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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INCÊNDIO DE TROIA / Marion Zimmer Bradley
O INCÊNDIO DE TROIA / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INCÊNDIO DE TROIA

 

A chuva caíra durante o dia inteiro; ora um aguaceiro, ora um mero chuvisco, mas jamais cessando de todo. As mulheres levaram seus teares para dentro de casa e as crianças se agrupavam sob os beirais do pátio, aventurando-se por alguns minutos, entre as pancadas mais fortes, pelas poças e depois levando a lama para os aposentos. Ao cair da tarde, a mais velha das mulheres junto ao fogo estava convencida de que acabaria enlouquecendo com a confusão e os gritos estridentes, o embate dos pequenos exércitos, os golpes de espadas de madeira em escudos de madeira, os sons de madeira sendo lascada e as discussões pelos brinquedos quebrados, a transferência de lealdade de um líder para o outro, os berros de "morto" e "ferido" quando alguém era posto fora da brincadeira.

Ainda descia chuva demais pela chaminé para que se cozinhasse direito na lareira; conforme o dia de inverno escurecia, acendiam-se fogos em braseiros. A medida que a carne e o pão exalavam seu aroma, as crianças, uma a uma, chegavam, e se amontoavam como filhotes famintos, farejando ruidosamente e ainda discutindo em voz baixa. Pouco antes do jantar um hóspede surgiu na porta, um menestrel, um andarilho, cuja lira pendurada no ombro lhe garantia uma boa recepção e alojamento em qualquer lugar. Depois de ganhar comida, um banho e roupa seca, o menestrel foi sentar no lugar reservado aos hóspedes mais honrosos, perto do fogo. Começou a afinar o instrumento, aproximando o ouvido das cravelhas de casco de tartaruga e testando o som com um dedo. Depois, sem perdia licença - já naquele tempo um bardo fazia o que bem queria -, dedilhou um único acorde sonoro e declamou:

Cantarei as batalhas e os grandes homens que as lutaram;

Os homens que por dez anos assediaram as altas muralhas de Tróia;

E os Deuses que as muralhas finalmente derrubaram: Apolo, o Senhor do Sol; Posêidon, que faz a terra tremer.

A história cantarei da ira de Akiles, o poderoso,

De uma Deusa nascido, tão grande que nenhuma arma podia abate-lo;

E também o seu orgulho arrogante e o combate que travou

Por três dias, com o grande Heitor, nas planícies diante da Tróia das altas

muralhas;

O altivo Heitor e o bravo Akiles, centauros e amazonas, Deuses e heróis, Odisseu e Enéias, todos os que lutaram e morreram nas planícies diante de Tróia...

 

 Primeira Parte

- Não! - exclamou a velha abruptamente, largando o tear e levantando-se de um salto. - Não vou permitir! Não quero ouvir esse absurdo cantado em minha casa!

O menestrel deixou a mão cair sobre as cordas, com uma dissonância fragorosa; sua expressão era de consternação e surpresa, mas o tom se manteve polido.

- Como assim, minha senhora?

- Não vou permitir que essas mentiras vergonhosas sejam cantadas aqui, ao lado da minha lareira! - reiterou a velha, com uma veemência ainda maior. - As crianças soltaram murmúrios de desapontamento; ela gesticulou imperiosa para que silenciassem. - Menestrel, é bem-vindo em nossa refeição e para sentar junto ao meu fogo, mas não deixarei que povoe os ouvidos das crianças com absurdos mentirosos. Não foi absolutamente assim.

- É mesmo? - insistiu o menestrel, ainda polido. - E como pode saber, minha cara senhora? Canto a história como a aprendi de meu mestre, como é cantada por toda parte, de Creta à Cólquida...

- Pode ser cantada dessa maneira daqui ao fim do mundo, mas não foi assim que aconteceu.

- E como sabe? - insistiu o menestrel.

- Porque eu estava lá e a tudo testemunhei.

As crianças murmuraram aturdidas, soltaram gritos de espanto.

- Você jamais nos contou isso, vovó. Conheceu Akiles, Heitor, Príamo e todos os heróis?

- Heróis! - exclamou ela, desdenhosa. - É verdade, eu os conheci. Heitor era meu irmão.

O menestrel inclinou-se para a frente e observou-a atentamente, depois anunciou:

- Agora a estou reconhecendo.

Ha balançou a cabeça branca.

- Talvez devesse contar toda a história, minha senhora. Eu, que sirvo ao Deus da Verdade, não quero mais cantar mentiras para todos os homens ouvirem.

A velha se manteve em silêncio por um longo tempo.

-'Não, não posso reviver tudo de novo. - As crianças lamentaram, desapontadas, e ela acrescentou: - Não tem outra história para cantar?

- Muitas, mas não me agrada relatar uma história de que escarnece como uma mentira. Não pode revelar a verdade, a fim de que eu possa cantá-la por toda parte?

Ha sacudiu a cabeça, firmemente.

- A verdade não é uma história tão boa.

- Não pode pelo menos dizer em que ponto a história se desvia da verdade, a fim de que eu possa corrigi-la?

A velha suspirou.

- Houve um tempo em que eu tentaria, mas nenhum homem deseja acreditar na verdade. Pois sua história fala de heróis e reis, não de rainhas... e de Deuses, não de Deusas.

- Nem tanto assim, pois uma grande parte da história é sobre a bela Helena, que foi seqüestrada por Páris, sobre Leda, que, mãe de Helena e de Klitemnestra, foi seduzida pelo grande Zeus, que assumiu a forma de seu marido, o rei.. .

- Eu sabia que você não poderia compreender - interrompeu ; o a velha. -. No começo não havia reis nesta terra, mas apenas rainhas, as filhas das Deusas, que tomavam consortes onde queriam. E depois os adoradores dos Deuses do Céu, os homens cavalos, usuários do ferro, apareceram em nossa terra; e quando as rainhas os tomaram como consortes, eles se intitularam reis e exigiram o direito de reinar. E, assim, os Deuses e Deusas entrarem em luta. E veio o tempo em que levaram suas discórdias para Tróia... - Abruptamente, ela parou de falar. Depois de uma pausa, acrescentou: - Já chega. O mundo mudou; percebo que me considera uma velha cuja mente delira. Sempre foi esse o meu destino: falar a verdade, sem que ninguém acreditasse. Tem sido assim e continuará a ser. Cante o que lhe aprouver, mas não escarneça da minha verdade, em minha própria casa. 14 á muitos outras histórias. Fale-nos de Media, a senhora da Cólquida, do tosão de ouro que Jasão roubou de seu santuário.., se é que isso de fato aconteceu. Eu diria que há alguma outra verdade para essa história também, mas não a conheço e não me importo com qual possa ser. Há muitos e muitos anos que não vou à Cólquida.

Ela tornou a pegar seu tear e recomeçou a fiar. O menestrel baixou a cabeça.

- Que assim seja, senhora Kassandra. Todos pensávamos que havia morrido em Tróia ou em Micenas, logo depois.

- Isso deve lhe provar que pelo menos em algumas coisas a história não fala a verdade.

Sempre o meu destino: falar a verdade e apenas ser considerada louca. Mesmo agora, o Senhor do Sol ainda não me perdoou...

 

O CHAMADO DE APOLO

Naquela época do ano o dia se prolongava até mais tarde; mas os últimos raios do sol poente já haviam desaparecido a oeste e a neblina começara a vir do mar.

Leda, senhora de Esparta, levantou-se, enquanto seu consorte, Tindareu, permanecia imóvel na cama. Como sempre, depois do ato de amor, ele mergulhara num sono profundo; não percebeu quando ela deixou a cama, ajeitou um traje leve nos ombros, saiu para o pátio e seguiu para os aposentos das mulheres.

Os aposentos das mulheres, pensou a rainha, irritada, quando é o meu próprio castelo; dá até para pensar que sou eu e não ele a intrusa aqui; que ele e não eu possui todos os direitos em Esparta. A Mãe Terra não sabe muita coisa além de seu nome.

Fora bastante condescendente quando ele aparecera e pedira sua mão, embora fosse um dos invasores do norte, adorador da trovoada e do carvalho, dos Deuses do Céu, um homem rude e peludo, que ostentava o odiado ferro negro na lança escudo. E sua espécie estava agora por toda parte, os homens exigiam o casamento por suas novas leis, como se os seus Deuses tivessem derrubado do trono celestial a Deusa que possuía a terra, a colheita e o povo. A mulher desposada por um desses portadores do ferro tinha a obrigação de aderir ao culto de seus Deuses e entregar o corpo a esse homem apenas.

Um dia, pensou Leda, a Deusa puniria aqueles homens por impedir que as mulheres prestassem sua devoção as forças da Vida. Aqueles homens diziam que as Deusas eram subservientes aos Deuses; o que parecia para Leda uma horrível blasfêmia, uma inversão absurda da ordem natural das coisas. Os homens não possuíam o poder divino; não geravam, não davam à luz; apesar disso, achavam que possuíam algum direito natural sobre o fruto dos corpos de suas mulheres, como se acasalar com uma lhes conferisse a propriedade, como se as crianças não pertencessem naturalmente à mulher cujo corpo as abrigara e nutrira.

Mas Tindareu era seu marido e ela o amava; e porque o amava, estava disposta até mesmo a se submeter à sua loucura e ciúme, expondo-se à ira da Mãe Terra ao ir para a cama apenas com ele.

E, no entanto, ela gostaria de poder fazer com que ele compreendesse que era um erro o seu isolamento nos aposentos das mulheres - que ela devia, como sacerdotisa, sair e circular pelos campos para se certificar de que a Deusa recebia a homenagem devida; que devia o dom da fertilidade a todos os homens, não apenas a seu consorte; que a Deusa não podia restringir suas dádivas a um único homem, mesmo que ele se intitulasse um rei.

Um murmúrio distante de trovoada ressoou lá embaixo, como se subisse do mar, como se a Grande Serpente, que de vez em quando fazia a Terra tremer, pudesse estar se remexendo em suas profundezas.

Uma lufada de vento agitou o traje leve em torno dos ombros de Leda, os cabelos esvoaçaram, como uma ave solitária em vôo. Um tênue relâmpago iluminou subitamente o pátio e ela avistou, delineado contra o quadrado de luz da porta, o vulto do marido, saindo à sua procura. Leda contraiu-se interiormente; ele a censuraria por deixar os aposentos das mulheres, mesmo àquela hora da noite?

Mas ele não falou; apenas avançou em sua direção e alguma coisa nos

passos, a maneira determinada como se movia, revelou a Leda que, apesar da forma e das feições tão conhecidas, agora bem visíveis ao luar, aquele não era seu marido. Ela não sabia como isso era possível, mas uma cintilação de relâmpago parecia brincar em torno de seus ombros e ela podia ouvir os pés deles ressoando nas lajes como trovoadas distantes. Ele parecia ter se tornado mais alto, a cabeça empinada ao clarão dos relâmpagos que crepitavam em seus cabelos. E então Leda compreendeu, com um sobressalto que deixou arrepiados os cabelos de seu corpo, que ali estava um dos estranhos Deuses, assumindo a imagem de seu marido, cavalgando-o como faria com um de seus cavalos. O clarão dos relâmpagos mostrava que era Zeus Olímpico, Controlador dos Trovões, Senhor dos Raios.

Isto não era novidade para ela; já conhecia a sensação da Deusa enchendo e transbordando seu corpo, quando abençoava as colheitas ou quando se estendia nos campos, transmitindo o poder divino para o crescimento dos grãos. Ela lembrou como parecia ficar de lado, deixando seu eu familiar, enquanto a Deusa cumpria os rituais, dominando a todos com seu poder.

Tindareu, ela sabia, devia estar agora lá dentro, observando, enquanto Zeus, dono de seu corpo, avançava para sua esposa. Ela sabia, porque Tindareu lhe dissera um dia que entre todos os Deuses era pelo Senhor dos Raios que ele sentia mais devoção.

Leda tentou se encolher; talvez Ele não a notasse, talvez pudesse permanecer sem ser vista até que o Deus deixasse o corpo de seu marido. A cabeça que era agora a cabeça do Deus se virou, a cintilação do relâmpago acompanhando o esvoaçar dos cabelos. Leda sabia que Ele a vira; mas não foi a voz de Tindareu que falou e sim uma voz mais sonora, mais suave, um rumor profundo, impregnado pelas trovoadas distantes.

- Leda, venha até aqui - disse Zeus, Senhor dos Raios.

Ele estendeu a mão e, obediente, reprimindo o súbito temor interior - se aquele Deus lançava os raios, seu contato a abateria com a força de um relâmpago? -, Leda pegou-a. A carne do Deus era fria e a mão de Leda tremeu um pouco. Fitando-o, ela percebeu em seu rosto a insinuação de um sorriso, muito diferente da expressão firme e resoluta de Tindareu. Era como se o Deus estivesse rindo - não dela, mas com ela. Ele a puxou sob seu braço, a beira do manto cobrindo-a. Leda pôde sentir o calor de seu corpo. O Deus não tornou a falar, mas conduziu-a para o aposento de onde saíra pouco antes.

Então, Ele a comprimiu contra seu corpo, dentro do manto, e Leda pôde sentir sua virilidade subindo.

As leis que proíbem deitar-se com qualquer outro homem incluem um Deus com a forma e o jeito de meu marido?, ela se interrogou, frenética. Em algum lugar, lá no fundo, o verdadeiro Tindareu estaria observando-a: ciumento ou satisfeito por sua mulher ter caído na graça de seu Deus? Leda não tinha como saber; pelo vigor com que ele a abraçava, sabia que seria impossível protestar.

A princípio ela sentira a sua carne estranha, gelada; agora, parecia agradavelmente quente, como se estivesse febril.

Ele levantou-a e deitou-a; um único e rápido contato foi suficiente para

que ela se abrisse, vibrando, ansiosa. E depois ele estava por cima, dentro dela, o relâmpago faiscando em torno de seu corpo e rosto, um eco profundo nos ritmos firmes de seus movimentos. Por um momento, parecia que ali não estava um homem, que não havia absolutamente nada de humano, que ela se encontrava sozinha num pico varrido pelo vento, cercada por asas a esvoaçar, por um enorme círculo de fogo em perpétuo movimento, como se alguma besta a acuasse e violasse, deixando-a em confusão e êxtase - o bater de asas, a trovoada, enquanto a boca ardente e exigente se apoderava da sua.

E tudo acabou subitamente, como se tivesse acontecido há muito tempo, uma lembrança desvanecente ou um sonho. Leda estava deitada sozinha na cama, sentindo-se muito pequena, enregelada, abandonada e sozinha, enquanto o Deus pairava por cima dela - parecendo projetar-se até o céu. Ele inclinou-se e beijou-a, com imensa ternura. Leda fechou os olhos. Quando acordou, Tindareu estava profundamente adormecido a seu lado; não podia saber se ele deixara a cama em algum momento. Era mesmo Tindareu; quando estendeu a mão para se certificar, sentiu a carne quente - ou fresca - e não havia o menor crepitar de relâmpago nos cabelos espalhados sobre o travesseiro.

Teria ela apenas sonhado? No instante em que o pensamento lhe passou pela cabeça, Leda ouviu lá fora o ressoar da trovoada; para onde quer que tivesse ido, o Deus não a deixara por completo. E agora ela sabia que, por mais que continuasse a viver com Tindareu, como sua esposa, nunca mais tornaria a fitar o rosto do marido sem procurar por algum sinal do Deus que a visitara sob sua forma.

 

Hécuba, a rainha, jamais se afastava das muralhas de Tróia sem olhar para trás, com grande orgulho, contemplando a cidade que era uma fortaleza, elevando-se em níveis sucessivos sobre a fértil planície cortada pelo Escamandro, além da qual se estendia o mar. Sempre se maravilhava com a obra dos Deuses, que lhe haviam concedido a soberania sobre Tróia. A ela própria, a rainha; e Príamo, como seu marido, guerreiro e consorte.

Ela era a mãe do príncipe Heitor, o herdeiro de Príamo. Um dia seus filhos e filhas herdariam aquela cidade e a terra além, até onde a vista podia alcançar.

Mesmo que a criança que em breve daria à luz fosse uma filha, Príamo não, teria motivos para se queixar de Hécuba.. Heitor estava agora com sete anos, ida. de suficiente para começar a aprender o jogo das armas. Sua primeira armadura já fora encomendada ao artífice que trabalhava para a família real. A filha Polixena tinha quatro anos e algum dia seria linda, com os cabelos avermelhados, como os de Hécuba; um dia ela se tornaria tão valiosa quanto qualquer filho homem, pois uma filha podia ser casada com um dos reis rivais de Príamo e consolidar uma firme aliança. A família de um rei devia ser rica em filhos e filhas. As mulheres do palácio haviam-lhe gerado muitos filhos e umas poucas filhas. Mas Hécuba, como a rainha, estava no comando e era seu dever não seu privilégio - determinar como cada criança gerada pelo rei devia ser criada, quer tivesse nascido de seu próprio ventre ou de qualquer outra mulher.

A rainha Hécuba era bonita, alta, de ombros largos, cabelos de um castanho avermelhado, escovados para trás e arrumados em cachos compridos, que caíam pelo pescoço. Caminhava como a Deusa Hera, carregando seu filho (baixo e próximo do nascimento) à frente, com o maior orgulho. Usava o corpete decotado e a saia em camadas, com um padrão de listras coloridas, o traje comum das mulheres da nobreza de Tróia. Uma gargantilha de ouro, tão larga quanto a palma de sua mão, refulgia sobre o pescoço.

Ao passar por uma rua tranqüila, perto do mercado, uma mulher do povo, baixa e morena, vestida com um traje tosco de linho cor de terra, adiantou-se para tocar sua barriga, murmurando, como que sobressaltada por tamanha temeridade:

- Uma bênção, 6 rainha!

- Não sou eu quem a abençoa, mas sim a Deusa - respondeu Hécuba.

Enquanto estendia as mãos, ela sentiu por cima a sombra da Deusa, como um prurido no topo da cabeça, e pôde ver no rosto da mulher o reflexo infalível de reverência e espanto pela súbita mudança.

- Que você possa gerar muitos filhos - e filhas para a nossa cidade - acrescentou Hécuba, com toda gravidade. - E rezo para que também me abençoe, filha.

A mulher levantou os olhos para a rainha - ou via apenas a Deusa? - e murmurou:

- Que a fama do príncipe em seu ventre supere até a fama do príncipe Heitor, rainha.

- Que assim seja.

Hécuba se perguntou por que sentia um pequeno calafrio premonitório, como se a bênção tivesse de alguma forma se transformado, entre os lábios da mulher e seus ouvidos, numa maldição. E isto devia ter ficado visível em seu rosto, pensou ela, pois a camareira que a acompanhava se adiantou e disse:

- Está pálida, rainha. Já começou o trabalho de parto?

A confusão de Hécuba era tão grande que por um momento ela chegou a pensar que o calafrio que a invadira era na verdade o primeiro movimento do processo de nascimento. Ou seria apenas o resultado do breve contato com a Deusa? Não se lembrava de qualquer coisa parecida por ocasião do nascimento de Heitor, mas era então muito jovem, mal; tinha percepção do processo que ocorria em suas entranhas.

- Não sei - respondeu ela. - É possível.

- Então deve voltar ao palácio, e o rei precisa ser informado.

Hécuba hesitou. Não tinha o menor desejo de retornar ao interior das muralhas, mas se estava mesmo em trabalho de parto era seu dever - não apenas com a criança e seu marido, mas também com o rei e todo o povo de Tróia - salvaguardar o príncipe ou princesa que se encontrava em seu ventre.

- Está bem, voltaremos ao palácio.

Ela se virou na rua. Uma das coisas que a incomodavam, quando andava pela cidade, era a multidão de mulheres e crianças que a seguia, pedindo bênçãos. Desde que se tornara visivelmente grávida que lhe suplicavam a bênção da fertilidade, como se pudesse, tal qual a Deusa, conceder a dádiva de gerar filhos.

Acompanhada pela camareira, Hécuba passou sob as leoas gêmeas que guardavam os portões do palácio de Príamo. Havia soldados por todo o vasto pátio, reunidos para o exercício de armas. Uma sentinela nos portões levantou sua lança em saudação.

Ela observou os soldados, agrupados em duplas, lutando com armas de ponta encoberta. Sabia tanto sobre armas quanto qualquer um daqueles homens, pois nascera e fora criada nas planícies, filha de uma tribo nômade cujas mulheres andavam a cavalo e eram treinadas com a lança e a espada, como os homens da cidade. Sua mão ansiava por uma espada, mas não era o costume em Tróia. A princípio, Príamo ainda lhe permitira empunhar armas e praticar com seus soldados, mas a proibira quando ficara grávida de Heitor. Fora em vão que Hécuba alegara que as mulheres de sua tribo andavam a cavalo e trabalhavam com armas até poucos dias antes do nascimento de seus filhos; Príamo se recusara a atendê-la.

As parteiras reais lhe garantiram que seu filho seria prejudicado se tocasse em armas de gume afiado e o mesmo talvez acontecesse com os homens que possuíam as armas. O toque de uma mulher, alegaram elas, especialmente o toque de uma mulher em seu estado, faria com que a arma se tornasse inútil na batalha. Isso parecia a Hécuba o mais solene absurdo, como se os homens temessem a noção de que uma mulher pudesse ser bastante forte para se proteger.

- Mas você não precisa se proteger, meu amor querido - declarara Príamo. - Que tipo de homem eu seria se não fosse capaz de proteger minha esposa e filho?

Isso encerrara a discussão e, daquele dia em diante, Hécuba nunca mais pusera a mão no punho de uma arma. Imaginando agora o peso de uma espada em sua mão, fez uma careta, sabendo que estava fraca em função do trabalho feminino dentro do palácio e mole pela falta de treinamento. Príamo não era tão ruim quanto os reis argivos que mantinham suas mulheres confinadas dentro de casa, mas não gostava quando ela se afastava muito do palácio. Ele fora criado com mulheres que passavam o tempo todo dentro de casa, e uma de suas descrições mais críticas de uma mulher era "queimada de sol por perambular de um lado para outro".

A rainha passou, por uma porta pequena, para as sombras frescas do interior do palácio e foi seguido por corredores de chão de mármore, ouvindo no silêncio o farfalhar da saia arrastada pela pedra fria e os passos suaves da mulher logo atrás.

Em seus aposentos ensolarados, com todas as cortinas abertas, como ela preferia mantê-las, as mulheres arejavam as roupas. Quando ela entrou, todas pararam o que faziam para saudá-la. A camareira anunciou.

- A rainha está em trabalho de parto. Chamem a parteira real.

- Não. Esperem um pouco. - A voz suave mas determinada de Hécuba soou acima dos gritos de excitamento. - Não há pressa. Não tenho certeza. Apenas experimentei uma sensação estranha e não sabia o que me afligia. Mas não é certo que seja mesmo isso.

- Mas se não tem certeza, rainha, devo permitir que ela venha para examiná-la - persuadiu a mulher.

Hécuba acabou concordando. Claro que não havia necessidade de pressa; se estava mesmo em trabalho de parto, saberia muito em breve; mas se não estava, não haveria mal algum em falar com a parteira real. A estranha sensação passara e não voltara, como se nunca tivesse existido.

O sol declinou e Hécuba passou o resto do dia ajudando suas mulheres a dobrarem e guardarem as roupas secadas ao sol. Ao crepúsculo, Príamo mandou avisar que passaria a noite com seus homens; ela deveria jantar com as mulheres e se deitar sem esperar por ele.

Cinco anos antes, pensou Hécuba, isso a deixaria consternada; não conseguiria dormir se não estivesse envolta por seus braços fortes e afetuosos. Agora, especialmente no final da gravidez, sentia-se satisfeita pela perspectiva de ter a cama só para si. Mesmo quando lhe passou pela cabeça a possibilidade de Príamo partilhar a cama de alguma mulher da corte, talvez a mãe de uma das outras crianças reais, não ficou perturbada; sabia que um rei devia ter muitos filhos e que Heitor, seu filho, desfrutava do favor do pai.

Não entraria em trabalho de parto naquela noite; por isso, chamou suas mulheres para que a aprontassem para a cama, com a cerimônia apropriada. Por algum motivo, a última imagem que aflorou em sua mente, antes de dormir, foi a da mulher na rua que lhe pedira uma bênção naquele dia.

Pouco antes de meia-noite o vigia no lado de fora dos aposentos da rainha, cochilando no serviço, foi despertado por um terrível grito de desespero e medo, que pareceu ressoar por todo o palácio. Galvanizado a uma consciência total, o vigia entrou nos aposentos, chamando até que uma das servidoras da rainha apareceu.

- O que aconteceu? - perguntou ele. - A rainha está em trabalho de parto? A casa está em chamas?

- Um presságio maléfico, o mais assustador dos sonhos...

Antes que a mulher pudesse continuar, a própria rainha surgiu na porta. - Fogo! - exclamou ela.

O vigia olhou assombrado para a rainha, uma presença quase sempre distinta, mas agora com os longos cabelos avermelhados soltos e caindo desgrenhados até a cintura, a túnica frouxa no ombro e sem nada a prende-la na cintura, deixando-a seminua na parte superior do corpo. Nunca notara antes que a rainha era uma bela mulher.

- Em que posso ajudá-la, rainha? - indagou. - Onde é o incêndio?

E foi nesse instante que ele reparou numa coisa espantosa: a rainha se alterava entre uma respiração e outra, num momento, uma estranha desvairada, no outro, a dama real que o vigia conhecia. A voz tremia de medo, embora ela conseguisse dizer com alguma suavidade:

- Deve ter sido um sonho... um sonho de fogo, não mais do que isso.

- Conte-nos tudo, rainha - exortou a dama de companhia, aproximando-se de Hécuba, os olhos alertas e cautelosos. Gesticulou para o vigia e acrescentou: - Pode ir agora. Não deveria estar aqui.

- É meu dever verificar se está tudo bem com as mulheres do rei - respondeu o homem, com firmeza, observando o rosto agora sereno da rainha.

- Ele está apenas cumprindo seu dever - interveio Hécuba, a voz ainda trêmula. - Asseguro-lhe, vigia, que foi apenas um pesadelo. Já mandei as mulheres inspecionarem todos os aposentos. Não há fogo em parte alguma.

- Devemos chamar uma sacerdotisa do templo - sugeriu uma mulher a seu lado. - Precisamos saber qual é o perigo pressagiado por um pesadelo tão terrível!

Passos firmes soaram lá fora e a porta foi aberta; o rei de Tróia estava na porta, um homem alto e forte, na casa dos trinta anos, musculoso, de ombros largos mesmo sem a armadura, cabelos escuros encrespados e uma barba preta aparada com esmero, querendo saber, em nome de todos os Deuses e Deusas, a causa de tamanha comoção em sua casa.

- Meu senhor...

As servas recuaram, enquanto Príamo passava pela porta.

- Está tudo bem com você, minha senhora? - indagou ele.

Hécuba baixou os olhos e murmurou:

- Lamento o distúrbio, meu marido. Tive um sonho de grande mal. Príamo acenou para as mulheres.

- Podem ir agora.. . e verifiquem se está tudo bem nos quartos das crianças reais.

As mulheres se retiraram apressadas. Príamo era um homem gentil, mas não se devia irrita-lo nas ocasiões relativamente raras em que perdia a paciência.

Para o vigia, ele acrescentou:

- Ouviu o que a rainha disse. Vá imediatamente ao Templo da Grande Mãe e avise que a rainha teve um sonho de presságio maligno e precisa de uma

sacerdotisa que possa interpreta-lo. Depressa!

O vigia desceu a escada correndo e Hécuba estendeu a mão para o marido. - Não foi realmente mais do que um sonho, foi? - perguntou ele.

- Isso mesmo, foi apenas um sonho - respondeu ela, embora a recordação ainda a fizesse estremecer.

- Conte-me tudo, amor.

Príamo levou-a de volta à cama, sentou-se ao seu lado, inclinou-se para a frente e pegou seus dedos - apenas um pouco menores do que os dele - entre

suas palmas calejadas.

- Eu me sinto... uma tola por incomodar todo mundo com um pesadelo. - Não pense assim. Você estava muito bem. Quem sabe? O sonho pode ter sido enviado por algum Deus que é seu inimigo... ou meu. Ou por um Deus amigo, como uma advertência de desastre. Conte-me tudo, meu amor.

- Eu sonhei... sonhei. . . - Hécuba engoliu em seco, tentando se livrar da sensação Sufocante de medo. - Sonhei que a criança nascera, um filho... enquanto eu o observava ser enfaixado, um Deus surgiu no quarto...

- Que Deus? - interrompeu-a Príamo, bruscamente. - Sob que forma?

- Como eu poderia saber? - indagou Hécuba, com toda sensatez. - Conheço pouco os Olímpicos. Mas tenho certeza de que não ofendi nenhum, não lhes fiz qualquer afronta.

- Fale-me de sua forma e aparência - insistiu Príamo.

- Ele era jovem e sem barba, não devia ser mais do que seis ou sete anos mais veto do que o nosso Heitor.

- Então deve ter sido Hermes, o Mensageiro dos Deuses. - Mas por que um Deus dos argivos viria me procurar?

- Não nos cabe questionar os meios pelos quais os Deuses agem. Como posso saber? Continue.

A voz de Hécuba ainda era insegura:

- Hermes ou qualquer que fosse o Deus inclinou-se sobre o berço e pegou o bebê... - Hécuba estava muito pálida, gotas de suor afloravam em sua testa, mas ela esforçou-se em firmar a voz        não era um bebê... mas uma criança já crescida... uma criança nua, ardendo... estava em chamas, queimando como se fosse uma tocha. E quando se movimentou, o fogo espalhou-se, invadindo o castelo, queimando tudo, atingindo a cidade... - Ela parou de falar por um instante e depois soluçou: - O que isso pode significar?

- Apenas os Deuses o sabem com certeza - respondeu Príamo, apertando

a mão da esposa. Hécuba balbuciou:

- No sonho, o bebê corria na frente do Deus... uma criança em chamas, percorrendo todo o palácio, incendiando os aposentos à sua passagem. E depois correu pela cidade, o fogo se espalhando em sua esteira, até que toda Tróia queimava, da cidadela à praia, até mesmo o mar pegava fogo...

- Em nome de Possêidon - murmurou Príamo -, que terrível presságio...

para Tróia e todos nós!

Ele ficou em silêncio, afagando a mão de Hécuba, até que um som leve lá fora anunciou a chegada da sacerdotisa. Ela entrou no aposento e disse, em voz calma e jovial:

- Paz para todos nesta casa. Podem se regozijar, senhor e senhora de Tróia. Meu nome é Sarmato. Trago as bênçãos da Sagrada Mãe. Que serviço posso prestar à rainha? - A sacerdotisa se adiantou, alta e vigorosa, provavelmente ainda em idade de gerar filhos, embora os cabelos escuros já exibissem alguns fios brancos. Ela acrescentou para Hécuba, sorrindo: - Vejo que a Grande Deusa já a abençoou, rainha. Está doente ou em trabalho de parto?

- Nenhuma das duas coisas - respondeu Hécuba. - Não lhe contaram nada? Algum Deus me enviou um sonho malfazejo.

- Conte-me tudo, sem medo - pediu Sarmato. - Os Deuses nos querem bem, disso tenho certeza. Portanto, fale sem receio.

Hécuba tornou a relatar o sonho, começando a sentir, enquanto falava, agora que estava plenamente desperta, que não era tão horrível assim, mas absurdo. O que não a impediu de estremecer com o horror que experimentara no sonho. A sacerdotisa escutou com a testa um pouco franzida. E indagou, quando Hécuba terminou:

- Tem certeza de que não houve mais nada?

- Nada mais que eu possa me lembrar.

O vinco na testa da sacerdotisa se aprofundou. De uma bolsa presa na

cintura, ela tirou um punhado de seixos; ajoelhou-se no chão e jogou-os, estudando a disposição ene que pararam, murmurando palavras incompreensíveis. Tornou a jogá-los mais duas vezes, depois os recolheu e guardou na bolsa.

Olhou para Hécuba.

- Assim fala o mensageiro dos Deuses do Olimpo. Gera um filho sob um fado maligno, que destruirá a cidade de Tróia.

Hécuba prendeu a respiração em consternação, mas sentiu os dedos do marido, fortes, afetuosos, tranqüilizadores, apertarem os seus.

- Pode-se fazer alguma coisa para evitar esse destino? - perguntou Príamo.

A sacerdotisa deu de ombros.

- Ao tentarem evitar o destino, os homens muitas vezes só contribuem para aproximá-lo. Os Deuses mandaram um aviso, mas preferiram não revelar o que se pode fazer para impedir a tragédia. Talvez o mais seguro seja não fazer nada.

Príamo franziu o rosto e disse.

- Então a criança deve ser exposta ao nascer. Dominada pelo horror, Hécuba protestou.

- Não! Não! Foi apenas um sonho, nada mais que um sonho...

- Um aviso de Hermes - declarou Príamo, solenemente. O menino deve ser exposto ao nascer. - Uma pausa e ele acrescentou a fórmula inflexível, que

dava às palavras a força da lei esculpida em pedra: - Assim eu falei; que assim seja feito!

Hécuba desabou sobre os travesseiros, chorando. Príamo disse, ternamente.

- Nem por toda a Tróia eu lhe causaria esse pesar, minha querida, mas não se pode escarnecer dos Deuses.

- Ah, os Deuses! - exclamou Hécuba, frenética. - Que Deus é esse que envia pesadelos insidiosos para destruir uma criancinha inocente, um bebê recém-nascido, ainda no berço? Entre meu povo, uma criança pertence à mãe, e ninguém, além dela, que a carregou por quase um ano e deu à luz, pode determinar seu destino; se ela se recusa a amamentar e criar a criança, é uma decisão sua. Que direito um homem tem sobre os filhos?

Ela não disse um mero homem, mas o tom da voz deixava isso implícito.

- O direito de um pai - afirmou Príamo, com firmeza. - Sou eu quem manda nesta casa e será feito como decidi... e tem de me obedecer, mulher!

- Não me chame de mulher com esse tom de voz! - protestou Hécuba, ressentida. - Sou uma cidadã livre e uma rainha, não uma de suas escravas ou concubinas!

Mesmo assim, no entanto, ela sabia que Príamo imporia sua vontade; ao optar pelo casamento com um homem dos que habitavam nas cidades e assumiam direitos sobre suas mulheres, compreendia que consentia nessa situação. Príamo levantou-se e deu uma peça de ouro à sacerdotisa; ela fez uma reverência e retirou-se.

Três dias depois Hécuba entrou em trabalho de parto e deu à luz gêmeos: primeiro um filho, depois urna filha, como um botão de rosa sucedendo ao outro, no mesmo ramo. Ambos eram saudáveis e bem formados, choravam vigorosamente, embora fossem tão pequenos que a cabeça do menino cabia na palma da mão de Hécuba; a garota era ainda menor.

- Olhe só para ele, meu senhor! - disse ela a Príamo, com veemência. - Não é mais do que um gatinho! E teme que isto tenha sido enviado por algum Deus para acarretar o desastre à nossa cidade?

- Há alguma verdade no que você diz - admitiu Príamo. - Afinal, sangue real é sangue real e sagrado, ele é o filho de um rei de Tróia. . . - Príamo refletiu por um momento. - Sem dúvida será suficiente que seja criado longe da cidade. Tenho um servo idoso e de confiança, um pastor nas encostas do monte Ida, que poderá criar o menino. Isso a contentará, minha esposa?

Hécuba sabia que a alternativa era o abandono do filho em alguma montanha; e ele era tão pequeno e frágil que morreria num instante.

- Que assim seja, em fome da Deusa - murmurou ela, resignada. Entregou o menino a Príamo, que o segurou desajeitado, como alguém que

não está acostumado a pegar bebês. Ele fitou os olhos do bebê e disse: - Saudações, meu filho.

Hécuba suspirou de alivio; depois de reconhecer formalmente uma criança, um pai não poderia matá-la nem abandoná-la para morrer. Heitor e Polixena haviam recebido permissão paia visitar e falar com a mãe. E agora Heitor perguntava:

- Dará a meu irmão um nome real, pai?

Príamo franziu o rosto, pensando no assunto, antes de anunciar: - Alexandros. E a menina será Alexandra.

Ele saiu, levando Heitor. Hécuba continuou deitada, com a menina de cabelos escuros na curva do braço, refletindo que poderia se confortar com o conhecimento de que o filho vivia, embora não pudesse criá-lo pessoalmente. Mas teria sua filha para cuidar. Alexandra, pensou ela. Eu a chamarei de Kassandra.

A princesa, que permanecera no aposento com as mulheres, agora se aproximava da cama. Hécuba perguntou-lhe:

- Gosta de sua irmãzinha, minha querida?

- Não - respondeu Polixena. - Ela é vermelha e feia, nem mesmo é tão bonita quanto minha boneca.

- Todos os bebês são assim quando nascem explicou Hécuba. - Você também era vermelha e feia. Mas logo ela será tão linda quanto você.

A criança amarrou a cara.

- Por que quer outra filha, mãe, quando já tem a mim?

- Porque se uma filha já é uma coisa boa, querida, com duas filhas se é duplamente abençoada.

- Mas o pai não achou que dois filhos eram melhores do que um - argumentou Polixena.

Hécuba recordou a profecia da mulher na rua. Em sua tribo, os gêmeos eram considerados por si mesmos um mau presságio e invariavelmente expostos à morte. Se não tivesse deixado a tribo, veria os dois filhos sendo sacrificados.

Hécuba ainda sentia uni resquício de medo supersticioso; o que poderia ter saído errado para que ela ganhasse duas crianças num só nascimento, como uma ninhada animal? Aquilo era o que as mulheres de sua tribo acreditavam que se deveria fazer; contudo, ela fora informada de que o verdadeiro motivo para o sacrifício dos gêmeos era apenas por ser praticamente impossível para uma mulher amamentar duas crianças na mesma ocasião. Seus gêmeos pelo menos não eram sacrificados à pobreza da tribo. Havia uma abundância de amas-de-leite em Tróia; poderia ficar com ambos, se Príamo não tivesse decidido de outra forma. Perdera um filho... mas pela bênção da Deusa, fora apenas um, não as duas crianças. Uma de suas mulheres murmurou, a voz quase inaudível:

- Príamo está louco! Mandar embora um menino e criar uma filha?

Entre meu povo, lembrou Hécuba, uma filha não é menos valiosa do que um filho; se esta pequena tivesse nascido em minha tribo, eu poderia criá-la para ser uma guerreira' Mas se nascesse em minha tribo, ela não viveria. Aqui, ela será apreciada apenas pelo valor que terá ao casar com algum rei, como aconteceu comigo.

Mas o que aconteceria com seu filho? Viveria na obscuridade como um pastor, por toda a sua vida? Talvez isto fosse melhor do que a morte, e o Deus que enviara o sonho - e assim se tornara responsável por seu destino - ainda poderia protegê-lo.

 

A luz, vinda do mar e da pedra branca, faiscava em clarões que doíam nos olhos. Kassandra estreitou os olhos protegendo-os da luz e puxou de leve a manga de Hécuba, indagando:

- Por que vamos ao templo hoje, mãe?

Secretamente, ela não se importava com o motivo. Era uma aventura rara poder deixar os aposentos das mulheres e, mais rara ainda, sair do palácio. Qualquer que fosse o destino, a excursão era bem-vinda. Hécuba respondeu, suavemente:

- Vamos orar para que a criança que terei neste inverno seja um filho.

- Por que, mãe? Já tem um filho. Pensei que gostaria de ter outra filha; afinal, só tem duas meninas. E eu preferia ter outra irmã.

- Não tenho a menor dúvida quanto a isso - comentou Hécuba, sorrindo. - Mas seu pai quer outro filho. Os homens sempre querem filhos, para que eles possam crescer, lutar em seus exércitos e defender a cidade.

- Há uma guerra?

- Não... não agora. Mas sempre há guerras, quando uma cidade é tão rica como Tróia.

- Mas se eu tivesse outra irmã ela poderia ser uma guerreira, como você foi quando era menina, aprender a usar armas e defender a cidade tão bem quanto qualquer filho. - Kassandra fez uma pausa, pensativa. - Acho que Polixena não poderia ser uma guerreira, pois é mole demais, muito tímida. Mas eu bem que gostaria de ser uma guerreira. Como você.

- Sei que você gostaria, Kassandra; mas este não é o costume para as mulheres de Tróia.

- Por que não?

- O que está querendo dizer com isso? Os costumes existem. Não precisam de uma razão.

Kassandra lançou um olhar cético para a mãe, mas já aprendera que não devia fazer perguntas quando a voz da mãe assumia aquele tom. Pensou secretamente que a mãe era a mulher mais linda e majestosa do mundo, alta e vigorosa, em seu corpete decotado e saia rodada, mas não mais acreditava que ela sabia de tudo, como a Deusa. Nos seis anos de sua vida, Kassandra ouvira algo similar quase todos os dias e acreditava menos e menos, a cada ano que passava; mas quando Hécuba falava assim, a menina sabia que não deveria insistir por uma explicação adicional.

- Fale-me do tempo em que era uma guerreira, mãe.

- Eu era da tribo nômade, das mulheres que andam a cavalo. - Hécuba estava sempre disposta a falar de sua vida pregressa... e mais ainda, refletiu Kassandra, desde que começara aquela última gravidez. - Nossos pais e irmãos também são cavaleiros e são de grande bravura.

- E são guerreiros?

- Não, criança; entre as tribos do cavalo, as mulheres são as guerreiras. Os homens são curandeiros e magos, conhecem todos os tipos de sabedoria e tudo sobre as árvores e ervas.

- Quando eu ficar mais velha, posso ir viver com eles?

- Com os centauros? Claro que não; as mulheres não podem ser adotadas na tribo de um homem.

- Eu estava falando de sua tribo, das mulheres guerreiras.

- Acho que seu pai não gostaria - respondeu Hécuba, refletindo que aquela filha tão pequena e solene poderia ter crescido para se tornar uma líder entre seu povo nômade. - Mas talvez se possa dar um jeito algum dia. Na minha tribo um pai só tem autoridade sobre os filhos homens. E a mãe que decide o destino de uma filha. Mas você teria de aprender a cavalgar e usar armas.

Ela pegou a mão pequena e macia, pensando que não era bem a mão de uma guerreira.

- Que templo é aquele... lá em cima? - indagou Kassandra, apontando para o terraço mais alto e indicando um prédio branco que refulgia ao sol.

Do lugar em que estavam, Kassandra, inclinando-se sobre o muro que guarnecia a escada sinuosa, podia olhar para baixo e contemplar os telhados do palácio, os vultos mínimos das mulheres estendendo roupas para secar, pequenas árvores em tinas, as cores intensas de suas vestimentas e as esteiras em que deitavam para descansar ao sol; e mais abaixo as muralhas da cidade, dominando a planície.

- E o templo de Palas Atena, a maior das Deusas do povo de seu pai. - É a mesma Grande Deusa, a que você chama de Mãe Terra?

- Todas as Deusas são uma só, assim como todos os Deuses também são um só; mas se apresentam com rostos diferentes à humanidade, em cidades diferentes e ocasiões diferentes. Aqui em Tróia, Palas Atena é a Deusa que se apresenta como a Virgem, porque em Seu templo, sob os cuidados de Suas virgens, está guardado o objeto mais sagrado que existe em nossa cidade. É chamado de Paládio.

Hécuba fez uma pausa, mas Kassandra, pressentindo uma história, manteve-se calada. Hécuba continuou, em tom reminescente:

- Contam que a Deusa Atena tinha uma companheira mortal quando era jovem, a virgem líbia chamada Palas. Quando ela morreu, Atena lamentou-se tão profundamente que resolveu adotar seu nome, passando a ser conhecida desde então como Palas Atena. Moldou uma imagem da amiga e instalou-a no Templo de Zeus, no Olimpo. Nessa ocasião, Erecteu, que era o rei de Creta... antepassado de seu pai, antes que o povo dele viesse para essa parte do mundo... possuía um vasto rebanho, de mil cabeças de gado da maior beleza. Bóreas, o filho do Vento Norte, amava os animais e visitava-os como um enorme touro branco. Esse gado sagrado tornou-se os Deuses Touros de Creta.

- Eu não sabia que os reis de Creta eram nossos antepassados.

- Há muitas coisas que você ignora - comentou Hécuba, em tom de censura, e Kassandra prendeu a respiração: a mãe estaria zangada demais para concluir a história? Mas a irritação de Hécuba foi fugaz e logo ela continuou: - Ilos, o filho de Erecteu, veio para estas praias e aqui participou dos jogos sagrados. Foi o vencedor e como prêmio ganhou cinqüenta rapazes e cinqüenta donzelas. Em vez de converter a todos em escravos, ele anunciou: "Eu os libertarei e com eles fundarei uma cidade." E assim ele partiu num navio, à mercê dos Deuses... e fez um sacrifício ao Vento Norte para que o conduzisse ao lugar certo para sua cidade, a que pretendia dar o nome de Ílion... que é outro nome da cidade de Tróia.

- E o Vento Norte o soprou para cá? - indagou Kassandra.

Não. Ele foi afastado de seu curso no mar por um remoinho e parou para descansar perto da foz do nosso sagrado Escamandro. Os Deuses enviaram uma daquelas vacas, uma linda novilha, filha do Vento Norte. Uma voz soou no ouvido de Ilos: "Segue a vaca! Segue a vaca! Onde a vaca deitar, ali constrói tua cidade!" E dizem que a vaca perambulou até a curva do rio Escamandro e ali deitou. Foi o lugar em que Ilos construiu a cidade de Tróia. Uma noite ele despertou ouvindo outra voz do Céu, dizendo: "Preserva a imagem que te dou; pois enquanto Palas aqui habitar, tua cidade jamais cairá." Ilos deparou então com a imagem de Palas, com uma roca numa das mãos e unia lança na outra, como a própria Atena. Assim, ao criar a cidade, ele construiu primeiro aquele templo, no lugar mais alto, consagrando-o a Atena... era então um rosto novo da Deusa, uma das grandes do Olimpo, reverenciada até mesmo pelos que honram os Deuses do Céu e o Tonante... ele a fez padroeira da cidade. E Ela nos concedeu as artes da tecelagem e as dádivas da videira e da oliveira, o vinho e o azeite.

- Mas não é para o Seu templo que estamos indo hoje, não é mesmo, mãe?

- Não, meu amor; embora a Deusa Virgem seja também padroeira dos nascimentos e eu devesse Lhe oferecer um sacrifício. Hoje vamos procurar o Senhor do Sol, Apolo, que é também o senhor dos oráculos. Ele matou a Grande Píton, a Deusa do Mundo Inferior, e tornou-se também o senhor do mundo inferior.

- Mas se a Píton era urna Deusa, como pôde ser morta?

- Acho que isso aconteceu porque o Senhor do Sol é mais forte do que qualquer Deusa.

As duas começaram a subir a colina no centro da cidade. Os degraus eram íngremes e Kassandra logo sentiu as pernas cansadas pelo esforço. Houve um momento em que olhou para trás; estavam tão alto, tão perto da morada do Deus, que ela podia ver por cima da muralha da cidade, contemplar os grandes rios que corriam pela planície e se juntavam num grande fluxo prateado que desaguava no

mar.

E de repente, por um momento, teve a impressão de que a superfície do mar estava coberta por uma sombra, que muitos navios balançavam nas ondas. Esfregou os olhos e perguntou:

- Aqueles são os navios de meu pai?

Hécuba também olhou para trás e perguntou:

- Que navios, não vejo nenhum navio. Está querendo fazer alguma brincadeira comigo?

- Não. Estou vendo mesmo. Olhe ali, um dos navios tem a vela cinzenta... Não, era o sol nos meus olhos. Não posso mais vê-los agora.

Kassandra sentia os olhos doídos, os navios haviam desaparecido - ou será que eles não passavam de um reflexo do sol na água?

Parecia-lhe que o ar estava muito claro, repleto de pequenas centelhas, como um tênue véu, que a qualquer momento poderia se romper ou dissipar, revelando um vislumbre de outro mundo além. Não podia se lembrar de jamais ter visto antes qualquer coisa parecida. Sentia, sem saber como, que os navios avistados estavam ali, naquele outro mundo. Talvez fossem algo que veria algum dia. Era bastante jovem para não pensar a respeito com estranheza. A mãe já seguia em frente e por algum motivo Kassandra concluiu que a incomodaria se tornasse a falar dos navios que avistara e que não mais podia ver agora. Partiu apressada no encalço da mãe, as pernas doloridas de subir os degraus.

O Templo de Apolo Hélio, o Senhor do Sol, ficava além da metade do caminho para o cume da colina em torno da qual se construíra a grande cidade de Tróia. Só era superado em altura pelo templo da Virgem Atena, lá em cima; mas era, incontestavelmente, o mais belo dos templos da cidade. Fora construído em mármore branco reluzente, com colunas altas nos lados, sobre uma base de cantaria, feita pelos Titãs - como Kassandra fora informada mais de uma vez - antes mesmo que os homens mais velhos da cidade tivessem nascido. A claridade era tão intensa que Kassandra protegeu os olhos com as mãos. Mas se aquela era a morada do Senhor do Sol, que outra natureza poderia ter senão a de uma luz intensa e perpétua?

No pátio exterior, onde os mercadores vendiam todas as coisas - animais para o sacrifício, pequenas estátuas de argila do Deus, alimentos e bebidas diversas -, a mãe comprou-lhe uma fatia de melão, que desceu com uma sensação deliciosa pela garganta de Kassandra, ressequida pela escalada longa e poeirenta. A área sob o pórtico do pátio seguinte era fresca e sombreada; ali, vários sacerdotes e funcionários reconheceram a rainha e acenaram para que se adiantasse.

- Seja bem-vinda, rainha - disse um deles -, e a pequena princesa também. Não gostaria de sentar aqui e descansar por um momento, até que a sacerdotisa possa recebê-la?

A rainha e a princesa foram conduzidas a um banco de mármore na sombra. Kassandra sentou em silêncio por um momento, ao lado da mãe, satisfeita por sair do calor; terminou de comer o melão e limpou as mãos na saia de baixo, depois olhou ao redor, à procura de um lugar para jogar a casca; não parecia certo largá-la ali no chão, à vista dos sacerdotes e sacerdotisas. Ela saiu do banco e encontrou um cesto em que havia uma porção de cascas de frutas; acrescentou a sua.

Deu a volta pela sala lentamente, especulando o que veria e em que a morada de um Deus era diferente da casa de um rei. Ali, é claro, era apenas a sala de recepção, onde as pessoas esperavam por uma audiência; havia um lugar assim no palácio, onde esperavam os que desejavam pedir um favor ao rei ou lhe oferecer um presente. Kassandra especulou se o Deus teria um quarto, onde dormia e se banhava. Deu uma espiada pela sala principal, calculando que devia ser a câmara de audiências do Deus.

Ele estava ali. As cores em que fora pintado eram tão naturais que por um instante Kassandra não percebeu que contemplava uma estátua. Parecia normal que um Deus fosse um pouco maior do que o normal, empertigado e rígido, exibindo um sorriso distante, mas afável. Kassandra esgueirou-se pela sala, aproximou-se do Deus; por um momento, julgou que o ouvira falar de fato, mas depois compreendeu que era apenas uma voz soando em sua mente.

- Kassandra - Ele falou, parecendo perfeitamente natural que um Deus soubesse seu nome, mesmo que não o tivessem dito -, você será Minha Sacerdotisa?

Ela sussurrou, sem saber ou se importar se falava em voz alta:

- Está me querendo, Senhor Apolo?

- Estou, sim; foi por isso que a chamei aqui.

A voz era profunda e majestosa, exatamente como Kassandra sempre imaginara que seria a voz de um Deus; e já lhe haviam dito que o Senhor do Sol era também o Deus da música e da canção.

- Mas sou apenas uma menina, ainda não tenho idade bastante para deixar a casa de meu pai.

- Ainda assim, eu lhe peço para lembrar, quando esse dia chegar, que você é Minha.

Por um instante, os grãos de poeira, dourados à luz inclinada do sol, se reuniram num grande raio de luz, através do qual parecia que o Deus se estendia para toca-la num contato ardente... e depois o brilho se desvaneceu, e Cassandra pôde ver que era apenas uma estátua, fria e imóvel, sem nada de parecido com o Apolo que lhe falara. A sacerdotisa se adiantara para conduzir a mãe até estátua. Kassandra puxou a mão de Hécuba e sussurrou, em voz firme:

- Está tudo bem. O Deus me disse. Ele lhe concederá o que pediu.

