - e conhecíamo-lo de facto melhor - do que para conhecer o nosso pai. Para nós era bastante confuso por que razão este homem, regressado de Harvard, e regressado da guerra, se estava ali a desfazer em lágrimas, abraçado ao nosso velho urso. Na realidade, éramos todos pequenos de mais para termos conhecido o Urrr, mas a presença do urso - o toque do seu pêlo áspero, o seu hálito adocicado e húmido, o seu cheiro a gerânios mortos e a urina - tinha-nos ficado mais gravada na memória do que, por exemplo, os espectros do Latin Emeritus e da mãe da minha mãe.
Recordo-me perfeitamente desse dia no cais do Arbuthnot em ruínas. Tinha quatro anos e penso sinceramente que é o episódio mais recuado da minha vida de que efectivamente me lembro - ao contrário de outros que me contaram ou de imagens que outras pessoas me descreveram. O homem vigoroso e de rosto distinto era o meu pai, que tinha vindo viver connosco; estava sentado a soluçar com o urso morto nos braços - num cais a apodrecer sobre águas revoltas. O zumbido dos motores dos pequenos barcos aproximava-se cada vez mais. A minha mãe apertava-nos contra ela tão firmemente quanto o Pai abraçava o urso.
- Tenho a impressão que o estúpido do miúdo deu um tiro no cão de alguma pessoa - disse um homem num dos barcos.
Um velho pescador de oleado amarelo sujo, com um rosto sardento curtido pelo sol a espreitar sob uma barba esbranquiçada, trepou pelas escadas do cais. Chapinhava na água que lhe escorria das botas encharcadas e exalava um cheiro a peixe mais intenso do que o balde de isco junto às garras recurvas do Urrr. Pela idade que aparentava, era provável que tivesse trabalhado por ali nos tempos em que o Arbuthnot-by-the-Sea tinha sido o grande hotel que chegara a ser. Também esse pescador havia conhecido melhores dias.
Quando o velho viu o urso morto, tirou o seu chapelão de oleado e ficou com ele na mão, grande e rija como um croque.
- Com os diabos! - exclamou ele com ar reverente, rodeando com um braço os ombros trémulos do rapaz da espingarda. - Com os diabos. Mataste o State O'Maine.
O PRIMEIRO HOTEL NEW HAMPSHIRE
O primeiro Hotel New Hampshire apareceu da seguinte maneira: quando a Dairy School compreendeu que, se queria sobreviver, tinha de admitir raparigas, o Thompson Female Seminary foi obrigado a fechar; e assim surgiu subitamente uma propriedade enorme e inaproveitável no mercado imobiliário de Dairy - um mercado em perpétua depressão. Ninguém sabia o que fazer com aquele imenso edifício que tinha sido um internato de raparigas.
- Deviam deitar-lhe fogo - alvitrou a Mãe - e transformar o terreno num parque.
Aliás, aquilo já era quase um parque - uma vasta extensão de terreno, talvez um hectare, no coração delapidado da cidade de Dairy. Velhas casas de tábuas, que outrora tinham albergado famílias grandes, eram agora alugadas por quartos a viúvas e viúvos - e aos reformados do corpo docente da Dairy School; estavam cercadas de ulmeiros moribundos, que circundavam o monstro de tijolos de quatro andares que fora um edifício escolar. O nome do colégio provinha do de Ethel Thompson: Miss Thompson tinha sido um pastor episcopal que se disfarçara de homem, segredo que se manteve até à sua morte (chamavam-lhe o reverendo Edward Thompson, prior da paróquia episcopal de Dairy e célebre por esconder escravos fugitivos no presbitério). A descoberta de que o pastor era uma mulher (na sequência de um acidente em que foi esmagada quando mudava uma roda da sua carruagem) não causou grande surpresa a alguns dos homens de Dairy que lhe haviam posto os seus problemas no auge da popularidade dela como prior. Fosse como fosse, conseguiu juntar muito dinheiro, do qual não deixou nem um tostão à igreja; destinou-o todo à fundação de um colégio feminino - "Até que", escreveu Ethel Thompson, "esse abominável colégio de rapazes seja obrigado a admitir raparigas."
O meu pai concordava que a Dairy School era uma coisa abominável. Embora nós, crianças, gostássemos de brincar nos seus campos de jogos, o Pai nunca deixou de nos recordar que a Dairy não era uma escola "a sério". Assim como a cidade de Dairy(*) havia sido outrora uma área de produção leiteira,
*. Dairy - leitaria, local de produção e venda de leite. (N. da T.)
também os campos de jogos da escola tinham começado por ser pastagens para vacas; e quando a escola foi fundada, no início do século xix, permitiu-se que os velhos estábulos permanecessem ao lado dos novos edifícios escolares, do mesmo modo que se deixou que as vacas, tal como os alunos, andassem livremente pelo recinto do estabelecimento. Com o aparecimento de preocupações paisagísticas mais modernas, os terrenos para a prática dos desportos melhoraram bastante, mas os estábulos, bem como o primeiro dos edifícios originais, continuaram a ocupar o desleixado centro do recinto, e algumas vacas simbólicas continuaram a ocupar os estábulos. O "plano de jogo" da escola, como o Coach Bob lhe chamava, assentava em pôr os estudantes a cuidar da exploração leiteira ao mesmo tempo que frequentavam as aulas - plano esse que se reflectiu negativamente tanto nos estudos dos alunos como no tratamento das vacas, tendo sido abandonado antes da Primeira Guerra Mundial. Mas ainda havia quem pensasse, no corpo docente da Dairy School - e muitos deles contavam-se entre os mais jovens em idade e em tempo de casa -, que esta associação de escola e granja leiteira devia ser retomada.
O meu pai opôs-se ao projecto de fazer regressar a Dairy School àquilo a que ele chamava "uma experiência agro-pecuária no campo da educação".
- Quando os meus miúdos tiverem idade para irem para aquela malfadada escola - vociferava ele para a minha mãe e para o Coach Bob -, vais ver que ainda hão-de dar-lhes um certificado de jardineiros.
- E um diploma universitário! - corroborava o Iowa Bob.
Por outras palavras, a escola estava à procura de uma filosofia. Era agora, incontestavelmente, um estabelecimento de segunda ordem entre as escolas secundárias convencionais; embora tivesse orientado o seu currículo escolar no sentido da concessão de habilitações académicas, o corpo docente tornou-se cada vez menos capaz de as ensinar e, comodamente, menos convencido da necessidade de tais habilitações - aliás, no fim de contas, os alunos eram também cada vez menos receptivos a elas. O número de alunos admitidos decresceu, fazendo com que os parâmetros de admissão se tornassem ainda menos rígidos; a escola tornou-se um daqueles lugares onde se podia entrar quase imediatamente depois de se ter sido excluído de outra escola. Alguns professores, como o meu pai, que acreditavam nos méritos de ensinar as pessoas a ler e a escrever - e mesmo a fazer a pontuação -, ficavam desesperados com o facto de as suas capacidades serem desperdiçadas em estudantes deste calibre.
- É dar pérolas a porcos - arengava ele. - De facto, mais valia ensiná-los a trabalhar com o ancinho e a ordenhar vacas.
- E também não sabem jogar futebol - lamentava-se o Coach Bob. - Nem mesmo uma simples placagem.
- Ora! Eles nem sequer sabem correr! - corroborava o pai.
- Nem são capazes de fazer um bom ataque - insistia o Iowa Bob.
- Ah, isso é que são - dizia o Frank, que era sempre uma vítima deles.
- Entraram na estufa e espatifaram as plantas todas - disse a Mãe, que tinha lido a notícia deste incidente no jornal da escola, que, segundo o Pai, não passava dum amontoado de erros ortográficos.
- Houve um que me mostrou a coisa dele - disse a Franny, para aumentar a confusão.
- Onde? - perguntou o Pai.
- Por trás do ringue de hóquei - respondeu a Franny.
- E o que é que estavas a fazer atrás do ringue de hóquei? - perguntou repugnado o Frank.
- O ringue de hóquei está cheio de mossas - disse o Coach Bob. - Nunca mais foi reparado desde que o encarregado (não me lembro agora o nome dele) se reformou.
- Não se reformou, morreu - disse o Pai.
Agora que o Iowa Bob estava a envelhecer, era frequente o Pai perder a paciência com ele.
Em 1950, o Frank tinha dez anos, a Franny nove, eu oito e a Lilly quatro; o Egg tinha acabado de nascer e nunca chegou a saber o que era o nosso pavor de um dia vir a frequentar a tão criticada Dairy School. O Pai estava certo de que na altura em que a Franny tivesse idade eles já aceitariam raparigas.
- Não é que isso seja em nome de qualquer coisa que se pareça com um espírito progressista - sustentava ele -, mas pura e simplesmente para evitar a falência.
É claro que ele tinha razão. Em 1952, o nível do ensino ministrado pela Dairy School era objecto de controvérsia; o número de admissões decrescia rapidamente, e a controvérsia alargou-se aos critérios de admissão. Como o número de admissões continuou a diminuir, as propinas aumentaram, o que afastou ainda mais potenciais alunos, pelo que alguns professores tiveram de ser despedidos - e alguns outros, aqueles que tinham princípios e outros meios de subsistência, se demitiram.
Na época de 1953, a equipa de futebol só ganhou um de entre nove jogos; o Coach Bob pensou que a escola não podia esperar que ele se reformasse para desistir completamente do futebol; este tinha-se tornado demasiado caro, e os antigos alunos, que tinham suportado os seus custos (bem como, aliás, de todo o programa desportivo), ficaram demasiado envergonhados para voltarem a assistir aos jogos da equipa. - É a porcaria dos equipamentos - dizia o Iowa Bob. E o Pai revirava os olhos e tentava aparentar a paciência que já não tinha para a senilidade que se começava a manifestar no Coach Bob. O Pai tinha aprendido alguma coisa sobre senilidade com o Urrr. Mas, para ser justo, o Coach Bob tinha uma certa razão na questão dos equipamentos.
As cores da Dairy School, talvez inspiradas numa raça de vacas agora desaparecida, eram para ser cor de chocolate escuro e prateado. Mas, com o correr dos anos e com o predomínio crescente das fibras sintéticas, este brilhante contraste do chocolate e da prata tinha-se tornado triste e pardacento.
- Cor de lama e de nuvens - dizia o meu pai.
Os alunos da Dairy School, que costumavam brincar connosco - quando não andavam a mostrar as "coisas" à Franny -, informaram-nos sobre os outros nomes mais em voga na escola para estas cores. Havia um miúdo mais velho chamado De Meo - Ralph De Meo, uma das poucas estrelas do Iowa Bob e o melhor sprinter das equipas de atletismo do Pai - que me contou a mim, ao Frank e à Franny quais eram as verdadeiras cores da Dairy School.
- Cinzento, como a palidez do rosto de um morto - disse o De Meo. Eu tinha dez anos, e fiquei assustado com ele; a Franny tinha onze, mas à frente do outro comportava-se como se fosse mais velha; o Frank tinha doze, e medo de toda a gente.
- Cinzento como a palidez do rosto de um morto - repetiu o De Meo lentamente, para mim. - E castanho, castanho, castanho como estrume de vaca. Para tu perceberes, Frank, cor de merda.
- Eu sei - disse o Frank.
- Mostra-me outra vez - disse a Franny ao De Meo, referindo-se à "coisa" dele.
Merda e morte eram pois as cores da moribunda Dairy School. O conselho de administração, perante esta maldição - e outras que remontavam à história da "questão agro-pecuária" e à parvalheira daquela cidadezinha do New Hampshire em que a escola se encontrava -, decidiu aceitar raparigas no corpo discente.
Isto, ao menos, ia fazer aumentar as admissões.
- Vai ser o fim do futebol - disse o velho Coach Bob.
- As raparigas vão jogar futebol melhor do que a maioria dos teus rapazes - respondeu o Pai.
- É isso mesmo que eu quero dizer - esclareceu o Iowa Bob.
- O Ralph De Meo joga muito bem - disse a Franny.
- Joga muito bem com quê? - perguntei eu, e a Franny deu-me logo um pontapé por baixo da mesa.
O Frank estava sentado sem maneiras, com um ar taciturno, perigosamente perto da Franny e do lado oposto ao meu.
- O De Meo, ao menos, é rápido - disse o Pai.
- O De Meo, ao menos, é bom ao ataque - insistiu o Coach Bob.
- Ah, sim, lá isso é - confirmou o Frank, que tinha sido várias vezes atacado pelo Ralph.
Era a Franny que me protegia do Ralph. Um dia, estávamos a vê-los pintar as linhas do campo de futebol - só eu e a Franny, que nos estávamos a esconder do Frank (escondíamo-nos dele muitas vezes) - quando o De Meo veio ter connosco e me empurrou de encontro ao aparelho de treinar as placagens. Envergava o equipamento cor de merda e morte com o número 19 (que era a idade dele). Tirou o capacete e cuspiu a protecção de borracha dos dentes para a pista de cinza, mostrando os seus dentes brilhantes à Franny.
- Pira-te! - disse-me ele, continuando a olhar para a Franny. - Tenho muito que conversar com a tua irmã.
- Não tens nada que o empurrar - disse a Franny.
- Ela só tem doze anos - disse eu.
- Dá o cava! - repetiu o De Meo.
- Não tens nada que o empurrar - voltou a dizer a Franny. - Ele só tem onze anos.
- Queria dizer-te que tenho muita pena - começou o De Meo - de não estar aqui quando fores aluna. Nessa altura já terei acabado o último ano.
- Que é que queres dizer com isso? - perguntou a Franny.
- Vão admitir raparigas - disse o De Meo.
- Eu sei - retorquiu a Franny. - E daí?
- E daí é pena, pronto! É pena que eu já cá não esteja quando finalmente tiveres idade suficiente.
A Franny encolheu os ombros; era o encolher de ombros da Mãe - independente e bonito. Apanhei a protecção de borracha do De Meo, que estava caída na pista, toda peganhenta e cheia de terra, e atirei-lha.
- Porque não a voltas a pôr na boca? - perguntei-lhe.
Eu era rápido a correr, mas acho que não tão rápido como o Ralph De Meo.
- Pira-te já daqui! - disse ele, atirando-me com a protecção de borracha à cabeça.
Mas eu desviei-me, e ela foi parar não sei onde.
- Porque é que não estás a treinar? - perguntou-lhe a Franny.
Por detrás das bancadas de madeira cinzentas, que passavam por ser o "estádio" da Dairy School, ficava o campo de treinos, onde se podiam ouvir os choques dos chumaços dos ombros e dos capacetes.
- Tenho uma lesão na virilha - disse o De Meo à Franny. - Queres vê-la?
- Oxalá ela te caia - disse eu.
- Eu já te apanho, Johnny - respondeu ele, continuando a olhar para a Franny.
Ninguém me chamava "Johnny".
- Com uma lesão na virilha, duvido! - retorqui eu.
Mas enganei-me; ele alcançou-me na linha das quarenta jardas e empurrou-me a cara contra a cal fresca com que tinham acabado de marcar o campo. Estava de joelhos em cima das minhas costas quando o ouvi expirar com força e cair na pista de cinza, onde ficou deitado de lado.
- Ai, ai... - disse ele com uma vozinha débil.
A Franny tinha-lhe agarrado na protecção de metal que lhe protegia o baixo ventre, apertando-lhe os rebordos sobre as suas partes íntimas, que era como lhes chamávamos nessa época.
Assim, conseguimos os dois fugir dele.
- Como é que sabias disso? - perguntei eu à minha irmã. - Do protector de metal dentro dos calções?
- Ele mostrou-mo uma vez - respondeu ela, carrancuda. Estávamos deitados sobre as agulhas de pinheiro da mata frondosa que havia por trás do campo de treinos; podíamos ouvir o apito do Coach Bob e os choques dos corpos dos jogadores, mas estávamos escondidos deles todos.
A Franny não se importava que o Ralph De Meo batesse no Frank, e eu perguntei-lhe porque é que ela se importava que o Ralph me batesse a mim.
- Tu não és o Frank - sussurrou ela, ferozmente.
Molhou a saia na relva húmida da orla da mata e limpou-me a cal da cara, arregaçando a saia até ficar com a barriga à mostra. Uma agulha de pinheiro agarrou-se-lhe à pele da barriga e eu tirei-lha.
- Obrigada - disse ela, ao mesmo tempo que me tentava limpar os últimos vestígios de cal do rosto.
Puxou a saia ainda mais para cima, cuspiu-lhe e continuou a esfregar. Já me doía a cara.
- Porque é que gostamos mais um do outro do que gostamos do Frank? - perguntei-lhe eu.
- As coisas são como são - respondeu ela. - E hão-de ser sempre assim. O Frank é estranho.
- Mas é nosso irmão.
- E então? Tu também és meu irmão - retorquiu ela. - Não é por isso que gosto de ti.
- Então porque é?
- Gosto, pronto!
Engalfinhámo-nos um no outro e lutámos durante um bocado na mata até que lhe entrou qualquer coisa para o olho e eu ajudei-a a tirá-la. Ela estava toda suada e cheirava a terra lavada. A Franny tinha os seios bem erguidos e como que separados por uma porção demasiado extensa do tórax, e era forte. Geralmente conseguia vencer-me, a menos que eu me pusesse todo em cima dela; mas mesmo assim podia fazer-me tantas cócegas que eu acabava por mijar pelas pernas abaixo se não a largasse. E quando ela ficava por cima de mim, não havia nada que a fizesse sair.
- Um dia hei-de ser capaz de te vencer - disse-lhe eu.
- Ora! Nessa altura já não vais querer.
Um jogador de futebol gordo, chamado Poindexter, penetrou na mata para aliviar as tripas. Vimo-lo aproximar-se e esconder-se nos fetos que conhecíamos tão bem. Há anos que os jogadores de futebol vinham fazer as necessidades nesta mata, nas imediações do campo de jogos - sobretudo, aparentemente, os gordos. Voltar ao ginásio demorava demasiado tempo, e o Coach Bob passava a vida a arengar-lhes que deviam tomar essas providências antes de irem para o treino. Pelo que quer que fosse, os gordos nunca conseguiam esvaziar as tripas por completo, ou parecia.
- É o Poindexter - murmurei.
- Quem é que querias que fosse? - confirmou a Franny.
O Poindexter era muito desajeitado; tinha dificuldade em tirar os chumaços de protecção das coxas. Uma vez teve de descalçar as botas e de despir toda a metade inferior do equipamento, com excepção das meias. Desta vez, lutava com os chumaços e com os calções, que lhe prendiam os joelhos um de encontro ao outro, deixando-o num equilíbrio precário. Conseguiu mantê-lo agachando-se ligeiramente inclinado para a frente, com as mãos apoiadas no capacete (que estava no chão à frente dele). A seguir, com a atrapalhação, foi cagar mesmo dentro das botas de futebol, pelo que teve de limpar não só o rabo como as botas. Por instantes, a Franny e eu tememos que ele fosse servir-se dos fetos para isso, mas o Poindexter estava sempre apressado e ofegante, e acabou por fazer o melhor que pôde com uma mão cheia de folhas de ácer que tinha apanhado no caminho. Ouvimos o apito do Coach Bob ao mesmo tempo que o Poindexter.
Quando ele voltou a correr para o campo, a Franny e eu desatámos a bater palmas. Quando o Poindexter parou à escuta, interrompemos as palmas; o pobre gorducho ficou especado no meio da mata, a pensar que aplausos teria imaginado ouvir - desta vez -, e depois apressou-se a regressar ao jogo que jogava tão mal e no qual, em regra, era tão humilhado.
Então, eu e a Franny precipitámo-nos para o carreiro que os jogadores costumavam tomar de regresso ao ginásio. Era um carreiro estreito, todo cheio de mossas feitas pelos pitons das botas. Estávamos um bocado preocupados por não sabermos onde estava o De Meo, mas eu fui até à beira do campo e fiquei de vigia enquanto a Franny baixava as cuecas e se acocorava no meio do caminho; depois foi a minha vez, com ela de vigia. Tapámos os nossos incipientes "presentes" com uma leve camada de folhas e retirá-mo-nos para o nosso esconderijo de fetos à espera que acabasse o treino, mas a Lilly já lá estava.
- Vai para casa - ordenou-lhe a Franny.
A Lilly tinha sete anos. Normalmente, era demasiado pequena para alinhar comigo e com a Franny, mas éramos simpáticos para ela em casa; não tinha amigos e parecia fascinada pelo Frank, que adorava dar-lhe mimos.
- Não tenho nada que ir para casa - respondeu a Lilly.
- É melhor ires - insistiu a Franny.
- Porque é que estás tão encarnado? - perguntou-me a Lilly.
- O De Meo esfregou-lhe a cara com uma coisa venenosa - disse a Franny - e anda à procura de mais pessoas para lhes fazer o mesmo.
- Se eu for para casa, ele vê-me - disse a Lilly, com ar apreensivo.
- Se fores já, não vê - disse eu.
- Nós ficamos de vigia - disse a Franny. Levantou-se e olhou por cima dos fetos.
- O caminho está livre - sussurrou ela.
A Lilly foi-se embora a correr em direcção a casa.
- Tenho mesmo a cara toda vermelha? - perguntei à Franny.
Ela puxou-me o rosto para junto do seu e deu-me uma lambidela na cara, outra na testa, outra no nariz e outra ainda nos lábios.
- Já não me sabe a nada - disse ela. - Consegui tirar tudo.
Estávamos os dois deitados nos fetos; não era aborrecido, mas ainda levou algum tempo até o treino acabar e aparecerem no carreiro os primeiros jogadores. O terceiro pôs um pé mesmo em cima daquilo - um defesa de Boston que estava a fazer um ano propedêutico em Dairy sobretudo para passar o tempo até ter idade para jogar futebol na universidade. Escorregou, mas conseguiu recuperar o equilíbrio; depois reparou horrorizado no que trazia agarrado aos pitons.
- Poindexter! - pôs-se a gritar.
O Poindexter, que corria mais devagar, vinha na cauda da fila dos jogadores a caminho do balneário.
- Poindexter! - continuava a gritar o defesa de Boston. - És um porco, Poindexter!
- O que é que eu fiz? - perguntou o Poindexter, ofegante e irremediavelmente gordo.
"Gordo até aos genes", havia a Franny de dizer mais tarde, quando aprendeu o que eram os genes.
- Tinhas de fazer isto no meio do caminho, meu cara de cu? - perguntou o defesa de Boston ao Poindexter.
- Não fui eu! - protestou o visado.
- Limpa-me já as botas, cabeça de merda - exigiu o defesa.
Numa escola como Dairy, os avançados, embora maiores, eram os rapazes mais fracos, mais gordos, ou mais novos, que frequentemente eram sacrificados em proveito dos raros bons jogadores - o Coach Bob deixava que fossem os bons a levar a bola.
Alguns dos brutamontes da linha recuada da equipa do Iowa Bob rodearam o Poindexter.
- As raparigas ainda não foram admitidas na escola, Poindexter - disse o defesa de Boston -, de modo que tens de ser tu a limpar-me a merda das botas.
O Poindexter fez o que lhe disseram; no fim de contas, começava a ter prática neste tipo de trabalho.
A Franny e eu fomos para casa, passando pelas vacas simbólicas nos decrépitos currais da escola e pela porta das traseiras do Coach Bob, em cuja entrada tinham sido colocados os guarda-lamas ferrugentos da Indian de 37, virados de pernas para o ar, para as pessoas rasparem a lama dos sapatos. Os guarda-lamas da moto era tudo o que restava para lembrar o Urrr.
- Quando chegar a altura de irmos para a Dairy School - disse eu à Franny -, espero que estejamos a viver noutro sítio.
- Eu cá não vou limpar a merda dos sapatos de ninguém - disse a Franny. - Nem pensar.
O Coach Bob, que jantava connosco, queixava-se da sua horrível equipa de futebol.
- Este é o meu último ano, ai juro que é! - afirmou o velho, que, aliás, estava sempre a dizer o mesmo. - Hoje o Poindexter fez um presente mesmo no meio do caminho, durante o treino.
- Eu vi a Franny e o John despidos - disse a Lilly.
- Não viste nada - disse a Franny.
- No caminho - insistiu a Lilly.
- A fazer o quê? - perguntou a Mãe.
- A fazer o que o avô Bob disse - respondeu a Lilly, dirigindo-se a todos.
O Frank deu um suspiro desdenhoso; o Pai mandou-nos, a mim e à Franny, de castigo para o quarto. No andar de cima, a Franny disse-me baixinho:
- Estás a ver? Somos sempre nós os dois. Nunca é a Lilly, nem o Frank.
- Nem o Egg - acrescentei eu.
- O Egg ainda não é gente, palerma - retorquiu a Franny -, aquilo ainda nem sequer é um ser humano.
O Egg só tinha três anos.
- Agora ficámos com dois à perna - continuou a Franny -, a Lilly e o Frank.
- Não te esqueças do De Meo - disse eu.
- Não é fácil esquecer-me dele - disse a Franny. - Quando crescer vou ter muitos De Meos.
Esta ideia assustou-me e fez-me ficar em silêncio.
- Não te preocupes - murmurou a Franny.
Mas eu não disse nada, e ela esgueirou-se para o meu quarto e meteu-se na minha cama; deixámos a porta aberta de modo a podermos ouvi-los falar à mesa.
- Esta escola não é feita para os meus filhos - disse o Pai. - Sei isso muito bem.
- Bom - retorquiu a Mãe -, com essa tua conversa já os convenceste disso. Quando chegar a altura, vão ter medo de ir.
- Quando chegar a altura - disse o Pai -, mando-os embora, para uma boa escola.
- Não quero saber de boas escolas - disse o Frank.
A Franny e eu tivemos uma reacção de simpatia para com ele. Com efeito, embora detestássemos a ideia de ir para Dairy, ficávamos ainda mais perturbados com a hipótese de irmos "embora".
- Embora? Para onde? - perguntou o Frank.
- Quem é que se vai embora? - perguntou a Lilly.
- Caluda! - disse a Mãe. - Ninguém se vai embora. Nem temos meios para isso. Se há alguma vantagem em se ser professor na Dairy School é podermos ter um lugar para onde mandar os filhos de graça.
Um lugar que não vale nada - contrapôs o Pai.
- É melhor do que a média - disse a Mãe.
- Ouve - disse o Pai -, vamos arranjar dinheiro.
Isto para nós era novo; a Franny e eu mantivemo-nos muito quietos. O Frank deve ter ficado muito nervoso perante aquela perspectiva.
- Posso levantar-me? - perguntou ele.
- Com certeza, querido - respondeu a Mãe. - E como é que vamos arranjar dinheiro? - perguntou ela, dirigindo-se ao Pai.
- Por amor de Deus, diz-me - pediu o Coach Bob. - Não te esqueças que eu é que me quero reformar.
- Escutem - disse o Pai. Ficámos todos à escuta.
- Esta escola pode não prestar para nada, mas vai desenvolver-se; vai aceitar raparigas, lembram-se? E, mesmo que não se desenvolva, nunca irá por água abaixo. Já existe há tempo de mais para isso; o seu instinto é apenas de sobreviver, e há-de consegui-lo. Jamais será uma boa escola; vai passar por tantas fases que por vezes nem havemos de a reconhecer, mas vai continuar a aguentar-se, podem ter a certeza.
- E então? - perguntou o Iowa Bob.
- Então vai continuar a haver aqui uma escola - disse o Pai. - Vai continuar a haver aqui uma escola particular, nesta cidade piolhosa. E o Thompson Female Seminary não vai continuar a existir, porque a partir de agora as raparigas da cidade irão para a Dairy.
- Já toda a gente sabe isso - disse a Mãe.
- Posso levantar-me? - perguntou a Lilly.
- Podes, sim - respondeu o Pai. - Oiçam lá - prosseguiu ele para a Mãe e o Bob -, não me digam que não estão a ver?!
A Franny e eu não estávamos a ver nada - excepto o Frank, esgueirando-se furtivamente pelo patamar do primeiro andar.
- O que vai ser feito do velho edifício do Thompson Female Seminary? - perguntou o Pai.
Foi nessa altura que a Mãe sugeriu deitar-lhe fogo. O Coach Bob opinou que seria um bom local para a cadeia do condado.
- Tem o tamanho ideal - disse ele.
Já alguém tinha alvitrado o mesmo numa sessão da Assembleia Municipal.
- Ninguém quer aqui uma cadeia - disse o Pai -, mesmo no centro da cidade.
- Aquilo já parece uma cadeia - disse a Mãe.
- Só faltam mais umas grades - apoiou o Iowa Bob.
- Escutem - continuou o Pai, com impaciência.
A Franny e eu ficámos gelados. O Frank estava a espreitar do lado de fora do meu quarto. A Lilly assobiava não muito longe dali.
- Escutem lá - repetiu o Pai. - Do que esta cidade precisa é de um hotel.
Fez-se um silêncio à mesa da sala de jantar. Um "hotel", tanto quanto eu e a Franny sabíamos, ali deitados na minha cama, era o que tinha liquidado o velho Urrr. Era um vasto espaço em ruínas, a cheirar a peixe, guardado por uma espingarda.
- Porquê um hotel? - perguntou finalmente a Mãe. - Estás sempre a dizer que isto é uma cidade piolhosa. Quem é que há-de querer vir para cá? - Talvez não quisessem - disse o Pai -, mas tinham de. Pensem nos pais dos alunos da Dairy School. Eles vêm visitar os filhos, não é verdade? E sabem que mais? Esses pais hão-de ser gente cada vez mais rica, pois as propinas vão continuar a aumentar e vai deixar de haver bolsas de estudo. Para aqui só virão meninos ricos. E neste momento, se alguém quiser vir aqui a esta escola visitar um filho, não pode ficar alojado aqui na cidade. Tem de ir para as praias, que é onde estão todos os motéis, ou mesmo para mais longe, para o lado das montanhas; porque não há mais sítio nenhum, mesmo nenhum, onde se possa ficar aqui.
Era este o plano dele. Embora a Dairy School mal tivesse com que pagar a um número suficiente de contínuos, o Pai pensava que ela seria capaz de atrair clientela para um hotel na cidade de Dairy - o facto de a cidade não ter nada de interesse e de mais ninguém ter pensado em abrir aqui um estabelecimento do género eram coisas que não preocupavam o meu pai. No New Hampshire, os turistas de Verão iam para as praias - que ficavam a meia hora de caminho. As montanhas, para onde iam os esquiadores e onde havia os lagos no Verão, ficavam só a uma hora de caminho. Mas Dairy jazia no fundo de um vale, no interior, mas a pequena altitude: estava suficientemente próxima do mar para lhe sentir a humidade, mas demasiado afastada para beneficiar da mais pequena frescura marítima. O ar fresco e tonificante do oceano e das montanhas nunca trespassava a pesada neblina que se adensava sobre o vale do rio Squamscott, e Dairy era uma cidade do vale do Squamscott - condenada a um frio húmido e penetrante no Inverno e a uma humidade sufocante durante todo o Verão. Não era uma daquelas risonhas aldeias da Nova Inglaterra, tão bonitas que parecem saídas de um quadro, mas uma cidade nascida à volta de uma fábrica e banhada por um rio poluído - com a fábrica agora tão abandonada e tão feia como o Thompson Female Seminary. Era uma cidade que depositava todas as suas esperanças na Dairy School, um colégio para onde ninguém queria ir.
- No entanto, se houvesse um hotel aqui - dizia o Pai -, as pessoas hospedar-se-iam nele.
- Mas o Thompson Female Seminary daria um hotel horrível - disse a Mãe. - Aquilo só podia mesmo ser o que é: uma escola velha.
- Já pensaste bem que pechincha que era comprá-lo? - perguntou o Pai.
- E tu já pensaste bem no dinheirão que não custaria fazer-lhe as obras que precisa - retorquiu a mãe.
- Que ideia mais deprimente - comentou o Coach Bob.
A Franny começou por me prender os braços em baixo; este era o seu método de ataque habitual: primeiro, imobilizava-mos por completo, e depois punha-se a fazer-me cócegas, esfregando-me o queixo nas costelas ou nas axilas, ou então mordendo-me o pescoço (sem mais força do que era precisa para me manter quieto). As nossas pernas debatiam-se violentamente sob os cobertores, atirando com eles para o chão - quem conseguisse prender as pernas do outro ficava em vantagem -, quando a Lilly, com o seu ar estranho, entrou de gatas no meu quarto, toda tapada com um lençol.
- Tenho pena que vocês estejam de castigo - disse a Lilly, por debaixo do lençol.
A Lilly pedia sempre desculpa quando vinha ter connosco toda embrulhada em lençóis e entrava de gatas nos nossos quartos.
- Tenho aqui uma coisa para vocês - disse ela.
- Comida? - perguntou a Franny.
Com um puxão, arranquei o lençol de cima da Lilly, e a Franny agarrou num cartucho que ela nos tinha trazido pendurado nos dentes. O cartuxo continha duas bananas e dois pães quentes do jantar.
- Não há nada que se beba? - indagou a Franny. A Lilly abanou a cabeça.
- Vá lá, vem para aqui - disse-lhe eu, e a Lilly meteu-se na cama comigo e com a Franny.
- Vamos mudar-nos para um hotel - disse a Lilly.
- Não é bem isso - retorquiu a Franny.
Mas agora, lá em baixo, na sala de jantar, pareciam estar a falar de outra coisa. O Coach Bob estava outra vez zangado com o meu pai, aparentemente pelo motivo do costume: por nunca estar satisfeito, por viver no futuro, como dizia o Bob. Por estar sempre a fazer planos para o ano seguinte em vez de viver o momento presente.
- Mas isso é mais forte do que ele - dizia a minha mãe, que defendia sempre o meu pai perante o Coach Bob.
- Tens uma mulher maravilhosa e uma família maravilhosa - dizia o Coach Bob para o meu pai. - Tens este casarão enorme, e herdado! Nem sequer tiveste que pagá-lo! Tens um emprego. Que interessa se o ordenado não é famoso? Para que é que queres o dinheiro? Considera-te um homem cheio de sorte!
- Não quero ser professor - disse o Pai pausadamente, o que significava que estava outra vez zangado. - Não quero ser treinador, não quero que os meus filhos vão para uma porcaria de escola como esta. Isto é uma cidadezinha de província com uma escola cheia de meninos ricos com problemas, a estrebuchar para não ir ao fundo; os pais deles mandam-nos para cá num esforço desesperado de deter a sua já considerável sofisticação: sofisticação descontrolada por parte das crianças, provincianismo descontrolado por parte da escola e da cidade. Junta-se o pior que há nos dois lados.
- Mas talvez pudesses consagrar um pouco mais de tempo aos miúdos agora - disse a Mãe, calmamente - e preocupares-te menos com o que eles vão fazer daqui a uns anos.
- Mais uma vez o futuro! - exclamou o Iowa Bob. - Ele vive no futuro! Primeiro foram aquelas viagens todas: tudo para poder ir para Harvard. Depois, logo que se apanhou por lá, não parou enquanto não se viu despachado. Para quê? Para conseguir este emprego, que só serve para ele se queixar. Porque é que ele não tira partido das coisas boas do seu trabalho?
- Coisas boas, nisto! - perguntou o Pai. - Diga-me lá que coisas boas é que isto tem para si!
Podíamos imaginar o avô, o Coach Bob, danado; ele ficava quase sempre a fumegar após cada discussão com o meu pai, que era mais lesto do que ele; quando o avô se sentia logrado, mas com a razão do lado dele, ficava fulo. A Franny, a Lilly e eu podíamos imaginar a sua cabeça nodosa e calva a escaldar. É verdade que não tinha a Dairy School em melhor conta do que o meu pai mas o Iowa Bob sentia que se tinha pelo menos empenhado em alguma coisa, e desejava ver o meu pai envolvido no que estava a fazer em vez de - como diria o velho Bob - envolvido no futuro. Ao fim e ao cabo, o Coach Bob tinha uma vez mordido um defesa; mas nunca vira o meu pai entusiasmar-se a esse ponto.
Ele estava provavelmente desiludido com o facto de o meu pai nunca se ter apaixonado por nenhum desporto, ainda que tivesse uma boa compleição atlética e gostasse dos exercícios físicos. Além disso, o Iowa Bob adorava a minha mãe; tinha-a conhecido durante aqueles anos todos em que o meu pai estivera ausente, na guerra, em Harvard, ou com o Urrr. O Coach Bob deve ter pensado que o meu pai não ligava nenhuma à família; nos últimos anos, em contrapartida, sei que ele achava que o Pai tinha deixado de ligar ao Urrr.
- Desculpem - ouvimos o Frank dizer.
A Franny abraçou-me pela cintura, entrelaçando as mãos à altura dos meus rins; tentei empurrar-lhe o queixo para cima, de modo a tirá-lo do meu ombro, mas a Lilly estava sentada em cima da minha cabeça.
- Que foi, querido? - perguntou a Mãe.
- O que é, Frank? - perguntou o Pai.
Pelo ranger de uma cadeira, adivinhámos que o Pai tinha agarrado o Frank; o Pai estava sempre a tentar descontraí-lo e a soltar-lhe os movimentos, lutando com ele ou incitando-o a ir brincar, mas o Frank não ajudava nada. A Franny e eu adorávamos as sessões de luta com o Pai, mas o Frank não gostava nada daquilo.
- Desculpem - repetiu o Frank.
- Estás desculpado, estás desculpado - disse o Pai.
- A Franny não está no quarto dela, está na cama com o John - disse o Frank. - E a Lilly está com eles. Levou-lhes de comer.
Senti a Franny deslizar do pé de mim; já estava fora da minha cama e no momento seguinte do meu quarto, com a camisa de noite de flanela enfunada como uma vela devido à corrente de ar que vinha do vão da escada. A Lilly agarrou no lençol e meteu-se no meu roupeiro. A velha casa da família Bates era enorme e havia inúmeros esconderijos possíveis, mas a minha mãe conhecia-os a todos. Pensei que a Franny se tinha retirado precipitadamente para o quarto dela, mas ouvi-a descer as escadas e gritar:
- Maldito delator! Bufo de merda! Raios te partam, Frank!
- Franny! - exclamou a mãe.
Corri para as escadas e agarrei-me ao corrimão; as escadas estavam atapetadas com uma alcatifa espessa e macia, idêntica à que revestia toda a casa. Vi a Franny atirar-se ao Frank em plena casa de jantar, aplicar-lhe uma chave de pescoço e deitá-lo ao chão rapidamente; o Frank era lento de movimentos e pouco dotado para os exercícios físicos; tinha uma má coordenação motora, embora fosse mais alto do que a Franny e muito mais alto do que eu. Eu raramente lutava com ele, mesmo a brincar; o Frank quase nunca estava disposto a isso, e mesmo a brincar podia magoar o seu antagonista. Era demasiado grande e, apesar da sua repulsa pelos exercícios físicos, era forte. Também tinha um jeito muito especial para atingir o ouvido do adversário com o cotovelo, ou o nariz com o joelho; era um daqueles lutadores cujos dedos encontravam sempre um olho, ou cuja cabeça vai bater na boca do outro, rachando-lhe os lábios de encontro aos dentes. Há certas pessoas que se sentem tão mal no seu próprio corpo que parecem ser hostis a qualquer outro corpo. O Frank era uma dessas pessoas, e eu deixava-o em paz; e não era só por ele ter mais dois anos do que eu.
Às vezes, a Franny não se continha em não o pôr à prova, mas acabavam quase sempre por se magoar um ao outro. Olhei para ela, enganchada na cabeça do irmão, num aperto mortal, debaixo da mesa da casa de jantar.
- Fá-los parar, Win! - implorou a minha mãe.
Mas o Pai bateu com a cabeça na mesa quando tentava puxá-los para um lugar onde pudesse separá-los; o Coach Bob meteu-se por baixo da mesa pelo outro lado.
- Merda! - exclamou o Pai.
Senti qualquer coisa quente encostada à minha anca, junto ao corrimão. Era a Lilly, a espreitar por debaixo do lençol.
- És um grande sacana, Frank! - continuava a Franny a gritar. Então o Frank agarrou a Franny pelos cabelos e bateu-lhe com a cabeça contra a perna da mesa; embora eu não tivesse seios, senti a dor no meu peito quando o Frank espetou os nós dos dedos no peito da irmã. Ela teve de largar o Frank, e este ainda lhe deu mais duas vezes com a cabeça na mesa, com o cabelo enrolado em torno do seu punho fechado, antes de o Coach Bob conseguir agarrar com as suas mãos enormes três das quatro pernas em luta e puxar os contendores, obrigando-os a sair de debaixo da mesa. A Franny esperneou com a perna livre e deu um pontapé no nariz do avô, mas o velho avançado do Iowa não largou a presa. A Franny estava agora a chorar, mas conseguiu esticar a cabeça, apesar da dor do puxão de cabelos, de modo a morder a cara do Frank. Este agarrou-lhe um seio e deve ter-lho apertado com tal força que a Franny foi obrigada a largar a cara do Frank, ao mesmo tempo que deixava escapar um soluço de rendição.
Aquele soluço soou de tal maneira a frustração e a derrota que a Lilly voltou a correr para o meu quarto com o lençol. Com uma violenta palmada, o Pai arrancou a mão do Frank do seio da irmã, enquanto o Coach Bob a imobilizava, prendendo-lhe a cabeça debaixo do braço, para que não pudesse morder o Frank outra vez. Mas a Franny ficou com uma mão livre, e atirou-a em direcção ao baixo ventre do Frank; quer se usasse funda de protecção quer não, a Franny, quando as coisas lhe corriam mal, atirava-se às partes baixas do adversário e apertava-as como num torno. De repente, o Frank transformou-se num moinho de braços e pernas agitando-se freneticamente, e soltou um uivo tão triste que eu estremeci de alto a baixo. O Pai esbofeteou a Franny na cara, mas ela não largou a presa e ele teve de lhe abrir os dedos à força. O Coach Bob arrastou o Frank para fora do alcance da irmã, mas ela ainda lhe conseguiu dar um último pontapé, pois tinha as pernas compridas, e o Pai foi obrigado a esbofeteá-la de novo, com força, na boca. Só aí é que a coisa acabou.
O Pai sentou-se no tapete da sala de jantar, apertando a cabeça da Franny contra o peito e embalando-a nos braços enquanto ela chorava.
- Franny, Franny - disse ele, meigamente. - Porque é que há-de ser preciso magoar-te para te fazer parar?
- Calma, filho, respira com calma - dizia o Coach Bob ao Frank, que estava deitado de lado, com os joelhos puxados para o peito e com a cara tão cinzenta como uma das cores da Dairy School.
O Iowa Bob sabia como lidar com uma pessoa que tivesse apanhado um pontapé nos testículos.
- Sentes-te assim meio agoniado, não é? - perguntava ele, com doçura. - Respira com calma e deixa-te estar quieto que isso passa.
A Mãe levantou a mesa e apanhou as cadeiras caídas. A sua absoluta desaprovação da violência interior existente na família estava patente na sua expressão amarga, magoada e cheia de apreensão e no silêncio forçado a que se remetia.
- Experimenta agora suspirar fundo - aconselhou então o Coach Bob ao Frank.
Este tentou e tossiu.
- Pronto, pronto - disse o Iowa Bob. - Continua a arquejar mais um bocado.
O Frank gemia.
O Pai examinou o lábio inferior da Franny, que continuava com as lágrimas a escorrer pela cara abaixo, como que engasgada pelos soluços, que lhe ficavam meio estrangulados no peito.
- Acho que vais precisar de uns pontos, meu amor - disse ele.
Mas a Franny abanou a cabeça furiosamente. O Pai segurou-lhe firmemente a cabeça entre as mãos e beijou-lhe os olhos duas vezes.
- Desculpa, Franny - disse ele -, mas não sei o que fazer contigo.
- Não preciso de pontos - resmungou a Franny. - Não quero pontos. Nem pensar nisso.
Mas tinha o lábio inferior fendido e inchado, e o Pai teve de lhe pôr a mão em concha debaixo do queixo para aparar o sangue. A Mãe trouxe uma toalha cheia de gelo.
Voltei para o meu quarto e convenci a Lilly a sair do roupeiro. Ela quis ficar comigo e eu deixei-a. Adormeceu logo, mas eu fiquei deitado na cama a pensar que sempre que alguém pronunciava a palavra "hotel" havia sangue e sofrimento. O Pai e a Mãe levaram a Franny no carro à enfermaria da Dairy School, onde havia quem pudesse coser-lhe o lábio. Ninguém iria criticar o Pai - e muito menos a Franny. Esta havia de deitar todas as culpas para cima do Frank, é claro, o que eu nessa época também tinha tendência para fazer. O Pai não se iria sentir culpado pelo sucedido - ou pelo menos não durante muito tempo -, e seria a Mãe quem havia de recriminar-se, inexplicavelmente, durante mais tempo.
Quando brigávamos, o Pai costumava gritar-nos:
- Não vêem como isso nos incomoda, a mim e à vossa mãe? Imaginem que nós andávamos continuamente a brigar e que vocês tinham de viver nesse ambiente! Mas vocês vêem-nos a discutir! Digam lá! Gostavam de nos ver sempre a discutir?
É claro que nós não gostávamos, e eles - a maior parte do tempo - não andavam a discutir. Só havia a tal velha quezília sobre o viver-no-futuro-e-não-gozar-o-dia-de-hoje, em que o Coach Bob se manifestava de uma forma mais veemente do que a Mãe, embora soubéssemos que ela tinha a mesma opinião a respeito do meu pai (e também que achava que isso era mais forte do que ele).
Isto para nós não parecia ter grande importância. Empurrei a Lilly para o lado dela, de maneira a poder estender-me de costas, com os dois ouvidos fora da almofada, e conseguir ouvir o Coach Bob trazer o Frank para cima.
- Devagar, rapaz, apoia-te em mim - dizia o Bob. - O segredo está na respiração.
O Frank balbuciou qualquer coisa, e o Coach Bob retorquiu:
- Mas ouve lá: tu não podes apertar as mamas de uma rapariga sem esperar apanhar um pontapé nos tomates, pois não?
Mas o Frank continuou a balbuciar qualquer coisa sobre como a Franny era má para ele, que nunca o deixava em paz, que andava sempre a atiçar os outros miúdos contra ele, que ele tentava evitá-la, mas ela estava sempre presente.
- Ela está no centro de tudo o que me acontece de mau! - guinchou ele. - Tu sabes lá - continuou em voz rouca -, tu sabes lá como ela implica comigo.
Eu achei que sabia, e o Frank tinha razão. O problema é que era difícil gostar dele. A Franny era horrível para ele, mas ela não era má. E o Frank não era mau para nenhum de nós, mas de certo modo era ele, ele próprio, que era horrível. Tudo aquilo fazia-me sentir muito confuso, para ali deitado a pensar nestas coisas. A Lilly começou a ressonar.
Ouvi o arrastar dos pés do Egg no patamar e pus-me a pensar no que teria feito o Coach Bob se ele tivesse acordado a chamar pela Mãe. O avô já não tinha mãos a medir com o Frank, na casa de banho.
- Vá lá - disse o Bob -, deixa-me lá ver isso. O Frank soluçava.
- Olha aí! - gritou o Iowa Bob, como se tivesse visto uma pelada na zona das dez jardas(*). - Estás a ver? Não chegou a fazer sangue, pá: isso é só mijo. Não há problema!
Fui ver o que é que o Egg queria. Com três anos, devia querer qualquer coisa impossível de arranjar, pensei eu; mas fiquei admirado com o seu ar prazenteiro quando entrei no quarto. Ficou manifestamente surpreendido por me ver, e quando eu acabei de lhe voltar a pôr na cama os animais de peluche - tinha atirado com todos para o chão, espalhando-os por todo o quarto - começou a apresentar-me cada um deles: o esquilo esfiapado em que já tinha vomitado várias vezes, o elefante todo poído e só com uma orelha, o hipopótamo cor de laranja. Como ele se punha a fazer beicinho sempre que eu me queria ir embora, resolvi levá-lo para o meu quarto e pô-lo na cama com a Lilly. Depois levei a Lilly para o quarto dela, embora ainda fosse bastante longe para a levar ao colo; mas ela acordou e pôs-se a resmungar antes de eu a ter deitado.
- Nunca mais vou ficar no teu quarto - disse ela, adormecendo instantaneamente.
Voltei para o meu quarto e meti-me na cama com o Egg, que tinha espertado e estava todo entretido a dizer coisas sem nexo. Mas isso parecia dar-lhe imenso gozo, e eu concentrei-me no som da voz do Coach Bob a falar lá em baixo - ao princípio pareceu-me que com o Frank, mas depois percebi que era com o Sorrow, o nosso velho cão. O Frank já devia estar a dormir, ou pelo menos continuava amuado e silencioso.
- Cheiras pior do que o Urrr - dizia o Iowa Bob ao cão.
E, na verdade, o Sorrow cheirava horrivelmente. Os seus gases, e também o mau hálito, quase que podiam matar qualquer pessoa que fosse apanhada desprevenida; pessoalmente, eu também achava o velho Labrador preto muito mais repulsivo do que a minha ténue recordação do Urrr e do seu mau cheiro.
- O que é que vamos fazer contigo? - resmungava o Bob para o cão, que gostava de se deitar debaixo da mesa de jantar e bufar-se continuamente durante as refeições.
O Iowa Bob abriu as janelas do rés-do-chão.
- Anda, pá! - chamou ele o Sorrow. - Chiça! - exclamou sem se conter quando lhe apanhou o hálito.
*. Área das dez jardas ou end zone: no futebol americano, área em cada um dos extremos do campo situada entre a linha de ensaio e uma linha paralela a esta, a dez jardas para o interior do campo. (N. da T.).
Ouvi abrir-se a porta da frente. Provavelmente, o Coach Bob tinha posto o Sorrow lá fora.
Fiquei na cama acordado, com o Egg a gatinhar em cima de mim, à espera que a Franny voltasse; sabia que, se eu estivesse acordado, ela viria mostrar-me os pontos. Quando, finalmente, o Egg adormeceu, levei-o outra vez para o seu quarto e para os seus animais.
O Sorrow ainda estava lá quando o Pai e a Mãe trouxeram a Franny para casa. Se os seus latidos não me tivessem acordado, não teria dado por eles chegarem.
- Bom, isso tem bom aspecto - dizia o Coach Bob, referindo-se com certeza ao trabalho feito no lábio da Franny. - Daqui a uns tempos, nem se vai ver cicatriz nenhuma.
- Foram cinco - disse a Franny, articulando mal as palavras, como se lhe tivessem dado uma língua suplementar.
- Cinco! - exclamou o Iowa Bob. - Formidável!
- Aquele cão descuidou-se outra vez - disse o Pai.
A sua voz soava mal-humorada e fatigada, como se ele e a Mãe não tivessem parado de falar desde que tinham ido para a enfermaria.
- Coitadinho! Ele é tão amoroso! - disse a Franny, e eu conseguia ouvir a cauda rija do Sorrow a abanar, batendo contra uma cadeira ou contra o aparador: trap, trap, trap.
Só a Franny é que era capaz de ficar deitada no chão ao pé do Sorrow durante horas a fio sem se incomodar com os diversos maus cheiros do cão. É certo que, de um modo geral, a Franny tinha menos sensibilidade aos maus cheiros do que nós. Nunca se importava de mudar as fraldas ao Egg - ou mesmo à Lilly - quando éramos mais novos. E quando o Sorrow, na sua senilidade, fazia uma porcaria de noite, a Franny nunca achava o cocó do cão repugnante. Ela manifestava uma alegre curiosidade por tudo o que fosse forte, intenso. De nós todos, era a que conseguia andar mais tempo sem tomar banho.
Ouvi os adultos darem um beijo de boas-noites à Franny e pensei: as famílias têm de ser assim - sangue agora e perdão no minuto seguinte. Como eu esperava, a Franny veio ao meu quarto mostrar-me o lábio. Os pontos eram encaracolados e de um preto reluzente, como pêlos púbicos. A Franny já tinha pêlos púbicos, mas eu não. O Frank tinha, mas detestava-os.
- Sabes o que é que os teus pontos parecem? - perguntei-lhe. - Sei, sim - respondeu ela.
- Ele magoou-te?
Ela agachou-se junto à minha cama e deixou-me tocar-lhe no seio.
- Foi o outro, estúpido - disse ela, afastando-se de mim.
- Lixaste bem o Frank.
- Eu sei. E agora boa noite.
Da soleira da porta ainda olhou para trás e disse:
- Vamos mudar-nos para um hotel. Depois ouvi-a ir para o quarto do Frank.
- Queres ver os meus pontos? - sussurrou ela.
- Quero, pois - disse o Frank.
- Sabes o que é que parecem? - perguntou-lhe a Franny.
- São bem grandes - disse o Frank.
- Lá isso são, mas sabes o que é que parecem, não sabes?
- Sei - disse ele. - E são grandes.
- Desculpa lá isso dos tomates, Frank - continuou a Franny.
- Está bem - disse ele. - Não há problema. Desculpa isso da... - começou o Frank a dizer.
Mas ele nunca tinha dito "seio" na vida, e muito menos "mama". A Franny aguardava, e eu também.
- Desculpa lá esta história toda - acabou o Frank por dizer.
- Está bem - respondeu a Franny. - Desculpa tu também. Depois ouvi-a dirigir-se à Lilly, mas esta estava mergulhada no sono e
não a ouviu.
- Queres ver os meus pontos? - sussurrou a Franny. Passado um instante ouvi-a dizer baixinho:
- Bons sonhos, meu anjinho.
É claro que não valia a pena mostrar os pontos ao Egg. Ele ia com certeza pensar que eram restos de alguma coisa que a Franny tinha comido.
- Quer uma boleia para casa? - perguntou o Pai ao avô. Mas o velho Iowa Bob respondeu que até lhe fazia bem ir a pé.
- Podes achar que isto é uma cidade piolhosa - disse o Bob -, mas ao menos pode-se passear à vontade à noite.
Continuei à escuta durante mais alguns momentos; a certa altura percebi que os meus pais estavam sozinhos.
- Amo-te - disse o meu pai. E a minha mãe retorquiu:
- Eu sei. Eu também te amo.
Percebi então que também ela estava cansada.
- Vamos dar um passeio - disse o Pai.
- Não gosto de deixar as crianças sozinhas - disse a Mãe.
Mas eu sabia que aquilo era uma desculpa. A Franny e eu éramos perfeitamente capazes de tomar conta da Lilly e do Egg, e o Frank de tomar conta de si mesmo.
- Não demoramos mais do que um quarto de hora - insistiu o Pai. -Vamos só até ali acima olhar para aquilo.
"Aquilo" era, evidentemente, o Thompson Female Seminary - o disforme casarão que o Pai queria transformar em hotel.
- Eu andei lá - disse a Mãe. - Conheço melhor o edifício do que tu. Não me apetece ir olhar para ele.
- Costumavas gostar de passear comigo à noite - disse o Pai.
Pela gargalhada ligeiramente trocista da minha mãe, imaginei que ela tivesse encolhido os ombros mais uma vez.
Fez-se um silêncio completo no rés-do-chão; era impossível saber se eles estavam a beijar-se ou a vestir os casacos (pois estava-se no Outono e as noites eram húmidas e frias). Então, ouvi a Mãe dizer:
- Tenho a impressão que não fazes a mais pequena ideia do dinheiro que ia ser preciso enterrar naquele casarão, quanto mais não fosse para fazer dele alguma coisa parecida com um hotel onde as pessoas algum dia chegassem a querer hospedar-se.
- Não era preciso que quisessem - disse o Pai. - Não te esqueças que seria o único hotel da cidade.
- Mas onde é que tu ias buscar o dinheiro para isso? - perguntou a Mãe.
- Anda, Sorrow - disse o Pai. Percebi que se dirigiam para a porta.
- Anda, Sorrow. Anda empestar a cidade - insistiu o Pai. A Mãe riu-se outra vez.
- Responde-me - disse ela, mas agora com uma entoação amorosa. O Pai já devia tê-la convencido, num sítio qualquer, momentos antes - talvez quando a Franny estava a ser cosida (estoicamente, tenho a certeza: sem uma lágrima).
- De onde é que ia sair o dinheiro? - insistiu a Mãe.
- Sabes muito bem - disse o Pai, e fechou a porta.
Ouvi o Sorrow a ladrar à noite, a tudo o que ela continha e ao mesmo tempo a nada.