Ela não tinha a menor idéia do momento em que ouvira isso; simplesmente sabia que a criança no ventre da mãe era um menino - e se sabia o que antes ignorava, então só podia ter sido o Deus quem lhe dissera; assim, embora não tivesse ouvido a voz do Deus, sabia que era verdade o que acabara de falar.

Hécuba fitou-a com uma expressão cética, retirou a mão e entrou na outra câmara, acompanhando a sacerdotisa. Kassandra começou a inspecionar o lugar.

Ao lado do altar havia um pequeno cesto de junco e lá dentro, quando Kassandra espiou, uma insinuação de movimento. A princípio ela pensou que fossem gatinhos e se perguntou por quê, já que os gatos não eram sacrificados pelos Deuses. Olhando mais atentamente, percebeu que havia duas pequenas serpentes no cesto. As serpentes, Kassandra sabia, pertenciam a Apolo do Mundo Inferior. Sem parar para pensar, inclinou-se e pegou-as, uma em cada mão, aproximando-as do rosto. Eram macias, quentes e secas, um pouco escamosas sob os seus dedos, e não pôde resistir a beijá-las. Sentiu-se estranhamente exultante e um pouco enjoada, o pequeno corpo tremendo da cabeça aos pés.

Nunca soube por quanto tempo ficou agachada ali, segurando as serpentes, como também não poderia contar o que lhe disseram; sabia apenas que as escutara com uma atenção absoluta, durante todo o tempo.

E depois ouviu a voz da mãe num brado de temor e censura. Levantou os olhos, sorrindo.

- Está tudo bem - disse, olhando além da mãe para o rosto transtornado da sacerdotisa por trás de Hécuba. - O Deus disse que eu podia pegá-las.

- Largue-as, depressa - ordenou a sacerdotisa. - Não está acostumada a manipulá-las; as serpentes poderiam picá-las.

Kassandra fez uma carícia final nas serpentes e ajeitou-as gentilmente no cesto. Teve a impressão de que as serpentes relutavam em deixá-la, por isso inclinou-se e prometeu que voltaria para brincar com elas outra vez.

- Menina impossível e desobediente! - exclamou Hécuba, quando ela se levantou, segurando-a pelo braço e beliscando-a com força. Kassandra se afastou, perturbada; não podia se lembrar de qualquer outro momento anterior em que sua mãe se mostrasse tão zangada com ela como estava agora, e não podia imaginar o motivo de tamanho alvoroço por uma coisa assim. - Não sabia que serpentes são venenosas e perigosas?

- Mas elas pertencem ao Deus - argumentou Kassandra. - Ele não deixaria que me picassem.

- Você teve muita sorte - declarou a sacerdotisa, em tom solene.

- Mas você pega as serpentes e não tem medo - insistiu Kassandra. - Acontece que sou uma sacerdotisa e fui ensinada a manipulá-las. - Apolo disse que eu serei Sua sacerdotisa e que poderia tocá-las. A sacerdotisa fitou-a com o rosto franzido.

- Isso é verdade, criança?

- Claro que não é verdade - interveio Hécuba, bruscamente. - Ela inventou a história. Está sempre imaginando coisas.

Aquilo era tão injusto e injustificado que Kassandra começou a chorar. A mãe segurou-a firmemente pelo braço e levou-a para fora, empurrando-a à frente pelos degraus íngremes, tão rudemente que ela tropeçou e quase caiu. O dia parecia ter perdido o brilho dourado. O Deus se fora; Kassandra não podia mais sentir sua presença e sentiu vontade de chorar por isso, mais ainda do que pelo aperto doloroso da mãe em seu braço.

- Por que falou uma coisa assim? - Hécuba tornou a censurá-la. - É tão criança que não posso deixá-la sozinha por vinte minutos sem que se envolva em alguma travessura? Brincar com as serpentes do templo... não sabia que poderiam lhe fazer muito mal?

- Mas o Deus disse que não deixaria que as serpentes me machucassem - protestou Kassandra, obstinada.

A mãe beliscou-a mais uma vez, deixando uma equimose em seu braço. - Não deve fazer isso!

- Mas é verdade!

- Pare de bobagem! - gritou a mãe, furiosa. - Se algum dia voltar a falar assim, eu lhe darei uma surra!

Kassandra ficou em silêncio. O que acontecera, acontecera; não tinha o menor desejo de levar uma surra, mas conhecia a verdade e não podia negá-la. Por que a mãe não confiava nela? Sempre dizia a verdade.

Não podia suportar que a mãe e a sacerdotisa pensassem que mentia; enquanto descia calada os longos degraus, sem mais protestar, a mão segura pela mão maior da rainha, concentrou-se no rosto de Apolo, na voz gentil em sua mente. Sem que tivesse consciência disso, alguma coisa lá no fundo de seu ser já aguardava pelo som.

 

Na lua cheia seguinte, Hécuba deu à luz um menino, que seria seu último filho. Deram-lhe o nome de Troilo. Kassandra, de pé ao lado do leito da mãe, na câmara de nascimento, contemplou o rosto do irmãozinho e não ficou surpresa. Mas quando lembrou à sua mãe que soubera que seria um menino, desde o dia da visita ao templo, Hécuba reagiu com irritação:

- Então você sabia, mas acha mesmo que um Deus lhe falou? Está apenas tentando se fazer de importante e isso é uma coisa que não vou permitir. Afinal, não é mais tão pequena para assumir essa atitude infantil.

Mas isso, pensou Kassandra, furiosa, era o mais importante: ela soubera de fato; o Deus lhe falara. Então Ele falava às crianças? E por que isso devia deixar a mãe zangada? Ela sabia que a Deusa falava com a mãe; já vira a Senhora baixar sobre Hécuba ao ser invocada, na época da colheita e em sinal de bênção.

- O maior crime, Kassandra, é falar sobre um Deus qualquer coisa que não seja a verdade - declarou a rainha, muito séria. - Apolo é o Senhor da Verdade; se invocar Seu nome falsamente, Ele a punirá, e pode estar carta de que Sua ira é terrível.

- Mas estou dizendo a verdade: o Deus falou comigo!

A mãe suspirou em desespero, pois aquela situação também não era inédita.

- Sendo assim, creio que devo deixá-la aos cuidados Dele. Mas tenho de adverti-la para uma coisa: não fale a respeito disso com qualquer outra pessoa. Agora que havia outro príncipe no palácio, outro filho de Príamo com sua

rainha, houve regozijo por toda a cidade. Kassandra foi posta em segundo plano e se perguntou por que um príncipe deveria ser tão mais importante do que uma princesa. Não adiantava perguntar à mãe por que tinha de ser assim. Poderia perguntar à irmã mais velha, mas Polixena parecia não se preocupar com outra coisa além das conversas com as mulheres da corte sobre roupas bonitas, jóias e casamentos, o que parecia bastante insípido para Kassandra, embora lhe garantissem que também se mostraria interessada pelas coisas importantes na vida de uma mulher quando tivesse mais alguns anos. Não podia deixar de se perguntar por que tais coisas deveriam ser tão importantes. Sentia-se bastante disposta a contemplar belas roupas e jóias, mas não tinha o menor desejo de usá-las; preferia vê-las em Polixena ou em sua mãe. As camareiras da mãe achavam-na tão estranha quanto ela as julgava. Uma ocasião Kassandra se recusara obstinadamente a entrar num aposento, gritando.

- O teto vai cair!

Três dias depois houve um pequeno terremoto e o teto caiu.

À medida que o tempo passava e uma estação sucedia à outra, Troilo começou, primeiro, a engatinhar, depois, a andar e falar; mais cedo. do que Kassandra achava possível, o irmão estava quase tão alto quanto ela. Enquanto isso, Polixena se tornava mais alta do que Hécuba e era iniciada nos Mistérios das mulheres.

Kassandra ansiava intensamente pelo momento em que também seria reconhecida como uma mulher, apesar de refletir que isso não tornara Polixena mais sábia, sob qualquer aspecto. Depois que fosse iniciada nos Mistérios, o Deus tornaria a lhe falar? Nunca mais voltara a ouvir Sua voz, durante todos aqueles anos; talvez a mãe estivesse certa: ela apenas imaginara. Ansiava por ouvir aquela voz de novo, quanto mais não fosse para tranqüilizá-la de que fora real. Esse anseio, no entanto, era mesclado de relutância; ser uma mulher, ao que parecia, era mudar de forma irrevogável, a ponto de perder tudo o que fazia com que fosse ela própria. Polixena estava agora presa à vida nos aposentos das mulheres, embora parecesse bastante contente por isso; dava até a impressão de que nem mais se ressentia com a perda da liberdade, pois deixara de conspirar com Kassandra para uma escapada até a cidade.

Não demorou muito para que Troilo tivesse idade suficiente para ir dormir nos aposentos dos homens e ela própria completasse doze anos. Foi a ocasião em que Kassandra se tornou mais alta e compreendeu, por certas mudanças em seu corpo, que muito em breve seria incluída entre as mulheres do palácio e não mais teria permissão para ir aonde bem quisesse. Obediente, Kassandra deixou que a velha aia da mãe lhe ensinasse a fiar e tecer. Com a ajuda de Hesíone, a irmã solteira do pai, deixou-se persuadir a tecer uma túnica para sua boneca de argila, que ainda apreciava. Detestou o trabalho enfadonho, que deixou seus dedos doloridos,, mas sentiu orgulho de sua obra, quando ficou pronta.

Ocupava agora um aposento nos alojamentos das mulheres com Polixena, que estava com dezesseis anos e em idade de casar, e Hesíone, uma ativa jovem na casa dos vinte anos, com os cabelos crespos escuros e os olhos verdes brilhantes de Príamo. Sob as regras de comportamento aparentemente sem sentido fixadas pela mãe e Hesíone, Kassandra deveria permanecer dentro de casa e ignorar todas as coisas interessantes que poderiam estar ocorrendo no palácio ou na cidade. Mas havia dias em que tentava se esquivar à vigilância das mulheres, quando escapava sozinha para um dos seus esconderijos secretos.

Certa manhã, saiu sorrateira do palácio e seguiu pelas ruas que levavam ao Templo de Apolo.

Não tinha o menor desejo de subir ao templo propriamente dito, não experimentava a sensação de que o Deus a chamara. Disse a si mesma que saberia quando esse dia chegasse. Parou na metade da escalada e virou-se para contemplar o porto; foi nesse instante que avistou os navios. Eram iguais aos que vira no dia em que o Deus lhe falara; mas agora sabia que eram navios do sul, dos reinos dos akaios e de Creta. Vinham comerciar com os países hiperbóreos. Kassandra pensou, com um excitamento quase físico, que visitariam a terra do Vento Norte, de cujo sopro nasceram os grandes Deuses Touros de Creta. Ela gostaria de seguir para o norte com os navios, mas nunca poderia ir. As mulheres jamais tinham permissão para navegar nos grandes navios mercantes, que deveriam, ao subirem pelos estreitos, pagar um tributo ao rei Príamo e a Tróia. E olhando para os navios, sentiu um tremor, diferente de qualquer outra sensação física que já conhecera antes, percorrer todo o seu corpo...

Estava deitada num canto de um navio, subindo e descendo, ao movimento das ondas; nauseada, exausta e apavorada, machucada e dolorida; contudo, ao levantar os olhos para o céu, por cima da enorme vela que tremeluzia ao sol, constatava que estava muito azul, brilhando com o sol de Apolo. O rosto de um homem pairava acima dela, contemplando-a com um sorriso ameaçador, odioso, triunfante. Num momento de terror, isto ficou gravado para sempre em sua mente. Em toda a sua vida, Kassandra jamais conhecera o medo real ou a vergonha real, apenas o embaraço momentâneo por uma branda censura da mãe ou do pai; conhecia agora o máximo de ambos. Com uma parte de sua mente, sabia que nunca vira aquele homem, mas também sabia que nunca mais esqueceria aquele rosto, com seu grande nariz adunco, parecendo o bico de alguma voraz ave de rapina, os olhos faiscando cano os de um gavião, o sorriso cruel, o queixo se projetando numa expressão brutal; um semblante de barba preta que a enchia de medo e terror.

Num instante, entre una respiração e outra, a imagem se dissipou e Kassandra estava outra vez nos degraus, os navios distantes, na enseada lá embaixo. Um momento antes, no entanto, tinha certeza, estivera deitada num daqueles navios, uma cativa - o convés duro sob seu corpo, o vento salgado a envolvê-la, o agitar das velas, o ranger das tábuas. Sentiu outra vez o terror e a estranha exultação que não podia compreender.

Não tinha então como saber o que lhe acontecera ou por quê. Virou-se e olhou para o interior, para o lugar em que se erguia o Templo de Palas Atena, branco e alto; orou à Deusa Virgem para que tudo o que vira e sentira não passasse de alguma espécie de pesadelo em vigília. Ou algum dia aconteceria de fato - estaria cativa e machucada no navio, à mercê daquele homem feroz, de cara de gavião? Ele não parecia com qualquer troiano que Kassandra jamais vira.. .

Reprimindo, determinada, aquele horror - pesadelo? visão? -,,Kassandra contemplou o sagrado monte Ida. Em algum lugar, naquelas encostas - não, ela sonhara, nunca estivera nas encostas do Ida. Lá em cima estavam as neves eternas e lá embaixo as pastagens verdes em que, como lhe haviam dito, os muitos rebanhos de seu pai pastavam, aos cuidados de pastores. Kassandra esfregou os olhos, impaciente. Se ao menos pudesse ver o que estava além de sua visão...

Nem mesmo anos mais tarde, quando todas as coisas relacionadas com profecia e a Visão fossem como uma segunda natureza para ela, Kassandra jamais teria certeza do momento em que surgiria o súbito conhecimento e do que deveria fazer em seguida. Nunca alegava ou pensava que ouvira a voz do Deus; isso ela teria percebido e reconhecido no mesmo instante. Era simplesmente uma coisa que estava ali, uma parte do seu ser. Ela tornou a se virar agora e voltou apressada ao palácio. Passando por uma rua que conhecia, olhou quase ansiosa para a fonte; não, a água não estava bastante parada.

Avistou uma das camareiras de sua mãe no pátio exterior e escondeu-se atrás de uma estátua, temendo que a mulher estivesse à sua procura. Sempre havia um rebuliço agora, toda vez que ela saía dos alojamentos das mulheres.

Que absurdo! Ficar dentro de casa não ajudou Hesíone, pensou, sem entender o que isso significava. Um temor súbito invadiu-a à lembrança de Hesíone e não sabia o motivo, mas ocorreu-lhe que deveria alertá-la. Alertá-la? Contra o quê? Por quê? Não, de nada adiantaria. O que tem de acontecer acontecerá. Alguma coisa em seu íntimo fez com que desejasse correr para Hesíone (ou para a mãe, Polixena ou a aia, qualquer pessoa que pudesse atenuar aquele terror indefinido que deixava seus  joelhos tremendo e o estômago contraído). Mas qualquer que fosse a sua própria missão, era mais urgente para ela do que os perigos imaginários ou previstos para outra pessoa. Ainda estava agachada, escondida, por trás da coluna, mas a mulher já desaparecera. Fiquei corte medo de que ela me visse.

Com medo? Não! Não conheço mais o significado dessa palavra! Depois do terror daquela visão na enseada, Kassandra sabia que nada de somenos jamais a faria sentir medo. Ainda assim, não queria ser vista sob o - domínio daquela compulsão; alguém poderia impedi-la de fazer o que era necessário. Seguiu apressada para os alojamentos das mulheres e pegou uma tigela de argila, que encheu com água extraída da cisterna, ajoelhando-se na frente.

Olhando fixamente para a água, a princípio viu apenas o reflexo do próprio rosto, como se fosse um espelho. Depois, enquanto as sombras se deslocavam na superfície da água, Kassandra percebeu que era um rosto de menino que contemplava, muito parecido com o seu: os mesmos cabelos escuros e lisos, os mesmos olhos profundos, sombreados sob as pestanas compridas. O menino olhava além dela, fixando alguma coisa que Kassandra não podia ver.. .

Absorvido no cuidado com as ovelhas, o nome de cada uma conhecido, cada passo cauteloso; o conhecimento íntimo dos lugares em que se encontravam e do que é preciso fazer para cada uma, sob a orientação de alguma sabedoria secreta. Kassandra descobriu-se a desejar intensamente que lhe confiassem um trabalho tão responsável e significativo como aquele. Continuou ajoelhada diante da tigela por algum tempo, especulando por que fora levada a ver o menino e o que isso representava. Não tinha consciência das cãibras e do frio, não sabia que os joelhos doíam pela postura imóvel; observava com ele, partilhando sua irritação quando um animal tropeçava, partilhando a satisfação pelo sol, sua mente apenas encostando e deslizando pelos medos ocasionais - de lobos, de bestas maiores e mais perigosas... ela era aquele estranho menino, cujo rosto era o seu próprio reflexo. Perdida nessa apaixonada identificação, foi despertada por um clamor repentino:

- Socorro! Fogo! Assassinato! Estupro! Socorro!

Por um momento, ela pensou que era o menino quem gritava; mas logo percebeu que era uma espécie diferente de som, escutou com os ouvidos físicos; e isso arrancou-a do transe com um sobressalto.

Outra visão, mas esta sem dor nem medo. Será que vêm de um Deus? Ela voltou angustiada ao lugar em que se encontrava, o pátio dos alojamentos das mulheres.

E sentiu o cheiro de fumaça, enquanto a tigela que ainda fitava ficava turva, inclinava-se para o lado e a água escorria pelo chão. A imobilidade visionária se desvaneceu e Kassandra descobriu que podia se mexer.

Passos estranhos soaram no chão; ela ouviu a mãe gritar e saiu correndo para o corredor. Estava vazio, a não ser pelos gritos estridentes das mulheres. E depois ela avistou dois homens de armadura, com enormes elmos. Eram altos, mais do que seu pai ou do que seu irmão Heitor; enormes, peludos, de aparência selvagem, os cabelos dourados escorrendo sob os elmos; um deles carregava no ombro uma mulher a berrar. Em choque e horror, Kassandra reconheceu a mulher: sua tia Hesíone.

Kassandra não tinha a menor idéia do que estava acontecendo nem por quê; ainda se encontrava meio apartada em sua visão. Os soldados passaram correndo por ela, tão perto e tão depressa que um deles quase a derrubou. Ela foi correndo atrás, com uma vaga noção de que poderia de alguma forma ajudar Hesíone; mas eles já tinham ido, descendo os degraus do palácio. Como se sua' visão interior os seguisse, ela viu Hesíone, ainda gritando, ser levada através da cidade. As pessoas se afastavam à frente dos intrusos. Era como se o olhar dos homens possuísse a qualidade da cabeça da Górgona, que transformava as pessoas em pedra - não apenas deviam evitar olhar os akaios, como também sequer deviam ser vistas por eles.

Houve um clamor terrível na parte inferior da cidade e parecia que todas as mulheres do palácio, como um coro, acompanharam os gritos.

O alarido se prolongou por algum tempo, depois definhou para gemidos desesperados. Kassandra partiu à procura da mãe - subitamente assustada e culpada por não pensar antes que Hécuba também poderia ter sido levada. A distância, podia ouvir os sons estrepitosos do combate, os gritos de guerra dos homens de seu pai, lutando com os intrusos que voltavam para seus navios. De alguma forma, Kassandra sabia que a luta seria em vão.

É o que eu vi, o que eu senti, o que acontecerá com Hesíone? Aquele homem terrível de rosto aquilino - ele a levará como sua cativa? Será que eu vi - e, pior ainda, senti - o que acontecerá com ela?

Não sabia se devia torcer para que ela própria não sofresse, ou sentir-se envergonhada por desejar que tudo acontecesse apenas com sua jovem e amada tia.

Entrou no quarto da mãe, onde Hécuba estava sentada, branca como a morte, com o pequeno Troilo no colo.

- Finalmente apareceu, menina travessa - disse uma das aias. – Ficamos com medo de que os atacantes akaios a tivessem levado também.

Kassandra correu para a mãe e ajoelhou-se ao seu lado, sussurrando: - Vi quando levaram tia Hesíone. O que acontecerá com ela?

- Eles a levarão para sua terra e a manterão ali, até que seu pai pague o resgate - respondeu Hécuba, secando as lágrimas.

Soaram junto da porta os passos fortes que Kassandra sempre associava com o pai. Príamo entrou na câmara, equipado para o combate, com algumas tiras da couraça ainda soltas, como se tivesse se armado muito depressa.

Hécuba levantou os olhos e divisou por trás de Príamo o vulto armado de Heitor, uni esguio guerreiro de dezenove anos.

- Está tudo bens com você e as crianças, meu amor? - perguntou o rei. - Seu filho mais velho lutou hoje ao meu lado, como um autêntico guerreiro.

E Hesíone? - indagou Hécuba.

- Ela se foi. Havia muitos para nós e voltaram aos navios antes que pudéssemos alcançá-la. Sabe muito bem que eles não estão interessados pela mulher; só a levaram porque é minha irmã e pensam que assim poderão obter concessões e isenção dos tributos do porto... isso é tudo.

Ele largou a lança com uma expressão de repulsa. Hécuba chamou Heitor e cumulou-o de atenções, até que ele recuou e disse, irritado:

- Já chega, mãe, não sou mais o menino pequeno agarrado em suas saias!

- Devo pedir vinho, meu senhor? - perguntou Hécuba, largando a criança e levantando-se, respeitosa.

Mas Príamo sacudiu a cabeça.

- Não precisa se incomodar. Só vim até aqui porque achei que gostaria de saber que seu filho comportou-se de maneira honrosa e saiu ileso de sua primeira batalha.

O rei se retirou e Hécuba murmurou:

- Batalha coisa nenhuma! Ele mal pode esperar para se encontrar com sua mais nova mulher, que lhe servirá vinho sem mistura e o deixará doente! Quanto a Hesíone... como se ele se incomodasse com a irmã! Desde que não perturbem sua preciosa frota mercante, os akaios podem levar a todos nós e boa viagem!

Kassandra sabia que era melhor não fazer nenhuma pergunta à mãe no momento; mas naquela noite, quando se reuniram no vasto refeitório do palácio (pois Príamo ainda mantinha o costume antigo, pelo qual homens e mulheres comiam juntos, em vez de aderir à nova moda, em que as mulheres faziam as refeições em separado, nos seus alojamentos - "a fim de que as mulheres não precisem aparecer na presença de homens estranhos", como explicavam os escravos akaios), ela esperou que Príamo ficasse de bom humor, partilhando o seu melhor vinho com Hécuba e chamando Polixena, que era sempre mais mimada, para sentar ao seu lado. Kassandra então se adiantou e Príamo, indulgente, fez sinal para que ela chegasse mais perto.

- O que você quer, Olhos Brilhantes?

- Apenas fazer uma pergunta, pai, sobre algo que vi hoje.

- Se é sobre tia Hesíone...

- Não, senhor, mas acha que os akaios pedirão resgate por ela?

- Provavelmente não. É bem possível que um deles case com Hesíone e tente reivindicar seus direitos sobre Tróia por isso.

- Que coisa horrível para ela! - sussurrou Kassandra.

- Não é tão ruim assim, no final das contas. Ela terá um bom marido entre os akaios e isso talvez protele a guerra pelos direitos de comércio. Muitos casamentos se realizavam assim nos tempos antigos.

- Mesmo assim, é pavoroso! - comentou Polixena, timidamente. - Eu não gostaria de ir tão longe de casa para chegar ao casamento. E preferia ter um casamento direito, não ser raptada dessa maneira!

- Tenho certeza de que podemos providenciar um bom casamento para você, mais cedo ou mais tarde - disse Príamo, ainda indulgente. - Há aquele parente de sua mãe, o jovem Akiles... ele já demonstra, pelo que dizem, que será um poderoso guerreiro...

Hécuba interveio, sacudindo a cabeça:

- Akiles já foi prometido à sua prima Deidaméia, filha de Licomedes; e eu não gostaria que minha filha se ligasse a gente assim.

- Mas se ele vai conquistar fama e glória... Eu soube que o rapaz já é um grande caçador de leões e javalis. Ficaria contente em tê-lo como genro. - Príamo suspirou. - Mas há bastante tempo ainda para pensar em maridos e casamentos para as meninas. O que viu hoje, pequena Kassandra, que queria me perguntar?

No instante mesmo em que as palavras passaram por seus lábios, Kassandra sentiu que talvez devesse-se manter em silêncio; que não deveria falar sobre o que vira na tigela; mas sua confusão e ânsia de conhecimento eram tão grandes que não pôde se conter. As palavras saíram impetuosas:

- Pai, quem é o menino que eu vi hoje, com um rosto exatamente igual ao meu?

Príamo fitou-a com uma expressão tão furiosa que ela estremeceu em terror. Ele olhou por cima de sua cabeça para Hécuba e indagou, em voz ameaçadora:

- Para onde a levou?

Hécuba fitou-o aturdida e murmurou:

- Não a levei a parte alguma. Não tenho a menor idéia do que ela está falando.

- Venha até aqui, Kassandra. - Príamo franziu o rosto, sombriamente, enquanto tirava Polixena de seu joelho. - Fale-me mais sobre isso. Onde viu o menino? Ele estava na cidade?

- Não, pai. Só o vi na água da adivinhação. Ele cuida das ovelhas no monte Ida e é muito parecido comigo.

Ela estava assustada com a mudança abrupta no rosto do pai. E Príamo rugiu:

- Mas o que você estava fazendo com a água da adivinhação, sua pequena terrível?

Ele virou-se para Hécuba, com um gesto de raiva; por um momento, Kassandra pensou que o pai poderia agredir a rainha.

- É culpa sua! Deixo a criação das meninas aos seus cuidados e aqui está uma de minhas filhas se envolvendo com adivinhação e bruxaria, oráculos e outras coisas assim...

- Mas quem é ele? - insistiu Kassandra, pois sua necessidade de uma resposta era maior do que o medo. - E por que ele se parece tanto comigo?

A reação do pai foi um rugido sem palavras e um tapa no rosto, que vibrou tanta força que ela perdeu o equilíbrio e escorregou pelos degraus perto do trono, caindo e batendo com a cabeça. Hécuba gritou indignada, correndo para socorrê-la:

- O que você fez com minha filha, seu grande bruto?

Príamo lançou um olhar furioso para a esposa e levantou-se, cada vez mais irado. Ergueu a mão para agredi-la e Kassandra protestou, entre soluços:

- Não! Não bata na minha mãe! Ela não fez nada! - À margem de seu campo de visão, ela avistou Polixena, contemplando a todos com os olhos arregalados, mas assustada demais para falar. Kassandra pensou, com mais desdém do que raiva: Ela ficaria de lado e deixaria que o rei batesse em nossa mãe? - Não foi culpa da mãe, ela nem sabia! - acrescentou Kassandra. - Foi o Deus que disse que eu poderia... Ele disse que eu seria Sua sacerdotisa quando crescesse e foi Ele quem me ensinou a usar a tigela da adivinhação...

- Cale-se! - ordenou Príamo, olhando por cima de sua cabeça para Hécuba. Não podia imaginar por que o pai estava tão zangado. - Não permitirei qualquer bruxaria no meu palácio, Hécuba - está me entendendo? - disse Príamo... Mande-a para ser adotada, antes que ela espalhe esse absurdo para as outras moças, as que são recatadas e virginais...

O rei olhou ao redor e sua expressão abrandou ao fitar a tímida Polixena. Depois, lançou outro olhar furioso para Kassandra, que continuava agachada, segurando a cabeça a sangrar. Sabia agora que havia realmente algum segredo a envolver o menino cujo rosto ela vira na superfície da água.

Ele não queria falar sobre Hesíone. Ele não se importa. Já é suficiente para ele que Hesíone case com um dos invasores que a levaram. O pensamento, somado ao medo e vergonha da visão - se é que fora isso mesmo - levou Kassandra a experimentar um medo súbito. O pai não vai me contar. Nesse caso, terei de perguntar ao Senhor Apolo.

Ele sabe ainda mais do que o pai. E Ele me disse que eu seria Sua sacerdotisa; se fosse eu e não Hesíone, Ele não permitiria que aquele homem me arrebentasse. Para o pai, é suficiente que Hesíone venha a casar-se; mas se aquele homem me levasse, ele consentiria num casamento assim? A visão do homem com o rosto de águia nunca mais a abandonaria. Para bloqueá-la, porém, Kassandra fechou os olhos e tentou evocar mais uma vez a voz sonora do Senhor do Sol, dizendo: Você é Minha.

 

As equimoses de Kassandra ainda estavam amareladas e esverdeadas, a lua se tornara um estreito crescente. Achava-se de pé ao lado da mãe, observando-a

guardar algumas de suas túnicas numa bolsa de couro, junto com as sandálias novas e um manto grosso para o inverno.

- Mas ainda não é inverno - objetou Kassandra.

- Faz mais frio nas planícies - explicou Hécuba. - Vai precisar para cavalgar, meu amor.

Kassandra encostou-se na mãe e murmurou, quase em lágrimas: - Não quero sair de perto de você.

- Também sentirei saudade, mas acho que será feliz - respondeu Hécuba. - Eu bem que gostaria de ir com você.

- Então por que não vai, mãe?

- Seu pai precisa de mim.

- Não precisa, não. Ele tem as outras mulheres. Pode passar sem você.

- Sei disso - comentou Hécuba, fazendo uma pequena careta. - Mas não quero deixá-lo para elas; não são tão cuidadosas com sua saúde e honra quanto eu. Além disso, seu irmão pequeno precisa de mim.

Não fazia sentido para Kassandra; afinal, Troilo fora despachado para os alojamentos dos homens no Ano Novo. Mas se a mãe não desejava ir, não havia nada que ela pudesse dizer. Kassandra esperava nunca ter filhos, se isso significava jamais fazer o que se desejava. Hécuba levantou a cabeça, ouvindo sons no pátio.

- Acho que elas estão chegando.

Ela pegou a mão de Kassandra e desceram juntas a longa escada. Muitas pessoas estavam reunidas ali, olhando aturdidas para as mulheres que entraram no pátio em seus cavalos, brancos, baios e pretos. A líder, uma mulher alta, de rosto pálido e sardento, desmontou pela traseira do cavalo e correu para abraçar Hécuba.

- Irmã! - gritou ela. - Que alegria tornar a vê-la! - Hécuba apertou-a e Kassandra ficou espantada ao ver a mãe tão austera rindo e chorando ao mesmo tempo. Depois de um momento, a estranha alta soltou-a e disse: - Você engordou e ficou flácida de tanto viver dentro de casa, e sua pele está tão branca que até podia ser um fantasma!

- Estou tão ruim assim? - indagou Hécuba.

A mulher fitou-a com o rosto franzido e perguntou:

- E estas são suas filhas? Também são camundongas que não saem de casa?

- Terá que decidir isso por si mesma - respondeu Hécuba, fazendo um sinal para que as filhas se adiantassem. - Esta é Polixena. Já tem dezesseis anos.

- Parece muito frágil para uma vida ao ar livre como a nossa, Hécuba. Talvez você a tenha mantido dentro de casa por tempo demais. Mas faremos o que for possível por ela e a devolveremos saudável e forte.

Polixena encolheu-se por trás da mãe e a amazona alta soltou uma risada.

- Não?

- Não - confirmou Hécuba. - Levará a pequena, Kassandra.

- A pequena? Quantos anos ela tem?

- Doze. Kassandra, minha filha, venha cumprimentar sua parenta, Pentesiléia, a chefe de nossa tribo.

Kassandra observou atentamente a mulher mais velha. Ela era um palmo mais alta do que Hécuba, que já era alta para uma mulher. Usava um gorro de couro pontudo, sob o qual Kassandra podia ver os anéis de cabelos dourados, e uma túnica curta e apertada; as pernas eram compridas e esguias, nos culotes de couro, que terminavam logo abaixo dos joelhos. O rosto era fino e vincado, a pele não apenas estava escurecida pelo sol, mas também salpicada por incontáveis sardas de um marrom claro. Parecia mais um guerreiro do que uma mulher, pensou Kassandra; mas seu rosto era bastante parecido com o de Hécuba para que a menina não tivesse a menor dúvida de que era mesmo sua parenta. Pentesiléia sorriu jovialmente para Kassandra.

- Acha que vai gostar de ir com a gente? Não está assustada? Acho que sua irmã está com medo de nossos cavalos.

- Polixena tem medo de tudo - explicou Kassandra. - Quer ser o que meu pai chama de uma boa moça.

- E você não quer a mesma coisa?

- Não, se isso significa passar o tempo todo dentro de casa. - Kassandra viu Pentesiléia sorrir e acrescentou: - Qual é o nome do seu cavalo? Ele morde?

- Ela se chama Corredora e até hoje nunca me mordeu. Pode fazer amizade com ela, se for capaz.

Kassandra adiantou-se corajosa e estendeu a mão, como fora ensinada a fazer com um cachorro estranho, a fim de que ela pudesse farejá-la.

A égua abaixou a enorme cabeça e resfolegou. Kassandra afagou o focinho sedoso e fitou os olhos grandes e afetuosos; e sentiu que já conquistara uma amiga entre aquelas estranhas.

- Está pronta então para vir conosco? - perguntou Pentesiléia. - Oh, sim! -? inspirou com veemência.

O rosto fino e severo de Pentesiléia pareceu mais amigável quando ela sorriu.

- Acha que pode aprender a cavalgar?

Amigável ou não, a égua parecia muito grande, muito distante do chão; mas Kassandra declarou, bravamente:

- Se você foi capaz de aprender e minha mãe também, acho que não há motivo para que eu não possa.

- Não quer subir para os alojamentos das mulheres e tomar um refresco antes da partida? - indagou Hécuba.

- Claro, se você arrumar alguém para- cuidar de nossos animais - respondeu Pentesiléia.

Hécuba chamou um servo e ordenou que levasse a égua e os outros animais de suas duas companheiras para os estábulos. A líder das amazonas apresentou as outras duas mulheres, vestidas iguais a ela, como Cárites e Melissa. Cárites era esguia e pálida, quase tão sardenta quanto a rainha, mas tinha os cabelos da cor do bronze; Melissa tinha cabelos encrespados e castanhos, era roliça, as faces rosadas. Kassandra concluiu que deviam ter quinze ou dezesseis anos. Imaginou que podiam ser filhas de Pentesiléia, mas era tímida demais para perguntar.

Subindo para os alojamentos das mulheres, Kassandra se perguntou por que nunca percebera antes como era escuro lá dentro. Hécuba ordenara que as servas providenciassem vinho e doces. Enquanto as mulheres comiam e bebiam, Pentesiléia chamou Kassandra e disse:

- Se vai cavalgar com a gente, minha cara, então deve estar vestida direito. Trouxemos um culote de couro para você. Cárites a ajudará a vesti-lo. E vai precisar de um manto quente, pois esfria depressa depois que o sol se põe.

- A mãe já me providenciou um manto quente - informou Kassandra.

Ela foi com Cárites para o seu aposento, a fim de buscar as coisa s que a mãe arrumara. O culote de couro era um pouco grande e Kassandra sentiu curiosidade de saber quem o teria usado antes, pois estava lustroso no fundilho pelo uso prolongado. Mas era surpreendentemente confortável, depois que se acostumou com a rigidez contra suas pernas. Refletiu que agora poderia correr como o vento, sem tropeçar nas saias. Estava passando o cinto de couro pelas presilhas quando ouviu os passos do pai e sua voz efusiva:

- Ora, cunhada, veio até aqui para levar meus exércitos a Micenas e resgatar Hesíone? E que esplêndidos animais! Eu os vi no estábulo. Como os cavalos imortais do rebanho de Posêidon! Onde os encontrou?

- Compramos de Idomeneu, o rei de Creta - informou Pentesiléia. - E não sabemos nada sobre Hesíone. O que aconteceu?

- Os homens de Agamenon de Micenas, ou pelo menos é o que pensamos - respondeu Príamo. - De qualquer forma, foram atacantes akaios. Os rumores dizem que Agamenon é um rei violento e cruel. Nem mesmo os seus próprios homens o amam, mas todos o temem.

- Ele é um guerreiro poderoso - comentou Pentesiléia. - Espero ter um dia a oportunidade de encontrá-lo em combate. Se não levar pessoalmente seus exércitos a Micenas para recuperar Hesíone, basta esperar para que eu convoque minhas mulheres. Terá de nos providenciar navios, mas garanto que trarei Hesíone de volta antes da próxima lua nova.

- Se fosse viável enfrentar os akaios agora, eu não precisaria de nenhuma mulher para comandar meu exército - respondeu Príamo, amarrando a cara. - Prefiro esperar para saber quais serão as exigências que vão me apresentar.

- E o que será de Hesíone nas mãos de Agamenon? - indagou Pentesiléia. - Vai abandoná-la? Sabe muito bem o que acontecerá com ela entre os akaios!

- De um jeito ou de outro, eu teria de arrumar um marido para ela - disse Príamo. - Isso pelo menos me poupa um dote, pois Agamenon, se ficar com ela, não terá a insolência de pedir um dote por uma prisioneira de guerra.

Pentesiléia franziu o cenho, e Kassandra estava muito chocada: Príamo era rico, por que haveria de regatear um dote?

- Príamo, Agamenon já tem uma esposa - disse Pentesiléia. - É Klitemnestra, a filha de Leda e seu rei, Tindareu. Ela deu uma filha a Agamenon e a esta altura a menina já deve estar com sete ou oito anos. Não posso acreditar que haja tanta escassez de mulheres na Akaia para que tenham de usar o recurso de raptá-las... nem que Agamenon esteja tão necessitado de uma concubina que tivesse de tomar uma à força, quando pode possuir a filha de qualquer chefe em seu reino.

- Então ele casou com a filha de Leda? - Príamo franziu o rosto por um momento. - É a mesma que era tão linda, pelo que dizem, que Afrodite ficou com ciúme e o pai teve de escolher entre quase quarenta pretendentes?

- Não - respondeu Pentesiléia. - Eram gêmeas, o que é sempre um infortúnio. Uma era Klitemnestra; a outra filha, a beldade, era Helena. Agamenon conseguiu persuadir Leda e Tindareu, e não posso imaginar como isso foi possível, a casarem Helena com seu irmão, Menelau, enquanto ele casava com Klitemnestra.

- Não invejo Menelau - comentou Príamo. - Um homem é amaldiçoado

quando tem uma mulher bonita. - Ele sorriu para Hécuba. - Agradeço a todos os Deuses porque você nunca me acarretou esse tipo de problema, minha cara. E suas filhas também não são perigosamente bonitas.

Hécuba olhou friamente para o marido. Pentesiléia apressou-se em acrescentar:

Isso pode ser uma questão de opinião. Mas pelo que sei de Agamenon, a menos que os rumores sejam falsos, ele não está muito interessado na beleza da mulher. Sua preocupação é com o poder: por intermédio das filhas de Leda, ele acha que pode reivindicar toda Micenas, inclusive Esparta, assumindo o título de

rei. E calculo que depois ele tentará conquistar mais poder para o. norte, o que o levará a olhar para sua cidade, a bela Tróia.

- Creio que estão tentando me forçar a negociar com eles, reconhecê-los como reis, o que farei quando Cérbero abrir seus portões e deixar os mortos saírem do reino de Hades.

- Duvido que eles queiram ouro - comentou Pentesiléia. - Há ouro bastante em Micenas... embora se diga que Agamenon é um homem ganancioso. Se quer saber minha opinião, eu diria que Agamenon vai exigir o direito de comércio e navegação por aquele estreito. . . - disse ela apontando para o mar - ...sem o pagamento de qualquer tributo.

- Isso jamais acontecerá - declarou Príamo. - Um Deus trouxe meu povo para cá, até as margens do Escamandro. Quem quer que deseje seguir além, para a terra do Vento Norte, deve pagar um tributo aos Deuses de Tróia. - Ele fez uma pausa, olhando irritado para Pentesiléia e indagando em seguida: - Qual é o seu interesse nisso? O que uma mulher tem a ver com o governo das terras e o pagamento de tributos?

Também habito em terras que os atacantes akaios costumam invadir - respondeu a rainha das amazonas. - E se roubarem uma só de minhas mulheres, eu os farei pagar bem caro, não em ouro ou dote apenas, mas em sangue. E como você não foi capaz de evitar que raptassem sua irmã, eu repito minha oferta: todas as minhas guerreiras estão à sua disposição, se quiser levá-las contra esses piratas.

Príamo riu, mas mostrou os dentes ao fazê-lo, o que permitiu que Kassandra compreendesse que o pai estava furioso, embora não manifestasse sua raiva a Pentesiléia.

- No dia em que eu precisar recorrer a mulheres para defender a cidade, parentes ou não, Tróia estará nas últimas - declarou ele. - E que esse dia esteja muito distante.

Ele virou-se e deparou com Kassandra, vestida com o culote de, couro e o manto grosso, a entrar na sala.

- O que é isso, filha? Por que está mostrando as pernas, como um menino? Resolveu se tornar uma amazona, Olhos Brilhantes?

Ele parecia surpreendentemente afável, mas Hécuba apressou-se em dizer:

- Ordenou que eu a mandasse para ser adotada longe da cidade, marido, e achei que a tribo de minha irmã era um lugar tão bom quanto outro qualquer.

- Descobri que você é a melhor das esposas, não importa de onde veio. Não tenho a menor dúvida de que sua irmã será muito boa para ela.

Príamo inclinou-se para a filha. Kassandra encolheu-se, como se esperasse outro golpe, mas ele limitou-se a beijá-la na testa, gentilmente.

- Seja uma boa menina e não se esqueça de que é uma princesa de Tróia.

Hécuba abraçou Kassandra, apertando-a com toda força.

- Sentirei sua falta, filha. Seja uma boa menina e volte para mim sã e salva, minha querida.

Kassandra agarrou-se à mãe, 'esquecendo o rigor anterior de Hécuba, consciente apenas de que iria embora agora, para viver entre pessoas estranhas. Depois de um momento, Hécuba soltou-a e disse:

- Quero lhe dar as minhas próprias armas, filha.

Ela entregou a espada com o formato de uma folha dentro de uma bainha verde e uma lança curta, de ponta de metal. Eram quase pesadas demais para levantar, mas Kassandra conseguiu prender os cintos em sua cintura, recorrendo a toda a sua força e orgulho.

- Eram minhas quando eu cavalgava com as amazonas - acrescentou Hécuba. - Use-as com força e honra, minha filha.

Kassandra piscou para tentar reprimir as lágrimas que se formavam em seus olhos. Príamo franzia o rosto, mas Kassandra já se acostumara à desaprovação do pai. Com uma atitude de desafio, pegou a mão que Pentesiléia lhe estendia. Afinal, a tia não podia ser muito diferente de sua mãe.

Quando as amazonas foram pegar seus cavalos no pátio inferior, Kassandra ficou desapontada ao ser levantada para a garupa de Corredora, por trás de Pentesiléia.

- Pensei que teria meu próprio cavalo - murmurou ela, com os lábios trêmulos.

- Terá seu cavalo quando aprender a montar, minha criança, mas não temos tempo para ensinar agora. Queremos estar longe desta cidade antes do cair da noite; não nos agrada dormir entre paredes e não desejamos acampar em terras dominadas pelos homens.

Fazia sentido para Kassandra; seus braços enlaçaram a cintura fina da mulher e elas partiram.

Durante os primeiros minutos ela teve de concentrar toda a sua força e atenção para se segurar, balançando para cima e para baixo com os movimentos do animal sobre as pedras. Depois, começou a adquirir a noção de deixar o corpo solto, ajustando-se ao movimento. Passou então a olhar ao redor, contemplando a cidade daquela nova perspectiva. Teve tempo para lançar um rápido olhar para trás e observar o palácio lá no alto; e logo estavam fora das muralhas da cidade, descendo para as águas verdes do Escamandro.

- Como vamos atravessar o rio, senhora? - perguntou ela, inclinando a cabeça para a frente, perto do ouvido de Pentesiléia. - Os cavalos sabem nadar? A mulher virou um pouco a cabeça.

- Claro que sabem, mas não precisarão nadar hoje. Há um vau a uma hora de viagem daqui, rio acima.

Ela comprimiu os calcanhares de leve contra os flancos da égua que passou a correr tão depressa que Kassandra precisou se segurar com toda a sua força. As outras mulheres corriam juntas e Kassandra sentiu uma exultação percorrer todo o seu corpo. Estava um pouco abrigada do vento por trás de Pentesiléia, mas os cabelos compridos esvoaçavam ao vento tão intensamente que por um momento teve dúvidas se conseguiria outra vez escová-los e arrumá-los. Mas não importava; na emoção da cavalgada, esqueceu isto no instante seguinte.

Já estavam cavalgando há algum tempo quando Pentesiléia puxou o animal subitamente e assobiou, um som estridente, como o de alguma estranha ave.

De um pequeno bosque cerrado à frente saíram três cavalos, montados por amazonas.

- Saudações - disse uma delas. - Vejo que saiu ilesa da casa de Príamo. Demorou tanto que já começávamos a estranhar. Como está nossa irmã?

- Muito bem, mas se tornou gorda, velha e consumida de tanto ter filhos na casa do rei - respondeu Pentesiléia.

- É essa a menina que vamos criar... a filha de Hécuba? - perguntou outra mulher.

- E, sim - confirmou Pentesiléia, virando a cabeça para Kassandra. - E se ela for de fato filha de quem é, será mais do que bem-vinda entre nós.

Kassandra sorriu timidamente para as recém-chegadas, uma das quais estendeu os braços e inclinou-se para abraçá-la, comentando.

- Eu era a melhor amiga de sua mãe quando éramos pequenas.

Elas seguiram em frente, a caminho do brilho do rio Escamandro. O crepúsculo se adensava ao pararem os animais junto do vau; à última claridade do sol, Kassandra pôde ver os reflexos dos raios solares nas corredeiras, as pedras afiadas no fundo, onde o rio corria rápido e raso. Soltou uma exclamação atordoada quando a égua desceu pela margem íngreme para a água e foi mais uma vez advertida para que se segurasse com firmeza:

- Se cair, será muito difícil resgatá-la antes que seja despedaçada.

Não querendo cair sobre aquelas pedras pontiagudas, Kassandra segurou-se com toda força. Não demorou muito para que a égua estivesse subindo pela margem no outro lado. Continuaram a galopar durante os poucos minutos de claridade que ainda restavam. Pararam finalmente, reuniram os animais num círculo e desmontaram.

Kassandra observava, fascinada, enquanto uma das mulheres, sem qualquer discussão a respeito, acendia uma fogueira e outra tirava uma tenda da bolsa em sua sela e começava a armá-la. Não demorou muito para que houvesse carne seca borbulhando num caldeirão, exalando um aroma apetitoso.

Ela estava com o corpo tão rígido que cambaleou como uma velha ao tentar se aproximar do fogo. Cárites começou a rir, mas Pentesiléia fitou-a de cara amarrada.

- Não zombe da criança; ela não se lamuriou e foi uma longa viagem para uma pessoa que não está acostumada a andar a cavalo. Você não se comportou melhor quando veio para nós. Pegue alguma coisa para ela comer.

Cárites mergulhou uma concha no ensopado e serviu-o a Kassandra, numa tigela de madeira.

- Obrigada - murmurou Kassandra, enfiando a colher de chifre, que lhe deram, na mistura. - Podem me dar também um pedaço de pão, por favor?

- Não temos nenhum - respondeu Pentesiléia. - Não temos colheitas, vivendo de um lado para outro, com nossas tendas e rebanhos.

Uma das mulheres despejou uma coisa branca e espumante em sua tigela; Kassandra provou.

- É leite de égua - explicou a mulher que se apresentara como Elaria, a amiga de Hécuba.

Kassandra tomou a mistura, curiosa, sem saber se apreciava o gosto ou a idéia; mas as outras mulheres também tomaram e por isso ela concluiu que não poderia lhe fazer mal algum. Elaria riu, observando a expressão cautelosa de repulsa reprimida no rosto de Kassandra. E comentou:

- Tome tudo e se tornará forte e livre como nossas éguas, com uma crina igualmente sedosa. - Ela afagou os compridos cabelos escuros de Kassandra. - Você será minha filha adotiva, enquanto viver conosco. Ficará em minha tenda quando chegarmos à aldeia. Tenho duas filhas que serão suas amigas.

Kassandra olhou para Pentesiléia com alguma ansiedade; mas calculou que uma rainha devia ser ocupada demais para cuidar de uma criança, mesmo que fosse a filha de sua irmã. E Elaria parecia gentil e afável.

Terminada a refeição, as mulheres se reuniram em torno do fogo. Pentesiléia designou duas delas para ficarem de vigia. Kassandra sussurrou:

- Por que as sentinelas? Não estamos em guerra, não é mesmo?

- Não da forma como a palavra costuma ser usada em Tróia - sussurrou Elaria em resposta. - Mas ainda estamos em terras dominadas pelos homens, e as mulheres sempre se encontram em guerra num lugar assim. A maioria dos homens nos considera presas legítimas e também a nossos animais.

Uma das mulheres começou a cantar e as outras acompanharam-na. Kassandra escutou com toda atenção, sem reconhecer a melodia nem o dialeto, mas depois de algum tempo se descobriu a cantarolar também nos coros. Sentia-se cansada e estendeu-se para repousar, contemplando as grandes estrelas brancas lá em cima; e no instante seguinte percebeu que estava sendo carregada na escuridão. Despertou sobressaltada e balbuciou.

- Onde estou?

- Você adormeceu ao lado da fogueira e estou levando-a para dormir na minha tenda - respondeu Elaria, suavemente.

Kassandra acomodou-se e voltou a dormir, só despertando quando a luz do dia invadia a tenda. Alguém tirara seu culote de couro; as pernas estavam esfoladas e doloridas. Elaria entrou logo depois que ela acordou. Passou um ungüento nos lugares doloridos e deu a Kassandra uma peça de linho, para usar por baixo do culote de couro, o que muito ajudou. Depois, pegou um pente esculpido em osso e começou a desfazer os emaranhados nos cabelos compridos e sedosos de Kassandra, prendeu-os em tranças e ajeitou-os sob um gorro de couro pontudo, como os que eram usados por todas as mulheres. Os olhos de Kassandra lacrimejaram enquanto o pente desfazia bruscamente os nós, mas ela não chorou. Elaria afagou sua cabeça num gesto de aprovação.

- Hoje você vai cavalgar na minha garupa - anunciou ela. - E talvez alcancemos ainda hoje as nossas pastagens, onde poderemos escolher uma égua para você e começar a ensiná-la a montar. Haverá de chegar um dia, que não está tão longe assim, em que poderá passar o dia inteiro na sela sem cansaço.

A primeira refeição foi um naco de carne-seca meio dura, mastigado enquanto ela se segurava na sela, por trás de Elaria. As características da terra foram mudando pouco a pouco enquanto avançavam, dos verdes férteis nas proximidades do rio para uma planície árida, varrida pelo vento, subindo mais e mais. À beira da planície havia colinas arredondadas e despidas, completamente castanhas, com enormes pedras se projetando nas encostas, com penhascos íngremes mais além. Numa das colinas Kassandra avistou manchas em movimento, maiores do que ovelhas. Elaria virou-se e apontou, dizendo:

- Ali pastam as nossas manadas de cavalos. Ao anoitecer estaremos em casa, em nossa própria terra.

Pentesiléia cavalgava ao lado delas e comentou:

- Não são nossas manadas. Olhe ali, os centauros estão circulando entre os animais.

Kassandra podia ver mais claramente agora; divisou entre os cavalos os corpos peludos e as cabeças barbudas de homens, destacando-se na manada. Como todas as crianças da cidade, Kassandra fora criada com muitas histórias sobre os centauros, criaturas selvagens e anárquicas, com cabeças e partes superiores do corpo de homens, mas as partes inferiores de cavalos. Podia agora entender as origens das histórias antigas. Eram homens pequenos e escurecidos pela vida ao ar livre; os cabelos compridos e desgrenhados, caindo pelas costas, davam a impressão de uma crina de cavalo, enquanto seus corpos pardos se fundiam nos corpos dos cavalos, as pernas arqueadas se enroscando em torno dos pescoços dos animais: corpo superior do homem, corpo inferior de cavalo. Como muitas meninas, Kassandra fora avisada de que eles roubavam mulheres das cidades e aldeias e uma aia a advertira:

- Se não for uma boa menina, os centauros virão buscá-la.

Ela murmurou, assustada: - Eles não farão mal, tia?

- Claro que não - respondeu Pentesiléia. - Meu filho vive entre eles. E se for a tribo de Quíron, são nossos amigos e aliados.