E eu sabia que se um veleiro branco tivesse parado diante da porta da frente da velha casa da família Bates, a minha mãe e o meu pai não teriam ficado nada surpreendidos. Se o homem de smoking branco, proprietário do outrora exótico Arbuthnot-by-the-Sea, estivesse ali para os saudar, eles nem teriam pestanejado. Se ele estivesse ali, a fumar, bronzeado e impecável, e lhes tivesse dito: "Bem-vindos a bordo!", eles ter-se-iam feito ao mar no veleiro branco sem mais delongas.
E quando subiram a Pine Street até ao Elliot Park e dobraram a esquina da última fila de casas de viúvos e viúvas, o lúgubre edifício do Thompson Female Seminary deve ter-lhes parecido um castelo ou uma mansão toda iluminada onde estivesse a realizar-se uma festa de gala para os ricos e para as celebridades - ainda que não houvesse a mais pequena luz acesa e a única criatura que por ali andava fosse o velho polícia que costumava passar de hora a hora para interromper os adolescentes que iam para ali fazer marmelada. No Elliot Park só havia um candeeiro; a Franny e eu nunca ousaríamos atravessar o parque depois de escurecer e descalços, com medo de pisar cacos de garrafas de vidro - ou algum preservativo usado.
Mas o quadro que o Pai imaginou deve ter sido bem diferente! Estou a vê-lo a passar com a minha mãe pelos cepos dos ulmeiros mortos desde há muito, ouvindo o som do vidro a estalar debaixo dos pés como se estivessem a pisar os seixos de uma praia elegante, e a dizer:
- Já tentaste imaginar um hotel dirigido por uma família? Tê-lo-íamos só para nós a maior parte do tempo. Com a mina dos fins-de-semana prolongados da escola, nem precisaríamos de fazer publicidade, pelo menos não muita. Bastava manter abertos o bar e o restaurante durante a semana para atrair os homens de negócios: a enchente dos almoços e dos cocktails.
- Homens de negócios? - ter-se-á admirado a minha mãe em voz alta. - Que enchente vai ser essa da hora do almoço e dos cocktails?
Mas nem sequer quando o Sorrow fez corar os adolescentes escondidos nos arbustos, nem mesmo quando o polícia parou o carro e pediu ao Pai e à Mãe para se identificarem, o meu pai conseguiu ser mais convincente. - Ah, é você, Win Berry - terá dito o polícia.
Era o velho Howard Tuck que fazia a ronda da noite; era um pobre diabo, de espírito embotado, que tresandava a charutos apagados numa poça de cerveja. O Sorrow deve-lhe ter rosnado: aquele odor entrava em conflito com o cheiro do cão, já de si bastante intenso.
- Coitado do Bob! Está a ter uma época desgraçada - disse provavelmente o Howard Tuck, pois toda a gente sabia que o meu pai era filho do Iowa Bob.
O Pai tinha sido um médio de apoio numa das antigas equipas da Dairy orientadas pelo Coach Bob: as equipas que costumavam ganhar.
- Mais uma época desastrosa - deve ter gracejado o meu pai.
- Que é que estão aqui a fazer? - deve ter-lhes perguntado o velho Howard Tuck.
E, fatalmente, o meu pai deve ter respondido:
- Bem, Howard, só para nós, vamos comprar isto aqui.
- Vocês vão comprar isto!
- Nem mais - deve ter dito então o Pai. - Vamos transformar isto num hotel.
- Num hotel?
- Isso mesmo - terá confirmado o Pai. - E mais um restaurante e um bar para os clientes dos almoços e dos cocktails.
- Os clientes dos almoços e dos cocktails - deve ter repetido o Howard Tuck, sem perceber.
- Estás a topar o esquema? - deve ter continuado o Pai. - O melhor hotel do New Hampshire!
- Carago! - era a única coisa que o chui sabia dizer nestas alturas. Fosse como fosse, a verdade é que foi o polícia de giro da noite, o Howard Tuck, quem perguntou ao meu pai:
- Como é que lhe vão chamar?
É bom não esquecer que isto se passava de noite e que a noite sempre havia inspirado o meu pai. Tinha sido à noite que ele vira pela primeira vez o Freud e o seu urso; tinha pescado com o State O'Maine à noite; fora de noite que o homem de smoking branco fizera a sua aparição; já era escuro quando o alemão e a sua orquestra de metais vieram borrifar de sangue o Arbuthnot; deve ter sido à noite que o meu pai e a minha mãe dormiram juntos pela primeira vez; e a Europa do Freud estava agora na mais total escuridão. Ali, no Elliot Park, com o foco do carro-patrulha apontado para ele, o meu pai olhava para o edifício de quatro andares que tinha indiscutivelmente o aspecto de uma prisão - com as escadas de incêndio ferrugentas a treparem por ali acima como andaimes num edifício que tentasse transformar-se noutra coisa. Não tenho dúvidas que ele deve ter pegado na mão da minha mãe. No escuro, onde não há obstáculos para a imaginação, o meu pai sentiu o nome do seu futuro hotel - e nosso futuro - emergir na sua mente.
- Como é que lhe vai chamar? - insistiu o velho chui.
- Hotel NeW Hampshire - respondeu o meu pai.
- Carago! - exclamou de novo o Howard Tuck.
"Hotel do Carago" teria sido provavelmente um nome mais adequado para ele, mas a questão estava decidida: seria o Hotel New Hampshire.
Eu ainda estava acordado quando a Mãe e o Pai voltaram - tinham demorado muito mais de um quarto de hora, pelo que depreendi que tivessem encontrado no caminho pelo menos o veleiro branco, se não mesmo o Freud e também o homem de smoking branco.
- Bolas, Sorrow! - ouvi o Pai dizer. - Não podias ter feito isso lá fora?
Podia imaginá-los com grande nitidez no regresso a casa, o Sorrow atravessando a arfar as sebes que se estendiam ao longo das casas de madeira da cidade, acordando os velhotes de sono leve. Estremunhados e sem saberem que horas eram, estes devem ter olhado pela janela e visto o meu pai e a minha mãe de mãos dadas; já sem noção do tempo, terão voltado para a cama a resmungar:
- É outra vez o rapaz do Iowa Bob com a filha dos Bates e aquele urso velho.
- Só há uma coisa que eu não percebo - estava a Mãe a dizer. - Teremos de vender esta casa e de sair daqui antes de nos podermos mudar para lá?
Com efeito, essa era a única maneira de ele arranjar o dinheiro para transformar a escola num hotel. A cidade ficaria contente por ele comprar o Thompson Female Seminary por uma bagatela. Quem é que gostava de ver aquele mostrengo vazio, onde as crianças se podiam magoar a partir os vidros e a trepar as escadas de incêndio? Mas o preço da restauração seria a casa de família da minha mãe, a deliciosa casa da família Bates. Naturalmente, era a isso que o Freud se referia quando disse que a Mãe tinha de perdoar ao Pai.
- Provavelmente teremos de a vender antes de nos podermos instalar lá - disse o Pai. - Mas isso não quer dizer que tenhamos de sair. De qualquer modo, essas coisas são apenas pormenores.
Estes pormenores (e outros) levar-nos-iam anos; e levariam também a Franny a dizer, muito tempo depois de lhe terem tirado os pontos do lábio e quando a cicatriz era já tão ténue que parecia que se podia raspá-la com o dedo ou que um beijo a valer podia apagar-lhe essa marca da boca:
- Se o Pai pudesse ter comprado outro urso, não tinha precisado de comprar um hotel.
Mas a primeira das ilusões do meu pai era que os ursos podiam sobreviver aos homens, e a segunda era que os homens podiam sobreviver a uma vida em hotéis.
A ÉPOCA VITORIOSA DO IOWA BOB
Em 1954, o Frank entrou para a classe de caloiros da Dairy School - o que não parece ter tido grandes efeitos na sua vida, a não ser ele ter passado a ficar mais tempo sozinho no quarto. Houve um vago caso de homossexualidade, em que estiveram envolvidos alguns rapazes do mesmo dormitório - todos mais velhos do que o Frank -, mas concluiu-se que ele tinha sido vítima de uma brincadeira bastante vulgar nas escolas. No fim de contas, ele vivia em casa, pelo que não era de admirar a sua ingenuidade acerca da vida nos dormitórios.
Em 1955 foi a vez de a Franny entrar para a Dairy School; foi o primeiro ano em que admitiram raparigas, e desta vez a transição não foi tão suave. Aliás, as transições nunca podiam ser suaves, a partir do momento em que diziam respeito à Franny, mas neste caso houve uma série de problemas imprevistos, que iam desde a discriminação nas aulas à escassez de chuveiros no vestiário do ginásio destinado às raparigas. Além disso, o súbito aparecimento de mulheres no corpo docente provocou a ruptura de uns quantos casamentos mais vacilantes, e as fantasias dos rapazes de Dairy foram substancialmente enriquecidas com novas visões.
Em 1956 chegou a minha vez. Foi nesse ano que a escola comprou uma linha defensiva completa e mais três avançados para o Coach Bob. Sabiam que ele se ia reformar e que a sua última época vitoriosa tinha sido logo a seguir à guerra, e achavam que lhe deviam o suficiente para lhe rechear a equipa de futebol com atletas recém-saídos dos liceus mais duros e mais viris de Boston. Por uma vez, o Coach Bob não só tinha uma linha defensiva mas também alguns pesos-pesados na linha avançada, para as placagens, e embora desagradasse ao velho treinador a ideia de ter uma equipa "comprada" à base daquilo a que (já nessa altura) chamávamos "craques" - apreciou o gesto. A Dairy School, todavia, tinha outros projectos para além de premiar o Iowa Bob com uma época vitoriosa no último ano antes da reforma. Estavam a ser feitos todos os esforços para angariar mais dinheiro dos antigos alunos e se contratar um novo treinador de futebol para o ano seguinte. O Bob sabia que, se houvesse mais uma época falhada, a Dairy School desistiria definitivamente do futebol. Ele teria preferido despedir-se como vencedor com uma equipa que ele próprio tivesse feito ao longo de vários anos, mas quem é que não gostaria de se despedir como vencedor, fosse de que maneira fosse?
- Além disso - disse o Coach Bob -, mesmo os bons jogadores precisam de um treinador. Sem mim, estes tipos não seriam tão bons jogadores. Todas as equipas precisam de um plano de jogo; todas as equipas precisam que lhes digam quais os erros que estão a cometer.
Nesse tempo, o Iowa Bob tinha muito por onde pegar com o meu pai acerca de planos de jogo e erros que se fazem. O Coach Bob dizia que a restauração do Thompson Female Seminary era "uma coisa tão difícil como violar um rinoceronte". E, de facto, levou um pouco mais de tempo do que o meu pai tinha previsto.
O Pai não teve dificuldade em vender a casa da família da Mãe - era uma casa bem bonita e ganhámos um dinheirão na venda -, mas os novos proprietários estavam impacientes por se mudarem para lá, e tivemos de lhes pagar uma renda elevada para podermos lá ficar ainda durante mais um ano após toda a papelada estar assinada.
Lembro-me de ter visto tirarem as velhas carteiras de dentro do que viria a ser o Hotel New Hampshire. Eram centenas de carteiras que tinham sido aparafusadas ao chão: centenas de buracos no soalho para tapar, ou então aquilo tudo para alcatifar... Este era um dos detalhes com que o Pai teria de haver-se.
E as casas de banho do quarto andar foram uma surpresa para ele. A minha mãe devia ter-se lembrado daquilo: anos antes de ter frequentado o Thompson Female Seminary, tinha havido um engano na instalação dos equipamentos sanitários do último andar. Em vez de louças sanitárias com as dimensões adequadas ao tamanho dos alunos de uma escola secundária, tinham sido fornecidas e instaladas autênticas miniaturas, destinadas a um jardim infantil no norte do Estado. Como o engano acabava por sair mais barato do que a encomenda original, o Thompson Female Seminary deixou as coisas como estavam. E, assim, gerações e gerações de raparigas em plena adolescência tiveram de se pôr de cócoras, com as articulações dos joelhos a estalar, sempre que queriam urinar ou lavar-se - graças às minúsculas sanitas de tamanho infantil que lhes davam cabo das costas se se sentassem demasiado depressa, aos pequenos lavatórios que lhes davam pelos joelhos e aos espelhos onde só conseguiam ver os seios.
- Santo Deus! - exclamou o Pai. - Isto é uma casa de banho para gnomos!
Ele tinha pensado que lhe bastaria distribuir o equipamento sanitário por todo o hotel..Tinha o bom senso suficiente para saber que os hóspedes não gostariam de partilhar sanitários colectivos, mas achava que podia poupar muito dinheiro aproveitando os lavatórios e as sanitas já existentes. Bem vistas as coisas, não havia muito equipamento comum entre uma escola secundária e um hotel.
- Em todo o caso, sempre podemos aproveitar os espelhos - disse a Mãe. - Basta pendurá-los mais alto.
- E também podemos utilizar as sanitas e os lavatórios - insistiu o Pai.
- E quem é que os vai usar? - perguntou a Mãe.
- Anões? - ajudou o Coach Bob.
- Há a Lilly e o Egg - disse a Franny. - Pelo menos durante mais uns anos.
Depois havia as cadeiras aparafusadas ao chão, com as dimensões a condizer com as das correspondentes carteiras. O Pai também não as queria deitar fora.
- São cadeiras em perfeito estado - disse ele. - E muito confortáveis.
- É singular a quantidade de nomes que lá têm gravados - disse o Frank.
- Singular, Frank?! - exclamou a Franny.
- Mas só se aguentam em pé se ficarem aparafusadas ao chão - disse a Mãe. - Não se vão poder levar de um lado para o outro.
- Mas porque é que as pessoas hão-de andar a levar a mobília do hotel de um lado para o outro? - perguntou o Pai. - Vamos arranjar os quartos como deve ser, não é verdade? Não é para as pessoas começarem a desarrumar as cadeiras. Assim, é da maneira que não podem.
- Nem no restaurante? - perguntou a Mãe.
- Depois de uma boa refeição, as pessoas gostam de empurrar as cadeiras para trás - disse o Iowa Bob.
- Pois não o poderão fazer, pronto! - disse o Pai. - Se quiserem, que empurrem a mesa.
- Já agora, porque não aparafusar também as mesas? - sugeriu o Frank.
- Que ideia singular - comentou a Franny.
Ela diria mais tarde que a insegurança do Frank era tão grande que para ele o ideal era que tudo na vida estivesse aparafusado ao chão.
Evidentemente, o que levou mais tempo foi a separação dos quartos, com as respectivas casas de banho. A rede de canalizações era tão complicada como o entrecruzar dos carris num terminal de carga e triagem de vagões de caminho de ferro. Quando alguém puxava o autoclismo no quarto andar, podia-se ouvir a descarga a percorrer o hotel inteiro, tentando encontrar o caminho para baixo. E alguns dos quartos ainda tinham os quadros pretos.
- Desde que estejam limpos - disse o Pai -, qual é o problema?
- Mas é claro! - acrescentou o Iowa Bob. - Assim, um hóspede sempre pode deixar uma mensagem a quem vier a seguir.
- Tal como: "Arranje outro hotel"! - ajudou a Franny.
- Para mim está tudo bem - disse o Frank -, desde que fique com um quarto só para mim.
- Num hotel, Frank - observou a Franny -, toda a gente tem um quarto.
Até o Coach Bob iria ter um quarto; quando se reformasse, a Dairy School não o deixaria ficar a viver nos alojamentos dos professores. Pouco a pouco, foi-se habituando à ideia, e agora estava pronto para se mudar para o hotel quando nós, pelo nosso lado, estivéssemos prontos. Estava preocupado com o futuro do equipamento dos campos de jogos: o pavimento cheio de fendas do campo de voleibol, o terreno de hóquei em campo e as tabelas de basquetebol e os respectivos aros - pois as redes há muito que haviam apodrecido.
- Não há nada que tenha um aspecto mais abandonado do que uma tabela de basquetebol sem a rede - dizia ele. - Fica com um ar tão triste!
E um dia vimos uns homens armados com brocas pneumáticas apagarem a inscrição THOMPSON FEMALE SEMINARY do frontão de pedra, de um cinzento pálido, incrustado nos tijolos por cima da porta principal. Ao fim do dia. Quando suspenderam o trabalho, só tinham deixado - estou certo que propositadamente - as letras MALE SEMIN(*). Como era sexta-feira, as letras ficaram assim durante todo o fim-de-semana, para grande irritação dos meus pais - e correspondente gáudio do Coach Bob.
- Porque não lhe chamas Hotel Male Semen! - perguntou o Iowa
Bob ao meu Pai- - Assim só precisavas de mudar uma letra.
O Coach Bob estava de bom humor, em primeiro lugar porque a sua equipa tinha ganho, mas também por se saber prestes a abandonar aquela porcaria da Dairy School.
Se o meu Pai estava de mau humor, raramente o deixava transparecer. (Era um homem cheio de energia - "A energia chama mais energia", fartava-se ele de repetir, quer se dirigisse a nós a respeito dos estudos quer às equipas que treinava na escola.) Não se tinha demitido da Dairy School; talvez não tenha querido correr esse risco, ou então foi a Mãe que não o deixou. Continuava a avançar com o projecto do Hotel New Hampshire e, ao mesmo tempo, tinha a seu cargo três turmas de inglês e era treinador de atletismo durante o Inverno e a Primavera, pelo que os trabalhos prosseguiam a meio gás.
Na Dairy School, o Frank parecia desvanecer-se no ar. Era tal e qual uma das vacas de recordação: ao fim de algum tempo, deixava-se de dar por ele- Cumpria as suas obrigações escolares - que parecia achar difíceis - e participava nas actividades físicas exigidas, embora não revelasse preferência Por nenhum desporto em particular e não fosse suficientemente bom (ou não ? tentasse ser) para integrar qualquer das equipas. Era grande e forte e tão desajeitado como sempre havia sido.
Com dezasseis anos, deixou crescer um bigode fino que o fazia parecer mais velho- Havia nele uma espécie de indolência
*. Trocadilho com MALE SÉMEN - literalmente, sémen masculino. (N. da T.)
que fazia lembrar um cachorrinho - talvez o seu andar pesado e arrastado -, mas um cachorrinho que dava a ideia de um dia poder vir a tornar-se um cão enorme e imponente; ao Frank, porém, havia sempre de faltar-lhe a imponência do porte que, como a do tamanho, traduz a verdadeira imponência. Não tinha amigos, mas ninguém se preocupava com isso: ter amigos nunca tinha sido o seu género.
A Franny, é claro, tinha uma quantidade de namorados. Eram quase todos mais velhos do que ela, e havia um de quem eu gostava: era um veterano da escola, alto e de cabelo ruivo - um moço forte e de poucas falas, que foi patrão do primeiro barco da equipa universitária de remo. Chamava-se Struthers, tinha passado a infância no Maine e, à parte as bolhas nas mãos, que estavam sarapintadas de cor de ferrugem com benzoína (para as enrijar), e o facto de, por vezes, cheirar que nem uma peúga molhada, era considerado aceitável por toda a família. Até pelo Frank. O Sorrow rosnava quando o via, mas isto era uma questão de cheiros: neste campo, o Struthers ameaçava o ascendente do cão em nossa casa. Eu não sabia se o Struthers era o namorado preferido da Franny, mas ele gostava muito dela e era simpático para todos nós.
Alguns dos outros - um deles era o chefe do tal grupo de craques de Boston contratados para jogar na equipa do Coach Bob - já não eram tão simpáticos. Com efeito, o médio importado era um rapaz que fazia o Ralph De Meo parecer um santo. O seu nome era Sterling Dove, embora lhe chamassem Chip, ou Chipper, e era um jovem brutal e ossudo, vindo de uma das mais elegantes escolas suburbanas de Boston.
- Esse Chip Dove tem estofo de chefe - disse o Coach Bob.
Eu pensei com os meus botões que ele tinha era estofo de comandante de uma polícia secreta qualquer. O Chipper Dove era loiro, de um loiro elegante, impecável e bonitinho; a nossa família tinha cabelos escuros, com excepção da Lilly, que não era bem loira, mas deslavada - toda ela. Até o cabelo era descorado.
Gostaria de ver o Chip Dove a jogar como médio sem uma boa linha avançada para o proteger - e a ter de efectuar uma grande quantidade de passes para conseguir alguns ensaios -, mas o gabinete de admissões tinha facilitado a tarefa ao Coach Bob; a equipa de futebol da Dairy nunca ficou para trás. Quando os jogadores apanhavam a bola, não a largavam, e o Dove raramente tinha de a passar. Embora esta fosse a primeira época vitoriosa de que qualquer de nós, os miúdos, nos lembrávamos, chegava a ser chato estar a vê-los a espezinhar o campo, a queimar tempo e a marcar de uma distância de três ou quatro jardas. Não eram brilhantes, mas simplesmente fortes, precisos e bem treinados; a defesa já não era tão forte - as outras equipas também marcavam pontos, mas não demasiadas vezes: raramente apanhavam a bola.
- Controle da bola - exultava o Coach Bob. - Desde a guerra, é a primeira vez que tenho uma equipa com controle de bola.
A minha única consolação na relação da Franny com o Chipper Dove era que este tinha um tal espírito de equipa que raramente estava em companhia da namorada sem o resto da linha defensiva da Dairy - e, frequentemente, com um ou dois avançados também. Nesse ano, os rapazes da equipa de futebol apoderaram-se do recinto da escola como uma horda invasora, e a Franny foi vista algumas vezes em companhia deles; o Dove sentiu-se atraído por ela - todos os rapazes, a não ser o Frank, pareciam sentir-se atraídos pela Franny. As raparigas desconfiavam da sua companhia; ela ofuscava-as, pura e simplesmente, e talvez não fosse lá muito boa amiga. A Franny estava sempre a conhecer mais gente, a fazer novos conhecimentos. Provavelmente, tinha demasiada curiosidade pelos estranhos para ser leal da maneira que as raparigas gostam que as suas amigas o sejam.
Não sei; nessa altura, eu estava a zero nesse assunto. Às vezes, a Franny arranjava-me um encontro, mas as raparigas eram geralmente mais velhas e a coisa não funcionava.
- Toda a gente acha que tu és giro - disse a Franny. - Mas tens az falar primeiro um bocadinho com as pessoas, pá! Não podes começar logo a atirar-te!
- Eu não começo logo a atirar-me - disse eu. - Aliás, nem nunca chego a essa altura.
- Pois claro! Tu ficas para ali sentado à espera que aconteça qualquer coisa! Para quê, se toda a gente sabe no que estás a pensar?
- Tu não sabes. Nem sempre.
- Ah, estás a pensar em mim? É isso que queres dizer? - perguntou ela.
Mas eu não respondi.
- Ouve, miúdo - insistiu a Franny. - Eu bem sei que pensas em mim, até de mais, se é isso que queres dizer...
Foi na Dairy que ela me começou a chamar "miúdo", embora eu fizesse um ano de diferença dela. Para minha vergonha, o nome pegou.
- Eh, miúdo - interpelou-me o Chip Dove nos duches do ginásio. - A tua irmã tem o cu mais bonito da escola. Ela anda aí com algum gajo?
- Com o Struthers - respondi eu, embora esperasse que não fosse verdade.
O Struthers, ao menos, era melhor do que o Dove.
- O Struthers?! - exclamou ele. - Aquele cretino daquele remador! Aquela besta só sabe remar!
- Ele tem força que se farta - disse eu.
Isto era bem verdade; os remadores têm todos muita força, e o Struthers era o mais forte de todos.
- E daí? Esse gajo é um nabo! - insistiu o Dove.
- A única coisa que sabe fazer é passar o dia inteiro a puxar pelos remos - disse o Lenny Metz, um defesa que estava sempre, mesmo nos duches, à ilharga do Chip Dove, do lado direito, como se estivesse à espera, até mesmo ali, que o outro lhe passasse a bola; era estúpido que nem um calhau, um autêntico matacão.
- Muito bem, miúdo - lançou o Chipper Dove. - Vais dizer à Franny que eu acho que o cu dela é o melhor cá da escola.
- E as mamas também! - gritou o Lenny Metz.
- Bom, não são más - concedeu o Dove. - Mas o cu é que é realmente de primeira.
- Também tem um sorriso bonito - continuou o Metz.
O Chip Dove revirou os olhos para mim, com ar cúmplice, como se me quisesse dizer que sabia muito bem que o Metz era estúpido e que ele era muito mas mesmo muito mais inteligente.
- Não te esqueças de te ensaboar, hem, Lenny? - disse o Dove, passando-lhe o sabonete escorregadio, que o Metz apertou instintivamente de encontro à barriga, numa espécie de abraço de urso.
Fechei o meu chuveiro, porque alguém maior do que eu se tinha metido debaixo do fluxo de água juntamente comigo. Afastou-me com um empurrão e voltou a ligar a água.
- Chega-te para lá, pá - disse ele suavemente.
Era um dos avançados que impedia os outros jogadores de atacar o Chipper Dove. O seu nome era Samuel Jones Jr. e chamavam-lhe Júnior Jones. Era negro como as noites que inspiravam a imaginação do meu pai; estava para continuar a jogar futebol universitário em Penn State, e passar a profissional em Cleveland, mas um dia houve alguém que lhe rebentou com um joelho.
Em 1956, tinha eu catorze anos, e o Júnior Jones era o maior edifício de carne humana que eu alguma vez tinha visto. Afastei-me para lhe deixar lugar, mas o Chipper Dove disse:
- Eh, Júnior, não conheces este miúdo?
- Não, nunca fomos apresentados - respondeu o Júnior Jones.
- É o irmão da Franny Berry - informou o Chip Dove.
- Muito prazer - disse o Júnior Jones.
- Olá - disse eu.
- O velho Coach Bob é avô do puto - continuou o Chip Dove. - Óptimo - disse o Júnior Jones.
Encheu a boca de espuma do delgado pedaço de sabonete que tinha na mão, inclinou a cabeça para trás e lavou a boca no fluxo de água do chuveiro. Naturalmente, pensei eu, fazia isto em vez de lavar os dentes.
- Estávamos a falar - insistiu o Dove - sobre aquilo de que gostávamos na Franny.
- O sorriso dela - disse o Metz.
- Também falaste nas mamas - disse o Chipper Dove. - E eu afirmei que ela tinha o melhor cu da escola. Não perguntámos aqui ao miúdo do que é que ele gosta mais na irmã, mas vamos pôr-te a questão a ti, Júnior.
O Júnior Jones tinha continuado a ensaboar-se até dissolver por completo o sabonete; a sua enorme cabeça estava coberta de espuma branca. Quando se passou por água debaixo do chuveiro, a espuma amontoou-se-lhe em redor dos calcanhares. Olhei para os meus pés e senti a presença próxima dos outros dois defesas da equipa do Coach Bob. Um era um rapaz de rosto bronzeado chamado Chester Pulaski, que passava demasiado tempo debaixo da lâmpada de arco - mesmo assim, tinha o pescoço quase em carne viva de tanta borbulha, e a testa também. Era fundamentalmente um defesa para fazer placagens, não por opção, mas simplesmente porque não corria tão depressa como o Lenny Metz. O Chester Pulaski era um pla-cador natural, pois tinha mais tendência para correr de encontro aos seus adversários do que para correr para longe deles. Ao pé dele, pairando junto a mim como um moscardo peganhento, estava um rapaz tão negro como o Júnior Jones; todavia, qualquer possível comparação entre eles não ia além da cor. Este último jogava por vezes como wide receiver(*), e quando saía da linha recuada era apenas para receber os passes curtos e seguros do Chipper Dove. Chamava-se Harold Swallow(**). Não era maior do que eu, mas tinha o condão de voar: os seus movimentos assemelhavam-se aos de uma andorinha, numa feliz coincidência com o seu nome; se alguém o placasse, corria o risco de se partir em dois, mas era difícil apanhá-lo: quando não estava a receber passes ou a voar para fora das formações, ele limitava-se a ficar escondido na linha atrasada, geralmente atrás do Chester Pulaski ou do Júnior Jones, bem protegido.
Estavam todos ali, à minha volta, e eu pensei que, se uma bomba explodisse naquele momento nos balneários, a época vitoriosa do Coach Bob acabaria ali. Do ponto de vista desportivo, pelo menos, eu seria o único que não faria falta a ninguém. Com efeito, eu não tinha a categoria da linha defensiva importada do Iowa Bob, ou do Júnior Jones, o tal avançado gigantesco. É claro que havia outros avançados, mas o Júnior Jones era o principal responsável por o Chipper Dove nunca ter sequer caído. Ele era ainda o principal responsável por existir sempre um buraco por onde o Chester Pulaski lançava o Lenny Metz; aliás, o Jones fazia um buraco suficientemente grande para eles poderem passar os dois lado a lado.
- Vá lá, Júnior, pensai - disse o Chip Dove, arriscadamente, pois o tom trocista da sua voz expressava dúvidas de que o Júnior Jones fosse capaz de pensar. - Do que é que tu gostas na Franny, Berry?
- Tem uns pezinhos bem bonitos - disse o Harold Swallow.
Toda a gente olhou para ele, mas o Swallow continuou a saltitar debaixo do duche sem olhar para ninguém.
- Tem uma pele linda - disse o Chester Pulaski, sem conseguir melhor do que chamar ainda mais a atenção para as suas borbulhas.
*. Expressão do futebol americano: elemento da linha avançada da equipa, escolhido para receber um passe para a frente. Em geral joga a algumas jardas de distância da formação ofensiva. (N. da T.)
**. Swallow - andorinha (N. da T.)
- Júnior! - chamou o Chip Dove. - Estou a falar contigo!
O Júnior Jones fechou o chuveiro. Ficou imóvel, a pingar, durante uns momentos. Ao pé dele, eu sentia-me como se fosse o Egg há alguns anos, quando ainda nem sabia andar.
- Para mim, não passa de uma rapariga branca como outra qualquer - disse o Júnior Jones.
E o seu olhar poisou durante um segundo em cada um de nós antes de se desviar.
- Mas parece-me boa rapariga - acrescentou ele, dirigindo-se a mim. Depois voltou a abrir o chuveiro e pôs-me debaixo dele - estava demasiado frio - e saiu dos balneários fazendo uma corrente de ar.
Fiquei impressionado com o facto de o Chipper Dove o provocar daquela maneira, mas estava ainda mais preocupado por causa da Franny - e tanto mais ainda que eu não podia fazer grande coisa para a ajudar.
- Aquele canalha do Chipper Dove anda para aí a falar do teu cu, das tuas mamas e até dos teus pés! - disse-lhe eu. - Cuidado com ele!
- Dos meus pés? - perguntou a Franny. - O que é que ele anda a dizer dos meus pés?
- Bom - respondi eu -, a verdade é que foi o Harold Swallow quem falou neles.
Toda a gente sabia que o Harold Swallow era maluco. Naquela época, quando alguém era maluco como o Harold Swallow, dizíamos que era maluco como um rato bailarino.
- O que é que o Chip Dove disse a meu respeito? - perguntou a Franny. - Só me interessa o que ele disse.
- A única coisa que lhe interessa a ele é o teu cu - disse-lhe eu. - E anda a falar nisso a toda a gente.
- Ora! Quero lá saber! Isso não me rala.
- Pois ele está bem interessado em saber. Porque é que não andas só com o Struthers?
- Eu digo-te porquê, filho - suspirou ela. - É que o Struthers é muito querido, mas é tão chato, tão chato, tão chato!
Inclinei a cabeça. Estávamos no patamar do primeiro andar daquilo que agora era apenas uma casa alugada, embora para nós continuasse a ser a casa da família Bates. A Franny já quase não vinha ao meu quarto. Cada um estudava no seu quarto, e encontrávamo-nos à porta da casa de banho para conversar. O Frank não parecia sequer utilizar a casa de banho. Todos os dias, no patamar para que davam os nossos quartos, a Mãe empilhava mais caixas de cartão e mais malas - em breve estaria tudo pronto para nos mudarmos para o Hotel New Hampshire.
- E também não percebo porque é que hás-de ser a chefe da claque, Franny! - disse eu. - Com tanta gente, logo tinhas que ser tu! Porquê?!
- Porque gosto - respondeu ela.
E foi depois de um dos treinos da claque, estava eu com a Franny não muito longe do nosso esconderijo nos fetos, onde já não íamos há muito tempo - agora éramos alunos da escola secundária -, que demos com a linha defensiva do Iowa Bob. Os tipos tinham-se metido com alguém no atalho que atravessava a mata e que era o caminho mais curto para chegar ao ginásio, e estavam a tratar-lhe da saúde no grande lamaçal cheio de marcas dos pitons das botas - marcas que mais pareciam buracos feitos por rajadas de metralhadora. Quando a Franny e eu vimos quem eles eram - os tipos da defesa - e que estavam a bater numa pessoa, desatámos a correr no sentido oposto. Aquele grupo estava sempre a bater em alguém. Mas não tínhamos percorrido mais de vinte e cinco metros quando a Franny me agarrou pelo braço, fazendo-me parar.
- Tenho a impressão que era o Frank - disse ela. - Eles apanharam o Frank.
É claro que tivemos de voltar para trás. Durante breves instantes, antes de vermos realmente o que se estava a passar, senti-me muito corajoso; senti a Franny agarrar-me na mão, e eu apertei a dela com força. A sua saia de chefe da claque era tão curta que as costas da minha mão lhe roçaram a coxa. Então ela largou-me a mão e deu um grito. Eu estava com os meus calções de desporto e senti as pernas ficarem geladas.
O Frank estava vestido com a farda da banda. Tinham-lhe despido completamente as calças cor de caca (com a lista de cinzento de morte ao longo da perna). As cuecas tinham sido puxadas até aos tornozelos. O casaco da farda estava arrepanhado para cima até ao meio do tórax; uma das dragonas prateadas tinha sido arrancada e estava caída na poça de lama junto à cara do Frank, e o seu barrete prateado com a correia castanha - que quase não se conseguia distinguir da lama - estava todo amachucado debaixo de um joelho do Harold Swallow. Este segurava num braço do Frank, completamente esticado, enquanto o Lenny Metz lhe imobilizava o outro. O Frank estava deitado de bruços, com os testículos enterrados bem no meio da poça de lama, com o seu espectacular rabo nu a sair e a entrar na água à medida que o Chipper Dove o empurrava com o pé, deixando-o depois vir ao de cima e empurrando-o para baixo outra vez. O Chester Pulaski, o tal defesa das placagens, estava sentado em cima da curva dos joelhos do Frank, prendendo-lhe os tornozelos debaixo dos braços.
- Vá, monta-te nela! - disse o Chipper Dove para o Frank. Empurrou o rabo do Frank, voltando a enterrá-lo na lama. Os pitons das botas deixavam-lhe pequenas marcas brancas no traseiro.
- Ouviste, meu fode-lama? - disse o Lenny Metz. - Faz o que te disseram, fode-a!
- Parem! - gritou-lhes a Franny. - O que é que estão a fazer?
De todos, quem pareceu ficar mais aflito ao vê-la foi o próprio Frank, embora nem o Chipper Dove conseguisse esconder a sua surpresa.
- Ora vejam só quem está aqui - escarneceu o Dove, mas percebia-se que estava só a ganhar tempo para pensar no que havia de dizer a seguir.
- Estamos só a dar-lhe aquilo que ele gosta - disse o Lenny Metz, dirigindo-se a mim e à Franny. - O Frank gosta de fornicar com poças de lama, não é verdade, Frank?
- Larguem-no - disse a Franny.
O Lenny tinha imensos complexos por causa das borbulhas, de modo que olhou só para mim e não para a Franny; naturalmente, era-lhe insuportável ver a pele fina e macia da minha irmã.
- O teu irmão gosta de rapazes - disse o Chipper Dove. - Não é verdade, Frank?
- E depois? - retorquiu este.
Estava furioso, mas não vencido; provavelmente já tinha cravado os dedos nos olhos deles e magoado um ou dois, aqui ou ali. O Frank nunca virava a cara à luta.
- A enfiá-la no cu de rapazinhos - disse o Lenny Metz. - Que nojo!
- É o mesmo que enfiá-la na lama - ajudou o Harold Swallow, dando mais a ideia de que preferia estar a correr num sítio qualquer do que a segurar no braço do Frank.
O Harold Swallow parecia sempre pouco à vontade - como se fosse atravessar pela primeira vez uma rua movimentada, à noite.
- Calma, ninguém se magoou! - disse o Chipper Dove.
Tirou o pé do rabo do Frank e deu um passo na nossa direcção. Nessa altura ocorreu-me o que o Coach Bob estava sempre a dizer sobre as lesões no joelho; encarei a possibilidade de dar um pontapé no joelho do Chip Dove antes que ele se atirasse a mim.
Não sabia o que é que a Franny estava a pensar, mas ela disse ao Dove:
- Quero falar contigo. A sós. Quero ficar sozinha contigo imediatamente.
O Harold Swallow desatou a rir, com umas gargalhadas tão nasaladas e tão estridentes como o canto de qualquer bailarino.
- Com certeza! Porque não?! - disse o Dove à Franny. - Claro que podemos falar a sós. Quando quiseres!
- Imediatamente - respondeu a Franny. - Ou falamos já ou nunca mais.
- Claro! É para já! - disse o Dove, olhando para os seus sequazes e revirando os olhos.
O Chester Pulaski e o Lenny Metz pareciam mortos de inveja, mas o Harold Swallow franzia as sobrancelhas para uma nódoa verde, de relva esmagada, que tinha no equipamento de futebol. Era a única mácula que existia nele: uma pequena nódoa verde, feita num momento em que ele tinha voado demasiado baixo; ou talvez estivesse de sobrolho franzido por o corpo estendido do Frank lhe tapar a vista dos pés da Franny.
- Deixa o Frank ir-se embora - disse a Franny ao Dove. - E manda os outros embora para o ginásio.
- Claro que o vamos deixar ir embora - retorquiu o Dove. - De qualquer modo, era o que íamos fazer, não era?
E fez um sinal para os seus defesas, como se estivessem em campo. Soltaram então o Frank. Este tropeçou ao levantar-se e tentou cobrir o baixo ventre, que estava todo empastado de lama. Vestiu-se furiosamente, sem uma palavra. Nesse momento, tive mais medo dele do que dos outros - fosse como fosse, estes estavam a fazer o que lhes tinha sido dito: iam a descer o trilho, a caminho do ginásio. O Lenny Metz voltou-se, olhando de soslaio, e fez um aceno. A Franny fez-lhe um gesto com o dedo médio. O Frank, ensopado, apoiou-se à Franny e a mim e começou a arrastar-se em direcção a casa.
- Não te esqueces de nada? - perguntou-lhe o Chip Dove.
Os pratos do Frank tinham ficado caídos nuns arbustos. Ele parou, aparentemente mais embaraçado por ter esquecido o seu instrumento musical do que humilhado com tudo o resto. A Franny e eu detestávamos os pratos do Frank. Acho que foi a farda - poder usar uma farda qualquer- que o fez entrar para a banda. Ele não era uma criatura sociável, mas quando as vitórias da equipa de futebol do Coach Bob fizeram ressuscitar a banda da escola - e nenhuma banda tinha desfilado em Dairy desde logo após a Segunda Guerra Mundial - o Frank não conseguiu resistir às fardas. Como não sabia tocar nada, deram-lhe os pratos. Qualquer outra pessoa ter-se-ia provavelmente sentido ridícula, mas o Frank não. Gostava de desfilar, sem fazer nada, esperando pelo seu grande momento de - TRÁS! - bater os pratos.
Não era como ter um músico na família, sempre a praticar, pondo-nos malucos com os guinchos, os clangores ou os tinidos de um instrumento. O Frank não "praticava" com os pratos. Por vezes, a horas insólitas, ouvíamos o estampido demolidor dos pratos - vindo do quarto do Frank, sempre fechado à chave -, e então a Franny e eu imaginávamos o nosso irmão, vestido com a sua farda, a marcar passo e a transpirar em frente do espelho, até já não suportar o ruído da sua própria respiração e, numa súbita inspiração, concluir o "desfile" de forma espectacular. Aquela barulheira repentina fazia o Sorrow ladrar, e provavelmente bufar-se. A Mãe deixava cair coisas. A Franny corria para o quarto do Frank e punha-se a bater à porta. Eu sentia aquele som de uma forma diferente: fazia-me lembrar a brusquidão de um tiro de espingarda e acontecia-me sempre pensar, durante um instante, que tínhamos sido surpreendidos pelo som do suicídio do Frank.
O Frank apanhou os pratos enlameados do meio dos arbustos onde os havia deixado cair ao ser atacado pelos defesas, fazendo-os tinir debaixo do braço.
- Para onde é que vamos? - perguntou o Chip Dove à Franny. - Para podermos estar sozinhos.
- Para um sítio que eu conheço - disse ela. - É perto daqui; é um local que eu conheço muito bem.
Percebi logo que se referia aos fetos - os nossos fetos. Que eu soubesse, a Franny não tinha levado lá nem sequer o Struthers. Achei que uma referência tão clara só podia ter por objectivo dizer-nos onde poderíamos encontrá-la para ir em seu auxílio, mas o Frank já se estava a encaminhar para casa, percorrendo o caminho sem dirigir uma palavra à Franny e sem sequer olhar para ela. O Chip Dove sorriu-me com os seus olhos azuis e frios como o gelo e disse-me:
- Pira-te daqui, puto!
A Franny agarrou-o pela mão e puxou-o para fora do caminho, mas eu alcancei o Frank num abrir e fechar de olhos.
- Meu Deus, Frank - disse eu. - Onde é que vais? Temos que a ajudar!
- Ajudar a Franny?
- Ela ajudou-te, não foi? Salvou-te o cu!
- E então? - perguntou ele, e começou a chorar. - Como é que sabes que ela quer a nossa ajuda? - continuou ele, a fungar. - Talvez ela queira mesmo ficar sozinha com ele.
Essa ideia era demasiado horrível para mim. Era quase tão insuportável como imaginar o Chip Dove a fazer coisas à Franny que ela não queria que lhe fizessem. Então agarrei o Frank pela dragona que lhe restava e arrastei-o atrás de mim.
- Acaba lá com a choradeira - disse eu, porque não queria que o Dove nos ouvisse chegar.
- Quero falar contigo, só falar! - ouvimos a Franny gritar. - Filho da puta! Podias ter sido porreiro, mas tiveste de te portar como um sacana! Merda! Detesto-te! Acaba com isso!
- Eu sei que tu gostas de mim - ouvimos o Chipper Dove dizer.
- Posso ter gostado - disse a Franny -, mas agora não. Nunca mais. Pelo tom de voz, já não parecia furiosa, mas de repente começou a chorar.
Quando o Frank e eu chegámos aos fetos, o Dove tinha os calções à altura dos joelhos. Estava com o mesmo problema para tirar os protectores das coxas que o Poindexter, aquele jogador gordo que eu e a Franny tínhamos estado a espiar enquanto cagava, anos atrás. A Franny estava vestida, mas parecia-me estranhamente passiva - sentada nos fetos (para onde ele a tinha empurrado, contou-me ela mais tarde), com as mãos a cobrir-lhe a cara. O Frank bateu com os seus malditos pratos com tanta força e tão inopinadamente que pensei que tivesse havido uma colisão entre dois aviões bem por cima de nós. Depois atirou com o prato da mão direita à cara do Chip Dove. Foi o golpe mais duro que o médio recebeu durante toda a época; pudemos verificar que não estava habituado. Além disso, encontrava-se manifestamente tolhido pela posição dos calções. Mal ele caiu no chão, atirei-me a ele. O Frank continuava a bater os pratos, como se aquilo fosse uma dança ritual que a nossa família costumasse executar antes de massacrar o inimigo.
O Dove arrancou-me de cima dele, com o mesmo método com que o velho Sorrow ainda atirava o Egg ao chão - com uma valente cabeçada -, mas o barulho infernal que o Frank estava a fazer parecia paralisar o médio.
Aparentemente, também despertou a Franny do seu momento de passividade. Ela lançou então o seu habitual e implacável golpe em direcção às .partes baixas do Chipper Dove, que esbracejou como alguém que está prestes a abandonar esta vida para todo o sempre; o Frank lembrou-se com certeza daquele característico esbracejar - eu, pelo menos, lembrava-me muito bem, desde as cenas com o Ralph De Meo. Ela deu-lhe um violentíssimo apertão, e quando o infeliz ainda estava deitado de lado sobre as agulhas de pinheiro, com os calções à roda dos joelhos, a Franny puxou-lhe para baixo o protector que, preso com um elástico, lhe cobria os órgãos genitais e largou-o de repente. Durante um breve segundo, o Frank e eu vimos as reduzidas e assustadas partes íntimas do Dove.
- Grande coisa! - gritou a Franny ao Dove. - Ainda se isso fosse alguma coisa de jeito!
Aí, eu e a Franny tivemos de impedir o Frank de continuar a bater os pratos. O barulho era tal que parecia poder matar as árvores e afugentar os animaizinhos da floresta. O Chipper Dove continuava deitado de lado, com uma mão a agarrar os testículos e a outra a tapar um ouvido por causa do barulho; o outro estava encostado ao chão.
Vi o capacete do Dove entre os arbustos e levei-o comigo, enquanto o deixávamos sozinho a recuperar. Ao passarmos pelo lamaçal, o Frank e a Franny encheram o capacete de lama até ficar a transbordar e atiraram-no fora.
- Merda e morte - disse a Franny, com ar sombrio.
O Frank não parava de bater os pratos, tal a excitação em que se encontrava.
- Pelo amor de Deus, Frank! - disse a Franny. - Acaba lá com isso!
- Desculpem - respondeu ele.
E quando estávamos mais perto de casa, acrescentou:
- Obrigado.
- Obrigada também. Obrigada aos dois - disse a Franny, apertando-me o braço.
- A verdade é que eu sou mesmo maricas, sabem? - murmurou o Frank.
- Acho que já sabia - disse a Franny.
- Tudo bem, Frank - disse eu.
O que é que um irmão pode dizer num caso destes?
- Não sabia como havia de vos dizer - continuou o Frank.
- Bem, esta foi uma maneira singular - respondeu a Franny.
Até o Frank se riu; tenho a impressão que foi a primeira vez que o ouvi rir desde que o Pai tinha descoberto o tamanho das sanitas do quarto andar no Hotel New Hampshire - a nossa "casa de banho para gnomos".
Às vezes, perguntávamos a nós mesmos se viver no Hotel New Hampshire seria sempre assim.
Mais importante do que isso era saber quem se iria hospedar no nosso hotel quando nos mudássemos para lá e o abríssemos ao público. À medida que esse dia se aproximava, o Pai tornava-se cada vez mais enfático nas suas teorias sobre o hotel perfeito. Tinha visto na televisão uma entrevista com o director de uma escola de gestão hoteleira na Suíça. Este disse que o segredo do êxito residia na rapidez com que o novo hotel conseguisse montar um sistema de reservas antecipadas.
"Reservas!", escreveu o Pai num pedaço de cartão que afixou no frigorífico da casa de família da mãe, prestes a ser abandonada.
"Bom dia, reservas!": era assim que nos cumprimentávamos ao pequeno-almoço para arreliar o Pai, mas ele estava a levar a coisa a sério.
- Riam, riam - disse-nos ele uma manhã -, mas já tenho duas!
- Duas quê? - perguntou o Egg.
- Duas reservas - respondeu o Pai, misteriosamente. Estávamos a contar abrir no fim-de-semana do jogo contra a Exeter. Sabíamos que isso seria a primeira "reserva". Todos os anos, a Dairy School concluía a sua miserável época de futebol perdendo com uma das grandes escolas, como Exeter ou Andover, por um resultado avantajado. E ainda era pior quando éramos nós a jogar fora, nos bem tratados relvados dessas escolas. Exeter, por exemplo, tinha um verdadeiro estádio. Tanto Exeter como Andover tinham equipamentos elegantes; nessa altura eram escolas só para rapazes, e os alunos iam às aulas de casaco e gravata. Alguns também iam de casaco e gravata aos jogos de futebol, mas mesmo quando estavam vestidos à vontade faziam mais vista do que nós. Ver alunos assim - limpos e garbosos - fazia-nos sentir uns desgraçadinhos quaisquer. E todos os anos a nossa equipa soçobrava em campo, evocando ainda mais a merda e a morte - e, quando o jogo acabava, era assim que todos nós nos sentíamos.
A Exeter e a Andover guerreavam-se mutuamente por nossa causa; convinha-lhes às duas jogar o penúltimo jogo do campeonato contra nós, pois isso funcionava como uma espécie de treino para o último jogo da época, que era entre aquelas duas equipas.
Mas na época vitoriosa do Iowa Bob jogávamos em casa, e nesse ano era com a Exeter. Vencêssemos ou não a partida, o campeonato estava ganho, mas a maioria das pessoas - até mesmo o meu pai e o Coach Bob - achavam que a equipa de Dairy desse ano tinha possibilidades de terminar o campeonato invicta, ganhando mesmo o último jogo à Exeter, uma equipa que a Dairy School nunca tinha vencido. Com essa época vitoriosa, até os antigos alunos estavam de volta às bancadas e o fim-de-semana do jogo com a Exeter foi declarado fim-de-semana de visita dos pais. O Coach Bob bem gostava de ter equipamentos novos para a sua defesa importada e para o Júnior Jones, mas o velho deliciava-se só de imaginar que a sua equipa esfarrapada cor de merda e morte podia bater em toda a linha os imaculados equipamentos brancos da Exeter com as suas letras e capacetes carmesins.
De qualquer forma, a Exeter não estava a fazer uma temporada famosa; lá ia ganhando com resultados médios de 5 a 3 - é certo que contra adversários geralmente em melhor forma do que quando os havíamos defrontado -, mas não era uma das suas grandes equipas. O Iowa Bob viu que tinha possibilidades, e o meu pai tomou a temporada futebolística como um bom augúrio para o Hotel New Hampshire.
O hotel ficou com a lotação esgotada para o fim-de-semana do jogo com a Exeter, com todos os quartos antecipadamente reservados por duas noites; as reservas de mesas no restaurante, para o sábado, também já haviam fechado.
A minha mãe estava preocupada com o chef, como o meu pai insistia em chamar-lhe; o chef em questão era uma canadiana da ilha do Príncipe Eduardo, onde tinha trabalhado durante quinze anos como cozinheira de uma grande família de armadores.
- Não é a mesma coisa cozinhar para uma família e cozinhar para um hotel - alertava a Mãe.
- Mas ela disse que era uma família grande - respondia o meu pai -, e nós temos um hotel pequeno.
- O que nós temos é um hotel cheio para o fim-de-semana do jogo com a Exeter - insistia a Mãe. - E um restaurante cheio.
A cozinheira chamava-se Sr.a Urick, e tinha como ajudante o marido, Max - um antigo marinheiro que fora também cozinheiro de bordo e a quem faltavam o polegar e o indicador da mão esquerda. Um acidente na cozinha de um navio chamado Miss Intrepid, contou-nos ele a nós, os miúdos, com uma brejeirice de marujo. Tinha-se distraído a imaginar o que a Sr.a Urick lhe faria se soubesse da sua aventura com certa intrépida dama de Halifax.
- Olhei logo para baixo - contou o Max (a Lilly não tirava os olhos da sua mão mutilada) - e lá estava o meu polegar e o outro dedo no meio das malditas cenouras, e o cutelo continuava a cortar como se tivesse vontade própria.
O Max retirou o que lhe restava da mão, como se quisesse escapar da lâmina, e a Lilly pestanejou. A Lilly tinha dez anos, embora não parecesse ter crescido grande coisa desde os oito. O Egg, que tinha seis anos, parecia menos frágil do que a Lilly - e muito pouco impressionável com histórias do Max Urick.
A Sr.a Urick'não contava histórias: passava horas a olhar para problemas de palavras cruzadas, sem preencher os quadrados. Costumava pendurar a roupa lavada do Max na cozinha, que era o antigo vestiário das raparigas do Thompson Female Seminary - por conseguinte, uma divisão familiarizada com a secagem de meias e cuecas. A Sr.a Urick e o meu pai tinham decidido que as ementas mais adequadas para servir no Hotel New Hampshire seriam à base de pratos familiares. Para ela, isto significava dois grandes assados e um cozido da Nova Inglaterra e duas espécies de empadão - e às segundas-feiras uma série de empadas de carne feitas com restos de carne assada. Os almoços volantes seriam à base de sopas e de carnes-frias.
Os pequenos-almoços, scones, biscoitos, bolinhos e outras coisas no género.
- Nada de fantasias, mas tudo simples e bom - costumava dizer a Sr.a Urick, sem nenhum sentido de humor.
Ela fazia-nos lembrar, a mim e à Franny, o tipo de nutricista de colégio interno que conhecíamos da Dairy School, que acreditava firmemente que a comida não devia ser uma ocasião de divertimento mas algo de essencial do ponto de vista moral. Compartilhávamos as angústias da Mãe sobre a cozinha - tanto mais que era o que nós também íamos comer que estava em causa -, mas o Pai estava certo de que a Sr.a Urick se iria sair bem.
Quis um quarto na cave, "para estar perto da minha cozinha", segundo as suas próprias palavras; se calhar pensava que os panelões iam ficar a fervilhar em fogo brando durante toda a noite. O Max Urick também tinha um quarto só para ele, mas no quarto andar. Não havia elevador, e o meu pai ficou satisfeito por poder aproveitar assim um quarto no último piso. Os aposentos do quarto andar eram os tais dos lavatórios e das retretes de tamanho infantil, mas dado que o Max se tinha servido durante tantos anos da apertada latrina do Miss Intrepid não se sentiu insultado pelas dimensões liliputianas do equipamento sanitário.
- É bom para o coração - explicou-nos o Max. - Faz bem à circulação subir estas escadas todas - dizia ele, enquanto dava fortes palmadas com a mão mutilada no peito cinzento e peludo.
Mas o que nós achávamos é que o Max andaria o que fosse preciso para ficar tão longe quanto possível da Sr.a Urick, nem que fosse a subir escadas - nem que fosse preciso urinar e lavar-se num sítio qualquer. Ele afirmava ser "jeitoso de mãos", e quando não fosse preciso ajudar a Sr.a Urick na cozinha era suposto ocupar-se com pequenos consertos.
- Eu sei consertar tudo, desde sanitas a fechaduras! - afirmava ele. Sabia dar estalos com a língua, produzindo um som semelhante ao rodar da chave numa fechadura, ou imitar o aterrador gorgolejar das minúsculas sanitas do quarto piso do Hotel New Hampshire ao expedirem o seu conteúdo para uma pavorosa e interminável viagem.
- Qual é a segunda reserva? - perguntei ao Pai.
Sabíamos que ia haver um fim-de-semana para a entrega dos diplomas da Dairy School, na Primavera; e, eventualmente, um fim-de-semana com um grande jogo de hóquei, no Inverno. Mas as poucas visitas (se bem que regulares) dos pais dos alunos da Dairy School dificilmente exigiam um sistema de reservas.
- É para a entrega dos diplomas, não é? - alvitrou a Franny. Mas o Pai disse que não com a cabeça.
- Um casamento enorme! - gritou a Lilly. Ficámos todos a olhar para ela.
- Que casamento? - perguntou o Frank.
- Não sei - disse a Lilly. - Mas uma coisa em grande. O maior casamento da Nova Inglaterra.
Nunca percebemos onde é que a Lilly ia buscar aquelas ideias; a Mãe olhou para ela com ar preocupado e depois falou, dirigindo-se ao Pai:
- Deixa-te de segredos. Todos nós queremos saber qual é a segunda reserva.
- É só para o Verão - disse o Pai. - Temos muito tempo. Precisamos de nos concentrar no fim-de-semana da Exeter. Cada coisa a seu tempo.
- Naturalmente é algum congresso de cegos - aventou a Franny para mim e o Frank quando de manhã nos dirigíamos para as aulas.
- Ou um encontro de leprosos - sugeri eu.
- Não vai haver problema - disse o Frank, preocupado.
Nunca mais utilizáramos o caminho através da mata por trás do campo de treinos. Atravessávamos o campo de soccer(*), atirando às vezes os caroços das maçãs para dentro das balizas, ou então metíamos pelo caminho principal que passava por entre os dois dormitórios. A nossa preocupação era evitar os defesas do Iowa Bob; nenhum de nós queria encontrar o Chipper Dove quando estivéssemos sozinhos. Não havíamos contado nada ao Pai do incidente - o Frank pedira-nos para não o fazermos.
- A Mãe já sabe - disse-nos o Frank. - Quer dizer, já sabe que eu sou homossexual.