- Pensei que as tribos das amazonas só tivessem mulheres - comentou Kassandra, surpresa. - Tem um filho, tia?

- Tenho, sim, mas ele vive com o pai, como todos os nossos filhos. Ora, sua tolinha, ainda acredita que os centauros são monstros? Olhe bem, são apenas homens, cavaleiros como nós.

Mesmo assim, quando os cavaleiros se aproximaram, Kassandra encolheu-se de medo; os homens estavam nus, pareciam rudes e ameaçadores. Procurou ficar bem pequena na garupa de Elaria, a fim de que não a vissem.

- Saudações, senhora das mulheres cavalos - gritou o cavaleiro que vinha na vanguarda. - Como se saiu na cidade de Príamo?

- Muito bem; como pode ver, estamos de volta, sãs e salvas - respondeu Pentesiléia. - Como vão seus homens?

- Encontramos uma árvore de abelha esta manhã e tiramos um barril de mel - disse o homem, inclinando-se no cavalo para abraçar Pentesiléia. - Pode ficar com uma parte, se quiser.

Pentesiléia afastou-se, dizendo:

- O custo do seu mel é sempre muito alto; o que quer de nós desta vez? Ele empertigou-se e foi cavalgando ao seu lado, com um sorriso cordial.

- Pode me prestar um serviço, se quiser. Um dos meus homens ficou enamorado por uma moça de aldeia há poucas luas e arrebatou-a, sem se dar ao trabalho de pedi-la ao pai. Mas ela não presta nada, a não ser para partilhar sua cama. Nem mesmo é capaz de ordenhar uma égua ou fazer queijo. Passa o tempo

todo chorando e se lamuriando. Está agora com a doença das fêmeas e...

- Não me peça para tirá-la de suas mãos - interrompeu-o Pentesiléia. - Ela também não teria qualquer utilidade em nossas tendas.

- O que eu quero é que a leve de volta para seu pai. Pentesiléia soltou uma risada desdenhosa.

- Para sermos nós a enfrentar a ira e as espadas dos homens de sua tribo? Essa não!

- O problema é que a mulher está grávida - explicou o centauro. - Não

pode levá-la até o bebê nascer? Acho que ela se sentiria mais feliz entre mulheres.

- Se ela nos acompanhar, sem problemas, poderemos mante-la até a criança nascer. Se for uma filha, ficaremos com as duas. Se for um menino, vocês vão querê-lo?

- Com toda certeza. Quanto à mulher, depois que a criança nascer, pode mantê-la ou mandá-la de volta à aldeia; pelo que me toca, pode até afogá-la. - Tenho muito bom coração - comentou Pentesiléia. - Mas por que eu deveria livrá-los de um problema que vocês mesmos criaram? - Por meio barril de mel?

- Por meio barril de mel - concordou Elaria. - Cuidarei da mulher pessoalmente, farei o parto e a levarei de volta à aldeia.

- Todas vamos partilhar as responsabilidades - declarou Pentesiléia. - Mas da próxima vez que um dos seus homens quiser ter relações com uma mulher, mande-o para nossas tendas e sem dúvida poderemos satisfazê-lo, sem complicações. Cada vez que um de seus homens vai atrás de uma mulher, de maneira intempestiva, invadindo uma aldeia, todas as tribos sofrem as conseqüências, surgem mais histórias sobre o nosso comportamento turbulento e ilegal, tanto de homens como de mulheres.

- Não me censure, senhora - disse o homem, escondendo o rosto atrás das mãos por um instante. - Nenhum de nós é mais do que humano. E quem é essa que se oculta por trás de sua companheira?

Ele se inclinou em torno de Elaria e piscou para Kassandra; parecia tão engraçado, com seu rosto peludo, contraído por trás dos cabelos emaranhados, que ela desatou a rir.

- Roubaram uma criança da cidade de Príamo?

- Claro que não - respondeu Pentesiléia. - Essa é a filha da minha irmã, que viverá entre nós por algumas estações.

- Uma coisinha linda - murmurou o centauro. - Não vai demorar muito para que meus jovens estejam lutando por ela.

Kassandra corou e tornou a se esconder por trás de Elaria. No palácio de Príamo, até mesmo sua mãe admitia que Polixena era "a bela", enquanto Kassandra era "a esperta". Kassandra dissera a si mesma que não se importava; mesmo assim, era agradável saber que alguém a considerava atraente.

- Vamos logo ver esse mel e a mulher que você quer que tiremos de suas mãos - sugeriu Pentesiléia.

- Não querem comer com a gente? - convidou o centauro. - Estamos assando um cabrito para a refeição noturna.

Pentesiléia olhou para as mulheres e uma delas declarou:

- Esperávamos dormir em nossas próprias tendas esta noite, mas o cabrito tem um cheiro saboroso. Seria uma pena se não aproveitássemos nossa parte. E Elaria acrescentou:

- Por que não descansamos aqui por um ou dois dias? Se não chegarmos em nossa terra esta noite, amanhã é outro dia. Pentesiléia deu de ombros.

- Minhas mulheres responderam por mim. Aceitaremos sua hospitalidade com prazer, ou talvez apenas com gula.

O centauro levou-as para o acampamento central. Uma mulher ainda jovem estava ajoelhada diante do fogo, virando o espeto em que um cabrito assava. A gordura pingando no fogo exalava um aroma delicioso e a pele crestada chiava. As amazonas desmontaram e os homens seguiram o exemplo, depois de um momento.

Pentesiléia encaminhou-se para a mulher que girava o espeto. Kassandra notou horrorizada que ela tinha os tornozelos perfurados e os pés estavam presos por uma corda, passando pelos buracos, a fim de que não pudesse dar passadas longas. A rainha das amazonas contemplou-a, com alguma suavidade, indagando: - Você é a cativa.

- Sou, sim. Eles me roubaram da casa de meu pai no verão passado. - Quer voltar?

- Ele jurou, ao furar meus pés, que me amaria e cuidaria de mim para sempre; vai me repudiar agora? Meu pai me aceitaria de volta em sua casa, aleijada e com a barriga estufada do filho de um centauro?

- Ele me diz que você não se sente feliz aqui - disse Pentesiléia. - Se quiser vir conosco, pode viver em nossa aldeia até a criança nascer e depois ir para a casa de seu pai ou qualquer lugar que quiser.

O rosto da mulher se contraiu numa expressão chorosa.

- Desse jeito? - balbuciou ela, gesticulando para os tornozelos mutilados. Pentesiléia virou-se para o líder dos centauros.

- Eu a levaria de bom grado, se ela estivesse ilesa. Mas não podemos devolvê-la assim à aldeia de seu pai. Não foi suficiente para seu homem raptá-la e tirar sua virgindade?

O centauro abriu os braços, num gesto de impotência.

- Ele jurou que haveria de querê-la para sempre, para amar e respeitar; só receava que ela pudesse escapar.

- Já deveria saber, depois de tantos anos, quanto tempo esse tipo de amor dura - criticou-o a rainha das amazonas. - Raramente sobrevive além da virgindade. Um amor eterno às vezes dura até meio ano, mas jamais sobrevive à gravidez. O que podemos fazer com ela agora? Sabe tão bem quanto eu que ela não pode ser devolvida assim à aldeia de seu pai. Desta vez meteu-se numa encrenca da qual não podemos livrá-lo.

- A esta altura meu homem até pagaria para se livrar da mulher - informou o centauro.

- É o que ele tem mesmo de fazer. Quanto está disposto a dar?

- Uma boa égua com cria como indenização para o pai ou para um dote, se ela quiser casar de novo.

- Talvez por isso possamos dar um jeito, assim que ela estiver em condições de andar de novo - decidiu Pentesiléia. - Mas prometo que esta será a última vez que resolveremos seus problemas amorosos. Mantenha seus homens longe das mulheres das aldeias e talvez assim não nos acarretem tanto descrédito. E é melhor que seja uma boa égua ou não adiantará nada.

Ela aspirou fundo, apreciativa.

- Mas seria uma pena deixarmos o cabrito queimar ou assar demais enquanto eu o censuro. Vamos cortar uma fatia?

Um dos centauros pegou um facão e começou a cortar fatias de carne e )ele tostada do cabrito. As mulheres se reuniram e sentaram na relva, enquanto a comida era distribuída, acompanhada por vinho em recipientes de couro e pedaços de favo de mel: Kassandra comeu vorazmente; estava cansada de cavalgar, propensa a se reclinar na relva, enquanto comia e tomava o vinho. Depois de algum tempo, sentiu-se tonta e estendeu-se na relva, fechando os olhos, sonolenta. Em casa só tinha permissão para beber vinho misturado com muita água e sentia-se agora um pouco enjoada. Apesar disso, tinha a impressão de que jamais fizera uma refeição tão saborosa entre quatro paredes.

Um dos jovens que cavalgaram ao lado do líder dos centauros aproximou-se para tornar a encher a taça na mão de Kassandra. Ela sacudiu a cabeça.

- Obrigada, mas não quero mais.

- O Deus do Vinho ficará zangado com você se repudiar sua dádiva - disse o rapaz. - Beba, Olhos Brilhantes.

Era assim que o pai a chamava, nos raros momentos de afabilidade. Kassandra tomou mais alguns goles e depois tornou a sacudir a cabeça.

- Já estou tonta demais para conseguir me manter no cavalo!

- Pois então descanse - disse o rapaz, puxando-a para se recostar em seus ombros e enlaçando-a.

Pentesiléia observou-os por um instante e depois disse bruscamente para o rapaz:

- Largue-a. Ela não é para você. É a filha de Príamo e uma princesa de Tróia.

- Conheço suas origens reais - disse Pentesiléia. - Lembro muito bem quando Teseu levou nossa rainha Antíope, para viver entre paredes e morrer ali. Mesmo assim, essa donzela se encontra sob meus cuidados e quem quiser tocá-la terá de lidar comigo primeiro.

O rapaz riu e largou Kassandra.

- Talvez, quando você estiver crescida, Olhos Brilhantes, seu pai me tenha em mais alta conta do que nossa parenta; a tribo dela não gosta de homens nem do casamento.

- Eu também não gosto - murmurou Kassandra, desvencilhando-se.

- Talvez mude de idéia quando ficar mais velha.

O rapaz inclinou-se para a frente e beijou-a nos lábios. Kassandra recuou e limpou a boca vigorosamente, enquanto os centauros riam. Kassandra percebeu que a mulher aleijada a observava, com o rosto franzido.

O chefe dos centauros riu e comentou:

- Ele não está muito abaixo dela, minha cara, pois é filho de um rei.

A rainha das amazonas chamou suas mulheres para os cavalos, ajudando uma delas a carregar o mel prometido no lombo de sua égua. Depois, ela cortou a corda que prendia os tornozelos da cativa e ajudou-a a montar na garupa de um animal, falando-lhe gentilmente. O chefe dos centauros abraçou Pentesiléia.

- Não podemos persuadi-las a passarem a noite em nossas tendas?

- Talvez em outra ocasião - prometeu Pentesiléia, retribuindo efusiva o abraço. - Agora, porém, adeus.

Kassandra sentia-se confusa; aqueles homens e meninos eram mesmo os terríveis centauros das lendas? Pareciam bastante cordiais. Mas refletia sobre quais seriam exatamente suas relações com as amazonas. Não tratavam as mulheres como os soldados de seu pai. O rapaz bonito que lhe dera um beijo se aproximou sorrindo.

- Vamos nos encontrar no rodeio?

Kassandra desviou os olhos, corando; não sabia o que dizer. Era o primeiro rapaz que lhe falava, à exceção de seus irmãos. Pentesiléia fez um sinal para que as mulheres a seguissem. Kassandra compreendeu que seguiam para o interior, as encostas do monte Ida pairavam acima delas. Pensou em sua visão, do menino com seu rosto, cuidando de ovelhas naquelas encostas.

Ele pode cuidar de ovelhas, mas eu aprenderei a cavalgar, pensou Kassandra. Ainda meio tonta do vinho a que não estava acostumada, ela inclinou-se para a frente, equilibrando-se contra Elaria. Acabou adormecendo, embalada pelos movimentos do animal.

 

O mundo era maior do que ela jamais imaginara; embora viajassem do raiar do dia até escurecer demais para se ver, Kassandra tinha a impressão de que mal se arrastavam pelas planícies. As colinas de Tróia ainda podiam ser vistas lá atrás, não mais distantes do que antes; às vezes até parecia, no ar claro, que ela podia estender a mão e tocar o cume reluzente da cidade.

Em poucas semanas Kassandra tinha a sensação de que sempre vivera com as amazonas da tribo. Não punha os pés no chão do princípio ao fim do dia; antes mesmo de fazer a primeira refeição, já estava na sela da égua castanha que lhe permitiam usar, a que dera o nome de Vento Sul. Junto com outras moças de sua idade, mantinha uma vigília constante contra invasores e à noite cuidava dos cavalos, observando as estrelas.

Amava Elaria, que dela cuidava como uma de suas filhas, meninas de onze e dezessete anos; idolatrava Pentesiléia, embora a rainha das amazonas raramente lhe falasse, exceto para perguntar diariamente sobre sua saúde e bem-estar. Kassandra foi se tornando cada vez mais forte, bronzeada e saudável. Ao sol ardente interminável das planícies, via o rosto de Apolo, Senhor do Sol, refletindo que levava sua vida sob os olhos do Deus.

Convivia com as amazonas há mais de uma lua quando um dia, no momento em que a tribo desmontou, à vista do agora distante monte Ida, para a refeição frugal de meio-dia, constituída de pedaços do forte queijo de leite de égua, surpreendeu-se a relatar sua estranha visão a Pentesiléia.

- O rosto do menino era como o meu refletido na água, mas meu pai me bateu quando falei a seu respeito e ainda ficou furioso com, minha mãe.

Pentesiléia ficou em silêncio por um longo tempo, antes de responder, levando Kassandra a pensar que a omissão dos pais se repetiria agora. Mas, depois, a mulher declarou, falando bem devagar:

- Posso compreender por que sua mãe e seu pai, especialmente Príamo, não querem falar a respeito, mas não vejo motivo para que você continue a ignorar o que metade de Tróia já sabe. Ele é seu irmão gêmeo, Kassandra. Quando vocês nasceram, a Mãe Terra, que é também a Mãe Serpente, enviou um mau presságio para minha irmã H6cuba: gêmeos. Os dois deveriam ter sido mortos. - Ela concluiu em tom ríspido, e Kassandra se encolheu, os lábios trêmulos. Pentesiléia inclinou-se e afagou os cabelos da menina, acrescentando: - Estou contente que não a tenham matado. Não pode haver a menor dúvida de que algum Deus pôs a mão em sua cabeça. Seu pai provavelmente sentiu que poderia escapar ao destino se abandonasse a criança à morte. Mas como um devoto do Princípio do Pai, que é na verdade um culto ao poder masculino e à capacidade de gerar filhos homens, não teve coragem de renunciar de todo a um filho. Por isso, a criança foi criada em algum lugar, longe do palácio. Seu pai não queria saber coisa alguma a respeito do filho por causa do mau presságio no nascimento; por isso, ficou zangado quando você falou nele.

Kassandra experimentou um tremendo alívio. Parecia-lhe que estivera sozinha por toda a sua vida, quando deveria ter outra pessoa ao seu lado, um irmão muito parecido com ela, mas também de certa forma diferente.

- Mas não é uma iniqüidade ver meu irmão na água da adivinhação?

- Você não precisa disso, criança. Se a Deusa lhe concedeu a Visão, basta olhar para o seu coração e o encontrará ali. Não estou surpresa de que você seja tão abençoada; sua mãe a tinha quando era pequena, mas perdeu ao casar com um homem da cidade.

- Eu pensava que a... Visão... era uma dádiva do Senhor do Sol - murmurou Kassandra. - Experimentei-a pela primeira vez quando estava em seu templo.

- E possível. Mas deve se lembrar de uma coisa, criança: antes mesmo que Apolo, Senhor do Sol, reinasse sobre estas terras, nossa Mãe Cavalo... a Grande Égua, a Mãe Terra de quem todos nascem... já estava aqui.

Pentesiléia virou-se e pôs as mãos na terra escura, reverente; Kassandra imitou o gesto, sem compreender muito bem. Pareceu-lhe que podia sentir uma força intensa subindo da terra e fluindo por seu corpo; era a mesma força exultante que sentira ao segurar as serpentes de Apolo. Não pôde deixar de questionar se não estaria sendo desleal ao Deus que a chamara.

- Disseram-me no templo que Apolo, Senhor do Sol, matou a Píton, a grande Deusa do Mundo Interior. É a Mãe Serpente de quem falou?

- Aquela que é a Grande Deusa não pode ser abatida, pois é imortal. Ela pode tomar a decisão de se retrair por algum tempo, mas é e sempre será, por toda a eternidade.

Kassandra, sentindo a força da terra sob suas mãos, aceitou a declaração da rainha das amazonas como uma verdade absoluta.

- Quer dizer que a Mãe Serpente é a mãe do Senhor do Sol?

Pentesiléia, respirando fundo em reverência, respondeu:

- Ela é a mãe dos Deuses e dos homens, a mãe de todas as coisas; assim,

Apolo é seu filho também, tanto quanto você e eu.

Então... se Apolo, Senhor do Sol, tentou matá-la, estava querendo matar Sua própria mãe? Kassandra prendeu a respiração com a iniqüidade do pensamento. Um Deus poderia ser tão iníquo? E se um determinado ato era iníquo para os homens, seria também para um Deus? Se uma Deusa era imortal, como podia ser morta? Tais coisas eram mistérios e Kassandra empenhou todo o seu ser na determinação inabalável de um dia compreendê-las. Apolo, Senhor do Sol, a chamara e lhe dera suas serpentes; um dia Ele a conduziria também ao conhecimento dos mistérios da Mãe Serpente.

As mulheres terminaram a refeição do meio-dia e deitaram para descansar na relva muito verde. Kassandra não estava com sono; ainda não se acostumara a dormir assim ao meio-dia. Ficou observando as nuvens vaguearem pelo céu, contemplou as encostas do monte Ida, elevando-se muito acima das planícies.

Seu irmão gêmeo. Kassandra sentiu-se furiosa ao pensar que todos tinham conhecimento, enquanto ela, que tinha o maior interesse, fora mantida na ignorância.

Tentou lembrar, deliberada e conscientemente, o estado em que se encontrava quando vira o irmão pela primeira vez, na superfície da água. Ajoelhada na relva, imóvel, o rosto virado para o céu, a mente vazia, procurou o rosto que vira apenas uma vez e, mesmo assim, numa visão. Por um momento, os pensamentos inquisitivos fixaram-se em seu próprio rosto, como que refletido na água, e no tremeluzir dourado que ainda considerava, em sua mente, como o rosto e o sopro de Apolo, Senhor do Sol.

Depois, as feições se alteraram e o rosto era o de um menino, igual ao seu, mas também diferente, de uma maneira sutil, com uma malícia que lhe era estranha. Compreendeu que encontrara o irmão. Especulou como ele era chamado, e se podia vê-la.

De algum lugar, no misterioso vínculo entre os dois, a resposta aflorou: ele podia, se desejasse, mas não tinha motivos para procurá-la e nenhum interesse em particular. Por que não?, refletiu Kassandra, sem saber ainda que deparara com o maior defeito no caráter do gêmeo: uma total ausência de interesse por qualquer coisa que não se relacionasse consigo mesmo ou não contribuísse de alguma maneira para seu conforto e satisfação.

Por um instante, isso a deixou tão perplexa que perdeu o fragmento de vi

são, mas logo se recuperou para evocá-la. Seus sentidos foram invadidos pela fragrância inebriante do tomilho das encostas da montanha, onde a claridade intensa e o calor da presença do Senhor do Sol faziam com que a erva produzisse mais óleo, cujo cheiro espalhava-se pelo ar. Vendo pelos olhos do menino, ela contemplou a tosca escova em sua mão, passando pelo flanco de um enorme touro, alisando os pêlos brancos que brilhavam em ondulações. O animal era maior do que o menino; como Kassandra, ele era esguio e de compleição franzina, mais vigoroso do que musculoso. Os braços eram queimados pelo sol como os de qualquer pastor, os dedos calosos e duros do trabalho árduo interminável. Kassandra permaneceu na mesma posição, o braço fazendo movimentos como os do irmão; quando os pêlos estavam bem lisos e ondulados, ela largou a escova. Com outra escova, ela mergulhou-a no pote ao lado do irmão, passando uma camada de tinta dourada lisa nos chifres do animal. Os enormes olhos escuros encontraram-se com os seus, irradiando amor e confiança, assim como um pouco de perplexidade, que levou o animal a mudar um pouco de posição. Kassandra se perguntou se de alguma forma o instinto do animal sabia o que seu irmão ignorava: que não era apenas o seu dono que se encontrava agora à sua frente.

Depois de escovar e dourar o animal, Páris (ela não se perguntou como sabia agora o seu nome, mas sabia-o como o seu próprio) prendeu uma grinalda de folhas verdes e fitas em torno do pescoço largo, recuando em seguida para contemplar sua obra, com orgulho. O animal era de fato bonito, o mais extraordinário que Kassandra já vira. Ela partilhou os pensamentos de Páris, de que podia sinceramente considerar aquele excelente animal, por cuja aparência e estado não poupara esforços durante o último ano, como o melhor touro da feira. Ele passou uma corda no pescoço do animal com todo cuidado, pegou uma bolsa de couro em que havia um naco de pão, umas poucas tiras de carne seca e um punhado de azeitonas maduras. Depois de prender a bolsa na cintura, abaixou-se para enfiar os pés em sandálias. Bateu com o cajado de leve no flanco do enorme touro engalanado e começou a descer pelas encostas do monte Ida.

Kassandra descobriu-se, surpresa, de volta ao próprio corpo, ajoelhada na planície, entre as amazonas adormecidas. O sol começara a declinar um pouco do zênite e ela sabia que em breve a tribo despertaria e estaria pronta para recomeçar a cavalgada.

Ouvira dizer que nas ilhas dos reinos do mar, muito ao sul, o touro era

considerado sagrado. Vira no templo pequenas estátuas de touros sagrados e alguém lhe contara a história da rainha Pasifae, de Creta, por quem Zeus se apaixonara. Ele se apresentara como um enorme touro branco e dizia-se que mais

tarde Pasifae gerara um monstro, com cabeça de touro e corpo de homem. Era chamado de Minotauro e aterrorizara todos os reis do mar, até ser morto pelo herói Teseu.

Quando era pequena, Kassandra acreditara na história; agora, perguntava-se que verdade havia por trás dessa história, se é que havia alguma. Depois de descobrir a realidade por trás da lenda dos centauros, ela refletia que devia haver uma verdade assim, por mais obscura que fosse, em todas as histórias.

Havia homens deformados que eram bestiais na aparência e no comportamento: talvez o Minotauro fosse um homem assim, com a marca do disfarce de animal do seu pai no corpo ou na mente.

Ela estava ansiosa em descobrir o que acontecera com Páris e seu lindo touro branco. As moças, particularmente as da casa real, nunca tinham permissão para comparecer às feiras de animais que se realizavam por todo o interior, mas ela já ouvira falar a respeito e sentia a maior curiosidade.

Mas as amazonas já estavam se remexendo e não demorou muito para que os movimentos e vozes ao redor dissipassem a tranqüilidade de que precisava para permanecer no estado em que poderia acompanhar o irmão. Levantou-se de um pulo, com apenas um pouco de pesar, e correu para sua égua.

Umas poucas vezes, no dia seguinte e no outro, vislumbrou o irmão, conduzindo o touro engrinaldado; vadeando um rio (onde estragou as sandálias) e se juntando a outros viajantes, levando animais adornados como o seu, embora nenhum fosse tão magnífico quanto o seu touro branco.

A lua se tornou redonda, iluminando o céu inteiro, do pôr-do-sol à alvorada. Durante o dia o sol ofuscava, a poeira branca rebrilhava. Cochilando no lombo da égua em movimento, Kassandra observava os demônios da poeira branca se levantando e turbilhonando sobre a relva, antes de se afastarem. Pensou no irrequieto Deus Hermes, senhor dos ventos, do embuste e artifício.

Em devaneio, viu um dos remoinhos pequenos estremecer e se elevar na forma de um homem; e seguiu o vento irrequieto para leste, atravessando as planícies, até os contrafortes do monte Ida. Ao sol ofuscante, um raio dourado se alterou e assumiu a forma de um homem, só que mais alto e mais brilhante do que qualquer homem, com o rosto de Apolo, Senhor do Sol; e à frente dos dois Deuses seguia um touro.

Kassandra já ouvira as histórias dos touros de Apolo - animais enormes e reluzentes, mais belos do que qualquer animal terreno; e ali estava um deles, o lombo largo, chifres brilhantes que não precisavam de tinta dourada ou fitas para faiscarem ao sol. Uma das mais antigas baladas cantadas pelos menestréis de seu pai descrevia como o pequeno Hermes roubara o rebanho sagrado de Apolo e depois se esquivara à ira do Senhor do Sol, ao lhe fazer uma lira com o casco de uma tartaruga. Agora, o brilho dos olhos do touro sagrado e o lustro do pêlo ofuscaram a lembrança do touro que Páris enfeitara com tanto empenho. Não era justo; como podia qualquer touro mortal ser julgado em comparação com o gado divino de um Deus?

Ela inclinou-se para a frente, os olhos fechados; aprendera a dormir no lombo da égua, deixando o corpo mole para acompanhar os movimentos do animal. Baixou as pálpebras agora contra o sol, cochilando, a mente se projetando em busca do irmão. Talvez tenha sido a visão do touro de Apolo que atraiu sua atenção para o animal que Páris conduzia à feira.

Kassandra contemplou pelos olhos do irmão a grande massa de animais reunidos, analisou mentalmente os defeitos e virtudes. Aquela vaca tinha flancos muito estreitos; aquela outra apresentava um horrendo padrão mosqueado de marrom e rosa no úbere; aquele touro tinha os chifre, tortos, que não eram apropriados à defesa do rebanho; aquele outro tinha um inchaço por cima do pescoço. De perto ou de longe, pensou Páris com orgulho, não havia nenhum que se comparasse ao seu touro, que adornara com tanto empenho e trouxera para a feira; podia reivindicar as honras do dia para o animal de seu pai de criação. Era o segundo ano em que era escolhido para julgar o gado e sentia-se orgulhoso de sua competência e da confiança que os vizinhos e outros criadores sentiam nele.

Ele circulou entre o gado, gesticulando gentilmente para que adiantassem este e aquele, a fim de poder examinar melhor, ou para que removessem de seu campo de visão algum animal que não podia ser levado a sério no concurso.

Escolhera a melhor novilha e o bezerro e, depois, sob murmúrios de aclamação, a melhor vaca; era de fato uma esplêndida vaca, a pele branca, com manchas cinzentas tão sutis que a impressão era de um todo azulado; os olhos eram meigos e maternais, o úbere liso e uniformemente rosado, como os seios de uma virgem. Os chifres eram pequenos e bem espaçados, a respiração fragrante com a relva recendente a tomilho.

Era o momento agora de julgar os touros. Páris encaminhou-se satisfeito para o animal de seu pai de criação, Nevoso, o touro de que cuidara e que adornara com tanto desvelo. Depois de um dia inteiro a julgar gado, sabia que não havia outro animal que pudesse se comparar e sentia-se justificado em lhe conceder o prêmio. E já abria a boca para falar quando avistou os dois estranhos e seu touro.

Assim que o mais jovem - ou pelo menos Páris assim supôs - começou a falar, ele compreendeu que estava na presença do mais que mortal. Era o seu primeiro encontro desse tipo, mas o fogo nos olhos e alguma coisa na voz, que parecia soar muito distante e ao mesmo tempo bem perto, revelaram a Páris que não se tratava de um homem comum. Kassandra, por sua vez, reconheceria em qualquer lugar o tremeluzir extraordinário nos cachos dourados de seu Deus; e talvez, sem que Páris soubesse conscientemente, alguma coisa foi absorvida da mente de sua irmã desconhecida. Ele disse em voz alta:

- Estranhos, tragam o touro para mais perto, a fim de que eu possa examiná-lo. Nunca vi um animal tão espetacular.

Mas talvez o touro tivesse algum defeito que não era aparente, pensou Páris, contornando-o e avaliando-o por todos os ângulos. As pernas eram como colunas de mármore; até mesmo o rabo se deslocava com um jeito de nobreza. Os chifres eram lisos e largos, os olhos ardentes mas gentis; o animal até permitiu, com um ar de tédio, que Páris abrisse sua boca e verificasse os dentes perfeitos.

Que direito tem um Deus de trazer seu gado perfeito para ser julgado entre mortais?, pensou Páris. Mas era o destino e seria arrogância de sua parte opor-se ao destino. Ele chamou o homem que segurava a corda em torno do pescoço do touro e disse, com um olhar pesaroso para Nevoso:

- Lamento dizê-lo, mas nunca, em toda a minha vida, vi um touro tão magnífico. Estranhos, o prêmio lhes pertence.

O sorriso exuberante do Imortal era ofuscante como o sol; e Kassandra, despertando, ouviu uma voz, não mais do que um eco, em sua mente: Este homem é um juiz honesto; talvez seja indicado para resolver o desafio de Eris. E no instante seguinte ela estava sozinha na sela, Páris desaparecera, desta vez além do alcance de sua vontade. Ela não tornou a vê-lo por muito tempo.

 

O tempo mudou assim que chegaram à terra das amazonas. Um dia havia sol ofuscante, do amanhecer ao anoitecer; da noite para o dia, ao que parecia, passou a haver chuva durante o dia inteiro, as noites frias e úmidas. Cavalgar já não era mais um prazer, mas sim labuta e exaustão; para Kassandra, cada dia era uma batalha incessante contra o frio e a umidade.

As amazonas acendiam fogueiras em seus acampamentos abrigados; muitas viviam em cavernas, outras em tendas de grossas paredes de couro, armadas em bosques de densa folhagem. Crianças pequenas e mulheres grávidas permaneciam nos abrigos durante o dia inteiro, aconchegadas em torno das fogueiras fumacentas.

Havia ocasiões em que o calor a tentava, mas as moças de sua idade se incluíam entre as guerreiras da tribo e por isso Kassandra protegia-se com um manto de lã grossa, a superfície coberta de óleo, suportando a umidade da melhor forma que podia.

À medida que a estação das chuvas se aramava ela foi ficando mais alta; um dia, ao desmontar para urna rara refeição quente no acampamento, à beira da fogueira, percebeu que seu corpo se arredondava, seios pequenos brotavam sob os trajes ásperos e soltos.

De vez em quando, ao cavalgarem, afloravam em sua mente visões do menino com seu rosto. Ele estava mais alto agora; a túnica que usava mal lhe cobria as coxas e Kassandra estremeceu em compaixão quando ele tentou cobrir-se com o manto muito curto. Cercado por seu rebanho, ele estava nas encostas da montanha; em outra ocasião ela o viu num festival, no meio de um grupo de rapazes engalanados, participando de uma dança. Em outra ocasião ficou dentro dele diante de uma fogueira intensa, vendo-o receber um novo manto, mais quente, e ter os cabelos compridos cortados para o altar do Senhor do Sol. Ele também estava sob a proteção de Apolo?

Uma vez, na primavera, em silêncio num grupo de rapazes, ele contemplou as meninas - embora a maioria fosse tão alta ou até mais alta do que ele - envoltas por peles de urso, empenhadas numa dança ritual em homenagem à Virgem.

Kassandra raramente pensava agora sobre a vida dentro de casa, exceto como uma lembrança vaga, mas constante e incômoda, de um tempo em que ficara confinada ao palácio e nunca lhe permitiam sair. Estranhas sensações invadiam seu- corpo; a lã áspera da túnica deixava os mamilos esfolados. Ela pediu a outra mulher que lhe arrumasse um traje de baixo de algodão macio. Ajudou, mas não o suficiente; os seios permaneciam doloridos durante a maior parte do tempo.

Os dias eram mais curtos e uma pálida lua de inverno pairava no céu. Os rebanhos circulavam a esmo, procurando por alimento. O leite das éguas acabou e os animais famintos deslocavam-se inquietos de urna pastagem esgotada para outra.

A perda do leite das éguas, o alimento principal das amazonas, significava que havia ainda menos para comer; e o que restava era reservado pelo costume às mulheres grávidas e crianças menores. Dia após dia, Kassandra experimentava apenas uma fome angustiante; guardava sua pequena ração para comer antes de dormir, a fim de não acordar e sonhar com os fornos no palácio de Príamo e o cheiro apetitoso de pão a assar. Nas pastagens, vigiando os animais, procurava interminavelmente por frutas ressequidas ou pequenos cachos ainda suspensos de videiras mortas; como todas as outras, comia qualquer coisa que pudesse encontrar, admitindo que a metade dos alimentos achados a deixaria passando mal.

- Não podemos continuar aqui - protestaram as mulheres. - O que a rainha está esperando?

- Algum aviso da Deusa - explicaram as outras.

As mulheres mais velhas da tribo foram a Pentesiléia, exigindo a partida imediata para as pastagens de inverno.

Já deveríamos ter partido há uma lua, mas uma guerra campeia na região - respondeu a rainha. - Se a tribo viajar, com todas as nossas crianças e velhas, seremos capturadas e escravizadas. E o que vocês querem?

- Claro que não - protestaram as mulheres. - Sob o seu comando, viveremos livres; e se preciso for, morreremos livres.

Mas Pentesiléia prometeu que no momento em que a lua estivesse cheia outra vez procuraria o conselho da Deusa, a fim de saber sua vontade.

Contemplando seu rosto na água, depois de uma chuva forte, Kassandra mal se reconheceu; tornara-se alta e esguia, o rosto e as mãos queimados pelo sol inclemente, as feições bem definidas, mais de mulher que de criança - ou talvez como as de um menino... Havia sardas em seu rosto também; e ela sentiu curiosidade de saber se a família a reconheceria se aparecesse sem ser anunciada ou se perguntariam "Quem é essa mulher das tribos selvagens? Mandem-na embora." Ou será que a tomariam por seu gêmeo exilado?

Apesar da vida árdua, ela não sentia o menor desejo de voltar a Tróia; havia ocasiões em que sentia saudade da mãe, mas nunca da vida na cidade murada.

Um dia, ao pôr-do-sol, quando as moças voltaram ao acampamento para vestir roupas secas e partilhar a comida que existisse - quase sempre apenas raízes cozidas ou favas silvestres e duras -, foram avisadas de que não deveriam partir em seus cavalos depois, mas sim permanecerem ali, junto com as outras mulheres. Todas as fogueiras no acampamento, com exceção de uma, foram apagadas, a noite era escura e úmida.

Não havia sequer um bocado de comida a partilhar e Elaria explicou a Kassandra que a rainha decidira que todas deviam jejuar antes da invocação à Deusa.

- Isso não é novidade - comentou Kassandra. - Jejuamos o bastante no último mês para satisfazer a qualquer Deusa. O que mais Ela nos pede?

- Não fale assim - protestou Elaria. - Ela jamais deixou de zelar por nós. Ainda estamos todas vivas; já tivemos muitos anos em que havia incursões e muitos proscritos na região, e só pudemos deixar nossas pastagens depois que metade das crianças morrera. Este ano a Deusa não levou sequer um bebê no seio, não reclamou urna única cria.

- Melhor para Ela - insistiu Kassandra. - Não posso imaginar por que tribos de mulheres serviriam à Deusa, a menos que Ela deseje que A sirvamos no outro mundo.

Padecendo de fome, Kassandra tirou o culote de couro molhado e vestiu uma túnica seca de lã. Passou um pente de madeira pelos cabelos e trançou-os, enrolando-os no pescoço. Exausta e meio faminta, a sensação da roupa seca e o calor do fogo proporcionavam um prazer sensual; ficou parada por algum tempo, apenas sentindo o corpo absorver o calor, até que outra mulher empurrou-a para o lado. No espaço fechado da tenda, a fumaça pouco a pouco impregnou todo o ar; ela sufocou e tossiu, até sentir que poderia vomitar, se o estômago não estivesse tão vazio.

Por trás, na tenda, sentia a pressão de outros corpos, o farfalhar silencioso de mulheres, moças e crianças: todas as mulheres da tribo pareciam se concentrar na escuridão em sua retaguarda. Agachavam-se em torno da fogueira e em algum lugar soou a batida de mão sobre couro esticado em armações, o chocalhar de cabaças com sementes secas, como a chuva matraqueando nas tendas. O fogo enfumaçava com pouca claridade, a tal ponto que Kassandra podia sentir apenas os tênues raios tímidos de calor.

No silêncio escuro ao lado da fogueira, três das mulheres mais velhas da tribo levantaram e jogaram o conteúdo de um pequeno cesto no fogo. As folhas secas arderam, depois fumegaram, desprendendo densas nuvens brancas de fumaça aromática. A tenda ficou cheia com seu estranho perfume, seco e adocicado; respirando-o, Kassandra sentiu a cabeça girar e estranhas cores surgiram diante de seus olhos, até que não mais pensava na dor insistente da fome. Pentesiléia pôs-se a falar na escuridão:

-'Minhas irmãs, conheço a fome de todas; não a partilho também? Quem quer que não esteja disposta a continuar conosco, concedo permissão para procurar as aldeias dos homens, que partilharão comida, se deitarem com eles. Mas não tragam as filhas que assim nascerem; deixem-nas para serem escravas, como vocês se mostram dispostas a serem. Se há entre nós as que desejem partir, que o façam agora, pois não são dignas de permanecer enquanto invocamos a Donzela Caçadora, que tanto preza a liberdade para as mulheres. - Silêncio; nenhuma mulher se mexeu na tenda cheia de fumaça. - Então, irmãs, em nossa necessidade, invoquemos Aquela que zela por nós.

Outra vez o silêncio, rompido apenas pelo tamborilar com as pontas dos dedos. E depois emergiu do silêncio um uivo longo e fantástico:

- Uoooooooó!

Por um momento, Kassandra pensou que era algum animal à espreita fora da tenda. E depois viu as bocas abertas, as cabeças das mulheres esticadas para xás. O uivo soou outra vez e outra; os rostos das mulheres não mais pareciam completamente humanos. Os uivos continuaram, subindo e descendo, enquanto as mulheres balançavam e gritavam, acompanharas por um tamborilar curto e sonoro. Os sons atacavam e envolviam as percepções de Kassandra, que teve de fazer o maior esforço para permanecer apartada. Já vira a mãe dominada pela Deusa usas não em meio a uma comoção frenética como aquela.

Nesse momento, pela primeira vez em muitas luas, o rosto de Hécuba surgiu subitamente diante dos olhos de Kassandra, que teve a sensação de poder ouvir a voz suave da mãe:

 

Não é o costume...

Por que não?

Não há motivos para o costume. Não passam...

 

Ela não acreditara antes e não acreditou agora. Devia haver um motivo para que aqueles estranhos uivos fossem considerados um meio conveniente de invocar a Donzela Caçadora. Devemos nos tornar como as bestas selvagens que Ela caça?

Pentesiléia levantou-se, estendendo as mãos para as mulheres; entre uma respiração e outra, Kassandra viu o rosto da rainha se toldar e o fulgor da Deusa aflorar através da própria pele, a voz se alterando além do reconhecimento, ao gritar:

- Não para o sul, por onde vagueiam as tribos dos homens! Sigam para leste, atravessem dois rios e lá permaneçam até a queda das estrelas da primavera!

O corpo tombou para a frente, sendo amparado e sustentado por duas anciãs da tribo, num acesso de tosse tão violento que terminou em débeis ânsias de vômito. Quando se empertigou, o rosto era outra vez de Pentesiléia, que perguntou, em voz rouca:

- Ela nos respondeu?

Uma dúzia de vozes repetiram as palavras que ela pronunciara enquanto estava possuída.

Não para o sul, por onde vagueiam as tribos dos homens! Sigam para leste, atravessem dois rios e lá permaneçam até a queda das estrelas da primavera!

- Partiremos ao amanhecer, irmãs - anunciou Pentesiléia, a voz ainda fraca. - Não há tempo a perder. Não conheço rios a leste, mas tenho certeza de que os encontraremos se virarmos as costas ao Pai Escamandro e seguirmos o vento leste.

- O que a Deusa estava querendo dizer ao falar "até a queda das estrelas

da primavera"? - indagou uma das mulheres.

Pentesiléia deu de ombros.

- Não sei, irmãs; a Deusa falou, mas não explicou Suas palavras. Se cumprirmos a Sua vontade, Ela haverá de nos revelar tudo.

Quatro mulheres trouxeram cestos com raízes cozidas e distribuíram botijões de vinho. Pentesiléia acrescentou:

- Vamos festejar em nome da Deusa, irmãs, e partir ao amanhecer com Sua bênção.

Kassandra compreendeu que o alimento devia ter sido guardado por muito tempo para aquele banquete no meio do inverno. Devorou as raízes cozidas sem qualquer gosto, como animal faminto que se sentia, e tomou a sua cota de vinho.

Depois que os cestos estavam vazios e a última gota de vinho fora consumida, as poucas posses da tribo foram reunidas: as tendas desarmadas e enroladas; uns poucos caldeirões de bronze; os mantos usados por antigas rainhas. Kassandra ainda via o rosto da Deusa por cima e através do rosto de Pentesiléia, podia ouvir a estranha alteração na voz da parenta. Especulou se um dia a Deusa falaria através de sua própria voz e espírito.

A tribo de mulheres reuniu os cavalos numa linha de marcha: Pentesiléia e suas guerreiras na vanguarda; as anciãs, grávidas e crianças no centro, cercadas pelas jovens mais vigorosas.

Kassandra tinha uma lança e sabia como usá-la, por isso se colocou entre as jovens guerreiras. Pentesiléia viu-a e franziu o cenho, mas não disse nada; Kassandra considerou o silêncio como permissão para continuar onde estava. Não sabia se esperava por sua primeira batalha ou se orava - interiormente para que a jornada transcorresse com tranqüilidade. A manhã raiava quando Pentesiléia deu o sinal para a partida; uma única estrela ainda pairava no céu escuro. Kassandra estremeceu na túnica de lã que usara na cerimônia. Torcia para que não chovesse naquela noite; deixara o traje de couro de montaria na tenda e ele fora embalado em algum lugar, entre as bolsas de couro e cestos.

A companheira de viagem mais próxima, uma garota em torno dos quatorze anos a quem a mãe chamava de "Estrela", não fez segredo que torcia para que houvesse um combate.

- Um ano, quando eu era pequena, houve uma guerra contra uma das tribos de centauros... não o bando de Quíron, pois eles são nossos amigos, mas uma das tribos do interior. Atacaram no momento em que deixávamos o acampamento antigo e tentaram roubar os nossos garanhões mais fortes - contou Estrela. - Mal pude vê-los, pois ainda cavalgava com minha mãe. Mas ouvi os homens gritando quando Pentesiléia avançou para o combate.

- E vencemos?

- Claro que vencemos; se não fosse assim, eles teriam nos levado para seu acampamento e quebrado nossas pernas, a fim de não podermos fugir. - Kassandra lembrou a mulher entrevada no acampamento dos homens, enquanto Estrela acrescentava: - Mas fizemos a paz com eles e emprestamos um garanhão por um ano, a fim de que pudessem melhorar suas manadas. Também concordamos em visitar a aldeia deles naquele ano, em vez de irmos para a de Quíron. Pentesiléia disse que nos tornamos muito aparentados com o pessoal de Quíron e que devemos passar alguns amos sem procurá-los, porque não é aconselhável deitar com nossos próprios pais e irmãos por muitas gerações. E disse ainda que os bebês, assim, nascem fracos e às vezes morrem.

Kassandra não compreendeu e o disse. Estrela soltou uma risada.

- Não deixariam mesmo você ir; antes de ficar nas aldeias dos homens deve se tornar urna mulher, deixar de ser uma menina.

- Já sou uma mulher - protestou Kassandra. - Há dez luas que tenho idade bastante para gerar.

- Mesmo assim, precisa ser uma guerreira experiente; já sou adulta agora há um ano ou mais e ainda não tive permissão para ir às aldeias dos homens. Mas também não tenho pressa; afinal, posso passar nove luas grávida e gerar apenas um macho inútil, que seria entregue à tribo do pai.

- Ir para as aldeias dos homens? Para quê? - Kassandra perguntou e Estrela lhe explicou tudo.

- Acho que você está inventando. Minha mãe e meu pai nunca fariam uma coisa assim.

Ela podia entender uma égua e um garanhão; mas pensar em seus régios pais empenhados naquela atividade parecia-lhe repulsivo. Contudo, com alguma relutância, não pôde deixar de lembrar que todas as vezes que o pai convocava uma das mulheres do palácio a seus aposentos, mais cedo ou mais tarde (em geral mais cedo do que mais tarde), sempre aparecia um novo bebê; se fosse um menino, Príamo procurava o ourives real e encomendava lindos presentes, anéis, correntes e taças de ouro, para a mulher assim .favorecida e seu filho.

Talvez, no final das contas, aquela coisa que Estrela lhe contava fosse verdade, por mais estranho que pudesse parecer. Já vira crianças nascendo, mas a mãe sempre lhe dissera que não era digno de uma princesa escutar as conversas das mulheres do palácio; recordava agora algumas piadas grosseiras que não entendera na ocasião e sentiu as faces arderem. Hécuba lhe contara que os bebês eram enviados aos úteros das mulheres pela Mãe Terra e ela se perguntara muitas vezes por que a Deusa não a presenteava com um, já que adorava crianças.

- E por isso que os habitantes da cidade mantêm suas mulheres trancafiadas em aposentos apartados - explicou Estrela. - Dizem que as mulheres da cidade são tão devassas que não se pode confiar quando ficam sozinhas.

- Não são, não! - exclamou Kassandra, sem saber por que estava furiosa.

- São, sim! Se não fossem, por que os homens as manteriam trancadas entre paredes? Nós somos diferentes, mas as mulheres da cidade são como cabras: fornicam com qualquer homem que encontram! - Com um sorriso impertinente para Kassandra, Estrela acrescentou: - Você não é da cidade? Não ficou trancada, longe dos homens?

Kassandra comprimiu os flancos de sua égua com os joelhos e arremeteu para a frente, atacando Estrela com um uivo de raiva. Estrela reagiu, arranhando seu rosto, enquanto Kassandra puxava seus cabelos trançados, tentando arrancá-la da sela. Os animais relinchavam enquanto as duas brigavam. Kassandra sentiu o cotovelo de Estrela atingir seu nariz e o sangue esguichar, enquanto cravava as unhas nas faces da garota.

Então Pentesiléia e Elaria se aproximaram, rindo e empurrando suas montarias entre as duas. Pentesiléia arrancou Kassandra da sela e segurou-a com firmeza, enquanto ela se debatia, furiosa.

- Mas que vergonha, Kassandra! Se lutamos assim entre nós, como podemos acalentar qualquer esperança de manter a paz com as outras tribos? É assim que trata suas irmãs? Afinal, por que estavam brigando?

Kassandra baixou a cabeça, sem responder. Estrela ainda exibia o sorriso repulsivo.

- Eu disse a ela que as mulheres da cidade ficam trancadas porque fornicam como cabras. Se não fosse verdade, por que ela me atacaria? Kassandra gritou:

- Minha mãe não é assim! Mande-a retirar o que disse! Pentesiléia inclinou-se e murmurou em seu ouvido:

- Sua mãe será diferente se ela disser que é verdade ou mentira? - Claro que não. Mas se ela diz...

- Se ela diz, você receia que alguém possa escutar e acreditar? - indagou Pentesiléia, alteando uma sobrancelha. - Por que conceder a ela tanto poder sobre você, Kassandra?

Kassandra baixou a cabeça e permaneceu em silêncio. Pentesiléia olhou para Estrela, de cara amarrada.

É assim que trata uma parenta e hóspede da tribo, irmãzinha?

Inclinou-se e tocou com um dedo o rosto arranhado e sangrando de Estrela.

- Não vou puni-la, pois já foi punida; ela se defendeu muito bem. Na próxima vez demonstre mais cortesia com urna hóspede da tribo. A boa vontade da esposa de Príamo é valiosa para nós.

A rainha virou-se para Kassandra, que ainda apertava firmemente contra seu peito. Kassandra pôde sentir o riso em sua voz quando ela disse:

Já tem idade suficiente para cavalgar sozinha sem se meter em encrencas ou devo conduzi-la à minha frente como uma criança?

- Posso viajar sozinha - respondeu Kassandra, mal-humorada, embora estivesse agradecida a Pentesiléia por defendê-la.

- Pois então vou pô-la de volta em sua sela.

Kassandra sentiu o lombo largo de Vento Sul sob seu corpo. Olhou para Estrela, que lhe torceu o nariz. Kassandra soube assim que as duas eram amigas de novo. Pentesiléia foi para a vanguarda da coluna e a marcha continuou.

Caía uma chuva miúda e gelada e não demorou muito para encharcar tudo. Kassandra levantou a túnica por cima da cabeça, mas os cabelos continuaram molhados e pegajosos. Cavalgaram durante o dia inteiro e continuaram pela noite. Kassandra se perguntou quando alcançariam as novas pastagens. Não sabia para onde iam e avançava pela escuridão úmida, seguindo o rabo do cavalo à sua frente.

Viajava num sonho sombrio e sentia o corpo invadido por estranhas sensações, que não podia identificar. E de repente um fogo surgiu diante de seus olhos e compreendeu que não o contemplava com os próprios olhos. Páris estava sentado diante daquele fogo em algum lugar e contemplava no outro lado uma moça esguia, de cabelos louros e compridos, presos sobre o colo. Ela usava a túnica comprida e pregueada das mulheres do continente, e Kassandra sentiu, pela maneira como Páris a contemplava, a fome intensa no corpo do irmão. Ficou tão confusa que desviou os olhos do fogo e no instante seguinte estava outra vez cavalgando, envolta pelo manto úmido, a água gelada escorrendo por seu pescoço. Seu corpo ainda palpitava com a pressão do que ela sabia ser desejo, embora fosse incapaz de compreender. Era a primeira vez que experimentava uma consciência tão plena de seu corpo... mas ao mesmo tempo não era o seu. Sentia-se perturbada pela lembrança dos olhos enormes da moça, a curva suave do rosto, a projeção dos seios jovens na altura em que a túnica se afastava do corpo, a maneira como tais coisas despertavam sensações totalmente físicas; num relance, ela começou a associá-las com as coisas desconcertantes que Estrela lhe dissera. Foi dominada pela consternação e outro sentimento, que era ainda muito inocente para identificar como vergonha.

A chuva cessou quando faltava pouco para amanhecer, e as nuvens escuras foram sopradas para longe; a lua surgiu e Kassandra pôde constatar que atravessavam um desfiladeiro rochoso, estreito, bem alto. Contemplou as vastas planícies lá embaixo, cobertas por pequenas árvores retorcidas, os campos arados e delimitados por muros de pedras. Desceram lentamente pela encosta íngreme, até que os cavalos da vanguarda diminuíram a marcha e pararam. As tendas foram armadas e o caldeirão de cozinhar, envolto por um pano úmido, foi instalado no centro do acampamento. Os primeiros raios de um sol vermelho já passavam pelo desfiladeiro que haviam cruzado durante a noite. As moças foram despachadas em busca de lenha seca. Havia pouca lenha a se encontrar depois de dias de chuva incessante, mas, sob as oliveiras copadas, Kassandra descobriu uns poucos, gravetos secos e correu para engrossar a fogueira.

O sol elevou-se do horizonte enquanto elas estavam sentadas ali, um fluxo vermelho que prenunciava mais chuva; por isso, continuaram sentadas, desfrutando o calor úmido, secando os cabelos e roupas. Depois, as mulheres mais velhas começaram a supervisionar a arrumação do acampamento e levaram para o interior de uma tenda uma mulher que estava prestes a dar à luz; as guerreiras mandaram as jovens levar os rebanhos para pastar e Kassandra acompanhou-as.

Sentia-se cansada e os olhos ardiam, mas não estava com sono; uma parte de sua mente voltou à tenda em que as mulheres se agrupavam, encorajando a gestante, enquanto outra se projetava ainda mais longe, partilhando com Páris. Ela conhecia o nome da moça, Enone, um doce som mortal; percebeu, aflita, como Páris se apegava ao pensamento que suprimia toda a consciência do que deveria ser a sua preocupação predominante, o dever para com o rebanho. E antes mesmo que o próprio Páris o sentisse, ela ouviu - ou sentiu, ou farejou - a presença da moça, esgueirando-se entre as árvores na encosta da montanha.