Isto só nos surpreendeu, a mim e à Franny, durante um breve momento; quando pensámos melhor, vimos que era perfeitamente lógico. Se tivéssemos um segredo, a Mãe saberia guardá-lo; se quiséssemos um debate democrático e uma discussão familiar que podia durar horas ou mesmo semanas - até talvez meses -, então era melhor apresentar a questão ao Pai. Ele não tinha muita paciência para segredos, apesar de já estar a guardar um há muito tempo sobre a segunda reserva.
- Vai ser um encontro de todos os grandes escritores e artistas da Europa - disse a Lilly.
E eu e a Franny dávamos pontapés um ao outro por baixo da mesa e revirávamos os olhos, que pareciam querer dizer: a Lilly é meia esquisita, o Frank é homossexual e o Egg só tem seis anos. E os nossos olhos diziam: estamos os dois sozinhos nesta família, só nós os dois.
- Vai ser um circo - disse o Egg.
- Como é que sabes? - disparou-lhe o Pai.
- Oh, não, Win! - exclamou a Mãe. - É mesmo um circo?
- É, mas é um circo pequeno - confirmou o Pai.
- Não são por acaso os herdeiros do P. T. Barnum? - perguntou o Iowa Bob.
- Claro que não - respondeu o Pai.
- São os Kings Brothers! - gritou o Frank, que tinha um póster no quarto com os Kings Brothers num número com tigres.
*. Soccer- nome dado nos EUA ao football association em distinção do futebol americano, semelhante ao râguebi. (N. da T.)
- Não, é mesmo um circo pequeno - disse o Pai. - Uma espécie de circo particular.
- Um desses de segunda ordem, queres tu dizer - lançou o Iowa Bob.
- Não é dos que têm animais esquisitos, pois não? - perguntou a Franny.
- Claro que não - disse o Pai.
- O que é isso de "animais esquisitos"? - perguntou a Lilly.
- Cavalos com pernas a menos - disse o Frank. - Ou uma vaca com duas cabeças: uma à frente, outra nas costas.
- E onde é que viste isso? - perguntei-lhe eu.
- Trazem tigres e leões? - quis saber o Egg.
- Assim vão para o quarto andar - disse o Iowa Bob.
- Não, ponham-nos com a senhora Urick! - sugeriu a Franny.
- Win! - disse a minha mãe. - Que circo é?
- Bem vês, eles podem usar o terreno - disse o Pai. - Podem armar as tendas no antigo campo de jogos, comer no restaurante e, pelo menos alguns, podem ficar no hotel, embora a maioria dessas pessoas tenha caravanas, acho eu.
- Que animais é que eles trazem? - perguntou a Lilly.
- Bem - respondeu o Pai -, penso que não devem ter muitos animais. É um circo pequeno. Provavelmente com poucos animais. Devem ter alguns números especiais, mas não sei com que animais.
- Que números! - perguntou o Iowa Bob.
- Naturalmente é um desses circos horríveis - disse a Franny. - Do género de ter cabras, galinhas e outros animais que toda a gente vê todos os dias, mais umas renas idiotas e uma gralha palradora. Mas nada de interessante, nem nada de exótico.
- São precisamente os bichos exóticos que eu não gostaria de ver por aqui - disse a Mãe.
- Mas que números é que eles fazem? - insistiu o Iowa Bob.
- Não sei bem - respondeu o Pai. - Talvez trapézio voador, não?
- Não sabes que animais é que trazem nem os números que vão exibir. Afinal, o que é que tu sabes?
- Sei que é um circo pequeno - disse o Pai - e que querem reservar alguns quartos e talvez metade do restaurante. Descansam à segunda-feira.
- Descansam às segundas? - admirou-se o Iowa Bob. - Mas por quanto tempo são as reservas?
- Bem... - hesitou o Pai.
- Win! - exclamou a Mãe. - Quantas semanas vão eles cá ficar?
- Todo o Verão - respondeu o Pai.
- Uau! - gritou o Egg. - Viva o circo!
- Um circo - disse a Franny. - Um maluco dum circo!
- Com números cretinos e animais cretinos - acrescentei eu.
- Com estranhos números e estranhos animais - corrigiu o Frank.
- É, e tu deves dar-te bem com eles, Frank - largou-lhe a Franny.
- Parem com isso! - interrompeu a Mãe.
- Não há motivo para ficarem preocupados - disse o Pai. - Trata-se apenas de um pequeno circo particular.
- Como é que se chama? - perguntou a Mãe.
- Bem... - disse o Pai.
- Não sabes como se chama? - perguntou o Coach Bob.
- Claro que sei! - respondeu o Pai. - Chama-se Fritz's Act(*).
- Fritz's Act? - admirou-se o Frank.
- Que número é esse? - perguntei eu.
- Bem... - respondeu o Pai. - É apenas um nome. Com certeza haverá mais de um número.
- O nome tem um ar moderno - disse o Frank.
- Moderno, Frank? - estranhou a Franny.
- Tem um ar extravagante - disse eu.
- O que é extravagante? - quis saber a Lilly.
- É algum animal? - quis saber o Egg.
- Não interessa - interrompeu a Mãe.
- Acho que é melhor concentrarmo-nos no fim-de-semana da Exeter - disse o Pai.
- Sim, e mudarmo-nos todos para o hotel, vocês e eu - corroborou o Iowa Bob. - Há muito tempo para tratar do Verão.
- O Verão está todo reservado? - perguntou a Mãe.
- Estás a ver? - disse o Pai. - Isto é que é negócio! O Verão já está arrumado, mais o fim-de-semana da Exeter. Cada coisa a seu tempo. O que há a fazer agora é tratar da mudança.
A mudança fez-se uma semana antes do jogo com a Exeter. Foi no fim-de-semana em que os craques do Coach Bob festejaram nove ensaios - a que correspondeu a sua nona vitória, contra nenhuma derrota. A Franny não foi ver o jogo; tinha decidido deixar de ser chefe da claque. Nesse sábado, a Franny e eu ajudámos a Mãe a levar as últimas coisas que os camiões das mudanças não tinham levado para o Hotel New Hampshire; a Lilly e o Egg foram com o Pai e o Coach Bob ao jogo; o Frank, é claro, estava com a banda.
O hotel tinha trinta quartos distribuídos por quatro andares, e a nossa família ocupava sete na esquina sueste, em dois pisos. Um quarto na cave era ocupado pela Sr.a Urick, o que, adicionado ao quartito do Max no quarto piso, deixava vinte e dois quartos para os hóspedes. Mas a chefe das criadas de quarto e de mesa, a Ronda Ray, utilizava uma divisão do segundo andar durante o dia, para recobrar forças, como ela tinha dito ao meu pai. E havia mais dois quartos da esquina sudeste, no terceiro andar, mesmo por cima de nós, reservados para o Iowa Bob. Isto reduzia os quartos disponíveis para dezanove, dos quais apenas treze tinham casa de banho privativa;
*. Fritz's Act - o número do Fritz. (N. da T.)
os restantes seis tinham das tais instalações para pigmeus.
- É mais do que suficiente - disse o Pai. - Isto é uma cidade pequena e pouco conhecida.
Era talvez mais do que suficiente para o tal circo chamado Fritz's Act, mas estávamos preocupados com a perspectiva de fazer face à enchente que se anunciava para o fim-de-semana da Exeter.
Nesse sábado em que nos mudámos, a Franny descobriu o sistema de intercomunicadores e ligou os botões de "Recepção" de todos os quartos. Estes estavam vazios, é claro, mas tentámos imaginar como seria ouvirmos os primeiros hóspedes a instalar-se. Aquele "telegrasnador" - como o Pai lhe chamava - era mais um legado do Thompson Female Seminary, graças ao qual a directora podia anunciar exercícios de incêndio às diferentes salas de aula e os professores que se encontrassem fora da sua sala podiam ouvir se as miúdas se estavam a portar mal. O Pai achou que conservando o sistema de intercomunicadores não era necessário estar a equipar os quartos com telefone.
- Os hóspedes podem pedir o que quiserem pelo intercomunicador -explicou o Pai -, e nós, pelo nosso lado, podemos acordá-los para o pequeno-almoço. Se pretenderem telefonar, têm sempre a possibilidade de o fazer na recepção.
Mas é claro que o "telegrasnador" também permitia escutar os hóspedes nos seus quartos.
- Eticamente, não podemos fazê-lo - disse o Pai. Mas a Franny e eu mal podíamos esperar.
Mas nesse sábado em que nos mudámos ainda não tínhamos telefone na recepção nem nos alojamentos da nossa família. Também não tínhamos roupa de cama, pois quem ia tratar da nossa roupa de cama era a empresa contratada para operar a lavandaria do hotel, que só começava a trabalhar na segunda-feira. A Ronda Ray também só pegava ao serviço na segunda-feira, mas estava lá - no Hotel New Hampshire -, a arranjar o seu quarto de dia, quando nós chegámos.
- Preciso mesmo desta divisão, sabe? - disse ela à minha mãe. - Não posso fazer as camas de manhã, depois de ter servido os pequenos-almoços e antes de servir os almoços, sem ter um sítio para me estender. E entre o almoço e o jantar, se não me deito, começo a sentir-me toda agoniada. E se a senhora vivesse onde eu vivo, também não havia de querer ir a casa.
A Ronda Ray vivia em Hampton Beach, onde servia à mesa e fazia as camas dos veraneantes. Andava à procura de um lugar que lhe permitisse trabalhar durante todo o ano, para continuar a sua carreira na hotelaria - e, na opinião da minha mãe, de uma maneira de sair de Hampton Beach para sempre. Tinha mais ou menos a idade da minha mãe e afirmava lembrar-se das actuações do Urrr no casino. Mas nunca tinha visto a sua exibição de dança no salão de baile; do que se recordava melhor era do coreto e do número chamado "À Procura de Emprego". - Mas nunca acreditei que fosse um urso de verdade - contou-nos ela, à Franny e a mim, enquanto a víamos arrumar as suas coisas, que trazia numa pequena mala, no quarto de dia. - Ou melhor - acrescentou a Ronda Ray -, nunca pensei que alguém pudesse achar graça a ver despir um urso a sério.
Ficámos a pensar por que motivo estaria ela a tirar camisas de noite da mala se não tencionava dormir naquele quarto de dia. A Ronda despertou imediatamente a curiosidade da Franny, e eu achava-a mesmo exótica. Tinha o cabelo pintado; não sei bem de que cor era, porque não era uma verdadeira cor. Não era ruivo, mas também não era loiro; era da cor do plástico ou do metal, e eu perguntava a mim mesmo como seria ele ao tacto. A Ronda Ray tinha um corpo que eu imaginava já ter sido tão vigoroso como o da Franny, mas que se tinha tornado mais volumoso - continuava robusto, mas como que inchado. Era difícil dizer a que é que ela cheirava, embora a Franny - depois de termos deixado a Ronda - tivesse tentado.
- Ela pôs perfume no pulso há dois dias - disse a Franny. - Estás a perceber?
- Estou - respondi eu.
- Mas nessa altura ela não trazia relógio de pulso: quem andava com ele era o irmão ou o pai. De qualquer forma, era um homem, e suava muito.
- É verdade.
- Então a Ronda pôs o relógio, com a pulseira suada por cima do perfume, e usou-o durante um dia enquanto fazia as camas.
- Que camas?
A Franny reflectiu um momento.
- Camas onde dormiram pessoas muito estranhas - acabou ela por dizer.
- Foi o circo chamado Fritz's Act que dormiu lá!
- Exacto.
- Todo o Verão! - dissemos em uníssono.
- Nem mais - continuou a Franny. - E o que nós cheirámos quando cheirámos a Ronda era ao que cheirava a correia do relógio dela depois de tudo isso.
Aquilo dava uma ideia bastante aproximada do perfume da Ronda Ray, mas eu achava que ela cheirava ligeiramente - apenas ligeiramente - melhor do que isso. Pensei nas meias da Ronda Ray, que ela pendurava no armário do quarto de dia; pensei que se cheirasse mesmo no sítio da curva das pernas, nas meias que ela estivesse a usar, conseguiria captar-lhe a sua verdadeira fragrância.
- Sabes porque é que ela as usa? - perguntou-me a Franny.
- Não.
- Um tipo qualquer entornou-lhe café a ferver para cima das pernas, de propósito, para a queimar.
- Como é que sabes?
- Vi as cicatrizes. E ela contou-me tudo.
Atirámo-nos então aos controles do "telegrasnador"; desligámos os intercomunicadores de todos os quartos e ficámos à escuta do quarto da Ronda Ray. Ela estava a cantarolar por entre os dentes. Depois ouvimo-la acender um cigarro. Pusemo-nos a imaginar que barulho é que ela faria se estivesse com um homem.
- Deve fazer bastante - opinou a Franny.
Ouvíamos a respiração da Ronda à mistura com os ruídos do intercomunicador - era uma aparelhagem antiga que funcionava com a corrente fornecida por uma bateria de automóvel.
Quando a Lilly, o Egg e o Pai voltaram do jogo, a Franny e eu pusemos o Egg no pequeno monta-cargas e fizemo-lo subir e descer os quatro pisos até o Frank nos denunciar e o Pai nos dizer que aquele elevador era para transportar roupa, comida e outras coisas - mas não pessoas - para os quartos.
O Pai explicou que o monta-cargas não oferecia segurança. Se largássemos o cabo, o monta-cargas cairia a uma velocidade apenas determinada pela lei da gravidade - ou seja, demasiado depressa, se não para uma coisa, pelo menos para uma pessoa.
- Mas o Egg é tão levezinho - argumentou a Franny. - Quer dizer, nós não íamos fazer o mesmo se fosse com o Frank.
- Vocês não vão fazer coisa nenhuma! - disse o Pai.
Depois a Lilly desapareceu e tivemos de suspender o desfazer das malas durante quase uma hora para a procurarmos. Estava sentada na cozinha com a Sr.a Urick, muito quieta e cheia de atenção a ouvir a história das várias maneiras como esta tinha sido castigada quando era pequena. Se se esquecesse de se lavar antes do jantar, cortavam-lhe o cabelo em tesouradas irregulares, para a humilhar; se dissesse palavrões, mandavam-na ficar de pés descalços na neve; se "fanasse" comida, era obrigada a engolir uma colher de sopa de sal.
- Se tu e a Mãe se forem embora - disse a Lilly ao Pai -, não nos vão deixar com a Sr.a Urick, pois não?
O Frank ficou com o melhor quarto, e a Franny refilou por ter de compartilhar o dela com a Lilly. O meu comunicava com o do Egg por um vão de porta sem a porta. O Max Urick desmontou o seu intercomunicador; quando ligávamos para o quarto dele, só se ouviam os ruídos da estática - como se o velho marinheiro ainda estivesse no mar alto. O quarto da Sr.a Urick borbulhava como os panelões em cima do fogão - um som de uma vida mantida a fervilhar regularmente.
Estávamos tão ansiosos pela vinda de mais hóspedes e pela abertura do Hotel New Hampshire que não parávamos quietos.
O Pai tentou acalmar-nos com dois exercícios de incêndio, para ver se nos cansava, mas isso só contribuiu para nos excitar ainda mais e para aumentar a nossa vontade de acção. Quando escureceu, apercebemo-nos que a electricidade ainda não tinha sido ligada, e pusemo-nos a jogar às escondidas, de vela na mão, pelos quartos vazios.
Eu fui-me esconder no quarto de dia da Ronda Ray, no segundo andar. Apaguei a vela e, graças ao meu olfacto, descobri as gavetas onde ela arrumava as camisas de noite. Ouvi o Frank gritar no terceiro andar - tinha tocado com a mão numa planta, no escuro - e o que só podia ser o riso da Franny na verdadeira câmara de eco que era o vão da escada.
- Brinquem tudo agora! - vociferou o Pai, do nosso apartamento. - Quando já houver hóspedes, acabaram-se as correrias pelo hotel!
A Lilly descobriu-me no quarto da Ronda Ray e ajudou-me a arrrumar as roupas dela de novo na cómoda. O Pai apanhou-nos a sair do quarto da Ronda; levou a Lilly para o nosso apartamento e meteu-a na cama; estava irritado porque tinha acabado de telefonar para a companhia da electricidade a queixar-se da falta de luz e descobrira que os telefones também não estavam ligados. A Mãe havia-se oferecido para dar um passeio com o Egg e fazer a chamada da estação dos caminhos de ferro.
Fui procurar a Franny, mas ela tinha voltado para o vestíbulo sem que ninguém a visse; ligou todos os intercomunicadores para "transmissão" e emitiu uma informação para todo o hotel.
- Escutem com atenção! - trovejou a Franny. - Escutem com atenção! Todos fora da cama para um controle sexual!
O que seria um controle sexual? - pensava eu enquanto descia as escadas em direcção ao vestíbulo.
Felizmente, a mensagem não chegou até ao Frank; ele estava escondido no cubículo de arrumações do último andar, onde não havia intercomunicador. A comunicação chegou-lhe amortecida pela distância, e ele provavelmente pensou que o Pai estava a tentar acalmar-nos com mais um alerta de incêndio. Com a pressa de sair do cubículo de arrumações, o Frank tropeçou num balde e caiu de gatas, batendo com a cabeça no chão enquanto uma das mãos tocava, desta vez, num rato morto.
Ouvimo-lo gritar de novo; o Max Urick abriu a porta do seu quarto, ao fundo do patamar do quarto andar, e desatou aos berros como se tivesse voltado ao mar e estivesse a ir ao fundo.
- Acaba com essa guinchadeira ou penduro-te pelos dedos mindinhos na escada de incêndio!
Isto pôs o Frank de mau humor; declarou que as nossas brincadeiras eram umas "criancices" e foi para o seu quarto. A Franny e eu ficámos a contemplar o Elliot Park da grande janela de gaveto do terceiro andar; era ali que ficaria instalado o Coach Bob, mas ele estava nesse momento no banquete da Secção Desportiva a festejar tudo menos o último jogo - que ainda não tinha sido disputado.
O Elliot Park estava caracteristicamente deserto, e as estruturas abandonadas dos campos de jogos perfilavam-se como árvores mortas na claridade baça do único candeeiro. Ainda se podiam ver ali alguns restos de materiais de construção, algumas máquinas e a barraca dos trabalhadores, mas o Hotel New Hampshire estava agora pronto, excepto no que se referia aos espaços verdes, e a única máquina que ainda estava a ser utilizada, nos últimos dias, era a retro-escavadora, que jazia junto ao caminho de lajedo da frente como um dinossauro a morrer de inanição. Havia ainda alguns ulmeiros que tinham de ser arrancados e uns quantos buracos a tapar em torno do novo parque de estacionamento. Uma claridade suave e acetinada provinha das janelas do nosso apartamento, onde o Pai estava a meter a Lilly na cama, à luz de velas, e o Frank com certeza a ver-se ao espelho com a farda da banda.
A Franny e eu vimos o carro-patrulha entrar no Elliot Park - como um tubarão a cruzar águas abandonadas em busca de uma refeição improvável. Começámos a discutir se o velho Howard Tuck ia "prender" a Mãe e o Egg quando voltassem da estação, e a imaginar que a luz das velas no Hotel New Hampshire ia convencer o polícia de que o edifício estava assombrado pelos fantasmas de antigas alunas do Thompson Female Seminary. Mas o Howard parou o carro atrás do maior dos montes de entulho das obras e desligou o motor e as luzes.
Podíamos ver o morrão incandescente do charuto dele brilhando como se fosse um olho rubro e coruscante de um animal selvagem dentro do carro às escuras.
Observámos a Mãe e o Egg a atravessar o campo de jogos, passando despercebidos. Saíram da escuridão e atravessaram por breves instantes a zona fracamente iluminada antes de mergulharem de novo nas trevas, como se a sua passagem pela Terra fosse assim breve e imersa em sombras; senti a angústia aguilhoar-me o peito ao ver aquele quadro, e dei pela Franny a estremecer ao meu lado.
- Vamos acender todas as luzes - sugeriu ela -, em todos os quartos.
- Mas não há corrente.
- Não há agora, parvo. Mas, se ligarmos todos os interruptores, o hotel vai ficar todo iluminado quando eles ligarem a electricidade.
Aquilo pareceu-me uma óptima ideia, e ajudei-a a pô-la em prática - não escaparam nem as luzes do patamar para onde dava o quarto do Max Urick nem os projectores ao ar livre que um dia viriam a iluminar uma esplanada no prolongamento do restaurante mas que por agora incidiriam sobre a escavadora e sobre um capacete de metal amarelo pendurado pela correia numa pequena árvore que a escavadora tinha poupado. O trabalhador a quem pertencia o capacete parecia ter partido para sempre.
O capacete abandonado fazia-me lembrar o Struthers - bronco e resistente. Eu sabia que a Franny não o via há algum tempo. Sabia também que ela não tinha nenhum namorado favorito, e aparentemente não gostava de falar disso. A Franny era virgem, conforme me contou, não porque o quisesse, mas porque não havia nenhum rapaz na Dairy School que (as suas palavras foram essas) "o merecesse".
- Não quero dizer com isto que me ache melhor do que os outros - explicou-me ela -, mas não quero que seja um parvalhão qualquer a fazê-lo às três pancadas, e também não quero que seja alguém que depois se ria de mim. É muito importante, John. Sobretudo a primeira vez.
- Porquê?
- Porque sim. É por ser a primeira vez. É algo que nos acompanha toda a vida.
Tinha as minhas dúvidas; esperava que as coisas não fossem assim. Pensei na Ronda Ray: o que é que a primeira vez teria significado para ela? Pensei nas suas camisas de dormir, com o mesmo odor - ambíguo - do pulso debaixo da correia do relógio ou da curva das pernas.
O Howard Tuck e o carro-patrulha não saíram do mesmo sítio enquanto a Franny e eu estivemos a ligar todos os interruptores. Esgueirámo-nos lá para fora; quando a luz viesse queríamos ver todo o hotel a resplandecer. Trepámos para o assento do condutor da escavadora e ficámos à espera. O Howard Tuck estava tão quieto no carro da polícia que parecia estar ali à espera da reforma. Aliás, o Iowa Bob até gostava de dizer que o Howard Tuck parecia estar sempre "às portas da morte".
Quando o polícia rodou a chave de ignição do carro, o hotel iluminou-se como se tivesse sido ele a acender as luzes. Quando os faróis do carro-patrulha cortaram a noite, todas as luzes do hotel brilharam ao mesmo tempo; e o veículo deu um solavanco para a frente e estacou - como se a luz deslumbrante do edifício tivesse encandeado o condutor e feito com que o seu pé escorregasse do acelerador ou da embraiagem. De facto, a visão do Hotel New Hampshire resplandecente de luz no mesmo instante em que pôs o carro a trabalhar tinha sido um choque demasiado grande para o velho Howard Tuck. A verdade é que a sua vida no Elliot Park havia sido bastante menos luminosa - apenas algumas práticas sexuais ocasionalmente surpreendidas, uns adolescentes mais inexperientes apanhados pelo projector do carro-patrulha e um ou outro vândalo a tentar fazer os habituais estragos no Thompson Female Seminary. Uma vez, os alunos da Dairy School roubaram uma vaca da escola e ataram-na a uma das balizas do campo de hóquei.
O que o Howard Tuck viu quando pôs o carro a trabalhar foi um choque de luz de quatro andares - o que poderia ter sido a imagem do Hotel New Hampshire no preciso momento em que fosse atingido por uma bomba. O rádio do Max Urick começou a vomitar música tão alto que ele berrou de susto; um relógio de fogão começou a tocar na cozinha subterrânea da Sr.a Urick; a Lilly desatou a chorar durante o sono; o Frank adquiriu vida no espelho escuro; o Egg, aflito com o zumbido da electricidade que sentia vibrar por todo o hotel, tapou os ouvidos, como se esta súbita irrupção de luz tivesse de ser acompanhada por uma explosão. E o velho polícia, o Howard Tuck, sentiu o pé escorregar da embraiagem no momento em que o seu coração parou e ele deixou um mundo onde os hotéis podiam ganhar vida com tamanha facilidade.
A Franny e eu fomos os primeiros a chegar ao carro-patrulha. Vimos o corpo do polícia caído sobre o volante, enquanto a buzina não parava de tocar. O Pai, a Mãe e o Frank saíram a correr do hotel, como se o carro da Polícia estivesse a dar o alarme para outro exercício de incêndio.
- Santo Deus, Howard, estás morto! - disse o Pai ao velho, sacudindo-o.
- Não fizemos de propósito, não fizemos de propósito - disse a Franny.
O Pai bateu no tórax do velho Howard Tuck e estendeu-o ao comprido no assento dianteiro do carro; depois deu-lhe outra pancada no peito.
- Vão chamar alguém! - ordenou o Pai; mas não havia nenhum telefone a funcionar na nossa incrível casa.
O Pai olhou para o amontoado de fios, interruptores, auscultadores e bocais que equipavam o carro-patrulha.
- Alô! Alô! - disse ele para uma coisa qualquer, ao mesmo tempo que premia outra. - Como é que funciona esta maldita porcaria? - gritou ele.
- Quem fala? - perguntou uma voz saída das entranhas do carro.
- Mandem uma ambulância ao Elliot Park! - disse o meu pai.
- Chamada de Halloween(*)? - perguntou a voz. - Há algum problema? Alô! Alô!
- Santo Deus! É o Halloween - exclamou o Pai. - Maldita máquina! - gritou ele, começando a dar murros no tablier com uma mão, enquanto com a outra deu uma pancada forte no peito imóvel do Howard Tuck.
- Podemos arranjar uma ambulância! - disse a Franny. - A ambulância da escola!
E atravessámos os dois a correr o Elliot Park, que agora estava todo iluminado pela luz estonteante que provinha do Hotel New Hampshire.
- Com o caneco! - disse o Iowa Bob quando o encontrámos na entrada do parque, que dava para a Pine Street.
Estava a olhar para o hotel todo iluminado como se este tivesse aberto sem ele saber. À luz artificial, o Coach Bob parecia muito mais velho, mas penso que no fim de contas parecia ter a idade que tinha: um avô e um treinador prestes a reformar-se, a quem só faltava o último jogo.
- O Howard Tuck teve um ataque cardíaco! - disse-lhe eu.
A Franny e eu corremos para a Dairy School - que estava sempre preparada para as suas próprias partidas, capazes de provocar ataques cardíacos, especialmente na noite de Halloween.
*. O Halloween é a véspera do Dia de Todos os Santos. Nos EUA, esta data (31 de Outubro) é comemorada com festejos e há o costume de as crianças pregarem partidas durante a noite. ( N. da T.)
A FRANNY PERDE UM COMBATE
No Halloween, o Departamento da Polícia da cidade de Dairy enviou o velho Howard Tuck para o Elliot Park, como de costume, mas a Polícia Estadual mandou dois carros patrulhar o recinto da Dairy School, e o serviço de segurança da escola foi reforçado; embora não tivesse grandes tradições, a Dairy School tinha adquirido já uma certa reputação no que se refere ao Halloween.
Foi no Halloween que ataram uma das vacas simbólicas a uma baliza no Thompson Female Seminary. E outro ano levaram outra vaca para a piscina coberta da Dairy School, tendo o animal sofrido uma reacção tão violenta ao cloro da água que se afogou.
Foi igualmente no Halloween que quatro miúdos da cidade cometeram o erro de ir brincar ao trick or treat(*) num dos dormitórios da Dairy. As crianças foram sequestradas durante toda a noite; um dos alunos da escola, vestido de carrasco, rapou-lhes o cabelo, e a coisa foi de tal ordem que uma das crianças perdeu a fala durante uma semana.
- Detesto o Halloween - disse a Franny, quando observámos que havia poucos brincalhões nas ruas.
Os miúdos pequenos de Dairy tinham medo do Halloween. Uma criança que andava por ali, com um saco de papel ou uma máscara enfiada na cabeça, encolheu-se de medo quando a Franny e eu passámos por ela a correr; e um grupo de miúdos - um vestido de bruxa, outro de fantasma, dois outros de robots de um filme recente sobre uma invasão de marcianos - precipitou-se para o refúgio de um portal iluminado quando nos viu a correr pelo passeio na sua direcção.
Carros cheios de pais ansiosos encontravam-se estacionados ao longo da rua, de sentinela contra eventuais atacantes, enquanto os filhos se aproximavam cautelosamente
*. Trick or treat (uma partida ou uma guloseima) - brincadeira de crianças, praticada no Halloween, que consiste em andar de porta em porta a pedir guloseimas, ameaçando as pessoas de lhes pregar uma partida se as recusarem, (N. da T.)
de uma porta para tocar à campainha. Os habituais temores de lâminas de barbear escondidas em maçãs ou arsénico em bolos de chocolate torturava sem dúvida o pensamento daqueles pais. Um deles, muito inquieto, iluminou-nos com os faróis e saltou do carro para nos dar caça.
- Eh, vocês aí! - gritou ele.
- O Howard Tuck teve um ataque cardíaco! - gritei-lhe eu, o que teve o condão de o fazer estacar, petrificado.
O portão que dava acesso aos campos de jogos da Dairy School estava aberto, como o portão de um cemitério. Uma vez transposto o gradeamento de ferro eriçado de pontas, tentei imaginar como iria estar aquele portão no fim-de-semana da Exeter - quando estivessem a vender galhardetes, cobertores e chocalhos para fazer barulho durante o jogo. Agora era um portão triste e, quando entrámos, passou por nós precipitadamente uma pequena horda de crianças que ia a sair - em sentido contrário. Pareciam fugir da morte, e alguns daqueles rostos aterrorizados eram tão chocantes como as máscaras de Halloween que outros miúdos procuravam manter no lugar. Os seus fatos de plástico preto e branco e cor de abóbora estavam às tiras e ouviam-se gemidos como numa enfermaria de crianças - grandes soluços sufocados de medo.
- Santo Deus! - disse a Franny, e eles fugiram dela, como se ela estivesse mascarada e eu tivesse posto a caraça mais horrível.
Agarrei um rapazinho e perguntei-lhe:
- O que é que aconteceu?
Mas ele debateu-se nas minhas mãos e pôs-se a gritar, tentando morder-me o pulso; estava todo molhado e a tremer e tinha um cheiro esquisito; o seu disfarce de esqueleto desfez-se em pedaços nas minhas mãos, como se fosse de papel higiénico encharcado ou de esponja putrefacta.
- Aranhas gigantes! - gritou ele, com ar desvairado; e eu larguei-o.
- O que é que aconteceu? - perguntava a Franny aos miúdos; mas eles desapareciam tão depressa como tinham surgido.
Os campos de jogos estendiam-se à nossa frente, imersos na escuridão e desertos. Lá ao fundo, como veleiros num porto encoberto pelo nevoeiro, os dormitórios e outros edifícios da Dairy School. Só algumas janelas é que estavam iluminadas, como se toda a gente tivesse ido para a cama cedo e apenas alguns bons alunos estivessem a queimar as pestanas, como se costuma dizer. Mas eu e a Franny sabíamos que havia muito poucos "bons" alunos na Dairy, e numa noite de Halloween, e ainda por cima de sábado, duvidávamos que mesmo os bons estivessem a estudar - assim como duvidávamos que todas aquelas janelas às escuras quisessem dizer que alguém estava a dormir. Talvez estivessem a beber na escuridão dos seus quartos; talvez estivessem a violentar-se uns aos outros e às crianças sequestradas, nos seus dormitórios imersos em trevas. Talvez houvesse uma nova religião, o furor da escola, e essa religião exigisse uma escuridão total para os seus rituais - e o Halloween fosse o seu dia do juízo.
Alguma coisa estava errada. A baliza de madeira branca na extremidade mais próxima do campo de soccer parecia-me demasiado branca, embora eu nunca tivesse visto uma noite tão escura. Havia alguma coisa demasiado intensa e evidente com aquela baliza.
- Quem me dera que o Sorrow estivesse aqui connosco - disse a Franny.
O Sorrow vai estar connosco, pensei eu, que estava ao corrente do que a Franny não sabia: que o Pai tinha levado o Sorrow ao veterinário nesse mesmo dia para abater o velho animal. Tinha havido uma discussão sóbria e concisa - na ausência da Franny - sobre a necessidade de o fazer. A Lilly e o Egg também não estavam presentes. O Pai expôs o problema à Mãe, ao Frank e a mim - bem como ao Iowa Bob.
- A Franny não compreenderia - disse o Pai. - E a Lilly e o Egg ainda são muito pequenos. Não vale a pena estar-lhes a pedir a opinião. Não encaravam a coisa racionalmente.
O Frank não ligava nenhuma ao Sorrow, mas mesmo assim pareceu ficar triste com a sentença de morte:
- Eu sei que ele cheira mal, mas isso não é propriamente uma doença fatal.
- Num hotel, é - discordou o Pai. - Esse cão sofre de flatulência terminal.
- Além de que está velho - disse a Mãe.
- Quando vocês forem velhos - disse eu, dirigindo-me ao Pai e à Mãe -, também não vamos mandar-vos abater, pois não?
- Então e eu? - interveio o Iowa Bob. - Suponho que sou o próximo da lista. Tenho de ter atenção com os meus gases, senão mandam-me para um lar.
- Não adianta vires com isso - disse o Pai ao Coach Bob. - A única pessoa que gosta verdadeiramente do cão é a Franny. Só ela vai ter realmente um choque, e por isso temos de lhe tornar as coisas o mais fáceis possível.
O Pai tinha consciência de que a expectativa representa nove décimos do sofrimento: não era por cobardia que não pedia a opinião da Franny; sabia muito bem qual era a opinião dela, e também sabia que era preciso dar-se uma solução ao Sorrow.
Eu interrogava-me sobre quanto tempo estaríamos no Hotel New Hampshire sem a Franny notar a ausência do velho cão malcheiroso e começar a farejar por todo o lado à procura do Sorrow - o Pai teria de pôr as cartas na mesa.
Bem, Franny - imaginava eu o Pai a começar -, sabes que o Sorrow já não era propriamente um jovem, e já não se controlava lá muito bem...
Ao passar pela baliza de futebol, de um branco mortiço sob o céu negro, estremeci ao pensar na reacção da Franny. "Assassinos", acusar-nos-ia ela a todos. E todos ficaríamos com ar culpado. "Franny, Franny", diria então o Pai; mas ela faria um chinfrim danado. Tive pena dos estranhos que, no Hotel New Hampshire, iriam acordar com a variedade de sons que a Franny era capaz de emitir.
Nessa altura percebi o que havia de errado com a baliza do campo de soccer. a rede tinha desaparecido. Seria por a época já ter terminado? Não, se havia ainda uma semana de futebol americano, com certeza havia também uma semana de soccer para jogar. E lembrei-me de que nos anos anteriores as redes costumavam ficar colocadas até começar a nevar, tendo o primeiro temporal o condão de recordar ao pessoal da manutenção aquilo que haviam esquecido. As redes retinham os flocos de neve arrastados ao sabor do vento como se fossem teias de aranha de malhas tão apertadas que não deixassem passar os grãos de poeira.
- A rede desapareceu da baliza - disse eu à Franny.
- Que se lixe! - respondeu ela.
Cortámos em direcção à mata. Mesmo no escuro, a Franny e eu éramos capazes de dar com o atalho, o caminho que costumavam utilizar os jogadores de futebol - e que, por causa deles, as outras pessoas evitavam.
Seria uma partida de Halloween? Roubar uma rede de baliza de futebol... e então, é claro, a Franny e eu caímos mesmo nela. De repente, a rede estava por cima e por baixo de nós; havia mais dois rapazes que tinham sido apanhados: um caloiro da Dairy School chamado Firestone, com a cara redonda que nem um pneu e mole que nem um queijo, e um miúdo da cidade que andava no trick or treat. Este vinha mascarado de gorila, embora estivesse mais próximo, em tamanho, de um macaco-aranha. A caraça de gorila estava posta ao contrário, de modo que quando se olhava para a nuca via-se um macaco e olhando para o rosto banhado de lágrimas via-se o rapazito assustado que realmente era.
Aquilo parecia uma armadilha para animais selvagens, com um macaco a debater-se desesperadamente no seu interior. O Firestone tentou deitar-se, mas a rede sacudia-o constantemente de um lado para o outro, e acabou por chocar comigo.
- Ai! Desculpa - disse ele.
A seguir foi chocar com a Franny:
- Ai! Bolas! Desculpa lá também!
Sempre que eu tentava pôr-me de pé, a rede fugia-me debaixo dos pés ou então puxava-me a cabeça para trás e eu caía. A Franny estava de gatas para manter o equilíbrio. Connosco, dentro da rede, encontrava-se um grande saco de papel castanho, de onde saltavam as prendas de Halloween do miúdo disfarçado de gorila - milho caramelizado, bolas peganhentas de pipocas coladas umas às outras, estalando ao serem esmagadas debaixo de nós, e chupa-chupas embrulhados em celofane amarrotado. O miúdo gritava e soluçava histericamente, como se estivesse prestes a ficar sufocado, e a Franny abraçou-o, tentando acalmá-lo.
- Pronto, pronto, não foi nada. É só uma brincadeira parva - disse-lhe ela. - Já nos vão deixar ir embora.
- Aranhas gigantes! - gritou o miúdo, dando-lhe palmadas pelo corpo todo e debatendo-se nos seus braços.
- Qual quê! - disse a Franny. - Aqui não há aranhas nenhumas. Isto foi feito por pessoas.
Mas eu sabia que pessoas eram, e preferia as aranhas.
- Apanhámos quatro! - disse alguém com uma voz que eu já tinha ouvido nos vestiários.
- Apanhámos quatro sacaninhas de uma só vez!
- Um pequeno e três grandes - acrescentou outra voz conhecida, uma voz de transportador de jogo ou de especialista em placagens, era difícil dizer.
Enquanto isso, éramos inspeccionados pelos focos de várias lanternas, que mais pareciam olhos tremeluzentes de aranhas mecânicas a brilhar na noite.
- Boa! Ora vejam só quem está aqui - disse a voz que comandava, a voz do médio Chipper Dove.
- Olha! É a menina dos pezinhos bonitos - disse o Harold Swallow.
- E da pele macia - acrescentou o Chester Pulaski.
- Também tem um lindo sorriso - disse o Lenny Metz.
- E o melhor cu de toda a escola - rematou o Chipper Dove. A Franny continuava de joelhos.
- O Howard Tuck teve um ataque cardíaco! - contei-lhes eu. - Temos de ir buscar uma ambulância!
- Deixa fugir a merda do macaco! - disse o Chip Dove.
A rede girou. O braço delgado e negro do Harold Swallow puxou o miúdo vestido de gorila para fora da teia de aranha e largou-o na noite.
- Trick or treat - disse-lhe o Harold, e o miúdo desapareceu.
- És tu, Firestone? - perguntou o Dove.
O feixe de uma lanterna incidiu no rosto liso e macio do caloiro, que parecia estar a tentar adormecer no fundo da rede, na posição fetal, com os joelhos puxados para o peito, de olhos fechados e com a mão na boca.
- Sacana do caloiro! Firestone! - disse o Lenny Metz. - O que é que estás aí a fazer?
- Está a chuchar no dedo - respondeu o Harold Swallow.
- Deixem-no ir - ordenou o médio, e a torturada pele do Chester Pulaski surgiu momentaneamente à luz da lanterna.
Este arrastou o Firestone, que parecia dormir, para fora da rede. Ouvimos o som de uma pancada ligeira, de carne a bater em carne, e depois ouvimos o recém-acordado Firestone afastar-se a correr.
- Ora vejam agora quem ficou - disse o Chipper Dove.
- Houve uma pessoa que teve um ataque cardíaco - insistiu a Franny. - Temos mesmo que ir à enfermaria buscar a ambulância!
- Mas agora já não vão - ripostou o Dove. - Eh, puto! - continuou ele, dirigindo-se a mim. - Sabes o que é que eu quero que tu faças?
- Não - respondi eu, e apanhei um pontapé através da rede.
- O que eu quero que faças, puto, é que fiques aqui, na nossa teia de aranha gigante, até que uma das aranhas diga que te podes ir embora. Entendido?
- Não - e apanhei outro pontapé, desta vez com mais força.
- Não te armes em vivaço com estes gajos - disse-me a Franny.
- É isso mesmo - disse o Lenny Metz. - Não te armes em vivaço.
- E sabes o que é que eu quero que tu faças, Franny? - continuou o Chipper Dove.
Mas a Franny não respondeu.
- Quero que me mostres outra vez aquele lugar. Aquele lugar onde podemos estar sozinhos. Lembras-te?
Tentei rastejar para mais perto da Franny, mas um dos outros estava a apertar a rede à minha volta.
- Ela fica aqui comigo! - gritei eu. - A Franny fica comigo. Agora estava deitado sobre um quadril, com a rede cada vez mais apertada e com um deles de joelhos em cima das minhas costas.
- Deixem-no em paz - disse a Franny - que eu mostro-te o lugar.
- Não saias daí, Franny - disse eu.
Mas ela deixou o Lenny Metz tirá-la da rede.
- Lembra-te do que disseste, Franny! - gritei-lhe. - Lembras-te? Aquilo sobre a primeira vez?
- Se calhar nem sequer é verdade - disse ela, com ar desanimado. - Se calhar nem tem importância nenhuma.
Depois deve ter feito uma tentativa para escapar, pois ouvi o som de uma luta no escuro e o Lenny Metz a gritar:
- Gaita! Filha da puta! Cadela!
E mais uma vez ouviu-se o ruído familiar dos embates de carne contra carne. Finalmente, a Franny disse:
- Está bem! Pronto! Cabrão!
- O Lenny e o Chester vão ajudar-te a mostrar-me o lugar, Franny - disse o Chipper Dove. - Está bem?
- Sacana de merda! - respondeu a Franny. - Estúpido! Cabrão! Mas ouvi outra vez o barulho de carne contra carne e a Franny a dizer:
- Pronto! Pronto!
Quem estava de joelhos em cima das minhas costas era o Harold Swallow. Se a rede não estivesse toda enrolada à minha volta ainda talvez chegasse para ele, mas assim não me podia mexer.
- Já te vimos buscar, Harold! - disse o Chipper Dove.
- Não saias daí, Harold! - disse o Chester Pulaski.
- Depois é a tua vez, Harold! - disse o Lenny Metz. E desataram todos a rir.
- Não quero vez nenhuma - disse o Harold Swallow. - Não quero ter problemas.
Mas eles já se tinham ido embora, com a Franny ainda a praguejar de vez em quando - mas cada vez mais longe de mim.
- Vais mesmo arranjar chatices, Harold - disse eu. - Sabes muito bem o que eles lhe vão fazer.
- Não quero saber. Não quero meter-me em sarilhos. Vim para esta trampa desta escola para não me ver metido em sarilhos.
- Pois agora já te meteste, Harold. Eles vão violá-la, pá!
- São coisas que acontecem. Mas a mim é que não.
Lutei durante breves momentos debaixo da rede, mas era fácil para ele manter-me imobilizado.
- Também não gosto de brigas - disse ele.
- Eles acham que és um preto maluco - disse-lhe eu. - É isso que eles acham. E é por isso que eles estão com ela e tu estás aqui, Harold. Mas a merda é a mesma. Estás metido no mesmo sarilho que eles.
- Eles nunca se metem em sarilhos. Nunca ninguém faz queixa deles.
- A Franny vai fazer.
Senti as pipocas esborrachadas entre a minha cara e o chão húmido. Este era outro Halloween de que eu não me ia esquecer tão cedo; sentia-me fraco e pequeno como nunca me havia sentido - em todos os Halloweens de Dairy de que me lembrava, andava aterrorizado pelos miúdos maiores, sempre maiores do que eu, que me metiam a cabeça no meu saco de presentes e o matraqueavam até eu já só ouvir o ruído do celofane a ranger e por fim o estampido do saco a estoirar-me nos ouvidos.
- Como é que eles eram? - perguntava sempre o meu pai nessas alturas.
Mas todos os anos eles eram fantasmas, gorilas, esqueletos e outras coisas piores; o Halloween era a noite dos mascarados e nunca ninguém era apanhado: nem por terem atado o Frank à escada de incêndio do dormitório mais alto, o que o fez mijar nas calças; nem pelo quilo e meio de esparguete frio e molhado que nos atiraram, a mim e à Franny, gritando:
- São enguias vivas! Fujam!
E ficámos estendidos no passeio escuro, a contorcermo-nos, com o esparguete colado a nós, a dar palmadas um ao outro e a gritar que nem uns desalmados.
- Eles vão violar a minha irmã, Harold. Tens de a ajudar!
- Não posso ajudar ninguém.
- Mas há quem possa. Vamos a correr buscar alguém. Eu sei que és capaz de correr, Harold!
- Pois, mas quem é que vai querer ajudar-te contra aqueles gajos?
Não o Howard Tuck, isso sabia eu. Pelo som das sirenes que agora estava a ouvir - provenientes tanto da escola como da cidade - calculei que o Pai tivesse conseguido utilizar o rádio do carro da Polícia para pedir auxílio. Nestas circunstâncias, não havia ninguém da Polícia disponível para vir em socorro da Franny. Comecei a chorar, e o Harold Swallow deslocou o peso do corpo para cima do meu ombro.
Durante uns instantes ficou tudo silencioso, nos tempos mortos entre os sons agudos das sirenes - como se estas estivessem a respirar fundo. Foi então que ouvimos a Franny.
Carne contra carne, pensei eu - mas agora era diferente. A Franny emitiu um som que levou o Harold Swallow a lembrar-se de quem a podia ajudar.
- O Júnior Jones podia tratar da saúde àqueles gajos - disse ele. - Não há ninguém que tenha tomates para o Júnior Jones.
- É verdade! E ele é teu amigo, não é? Gosta mais de ti do que deles, não gosta?
- Ele não gosta de ninguém] - disse o Harold Swallow, com um ar de admiração.
Mas, de súbito, senti o peso do seu corpo sair de cima de mim, e ele pôs-se a puxar desajeitadamente a rede, procurando desenvencilhar-me dela.
- Levanta-me esse cu - disse ele. - Afinal acho que o Júnior sempre gosta de alguém.
- De quem é que ele gosta?
- Gosta das irmãs de toda a malta - disse o Harold Swallow. Mas a ideia não me sossegou nada, muito pelo contrário.
- Que é que isso quer dizer? - perguntei eu.
- Põe-te de pé! O Júnior Jones gosta das irmãs de toda a malta; foi o que ele me disse, pá! "Todas as irmãs são boas raparigas", foi isso mesmo que ele disse.
- Mas o que é que ele queria dizer com isso? - perguntei de novo, enquanto tentava acompanhar o passo dele, pois aquele tipo era a mais rápida estrutura de carne humana da Dairy School; como dizia o Coach Bob, o Harold Swallow era capaz de voar.
Corremos em direcção ao candeeiro no fundo do atalho; passámos perto do lugar onde eu sabia que estava a Franny quando a ouvi pela última vez - onde ficavam os fetos e onde a defesa do Iowa Bob se estava a revezar. Parei. Queria embrenhar-me na mata e descobrir a minha irmã, mas o Harold Swallow arrastou-me com ele.
- Não podes nada sozinho contra aqueles gajos, pá - disse-me ele. - Temos de ir buscar o Júnior.
Porque é que o Júnior Jones havia de nos ajudar era coisa que eu não conseguia perceber. A única coisa que eu sabia era que ia morrer antes de descobrir - ao tentar acompanhar a passada do Harold Swallow - e pensei que se o Júnior gostava de facto de "qualquer irmã", como afirmava, isso não significava necessariamente boas notícias para a Franny.
- Como é que ele gosta de qualquer irmã? - consegui articular, arquejante, para o Harold.
- Ele gosta delas como da sua própria irmã. Eh, pá, porque é que és tão lento? O Júnior Jones também tem uma irmã. E houve uns gajos que a violaram. Porra! Pensei que toda a gente sabia dessa história!
Bem dizia o Frank que havia uma data de coisas que nos escapavam por não vivermos nos dormitórios...
- E foram apanhados? - perguntei ao Harold Swallow. - Apanharam os tipos que violaram a irmã do Júnior?
- Foi o Júnior quem os apanhou! Porra! Pensei que toda a gente sabia da história!
- E o que é que ele lhes fez?
Mas o Harold já irrompia, à minha frente, pelo dormitório do Júnior Jones. Voava escada acima, e eu ia um bom lanço de escadas atrás dele.
- Nem queiras saber! - gritou-me ele lá de cima. - Porra, ninguém sabe o que é que ele lhes fez, pá. E ninguém lhe vai perguntar.
Onde diabo é que vive o Júnior Jones, pensava eu quando passei o terceiro andar e continuei a subir, com os pulmões a estoirar, já sem avistar o Harold. Mas ele estava à minha espera no patamar do quinto e último piso.
O Júnior Jones vive no céu, pensei eu, mas o Harold explicou-me que a maioria dos desportistas negros da Dairy School estavam alojados no último andar daquele dormitório.
- Assim ficamos fora das vistas, estás a perceber? Como se fôssemos uns sacanas duns pássaros empoleirados em ninhos bem no cimo das árvores, pá. É aqui que põem os negros desta escola de merda!
O quinto andar estava escuro e quente.
- O ar quente sobe, não sabias? - perguntou o Harold Swallow. -Bem-vindo à puta da nossa selva!
Todos os quartos tinham as luzes apagadas, mas por debaixo das portas ouvia-se música a tocar; o quinto andar daquele dormitório parecia uma rua estreita de clubes nocturnos e bares numa cidade submetida ao blackout(*). E dos quartos provinha o som inconfundível do arrastar dos pés de pessoas a dançar - a dançar no escuro.
O Harold Swallow bateu a uma porta.
- Que é que foi? - perguntou a voz de trovão do Júnior Jones. - Estás cansado da vida, pá?
- Júnior! Abre a porta, pá! - chamou o Harold, batendo com mais força.
- Estás mesmo com vontade de morrer, não estás? - ouvimos outra vez o Júnior dizer.
Depois houve o som de uma série de chaves a rodar noutras tantas fechaduras, como se se tratasse da porta de uma cela de prisão. - Se é algum sacana que quer morrer, eu dou uma ajuda.
Mais fechaduras a abrirem-se. O Harold Swallow e eu afastámo-nos da porta.
- Qual dos dois é que quer morrer primeiro?
Do seu quarto emanavam vibrações de calor e de um saxofone. Por trás dele via-se a luz de um candeeiro sobre a sua secretária, toda coberta - como a urna de um presidente - pela bandeira americana.
- Precisamos da tua ajuda, Júnior - disse o Harold Swallow.
- Nem vocês sabem como! - respondeu o Júnior.
*. Blackout - ocultação de luzes em tempo de guerra. (N. da T.)
- Apanharam a minha irmã - expliquei eu. - Apanharam a Franny e estão a violá-la.
O Júnior Jones agarrou-me pelas axilas e levantou-me do chão, até a minha cara ficar frente a frente com a dele; encostou-me, com cuidado, contra a parede. Os meus pés estavam a cerca de meio metro do solo, mas eu não desatei a espernear.
- Disseste violar, pá?
- Pois, violar, violar! - confirmou o Harold Swallow, esvoaçando à nossa volta como uma abelha. - Estão a violar-lhe a irmã, pá. A sério.
- A tua irmã! - perguntou-me o Júnior, deixando-me escorregar pela parede abaixo até tocar no chão.
- A minha irmã Franny - disse eu.
Por um instante temi que ele voltasse a dizer: "Para mim não passa de uma rapariga branca como outra qualquer." Mas não disse nada; estava a chorar, com a sua cara enorme tão lustrosa e molhada como o escudo de um guerreiro que tivesse ficado à chuva.
- Por favor - disse eu. - Vamos lá depressa!
Mas o Júnior Jones começou a abanar a cabeça e as suas lágrimas salpicaram-nos, a mim e ao Harold.
- Não vamos chegar a tempo - disse ele. - Já não chegamos a tempo.
- Mas eles são três - disse o Harold. - Três vezes leva tempo.
Eu senti-me enjoado - senti-me como o Halloween, com uma barrigada de sucata e lixo.
- E eu conheço esses três, não conheço? - perguntou o Júnior. Verifiquei que ele se estava a vestir: não tinha reparado que o tipo estava
todo nu. Vestiu umas calças cinzentas, folgadas, de fato de treino, enfiou os pés enormes numas botas de basquetebol, sem meias, pôs um boné de basebol com a pala virada para trás; aparentemente, era tudo o que ele precisava; então saiu para o patamar do quinto piso do dormitório e de súbito gritou:
- Braço Negro da Lei! Abriram-se portas.
- Caçada ao leão! - bradou o Jones.
Os atletas negros, acantonados no último piso, espreitaram das portas dos seus quartos.
- Toca a reunir, cambada! - disse o Júnior Jones.
- Caçada ao leão! - gritou o Harold Swallow, esvoaçando para cá e para lá no patamar.
- Toca a reunir, malta! O Braço Negro da Lei vai atacar!
Foi nessa altura que me apercebi de que não conhecia nenhum aluno negro da Dairy School que não fosse um atleta: é claro, a merda da nossa escola jamais os teria aceite se eles não fossem de alguma utilidade.
- O que é uma caçada ao leão? - perguntei ao Júnior Jones.
- A tua irmã é boa rapariga - respondeu ele. - Eu sei que é. As irmãs da malta são sempre boas raparigas.
Concordei com ele, evidentemente, e o Harold Swallow bateu-me no braço e disse:
- Estás a ver, pá? As irmãs da malta são sempre boas raparigas. Tendo em conta a quantidade de gente que se pôs a descer a escada, fizemo-lo num silêncio notável. O Harold Swallow voava à nossa frente, esperando-nos impacientemente em cada patamar. O Júnior Jones era surpreendentemente rápido para o seu tamanho. No patamar do segundo andar encontrámos dois estudantes brancos que estavam a regressar aos seus quartos; viram os atletas negros a descer as escadas e fugiram para o corredor do seu piso.
- Caçada ao leão! - gritaram eles. - Vem aí o Braço Negro da Lei! Chica!
Nem uma porta se abriu. Duas luzes apagaram-se. E nós saímos para a noite de Halloween, rumo à mata e ao local perto do atalho que eu haveria de reconhecer e de recordar durante toda a vida. Jamais haveria um dia em que eu não fosse capaz de localizar aqueles fetos, onde a Franny e eu tínhamos estado sozinhos pela primeira vez e onde nos havíamos de sentir sempre sozinhos os dois.
- Franny - gritei eu, mas não houve resposta.
Guiei o Júnior e o Harold Swallow para dentro da mata. Atrás de nós, os atletas negros espalharam-se ao longo do atalho e penetraram na mata, abanando as árvores, dando pontapés nas folhas mortas, alguns entoando uma melodia com a boca fechada, todos eles (reparei nisso de repente) com bonés de basebol com a pala para trás e de tronco nu. Dois deles usavam máscaras de catcher(*). O som que faziam a atravessar a mata evocava o zumbido de uma grande lâmina rotativa a ceifar o mato num baldio. Com as lanternas a cintilar no escuro, qual enxame de pirilampos gigantes, caímos sobre os fetos, onde o Lenny Metz, ainda com as calças despidas, apertava a cabeça da minha irmã entre os joelhos. O Metz estava de joelhos em cima dos braços da Franny, esticados acima da cabeça, enquanto o Chester Pulaski - que, sem dúvida, tinha sido o terceiro - acabava a sua vez.
O Chipper Dove já se tinha ido embora: tinha sido o primeiro, é claro. E, como médio cauteloso que era, não tinha querido conservar a bola durante demasiado tempo.
- É claro que eu sabia o que ele ia fazer - disse-me a Franny muito mais tarde. - De certo modo estava preparada para ele: para a primeira vez. Mas nunca pensei que deixasse os outros verem-me sequer com ele. Cheguei a dizer-lhe que não era preciso forçarem-me, que eu o deixava fazer o que quisesse. Mas quando me entregou aos outros, não estava nada preparada para aquilo. Nunca tinha sequer imaginado uma coisa assim.
*. Catcher (termo de basebol) - jogador que apanha as bolas em que um outro à sua frente não conseguir acertar com o taco (N. da T.)
A minha irmã achava que tinha sido obrigada a pagar um preço exagerado pela brincadeira das luzes do Hotel New Hampshire e pelo seu contributo involuntário para a partida do Howard Tuck deste mundo.
- Poça, pá - disse a Franny -, porque será que temos sempre de pagar por uma brincadeira?
Porém, a mim parecia-me que o Lenny Metz e o Chester Pulaski dificilmente pagariam o preço da sua "brincadeira". O Metz, mal viu o Júnior Jones, largou logo os braços da minha irmã. Levantou-se de um pulo, a puxar as calças, e fez uma tentativa para escapar - mas o Lenny Metz estava habituado a jogar com uma cortina de avançados a abrirem caminho à sua frente, deixando-lhe de certo modo campo aberto para correr. Na mata mergulhada em trevas, ele mal conseguia ver os corpos escuros dos atletas negros, que continuavam a entoar o seu cântico em surdina. Foi chocar em cheio com uma árvore tão grossa como a sua coxa e, embora fosse a correr velozmente e em força, foi atirado para trás, para o santuário do meio dos fetos, onde o Júnior Jones ordenou que o despissem completamente e o atassem a um stick de hóquei. Depois levaram-no, nu, à presença do deão dos rapazes. Soube mais tarde que os "caçadores de leões" procediam sempre à entrega das suas presas com uma certa encenação.
Uma vez apanharam um exibicionista que tinha andado a incomodar as raparigas no dormitório. Penduraram-no pelos tornozelos num chuveiro do balneário mais frequentado - nu e enrolado numa cortina de plástico transparente. Depois chamaram o deão.
- Aqui fala o Braço Negro da Lei - disse o Júnior Jones. - Quem fala é o xerife do terrível quinto andar.
- Sim, Júnior, o que é que há? - perguntou o deão.
- Há um nudista no dormitório das raparigas, na casa de banho do primeiro andar, à sua direita - respondeu o Jones. - Os caçadores de leões capturaram-no em pleno acto exibicionista.
Por conseguinte, o Lenny Metz foi transportado até ao deão dos rapazes. O Chester Pulaski chegou lá antes dele.
- Caçada ao leão! - fora o grito do Harold Swallow na mata.
E quando o Lenny libertou os braços da Franny, o Chester Pulaski deslizou para fora da minha irmã e esboçou igualmente uma tentativa de fuga. Mas estava completamente nu e não podia correr depressa com os pés descalços; isso permitiu-lhe esgueirar-se por entre as árvores, sem chocar com nenhuma. Mas na sua fuga, a cada vinte metros, mais ou menos, apanhava um susto de morte por causa do Braço Negro da Lei - os atletas negros que deslizavam furtivamente pela mata, fustigando as árvores, quebrando raminhos e entoando os seus cânticos em surdina. Tinha sido a primeira violação em grupo do Chester Pulaski, e aquele ritual da selva fazia-lhe ver a noite de todas as cores, ao ponto de imaginar que a mata se tinha enchido subitamente de indígenas (canibais!, pensava ele cheio de pavor); tropeçou no escuro e pôs-se a lamuriar, todo dobrado para a frente - avançando penosamente, semicurvado, semierecto, frequentemente de gatas.
Estava todo nu e arranhado pelos ramos das árvores e já ia mesmo quase de gatas quando chegou aos aposentos do deão dos rapazes no dormitório.
O deão dos rapazes não andava nada satisfeito desde que a Dairy School tinha passado a aceitar raparigas. Anteriormente, ele era o deão dos alunos. Era um homem empertigado e de aspecto cuidado, que fumava cachimbo e tinha uma predilecção pelos desportos jogados com raqueta. Tinha uma mulher de ar jovem e azougado, do tipo "chefe de claque", cuja idade apenas era denunciada pelos papos que exibia debaixo dos olhos. Não tinham filhos. "Os rapazes", como gostava de dizer o deão dos alunos, "eram todos meus filhos".
Quando as "raparigas" chegaram, ele nunca foi capaz de sentir o mesmo para com elas, e rapidamente designou a sua mulher para o ajudar, com a função de deã das raparigas. O seu novo título - deão dos rapazes
- agradava-lhe, mas ficava desesperado com todo o novo tipo de problemas que os seus rapazes arranjavam, agora que havia raparigas na Dairy.
- Oh, não! - deve ter exclamado ele ao ouvir o Chester Pulaski a bater-lhe à porta com as pontas dos dedos. - Detesto o Halloween.
- Eu vou - disse a mulher, indo abrir. - Já sei, já sei - disse ela, em tom prazenteiro. - A trick or a treat, não é?
E deu de caras com o Chester Pulaski, o tal defesa das placagens, nu e encolhido, todo eriçado de borbulhas e a cheirar a sexo.
Diz-se que o grito da deã das raparigas acordou os dois primeiros andares do dormitório onde vivia o casal de deãos - e ainda a Sr.a Butler, a enfermeira da noite, que tinha adormecido à secretária, na enfermaria, na porta ao lado.
- Detesto o Halloween - deve ter sido o comentário que fez para consigo mesma.
Foi à porta da enfermaria e viu o Júnior Jones, o Harold Swallow e eu. O Júnior trazia a Franny ao colo.
Eu tinha ajudado a Franny a vestir-se nos fetos, e o Júnior Jones tinha tentado desembaraçar-lhe os cabelos enquanto ela não parava de chorar. Por fim, ele perguntou-lhe:
- Queres ir a pé ou de boleia?
O Pai costumava fazer-nos essa mesma pergunta quando éramos pequenos, para saber se nós preferíamos ir a pé ou de carro. O Júnior, evidentemente, queria dizer que podia levá-la ao colo; foi isso que a Franny preferiu, e foi isso que ele fez.
Passou com ela ao colo pelo lugar no meio dos fetos onde o Lenny Metz estava a ser atado como um paio e pendurado num stick de hóquei para beneficiar de outro meio de transporte.
A Franny continuava a chorar, e o Júnior disse:
- Eh, pá! Deixa lá isso! Tu és uma boa rapariga. Podes crer que eu tenho olho para avaliar isso.
Mas a Franny não parava de chorar.
- Olha, escuta aqui - insistiu o Júnior Jones. - Sabes uma coisa? Quando alguém te toca e tu não queres ser tocada, é como se não tivesses sido tocada. Tens de acreditar nisto. Não foi em ti que eles tocaram quando tocaram em ti desta maneira; não te conseguiram apanhar, estás a perceber? O teu eu continua dentro de ti, intocável. Continuas a ser uma boa rapariga, percebeste? O teu eu continua dentro de ti, acredita nisso!
- Não sei - murmurou a Franny, e continuou a chorar.
Um dos seus braços pendia ao longo do flanco do Júnior, e eu agarrei-lhe na mão. Ela apertou-a, e eu correspondi à sua pressão. O Harold Swallow, correndo em disparada por entre as árvores, precedeu-nos que nem uma seta carreiro acima, chegou à enfermaria à nossa frente e abriu a porta.
- O que é que se passa? - perguntou a Sr.a Butler, a enfermeira da noite.
- Chamo-me Franny Berry - respondeu a minha irmã -, e fui espancada.
"Espancada" havia de ser o eufemismo arranjado pela Franny daí por diante para designar o que se tinha passado, ainda que toda a gente soubesse que ela tinha sido violada. Mas "espancada" era tudo quanto a Franny admitia ter sido, embora todos compreendessem o verdadeiro significado daquela expressão. O problema é que assim jamais poderia ser apresentada queixa do sucedido.
- Ela quer dizer que foi violada - disse o Júnior Jones à Sr.a Butler. Mas a Franny continuou a abanar a cabeça. Penso que a sua maneira de
interpretar a gentileza do Júnior para com ela e a sua versão de como a pessoa dentro dela não tinha sido tocada consistia em converter a violência sexual numa simples luta que tivesse perdido. Ela disse-lhe qualquer coisa em voz baixa - o Júnior continuava a segurá-la nos braços, apertando-a contra o peito -, e ele então pô-la no chão e disse à Sr.a Butler:
- Pronto, ela foi espancada.
A Sr.a Butler compreendeu o que aquilo queria dizer.
- Ela foi espancada e violada - disse o Harold Swallow, que não conseguia parar quieto um instante.
Mas o Júnior Jones deitou-lhe um olhar gelado e disse-lhe:
- Porque é que não desandas daqui, Harold? Porque é que não tentas saber onde é que está o senhor Dove?
Ao ouvir aquilo, os olhos do Harold brilharam de novo, e ele voou logo dali para fora.
Tentei telefonar ao Pai, mas depois lembrei-me que não havia nenhum telefone ligado no Hotel New Hampshire. Telefonei então à Segurança da escola e pedi-lhes para darem o recado ao meu pai de que a Franny e eu estávamos na enfermaria da Dairy School, pois a Franny tinha sido "espancada".
- Isto é só um Halloween como outro qualquer, miúdo - disse a Franny, segurando-me na mão.
- O pior até agora.
A Sr.a Butler tomou conta da Franny, para lhe arranjar - entre outras coisas - um bom banho. O Júnior Jones explicou-me que se a Franny se lavasse não haveria indícios de que tinha sido violada, e eu fui dizer isso à Sr.a Butler, mas esta já tinha explicado o mesmo à Franny, que não queria ouvir falar mais no assunto.
- Fui espancada - insistiu ela.
Fosse como fosse, escutou os conselhos da Sr.a Butler no sentido de, mais tarde, fazer um exame para ver se estava grávida (não estava) ou se tinha contraído alguma doença venérea (um deles tinha-lhe transmitido um pequeno qualquer coisa, que acabou por se curar).
Quando o Pai chegou à enfermaria, o Júnior Jones tinha ido dar o seu concurso na entrega do Lenny Metz ao deão, o Harold Swallow esquadrinhava a escola, como um falcão à procura de uma rola(*), e estava sentado num quarto de hospital todo branco com a Franny, acabadinha de sair do banho com o cabelo enrolado numa toalha, um saco de gelo na maçã do rosto do lado esquerdo e o anelar direito ligado (tinha arrancado uma unha); vestia uma bata branca e estava sentada na cama.
- Quero ir para casa - disse ela ao Pai. - Diz à Mãe que só preciso de roupa lavada.
- O que é que eles te fizeram, meu amor? - perguntou-lhe o Pai, sentando-se ao lado dela na cama.
- Espancaram-me.
- E onde é que tu estavas? - perguntou-me o Pai.
- Foi em busca de socorros - respondeu a Franny.
- Viste o que se passou? - insistiu o Pai.
- Ele não viu nada - disse a Franny.
Eu queria contar ao Pai que tinha visto o "terceiro acto", mas embora todos soubéssemos o que queria dizer "espancada" permaneci fiel ao termo da Franny.
- Só quero ir para casa - repetiu a Franny.
No entanto, para mim, o Hotel New Hampshire era um local demasiado grande e impessoal para uma pessoa se refugiar como em sua casa. O Pai foi buscar-lhe as roupas.
Foi pena não ter visto o Lenny Metz atado como um paio ao stick de hóquei e transportado através do recinto da escola até à presença do deão como uma peça de carne para assar no espeto. E também que não tivesse testemunhado a prontidão do Harold Swallow à procura do Dove, deslizando de quarto em quarto como uma sombra, até chegar à conclusão de que este só podia estar nos dormitórios das raparigas. A partir daí, pensou ele, era uma questão de tempo descobrir em que quarto estava escondido o Dove.
*. Referência ao nome de Chipper Dove. Dove - rola. (N. da T.)
O deão dos rapazes cobriu o Chester Pulaski com o casaco de pêlo de camelo da mulher - que foi o que encontrou mais à mão.
- Chester, Chester, meu rapaz! Porquê? Apenas a uma semana do jogo com a Exeter! - exclamou ele.
- A mata está cheia de pretos - lamuriou-se o Chester Pulaski. - Estão a tomar conta disto tudo. Fujam!
A deã das raparigas fechou-se à chave na casa de banho e, quando a segunda série de arranhadelas e pancadas na porta lhe chegou aos ouvidos, gritou para o marido:
- Desta vez, vai tu abrir a porcaria da porta!
- São os pretos! Não os deixem entrar! - gritou o Chester Pulaski, apertando contra si o casaco da deã das raparigas em que estava embrulhado.
Corajosamente, o deão dos rapazes abriu a porta. Desde há algum tempo que ele tinha um acordo com a polícia secreta do Júnior Jones, que era o braço da lei da Dairy, um braço da lei altamente clandestino e muito eficaz.
- Por amor de Deus, Júnior - disse o deão. - Isto está a ir longe de mais.
- Quem é? - gritou a deã das raparigas da casa de banho.
Entretanto, o Lenny Metz era trazido para a sala de estar dos deãos e pousado no tapete mesmo em frente da lareira.
A clavícula partida doía-lhe horrivelmente, e quando viu o fogo deve ter pensado que era para o assar.
- Confesso tudo! - gritou.
- Nem duvides! - respondeu o Júnior Jones.
- Fui eu! - guinchou o Lenny Metz.
- Ah, pois claro que foste! - disse o Júnior.
- E eu também! - gritou o Chester Pulaski.
- E quem foi o primeiro! - quis saber o Júnior Jones.
- O Chipper Dove! - disseram em coro os rapazes da defesa. - O primeiro foi o Dove!
- Aí tem - continuou o Júnior Jones, dirigindo-se agora ao deão dos rapazes. - Está a topar a cena, não está?
- O que é que eles fizeram e a quem? - perguntou o deão.
- Violaram a Franny Berry em série - respondeu o Júnior Jones, no preciso momento em que a deã das raparigas saía da casa de banho.
A mulher viu os atletas negros a baloiçar o corpo no vão da porta, como se se tratasse de um grupo coral de um país africano, deu outro grito e voltou a fechar-se na casa de banho.
- E agora vamos trazer-lhe o Dove! - continuou o Júnior Jones.
- Mas com calma, Júnior! - gritou o deão. - Por amor de Deus, com calma.
Fiquei com a Franny. A Mãe e o Pai trouxeram as roupas dela.
O Coach Bob ficou a tomar conta da Lilly e do Egg - como nos velhos tempos, pensei eu. Mas onde estaria o Frank?
O Frank tinha saído "em missão especial", conforme disse o Pai misteriosamente. Quando o Pai ouviu dizer que a Franny tinha sido "espancada", nunca duvidou do pior. E ele sabia que o Sorrow seria a primeira criatura por quem ela perguntaria quando estivesse em casa, na cama. "Quero ir para casa", iria ela dizer; e logo a seguir: "Quero que o Sorrow venha dormir comigo."
- Talvez ainda não seja demasiado tarde - dissera o Pai.
Tinha deixado o Sorrow no veterinário antes do jogo de futebol. Se ele tivesse tido muito que fazer nesse dia, talvez o velho malcheiroso ainda estivesse vivo numa gaiola qualquer. Tinha sido confiada ao Frank a missão de ir lá saber.
Mas foi como a missão de socorro do Júnior Jones: chegou demasiado tarde. O Frank acordou o veterinário ao bater à porta. "Detesto o Halloween", deve ter resmungado o veterinário, mas a mulher disse-lhe que era um dos rapazes do Berry a perguntar pelo Sorrow.
- Ah, ah... - disse o veterinário ao Frank. - Tenho muita pena, filho, mas o teu cão foi abatido esta tarde.
- Quero vê-lo - pediu o Frank.
- Ah, ah... - repetiu o veterinário. - O cão está morto, filho.
- E enterrou-o?
- Que enternecedor - comentou a mulher do veterinário para o marido. - Deixa lá o rapaz enterrar o animal, se é isso que ele quer.
- Ah, ah... - disse o veterinário outra vez.
Mas conduziu o Frank à sala dos fundos do canil, onde este pôde ver os cadáveres de três cães empilhados uns por cima dos outros, ao lado de um monte de outros três gatos mortos.
- Não enterramos animais ao fim-de-semana - explicou o veterinário. - Qual deles é o Sorrow?
O Frank descobriu logo o velho fedorento. O Sorrow já tinha começado a ficar rígido, mas o Frank ainda foi capaz de meter o cadáver do Labrador negro num grande saco de lixo. O veterinário e a mulher não podiam saber que ele não tinha qualquer intenção de enterrar o Sorrow.
- Tarde de mais - disse o Frank baixinho, para o Pai, quando nós os dois, a Franny e a Mãe chegámos a casa, o Hotel New Hampshire.
- Poça. Ainda sou capaz de andar sozinha! - exclamou a Franny, quando nós todos tentávamos caminhar junto dela. - Aqui, Sorrow! - chamou ela. - Anda, cão!
A Mãe começou a chorar, e a Franny agarrou-lhe no braço. - Estou bem, mamã - disse ela. - A sério. Ninguém me tocou dentro de mim, acho eu.
Foi a vez de o Pai começar a chorar, e a Franny também lhe agarrou no braço. Eu tinha chorado toda a noite e estava esgotado. O Frank puxou-me para o lado.
- O que é que foi agora, Frank?
- Anda ver.
O Sorrow, ainda dentro do saco do lixo, estava debaixo da cama do Frank.
- Oh, não! Merda! - exclamei eu.
- Vou arranjá-lo para a Franny. Até ao Natal.
- Até ao Natal, Frank? Arranjá-lo?!
- Vou empalhar o Sorrow, pá!
A disciplina preferida do Frank na Dairy School era Biologia, ensinada por um taxidermista amador chamado Foit, que seguia um programa meio esquisito. O Frank, com a ajuda do Foit, tinha já empalhado um esquilo e um estranho pássaro cor de laranja.
- Caraças, Frank - disse eu. - Não sei se a Franny vai gostar disso, pá!
- Melhor do que isso, só se ele estivesse vivo - replicou o Frank.
Eu não tinha a certeza. Quando ouvimos a súbita explosão da Franny, percebemos que o Pai a tinha posto ao corrente das últimas novidades. Só o Iowa Bob proporcionou uma ligeira distracção à mágoa da Franny. O velho insistiu em sair e descobrir o Chipper Dove, e foi precisa muita persuasão para o dissuadir dessa ideia. A Franny quis tomar outro banho, e eu fiquei na cama a ouvir a banheira a encher. Depois levantei-me, fui bater à porta da casa de banho e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa.
- Obrigada - disse ela baixinho. - Só gostava que fosses lá fora e me trouxesses o dia de ontem e a maior parte do dia de hoje. Quero-os de volta.
- Mais nada? Só ontem e hoje?
- Mais nada, obrigada.
- Se pudesse, trazia, Franny.
- Eu sei.
Ouvi-a emergir lentamente na água da banheira.
- Estou bem - sussurrou-me ela. - Ninguém me possuiu dentro de mim.
- Amo-te - disse-lhe eu baixinho.
Ela não respondeu e eu voltei para a cama.
Ouvi o Coach Bob, nos seus aposentos, a fazer flexões de braços e exercícios de abdominais, e depois a trabalhar com os extensores de braços (conseguia ouvir o tinir ritmado do metal e a respiração enraivecida do velho), e desejei que o tivessem deixado ir buscar o Chipper Dove, que não era adversário que chegasse para o velho avançado do Iowa.
Infelizmente, o Dove chegava para o Júnior Jones e para o Braço Negro da Lei. Tinha ido directamente para o dormitório das raparigas, e entrou no quarto de uma sua apaixonada, uma chefe de claque chamada Melinda Mitchell. Chamavam-lhe Mindy e estava perdidinha pelo Dove. Este contou-lhe que a Franny Berry lhe tinha "dado umas baldas", mas quando ela tinha começado a dar baldas também ao Lenny Metz e ao Chester Pulaski a coisa tinha-lhe começado a cheirar mal.
- Não passa de uma ninfomaníaca - disse ele da minha irmã, e a Mindy Mitchell concordou, pois há anos que tinha ciúmes da Franny. - Mas agora a Franny pôs a pretalhada toda atrás de mim - disse o Dove à Mindy. - Anda feita com eles. Especialmente com o Júnior Jones, esse capado armado em santinho, ainda por cima bufo do deão.
Claro que a Mindy Mitchell meteu logo o Dove na cama com ela e, quando o Harold Swallow veio perguntar baixinho à sua porta: "Viste o Dove? O Braço Negro da Lei exige que respondas", ela respondeu que não deixava entrar nenhum rapaz no quarto dela, e que também não o ia deixar a ele, Harold.
Foi assim que o Dove conseguiu que não o encontrassem. Foi expulso da Dairy School logo de manhã cedo, juntamente com o Chester Pulaski e o Lenny Metz. Os pais dos violadores, quando foram postos ao corrente da história, ficaram suficientemente gratos por não ter sido levantado um processo crime para aceitarem as penas de expulsão sem mais protestos. Alguns professores e a maioria dos administradores ficaram aborrecidos por o incidente não poder ter sido abafado até ao jogo com a Exeter, mas alguém fez notar que a defesa do Iowa Bob era uma perda menos comprometedora do que a perda do próprio Iowa Bob, já que o velho recusaria por certo orientar um jogo com aqueles elementos na sua equipa.
Este tipo de incidentes era abafado na tradição das melhores escolas particulares. Era notável como uma escola tão pouco sofisticada como a Dairy School podia por vezes imitar exactamente o mesmo decoro e compostura no silenciar das questões desagradáveis que as escolas mais sofisticadas tinham desenvolvido como uma ciência.
Por terem "espancado" a Franny Berry - no que se subentendia não ter havido mais do que uma mera extensão do carácter habitualmente violento de um Halloween na Dairy School -, o Chester Pulaski, o Lenny Metz e o Chipper Dove foram expulsos. Este último, no meu entender, safou-se totalmente impune. Não seria desta, no entanto, que eu e a Franny havíamos de nos ver livres dele, e talvez a Franny o tivesse pressentido. O Júnior Jones também permaneceu nas nossas vidas: tornou-se amigo da Franny, para não dizer seu guarda-costas, durante todo o resto da sua permanência na Dairy. Iam para todo o lado juntos, e para mim era evidente que o Júnior Jones contribuía muito para ajudar a Franny a sentir que era, de facto, uma boa rapariga - como ele lhe estava sempre a repetir. O Júnior não desapareceu das nossas vidas nem mesmo quando deixámos Dairy, embora - mais uma vez - a sua maneira de vir em socorro da Franny continuasse a caracterizar-se pela chegada tardia. O Júnior Jones, como já sabem, foi jogar futebol no campeonato universitário para a Penn State University, e no campeonato profissional para os Browns - até lhe darem cabo do joelho. Iria então cursar Direito e tornar-se-ia activo numa organização em Nova Iorque que se viria a chamar, por sugestão sua, o Braço Negro da Lei. Como diria a Lilly - e um dia ela havia de no-lo explicar com toda a clareza - "isto é tudo um conto de fadas".
O Chester Pulaski viria a sofrer dos seus pesadelos racistas durante quase toda a sua vida, que terminou com um desastre de automóvel. A Polícia comentaria então que ele devia estar com as mãos entretidas com alguém em vez de dar atenção ao volante. A sua acompanhante também morreu, e o Lenny Metz disse que a conhecia. Quando ficou bom da clavícula, o Metz regressou imediatamente ao seu lugar de transportador de jogo; jogava futebol universitário algures na Virgínia, e foi ele quem apresentou, numas férias do Natal, o Chester Pulaski à mulher que morreu com ele. O Metz nunca viria a ser recrutado por uma equipa profissional - devido à sua manifesta falta de velocidade -, mas sê-lo-ia pelo Exército dos EUA, que se estava nas tintas para a sua lentidão, vindo a morrer pela pátria, como eles dizem, no Vietname. Na realidade, ele não foi abatido pelo inimigo, nem morreu por pisar uma mina. O Lenny Metz sucumbiu a outro género de combate: foi envenenado por uma prostituta a quem tinha enganado.
O Harold Swallow era ao mesmo tempo demasiado maluco e demasiado rápido para eu o poder acompanhar. Sabe Deus o que foi feito dele. Felicidades, Harold, onde quer que estejas!
Talvez por tudo isto ter acontecido no Halloween, e por a atmosfera do Halloween impregnar as minhas recordações da época vitoriosa do Iowa Bob, todos estes personagens se transformaram em fantasmas, em feiticeiros, em demónios e em criaturas fantásticas na minha imaginação. Ainda por cima, aquela foi a primeira noite que dormimos no Hotel New Hampshire - não que tivéssemos dormido grande coisa. Qualquer noite passada num local desconhecido traz sempre uma certa tensão: é preciso habituar-mo-nos aos diversos ruídos e rangidos da nova cama. Até a Lilly, que acordava sempre com a mesma tosse seca, como se fosse uma pessoa velhíssima - nós parecíamos ficar sempre admirados por vermos que afinal ela era tão pequena -, acordou com uma tosse diferente, quase como se estivesse tão exasperada com a sua débil saúde como a Mãe. O Egg nunca acordava, a menos que alguém o acordasse, e nessa altura portava-se como se estivesse desperto há horas. Mas na manhã a seguir ao Halloween, o Egg acordou por si, quase serenamente. E eu, que há anos ouvia o Frank masturbar-se no seu quarto, achava diferente ouvi-lo agora fazer o mesmo no Hotel New Hampshire - talvez porque soubesse que o Sorrow estava num saco do lixo debaixo da cama dele.
Na manhã a seguir ao Halloween, fiquei a olhar os primeiros raios de luz iluminarem o Elliot Park. Tinha caído geada e, passando por entre as cascas geladas de uma abóbora esmagada que tinha servido de caraça a alguém, vi o Frank dirigir-se para o laboratório de Biologia, levando às costas o saco com o Sorrow. O Pai, que estava a olhar pela mesma janela, também o viu.
- Onde diabo é que o Frank vai com o lixo? - perguntou ele.
- Naturalmente não encontrou os caixotes do lixo - disse eu, para facilitar a vida ao Frank. - Se o telefone não funciona e se não temos luz, provavelmente também não há caixotes do lixo.
- Há, sim - replicou o Pai. - Estão na entrada de serviço. Ficou a olhar para o Frank e abanou a cabeça:
- Aquele cretino é capaz de ir até ao depósito de lixo. Valha-me Deus, aquele rapaz é larilas.
Estremeci, pois só eu sabia até que ponto o Pai estava certo ao dizer que o Frank era larilas.
Quando o Egg saiu finalmente da casa de banho, e o Pai quis ir para lá, descobriu que a Franny tinha-se-lhe antecipado. A Franny tinha-se posto a encher a banheira para tomar outro banho, e a Mãe disse ao Pai:
- Livra-te de lhe dizeres alguma coisa. Ela pode tomar os banhos todos que quiser.
E afastaram-se a discutir, o que raramente acontecia.
- Eu bem te tinha dito que precisávamos de outra casa de banho - insistia a Mãe.
Ouvi a Franny a encher a banheira.
- Gosto muito de ti - sussurrei-lhe baixinho, junto à porta fechada. Mas, com o ruído da água purificadora, é pouco provável que a Franny me tenha ouvido.
FELIZ NATAL DE 1956
Lembro-me do resto de 1956, desde o Halloween até ao Natal, como o tempo que levou até a Franny deixar de tomar três banhos por dia - e a voltar a sentir-se bem com o seu bom velho cheiro a fruta madura. Sempre gostei do cheiro da Franny - embora de vez em quando ela exalasse um odor muito forte -, mas durante todo o tempo desde o Halloween até ao Natal de 1956 era ela que não gostava do seu próprio cheiro. Por isso tomava tantos banhos que deixou de cheirar fosse ao que fosse.
No Hotel New Hampshire, a nossa família ocupou outra casa de banho e tratou de aperfeiçoar as suas aptidões em prol do primeiro negócio familiar do Pai. A Mãe encarregou-se do orgulho rabugento da Sr.a Urick e da produção simples mas boa da sua cozinha; a Sr.a Urick encarregou-se do Max, apesar de ele estar bem escondido dela, no quarto andar; o Pai tomou em mãos a Ronda Ray - "não literalmente", como dizia a Franny.
A Ronda tinha uma estranha energia. Desfazia e tornava a fazer todas as camas numa só manhã; conseguia servir ao mesmo tempo quatro mesas no restaurante sem fazer confusão com o que era encomendado e sem fazer ninguém esperar; conseguia substituir o Pai no bar (estávamos abertos todas as noites, excepto à segunda-feira, até às onze horas) e ter todas as mesas postas antes do pequeno-almoço (às sete). Mas quando se retirava para o seu "quarto de dia", parecia ficar em hibernação ou mergulhada num profundo torpor; e mesmo no auge da energia - quando estava a aprontar tudo, a tempo e horas - parecia ensonada.
- Porque é que dizemos que é um quarto de dia? - perguntou o Iowa Bob. - Vamos lá a ver: se a Ronda regressa a Hampton Beach, quando é que isso acontece? Quer dizer, está certo que ela viva aqui, mas porque é que não dizemos que ela vive aqui? E porque é que ela também não diz?
- Ela está a fazer um bom trabalho - disse o Pai.
- Mas está a viver no quarto de dia - observou a Mãe.
- O que é um quarto de dia? - perguntou o Egg. Parecia que todos nós queríamos fazer a mesma pergunta.
A Franny e eu passávamos horas à escuta do que acontecia no quarto da Ronda Ray agarrados ao intercomunicador, mas foram precisas semanas até que finalmente nós pudéssemos perceber o que era um quarto de dia. A meio da manhã ligávamos para o quarto da Ronda e, depois de escutar a respiração durante um bocado, a Franny dizia:
- A dormir.
Ou então, outras vezes:
- A fumar um cigarro.
Púnhamo-nos à escuta a altas horas da noite, e eu dizia:
- Talvez esteja a ler.
- Estás a gozar comigo? - perguntava a Franny. Já aborrecidos, ligávamos para os outros quartos, um de cada vez, ou todos ao mesmo tempo. Lá estavam os ruídos na linha do Max Urick, sobre os quais conseguíamos às vezes ouvir o rádio dele. Lá estavam os panelões na cozinha da Sr.a Urick, na cave. Sabíamos que o 3F era o quarto do Iowa Bob e, de vez em quando, captávamos o som dos seus halteres - interrompendo-o frequentemente com comentários do género:
- Força, avô! Anda um bocadinho mais depressa! Vamos lá a atirar mesmo com isso ao ar! Estás-te a ir abaixo?!
- O raio dos miúdos! - resmungava o Bob.
Outras vezes fazia chocar dois pesos de ferro um contra o outro junto ao bocal, deixando-nos os ouvidos a zunir e fazendo-nos saltar para trás agarrados a eles.
- Ah! - gritava o Iowa Bob. - Desta vez apanhei-vos, hem, seus espiõezinhos de meia tigela?
- Há um tarado no 3F - transmitia a Franny no intercomunicador. - Tranquem as portas! Há um tarado no 3F!
- Ah! - resmungava o Iowa Bob por entre o levantamento de pesos, as elevações, os exercícios de abdominais e de extensores. - Este hotel é para tarados!
Foi o Iowa Bob quem me incentivou a levantar pesos. O que acontecera à Franny tinha de certo modo despertado em mim a vontade de me tornar mais forte. No Thanksgiving(*) já eu corria dez quilómetros por dia, embora o circuito de corta-mato de Dairy fosse apenas de três quilómetros e meio. O Bob estabeleceu-me um regime que consistia numa enorme quantidade de bananas, leite e laranjas.
- E massa, arroz, peixe, muitas verduras, cereais e gelados - disse-me o velho treinador.
Eu levantava pesos duas vezes por dia e, além dos meus dez quilómetros, fazia séries de corridas de velocidade todas as manhãs no Elliot Park. A princípio, o único resultado visível foi eu engordar. - Põe de parte as bananas - dizia o Pai.
- E os gelados - sugeria a Mãe.
*. Thanksgiving Day - Dia de Acção de Graças, festejado nos EUA na quarta quinta-feira de Novembro como feriado nacional, (N. da T.)
- Não, não - protestava o Iowa Bob. - Desenvolver os músculos demora um bocado.
- Quais músculos? Ele está é gordo! - troçava o Pai.
- Pareces um querubim rechonchudo, querido - dizia-me a Mãe.
- Pareces um ursinho de peluche - escarnecia a Franny.
- Continua a comer e não te rales - aconselhou-me o Iowa Bob. - Com os pesos e as corridas, daqui a pouco vais ver a diferença.
- Antes de rebentar! - perguntava a Franny.
Eu ia a caminho dos quinze anos. Entre o Halloween e o Natal aumentei dez quilos. Pesava oitenta e cinco quilos, mas só tinha um metro e sessenta e sete.
- Pá - disse-me o Júnior Jones -, se te pintássemos de preto e branco e te fizéssemos círculos à roda dos olhos, parecias um panda.
- Um destes dias - disse o Iowa Bob - perdes dez quilos e ficas com o corpo todo rijo e teso!
A Franny fingiu arrepiar-se toda e deu-me um pontapé por baixo da mesa.
- Ai! Todo rijo e teso! - exclamou ela.
- Isso é tudo uma obscenidade - comentou o Frank. - O levantamento de pesos, as bananas, o arquejar escada acima escada abaixo é obsceno!
Quando estava a chover, eu recusava-me a fazer as séries de velocidade no Elliot Park. Em vez disso, o meu exercício consistia em subir e descer a correr as escadas do Hotel New Hampshire.
O Max Urick disse que ia atirar granadas pelo vão da escada. E certa manhã em que chovia a cântaros a Ronda Ray deteve-me no patamar do segundo andar; tinha vestida uma das suas camisas de dormir e parecia particularmente ensonada.
- Deixa-me que te diga, é como ouvir um casal a fazer amor no quarto ao lado do meu - disse ela.
O quarto de dia era o mais próximo do vão da escada. Ela gostava de me chamar John-O.
- Não me importo com barulho de pés, John-O - disse-me ela, - A respiração é que me dá volta ao miolo. Nunca sei se estás a morrer ou se estás quase a vir-te. Mas digo-te uma coisa: até fico com os cabelos todos arrepiados!
- Não lhes dês ouvidos - disse o Iowa Bob. - És o primeiro membro desta família que se interessa pelo corpo como deve ser. Tinhas de ficar obcecado com ele e de te manteres obcecado. E tínhamos de te encher de carnes antes de as transformar em músculos.
Assim foi, e assim é ainda: devo o corpo que tenho ao Iowa Bob - uma obsessão que nunca perdi - e às bananas.
Ainda demorou algum tempo até perder aqueles dez quilos a mais, mas acabei mesmo por os perder, e a partir daí nunca mais os recuperei. O meu peso ficou-se nos setenta e cinco quilos para todo o sempre.
E só aos dezassete anos cresci mais cinco centímetros e fiquei por aí. Um metro e setenta e dois e setenta e cinco quilos, rijos e tesos: eu mesmo, em pessoa.
Dentro em pouco vou fazer quarenta anos, mas ainda agora, quando faço exercício físico, recordo a época do Natal de 1956. Agora os aparelhos de pesos são tão sofisticados! Já não é preciso enfiar os pesos na barra, e já não há o perigo de nos esquecermos de apertar os parafusos e de ficarmos com os dedos esmagados por os pesos escorregarem e chocarem uns nos outros, nem de caírem da extremidade da barra em cima dos nossos dedos dos pés. Mas por mais moderno que seja o ginásio, ou o equipamento, basta um breve e ligeiro exercício de levantamento de pesos para me trazer à memória o quarto do Iowa Bob - o bom velho 3F - e o tapete persa todo coçado em cima do qual se encontravam os pesos, o mesmo tapete em que o Sorrow costumava dormir: depois de termos estado a levantar pesos deitados em cima desse tapete, o Bob e eu ficávamos cobertos de pêlos do animal. E depois de ter estado a levantar a barra durante um bocado, quando essa dor prolongada e voluptuosa se começa a infiltrar em mim, consigo recordar as pessoas mais insignificantes e cada mancha da lona dos colchões de crina do ginásio da Dairy School, onde tínhamos sempre de esperar que o Júnior Jones acabasse a sua vez. O Jones punha os pesos todos na barra e nós tínhamos de ficar de pé, com as nossas barras vazias, à espera durante um tempo infinito. Quando estava nos Cleveland Browns, o Júnior Jones pesava cento e trinta quilos e levantava duzentos e cinquenta, deitado de costas, no alto dos braços erguidos. Não era assim tão forte quando estava na Dairy School, mas já era suficientemente forte para me aconselhar um objectivo adequado no levantamento de pesos.
- Quanto é que pesas? - perguntava-me ele. - Se calhar nem sabes. E quando eu lhe dizia, ele abanava a cabeça e dizia:
- Okay. Tens de levantar o dobro.
E quando eu carregava a barra com o dobro do meu peso - enfiando nela uns cento e cinquenta quilos -, ele punha-se a dar ordens:
- Okay. Agora no tapete, deitado de costas.
Como na Dairy School não havia aparelhos de bancada para fazer este tipo de exercícios, eu deitava-me de costas no tapete e o Júnior Jones pegava no haltere de cento e cinquenta quilos e colocava-o com cuidado atravessado por cima da minha garganta - a distância entre a barra e o chão mal dava para caber o meu pescoço, e eu sentia-a comprimir-me levemente a maçã-de-adão. Quando a empurrava com ambas as mãos, sentia os cotovelos a enterrarem-se no chão.
- Agora levanta-a acima da cabeça - dizia o Júnior Jones.
E saía da sala para ir beber um golo de água ou tomar um duche, deixando-me para ali preso debaixo da barra - sem possibilidades de escapar. É claro que o haltere nem se movia quando eu tentava levantar cento e cinquenta quilos. Outras pessoas, maiores do que eu, entravam na sala, viam-me ali sob os cento e cinquenta quilos e perguntavam-me respeitosamente:
- Eh, estás a preparar-te para levantar isso?
- Estou. Estou só a descansar - respondia eu, a bufar que nem um sapo.
E eles iam-se embora e voltavam mais tarde.
O Júnior Jones também acabava por voltar, mais tarde.
- Que tal vai isso? - perguntava ele.
E retirava dez quilos, depois vinte e cinco, depois cinquenta.
- Experimenta agora - insistia ele.
E continuava a ir-se embora e a voltar até eu me conseguir desembaraçar e sair de debaixo da barra.
É evidente que os meus setenta e cinco quilos nunca levantaram cento e cinquenta, apesar de ter atingido os cento e dez duas vezes na vida e de acreditar que não é impossível levantar duas vezes o meu próprio peso. Debaixo daquele peso todo, chego a entrar em êxtase.
Por vezes, quando estou mesmo a fazer força, consigo ver o Braço Negro da Lei a deslocar-se por entre as árvores, entoando os seus cânticos em surdina; outras vezes lembro-me do cheiro do quinto andar do dormitório onde vivia o Júnior Jones - aquela espécie de clube nocturno escondido na selva escaldante, lá no alto, em pleno céu - e quando estou a correr, aí por volta do quinto ou sexto quilómetro, ou às vezes só lá para o décimo, são os meus próprios pulmões a recordar como se fosse agora a sensação de acompanhar o Harold Swallow; e a visão de uma madeixa de cabelo da Franny, que lhe caía sobre a boca aberta - de que não saía qualquer som -, com o Lenny Metz ajoelhado em cima dos braços dela, apertando-lhe a cabeça entre as suas coxas pesadas de jogador de futebol, e o Chester Pulaski em cima dela, um autómato. Por vezes consigo duplicar exactamente o ritmo dele, quando me ponho a contar as flexões de braços ("setenta e cinco, setenta e seis, setenta e sete") ou os abdominais ("cento e vinte e um, cento e vinte e dois, cento e vinte e três").
O Iowa Bob limitou-se a familiarizar-me com o equipamento; o Júnior Jones veio acrescentar os seus conselhos e o seu maravilhoso exemplo. O Pai já me tinha ensinado a correr - e o Harold Swallow a correr ainda mais. A técnica e a rotina - e até a dieta do Coach Bob - eram fáceis. A parte difícil, para a maioria das pessoas, é a disciplina. Como dizia o Coach Bob, tem de se ficar obcecado e de se permanecer obcecado. Mas para mim também isto era fácil. Eu fazia aquilo tudo pela Franny. Não me estou a lamentar, mas a verdade é que fiz aquilo tudo pela Franny - e ela sabia-o.
- Presta atenção, miúdo - disse-me ela entre o Halloween e o Natal de 1956. - Ainda vais começar a vomitar se não paras de comer bananas. E se não paras de comer laranjas, ainda apanhas um excesso de vitaminas. Porque raio é que andas a esforçar-te dessa maneira? Nunca hás-de ser tão rápido como o Harold Swallow nem tão grande como o Júnior Jones.
- Consigo ler em ti como num livro aberto, miúdo - disse-me a Franny noutra ocasião. - Mas sabes que isso nunca mais vai voltar a acontecer, pá. E se acontecer (e tu agora já és suficientemente forte para me socorreres), o que te leva a pensar que vais estar ali ao pé de mim? Se voltar a acontecer, vou estar em qualquer sítio longe de ti e, de qualquer modo, espero que nunca venhas a saber. Garanto-te!
Mas a Franny tomou demasiado à letra o objectivo do meu treino. Eu queria ter força, resistência, velocidade - ou a ilusão de ter tudo isso. Nunca mais queria tornar a experimentar a impotência daquele Halloween.
Ainda havia vestígios de uma ou duas abóboras despedaçadas - uma na berma da Pine Street, junto ao Elliot Park, e outra que tinha sido atirada das bancadas e que rebentara na pista de cinza que contornava o campo de futebol - quando a Dairy recebeu a Exeter para o último jogo da época vitoriosa do Iowa Bob. O Halloween ainda pairava no ar, embora o Chipper Dove, o Lenny Metz e o Chester Pulaski se tivessem ido embora.
Os defesas suplentes pareciam estar sob a influência de um feitiço qualquer: faziam tudo ao retardador. Corriam para as brechas que o Júnior Jones tinha aberto na equipa contrária depois de estas já estarem fechadas; faziam passagens para o ar, que levavam uma eternidade a voltar para baixo. Enquanto esperava uma destas passagens, o Harold Swallow sofreu uma carga que o deixou inconsciente, e o Iowa Bob não o deixou continuar a jogar durante o resto daquele longo dia.
- Até te tocaram os sinos dentro desse crânio, hem, Harold - disse o Coach Bob ao seu defesa voador.
- Eu cá não tenho sinos nenhuns na cabeça - resmungou o Harold Swallow. - Que sinos vêm a ser esses? Quem é que os tocou?
Ao intervalo, a Exeter ganhava por 24-0. O Júnior Jones, que jogava simultaneamente à defesa e ao ataque, tinha estado envolvido numa dúzia de placagens; tinha provocado três formações espontâneas e ganho duas. Mas a defesa suplente da Dairy tinha deixado cair a bola para a sua frente três vezes, e duas passagens em arco tinham sido interceptadas. Na segunda parte, o Coach Bob pôs o Júnior Jones a jogar a três-quartos, tentando lançá-lo em velocidade, e este conseguiu três first-downs(*) consecutivos antes de a defesa da Exeter readaptar o seu dispositivo à nova situação. Esta readaptação consistiu simplesmente no reconhecimento de que enquanto o Júnior Jones se encontrasse na linha recuada seria ele a transportar a bola. Então, o Iowa Bob pôs outra vez o Júnior na linha avançada, onde ele sempre se podia divertir mais, e os únicos pontos marcados pela Dairy (o que só aconteceu no último quarto do jogo) ficaram a dever-se ao Jones. Ele irrompeu pela defesa da Exeter, ganhou a bola a um defesa desta equipa e correu com ela para a barra de ensaio da Exeter - com dois ou três jogadores adversários pendurados nele. O pontapé de transformação saiu muito para a esquerda,
*. First down (termo do futebol americano) - a primeira de uma série de quatro jogadas (downs) em que uma equipa tem de conseguir avançar um total de dez ou mais jardas para conservar a posse da bola. (N. da T.)
e o resultado final foi: Exeter, 45 - Dairy, 6.
A Franny não assistiu ao ensaio do Júnior: só tinha vindo ao jogo por causa dele e só tinha voltado a ser chefe de claque contra a Exeter para berrar a plenos pulmões pelo Júnior Jones. Mas envolveu-se numa altercação com outra chefe de claque, e a Mãe teve de a levar para casa. A outra rapariga era a Mindy Mitchell, o refúgio do Chipper Dove. - Ninfomaníaca! - chamou a Mindy Mitchell à minha irmã.
- Relaxada! - gritou-lhe a Franny, dando-lhe com o seu megafone de chefe de claque, que era feito de cartão e que parecia um grande cone de sorvete, em castanho cor de merda, com um grande D, de Dairy, pintado no meio, num cinzento cor de morte.
A Franny costumava dizer que aquele D era de Death, de morte.
- Em cheio nas mamas - disse-me outra chefe de claque. - A Franny arriou com o megafone em cheio nas mamas da Mindy Mitchell.
É evidente que depois do jogo eu fui dizer ao Júnior Jones porque é que a Franny não estava lá para o acompanhar de volta ao ginásio.
- Mas que pinta de miúda! - comentou o Júnior. - Não te esqueças de lhe dar os meus parabéns, okay!
É claro que foi o que eu fiz. A Franny tinha tomado outro banho e estava vestida a preceito para ajudar a Ronda a servir à mesa. Estava de muito bom humor. Apesar da tareia que tinha ficado a assinalar o desfecho da época vitoriosa do Iowa Bob, quase toda a gente parecia de bom humor. Era a noite da inauguração do Hotel New Hampshire!
A Sr.a Urick tinha-se excedido na sua filosofia do simples mas bom; o próprio Max andava de camisa branca e gravata, e o Pai estava absolutamente cintilante atrás do bar - o brilho das garrafas reflectidas no espelho, sob os seus cotovelos em constante movimento e acima dos seus ombros, era como uma alvorada em que ele nunca deixara de acreditar.
Os hóspedes que iam passar a noite no hotel eram onze casais, sete pessoas solteiras e um texano divorciado que tinha vindo do Texas de propósito para ver o filho jogar contra a Exeter; o rapaz tinha saído do jogo no primeiro quarto com um entorse no tornozelo, mas até o texano estava de bom humor. Em comparação com ele, os casais e as pessoas solteiras pareciam um pouco tímidas - por não se conhecerem e por só terem em comum o facto de os filhos andarem na Dairy Scholl -, mas, depois da malta nova ter regressado aos dormitórios da escola, o texano conseguiu pôr todas as pessoas a falar umas com as outras no restaurante e no bar.
- Não é uma maravilha ter filhos? - perguntava ele. - É um espanto ver como eles crescem, não é?
Todos concordaram, e o texano continuou:
- Porque é que não puxam as cadeiras aqui para a minha mesa, que eu pago uma rodada a todos?
A Mãe ficou à porta da cozinha parada com um ar ansioso, com a Sr.a Urick e o Max; o Pai deixou-se ficar atrás do balcão do bar, estático mas parecendo confiante; o Frank saiu da sala a correr; a Franny pegou-me na mão e ficámos os dois com a respiração suspensa; o Iowa Bob parecia que estava a tentar conter um enorme espirro. E, um a um, os casais e os solteiros levantaram-se dos seus lugares e tentaram puxar as cadeiras para junto da mesa do texano.
- A minha está presa! - disse uma mulher de Nova Jersey que já tinha bebido uma pinga a mais.
E teve um risinho agudo e esganiçado, uma espécie de guincho estúpido, como o dos hamsters que correm quilómetros e quilómetros naquelas rodinhas das gaiolas.
Um homem do Connecticut ficou com a cara toda vermelha ao tentar erguer a cadeira, até que a mulher lhe disse:
- Está pregada. Está presa com pregos espetados no chão.
Um homem do Massachusetts ajoelhou-se no chão ao lado da cadeira.
- Parafusos - disse ele. – São, mas é parafusos! Quatro ou cinco em cada cadeira!
O texano também se pôs de joelhos a olhar para a cadeira.
- Aqui está tudo aparafusado! - gritou o Iowa Bob de repente. Não tinha falado com ninguém desde o fim do jogo, quando dissera ao "olheiro" da Penn State University que o Júnior Jones podia jogar em qualquer lugar. Estava com o rosto estranhamente vermelho e brilhante, como se tivesse bebido mais do que o costume - ou como se, finalmente, se tivesse dado conta do significado de entrar na reforma.
- Estamos todos num grande barco! - disse o Iowa Bob. - Num grande cruzeiro à volta do mundo.
- la-huu! - gritou o texano - Vou brindar a isso!
A mulher de Nova Jersey agarrou-se às costas da cadeira aparafusada. Alguns dos outros sentaram-se.
- Corremos o risco de sermos varridos pela tempestade a qualquer momento - disse o Coach Bob.
Nessa altura entrou a Ronda, balançando-se para trás e para a frente entre o Bob e os pais dos alunos da Dairy sentados muito direitos nas suas cadeiras presas ao chão; estava novamente a distribuir bases para os copos e guardanapinhos e a passar um pano húmido pelo tampo das mesas. O Frank espreitava da porta que dava para o vestíbulo; a Mãe e os Uricks pareciam paralisados à porta da cozinha; o Pai não tinha perdido o esplendor com que o espelho do bar o aureolava, mas fitava o velho Iowa Bob como se receasse que o treinador reformado fosse dizer qualquer loucura.
- É claro que as cadeiras estão aparafusadas! - continuou o Bob, erguendo impetuosamente um braço em direcção ao céu, como se estivesse a proferir a sua última palestra aos jogadores, no intervalo do seu derradeiro jogo, o jogo da sua vida. - No Hotel New Hampshire - prosseguiu o Iowa Bob -, quando há merda ninguém é arrastado nela!
- la-huu! - gritou de novo o texano, mas todos os outros pareciam ter parado de respirar.
- Agarrem-se bem aos assentos - insistiu o Coach Bob -, e aqui nunca nos acontecerá mal nenhum.
- la-huu! Graças a Deus que as cadeiras estão aparafusadas - exclamou, expansivo, o texano. - Vamos todos brindar a isso!
A esposa do homem do Connecticut deu um audível suspiro de alívio.
- Bem, acho que só temos de falar mais alto se vamos ser amigos e conversar uns com os outros! - disse o texano.
- Pois é! - respondeu a mulher de Nova Jersey, um tudo nada ofegante.
O Pai continuava a fitar o Iowa Bob, mas este estava em plena forma: virou-se e piscou um olho ao Frank, que continuava à porta do vestíbulo, e fez uma vénia à Mãe e aos Uricks. A Ronda Ray atravessou de novo a sala e, com ar atrevido, deu um carinhoso tabefe na face do velho treinador. O texano mirou a Ronda como se se tivesse esquecido totalmente das cadeiras, aparafusadas ou não. Quem é que quer saber de cadeiras e de elas não se poderem mexer, pensava ele, pois a Ronda Ray mexia-se melhor do que o Harold Swallow e estava impregnada do espírito daquela noite de estreia, tal como toda a gente.
- la-huu - murmurou-me a Franny ao ouvido. Mas eu fui sentar-me ao balcão do bar a ver o Pai preparar as bebidas. Ele parecia dominado por uma concentração de energia que eu nunca lhe tinha visto. O crescendo das vozes chegava até mim - e nunca mais me deixaria: hei-de recordar sempre aquele restaurante e aquele bar, naquele Hotel New Hampshire, como um local afogado num vozear ensurdecedor mesmo quando não havia muita gente. Como dizia o texano, todos tinham de falar alto se iam ficar sentados tão longe uns dos outros.
E mesmo depois de o Hotel New Hampshire estar aberto há tempo suficiente para reconhecermos muitas das pessoas da cidade como "clientes habituais" - aqueles que ficavam todas as noites no bar até à hora de fechar, imediatamente antes de o velho Iowa Bob aparecer para o seu último copo antes de se ir deitar - mesmo durante essas noites em família com os poucos clientes mais familiares, o Bob ainda se saía com a sua brincadeira preferida:
- Eh, pá, traga lá a sua cadeira para aqui! - largava ele a algum incauto.
E havia sempre quem caísse. Durante um instante, a pessoa, esquecendo-se do lugar em que estava, dava um pequeno puxão, emitia um grunhido, uma expressão de perplexidade e de esforço perpassava-lhe pelo rosto, e o Iowa Bob desatava a rir e exclamava:
- Não há nada que se possa mexer no Hotel New Hampshire! Estamos aqui aparafusados. Para sempre!
Nessa noite da inauguração, depois de o bar e o restaurante terem fechado e de toda a gente ter ido para a cama, a Franny, o Frank e eu encontrá-mo-nos junto ao painel de comando do intercomunicador e fizemos um controle a cada um dos quartos. Conseguimos ouvir quem dormia a sono solto e quem ressonava; conseguimos detectar quem ainda estava acordado (a ler) e ficámos surpreendidos (e desapontados) ao descobrir que nenhum casal estava a conversar ou a fazer amor.
O Iowa Bob dormia como se fosse um metropolitano, ribombando ao longo de quilómetros e quilómetros de túneis. A Sr.a Urick tinha deixado um panelão a ferver em lume brando, e a linha do Max fazia os habituais ruídos parasitas. O casal de Nova Jersey, ou pelo menos um deles, estava a ler: ouvíamos o lento virar das páginas e a respiração curta do leitor. O par do Connecticut resfolegava, relinchava e roncava durante o sono. O quarto deles parecia uma caldeira de sons em plena ebulição. O Massachusetts, Rhode Island, a Pensilvânia, Nova Iorque e o Maine emitiam todos os sons característicos dos seus vários hábitos de repouso.
Depois ligámos para o texano.
- la-huu! - disse eu à Franny.
- luu-pii! - retorquiu ela baixinho.
Esperávamos ouvir as suas botas de cowboy a baterem no chão; esperávamos ouvi-lo a beber pelo chapéu ou a dormir como um cavalo - com as pernas compridas a galoparem debaixo dos cobertores e as mãos enormes a estrangularem a cama. Mas não ouvimos nada.
- Está morto! - disse o Frank, fazendo com que a Franny e eu déssemos um salto.
- Chiça, Frank! Aguenta aí! Talvez ele não esteja no quarto.
- Teve um ataque cardíaco - insistiu o Frank. - Tem excesso de peso e bebeu de mais.
Continuámos à escuta. Nada. Nada de cavalos a galope. Nada de botas a ranger. Nem sequer o ruído de uma respiração. A Franny comutou para a posição de transmissão.
- la-huu? - sussurrou ela.
Foi então que aquilo nos veio à ideia - a todos os três (ao Frank também) ao mesmo tempo. Num segundo, a Franny ligou para o "quarto de dia" da Ronda Ray.
- Queres saber o que é um quarto de dia, Frank? - perguntou ela. E aquele som inesquecível chegou até nós.
Como dissera o Iowa Bob, estamos num grande cruzeiro à volta do mundo, e há o perigo de sermos varridos pela tempestade a qualquer momento. O Frank, a Franny e eu agarrámo-nos às cadeiras.
- Ooooooohh! - gemia a Ronda Ray.
- Uuh! Uuh! Uuh! - gritava o texano. A seguir, ouvimo-lo dizer:
- Não há dúvida que gosto disto.
- Pfff... - respondeu a Ronda.
- A sério que gosto, gosto mesmo - insistiu ele. Ouvimo-lo a urinar - parecia um cavalo, nunca mais acabava.
- Não imaginas como me custa acertar naquela amostra de retrete do quarto. Fica lá tão em baixo!
Tenho de fazer pontaria antes de mijar - disse o texano.
- Aah! - gritou a Ronda Ray.
- la-huu! - recomeçou o texano.
- Isto é no-jen-to! - disse o Frank, que se foi deitar.
Mas a Franny e eu ficámos a pé até os únicos sons audíveis no intercomunicador serem os do sono.
De manhã estava a chover, e eu decidi suster a respiração de cada vez que passava a correr no patamar do segundo andar. Não queria perturbar a Ronda, e sabia o que ela pensava da minha respiração.
Já com o rosto arroxeado, passei pelo texano, que subia do terceiro para o quarto andar.
- la-huu! - disse eu.
- Bom dia! Bom dia! - respondeu ele. - Em plena forma, hem? Ainda bem! O teu corpo tem de durar até ao fim da vida, não é!
- É sim senhor! - respondi eu, e continuei mais um bocado a correr escada acima, escada abaixo.
Por volta da trigésima viagem, quando eu começava a recordar o Braço Negro da Lei e a imagem da unha arrancada da Franny - quanta dor parecia concentrar-se naquela ponta do dedo a sangrar, tendo-lhe até talvez desviado a atenção do resto do corpo -, a Ronda Ray barrou-me o caminho no patamar do segundo andar.
- Aí-ô, rapaz! - disse ela, e eu parei.
Vestia uma das suas camisas de dormir, e se houvesse sol a luz teria passado através do tecido, iluminando-lhe o corpo perante os meus olhos - mas nessa manhã a luz era sombria e pouco deixava adivinhar das suas formas. Restava apenas a sua forma de se mover e o seu aroma penetrante.
- Bom dia - respondi eu. - la-huu!
- la-huu, John-O - retorquiu ela. Sorri-lhe e comecei a correr no mesmo lugar.
- Estás outra vez a respirar - disse-me a Ronda.
- Estava a tentar suster a respiração por sua causa - arquejei eu -, mas fiquei demasiado cansado.
- Até o raio do coração te consigo ouvir - disse ela.