A fragrância acre de juníparo os envolvia. Kassandra não soube qual deles, Páris ou a moça, foi o primeiro a ver o outro, quem correu primeiro para se lançar nos braços ansiosos do outro. O contato de beijos sequiosos quase a levaram de volta a seu próprio corpo e espaço, mas agora estava pronta para tudo, persistindo na percepção das emoções e sensações do irmão. E no instante seguinte sentiu Enone estendida sobre a relva macia, enquanto Páris se ajoelhava por cima, puxando as suas roupas.

Subitamente consciente de que aquele não era um momento para partilhar nem mesmo com uma irmã gêmea, Kassandra afastou-se e estava outra vez na sela, gotas de chuva caindo em seu rosto. Ansiava pelo sol de sua terra, o sol de Apolo; e pela primeira vez desde que partira com as amazonas indagou-se quando voltaria.

Sentia-se doente, os olhos ardiam, uma náusea dominou-a. A lembrança do que partilhara respondia a algumas das muitas perguntas em sua mente, mas não tinha certeza se partilhara aquela estranha experiência com o irmão ou com a moça Enone, se fora amante ou amada. Não sabia agora se estava em seu próprio corpo ou ainda estendida na relva macia do monte Ida, com o irmão e a moça, os corpos ainda enlaçados na lassidão posterior ao desejo. A mente não permanecia nos limites de seu corpo, projetando-se muito além, de tal forma que uma parte dela estava ali, no círculo de cavalos e amazonas, e uma parte pairava na tenda de nascimento, onde a parturiente se ajoelhava num círculo de mulheres, observando-a, gritando instruções e estímulos. As dores lancinantes pareciam atacar seu próprio corpo inexperiente. Dilacerada pela confusão, sentiu o sangue se esvair das faces, ouviu a própria respiração subir ofegante pela garganta.

Kassandra virou-se, desesperada; puxou as rédeas com tanta força que a égua quase tropeçou, cravou os calcanhares nos flancos e saiu em disparada pela planície, como se o intenso esforço físico pudesse levar toda a consciência de volta ao próprio corpo. Pentesiléia viu-a se afastar do acampamento, pulou no cavalo e partiu em seu encalço.

Estendida na sela, tentando angustiada excluir tudo além de si mesma, Kassandra sentiu a perseguição e comprimiu os calcanhares contra a água com mais força ainda. Mas o animal de Pentesiléia tinha as pernas mais compridas e ela era melhor amazona; pouco a pouco, a distância entre as duas foi diminuindo e logo a rainha emparelhou com Kassandra, vendo consternada o rosto afogueado e os olhos desvairados da moça.

Estendeu os braços e tirou Kassandra do lombo da égua, ajeitando-a inerte na sela à sua frente.

Sentiu a testa da moça, quente como fogo, parecendo febre. Quase delirante agora, Kassandra debateu-se, mas Pentesiléia segurou-a firme, com os braços fortes.

- Calma! Calma! O que a aflige, Olhos Brilhantes? Sua testa parece queimada pelo sol, mas não é um dia quente!

A voz era gentil, mas Kassandra sentiu que a mulher mais velha escarnecia, e lutou freneticamente para se desvencilhar.

- Não há nada de errado. Não tive a intenção.. .

- Está tudo bem, criança. Ninguém vai machucá-la, ninguém está zangada com você.

Depois de um momento, Kassandra parou de se debater e ficou inerte nos braços de Pentesiléia.

- Conte-me o que aconteceu.

Kassandra falou muito depressa:

- Eu estava... com ele... meu irmão. E uma moça. Não podia me afastar, em nenhum lugar do acampamento...

- Que Deus tenha misericórdia - murmurou Pentesiléia.

Na idade de Kassandra ela também tivera o dom (ou a maldição) da visão a distância. Partilhar experiências para as quais a mente ou o corpo estavam despreparados podia levar à loucura e nem sempre havia um retorno seguro. Kassandra estava em seus braços apenas semiconsciente e a rainha não sabia o que fazer por ela.

Antes de qualquer outra coisa, precisava voltar ao acampamento; estavam longe das outras mulheres e animais, podia haver homens sem leis por ali, e um encontro assim poderia levar Kassandra, no estado em que se encontrava, além dos limites da sanidade. Pentesiléia virou seu animal, segurando as rédeas da égua de Kassandra, aninhando a moça contra seu peito. De volta ao acampamento, desmontou e carregou Kassandra para o interior da tenda, onde a nova mãe repousava, ao lado do bebê adormecido. Pentesiléia deitou Kassandra sobre uma manta e sentou ao lado, a mão firme na testa da sobrinha, cobrindo seus olhos, desejando que ela excluísse todas as intromissões de sua mente.

Os soluços de Kassandra cessaram e gradativamente ela se acalmou, virando o rosto para a mão de Pentesiléia, enroscando-se contra ela como urna criança recém-nascida. Depois de um longo momento, a rainha das amazonas perguntou:

- Está melhor agora?

- Estou, sim, mas... vai acontecer de novo?

- Provavelmente. É uma dádiva da Deusa, com a qual deve aprender a conviver. Há pouco que eu possa fazer para ajudá-la, criança. Talvez a Mãe Serpente a tenha escolhido para falar pelos Deuses; há sacerdotisas e videntes entre nós. Talvez, quando chegar o momento de descer para o interior da terra e encontrá-la.. .

- Não estou entendendo...

Kassandra lembrou-se então da ocasião em que Apolo lhe falara e dissera que seria Sua sacerdotisa. Contou tudo e Pentesiléia pareceu aliviada.

- Foi mesmo? Nada sei a respeito do seu Senhor do Sol, mas acho estranho que uma mulher procure um Deus, em vez da Mãe Terra ou da nossa Mãe Serpente. É Ela quem habita o mundo inferior e reina sobre todos os reinos das mulheres... as trevas do nascimento e da morte. Talvez Ela a tenha chamado também e você não ouvisse Sua voz. Ouvi dizer que isso às vezes acontece com sacerdotisas natas: se não ouvem o Seu chamado, Ela lhes estende a mão através da escuridão dos sonhos maus, a fim de que aprendam a escutar Sua voz.

Kassandra não tinha certeza; pouco sabia da Mãe Serpente de Pentesiléia, mas lembrava-se das lindas serpentes na morada de Apolo e como ansiara em acariciá-las. Talvez aquela Mãe Serpente a tivesse chamado, não apenas o radiante e amado Senhor do Sol.

Esperava que a parenta, que tanto sabia sobre a Deusa, lhe dissesse o que devia fazer para se livrar daquela visão indesejável. Começava a compreender agora que devia se controlar, devia encontrar dentro de si mesma uma maneira de fechar as comportas, antes que as visões a sufocassem.

- Tentarei - murmurou Kassandra. - Existe alguém que saiba dessas coisas?

- Talvez entre os servidores dos Deuses. Você é uma princesa de duas casas reais, da nossa, as amazonas, e da de seu pai. Nada sei sobre esses Deuses, mas haverá um momento em que você, como uma de nós, deverá descer ao fundo da terra para encontrar-se com a Mãe Serpente. Como Ela já a chamou, creio que deve ser mais cedo em vez de mais tarde. Talvez na próxima lua. Falarei com as anciãs para saber o que dizem a seu respeito.

Talvez seja por isso que o Deus me chamou para ser Sua servidora, pensou Kassandra. Mas fora ela mesma que abrira as comportas; não deveria se queixar por receber o dom que pedira.

Dia após dia a tribo continuou a avançar, suportando ventos furiosos e a chuva gelada. O tempo se tornava mais e mais frio, as mulheres se agasalhavam à noite com todos os trajes de lã e mantas. Kassandra enroscava-se junto à sua égua, abrigando-se ao calor do corpo grande e macio. E veio a ocasião em que os céus foram-se tomando mais claros e brilhantes, e a chuva cessou. E a tribo continuava a seguir para leste; quando as mulheres indagavam sobre o momento em que parariam e encontrariam pastagens para os cavalos, Pentesiléia limitava-se a suspirar e responder:

- Devemos primeiro passar por dois rios, como a Deusa determinou.

A lua ficara cheia e tornara a definhar quando encontraram os primeiros seres humanos na jornada: um pequeno bando de homens vestindo peles em que ainda haviam pêlos, o que levou as mulheres a concluírem que ainda desconheciam a arte de curtir o couro.

Há pastagens aqui, pensou Kassandra; este pode ser o lugar para descansar nossas manadas e permanecer. Mas não com estes homens...

Os homens contemplaram boquiabertos e aturdidos as mulheres. Pentesiléia adiantou-se em seu cavalo.

- Quem são os donos daqueles rebanhos? - perguntou ela, apontando para as ovelhas e cabras que pastavam na vegetação de um verde intenso.

- Somos nós - respondeu um dos homens. - Que tipo de cabras estão montando? Nunca vimos cabras tão grandes e saudáveis.

Pentesiléia já ia dizer que não eram cabras e sim cavalos, mas depois refletiu que poderia obter algum benefício para a tribo usando a ignorância daqueles homens.

- São as cabras de Posêidon, o Deus do Mar.

E o homem perguntou:

- O que é o mar?

- Águas que vão daqui ao horizonte.

Ele ficou impressionado.

- Que coisa! Nunca vimos muita água, a não ser a que encontramos em buracos lamacentos e que secam no verão! Não é de admirar que pareçam tão fortes e gordas!

Ele sorriu insinuante e perguntou, em seu rude dialeto, se as mulheres não gostariam de pastar seus animais ali.

- Talvez por um ou dois dias - respondeu Pentesiléia.

- Onde estão os seus homens?

- Não temos nenhum; estamos livres de todos os homens. Mas aceitaremos a hospitalidade de sua pastagem por esta noite, pois estamos viajando há muito tempo. Nossos animais estão cansados e ficarão felizes com um pouco de sua boa relva.

- São bem-vindas aqui - declarou outro homem, que parecia um pouco mais limpo do que o resto, o traje um pouco mais arrumado.

Enquanto desmontavam, Pentesiléia sussurrou para Kassandra que deviam se manter cautelosas e não dormir, mas vigiar os cavalos durante a noite inteira.

- Não confio nem um pouco nesses homens. Assim que estivermos dormindo ou pensarem que dormimos, acho que eles tentarão roubar os cavalos e talvez nos atacar.

Os homens tentavam se esgueirar para o círculo de mulheres e aproximar-se furtivamente. Kassandra refletiu que se fossem mulheres da cidade, inexperientes em astúcia, jamais compreenderiam o que os homens estavam fazendo. Ela se levantou com as outras moças para estender as mantas. Prendeu maneias nas patas de sua égua, a fim de que não pudesse se afastar muito durante a noite, tirou o cinto de couro e deitou em sua manta, entre Elaria e Estrela.

- Eu gostaria de saber se ainda vamos viajar por muito tempo - murmurou Estrela, puxando a manta sobre os ombros frágeis, protegendo-se contra a umidade. - Se não encontrarmos comida em breve, as crianças começarão a morrer.

- A situação não é tão ruim assim - protestou Elaria. - Ainda nem começamos a sangrar os cavalos. Podemos viver de seu sangue por um mês pelo menos, antes de começarem a enfraquecer. Houve um ano ruim em que vivemos do sangue das éguas por dois meses. Minha primeira filha morreu e estávamos todas tão próximas da inanição que nenhuma, quando fomos para a aldeia dos homens, engravidou por quase meio ano.

- Estou com tanta fome que tomaria o sangue das éguas... ou qualquer outra coisa - resmungou Estrela.

- Não podemos fazer isso enquanto Pentesiléia não der a ordem - disse Elaria. - Ela sabe o que está fazendo.

- Não sei, não - murmurou Estrela. - Deixar que a gente durma aqui, entre todos esses homens...

- Só que ela nos disse para não dormir - explicou Elaria.

A lua se elevou lentamente por cima das árvores e continuou a subir. E de repente, através das pálpebras semicerradas, Kassandra avistou vultos escuros a se esgueirarem pela clareira.

Esperava pelo sinal de Pentesiléia quando subitamente as estrelas lá em cima foram bloqueadas por uma sombra escura e no instante seguinte o peso do corpo de um homem a comprimia; mãos puxavam seu culote, apertavam os seios. Kassandra segurava a adaga de bronze; debateu-se para se desvencilhar, mas estava imobilizada pelos pés. Chutou e mordeu a mão que lhe tapava a boca; o agressor ganiu - como o cão que era, pensou Kassandra, furiosa - e ela levantou com toda força o punho da adaga, acertando-o na boca; ele tornou a ganir e Kassandra sentiu um jorro de sangue e imprecações saindo pelos lábios rachados. Ela virou a adaga e golpeou; ele gritou e caiu por cima de Kassandra, no momento em que Pentesiléia gritava e por toda parte as mulheres se levantavam. Alguém jogou uma tocha nas brasas da fogueira e as chamas saltaram, projetando luz sobre as adagas de bronze nas mãos das mulheres.

- É essa a hospitalidade que oferece a hóspedes?

- Já cuidei de um deles, tia! - gritou Kassandra.

Ela se desvencilhou, empurrando o homem a gemer de cima do seu corpo.

Pentesiléia aproximou-se e deu uma olhada.

- Acabe com ele. Não o deixe morrer lentamente, sentindo uma dor intensa.

Mas eu não quero matá-lo, pensou Kassandra. Ele não pode me fazer qualquer mal agora, e não chegou afazer nada de mais. Mesmo assim ela conhecia a lei das amazonas: a morte para qualquer homem que tentasse violentar uma amazona; e não podia violar essa lei. Sob os olhos frios de Pentesiléia, Kassandra inclinou-se relutante para o homem ferido e cravou a adaga em sua garganta. Ele gorgolejou e morreu. Ela se empertigou, consternada, sentiu a mão dura de Pentesiléia em seu ombro.

- Bom trabalho. Agora é de fato uma de nossas guerreiras.

A rainha das amazonas avançou à luz da tocha para confrontar os homens reunidos.

- Os Deuses determinaram que a hospitalidade é sagrada - declarou. - Apesar disso, um dos seus homens quis violar uma de minhas donzelas. Que desculpas podem apresentar para essa quebra da hospitalidade?

- Mas quem já ouviu falar de mulheres cavalgando sozinhas assim? - argumentou o homem. - Os Deuses protegem apenas as mulheres que são esposas decentes, o que não acontece com vocês. Não pertencem a ninguém.

- Que Deus lhe disse isso? - indagou Pentesiléia.

- Não precisamos de nenhum Deus para nos dizer o que é evidente. As mulheres foram feitas para o trabalho de mulheres e para atender às necessidades dos homens. Nunca ouvi falar de mulheres cavalgando sozinhas, tão longe de seus homens. E como vocês não tinham maridos, resolvemos capturá-las e dar o que mais precisam, homens para cuidar de vocês.

- Não é do que precisamos nem o que procuramos - respondeu a rainha das amazonas, gesticulando para que as mulheres cercassem os homens com suas armas.

- Peguem-nos!

Kassandra viu-se correndo para a frente com as outras, a adaga levantada. O homem que atacou não fez qualquer esforço para se defender; ela derrubou-o e ajoelhou-se por cima, a adaga em sua garganta.

- Não nos matem! - gritou o líder dos homens. - Não queríamos machucá-las!

- Não querem agora - disse Pentesiléia, incisiva. - Mas quando dormíamos e pensaram que estávamos desamparadas, teriam nos matado ou violentado! O homem soltou um grunhido.

- Mas quem já ouviu falar de mulheres viajando sozinhas ou usando armas de homens? Como podíamos saber?

Pentesiléia comprimiu a adaga contra sua garganta e ele se encolheu todo.

- Silêncio! Jura pelos seus Deuses que nunca mais molestará uma mulher de nossa tribo... ou de qualquer outra... se o deixarmos viver?

- Não podemos jurar isso - protestou o líder. - Os Deuses as mandaram para nós e tentamos capturá-las. Acho que fizemos o que era certo.

Pentesiléia deu de ombros e cortou sua garganta. Os outros homens gritaram que juravam e ela fez um sinal para que as mulheres os soltassem. Um a um, à exceção do líder, eles se ajoelharam e fizeram o juramento.

- Não confio nem mesmo no juramento desses homens, depois que estiverem fora do alcance de nossas armas - comentou Pentesiléia.

Ela deu ordens para que todos os bens da tribo fossem reunidos e os cavalos selados, a fim de que pudessem partir ao amanhecer. Depois da noite insone, os olhos de Kassandra ardiam e a cabeça doía; tinha a sensação de que ainda podia sentir as mãos rudes do homem em seu corpo. Quando quis se mexer, não o conseguiu; seu corpo estava rígido; ouviu alguém gritar seu nome, mas o som estava muito distante.

Pentesiléia aproximou-se e o contato de sua mão fez Kassandra voltar a si. - Pode montar? - perguntou Pentesiléia.

Sem dizer nada, Kassandra acenou com a cabeça e subiu para a sela. A mãe de criação veio abraçá-la, murmurando:

- Saiu-se muito bem. Agora que já matou um homem, é uma guerreira, pronta para lutar por nós. Não é mais uma criança.

Pentesiléia deu o sinal para a partida e Kassandra, estremecendo, pôs a égua para andar. Ajeitou a manta em torno dos ombros.

Cheira d morte, pensou.

As amazonas seguiram em frente, a chuva fria em seus rostos; Kassandra invejou as mulheres que carregavam os potes cobertos com as brasas quentes. Para leste, sempre para leste, elas continuaram a cavalgar, o vento esfriando, cada vez mais. Depois de um longo tempo, o céu clareou para um cinza pálido, mas não houve um verdadeiro amanhecer. Kassandra ouvia as mulheres resmungarem ao redor, e tremia de fome e frio.

Pentesiléia finalmente ordenou uma parada e as mulheres começaram a armar as tendas, pela primeira vez em muitos dias. Kassandra continuou junto de sua égua, precisando do calor do corpo do animal; o frio terrível parecia se infiltrar em todos os seus músculos e ossos. Não demorou muito para que houvesse fogueiras acesas no centro do acampamento, e ela foi se agachar com as outras em torno do fogo.

Pentesiléia apontou para um campo próximo e as mulheres viram, espantadas, cereais quase maduros. Kassandra mal podia acreditar em seus olhos: cereais naquela estação?

- E o trigo do inverno - explicou Pentesiléia. - As pessoas daqui plantam o grão antes de cair a primeira neve; ele passa o inverno debaixo da neve e amadurece antes da colheita da cevada. Eles têm dois grãos para este clima frio e é o centeio que procuro.

A rainha das amazonas chamou Kassandra, que se adiantou e perguntou:

- Para que terra viemos, tia?

- Esta é a terra dos trácios. Para o norte... - Pentesiléia apontou - ... fica a antiga cidade da Cólquida.

Kassandra lembrou-se de uma das histórias da mãe.

- Onde Jasão encontrou o tosão de ouro, com a ajuda da feiticeira Medéia?

- Isso mesmo. Mas há pouco ouro ali hoje em dia, embora haja muita feitiçaria.

- Há pessoas vivendo por aqui?

Parecia impossível para Kassandra que alguém optasse por viver num lugar tão desolado.

- O trigo e o centeio não se plantam sozinhos. Onde há grãos, há sempre alguém, homem ou mulher, para plantá-lo. Aqui vivem pessoas e também há... - fez uma pausa, apontando -... cavalos.

A distância, no horizonte, Kassandra divisou pequenas manchas em movimento, que não pareciam maiores do que ovelhas; mas pela maneira como se deslocavam, ela compreendeu que eram cavalos. Ao se aproximarem, Kassandra pôde perceber que eram muito diferentes dos cavalos das amazonas: pequenos, pardos, corpos atarracados, pêlos abundantes e densos.

- Os cavalos selvagens do norte - explicou Pentesiléia. - Nunca foram montados ou domados. Nenhum Deus jamais os tocou a fim de marcá-los para os homens ou as mulheres. Se pertencem a algum Deus ou Deusa, só podem ser propriedade da Caçadora Ártemis.

Como que guiada por um só espírito, toda a manada virou e afastou-se a galope, depois que a égua na vanguarda parou por um instante e olhou para as mulheres, as narinas dilatadas, os olhos brilhantes.

- Farejam nosso garanhão - disse Pentesiléia. - Teremos de vigiá-lo; se ele farejar uma manada de éguas, pode tentar acrescentá-las às suas e aqueles animais de nada nos servem. Não poderíamos alimentá-los. Não teríamos pastagens em quantidade suficiente.

O que estamos fazendo aqui? - indagou Kassandra.

- A Deusa é sábia. Aqui, na terra dos trácios, podemos obter ferro e reabastecer nosso estoque de armas. Haverá grãos à venda na cidade da Cólquida, se não mesmo por perto. Temos coisas para trocar: peças de couro, como selas, rédeas e outros artigos. Iremos à aldeia esta tarde para tentar comprar comida.

Kassandra olhou para o céu cinzento e se perguntou como alguém podia saber se era manhã ou tarde. Imaginou que Pentesiléia tinha algum meio de determinar.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Pentesiléia chamou Kassandra e outra donzela, de nome Evandre, seguindo para a aldeia que ficava no meio das plantações. Quando entraram na aldeia - apenas umas poucas casas redondas de pedra, com um prédio central sem telhado, onde as mulheres trabalhavam na modelagem de potes - os habitantes saíram para vê-las.

Muitas mulheres seguravam rocas em que estavam enrolados pêlos de cabra ou lã. Usavam saias compridas e largas de pêlo de cabra, tingidas de verde ou azul; os cabelos eram escuros e desgrenhados. Algumas tinham crianças no colo ou agarradas na saia.

Kassandra reparou, com um calafrio de horror, que muitas crianças eram terrivelmente deformadas. Uma menina tinha uma fenda no lábio, uma abertura que subia até as narinas, como uma ferida aberta; outra tinha apenas um polegar e mais um dedo deformado na mão pequena, parecendo uma garra. Ela nunca antes vira crianças vivas assim; em Tróia, uma criança que nascia deformada era imediatamente abandonada nas encostas do monte Ida para perecer nas garras dos lobos ou outros animais selvagens. Mulheres e crianças mantiveram-se a distância, sem falar, mas olhando curiosas para as amazonas e seus cavalos. - Para onde estão indo?

- Para o norte, pela vontade de nossa Deusa, e no momento para a Cólquida - respondeu Pentesiléia. - Gostaríamos de permutar grãos aqui. - O que têm para oferecer?

- Peças de couro.

As mulheres sacudiram a cabeça.

- Fazemos as nossas peças de couro das peles de cavalos e cabras - respondeu uma mulher, que parecia ser a líder. - Mas vendam-nos uma dúzia de suas meninas e poderão levar todos os grãos que conseguirem carregar.

Pentesiléia ficou pálida de raiva.

- Nenhuma mulher de nossa tribo jamais foi vendida à escravidão.

- Não as queremos para escravas - explicou a mulher. - Vamos adotá-las como filhas. Uma doença nos assolou, muitas mulheres morreram de parto e outras não podem gerar crianças saudáveis; por isso, as mulheres são muito preciosas para nós.

Pentesiléia ficou ainda mais pálida e sussurrou para Evandre:

- Avise que nenhuma mulher deve desmontar por um instante sequer nesta aldeia, qualquer que seja o motivo, não importa do que precise. Vamos seguir adiante.

- Qual é o problema, tia? - perguntou Kassandra.

- Não devemos tocar em seus grãos - respondeu Pentesiléia baixinho, e acrescentando em seguida com voz alta para a mulher: - Lamento a doença, mas nada podemos fazer para ajudar. Mas dou-lhes um conselho: se puderem, cortem todos os grãos ainda de pé e queimem; nem mesmo os deixem caídos para fertilizar o solo. Consigam sementes novas de algum lugar ao sul. Examinem as sementes com todo cuidado, em busca de qualquer sinal de praga. Foi isso que envenenou os úteros de suas mulheres.

Ao se afastarem da aldeia, Pentesiléia, passando pelos campos de centeio, abaixou-se e arrancou alguns talos verdes, apontando para o lugar em que as sementes deveriam se formar. Estendeu para Kassandra, indicando as fibras arroxeadas nas pontas dos talos.

- Olhe só. Sinta o cheiro; como uma sacerdotisa, deve ser capaz de reconhecer isso, sempre que encontrar. Não o prove, o que quer que você faça, jamais o coma, mesmo que esteja faminta.

Kassandra farejou e descobriu um cheiro estranho, bolorento, quase de peixe.

- Este centeio envenenará quem comer seus grãos ou mesmo o pão que dele for feito. É a pior forma de envenenamento, pois mata as crianças no ventre e pode destruir a fertilidade de uma mulher por anos. Aquela aldeia pode já estar condenada. O que é uma pena, pois suas mulheres são bonitas e diligentes, seu trabalho de tecelagem é extraordinário. E também produzem excelentes peças de cerâmica.

- Todas elas morrerão, tia?

- Provavelmente. Muitas comerão os grãos envenenados e não morrerão, mas não haverá mais crianças saudáveis nascendo naquela aldeia; e quando estiverem bastante desesperadas para impor um ano de fome à sua gente, talvez já seja tarde demais.

- E os Deuses permitem que isso aconteça? - indagou Kassandra. - Que Deusa está tão irada que lança a praga dos grãos sobre a aldeia?

- Não sei, mas talvez não seja a obra de qualquer Deusa. Só sei que ocorre ano após ano, especialmente quando houve chuva demais.

Kassandra jamais duvidara de que os grãos dos campos eram velados e cresciam pela intervenção direta da Mãe Terra; aquilo era uma heresia assustadora e ela tratou de remover de sua mente o mais depressa possível. Estava outra vez consciente da fome - há tanto tempo que não tinha qualquer alimento substancial que quase deixava de pensar a respeito por dias a fio.

Enquanto cavalgavam, começaram a divisar pequenos animais entrando e saindo de tocas no solo. Uma garota armou rapidamente o arco e disparou uma flecha de caça, de madeira endurecida ao fogo em vez de metal; o animal caiu de lado e ficou esperneando. A arqueira saltou do pônei e desfechou uma pancada em sua cabeça. Uma chuva de flechas acompanhou a primeira, mas apenas uma ou duas atingiram o alvo. O pensamento de lebre assada no espeto deixou Kassandra com água na boca.

Pentesiléia levantou a mão para deter as amazonas, declarando:

- Acamparemos aqui e prometo que não seguiremos viagem enquanto não estivermos todas alimentadas de alguma forma. As guerreiras devem pegar seus arcos e caçarem. As outras devem montar alvos e praticar com suas flechas. Temos negligenciado os exercícios de caça e combate durante a viagem. Flechas demais erraram o alvo. No tempo de minha mãe, tantas flechas teriam proporcionado lebres suficientes para alimentar a todas.

Uma pausa e ela acrescentou:

- Sei como todas estão famintas... não me agrada passar fome tanto quanto a vocês e há muito tempo que não faço uma boa refeição. Mas eu lhes peço, irmãs, se encontrarem... ou roubarem... qualquer grão ou alimento feito de grão daquela aldeia, devem me mostrar antes de comer. Aqueles grãos estão amaldiçoados e as mulheres que comerem seu pão podem abortar ou ter uma criança sem olho ou apenas com um dedo na mão.

Uma mulher, com um ar de desafio, tirou um pão duro e um pouco mofado de debaixo da túnica.

- Darei isso a alguma mulher que já passou da idade de gerar filhos e poderá comer em segurança - e acrescentou: Não roubei. Troquei por uma fivela velha.

Uma das mulheres mais velhas da tribo disse então:

- Aceitarei o pão em troca da minha parte na lebre que abati com a minha flecha. Há muito tempo que não saboreio um pão e tenho certeza de que nunca mais gerarei qualquer criança para ser prejudicada.

A visão do pão deixou Kassandra ainda mais faminta, a tal ponto que se arriscaria a abortar ou gerar uma criança defeituosa num futuro distante; mas não podia desobedecer à tia. Outras amazonas trouxeram alimentos que haviam trocado - ou roubado - na aldeia e Pentesiléia confiscou e jogou no fogo a maior parte.

Kassandra foi praticar com um alvo, enquanto as guerreiras mais experientes saíam para caçar e as velhas espalhavam-se pela planície à procura de alimentos de qualquer tipo. O inverno já avançara bastante para que pudessem encontrar frutas, mas podia haver por ali raízes ou cogumelos comestíveis.

O dia curto de inverno se transformava em crepúsculo quando as caçadoras voltaram e logo as lebres retalhadas cozinhavam num caldeirão, com favas silvestres e algumas raízes; nacos de carne de algum animal maior - ele fora esfolado, mas Kassandra desconfiava de que era um dos cavalos selvagens de pêlo duro, embora estivesse com tanta fome que não se importava - assavam sobre uma enorme fogueira. Pelo menos naquela noite elas dormiriam saciadas e Pentesiléia prometera que haveria abundância de comida na Cólquida.

 

- Lá está! - exclamou Pentesiléia, apontando. - A cidade da Cólquida!

Acostumada às ciclópicas muralhas fortificadas de Tróia, erguendo-se muito acima dos rios da fértil planície, Kassandra não se impressionou à primeira vista com as muralhas de tijolos endurecidos ao sol, opacos à luz enevoada do sol. Aquela cidade, pensou, seria vulnerável ao ataque de qualquer parte. Em seu ano com as amazonas, Kassandra aprendera alguma coisa - não formalmente, mas pelas histórias das outras amazonas sobre sítios e guerras - de estratégia militar.

- É como as cidades do Egito e dos hititas - explicou Pentesiléia. - Eles não constróem fortificações impressivas, porque não precisam. Além dos portões de ferro, encontrará templos e as estátuas de seus Deuses. São maiores do que os templos e as estátuas de Tróia, assim como as muralhas de Tróia são maiores do que as da Cólquida. A história é que a cidade foi fundada pelo antigo povo navegador do sul. São diferentes de todos os povos por aqui, como vai descobrir ao entrar na cidade. São estranhos e possuem muitos costumes curiosos. - Ela soltou uma risada. - Mas creio que elas devem dizer a mesma coisa a nosso respeito.

De tudo isso, Kassandra gravou apenas portões de ferro. Quase não conhecia o metal; o pai lhe mostrara um dia uma argola de metal preto e dissera que era ferro.

- E muito dispendioso e difícil de trabalhar para a fabricação de armas - comentara Príamo. - Algum dia, quando se souber mais sobre a forja de ferro, talvez o metal passe a ser usado no arado, pois é muito mais duro do que o bronze.

Agora, recordando, Kassandra refletiu que uma cidade e um povo que conhecia bastante o ferro para forjá-lo em portões devia ser sábio.

- A cidade nunca foi tomada porque seus portões são de ferro? - perguntou.

Pentesiléia fitou-a com alguma surpresa e disse:

- Não sei. É um povo impetuoso, mas raramente se envolve em guerra. Talvez seja por se encontrar tão longe das principais áreas de comércio. Mesmo assim, recebe pessoas que vêm de todos os cantos do mundo em busca de ferro.

- Entraremos na cidade ou vamos acampar do lado de fora das muralhas?

- Esta noite dormiremos na cidade. A rainha é praticamente uma de nós. É filha da irmã de minha mãe.

Nesse caso, pensou Kassandra, ela é também parenta de minha mãe, e minha.

- E o rei?

- Não há rei. Imandra reina aqui e ainda não escolheu um consorte.

Por trás da cidade erguiam-se penhascos avermelhados, ofuscando os portões. O caminho que levava à cidade era calçado com enormes blocos de pedra. As casas, com degraus e arcadas de pedra, eram feitas de madeira, emboçadas e pintadas. As ruas da cidade não eram calçadas, mas lamacentas e socadas; estranhas bestas de carga, chifrudas e peludas, circulavam entre as casas, levando cestos e jarros. Os donos empurraram-nas para os lados quando as amazonas, em formação quase militar, avançaram pelas ruas. Kassandra, consciente de que todos a observavam, ergueu a lança apesar do cansaço e empertigou-se, tentando parecer urna guerreira.

A cidade era muito diferente de Tróia. As mulheres andavam livremente pelas ruas, equilibrando jarros e cestos na cabeça. Os trajes das mulheres eram compridos, grossos e incômodos; apesar das roupas desajeitadas e dos olhos pintados, elas pareciam fortes e competentes. Kassandra também viu uma forja em que uma mulher trabalhava, o rosto escuro e manchado de fuligem, com os músculos poderosos de uma guerreira. Despida da cintura para cima, a fim de suportar o calor intenso, ela malhava uma espada. Uma jovem, não muito mais que uma menina, acionava o fole. Em seus meses com as amazonas, Kassandra vira mulheres fazendo as coisas mais estranhas, mas nenhuma tão estranha assim.

As sentinelas nas muralhas eram mulheres também e podiam muito bem pertencer às amazonas, pois estavam armadas e usavam peitorais de bronze, empunhando lanças compridas. Enquanto as amazonas cavalgavam pelas ruas, as sentinelas soltaram longos gritos de guerra; não demorou muito para que meia dúzia, as lanças inclinadas em sinal de paz, aparecesse nas ruas à frente da caravana. A líder adiantou-se e abraçou Pentesiléia na sela.

- Nós a saudamos.com regozijo, Pentesiléia, rainha de éguas - disse ela. - A senhora da Cólquida envia seus cumprimentos e se alegra com seu retorno à cidade. Pede que suas mulheres armem o acampamento no campo dentro da muralha sul e a convida a ser hóspede no palácio, com uma ou duas amigas, se assim desejar.

A rainha das amazonas transmitiu às outras as notícias trazidas pela sentinela. A mulher da Cólquida acrescentou:

- E mais: a rainha envia às suas mulheres duas ovelhas como um presente e uma cesta com pão feito hoje mesmo nos fornos reais; que suas mulheres se banqueteiem aqui, enquanto você vai ao seu encontro no palácio.

ris amazonas prorromperam em aclamações à perspectiva daqueles alimentos que há tempo não saboreavam. Pentesiléia esperou que suas mulheres estivessem acampadas, as tendas armadas e as ovelhas abatidas. Kassandra, de pé com um pedaço de delicioso flanco assado, notou que a ovelha tinha uma aparência comum, como a de Tróia. Observando-a, Pentesiléia indagou:

- O que foi? Esperava que as ovelhas da Cólquida tivessem tosões de ouro? Não é assim que elas crescem; nem mesmo os rebanhos de Apolo, Senhor do Sol, nascem assim. Mas os colquidenses mergulham os tosões no córrego para recolher o ouro que ainda desce pelos rios; embora talvez haja menos ouro hoje do que no tempo de Jasão, ainda verá os tosões de ouro antes da partida. E agora vamos nos vestir para jantar à mesa de uma rainha.

A rainha das amazonas foi para sua tenda, tirou o traje de montaria e pôs a sua melhor saia e botas brancas de couro de corça, com uma túnica que deixava um seio à mostra, como era o costume ali. Avisada para se vestir da melhor forma possível, Kassandra pôs sua túnica troiana - estava muito curta para ela agora, descendo só até o meio das pernas - e as sandálias. Pentesiléia tirara um pedaço de kohl de seu alforje e passava nos olhos; virou-se quando Kassandra se apresentou e perguntou:

- É o seu único traje, criança?

- É, sim.

- Não serve. Você cresceu mais do que eu pensava. - Pentesiléia abriu seu alforje e tirou um traje usado, cor de açafrão, bem claro. - Ficará grande em você, mas ajeite da melhor forma que puder.

Kassandra enfiou o traje pela cabeça e prendeu-o com seus velhos broches de bronze. Sentia-se tão estorvada pelas saias em torno dos joelhos que era difícil lembrar que houvera um tempo em que usava aquele tipo de traje todos os dias.

Juntas, elas seguiram pelas ruas calçadas da Cólquida. Há muito tempo que Kassandra não andava pelo interior das muralhas de uma cidade e sentiu que ficava atordoada como uma bárbara.

O palácio era um pouco parecido com o de Tróia, construído com o mármore cinza local. Ficava no ponto alto no centro da cidade e não havia sequer um templo mais elevado; Kassandra, criada no costume de sua terra, pelo qual as moradas dos homens não podiam ser tão altas quanto os templos dos Deuses, ficou um pouco chocada.

Parando nos degraus do palácio, elas puderam contemplar o mar. Como em Tróia, pensou Kassandra; só que aquele mar não tinha o azul intenso de que ela se lembrava, mas um cinza escuro e oleoso. Homens carregavam e descarregavam navios pacificamente; não eram piratas nem atacantes, mas mercadores. Tantos navios assim nas proximidades de Tróia seriam um sinal de desastre ou guerra.

Mas ela podia vê-los ao largo de Tróia, tantos navios que o azul do mar estava escurecido...

Comum esforço imenso, ela retomou ao presente. Não havia perigo ali...

- O que foi? - indagou Pentesiléia, tocando em seu braço. - O que você

viu?

- Navios - murmurou Kassandra. - Navios... ameaçando Tróia...

- Não há dúvida de que vai acontecer, se Príamo continuar como começou - comentou Pentesiléia, secamente. - Seu pai tentou conquistar um poder que não é bastante forte para manter e um dia esse poder será posto à prova. Mas agora não devemos deixar a rainha Imandra à espera.

Kassandra nunca pensara em questionar a política de seu pai; mas podia compreender que era verdade o que Pentesiléia dizia. Príamo cobrava tributos de todos os navios que passavam pelos estreitos para aquele mar; até agora os akaios pagavam, porque era mais fácil do que organizar uma armada e desafiar a imposição. Ela olhou para os portões de ferro e compreendeu que acarretariam todo um novo modo de vida, mais cedo ou mais tarde.

Disse a si mesma que não estava sendo realista: o pai era forte, com tantos guerreiros e aliados; poderia manter Tróia para sempre. Talvez um dia também Tróia tenha portões de ferro, como esta cidade da Cólquida. Ao passarem pelos corredores largos, as mulheres da guarda, em peitorais de bronze e capacetes de couro incrustados com metal, levantavam os punhos em sinal de saudação. Chegaram a uma sala de teto alto com uma clarabóia, incrustada de uma pedra verde translúcida; havia no centro um trono de mármore em que uma mulher estava sentada.

Ela parecia uma guerreira, com um peitoral de prata batida, mas por baixo vestia uma túnica do melhor brocado do extremo sul e uma camisa de gaze egípcia, do tipo que era conhecido como "ar tecido". Usava no rosto uma barba postiça, dourada e presa como uma peruca cerimonial; Kassandra concluiu que era o símbolo de que ela reinava não como uma mulher, mas como o rei da cidade. Tinha um cinto cravejado de pedras verdes, do qual pendia uma espada. Usava botas de couro, bordadas e tingidas, subindo até o meio das pernas. Logo abaixo do peitoral, um pouco acima da cintura, havia um estranho cinto, que parecia descer e subir no ritmo da respiração; ao se aproximarem, Kassandra constatou que era uma serpente viva. A rainha da Cólquida levantou-se e disse:

- Eu lhe saúdo com regozijo, prima. Suas guerreiras foram bem recebidas e festejadas? Há mais alguma coisa que eu possa fazer para acolhê-la melhor, Pentesiléia, rainha das amazonas?

Pentesiléia sorriu e respondeu:

- Fomos muito bem recebidas, senhora da Cólquida; e agora me diga o que deseja de nós. Pois a conheço desde que éramos crianças e sei muito bem que quando eu e minhas guerreiras somos tão bem recebidas e festejadas não é apenas pela cortesia. O parentesco já seria suficiente para que eu me colocasse e às minhas guerreiras à sua disposição, Imandra. O que deseja de nós?

- Estou vendo que me conhece muito bem, Pentesiléia. É verdade, preciso

dos serviços de guerreiras amigas. - Imandra falava com uma voz meio rouca e agradável. - Mas, primeiro, vamos partilhar o jantar. Quem é essa donzela que a acompanha, prima? É jovem demais para ser uma de suas filhas.

- É filha de nossa parenta Hécuba, de Tróia. - E mesmo?

As sobrancelhas delicadamente pintadas de Imandra se arquearam num arco gracioso.

Ela chamou uma camareira e estalou os dedos de leve; foi o sinal para que diversos escravos se adiantassem, carregando travessas cravejadas de pedras preciosas, com as mais variadas comidas: carne de boi e aves com vários molhos deliciosos, frutas com mel, doces tão temperados com especiarias que Kassandra nem mesmo podia adivinhar de que eram feitos.

Sentira tanta fome, por tanto tempo, que toda aquela comida deixou-a um pouco nauseada; comeu moderadamente a galinha e alguns bolos duros de massa de pão; depois, por insistência da rainha, comeu um doce temperado com canela. Notou que Pentesiléia também comeu pouco. Depois que as travessas com comida foram levadas e a água de rosa foi despejada em suas mãos, a rainha de Cólquida disse:

- Prima, pensei que Hécuba há muito tivesse esquecido os seus dias como guerreira. Mas mesmo assim a filha cavalga com você? Não tenho qualquer querela com Príamo de Tróia. Ela é bem-vinda aqui. É a moça que deve casar com Akiles?

- Eu nunca soube disso - respondeu Pentesiléia. - E creio que Príamo descobrirá, ao tentar encontrar um marido para esta, que os Deuses já a reclamaram.

- Talvez seja então uma de suas irmãs - sugeriu Imandra, indiferente. - Se precisarmos de um rei na Cólquida, talvez eu case minha filha com um dos filhos de Príamo. Já tenho uma filha em idade de casar. Diga-me, filha de Príamo: seu irmão mais velho já está comprometido com algum casamento?

Kassandra respondeu timidamente:

- Não, ao que eu saiba. Mas meu pai não me revela seus planos. É possível que tenha acertado tudo há tantos anos que nunca ouvi falar a respeito.

- Bem falado - aprovou Imandra. - Quando você voltar a Tróia, meus enviados a acompanharão, oferecendo minha Andrômaca ao filho de seu pai; se não o mais velho, então a outro... ele tem cinqüenta, pelo que sei, e vários são filhos de sua real mãe, não é mesmo?

- Não creio que haja cinqüenta, mas são muitos.

- Que seja.

No momento em que Imandra estendeu a mão para Kassandra, a serpente enroscada em sua cintura começou a se mexer; rastejou por seu braço e passou para a mão de Kassandra, enroscando-se no pulso, como uma pulseira.

- Ela gosta de você - comentou Imandra. - Alguma vez foi ensinada a manipular serpentes?

Recordando as serpentes no Templo de Apolo, Senhor do Sol, Kassandra disse apenas:

- As serpentes não me são estranhas.

- Tome cuidado; ficará muito doente se ela lhe morder.

Kassandra não sentiu medo, mas sim uma curiosa exultação, enquanto a serpente rastejava por seu braço, as escamas macias e secas proporcionando uma sensação de prazer em sua carne.

- E agora vamos tratar de um assunto sério - disse Imandra. - Pentesiléia, viu os navios no porto?

- Quem poderia deixar de ver? São muitos.

- Estão carregados de estanho e ferro do norte, da terra dos hiperbóreos. Como não podia deixar de ser, são cobiçados por todos os reis. Já que não lhes vendo estanho suficiente para seu bronze, alegam que temo as armas que produzirão, enquanto a verdade é que tenho pouco e eles nada possuem que me atraia  passaram a atacar minhas caravanas e levar o estanho sem pagamento. Há bem poucas guerreiras treinadas nesta cidade. Quanto quer para que suas guerreiras guardem meus carregamentos de metal?

Pentesiléia alteou as sobrancelhas.

- Seria mais simples... e desconfio que mais barato também - vender o que eles querem.

- E deixar que se armem contra mim? É melhor que meus ferreiros façam armas e deixar que eles paguem em ouro pelo que quiserem. Mando um pouco de estanho, chumbo e também ferro para o sul, para os reis hititas ... aqueles que restaram. Essas caravanas também são assaltadas. Há ouro para você e suas mulheres na minha proposta, se aceitarem.

- Posso guardar suas caravanas, Imandra, mas o preço não será pequeno. Minhas guerreiras viajaram até aqui sob um presságio e não estão ansiosas pela guerra. Tudo o que querem é voltar às nossas pastagens na primavera.

Kassandra se desinteressou da conversa; estava absorvida na serpente que se enroscava em seu braço, subia pela frente de seu vestido, deslizava entre seus seios. Olhou para o lado, onde uma escrava jogava com três bolas douradas no ar, querendo saber como a moça conseguia. Quando voltou a prestar atenção no que acontecia, Pentesiléia e Imandra se abraçavam. A rainha da Cólquida disse:

- Aguardarei suas guerreiras depois de amanhã; até lá, as caravanas serão carregadas e os navios partirão de volta para as minas secretas nas terras do norte. Minhas guardas as escoltarão até o campo em que suas guerreiras estão acampadas. Que a Deusa lhe conceda uma boa-noite, Pentesiléia... e a você

também, pequena parenta. - Ela estendeu a mão. - Minha serpente me abandonou. Peço-lhe que a devolva para mim, Kassandra.

Com alguma relutância, Kassandra enfiou a mão por dentro do vestido e pegou a serpente, que se enroscou em seu pulso. Soltou-a meio desajeitada, com a outra mão.

- Deve voltar e brincar com ela outra vez - sugeriu Imandra. - Se peço a alguém que a segure para mim, quase sempre a pessoa é mordida. Mas ela aceitou como se você fosse uma sacerdotisa. Vai voltar?

- Terei o maior prazer - murmurou Kassandra.

Imandra tirou a serpente de seu pulso e ela rastejou depressa por seu braço e entrou pela túnica.

- A satisfação será minha por recebê-la em outro dia, filha de Hécuba. Até lá.

Ao se retirarem, com as guardas caminhando dois passos atrás, Kassandra pensou que pareciam mais prisioneiras sendo escoltadas do que hóspedes de honra sendo protegidas. Mesmo assim, enquanto seguiam pelas ruas movimentadas, ela ouviu sons de luta em vielas e até um grito abafado; e concluiu que ali, naquela estranha cidade, talvez não fosse tão seguro, no final das contas, mulheres de fora andarem sozinhas.

 

Dez dias depois Pentesiléia partiu da Cólquida com um grupo seleto de guerreiras amazonas, entre as quais estava Kassandra. Elas acompanhariam as caravanas de estanho, descarregado dos navios no porto, a caminho do sul, para a terra distante dos reis hititas.

Secretamente, Kassandra recordou as palavras da profecia: "Ali permaneçam até a queda das estrelas da primavera!" Sua parenta estaria desafiando a ordem da Deusa? Mas não lhe cabia fazer perguntas. Levava através dos ombros o arco cita, formado por dois chifres, presos com os pêlos trançados do rabo de sua égua. Ao lado tinha a lança curta de ponta de metal de uma guerreira amazona. Cavalgando perto de Estrela, lembrou que a amiga já participara de uma batalha.

Mas a manhã lhe parecia muito pacífica, o ar claro iluminado por um sol pálido, umas poucas nuvens vagando pelo céu. Os cascos dos animais soavam abafados na estrada, um contraponto ao ranger forte das carroças, cada uma puxada por dois pares de mulas e contendo pilhas de fardos e lingotes do metal opaco/lustroso, cobertos por um pano preto tão grosso quanto a vela de um navio.

Na noite anterior, com as outras guerreiras, Kassandra vigiara o carregamento das carroças; pensando na escuridão densa dos lingotes de ferro e na opacidade do estanho, ela se perguntou como era possível que aquelas coisas tão

feias fossem tão valiosas. Afinal, havia metal suficiente nas profundezas da terra para que todos os homens pudessem ter sua parte; por que então os homens - e as mulheres - travariam guerras por causa daquele material? Se não havia o suficiente para aqueles que o desejavam, seria muito fácil extrair mais das minas. Contudo, parecia que a rainha Imandra se orgulhava de não haver o suficiente para todos os que queriam uma parte.

O dia transcorreu sem qualquer anormalidade; as amazonas cavalgavam em fila única pela planície, avançando devagar para acompanhar o ritmo das carroças de rodas pequenas. Kassandra ficou ao lado de uma mulher ferreira da Cólquida, conversando a respeito de seu estranho ofício; descobriu surpresa que a mulher era casada e tinha três filhos crescidos.

- E nunca tive uma filha para poder treinar em meu ofício!

- Por que não pode ensinar o trabalho de ferreira a um dos seus filhos? - indagou Kassandra.

A mulher pequena e musculosa fitou-a de rosto franzido.

- Pensei que as mulheres das tribos das amazonas pudessem compreender. Vocês nem mesmo criam seus filhos homens, sabendo como são inúteis. Escute bem, menina: o metal é arrancado do ventre da Mãe Terra; como seria a sua ira se algum homem ousasse tocar ou moldar sua dádiva? É um trabalho de mulher preparar o metal para uso dos homens. Nenhum homem pode assumir o ofício de ferreiro, pois a Mãe Terra não perdoaria sua intromissão.

Se a Deusa não quer que esta mulher ensine o oficio a seus filhos, pensou Kassandra, por que não lhe deu nenhuma filha? Mas ela estava aprendendo a não

expressar todo e qualquer pensamento que lhe passasse pela cabeça. E murmurou apenas:

- Talvez ainda tenha uma filha.

Mas a ferreira protestou.

- Correr o risco de gerar de novo quando já vivi quase quarenta invernos?

Kassandra não respondeu; em vez disso, adiantou-se para ficar atrás de Estrela. A companheira removia a sujeira debaixo das unhas com uma faca de osso.

- Acha mesmo que teremos de lutar?

- Faz alguma diferença o que eu penso? A Senhora acha que sim e sabe mais do que eu a respeito disso.

Censurada de novo, Kassandra refugiou-se em seus pensamentos. Fazia frio e ventava; ela ajeitou o manto grosso nos ombros e pensou no combate. Desde que vivia com as amazonas que praticava com o arco quase todos os dias, tinha alguma habilidade com a lança e até mesmo com a espada. Seu irmão mais velho, Heitor, estava em treinamento de guerreiro desde que tinha idade suficiente para empunhar uma espada; ganhara a primeira armadura quando tinha sete anos. A mãe também fora uma donzela guerreira, mas em Tróia nunca ocorrera a ninguém que Kassandra ou sua irmã Polixena devessem aprender qualquer coisa sobre armas ou guerra. Como todos os filhos de Príamo, fora criada com histórias de heróis e glória, mas houvera ocasiões em que a guerra lhe parecera uma coisa horrível e que era melhor não se envolver. Mas se a guerra era uma coisa tão abominável para as mulheres, por que então seria boa para os homens? E se era meritória e honrosa para os homens, por que seria errado as mulheres partilharem a honra e a glória?

A única resposta que ela pôde encontrar para sua perplexidade foi o comentário de Hécuba: Não é o costume.

Mas por quê?, indagara ela. E a mãe só tivera uma resposta: Os costumes não têm explicação; apenas existem.

Ela não acreditava nisso agora, como também, naquela ocasião, não acreditara.

Retraindo-se, Kassandra descobriu-se a procurar interiormente pelo irmão gêmeo. Tróia e as encostas ensolaradas do monte Ida pareciam muito distantes. Pensou no dia em que Páris perseguira e alcançara a moça Enone e as estranhas e arrebatadas emoções que o encontro dos dois lhe despertara. Especulou onde o irmão se encontrava naquele momento e o que estaria fazendo.

Mas exceto por um vislumbre breve e neutro das ovelhas e cabras pastando nas encostas do monte Ida, não havia nada para ver. De um modo geral, pensou Kassandra, são os homens que viajam, enquanto as mulheres permanecem em casa; mas aqui estou eu, tão longe de casa, com meu irmão nas encostas da montanha sagrada. E por que não podia ser assim, pelo menos uma vez no mundo?

Quem sabe se ela não seria a heroína, em vez de Heitor ou Páris?

Mas nada aconteceu; as carroças se arrastavam e as amazonas cavalgavam atrás.

Quando o pôr-do-sol tão cedo do inverno alongou as sombras, em formas irregulares e ondulantes, e as amazonas reuniram seus animais num círculo compacto em torno das carroças para acampar, Pentesiléia expressou o que todas estavam pensando:

- Com a caravana tão protegida, talvez não haja qualquer ataque; talvez nos desgastemos numa viagem longa e extenuante.

- Não seria a melhor coisa que poderia acontecer, eles nunca atacarem e a caravana chegar ao final da viagem em paz? - indagou uma guerreira. - Tudo seria então resolvido sem guerra.

- Não seria, não. Saberíamos que eles continuavam espreitando e volta

riam a atacar no momento em que a guarda fosse afastada; perderíamos todo o inverno aqui - explicou outra mulher. - Prefiro que esses piratas sejam liquidados de uma vez por todas.