- Faz-me bem.
- A mim não me faz bem.
Pôs-me a mão no peito, como se estivesse a auscultar o bater do meu coração. Parei de correr. Senti que estava a precisar de cuspir.
- John-O - disse a Ronda Ray -, se gostas de respirar com essa força toda e de ficar com o coração aos saltos, devias vir ter comigo da próxima vez que estiver a chover.
Nessa manhã corri escada acima escada abaixo mais umas quarenta vezes. Se calhar nunca mais chove, pensei eu. E, ao pequeno-almoço, estava cansado de mais para comer.
- Come ao menos uma banana - disse o Iowa Bob. Mas eu desviei o olhar.
- E uma laranja ou duas - insistiu o Bob.
- Com licença - disse eu, e levantei-me da mesa.
O Egg estava na casa de banho e não deixava a Franny entrar.
- Porque é que a Franny e o Egg não tomam banho juntos? - perguntou o Pai.
O Egg tinha seis anos, e provavelmente daí a um ano já teria vergonha de tomar banho com a Franny. Agora gostava de tomar banho por causa de todos os brinquedos que tinha para se entreter na banheira; quando nos servíamos da casa de banho depois dele, a banheira parecia uma praia cheia de crianças que tivesse sido abandonada durante um ataque aéreo. Hipopótamos, barcos, homens-rãs, pássaros de borracha, lagartos, crocodilos, um tubarão que abria e fechava a boca quando se lhe dava corda, uma foca também de dar corda que mexia as barbatanas, uma tartaruga de um amarelo espectral - todas as imitações de animais anfíbios que era possível imaginar, encharcados e a escorrer água no fundo da banheira e a estalar debaixo dos pés no tapete da casa de banho.
- Egg! - berrava eu. - Vem arrumar a trampa que deixaste na casa de banho!
- Qual trampa? - perguntava o Egg.
- Francamente! Mas que linguagem] - não parava a Mãe de nos dizer a todos.
O Frank tinha decidido que era melhor urinar para cima dos caixotes do lixo da entrada de serviço todas as manhãs quando se levantasse, a pretexto de que nunca podia utilizar a casa de banho quando queria. Eu subia ao andar de cima e servia-me da casa de banho contígua ao quarto do Iowa Bob, e também dos pesos, evidentemente.
- Que chatice acordar com esta barulheira! - queixava-se o Iowa Bob. - Nunca pensei que a reforma fosse assim. A ouvir mijar e levantar pesos. Mas que maravilha de despertador!
- Mas não és tu que gostas de acordar cedo? - perguntava eu.
- Não é o quando que me chateia. É o como!
E assim fomos passando o mês de Novembro - com um nevão inesperado no princípio do mês, que eu sabia que devia ter sido uma chuvada. O que é que quereria dizer o não ter chovido?, interrogava-me eu a pensar na Ronda Ray e no seu quarto de dia.
Foi um mês de Novembro muito seco.
O Egg teve uma série de infecções nos ouvidos e portou-se como se estivesse quase surdo durante todo o mês.
- Egg, o que é feito da minha camisola verde? - perguntou a Franny.
- O quê? - respondeu o Egg.
- A minha camisola verde - gritou a Franny.
- Não tenho nenhuma camisola verde - disse o Egg.
- É a minha camisola verde - berrou a Franny. - Ontem ele vestiu-a ao urso, que eu vi - disse a Franny à Mãe. - E agora não sei dela.
- Egg, onde está o teu urso? - perguntou a Mãe.
- A Franny não tem nenhum urso - respondeu o Egg. - O urso é meu.
- Onde está o meu boné de correr? - perguntei eu à Mãe. - A noite passada estava em cima do radiador do vestíbulo.
- Provavelmente é o urso do Egg que o tem posto - sugeriu o Frank.
- E anda lá fora a fazer corridas de velocidade.
- O quê? - perguntou o Egg.
A Lilly também teve problemas de saúde. Fizemos os nossos exames médicos anuais imediatamente antes do Thanksgiving, e o médico da família - um velhote chamado Dr. Blaze(*), cuja chama, como dizia a Franny, se estava quase a extinguir - descobriu num exame de rotina que a Lilly não tinha aumentado de peso nem crescido nada de um ano para o outro; estava exactamente do mesmo tamanho que tinha aos nove anos, o que já não era muito mais do que o que tinha aos oito - ou (comparando os registos) mesmo aos sete.
- Ela não está a crescer? - perguntou o Pai.
- Há anos que digo isso - interveio a Franny. - A Lilly não cresce. Só existe.
A Lilly não pareceu impressionada com o exame. Encolheu os ombros e disse:
- Pronto, sou pequena! E depois? Não estão sempre todos a dizer o mesmo? Qual é o mal de ser pequena?
- Nenhum, querida - respondeu a Mãe. - Podes ser tão pequena quanto quiseres, mas devias estar a crescer, nem que fosse só um bocadinho.
- Ela deve ser daquelas que dão um salto de repente - disse o Iowa Bob, mas até ele devia duvidar disso, pois a Lilly não parecia nada ser do tipo de "dar um salto".
Pusemo-la costas com costas com o Egg. Com seis anos, ele era quase tão grande como a Lilly, que tinha dez, e não havia dúvidas que parecia muito mais robusto.
- Vê se paras quieto! - disse a Lilly ao Egg. - Não te estejas a pôr em bicos de pés.
- O quê? - perguntou o Egg.
- Não te estejas a pôr em bicos de pés, Egg! - disse a Franny.
- Os pés são meus! - respondeu o Egg.
- Talvez eu esteja a morrer - disse a Lilly. E todos tivemos um arrepio, sobretudo a Mãe.
- Não estás a morrer - disse o Pai com rispidez.
- O único que está a morrer é o Frank - disse a Franny.
*. Blaze - chama, lume, fogo. (N. da T.)
- Não - contrariou o Frank. - Eu já morri. E os vivos têm o condão de me chatear mortalmente.
- Parem com isso - disse a Mãe.
Fui levantar pesos para o quarto do Iowa Bob. Cada vez que os pesos escorregavam e caíam pela extremidade da barra, um deles batia na porta do roupeiro e lá caía qualquer coisa cá para fora. O Coach Bob era incrivelmente descuidado com aquele roupeiro, e limitava-se a atirar com tudo lá para dentro, sem arrumar. E uma certa manhã deixou cair uns pesos e um deles rolou até ao armário, de onde saltou o urso do Egg, vestido com o meu chapéu de correr, a camisola verde da Franny e um par de meias de nylon da Mãe.
- Egg! - gritei eu.
- O quê? - gritou o Egg.
- Encontrei a porcaria do teu urso! - berrei eu.
- O urso é meu! - berrou o Egg.
- Bolas, que é de mais! - exclamou o Pai.
E levou o Egg outra vez ao Dr. Blaze para fazer um exame aos ouvidos, e a Lilly para verificar a altura de novo.
- Se ela não cresceu em dois anos - sentenciou a Franny -, duvido que tenha crescido nos últimos dois dias.
Mas parece que havia testes que se podiam fazer à Lilly, e o Dr. Blaze estava aparentemente a tentar decidir que testes eram esses.
- Tu não comes o suficiente, Lilly - disse eu. - Não te preocupes com isso, mas tenta comer um bocadinho mais.
- Não gosto de comer - respondeu a Lilly.
Continuou sem chover - nem uma gota! Ou então, quando chovia, era sempre à tarde ou à noite. Só chovia quando eu estava na aula de Álgebra II, de História da Inglaterra dos Tudor ou de Iniciação ao Latim, e eu ficava a ouvir a chuva a cair, desesperado; ou então quando estava deitado na cama, às escuras - na escuridão do meu quarto, na escuridão que invadia todo o Hotel New Hampshire e o Elliot Park -, ouvindo a chuva a cair sem parar e a pensar: é amanhã! Mas de manhã a chuva tinha-se transformado em neve ou tinha parado de chover; ou então o tempo estava a ficar seco e ventoso, e eu ia fazer as minhas séries de velocidade para o Elliot Park - e o Frank passava por mim a caminho do laboratório de Biologia.
- Pírulas... estás pírulas de todo - resmungava o Frank.
- Quem é que está pírulas? - perguntava eu.
- Tu. E a Franny também. E o Egg está surdo. E a Lilly tem um ar esquisito.
- Pois! E tu és perfeitamente normal, não és, Frank? - perguntei eu, a correr no mesmo lugar.
- Pelo menos não ando por aí a brincar com o meu corpo como se fosse feito de borracha.
É claro que eu sabia que o Frank se fartava de brincar com o seu corpo - até de mais -, mas o Pai já me tinha garantido, numa das suas conversas de homem para homem sobre rapazes e raparigas, que toda a gente se masturbava (e que se devia fazê-lo de vez em quando). Por isso decidi ser simpático com o Frank e não o picar sobre os seus exercícios de mãos.
- Como é que vai o embalsamento do cão, Frank? - perguntei-lhe eu, o que fez com que ele ficasse imediatamente sério.
- Bem, há alguns problemas. A pose, por exemplo, é muito importante. Ainda não decidi qual é a melhor. A questão do corpo propriamente dito já está resolvida, mas a pose é que me está a preocupar.
- A pose! - espantei-me eu, tentando recordar que espécie de poses é que o Sorrow podia ter tido.
Que eu me lembrasse, havia dormido e dado peidos em todas as poses possíveis e imaginárias, sem nenhuma que se distinguisse em especial.
- Bem - explicou o Frank -, é que em taxidermia há umas quantas poses clássicas.
- Estou a ver.
- Há por exemplo a pose "acossada" - disse o Frank, afastando-se de mim bruscamente, fingindo elevar as patas dianteiras como que para se defender e arreganhando os dentes. - Estás a ver como é?
- Por amor de Deus, Frank, não me parece que essa seja a mais adequada para o Sorrow.
- Bem, é uma pose clássica. Olha agora esta.
Virou-se de lado para mim, parecendo deslizar furtivamente por um galho de árvore e rosnando por cima do ombro.
- Esta é a pose "de tocaia".
- Estou a ver - disse eu, pensando se nesta pose o pobre Sorrow seria montado sobre um ramo para ficar de tocaia. - Mas o problema é que ele era um cão, Frank. Não era um puma. O Frank franziu o sobrolho.
- Pessoalmente - disse ele -, sou a favor da pose "de ataque".
- Não me mostres. Prefiro que me faças uma surpresa. - Não te preocupes. Nem o irás reconhecer.
Era justamente isso que me preocupava - que ninguém reconhecesse o pobre Sorrow. Sobretudo a Franny. Acho que o Frank havia esquecido a finalidade daquilo que estava a fazer: tinha-se entusiasmado de mais com o projecto em si; a tarefa equivalia a três trabalhos para a disciplina de Biologia, e o Sorrow adquiriu as proporções de um trabalho de fim de período. Eu jamais conseguiria imaginar o Sorrow em pose "de ataque".
- Porque é que não pões o Sorrow todo enrolado sobre si mesmo, como ele costumava dormir - perguntei eu -, com a cauda a tapar-lhe o focinho e o nariz enfiado no olho do cu?
O Frank deitou-me um dos seus habituais olhares repugnados, e eu comecei a ficar cansado de estar a correr no mesmo sítio; fui fazer mais alguns sprints pelo Elliot Park.
Ouvi o Max Urick gritar-me da sua janela, no quarto piso do Hotel New Hampshire:
- O raio do rapaz é mesmo maluco!
A sua voz ecoou pelo terreno gelado e por entre as folhas mortas e foi assustar os esquilos do parque. Na escada de incêndio, no segundo andar e do lado do quarto dela, uma camisa de noite verde-pálido ondeava na atmosfera cinzenta: nessa manhã, a Ronda Ray devia estar a dormir com a azul ou com a preta - ou então com a cor de laranja berrante. A verde-pálido adejava ao vento na minha direcção, como uma bandeira, e eu fiz mais uma série de sprints.
Quando subi ao 3F, o Iowa Bob já estava a pé; estava a fazer a sua ponte de pescoço habitual, deitado de costas no tapete persa, com um travesseiro debaixo da cabeça. Estava numa ponte bastante elevada - com o haltere, com cerca de setenta e cinco quilos, seguro nos braços esticados acima da cabeça. O velho Bob tinha um pescoço tão grosso como a minha coxa.
- Bom dia - murmurei eu baixinho.
Ele revirou os olhos para trás; o haltere inclinou-se e, como ele não tinha aparafusado devidamente as peçazinhas que mantêm os pesos no lugar, alguns destes deslizaram, caindo por uma das extremidades da barra, e depois pela outra, e o Coach Bob fechou os olhos e encolheu-se enquanto os pesos caíam de ambos os lados da sua cabeça e rebolavam em todas as direcções. Consegui deter alguns com os pés, mas houve um que rolou até à porta do roupeiro e, é claro, abriu-a, e começaram a saltar coisas lá de dentro: uma vassoura, uma camisola de treino, os sapatos de corrida do Bob e uma raqueta de ténis com a fita absorvente de pôr na testa enrolada à volta do cabo.
- Ai! Valha-me Deus! - exclamou o Pai, no andar de baixo, na cozinha da nossa família.
- Bom dia - disse-me o Bob.
- Achas a Ronda Ray atraente? - perguntei-lhe.
- Ah, rapaz...
- Não, a sério.
- A sério? Vai perguntar ao teu pai. Eu já estou velho de mais. Nunca mais olhei para raparigas desde a última vez que parti o nariz.
Isso devia ter acontecido quando ele jogava como avançado no Iowa, porque o nariz do velho Bob tinha uma série de vincos. Também nunca punha os dentes até ao pequeno-almoço, de modo que, ao princípio da manhã, a cabeça dele parecia incrivelmente calva - como se fosse um estranho pássaro sem penas, com a boca vazia entreaberta sob o nariz quebrado; como se fosse a parte de baixo de um bico. O Iowa Bob tinha a cabeça de uma gárgula num corpo de leão.
- Quer dizer, achas que ela é bonita! - perguntei-lhe eu.
- Eu cá não acho nada. Nunca penso nessas coisas.
- Então pensa agora!
- Bem, "bonita" talvez não - disse o Iowa Bob -, mas tem certos atractivos...
- Que atractivos?
- É sexy! - disse uma voz pelo intercomunicador.
A voz da Franny, é claro; como de costume, ela tinha estado à escuta no painel de comandos do "telegrasnador".
- O raio dos miúdos! - exclamou o Iowa Bob.
- Porra, Franny! - disse eu.
- Devias ter-me perguntado a mim - replicou a Franny.
- Ai, ai... - suspirou o Iowa Bob.
E foi assim que acabei por contar à Franny a história da aparente oferta da Ronda Ray no patamar da escada, o seu interesse pela minha respiração ofegante e pelo meu coração palpitante - e o projecto para um dia chuvoso.
- Qual é o problema? Avança, pá! - disse a Franny. - Mas porquê esperar pela chuva?
- Achas que ela é uma puta? - perguntei eu.
- Quer dizer, se leva dinheiro? - disse a Franny.
Essa ideia não me tinha passado pela cabeça, dado que "puta" era um termo usado por tudo e por nada na Dairy School.
- Dinheiro? - admirei-me eu. - Quanto é que achas que ela pode levar?
- Nem sequer sei se ela cobra alguma coisa, mas se fosse a ti tratava de tirar isso a limpo - concluiu a Franny.
Ligámos o intercomunicador para o quarto da Ronda e pusemo-nos à escuta da sua respiração. Era a respiração dela "acordada-mas-para-ali-dei-tada". Ficámos a ouvi-la um bom bocado, como se pudéssemos deduzir do que ouvíamos o hipotético preço dela. Finalmente, a Franny encolheu os ombros e disse:
- Vou tomar um banho.
Pôs o comutador do intercomunicador a girar, e os quartos vazios entraram em linha uns após outros. No 2A não se ouvia nem uma mosca; no 3A nada; no 4A silêncio; no 1B nada; no 4B, o Max Urick e a estática do costume. A Franny abandonou o painel de comandos, preparando-se para ir tomar banho, e eu dei outro impulso no comando, fazendo-o girar rapidamente: 2C, 3C, 4C, 2E, 3E... alto!, espera aí... e por fim o 4E, onde não se ouvia nada.
- Espera um momento - disse eu.
- Qual era esse? - perguntou a Franny.
- Acho que era o 3E.
- Volta a experimentar.
Aquele quarto situava-se no piso por cima do da Ronda Ray e na extremidade oposta do patamar; era em frente do quarto do Iowa Bob, que tinha saído.
- Anda, liga! - disse a Franny.
Estávamos os dois assustados. Não tínhamos nenhuns hóspedes no Hotel New Hampshire, mas não havia dúvidas que ouvíramos uns barulhos esquisitos no quarto 3E.
Era domingo à tarde. O Frank estava no laboratório de Biologia, e o Egg e a Lilly tinham ido ao cinema. A Ronda Ray estava no quarto dela, e o Iowa Bob tinha saído. A Sr.a Urick estava na cozinha, e ouvia-se o rádio do Max Urick por entre o crepitar da estática da linha dele.
Voltei a ligar para o 3E, e a Franny e eu ouvimo-los distintamente:
- Oooohhh! Oooohhh! Oooohhh! - gemia a mulher.
- Hahn! Hahn! Hahn! - resfolegava o homem!
Mas o texano já se tinha ido embora há muito tempo e não havia nenhuma mulher hospedada no 3E.
- Aaaaiii! Aaaaiii! Aaaaiii! - gemia a mulher.
- Humpf! Humpf! Humpf! - arquejava o homem.
Era como se eles tivessem sido inventados pelo raio dos intercomunicadores! A Franny apertava com força a minha mão. Tentei desligar aquilo ou comutar o intercomunicador para outro quarto mais calmo, mas ela não me deixou.
- liihhh! liihhh! - gritou a mulher.
- Chaaarps! - arfou o homem.
Um candeeiro caiu. A mulher começou a rir-se, e o homem pôs-se a resmungar.
- Droga! - exclamou o meu pai.
- Outro candeeiro! - disse a minha mãe sem parar de rir.
- Se fôssemos hóspedes - disse o Pai - tínhamos de o pagar!
E fartaram-se de rir os dois, como se o Pai tivesse dito a coisa mais engraçada deste mundo.
- Desliga! - disse a Franny. Eu obedeci.
- Não deixa de ter a sua graça, não achas? - aventei eu.
- Têm de se servir do hotel - disse a Franny - para se verem livres de nós!
Eu não conseguia perceber onde é que ela queria chegar.
- Oh, meu Deus! - disse a Franny. - Eles gostam mesmo um do outro! Amam-se de verdade!
Dei por mim a pensar porque é que nunca tinha duvidado de semelhante coisa e por que motivo isso parecia ter surpreendido tanto a minha irmã. A Franny largou-me a mão e abraçou-se a si mesma, com força, como se procurasse despertar ou se precisasse de se aquecer.
- O que é que eu hei-de fazer? - exclamou ela. - Como é que vai ser? Que mais é que me vai acontecer?
Mas eu nunca consegui ver tão longe como a Franny. A bem dizer, eu nem estava a ver mais nada para além daquele momento; até me tinha esquecido da Ronda Ray.
- Ias tomar banho - lembrei eu à Franny, que estava com ar de quem precisava de ser lembrada ou de receber outros conselhos.
- O quê? - perguntou ela.
- Um banho. É isso que te vai acontecer a seguir. Vais tomar um banho.
- Ah! O raio que o parta! Que se lixe o banho!
E continuou abraçada a si mesma, balançando-se de um lado para o outro no mesmo lugar como se estivesse a querer dançar consigo própria. Era-me impossível perceber se ela se sentia bem ou não, mas quando comecei a meter-me com ela - a fingir que dançava com ela, a empurrá-la e a fazer-lhe cócegas debaixo dos braços - ela reagiu e pôs-se a fazer-me o mesmo; depois subimos a escada a correr até ao patamar do segundo andar.
- Queremos chuva! Queremos chuva! Queremos chuva! - começou a Franny a gritar.
Eu fiquei terrivelmente envergonhado quando a Ronda Ray abriu a porta do quarto de dia e olhou para nós de sobrolho carregado.
- Estamos a fazer uma dança da chuva - explicou a Franny. - Quer dançar connosco?
A Ronda sorriu. Trazia a camisa de dormir cor de laranja berrante. Na mão segurava uma revista.
- Por agora não - respondeu ela.
- Chuva! Chuva! Vai cair chuva! - continuou a Franny, enquanto se afastava a dançar.
A Ronda olhou para mim com simpatia, abanou a cabeça e depois fechou a porta.
Larguei a correr atrás da Franny e persegui-a até ao Elliot Park. Vimos a Mãe e o Pai à janela do 3E, junto à escada de incêndio. A Mãe tinha aberto a janela para nos chamar.
- Vão buscar o Egg e a Lilly ao cinema! - disse ela.
- O que é que vocês estão a fazer nesse quarto? - perguntei-lhes eu.
- Estamos a limpá-lo! - respondeu a Mãe.
- Chuva! Chuva! Chuva! - gritou a Franny, e corremos para o centro da cidade, em direcção ao cinema.
O Egg e a Lilly saíram do cinema com o Júnior Jones.
- Isto era um filme para miúdos, pá - disse a Franny ao Jones. -Porque é que foste vê-lo?
- Eu não passo de um miúdo grande - respondeu o Júnior.
E deu-lhe a mão enquanto íamos andando para casa; depois, a Franny foi dar uma volta com ele pelos campos da Dairy School, e eu segui para o hotel com o Egg e a Lilly.
- A Franny namora com o Júnior Jones? - perguntou a Lilly, com ar sério.
- Bem, quer dizer, gosta dele como amigo. Ele é muito amigo dela. - O quê? - perguntou o Egg.
Estávamos quase no Thanksgiving. O Júnior ficou connosco para o feriado, dado que os pais não lhe haviam mandado dinheiro suficiente para ele ir a casa. E alguns alunos estrangeiros da Dairy - que estavam demasiado longe de casa para irem passar o Thanksgiving com a família - viriam jantar connosco nesse dia. Lá em casa todos gostávamos da companhia do Júnior, mas a ideia de convidar os estudantes estrangeiros, que ninguém conhecia, tinha sido do Pai - e a Mãe colaborou, dizendo que era para esse tipo de coisas que o Thanksgiving tinha aparecido originariamente. Talvez ela tivesse razão, mas nós, os filhos, não estávamos interessados naquela invasão. Os hóspedes do hotel ainda vá que não vá, e um dos que ficavam connosco - um famoso médico finlandês, ao que parecia - estava de visita à filha, que era aluna da Dairy; ela era um dos estudantes estrangeiros convidados para jantar. Entre os outros convidados contava-se um japonês, que o Frank conhecia do seu projecto de taxidermia. O japonês tinha jurado segredo quanto ao embalsamamento do Sorrow, contou-me o Frank, mas o inglês do rapaz era tão mau que mesmo que ele tivesse papagueado tudo ninguém teria percebido patavina. Havia também duas raparigas coreanas, que tinham umas mãos tão bonitas e tão pequenas que a Lilly não tirou os olhos delas durante todo o jantar. Todavia, talvez estas lhe tenham despertado um interesse pela comida que ela anteriormente não sentia, pois comiam montes de coisas, pegando-lhes com os dedos - de uma forma tão delicada e elegante que a Lilly começou a brincar com a comida tentando imitá-las, acabando assim por engolir alguma coisa. O Egg, é claro, passou o dia a gritar "o quê" para o pobre incompreensível japonês. E o Júnior Jones comeu, comeu, comeu - quase fazendo a Sr.a Urick rebentar de orgulho.
- Ora bem! Isto é que é ter apetite - exclamou a Sr.a Urick, com ar admirativo.
- Se eu fosse assim tão grande, também comia assim - disse o Max.
- Não, não comias - interveio a Sr.a Urick. - Não te está no sangue. A Ronda Ray não andava com a farda de servir; estava sentada a comer com a família, levantando-se para mudar os pratos e trazer coisas da cozinha, juntamente com a Franny, a Mãe e a rapariga finlandesa grande e loira cujo famoso pai tinha vindo visitá-la.
A finlandesa era de facto enorme, e movia-se com tal brusquidão em volta da mesa que a Lilly encolhia-se toda. Era uma rapariga do tipo "esquiadora-de-camisola-azul-e-branca", sempre pendurada ao pescoço do pai - um indivíduo do tipo "esquiador-de-camisola-azul-e-branca".
- Oh! - dizia ele sempre que chegava mais comida da cozinha.
- la-huu - gritava a Franny.
- Ih! Caneco! - exclamava o Júnior Jones.
O Iowa Bob estava sentado ao lado do Jones; a ponta da mesa em que se encontravam era a que ficava mais perto da televisão, que estava em cima do bar, de modo que durante o jantar eles podiam ir vendo o jogo de futebol que estava a ser transmitido.
- Se aquilo foi falta, como já aqui o meu prato - disse o Jones.
- Então come-o - respondeu o Coach Bob.
- O que é uma falta - perguntou o médico finlandês, com uma tal pronúncia que parecia ter dito: "Ô queu ôma fôlta?"
O Iowa Bob ofereceu-se então para fazer uma demonstração na Ronda, que estava longe de se importar, e as duas coreanas soltaram risinhos nervosos, enquanto o japonês lutava - com o peru, com a faca da manteiga, com as explicações grunhidas pelo Frank, com os gritos constantes de "o quê" do Egg e com tudo e mais alguma coisa (ou pelo menos parecia).
- Este é o jantar mais barulhento que eu já vi - disse a Franny.
- O quê? - gritou o Egg.
- Caramba, que é de mais! - disse o Pai.
- Lilly - disse a Mãe -, por favor, come. Como é que queres crescer se não comeres?
- O que se passa? - quis saber o famoso médico finlandês, soando como um "Ô queu sê pôôssa?" gutural.
Olhou para a Mãe e para a Lilly e perguntou:
- Quem é que não cresce?
- Oh, não é nada - respondeu a Mãe.
- Sou eu - disse a Lilly. - Deixei de crescer.
- Não deixaste, não, querida - interveio a Mãe.
- O crescimento dela parece ter parado - disse o Pai.
- Oh, parado! - exclamou o finlandês, olhando para a Lilly. - Não cresces, hem?
Ela fez que sim, no seu jeito tímido. O médico pôs-lhe as mãos na cabeça e observou-lhe os olhos. Toda a gente parou de comer, excepto o japonês e as coreanas.
- Como é que se diz?... - perguntou o médico, dizendo qualquer coisa impronunciável à filha.
- Fita métrica - respondeu esta.
- Oh, uma fita métrica... - pediu o médico.
O Max Urick foi a correr buscar uma. O médico mediu o perímetro torácico da Lilly, a cintura, o perímetro dos pulsos e dos tornozelos, dos ombros e da cabeça.
- Ela está bem - disse o Pai. - Não é nada de grave.
- Cala-te - disse a Mãe.
O médico escreveu todas as medidas.
- Oh! - exclamou ele.
- Come o que tens no prato, querida - disse a Mãe à Lilly.
Mas esta ficou a olhar para os números que o médico tinha escrito no guardanapo dele.
- Como é que se diz?... - perguntou o médico, voltando a proferir para a filha outro nome impronunciável.
Desta vez, a rapariga ficou muda.
- Não sabes? - perguntou-lhe o pai.
Ela abanou a cabeça.
- Não há aí um dicionário? - insistiu ele.
- Tenho um no meu dormitório - respondeu a rapariga.
- Oh! Então vai buscá-lo.
- Agora?
E olhou ansiosa para a segunda dose de ganso e de peru, com o respectivo recheio, que se amontoava no seu prato.
- Vá! Vá! - insistiu o pai. - Agora, pois claro! Vá lá! Oh! Vá lá! E a "esquiadora-de-camisola-azul-e-branca" lá foi.
- Trata-se de... como é que se diz?... de um estado patológico - acabou por dizer, calmamente, o famoso médico finlandês.
- Um estado patológico? - perguntou o Pai.
- Um estado patológico de paragem do crescimento - confirmou o médico. - É uma perturbação vulgar que pode ter uma grande variedade de causas.
- Um estado patológico de paragem do crescimento - repetiu a Mãe. A Lilly encolheu os ombros; estava a imitar a maneira como as raparigas coreanas tiravam a pele a uma perna de peru.
Quando a loira grandalhona voltou, ofegante, pareceu ficar varada ao ver que a Ronda Ray lhe tinha levantado o prato; estendeu o dicionário ao pai.
- Oh! - segredou-me a Franny.
Eu estava sentado em frente dela e dei-lhe um pontapé por baixo da mesa. Ela devolveu-mo, eu atirei-lhe outro e acertei no Júnior Jones por engano.
- Auu! - gritou ele.
- Desculpa - disse eu.
- Oh! - disse o médico finlandês, pondo o dedo na palavra. - Nanismo! - exclamou ele.
Fez-se um silêncio completo à mesa, à excepção do barulho produzido pelo japonês a lutar com as papas de milho.
- Está a insinuar que ela é anã? - perguntou o Pai, dirigindo-se ao médico.
- Oh, exactamente! Anã - disse o médico.
- Tretas - disse o Iowa Bob. - Não é nada anã. É uma rapariguinha! É uma criança, seu mentecapto!
- O que é "mentecapto"? - perguntou o médico à filha, que fez de conta que não sabia.
A Ronda Ray trouxe as empadas.
- Não és nada anã, querida - disse a Mãe baixinho para a Lilly, que se limitou a encolher os ombros.
- E se for, qual é o problema? - disse ela, corajosamente. - Sou uma menina boazinha.
- Bananas - disse o Iowa Bob, com ar sombrio.
Ninguém percebeu se ele as mencionou enquanto cura - alimentem-na a bananas! - ou se estava a usar um eufemismo para "tretas".
Foi assim o Thanksgiving de 1956. E foi na mesma onda que continuámos até ao Natal: a discutir tamanhos, a escutar cenas de amor, a desistir de banhos, a esperar conseguir pôr o Sorrow numa pose adequada, a correr, a levantar pesos e a esperar pela chuva.
Numa manhã do princípio de Dezembro, a Franny veio acordar-me. A escuridão reinava ainda no quarto, e a respiração do Egg, que parecia estar a respirar por um canudo, chegava-me através da porta de comunicação entre os nossos quartos; o Egg ainda estava a dormir. Havia uma respiração controlada e suave mais próxima de mim do que a do Egg, e eu tive a percepção do cheiro da Franny - um cheiro que eu já não sentia desde há algum tempo: um odor intenso, mas nunca desagradável, um pouco salgado, um pouco adocicado, forte mas sem ser enjoativo. E, na escuridão, compreendi que ela se tinha curado da mania dos banhos. Foi o facto de a Franny ter ouvido a Mãe e o Pai a fazerem amor que determinou a sua cura; penso que isso a fez encarar de novo o seu próprio cheiro como uma coisa natural.
- Franny... - chamei eu baixinho, porque não a conseguia ver. A mão dela roçou-me a cara.
- Estou aqui - disse ela.
Estava enroscada entre a parede e a cabeceira da minha cama. Como é que ela conseguiu esgueirar-se ali para o meu lado sem me acordar ainda hoje estou para saber. Virei-me para ela e apercebi-me que tinha lavado os dentes.
- Escuta - segredou ela.
Ouvia o bater do coração da Franny e do meu e o Egg a respirar como se estivesse dentro de um escafandro no quarto contíguo; e ainda um outro ruído indefinível, tão suave como a respiração da Franny.
- É a chuva, palerma! - disse a Franny, insinuando o nó de um dedo nas minhas costelas. - Está a chover, miúdo. É o teu grande dia!
- Ainda está escuro - disse eu. - Ainda estou a dormir. - Já é de madrugada - soprou-me a Franny ao ouvido.
Depois mordeu-me a bochecha e começou a fazer-me cócegas por baixo dos cobertores.
- Acaba com isso, Franny! - disse eu.
- Chuva, chuva, chuva - salmodiava ela. - Não sejas cortão. O Frank e eu há horas que estamos levantados.
A Franny contou-me que o Frank já estava sentado ao painel de comandos do intercomunicador. Depois arrancou-me da cama e fez-me lavar os dentes e enfiar o fato de treino, como se eu fosse correr escada acima escada abaixo, como de costume. No fim, fez-me ir ter com o Frank ao painel de comandos do intercomunicador, e os dois contaram o dinheiro e disseram-me para o esconder dentro de um dos meus sapatos de atletismo - um espesso rolo de notas, sobretudo de um e cinco dólares.
- Como é que eu posso correr com isso no meu sapato? - perguntei eu.
- Hoje não vais correr, ou já te esqueceste? - replicou a Franny.
- Quanto é que está aí? - perguntei eu.
- Preocupa-te primeiro em saber se ela cobra dinheiro - disse a Franny. - Depois logo vês se tens o suficiente.
O Frank sentou-se diante dos botões do intercomunicador como um enlouquecido operador de torre de controle de um aeroporto submetido a um ataque aéreo.
- E o que é que vocês vão fazer?
- Nós ficamos aqui a olhar por ti - disse o Frank. - Se começares a meter os pés pelas mãos ou a ficar enrascado, podemos lançar um exercício de incêndio ou qualquer coisa desse género.
- Ah, pois! Era só o que faltava! - disse eu. - Nem pensem nisso! Não preciso da vossa ajuda.
- Olha, miúdo - retorquiu a Franny -, fomos nós que arranjámos o dinheiro, por isso temos o direito de escutar.
- Porreiro... isto só a mim! - suspirei eu.
- Vai correr tudo bem - continuou a Franny. - Não estejas nervoso.
- E se for tudo um mal-entendido? - aventei eu.
- Para dizer a verdade, é isso mesmo que eu acho - respondeu o Frank. - Nesse caso, não tens mais que tirar o dinheiro do sapato e recomeçar os teus sprints escada acima escada abaixo.
- Estás pírulas, Frank - disse a Franny. - Cala a boca e vê se está tudo na cama.
Clic, clic, clic, clic: o Iowa Bob voltou a ser um metropolitano a quilómetros de profundidade; o Max Urick dormia por entre a estática da linha fazendo os seus próprios ruídos parasitas; a Sr.a Urick e um ou dois panelões fervilhavam em lume brando; o hóspede do 3H - a austera tia de um aluno da Dairy School chamado Bower - ressonava com o ruído igual ao de um formão a ser afiado.
- E agora... bom dia, Ronda! - sussurrou a Franny quando o Frank ligou para o quarto dela.
Oh, que delicioso era o som da Ronda Ray a dormir! Uma brisa marinha a soprar através da seda! Comecei a sentir as axilas banhadas em suor.
- Arranca já lá para cima, parvalhão - disse-me a Franny -, antes que pare de chover!
Havia bem poucas probabilidades de isso acontecer, pensei eu, olhando lá para fora pelos vidros das portas-janelas que davam para o vão da escada: o Elliot Park afogava-se sob um dilúvio de água que fazia transbordar as valetas e cavava regos nos campos de jogos; o céu cinzento parecia já não poder conter tanta chuva. Decidi correr umas quantas séries, escada acima escada abaixo - não necessariamente por causa do que já lá ia, mas por achar que talvez fosse a maneira mais familiar de acordar a Ronda. Mas quando me encontrei de pé em frente da porta do quarto dela, sentia os dedos dormentes e estava a ofegar ruidosamente - mais do que eu pensava, disse-me a Franny mais tarde. Ela contou-me que eu estava a respirar de tal maneira que ela e o Frank já me conseguiam ouvir no intercomunicador ainda antes de a Ronda se levantar e abrir a porta.
- Só pode ser o John-O ou um comboio desgovernado - murmurou a Ronda antes de me deixar entrar.
Mas eu não conseguia falar. Estava a ofegar tanto como se tivesse andado a correr pelas escadas toda a noite.
O quarto estava escuro, mas mesmo assim pude ver que ela trazia vestida a camisa azul. O seu hálito matinal era ligeiramente acre - mas para mim tinha um odor agradável, tal como ela tinha um odor agradável, embora eu tivesse concluído mais tarde que o seu odor era simplesmente o da Franny ampliado demasiadas vezes.
- Ih, Jesus, que joelhos tão frios! Deve ser de usares essas calças sem pernas! - exclamou a Ronda Ray. - Vem para aqui aquecer-te.
Tropecei a tirar os calções, e ela continuou:
- Valha-me Deus, que braços tão frios! Deve ser de usares essa camisola sem mangas!
E eu também me desenvencilhei dela atabalhoadamente. Descalcei os sapatos, e lá consegui esconder o rolo de notas na biqueira de um deles.
Ainda hoje me interrogo se não terá sido o facto de ter feito amor debaixo do intercomunicador que determinou, a partir daí, a minha atitude face às relações sexuais. Ainda hoje - com quase quarenta anos - tenho tendência para falar baixinho. Ainda me lembro de ter suplicado à Ronda Ray que falasse baixinho.
- Foi por pouco que eu não te gritei "fala mais alto!" - disse-me a Franny depois. - Aquela parvoíce dos segredinhos pôs-me tão danada que nem imaginas!
Mas havia outras coisas que eu podia ter dito à Ronda Ray se não soubesse que a Franny as podia ouvir. Nunca cheguei a pensar no Frank, embora tenha sempre tendência a evocá-lo - ao longo das nossas vidas, em conjunto e separadamente - sentado diante do painel de um intercomunicador, algures, escutando casais a fazer amor. Imagino sempre o Frank como se estivesse à escuta de cenas amorosas com a mesma expressão de desagrado que se lhe estampava no rosto na maior parte das ocasiões: um enfado vago, mas generalizado, quase no limiar da repulsa.
- És despachado, John-O, muito despachado - disse-me a Ronda Ray.
- Por favor, fala baixinho - disse-lhe eu, falando com uma voz abafada para dentro do seu cabelo, de um colorido violento.
Devo o meu nervosismo sexual a esta iniciação. É uma sensação de que nunca me libertarei completamente: sinto que tenho, de algum modo, de controlar o que digo e o que faço, ou arrisco-me a trair a Franny. Será por causa da Ronda Ray, no primeiro Hotel New Hampshire, que eu imagino sempre que a Franny está a escutar?
- A coisa parece-me ter sido para o fraco - disse-me depois a Franny. - Mas com certeza que não deve ter sido assim tão mau... para a primeira vez.
- Obrigadinho por não teres ido dar instruções à linha lateral - respondi-lhe eu.
- Então tu achas que eu era capaz de fazer uma coisa dessas? - indignou-se ela.
Nessa altura, pedi-lhe desculpa, mas a verdade é que nunca soube o que é que a Franny era capaz de fazer.
- Como vai isso com o cão, Frank? - estava eu sempre a perguntar-lhe à medida que o Natal se aproximava.
- Como vai isso de segredinhos? - perguntava-me o Frank. - Tenho reparado que tem chovido muito, ultimamente.
Pode ser que até tenha chovido muito nesse ano, antes do Natal. Caso contrário, admito ter tomado a liberdade de encarar a neve como uma coisa que, se não era bem chuva, era como se fosse; ou mesmo de tomar por chuva uma manhã enevoada que ameaçasse converter-se nela - ou em neve... E foi numa dessas ocasiões, muito perto do Natal - depois de eu já ter devolvido ao Frank e à Franny, há muito tempo, o rolo de notas que tinha metido no sapato -, que a Ronda Ray me perguntou:
- ó John-O, não sabes que é costume dar gorjetas às criadas? Topei logo onde ela queria chegar. Não sei se a Franny me terá estado a
escutar nessa manhã - ou se terá ouvido o som de notas a ranger que se seguiu.
Gastei o meu dinheiro do Natal com a Ronda Ray.
É claro que comprei qualquer coisa para a Mãe e para o Pai. Não dávamos grandes presentes no Natal - a ideia era oferecer uma patetice qualquer. Acho que comprei um avental para o Pai usar quando estava de serviço ao bar do Hotel New Hampshire; era um desses aventais que têm uma frase estúpida estampada na frente. E à Mãe devo ter oferecido um urso de porcelana. O Frank dava sempre uma gravata ao Pai e um lenço de pescoço à Mãe; a Mãe dava estes lenços à Franny, que os usava de todas as maneiras possíveis e imaginárias, e o Pai tornava a dar as gravatas ao Frank, que gostava de gravatas.
No Natal de 1956, arranjámos uma coisa especial para o Iowa Bob: uma fotografia emoldurada e ampliada do Júnior Jones a marcar o único ensaio da Dairy no jogo contra a Exeter. Esta prenda, pelo menos, não foi tão pateta como as outras. A Franny ofereceu à Mãe um vestido todo provocante, que esta nunca usou. A Franny esperava que a Mãe lho desse, mas esta também nunca teria deixado a Franny vesti-lo.
- Ela pode vesti-lo só para o Pai, quando forem para o 3E - disse-me a Franny, com ar carrancudo.
O Pai ofereceu ao Frank uma farda de condutor de autocarro, por ele gostar tanto de fardas; o Frank iria usá-la quando fizesse de porteiro no Hotel New Hampshire.
Nas raras ocasiões em que tínhamos mais de um hóspede a pernoitar no hotel, o Frank gostava de fingir que havia sempre um porteiro no Hotel New Hampshire. A cor da farda de condutor de autocarro era o velho cinzento cor de morte da Dairy; as calças e as mangas do casaco eram curtas de mais para o Frank, e o boné demasiado grande; os hóspedes deitavam-lhe sempre um olhar sinistro quando ele lhes abria a porta, pois o Frank era em tudo semelhante a um gato-pingado.
- Bem-vindos ao Hotel New Hampshire - repetia ele constantemente para se treinar, embora aquilo soasse sempre a falso.
Ninguém sabia o que dar à Lilly - a não ser que não podia ser um anão, ou um gnomo, ou qualquer outra coisa pequena.
- Dêem-lhe comida! - sugeriu o Iowa Bob, dias antes do Natal.
A minha família também nunca alinhava nessa treta das compras de Natal planeadas e feitas com toda a antecedência. Connosco era sempre à última hora. O Iowa Bob enfiou um grande barrete com a árvore de Natal que cortou uma manhã no Elliot Park, pois esta era demasiado grande para caber de pé no restaurante do hotel, a menos que fosse serrada ao meio.
- Não me diga que cortou essa árvore tão bonita?! - exclamou a Mãe.
- Bem, o parque é nosso, não é? - perguntou o Coach Bob. - Para que mais é que servem as árvores?
Bem vistas as coisas, ele era do Iowa, onde a vista se estende por quilómetros e quilómetros - muitas vezes sem se avistar uma única árvore.
Foi com o Egg que gastámos mais dinheiro em presentes, pois era o único que nesse ano estava na idade própria para apreciar o Natal. E o Egg gostava de receber coisas. Toda a gente lhe ofereceu animais, bolas, brinquedos para a banheira e equipamento de ar livre - quase tudo tralha que havia de ser perdida, quebrada, ou abandonada sob camadas de neve, ou que deixaria de lhe servir antes de o Inverno acabar.
A Franny e eu encontrámos um frasco cheio de dentes de chimpanzé num antiquário de Dairy e comprámo-los para o Frank.
- Ele pode aproveitá-los para uma das suas experiências de embalsamamento - disse a Franny.
Ainda bem que não demos os dentes ao Frank antes do Natal, pensei eu, senão ele era bem capaz de tentar empregá-los no seu trabalho com o Sorrow.
- Sorrow! - berrou o Iowa Bob em plena noite, mesmo antes do Natal.
Sentámo-nos todos na cama, com os cabelos em pé.
- Sorrow! - gritou o velho no quarto dele.
E os halteres rebolaram pelo chão fora. A porta do quarto dele abriu-se, e ouvimo-lo berrar no patamar deserto do terceiro andar:
- Sorrow!
- O velho teve um pesadelo - disse o Pai, subindo a escada em roupão.
Mas eu fui ao quarto do Frank e fitei-o com ar inquisidor.
- Não olhes para mim dessa maneira - disse o Frank. - O Sorrow ainda está no laboratório. Ainda não está pronto.
E subimos todos ao terceiro andar para ver o que se passava com o Iowa Bob.
Segundo nos contou, tinha "visto" o Sorrow. O Coach Bob tinha sentido o cheiro do cão durante o sono e, quando acordou, o Sorrow estava de pé no velho tapete persa - que era o seu preferido - no quarto do avô.
- Mas ele tinha um ar tão ameaçador! - acrescentou o Bob. - Até parecia que ia atacar.
Olhei de novo para o Frank, mas este encolheu os ombros. O Pai revirou os olhos.
- Tiveste um pesadelo - disse ele ao pai.
- O Sorrow estava neste quarto! - insistiu o Coach Bob. - Mas não parecia o Sorrow. Tinha um ar de quem me queria matar.
- Psiu! - disse a Mãe, e o Pai fez sinal para que saíssemos do quarto.
Ouvi-o começar a falar com o Iowa Bob da mesma maneira que costumava falar com o Egg ou com a Lilly - ou com qualquer de nós quando éramos mais pequenos -, e apercebi-me de que o Pai falava muitas vezes assim com o Bob, como se ele fosse uma criança.
- É aquele tapete velho - segredou-nos a Mãe. - Tem tanto pêlo de cão que o vosso avô ainda sente o cheiro do Sorrow durante o sono.
A Lilly tinha um ar assustado, mas a Lilly tinha muitas vezes um ar assustado. O Egg cambaleava como se estivesse a dormir em pé.
- O Sorrow morreu, não morreu? - perguntou ele.
- Morreu, pois - respondeu a Franny.
- O quê? - perguntou o Egg tão alto que a Lilly deu um salto.
- Vamos lá a saber, Frank - segredei eu no vão da escada -, afinal em que pose é que puseste o Sorrow?
- Em pose de ataque - respondeu ele, e eu estremeci.
Pensei que o velho animal, ressentido com a incrível pose a que o tinham condenado, havia regressado para assombrar o Hotel New Hampshire. E tinha ido direito ao quarto do Iowa Bob, porque era lá que se encontrava o seu tapete preferido.
- O melhor é pôr o tapete do Sorrow no quarto do Frank - alvitrei eu ao pequeno-almoço.
- Não quero essa velharia - disse o Frank.
- Pois eu quero essa velharia - disse o Iowa Bob. - É óptimo para os meus pesos.
- Aquilo desta noite deve ter sido um sonho - aventurou-se a Franny a dizer.
- Não foi sonho nenhum, Franny - ripostou o Bob, inflexível. - Era o Sorrow, em carne e osso.
A Lilly ficou de tal modo arrepiada com as palavras "em carne e osso" que deixou cair a colher com fragor.
- O que é carne e osso! - perguntou o Egg.
- Olha, Frank - disse-lhe eu, na véspera de Natal, no Elliot Park coberto de gelo -, acho que é melhor deixares o Sorrow no laboratório.
Perante esta sugestão, o Frank pôs-se em posição "de ataque".
- Já está pronto. E vou levá-lo para casa esta noite.
- Ao menos faz-me o favor de não o embrulhares como uma prenda qualquer.
- Embrulhá-lo? - exclamou o Frank, com um ligeiro desdém. - Julgas que eu sou maluco ou quê?!
Não respondi, e ele acrescentou:
- Ouve lá, não estás a perceber o que se passou? Fiz um trabalho tão bom com o Sorrow que o avô teve um sonho premonitório de que o Sorrow tinha voltado para casa.
Sempre me tinha espantado a habilidade do Frank em fazer com que a idiotice mais chapada parecesse ter alguma lógica.
E assim chegámos à noite de Natal. Estava tudo sossegado, tudo sem tugir nem mugir, como se costuma dizer - menos um ou dois panelões na cozinha e a eterna estática na linha do Max Urick. A Ronda Ray estava no quarto dela. E havia um turco no 2B - um diplomata que estava de visita ao filho, a estudar na Dairy School; este era o único aluno da Dairy que não tinha ido para casa (ou para casa de alguém) passar o Natal. Os presentes estavam todos cuidadosamente escondidos. Era tradição da nossa família pôr as prendas debaixo da árvore de Natal - despida de todo e qualquer ornamento - na manhã do dia 25.
Sabíamos que a Mãe e o Pai tinham escondido os nossos presentes no 3E - o quarto que eles visitavam frequentemente e com particular satisfação. O Iowa Bob tinha posto as suas prendas numa das casas de banho miniatura do quarto andar, a que já ninguém chamava "de anões" - desde o duvidoso diagnóstico da possível afecção da Lilly. A Franny mostrou-me todos os presentes que tinha para oferecer - e até me fez uma passagem de modelos com o tal vestido provocante que tinha comprado para a Mãe. Isso levou-me a mostrar-lhe a camisa de noite que havia comprado para a Ronda Ray, que a Franny experimentou logo. Quando a vi com ela vestida, percebi que devia tê-la comprado para a Franny. Era de um branco de neve, cor que não se encontrava na colecção da Ronda.
- Devias tê-la comprado para mim! - disse a Franny. - Adoro-a!
Mas eu nunca seria capaz de atinar a tempo com o que a Franny queria; ela bem costumava dizer: "Hei-de estar sempre um ano à tua frente, miúdo."
A Lilly escondeu as prendas numa pequena caixa; todas as prendas dela eram pequenas. O Egg não arranjou presentes para ninguém, mas esquadrinhou incansavelmente todo o Hotel New Hampshire à procura das prendas que os outros tinham comprado para ele. E o Frank escondeu o Sorrow no roupeiro do Coach Bob.
- Mas porquê? - fartei-me eu de lhe perguntar mais tarde.
- Era apenas por uma noite - disse o Frank. - E eu sabia que a Franny nunca iria meter o nariz ali.
Na véspera do Natal de 1956, toda a gente foi para a cama cedo e ninguém dormiu - outra tradição familiar. Ouvíamos o gelo ranger sob a neve no Elliot Park. Havia momentos em que o Elliot Park podia estalar como um caixão a mudar de temperatura ao ser descido à terra. Porque seria que até o Natal de 1956 fazia lembrar um pouco o Halloween?
Havia mesmo um cão a ladrar, noite alta, e, embora esse cão não pudesse ser o Sorrow, todos nós, que estávamos acordados, pensámos no sonho do Iowa Bob - na sua "premonição", como o Frank lhe tinha chamado.
Na manhã do dia de Natal - uma manhã clara, ventosa e fria - fui fazer os meus quarenta ou cinquenta sprints no Elliot Park. Todo nu, eu já não parecia tão "gorducho" como com o meu equipamento de corrida vestido - como a Ronda Ray me estava sempre a dizer. Algumas das bananas estavam a tornar-se rijas. E, fosse dia de Natal ou não, rotina era rotina: fui ter com o Coach Bob para uma pequena sessão de levantamento de pesos antes de a família se reunir para o pequeno-almoço de Natal.
- Fazes os exercícios de braços enquanto eu faço umas pontes de pescoço - disse-me o Iowa Bob.
- Sim, avô - respondi eu.
E fiz o que ele me disse. Pés contra pés no velho tapete do Sorrow, atirá-mo-nos aos exercícios de abdominais; cabeça contra cabeça, executámos as nossas flexões de braços. Havia apenas um haltere grande e dois pequenos para os exercícios de braços. Trocámos os pesos e voltámos a trocá-los -para nós, aquilo era uma espécie de oração matinal sem palavras.
- Esses braços, esse peito, esse pescoço... isso já está tudo em forma - disse-me o avô Bob. - Mas ainda precisas de trabalhar os antebraços. E talvez seja melhor pores uns doze quilos em cima do peito para os exercícios de abdominais. Estás a fazê-los com demasiada facilidade. E flecte os joelhos.
- lups - disse eu, sem fôlego, como costumava ficar com a Ronda Ray.
O Bob levantou o haltere grande e fez umas dez elevações sem o deixar tocar no chão; a seguir fez mais umas quantas flexões de pernas com ele seguro à altura dos ombros. Devia ter uns oitenta a noventa quilos na barra quando os pesos começaram a deslizar por uma das pontas, e eu tive de saltar para não ser atingido; e então foi a vez de outros vinte e cinco a trinta e cinco quilos escorregarem pela outra extremidade, enquanto o Iowa Bob gritava:
- Porra! Merda de coisa esta!
Os pesos rebolaram pelo quarto. O Pai, lá em baixo, pôs-se aos gritos.
- Bolas! Halterofilistas de uma figa! Apertem-me esses parafusos!. Um dos pesos foi bater na porta do roupeiro do Bob, e como de costume
esta abriu-se; lá de dentro saltaram uma raqueta de ténis, o cesto da roupa suja do Bob, um tubo de aspirador, uma bola e o Sorrow - embalsamado.
Tentei articular alguma coisa, apesar de o cão me ter assustado quase tanto como ao Iowa Bob. Mas eu, pelo menos, sabia o que aquilo era: era o Sorrow na "pose de ataque" do Frank. Era uma pose muito bem conseguida, sim senhor, e um trabalho de embalsamamento de um Labrador negro mais bem feito do que eu esperava por parte do Frank. O Sorrow estava aparafusado a uma tábua de pinho; como teria dito o Coach Bob: "Está tudo aparafusado no Hotel New Hampshire; no Hotel New Hampshire fica-se aparafusado para sempre]" O feroz cão deslizou com graciosidade para fora do armário, aterrando firmemente sobre as quatro patas e parecendo prestes a saltar. O seu pêlo negro estava tão lustroso que devia ter sido recentemente untado com óleo, e os olhos amarelos captavam a luz brilhante da manhã - e a luz fazia cintilar os velhos dentes amarelos, que, para a ocasião, o Frank havia polido até se tornarem brancos. Tinha os beiços arreganhados, muito mais arreganhados do que eu alguma vez vira os beiços do velho Sorrow em vida, e uma espécie de baba reluzente - uma imitação muito convincente - parecia colorir mais intensamente as gengivas do animal. O nariz preto tinha um aspecto húmido e sadio, e eu quase podia sentir o hálito fétido chegar a mim e ao Iowa Bob. Mas este Sorrow parecia demasiado a sério para se peidar.
Este Sorrow infundia respeito, e, antes de eu conseguir recuperar o fôlego e dizer ao avô que aquilo era apenas um presente de Natal para a Franny - e que não passava de um dos pavorosos trabalhos do Frank feitos lá no laboratório de Biologia -, o velho treinador atirou com o haltere para cima da besta selvagem e enraivecida e lançou o seu espantoso físico de atleta para cima de mim (sem dúvida para me proteger; deve ter sido essa a sua reacção).
- Com o caneco! - disse o Iowa Bob, num estranho fio de voz.
Os pesos caíram com estrépito a toda a volta do Sorrow. Mas aquela fúria de dentuça arreganhada não se deixou intimidar: continuou na mesma posição, pronto para matar. E o Iowa Bob, que já tinha terminado a sua última época, caiu morto nos meus braços.
- Com franqueza! Mas vocês estão a atirar com os pesos de propósito ou quê? - gritou-nos o Pai cá para cima. - Por amor de Deus! Façam um dia de descanso! É dia de Natal, caramba! Feliz Natal! Feliz Natal!
- Feliz Natal, porra! - gritou a Franny do rés-do-chão.
- Feliz Natal! - gritaram a Lilly e o Egg e o próprio Frank.
- Feliz Natal! - disse a Mãe, com brandura.
E seria a Ronda Ray quem eu ouvia a cantarolar? E os Uricks já a prepararem o pequeno-almoço de Natal no Hotel New Hampshire? E aquela algaraviada incompreensível só podia ser o turco do 2B.
Mas eu segurava nos meus braços, compreendendo então como estes se tinham tornado fortes, a antiga estrela da Liga de Honra, que para mim tivera tanto peso e significado como o nosso urso de família, e fiquei a olhar para a curta distância que nos separava do Sorrow - e da dor(*).
*. Sorrow - tristeza, desgosto, dor. (N. da T.)
O PAI TEM NOTÍCIAS DO FREUD
A prenda de Natal do Coach Bob - a fotografia emoldurada e ampliada do Júnior Jones a marcar o único ensaio da Dairy no jogo contra a Exeter
- foi oferecida à Franny, que também herdou o 3F, o antigo quarto do avô. A Franny não queria ouvir nem falar do trabalho feito pelo Frank. O Egg, porém, havia arrastado o cão embalsamado para o quarto dele, escondendo-o debaixo da cama, onde a Mãe o veio a descobrir, com um grito, vários dias depois do Natal. Sei que o Frank gostaria de ter reavido o Sorrow - para fazer mais experiências com a expressão facial ou a pose -, mas mantinha-se retraído e ensimesmado, trancado no seu quarto, desde que tinha feito o avô morrer de susto.
O Iowa Bob tinha sessenta e oito anos quando morreu, mas o velho avançado estava em excelente forma: se não fosse um susto do tamanho do que apanhou com o Sorrow podia ter vivido mais dez anos. A nossa família fez o possível para não deixar que a responsabilidade pelo acidente se tornasse um peso excessivo para o Frank.