- Imandra quer que fique bem clara a lição de que as caravanas da Cólquida não devem ser atacadas - disse uma terceira mulher, com a maior veemência. - E essa lição seria a melhor coisa que poderia acontecer.

Elas prepararam um guisado de carne-seca na fogueira e dormiram num círculo em torno das carroças. Kassandra notou que muitas mulheres convidaram os homens das carroças a partilharem suas mantas. Sentiu-se solitária, mas nunca

lhe passou pela cabeça fazer a mesma coisa. Pouco a pouco o acampamento foi se tornando silencioso, até que não havia qualquer som além do vento eterno das planícies; e todos dormiam.

A impressão era de que aquele dia se repetiu muitas vezes; arrastavam-se como minhocas, no ritmo das pesadas carroças. Ao final desse período, Kassandra, olhando para trás, através da vasta planície, refletiu que pareciam estar a apenas um dia de viagem, num cavalo bom e veloz, dos portões de ferro e do porto cheio de navios da Cólquida.

Perdera a conta dos dias tediosos em que não havia aventura maior do que um fardo caindo de uma carroça, obrigando a todas a pararem, enquanto se rearrumava a carga.

No décimo primeiro ou décimo segundo dia - ela já não sabia mais com certeza porque nada havia para registrar o tempo - Kassandra observava um dos fardos amarrados a deslizar lentamente para trás, sob a lona que cobria a carga. Sabia que deveria se adiantar e comunicar ao chefe da Caravana ou pelo menos ao cocheiro da carroça, para que se pudesse endireitá-lo; mas a queda do fardo serviria para quebrar um pouco a monotonia. E contou os passos para que o fardo acabasse por perder de todo o equilíbrio e caísse.

- Guerra - resmungou ela para Estrela. - Guardar caravanas nem chega a ser uma aventura. Teremos de seguir por todo o caminho até a terra dos hititas? E haverá alguma coisa mais interessante do que isso?

- Quem sabe? - murmurou Estrela. - Tenho a sensação de que fomos enganadas... prometeram-nos batalha e bom pagamento. E até agora nada aconteceu nesta viagem enfadonha. Pelo menos deveremos ter coisas diferentes para ver na terra dos hititas. Ouvi dizer que nunca chove por lá; as casas são feitas de tijolos de barro e se houvesse uma chuva mais forte as casas, templos e palácios desmoronariam, todo o império hitita ruiria. Mas aqui há tão pouco para se pensar a respeito que me sinto tentada a convidar aquele belo guardador de cavalos para minha manta.

- Não pode fazer isso!

- Não? E por que não? O que tenho a perder? Só o que é proibido para uma guerreira é ter um filho e ser obrigada a passar os próximos quatro anos amamentando e lavando, em vez de lutar e conquistar seu lugar entre as guerreiras.

Kassandra ficou um pouco chocada; Estrela falava com irreverência sobre aquelas coisas.

- Não reparou que ele está sempre olhando para mim? - insistiu Estrela. - É bonito e tem os ombros fortes. Ou você é uma daquelas que fizeram o voto de permanecer castas como a Donzela Caçadora?

Kassandra não pensara muito sério a respeito. Presumira que passaria pelo menos alguns anos com as guerreiras amazonas, que aceitavam a castidade como algo natural.

- Mas por toda a vida, Kassandra? Viver sozinha? Isto deve ser bom para uma Deusa, que pode ter qualquer homem que quiser. Mas até mesmo a Donzela, pelo que dizem, de vez em quando baixa os olhos do Céu e escolhe um belo rapaz para partilhar sua cama.

- Não acredito nisso - protestou Kassandra. - Acho que os homens gostam de contar essas histórias porque não lhes agrada pensar que alguma mulher pode resistir a eles; não querem sequer pensar que uma Deusa possa optar por permanecer casta.

- E acho que eles estão certos _ declarou Estrela. - Deitar com um homem é o que toda mulher deseja... só que entre nós não estamos fadadas a permanecer com homem algum, nem cuidar de sua casa e atender a seus desejos; mas sem os homens também não teríamos filhos. Estou ansiosa para escolher o meu primeiro homem... e tenho certeza de que você também, apesar de tudo o que diz, não é muito diferente.

Kassandra lembrou-se do rude pastor que tentara viola-la e sentiu-se nauseada. Pelo menos ali, entre as amazonas, ninguém exigiria que se entregasse a algum homem, a menos que ela própria assim decidisse; e não podia imaginar

por que qualquer mulher tomaria tal decisão.

- Mas seu caso é diferente, Kassandra. Você é uma princesa de Tróia e seu pai providenciará o casamento com qualquer homem que desejar; um rei, um príncipe ou um herói. Não há nada assim em meu futuro.

- Mas se você quer um homem, por que está vivendo com as amazonas?

- Não tive opção. Não sou uma amazona porque desejasse sê-lo mas sim porque minha mãe e a mãe dela escolheram esse modo de vida.

- Não posso imaginar uma vida melhor do que esta - comentou Kassandra.

- Então sua imaginação é muito curta, pois qualquer outra vida seria melhor do que esta. Claro que prefiro ser uma guerreira a uma mulher de aldeia com as pernas quebradas, mas também preferiria viver numa cidade como a Cólquida e ter um marido a ser uma guerreira.

Não era o tipo de vida de que Kassandra gostaria e ela não pôde pensar em mais nada para dizer. Voltou a observar os fardos em movimento na pesada carroça e estava semi adormecida na sela quando um grito a despertou e o cocheiro da carroça caiu na trilha, com uma flecha na garganta.

Pentesiléia gritou para suas guerreiras. Kassandra armou seu arco rapidamente, ajustou uma flecha e disparou contra o mais próximo dos homens desgrenhados que de repente enxameavam pela planície, surgindo da areia como dentes de dragão. A flecha atingiu o alvo; o homem que surgira ao lado do cocheiro tombou com um grito de dor. Ao mesmo tempo, um pesado fardo deslocou-se na trilha rochosa e esmagou outro atacante, que tentava subir na carroça. Homem e metal rolaram pela encosta. Urna guerreira saltou do cavalo e correu em sua direção, liquidando-o com a lança.

Um homem agarrou as correias da sela de Kassandra e puxou sua perna; ela chutou, mas o homem conseguiu derrubá-la. Kassandra caiu tentando desembainhar a faca.

Desferiu um golpe para cima enquanto o homem pulava em cima dela. O sangue espirrou da boca do atacante; outro golpe, desta vez com a lança, e ele tombou sem vida sobre o corpo de Kassandra. Ela fez um esforço para se desvencilhar do peso. E no instante seguinte havia uma lança apontada para sua garganta; ela golpeou para cima com a faca, a fim de afastar a lança, sentindo uma dor lancinante na face.

A mão de um homem segurava seu cotovelo; Kassandra bateu com o cotovelo na boca do atacante, sentiu o sangue e um dente espirrarem em seu rosto. Olhando para trás, divisou muitos homens levantando os fardos de metal e jogando-os à beira da estrada; podia ouvir Estrela gritando em algum lugar e o zumbido das flechas voando. Ao seu redor soava o estridente grito de guerra das amazonas. Kassandra desferiu um golpe com a lança e o atacante tombou morto; ela puxou a arma e descobriu-a coberta de sangue e entranhas. Aprontando apressada o arco, ela começou a disparar contra os invasores, mas a cada flecha temia atingir uma de suas companheiras.

E um momento depois tudo acabou; Pentesiléia correu para a carroça, chamando suas guerreiras para se reunirem. Kassandra foi pegar seu cavalo e descobriu, espantada, que o animal passara incólume pela densa chuva de flechas. O cocheiro da carroça estava morto, caído de costas à beira da estrada. Estrela jazia meio esmagada sob o seu cavalo morto, atingido por meia dúzia de flechas dos estranhos. Kassandra correu para tentar levantar o animal de cima do corpo da amiga. Estrela estava imóvel, a túnica rasgada, a parte posterior da cabeça esmigalhada numa massa sangrenta, os olhos vidrados perdidos no espaço.

Ela queria uma batalha, pensou Kassandra. Pois teve o que procurava. Inclinou-se sobre a amiga e fechou seus olhos gentilmente. Só então Kassandra percebeu que também estava ferida; a face fora aberta, o sangue escorria da aba de pele e carne.

Pentesiléia aproximou-se e inclinou-se sobre o corpo de Estrela.

- Ela era jovem demais para morrer - murmurou a rainha das amazonas. - Mas lutou bravamente.

Isso de nada adiantava para Estrela agora, pensou Kassandra. A rainha das amazonas virou-se para fitá-la e acrescentou:

- Mas você também está ferida, criança. Deixe-me cuidar de seu ferimento.

Kassandra balbuciou, apaticamente:

- Não é nada. Não dói. - Mas doerá depois.

Pentesiléia levou-a para uma das carroças, onde Elaria lavou a face ferida com vinho e depois passou azeite.

- Agora você é uma autêntica guerreira - comentou Elaria.

Kassandra recordou que ouvira o mesmo comentário na noite em que matara o homem que tentara violá-la. Mas refletiu que uma batalha real a convertia

numa guerreira mais genuína. E sentiu orgulho do ferimento, a marca de sua primeira batalha. Pentesiléia, com o rosto manchado de sangue, inclinou-se para examinar o ferimento limpo e franziu o rosto.

- Prenda com todo cuidado, Elaria, ou a cicatriz será horrível... e não podemos deixar que isso aconteça.

- Que diferença faz? - indagou Kassandra, cansada. - A maioria das guerreiras amazonas tem cicatrizes.

A própria Pentesiléia tinha um ferimento no queixo, de onde o sangue pingava. Kassandra tocou em sua face com dedos cautelosos.

- Quando sarar, mal vai aparecer. Por que fazer tanto estardalhaço? - Parece estar esquecendo, Kassandra, que você não é uma amazona.

- Minha mãe já foi uma guerreira - protestou Kassandra. - Vai compreender urna honrosa cicatriz de batalha.

- Só que ela não é mais uma guerreira - declarou Pentesiléia, com uma expressão sombria. - Optou há muito tempo pela vida que desejava... viver com

seu pai, cuidar de sua casa, gerar seus filhos. Assim, se seu pai ficar irado... e pode estar certa de que isso acontecerá, se a mandarmos de volta com a beleza desfigurada... sua mãe ficará consternada; e a boa vontade de Hécuba é muito valiosa para nós. Você voltará a Tróia quando seguirmos para o sul na primavera.

- Não! - protestou Kassandra. - Só agora começo a ser de alguma utilidade para a tribo, em vez de dm fardo. Por que deveria voltar a ser um camundongo doméstico.. . - Pronunciou as palavras desdenhosamente  no momento em que demonstro ser capaz de me tornar uma guerreira?

- Pense um pouco, Kassandra, e vai compreender por que deve partir - respondeu Pentesiléia. - Está se tornando uma guerreira, o que seria ótimo se fosse passar o resto da vida entre nós. Eu a acolheria com o maior prazer na tribo, uma autêntica guerreira e uma filha para mim, enquanto eu vivesse. Mas isso não é possível; mais cedo ou mais tarde você deve voltar à sua vida em Tróia... e como é inevitável, então é melhor para você que seja mais cedo. Já tem agora idade suficiente para casar; é possível até que seu pai já lhe tenha encontrado um marido. Eu não a mandaria de volta tão mudada que se sentiria infeliz se tivesse de passar a vida inteira dentro das muralhas da cidade.

Kassandra sabia que era verdade, mas parecia-lhe que estava sendo punida por se tornar uma guerreira.

- Não fique tão abatida, Olhos Brilhantes; não a mandarei embora amanhã. - Pentesiléia puxou a moça para seu peito, afagando-lhe os cabelos. - Permanecerá conosco pelo menos por mais uma lua, talvez duas, e voltará à Cólquida. Também não esqueci a promessa que lhe fiz. A Deusa chamou-a para Seu serviço, pôs a mão em você como uma sacerdotisa nata; não poderíamos mesmo reivindicá-la como uma guerreira. Antes de nos deixar, providenciaremos para que seja apresentada a Ela.

Kassandra ainda sentia que fora enganada; esforçara-se muito e bravamente para ser aceita como uma guerreira amazona e fora justamente esse empenho e bravura em batalha que a levara a perder o objetivo cobiçado.

O cenário da batalha estava sendo limpo; os corpos das amazonas - além de Estrela, duas outras guerreiras haviam sido mortas por flechas e uma fora esmagada sob o cavalo caído - eram arrastados para serem incinerados. Pentesiléia empurrou Kassandra para baixo, gentilmente, quando ela quis se levantar.

- Descanse; você está ferida.

- Descansar? O que as outras guerreiras estão fazendo, feridas ou não? Não posso cumprir o papel de uma guerreira pelo menos enquanto permanecer entre vocês?

Pentesiléia suspirou.

- Como quiser. É seu direito ver as mortas sendo enviadas ao Senhor do Mundo Inferior.

Com profunda ternura, a rainha das amazonas tocou no rosto ferido de Kassandra. Deusa, Mãe das Éguas, Senhora que molda nossos Destinos, por que não mandou esta, a verdadeira filha de meu coração, para o meu ventre, em vez de entregá-la à minha irmã, que prefere dá-la ao domínio de um homem? Ela não conhecerá a felicidade ali e vejo apenas as trevas estendendo-se à sua frente; as trevas e a sombra do destino de outro.

Seu coração ansiava por Kassandra como nunca ansiara pelas próprias filhas; mas sabia que a filha de Hécuba deveria assumir seu próprio destino, que ela não poderia abrandá-lo, e que a Deusa das Trevas pusera a mão sobre a menina.

Nenhuma mulher pode escapar a seu Destino, refletiu ela. É um erro tentar privar a Mãe Terra de Seu sacrifício previsto. Por amor a ela, no entanto, eu a mandaria servir à Mãe Terra lá embaixo, em vez de condená-la a servir à Sinistra aqui, nas terras mortais.

 

Kassandra viu as companheiras sendo entregues às chamas sem qualquer demonstração visível de emoção; naquela noite, ao acamparem, por insistência das duas, ela estendeu sua manta entre Pentesiléia e Elaria.

Passou por sua cabeça que uma decisão fora tomada sem que a consultassem. Agora que o maior perigo já passara, elas pareciam ter-se lembrado subitamente de que estavam com uma princesa de Tróia, que precisava ser protegida com todo cuidado. Mas não era nem mais nem menos princesa do que fora dois ou três dias antes.

Sentia falta de Estrela, embora não fossem, ela refletia agora, realmente amigas. Havia um horror reprimido em Kassandra ao pensar que em todas as noites daquela viagem estendera a manta ao lado da moça cujo corpo se transformara agora em cinzas, depois de esmagado e perfurado por flechas.

Um pouco menos de sorte, um oponente um pouco mais competente, e a lança teria atravessado sua garganta, em vez de apenas cortar a face; e seu corpo teria queimado naquela noite na pira. Kassandra sentia-se vagamente culpada e era muito nova no mundo das guerreiras para saber que todas as mulheres deitadas ao seu redor sentiam exatamente a mesma coisa: culpada e transtornada por continuar viva, enquanto a amiga morrera.

Pentesiléia comentara que a Deusa pusera a mão sobre ela, como se fosse um fato corriqueiro. Kassandra descobriu-se a especular se fora poupada porque a Deusa a reservava para algum uso especial.

O ferimento no rosto comichava com uma intensidade angustiante; ao levantar a mão para tentar atenuar a aflição, coçando ou esfregando, uma dor intensa a impedia de fazer o contato. Ajeitou a manta que dobrara sob a cabeça e tentou encontrar uma posição confortável para dormir. Que Deusa lhe pusera a mão? Pentesiléia lhe dissera um dia, de passagem, que todas as Deusas eram a mesma, embora cada aldeia e tribo tivesse seu próprio nome para designá-la. Havia muitas: a Dama Lua, cujas marés e ritmos diários exerciam unta cornpuls.3o sobre todas as fêmeas; a Mãe das Éguas, que Pentesiléia invocava; a Donzela Caçadora, que concedia Sua proteção a todas as donzelas e que disparava flechas, guardiã das guerreiras; a Mãe das Trevas do fundo da terra; a Mãe Serpente do Mundo Inferior... mas ela, pensou Kassandra, confusa, ao resvalar para o sono, fora abatida pelas flechas de Apolo...

Como acontecia com muita freqüência um momento antes de mergulhar no sono, ela se projetou em sua mente para o contato familiar com os pensamentos do irmão gêmeo. Lá estava o sussurro do vento em sua terra, a fragrância de tomilho no monte Ida a lhe envolver os sentidos; foi envolvida pela escuridão da cabana do pastor, em que nunca entrara com seu próprio corpo; perguntou-se o que Páris teria pensado da batalha. Ou será que lhe parecia uma coisa corriqueira? Não, isso não acontecia, pois agora ela, urna mulher, tinha mais experiência de batalha do que ele. Kassandra pôde ver - ou sentir - a seu lado um vulto adormecido, que identificou como a mulher Enone, que por tanto tempo fora o centro de suas fantasias - das fantasias de Páris. Acostumara-se nos últimos meses a essa estranha divisão entre ela e o irmão gêmeo, até que não sabia mais direito quais sensações e emoções eram suas e quais as de Páris Ela estava adormecida e sonhando? Ou ele é que estava?

O luar iluminava os contornos de brilho suave de uma mulher, parada na entrada ensombreada da cabana do pastor. Kassandra compreendeu que contemplava a forma da Dama; urna rainha, magnífica e reluzente, que agora mudava de posição, a luz se irradiando do arco de prata, com flechas de luar povoando o pequeno aposento.

O luar parecia penetrar seu corpo - ou o de Páris - passando pelas veias, envolvendo-a como uma rede, atraindo-a para o vulto na porta. Tinha a sensação de que estava de pé diante da Dama e uma voz falava por trás de seu ombro esquerdo...

- Páris, você demonstrou ser um juiz honesto e justo. - Kassandra viu outra vez, por um instante, o touro a que Páris concedera o prêmio na feira. - Assim, deve julgar entre ás Deusas qual é a mais bela.

Ela sentiu a resposta de Páris sair como se fosse de sua própria boca: - Na verdade, 'a Dama é a mais bela sob todas as suas aparências... Uma risada infantil ressoou junto ao ombro esquerdo de Kassandra.

- E você não pode idolatrá-la com perfeita igualdade em todas as Deusas, sem preferir uma em detrimento de outra? Até mesmo o Pai Celeste se esquiva assim a uma decisão tão difícil! - Alguma coisa lisa, fria e pesada foi posta nas mãos de Páris; uma claridade dourada se projetou em seu rosto. - Tome esta maçã e a ofereça à Deusa mais bela.

A presença na porta mudou um pouco de posição; a lua cheia a coroava com um halo resplandecente, a túnica brilhava como mármore polido. A rainha do Pai Celestial estava ali, Hera, imponente e majestosa, enraizada na terra, mas reinando sobre ela.

- Sirva-me, Páris, e será recompensado. Reinará sobre todas as terras conhecidas e a riqueza do mundo será sua.

Kassandra sentiu Páris inclinar a cabeça.

- É realmente bela, Dama, Rainha Todo Poderosa.

Mas a pesada maçã continuava na mão de Páris. Kassandra levantou os olhos, cautelosa, temendo a ira da Deusa, mas agora a lua parecia brilhar através de um nevoeiro dourado, faiscando no elmo e escudo que a Dama carregava. Também se irradiava dela uma claridade dourada e até mesmo a coruja em seu ombro direito brilhava na glória refletida.

- Você terá muita sabedoria, Páris - declarou Atena. - Já sabe que não pode reinar sobre o mundo se não reinar primeiro sobre si mesmo. Eu lhe darei o conhecimento do eu, sobre o qual baseará todos os outros conhecimentos. Terá a sabedoria para viver bem e alcançar a vitória em todas as batalhas.

- Eu agradeço, Senhora, mas sou um pastor, não um guerreiro. E não há guerra aqui; quem se atreveria a desafiar a soberania do rei Príamo?

Kassandra teve a impressão de ver um olhar de desdém no rosto da Dama, mas depois Atena se adiantou; chegou tão perto que Kassandra sentiu que podia estender a mão e tocá-la. O escudo e o elmo haviam desaparecido, assim como a pálida túnica, a luz se irradiando agora do corpo perfeito. Páris levantou as mãos, ainda segurando a maçã, a fim de proteger os olhos, enquanto murmurava:

- Dama Brilhante...

- Há outras batalhas que um pastor pode ganhar facilmente... e que vitória pode haver sem amor e uma mulher para partilhá-la? Você é belo, Páris, e muito agradável a todos os sentidos.

O sopro da Dama roçou no rosto de Páris, que sentiu-se tonto, como se toda a montanha girasse ao seu redor. O ar estava aquecido; ele brilhava intensamente, banhado pelo fulgor dourado da Dama, de voz suave e sedutora, envolvendo-o por completo.

- Você é um homem com o qual qualquer mulher teria orgulho em casar... até mesmo uma mulher como Helena de Esparta, a mais bela mortal.

- Nenhuma mortal poderia se comparar à Sua beleza, Dama.

Páris contemplou Afrodite nos olhos e Kassandra experimentou a estranha sensação de que ela e o irmão se afogavam juntos, levados pela maré de luz que se projetava dos olhos da Rainha do Amor.

- Mas Helena não é inteiramente mortal; é filha de Zeus e sua mãe era bastante bela para tentá-lo. Ela é quase tão linda quanto eu e ainda por cima domina Esparta. Todos os homens a desejam; todos os reis entre os argivos pediram sua mão. Ela escolheu Menelau, mas eu lhe garanto que um olhar seu seria suficiente para fazê-la esquecer essa escolha. Pois você é belo e a beleza tudo atrai.

Kassandra pensou em Enone, deitada em transe ao lado de Páris: Para que ele deseja uma mulher bonita? Já tem uma... - mas Páris parecia estar alheio a sua presença. A maçã parecia leve como uma pluma em sua mão quando a entregou à Deusa Afrodite e o fulgor dourado aumentou ainda mais, como se fosse consumi-lo...

A luz do sol brilhava nos olhos de Kassandra pela abertura da tenda, que Elaria acabara de puxar.

- Como está se sentindo esta manhã, Olhos Brilhantes?

Kassandra esticou-se, cautelosa, estreitando os olhos contra a claridade - apenas a luz do sol, no final das contas, não o luar reluzente da Deusa. Fora uma visão ou apenas um sonho? E se fora um sonho, seria dela ou do irmão? Três Deusas... mas nenhuma delas era a Donzela Caçadora. Por que não?

Talvez Páris não se interesse por donzelas, pensou Kassandra, irreverente. Mas também não houvera qualquer sinal da Mãe Terra... ou a Mãe Terra seria a mesma que Hera? Não, pois a Mãe Terra é Deusa por si mesma, não a esposa de um Deus, enquanto aquelas Deusas estavam todas definidas como esposa ou filha do Pai Celestial. E serão as mesmas que as Deusas de Tróia?

Não, não podiam ser; por que uma Deusa aceitaria ser julgada por algum homem... ou até mesmo, por qualquer Deus?

Nenhuma daquelas Deusas é a Deusa como a conheço - a Donzela, Mãe Terra, Mãe Serpente nem mesmo a Mãe das Éguas de Pentesiléia. Talvez, numa terra em que reinam os Deuses elo Céu, só possam ser vistas as Deusas que são percebidas como servidoras do Deus? O pensamento deixou Kassandra mais confusa do que nunca.

Não pode ter sido um sonho meu, pois se eu sonhasse com Deusas seria com as Deusas que cultuo e reverencio. Já ouvi falar dessas Deusas; a Mãe me falou de Atena, com suas dádivas da oliveira e videira; mas não são minhas nem das amazonas.

- Kassandra? Ainda está dormindo? - indagou Elaria. - Estamos voltando à Cólquida, e Pentesiléia pediu para chamá-la.

Kassandra vestiu o traje de montaria. Enquanto se movimentava, a estranha tensão do sonho - ou visão - pareceu se desvanecer, a tal ponto que em sua mente restou apenas a insólita lembrança das Deusas forasteiras.

A visão é de meu irmão, não minha.

- Avise à minha tia que estarei com ela num instante - disse Kassandra. - Quero apenas escovar os cabelos.

- Deixe-me ajudá-la - murmurou Maria, ajoelhando ao seu lado. - Sua cabeça ainda dói? O curativo saiu de seu rosto. Ah, que bom... não há qualquer sinal de cicatriz. Está curando com perfeição; a Deusa foi generosa com você.

Para si mesma, Kassandra indagou: Que Deusa? Mas não formulou a pergunta em voz alta. Poucos minutos depois estava na sela. Quando as amazonas viraram na direção da Cólquida, para a longa viagem de volta, Kassandra viu à sua frente, na claridade intensa do sol, os rostos e as formas de rodas as Deusas do mundo. Mas o que aquelas Deusas dos akaios queriam com meu irmão ou comigo? Ou com Tróia?

 

Cavalgando em seu próprio ritmo, não mais retardadas pelo lento arrastar das carroças carregadas de estanho, Pentesiléia, Kassandra e as outras que voltariam à Cólquida deixaram a caravana, que continuaria em seu caminho para a terra distante dos hititas. O rosto de Kassandra doía e os solavancos de sua égua faziam-no doer ainda mais. Ela especulou sobre o destino que aguardaria as outras guerreiras em sua jornada e quase desejou poder acompanhá-las para aquela terra desconhecida, mesmo que fosse apenas para se juntar a elas na batalha ou na morte. Mas não devo me queixar, refletiu: já viajei muito mais que qualquer outra mulher de Tróia, fui mais longe que qualquer dos meus irmãos ou até o próprio Príamo.

Pentesiléia não parecia preocupada com a possibilidade de um ataque ao seguirem para a cidade; talvez não valesse a pena atacar as amazonas sem o metal que escoltavam. E quem guardaria a próxima caravana, pensou Kassandra, com tantas amazonas ocupadas em vigiar aquela? Mas ela sabia que isso não era da sua conta.

E agora que pensava a respeito, estava ansiosa em conhecer mais a cidade da Cólquida; o oráculo de Pentesiléia lhe ordenara que permanecesse ali por algum tempo. Depois disso, ela só teria de esperar pelo retorno a Tróia. Compreendia agora o que a parenta quisera dizer ao comentar que ela deveria voltar antes de se tornar completamente incapacitada para a vida normal de uma mulher de Tróia. Mas já é tarde demais para isso, concluiu Kassandra.

Acabarei enlouquecendo, aprisionada entre as paredes de uma casa pelo resto da vida.

E depois ela relembrou a visão das Deusas e do irmão. Com aquele dom, sempre teria um meio de escapar ao ambiente imediato; assim, era mais afortunada do que muitas mulheres.

Mas haveria algum substitutivo para a mudança concreta? Ou apenas um arremedo, a mente escapando das muralhas que a aprisionavam, quando seu corpo não podia sair?

Sentiu que gostaria de conversar a respeito com a mãe, que vivera as duas vidas e poderia compreender. Mas a mãe estaria disposta a conversar livremente, depois de fazer a sua opção irrevogável? O que a mãe ganhara em troca de tudo aquilo a que renunciara? Ainda tomaria a mesma decisão?

Mas Kassandra sabia que ela própria nunca teria a mesma oportunidade. Para Hécuba, era importante que a vissem como poderosa; por isso, nunca admitiria para Kassandra - ou qualquer outra pessoa - que poderia ter feito uma opção menos perfeita.

Quem mais havia com quem ela pudesse conversar? A quem poderia confidenciar sua confusão e angústia? Era improvável que Pentesiléia estivesse disposta a tal discussão; Kassandra tinha certeza de que a parenta a amava, mas a considerava uma criança, não uma igual, com quem poderia conversar livremente.

Embora estivessem viajando na maior velocidade de seus animais, a viagem para a Cólquida parecia interminável. Embora ficassem, ao final do primeiro dia, à vista das muralhas altas da cidade dos portões de ferro, ainda restava um longo caminho a percorrer: dias na sela desde o amanhecer, uma parada ao meio-dia para se comer queijo ou coalhada. Pelo menos era melhor do que a fome nas pastagens do  sul. Só ao pôr-do-sol do terceiro ou quarto dia é que as exaustas amazonas passaram sob os enormes portões e torres. Prorromperam em aclamações a que Kassandra aderiu; mas abrir a boca para gritar fez doer o ferimento no rosto. Estava ficando frio e a chuva ameaçava cair a qualquer momento. À sombra das muralhas, uma mensageira do palácio se aproximou e falou com Pentesiléia, que um instante depois chamou Kassandra e disse:

- Você e eu devemos comparecer agora ao palácio, Kassandra; o resto se juntará às outras no acampamento.

Kassandra se perguntou o que a rainha queria com elas. Seguiram devagar pelas ruas calçadas, largaram os animais nos portões do palácio e foram conduzidas pelas aias de Imandra à presença real.

Ela aguardava na mesma câmara em que as recebera antes. Uma jovem de cachos escuros em torno do pescoço estava escarrapachada ao seu lado, sobre um tapete.

- Vocês se saíram muito bem - declarou Imandra, fazendo um sinal para que as duas se adiantassem.

Pegando a mão de Pentesiléia, ela enfiou no pulso um bracelete de folhas douradas esculpidas, cravejado com pedras verdes. Kassandra nunca vira um objeto tão bonito.

- Não vou prendê-las por muito tempo - prometeu a rainha. - Estão querendo um banho e jantar, depois da longa jornada. Apesar disso, eu precisava lhes falar.

- O prazer é nosso, parenta - respondeu Pentesiléia.

- Andrômaca - disse a rainha Imandra, virando-se para a moça no tapete ao seu lado -, esta é sua prima, Kassandra, filha de Hécuba de Tróia. Ela é a irmã de Heitor, seu prometido marido.

A moça de cabelos escuros sentou no tapete, empurrando para o lado os cachos compridos.

Você é irmã de Heitor? - indagou ela, ansiosa. - Fale-me sobre Heitor. Como ele é?

- É um tirano - respondeu Kassandra, com toda franqueza. - Deve ser muito firme ou ele a tratará como se fosse um tapete, e haverá de pisá-la, e você não passará de uma coisinha tímida, sempre a dizer sim, como minha mãe faz com meu pai.

- Mas é assim que deve ser com marido e mulher - protestou Andrômaca. - De que outra forma um homem poderia se comportar?

- É inútil falar com ela, Kassandra - interveio a rainha Imandra. - Ela deveria ter nascido de uma das suas mulheres que vivem na cidade. Eu queria que ela se tornasse uma guerreira, como pode perceber pelo nome que lhe dei.

- É inútil dizer isso a Kassandra - comentou Pentesiléia. - Ela só fala a sua língua.

- É horrível - murmurou Andrômaca. - Meu nome significa "Aquela que luta como um homem"... quem poderia querer isso?

- Eu quero e é o que faço - proclamou Pentesiléia.

- Não quero ser grosseira com você, parenta, mas não gosto absolutamente de lutar - protestou Andrômaca. - Minha mãe não pode me perdoar por eu não ter nascido para ser uma guerreira como ela, para conquistar todas as honras com as armas.

- Essa lamentável criança não quer saber de armas - comentou Imandra. - É indolente e infantil, só quer ficar dentro de casa e usar belas roupas. Quando tinha a sua idade, eu mal tomava conhecimento da existência dos homens, a não ser de meu mestre de armas... e mesmo assim só queria que ele sentisse orgulho de mim. Cometi o erro de permitir que ela fosse criada por mulheres, dentro de casa; deveria tê-la entregue a você, Pentesiléia, assim que ela pudesse sentar num cavalo. Que tipo de rainha ela daria para a Cólquida? Não serve para coisa alguma além do casamento ... e de que isso adianta?

- Oh, mãe! - exclamou Andrômaca, irritada. - Tem de aceitar que não sou como você. Pelo jeito como fala, fica-se pensando que nada existe na vida além da guerra e das armas, o governo de sua cidade e comércio e os navios, além das fronteiras de seu mundo.

Imandra sorriu.

- Não descobri nada melhor. Você descobriu?

- E o que me diz do amor? - indagou Andrômaca. - Tenho ouvido as mulheres falarem... mulheres de verdade, não mulheres que fingem ser guerreiras...

Imandra interrompeu-a abruptamente, inclinando-se e desferindo um tapa em seu rosto.

- Como ousa falar em "fingir" ser guerreira? Sou uma guerreira e nem por isso me tornei menos mulher!

O sorriso de Andrômaca era malicioso, embora ela levasse a mão ao rosto, que se avermelhava depressa.

- Os homens dizem que as mulheres que empunham armas estão fingindo ser guerreiras só porque são incapazes de fiar e tecer, de fazer tapeçarias e gerar filhos...

- Não a encontrei debaixo de uma oliveira - interveio Imandra.

- E onde está meu pai para confirmar isso? - perguntou a moça, atrevida. Imandra sorriu.

- O que diz a nossa hóspede? Kassandra, você já viveu das duas maneiras...

- Pela cinta da Donzela - respondeu Kassandra -, prefiro ser uma guerreira a uma esposa.

- Isso me parece um absurdo - insistiu Andrômaca -, pois não proporcionou felicidade à minha mãe.

- Mesmo assim, eu não trocaria de lugar com qualquer mulher, casada ou solteira, por todas as praias do mar - afirmou Imandra. - E não sei o que está querendo dizer ao falar em felicidade. Quem meteu essas noções sentimentais em sua cabeça?

Pentesiléia entrou na conversa:

- Deixe-a em paz, Imandra; como já decidiu que ela deve casar, é melhor que se sinta contente nesse estado. Uma moça dessa idade não sabe o que quer nem por quê; e a mesma coisa acontece com as nossas moças.

Kassandra contemplou a jovem de pele macia e faces rosadas ao seu lado.

Acho que você já é perfeita e me parece difícil imaginá-la de outra forma.

Andrômaca estendeu a mão para a face enfaixada de Kassandra, murmurando:

- O que lhe aconteceu, prima?

- Nada que valha a pena mencionar - respondeu Kassandra. - Apenas um arranhão.

Diante dos olhos suaves de Andrômaca, ela sentia sinceramente que não era nada, apenas um incidente trivial, de que se envergonharia se mencionasse. Imandra inclinou-se para a frente e nesse instante Kassandra divisou a cabeça pequena e quadrada se projetando do corpete. Estendeu a mão e indagou, suplicante:

- Posso?

A serpente deslizou para a frente e Imandra guiou-a para a mão de Kassandra.

- Ela falará com você?

Andrômaca observava com o rosto franzido.

- Como pode tocar nessas coisas? Tenho horror a elas.

Kassandra aproximou a serpente de seu rosto, com uma carícia.

- Isso não faz sentido - murmurou ela. - A serpente não vai me morder... e mesmo que mordesse, não me causaria muito mal.

- Não tem nada a ver com o medo de ser mordida - explicou Andrômaca. - Não é certo, não é normal irão sentir medo de serpente. Até mesmo um macaco mantido numa jaula durante toda a vida, sem jamais ter visto uma serpente viva, vai chorar e tremer ao se jogar um pedaço de corda a seus pés, pensando que é uma serpente. E acho que os homens também foram criados pela natureza para ter medo de serpente.

- Talvez então eu não seja normal _ reagiu Kassandra, com rispidez, abaixando a cabeça para a serpente e arrulhando.

Imandra comentou, gentilmente:

- Nem todas as pessoas são como você, Kassandra. Isso só acontece com quem nasce com um vínculo com os Deuses.

- Não estou entendendo. - Kassandra sentia-se mal-humorada e propensa a contestar tudo o que lhe dissessem. Acariciando a serpente, acrescentou: - Sonhei na outra noite... ou talvez tenha sido alguma visão... com as Deusas. Mas a Mãe Serpente não estava entre elas.

- Você sonhou? - disse Imandra. - Fale-me a respeito.

Mas Kassandra hesitou. Sentia em parte que revelar o sonho poderia diluir a magia; recebera-o como um segredo sagrado, que não estava destinado a qualquer outra pessoa. Lançou um olhar suplicante para Pentesiléia, pois também não queria ofender a rainha, que as tratara com tanta generosidade.

- Aconselho a contar a ela, Kassandra - disse a rainha das amazonas. -

Imandra é uma sacerdotisa da Mãe Terra e talvez possa explicar o que significa para o seu destino.

Assim encorajada, Kassandra começou, detalhando cada momento da visão e concluindo com sua confusão ao constatar que nem a Donzela, a Mãe Terra nem a Mãe Serpente estavam entre as Deusas. Imandra escutou com toda atenção, mesmo quando Kassandra por uni momento sufocada pela lembrança, deixou a voz baixar para um sussurro. Quando ela terminou, Imandra perguntou:

- Foi o seu primeiro encontro com qualquer dos Imortais?

- Não, senhora; já vi a Deusa Mãe de Tróia falar pela boca de minha mãe, mas devia ser muito pequena na ocasião. E uma vez... - Ela engoliu em seco e fez um esforço para firmar a voz, pois de outra forma desataria num choro incontrolável, sem saber o motivo         uma vez... em Seu próprio templo... Apolo, Senhor do Sol, me falou claramente.

Sentiu os dedos gentis de Imandra pousarem em seus cabelos.

- Foi como eu pensei ao lhe falar pela primeira vez; foi chamada para ser sacerdotisa. Sabe o que isso significa?

Kassandra sacudiu a cabeça, mas tentou adivinhar:

- Que devo viver no templo e cuidar dos oráculos e rituais?

- Não é tão simples assim, criança – disse Imandra. - Significa que deste dia em diante você deve se interpor entre os homens e os Imortais, explicando os caminhos de uns para os outros... Não é uma vida que eu escolheria para a minha própria filha.

- Mas por que fui escolhida?

- Apenas Aqueles que a chamaram conhecem a resposta para essa pergunta, criança. - A voz de Imandra era extremamente gentil. - Em algumas pessoas Eles põem a mão, de uma maneira que não deixa margem para qualquer dúvida. Não nos explicam os Seus caminhos. Mas se tentamos escapar à Sua vontade, sempre encontram formas de nos forçar a Seu serviço, não se esqueça disso... Ninguém procura ser eleito; são os Deuses que nos escolhem, não somos nós que Os procuramos para oferecer nossos serviços.

Mas eu creio que teria procurado esse serviço, pensou Kassandra. Pelo menos não comecei contra a vontade. A serpente parecia ter adormecido no aconchego de seu braço; Imandra inclinou-se e pegou-a, ainda dormindo, deixando-a deslizar como se derretesse pela frente de sua roupa.

- Quando a próxima lua cheia brilhar, você irá procurá-la - anunciou ela. E Kassandra sentiu um presságio na maneira como ela falou.

 

- Sei muito pouco sobre a vida de unia sacerdotisa - disse Kassandra. - O que devo fazer?

- Se a Deusa a chamou, Ela lhe deixará tudo bem claro - respondeu Pentesiléia. - E se não chamou, não importa o que você faça ou deixe de fazer, tudo continuará igual. - Ela afagou a cabeça de Kassandra e acrescentou: - Deve arrumar uma serpente e um pote para guardá-la.

- Prefiro mantê-la dentro da minha roupa, como faz a rainha.

- Está ótimo, mas qualquer animal deve ter um lugar que seja só seu, como um refúgio.

Kassandra podia compreender. E, assim, foi ao mercado com a parenta, a fim de adquirir um pote; no dia seguinte, disse a si mesma, sairia ao campo para procurar a serpente. Não lhe parecia apropriado comprar uma serpente no mercado por dinheiro, embora pudesse falar com as pessoas que criavam serpentes para o templo. Talvez fosse possível persuadir Imandra a lhe contar o que precisava saber.

Procurou entre os vendedores no mercado, até encontrar um vaso pintado de azul verde, decorado com desenhos de criaturas do mar; num lado havia uma sacerdotisa oferecendo uma serpente a alguma Deusa desconhecida. Kassandra achou que era o recipiente perfeito para guardar sua serpente e comprou-o imediatamente, com o dinheiro que Pentesiléia lhe dera. Havia muitos outros vasos decorados da mesma forma e ela especulou se todos teriam o mesmo uso.

Naquela noite, enquanto o sol se punha, ela ficou com Andrômaca no terraço do palácio, contemplando a cidade na escuridão, as luzes se acendendo, uma a uma.

- Não pode se apresentar à Deusa vestida de culote de couro de uma amazona - disse Andrômaca. - Eu lhe emprestarei uma túnica.

Kassandra franziu o rosto.

- A Deusa é uma tola? Eu sou o que sou; acha que eu poderia enganá-la se trocasse de roupa?

- Tem toda razão, é claro - concordou Andrômaca. - Não faz a menor diferença para a Deusa. Mas as outras devotas podem ver e ficar escandalizadas, sem compreender.

- Isso é outro problema, e entendo o que está querendo dizer. Usarei uma túnica, se for bastante gentil para me emprestar.

- Claro, minha irmã. - Andrômaca hesitou por um instante e depois acrescentou, quase na defensiva: - Será minha irmã se eu casar com seu irmão. Assim, quando chegar a Tróia, terei uma amiga na cidade estranha.

- É verdade. - Kassandra passou o braço em torno da moça mais jovem e as duas permaneceram em silêncio por um momento, na escuridão. - Mas Tróia não é mais estranha do que sua cidade.

- Mais estranha para mim. Estou acostumada a uma cidade em que reina uma rainha. É mesmo verdade que sua mãe Hécuba não governa a cidade?

Kassandra soltou uma risadinha ao pensar em Hécuba governando sobre seu rigoroso pai.

- É, sim. E sua mãe... ela não tem marido?

O que faria com um marido? Duas ou três vezes, desde que meu pai morreu, ela tomou um consorte por uma temporada e depois mandou-o embora, quando se cansou. É o certo para uma rainha fazer se sente desejo por um homem... pelo menos em nossa cidade.

- E ainda assim está disposta a casar com meu irmão e se submeter a ele, como nossas mulheres se submetem a seus homens?

- Acho que vou gostar. - Andrômaca riu e depois exclamou: - Ei, olhe só!

Uma linha de luz intensa riscou o céu e desapareceu no instante seguinte.

Outra se seguiu e mais outra, tão brilhante que por um momento pareceu que a própria Terra girava, enquanto o céu mudava de posição. Uma estrela após outra pareciam se soltar de suas amarras e cair, enquanto as duas moças observavam. Kassandra murmurou.

- ... e lá permanecer até a queda das estrelas da primavera."

Na escuridão, uma sombra partiu-se, tornou-se duas, e a rainha Imandra e Pentesiléia apareceram no terraço.

- Pensei que poderia encontrá-las aqui, meninas - disse Pentesiléia, levantando os olhos para o céu tremeluzente, enquanto uma estrela depois de outra parecia se desligar do firmamento e cair. - É como nos disseram, uma chuva de estrelas cadentes.

- Mas como as estrelas podem cair? - perguntou Andrômaca. - Todas vão cair do céu? E o que acontecerá quando não houver mais nenhuma?

Pentesiléia riu.

- Não precisa ter medo, criança. Todos os anos, há muito tempo, vejo as chuvas de estrelas e sempre restam muitas no céu.

- Além disso - acrescentou Imandra -, não sei como as pessoas na terra seriam afetadas se todas caíssem... só que eu lamentaria não ter a sua luz.

Pentesiléia contou uma história:

- Certa ocasião, quando eu era bem pequena, estava com minha mãe e sua tribo... cavalgando pelas planícies, muito ao norte daqui, entre as montanhas de feno... e uma estrela caiu perto da gente, com tremendo estrondo, um chiado forte, uma claridade intensa. Procuramos durante a noite inteira, com o cheiro de queimado no ar, até que encontramos uma enorme pedra preta, ainda avermelhada; é por isso que muitas pessoas acham que as estrelas são fogo derretido que esfria e se torna rocha. Minha mãe me deixou esta espada, que eu vi ser forjada do metal do céu.

- O ferro do céu é melhor do que o ferro extraído da Terra - confirmou Imandra. - Talvez seja assim porque não está sob a maldição da Mãe... não foi arrancado da Terra, mas é uma dádiva dos Deuses.

- Eu gostaria de poder encontrar uma estrela cadente - murmurou Andrômaca. - Elas são lindas.

Ela ainda se encontrava sob o braço de Kassandra, que murmurou, ao sentir a ansiedade em sua voz:

- Eu gostaria de encontrar alguma e lhe dar como um presente digno de você, irmãzinha.

Pentesiléia comentou:

- Estamos livres para voltar às nossas planícies e pastagens; mas ainda não sabemos por que a Deusa nos enviou para cá. - Qualquer que seja o motivo - disse Imandra -, a sorte foi minha; talvez

a Deusa soubesse que eu precisava de sua presença aqui. Quando partirem para o sul, levarão meus presentes. E se algumas de suas mulheres quiserem ficar para instruir as minhas guardas, serão bem pagas. - Ela levantou os olhos para o céu, onde as estrelas ainda dançavam. - Talvez a Deusa tenha enviado este espetáculo como um presságio para a jornada que você tem pela frente, Kassandra. Não houve tal presságio quando procurei Sua terra distante para oferecer meus serviços.

Ela concluiu quase com inveja, e Kassandra perguntou:

- Para onde devo ir? E tenho de fazer a jornada sozinha? Imandra tocou em sua mão gentilmente, no escuro, murmurando:

- A jornada é do espírito, parenta; não precisa viajar um único passo. Terá muitas companheiras, mas cada candidata viaja sozinha, pois a alma está sempre sozinha diante dos Deuses.

Os olhos de Kassandra estavam deslumbrados pelas estrelas cadentes; e no clima estranho da noite, parecia que as palavras de Imandra possuíam um significado insólito e profundo, mais forte do que as palavras por si mesmas insinuavam.

- Gostaria de saber mais sobre o metal do céu - disse Andrômaca. - Não deveríamos procurá-lo, já que está caindo por toda parte ao redor? Nesse caso, não precisaríamos extraí-lo de minas ou trazê-lo em navios desde as terras do norte.

Imandra disse:

- Os astrólogos da corte previram esta chuva de estrelas e devem estar observando de um campo além da cidade, com cavalos velozes; assim, se uma estrela cair nas proximidades, eles partirão à sua procura. Seria uma impiedade deixar que um presente dos Deuses fique abandonado ou que caia nas mãos de outros, que não o tratariam com a devida reverência.

Kassandra tinha a impressão de que centenas de estrelas haviam caído; mas esquadrinhando o céu escuro, salpicado de luz, viu tantas quanto antes. O espetáculo começava a parecer bastante comum, e ela desviou os olhos do céu, suspirando.

- Deve ir se deitar agora - sugeriu Pentesiléia -, pois amanhã será levada com as outras que procuram a Deusa à Sua terra. E coma bem antes de dormir, pois amanhã terá de jejuar o dia inteiro.

- Dormirá em meu quarto esta noite - interveio Andrômaca. - Mãe, prometi que emprestaria a ela uma túnica amanhã.

- Foi uma idéia gentil em relação à sua parenta - comentou Imandra. - Agora, meninas, tratem de ir para a cama, e não fiquem acordadas, conversando e rindo.

- Prometo - garantiu Andrômaca.

Ela puxou Kassandra para a escada escura e as duas desceram para o interior do palácio. Foram para os aposentos de Andrômaca, onde ela chamou uma serva para banhá-las e trazer pão, frutas e vinho. Depois de tomarem banho e comerem, Andrômaca debruçou-se no peitoril da janela.

- Olhe, prima, as estrelas ainda estão caindo.

- Sem dúvida continuarão assim durante toda a noite - disse Kassandra. - E a menos que uma caia pela janela em nosso quarto, não sei que diferença poderá fazer para nós.

- Acho que você tem razão. E se uma cair aqui, Kassandra, pode ficar para fazer uma espada como a de Pentesiléia. Não tenho o menor desejo por armas.

- Creio que também não tenho necessidade, pois tudo indica que não serei uma guerreira, mas sim uma sacerdotisa - comentou Kassandra, suspirando.

- Preferia ser uma guerreira por toda a sua vida, Kassandra?

Mas Kassandra cerrou os dentes e respondeu:

- Acho que o que eu preferia não tem a menor importância; meu destino foi traçado, e não se pode lutar contra o próprio destino, quaisquer que sejam as armas que se usem.

As duas moças deitaram na cama de Andrômaca, lado a lado. A claridade intermitente das estrelas cadentes diminuíra, quase ao amanhecer, quando Kassandra sentiu, através de um sono irrequieto, que havia alguém parado na porta; soergueu-se na cama para murmurar uma pergunta, mas ainda se encontrava presa no sono e compreendeu que nenhum som saía. Sonolenta, percebeu que era Pentesiléia, entrando no quarto sem fazer barulho e contemplando-as ao luar por um longo momento. Depois, inclinou-se para tocar nos cabelos de Kassandra, como se fosse uma bênção. E no instante seguinte, embora Kassandra não a visse sair, ela se foi e só havia o luar ali.

 

O amanhecer mal começava a empalidecer o céu quando uma mulher entrou no quarto, sem se anunciar, e abriu as cortinas. Andrômaca enterrou a cabeça sob as cobertas para se proteger contra a luz, mas Kassandra sentou na cama e fitou-a. Era uma mulher da Cólquida, morena e corpulenta, com o porte confiante de uma das guerreiras de Pentesiléia; vestia uma túnica comprida de linho descorado, sem qualquer adorno. Uma pequena serpente verde estava enroscada em seu pulso e Kassandra teve certeza de que era uma sacerdotisa.

- Quem é você? - perguntou Kassandra.

- Meu nome é Evadne e sou uma sacerdotisa, enviada para preparar você. Quem deverá encontrar a Deusa hoje, você ou sua companheira? Ou quem sabe as duas?

Andrômaca descobriu um olho e respondeu:

- Fui iniciada no ano passado; será apenas a minha prima.

Fechou os olhos e pareceu voltar a dormir. Evadne ofereceu a Kassandra um sorriso cômico, depois voltou a ficar séria.

- Quero que me diga uma coisa. Todas as mulheres devem serviço aos Imortais, assim como todos os homens. Tenciona servi-los apenas quando lhe pedirem ou pretende devotar toda a sua vida a servi-los?

- Estou disposta a devotar minha vida a esse serviço - declarou Kassandra -, mas não sei o que podem me pedir.

Evadne estendeu a túnica que Andrômaca deixara em cima de um banco.

- Vamos para o outro cômodo, a fim de não incomodarmos a princesa. - Quando já se encontravam na câmara, ela perguntou: - Por que deseja se tornar uma sacerdotisa?

Kassandra contou de novo a história do que lhe acontecera no Templo do Senhor do Sol, pela primeira vez falando sem a menor hesitação; aquela mulher conhecia os Imortais e poderia compreendê-la, se é que alguma pessoa viva seria capaz. Evadne escutou sem comentários, exibindo um ligeiro sorriso ao final.

- O Senhor do Sol é um amo ciumento e parece-me que realmente a chamou - comentou ela. - Mesmo assim, a Mãe possui todas as mulheres e não posso negar a você o direito de encontrá-la.

- Minha mãe falou que a Mãe Serpente e o Senhor do Sol são inimigos antigos - disse Kassandra. - Falou também que Apolo, Senhor do Sol, lutou contra a Mãe Serpente e A matou. Serei desleal ao Senhor do Sol se servir à Mãe?

- Aquela que é a Mãe de Tudo nunca nasceu e, portanto, não pode morrer - respondeu Evadne, com um gesto reverente. - Quanto ao Senhor do Sol, os Imortais se entendem entre si e não encaram essas coisas do mesmo jeito que nós. A Mãe Terra, ao que dizem, teve o Seu primeiro santuário no lugar em que Apolo construiu o Seu oráculo; e durante a construção do templo, ao que dizem, uma enorme serpente ou dragão saiu do umbigo da terra e o Senhor do Sol... ou talvez Seu sacerdote, não faz a menor diferença... abateu a besta com suas flechas. E assim, penso eu, pessoas ignorantes inventaram que Ele tivera uma briga com a Mãe Serpente; mas o Senhor do Sol, como todos os outros seres criados, é Seu filho.

- Neste caso, posso atender ao chamado da Mãe, embora já tenha sido convocada pelo Senhor do Sol?

- Todos os seres criados devem serviço a Ela - insistiu a sacerdotisa, repetindo o gesto reverente. - E mais do que isso não posso dizer a uma pessoa que não é iniciada. Agora, acho que deve se lavar e se aprontar para se juntar às outras que farão a jornada em sua companhia. Mais tarde, se desejar, posso lhe contar algumas histórias da Deusa como é cultuada aqui.

Kassandra apressou-se em obedecer, ajeitando meticulosamente a túnica que vestira com muita rapidez. O traje emprestado por Andrômaca era grande demais e pendia largo ao redor dos tornozelos; ela levantou-o através da cinta, a fim de poder andar sem qualquer estorvo. Depois, escovou os cabelos escuros e deixou-os soltos, como lhe fora dito que era apropriado para as virgens naquela cidade, embora fosse incômodo senti-los assim, esvoaçando ao sol, em vez de estarem devidamente trançados.

Podia ouvir na rua lá fora os sons da festa; mulheres saíam das casas e corriam de um lado para outro, carregando galhos verdes e ramos de flores. Evadne conduziu-a à sala do trono, onde já se encontravam diversas moças da sua idade; o trono estava vazio naquele dia, coberto por um pano de ouro entrelaçado, em que se enroscava a grande serpente de Imandra. Uma das moças sussurrou:

- Dizem que a rainha também é uma sacerdotisa, que pode se transformar numa serpente.

- Isso é absurdo - protestou Kassandra. - A rainha está em outro lugar e deixou a serpente no trono como um símbolo de seu poder.

Pentesiléia estava entre as mulheres que esperavam; Kassandra esgueirou-se para o lado da rainha das amazonas, que pegou sua mão e a apertou; embora não estivesse exatamente assustada, Kassandra sentiu-se contente pelo gesto tranqüilizador. Imandra também estava ali, entre as mulheres, mas a princípio Kassandra não a reconheceu, pois a rainha usava o traje comum de uma sacerdotisa.

Ela não estranhou, pois também era costume em Tróia que a rainha fosse a representante mortal da Grande Deusa.

Mas ficou surpresa por não descobrir Andrômaca entre as presentes; se a prima fora iniciada no ano passado, por que não se juntava às outras sacerdotisas? De qualquer forma, parecia que Andrômaca não se envolvia particularmente com a religião; seria esse, especulou ela, mais um motivo para que Imandra hesitasse em permitir que a filha a sucedesse como rainha? Não soubera até aquele momento que era assim que Imandra se sentia; mas estava se acostumando a saber ou ouvir o que não se dizia e a ver o invisível.

Imandra gesticulou para que as moças silenciassem; as mulheres que já eram sacerdotisas iniciadas se reuniram ao seu redor. Kassandra percebeu que era a mais velha das candidatas; provavelmente era o costume naquela cidade iniciar as mulheres uni tanto jovens. Especulou se todas aquelas moças devotariam suas vidas à Deusa ou apenas "ofereceriam serviços quando lhes fosse pedida", a alternativa que Evadne sugerira. Mas aquela era unia iniciação preliminar, considerada um primeiro passo para o serviço aos Imortais.

As mulheres mais velhas reuniram as moças não iniciadas nuns círculo em seu meio, com Imandra no centro. Por trás dela, Kassandra ouviu em algum lugar o ressoar de um tambor, um som suave e incessante, corno as batidas do coração.

- Nesta época do ano celebramos o retorno da Filha da Terra dos subterrâneos em que esteve aprisionada durante o frio do inverno - entoou Imandra. - Nós a vemos surgindo quando o verde da primavera se espalha pelas terras áridas, cobrindo as campinas e os bosques com o brilho das flores e das folhas.

Silêncio, exceto pelo ressoar interminável dos tambores, tocados por mulheres mais além.

- Sentamos aqui, na escuridão, aguardando o retorno da Luz; aqui desceremos, cada uma de nós, para procurar a Filha da Terra nos reinos das trevas. Cada uma de nós será purificada e aprenderá os caminhos da Verdade.

A história continuou, em tom monótono, narrando como a Filha da Terra fora atraída para os reinos subterrâneos, como as serpentes a confortaram e juraram que nunca lhe fariam qualquer mal. Kassandra já ouvira antes apenas fragmentos da história, pois não era conhecida das não - iniciadas ou não era considerada apropriada para o conhecimento de forasteiras. Escutou atentamente, fascinada, a cabeça latejando com o som dos tambores, que jamais paravam.

Kassandra começou a experimentar a sensação de que fora apanhada num sonho que se prolongava por muitos dias, sabendo que estava desperta, mas nunca plenamente consciente. Algum tempo depois percebeu, sem ter a menor idéia de como ou onde acontecera, que não mais se encontravam na sala do trono e sim numa enorme caverna escura, com água escorrendo pelas paredes úmidas, que se erguiam muito altas, em vastos espaços ressoantes, que faziam as vozes soarem cavernosas e abafavam até o som dos tambores.

Em algum lugar havia uma flauta de bambu, sussurrando uma música tênue e chamando-a com uma voz que ela quase conhecia. E depois Kassandra sentiu - pois estava escuro demais para ver alguma coisa - uma tigela de cerâmica com desenhos em relevo sendo passada de mão em mão, cada moça levando-a aos lábios, bebendo e entregando à seguinte. Nunca pôde se lembrar, depois, o que disseram quando chegou sua vez de beber. Pensou que era vinho, até que seus lábios sentissem a mistura.

O gosto era estranho, adstringente e amargo, fazendo-a pensar no cheiro do centeio envenenado que Pentesiléia lhe pedira para lembrar sempre; ao beber, teve a sensação de que o estômago ia se rebelar, mas controlou o enjôo com uni esforço intenso e concentrou a atenção nos tambores. A história terminara; pelo resto de sua vida, não foi capaz de lembrar como acabara, qual fora o destino da Filha da Terra.

Depois de algum tempo, sua desorientação tornou-se tão grande que tinha a impressão de não estar mais no círculo de mulheres na caverna; não tinha a menor idéia do lugar em que se encontrava, mas também não especulou a respeito. Passou por sua mente que talvez a bebida tivesse alguma espécie de droga, mas também não especulou sobre isso. Tocou no chão frio e úmido e ficou surpresa ao sentir pedras de pavimentação comuns; será que saíra mesmo do lugar? Cores estranhas desfilavam diante de seus olhos e por um momento parecia que estava andando por um túnel escuro e comprido.

Partilhe com a Filha da Terra a descida para as trevas, orientou-a uma voz, de muito longe; nunca soube se era ou não uma voz real. Uma a uma, vocês

devem deixar para trás todas as coisas deste mundo que lhe são caras, pois agora não têm qualquer parte nelas.

Kassandra descobriu que estava usando suas armas; poderia jurar que as deixara no aposento naquela manhã. Em meio ao ressoar dos tambores, a voz que as guiava tornou a se manifestar:

Este é o primeiro dos portões do Mundo Inferior; devem renunciar aqui a tudo o que as prende à Terra e aos reinos da Luz.

Kassandra mexeu na cinta não familiar da túnica que usava, soltou o cinto cravejado de pedras preciosas que prendia sua espada e lança. Lembrou Hécuba, exortando-a a usá-las sempre com honra; mas isso acontecera há muito tempo e nada tinha a ver com aquela câmara escura. Pentesiléia também passara por aquele portal escuro e largara suas armas? Ela ouviu a espada e a lança resvalarem para o chão com um ruído metálico, dentro do ritmo dos tambores.

Por que suas mãos se moviam tão devagar - ou será que não se mexiam? Seria tudo uma ilusão produzida pelos tambores e ela ainda se encontrava agachada, imóvel, no círculo escuro, mesmo ao avançar bravamente pelo túnel tenebroso, vestindo a túnica comprida e solta de Andrômaca, na qual estranhamente não tropeçava?

Em algum lugar havia um olho de fogo. Chamas por baixo dela? Ou estaria contemplando o olho da serpente?

Fitou-a sem piscar, enquanto uma voz anunciava:

Este é o segundo Portão do Mundo Inferior, onde devem renunciar a seus medos ou qualquer outra coisa que as impeça de viajarem por este reino, como alguém cujos pés conhecem e pisam o Caminho em que estão as Minhas próprias pegadas.

O olho da serpente estava bem perto agora; movimentou-se, acariciando-a, e num relance de memória - séculos atrás, talvez em outra vida? - lembrou como acariciara as serpentes no Templo do Senhor do Sol, abraçara-as sem medo. Era como se as abraçasse outra vez, agora, e o olho se aproximou mais e mais; o mundo se reduziu, até que nada mais havia nas trevas com ela além do

abraço da serpente. A dor invadiu-a, até deixá-la convencida de que estava morrendo; resvalou para a morte quase com alívio.

Mas não estava morta; ainda avançava pela escuridão causticante, até que toda a sua cabeça ressoava com as palavras.

Agora você está em Meu reino e este é o terceiro e último Portão do Mundo Inferior. Nada mais lhe resta aqui, a não ser a sua vida. Está disposta a entregá-la também, para Me servir?

Kassandra pensou, frenética: Não posso imaginar de que minha vida Lhe adiantaria, mas consegui chegar a este ponto e não voltarei agora. Ela pensou ter falado em voz alta, mas uma parte de sua mente insistiu que não emitira qualquer som, que a fala não passava de uma ilusão, como tudo o mais que lhe acontecera naquela jornada - se é que fora mesmo uma jornada e não um sonho estranho.

Não voltarei agora, mesmo que isso represente a minha vida. Já entreguei todo o resto; tome isso também, Senhora das Trevas.

Ela pairava sem sentidos na escuridão, invadida pelo fogo, cercada pelo esvoaçar de asas.

Se vou morrer por Você, Deusa, pelo menos me conceda contemplar Seu rosto uma vez!

A escuridão atenuou-se um pouco; diante de seus olhos, Kassandra viu uma palidez turbilhonante, da qual emergiu lentamente um par de olhos escuros, um rosto branco. Já vira aquele rosto antes, refletido num córrego... era o seu. Uma voz muito próxima lhe sussurrou, em meio ao ressoar dos tambores e à estridência das flautas:

Ainda não sabe que você é Eu e que Eu sou você?

E depois as asas esvoaçantes a envolveram, bloqueando tudo. Asas e ventos de furacão, projetando-a para cima, mais e mais, na direção da luz, protestando: Mas não há muito mais a conhecer...

As asas a esquartejavam; o clarão de um relâmpago revelou bicos e olhos cruéis, puxando, rasgando - era como se alguma coisa estranha fluísse por seu corpo, enchendo-a como uma água escura, expulsando todo pensamento e percepção. Kassandra olhou para baixo de uma altura incrível, contemplando alguém que era e ao mesmo tempo não era ela própria; sabia que olhava para o rosto da Deusa. E depois perdeu o tênue contato com a consciência e, ainda protestando, mergulhou num abismo interminável e silencioso de luz ofuscante.

 

Alguém tocava gentilmente em seu rosto.

- Abra os olhos, minha criança.

Kassandra sentia-se nauseada e fraca, mas abriu os olhos para o silêncio e o ar fresco e úmido. Estava de volta à caverna... mas será que a deixara em algum momento? Sua cabeça se encontrava no colo de Pentesiléia; o rosto da mulher mais velha estava toldado por um halo de luz tão intensa que Kassandra protegeu os olhos com as mãos e balbuciou.

- Mas você. você é a Deusa.. .

E ficou calada, em reverência diante da parenta. Os olhos doíam e ela os fechou.

- Claro que sou - sussurrou a mulher mais velha. - E você também é, criança. Nunca se esqueça disso.

- Mas o que aconteceu? Onde estou? Eu fui.. .

Pentesiléia cobriu rapidamente os lábios de Kassandra com a mão, num gesto de advertência. .

- Cale-se, criança. E proibido falar do Mistério. Mas a verdade é que foi muito longe. A maioria das candidatas não passou do Primeiro Portão. Vamos, criança, vamos.. .

Kassandra levantou-se, cambaleando, a rainha das amazonas amparando-a.

Os tambores estavam silenciosos; restava apenas o fogo e um tênue lamento. Agora ela podia ver a mulher que tocava a flauta, magra, acocorada no outro lado do fogo. Os olhos eram vazios e ela balançava um pouco, como se estivesse em êxtase; mas pelo menos o fogo e a flauta haviam sido reais. Num círculo ao redor, cerca de meia dúzia de donzelas ainda se encontravam em transe, cada uma vigiada por uma das sacerdotisas mais velhas. Havia espaços vazios no círculo. Pentesiléia exortou-a a avançar com todo cuidado, sem encostar em ninguém, para a entrada da caverna. Chovia lá fora, mas pelo crepúsculo Kassandra pôde calcular que o dia chegava ao fim. As gotas de chuva caíam geladas e limpas em seu rosto. Sentia-se nauseada e com uma sede intensa; tentou recolher a chuva com as mãos e sorver as gotas, mas Pentesiléia levou-a por uma porta que se recordava vagamente de ter visto antes. Entrou na sala do trono de Imandra, iluminada por lampiões, o lugar em que começara a jornada mágica. Ainda andava com extremo cuidado, como se fosse um jarro frágil, cheio até a borda de um vinho estranho, que derramaria a qualquer movimento mais descuidado. A rainha Imandra surgiu de algum lugar e abraçou-a, apertando-a com toda força entre seus braços.

- Seja bem-vinda de volta, irmãzinha, dos reinos em que a Deusa das Trevas a acompanhou. A viagem foi longa, mas eu me regozijo por seu retorno sã e salva. Está agora unida a todas nós que pertencemos a Ela.

- Ela passou pelos três Portões - informou Pentesiléia.

- Eu sei - respondeu Imandra. - Mas a iniciação foi protelada por muito tempo. Ela é uma sacerdotisa nata e já é tarde para ela.

Ela deu um passo para trás e pôs as mãos nos ombros de Kassandra, como Hécuba poderia ter feito.

- Está pálida, criança; como se sente?

- Por favor, sinto muita sede - murmurou Kassandra.

Mas quando Pentesiléia lhe serviu um pouco de vinho, o cheiro deixou-a nauseada, e pediu água. Estava bastante fresca e aliviou sua sede, mas tinha um gosto estranho, pegajoso, lembrando peixe, como tudo o mais que comeria ou beberia por muitos dias.

- Não se esqueça de registrar o que sonhar esta noite - recomendou Imandra. - Será uma mensagem especial da Filha da Terra. - Depois, a rainha da Cólquida perguntou a Pentesiléia: - Voltará ao sul em breve, agora que recebeu o aviso da Deusa?

- Assim que Kassandra estiver em condições de cavalgar e Andrômaca preparada para acompanhá-la na viagem até Tróia - respondeu a rainha das amazonas.

- Que assim seja - disse Imandra. - Já providenciei o dote de Andrômaca e determinei quem a acompanhará na viagem. E também tenho um presente para a nossa jovem parenta, a sacerdotisa.

O presente era uma serpente, pequena e verde, parecida com a de Imandra, mas não mais comprida do que seu antebraço e com o diâmetro do polegar.

Kassandra agradeceu, atordoada, quase sem conseguir falar. Imandra disse, suavemente:

- Um presente apropriado de sacerdotisa para sacerdotisa, criança. Ela saiu de um ovo de uma das minhas serpentes; o que mais eu deveria fazer com ela? Dá-la a Andrômaca, que só pensaria em fugir da serpente? Creio que ela se sentirá feliz em viajar para o sul na sua companhia, dentro daquele lindo vaso, em servi-la no santuário em Tróia.

Naquela noite Kassandra ficou acordada por muito tempo, perturbada ao pensar no que poderia sonhar; mas quando adormeceu, viu apenas as encostas lavadas pela chuva do monte Ida e as três Deusas estranhas; e teve a impressão de que as três disputavam o seu favor, não o de Páris, e lutavam por Tróia.

 

Elas partiram em carroças, tão desajeitadas e lentas quanto as que carregaram o estanho, levando os presentes nupciais e o dote de Andrômaca, os presentes dos tesouros da Cólquida que a rainha oferecia a seus parentes troianos: armas de

ferro e bronze, peças de fazenda, cerâmicas, ouro, prata e até pedras preciosas.

Kassandra não podia imaginar por que a rainha Imandra estava tão ansiosa em ter sua filha ligada a Tróia e era ainda menos capaz de entender por que Andrômaca estava disposta - mais do que isso, ansiosa - a obedecer. Mas se tinha de voltar a Tróia, estava contente por levar alguma coisa do vasto mundo que descobrira ali.

Além disso, passara a amar Andrômaca; e se tinha de separar-se de Pentesiléia e das mulheres da tribo, pelo menos contaria em Tróia com uma parenta e amiga genuína.

A viagem pareceu interminável, as carroças arrastando-se dia a dia no ritmo de lesma pelas vastas planícies, lua após lua definhando e inflando, com a impressão de que nunca se aproximavam das montanhas distantes. Kassandra ansiava por montar e cavalgar velozmente ao lado das guardas amazonas, deixando as carroças para seguirem da melhor forma que pudessem; mas Andrômaca não podia ou não queria cavalgar e se impacientava por ficar sozinha nas carroças. Queria a companhia de Kassandra; e por isso, com muita relutância, Kassandra aceitou o confinamento e seguiu em sua companhia, participando de intermináveis partidas de Cão e Chacal num tabuleiro esculpido em ônix, escutando a conversa simplória da parenta sobre roupas e jóias, ornamentos para os cabelos e o que ela faria quando estivesse casada - um assunto que Andrômaca achava sempre fascinante (até já escolhera os nomes para os três ou quatro primeiros filhos que teria), deixando Kassandra com a sensação de que ia enlouquecer.

Em sua viagem inicial (parecia-lhe que era imensamente mais jovem na ocasião), Kassandra não avaliara as enormes distâncias que haviam percorrido; só quando o verão voltou e mal começavam a divisar as distantes colinas por trás de Tróia é que ela teve plena consciência da extensão da jornada. Em Tróia, considerava-se que a Cólquida ficava na outra metade do mundo. Agora ela tinha idade bastante para registrar os muitos meses de viagem; e com as carroças é claro que viajavam mais devagar do que em bandos a cavalo. Kassandra não sentia a menor pressa pelo fim da viagem, sabendo que a chegada a Tróia representaria o encerramento outra vez nos alojamentos das mulheres, mas não podia deixar de especular sobre o que teria acontecido na cidade. Uma noite, enquanto Andrômaca dormia, ela se projetou na mente para ver, se não Tróia, pelo menos a mente do irmão gêmeo, a quem não visitava há bastante tempo. E não demorou muito para que imagens começassem a se formarem sua mente, a princípio pequenas e distantes, mas pouco apouco aumentando e povoando toda a sua percepção...

 

Muito ao sul, nas encostas do monte Ida, onde o jovem de cabelos escuros chamado Páris cuidava do gado de seu pai de criação, num dia no final do outono, um grupo de rapazes bem vestidos ali apareceu. Páris, sempre alerta a quaisquer perigos que ameaçassem o rebanho sob os seus cuidados, aproximou-se dos estranhos com cautela.

- Saudações, estrangeiros. Quem são vocês e como posso servi-los?

- Somos os servidores e filhos do rei Príamo de Tróia - respondeu um deles. - Viemos à procura de um touro, o melhor do rebanho, pois será sacrificado nos jogos fúnebres em honra de um dos filhos de Príamo. Mostre-nos o seu melhor.

Páris ficou um tanto contrariado pelo comportamento arrogante dos estranhos; apesar disso, seu pai de criação, Agelau, ensinara-lhe que o desejo de um rei era lei e ele não queria que pensassem que carecia de cortesia.

- Meu pai é súdito de Príamo e tudo que temos está à disposição do rei - disse. - Mas ele não está em casa hoje; se fizerem o favor de aguardar seu retorno, ele poderá mostrar tudo o que temos. Se desejarem descansar em minha casa, fora do calor do sol a pino, minha esposa lhes servirá vinho ou leitelho frio; ou se preferirem, hidromel de nossas abelhas. Assim que voltar, meu pai lhes mostrará os nossos rebanhos e poderão levar o que escolherem.

- Agradeço o convite - respondeu o visitante da cidade. - Um pouco de hidromel será bem-vindo.

Ao conduzi-los à pequena casa em que vivia com Enone, Páris ouviu um dos homens sussurrar:

- Um jovem muito bonito... e nunca imaginei que se pudessem encontrar tão boas maneiras longe da cidade.

Enquanto Enone, bela e jovial, em sua túnica de trabalho, os cabelos presos

sob o pano que usava pela manhã para varrer a casa, ia recolher o hidromel em taças de madeira, Páris ouviu outro homem murmurar:

- E se ninfas tão adoráveis como esta existem em abundância na montanha, por que qualquer homem deveria permanecer dentro das muralhas da cidade?

Enone olhou de esguelha para Páris, como que indagando quem eram

aqueles homens e o que desejavam; mas ele sabia pouco mais do que Enone, embora não tivesse a menor vontade de confessá-lo na presença dos estranhos.

- Estes homens têm negócios a tratar com meu pai, minha cara - disse ele. - Agelau voltará antes do meio-dia e poderão resolver tudo, o que quer que seja.

Se eles quisessem cabras ou ovelhas, Páris se sentiria em condições de resolver pessoalmente, mesmo que fossem destinadas ao sacrifício; mas o gado era o orgulho e alegria de seu pai. Por isso, ele tomou o hidromel e esperou, mas acabou perguntando:

- Vocês são filhos do rei Príamo?

- Somos, sim - respondeu o mais velho. - Sou Heitor, filho mais velho de Príamo com sua rainha, Hécuba; e este é meu meio irmão, Deífobo.

Heitor era excepcionalmente alto, quase uma cabeça mais alta do que Páris, que não era pequeno. Tinha os ombros largos de um lutador natural, um rosto forte e bonito, com olhos castanhos bem separados, por, cima de malares salientes, uma expressão obstinada na boca e queixo. Trazia na cintura uma espada de ferro que Páris prontamente cobiçou, embora até recentemente pensasse que não podia haver arma melhor do que a adaga de bronze, um presente especial que ganhara de Agelau, depois que saíra numa tempestade ao final do inverno e trouxera uma dúzia de cordeiros fracos, que de outra forma teriam perecido.

- Fale-me sobre esses jogos fúnebres - pediu Páris.

Ele notou que Heitor olhava muito para Enone e não gostou. Mas também notou que Enone não tomava conhecimento do estranho. Ela é minha, pensou Páris; é uma mulher boa e recatada, não é dada a ficar olhando para estranhos.

- São realizados todos os anos e são iguais a quaisquer outros jogos em festivais - explicou Heitor. - Você parece forte e atlético; nunca competiu em tais jogos? Tenho certeza que poderia arrebatar muitos prêmios.

- Está se enganando comigo - respondeu Páris. - Não sou um nobre como vocês, com lazer para o esporte; não passo de um humilde pastor e servo de seu pai. Os jogos e outras coisas assim não são para mim.

- Fala com modéstia e aprecio - disse Heitor. - Mas os jogos estão abertos a qualquer homem que não tenha nascido um escravo; você seria bem-vindo. Páris pensou a respeito por um momento.

- Falou em prêmios...

- O prêmio maior é um tripé e um caldeirão de bronze - informou Heitor. - Às vezes meu pai dá uma espada por valor especial.

- Eu gostaria de ganhar esse prêmio para minha mãe - comentou Páris. - Talvez eu vá, se meu pai der permissão.

- É um homem adulto, deve ter quinze anos ou mais. Tem idade suficiente para ir e vir sem permissão.

Ao ouvir tais palavras, Páris pensou que devia ser assim mesmo; mas nunca fora a parte alguma sem permissão de Agelau e nunca lhe passara pela cabeça fazê-lo. Notou que Heitor o fitava e alteou as sobrancelhas, inquisitivo. Heitor tossiu, nervosamente, murmurando:

- Estou tentando me lembrar de onde já o vi antes. Seus olhos... parecem me lembrar os de alguém que conheço bem, mas não consigo recordar onde.

- Às vezes vou ao mercado, a serviço de minha mãe ou de meu pai.

Mas Heitor sacudiu a cabeça. Páris teve a impressão de que uma estranha sombra pairava sobre ele; sentiu uma aversão instintiva pelo corpulento jovem. O que não podia compreender, pois Heitor não fora de forma nenhuma ofensivo, tratara-o desde o início com perfeita cortesia. Levantou-se, inquieto, foi até a porta, espiou para fora. E disse um momento depois:

- Meu pai de criação está chegando.

Não demorou muito para que Agelau, um homem pequeno e franzino, que ainda se movimentava com rapidez apesar da idade, entrasse na cabana.

- Príncipe Heitor - disse ele, fazendo uma reverência. - Sinto-me honrado por sua visita. Como está meu senhor seu pai?

Heitor explicou o motivo de sua presença ali e Agelau disse:

- Meu menino pode ajudá-lo, príncipe Heitor. Ele conhece o gado melhor do que eu, pois é quem sempre faz o julgamento de gado nas feiras e outras ocasiões. Páris, leve-os para o campo e mostre o melhor que temos.

Páris escolheu o melhor touro do rebanho e Heitor foi dar uma olhada.

- Sou um guerreiro e pouco conheço de gado - comentou ele. - Por que escolheu este touro?

Páris apontou para a largura das espáduas do touro e a extensão dos flancos.

- E a pelagem é lisa, sem cicatrizes nem imperfeições; um touro digno de um Deus.

Interiormente, ele pensou: É um touro bom demais para o sacrifício; deveria ser poupado para a criação. Qualquer touro velho serviria para ter a cabeça cortada e sangrar no altar.

E este príncipe arrogante aparece, acena com a mão e leva o melhor do gado de meu pai, que trabalha com tanto empenho e por tanto tempo para criar. Mas ele está certo: todo gado pertence a Príamo e somos seus servos.

- Conhece mais sobre essas questões do que eu - reiterou Heitor. - Sendo assim, aceito a sua palavra de que este touro é mais digno para o sacrifício ao senhor Tonante. Agora, preciso de uma novilha para a Senhora, sua consorte.

No mesmo instante Páris viu em sua mente a Deusa bela e imponente que lhe oferecera riqueza e poder. Perguntou-se se a Deusa guardaria algum ressentimento por hão ter recebido a maçã; talvez Ela o perdoasse se escolhesse para sacrifício a melhor criatura em todo o rebanho.

- Aquela novilha é a melhor de todas; observe a pelagem marrom e lisa e a cara branca, veja como seus olhos são bonitos, quase parecem humanos.

Heitor afagou o lombo macio da novilha e pediu uma corda para amarrá-la.

- Não vai precisar, meu príncipe - disse Páris. - Se está levando o touro do rebanho, ela o seguirá como um cachorrinho.

- Então as vacas não são muito diferentes das mulheres - comentou Heitor, com uma risada sugestiva. - Eu lhe agradeço e gostaria que reconsiderasse a sua decisão de não participar dos jogos. Tenho certeza de que poderia conquistar a maioria dos prêmios. Parece um atleta natural.

- Está sendo muito generoso, meu príncipe.

Páris ficou observando Heitor e seu séquito descerem a montanha, de volta à cidade. Mais tarde, naquela noite, quando foi com o pai de criação buscar as cabras para a ordenha, ele mencionou o convite de Heitor. Não estava absolutamente preparado para a reação do velho.

- Não! Eu o proíbo! Nem sequer pense nisso, meu filho! Alguma coisa terrível certamente aconteceria!

- Mas por que, pai? O príncipe garantiu que não tinha importância que eu não fosse um nobre por nascimento; que mal poderia haver? E eu gostaria de ganhar o caldeirão e o tripé para a mãe, que tem sido tão boa para mim e não possui essas coisas.

- Sua mãe não quer caldeirões; queremos o nosso bom filho são e salvo aqui, onde nada pode lhe acontecer.

- Mas o que poderia me acontecer, pai?

- Não tenho permissão para lhe contar - respondeu o velho, solenemente. - E deve ser suficiente para você que eu proíba. Sempre foi um filho bom e obediente até agora.

- Pai, não sou mais uma criança. Agora, quando me proíbe uma coisa, tenho idade suficiente para saber o motivo.

Agelau assumiu uma expressão determinada.

- Não admitirei nenhuma imprudência de sua parte e não preciso dar qualquer explicação. Fará o que estou mandando.

Páris sempre soubera que Agelau não era o seu verdadeiro pai; desde o sonho com as Deusas que começara a desconfiar de que sua paternidade era muito superior ao que jamais se atrevera a acreditar. E passou agora a pensar que a proibição de Agelau tinha alguma relação com isso. Mas quando formulou a indagação, Agelau se mostrou mais obstinado do que nunca.

- Não posso lhe contar coisa alguma a respeito.

Agelau afastou-se abruptamente para ordenhar as cabras. Páris, seguindo o seu exemplo, não disse mais nada; mas, por dentro, estava fervilhando.

Não sou mais do que um servo contratado, para fazer isso e aquilo? Até mesmo um servo contratado tem direito a dias de folga, e o pai nunca me negou uma licença antes. Irei aos jogos; minha mãe pelo menos me perdoará se eu trouxer na volta um caldeirão e um tripé. Mas se eu ganhar o prêmio e ela não quiser, darei a Enone.

Páris não disse nada naquela noite; mas na manhã seguinte, bem cedo, vestiu a sua melhor túnica de festa (era na verdade bastante grosseira, embora Enone a tivesse fiado com a melhor lã e tingido com sumo de bagas para ter uma cor vermelha suave) e foi se despedir de Enone. Ela fitou-o e a boca se contraiu em aflição.

- Então vai mesmo, apesar da advertência de seu pai?

- Ele não tem o direito de me proibir - respondeu Páris, na defensiva. -

Nem mesmo é meu pai e assim não é impiedade desobedecer.

- Ainda assim, ele tem sido um pai bom e gentil para você - insistiu ela, os lábios trêmulos. - Não está fazendo o que é certo, Páris. Por que deseja ir aos jogos? O que o rei Príamo representa para você?

- Porque é o meu destino - declarou ele, com veemência. - Porque não mais acredito que seja a vontade dos Deuses que eu permaneça aqui por todos os meus dias, cuidando de cabras na montanha. Vamos, querida, dê-me um beijo e me deseje boa sorte.

Ela se ergueu na ponta dos pés e beijou-o obediente, mas ainda disse:

- Estou lhe advertindo, meu amor, que não há boa sorte à sua espera nesta jornada.

Páris escarneceu.

- Vai começar a falar agora como uma profetisa? Não tenho o menor respeito por essas advertências.

- Ainda assim, devo fazê-las - murmurou Enone, jogando-se em seus braços, em lágrimas. - Páris, eu lhe suplico, fique, por meu amor. - Ela pôs a mão sobre a barriga um pouco estufada e suplicou, timidamente: - Se não por mim, então por ele?

- E por ele, acima de tudo, que devo ir e procurar a fama e a fortuna. Seu pai será algo mais do que um mero pastor de Príamo.

- O que há de errado em ser o filho de um pastor? - indagou Enone. - Sinto-me orgulhosa por ser a esposa de um pastor.

Páris franziu o rosto, irritado.

- Se não me conceder sua bênção, amada, então terei de partir sem isso; deseja-me o infortúnio?

- Nunca, meu amor, mas tenho o terrível pressentimento de que nunca mais voltará para mim se partir agora.

- Ora, isso é o maior absurdo que já ouvi.

Páris tornou a beijá-la. Enone continuou a abraçá-lo e ele acabou se desvencilhando, gentilmente, depois começou a descer a montanha; sabia que ela o observava até que sumiu de sua vista.

Kassandra voltou lentamente a ter consciência do lugar em que se encontrava: na escuridão da carroça, não no monte Ida, ao brilhante sol de outono. E o verão mal começava; talvez chegassem a Tróia no outono. Ao seu lado, Andr8maca dormia serenamente; com cãibra e frio, Kassandra acomodou-se na manta, agra

decida pelo calor do corpo da prima.

Ele está em Tróia. Talvez esteja em Tróia quando eu lá chegar; irei vê-lo

pessoalmente, enfim. O pensamento era emocionante demais; Kassandra não mais conseguiu dormir naquela noite.

 

Foi Andrômaca e não Kassandra a primeira a ver as grandes muralhas de Tróia erguendo-se a distância. Ela parecia impressionada ao murmurar. - É mesmo maior do que a Cólquida.

- Eu disse que era - lembrou Kassandra.

- Mas eu não acreditei, não podia acreditar que qualquer cidade fosse realmente maior do que a Cólquida. O que é aquele prédio brilhante no alto da cidade? O palácio?

- Não. Aquele é o Templo da Donzela. Em Tróia, os lugares mais altos estão reservados aos Imortais. E Ela é a nossa Deusa padroeira, que nos deu a oliveira e a videira.

- O rei Príamo não pode ser um rei muito grande - disse Andrômaca. - É proibido na Cólquida que qualquer casa... até mesmo a morada de uma Deusa... seja mais alta do que o palácio real.

- Mas, apesar disso, sei que sua mãe é uma mulher devota, que respeita a Deusa.

Kassandra recordou que lhe parecera uma blasfêmia, ao chegar à Cólquida, que a casa de um mortal fosse tão alta. Seus olhos procuraram a morada do Senhor do Sol, com seus telhados dourados, erguendo-se acima do palácio; ela apontou o palácio para Andrômaca.

- Não é tão alto, mas é um palácio tão bom quanto qualquer um na Cólquida.

Agora que se encontravam à vista da cidade, Kassandra analisou seus sentimentos, cautelosa, como se mordesse um dente dolorido: não sabia como se sentia em relação ao retorno a Tróia, depois de seu ano de liberdade. Compreendeu que se sentia quase angustiantemente ansiosa em rever a mãe e a irmã Polixena; sem tentar, percebeu que a mente se projetava para o contato insubstâncial e desconcertante com o irmão gêmeo, que às vezes era mais real do que o seu próprio eu.

Não serei encarcerada novamente. Uma pausa e ela se corrigiu um pouco: Nunca mais permitirei que me ponham outra vez no cárcere. Ninguém pode me aprisionar, a menos que eu esteja disposta a ser aprisionada.

Ela olhou para a escolta ao redor, meio desejosa de poder acompanhar as guerreiras de volta à `terra das amazonas. Pentesiléia não as acompanhara; depois de tão longa ausência, alegara ela, precisava permanecer para pôr em ordem os assuntos da tribo. Kassandra sabia que se continuasse a viver entre as amazonas seria agora enviada, junto com as outras mulheres em idade de gerar filhos, para as aldeias dos homens a fim de ter um filho para a tribo. Sentia que estaria disposta até mesmo a cumprir esse costume, se fosse o preço para permanecer com a tribo de Pentesiléia; mas não fora uma das opções que lhe haviam oferecido.

- Mas o que está acontecendo? - perguntou Andrômaca. - É um dia de festa?

Procissões saíam pelos portões, longas filas de homens e mulheres em trajes de festa, animais engalanados com fitas e flores, se para exposição ou sacrifício, Kassandra não podia determinar. E depois ela avistou Heitor e alguns dos seus outros irmãos, usando apenas as tangas mais sumárias com que competiam no campo. Kassandra compreendeu então que só podiam ser os jogos. Não eram para as mulheres - embora a mãe lhe tivesse contado certa ocasião que nos tempos antigos as mulheres competiam nas corridas a pé, no lançamento de lanças e no arco e flecha. Kassandra, que era uma boa arqueira, desejou ainda ter os seios bastante pequenos para poder passar por um menino e entrar na competição; mas se alguma vez antes fora capaz de tal disfarce, não era agora. Resignada, pensou: Um dia minha competência com as armas ainda poderá ser útil d minha cidade - se não nos jogos, na guerra, - e depois ela viu, quase ao final da procissão, um carro de guerra transportando a figura murcha mas ainda imponente de seu pai, Príamo. Já se preparava para correr até o carro e abraçá-lo, mas a visão dos seus cabelos brancos deixou-a chocada; aquele velho era praticamente um estranho para ela!

Atrás, num carro menor, usando as insígnias da Deusa, Kassandra divisou a mãe; Hécuba parecia não ter mudado em um só fio de cabelo. Kassandra saltou da carroça e se adiantou, inclinando-se diante do pai, em sinal de respeito, depois se afastando apressada para abraçar a mãe.

- Chegou em boa hora, minha querida - disse Hécuba. - Mas que mulher você se tornou! Eu mal teria reconhecido minha filhinha nesta amazona alta!

Puxando Kassandra para cima do carro, ao seu lado, Hécuba perguntou:

- Quem é a sua companheira, filha?

Kassandra olhou para Andrômaca, que ainda estava sentada no banco da frente da carroça. Parecia muito sozinha e deslocada. Não era assim que ela tencionara apresentar sua amiga a Tróia.

- Ela é Andrômaca, filha de Imandra, rainha da Cólquida - respondeu Kassandra, lentamente. - Imandra, nossa parenta, enviou-a para ser a esposa de um dos meus irmãos. Traz uma carroça de tesouros da Cólquida como dote.

Enquanto falava, Kassandra sentiu que suas palavras pareciam grosseiras, anunciando uma mera questão de compra e conveniência real, como se Imandra enviasse a filha como um suborno para Príamo. Andrômaca merecia algo melhor.

- Percebo agora que ela tem alguma coisa de Imandra - comentou Hécuba. - Quanto a um casamento, seu pai decidirá; mas ela é bem-vinda aqui, com ou sem casamento, como minha parenta.

- Mãe - disse Kassandra, muito séria, pois achava que depois da longa viagem Andrômaca não podia ser rejeitada -, ela é a filha única da rainha da Cólquida, que governa a cidade; meu pai tem filhos e de sobra; ele não será tão esperto quanto dizem se não for capaz de escolher um dos meus irmãos para formar uma aliança assim.

foi buscar Andrômaca, ajudou-a a descer da carroça e apresentou-a a Príamo e Hécuba; Hécuba beijou-a e Andrômaca sorriu, fazendo uma reverência submissa para ambos. Príamo afagou seu rosto e puxou-a para sentar ao seu lado, chamando-a de filha, o que parecia um bom começo. No palanque, ela sentou entre Príamo e Hécuba, enquanto Kassandra se perguntava por que Andrômaca se mostrava tão submissa. Depois de algum tempo, perguntou:

- Onde está minha irmã, Polixena?

- Ela ficou em casa, como uma moça recatada - respondeu Hécuba, em tom de censura. - Não tem o menor interesse em ver homens nus competindo em armas.

Se alguma vez tive dúvidas, pensou Kassandra, agora tenho certeza de que voltei para casa. Devo passar o resto de minha vida como uma moça recatada? O pensamento deprimiu-a.

Kassandra acompanhou a competição inicial, que foi uma corrida a pé, sem muito interesse, tentando identificar os filhos de Príamo que conhecia de vista. Reconheceu Heitor imediatamente, assim como Troilo, que devia agora ter pelo menos dez anos. Logo na partida, Heitor assumiu a dianteira e permaneceu na posição durante toda a primeira parte da corrida; depois, um jovem mais esguio e de cabelos pretos começou a se aproximar. Quase facilmente, alcançou Heitor e ultrapassou-o, tocando na marca de chegada um instante antes da mão estendida do filho mais velho de Príamo.

- Uma grande corrida! - exclamaram os outros competidores, agrupando-se ao seu redor.

- Minha cara - disse Príamo, inclinando-se para Hécuba pela frente de Andrômaca -, não conheço aquele jovem, mas certamente é um competidor valoroso se é capaz de correr mais do que Heitor. Descubra quem ele é, está bem?

- Pois não. - Hécuba fez sinal para uma serva. - Descubra para Sua Majestade quem é o jovem que ganhou a corrida.

Kassandra protegeu os olhos com a mão para observar o vencedor, mas ele desaparecera na multidão. Os competidores estavam agora ajustando as cordas em seus. aros.. Kassandra, que se tornara urna arqueira competente, observava fascinada. Subitamente, ofuscada pelo sol, sentiu-se confusa: não podia ser ela quem estava ah no campo, ajeitando uma flecha no arco... Meus pais ficarão furiosos... Depois, olhando para o braço forte, muito mais musculoso do que o seu, ela compreendeu o que acontecera: mais uma vez, seus pensamentos haviam se fundido com os do irmão gêmeo. Sabia agora por que o jovem vencedor da corrida lhe parecera familiar: era seu irmão gêmeo, Páris; e como ela previra, estava presente no retorno dele a Tróia.

Com a estranha visão dupla, Kassandra tinha a impressão de que estava ao mesmo tempo no campo e em seu lugar no alto, contemplando Príamo como se fosse pela primeira vez, vendo-o ao mesmo tempo como seu pai e como um velho estranho e assustador, com o ar impressivo da realeza. Havia também alguns velhos cujos nomes nenhum dos dois conhecia - Páris deduziu, corretamente, que deviam ser os conselheiros do rei de Tróia; uma velha de rosto meigo que só podia ser a rainha; um bando de garotos em roupas coloridas e luxuosas, que ele presumiu - também corretamente - serem os filhos mais moços de Príamo, que ainda não tinham idade suficiente para participar das competições, e algumas jovens bonitas, que atraíram sua atenção, principalmente, por serem tão diferentes de Enone. Ele se perguntou o que estariam fazendo ali - talvez as mulheres do palácio tivessem permissão para assistirem aos jogos. Pois mostraria a cias algumas coisas para verem. E foi nesse momento que o chamaram para disparar suas flechas. A primeira foi muito além do alvo, porque Páris estava nervoso, e a segunda também.

- Deixem o estranho atirar de novo - pediu Heitor. - Você não está - acostumado com nossos alvos, mas tenho certeza de que poderá acertar, se é capaz de atirar tão alto e tão longe.

Ele apontou o alvo e explicou as regras. Páris preparou-se para atirar de novo, completamente surpreso com a cortesia de Heitor. Disparou a flecha, desta vez acertando no centro do alvo. Os outros arqueiros atiraram, um a um, mas nem mesmo Heitor conseguiu um disparo melhor. Heitor não soma agora; parecia irritado e soturno e Kassandra compreendeu que ele se arrependia de sua generosidade impulsiva.

Houve outras competições e - Kassandra, recolhendo-se à própria mente e corpo, com um intenso esforço, observou com interesse e prazer o irmão gêmeo ganhar todas. Ele derrubou Deífobo quase sem esforço na luta livre; e quando Deífobo levantou-se e correu em sua direção, deixou-o sem sentidos, para só se recuperar depois que os jogos acabaram. Arremessou a lança ainda mais longe do que Heitor, escutando os gritos de "Ele é forte como Hérkules" com ingênuos sorrisos de satisfação.

Um servo aproximou-se do rei e da rainha com una mensagem, e Kassandra ouviu o pai repetir em voz alta:

- Ele diz que o jovem estranho se chama Páris, o filho de criação de Agelau, o pastor. - Hécuba ficou branca como um osso. - Eu deveria ter imaginado; ele parece com você. Mas quem poderia acreditar? Já se passou tanto tempo, tanto tempo...

As competições haviam terminado e Príamo gesticulou para que Páris se

adiantasse, como o vencedor. Depois se levantou e gritou:

- Agelau, seu velho traiçoeiro, onde você está? Trouxe meu filho de volta... O velho servo se adiantou, arrastando os pés, pálido e contrafeito. Inclinou-se diante do rei e murmurou:

- Eu disse a ele que não viesse hoje, senhor. Mas ele veio mesmo sem a minha permissão e eu compreenderia perfeitamente se ficasse zangado comigo...conosco.

- Mas não estou - disse Príamo, muito afável, enquanto Kassandra via a mão de Hécuba relaxar do aperto angustiado sobre o coração. - Ele é um crédito para você e para mim também. A culpa foi minha por dar ouvidos a bobagens supersticiosas. Só tenho que lhe agradecer, velho amigo.

Ele tirou um anel de ouro do seu dedo e pôs no dedo encarquilhado pelo trabalho de Agelau.

- Merece uma recompensa maior do que esta, meu velho amigo, mas isto é tudo o que tenho para você agora. Terei um presente melhor para lhe dar antes de voltar a seus rebanhos.

Atônita, Kassandra observou o pai, que a jogara no chão com um tapa apenas por indagar pela existência daquele irmão, abraçar Páris e conceder-lhe todos os prêmios do dia. Hécuba chorava e se adiantou para abraçar também o filho perdido.

- Nunca pensei que veria este dia - murmurou ela. - Prometo uma novilha imaculada à Deusa.

Heitor franziu o rosto ao ver o pai concedendo presentes generosos a Páris: o prometido tripé (que Páris disse que desejava mandar para a mãe de criação); um manto escarlate com listras bordadas, feito pelos tecelãs do palácio; um excelente elmo de bronze; e uma espada de ferro.

- E é claro que, você voltará ao palácio e jantará com sua mãe e comigo - convidou Príamo finalmente, com um sorriso expansivo.

Enquanto Príamo se levantava, ajeitando o manto sobre o braço, um dos velhos no círculo ao seu redor se adiantou e sussurrou em seu ouvido. Kassandra reconheceu-o como um antigo freqüentador do palácio, um dos sacerdotes adivinhos.

Príamo amarrou a cara e acenou para que o homem se afastasse, gritando:

- Não me fale em presságios, velho agourento! Asneiras supersticiosas! Eu nunca deveria ter escutado!

Kassandra pôde sentir o choque - e também o medo, em parte - que invadiu Páris ao ouvir tais palavras. Era de se esperar; ele sabia dos presságios que o exilaram do palácio e de seu direito hereditário - ou somente agora tomava conhecimento?

Heitor disse no ouvido do pai, mas claramente audível para Páris:

- Pai, se os Deuses determinaram que ele é um perigo para Tróia...

Príamo não o deixou continuar:

- Os Deuses? Não; uma sacerdotisa, uma intérprete de entranhas de galinha e sonhos; apenas um tolo se privaria de um filho tão excepcional por causa desses absurdos. Um rei não aceita os presságios de uma mulher grávida ou suas fantasias.. .

Kassandra sentia-se dividida, a metade em compaixão pelo irmão gêmeo cujo medo e insegurança não podia deixar de sentir como se fossem seus, a outra metade temerosa pela mãe. Tinha vontade de se adiantar e atrair a ira de Príamo para sua pessoa; mas antes que pudesse falar, o pai desviou os olhos para Andrômaca.

- E agora corrigirei o erro antigo e levarei para casa meu filho perdido. O que me diz, Hécuba: devemos casar a filha da rainha da Cólquida com o nosso maravilhoso novo filho?

- Não pode fazer isso, pai - interveio Heitor, enquanto Kassandra percebia os olhos de Páris contemplarem Andrômaca sofregamente. - Páris já tem uma esposa; eu a vi pessoalmente, na casa de Agelau.

- É verdade, meu filho? - indagou Príamo.

Páris pareceu contrariado, mas compreendeu a ameaça implícita e respondeu com toda polidez.

- É, sim; minha esposa é uma sacerdotisa do Deus Rio Escamandro.

- Então deve chamá-la, meu filho, e apresentar à sua mãe. - Príamo virou-se para Heitor. - E a você, Heitor, meu filho mais velho e herdeiro, a você eu dou a mão da filha da rainha Imandra; esta noite celebraremos o casamento.

Não tão depressa, não tão depressa - protestou Hécuba. - A menina precisa de tempo para aprontar suas roupas de núpcias, como qualquer outra moça; e as mulheres do palácio precisam de tempo para preparar essa festa tão importante na vida de uma mulher.

- Isso é bobagem - disse Príamo. - Desde que a noiva esteja pronta e o dote acertado, quaisquer roupas podem ser usadas para um casamento. As mulheres estão sempre preocupadas com essas coisas triviais.

Tudo isso pode ser uma coisa tola, pensou Kassandra, mas é uma grosseria de Príamo fazer pouco caso. O que pensaria a rainha da Cólquida se o casamento da filha fosse realizado ao final do festival?

Ela inclinou-se para Andrômaca e sussurrou:

- Não deixe que a apressem assim. É uma princesa da Cólquida, não um manto velho a ser dado como um prêmio extra nos jogos, ou uma consolação porque Heitor não venceu!

Andrômaca sorriu e sussurrou em resposta:

- Acho que eu gostaria de ter Heitor antes que seu pai mude de idéia ou decida que pode me usar como um prêmio para outro.

Ela levantou os olhos e murmurou, numa voz tímida como Kassandra nunca a ouvira usar antes, tão falsa que Kassandra não pôde entender por que Príamo não ria dela:

- Meu senhor Príamo... o pai de meu senhor... a senhora da Cólquida, minha mãe, a rainha, mandou-me com todos os tipos de roupas; assim, se lhe agradar, pode realizar o casamento no momento que julgar mais conveniente.

Príamo ficou radiante e afagou seu ombro.

Aí está urna boa moça - comentou.

Andrômaca corou e baixou os olhos timidamente, enquanto Heitor se aproximava e a contemplava... da mesma forma como contemplara a novilha que Páris escolherá para o sacrifício, pensou Kassandra.

- Terei o maior prazer em tomar como esposa a filha da rainha Imandra.

O longo dia chegava ao fim. Príamo e Hécuba embarcaram nos carros para retorno ao palácio. Kassandra descobriu-se a caminhar ao lado de Páris; sentia-se profundamente consternada porque o irmão gêmeo ainda não lhe endereçara uma única palavra, nem reconhecera por qualquer forma. o vínculo entre os dois, tão importante para ela. Como Páris podia ignorá-la?

Kassandra especulou se ele também estaria sob a proteção especial do Senhor do Sol, e agora o reconhecia, com a intenção de restaurá-lo em seu legítimo lugar na família.

Heitor andava perto de Andrômaca; virou-se e pôs a mão no ombro de Kassandra, depois deu-lhe um rude abraço de boas-vindas. - Como está queimada do sol, irmã Kassandra... embora isso não devesse

me surpreender, depois de todos esses anos com as amazonas. Por que não pegou seu arco e entrou no campo para disputar a competição com os outros arqueiros?

- Não tenho a menor dúvida de que ela poderia fazer isso e atirar melhor do que você - comentou Andrômaca.

- Também não duvido - disse Heitor. - Eu não estava no meu melhor dia hoje e... - Tossiu e baixou a voz, lançando um rápido olhar para Páris      preferia ser derrotado por uma garota do que por aquele recém-chegado. - Virou-se para Deífobo, que ainda segurava a cabeça, como se doesse, e perguntou: - Diga-me, irmão, o que vamos fazer com esse sujeito? Não posso esquecer a maneira como nosso pai o abandonou, porque ele era uma ameaça para Tróia. Devo ignorar isso, porque o pai julgou conveniente me subornar com uma linda esposa?

- Parece que o pai já está fascinado por ele - respondeu Deífobo. - Deveria se lembrar da lição do rei Pélias, quando foi confrontado com seu filho perdido, Jasão; ele despachou Jasão numa busca nos confins do mundo, à procura do Tosão de Ouro...

- Mas não existe mais qualquer ouro na Cólquida - interveio Andrômaca.

- Pois então devemos encontrar algum outro meio de nos livrarmos dele - declarou Heitor. - Talvez pudéssemos persuadir o pai a enviá-lo para usar um pouco do seu charme com Agamenon, convencendo-o a devolver Hesíone.

- Uma boa idéia - concordou Deífobo. - E se isso falhar, podemos mandá-lo... ora, persuadir as sereias a entregarem os tesouros do mar, ferrar os. centauros onde eles habitam... ou domá-los para puxar nossos carros...

- Ou qualquer outra coisa que o leve para mil léguas de Tróia - arrematou Heitor. - E isso em benefício do próprio pai, se os Deuses determinaram que ele não é uma dádiva para Tróia...

- Certamente não é para nós - disse Deífobo.

Mas Kassandra já ouvira demais. Ficou para trás, passou a andar ao lado de Páris. Fitando-a rudemente, ele disse:

- Você... pensei que era um sonho.

E quando seus olhos se encontraram pela primeira vez, Kassandra sentiu outra vez o vínculo entre os dois se estabelecer; Páris também estaria consciente da maneira como estavam ligadas, dentro da alma?

- Pensei que você era um sonho... - repetiu ele - ... ou talvez um pesadelo.

A brusquidão das palavras era como um golpe; Kassandra esperava que ele a abraçaste em sinal de boas-vindas.

- Irmão, sabe o que estão tramando contra você? Não é bem acolhido em Tróia por nossos irmãos.

Kassandra tornou a se estender para o contato, apenas para senti-lo se retrair, furioso.

- Sei disso; pensa que sou um tolo? E a partir de agora, irmã, mantenha seus pensamentos para si mesma... e fique longe dos meus!

Ela recuou angustiada por estar sendo excluída da mente de Páris. Desde que tomara conhecimento de sua existência e do vínculo entre os dois, fantasiara que haveria alegria, quando se encontrassem pessoalmente, e que depois ela seria especial e até mesmo preciosa para o irmão gêmeo. Agora, em vez disso, ele a repelia, considerando-a uma intrusa. Será que Páris não compreendia que ela era a única pessoa ali disposta a recebê-lo com aceitação e um amor ainda maior que o de Príamo?

Mas ela não choraria e suplicaria pelo amor de Páris.