- Para o Frank, não há nada que possa ser um peso excessivo - dizia a Franny.
Mas até ela tentava animá-lo.
- Isso de embalsamar o Sorrow foi uma ideia bem-intencionada, Frank - disse-lhe a Franny. - Mas tens de compreender que nem todos têm o mesmo gosto.
O que ela lhe podia ter dito é que a taxidermia, tal como o sexo, é um assunto muito pessoal e que a maneira de a impor aos outros deve ser discreta.
O sentimento de culpa do Frank - se era mesmo culpa o que ele sentia
- só se manifestava pela sua exagerada ausência; o Frank sempre primava mais pela ausência do que qualquer de nós, mas o seu silêncio habitual tornou-se ainda mais pronunciado. Mesmo assim, a Franny e eu sentíamos que só a intratável reserva dele o impedia de perguntar pelo Sorrow.
A Mãe, contra os protestos do Egg, deu instruções ao Max Urick para se desembaraçar do cão, o que este fez, mas limitando-se a enfiar aquela fera imóvel, de pernas para o ar, num dos caixotes do lixo da entrada de serviço. E numa manhã de chuva, da janela do quarto da Ronda Ray, apercebi-me boquiaberto da cauda e da garupa encharcadas do Sorrow emergindo da boca do caixote; imaginei a estupefacção do homem do lixo, no camião dos Serviços Municipalizados, a pensar com os seus botões: "Meu Deus, no Hotel New Hampshire, quando se fartam dos animais de estimação, deitam-nos fora como se fossem lixo!"
- Volta para a cama, John-O - disse-me a Ronda Ray.
Mas eu fiquei a olhar para a chuva, que se ia transformando em neve, a cair sobre a fila de caixotes do lixo atulhados de papéis de embrulho próprios da quadra festiva, fitas e ornamentos de árvore de Natal, garrafas, caixotes de cartão e latas do restaurante, restos de comida mais ou menos coloridos, com interesse para os pássaros e para os cães, e um cão morto sem interesse para ninguém. Bem, para quase ninguém. O Frank deve ter ficado com o coração despedaçado ao ver o fim degradante do Sorrow; e, ao olhar a neve que se ia acumulando sobre o Elliot Park, vi outro membro da minha família que ainda estava ardentemente interessado no Sorrow. Vi o Egg, de impermeável e gorro, a arrastar o seu trenó em direcção à entrada das traseiras. Deslocava-se com rapidez sobre a neve escorregadia, com o trenó a raspar a superfície do caminho, crivado de poças de água e ainda não coberto pela neve. O Egg sabia para onde ia - deu uma olhadela rápida para dentro das janelas da cave, e passou a salvo da indiscrição da Sr.a Urick; outra olhadela de relance para o quarto andar, mas o Max não estava a vigiar os caixotes do lixo. Os quartos da nossa família não davam para as traseiras, e o Egg sabia que já só a Ronda Ray podia vê-lo. Mas ela estava na cama, e quando o Egg olhou para a janela eu escondi-me rapidamente.
- Se te apetece mais ir correr lá para fora, John-O - resmungou a Ronda -, vai!
Quando tornei a olhar pela janela, o Egg tinha desaparecido, e o Sorrow tinha desaparecido com ele. Pressenti que ainda não iam ficar por ali as tentativas para ressuscitar o cão, mas só me restava tentar adivinhar onde é que ele voltaria a aparecer.
Quando a Franny se mudou para o quarto do Iowa Bob, a Mãe resolveu redistribuir os outros quartos. Pôs-me a mim e ao Egg juntos no quarto onde tinham estado a Franny e a Lilly, e deu a esta última o meu antigo quarto e mais o quarto contíguo, que tinha sido do Egg - como se, contra toda a lógica, o suposto nanismo da Lilly exigisse não só maior privacidade mas também mais espaço. Eu ainda refilei, mas o Pai respondeu-me que eu exerceria uma influência positiva no amadurecimento do Egg. Os aposentos secretos do Frank não sofreram modificações, e os halteres também continuaram no quarto do Iowa Bob, o que me deu ainda mais razões para visitar a Franny, que gostava de me ver levantá-los. Por isso, quando agora me exercitava, não pensava só na Franny - o meu único público! -: com um pequeno esforço suplementar, conseguia fazer regressar o Coach Bob, e levantava pesos pelos dois.
Imagino que, ao salvar o Sorrow da inevitável viagem até à lixeira municipal, talvez o Egg estivesse a ressuscitar o Iowa Bob da única maneira que lhe era possível. Que influência no amadurecimento do Egg esperava o Pai que eu exercesse continuava a ser um mistério para mim, embora fosse tolerável partilhar o quarto com o Egg. A roupa dele era o que me incomodava mais - ou melhor, não tanto a roupa dele, mas os seus hábitos com a roupa: o Egg não se vestia, trajava. Mudava de traje várias vezes por dia, e o vestuário que despia ocupava sempre a área central do nosso quarto, acumulando-se aí durante vários dias, até a Mãe entrar de rompante e me perguntar se eu não conseguia convencer o Egg a ser mais arrumado. Talvez o Pai se tivesse querido referir à "arrumação" quando falara de "amadurecimento".
Na primeira semana em que partilhei o quarto com o Egg, estive menos preocupado com o seu desmazelo do que ansioso por descobrir onde tinha ele escondido o Sorrow. Não queria voltar a assustar-me com aquela personificação da morte, embora na minha opinião a personificação da morte seja sempre assustadora - por convenção deve ser assustadora -, e nem mesmo o facto de já contarmos com ela é suficiente para nos prepararmos devidamente para a enfrentarmos. Pelo menos no que dizia respeito ao Egg e ao Sorrow isto era verdade.
Na noite que antecedeu a véspera de Ano Novo, com o Iowa Bob morto ainda não havia uma semana e o Sorrow desaparecido do lixo havia apenas dois dias, segredei ao Egg - que eu sabia não estar a dormir - na escuridão do quarto:
- Vamos lá a saber, Egg! Onde é que o escondeste? Mas havia de ser sempre um erro sussurrar coisas ao Egg.
- O quê? - perguntou ele.
A Mãe e o Dr. Blaze diziam que a audição do Egg estava a melhorar, embora o Pai se referisse à "surdez" dele e não ao seu "ouvido" e tivesse concluído que o Dr. Blaze devia ser surdo para achar que o Egg estava a "melhorar". O mesmo se passava, aliás, com a opinião do Dr. Blaze sobre o nanismo da Lilly: que ela também estava a melhorar, porque a Lilly tinha crescido (um bocadinho). Mas, como toda a gente havia crescido muito mais, tínhamos a impressão de que a Lilly estava era a diminuir.
- Egg - disse eu mais alto -, onde é que está o Sorrow?
- O Sorrow morreu - respondeu o Egg.
- Eu sei que morreu, porra! - disse eu. - Mas onde é que ele está?
- O Sorrow está com o avô Bob - respondeu o Egg, que, evidentemente, tinha razão nesse aspecto.
Compreendi que jamais conseguiria arrancar-lhe o paradeiro do terror empalhado.
- Amanhã é a Passagem do Ano - disse eu.
- Quem? - perguntou o Egg.
- A Passagem do Ano! - repeti eu. - Vamos ter uma festa. - Onde? - perguntou ele.
- Aqui - respondi. - No Hotel New Hampshire.
- Em que quarto? - quis ele saber.
- Qual quarto! Vai ser na sala principal. Na sala grande. No restaurante, palerma.
- Não vai haver festa nenhuma neste quarto - afirmou o Egg.
Com as vestimentas do Egg espalhadas por todo o lado dificilmente sobrava espaço para uma festa no nosso quarto, mas deixei passar a observação. Já estava quase a dormir quando o Egg tornou a falar.
- Como é que se seca uma coisa que está toda molhada? - perguntou ele.
Veio-me logo à ideia o estado em que o Sorrow devia estar depois de sabe Deus quantas horas à chuva e à neve, no caixote do lixo destapado.
- O que é que está molhado, Egg?
- Cabelo. Como é que secavas cabelo?
- O teu cabelo, Egg?
- O cabelo de qualquer pessoa. Uma data de cabelo. Mais do que o meu.
- Bem, acho que com um secador.
- Com essa coisa que a Franny tem?
- A Mãe também tem um.
- Pois tem. Mas o da Franny é maior. E acho que também é mais quente.
- Com que então tens uma data de cabelo para secar, hem?
- O quê? - perguntou o Egg.
Mas não valia a pena repetir; uma faceta da surdez do Egg era a de ele só ouvir quando lhe convinha.
De manhã, quando ele despiu o pijama, verifiquei que por baixo dele o Egg estava completamente vestido, e que tinha dormido assim.
- É bom já estar pronto, não é, Egg?
- Pronto para quê? Hoje não há escola. Ainda estamos em férias.
- Então porque é que dormes todo vestido? - perguntei-lhe, sem obter resposta.
Ele estava a revolver várias pilhas de vestuário.
- Do que é que andas à procura? Já estás vestido. Mas se acaso o Egg detectou a minha ironia, ignorou-a.
- Até logo, na festa - despediu-se ele.
O Egg adorava o Hotel New Hampshire; talvez até gostasse mais dele do que o Pai, pois este gostava sobretudo da ideia, do projecto que tinha na cabeça, e na realidade cada vez se sentia mais inseguro sobre o êxito do empreendimento. Mas o Egg gostava de todos os quartos, das escadas, da imensidão vazia e às moscas do antigo colégio de raparigas. O Pai tinha consciência de que estávamos demasiado tempo às moscas, mas o Egg achava isso óptimo.
Por vezes, ao pequeno-almoço, os hóspedes traziam objectos estranhos que tinham encontrado nos quartos.
- O quarto estava muito limpo - começavam eles por dizer -, mas alguém deve ter deixado lá isto... Esta coisa.
E era o braço de borracha de um cowboy, a pata enrugada e membranosa de um sapo seco, uma carta de jogar com um rosto desenhado sobre o rosto de um valete de ouros, o cinco de paus com a palavra "porra" escrita, uma peúga pequenina com seis berlindes dentro, ou o equipamento de basebol do Egg com o distintivo da Polícia pregado, pendurado no roupeiro do4G.
Na véspera de Ano Novo, o tempo estava daquele género em que a atmosfera parece liquefazer-se - a névoa a alastrar sobre o Elliot Park e a neve fresca da véspera a derreter-se, deixando ver a neve cinzenta da semana anterior.
- Onde é que estavas esta manhã, John-O? - perguntou-me a Ronda Ray, quando estávamos em plena azáfama, no restaurante, com os preparativos para a Passagem do Ano.
- Não estava a chover - objectei eu, sabendo perfeitamente, e ela também, que aquilo era uma falsa desculpa.
Não andava propriamente a ser infiel à Ronda - não havia ninguém com quem ser infiel -, mas passava o tempo a sonhar com alguém imaginário, mais ou menos da idade da Franny. Tinha mesmo pedido à minha irmã para me arranjar uma saída com uma das suas amigas, uma que ela me aconselhasse - embora a Franny costumasse responder que as amigas dela eram velhas de mais para mim, querendo dizer com isso que tinham dezasseis anos.
- Então esta manhã não há levantamento de pesos? - perguntou-me a Franny. - Não tens medo de perder a forma?
- Esta manhã, o treino é outro - respondi eu. - É preciso arranjar tudo para a festa.
Com a festa, esperávamos que três ou quatro alunos da Dairy passassem a noite no hotel, entre os quais o Júnior Jones, que ia ser o par da Franny, e uma irmã dele, que não andava a estudar em Dairy. O Júnior trazia a irmã para mim - mas eu até tinha medo de pensar se ela seria tão grande como o irmão. Mas também estava desejoso de saber se aquela era a irmã que tinha sido violada, como o Harold Swallow me tinha contado, embora achasse isso de somenos importância. Que importância tinha saber se o meu par para a festa ia ser uma rapariga grande e que tinha sido violada ou uma rapariga grande não violada? Fosse como fosse, de uma coisa estava eu certo: é que ela devia ser enorme.
- Não estejas nervoso - disse-me a Franny.
Quando estávamos a desmanchar a árvore de Natal, o Pai ficou com os olhos cheios de lágrimas, pois tinha sido a árvore do Iowa Bob; a Mãe teve de sair da sala. A nós, os netos, o funeral tinha parecido uma coisa insignificante - era o primeiro que víamos, dado que quando o Latin Emeritus e a mãe da minha mãe haviam morrido nós éramos demasiado pequenos para nos recordarmos dos pormenores, e o urso chamado State O'Maine não tinha tido funeral. Por mim, achei que, tendo em conta o chinfrim que ficara ligado à morte do Iowa Bob, era de esperar um funeral mais aparatoso.
- Pelo menos acompanhado ao som de halteres a cair - disse eu à Franny.
- Não gozes com coisas sérias - respondera ela.
Ela parecia pensar que estava a ficar muito mais velha do que eu, e eu receava que ela até tivesse razão.
- Essa irmã é a que foi violada? - perguntei de súbito à Franny. -Quer dizer, qual das irmãs vai o Júnior trazer?
Pelo olhar que a Franny me lançou, suspeitei que esta pergunta também pusesse anos de distância entre nós.
- Ele só tem uma irmã - disse ela, olhando-me nos olhos. - Para que é que te interessa saber se ela foi violada ou não?
É claro que não soube o que responder: que sim, que me interessava. Que uma pessoa não fala de violações com uma rapariga que foi violada enquanto se atira de caras ao assunto com alguém que não o foi? Que nos podemos pôr à cata das profundas marcas deixadas na personalidade ou não queremos saber disso para nada? Que nos podemos convencer de que essas marcas existem e tratar a pessoa em questão como se fosse um inválido? (E como é que se trata um inválido?) Ou então que isso não tinha importância nenhuma? Mas tinha, e eu sabia porquê. Eu só tinha catorze anos. Na minha inexperiência de adolescente (e eu seria sempre inexperiente no que toca a violações), imaginava que se devia tocar numa rapariga violada de uma maneira um bocadinho diferente, ou um pouco menos, ou mesmo nada. Foi isto que acabei por dizer à Franny, e ela olhou-me fixamente.
- Estás enganado - disse ela, da mesma maneira que dizia ao Frank "És uma besta!", e eu tive a impressão que se calhar ia ficar com catorze anos para sempre.
- Onde está o Egg? - interrompeu-nos o Pai com um berro. - Egg!
- O Egg nunca faz nada - queixou-se o Frank, varrendo ao acaso as agulhas mortas do pinheiro de Natal espalhadas pelo restaurante.
- O Egg é um miúdo, Frank - disse a Franny.
- O Egg podia ter mais juízo do que tem - disse o Pai.
E eu (que devia ser a influência amadurecedora sobre o Egg) sabia muito bem porque é que o Egg estava fora do alcance da voz. Estava num quarto qualquer do Hotel New Hampshire, contemplando a incrível massa de pêlos molhados em que o Sorrow se tinha transformado.
Quando os últimos vestígios do Natal foram varridos e despejados para fora do Hotel New Hampshire, começámos a pensar nos enfeites mais adequados para a Passagem do Ano.
- Ninguém está com muita vontade de festejar a Passagem do Ano - disse a Franny. - É melhor não pormos enfeites nenhuns.
- Festa é festa - respondeu o Pai, com ar determinado, embora suspeitássemos que de todos nós era ele quem tinha menos vontade de dar uma festa.
Todos sabíamos de quem tinha sido a ideia de dar uma festa de Passagem do Ano: do Iowa Bob.
- De qualquer modo, não vem ninguém - disse o Frank.
- Fala por ti, Frank - respondeu a Franny. - Há vários amigos meus que vêm.
- Podia haver aqui cem pessoas que tu ficavas no quarto, Frank - disse eu.
- Vai comer bananas e não me chateies! - respondeu o Frank. - Vai fazer uma corrida... olha, até à Lua!
- Eu cá acho giro dar uma festa - disse a Lilly.
E todos olhámos para ela, porque, como é evidente, ninguém a tinha visto até ela falar, de tal modo estava a ficar pequena. A Lilly tinha quase onze anos, mas parecia agora muito mais pequena do que o Egg. Mal me chegava à cintura e pesava menos de vinte quilos. Já que a Lilly ansiava por uma festa, íamos todos tentar ficar com disposição para isso.
- Então como é que vamos decorar o restaurante, Lilly? - perguntou-lhe o Frank.
Ele tinha uma maneira muito pessoal de se curvar quando falava com ela, como se estivesse a dirigir-se a um bebé num carrinho e estivesse a pairar com ele.
- Não è preciso decorarmos nada - disse a Lilly. - Vamos mas é divertir-nos.
Ficámos todos mudos e quedos, encarando esta perspectiva como se estivéssemos a enfrentar uma sentença de morte; mas a Mãe disse:
- É uma óptima ideia! Vou telefonar aos Matsons!
- Aos Matsons? - perguntou o Pai.
- E aos Foxes, e talvez aos Calders - continuou a Mãe.
- Aos Matsons não! - respondeu o Pai. - E os Calders já nos convidaram a nós para uma festa; dão sempre uma festa no Ano Novo.
- Bem, então vamos ter meia dúzia de amigos - disse a Mãe.
- E também vão estar cá os clientes habituais - disse o Pai.
Mas não parecia lá muito seguro, e nós evitámos-lhe o olhar. Os "clientes habituais" era um pequeno grupo de amigos, na sua maioria companheiros de copos do Coach Bob. Não sabíamos se iriam tornar a aparecer - e duvidávamos que o fizessem na Passagem do Ano.
A Sr.a Urick não sabia com quantas pessoas tinha de contar, para calcular a quantidade de comida. O Max não sabia se devia limpar toda a superfície do parque de estacionamento ou se bastavam os poucos lugares habituais. A Ronda Ray parecia encarar a festa da Passagem do Ano como se fosse em honra dela: queria vestir um certo vestido, e disse-me tudo sobre ele. Eu já o conhecia: era o vestido provocante que a Franny tinha comprado para dar à Mãe no Natal e que esta havia oferecido à Ronda. Depois de ter visto a Franny experimentá-lo, estava ansioso por saber como é que a Ronda ia conseguir enfiar-se nele. A Mãe tinha conseguido arranjar um conjunto para tocar ao vivo.
- Quase ao vivo - disse a Franny, que já tinha ouvido o grupo. Costumavam tocar para a multidão que frequentava Hampton Beach, no Verão, mas durante o resto do ano a maior parte dos músicos ainda andava no liceu. O da guitarra eléctrica era um estudante rufião chamado Sleazy Wales; a mãe dele era a vocalista e tocava guitarra acústica: era uma mulher corpulenta e vistosa chamada Doris - uma pega, dizia a Ronda com convicção. O nome do conjunto derivava do de Doris ou do do furacão de alguns anos atrás - que também se chamava Doris. O conjunto chamava-se, como não podia deixar de ser, Hurricane(*) Doris, e incluía o Sleazy Wales e a mãe e ainda dois colegas de liceu do Sleazy no contrabaixo acústico e na bateria. Acho que os rapazes trabalhavam na mesma garagem depois das aulas, pois apresentavam-se em palco vestidos com fatos-macacos (só eles) com os nomes bordados no peito ao lado da insígnia da Gulf. Chamavam-se Danny, Jake e Sleazy. A Doris usava o que lhe apetecia - vestidos que até a Ronda Ray teria achado ousados. Evidentemente que o Frank dizia que o Hurricane Doris era "repugnante".
O grupo tocava sobretudo temas do Elvis Presley - "com uma data de slows se houver uma data de adultos no público", como a Doris disse pelo telefone à minha mãe, "e essas coisas mais rápidas se o pessoal for jovem".
- Eh, pá! - exclamou a Franny. - Estou morta por saber o que é que o Júnior acha do Hurricane Doris.
E eu deixei cair vários cinzeiros de vidro em vez de os distribuir pelas mesas como devia, pois estava morto por saber o que é que a irmã do Júnior Jones ia achar de mim.
- Que idade tem ela? - perguntei à Franny.
- Pode ser que tenhas sorte e que ela só tenha doze anos - escarneceu a Franny.
O Frank tinha ido arrumar o esfregão e a vassoura no cubículo de arrumações do primeiro andar e descobriu ali uma pista da subsistência do Sorrow. Era a prancha de madeira cortada à medida sobre a qual o Sorrow havia sido montado na pose de ataque. A tábua tinha quatro buracos de parafusos bem marcados e vestígios das marcas deixadas pelas patas do cão, que era por onde ele tinha sido aparafusado à prancha.
- Egg! - gritou o Frank. - Ladrão duma figa!
O Egg tinha pois desaparafusado o cão da sua base e talvez estivesse nesse mesmo momento a reconstituir a postura do animal de uma forma mais consentânea com a ideia que ele tinha do nosso velho cão.
- Ainda bem que o Egg não apanhou o State O'Maine - disse a Lilly.
- Ainda bem que o Frank não apanhou o State O'Maine - corrigiu a Franny.
*. Hurricane - furacão, tufão. (N. da T.)
- Não vai haver muito espaço para dançar - observou a Ronda Ray, aborrecida. - Não podemos tirar nenhuma cadeira do lugar.
- Dançamos à volta das cadeiras! - exclamou o Pai, com optimismo.
- Aparafusado para sempre! - murmurou a Franny.
Mas o Pai ouviu-a; ele ainda não estava preparado para escutar uma repetição das sentenças do Iowa Bob - pelo menos por agora. Pareceu ficar muito magoado e desviou o olhar. Recordo-me dessa véspera do Ano Novo como o dia em que toda a gente estava constantemente a "desviar o olhar".
- Merda! Já meti água! - segredou-me a Franny, com um ar envergonhado (a sério).
A Ronda Ray passou-lhe rapidamente o braço pelos ombros:
- Ainda tens de crescer um bocadinho, querida. Tens de descobrir que os adultos não saem da fossa tão depressa como os miúdos.
Podíamos ouvir o Frank a berrar pelo Egg no vão da escada. Pensei que o Frank também não "saía da fossa" lá muito bem. Mas, de certo modo, o Frank nunca foi um miúdo.
- Pouco barulho! - berrou o Max Urick do quarto andar.
- Toca a vir cá para baixo ajudar os outros para a festa - gritou o Pai. - Vocês os dois!
- Miúdos! - vociferou o Max.
- O que é que ele percebe de miúdos? - resmungou a Sr.a Urick. Foi nessa altura que o Harold Swallow telefonou de Detroit. Tinha decidido não voltar mais cedo para Dairy e não vinha à festa. Disse que se tinha lembrado que a Passagem do Ano o deprimia e que acabava sempre a ver a televisão.
- Para fazer isso, mais vale ficar em Detroit. Não tenho de apanhar o avião para Boston nem de ir de carro com o Júnior Jones e uma data de malta, só para ficar num hotel marado a ver a Passagem do Ano na televisão.
- Não vamos ligar a televisão - disse-lhe eu. - De qualquer modo, com o conjunto cá, não dá para ligar.
- Bom - disse ele -, seja como for não contem comigo. Prefiro ficar em Detroit.
As conversas com o Harold Swallow nunca tinham muita lógica; eu ficava sempre sem saber o que lhe responder.
- Lamento muito isso do Bob - disse o Harold. Agradeci-lhe e transmiti os pêsames aos outros.
- O Nasty(*) também não vem - disse a Franny.
O Nasty era o tipo de Boston que namorava uma amiga da Franny, a Ernestine Tuck, de Greenwich, Connecticut. Toda a gente, à excepção da Franny e do Júnior Jones, tratava a Ernestine por Bitty(**). Parece que a mãe lhe tinha chamado assim uma certa noite especialmente crítica, e o nome tinha pegado.
*. Nasty - obsceno, malcriado. (N. da T.)
**. Bitty - pequenina, miudinha. (N. da T.)
A Ernestine não parecia ralar-se nada com isso, e também tolerava a versão do seu nome usada pelo Júnior Jones. Ela tinha uns seios descomunais, e o Júnior chamava-lhe Titsie(*) Tuck - e a Franny fazia o mesmo. A Bitty Tuck idolatrava a Franny de tal maneira que suportaria qualquer insulto vindo dela, e quanto ao Júnior Jones, costumava eu pensar, toda a gente tinha pura e simplesmente de lhe aceitar os insultos. A Bitty Tuck era rica, bonita, tinha dezoito anos e não era má pessoa - só era pena que fosse tão afinadiça - e vinha à festa da Passagem do Ano por ser aquilo a que a Franny chamava uma miúda porreira para festas, além de ser a sua única amiga na Dairy School. Com dezoito anos, a Bitty era muito sofisticada - na opinião da Franny. O plano, explicou-me a Franny, era o Júnior Jones e a irmã virem de Filadélfia no carro deles. De caminho, apanhavam a Titsie Tuck em Greenwich, e depois o namorado dela, o Peter (Nasty) Raskin, em Boston. Mas agora o Nasty estava de castigo e não podia vir, disse a Franny; ele havia insultado uma tia num casamento de família. De qualquer maneira, a Titsie tinha decidido vir com o Júnior e a irmã.
- Então vai haver uma rapariga a mais, fica para o Frank - disse o Pai, bem-intencionado como sempre.
Fez-se um silêncio sepulcral.
- Quer dizer que assim não há nenhuma miúda para mim - disse o Egg.
- Egg! - gritou o Frank, fazendo com que todos déssemos um salto. Nenhum de nós sabia que o Egg estava ali nem quando é que ele havia chegado. Mas ele tinha mudado de traje e fingia estar atarefadíssimo a pôr as coisas em ordem no restaurante, como se tivesse andado todo o dia a trabalhar connosco.
- Preciso de falar contigo, Egg - disse o Frank.
- O quê?
- Não grites com o Egg - disse a Lilly, puxando o Egg para o lado com os seus irritantes modos maternais.
Já havíamos reparado que a Lilly começara a manifestar atitudes maternais para com o Egg mal este se tornara maior do que ela. O Frank seguiu-os até um canto da sala, bufando para o Egg como uma barrica cheia de serpentes.
- Eu sei que és tu que o tens, Egg! - silvou o Frank, por entre dentes. - O quê?
O Frank não se atreveu a dizer "o Sorrow" com o Pai no restaurante, e nenhum de nós permitiria que o Egg fosse maltratado. Ele estava em segurança e tinha consciência disso. Estava vestido com o seu uniforme de combate de soldado de infantaria. A Franny tinha-me dito que achava que o Frank, se calhar, sempre quisera ter um uniforme daqueles, e que era por isso que ele ficava furioso cada vez que o Egg vestia uma farda - e ele tinha várias. A paixão do Frank pelas fardas parecia-nos estranha,
*. Titsie - de tit, teta. (N. da T.)
mas que o Egg tivesse essa mesma paixão já nos parecia natural; e é óbvia esta discriminação.
Perguntei então à Franny como é que a irmã do Júnior Jones ia voltar para Filadélfia depois do Ano Novo e de as aulas começarem na Dairy School. A Franny pareceu ficar confusa, e eu expliquei-lhe que não acreditava que o Júnior fosse levar a irmã de carro a Filadélfia e depois voltasse a Dairy para as aulas, tanto mais que o regulamento da escola não lhe permitia ter lá um carro.
- Leva ela o carro no regresso - respondeu a Franny. - O carro é dela; quer dizer, acho que é.
Foi então que me ocorreu de súbito que a irmã do Júnior Jones, uma vez que o carro era dela, já devia ter idade para guiar.
- Então quer dizer que ela tem pelo menos dezasseis anos! - disse eu à Franny.
- Qual é o medo? - retorquiu ela. - Que idade é que tu julgas que a Ronda tem?
Mas a simples ideia de uma rapariga mais velha já me intimidava bastante, mesmo sem a imaginar mais velha. E enorme: mais alta, mais velha, e que já tinha sido violada.
- Já agora, vale a pena encarar a hipótese de ela ser negra - continuou a Franny. - Ou isso nunca te ocorreu?
- Isso não me incomoda.
- Ora, ora! A ti tudo te incomoda! A Titsie Tuck tem dezoito anos e incomoda-te como o caraças. E também vai cá estar.
Aquilo era verdade: a Titsie Tuck dizia em público que eu era "giro" - com os seus modos de menina rica e condescendente. Mas não era esse o problema; ela era simpática, mas nunca me passava cartão, a não ser para largar piadas a meu respeito. Eu sentia-me intimidado com ela, da mesma maneira que uma pessoa se sente intimidada com alguém que nunca se lembra do nosso nome.
- Neste mundo - observou a Franny certa vez -, é precisamente quando uma pessoa está a tentar convencer-se de que é inesquecível que aparece sempre alguém que se esqueceu que já a encontrou.
Foi um dia agitado no Hotel New Hampshire, o dos preparativos para a Passagem do Ano: recordo-me que sobre as nossas cabeças pairava algo mais pronunciado do que a habitual mistura de patetice e tristeza, como se, de quando em quando, tivéssemos consciência de quase não nos lembrarmos da morte do Iowa Bob - e, noutros momentos, consciência de que a nossa maior responsabilidade (não apesar da morte do Iowa Bob, mas por causa dele) era divertirmo-nos. Foi talvez o nosso primeiro teste de uma máxima que havia sido transmitida ao meu pai pelo próprio Iowa Bob; era uma máxima que o Pai nos repetia vezes sem conta. Era-nos tão familiar que nem sonhávamos comportar-nos como se não acreditássemos nela, embora provavelmente nunca tivéssemos sabido - até muito mais tarde - se acreditávamos ou não.
A máxima estava ligada à teoria do Iowa Bob de que estávamos todos num grande barco - "num grande cruzeiro à volta do mundo". E apesar do perigo de sermos varridos pela tempestade a qualquer momento, ou talvez devido a esse mesmo perigo, não nos era permitido sentirmo-nos deprimidos ou infelizes. O modo como o mundo funcionava não justificava qualquer tipo de distanciamento cénico ou de desespero imaturo. Segundo o meu pai e o Iowa Bob, o modo como o mundo funcionava - e funcionava mal - era justamente um forte incentivo para se viver com determinação e para ter por objectivo saber viver.
- Um fatalismo feliz - diria mais tarde o Frank sobre a filosofia deles. O Frank, na sua atormentada juventude, não era crente.
Uma noite, quando estávamos a ver um melodrama de faca e alguidar na televisão (o aparelho ficava por cima do bar do hotel), a Mãe dissera:
- Não quero ver o fim disto. Só gosto de coisas que acabem bem. E o Pai retorquira:
- Não há coisas que acabem bem.
- Tens razão! - exclamara o Iowa Bob, com uma estranha mistura de exuberância e estoicismo na sua voz rouca. - A morte é horrível, definitiva e frequentemente prematura.
- E então? - perguntara o Pai.
- Tens toda a razão! - exclamara o Iowa Bob. - É essa a questão: e então?
É por isso que a máxima da nossa família era que um fim triste não comprometia uma vida rica e cheia de energia. Isto baseava-se na crença de que não havia nada que acabasse bem. A Mãe não concordava com a ideia, o Frank encarava-a com reservas, e a Franny e eu éramos prováveis crentes desta religião - ou então, se por vezes duvidávamos do Iowa Bob, o mundo acabava sempre por nos ensinar qualquer coisa que provava que o velho avançado tinha razão. Nunca soubemos qual era a crença da Lilly (devia ser com certeza uma ideia pequena e modesta que ela guardava para si). Quanto ao Egg, caber-lhe-ia o papel de trazer de volta o Sorrow, em mais de um sentido(*). Trazer de volta a dor também era uma espécie de religião.
A prancha que o Frank tinha encontrado, com as marcas das patas do Sorrow e os furos dos parafusos que o prendiam a ela, semelhante a um crucifixo abandonado de um Cristo de quatro patas, pareceu-me de mau agoiro. Tentei convencer a Franny a fazer uma investigação pelas camas, apesar de ela dizer que o Frank e eu estávamos doidos. O mais provável era que o Egg, sustentava ela, tivesse querido guardar a prancha e tivesse deitado fora o cão. É claro que o sistema de intercomunicadores não revelou nada, uma vez que o Sorrow - quer tivesse sido deitado fora ou escondido - já não respirava. Do 4A - no lado oposto ao quarto do Max Urick -
*. O texto original comporta neste trecho um trocadilho de difícil tradução: por um lado, como já se viu, Sorrow significa dor, desgosto, pena', por outro lado, o Sorrow era da raça retriever do Labrador - e todos os retrievers são cães cuja principal característica consiste em recuperar e trazer de volta (à mão do caçador) as peças de caça abatidas. (N. da T.)
chegava-nos um ruído esquisito, uma espécie de sopro, como o som de uma corrente de ar; mas a Franny disse que o mais provável era que fosse uma janela aberta: a Ronda Ray tinha preparado esse quarto para a Bitty Tuck e provavelmente estava a precisar de ser arejado.
- Porque é que a Bitty vai ficar lá em cima no quarto andar? - perguntei eu.
- Porque a Mãe pensou que ela vinha com o Nasty - respondeu a Franny -, e assim, no quarto andar, eles podiam ficar à vontade, sem putos como vocês a chatearem-nos a toda a hora.
- Sem putos como nós, queres tu dizer - corrigi eu. - E onde é que o Júnior vai dormir?
- Comigo é que não - disse a Franny com maus modos. - O Júnior e a Sabrina têm cada um o seu quarto no segundo andar.
- SaZin'na ou Sabraina?
- Sabrina - respondeu a Franny.
A Sabrina Jones!, disse para comigo, ao mesmo tempo que sentia um nó na garganta, grande como uma bola de futebol. Dezassete anos e quase um metro e noventa, imaginei eu; noventa quilos na pesagem à saída do chuveiro e capaz de levantar cem quilos.
- Já chegaram - anunciou a Lilly, junto ao quadro de comandos do intercomunicador, num fio de voz.
À vista do tamanho do Júnior, a Lilly ficava sempre quase sem voz.
- Ela é muito grande? - perguntei eu à Lilly.
Mas a Lilly achava sempre toda a gente enorme; e eu tive de ficar à espera para ver a Sabrina Jones com os meus próprios olhos.
O Frank, num momento de manifesta auto-indulgência, tinha vestido o seu uniforme de condutor de autocarro e estava a fazer de porteiro do Hotel New Hampshire. Estava a transportar a bagagem da Bitty Tuck para o vestíbulo; esta pertencia ao género de raparigas que têm bagagem. Envergava uma espécie de fato de homem - mas que se via ter sido cortado para mulher - e uma espécie de camisa de homem branca, com colarinho, gravata e tudo - tudo muito masculino, excepto os seios, que eram formidáveis, como o Júnior Jones tinha feito notar, e impossíveis de dissimular mesmo debaixo do traje mais masculino deste mundo. A Bitty precipitou-se pelo vestíbulo atrás do Frank, que vinha a suar sob o peso da bagagem.
- Oi, John-John! - disse ela.
- Oi, Titsie - respondi eu.
A alcunha dela escapou-me sem querer. Só o Júnior e a Franny lhe podiam chamar Titsie sem se arriscarem a ser tratados com desdém. Ela deitou-me um olhar de desprezo e passou rapidamente por mim, indo beijar a Franny, com os guinchos afectados que as raparigas do género dela parecem dar desde que nasceram.
- As malas vão para o 4A, Frank - disse eu.
- Chiça! Uma ova é que elas vão! - respondeu o Frank, sucumbindo em pleno vestíbulo sob o peso da bagagem da Bitty.
- Isto não é trabalho para um homem só! Pode ser que no meio da festa alguns de vocês fiquem tão entusiasmados que até achem divertido levá-las.
O Júnior Jones assomou ao vestíbulo, dando a impressão de que seria capaz de atirar com a bagagem da Bitty Tuck até ao último andar, juntamente com o Frank.
- Eh, malta! Chegou o melhor da festa! - bradou o Júnior Jones. - Cá estou eu! A paródia em pessoa!
Tentei espreitar para trás dele, ou à roda dele, a fim de ver quem estava à porta. Durante um apavorado instante, cheguei mesmo a espreitar por cima dele, como se a irmã, a Sabrina, assomasse por cima da sua cabeça.
- Olá, Sabrina - disse o Júnior Jones. - Cá está o teu halterofilista.
À porta estava uma negra esguia, mais ou menos da minha altura; o chapéu copado, de abas caídas, fazia-a parecer um bocadinho mais alta - e usava saltos altos. O vestido - um vestido de mulher - era em tudo tão elegante como o da Bitty Tuck; trazia uma blusa de seda creme com uma gola larga, aberta em decote no longo e fino pescoço, até deixar entrever uma pontinha do soutien de renda vermelha; tinha anéis nos dedos todos, e pulseiras. A pele era de uma cor maravilhosa de chocolate escuro, e ela tinha uns olhos rasgados e expressivos e uma boca grande e sorridente estranhamente cheia de dentes, que eram brilhantes e bonitos. Desprendia-se dela um perfume tão agradável, perceptível a uma tal distância, que até os guinchinhos afectados da Bitty Tuck pareceram ficar abafados sob aquele perfume. Achei que devia ter uns vinte e oito ou trinta anos, e pareceu um bocadinho surpreendida quando me foi apresentada. O Júnior Jones, que era incrivelmente rápido para a sua corpulência, afastou-se de nós apressadamente.
- Tu é que és o halterofilista? - perguntou-me a Sabrina Jones.
- Só tenho quinze anos - menti eu; afinal, estava quase a fazê-los.
- Esta agora! - exclamou a Sabrina Jones.
E era tão bonita que eu não conseguia fitá-la a direito.
- Júnior! - gritou ela.
Mas o Júnior Jones tinha-se escondido dela, conseguindo ocultar aqueles quilos todos.
Era evidente que o que ele tinha querido era uma boleia de Filadélfia até Dairy, e, não querendo desapontar a Franny por não ir à festa da Passagem do Ano, tinha conseguido trazer a irmã mais velha (e o carro dela), a pretexto de me arranjar um par para a festa.
- Ele disse que a Franny tinha um irmão mais velho - disse a Sabrina, numa voz desapontada.
Imagino que o Júnior se referisse ao Frank. A Sabrina Jones era secretária num escritório de advogados em Filadélfia. Tinha vinte e nove anos.
- Quinze anos - assobiou ela entre dentes, que não eram tão brancos e cintilantes como os do irmão.
Os dentes da Sabrina tinham o tamanho ideal e eram muito direitos, mas tinham um brilho baço, nacarado, um matiz de concha de ostra. Não eram uns dentes feios, mas constituíam a única imperfeição visível nela. Na minha insegurança, tive naturalmente maior propensão para reparar nessa única falha. Senti-me ridículo - atascado em bananas, como o Frank costumava dizer.
- Vai haver um conjunto ao vivo - afirmei eu, e lamentei imediatamente tê-lo dito.
- Bestial! - exclamou a Sabrina Jones, mas sorriu com um ar simpático. - Sabes dançar?
- Não - tive de confessar.
- Não faz mal - disse ela; estava realmente a tentar ser simpática. - Levantas mesmo pesos?
- Não tanto como o Júnior - respondi.
- Eu gostava era de deixar cair uns pesos na cabeça do Júnior - disse ela.
O Frank espreitou para dentro do vestíbulo, debatendo-se com um baú cheio de roupas de Inverno do Júnior Jones. Parecia totalmente incapaz de achar o caminho pelo meio da bagagem da Bitty Tuck, amontoada ao fundo das escadas, e acabou por deixar cair o baú ali mesmo - assustando a Lilly, que estava sentada no primeiro degrau a observar a Sabrina.
- Esta é a minha irmã Lilly - disse eu à Sabrina. - E aquele era o Frank - acrescentei, apontando para as costas do Frank, que já se ia a escapulir.
Ouvíamos a Franny e a Bitty Tuck aos gritinhos ali por perto, e eu sabia que o Júnior Jones devia estar a falar com o meu pai - a dar-lhe os pêsames pela morte do Coach Bob.
- Olá, Lilly - disse a Sabrina.
- Sou anã, sabias? - respondeu a Lilly. - Não vou crescer mais.
Para a Sabrina Jones esta informação deve ter parecido condizer perfeitamente com o seu desapontamento ao descobrir a minha idade. Não pareceu ficar chocada.
- Ah sim? Muito interessante! - disse ela à Lilly.
- Tu ainda hás-de crescer, Lilly - disse eu. - Ainda vais crescer pelo menos um bocadinho. Não és anã.
- Não me importo - respondeu a Lilly, encolhendo os ombros. Um vulto passou rapidamente no patamar da escada - empunhando um machado índio e com o corpo coberto de pinturas de guerra e de pouco mais (uma tanga preta com contas coloridas à roda das ancas).
- Aquele era o Egg - disse eu, ao observar o olhar perplexo da Sabrina Jones, com a sua linda boca aberta, como que a tentar falar.
- Aquilo era um indiozinho! - disse ela. - Porque é que se chama Egg?
- Eu sei porque é! - prontificou-se a Lilly a explicar. Estava sentada na escada e levantou o braço, como se estivesse na aula à espera de ser interrogada. Senti-me contente por ela estar ali, pois nunca gostei de explicar o nome do Egg, que tinha sido Egg desde o princípio, desde a gravidez da Mãe, quando a Franny tinha perguntado como é que o bebé se ia chamar.
- Por enquanto ainda é só um ovo(*) - tinha dito o Frank, com ar sombrio.
A sua sabedoria no domínio da Biologia assumia sempre um carácter chocante para o resto de nós. E assim, à medida que a barriga da Mãe ia crescendo, o ovo passou a ser chamado Egg com uma convicção cada vez maior. A Mãe e o Pai esperavam uma terceira rapariga, só porque o bebé devia nascer em Abril e ambos gostavam do nome de April(**) para uma rapariga; estavam indecisos quanto ao nome do rapaz, pois o Pai não gostava do seu nome, Win, e a Mãe, apesar da sua afeição pelo Iowa Bob, não se sentia atraída pela ideia de um Robert Jr. Quando se tornou claro que o ovo era um rapaz, já toda a família lhe chamava Egg. Por isso, ele nunca teve outro nome.
- Começou por ser um ovo e ainda continua a ser um ovo - explicou a Lilly à Sabrina Jones.
- Incrível! - comentou a Sabrina.
E eu desejei que acontecesse qualquer coisa superinteressante no Hotel New Hampshire que me fizesse esquecer o meu embaraço relativamente à maneira (que sempre me chocou) como as pessoas de fora viam a minha
família.
- Bem vês - havia de explicar-me a Franny anos mais tarde -, nós não somos excêntricos, não somos bizarros. Aos olhos uns dos outros somos tão vulgares como a chuva.
E ela tinha razão: aos olhos uns dos outros éramos tão normais e simpáticos como o cheiro do pão, éramos apenas uma família. E, numa família, até os exageros têm sentido, são sempre exageros lógicos e nada mais do que isso.
Mas o meu embaraço perante a Sabrina Jones acabou por me fazer sentir embaraçado com todos. O meu embaraço estendia-se mesmo a pessoas que não eram da família. Sentia-me embaraçado com o Harold Swallow cada vez que falava com ele; tinha sempre receio que alguém fizesse troça dele e o magoasse. E na Passagem do Ano, no Hotel New Hampshire, senti-me envergonhado por causa da Ronda Ray, por ela ir usar o vestido que a Franny comprara para a Mãe; até me senti envergonhado por causa do conjunto "quase ao vivo", a pavorosa banda rock chamada Hurricane Doris.
Eu havia reconhecido no Sleazy Wales o rufia que anos atrás me tinha ameaçado numa matinée de domingo. Ele havia amassado uma bola de miolo de pão, cinzenta do óleo e da sujidade das suas mãos de mecânico de automóveis, e metera-ma debaixo do nariz.
*. Egg - ovo. (N. da T.)
**. April - Abril. (N. da T.)
- Queres comer isto, ó puto? - perguntara ele.
- Não, obrigado.
O Frank levantara-se de um salto e fugira para a coxia, mas o Sleazy Wales agarrara-me pelo braço e mantivera-me sentado no lugar.
- Quietinho aí - dissera ele.
Eu prometera que não me mexia e ele tirara um prego comprido do bolso e enterrara-o na bola de pão. Em seguida fechara a mão à roda do pão, com o prego a emergir ameaçadoramente entre os dedos médio e anelar.
- Queres que te fure esses malditos olhos? - perguntara-me ele.
- Não, obrigado.
- Então dá o cava daqui!
Até nessa altura me sentira envergonhado por causa dele. Fora ter com o Frank - que sempre que ficava com medo durante os filmes ia pôr-se de pé junto do distribuidor de água. Também era frequente o Frank deixar-me envergonhado.
No Hotel New Hampshire, na véspera de Ano Novo, percebi imediatamente que o Sleazy Wales não me tinha reconhecido. Tinham-se interposto entre nós muitos quilómetros, muitos halteres, muitas bananas; agora, se me tornasse a ameaçar com pão com pregos, era capaz de o matar com um simples abraço, como fazem os ursos, pois ele parecia não ter crescido desde essa matinée de domingo. Esquelético e de pele cinzenta, com o rosto da cor de um cinzeiro sujo, tinha os ombros curvados dentro de uma T-shirt com a palavra Gulf estampada, e caminhava como se cada braço lhe pesasse cinquenta quilos. Calculei que todo o seu corpo, mesmo juntando-lhe umas chaves inglesas e algumas outras ferramentas pesadas, não devia pesar mais de sessenta e cinco quilos. Podia tê-lo levantado como um haltere uma meia dúzia de vezes, com toda a facilidade.
Os Hurricane Doris não pareceram particularmente desapontados pela ausência de uma multidão; os rapazes até talvez se sentissem melhor por terem menos pessoas a olhar para eles enquanto arrastavam a aparelhagem vistosa e barata de umas tomadas para as outras, tentando ligá-la.
A primeira coisa que ouvi a Doris Wales dizer foi:
- Puxa-me esse micro para trás, Jake, não sejas burro.
O contrabaixista (chamado Jake), outro magrizela sebento com uma camisa da Gulf, encolhia-se por trás do microfone, como se vivesse no terror de um choque eléctrico - e de ser um burro. O Sleazy Wales deu um murro amigável nos rins do outro rapaz do grupo, um baterista gordo chamado Danny, que o encaixou com dignidade - mas com evidente dor.
A Doris Wales era uma mulher com cabelo cor de palha cujo corpo parecia ter sido mergulhado em óleo de fritar, enfiando-se a seguir no vestido sem se enxugar. Este colava-se-lhe à pele, enterrando-se e penetrando em todas as concavidades do seu corpo. Uma fila de nódoas negras ou de mordidelas deixadas por algum apaixonado - "chupões de amor", como lhes chamava a Franny - espalhavam-se pelo peito e o pescoço da Doris como uma violenta erupção de pele; os vergões pareciam marcas deixadas por um chicote.
Usava um bâton cor de ameixa que lhe tingia já os dentes. Virou-se para a Sabrina Jones e para mim e perguntou-nos:
- Querem música para abanar ou para fazer marmelada? Ou as duas?
- As duas - respondeu a Sabrina, sem hesitar um segundo.
Mas eu tive a certeza de que mesmo que a guerra, a fome e outros flagelos desaparecessem do mundo, os seres humanos não deixariam de ficar envergonhados uns por causa dos outros até à morte. A nossa autodestruição podia ser um pouco mais demorada dessa maneira, mas creio que não seria menos total.
Uns meses depois do furacão que deu o nome ao seu conjunto, a Doris Wales ouviu pela primeira vez a canção Heartbreak Hotel, do Elvis Presley, numa altura em que se encontrava mesmo num hotel. Contou-nos à Sabrina e a mim que aquilo fora uma experiência mística para ela.
- Estão a topar? Eu estava com um gajo, encafuada num hotel, quando o Elvis começou a cantar na rádio. Aquela canção ensinou-me a sentir - explicou a Doris. - Isto passou-se há uns seis meses e, desde essa altura, nunca mais voltei a ser a mesma.
Fiquei a pensar no tipo que estava com a Doris Wales na altura dessa experiência; onde estaria ele agora?, teria ele voltado a ser o mesmo desde essa altura?
A Doris só cantava canções do Elvis Presley; quando se impunha, adaptava as letras das canções ao facto de o intérprete ser agora do sexo feminino; estas improvisações e o facto - como fez notar o Júnior Jones - de ela "não ter pinta de negra" tornavam quase insuportável ouvi-la.
Numa tentativa de fazer as pazes com a irmã, o Júnior Jones convidou a Sabrina para a primeira dança; lembro-me de que a canção era Baby, Let's Play House e que o Sleazy Wales abafou várias vezes a voz da mãe sob a sua torrente de electricidade.
- Valha-me Deus! - comentou o Pai. - Quanto é que lhes temos de pagar?
- Não te preocupes - respondeu a Mãe -, toda a gente se vai divertir à mesma.
Parecia pouco provável que ela tivesse razão, embora aparentemente o Egg se estivesse a divertir à grande; agora estava de toga, com os óculos de sol da Mãe, e evitava o Frank, que o espiava semioculto na penumbra, no meio das mesas e das cadeiras vazias - sem dúvida a remoer a sua repulsa por tudo aquilo. Pedi desculpa à Bitty Tuck por lhe ter chamado Titsie, explicando-lhe que aquilo tinha saído sem querer.
- Tudo bem, John-John - respondeu ela, simulando indiferença, ou pior, sentindo por mim verdadeira indiferença.
A Lilly convidou-me para dançar, mas tive vergonha de dançar com ela; depois foi a Ronda Ray quem me convidou, e dessa vez tive vergonha de recusar. A Lilly pareceu ofendida, e recusou um galante convite do Pai. A Ronda Ray arrastou-me violentamente pela pista fora.
- Sinto que te estou a perder - disse-me a Ronda. - Mas vou dar-te um conselho: antes de se dar com os pés em alguém, é melhor avisar primeiro.
Estava à espera que a Franny viesse interromper, mas a Ronda acelerou em direcção do Júnior e da Sabrina, que estavam em nítida discussão.
- Troca! - gritou a Ronda alegremente, arrastando o Júnior com ela.
Os Hurricane Doris, numa inesquecível transição de sons todos misturados, de instrumentos triturados e de guinchos estridentes da Doris, mudaram de ritmo e brindaram-nos com o ILove You Because - um slow bem lento, bom para dançar agarradinho, durante o qual eu não parei de tremer nos braços firmes da Sabrina Jones.
- Não danças tão mal como isso - disse ela. - Porque é que não te atiras a essa miúda, a Tuck, a amiga da tua irmã? - perguntou-me ela. - É mais ou menos da tua idade.
- Tem dezoito anos - respondi eu. - E não sei atirar-me a ninguém. Tive vontade de dizer à Sabrina que, embora a minha relação com a Ronda Ray fosse carnal, dificilmente podia considerar-se uma aprendizagem. Com a Ronda não havia preliminares; o sexo era imediato e genital, e ela recusava-se a deixar-me beijá-la na boca.
- É assim que se espalham os piores micróbios - garantira-me a Ronda. - Pela boca.
- Nem sequer sei beijar uma rapariga - confessei eu à Sabrina Jones, que pareceu ficar espantada com a minha ingenuidade.
A Franny, sem se importar com a maneira como a Ronda Ray estava a dançar aquele slow com o Júnior, foi-se meter no meio deles, deixando-me sem respiração, pois fiquei com medo que a Ronda viesse ter comigo.
- Descontrai-te - aconselhou-me a Sabrina. - Pareces uma bola de arame.
- Desculpa.
- Nunca peças desculpa ao sexo oposto - continuou ela - se quiseres chegar a algum sítio.
- Chegar a algum sítio? - perguntei-lhe.
- Para além dos beijos - explicou ela.
- Eu nem aos beijos consigo chegar.
- É fácil - disse a Sabrina. - Para chegares aos beijos, tudo o que tens a fazer é comportares-te como se soubesses beijar: aí, aparece sempre alguém que te deixa começar.
- Mas eu não sei como fazer isso.
- É fácil. É só praticares.
- Não tenho ninguém com quem praticar - respondi, mas lembrei-me fugidiamente da Franny.
- Tenta com a Bitty Tuck - segredou-me a Sabrina a rir.
- Mas tenho de ter ar de quem já sabe. E não tenho.
- Lá voltamos ao mesmo. Eu sou velha de mais para te deixar praticar comigo. Não seria bom para nenhum de nós.
A Ronda Ray, cruzando a pista de dança, vislumbrou o Frank por trás das mesas vazias, mas este fugiu antes que ela conseguisse convidá-lo para dançar. O Egg havia desaparecido, de modo que provavelmente o Frank tinha estado à espera de uma desculpa para o apanhar sozinho. A Lilly dançava, estoicamente, com um dos amigos da Mãe e do Pai, o Sr. Matson, um homem desgraçadamente alto - embora, se fosse baixo, nunca pudesse sê-lo o suficiente para a Lilly. Faziam lembrar um estranho número com animais de circo, indescritível e confrangedor.
O Pai dançava com a Sr.a Matson, e a Mãe estava de pé no bar com um cliente habitual que quase todas as noites ia ao Hotel New Hampshire - um companheiro de copos do Coach Bob chamado Merton, que era o capataz da serração. O Merton era um homem largo e pesado, coxo, com umas mãos possantes e sapudas. Ouvia a minha mãe com ar distante, com a ausência do Iowa Bob estampada no rosto; os olhos, que devoravam gulosamente a Doris Wales, pareciam dizer que não ficava bem ter ali um conjunto tão pouco tempo depois do desaparecimento do Bob.
- A variedade - disse-me a Sabrina ao ouvido - é o segredo da arte de beijar.
- Love you for a hundred thousand reasons!(*) - chorava a Doris Wales ao microfone.
O Egg estava de volta; continuava com o seu disfarce de Grande Chefe Penas de Galinha; depois foi-se novamente embora. A Bitty Tuck parecia aborrecida, com ar de não saber se iria ou não interromper o Júnior e a Franny. E era tão afectada, como diria a Franny, que não sabia como conversar com a Ronda Ray, que tinha ido servir-se de uma bebida ao bar. Vi o Max Urick a espreitar com cara de parvo pela porta da cozinha.
- Dentadinhas e uma pontinha de língua - disse a Sabrina Jones. -Mas o importante é não ficar com a boca quieta.
- Queres uma bebida? - perguntei-lhe. - Quer dizer, tu já tens idade. O Pai pôs uma grade de cerveja lá fora, enterrada na neve, junto à entrada de serviço, para nós, a malta nova. Disse que não podíamos beber no bar, mas tu podes.
- Leva-me até à entrada de serviço - pediu a Sabrina Jones. - Tomo uma cerveja contigo, mas nada de entusiasmos, hem?
Deixámos a pista de dança, por sorte mesmo a tempo para não assistirmos à estrepitosa passagem da Doris Wales para o I Don't Care If The Sun Don't Shine - cujo ritmo rápido decidiu a Bitty Tuck a ir roubar o par à Franny. A Ronda viu-me sair e fez uma expressão carrancuda.
A Sabrina e eu surpreendemos o Frank a urinar para cima dos caixotes do lixo na entrada de serviço. Com a sua falta de jeito habitual, o Frank tentou disfarçar, fingindo que nos estava a mostrar onde estavam as cervejas.
*. Tenho cem mil razões para te amar. (N. da T.)
- Tens um abre-garrafas, Frank? - perguntei-lhe.
Mas ele já tinha desaparecido na névoa do Elliot Park - no meio do nevoeiro monótono que se prolongava durante quase todo o Inverno.
A Sabrina e eu abrimos as cervejas no balcão da recepção, onde o Frank tinha sempre pendurado, preso a um prego por um cordel, um abre-garrafas de que se servia para abrir Pepsi-Colas quando estava de serviço ao telefone. Num esforço desajeitado para me sentar ao lado da Sabrina no baú com a roupa de Inverno do Júnior, entornei um bocado de cerveja por cima da bagagem da Bitty Tuck.
- Podias tentar conquistá-la oferecendo-te para lhe levares todas estas malas para o quarto - disse a Sabrina.
- Onde estão as tuas malas?
- Só por uma noite, não preciso de nada. E não precisas de te oferecer para me levares ao meu quarto. Consigo encontrá-lo sozinha.
- De qualquer modo, podia mostrar-te onde é.
- Bom, está bem - disse ela. - Trouxe um livro para ler. Esta festa não me interessa. Acho que é melhor preparar-me para uma longa viagem de regresso a Filadélfia.
Fui com ela até ao quarto, no segundo andar. Não tinha ilusões de me atirar. De qualquer forma, não teria coragem para isso.
- Boa noite - gaguejei à porta, deixando-a entrar. Mas ela não desapareceu por muito tempo.
- Eh pá - disse ela, abrindo a porta antes de eu ter tido tempo de me ir embora -, nunca chegas a parte nenhuma se não tentares. Nem sequer tentaste beijar-me - acrescentou.
- Desculpa.
- Nunca peças desculpa!
Ficou encostada a mim e deixou-me beijá-la.
- Vamos lá a ver: uma coisa de cada vez - disse ela. - Para começar tens um hálito agradável, o que já é um começo. Mas pára de tremer e tenta não bater com os teus dentes nos meus, logo ao princípio. E não queiras arrombar-me com a língua!
Tentámos outra vez.
- Fica com as mãos nos bolsos - disse-me ela. - Atenção aos dentes. Já está melhor.
E recuou para o quarto, levando-me consigo.
- Nada de abusos. Mãos nos bolsos, sempre. Os dois pés no chão.
Cambaleei em direcção a ela. Os nossos dentes chocaram com violência. Ela projectou a cabeça para trás, para longe de mim, e quando olhei para ela verifiquei com incredulidade que ela tinha os dentes de cima e da frente na mão.
- Porra! - exclamou ela. - Cuidado com os dentes!
Durante um instante aterrador pensei que lhe tinha partido os dentes, mas ela voltou-me as costas e disse:
- Não olhes para mim. São dentes postiços. Apaga a luz.
Assim fiz, e o quarto ficou às escuras. - Desculpa - disse-lhe, desanimado.
- Nunca peças desculpa - murmurou ela. - Fui violada.
- Já sei - disse eu, sabendo desde o princípio que aquilo acabaria por vir à superfície. - A Franny também.
- Ouvi dizer - respondeu a Sabrina Jones. - Mas não lhe partiram os dentes com um carro, pois não?
- Não.
- É sempre a mesma merda quando começo aos beijos. Assim que me começa a saber bem, caem-me os dentes de cima. Ou então há um estúpido qualquer que faz demasiada força com os dentes.
Não lhe pedi desculpa; estendi uma mão para lhe tocar, mas ela disse:
- Deixa estar as mãos nos bolsos.
Em seguida aproximou-se de mim e continuou:
- Vou ajudar-te, se me ajudares. Vou ensinar-te tudo sobre beijos, mas tens de me dizer uma coisa que sempre quis saber. Nunca estive com ninguém a quem me atrevesse a perguntar. Nunca quis contar a ninguém isto dos dentes.
- Está bem - concordei, aterrorizado por não saber com o que é que estava a concordar.
- Quero saber se é melhor sem esta merda dos dentes ou se é nojento, - disse ela. - Sempre achei que devia ser nojento, por isso nunca tentei.
Meteu-se na casa de banho, e eu fiquei à espera dela, no escuro, a olhar para a faixa de luz que emoldurava a porta - até que a luz se apagou e a Sabrina voltou para o pé de mim.
Quente e móvel, a boca dela era uma gruta no coração do mundo. A sua língua era comprida e redonda e as gengivas duras, mas as dentadas que ela dava nunca magoavam.
- Um bocadinho menos de lábios - murmurou ela - e um bocadinho mais de língua. Calma, tanto não! Que porcaria! Isso, essas dentadinhas é que são boas. Hum! Que bom! Põe as mãos nos bolsos, a sério! Que tal? Estás a gostar?
- Oh, sim - respondi.
- A sério? - perguntou ela. - É mesmo melhor assim?
- É mais profundo! - respondi. Ela riu-se.
- E também é melhor?
- É uma maravilha - confessei.
- Volta a pôr as mãos nos bolsos. Não te descontroles. Juizinho! Au!
- Desculpa.
- Não é preciso pedir desculpa. Não mordas é com tanta força! Mãos nos bolsos. A sério. Não te entusiasmes. Nos bolsos!
E assim por diante, até eu ser dado como iniciado e pronto para a Bitty Tuck - e para o mundo - e mandado embora do quarto da Sabrina Jones para seguir o meu caminho; ainda com as mãos nos bolsos, esbarrei com a porta do 2B.
- Obrigado! - disse eu para a Sabrina.
À luz do patamar, sem os dentes, ela ousou sorrir-me - um sorriso meio castanho-rosado, meio cor-de-rosa-azulado, muito mais bonito do que o estranho tom de pérola dos seus dentes postiços.
Ela tinha-me chupado os lábios para os tornar mais grossos, dissera ela, e eu entrei no restaurante do Hotel New Hampshire a fazer beicinho, consciente do poder da minha boca, pronto para escrever a história da arte de beijar com a Bitty Tuck. Mas os Hurricane Doris atacaram em tom plangente o I Forgot to Remember to Forget; a Ronda Ray afundava-se junto ao bar, num estado de perfeita apatia, com o vestido novo da Mãe levantado até à anca, onde uma nódoa negra, com a forma de uma dedada de um polegar, me fitava. O Merton, o capataz da serração, e o meu pai estavam a contar histórias um ao outro - e eu sabia que essas histórias eram sobre o Iowa Bob.
- I forgot to remember to forget(*) - gemia a Doris Wales.
A pobre da Lilly, que seria sempre demasiado pequena para se sentir à vontade numa festa - embora de cada vez que havia uma festa fosse ela quem sentia mais prazer com a expectativa -, tinha ido para a cama. O Egg, agora com roupas normais, estava sentado, com ar trombudo, numa das cadeiras aparafusadas ao chão; o seu rostinho estava cinzento, como se tivesse comido qualquer coisa que não lhe caíra bem e como se estivesse a lutar consigo mesmo para ficar acordado até à meia-noite - como se tivesse perdido o Sorrow.
O Frank, pensei eu, devia estar lá fora na entrada das traseiras a beber cerveja gelada desenterrada da neve, a sorver Pepsi-Colas na recepção, ou talvez a escutar pelo intercomunicador a Sabrina Jones a ler um livro e a cantarolar baixinho com a sua boca maravilhosa fechada.
A Mãe e os Matsons estavam a dar toda a atenção à Doris Wales. Só a Franny estava livre para dançar - a Bitty Tuck encontrava-se na pista com o Júnior Jones.
- Anda dançar comigo - disse eu à Franny, agarrando-a de repente.
- Não sabes dançar - respondeu a Franny, permitindo-me no entanto que a conduzisse pela pista.
- Mas sei beijar - segredei-lhe eu.
E tentei beijá-la, mas ela empurrou-me.
- Troca! - gritou ela para o Júnior Jones e a Bitty Tuck.
E fiquei com a Bitty Tuck nos braços; ela fez imediatamente um ar aborrecido.
- Só tens de estar a dançar com ela quando for meia-noite - havia-me aconselhado a Sabrina Jones. - À meia-noite tens de beijar a pessoa com quem estiveres.
*. Esqueci-me de me lembrar de esquecer. (N. da T.)
Mal a beijes, ficas com ela na mão. Mas não falhes o primeiro.
- Estiveste a beber, John-John? - perguntou-me a Bitty. - Tens os lábios todos inchados.
E a Doris Wales, rouca e suada, brindou-nos com o Tryin' to Get to You, uma dessas canções desajeitadas, nem lentas nem rápidas, que deixava à Bitty Tuck a escolha de querer dançar agarrada ou não. Antes de ela ter tomado uma decisão, o Max Urick saltou da cozinha, com o seu boné de marinheiro na cabeça e um apito de árbitro entre os dentes cerrados, e deu uma apitadela tão estridente que até a Ronda Ray se mexeu um bocadinho no bar.
- Feliz Ano Novo! - gritou o Max, esganiçando-se todo.
A Franny pôs-se em bicos de pés e deu ao Júnior Jones o beijo mais doce que eu já vi, e a Mãe correu para junto do Pai. O Merton, o capataz da serração, deitou uma olhadela para a Ronda Ray, sonolenta; em seguida, pareceu pensar melhor no caso. A Bitty Tuck, com um encolher de ombros enfadado, concedeu-me mais um sorriso superior. E eu recordei-me da caverna suculenta da boca da Sabrina Jones; então, como se costuma dizer, atirei-me. Houve um pequeno contacto de dentes, mas nada de violento; introduzi-lhe a língua para além dos dentes, mas com um movimento muito ligeiro, e senti os seus dentes a deslizarem sob o meu lábio superior. Lá estavam os tão falados e fabulosos seios da Bitty Tuck, espetados de encontro ao meu peito como macios punhos fechados; mas eu fiquei com as mãos nos bolsos, sem forçar nada. Ela podia afastar-se, mas preferiu não quebrar o contacto.
- Macacos me mordam! - exclamou o Júnior Jones, interrompendo momentaneamente a concentração da Bitty Tuck.
- Titsie! - exclamou a Franny. - O que é que estás a fazer ao meu irmão?
Mas mantive o contacto com a Bitty Tuck durante um bocadinho mais, detendo-me no seu lábio inferior e mordiscando-lhe a língua, que, de repente, ela tinha enfiado de mais. Houve um momento de ligeiro embaraço quando tirei as mãos dos bolsos, pois a Bitty havia decidido que Tryin' to Get to You era para dançar agarrado.
- Onde é que aprendeste a fazer isso? - sussurrou ela, com os seios como dois gatinhos quentes aninhados contra o meu peito.
Saímos da pista de dança antes de os Hurricane Doris mudarem de ritmo.
Havia uma corrente de ar no vestíbulo, por o Frank ter deixado aberta a porta que dava para a entrada das traseiras; ouvíamo-lo lá fora, na escuridão da neve derretida, a urinar - com toda a força - contra um caixote do lixo. O chão por baixo do abre-garrafas pendurado do cordel estava pejado de tampas de garrafas de cerveja. Quando ergui nos braços a bagagem da Bitty Tuck, ela perguntou:
- Não vais fazer duas viagens?
Ouvi um arroto enorme do Frank, como uma espécie de gongo primitivo a anunciar que a Passagem do Ano já tinha acontecido, agarrei melhor na bagagem e comecei a subir os quatro andares com a Bitty atrás.
- Ena! - exclamou ela. - Já sabia que eras forte, John-John, mas podias arranjar um emprego na televisão, a beijares dessa maneira.
Fiquei sem saber o que estaria ela a imaginar: se calhar, a minha boca a fazer de anúncio, em grande plano, a embaciar as lentes da câmara...
O que é certo é que estes pensamentos me desviavam a atenção da dor que sentia nos rins, e dei graças a Deus por nessa manhã ter feito levantamento de pesos; e assim lá consegui levar a bagagem da Bitty até ao 4A. As janelas estavam abertas, mas não se ouvia o som do vento a soprar que havíamos escutado horas antes no intercomunicador; achei que o vento podia ter abrandado. Quando a larguei, a bagagem explodiu-me dos braços, que me pareceram uns quilos mais leves. A Bitty Tuck encaminhou-me para a cama dela.
- Faz lá outra vez - pediu ela. - Aposto que não és capaz. Aposto que foi sorte de principiante.
Beijei-a então outra vez, permitindo um pouco mais de contacto com os dentes e mais actividade com a língua.
- Ai, pá! - exclamou a Bitty, agarrada a mim. - Tira as mãos dos bolsos! Ah, espera, tenho de ir à casa de banho.
Quando ela ligou o interruptor da casa de banho, ouvi-a dizer:
- O! A Franny foi simpática em pôr-me aqui o secador!
Foi então que, pela primeira vez, senti o cheiro do quarto - um odor mais característico do que o de um pântano: era um cheiro a queimado, porém estranhamente húmido, como se o fogo e a água se tivessem misturado desagradavelmente. Compreendi que o som do vento a soprar que tinha ouvido no intercomunicador provinha do secador de cabelo; mas antes de conseguir chegar à casa de banho para impedir a Bitty Tuck de ver mais, ouvi-a dizer:
- O que é isto enrolado na cortina do duche? Aaaaaahhh!
O grito dela deixou-me paralisado entre a cama e a porta da casa de banho. Até a Doris Wales, a carpir o You'ré a Heartbreaker quatro andares mais abaixo, o deve ter ouvido. A Sabrina Jones disse-me mais tarde que o livro lhe havia voado das mãos. A Ronda Ray saltou como uma mola sobre o banco do bar, endireitando-se pelo menos durante um breve segundo. O Sleazy Wales, disse-me o Júnior Jones, pensou que a origem do grito fosse o seu amplificador, mas mais ninguém se deixou enganar.
- Titsie! - gritou a Franny.
- Valha-me Deus! - exclamou o Pai.
- Com o caraças! - comentou o Júnior Jones.
Fui o primeiro a tirar a Bitty da casa de banho. Ela havia desmaiado e caído para o lado de encontro à minúscula sanita, ficando entalada em cunha debaixo do lavatório de dimensões igualmente reduzidas. A banheira, de tamanho de adulto, meia cheia de água, tinha-lhe chamado a atenção quando introduzia o diafragma - o que, nessa época, era uma coisa muito sofisticada. A cortina do duche estava a flutuar na banheira, e a Bitty inclinara-se para a frente e levantara-a o suficiente para ver a cabeça grisalha e submersa do Sorrow - semelhante à vítima de um assassínio: um cão afogado, com a ferocidade fantasmagórica da sua última luta desesperada contra a morte, a dissolver-se debaixo de água.
Aquele que descobre o cadáver raramente é poupado. Felizmente que o coração da Bitty era jovem e resistente; senti-o a pulsar-lhe sob os seios quando a deitei na cama. Pus-me a pensar qual seria a melhor maneira de a reanimar, e beijei-a; embora isso a fizesse abrir os olhos durante um instante, foi só para gritar outra vez - ainda com mais força.
- É só o Sorrow - disse-lhe eu, como se isto pudesse explicar tudo. A Sabrina Jones foi a primeira pessoa a chegar ao 4A, uma vez que era a única que já vinha do segundo andar. Olhou-me como se eu estivesse envolvido num caso de violação e disse-me:
- Deves ter feito qualquer coisa que eu nunca te ensinei!
Não me restam dúvidas que ela deve ter pensado que a Bitty tinha sido vítima de beijos mal dados.
A culpa daquilo tudo era do Egg, evidentemente. Ele havia tentado enxugar o pêlo do Sorrow com o secador, na casa de banho da Bitty, e o cão tinha começado a arder. Em pânico, o Egg atirara-o para dentro da banheira, cobrindo-o com água. Tendo conseguido assim extinguir o fogo, ele abrira as janelas para eliminar o cheiro a chamusco do quarto e, no auge do cansaço, quase à meia-noite - temendo ser apanhado pelo Frank, que continuava a rondar incansavelmente -, tapara a carcaça do cão com a cortina do chuveiro, pois agora o animal encharcado era pesado de mais para ele lhe conseguir pegar. Em seguida, fora até ao nosso quarto e substituíra o seu disfarce por roupa vulgar, ficando depois à espera de ser descoberto e castigado.
- Meu Deus! - exclamou o Frank, com ar desanimado, quando viu o Sorrow. - Agora é que já não há mais nada a fazer. É impossível voltar a pô-lo em condições.
Até os rapazes dos Hurricane Doris vieram em torpel à casa de banho da Bitty prestar a última homenagem àquela medonha imagem do Sorrow.
- Eu queria fazê-lo parecer bonzinho outra vez! - chorava o Egg. -Antes ele era bonzinho, e eu queria que ele fosse bonzinho outra vez.
O Frank, num súbito acesso de piedade, pareceu compreender alguma coisa sobre taxidermia pela primeira vez.
- Egg, Egg - disse ele ao garoto, que soluçava sem parar -, eu consigo fazê-lo parecer bonzinho outra vez. Devias ter-me deixado. Eu consigo fazer qualquer coisa dele. Ainda vou conseguir. Queres que ele volte a parecer bonzinho, Egg? Eu volto a pô-lo bonzinho.
Mas a Franny e eu olhámos para a banheira e tivemos grandes dúvidas. Que o Frank tivesse pegado num Labrador inofensivo, que só sabia peidar-se, e o tivesse transformado numa fera assassina, era uma coisa; mas recuperar aquele corpo disforme e repugnante, que mais parecia um capacho queimado e intumescido, mergulhado na banheira, constituiria um milagre de obstinação de que, na nossa opinião, nem mesmo o Frank seria capaz. O Pai, pelo contrário, mantinha o seu optimismo habitual; parecia achar que tudo aquilo seria uma excelente "terapia" para o Frank - e também, sem dúvida, outra influência positiva para o amadurecimento do Egg.
- Se conseguires arranjar o cão e fazê-lo parecer manso outra vez - disse o Pai ao Frank, com uma solenidade despropositada -, isso deixar-nos-á a todos muito felizes.
- Acho que devíamos deitá-lo fora - disse a Mãe.
- Nem mais - apoiou a Franny.
- Eu tentei - lamentou-se o Max Urick.
Mas o Egg e o Frank desataram a chorar que nem uns possessos. Talvez o Pai tivesse compreendido que a remissão do Frank podia encontrar-se na restauração do Sorrow; talvez a recuperação do cão restaurasse no Frank o apreço por si mesmo; e talvez o Pai pensasse que a reconstituição do Sorrow para o Egg - tornando a pô-lo "bonzinho" - nos viesse a restituir um pouquinho do Iowa Bob. Mas como a Franny diria, anos mais tarde, Sorrows bonzinhos e desgostos agradáveis(*) eram coisas que não existiam; por definição, os dois termos não ligavam.
Teria eu o direito de criticar o meu pai por ele tentar? Ou o Frank por ser o agente desse optimismo deprimente? Quanto ao Egg, é claro que não fazia sentido criticá-lo; nunca nenhum de nós seria capaz de o fazer.
Só a Lilly continuou a dormir durante o tempo todo, vivendo talvez em sonhos num mundo que não era tal e qual como o nosso. A Doris Wales e a Ronda Ray não se tinham dado ao trabalho de subir os quatro lanços de escadas para verem o cadáver, mas, quando fomos ter com elas ao restaurante, o acontecimento - embora em segunda mão - parecia ter-lhes restituído a sobriedade. As eventuais esperanças, nem que fosse de uma mini sedução, que o Júnior Jones poderia ter alimentado foram varridas pela interrupção da música. A Franny deu-lhe um beijo de boas-noites e foi para o quarto dela. E a Bitty Tuck, apesar de ter gostado dos meus beijos, não conseguiu perdoar o atentado à sua privacidade perpetrado na casa de banho - tanto por mim como pelo Sorrow. Imagino que o que a fizera sentir-se mais ressentida fora a posição deselegante em que eu a havia encontrado. "Desmaiar a pôr o diafragma!" - seria assim que a Franny descreveria mais tarde a cena.
Encontrei-me de novo sozinho com o Júnior Jones na entrada de serviço, a beber cerveja gelada e a perscrutar o Elliot Park na tentativa de descobrir outros sobreviventes da Passagem do Ano. O Sleazy Wales e os outros rapazes do conjunto
*. No original inglês, o autor faz um trocadilho com a expressão nice Sorrow, que neste caso tem um duplo significado: o de Sorrow (o cão), bonzinho, manso, agradável, simpático, e o de desgosto, pena, dor, agradáveis, suportáveis. (N. da T.)
tinham ido para casa. A Doris e a Ronda estavam encostadas ao bar. Uma espécie de camaradagem havia surgido repentinamente entre elas, confusamente, por entre os vapores do álcool. O Júnior Jones disse:
- Sem ofensa para a tua irmã, pá, mas estou cheio de tesão.
- E eu idem - respondi-lhe. - Também sem ofensa para a tua.
O riso das mulheres no restaurante chegou até nós, e o Júnior desafiou-me:
- E se tentássemos engatar aquelas tipas do bar?
Não ousei confessar ao Júnior quanto me repugnava aquela ideia - por já ter sido engatado por uma delas -, mas mais tarde senti-me mal ao pensar na rapidez com que me dispus a trair a Ronda Ray. Disse ao Júnior que ela podia ser engatada muito facilmente desde que ele pagasse.
Pouco depois, enquanto bebia outra cerveja, fiquei a ouvir o Júnior levar a Ronda para a escada, que ficava na extremidade mais afastada do vestíbulo. E após mais uma ou duas cervejas, ouvi a Doris Wales, sozinha, desatar a cantar o Heartbreak Hotel, sem música, esquecendo por vezes as palavras da sua devoção - e outras vezes baralhando o resto. Por fim, ouvi o inconfundível som dela a vomitar no lava-loiças do bar. Passado algum tempo deu comigo no vestíbulo, de pé, na porta que dava para a entrada de serviço, e eu ofereci-lhe a última cerveja gelada.
- Está bem, porque não? Ajuda a empurrar o sarro. O raio do Heartbreak Hotel comove-me tanto que eu até fico agoniada.
A Doris Wales tinha calçadas as suas botas de cowboy até aos joelhos, e tinha numa mão uns sapatos de salto alto feitos com tirinhas de couro verde; com a outra mão segurava languidamente o casaco de tweed tristemente mosqueado, com uma gola de pele rala.
- É só rato almiscarado - disse ela, esfregando-a na minha cara. Agarrou no gargalo da garrafa de cerveja com a mão com que pegava nos sapatos e emborcou-a quase toda de uma vez. A marca na sua garganta inclinada parecia ter sido feita por uma moeda aquecida ao rubro. Deixou cair a garrafa de cerveja aos pés e atirou-a pela porta fora com um pontapé que a fez rolar em direcção aos caixotes do lixo na entrada de serviço. Então aproximou-se de mim e meteu-me uma coxa entre as pernas; beijou-me na boca de uma forma muito diferente de tudo o que a Sabrina Jones me tinha ensinado; foi como se me enfiassem fruta demasiado madura pela boca dentro, esmagando-a de encontro aos meus dentes e à minha língua, até eu começar aos vómitos; um beijo com um gosto duradoiro a vomitado e a cerveja.
- Fiquei de levar o Sleazy no fim da festa. Queres vir? - perguntou-me ela.
Aquilo fez-me lembrar aquela vez no cinema em que o Sleazy ameaçara fazer-me engolir à força a bola de pão e arrancar-me os olhos com o prego.
- Não, obrigado - respondi eu.
- Ora merda! - e deu um arroto sonoro. - Os putos de hoje já não têm tomates, é o que é.
Puxou-me então contra o peito e apertou-me contra o corpo rijo como o de um homem, mas com os seios a escorregarem entre nós como dois peixes acabados de pescar metidos dentro de um saco folgado, e passou-me lentamente a língua pelo maxilar antes de a introduzir no meu ouvido.
- Seu picha de esquilo - murmurou, afastando-me dela.
Caiu na neve lamacenta junto à entrada de serviço, mas quando fui ajudá-la a pôr-se de pé empurrou-me para os caixotes do lixo e mergulhou a cambalear na escuridão do Elliot Park. Esperei que passasse da escuridão para a luz pálida do único candeeiro da rua, para voltar a desaparecer, em seguida, na escuridão. Quando reapareceu fugazmente na zona iluminada, gritei-lhe:
- Boa noite, Mrs. Wales, e obrigado pela música.
Fez-me um gesto com o dedo, escorregou, quase voltou a cair, e desapareceu no escuro - praguejando contra qualquer coisa ou contra alguém com quem deparou.
- Ai a merda! - disse ela. - Vai-te foder, está bem. Desviei-me da luz e vomitei para dentro do caixote do lixo mais vazio.
Quando voltei a olhar na direcção do candeeiro, vi uma silhueta a fazer meia-volta e pensei que fosse a Doris Wales que regressava para me insultar. Mas era alguém que vinha de outra festa de Passagem do Ano e cuja casa ficava noutra direcção. Era um homem, ou um adolescente já bastante crescido, e embora cambaleasse sob os efeitos do álcool conseguia equilibrar-se ligeiramente melhor sobre a neve derretida do que a Doris Wales.
- Vá-se foder você! - gritou ele na escuridão.
- Monte de merda! - gritou-lhe a Doris ao longe, do escuro.
- Puta! - berrou o homem.
Mas em seguida desequilibrou-se e ficou sentado na neve derretida.
- Merda! - disse ele, para ninguém em particular, pois não me podia ver.
Foi então que reparei como ele estava vestido: calças e sapatos pretos, e faixa e lacinho também pretos - e um smoking branco. É evidente que compreendi que não se tratava do homem de smoking branco; faltava-lhe a dignidade necessária e, fosse qual fosse a viagem que estivesse a fazer, ou que tivesse interrompido, não era uma viagem exótica. Além disso, estava-se na noite da Passagem do Ano e não na época em que - na Nova Inglaterra - se usam smokings brancos. O homem estava vestido de forma despropositada, e eu sabia que aquilo não era um costume excêntrico de se distinguir dos outros. Em Dairy, New Hampshire, aquilo só podia significar que o palerma tinha ido ao adelo onde se alugavam fatos de cerimónia depois de todos os smokings pretos terem sido levados. Ou então, ele não sabia a diferença que se fazia na nossa cidade entre os trajes de cerimónia de Verão e de Inverno. Ou era um palerma novo que vinha de um baile de estudantes ou um palerma mais velho que vinha de um baile de gente mais velha (que não teria sido menos triste nem menos perda de tempo do que qualquer coisa engendrada por estudantes). Não era o nosso homem de smoking branco, mas fez-me lembrar dele.
Em seguida reparei que o homem se tinha estendido na neve debaixo do candeeiro e que tinha adormecido aí. A temperatura andava pelos zero graus.
Finalmente senti que a Passagem do Ano tinha desembocado em qualquer coisa: agora parecia haver uma finalidade em tudo aquilo em que eu tomara parte - um objectivo para além das sensações de prazer simultaneamente vagas e concretas. Levantei o homem de smoking branco e levei-o para o vestíbulo do Hotel New Hampshire. Foi mais fácil transportá-lo do que à bagagem da Bitty Tuck; não pesava muito, embora fosse um homem e não um adolescente - na realidade, parecia-me mais velho do que o meu pai. E quando fui verificar se tinha consigo algum papel de identificação, descobri que tivera razão ao suspeitar da possibilidade de roupas de aluguer.
PROPRIEDADE DOS ARMAZÉNS CHESTER'S MEN, estava escrito na etiqueta do smoking. O homem, embora parecesse relativamente distinto - pelo menos para Dairy, New Hampshire -, não trazia carteira, mas tinha um pente de prata.
Talvez a Doris Wales tivesse aproveitado a escuridão para o roubar, sendo essa a razão de se terem posto a discutir. Mas não, pensei eu: a Doris ter-lhe-ia tirado também o pente de prata.
Parecia-me uma boa partida deitar o homem de smoking branco no sofá do vestíbulo do Hotel New Hampshire, de modo a, de manhã cedo, poder surpreender o Pai e a Mãe, dizendo-lhes: "Houve uma pessoa que, na noite passada, chegou para a última dança, mas já veio atrasado. Está à vossa espera no vestíbulo."
Pensei que era uma óptima ideia, mas senti - uma vez que tinha estado a beber - que o que eu devia fazer era acordar a Franny e mostrar-lhe o homem de smoking branco, que tinha adormecido pacificamente no sofá; se fosse má ideia, a Franny encarregar-se-ia de mo dizer sem mais delongas. Mas eu estava certo que ela também ia gostar da ideia.
Endireitei o lacinho do homem de smoking branco e cruzei-lhe as mãos no peito; abotoei-lhe o botão da cintura do smoking e estiquei-lhe a faixa, para não ficar com ar desmazelado. As únicas coisas que faltavam eram o bronzeado e a cigarreira preta - e o veleiro branco junto ao Arbuthnot-by-the-Sea.
Mas eu sabia que o que se ouvia no Hotel New Hampshire não era o som do mar, mas sim o ranger da neve lamacenta no Elliot Park, que gelava, derretia, e tornava a gelar, e que não havia gritos de gaivotas, mas cães a ladrar - cães vadios, remexendo no lixo espalhado por toda a parte. Até compor o homem de smoking branco no sofá, eu nunca tinha reparado no aspecto decadente do vestíbulo e em como a presença de uma escola feminina nunca chegara a ser eliminada do edifício: o ostracismo, a ansiedade de vir a ser considerada (sexualmente) de segunda ordem, os casamentos prematuros e outros desapontamentos que esperavam as alunas no futuro. O homem de smoking branco, quase elegante, parecia - no Hotel New Hampshire - um ser de outro planeta, e, de repente, não quis que o meu pai o visse.
Corri até ao restaurante a buscar água gelada. A Doris Wales tinha partido um copo no bar, e os sapatos de trabalho da Ronda Ray, estranhamente assexuados, estavam enfiados debaixo de uma mesa, para onde ela lhes devia ter dado um pontapé - quando começara a dançar e a atirar-se ao Júnior Jones.
Se eu acordasse a Franny, não iria ela descobrir que o Júnior estava com a Ronda e ficar magoada com isso?
Deitei uma olhadela para o vão da escada e senti uma centelha de interesse em recuperar a Bitty Tuck - a ideia de a ver adormecida excitou-me-, mas quando me pus à escuta do quarto dela, no intercomunicador, verifiquei que ressonava (com um ronco tão profundo e tão gorgolejante como o de um porco num chiqueiro). O registo dos hóspedes não tinha escrito um único nome; não havia nada até ao Verão, altura em que chegaria o circo chamado Fritz's Act para (sem sombra de dúvidas) nos deixar horrorizados. A caixa do dinheiro, na recepção, nem sequer estava fechada à chave - e o Frank, para mitigar o seu aborrecimento enquanto ficava de serviço ao telefone, tinha utilizado a extremidade aguçada do abre-garrafas para gravar o seu nome no braço da cadeira.
No fedor retardado a fim de festa do dia de Ano Novo senti que devia poupar ao meu pai o espectáculo do homem de smoking branco. Pensei que, se o conseguisse acordar, podia recorrer ao Júnior Jones para o espantar dali para fora, mas não tinha lata para ir incomodar o Júnior estando ele com a Ronda Ray.
- Eh! Levante-se! - sibilei para o homem de smoking branco.
- Snorf! - grunhiu ele no sono. - Argh! Uma puta!
- Esteja calado! - segredei-lhe ferozmente.
- Hic! - soluçou ele.
Agarrei-o à volta do peito e puxei-o para cima.
- Fuh! - resmungou ele. - Valha-me Deus.
- Tem muita razão. Mas tem de se ir embora. Abriu os olhos e sentou-se no sofá.
- Ah, um jovem malfeitor - disse ele. - Para onde é que me trouxe?
- Você adormeceu lá fora - respondi. - Trouxe-o cá para dentro para não gelar. Mas agora tem de se ir embora.
- Tenho de ir à casa de banho - disse ele com ar digno.
- Vá lá fora. Consegue andar?
- Claro que consigo andar.
Dirigiu-se para a entrada de serviço, mas parou no limiar da porta.
- Está muito escuro lá fora. Você está a querer tramar-me, não está? Quantos é que estão à minha espera lá fora? Quantos?
Levei-o até à entrada da frente e acendi a luz do exterior. Tenho a impressão que foi esta luz que acordou o Pai.
- Adeus - disse eu ao homem de Smoking branco. - E Feliz Ano Novo.
- Mas isto é o Elliot Park! - exclamou ele, indignado.
- Pois é.
- Bem, então este é o tal hotel esquisito. Se é um hotel, quero um quarto para passar a noite.
Achei melhor não lhe dizer que ele não tinha dinheiro nenhum com ele, e em vez disso informei-o:
- Está cheio, não há vagas.
O homem de smoking branco contemplou o vestíbulo desolador, fitou com ar parado os cacifos do correio vazios e a arca com a roupa de Inverno do Júnior Jones abandonada no patamar da escada sombria.
- Está cheio! - comentou ele, como se pela primeira vez lhe tivesse ocorrido qualquer verdade acerca da vida em geral. - Esta agora! E eu que ouvi dizer que isto estava muito por baixo!
Aquilo não era exactamente o que eu queria ouvir.
Conduzi-o de novo até à porta principal, mas ele baixou-se, apanhou o correio e entregou-mo; com a azáfama dos preparativos para a festa durante todo o dia, ninguém tinha ido ver a correspondência introduzida pela ranhura da porta da frente.
O homem deu uns passos, afastando-se um pouco da porta, e depois voltou atrás.
- Quero chamar um táxi - informou-me. - Há violência de mais lá fora - continuou ele, gesticulando mais uma vez contra a vida em geral.
Não se podia querer referir ao Elliot Park - pelo menos agora, que a Doris Wales se tinha ido embora.
- Não tem dinheiro que chegue para um táxi - informei-o.
- Ah... - exclamou o homem de smoking branco, sentando-se nos degraus ao ar frio e enevoado. - Preciso de uns instantes.
- Para quê? - perguntei-lhe.
- Tenho de me lembrar para onde vou - respondeu ele.
- Talvez para casa? - sugeri eu.
Mas o homem fez um gesto com a mão acima da cabeça, a mandar-me calar.
Ele estava a pensar. Olhei para o correio. As contas habituais, a habitual ausência de cartas de desconhecidos a pedirem quartos. E uma carta que se salientava das restantes, com lindos selos estrangeiros que diziam Õster-reich e outras coisas exóticas. A carta era de Viena e estava endereçada ao meu pai de uma forma curiosa:
Win Berry
Licenciado por Harvard
Curso de 194?
EUA
A carta tinha demorado muito tempo a chegar ao meu pai, mas os tipos dos correios tinham descoberto alguém lá dentro que sabia onde era Harvard. Mais tarde o meu pai havia de dizer que esta fora a coisa mais palpável que conseguira com a sua ida para Harvard; se tivesse ido para qualquer universidade menos famosa, a carta nunca lhe teria sido entregue.
- Isso é uma boa razão - diria a Franny mais tarde, - para desejar que ele tivesse ido para uma universidade menos famosa.
Mas, evidentemente, a associação dos antigos alunos de Harvard era vasta e eficiente. O nome do meu pai e o "Curso de 194?" foi tudo aquilo de que precisaram para descobrir que se tratava do curso de 46 e qual a morada correcta.
- O que se passa? - ouvi o meu pai perguntar.
Tinha saído dos aposentos da nossa família no segundo andar e estava no patamar, falando-me da escada.
- Nada - respondi-lhe, dando pontapés ao bêbedo, que estava a adormecer de novo nos degraus à minha frente.
- Porque está a luz da frente acesa? - insistiu o Pai.
- Raspe-se! - disse eu ao homem de smoking branco.
- Prazer em conhecê-lo! - respondeu ele, cordialmente. - Espere só um bocadinho que eu já me vou embora!
- Óptimo, óptimo - sussurrei eu.
Mas ele limitou-se a descer para o primeiro degrau, antes de parecer ser capaz de voltar a pensar.
- Com quem é que estás a falar? - quis saber o Pai.
- Com ninguém. É só um bêbedo.
- Valha-me Deus! Então um bêbedo não é ninguém.
- Eu trato disto sozinho!
- Espera que eu me vista. Valha-me Deus!
- Vá-se embora! - gritei eu para o homem de smoking branco.
- Adeus! Adeus! - exclamou o homem, acenando jubilosamente do último degrau do Hotel New Hampshire. - Foi muito agradável ter estado aqui!
A carta, como é evidente, era do Freud. Eu sabia, e queria ver o que dizia antes que o meu pai a lesse. Queria falar disso com a Franny durante horas - e mesmo com a Mãe - antes de a dar ao Pai. Mas não tinha muito tempo. A carta era sucinta e precisa:
SE RECEBERES ESTA É PORQUE FOSTE PARA HARVARD COMO ME PROMETESTE. ÉS UM RAPAZ ÀS DIREITAS!
- Boa noite! Deus o abençoe! - exclamou o homem de smoking branco.
Ainda não chegara a sair do perímetro iluminado; onde começava a escuridão do Elliot Park, deteve-se e acenou.
Apaguei a luz de modo a que, se o Pai chegasse, não pudesse ver aquela aparição em traje de cerimónia.
- Não vejo nada! - baliu o bêbedo.
E acendi novamente a luz.
- Raspe-se já daqui ou vai ter de se haver comigo! - gritei-lhe eu.
- Isso não são modos de tratar uma pessoa - ouvi o Pai gritar. Ainda estava no círculo iluminado quando voltei a apagar a luz sem que
ele protestasse. Acabei de ler a carta do Freud:
FINALMENTE ARRANJEI UM URSO ESPERTO. COMPLETAMENTE DIFERENTE. TINHA UM BOM HOTEL A FUNCIONAR, MAS ENVELHECI. AINDA PODE VIR A SER UM GRANDE HOTEL, SE TU E A MARY ME VIEREM AJUDAR. ARRANJEI UM URSO ESPERTO, MAS TAMBém PRECISO DE UM RAPAZ ESPERTO DE HARVARD, COMO TU!
O Pai irrompeu pelo vestíbulo em mísero estado do Hotel New Hampshire; atrapalhado pelos chinelos, tropeçou numa garrafa de cerveja, dando-lhe um pontapé, e o roupão que trazia vestido agitou-se ao vento que soprava da porta aberta.
- Já se foi embora - disse eu ao Pai. - Era um bêbedo qualquer. Mas o Pai acendeu a luz de fora - e lá estava, acenando na orla do círculo iluminado, o homem de smoking branco.
- Adeus - disse ele, com um tom de esperança na voz. - Adeus! Boa sorte. Adeus!
O efeito foi assombroso: o homem de smoking branco saiu da zona de luz e desapareceu - como se tivesse saído para o mar -, e o meu pai ficou boquiaberto, de olhos fixos na escuridão.
- Espere! - gritou o Pai. - Ah! Espere aí! Venha cá!
- Adeus! Boa sorte! Adeus! - ouvíamos dizer a voz do homem de smoking branco.
E o meu pai ficou a fitar a escuridão até o vento o arrepiar e ele ficar a tiritar, de roupão e chinelos. Deixou-me puxá-lo para dentro.
Como todo o contador de histórias, eu tinha o poder de pôr um fim à história, e poderia tê-lo feito. Mas não destruí a carta do Freud. Dei-a ao Pai, ainda dominado pela visão do homem de smoking branco. Entreguei-lhe a carta do Freud - sabendo (mais ou menos), como qualquer contador de histórias, para onde iríamos todos.
O SORROW ATACA DE NOVO
A Sabrina Jones, que me ensinou a beijar - e por cuja boca profunda e móvel eu nutriria para sempre um sentimento de subjugação -, encontrou o homem que conseguiu desvendar o mistério dos seus dentes-postos-ou-tirados; casou-se com um advogado da firma onde era secretária e teve três filhos saudáveis ("Zumba, zumba, zumba", como dizia a Franny).
A Bitty Tuck, que desmaiou enquanto estava a meter o diafragma - e cujos seios fabulosos e modos modernos um dia mais tarde não me iriam parecer tão extraordinários como me pareciam em 1956 - sobreviveu ao seu encontro com o Sorrow; na realidade, ouvi dizer (não há muito tempo) que ainda continuava solteira e amiga de ir a festas. E um homem chamado Frederick Worter, que tinha pouco mais de um metro e vinte de altura e quarenta e um anos de idade, e que a nossa família conhecia melhor por "Fritz" - cujo circo, chamado Fritz's Act, tinha uma reserva antecipada para um Verão que aguardávamos com curiosidade e temor -, comprou ao meu pai o primeiro Hotel New Hampshire no Inverno de 1957.
- Por uma ninharia, até aposto - disse a Franny.
Mas nós, os miúdos, nunca soubemos por quanto havia o Pai vendido o Hotel New Hampshire; uma vez que o Fritz's Act era a única reserva que tínhamos para o Verão de 1957, o meu pai escreveu ao Fritz a avisar aquele pequeno rei do circo da mudança da nossa família para Viena.
- Viena? - protestava continuamente a Mãe, abanando a cabeça com ar incrédulo. - Mas o que é que tu sabes de Viena!
- O que é que eu sabia de motos? - perguntava o Pai. - Ou de ursos? Ou de hotéis?
- E o que é que aprendeste! - perguntava-lhe a Mãe.
Mas o Pai não tinha dúvidas. O Freud tinha dito que um urso esperto torna as coisas completamente diferentes.
- Pelo menos sei que Viena não é Dairy, New Hampshire - disse o Pai à Mãe.
E pediu desculpa ao Fritz, dizendo que tinha posto o Hotel New Hampshire à venda e que o circo talvez precisasse de procurar outras instalações.
Não sei se o Fritz's Act fez uma boa oferta ao Pai, mas foi a primeira oferta e o Pai aceitou-a.
- Viena? - disse o Júnior Jones. - Com o escafandro!
A Franny talvez tivesse protestado com a mudança, com medo de ter saudades do Júnior, mas havia descoberto a infidelidade deste (com a Ronda Ray, na Passagem do Ano) e começara a tratá-lo com frieza.
- Diz-lhe que eu estava cheio de tesão, pá, mais nada! - pediu-me o Júnior.
- É que ele estava cheio de tesão, Franny, mais nada! - disse-lhe eu.
- Com certeza! - respondeu a Franny. - E ninguém melhor do que tu sabe como essas coisas são, não é?
- Viena... - disse a Ronda Ray, suspirando debaixo de mim, provavelmente de enfado. - Gostava de ir para Viena. Mas acho que tenho de ficar aqui, onde posso não arranjar trabalho ou ter de trabalhar para esse anão careca.
Frederick "Fritz" Worter era o anão careca, uma figura raquítica que nos visitou num fim-de-semana em que nevava; ficou particularmente impressionado com as dimensões do equipamento sanitário do quarto andar - e com a Ronda Ray. A Lilly, evidentemente, foi quem ficou mais impressionada com o Fritz. Ele só era um bocadinho mais alto do que ela, embora a tentássemos convencer (e a nós próprios, sobretudo) de que ia continuar a crescer - um bocadinho - e de que nunca seria tão desproporcionada (pelo menos assim o esperávamos). A Lilly era bonita: pequenina, mas bonita. Mas o Fritz tinha uma cabeça grande de mais para o corpo; os músculos dos seus antebraços pendiam como se fossem barrigas de pernas flácidas, descaradamente enxertadas nos membros errados; os dedos pareciam salames cortados com um serrote, e tinha os tornozelos inchados descaídos sobre uns pezinhos de boneca - como se fossem umas peúgas com os elásticos partidos.
- Que género de circo é que tem? - perguntou-lhe a Lilly, com ar impertinente.
- Números esquisitos, animais esquisitos - murmurou-me a Franny ao ouvido, e eu senti um arrepio.
- Números minúsculos, animais minúsculos - resmungou o Frank.
- Somos um circo pequeno - disse o Fritz à Lilly, num tom expressivo.
- O que ele queria dizer - comentou o Max Urick, depois de o Fritz ter saído - é que eles vão todos caber às mil maravilhas no maldito quarto andar.
- Se forem todos como ele - disse a Sr.a Urick - não devem comer muito.
- Se forem todos como ele... - interveio a Ronda Ray, revirando os olhos; mas não continuou, deixando a frase em suspenso.
- Eu acho-o giro - disse a Lilly.
Mas o Fritz do Fritz's Act provocou pesadelos ao Egg - com gritos terríveis que me deixavam as costas retesadas e me provocavam torcicolos; o braço do Egg estirava-se de repente, pregando com o candeeiro da mesa de cabeceira no chão, enquanto as pernas se agitavam debaixo dos lençóis como se a roupa da cama o estivesse a afogar.
- Egg! - exclamei eu. - É só um sonho! Estás a sonhar!
- Um quê! - gritou ele.
- Estás a sonhar!
- Anões! - berrou o Egg. - Debaixo da cama! Andam por aí a rastejar! Estão por toda a parte! - uivou ele.
- Valha-me Deus! - exclamou o Pai. - Se são só anões, porque é que ele há-de ficar tão perturbado.
- Psiu! - disse a Mãe, com receio até de magoar os minúsculos sentimentos da Lilly.
E, de manhã, eu ficava debaixo dos halteres, à espreita da Franny a sair da cama - ou a vestir-se - e a pensar no Iowa Bob. O que teria ele dito sobre a ida para Viena? E sobre o hotel do Freud, que por uma razão qualquer precisava de um rapaz esperto de Harvard? E sobre a influência que um urso esperto podia ter nas perspectivas de êxito de qualquer pessoa? Eu levantava os halteres e punha-me a pensar. "Pouco importa", teria dito o Iowa Bob. "Ir para Viena ou ficar aqui, tanto faz." Debaixo daquele peso todo era o que eu pensava que o Iowa Bob teria dito. "Aqui ou lá, estamos aparafusados ao chão para sempre." Havia de ser o hotel do Pai - quer fosse em Dairy ou em Viena. Haveria alguma coisa que nos tornasse menos ou mais exóticos do que já éramos? Eu ficava a magicar nestas questões, sentindo a maravilhosa sensação do peso a crescer e a tensão nos músculos a aumentar, e espreitando a Franny pelo canto do olho.
- Quem me dera que levasses esses pesos para outro quarto - disse a Franny. - Às vezes gosto de me vestir sozinha, poça!
- O que é que pensas da ida para Viena? - perguntei-lhe.
- Acho que vai ser mais requintado do que ficar aqui.
Agora, totalmente vestida, e sempre tão segura de si, mirou-me lá de cima enquanto eu me esforçava para, depois da minha última elevação, descer os braços lenta e uniformemente.
- Talvez eu até arranjasse um quarto sem halteres - acrescentou ela. - Um que até nem tivesse nenhum halterofilista lá dentro.
E ao dizer isto soprou-me ao de leve no sovaco do braço esquerdo (que era o mais fraco), afastando-se quando os pesos deslizaram primeiro para a esquerda e depois para a direita, caindo da barra.
- Valha-me Deus! Outra vez!? - gritou-me o Pai lá de baixo.
E eu pensei que, se o Iowa Bob ainda estivesse connosco, teria dito que a Franny não tinha razão. Quer Viena fosse mais ou menos requintada - quer a Franny tivesse um quarto com halteres ou um quarto com rendas -, seríamos sempre habitantes de sucessivos hotéis New Hampshire.
O hotel do Freud - ou a nossa ideia imperfeita do hotel do Freud, obtida por via aérea - chamava-se Gasthaus Freud; não era claro, na correspondência, se o outro Freud tinha estado lá alguma vez. Só sabíamos que era num "local central, no Primeiro Bairro", segundo o Freud, mas na fotografia a preto e branco e quase sem contraste que ele nos mandara mal conseguíamos distinguir a porta de ferro de dois batentes, entalada entre as montras de uma espécie de confeitaria. KONDITOREI, dizia uma tabuleta; ZUCKERWARDEN, dizia outra; SCHOKOLADEN, prometia uma terceira; e por cima delas todas - maior do que as letras desmaiadas que diziam GASTHAUS FREUD - a palavra BONBONS.
- O quê? - perguntou o Egg.
- Bombons - respondeu a Franny. - Bestial!
- Qual é a porta da confeitaria e qual é a porta do hotel? - quis saber o Frank, que havia de ter sempre uma mentalidade de porteiro.
- Acho que tem de se viver lá para se saber - respondeu a Franny. A Lilly foi buscar uma lente de aumentar e decifrou o nome da rua, numa escrita curiosa, sob o número da porta de dois batentes do hotel.
- Krugerstrasse - decidiu ela, o que pelo menos coincidia com o nome da rua na morada do Freud.
O Pai comprou um mapa de Viena numa agência de viagens e conseguimos localizar a Krugerstrasse - no Primeiro Bairro, como o Freud tinha afirmado. Parecia ser muito central.
- É só a um ou dois quarteirões da Ópera - exclamou o Frank, entusiasmado.
- Bestial! - disse a Franny.
O mapa tinha pequenas zonas verdes, que eram parques, linhas finas, vermelhas e azuis, por onde passavam os eléctricos, e edifícios cheios de floreados - grosseiramente desproporcionados em relação às ruas - para indicar os lugares de interesse turístico.
- Parece um tabuleiro de monopólio - comentou a Lilly. Descobrimos catedrais, museus, a Câmara Municipal, a Universidade e o Parlamento.
- Quais serão as zonas dos bandos? - interrogou-se o Júnior Jones, percorrendo as ruas com o olhar, tal como nós.
- Os bandos! Os quem! - quis saber o Egg.
- Os mauzões - respondeu o Júnior Jones. - A rapaziada que anda de pistolas e navalhas, pá.
- Os bandos - repetiu a Lilly.
E ficámos a olhar para o mapa como se as ruas nos fossem desvendar os seus becos mais escuros.
- Isto fica na Europa - disse o Frank, com ar desdenhoso. - Talvez não haja bandos.
- É uma cidade, não é? - disse o Júnior Jones.
Mas, no mapa, aquilo parecia-me uma cidade de brinquedo, com lindos lugares de interesse turístico e todas as manchas verdes onde a natureza tinha sido ordenada para nosso deleite.
- Se calhar andam nos parques - disse a Franny, mordendo o lábio inferior. - Talvez os bandos se escondam nos parques.
- Merda! - disse eu.
- Não há lá bandos nenhuns! - exclamou o Frank. - O que há é música. E bolos! E as pessoas fazem grandes cumprimentos umas às outras e vestem-se de uma maneira diferente.
Ficámos a olhar para ele, embora soubéssemos que tinha andado a ler umas coisas sobre Viena. Tinha conseguido um bom avanço sobre nós com os livros que o Pai ia trazendo para casa.
- Bolos e música e pessoas às vénias todo o tempo, Frank? - comentou a Franny. - Então é assim que aquilo é?
A Lilly pôs-se a olhar para o mapa com a lente de aumentar, como se do papel fossem surgir pessoas em carne e osso, em miniatura, a fazerem grandes vénias, vestidas de uma forma diferente, ou então a vaguearem em bandos.
- Bem, pelo menos podemos ter a certeza de que não há bandos de negros - disse a Franny, que ainda estava zangada com o Júnior Jones por ele ter dormido com a Ronda Ray.
- Merda! - exclamou o Júnior. - Se fosse a ti, preferia que houvesse bandos de negros. Os bandos de negros são os melhores, pá. Esses bandos de brancos têm complexos de inferioridade. E não há nada pior do que um bando com um complexo de inferioridade.
- Um quê! - perguntou o Egg, pensando sem dúvida que um complexo de inferioridade era uma arma; se bem que às vezes eu até esteja de acordo com ele.
- Bom, acho que vai ser agradável - disse o Frank, com ar sinistro.
- Sim, é capaz de vir a ser - disse a Lilly, com uma falta de humor em tudo semelhante à do Frank.
- Não posso ver como é - disse o Egg, com ar sério. - E como não posso ver, não sei como é que vai ser.
- Vai tudo correr bem - disse a Franny. - Não me parece que vá ser uma coisa extraordinária, mas vai tudo correr bem.
Era estranho, mas a Franny parecia ser a mais influenciada pela filosofia do Iowa Bob - que, até certo ponto, se tinha tornado a filosofia do Pai. Isto era tanto mais estranho quanto era justamente a Franny quem costumava ser mais sarcástica para o Pai - e a mais sarcástica sobre os planos dele. No entanto, quando ela foi violada, o Pai tinha-lhe dito - até me custa a acreditar que ele lhe tenha dito uma coisa daquelas - que, quando ele tinha um dia mau, tentava ver se o podia transformar no dia mais feliz da sua vida.
- Talvez este seja o dia mais feliz da tua vida - dissera-lhe ele.
Eu fiquei espantado por ela parecer achar útil este raciocínio às avessas. A Franny era uma espécie de papagaio de outras "pérolas" da filosofia do Pai.
- Foi só um acontecimento sem importância no meio de tantos outros - ouvi-a dizer ao Frank, a propósito do susto que ele metera ao Iowa Bob e que lhe provocara a morte.
E doutra vez ouvi o Pai dizer o seguinte sobre o Chipper Dove:
- Provavelmente ele tinha uma vida muito infeliz.
E não é que a Franny estava mesmo de acordo com ele?!
Eu sentia-me muito mais nervoso com a ida para Viena do que a Franny e estava plenamente consciente dos sentimentos que ela e eu não compartilhávamos, uma vez que para mim era muito importante estar próximo dela.
Todos sabíamos que a Mãe achava a ideia uma loucura, mas jamais conseguimos que ela fosse desleal para o Pai - embora tentássemos.
- Não vamos entender a língua - disse a Lilly à Mãe.
- A quê? - gritou o Egg.
- A língua! - respondeu a Lilly. - Em Viena falam alemão.
- Vocês vão todos para uma escola de língua inglesa - disse a Mãe.
- Uma escola dessas deve estar cheia de miúdos esquisitos - disse eu.
- Numa escola dessas só há estrangeiros.
- Nós é que vamos ser os estrangeiros - corrigiu a Franny.
- Um colégio de língua inglesa! - continuei eu. - Porreiro! Deve estar cheio de inadaptados!
- E de gente do Governo - disse o Frank. - Os diplomatas e embaixadores devem mandar os filhos para lá. Deve ser uma malta lixada.
- Achas que ainda pode haver malta mais lixada do que a da Dairy School, Frank? - perguntou a Franny.
- Calma aí! - exclamou o Júnior Jones. - Uma coisa é ser um gajo lixado, outra coisa é ser um gajo lixado e estrangeiro!
A Franny encolheu os ombros, e a Mãe fez o mesmo.
- Vamos continuar a ser uma família - disse a Mãe. - O aspecto principal das vossas vidas vai ser a família; tal como agora.
Isto pareceu agradar a todos. Andávamos numa azáfama a ler os livros que o Pai trazia da biblioteca e a ver os prospectos das agências de viagens. Lemos e relemos as mensagens sucintas, mas entusiásticas, do Freud:
BOM VOCÊS VIREM! TRAGAM TODOS OS MIÚDOS E ANIMAIS! MUITO ESPAÇO, CENTRAL, BOAS LOJAS PARA RAPARIGAS IREM ÀS COMPRAS (QUANTAS RAPARIGAS?) E PARQUES PARA RAPAZES E ANIMAIS BRINCAREM. TRAGAM DINHEIRO. SÃO PRECISAS OBRAS - COM A VOSSA AJUDA. VÃO GOSTAR DO URSO. UM URSO ESPERTO É OUTRA COISA. AGORA PODEMOS CONCENTRAR-NOS NO PÚBLICO AMERICANO. QUANDO ARRANJARMOS UMA CLIENTELA MAIS SELECTA, PODEREMOS ORGULHAR-NOS DO HOTEL. ESPERO QUE INGLÊS VOSSO AINDA BOM. AH! AH! ÓPTIMO APRENDER UM POUCO ALEMÃO, SABEM? LEMBREM-SE QUE OS MILAGRES NÃO ACONTECEM NUMA NOITE, MAS EM ALGUMAS NOITES ATÉ URSOS
SE PODEM TRANSFORMAR EM RAINHAS(*). AH! AH! ESTOU VELHO - O PROBLEMA FOI ESSE. AGORA VAMOS FICAR BEM. AGORA MOSTRAMOS A ESSES SACANAS DE FILHOS DA PUTA E DE PANELEIROS DOS NAZIS O QUE É UM BOM HOTEL! ESPERO QUE OS MIÚDOS NÃO SE CONSTIPEM, E NÃO SE ESQUEÇAM DE VACINAR OS ANIMAIS.
Uma vez que o Sorrow era o único animal que tínhamos - e precisava de ajuda mas não de uma vacina -, ficámos sem saber se o Freud pensaria que o Urrr ainda estava vivo.
- É claro que não - disse o Pai. - Só está a falar de uma maneira geral e a tentar ser prestável.
- Vê lá se levas o Sorrow às vacinas, Frank - disse a Franny.
Mas o Frank estava a melhorar em relação à questão do Sorrow. Às vezes ainda o conseguíamos amuar com a nova reconstituição do cão, e ele parecia empenhado na tarefa de refazer o Sorrow - numa posição brincalhona - para o Egg. É claro que nós não tínhamos licença para ver a grande transformação do animal, mas o próprio Frank parecia muito bem disposto - ao voltar do laboratório de Biologia -, de modo que desta vez podíamos ter esperança de que o Sorrow voltasse a parecer "bonzinho".
O Pai lera um livro sobre o anti-semitismo na Áustria e tinha dúvidas se o Freud teria feito bem em chamar ao hotel Gasthaus Freud; com o que havia lido, tinha mesmo dúvidas que os vienenses gostassem do outro Freud. Também não conseguia deixar de pensar quem seriam os "sacanas de filhos da puta e de paneleiros dos nazis".
- Não consigo deixar de pensar que idade terá o Freud - disse a Mãe. Chegaram à conclusão de que, se ele tinha quarenta e tal anos em 1939, agora devia andar pelos sessenta e tal. Mas a Mãe disse que pela maneira de escrever ele parecia mais velho. Pela maneira como escrevia as mensagens que nos enviava, queria ela dizer.