- Como quiser, irmão. Nunca foi meu desejo ser ligada a você dessa maneira. Acha então que talvez o nosso pai tenha abandonado o gêmeo errado?

Kassandra se afastou, apressando-se pelo caminho ao encontro de Andrômaca, perdida toda a alegria da volta ao lar.

 

Durante toda a noite Kassandra pensou que era mais uma comemoração pelo retorno de Páris à família do que uma festa de casamento para Heitor e Andrômaca, embora Príamo, depois de tomar a decisão de celebrar a união, se empenhasse para que nada faltasse. Ele mandou buscar o melhor vinho nas adegas reais e Hécuba foi à cozinha para providenciar as iguarias que seriam acrescentadas à refeição vespertina: frutas, favos de mel, todos os tipos de doces. Músicos, dançarinos, malabaristas e acrobatas foram reunidos para a diversão.

Uma sacerdotisa do Templo de Palas Atena foi chamada para supervisionar os sacrifícios que eram uma parte muito necessária de um casamento real.

Kassandra permaneceu junto a Andrômaca, que parecia pálida e assustada, agora que a cerimônia estava próxima - ou talvez, pensou Kassandra, com uma ironia que a surpreendeu, aquela fosse a noção de Andrômaca da maneira como uma mulher recatada deveria se comportar no dia do seu casamento.

Quando estavam paradas no pátio, observando solenemente a preparação dos sacrifícios, Andrômaca inclinou-se para Kassandra e sussurrou:

- Eu pensaria que os Deuses já tiveram sacrifícios suficientes por um dia. Será que se sentem entediados de observar as pessoas matando animais por Eles? Posso garantir que uma matança assim não me agradaria.

Kassandra teve de reprimir uma risada que seria escandalosa; mas era verdade: já houvera muitos sacrifícios nos jogos. O casal postou-se lado a lado, as mãos cruzadas sobre a faca sacrificial. Heitor inclinou-se e sussurrou para Andrômaca. Ela sacudiu a cabeça, mas Heitor insistiu; e foi a mão de Andrômaca que empurrou a faca sem hesitação pela garganta da novilha branca. Para Kassandra, que nada comera desde aquela manhã, o cheiro de carne assada era como ambrosia.

Depois disso, passaram-se apenas mais alguns minutos até que entraram e Hécuba mandou as servas para Andrômaca e Kassandra, a fim de ajudá-las a se vestirem para a festa. Estavam no aposento que Kassandra partilhara com Polixena quando eram pequenas; só que não era mais um simples quarto de crianças. As paredes haviam sido pintadas à moda cretense, com murais de criaturas marinhas, estranhas lulas e polvos de muitos tentáculos emaranhados em algas marinhas, nereidas e sereias. As mesas eram de madeira talhada, cobertas com cosméticos e recipientes de fragrâncias em vidro azul, soprados nas formas de peixes e sereias. Havia cortinas nas janelas, de algodão egípcio, tingido de verde, através das quais o sol do final da tarde se infiltrava, como se atravessasse ondas, criando uma estranha impressão de luz submarina.

A carroça de presentes da Cólquida fora descarregada no palácio e Andrômaca vasculhou entre os fardos, à procura de um presente de casamento apropriado para o marido. A rainha enviara para Kassandra uma linda túnica de gaze egípcia e Andrômaca encontrou, entre as arcas da Cólquida, uma túnica de seda de saia larga, mas tão fina que todo o traje poderia passar por um anel, tingida com o escarlate de valor inestimável de Tiro.

A rainha também enviara suas próprias criadas, que prepararam tinas com água quente e banharam e perfumaram as duas moças. Enrolaram seus cabelos com tenazes aquecidas, depois se sentaram e pintaram seus rostos com cosméticos. Puseram em seus lábios um vermelho que recendia a maçãs frescas e mel; depois aplicaram kohl do Egito para escurecer as sobrancelhas e ressaltar os olhos, pintaram as pálpebras com uma pasta azul que parecia giz em pó, mas recendia ao melhor azeite. Andrômaca aceitou toda essa atenção como se estivesse acostumada por toda a sua vida, mas Kassandra disse gracejos nervosos para as mulheres que a arrumavam.

- Se eu tivesse chifres, tenho certeza de que vocês iriam dourá-los - disse ela. - Sou uma hóspede ou um animal sendo preparado para o sacrifício?

- A rainha assim ordenou, senhora - disse uma das aias.

Kassandra imaginou que Hécuba ordenara tudo aquilo para que a princesa da Cólquida pudesse pensar que Tróia não era menos luxuosa do que sua distante cidade. A aia acrescentou:

- Ela determinou que a princesa deveria estar tão bem arrumada quanto a própria rainha. O que é muito certo, pois a canção antiga diz que cada dama é uma rainha quando sobe no carro nupcial. E é assim que tenho vestido a dama Polixena para cada festival, desde que ela se tornou adulta.

A mulher franziu o rosto, enquanto esfregava um óleo perfumado que recendia a lírios e rosas nas mãos de Kassandra.

- Suas mãos estão calosas, senhora Kassandra - comentou ela, em tom de censura. - Nunca serão tão macias quanto as mãos de princesas, que são como pétalas de rosas... como devem ser as mãos de uma dama.

- Lamento muito, mas não há nada que eu possa fazer a respeito - respondeu Kassandra, retorcendo as mãos denegridas.

Foi nesse momento que ela percebeu pela primeira vez o quanto já sentia falta da vida ao ar livre, como também já sentia falta de sua égua. Pentesiléia lhe dera uma magnífica égua como presente de despedida; mas o último ato de Kassandra na jornada fora enviar o animal de volta, com a guarda das amazonas. Sabia que não teria permissão para cavalgar livremente e não queria ver aquela nobre companheira confinada a um estábulo ou, pior ainda, entregue a um de seus irmãos para puxar um carro.

O sol estava se pondo e as servas acenderam as tochas. Depois, puseram um broche de ouro no ombro da túnica de Kassandra e estenderam um manto novo, de lã, listrado, sobre seus ombros. Andrômaca enfiou os pés em sandálias douradas.

- E aqui está um par para você - disse ela, inclinando-se para pôr as sandálias nos pés de Kassandra.

- Ficará tão bela quanto a noiva - comentou a criada.

Mas Kassandra achou que Andrômaca, com seus cachos escuros e lustrosos, estava mais linda do que qualquer outra mulher em Tróia.

As duas moças desceram a escada apressadas; mas Kassandra não podia correr nas sandálias requintadas e tiveram de avançar com muito cuidado, descendo degrau por degrau da longa escadaria.

O vasto salão de banquete estava iluminado por muitas tochas e lampiões. Príamo já sentara em seu trono alto e parecia contrariado porque elas estavam atrasadas. O arauto anunciou:

- Princesa Kassandra e princesa Andrômaca da Cólquida.

Príamo mudou de ânimo no mesmo instante e estendeu a mão, jovial, acenando para que as moças se aproximassem. Ele sentou Andrômaca em posição privilegiada, ao seu lado, partilhando seu prato e taça de ouro. Hécuba fez sinal para que Kassandra se instalasse ao seu lado e sussurrou:

- Agora você parece realmente uma princesa de Tróia, não uma mulher de uma tribo selvagem, minha querida. Está linda.

Kassandra pensou que deveria parecer uma boneca pintada, como as pequenas efígies que vinham do Egito e se destinavam aos túmulos de rainhas e reis. Era assim que Polixena parecia; mas se a mãe estava satisfeita, ela não protestaria.

Depois que todos estavam sentados, Príamo propôs o primeiro brinde, levantando sua taça.

- A meu esplêndido novo filho, Páris, e ao generoso destino que o devolveu a mim e a sua mãe, um conforto em nossa velhice.

Heitor protestou, em voz baixa:

- Pai, já esqueceu a profecia de seu nascimento, de que ele acarretaria o desastre para Tróia? Eu era apenas uma criança, mas lembro muito bem.

Príamo pareceu irritado; Hécuba deu a impressão de que estava prestes a chorar. Páris não pareceu surpreso; Agelau deveria ter lhe contado. Mas era descortesia de Heitor mencionar a profecia numa festa.

Heitor estava com seu melhor traje, uma túnica bordada a ouro, que Kassandra reconheceu como obra das próprias mãos da rainha; Páris também recebera uma magnífica túnica e um manto novo, como o de Kassandra, e tinha uma aparência esplêndida. Príamo contemplou a ambos com satisfação, enquanto dizia.

- Não, meu filho, não esqueci o presságio, que não foi anunciado a mim, mas sim à minha rainha. Só que a mão dos Deuses o devolveu a mim e nenhum homem pode contestar o Destino ou a vontade dos Imortais.

- Mas tem certeza de que foram mesmo os Deuses e não a obra de algum Destino maligno, empenhado em destruir nossa Casa Real? - insistiu Heitor.

O rosto moreno de Páris parecia uma nuvem de tempestade, mas Kassandra não podia agora ler os pensamentos do irmão gêmeo. Príamo declarou, com uma expressão de advertência que fez Kassandra se encolher:

- Paz, meu filho! Não quero mais ouvi-lo sobre esse assunto. Prefiro ver toda Tróia perecer, se for esse o caso, antes que qualquer mal aconteça com o filho esplêndido que acabei de encontrar.

Kassandra estremeceu. Príamo, que desdenhava as profecias, acabara de emitir uma.

Ele sorriu benevolente para Páris, que estava sentado no outro lado de Hécuba, os dedos entrelaçados com os da mãe. O rosto de Hécuba desmanchava-se em sorrisos e Kassandra sentiu uma pontada de angústia; a descoberta de Páris significava que perdera por completo a recepção adicional que a mãe poderia lhe oferecer. Sentiu-se triste e magoada, mas disse a 'si mesma que de qualquer forma Pentesiléia se tornara a sua verdadeira mãe; entre as amazonas, uma filha era útil e bem-vinda, enquanto ali, em Tróia, uma filha era sempre considerada apenas como não sendo um filho.

Príamo exortava Andrômaca a beber cada vez que a taça circulava, esquecendo de que ela não passava de uma garota, à qual normalmente não seria permitido ou encorajado beber assim. Kassandra percebeu que a amiga já estava uni pouco embriagada e tonta. O que talvez seja melhor, pensou, pois ao final deste

banquete ela será enviada completamente despreparada para a cama de meu irmão Heitor. E ele também está embriagado.

Ocorreu-lhe subitamente que deveria estar contente por Andrômaca não casar com Páris, como fora sugerido no início; com o vínculo mental entre os dois, provavelmente ela não seria capaz de evitar o contato de partilhar a consumação do casamento. O pensamento deixou-a quente e gelada, alternadamente; suas sensibilidades ardiam. Onde estava Enone? Por que Páris não a chamara, como sua esposa, para comparecer ao casamento? Heitor, talvez porque estivesse embriagado, resolveu levantar o assunto:

- Pai, decidiu honrar nosso irmão; não acha que ele deve ter permissão para merecer essa honra que lhe conferiu? Eu lhe peço que o envie em missão aos akaios, assim, se a profecia maléfica ainda persistir, será desviada para eles.

- É uma boa idéia - murmurou Príamo, que também já fora afetado pelo excesso de vinho. - Mas você não quer nos deixar, não é mesmo, Páris?

Páris murmurou, corretamente, que estava sempre à disposição de seu pai e rei.

- Ele encantou a todos nós - comentou Heitor, com alguma malícia. - Então por que não deixar que ele experimente esse charme irresistível com Agamenon, a fim de persuadi-lo a devolver a princesa Hesíone?

Páris levantou os olhos abruptamente.

- Agamenon não é o irmão daquele Menelau que casou com Helena de Esparta? E ele próprio não é casado com a irmã da rainha espartana?

- É isso mesmo - confirmou Heitor. - Quando os akaios vieram do norte, com seus carros de guerra e cavalos e seus Deuses Tonantes, Leda, a senhora de Esparta, casou com uni dos seus reis. Houve o rumor, quando ela lhe deu filhas gêmeas, que uma delas era filha do próprio Senhor Tonante. - Heitor fez uma pausa, pensativo, antes de continuar: - E Helena casou com Menelau, embora se dissesse que ela era bela como unia Deusa e poderia casar com qualquer rei, da Tessália a Creta. Pelo que sei, houve muita desavença no casamento de Helena, a ponto de quase haver em guerra. Você não tem uma aparência desfavorável, minha Andrômaca... - Ele se aproximou e contemplou atentamente o rosto da princesa da Cólquida         mas também não é tão bela que precisarei mantê-la aprisionada, só para não despertar a inveja e a cobiça dos outros homens.

Heitor pegou o rosto da moça entre suas mãos e fitou-a silencioso por um momento.

- Meu senhor é muito generoso com sua humilde esposa - murmurou Andrômaca, com um pequeno sorriso que somente Kassandra reconheceu como sarcasmo.

Páris observava Heitor tão atentamente que Kassandra não pôde deixar de notar. O que ele pensava? Estaria com ciúme de Heitor, que não era tão bonito e tão inteligente? Com uma linda esposa como Enone, não podia estar com inveja de Heitor por causa de Andrômaca, só porque ela era uma princesa da Cólquida. Ou invejaria Heitor por ser o piais velho e o predileto inegável do pai? Ou estaria furioso porque Heitor, afinal de contas, o insultara?

Kassandra tomou uni gole do vinho em sua taça, tentando imaginar como Andrômaca realmente se sentia em relação ao casamento; não podia imaginá-la na maior alegria por casar com o tirano Heitor, mas refletiu que Andrômaca não estava insatisfeita com a perspectiva de se tornar uni dia a rainha de Tróia. Furtivamente - a mãe sempre a advertira que não era correto olhar diretamente para os homens - ela correu os olhos pela sala, perguntando-se se havia ali alguns homem cone quem casaria de bom grado. Certamente nenhum dos seus irmãos, mesmo supondo que não fosse unia irmã; Heitor era rude e belicoso; Deífobo era dissimulado e insidioso; até mesmo Páris, por mais belo que fosse, já negligenciara Enone. Troilo era apenas um menino, mas poderia se tornar gentil e generoso quando crescesse. Kassandra lembrou que mesmo entre as amazonas as moças falavam sobre os homens durante todo o tempo e lá também sentira no fundo de seu coração o peso de ser diferente. Por que não se preocupava com o que era tão importante para, as outras?

Deve haver alguma coisa valiosa no casamento; se não fosse assim, por que todas as mulheres se mostrariam tão ansiosas? E foi então que ela recordou as palavras da rainha Imandra: de que era uma sacerdotisa nata. Pelo menos era um motivo válido para sua diferença.

As pálpebras de Kassandra estavam pesadas, ela piscou e empertigou-se, desejando que tudo terminasse; estava acordada e viajando desde o amanhecer, fora um dia comprido.

Príamo chamara Páris para o seu lado e conversavam sobre navios, a rota para se navegar até as ilhas akaias, a melhor maneira de abordar o povo de Agamenon. Andrômaca já estava meio adormecida. Aquele era o banquete mais insípido de que já participara, pensou Kassandra - embora fosse verdade que não participara de muitos.

Príamo finalmente propôs um brinde ao novo casal e pediu tochas para escoltar Heitor e a esposa à câmara nupcial.

Primeira entre as mulheres, Hécuba liderou a procissão, com uma tocha na mão. Bruxuleava e faiscava em cores brilhantes nas paredes, enquanto as mulheres, com Kassandra e Polixena flanqueando Andrômaca, subiam as escadas. Todas as mulheres do palácio estavam ali, as esposas e filhas inferiores de Príamo e todas as servas, até as criadas da cozinha. As tochas desprendiam muita fumaça e os olhos de Kassandra ardiam. Parecia-lhe que flamejavam alto, que havia um fogo terrível além das muralhas, penetrando pela câmara nupcial, para onde levavam Andrômaca, ao encontro de algum destino pavoroso...

Levando as mãos aos olhos para bloquear a visão, Kassandra se ouviu gritar.

- Não! Não! O fogo! Não a levem para dentro!

- Cale-se! - Hécuba pegou os pulsos da filha e apertou, até que ela se contorceu em dor. - O que há com você? Ficou louca?

- Não pode ouvir a trovoada? - balbuciou Kassandra. - Não, não, há apenas morte e sangue... fogo ali dentro, relâmpago, destruição.. .

- Fique quieta! - ordenou Hécuba. - Que presságio para uma noite de núpcias! Como se atreve a fazer tal cena?

- Mas não podem ouvir, não podem ver...

Kassandra sentia que transbordava de escuridão, nada podia ver além das trevas entremeadas de fogo. Comprimiu as mãos contra os olhos outra vez, querendo apagar a cena. Seria apenas por causa das tochas fumegantes, distorcendo sua visão?

- Que vergonha! - A mãe ainda a censurava, enquanto a arrastava. - Pensei que a princesa da Cólquida fosse sua amiga. Quer estragar sua noite de núpcias com seu espetáculo? Sempre teve inveja quando outra pessoa era o centro das atenções, mas pensei que tivesse crescido e não fizesse mais essas coisas...

Levaram Andrômaca para a câmara nupcial. Também fora pintada com criaturas do mar, tão realistas que pareciam se contorcer e nadar nas paredes. Hécuba lhe contara ao jantar que trabalhadores de Creta estavam no palácio há um ano, redecorando as paredes ao estilo cretense, e que os móveis talhados eram um tributo da rainha de Knossos.

Na mesa ao lado da cama havia uma pequena estátua da Mãe Terra, os seios à mostra por cima do corpete rendado, uma saia de babados, uma serpente em cada mão. Andrômaca, enquanto as mulheres tiravam seus trajes nupciais e punham uma camisa de gaze egípcia, sussurrou para Kassandra:

- E a Mãe Serpente; ela foi enviada de minha terra para me abençoar esta noite.. .

Por um momento, as águas escuras dentro de Kassandra ameaçaram transbordar outra vez e inundá-la. Ela tremia de medo; tinha de fazer o maior esforço para não gritar pelo terror e apreensão, que ameaçavam sufocá-la: Fogo, morte, sangue, a tragédia para Tróia... para todos nós... O rosto da mãe, firme e irado, manteve-a em silêncio. Ela abraçou Andrômaca com um temor atordoado, entregando-lhe a pequena estátua e murmurando.

- Que ela lhe abençoe com a fertilidade, irmãzinha.

Andrômaca não parecia mais do que uma criança alta em sua camisa, os cabelos escovados e caindo pelos ombros, os olhos pintados, enormes e escuros. Kassandra ainda submersa nas águas escuras da visão, sentia-se velha e murcha entre todas aquelas moças sonhando com casamentos, sem terem a menor idéia do que havia além. Ouviram agora o canto dos homens, enquanto escoltavam Heitor pela escada acima para reclamar sua esposa. Andrômaca tomou a abraçá-la e sussurrou:

- Você é a única que não é uma estranha para mim, Kassandra. Eu lhe suplico que me deseje felicidade.

A garganta de Kassandra estava tão ressequida que ela mal podia falar.

Se ao menos fosse tão fácil conferir a felicidade quanto o é desejá-la.. .

- Eu lhe desejo toda a felicidade, irmã.

Mas não haverá felicidade - apenas a destruição e o maior sofrimento do mundo...

Ela quase que podia ouvir os gritos de angústia e os lamentos entre o canto alegre do hino nupcial, enquanto Heitor, escoltado pelos amigos, entrava na câmara, a luz avermelhada da tocha deixando seus rostos manchados de sangue... ou os ossos de seus rostos estariam iluminados como caveiras?

A sacerdotisa ao lado da cama entregou-lhe a taça nupcial. Kassandra pensou: Isso deveria ser uma tarefa minha. Mas seu rosto estava paralisado pelo pavor e ela sabia que nunca teria forças para pôr a taça na mão da amiga.

- Não fique tão triste, irmãzinha - disse Heitor, passando a mão de leve por seus cabelos. - Sua vez chegará muito em breve; ao jantar, nosso pai comentou que vai lhe providenciar um marido. Sabia que o filho do rei Peleu, Akiles, apresentou uma proposta por você? O pai diz que há uma profecia de que ele será o maior herói de todos os tempos. Talvez o casamento com um akaio acabe para sempre com essas guerras sem sentido... embora eu prefira lutar com Akiles e conquistar a glória por isso.

Kassandra apertou freneticamente os ombros de Heitor.

- Tome cuidado com as coisas por que ora, pois um Deus poderá atendê-lo! - balbuciou ela. - Deve orar para nunca se encontrar com Akiles em batalha!

Ele fitou-a irritado e removeu firmemente as mãos de Kassandra de seus ombros.

- Como profetisa, você é uma ave de mau agouro, irmã. Prefiro não ouvir seus presságios na minha noite de núpcias. Vá para sua cama e deixe-nos na nossa.

 

Kassandra sentiu as águas escuras se escoarem, deixando-a oca, vazia e nauseada, sem saber o que dissera. Ela murmurou:

- Perdoe-me; não tive más intenções. Tenho certeza de que sabe que só desejo o melhor, a você e à nossa parenta da Cólquida...

Heitor roçou com os lábios em sua testa.

- Foi um dia comprido e você viajou muito, irmã. Só os Deuses sabem que loucuras lhe foram ensinadas na Cólquida. Não é de admirar que esteja quase delirando de cansaço. Boa noite, irmãzinha... e isto para os seus presságios! - Ele pegou a tocha ao lado da cama e prontamente apagou a chama. - Que todos possam definhar assim!

Kassandra virou-se, meio trôpega, enquanto as outras mulheres alteavam as vozes na última canção nupcial. Ela sabia que deveria acompanhá-las, mas sentia que não era capaz de emitir uma única nota, mesmo que sua vida dependesse disso. Afastou-se da cama e deixou a câmara nupcial, seguindo para seu quarto. Caiu na cama, sem sequer se dar ao trabalho de tirar as roupas ou remover os cosméticos borrados do rosto. E mergulhou no sono, as águas escuras voltando a envolvê-la, afogando o eco remanescente dos alegres hinos.

 

Há muitos dias que a enseada ressoava com os ruídos de martelos e enxós, enquanto o navio crescia no berço em que fora posta a quilha. Quase todas as noites os harpistas iam ao Grande Salão para cantar a saga de Jasão e a construção do Argo.

As provisões para a viagem foram carregadas por muitas semanas, enquanto os veleiros costuravam com suas enormes agulhas a vela volumosa, estendida sobre a areia branca da praia; para secar ou defumar barris de carne, as fogueiras ardiam noite e dia no pátio; cestos de frutas foram trazidos, assim como grandes jarros de vinho e óleo, além de armas, mais e mais armas. Parecia às mulheres que há meses todos os artífices do reino forjavam pontas de flecha de bronze, espadas de bronze ou ferro, couraças de todos os tipos.

Dezenas dos melhores guerreiros de Príamo acompanhariam Páris, não para fazerem a guerra, mas para o caso de encontrarem piratas na travessia do Egeu, quer fosse o notório saqueador Odisseu (que às vezes aparecia no palácio de Príamo para vender sua pilhagem ou apenas para pagar o tributo que o rei exigia de todos os navios que passavam pelo estreito, seguindo para o norte) ou algum outro pirata. Aquela expedição, carregada de presentes para Agamenon e os outros reis akaios, não seria saqueada: sua missão, pelo que dizia Príamo, era negociar um resgate honroso para a princesa Hesíone.

Kassandra observava o navio crescendo sob as mãos dos construtores e desejava ardentemente zarpar junto, com Páris e os outros.

Em dois ou três dias, quando os guerreiros treinavam no pátio, ela tomou emprestada uma das túnicas curtas de Páris e foi praticar com eles, escondida por um elmo, usando espada e escudo. A maioria das pessoas pensou que era Páris lutando; como ele raramente aparecia no pátio para os exercícios, Kassandra não foi logo descoberta. Mesmo sabendo que não passava de uma farsa, ela divertiu-se imensamente; por um longo tempo, sua agilidade e força muscular ajudaram a manter sua identidade desconhecida.

Mas um dia ela enfrentou um amigo de Heitor e foi derrubada, a túnica curta subindo acima da cintura. Heitor aproximou-se e arrancou o elmo de sua cabeça; furioso, tirou a espada de sua mão, virou-a e bateu com toda a força em suas nádegas.

- E agora trate de entrar, Kassandra, cuide apenas de sua roca - disse ele, irritado. - Já há muito trabalho de mulher para você fazer; se eu a pegar outra vez por aqui, disfarçada, vou lhe dar pessoalmente uma surra de arrancar sangue.

- Deixe-a em paz, seu bruto! - gritou Andrômaca.

Ela assistira à cena do lado do pátio, onde ajustara uma almofada vermelha no carro de guerra de Heitor e nela pregava os últimos fios de ouro. Heitor virou-se para fitá-la, ainda mais furioso.

- Sabia que ela estava aqui, Andrômaca?

- E se eu soubesse? - indagou Andrômaca, numa atitude de desafio. - Minha própria mãe e a sua também sabem lutar como guerreiros!

- Não é apropriado que minha esposa ou minha irmã fiquem aqui fora, à vista de todos os soldados - disse Heitor, de cara amarrada. - Entre logo e vá cuidar de seu trabalho. e chega de conivência com minha atrevida irmã!

- Imagino que pensa que pode também me dar uma surra! - gritou Andrômaca, empertigando-se. - Mas sabe o que receberá de mim se por acaso tentar!

Aturdida, Kassandra viu o rubor de embaraço espalhar-se pelo rosto do irmão. Os cabelos escuros de Andrômaca esvoaçavam em tomo do rosto, soprados pelo vento fresco; ela usava uma túnica folgada, quase da mesma cor do traje que vestira no casamento; estava linda. Heitor finalmente falou, tão tenso que Kassandra compreendeu que ele reprimia o que realmente tinha vontade de dizer, por não ser apropriado aos ouvidos de uma pessoa estranha, mesmo sendo sua própria irmã:

- É bem possível que assim seja, esposa. Mas acho que é mais apropriado que você volte aos alojamentos das mulheres e cuide de sua roca; já há bastante trabalho de mulher a fazer e prefiro que você se ocupe com isso, em vez de vir para cá e aprender os hábitos de Kassandra. Seja como for, se isso a faz sentir-se melhor, não darei uma surra nela por esta vez. Quanto a você, Kassandra, trate de entrar e se ocupe apenas com o que deve. Se não o fizer, contarei tudo ao pai... e talvez ele possa persuadi-la de uma maneira que a fará obedecer.

Ela compreendeu que sua contrariedade foi percebida pelo irmão, pois Heitor logo acrescentou, mais gentilmente:

- Ora, irmãzinha, pensa que eu estaria aqui me consumindo até a exaustão com escudo e lança se pudesse ficar tranqüilo e confortável dentro de casa? A batalha pode lhe parecer atraente quando está apenas brincando com lanças e flechas, com suas amigas e irmãos... mas dê uma olhada!

Ele descobriu o braço, suspendendo a manga de lã da túnica, e mostrou uma cicatriz comprida e vermelha, ainda purgando no centro.

- Ainda dói quando mexo o braço. A guerra não parece tão emocionante quando há ferimentos de verdade para se infligir e sofrer.

Kassandra olhou para o ferimento que desfigurava o corpo liso e musculoso do irmão, sentindo um estranho e nauseante aperto no diafragma; encolheu se toda, lembrando o momento em que cortara a garganta do homem que tentara violentá-la. Sentiu vontade de contar tudo a Heitor; afinal, ele era um guerreiro e haveria de compreender. Mas depois fitou-o nos olhos e concluiu que nada podia falar; ele jamais entenderia que ela era algo mais além de uma mulher.

- Deve se sentir contente, irmãzinha, por ter sido apenas eu quem a viu despojada assim - comentou Heitor, ainda gentil. - Se descobrissem que era uma mulher no campo de batalha... Já vi guerreiras sendo violentadas sem que qualquer homem protestasse. Se uma mulher recusa a proteção a que tem direito como esposa e irmã, não pode contar com mais nada para defendê-la.

Ele abaixou seu elmo e afastou-se, deixando as mulheres a observá-lo, confusas. Kassandra furiosa e sabendo que deveria sentir-se envergonhada, Andrômaca reprimindo uma risadinha. Depois de um momento, porém, ela não pôde mais se conter.

- Ah, como ele ficou enfurecido! Eu teria me apavorado, Kassandra, se toda aquela fúria fosse contra mim! - Ela ajeitou o xale branco em torno dos ombros, aconchegando-se contra a brisa fresca. - Mas vamos sair daqui. Heitor tem razão e você sabe disso; se algum outro homem a visse... - Ela contraiu a boca numa careta e arrematou com um sobressalto exagerado: - ...alguma coisa terrível certamente aconteceria.

Não vendo alternativa, Kassandra seguiu-a. Andrômaca passou o braço pelo da cunhada.

Pela primeira vez em muitos dias, Kassandra se apercebeu das trevas proféticas que afloravam em seu íntimo.

Enquanto permanecera no pátio, empunhando urna arma, não estivera consciente da coisa. que a fizera gritar na noite do casamento. Agora, através daquelas águas turvas, ela divisou Andrômaca e algo mais a envolvê-la, um halo frio e assustador de pesar e terror, mas com muita alegria antes do sofrimento; o que a levou a pôr a mão no braço de Andrômaca e indagar:

- Você está esperando um filho?

Andrômaca sorriu; não, pensou Kassandra, mais do que isso, ficou radiante.

- Acha que sim? Ainda não tenho certeza; pensei em perguntar à rainha como se pode saber sem a menor sombra de dúvida. Sua mãe tem sido muito boa para mim, Kassandra; minha própria mãe nunca me compreendeu ou aprovou, porque eu era mole e covarde, não queria ser uma guerreira. Mas Hécuba me ama e acho que ficará feliz se eu estiver mesmo esperando um filho

- Pelo menos disso tenho certeza. - Depois, como sabia que Andrômaca estava prestes a perguntar "Como soube?", Kassandra procurou por palavras que pudesse usar, em vez de tentar explicar as águas turvas e a terrível coroa de fogo. - Por uni momento, tive a impressão de que podia vê-la com o filho de Heitor nos braços.

O sorriso de Andrômaca tornou-se ainda mais radiante; e Kassandra sentiu-se aliviada pela oportunidade de proporcionar prazer, por uma vez, no lugar de medo, com seu dom indesejável.

Nos dias subseqüentes ela não tornou a pegar em armas, mas saiu muitas vezes, sem ser censurada, para observar a construção do navio. Crescia dia a dia em seu berço na areia; e quase antes da gravidez de Andrômaca se tornar visível a olhos leigos, estava pronto para o lançamento. Um touro branco foi sacrificado no momento em que deslizou pela rampa para a água. Foi nesse instante que Heitor, parado entre a esposa e Kassandra, perguntou:

- Você, que está sempre profetizando coisas sem que ninguém lhe peça, o que vê para este navio?

Kassandra respondeu em voz muito baixa:

- Não vejo nada... e talvez seja esse o melhor de todos os presságios. - Ela podia ver o navio retornando num clarão dourado, como o rosto de algum Deus, e nada mais. - Mas acho que é afortunado que você não esteja partindo, Heitor.

- Que assim seja - murmurou Heitor.

Páris veio despedir-se, apertando a mão de Heitor efusivamente e abraçando Kassandra com um sorriso. Beijou a mãe e depois embarcou. A família continuou parada, observando a embarcação deixar a enseada, a vela estufada pelo vento. Páris postou-se ao timão, empertigado e esguio, o rosto iluminado pelo sol a oeste. Kassandra desvencilhou-se do braço da mãe e afastou-se da multidão que aclamava; foi direto para uma mulher alta, que contemplava fixa

mente a vela, enquanto esta diminuía, tornando-se do tamanho de um brinquedo.

- O que está fazendo aqui, Enone? - perguntou ela, reconhecendo-a do momento em que, com Páris, enlaçara-a, sentindo-a como se estivesse em seus próprios braços. - Por que não foi se despedir de Páris com o resto de sua família?

- Eu não sabia, quando me apaixonei, que ele era um príncipe. - A voz era tão adorável quanto ela, suave e musical. - Como alguém como eu podia se aproximar do rei e da rainha, quando eles se despediam de seu filho?

Kassandra passou o braço pelos ombros de Enone e murmurou:

- Deve ir comigo para o palácio. É a esposa de Páris e mãe de seu filho. Por isso, eles vão amá-la tanto quanto ao próprio Páris.

E se isso não acontecer, pensou ela, eles podem se comportar como se fosse verdade, pela honra da família. É inconcebível que ele tenha partido sem se despedir da esposa! O rosto de Enone estava banhado em lágrimas. Ela apertou o braço de Kassandra e balbuciou, chorando:

- Dizem que você é profetisa, que pode ver o futuro. Diga-me que ele voltará! Diga que ele voltará para mim!

- Claro que ele voltará - respondeu Kassandra.

Ele voltará, mas não para você. Ela estava confusa com a profundidade de suas emoções e acrescentou:

- Vou falar com minha mãe a seu respeito.

Junto com Andrômaca, ela procurou Hécuba. Andrômaca disse, com suave censura:

- Oh, Kassandra, como pode sequer pensar nisso... levar uma camponesa para o palácio?

- Ela não é uma simples camponesa - protestou Kassandra. - É tão bem nascida quanto qualquer uma de nós. Basta olhar para suas mãos e constatar. Seu pai é um sacerdote do Deus Rio Escamandro.

Ela repetiu o argumento para Hécuba, cujo primeiro impulso foi dizer:

- Mas é claro, se ela está esperando um filho de Páris... mas como pode ter certeza disso, minha cara?... devemos providenciar para que ela seja bem tratada e nada lhe falte. Mas acha mesmo que ela deve ir para o palácio?

Mas a rainha ficou encantada ao conhecer Enone, impressionada com sua beleza; levou-a para um conjunto de aposentos no alto do palácio, claros e arejados, dando para o mar. Estavam desocupados e recendiam a camundongos, e Hécuba disse:

- Ninguém usou estes aposentos desde que a mãe de Príamo viveu aqui; chamarei alguns homens para reformar tudo para você, minha cara, se conseguir suportar como está por uma ou duas noites.

Os olhos de Enone estavam arregalados, com uma expressão de incredulidade.

- E tão boa para mim... todas são tão boas para mim...

- Não diga bobagem - interrompeu-a Hécuba, bruscamente. - Pela esposa de meu filho... e em breve pelo filho dele... não há nada que seja bom demais. Chamarei os trabalhadores de Creta... alguns ainda estão aqui, pintando afrescos em casas da cidade, outros pintando vasos e potes de azeite. Mandarei um recado para que se apresentem amanhã.

Ela cumpriu a palavra e logo os cretenses estavam ali, rebocando as paredes, pintando nelas cenas de festival, enormes touros brancos e os dançarinos de Creta, em cores realistas. Enone ficou maravilhada com os lindos aposentos e satisfeita de uma maneira infantil quando Hécuba mandou mulheres para servi-la.

- Não deve se esforçar demais ou meu neto pode ser prejudicado - declarou Hécuba, em tom brusco, quando Enone tentou agradecer, um tanto inarticulada.

Andrômaca também era gentil com Enone, embora de uma maneira um tanto negligente. A princípio, Kassandra passava muito tempo com as duas, confusa com seus sentimentos. Andrômaca agora pertencia a Heitor e Enone a Páris; ela não tinha amigas íntimas e embora Príamo falasse de vez em quando da necessidade de lhe arrumar um marido, não sabia se era isso mesmo que desejava ou o que diria se o pai lhe perguntasse alguma coisa... o que provavelmente não aconteceria.

Não podia compreender por que a presença de Enone a afetava tanto; calculou que era porque partilhara as emoções de Páris (mas se Páris se sentia assim em relação a Enone, por que se mostrara tão disposto a deixá-la?) em relação à moça, quando a tornara sua esposa. Kassandra sentia um enorme desejo de acariciar a outra mulher, confortá-la, mas ao mesmo tempo se afastava, inibida até com o abraço descuidado, tão comum entre as moças.

Confusa e assustada, ela passou a evitar Enone, o que significava que também evitava Andrômaca; as duas jovens esposas agora ficavam muito tempo juntas, conversando sobre os bebês iminentes, fazendo roupinhas, um passatempo que não exercia a menor atração sobre Kassandra. Sua irmã Polixena, que nunca chegara a ser uma amiga, ainda não casara, embora Príamo tentasse negociar a melhor aliança possível; ela não pensava nem falava de outra coisa.

Kassandra imaginou que poderia ficar menos obcecada por Enone depois que Páris voltasse; mas não tinha a menor idéia de quando isso poderia acontecer. Sozinha, sob as estrelas, no telhado alto do palácio, ela irradiava seus pensamentos secretos, procurando o irmão gêmeo, mas só alcançava as brisas marinhas e uma visão ofuscante das profundezas escuras, tão clara que podia até enxergar os seixos no fundo do mar.

Um dia, escolhendo um momento em que Príamo estava de bom humor, Kassandra foi procurá-lo e, imitando com todo cuidado o comportamento dengoso de Polixena, perguntou suavemente:

- Por favor, pai, poderia me dizer se Páris vai muito longe e quanto tempo deverá durar a viagem?

Príamo sorri i, indulgente.

- Estamos nas praias dos estreitos, minha querida. Dez dias de viagem por este lado, para o sul, há um agrupamento de ilhas dominadas pelos akaios. Se ele evitar o naufrágio nos recifes aqui... Príamo fez um desenho da costa pode navegar para o sul até Creta ou para o norte, até o continente dos atenienses e micenos. Se contar com bons ventos, sem nenhuma tempestade para destruir o navio, talvez volte antes do final do verão; mas estará negociando e é possível que fique como hóspede de um ou mais dos reis akaios... como eles se intitulam. São recém-chegados a esta terra, alguns têm pais que nasceram muito longe.

Suas cidades são novas, enquanto a nossa é muito antiga. Havia outra Tróia aqui, filha, antes de meus antepassados construírem a nossa cidade.

- É mesmo?

Kassandra imprimiu à voz um tom suave de admiração, como Polixena fazia. Príamo sorriu e falou da antiga cidade cretense que outrora existia a não mais que um dia de viagem de barco para o sul, ao longo da costa.

- Havia naquela cidade vastos depósitos de vinho e azeite e as pessoas acham que pode ter sido esse o motivo para que se incendiasse, quando o grande Posêidon Que Sacode a Terra fez o mar subir e o chão tremer. Por um dia e uma noite houve uma grande escuridão por todo o mundo até o Egito, no sul; e a linda ilha de Kalixto afundou no mar, afogando o Templo da Mãe Serpente, mas deixando intatos os Templos de Zeus Tonante e Apolo, Senhor do Sol. É por isso que existe menos culto agora, nas terras civilizadas, da Mãe Serpente.

- Mas como sabemos que foram os Deuses que sacudiram as terras? - indagou Kassandra. - Eles mandaram mensageiros para nos dizer isso?

- Não sabemos com certeza, mas o que mais poderia ser? Se não fossem os Deuses, não haveria coisa alguma além do Caos. Possêidon é um dos maiores Deuses aqui em Tróia e Lhe rogamos para manter a terra sólida sob os nossos

- Que Ele assim faça por muito tempo - murmurou Kassandra, fervorosa.

Ao reparar que a atenção do pai se desviava para sua taça de vinho, ela murmurou uma desculpa cortês e pediu licença para se retirar. Príamo acenou com a cabeça em permissão e ela foi para o pátio, com muito em que pensar. Se de fato a causa fora o grande terremoto (de que ouvira falar durante a infância - ocorrera vários anos antes do nascimento de Príamo), então talvez houvesse; motivo suficiente para que o culto à Mãe Terra estivesse desacreditado, a não ser entre as amazonas.

O pátio estava movimentado; era um dia espetacular. Trabalhadores circulavam de um lado para outro. Os homens que pintavam os frisos nos aposentos de Enone moíam novos pigmentos e os misturavam com óleo; os conferentes contavam os jarros de vinho trazidos como dízimos de um dos navios ancorados no porto; alguns soldados se exercitavam em combates simulados. Ao longe, além da cidade, Kassandra divisou urna nuvem de poeira, que provavelmente era Heitor em seu novo carro de guerra. Ela vagueou entre os homens como um fantasma que ninguém via; é como se eu fosse feiticeira e tivesse me feito invisível, pensou Kassandra, especulando se poderia assim fazer de fato e se isso faria alguma diferença.

Sem qualquer motivo definido, seus olhos fixaram-se ociosamente num rapaz que trabalhava diligente, com uma vareta entalhada, comprimindo cera contra as cordas que fechavam os grandes jarros de óleo e vinho - indicando que aqueles estavam reservados para a casa do rei.

Ele lhe pareceu um pouco inquieto sob o seu olhar e desviou os olhos. Kassandra, corando - fora ensinada que não era decoroso olhar para os rapazes -, também desviou os olhos. Mas sua atenção foi atraída de volta no instante seguinte. O rapaz parecia resplandecer. Os olhos se tornaram muito estranhos, quase vazios; depois, voltaram a entrar em foco e ele se empertigou. Pareceu se tornar mais alto, assomando sobre Kassandra; isso mesmo, era ela, Kassandra, quem ele fixava com os olhos. Num súbito relance, ela compreendeu que o Deus possuía o rapaz, pois contemplava de novo o rosto de Apolo, Senhor do Sol.

A voz ressoou como trovoada, a tal ponto que Kassandra se perguntou, com um resquício de consciência divagante, como era possível que os outros trabalhadores continuassem empenhados calmamente em suas ocupações.

Kassandra, filha de Príamo, já Me esqueceu?

Ela sussurrou baixinho:

- Nunca, Senhor.

Já esqueceu que pus a mão em você e a convoquei para o Meu serviço? Ela tornou a sussurrar:

- Nunca.

Seu lugar é no Meu Templo; venha, Eu lhe peço.

- Eu irei - respondeu Kassandra, a voz um pouco mais alta, contemplando a forma luminosa.

E nesse instante o supervisor atravessou o pátio e o rapaz tremeluziu, flutuou ao sol, que ofuscou os olhos de Kassandra.. .

A visão se desvaneceu e por um momento Kassandra se perguntou se fora de fato convocada ao Templo do Senhor do Sol. Deveria pegar seu manto e sua serpente e subir imediatamente para as moradas altas dos Deuses? Ela hesitou; se na verdade sonhara e nunca acontecera, o que diria no templo aos sacerdotes e às sacerdotisas? Com certeza havia penalidades para blasfêmias assim.. .

Não. Ela era filha de Príamo, uma princesa de Tróia, tornara-se sacerdotisa da Grande Mãe. Podia estar enganada, mas não era blasfêmia ou alguma coisa que se ignorasse. Em silêncio, ela entrou no palácio, murmurando para si mesma:

- Se não fui chamada, Senhor do Sol, envie-me um sinal.

Na grande escadaria, encontrou Hécuba, vestida numa túnica de trabalho, as rugas entre as sobrancelhas fazendo com que parecesse mais velha.

Está ociosa, filha. Se não pode encontrar alguma coisa para se manter ocupada, eu mesma lhe arrumarei um serviço; daqui por diante, não deixará os alojamentos das mulheres pela manhã antes de contribuir com sua cota no trabalho de fiar.. É uma vergonha deixar todo o seu trabalho para sua irmã. Foi apenas a indolência que aprendeu entre as mulheres de minha tribo?

Não sou ociosa! - respondeu Kassandra, furiosa. Seria aquele o sinal que pedira? - Fui chamada pelo Deus e devo me apresentar em Seu templo.

Hécuba franziu o rosto ainda mais, estreitando os olhos.

- Kassandra, os Deuses escolhem suas sacerdotisas entre as pessoas mais simples; não chamam urna princesa de Tróia.

- Acha que sou menos digna do que qualquer outra? Desde criança que sei que Apolo, Senhor do Sol, me quer para o seu serviço e agora Ele me chamou!

- Oh, Kassandra, por que você tem de falar essas bobagens? - disse Hécuba, suspirando.

Mas Kassandra não estava mais escutando. Virou-se e desceu correndo a escadaria, passou pelos enormes portões e subiu apressada para o Templo de Apolo.

 

Kassandra subiu correndo os degraus da rua que atravessava a cidade, da parte mais baixa à mais alta, mal percebendo que as mulheres que habitavam as casas apinhadas ao longo da ladeira íngreme haviam todas saído, numa agitação de roupas de cores brilhantes, a fim de assistir à sua passagem precipitada. O coração disparado a obrigou a diminuir o ritmo e passou a andar, até que parou por completo.

Inclinou-se, meio nauseada. Recebera uma educação rígida para sempre manter o decoro na presença de estranhos; comprimiu a manga larga da túnica sobre os lábios, tentando controlar a náusea e a dor intensa no peito, procurou um degrau em que pudesse sentar e recuperar o fôlego. Não queria comparecer à presença do Deus como uma fugitiva desgrenhada. Uma voz gentil disse:

- Princesa...

Ela levantou os olhos para deparar com uma mulher idosa, inclinada em sua direção, estendendo uma taça de argila.

- Subiu muito e depressa demais, com todo este sol. Posso lhe oferecer um pouco de água? Ou se prefere posso servir um vinho esfriado, se lhe agradar entrar em minha casa.

A idéia de entrar num interior mais fresco era tentadora, mas Kassandra sentiu-se envergonhada por demonstrar ou admitir qualquer fraqueza.

Como posso ser sufocada pelo sol? Sou a amada de Apolo, Senhor do Sol... mas ela não disse isso em voz alta, limitando-se a murmurar um agradecimento e levando a taça aos lábios. A água tinha um pouco do gosto da argila e não estava muito fresca, mas mesmo assim foi revigorante na garganta e lábios ressequidos.

Não quer descansar por um momento em minha casa, princesa?

- Não, obrigada. - Kassandra manteve os olhos desviados. - Estou bem. Só ;ciso ficar um pouco sentada aqui.

X claridade doía em seus olhos; ela protegeu-os com a mão, contemplando o reflexo ofuscante na enseada. Por um instante o sol turvou sua visão, mas depois ela viu claramente e quase gritou: o azul do mar estava escuro das velas de muitos navios.

Tantos navios! De onde vieram?

Não eram os navios de seu pai; ao tentar focalizar qualquer um, não tinha mais certeza de se ainda estavam ali. Depois de alguns momentos assim, a enseada tomou a ficar vazia, com o azul do mar ofuscante, interrompido pelos contornos de um velho navio cretense, que há três dias descarregava tintas e madeira.

Portanto, fora apenas uma visão; una alucinação.

Ela desviou os olhos doídos do mar ilusório, levantou-se lentamente e recomeçou a subir. Mantinha os olhos semicerrados contra o sol, que ardia como fogo pelas muralhas de Tróia. Continuou a subir, devagar, lutando contra uma ânsia crescente de fugir, como se tudo aquilo não passasse de uma loucura, pois não se podia fugir de um Deus, como se fome uma cabra desgarrada a se afastar do rebanho. Deveria ter vindo, não podia haver a menor dúvida, só que como uma princesa de Tróia, devidamente acompanhada e levando os presentes apropriados para a Morada do Deus.

De qualquer forma, seria um erro voltar agora. E se a visão ilusória dos navios fora um aviso? Não; nem mesmo assim poderia voltar atrás em seu compromisso com o Deus.

E Kassandra foi subindo e subindo, aproximando-se do Templo do Senhor do Sol.

Um súbito clarão, emoldurado por um relâmpago de verão, atraiu sua atenção para as alturas, onde ficava o Templo de Palas Atena. A dúvida invadiu nesse instante. Tornara-se uma sacerdotisa da Deusa, descera ao Mundo Inferior à sua procura e fora aceita; não fora a Mãe Terra quem a chamara desde o

início da infância e lhe falara com a voz da profecia? Estaria abandonando sua lealdade à Mãe Divina, Donzela e protetora das donzelas, renunciando a Ela pelo belo Senhor do Sol?

O pânico repentino dominou-a, a tal ponto que por um instante pensou outra vez que ia vomitar, engolindo em seco, espasmodicamente; todo o corpo foi sacudido por um medo intenso. Ouviu passos fortes em seu encalço e por um instante o céu ficou escuro, um pensamento transbordou em sua mente, submerso nas águas turvas: Devo alcançar o Templo da Donzela; somente ali estarei segura... Nenhum homem ousaria pôr as mãos em alguém que Ela protege...

Kassandra piscou várias vezes, incrédula. Não havia perigo, não havia chamas, não havia perseguidor. O porto refulgia, vazio e azul; a rua ao seu redor continha apenas umas poucas mulheres, observando-a subir lentamente para os grandes portões do Templo do Senhor do Sol.

Foi o Deus que me enviou a loucura? Ela parou outra vez para recuperar o fôlego e depois passou pelo limiar, entrando no Templo de Apolo.

Houve uma súbita rajada de vento, como se certa mão gigantesca a empurrasse pelo limiar. Ajeitando os cabelos num gesto distraído, Kassandra olhou ao redor, quase desapontada porque ninguém parecia perceber. Mas o que eu esperava? Que o próprio Deus se adiantasse para me dar as boas-vindas?

Uma velha no traje comum de uma sacerdotisa - uma túnica branca e um véu tingido com açafrão para ter uma tonalidade dourada - levantou a cabeça e fitou Kassandra, depois ficou de pé e se aproximou, dizendo:

- Seja bem-vinda, filha de Príamo; veio aqui em busca de um oráculo ou presságio ou para oferecer um sacrifício?

- Nenhuma dessas coisas - respondeu Kassandra, contrafeita, sem saber como dizer o que devia. - Vim... porque o Deus me chamou... para ser sua sacerdotisa...

Ela não pôde continuar, sentindo-se tola. Mas a mulher velha exibiu um sorriso gentil e murmurou:

- Claro, claro... Lembro-me da ocasião em que nos visitou, quando era apenas uma criança, mas parecia se sentir muito à vontade aqui. Pensei que um dia o Senhor do Sol poderia chamá-la. E agora vamos entrar, minha cara. Quero que me fale a respeito. Mas, primeiro, pode me dizer qual é a sua idade? Parece bastante crescida.

- Minha mãe diz que terei dezesseis anos logo depois do solsticio do verão.

Kassandra lembrou-se da sala de espera, onde há tantos anos comera uma fatia de melão, enquanto a mãe aguardava o oráculo; achou difícil acreditar que o mudara tão pouco em tantos anos. Pensou nas serpentes que vira e acariciara naquela ocasião. Eram de uma espécie de vida curta; provavelmente estavam mortas há muito tempo. O pensamento entristeceu-a.

A sacerdotisa gesticulou para que ela sentasse.

- Fale-me a seu respeito, filha de Príamo. Conte-me tudo que a leva a pensar que foi chamada para o nosso templo.

Depois que ela terminou, a sacerdotisa acrescentou:

- Muito bem, Kassandra; se deseja ser uma de nós, deve viver por um ano aqui, dentro do templo, aprender a interpretar os oráculos e presságios, a falar pelo Deus.

Kassandra respondeu, sentindo um imenso ímpeto de felicidade:

- Terei a maior satisfação em viver na morada do Deus.

- Então deve mandar uma das servas do templo buscar seus pertences: só umas poucas mudas de roupa e talvez um manto grosso, pois deve usar o traje comum de uma sacerdotisa. Somos todas irmãs aqui e você não pode usar jóias e ornamentos enquanto habitar neste santuário.

- Não me interesso por jóias e até tenho bem poucas. Mas por que não é permitido?

A velha sorriu.

- E uma regra do templo e não sei qual o motivo. Talvez seja porque muitas das pessoas que nos consultam são pobres e poderiam achar, se estivéssemos cobertas de jóias, que enriquecemos com  suas oferendas.

A sacerdotisa fez uma breve pausa.

- Eu me chamo Cárites, que é um dos nomes da Senhora Terra. Vivo na morada do Senhor do Sol desde que tinha nove invernos e agora estou com 74. Temos vida longa aqui, a menos que sejamos escolhidos para gerar um filho para o Deus, assumindo o risco de morrer no parto; mas isso não acontece com freqüência, e muitos de nossos irmãos e irmãs são sacerdotes curandeiros. Tem a permissão de sua mãe ou de seu pai para habitar na Casa do Deus?

- Acho que minha mãe vai concordar - respondeu Kassandra. - Quanto a meu pai, ele tem tantos filhos e filhas que não creio que saberá ou se importará se eu estiver na casa do Deus ou na sua. Nunca fui uma de suas prediletas. Mas posso trazer minha serpente para viver comigo no templo? Foi um presente de Imandra, rainha e sacerdotisa da Cólquida, e ninguém mais em Tróia a ama; temo que ela seja negligenciada, se eu não estiver presente para dispensar-lhe os cuidados necessários.