OLÁ! IDEIA-RELÂMPAGO: ACHAM MELHOR CIRCUNSCREVER DETERMINADAS ACTIVIDADES A DETERMINADOS ANDARES? TALVEZ TER CERTO TIPO DE CLIENTES NO QUARTO ANDAR E OUTRO TIPO NA CAVE? ACHAM DELICADA ESTA DESCRIMINAÇÃO? CLIENTELA DIURNA E NOCTURNA COM INTERESSES DIFERENTES - NÃO DIREI "HOSTIS". AH! AH! TUDO ISTO VAI MUDAR COM AS OBRAS E ASSIM QUE ACABEM DE FAZER ESSA TRAMPA DESSES BURACOS NA RUA. SÃO SÓ MAIS UNS ANINHOS DE RECONSTRUÇÃO POR CAUSA DA GUERRA, DIZEM ELES. ESPERA SÓ ATÉ VERES O URSO: NÃO SÓ ESPERTO, MAS NOVO! VAMOS FAZER CÁ UMA EQUIPA! O QUE QUERES DIZER COM ISSO DE "EM VIENA, FREUD É MESMO UM NOME APRECIADO?" ESTIVESTE EM HARVARD OU NÃO??!! AH! AH!
*. No original, o autor faz um trocadilho em torno da palavra queen, que significa rainha, mas também, em gíria, homossexual. (N. da T.)
- Não me parece que seja por ele ser mais velho - disse a Franny. - A mim parece-me é doido.
- O inglês dele é que não é lá muito bom - respondeu o Pai. - Não é a língua dele, não se esqueçam.
Por isso pusemo-nos a estudar alemão. A Franny, o Frank e eu começámos a ter aulas na Dairy School e levávamos os discos para casa, para a Lilly ouvir; a Mãe trabalhava com o Egg. Começou por familiarizá-lo com os nomes das ruas e lugares de interesse turístico no mapa.
- Lobkowitzplatz - dizia a Mãe. - O quê? - respondia o Egg.
Era suposto o Pai aprender sozinho, mas parecia ser o que fazia menos progressos.
- Vocês que são novos é que têm de aprender - estava ele sempre a dizer. - Eu não tenho de ir para a escola, nem de conhecer colegas novos, nem essas coisas todas.
- Mas nós vamos para uma escola de língua inglesa! - lembrava a Lilly.
- Mesmo assim - respondia o Pai. - Vão precisar mais do alemão do que eu.
- Mas tu vais ter de gerir um hotel - dizia-lhe a Mãe.
- A minha primeira tarefa vai ser andar atrás dos potenciais clientes americanos - respondia ele. - Não te esqueças que nós vamos para lá para tentar atrair a clientela americana!
- É melhor aperfeiçoarmos também o nosso americano - dizia a Franny.
O Frank estava a aprender alemão mais depressa do que qualquer de nós. A língua parecia adequada à sua maneira de ser: todas as sílabas eram pronunciadas, os verbos caíam como metralha no final das frases, os umlauts(*) eram uma espécie de enfeites; e a ideia de palavras com género deve ter agradado ao Frank. No final do Inverno já ele tagarelava (pretensiosamente) em alemão, deixando-nos propositadamente confusos, corrigindo as nossas tentativas para lhe respondermos e, finalmente, consolando-nos dos nossos fracassos dizendo que ele nos ajudaria quando estivéssemos "lá".
- Poça! Aí é que está a chatice toda! - dizia a Franny. - Ter o Frank a levar-nos à escola, a falar com os condutores de autocarro, a pedir a comida nos restaurantes e a receber todas as chamadas telefónicas. Meu Deus, agora que vou finalmente para o estrangeiro, não quero ficar dependente dele!
Mas o Frank parecia desabrochar com os preparativos da mudança para Viena. Não há dúvida que se sentia encorajado por lhe ter sido dada uma segunda oportunidade com o Sorrow, mas também parecia sinceramente interessado em estudar Viena. Depois de jantar punha-se a ler em voz alta, para nós ouvirmos,
*. Umlauts - figura da gramática alemã. (N. da T.)
excertos daquilo a que chamava as "pérolas" da história vienense; a Ronda Ray e os Uricks também ficavam a ouvir - o que era curioso, pois sabiam que não iam e que o futuro deles com o Fritz's Act não era claro.
Decorridos dois meses de lições de História, o Frank fez-nos um exame oral sobre as personagens interessantes de Viena na época do suicídio do príncipe herdeiro em Mayerling (cuja história o Frank já nos tinha lido, com todos os pormenores, comovendo a Ronda Ray até às lágrimas).
A Franny dizia que o príncipe Rudolf se estava a tornar o herói do Frank "devido às roupas que usava". O Frank tinha retratos dele no quarto: um em traje de caça - um jovem de cabeça delicada, com um bigode descomunal, enrolado em peles e a fumar um cigarro da grossura de um dedo - e outro fardado, usando a Ordem do Velo de Ouro, com uma fronte tão vulnerável como a de um bebé e uma barba afiada como uma espada.
- Esta é para ti, Franny - começou o Frank. - Ele era um compositor de génio, talvez o maior organista do mundo, mas não passava de um campónio, de um provinciano perdido na cidade imperial, com o estúpido hábito de se apaixonar por rapariguinhas.
- Porque é que isso é estúpido? - perguntei eu.
- Cala-te! - disse o Frank. - Para já, é mesmo estúpido, e além disso esta pergunta é para a Franny.
- Anton Bruckner - respondeu a Franny. - Acho que sim, que é uma estupidez.
- Muito grande - confirmou a Lilly.
- Agora é a tua vez, Lilly - continuou o Frank. - Quem era a "Camponesa Flamenga"?
- Ora! - disse a Lilly. - Essa é fácil de mais. Pergunta ao Egg.
- É difícil de mais para ele - disse a Franny.
- Quem era o quê? - perguntou o Egg.
- Era a princesa Stephanie - respondeu a Lilly, enfadada. - A filha do rei da Bélgica e mulher de Rudolf.
- Agora o Pai - disse o Frank.
- Ai, Jesus! - disse a Franny, porque o Pai era quase tão mau em História como em Alemão.
- Qual era o compositor tão apreciado que até os camponeses imitavam a barba dele? - perguntou o Frank.
- Bolas! És mesmo esquisito, Frank! - exclamou a Franny.
- Brahms - deitou-se o Pai a adivinhar, enquanto nós todos dávamos um gemido.
- O Brahms tinha uma barba de camponês - informou o Frank. - Mas os camponeses imitavam a barba de quem?
- Do Strauss! - gritámos a Lilly e eu.
- Pobre infeliz - comentou a Franny. - Agora tenho eu de perguntar uma ao Frank.
- Dispara - incitou o Frank, cerrando os olhos com força e enrugando o rosto.
- Quem era a Jeanette Heger?
- Era a "querida" do Schnitzler - respondeu o Frank, corando.
- E o que é uma "querida", Frank? - perguntou a Franny, fazendo a Ronda Ray rir-se.
- Sabes muito bem - disse o Frank, corando ainda mais.
- E quantas vezes é que o Schnitzler e a "querida" dele fizeram amor entre 1888 e 1889?
- Sei lá! - exclamou o Frank. - Uma quantidade delas! Esqueci-me.
- Quatrocentas e sessenta e quatro! - respondeu o Max Urick, que tinha estado presente a todas as lições de História e nunca se esquecia de nenhum facto.
Tal como a Ronda Ray, o Max não tinha estudos: tratava-se de uma novidade para ambos e davam mais atenção às lições do Frank do que nós.
- Tenho outra para o Pai - disse a Franny. - Quem foi Mitzi Caspar?
- Mitzi Caspar? Valha-me Deus! - lamentou-se o Pai.
- Bolas, também! - exclamou o Frank. - A Franny só se lembra das coisas relacionadas com sexo!
- Quem era ela, Frank? - insistiu a Franny.
- Eu sei! - respondeu a Ronda Ray. - Era a "querida" do Rudolf, o qual passou a noite com ela antes de pôr termo à vida, com a Maria Vetsera, em Mayerling.
A Ronda tinha um lugar especial na sua memória e no seu coração para as "queridas".
- Eu também sou uma "querida", não sou? - tinha-me ela perguntado, depois da exposição do Frank sobre a vida e a obra de Arthur Schnitzler.
- A mais querida de todas - respondi-lhe eu.
- Baaah! - dissera a Ronda Ray, com ar enjoado.
- Onde é que o Freud viveu acima dos seus meios? - perguntou o Frank a todos para responder quem soubesse.
- Qual Freud? - perguntou a Lilly. E desatámos todos a rir.
- Na Suhnhaus - disse o Frank, respondendo à sua própria pergunta. - Querem a tradução? Na "Casa da Expiação".
- Ora, vai-te lixar, Frank - disse a Franny.
- Estão a ver? Não era sobre sexo, ela não sabia - disse o Frank.
- Quem foi a última pessoa a tocar em Schubert? - perguntei eu ao Frank, que ficou com ar desconfiado.
- O que é que queres dizer com isso? - perguntou ele.
- Precisamente o que disse. Quem foi a última pessoa a tocar em Schubert?
A Franny riu-se. Eu havia partilhado esta história com ela e não me parecia que o Frank a conhecesse, pois eu tinha arrancado as folhas do livro dele. Era uma história macabra.
- Isso é alguma piada? - perguntou o Frank.
Sessenta anos depois da morte de Schubert, o cretino do Anton Bruckner assistiu à exumação do cadáver. Só Bruckner e alguns cientistas foram autorizados a assistir. Um membro qualquer do gabinete do presidente da Câmara fez um discurso, alongando-se interminavelmente sobre o macabro assunto dos restos mortais de Schubert. O crânio do compositor foi fotografado; um secretário tomava notas sobre o exame - que Schubert apresentava uma tonalidade alaranjada e que tinha os dentes em melhor estado que os de Beethoven (este último também tinha sido exumado, anteriormente, para fins semelhantes). Também se registaram as medidas da cavidade cerebral de Schubert.
Decorridas quase duas horas deste exame "científico", Bruckner não se conseguiu conter mais tempo. Agarrou na cabeça de Schubert e apertou-a contra o peito até lhe pedirem para a largar. Por isso, Bruckner foi a última pessoa a tocar em Schubert. Era uma história do género das que o Frank apreciava, e ele estava furioso por não a conhecer.
- Foi o Bruckner - respondeu a Mãe, calmamente.
E a Franny e eu ficámos boquiabertos por ela saber. Sempre pensámos que a Mãe não sabia nada, e de repente ali estava ela a saber tudo. Sobre Viena sabíamos nós que ela andara a estudar em segredo - talvez por saber que o Pai não estava preparado.
- Mas que coisa tão vulgar! - disse o Frank quando lhe contámos a história. - Francamente, é de uma vulgaridade!
- A História é toda feita de coisas vulgares - disse o Pai, mostrando novamente o seu lado de Iowa Bob.
Mas o Frank é que costumava ser uma fonte de banalidades - pelo menos em relação a Viena detestava que soubessem mais do que ele. O quarto dele estava cheio de desenhos de soldados com os respectivos uniformes: hussardos, com calças cor-de-rosa muito justas e jaquetas tão azuis como a água de um lago, e oficiais dos carabineiros tiroleses, de verde-claro. Em 1900, na Feira Mundial de Paris, a Áustria ganhara o Prémio do Mais Belo Uniforme (para a Artilharia); não era pois de admirar que a Viena fin de siècle atraísse o Frank. O que já era alarmante é que o fin de siècle fosse o único período que o Frank estudava - e nos ensinava. Tudo o resto já ele não achava tão interessante.
- Pelo amor de Deus, Viena não deve ser como Mayerling - segredou-me a Franny, quando eu estava a levantar pesos. - Neste momento, já não!
- Quem foi o grande mestre da canção como forma de arte? - perguntei-lhe eu. - Mas a barba dele ficou rala, porque era tão nervoso que nunca deixava os pêlos em paz.
- Hugo Wolf, parvalhão - respondeu ela. - Não me digas que não vês que Viena já não é assim!
O Freud tornou a escrever:
OLÁ!
PEDISTE UM PLANO DOS ANDARES? ESPERO TER PERCEBIDO O QUE QUERES. O JORNAL DO SIMPÓSIO SOBRE AS RELAÇÕES LESTE-OESTE OCUPA O SEGUNDO ANDAR - Têm LÁ OS ESCRITÓRIOS DURANTE O DIA - E DEIXO AS PROSTITUTAS USAREM O TERCEIRO ANDAR, PORQUE, ESTÁS A PERCEBER, FICAM POR CIMA DOS ESCRITÓRIOS QUE NÃO SÃO USADOS À NOITE, E ASSIM NINGUÉM SE QUEIXA (EM GERAL). AH! AH! O PRIMEIRO ANDAR É O NOSSO ANDAR, QUER DIZER, MEU E DO URSO - E TEU, E DE VOCÊS TODOS QUANDO VIEREM. DEPOIS HÁ O QUARTO E O QUINTO ANDARES PARA OS HÓSPEDES, QUANDO OS ARRANJARMOS. PORQUE PERGUNTAS? TENS ALGUM PLANO? AS PROSTITUTAS DIZEM QUE PRECISAMOS DE UM ELEVADOR, MAS ISSO É PORQUE SE FARTAM DE SUBIR E DESCER. AH! AH! QUE É ISSO DE QUERERES SABER A MINHA IDADE? QUASE CEM ANOS! MAS A RESPOSTA VIENENSE É MELHOR. COSTUMAMOS DIZER: "CONTINUO A PASSAR PELAS JANELAS ABERTAS." ISTO É UMA PIADA JÁ VELHA. HAVIA UM PALHAÇO DE RUA CHAMADO REI DOS RATOS: AMESTRAVA ROEDORES, FAZIA HORÓSCOPOS, CONSEGUIA ENCARNAR O NAPOLEÃO E ERA CAPAZ DE FAZER OS CÃES PEIDAREM-SE À VOZ DE COMANDO. UMA NOITE, ATIROU-SE DA JANELA COM TODOS OS ANIMAIS DENTRO DE UM CAIXOTE. ESCRITO NO CAIXOTE, HAVIA ISTO: "A VIDA É UMA COISA SÉRIA, MAS A ARTE É UMA PARÓDIA!" OUVI DIZER QUE O ENTERRO DELE FOI UMA FESTA. UM ARTISTA DE RUA TINHA-SE MATADO. NINGUÉM O APOIARA EM VIDA, MAS AGORA TODOS SENTIAM A SUA FALTA. QUEM IRIA AGORA FAZER OS CÃES TOCAR MÚSICA E OS RATOS ARFAREM? O URSO TAMBéM SABE ISTO: É PRECISO UMA TRABALHEIRA E UMA GRANDE ARTE PARA FAZER COM QUE A VIDA NÃO SEJA UMA COISA SÉRIA. AS PROSTITUTAS TAMBéM O SABEM.
- As prostitutas? - perguntou a Mãe.
- O quê? - perguntou o Egg.
- Putas? - perguntou a Franny.
- Há putas no hotel? - perguntou a Lilly.
Que mais é que ainda haveria?, pensei eu. Mas o Max Urick parecia mais deprimido do que habitualmente com a ideia de ficar para trás; a Ronda Ray encolheu os ombros.
- São as "queridas" - disse o Frank.
- Valha-me Deus! - disse o Pai. - Se elas estão lá, só temos de as pôr na rua.
O Frank pôs-se a cantar:
Wo bleibt die alie Zeit und die Gemutlichkeit?
Onde estão os velhos tempos? Onde está a Gemutlichkeit(*)?
Era a canção que Bratfisch cantara no Baile dos Fiacres; Bratfisch tinha sido o cocheiro do fiacre pessoal do príncipe herdeiro Rudolf - um libertino de ar ameaçador, sempre de chicote na mão.
Wo bleibt die ai te Zeit? Pfirt di Gott, mein schõnes Wien!
Onde estão os velhos tempos? Adeus, minha bela Viena!
continuou o Frank. Bratfisch cantara isto depois de Rudolf ter morto a amante e feito saltar os miolos.
O Freud voltou a escrever:
OLÁ!
NÃO SE PREOCUPEM COM AS PROSTITUTAS. AQUI SÃO LEGAIS. É SÓ NEGÓCIO. TEMOS É DE TER O OLHO NESSA MALTA DAS RELAÇÕES LESTE-OESTE. AS MÁQUINAS DE ESCREVER INCOMODAM O URSO. ESTÃO SEMPRE A QUEIXAR-SE E TêM SEMPRE OS TELEFONES IMPEDIDOS. RAIOS PARTAM OS POLÍTICOS, RAIOS PARTAM OS INTELECTUAIS, RAIOS PARTAM ESTE CONLUIO.
- Conluio? - perguntou a Mãe.
- É um problema de língua - respondeu o Pai. - O Freud não domina a nossa língua.
- Quem foi um anti-semita que deu o nome a uma praça, a uma Platz a sério, na cidade de Viena - perguntou o Frank. - Vejam se sabem o nome de algum.
- Santo Deus, Frank - disse o Pai.
- Não - respondeu o Frank. - Não foi ele.
- O doutor Karl Lueger - disse a Mãe, com uma voz tão triste que a Franny e eu sentimos um arrepio.
- Muito bem! - elogiou o Frank, impressionado.
*. Gemutlichkeit - conforto, bem-estar. (N. da T.)
- Quem é que pensava que Viena inteira não passava de uma máquina projectada para ocultar a realidade sexual? - perguntou a Mãe.
- Freud? - sugeriu o Frank.
- Não o nosso Freud - esclareceu a Franny. Mas o nosso Freud tinha-nos escrito.
VIENA INTEIRA NÃO PASSA DE UMA MÁQUINA PROJECTADA PARA OCULTAR A REALIDADE SEXUAL. POR ISSO, A PROSTITUIÇÃO É LEGAL. POR ISSO, ACREDITAMOS NOS URSOS. TERMINADO! PONTO FINAL!
Uma manhã estava eu com a Ronda Ray, abatido pela ideia do Arthur Schnitzler a fornicar com a Jeanette Heger quatrocentas e sessenta e quatro vezes em cerca de onze meses, quando a Ronda me perguntou:
- Que história é essa de a prostituição ser legal? Que é que ele quer dizer com isso?
- Que não é contra a lei - respondi-lhe eu. - Aparentemente, em Viena a prostituição não é punida por lei.
A Ronda ficou silenciosa durante muito tempo, e depois saiu desajeitadamente de debaixo de mim.
- E aqui é legal? - perguntou-me ela.
Vi que estava a falar a sério - e que parecia assustada.
- Tudo é legal no Hotel New Hampshire - disse-lhe eu. Era uma frase do género das do Iowa Bob.
- Não! Aqui! - disse ela, irritada. - Aqui na América. É legal?
- Não - respondi. - No New Hampshire, não.
- Não? É contra a lei! - Gritou ela.
- Bom, mas de qualquer modo existe.
- Mas porquê! Porque é que é contra a lei? - berrou ela.
- Não sei.
- É melhor ires-te embora. Vais para Viena e deixas-me aqui? - acrescentou, empurrando-me em direcção à porta. - É melhor ires-te embora.
- Quem é que trabalhou num fresco durante dois anos e lhe chamou Schweinsdreckl - perguntou-me o Frank ao pequeno-almoço. Schweinsdreck significa "esterco de porco".
- Por amor de Deus, Frank, estamos a tomar o pequeno-almoço -disse eu.
- Gustav Klint - respondeu o Frank, com ares afectados.
E assim se foi passando o Inverno de 1957: sempre a levantar pesos, mas a aliviar nas bananas; sempre a visitar a Ronda Ray, mas a sonhar com a cidade imperial; a aprender os verbos irregulares e as electrizantes banalidades da História; a tentar imaginar o circo chamado Fritz's Act e o hotel chamado Gasthaus Freud. A nossa mãe parecia cansada, mas mantinha-se leal; ela e o meu pai pareciam depender das visitas cada vez mais frequentes ao 3E, onde as diferenças entre eles talvez parecessem mais fáceis de resolver. Os Uricks andavam circunspectos, com ar de quem está de pé atrás, sem dúvida por se sentirem abandonados - "a um anão", dizia o Max, mas não quando a Lilly estava por perto. E uma manhã no princípio da Primavera, com o solo no Elliot Park ainda meio gelado mas já a tornar-se esponjoso, a Ronda Ray recusou-se a aceitar o meu dinheiro - mas aceitou-me a mim.
- Não é legal - murmurou ela, com azedume. - Não sou nenhuma criminosa.
Só mais tarde descobri que ela estava a tentar uma jogada mais ousada.
- Viena... - murmurou ela. - O que é que vais fazer por lá sem mim?
Eu tinha um milhão de ideias a esse respeito, e quase outras tantas imagens na cabeça, mas prometi à Ronda pedir ao Pai que pensasse na hipótese de a levar.
- Ela farta-se de trabalhar - disse eu ao Pai.
A Mãe franziu o sobrolho. A Franny engasgou-se com qualquer coisa. O Frank começou a resmungar sobre o tempo em Viena, "chuva e mais chuva". O Egg, evidentemente, perguntou do que estávamos a falar.
- Não - disse o Pai. - A Ronda não. Não temos dinheiro para isso. Toda a gente pareceu aliviada. Até eu, confesso.
Fui dar a novidade à Ronda, estava ela a encerar o tampo do bar.
- Bem, perguntar não ofende, pois não?
- Não, não ofende - respondi.
Mas, na manhã seguinte, quando parei para respirar um bocadinho à porta dela, pareceu-me que afinal sempre ofendia.
- Continua a correr, John - disse ela. - Correr é legal. Não se paga nada para correr.
Foi então que tive uma conversa desajeitada e vaga com o Júnior Jones sobre a luxúria. Foi reconfortante ver que, aparentemente, ele não percebia mais do assunto do que eu. Era uma frustração para ambos que a Franny tivesse tantas opiniões diferentes sobre a mesma questão.
- Mulheres... - disse o Júnior Jones. - São muito diferentes de ti e de mim.
Eu concordei, como é evidente. A Franny parecia ter desculpado o Júnior pela sua luxúria com a Ronda Ray, mas uma parte dela mantinha-se distanciada dele; parecia, pelo menos exteriormente, indiferente por ir trocar o Júnior por Viena. Talvez estivesse dividida entre não querer sentir muito a falta dele e manter-se numa calma expectativa sobre a possível aventura que Viena poderia ser para si.
Ela mostrava-se desprendida quando interrogada sobre o assunto, e, nessa Primavera, dei por mim mais ligado ao Frank, que estava na mó de cima e entregue a uma actividade frenética. O bigode dele evocava nervosamente os excessos faciais do defunto príncipe herdeiro Rudolf, embora a Franny e eu gostássemos de chamar ao Frank o "rei dos ratos".
- Lá vem ele! Até os cães se peidam quando ele manda! Quem é? Quem é? - perguntava eu.
- A vida é uma coisa séria, mas a arte é uma paródia!
- gritava a Franny. - Cá está o herói dos saltimbancos! Mantenham-no afastado das janelas abertas!
- O rei dos ratos - berrava eu.
- Vão morrer longe, vocês os dois! - dizia o Frank.
- Como é que vai isso com o cão, Frank? - perguntei-lhe eu, sabendo que ele não resistia a esta provocação.
- Bem - respondeu ele, com qualquer visão do Sorrow a atravessar-lhe o espírito e fazendo-lhe estremecer o bigode. - Acho que o Egg vai ficar contente, embora, a nós, o Sorrow possa parecer um bocadinho manso.
- Duvido - disse eu.
Ao olhar para o Frank podia imaginar o príncipe herdeiro, com ar deprimido, a caminho de Mayerling - e o assassínio da amante e o seu próprio suicídio -, mas era mais fácil pensar no artista ambulante do Freud a saltar de uma janela com um caixote cheio com os seus animais de estimação: o rei dos ratos esmagado no solo, e uma cidade, que antes o ignorava, agora a chorar a sua morte. Por qualquer motivo, o Frank fazia lembrar a personagem.
- Quem irá fazer os cães tocarem instrumentos e os ratos arfarem? - perguntei eu ao Frank depois do pequeno-almoço.
- Vai mas é levantar pesos. E deixa-os cair na cabeça - foi a resposta.
E o Frank lá voltou ao laboratório de Biologia; se o rei dos ratos conseguia mandar os cães darem traques, o Frank conseguia devolver o Sorrow à vida em mais do que uma posição - e, por isso, talvez ele fosse uma espécie de príncipe herdeiro, como Rudolf, futuro imperador da Áustria, rei da Boémia, rei da Transilvânia, margrave da Morávia, duque de Auschwitz (para mencionar apenas alguns dos seus títulos).
- Onde está o rei dos ratos? - perguntava a Franny.
- Está com o Sorrow - dizia eu. - A ensiná-lo a dar traques quando lhe mandam.
E, quando nos cruzávamos nos corredores do Hotel New Hampshire, eu dizia à Lilly, ou a Franny dizia ao Frank:
- Mantém-te afastado das janelas abertas.
- Schweinsdreck - respondia o Frank.
- Peneirento - retorquia a Franny.
- Merda de porco para ti, Frank! - dizia eu.
- O quê? - gritava o Egg.
E, uma manhã, a Lilly perguntou ao Pai:
- Vamos embora antes de o circo Fritz's Act vir para aqui ou ainda os vamos ver?
- Espero perder essa oportunidade - disse a Franny.
- Não vamos estar cá todos, pelo menos um dia? - perguntou o Frank. - Para lhes darmos as chaves, ou qualquer coisa do género?
- Que chaves? - perguntou o Max Urick.
- Para que fechaduras! - disse a Ronda Ray, cuja porta se tinha fechado para mim.
- Talvez estejamos aqui todos durante dez ou quinze minutos - respondeu o Pai.
- Eu quero vê-los - disse a Lilly, com ar sério.
E eu olhei para a Mãe, que parecia cansada - mas bonita: era uma mulher com um ar meigo, com rugas, em quem o Pai gostava visivelmente de tocar. Estava sempre a enterrar a cara no pescoço dela, a tapar-lhe os seios com as mãos em concha e a abraçá-la por trás - fazendo-a fingir-se escandalizada (à frente dos filhos). Quando estava perto da Mãe, o Pai fazia lembrar aqueles cães que nos estão sempre a pôr a cabeça no colo e a enfiar-nos o focinho nas axilas e entre as pernas. Não quero de modo algum dizer que o Pai fosse grosseiro com ela, mas estava sempre à procura de contacto físico, sempre abraçado e pendurado nela.
É claro que o Egg e a Lilly - em certa medida - também faziam isto à Mãe. A Lilly, todavia, era mais senhora do seu nariz e mais reservada, uma vez que a sua pequenez se tinha tornado um facto consumado. Era como se ela não quisesse parecer mais pequena do que já era, fazendo coisas demasiado infantis.
- O austríaco médio é uns sete a dez centímetros mais baixo do que o americano médio, Lilly - informou-a o Frank.
Mas a Lilly parecia não se preocupar - e encolhia os ombros, com o mesmo gesto da Mãe, independente e bonito. Cada uma à sua maneira, tanto a Franny como a Lilly, tinham herdado aquele gesto.
Houve uma altura naquela Primavera em que vi a Franny a usá-lo: um único movimento, destro, como um vestígio de qualquer dor involuntária - quando o Júnior Jones nos disse que no Outono ia aceitar a bolsa da Penn State University para jogadores de futebol.
- Eu escrevo-te - disse-lhe a Franny.
- Com certeza. E eu também te hei-de escrever - disse ele.
- Eu vou escrever-te mais - insistiu a Franny.
O Júnior Jones tentou encolher os ombros, mas não lhe saiu.
- Merda - disse-me ele, quando estávamos a atirar pedras contra uma árvore no Elliot Park -, afinal, o que é que a Franny quer fazer? O que é que ela pensa que lhe vai acontecer lá?
"Lá", era como todos nós lhe chamávamos. Excepto o Frank; ele agora referia-se a Viena em alemão: Wien.
- Vine - dizia a Lilly, com um arrepio. - Parece qualquer coisa dita por um lagarto.
E ficávamos todos a olhar para ela, à espera que o Egg dissesse: "O quê?".
Depois, a relva brotou no Elliot Park; e numa noite quente, após ter-me certificado de que o Egg estava a dormir, abri a janela, olhei para a Lua e para as estrelas e pus-me a ouvir os grilos e as rãs; então ele disse:
- Mantém-te afastado das janelas abertas.
- Estás acordado?
- Não consigo dormir. Não consigo ver para onde é que vou. Não sei como é que vai ser.
Parecia à beira das lágrimas, e eu tentei confortá-lo:
- Então, Egg! Vai ser bestial. Nunca viveste numa grande cidade - disse eu.
- Eu sei - respondeu ele, a fungar um bocadinho.
- E há muito mais coisas para fazer do que aqui - prometi-lhe eu.
- Tenho uma data de coisas para fazer aqui - disse ele.
- Mas isto vai ser diferente!
- Porque é que as pessoas saltam pela janela? - perguntou ele.
E eu expliquei-lhe que se tratava apenas de uma história, embora ele não pudesse compreender o sentido de uma metáfora.
- Há espiões no hotel - disse ele. - A Lilly é que disse: "Espiões e mulheres de baixo nível."
Imaginei a Lilly a pensar que as "mulheres de baixo nível" eram pequenas como ela, e tentei sossegar o Egg dizendo-lhe que os ocupantes do hotel do Freud não tinham nada de assustador; disse-lhe que o Pai ia tratar de tudo - e notei o silêncio com que tanto o Egg como eu aceitávamos o que isso prometia.
- Como é que vamos para lá - perguntou o Egg. - É tão longe!
- Vamos num avião.
- Também não sei como é que isso é.
(Na realidade, iríamos em dois aviões, porque o Pai e a Mãe jamais voariam juntos; há muitos pais assim. Também expliquei isso ao Egg, mas ele continuou a repetir: "Não sei como é que vai ser.")
Então a Mãe entrou no nosso quarto para consolar o Egg, e eu voltei a adormecer a ouvi-los falar um com o outro, acordando outra vez quando a Mãe ia a sair; o Egg já estava a dormir. A Mãe aproximou-se da minha cama e sentou-se ao meu lado; tinha o cabelo solto e parecia muito jovem; assim, na semiobscuridade, parecia-se bastante com a Franny.
- Ele só tem sete anos - disse ela, referindo-se ao Egg. - Devias falar mais com ele.
- Está bem - respondi. - Diz-me uma coisa: tu queres ir para Viena? E, evidentemente, ela encolheu os ombros e sorriu, dizendo:
- O teu pai é um homem muito, muito bom.
Pela primeira vez, de facto, consegui vê-los no Verão de 1939, com o Pai a prometer ao Freud que ia casar e que ia para Harvard - e o Freud a pedir à Mãe uma coisa: que perdoasse ao Pai. Era isto que ela tinha de lhe perdoar? Mas arrancar-nos à horrorosa vilória que era Dairy e à miserável Dairy School - e ao primeiro Hotel New Hampshire, que não era assim tão bom como isso (embora ninguém o dissesse) - seria assim tão mau? Seria assim tão mau aquilo que o Pai estava a fazer?
- Gostas do Freud? - perguntei-lhe.
- No fundo, não conheço o Freud - respondeu a Mãe.
- Mas o Pai gosta dele - disse eu.
- O teu pai gosta dele, mas no fundo também não o conhece.
- Como é que pensas que será o urso? - perguntei-lhe eu.
- Nem sei para que é que o urso serve - murmurou a Mãe -, quanto mais imaginar como é que ele será.
- Para que é que ele poderá servir?
Mas ela encolheu outra vez os ombros - talvez a recordar-se de como era o Urrr e a tentar lembrar-se para que é que ele tinha servido.
- Havemos de descobrir - disse ela, beijando-me. Era uma frase à Iowa Bob.
- Boa noite - disse eu à Mãe, dando-lhe um beijo.
- Mantém-te afastado das janelas abertas - murmurou ela. Mas eu já estava a dormir.
Foi então que sonhei que a Mãe estava a morrer.
"Acabaram-se os ursos", disse ela ao Pai; mas ele não percebeu e pensou que ela lhe estava a fazer uma pergunta.
"Não, ainda há mais um urso", disse ele. "Só mais um, prometo."
Ela sorriu e abanou a cabeça, cansada de mais para explicar. Esboçou apenas ao de leve o seu famoso encolher de ombros, e vi essa intenção nos seus olhos, que, de súbito, se reviraram e desapareceram. Nessa altura, o Pai compreendeu que o homem de smoking branco tinha pegado na mão da Mãe.
"Está bem. Acabaram-se os ursos!", prometeu o Pai. Mas agora a Mãe já estava a bordo do veleiro branco, que se fazia ao mar.
No sonho, o Egg não estava lá; mas estava lá quando acordei - ainda a dormir e com outra pessoa a observá-lo. Reconheci o dorso negro e esguio, o pêlo espesso, curto e luzidio, a nuca quadrada da sua cabeçorra trapalhona, coroada por umas orelhas meio arrebitadas. Estava sentado sobre a cauda, como costumava fazer - em vida -, e de frente para o Egg. Provavelmente, o Frank tinha-o posto a sorrir ou, pelo menos, de língua de fora, com aquele ar tonto dos cães a trazer-nos bolas e paus. Oh, felizes os pobres de espírito deste mundo, que se contentam com o que apanham - era assim o nosso velho Sorrow: sempre a ir buscar e a trazer coisas e a peidar-se. Arrastei-me para fora da cama a fim de ver o bicho - da perspectiva do Egg.
Ao primeiro relance, compreendi que o Frank se tinha ultrapassado a si mesmo no capítulo da "bondade", da "simpatia" do animal. O Sorrow estava sentado sobre a cauda, com as patas dianteiras a tocarem nos genitais, escondendo-os com modéstia; tinha uma expressão radiosa e de profunda felicidade estampada no focinho, com a língua pendendo estupidamente para fora da boca. Parecia pronto a dar um peido, a dar ao rabo ou a rebolar-se sobre as costas como um pateta; parecia morto por que o coçassem atrás das orelhas - parecia um animal desesperadamente servil, para sempre carente de atenção e de carícias. Se não fosse o facto de estar morto e de ser impossível eliminar da memória as suas outras manifestações, este Sorrow seria muito mais inofensivo do que na realidade havia sido.
- Egg! - disse eu baixinho. - Acorda.
Mas era sábado de manhã - a manhã em que o Egg dormia até tarde -, e eu sabia que ele tinha dormido mal, ou só um bocadinho, durante a noite. Pela janela, vi o nosso carro a circular lá fora entre as árvores do Elliot Park, rolando pelo parque lamacento como se este fosse um percurso de uma gincana - a velocidade reduzida -, e compreendi que era o Frank quem ia ao volante; ele tinha acabado de tirar a carta de condução, e gostava de praticar conduzindo à volta das árvores do Elliot Park. A Franny também havia acabado de obter a sua licença de aprendizagem, e o Frank andava a ensiná-la. Eu podia afirmar que era o Frank quem ia ao volante por causa do movimento majestoso do carro por entre as árvores, com o andamento de uma limusina, com o andamento de um carro funerário - era assim que o Frank guiava sempre. Mesmo quando levava a Mãe ao supermercado, guiava como se tivesse a transportar o caixão de uma rainha por entre fileiras de pessoas em pranto e tentando vê-la pela última vez. Quando era a Fanny a guiar, o Frank gania de medo, todo encolhido no banco ao lado do condutor; a Franny gostava de andar depressa, ao lado do do condutor; a Franny gostava de andar depressa.
- Egg! - disse eu mais alto, e ele mexeu-se um bocadinho.
Ouviu-se um bater de portas lá fora, no Elliot Park, para a troca de condutores no nosso carro; adivinhei que a Franny havia pegado no volante quando o carro começou a derrapar entre as árvores, fazendo voar grandes postas de lama primaveril - e fazendo o Frank agitar freneticamente os braços naquele que é vulgarmente chamado o lugar do morto.
- Valha-me Deus! - ouvi o Pai exclamar noutra janela.
Em seguida fechou a janela e ouvi-o aos gritos com a Mãe - sobre a maneira de guiar da Franny, sobre o ter de voltar a plantar a relva no Elliot Park, sobre o ter de usar um escopro para conseguir tirar a lama do carro; e enquanto eu ainda estava a observar a Franny a fazer corridas por entre as árvores, o Egg abriu os olhos e viu o Sorrow. O grito que ele deu fez-me entalar os polegares no parapeito da janela e morder a língua. A Mãe entrou a correr no quarto para ver o que se passava e saudou o Sorrow também com um grito.
- Valha-me Deus! - exclamou o Pai. - Porque é que o Frank tem sempre de atirar com esse maldito cão para cima de toda a gente? Por que raio é que ele não diz só: "Vou mostrar-vos o Sorrow", e leva então o maldito animal para um quarto quando estivermos todos prontos para o ver?
- O Sorrow! - disse o Egg espreitando por baixo da roupa.
- É só o Sorrow, Egg - disse-lhe eu. - Não está bonito? O Egg sorriu timidamente para o cão de ar amalucado.
- Está mesmo bonito! - exclamou o Pai, subitamente entusiasmado.
- Está a sorrir] - notou o Egg.
A Lilly entrou no quarto e apertou o Sorrow contra o peito; sentou-se no chão e encostou-se para trás, com as costas apoiadas no cão todo aprumado.
- Olha, Egg - disse ela. - Podes usá-lo como encosto.
O Frank entrou no quarto, com um ar terrivelmente orgulhoso.
- Está bestial, Frank! - exclamei eu.
- Está mesmo bonito - comentou a Lilly.
- Um trabalho notável, filho - disse o Pai para o Frank, que estava todo inchado.
A Franny entrou no quarto, já a falar antes de transpor a porta:
- Francamente, o Frank é cá um maricas a andar de carro! - lamentava-se ela. - Até parece que me estava a dar lições de diligência.
Foi então que viu o Sorrow.
- Uaaauuu! - gritou ela.
Por que razão ficámos todos muito quietos e calados à espera do que a Franny ia dizer? Mesmo quando ela ainda não tinha dezasseis anos, já toda a família parecia considerá-la a verdadeira autoridade lá em casa - a quem cabia dizer a última palavra. A Franny deu uma volta em torno do Sorrow, quase como se fosse outro cão, a farejá-lo. Então pôs um braço à roda dos ombros do Frank, que ficou muito tenso, à espera do veredicto.
- Aqui o rei dos ratos fez uma obra-príma do caraças! - proclamou a Franny.
O espasmo de um sorriso perpassou no rosto ansioso do Frank.
- Frank - disse-lhe a Franny com sinceridade -, conseguiste mesmo, pá. Isto é mesmo o Sorrow.
Então inclinou-se para afagar o cão, como costumava fazer antigamente, abraçando-lhe a cabeça e coçando-o atrás das orelhas. Isto pareceu tranquilizar completamente o Egg, que começou a abraçar o Sorrow sem reservas.
- Podes ser um artolas a andar de automóvel, Frank - disse-lhe a Franny -, mas fizeste um trabalho de primeira com o Sorrow.
O Frank parecia quase a desmaiar com os elogios, ou a cair para o lado, e começámos todos a falar ao mesmo tempo, a dar palmadas nas costas do Frank e a fazer festas e a coçar o Sorrow - todos, menos a Mãe, reparámos nós de repente; a Mãe estava de pé, junto da janela, a olhar para o Elliot Park.
- Franny - chamou ela.
- Sim - respondeu a Franny.
- Franny - disse a Mãe -, não voltas a guiar assim no parque, está entendido?
- Está bem - respondeu a Franny.
- Agora vai ter com o Max à entrada de serviço e pede-lhe que te ajude a procurar a mangueira. Já! E trata de levar baldes de água quente com sabão. Vais limpar a lama toda do carro antes que seque.
- Está bem - disse a Franny.
- Olha só para o parque - insistiu a Mãe. - Arrancaste toda a relva nova.
- Desculpa - respondeu a Franny.
- Lilly - disse a Mãe, sempre a olhar pela janela. O assunto da Franny estava arrumado.
- Sim - respondeu a Lilly.
- O teu quarto, Lilly - disse a Mãe -, o que é que queres que diga do teu quarto?
- Ah! - respondeu a Lilly. - Está uma barafunda.
- Está uma barafunda desde há uma semana. Hoje não sais do quarto sem o deixares como deve ser, se fazes favor.
Reparei que o Pai se esgueirou sorrateiramente com a Lilly e que a Franny foi lavar o carro. O Frank parecia surpreendido por o seu momento de êxito ter sido interrompido tão rapidamente. Parecia incapaz de deixar o Sorrow, agora que o tinha recriado.
- Frank - disse a Mãe.
- Sim - respondeu o Frank.
- Agora que acabaste com isso do Sorrow, talvez possas dar também um jeito no teu quarto.
- Com certeza! - respondeu o Frank.
- Desculpa, Frank - disse a Mãe.
- Porquê? - espantou-se o Frank.
- Desculpa, mas não gosto do Sorrow.
- Não gostas dele?
- Não, porque está morto, Frank - disse a Mãe. - Parece verdadeiro, mas está morto, e eu não acho piada às coisas mortas.
- Desculpa - disse o Frank.
- Caraças! - exclamei eu.
- E tu, por favor - agora a Mãe dirigia-se a mim -, vê se tens mais cuidado com a língua. Falas de uma maneira horrível. Especialmente se te lembrares que partilhas o quarto com uma criança de sete anos. Estou farta do "foda-se" para aqui e do "foda-se" para ali. Isto aqui não é o vestiário da escola.
- Está bem - respondi eu.
Ao mesmo tempo reparei que o Frank se tinha ido embora - o rei dos ratos tinha-se esgueirado.
- Egg - disse a Mãe, num tom mais brando.
- O que é? - perguntou o Egg.
- Não quero ver o Sorrow fora do teu quarto. Não gosto nada de apanhar sustos, e se o Sorrow sai deste quarto, se eu o vejo em qualquer sítio menos onde espero vê-lo (que é aqui), então é que nunca mais lhe pões a vista em cima.
- Está bem - disse o Egg. - Mas posso levá-lo para Viena? Quer dizer, quando formos, o Sorrow pode ir também?
- Acho que tem de ir - disse a Mãe, com a mesma resignação na voz que eu tinha ouvido no meu sonho, quando ela dissera "acabaram-se os ursos", para em seguida vogar para longe no veleiro branco.
- Caraças! - comentou o Júnior Jones quando viu o Sorrow sentado na cama do Egg, com um xaile da Mãe por cima dos ombros e o boné de basebol do Egg na cabeça.
A Franny trouxera o Júnior ao hotel para ver o milagre do Frank. O Harold Swallow tinha vindo com ele, mas perdera-se. Tinha virado para o lado errado no segundo andar e, em vez de vir para o nosso apartamento, andava às voltas pelo hotel. Eu estava a tentar estudar para o exame de alemão sentado à secretária e também a tentar não pedir ajuda ao Frank. A Franny e o Júnior Jones saíram à procura do Harold, e o Egg, decidido a mudar a vestimenta do Sorrow, despiu o cão e recomeçou tudo de novo.
Então o Harold deu com a nossa porta e espreitou para dentro, olhando para o Egg e para mim - e para o Sorrow, sentado em pêlo na cama do Egg. O Harold nunca tinha visto o Sorrow - morto ou vivo - e quis chamar o cão até à porta.
- Aqui, cão! - chamava ele. - Aqui já! Anda cá!
O Sorrow continuou sentado, a sorrir para o Harold, com a cauda como se estivesse prestes a abanar, mas não se mexeu.
- Anda! Aqui, cãozinho! - gritava o Harold. - Seu maroto! Seu cachorro bonito!
- Ele está proibido de sair deste quarto - informou o Egg.
- Ah! - exclamou o Harold, revirando os olhos na minha direcção. - Que bem educado! Nem se mexe, estão a ver?
Desci com o Harold Swallow até ao restaurante, onde o Júnior e a Franny estavam à espera dele; não vi qualquer razão para lhe dizer que o Sorrow estava morto.
- Aquele é o teu irmão mais novo? - perguntou-me ele, referindo-se ao Egg.
- É - respondi.
- E também tens um cão porreiro, pá.
- Merda - disse-me o Júnior Jones mais tarde.
Estávamos do lado de fora do ginásio, o qual a Dairy School tinha tentado ornamentar como se fosse um Parlamento - para o fim-de-semana da cerimónia de entrega de diplomas em que o Júnior ia receber o seu.
- Merda - disse o Júnior -, estou bestialmente preocupado com a Franny.
- Porquê? - perguntei eu.
- Há qualquer coisa que a chateia. Não quer dormir comigo. Nem sequer como uma forma de nos despedirmos, ou coisa parecida. Nem sequer uma vez! Às vezes acho que ela não confia em mim.
- Bem - disse eu -, sabes que a Franny só tem dezasseis anos.
- Mas é como se tivesse mais. Queria que falasses com ela.
- Eu? E o que é que eu lhe ia dizer?
- Queria que lhe perguntasses porque é que não quer dormir comigo -pediu o Júnior Jones.
- Merda - disse eu.
Mas acabei por lhe perguntar, mais tarde; quando a Dairy School ficou vazia e depois de o Júnior Jones se ter ido embora nas férias grandes (pôr-se em forma para jogar futebol na Penn State University), quando a velha escola e especialmente o carreiro que atravessava os bosques e que os jogadores de futebol utilizavam habitualmente nos trouxeram à memória, à Franny e a mim, aquilo que parecia ter-se passado há anos (pelo menos para nós).
- Porque é que nunca dormiste com o Júnior Jones? - perguntei-lhe.
- Eu ainda só tenho dezasseis anos, John - respondeu a Franny.
- Bom, mas é como se tivesses mais - retorqui eu, sem saber exactamente o que é que aquilo queria dizer.
É claro que a Franny encolheu os ombros.
- Encara as coisas desta maneira - disse ela. - Vou tornar a ver o Júnior; vamos escrever-nos e tudo isso. Vamos ficar amigos. Então, um dia, quando eu for mais velha, e se ficarmos amigos, dormir com ele pode ser o melhor que houver a fazer. Não quero estragar tudo agora.
- Porque é que não podes dormir com ele duas vezes! - perguntei-lhe.
- Não estás a topar.
Pensei que isso tinha a ver com o facto de ela ter sido violada, mas a Franny conseguia sempre ler em mim como num livro aberto.
- Não, miúdo - disse ela -, não tem nada a ver com o ter sido violada. Dormir com alguém é muito diferente, desde que signifique alguma coisa. Só que eu não sei o que isso significaria com o Júnior. Ainda não sei. Além disso - e fez uma pausa -, além disso não tenho lá muita experiência, mas parece que, uma vez que alguém ou que algumas pessoas nos possuem, nunca mais se ouve falar delas.
Agora parecia-me que ela estava mesmo a falar sobre a violação. Fiquei confuso e perguntei-lhe:
- A quem é que te estás a referir, Franny?
Durante um bocado, ela mordeu os lábios. Em seguida respondeu:
- Espanta-me que não tenha recebido uma palavra, uma simples palavra, do Chipper Dove. Dá para entender? Passou-se este tempo todo, e nem uma palavra.
Agora é que eu já estava mesmo a ficar confuso; era espantoso que ela tivesse pensado que podia alguma vez ter notícias dele. Não me consegui lembrar de nada para dizer, excepto uma piada estúpida:
- Bem, Franny, penso que tu também não lhe escreveste.
- Duas vezes - respondeu ela. - Acho que é suficiente.
- Suficiente? - rugi eu. - Tu não tinhas nada que lhe escrever, foda-se! Nem uma única vez! Porque é que fizeste isso?!
Ela pareceu ficar espantada com a minha reacção.
- Para lhe dizer como é que estava e o que andava a fazer, para que é que havia de ser?!
Fiquei a olhar para ela, mudo, e ela desviou o olhar.
- Eu gostava dele, John - disse-me ela, em voz baixa.
- O Chipper Dove violou-te, Franny - disse-lhe eu. - O Dove, o Chester Pulaski e o Lenny Metz violaram-te, um de cada vez.
- Não precisas de dizer isso - atirou-me ela, furiosa. - Estou só a falar do Chipper Dove. Só dele.
- Ele violou-te - insisti eu.
- Eu gostava dele - disse ela, de costas para mim. - Tu não compreendes. Eu estava apaixonada. E talvez ainda esteja. Agora - acrescentou ela com veemência - queres dizer isto ao Júnior? Achas que eu devia dizer isto ao Júnior? Achas que ele ia gostar?
- Não - respondi.
- Eu também acho que não. Foi por isso que pensei que, nestas circunstâncias, não devia dormir com ele. Entendido?
- Entendido - respondi-lhe, com vontade de lhe dizer que de certeza que o Chipper Dove não a tinha amado.
- Não me digas - disse a Franny. - Não me digas que ele não me amava. Eu já sei. Mas sabes que mais? Um dia, o Chipper Dove pode vir a apaixonar-se por mim. E sabes que mais ainda?
- Não.
- Talvez que, se isso acontecer, se ele se apaixonar por mim, talvez nessa altura eu já não o ame. E então é que eu vou mesmo tê-lo na mão, não é?
Fiquei a olhar para ela. Como o Júnior Jones tinha observado, ela parecia ter muito mais que dezasseis anos.
De súbito, senti que já era mais do que tempo de irmos para Viena - precisávamos de tempo para crescer em idade e em sabedoria (se era isto que o crescimento de facto implicava). Sei que queria uma oportunidade para me pôr ao nível da Franny, se não mesmo para a ultrapassar, e achava que precisava de um novo hotel para isso.
De repente ocorreu-me que a Franny podia ter estado a pensar em Viena de uma forma semelhante: em aproveitá-la para se tornar mais sagaz, mais calejada, e (de certo modo) suficientemente crescida para o mundo que nenhum de nós compreendia.
- Mantém-te afastada das janelas abertas - foi tudo o que lhe consegui dizer nessa altura.
Olhámos para o relvado aparado do campo de treinos e sentimos que no Outono ele estaria todo furado de pitons, amassado pelo embate de joelhos contra o solo e rasgado por dedos enclavinhados - e que, nesse Outono, já não estaríamos em Dairy para ver isso, ou para evitarmos vê-lo. Seria em outro lugar que tudo isso - ou algo de semelhante - se passaria, e nós lá estaríamos a observar, ou a participar, fosse no que fosse.
Peguei na mão da Franny e caminhámos ao longo do carreiro que os jogadores de futebol costumavam percorrer, fazendo apenas uma breve paragem na curva de que nos lembrávamos tão bem - o trilho que penetrava na mata até ao local onde cresciam os fetos; nem sentimos necessidade de os ver.
- Adeus - murmurou a Franny para esse lugar sagrado e profano ao mesmo tempo.
Apertei-lhe a mão com força e ela fez-me o mesmo; em seguida largou-me a mão. Durante todo o caminho de regresso ao Hotel New Hampshire tentámos falar só em alemão um com o outro, pois em breve seria a nossa nova língua e ainda não a conhecíamos muito bem. Ambos tínhamos consciência de que precisávamos de a dominar melhor para ficarmos livres do Frank.
Quando chegámos ao Elliot Park, o Frank andava a dar a sua volta de condutor de carro funerário por entre as árvores.
- Queres uma lição? - perguntou ele à Franny.
Ela encolheu os ombros, e a Mãe mandou-os aos dois fazer um recado - a Franny a guiar e o Frank a rezar todo encolhido ao lado dela.
Nessa noite, quando me fui deitar, o Egg tinha posto o Sorrow na minha cama - e tinha-o vestido com o meu equipamento de corrida. Tirar o Sorrow de cima da cama - e, sobretudo, limpar os pêlos do Sorrow - fez-me despertar por completo. Sem sono nenhum, desci até ao restaurante e ao bar para ler um bocado. O Max Urick estava a tomar uma bebida, sentado numa das cadeiras aparafusadas ao chão.
- Quantas é que o Schnitzler deu com essa Jeanette não sei quantos? - perguntou-me ele.
- Quatrocentas e sessenta e quatro.
- Isso é que foi! - exclamou ele.
Quando o Max se foi deitar, aos tropeções pela escada acima, fiquei sentado a ouvir a Sr.a Urick a arrumar as panelas. A Ronda Ray não estava por ali; tinha saído - ou talvez estivesse dentro de casa, o que para o caso tanto fazia. Estava escuro de mais para ir correr - e a Franny estava a dormir, por isso eu não podia ir levantar pesos. O Sorrow tinha-me tirado o sono, de modo que tentei ler. Era um livro sobre a gripe de 1918 - sobre as vidas de todas as pessoas famosas e desconhecidas que haviam sido ceifadas por ela. Parecia uma das épocas mais tristes em Viena. Gustav Klimt, o tal que dera a uma obra sua o nome de "esterco de porco", tinha morrido nessa altura! Klimt fora professor de Schiele. A mulher de Schiele também morrera - chamava-se Edith -, e depois o próprio Schiele, ainda muito novo. Li um capítulo inteiro do livro sobre os quadros que Schiele poderia ter pintado se a gripe não o tivesse levado. Eu já estava a ficar com a ideia, meio baralhada, que o livro era todo sobre aquilo em que Viena se poderia ter tornado se a gripe não tivesse chegado à cidade, quando a Lilly me acordou.
- Porque é que não estás a dormir no teu quarto? - perguntou-me ela. Expliquei-lhe o que havia com o Sorrow.
- Não consigo dormir porque não sou capaz de imaginar como é que vai ser o meu quarto lá - explicou a Lilly.
Falei-lhe da gripe de 1918, mas ela não estava interessada.
- Estou preocupada - acabou ela por confessar. - Estou preocupada com a violência.
- Qual violência?
- No hotel do Freud. Vai haver violência.
- Porquê, Lilly?
- Sexo e violência - insistiu ela.
- Referes-te às putas? - perguntei-lhe.
- Ao clima em que elas vivem - disse a Lilly, sentada numa das cadeiras aparafusadas ao chão, a baloiçar ligeiramente no assento sem que, evidentemente, os pés lhe chegassem ao chão.
- O clima em que elas vivem?
- O clima de sexo e violência. É o que me parece. Cheira-me que é assim em toda a cidade. Olha o Rudolf a assassinar a namorada e a suicidar-se a seguir.
- Isso foi no século passado, Lilly - recordei-lhe.
- E aquele homem que fodeu com aquela mulher quatrocentas e sessenta e quatro vezes - insistiu ela.
- O Schnitzler - disse eu. - Isso foi quase há um século, Lilly.
- Agora ainda deve ser pior. A maior parte das coisas piorou. Devia ter sido o Frank quem lhe dissera aquilo.
- E a gripe - disse a Lilly. - E mais as guerras. E os húngaros.
- A revolução? - perguntei-lhe. - Isso foi no ano passado, Lilly.
- E as violações todas no sector russo. A Franny vai ser outra vez violada. Ou então eu - disse ela, acrescentando: - Se alguém suficientemente pequeno me apanhar.
- A ocupação já acabou - disse eu.
- Um clima violento. Toda aquela sexualidade reprimida - insistiu a Lilly.
- Isso é o que diz o outro Freud, Lilly - disse eu.
- E o urso? Um hotel com ursos, putas e espiões - continuou ela.
- Espiões não, Lilly - disse eu, compreendendo que ela se queria referir às pessoas das relações Leste-Oeste. - Acho que são apenas intelectuais.
Mas isto não pareceu sossegá-la. Abanou a cabeça.
- Não suporto a violência - disse ela - E Viena tresanda a violência.
Era como se ela tivesse andado a estudar o mapa turístico da cidade e tivesse encontrado todos os cantos em que os bandos do Júnior Jones se acoitavam.
- Viena ressuma violência por toda a parte - continuou ela. - Viena emana violência.
Até parecia que ela havia metido aquelas palavras na boca para as saborear: tresanda, ressuma, emana.
- A simples ideia de ir para lá é arrepiante de violência - acrescentou a Lilly, estremecendo sob o efeito de um arrepio.
As curvas das suas pernas pequeninas dobraram-se sobre o assento da cadeira aparafusada ao chão, as pernas esguias chicotearam o ar para trás e para a frente, levantando pó do chão. Ela só tinha onze anos, e eu tentava imaginar onde é que podia ter aprendido todas aquelas palavras que utilizava e por que motivo o seu pensar parecia o de uma pessoa mais velha. Porque é que as mulheres da nossa família eram cheias de sabedoria, como a Mãe, ou raparigas que pareciam mais velhas que a sua idade - como o Júnior Jones dizia da Franny -, ou como a Lilly: pequenina, doce, mas com uma inteligência tão precoce? Porque é que a inteligência tinha ido toda para...
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