- Ela será bem-vinda aqui. Pode trazê-la.

A velha sacerdotisa chamou uma serva, e Kassandra comunicou quais as suas coisas que queria que fossem trazidas do palácio.

- Procure também minha mãe, a rainha Hécuba, e diga que eu peço a sua bênção.

A serva fez uma reverência e retirou-se.

- E agora, se assim desejar - disse Cárites -, eu lhe mostrarei os aposentos em que dormem as virgens de Apolo.

 

Assim começou o período de que Kassandra se lembraria mais tarde como o mais feliz e o mais sereno de toda a sua vida. Ela aprendeu a consultar os oráculos, a decifrar os presságios e a servir o santuário com as oferendas indicadas. Cuidava das serpentes sagradas e aprendeu a interpretar os significados de seus movimentos e comportamentos.

Como ela previra, a mãe não criou dificuldades; enviou pela serva os pertences solicitados e uma mensagem:

- Diga à minha filha Kassandra que eu a abençôo e aprovo o que ela fez; diga também que lhe mando muitos beijos e abraços.

Não demorou muito para que Kassandra tivesse muitos amigos no santuário; e depois de apenas alguns meses havia inúmeros clientes e suplicantes que a procuravam e preferiam que fosse ela quem aceitasse suas oferendas e desse conselhos. Ela perguntou um dia a um sacerdote mais velho:

- Não consigo entender: por que eles procuram c. Deus com essas tolas indagações, para as quais não precisam dos conselhos de um Deus, mas apenas do bom senso com que nasceram?

- Porque muitos nascem tolos ou pior ainda - respondeu bruscamente o idoso sacerdote. - Pensam que os Deuses não têm outra coisa melhor para fazer do que se preocuparem com os problemas humanos. Pessoalmente, creio que os Deuses já têm tantos problemas seus, na terra dos Imortais, que não se preocupam muito com os assuntos dos homens comuns. Talvez se importem com os feitos dos reis e dos grandes, mas. . . - Ele baixou os olhos e acrescentou quase num sussurro: - ... até mesmo disso não tenho visto muitas evidências, filha de Príamo.

Kassandra ficou um pouco chocada com essa blasfêmia, mas achou que era mais perda do sacerdote do que de qualquer outra pessoa se não lhe restava muita fé no Deus. Ela própria, enquanto habitava no santuário, tinha um sentimento intenso e freqüente da presença de seu Deus, como no momento em que Ele a chamara pela primeira vez.

Isso não significava que os momentos passados ali no templo fossem de todo despreocupados. Algumas donzelas no santuário demonstravam uma franca inveja porque ela se tomara uma predileta entre os sacerdotes e sacerdotisas mais velhos e lhe falavam ou a seu respeito com rudeza ou desdém; mas também Kassandra nunca fora popular com as moças de sua idade, nem mesmo com as irmãs e meias irmãs, a não ser entre as amazonas. Já se resignara a isso antes mesmo de sair da infância.

Mas, de um modo geral, ela sentia que estava cercada por uma atenção afetuosa; como podia ser de outra forma, quando habitava na morada de seu Deus? Havia muitas mulheres no santuário que falavam do Senhor do Sol como outras donzelas falavam de um marido ou apaixonado; e as sacerdotisas eram até conhecidas como "noivas do Deus". Uma das mulheres, Filida, era considerada como tendo sido a esposa de fato do Deus: gerara uma criança que era aceita como um filho de Apolo.

Ao tomar conhecimento disso pela primeira vez, Kassandra ficou irritada e repugnada pelo que lhe parecia um absurdo evidente.

A moça será apenas uma idiota, enganada por algum sedutor bem mortal? Ou inventou uma história para explicar alguma aventura proibida? Kassandra não podia deixar de especular, pois as virgens do Deus estavam proibidas de manterem quaisquer relações com os homens; eram vigiadas com extremo cuidado e não tinham permissão para receber visitas ou presentes, nem para se encontrar com homens, mesmo que fossem seus próprios pais e irmãos, exceto na presença de uma das governantas, que acompanhavam e cuidavam das donzelas do Senhor do Sol. Se eu desejasse ser a esposa de algum mortal, pensou ela, meu pai teria o maior prazer em me arrumar um casamento.

Às vezes Kassandra ficava meio acordada à noite, escutando a voz inconfundível do Deus quando a chamara, um Imortal resplandecente que era algo mais do que um mero homem. Mais de uma vez ela sonhou que se encontrava desfalecida nos braços do Deus, um êxtase mais do que humano, arrebatando todos os seus sentidos; de ouvir as outras moças falando (embora por timidez quase não participasse das conversas), soube que não era a única privilegiada com tais sonhos.

Uma ocasião, quando uma das jovens donzelas relatava seu último sonho, com muitos detalhes eróticos que Kassandra julgou serem apenas o resultado da imaginação romântica, ela não pôde deixar de comentar:

- Se sonha tanto em deitar com um homem, Esíria, por que não chama seu pai e pede a ele para lhe arrumar um marido? Não pode encontrar outra coisa para ocupar seus pensamentos e algo mais útil para falar a respeito?

- Você está com inveja porque Ele não a procura para deitar nem mesmo em sonho - respondeu Esíria. - E se Ele o fizesse, você recusaria?

Um estranho calafrio percorreu o corpo de Kassandra.

- Se Ele me procurasse para deitar comigo, eu tentaria me certificar de que era mesmo o Deus, e não algum homem devasso querendo enganar uma mulher tola e crédula ou uma mocinha romântica, que se engana ao tomar um libertino como um enviado do Deus. Sei que existem homens neste templo que não hesitariam em se aproveitar assim de uma moça tola; ou você pensa que os sacerdotes são eunucos só porque fizeram um voto de castidade?

Esfria não disse mais nada, e Kassandra manteve a paz; mas no dia seguinte, quando as mulheres foram buscar água no poço, ela procurou Filida e pediu para ver seu filho. Como todas as mães, a moça (pois ela ainda não tinha a idade de Kassandra) estava ansiosa em mostrar o filho.

O menino era muito bonito, com enormes olhos azuis, pestanas compridas e cachos dourados, tornando fácil acreditar que era mesmo um filho do Senhor do Sol. Kassandra admirou-o e beijou-o, depois perguntou a Filida, num tom bastante reverente:

- Como soube que era o Deus que a procurava?

- A princípio eu não sabia. Pensei que fosse um homem disfarçado como o Deus e abri a boca para gritar, chamando uma das governantas. Mas depois... já ouviu a voz do Deus, filha de Príamo?

Kassandra sentiu um aperto na garganta, recordando essa voz. E murmurou:

- Já ouvi...

Ela não pôde continuar.

- Nesse caso, se acontecer com você, saberá com certeza - arrematou Filida, bruscamente, não acrescentando mais nada.

Kassandra tornou a olhar para o menino.

- Ele é lindo; posso segurá-lo no colo por um momento?

- Claro.

O menino adormecera, embora a boca de bebê, como um botão de rosa entreaberto, ainda aderisse ao mamilo da mãe; Filida ajeitou-o nos braços de Kassandra. Ele se remexeu e choramingou, mas Kassandra embalou-o um pouco, como observara a mãe fazer, e o menino voltou a ficar quieto. O peso do bebê, macio e úmido em seus braços, era diferente de qualquer outra coisa que ela já sentira; mesmo entre as amazonas, jamais pegara no colo um bebê tão pequeno.

Kassandra inclinou o rosto e tocou de leve na pele do menino com os lábios; a sensação era de pétalas de rosas.

Por um momento, foi dominada por um enorme contentamento; mas no instante seguinte teve a impressão de que uma nuvem cobria o sol e um vento frio a envolvia, embora continuasse sentada no pátio quente e brilhante, sob um sol que quase a queimava. Ela puxara a extremidade de seu véu sobre o bebê, para que o sol não prejudicasse seus olhos nem queimasse a pele. Reconheceu então a escuridão da visão e, imóvel, aguardou o que não podia evitar.

Sofrimento e angústia eram a essência da visão. De alguma forma, ela deslizou pelo tempo e soube que haviam transcorrido anos desde aquele momento de serenidade; a criança que se comprimia contra o peito era sua, a cabecinha escura e encaracolada; até mesmo o estranho ímpeto interior de felicidade estava impregnado de desespero, a lembrança daquele momento e uma reação furiosa. A visão foi tão forte que por um instante ela ficou paralisada; depois, percebeu novamente onde estava. E, mais uma vez, teve de fazer um esforço para evitar que as águas escuras a afogassem.

Viu os olhos grandes e infantis de Filida fitando-a como que com temor, enquanto devolvia o menino aos braços da mãe. Filida murmurou:

- Você parecia tão distante e estranha, Kassandra... Dizem que pode ver o futuro. O que viu para meu filho? - Como Kassandra se mantivesse em silêncio, ela insistiu, suplicante: - Não vai amaldiçoar meu bebê, não é mesmo?

- Não, claro que não.

- Pode então abençoá-lo, filha de Príamo?

Kassandra queria tranqüilizá-la e procurou em seu íntimo pelo contato distante com a Deusa, a fim de extrair o poder para a bênção. Em vez disso, porém, ouviu a si mesma dizendo:

- Infelizmente, não há bênção para qualquer criança de Tróia nascida neste ano inauspicioso; mas talvez Apolo, o pai de seu filho, possa abençoá-lo, pois eu não sou capaz.

Ela se levantou e se afastou apressada, deixando Filida a contemplá-la, nu - ma consternação silenciosa.

 

Poucos dias depois chegou um mensageiro da casa do rei Príamo com presentes para o templo e urna mensagem pessoal para Kassandra:

- Seu pai e sua mãe solicitam sua presença no palácio para o casamento de sua meia irmã Creusa.

- Terei de pedir licença - respondeu Kassandra.

Mas a permissão foi prontamente concedida. . . talvez prontamente demais. Kassandra sabia que não seria assim com qualquer das outras jovens sacerdotisas e desejava realmente ser tratada como estas. Mas não podia culpar os sacerdotes e as sacerdotisas que não queriam ofender o rei de Tróia. A única exigência, já que ela ainda não era uma sacerdotisa plena e se encontrava no ano probatório, era a de que fosse devidamente acompanhada e vigiada por uma sacerdotisa mais velha, se desejasse passar a noite na casa do pai. A sacerdotisa a quem apresentou seu pedido disse:

- Está em seu poder conceder um favor, filha de Príamo: a quem escolhe para acompanhá-la?

Kassandra não era totalmente alheia a esse tipo de intriga; quem quer que escolhesse, as outras podiam se sentir menosprezadas. Tomando uma decisão que ninguém poderia culpar ou invejar, ela escolheu a idosa Cárites, que fora a primeira a acolhê-la na Casa do Deus.

Pondo o mais festivo dos poucos trajes simples que possuía e com a mulher mais velha ao seu lado, ela percorreu discretamente as ruas da cidade, atendida apenas por um dos escravos do templo.

Cárites, que habitara por quase toda a sua vida na Morada do Senhor do Sol, ficou impressionada ao se aproximarem da Grande Cidadela de Príamo e pouco falou.

Kassandra também se manteve em silêncio, pois olhara lá de cima e vira outra vez os navios escuros no porto, sem saber se estavam de fato ali ou se ainda iriam aparecer.

Hécuba veio saudá-las quando entraram no pátio. Kassandra inclinou-se para abraçar a mãe - Hécuba era alta, mas agora a filha se tornara ainda mais alta. Hécuba lamentou, ao levantar o rosto para fitar Kassandra:

- Não é possível que você ainda esteja crescendo! Já está mais alta do que a maioria dos guerreiros, Kassandra! Um homem pode não desejar tê-la por perto.. .

- Que importância isso tem, mãe? Como não vou casar, mas habitar na Casa do Deus...

- Eis uma coisa que jamais aceitarei! - declarou Hécuba, veemente. - Quero ver seus filhos antes de morrer.

Mas nunca verá, pensou Kassandra, com uma súbita certeza. Com a lembrança do filho de Filida em seu colo, veio o conhecimento angustiante de que antes de segurar o neto - a amargura, o desespero - os olhos de Hécuba se teriam fechado para sempre naquele mundo.

- Não vamos falar sobre isso, mãe. Se quer um casamento, tem Creusa para casar agora; e Polixena é mais velha do que eu e continua solteira. Arranje um marido para ela e não se preocupe comigo. Fale-me sobre o noivo de Creusa.

- Ela vai casar com Enéias, filho de Anquises... tão bonito que dizem que é realmente filho de Afrodite nascida da espuma.

- É uma Deusa de quem nada conheço - comentou Kassandra, antes de se lembrar da mais bela no sonho de Páris, a Deusa do Amor e da Beleza. E depois de um momento, acrescentou:

- Se o pai alega ter sido amante de Afrodite, eu diria que a Deusa deve estar irada com ele por isso. Preciso conhecer essa maravilha de homem.

- Creusa está contente com ele e seu pai também - comentou Hécuba. - Eu ficaria mais do que feliz na juventude por ter um marido assim. - Ela fez uma pausa, fitando Kassandra com uma expressão ansiosa: - Por favor, querida, procure não profetizar nenhuma tragédia neste casamento. As pessoas ficam transtornadas.

Será que ela acha que eu profetizo por puro prazer?, pensou Kassandra, com um ímpeto de raiva. Mas a mãe parecia tão perturbada que a raiva se desvaneceu; tornou a beijar a mãe e disse.

- Claro que tentarei não ver nenhum desastre; e se os Deuses forem generosos, posso até prever algo melhor.

Que os Deuses o permitam - murmurou Hécuba, fervorosa. - Vamos entrar agora, querida. Tenho sentido muita saudade. Depois de uma lua inteira na Casa do Senhor do Sol, tudo no palácio pare

cia menor e de mau gosto, mas também prezado e familiar. Andrômaca, vestida para o casamento num traje tingido de vermelho, veio correndo saudar Kassandra. Sua gravidez estava visível agora e ela balançava com o andar típico das

grávidas, inclinando as costas para trás, em busca de equilíbrio. Kassandra, lembrando a moça graciosa que conhecera no palácio de Imandra, sentiu-se entristecida, mas Andrômaca abraçou-a com a maior alegria.          -

- Não pode imaginar como estou contente por vê-la! Como gostaria que você também casasse, e voltasse para o palácio, a fim de podermos ficar juntas! Pense só nisso, apenas mais uma lua e terei meu filho nos braços!.

- Onde está Enone? Ela não deveria estar entre nós? Afinal, uma mulher grávida é a mais afortunada de todos os convidados num casamento.

- Ela não está mais grávida - respondeu Andrômaca. - Ainda não soube? Enone deu um filho a Páris há quatro dias e ainda está na- cama. A pobre coitada enfrentou momentos terríveis... Sua mãe disse que ela era tão delgada que não deveria ter filhos. Mas quando perguntei como seria possível evitar, ela não quis me dizer... alegou que Heitor não gostaria. Enone deu a seu filho o nome de Conto... Assim, se Creusa quiser uma grávida no casamento, terá de se contentar comigo.

- Creusa é afortunada por ter você entre os convidados - disse Kassandra Andrômaca sorriu, feliz.

- Espero que ela também pense assim.

- Devo visitar Enone agora - sugeriu Kassandra.

Andrômaca pegou sua mão e levou-a pela escada.

- É melhor não fazer isso. Ela tem se comportado de maneira estranha ultimamente. Não quis falar comigo quando fui visitá-la. Disse que eu era inimiga de seu marido, porque Heitor o mandou para longe.

Elas entraram na suíte do alto do palácio, onde as mulheres vestiam a noiva. Era um lindo aposento, com os murais cretenses dos dançarinos touros. Kassandra comentou:

- Mas este é o aposento que minha mãe mandou aprontar para Enone!

- Ela não quis ficar aqui - explicou Andrômaca. - Disse que não queria passar dia após dia contemplando o mar que levara Páris para longe. Insistiu em mudar para um aposento nos fundos do palácio, de onde pode ver o monte Ida, seu lar. Mas não se preocupe com isso agora; vamos ajudar a vestir a noiva.

Elas podiam. ouvir os homens lá embaixo, no grande salão, bebendo e brindando ao casamento. Creusa estava sendo envolvida por um véu bordado; afastou-o por um momento para se adiantar e cumprimentar Andrômaca com uma reverência, depois beijou Kassandra friamente e disse:

- Seja bem-vinda, irmã.

Ela não era filha de Hécuba, mas de Príamo e da mais importante de suas mulheres do palácio. Em termos rigorosos, pela etiqueta da corte, cabia a Kassandra a primazia na irmandade; mas ela não estava interessada naquele momento em preservar o protocolo. Retribuiu, efusiva, o abraço de Creusa e declarou.

- Que a Mãe Terra e os Iluminados a abençoem, irmã.

- Pode ver a boa sorte para mim, Kassandra... você que é uma profetisa?

- Saberei alguma coisa depois que conhecer seu marido - respondeu Kassandra, enigmática.

- Quando o conhecer, acho que vai me invejar.

Kassandra sorriu.

- Acho que sim, irmã. A mãe já me disse como ele é bonito.

- E é rico também, um príncipe em sua terra - informou Creusa. - Não pode haver mulher mais afortunada do que eu.

- Não diga coisas assim, para que os Imortais não fiquem com inveja - censurou-a Cárites. - Lembre-se do destino da mulher que disse que sua roca era tão boa que tecia como Palas Atena. A Deusa transformou-a numa aranha, a fim de que pudesse fazer as suas teias para sempre, só para serem destruídas pelas donas de casa.

- Vamos esquecer essa conversa - interveio Andrômaca, que era a primeira das damas de companhia da noiva. - Temos de terminar de vesti-la depressa ou os homens estarão completamente embriagados antes de sua descida. Kassandra, seus dedos são os mais ágeis; quer ajeitar as flores nos cabelos?

Rapidamente, Kassandra prendeu as flores numa coroa e arrumou-a nos cachos brilhantes de Creusa.

- Agora ela está pronta; vamos descer.

Pegando-a pelas mãos, as mulheres cercaram a noiva e conduziram-na para baixo pela escada íngreme do palácio, a fim de que não tropeçasse e assim iniciasse o casamento com o pior dos presságios - um passo em falso.

Elevaram as vozes no mais antigo dos hinos nupciais. O que enaltecia a Mãe Terra. Kassandra sentiu-se envolvida por tanta alegria e animação, como se fosse o seu próprio casamento. Por esta vez, pensou ela, posso ficar tão despreocupada quanto qualquer outra moça. Refletiu por um instante que as outras não se consideravam assim. Qual era a diferença? Mas agora ela possuía uma resposta para essa angustiante noção de diferença: Sou uma sacerdotisa e não preciso ser como as outras; se puder de alguma forma dar a impressão de que sou igual, já é suficiente.

Elas estavam no limiar do salão de banquete quando ouviram um grito de surpresa e boas-vindas de Príamo:

- Odisseu, seu velho trapaceiro! Chegou bem a tempo de provar nosso melhor vinho num casamento! Entre e beba com a gente, velho companheiro! Kassandra inclinou-se e puxou Creusa de volta.

- Vamos deixar que nosso pai saúde seu. hóspede primeiro. Creusa protestou, irritada:

- Eu não queria esse velho pirata em meu casamento! Andrômaca sussurrou:

- Durante toda a minha vida ouvi falar das histórias que ele pode contar; navegou mais longe do que Jasão e tem muitas histórias de viajante. Visitou minha mãe na Cólquida e lhe deu de presente um pente de madrepérola, alegando que o ganhara de uma sereia.

- Talvez ele tenha trazido também um presente de casamento para você, Creusa - sugeriu Kassandra. - E, de qualquer forma, até mesmo os Deuses devem mostrar hospitalidade. Vamos entrar.

Ela entoou o primeiro verso do hino à Donzela, sempre cantado nos casamentos, sendo logo acompanhada pelas outras mulheres. Príamo levantou os olhos e fez sinal para que se adiantassem. Kassandra viu um lindo jovem, alto e esguio, cabelos castanho claros encaracolados, um punhado de sardas escuras apenas dourando seu rosto. Calculou, pela túnica escarlate toda ornamentada que ele usava, que devia ser o noivo. Naquele instante se encaminhava para o trono um homem baixo e corpulento, de meia-idade, cabelos crespos e rosto vermelho, curtido pelo tempo e de nariz adunco, com olhos azuis profundos, que pareciam esquadrinhar por enormes distâncias. Supôs, antes mesmo de perceber o reconhecimento nos olhos de Andrômaca, que aquele era o famoso navegante e pirata, o velho amigo de seu pai, Odisseu. O marinheiro virou-se e gritou:

- Mas que bando de beldades, velho amigo! Não podem ser todas suas filhas, Príamo... ou será que podem? Creio que me lembro que você teve mais do que a sua quota de mulheres.

Príamo acenou com a mão para que elas se aproximassem.

Kassandra descobriu-se envolta por um abraço apertado.

- Sua segunda filha, não é mesmo? É esta a noiva? E por que não, em nome de todos os demônios? - Ele recendia a maresia e um pouco a vinho. Ela não podia se ofender com o abraço. - Gostaria de uma noiva tão bela como esta, não é mesmo, Enéias, meu amigo?

Kassandra percebeu que Enéias a fitava com apreciação e que Creusa estava quase chorando. Desvencilhou-se gentilmente de Odisseu e disse.

- Não, senhor. Não estou destinada a qualquer homem; sou uma virgem de Apolo, Senhor do Sol, e me sinto contente por isso.

- Pela danação eterna! - Ele praguejava com tanta exuberância quanto tudo o mais que fazia. - Mas que desperdício, minha bela! Eu mesmo casaria com você, se já não tivesse uma esposa em Ítaca... e Hera, minha Deusa protetora, é a Deusa da fidelidade conjugal. Terei problemas com Ela se sair por aí a farejar outras mulheres. Não que eu não tenha desfrutado a minha quota, mas não poderia casar com mais nenhuma... e além do mais você vai querer um lindo jovem, não um velho como eu, que mais parece uma morsa!

Kassandra não pôde reprimir o riso; com seu enorme bigode, Odisseu parecia mesmo uma morsa.

- E esta é a esposa de Heitor? - acrescentou ele, virando-se para Andrômaca. - Heitor, não vai se importar se um velho beijar sua esposa, não é mesmo? É o costume na minha parte do mundo.

Odisseu beijou-a no rosto, ruidosamente, depois continuou a falar:

- Trouxe algumas coisas em minha bagagem... os despojos de um navio cretense: presentes nupciais para sua filha, Príamo, e presentes para o lindo neto que esta moça vai lhe dar dentro de poucos dias... não estou certo? E como esta aqui não vai casar, darei presentes ao Templo do Senhor do Sol por ela. - Eu agradeço, senhor, em nome de Apolo - disse Kassandra, cortesmente.

Odisseu puxou-a para sentar ao seu lado.

- Fique junto de mim e beba da minha taça. É a única moça sem compromisso aqui e um flerte, na presença de seu pai e mãe, não vai prejudicá-la, não é mesmo?

- Minha irmã Polixena não é casada - comentou Kassandra, com um brilho de malícia nos olhos.

Odisseu comentou, rindo:

- Não ficará assim por muito tempo, minha cara, se bem conheço seu pai. Polixena é muito bonita, mas, aqui entre nós, prefiro uma moça com um pouco de carne por cima ossos. Você é muito mais atraente.

Ela pegou a taça de Odisseu e misturou seu vinho, encheu seu prato quando os servos se aproximaram; descobriu-se a sentir uma afeição pelo velho. Príamo disse:

- E agora nos conte as suas novidades, Odisseu. E preciso também do seu conselho, amigo: tenho uma proposta de Akiles, filho de Peleu, por Polixena. Aceitaria se estivesse no meu lugar? Ele é nobre e ouvi dizer que também muito bravo...

- Bravo ele é, quanto a isso não pode haver a menor dúvida - comentou Odisseu -, mas não tem outro prazer a não ser matar. Se eu tivesse uma filha, preferiria cortar sua garganta a casá-la com aquele louco.

- Ele tem a força de Hérkules... - começou Heitor.

- E também muitos dos seus defeitos - interrompeu-o Odisseu. - Como Hérkules, ele não é homem para as mulheres; sente-se atraído por alguma de vez em quando, mas pode depois matá-la num momento de loucura. Naveguei com Hérkules... apenas uma vez. Foi mais do que suficiente; cansei de seus acessos de fúria e de ouvir suas queixas a respeito de seus amiguinhos. Akiles é parecido demais com ele para meu gosto. Há muitos rapazes excelentes em Tróia... e até honrados akaios, se é isso o que quer para sua filha. Ela parece uma boa moça; arrume outro para seu marido. Esse é o meu melhor conselho.

Ele chamou um servo e ordenou que seus baús fossem trazidos para o salão; de cada um tirou coisas estranhas e lindas, oferecendo-as a Príamo e a seus filhos e filhas. Para Hécuba havia uma pequena taça, do tamanho de um punho, feita de ouro batido.

- Da Casa dos Touros em Creta - anunciou Odisseu. - Encontrei-a pessoalmente nos remanescentes do que era outrora o Labirinto. Só o Deus sabe como escapou a saqueadores anteriores.

- Talvez algum Deus a tenha preservado para você.

- É possível. Está vendo os touros?

Hécuba examinou a taça com profunda admiração, depois passou-a pelo círculo de mulheres impressionadas. Kassandra também examinou-a e ficou maravilhada com os entalhes perfeitos: um touro em linhas muito finas, jovens num carro de guerra e uma vaca para atrair o touro.

- Mas este é um tesouro de valor inestimável - comentou ela. - Deve guardar para sua esposa.

- Tenho outras coisas maravilhosas para minha esposa e meu filho - explicou Odisseu, jovial. - Nunca pense que eu daria todas as minhas coisas melhores.

Para Andrômaca ele tinha um pente de ouro e para Creusa um espelho de bronze, com contas de ouro em volta.

- Um espelho digno da própria Afrodite - comentou ele. - Ganhei quando passei a noite na caverna de uma ninfa marinha. Nós nos amamos durante a noite inteira e pela manhã, quando nos separamos, ela me deu isso, dizendo que nunca mais tornaria a olhar num espelho, se não era bonita o bastante para que eu permanecesse em sua companhia. - Ele piscou um olho e acrescentou: - Agora você está casando e pode se tornar linda para seu marido.

O presente de Kassandra foi um colar de contas azuis que pareciam de vidro, com um formato oblongo, feito com simplicidade e preso por um fecho de ouro nas extremidades.

- E uma coisa pequena - comentou Odisseu -, mas creio que me lembro que as sacerdotisas não têm permissão para usarem ornamentos elaborados. Mas talvez esse colar seja tão simples que poderá usá-lo, corno lembrança do velho amigo de seu pai.

Comovida com as palavras, Kassandra beijou-o na face, como dificilmente se atreveria a fazer com o próprio pai.

- Não preciso de presentes para me lembrar de você, Odisseu, mas mesmo assim usarei este colar se me for permitido. Onde foi feito?

- No Egito, a terra em que o Faraó reina e os reis constróem enormes tumbas, que fazem toda a cidade de Tróia parecer uma pequena aldeia.

Ela já estava tão acostumada às histórias fantásticas de Odisseu que não soube, por muitos anos, que dessa vez ele estava falando a pura verdade. Distribuídos os presentes, ele perguntou a Príamo:

- Quando vai me conceder liberdade nos estreitos, a fim de que eu possa ir e vir sem pagar tributos, como acontece com ou outros akaios?

- Você é certamente diferente dos outros e eu seria muito ingrato se, depois de tantos presentes, lhe extorquisse mais, meu amigo – contemporizou Príamo. - Mas não posso permitir que alguém passe por minhas águas sem pagar nada. E o tributo que lhe peço é apenas que me relate o que está acontecendo no mundo distante. Há paz nas ilhas em que reinam os akaios?

- Talvez haja paz por lá quando o sol nascer a oeste - respondeu Odisseu. - Como acontece com Akiles, os reis pensam na guerra como o seu maior prazer. Eu só entrarei em guerra quando minhas terras e. meu povo estiverem ameaçados; mas eles pensam na guerra como um passatempo mais virtuoso do que todos os jogos... é o grande jogo em que consumiriam a vida inteira com a maior satisfação. Pensam que não sou viril, não passo de um covarde, porque não tenho o menor amor à luta, embora seja melhor no combate do que a maioria.

- Há anos que eles vêm tentando nos provocar para a guerra - comentou Príamo -, mas adotei a política de ignorar os insultos e as provocações, mesmo quando roubaram minha irmã. Você vive entre os akaios, velho amigo; se eles entrarem em guerra, também virá contra nós?

- Farei o maior esforço para não ser atraído para tal guerra - respondeu Odisseu. - Só estou comprometido por um juramento. Quando a mulher que é agora a rainha de Esparta casou, havia tantos pretendentes e nenhum querendo ceder que parecia que só uma guerra poderia resolver a questão. Foi então que propus um acordo, do qual muito me orgulho.

- Mas o que fez? - indagou Príamo. Odisseu exibiu um enorme sorriso.

- Imagine a situação: talvez a mais linda mulher que já tomou emprestado o cinturão de Afrodite e muitos homens ao redor, oferecendo todos os presentes que podiam a seu pai, ansiosos em lutar por ela, o vencedor ganhando a noiva e o dote de Esparta.. e eu sugeri que ela própria escolhesse, com todos os pretendentes prestando o juramento de que respeitariam sua decisão.

- E a quem ela escolheu?- perguntou Hécuba.

- Ao irmão de Agamenon, Menelau... um pobre coitado; mas talvez ela pensasse que ele era tão sábio e forte quanto o irmão. Ou talvez tenha sido apenas por amor à sua irmã, que casara com Agamenon no ano anterior. Irmãs casando com irmãos... cria a maior confusão na família, ou pelo menos penso que assim deve ocorrer.

- Mas se Enéias tivesse um irmão, eu estaria disposta a casar com ele - sussurrou Polixena no ouvido de Kassandra -, se o irmão tivesse apenas a metade de sua beleza e generosidade.

- Eu também - sussurrou Kassandra em resposta. Hécuba murmurou, a voz nervosa:

- É falta de educação sussurrar, meninas; falem para todos ou fiquem caladas. Qualquer coisa que não serve para ser dita em voz alta não merece ser falada de forma alguma.

Kassandra estava cansada das regras de cortesia da mãe e disse em voz alta:

- Não me sinto envergonhada do que falamos; apenas comentamos que ambas estaríamos dispostas a casar com um irmão de Enéias, se o irmão fosse parecido com ele.

Ela foi recompensada com um olhar ardente de Enéias, que disse, sorrindo:

- Infelizmente, filha de Príamo, eu sou o filho único de meu pai; mas me faz desejar que eu fosse gêmeo ou mesmo trigêmeo, pois teria o maior prazer em partilhar uma taça nupcial com todas as três. O que acha, meu senhor? - perguntou a Príamo. - É apropriado que eu tenha o mesmo número de esposas que o rei? Se está ansioso em casar suas filhas, tomarei todas as três com a maior alegria, se Creusa me der permissão.

Polixena baixou os olhos e corou; Kassandra ouviu sua risada. Creusa ficou muito vermelha e balbuciou:

- Prefiro ser a primeira e única esposa; mas a lei permite que tenha tantas esposas quantas quiser, meu marido.

- Já chega - interveio Príamo. - Isso não é brincadeira. As filhas de um rei, Enéias, não podem ser esposas inferiores ou concubinas.

Enéias sorriu afavelmente.

- Não tive a menor intenção de insultar suas filhas, senhor.

Príamo apertou a mão do genro, já um tanto embriagado, e respondeu:

- Sei como são essas coisas; ao final de um banquete, depois que o vinho já circulou mais do que seria sensato, gracejos muito mais impróprios podem ser perdoados. E agora talvez tenha chegado o momento de as mulheres levarem sua esposa, antes que a festa se torne muito rude para ouvidos virginais.

Hécuba convocou as mulheres e todas cercaram Creusa, com suas tochas. Kassandra, cuja voz era a mais firme, conduziu o hino nupcial. Creusa beijou o pai, que pôs a sua mão na de Enéias; depois, as mulheres levaram-na pela escada. Creusa, perto de Kassandra, sussurrou:

- Pode profetizar a boa sorte para meu casamento, irmã?

Kassandra apertou sua mão e respondeu.

- Gosto muito do seu marido; ouviu-me dizer que teria a maior satisfação em casar-me com ele. E a boa sorte que pode haver para qualquer casamento neste ano certamente será sua; vejo uma vida longa para seu marido e para o filho que você lhe dará.

Andrômaca tocou em seu ombro e murmurou:

- Por que não fez uma profecia assim para mim, Kassandra? Somos amigas e eu a amo.

Kassandra virou-se para ela e respondeu gentilmente:

- Não profetizo o que desejo, Andrômaca, mas o que os Deuses me mandam dizer. Se eu pudesse escolher a profecia, gostaria que você tivesse vida longa e muita honra, vários filhos e filhas para cercá-la e a Heitor, numa velhice respeitada no trono de Tróia.

E só os Deuses sabem o quanto eu gostaria que fosse essa a profecia que me enviaram...

Andrômaca sorriu e pegou a mão de Kassandra.

- Talvez, minha cara, sua boa vontade possa contar mais do que a profecia. E pode ver o bastante no futuro para saber quando a criança de Heitor vai nascer... e se é um filho? Minha mãe gostaria que eu tivesse uma filha primeiro; mas aqui Heitor não fala em outra coisa a não ser em seu filho, e por isso eu também desejo um menino... e sobreviverei ao nascimento para contemplar seu rosto?

Com um enorme alívio, Kassandra apertou os dedos esguios da amiga entre os seus.

- É mesmo um menino... um menino forte e bonito, você viverá para guiá-lo à vida adulta...

- Suas palavras me dão mais coragem - murmurou Andrômaca.

Kassandra sentiu um aperto na garganta, recordando as chamas que vira por ocasião do casamento de Andrômaca. Talvez tenha sido loucura no final das

contas e não uma verdadeira profecia; foi isso o que minha mãe acreditou, pensou ela. E prefiro estar louca a acreditar, neste lugar tranqüilo, sob estas estrelas serenas, que o fogo e o desastre se abaterão sobre aqueles a quem amo.

- Está sonhando outra vez, Kassandra - disse Andrômaca. - Venha nos ajudar a despir a noiva. Não conseguimos desfazer estes nós que você fez nos cabelos de Creusa.

- Já estou indo.

Kassandra se apressou em ajudar as outras moças a prepararem sua meia irmã para a chegada do marido. Do fundo de seu coração, sentia-se contente por não ter previsto nenhum desastre para eles.

 

Depois de todo o barulho e excitação do casamento, a morada do Deus parecia ainda mais silenciosa e pacífica, mais apartada das agitações da vida comum. Dez dias depois do casamento de Creusa, Kassandra foi chamada para outra celebração no palácio: o nascimento de um filho de Heitor e Andrômaca, o primeiro neto de Príamo.

- Mas não é o primeiro neto de Príamo - protestou Kassandra. - Há o filho de Enone e Páris.

- É possível - disse o mensageiro, mas Príamo prefere chamar o filho de Heitor de seu primeiro neto e, pelo que sei, o rei tem o direito de escolher quem será seu próximo herdeiro, depois do príncipe Heitor.

Era verdade; mas, pensou Kassandra, devia ser terrível para Enone ver o filho preterido, como já acontecera antes com o pai.

Ela passara a prezar a paz e o sossego do templo e se ressentia com qualquer coisa que alterava essa situação, mas não podia deixar de sair para fazer urna visita a Andrômaca. Encontrou-a na suíte requintada, com os murais das criaturas marinhas, sentada e encostada em almofadas, o bebê de rosto vermelho num cesto de vime ao seu lado. Parecia saudável e viçosa, com uma boa cor nas faces, o que deixou Kassandra aliviada; muitas mulheres morriam de parto ou logo depois, mas Andrômaca parecia estar passando bem.

- Mas que absurdo é esse de filho de Heitor? - indagou ela, apenas meio gracejando. - Foi você quem teve o trabalho de carregá-lo durante quase um ano e foi você quem suportou toda a dor e angústia de pari-lo. Eu o chamaria de filho de Andrômaca!

Andrômaca fez uma careta e depois soltou uma risadinha.

- Talvez você tenha levado a melhor, estando comprometida com o Deus e proibida aos homens! Depois de tudo o que aconteceu, não tenho a menor pressa em receber Heitor de volta em meu leito. Gerar um filho é um passatempo extenuante; prefiro esperar alguns anos antes de ter outra experiência. E ainda dizem que as mulheres são muito frágeis para empunhar armas com medo de ferimentos... Até que ponto o meu querido Heitor seria bravo se tivesse de enfrentar uma batalha assim?

Ela fez uma pausa, soltando outra risada.

- Pode imaginar uma coisa? Mudamos todos os costumes e os bardos passarão a cantar a bravura de Hécuba, mãe de Heitor! E por que não? Ela triunfou nessa batalha pelo menos uma dúzia de vezes, o que significa que tem mais bravura do que eu jamais espero alcançar! Falam sobre as delícias do casamento... a mulher é criada para não pensar em outra coisa; mas deixam que descubramos pessoalmente as delícias de gerar um filho. Pois muito bem...

Andrômaca inclinou-se, fazendo uma careta pela dor que o movimento acarretou, fez sinal para que uma serva pusesse o bebê em seus braços; a expressão de satisfação em seu rosto, enquanto o aconchegava, contradisse suas palavras. E ela acrescentou:

- Acho que o meu prêmio pela batalha vale mais do que o saque de uma cidade!

- Também penso assim - murmurou Kassandra, tocando no pequeno punho contraído. - Como vai chamá-lo?

- Astíanax - respondeu Andrômaca. - É o desejo de Heitor. Sabia que na festa da indicação do nome ele será carregado no escudo de Heitor? Imagine só... que berço!

Kassandra tentou visualizar o bebê no centro do enorme escudo de guerra de Heitor. Estremeceu de repente e ficou rígida, contemplando o enorme escudo e a criança - quantos anos ele tinha? Certamente era muito jovem para ser um guerreiro! - o corpo prostrado da criança ali exposto, como se fosse para o sepultamento. Foi como uma onda de água gelada; mas Andrômaca, enlaçando o filho na maior felicidade, não percebeu. Kassandra fechou os olhos, na esperança de assim dissipar a visão terrível.

- Como está Creusa? - perguntou.

- Parece feliz; e diz que mal pode aguardar o momento de engravidar. Devo contar a ela o que lhe está reservado?

- Não seja cruel. Deixe-a desfrutar sua primeira felicidade; haverá tempo suficiente para todo o resto depois.

- Tem razão - concordou Andrômaca. - Já há muitas velhas feiticeiras que tentam estragar tudo para as jovens esposas, advertindo-as para o que as aguarda na plenitude dos anos. E não importa o que possa acontecer, eu não gostaria de perder o meu queridinho.

Ela comprimiu os lábios contra o pescoço macio do bebê e fungou, extasiada. Como já acontecera quando vira Filida com seu filho, Kassandra ficou comovida, quase invejosa.

- Há mais alguma novidade?

- Há, sim: o navio de Páris foi avistado; um mensageiro do posto de observação na montanha veio avisar ao rei. Páris é seu gêmeo, mas não o acho muito parecido com você.

- Já me disseram que somos muito parecidos fisicamente – comentou Kassandra, hesitante. - Mas não creio que sejamos tão parecidos nas outras coisas. Há quem o considere o homem mais bonito de Tróia.

Andrômaca disse jovialmente, afagando a mão de Kassandra.

- Eu não estou entre essas pessoas, é claro; nenhum homem se compara a Heitor, na aparência ou no resto.

Kassandra ficou bastante satisfeita por isso; sentia-se responsável por aquele casamento e regozijava-se por Andrômaca estar satisfeita com o marido. E Heitor também não tinha motivo para estar insatisfeito.

- E todos acham que você é bela - acrescentou Andrômaca. - Mas acho que seu rosto não combina com um homem: é delicado demais. Pelo que me lembro, vocês não são tão parecidos assim; por acaso ele tem uma aparência feminina?

- Não penso assim; ao contrário, ele é bastante viril, pois ganhou diversas competições nos Jogos. É um excelente arqueiro, um atleta e um lutador, um verdadeiro demônio no carro de guerra. - Kassandra fez uma pausa e depois acrescentou, com um toque de malícia: - Mas tenho a impressão de que se nos enfrentássemos no campo, ele não se mostraria melhor guerreiro do que eu.

- Minha mãe disse que você possuía a alma de uma grande guerreira no corpo de um pequeno rato silvestre.

Kassandra riu e aproximou o rosto do bebê Astíanax; sentia que de alguma forma o prejudicava ao ceder a suas visões.

- Que todos os Deuses o abençoem e a você também, minha querida - murmurou ela.

- Vai ficar para beber à sua sorte na festa da indicação do nome?

- Acho que não, Andrômaca. Mas estou pensando em voltar para casa por um ou dois dias, depois que Páris chegar. Agora, porém, vou apenas abraçar minha mãe e depois retornar ao templo.

Kassandra despediu-se afetuosamente de Andrômaca, sabendo que estava mais chegada a ela do que a Polixena ou qualquer de suas meias irmãs, depois foi pedir a bênção de Hécuba. Em seguida foi aos aposentos simples, nos fundos do palácio, ocupados por Enone, com a assistência de duas servas que haviam sido devotas do Deus Rio.

Enone estava enroscada numa rede, amamentando o filho; Kassandra aproximou-se e abraçou-a, consciente da fragilidade da mulher. Era Enone e não ela, pensou Kassandra, quem tinha o espírito de uma guerreira no corpo de um pequeno rato silvestre. Enone parecia tão delicada que podia se partir ao menor toque.

- Você está bem, minha irmã? - perguntou Kassandra, usando a palavra deliberadamente.

Ela gostava mais de Enone do que de Creusa ou até mesmo Polixena. Mas quando estava próxima, sentiu outra vez o impulso desconcertante de acariciar a moça; como não sabia se era uma emoção sua ou de Páris, isso a deixava hesitante e tímida na presença da cunhada.

- Pensei em visitá-la quando estive aqui para o casamento de Creusa, minha cara, mas me disseram que não estava bastante bem para receber visitas. Enone sorriu e comentou:

- Agora que o filho de Andrômaca nasceu e a posição de Heitor está garantida, não preciso mais temer por meu filho. Kassandra ficou chocada.

- Tenho certeza de que não há necessidade de temer por ele...

- Espero que não, mas Heitor conseguiu livrar-se de Páris e não creio que ele tenha ficado feliz com o filho de Páris ou que possa amá-lo.

- Acho que está sendo injusta com Heitor. Ele nunca demonstrou qualquer ciúme de Páris... não para mim.

Enone soltou uma risada.

- Ora, Kassandra tenho a impressão de que você não percebe o quanto todos prezam a sua boa opinião e só querem lhe exibir seu melhor lado. Se Heitor se sentisse assim, você seria a última a saber.

Kassandra corou. Para mudar de assunto, pegou o bebê e embalou-o nos braços.

Ele é lindo, Enone. Em sua opinião, é parecido com o pai ou com você? - Ainda é muito cedo para dizer. Mas espero que ele seja parecido com meu próprio pai, leal e honrado.

Kassandra percebeu o desapontamento nas palavras, talvez mais do que a própria Enone.

- Ele pode muito bem ser parecido com você... e nesse caso ninguém poderia contestar sua virtude.

- Só o tempo dirá se ele ou o filho de Heitor será o melhor capacitado para reinar sobre esta cidade; mas eu me regozijo sinceramente por ele não ter de arcar com esse fardo, com esse destino.

Kassandra se apressou em dizer:

- Enone, nunca inveje o destino do filho de Heitor.

- O que você viu? - indagou Enone, apreensiva. - Não, não me diga; soube o que profetizou no casamento de Andrômaca. Não desejo tal bênção para o meu filho... o filho de Páris.

- Conversei sobre isso com Andrômaca. Entre as amazonas, pelo menos, um filho pode ter o nome da mãe. Heitor seria o filho de Hécuba...

- E o meu seria o filho de Enone, não o filho de Páris, da casa de Príamo.

mais justo; contudo, em sua cidade, apenas o filho de uma rameira leva o nome da mãe e não o do pai.

- Ninguém pode chamá-la assim, Enone, e disso dou testemunho - comentou Kassandra, gentilmente.

Mas as palavras eram inexpressivas, pois ela não tinha o poder para mudar a situação; Andrômaca fora unida a Heitor diante de toda a cidade, enquanto Enone, ao que parecia, era esposa de Páris apenas porque o aceitara, com a bênção do pai.

- Quem foi sua mãe, Enone?

- Eu nunca soube o seu nome. O pai me disse que ela morreu jovem. Também foi uma das sacerdotisas do santuário do Deus Rio.

É verdade; as mulheres que geram os filhos de Deuses são ainda mais anônimas do que os filhos dos homens. Ela beijou Enone e prometeu que lhe mandaria um presente.

Voltando para a morada do Senhor do Sol, Kassandra teve muito em que pensar. Se havia no mundo homens como Enéias, talvez pudesse encontrar outros com quem estivesse disposta a casar.

Certa manhã ela estava no quarto de Filida, com o bebê louro no colo, enquanto a jovem mãe dobrava um punhado de fraldas e mantas lavadas. Tirara os cueiros para que o menino pudesse mexer com as pernas livremente e segurou os pés roliços, admirando a perfeição dos pequenos dedos e unhas. Baixou o rosto para os pezínhos, beijou-os e acariciou-os com os lábios. Soprou no meio da barriga macia para faze-lo rir e também riu. Nesse momento quase desejou ter o seu próprio bebê para brincar, embora não estivesse absolutamente interessada nas preliminares necessárias para consegui-lo.

Filida se aproximou e inclinou-se para pegar o filho, mas Kassandra segurou-o, murmurando, orgulhosa:

- Ele gosta de mim. Acho que sabe quem eu sou... não é mesmo, meu lindo?

- Por que ele não haveria de saber? Você está sempre disposta a pegá-lo e mimá-lo quando eu estou muito ocupada para lhe dispensar toda a atenção que ele quer.

Ouvindo a voz da mãe, o bebê começou a gritar e se projetar em sua direção.

- Ele está com fome - acrescentou Filida, com resignação, começando a abrir a túnica. - E, infelizmente, isso é uma coisa que você não pode fazer por mim.

- Eu bem que faria, se pudesse - disse Kassandra, num sussurro quase inaudível.

- Sei disso.

Filida se acomodou, com o bebê no seio. Observando-a com o filho, Kassandra sentiu as águas escuras de uma visão aflorarem e logo se desvanecerem.

- Por que não me conta o que vê, Kassandra? - perguntou Filida, fitando-a com um medo evidente.

Kassandra manteve-se em silêncio.

Esta manhã tive três bebês nos braços e não vi o futuro de nenhum; o que isso significa? Talvez que vou morrer e não posso ver o futuro porque não estarei aqui quando qualquer um deles se tornar adulto? Se ao menos eu pensasse que é tão simples assim... Se eu achasse que era somente isso, trataria de me jogar do ponto mais alto da cidade, antes que o sol deste dia se pusesse.

Mas não era esse o seu destino; outro destino se aproximava para ela e deveria viver para contemplá-lo e suportá-lo. Kassandra inclinou-se para beijar Filida e o bebê e disse, sem responder diretamente:

- Devemos todos assumir nosso destino, você, eu e o bebê também. E pode estar certa de que conhecer o destino não o torna mais suportável. - Não estou entendendo.

- Eu também não entendo.

Kassandra saiu para o pátio do templo, que dava para o mar. Avistou um navio ali... Andrômaca informara que o navio de Páris se aproximava.

Não era parte de seu dever acolher Páris de volta à cidade; mas alguma coisa mais forte do que o dever a atraiu para baixo.

Enquanto descia a rua comprida, Kassandra viu procissões se formando nos navios, preparando-se para seguir até o palácio, enquanto outro grupo descia lentamente do palácio para a praia.

Páris guiava seu carro de guerra - sem dúvida o desembarcara primeiro, a fim de poder entrar na cidade em grande estilo, em contraste com sua chegada discreta para os Jogos. Ao seu lado, no carro, havia um vulto de mulher, a identidade oculta por um véu comprido.

Páris teria conseguido trazer Hesíone de volta a Tróia? Kassandra acelerou um pouco os passos, a fim de alcançar os portões da cidade no instante em que Páris ali parava. Ao mesmo tempo, Príamo e Hécuba, no melhor carro cerimonial do palácio, pararam à sua frente. Heitor estava logo atrás do pai, não parecendo muito satisfeito. Kassandra olhou ao redor, à procura de Andrômaca. Como a amiga poderia perder todo aquele excitamento? Ela levantou os olhos para a janela de Andrômaca e viu-a sentada ali, com Enone de pé ao seu lado, cada uma com o filho no colo. Mesmo àquela distância, Kassandra pôde perceber que Enone apertava com toda força o lado da janela, as articulações esbranquiçadas.

Páris desceu do carro e virou-se para ajudar a mulher com o véu; depois, inclinou-se diante de Príamo, que o levantou e abraçou.

- Seja bem-vindo, meu filho. - Ele estendeu a mão em acolhida para a mulher de véu, que permaneceu parada ao lado do carro. - Teve sucesso em sua missão, meu filho?

- Além das nossas maiores expectativas.

Heitor tentou parecer satisfeito.

- Quer dizer que nos trouxe Hesíone de volta, meu irmão?

- Não foi bem assim - respondeu Páris. - Meu rei e pai, eu lhe trago um prêmio muito maior de que aquele que me mandou buscar.

Fez com que a mulher se adiantasse, removendo-lhe o véu. Kassandra e todos os outros no pátio ficaram atordoados; a mulher era linda, além da imaginação.

Era alta e delicada, os cabelos tão furos e louros quanto o melhor ouro batido; as feições eram como mármore esculpido e os olhos azuis refletiam as profundezas de um céu tempestuoso.

- Quero apresentar Helena de Esparta, que consentiu em se tornar minha esposa.

Kassandra levantou os olhos para a janela, onde Enone comprimia a mão trêmula contra a boca, depois virou-se e desapareceu, deixando Andrômaca a olhar em sua direção, consternada. Páris também olhou para cima; Kassandra não pôde saber se ele percebera a rápida retirada de Enone.

Ele virou-se rapidamente para Helena, que o estimulou num sussurro; Páris tornou a fitar Príamo e indagou:

- Vai dar as boas-vindas a Tróia à minha dama, pai?

Príamo abriu a boca, mas foi a voz de Hécuba que soou primeiro:

- Se ela está aqui por sua livre e espontânea vontade, então é bem-vinda. Tróia não aprovará o seqüestro e estupro de mulheres, caso contrário não seríamos melhores do que o homem abominável que nos roubou Hesíone. E por falar em Hesíone, onde ela está? Sua missão, meu filho, era devolver Hesíone à família; pelo menos nisso parece que fracassou. Cara Helena, veio para cá voluntariamente?

Helena de Esparta sorriu e levou a mão aos cabelos brilhantes. Eram compridos e soltos, como só as virgens usavam em Tróia, pareciam um véu reluzente, apenas um pouco mais claros do que a fita dourada que impedia que caíssem pela testa. Usava uma túnica do melhor linho da terra dos faraós, com um cinto de discos de ouro batido, incrustados com círculos de lápis lazúli, que reproduziam a cor de seus olhos.

O corpo era cheio, de seios firmes, as pernas compridas, cujas formas eram perceptíveis por baixo das dobras soltas da túnica. Quando falou, a voz era profunda e suave:

- Eu lhe peço, Senhora de Tróia, que me dê as boas-vindas e me abrigue aqui; a própria Deusa me entregou a seu filho e Ela não pode ter conhecido mais amor do que o que sinto por ele.

- Mas você já tem um marido - interveio Príamo, hesitante. - Ou será que eram falsas as notícias de que casou com Menelau de Esparta? Foi Páris quem respondeu:

- Ela foi dada a Menelau de forma ilegal. Ele era um usurpador, que a tomou por suas terras. Esparta é a cidade de Helena, por direito da mãe, Leda, que também a recebeu da mãe e da avó. Seu pai...

- Ele não é meu pai - interrompeu-o Helena. - Meu pai foi Zeus Tonante, não aquele usurpador que capturou a cidade de minha mãe pela força das armas e casou com uma rainha relutante.

Príamo ainda estava desconfiado.

- Pouco sei do Tonante. Ele não é cultuado aqui em Tróia. E não somos ladrões de mulheres...

Helena adiantou-se e pegou a mão de Príamo, num gesto que pareceu ousado demais a Kassandra:

- Meu senhor, eu lhe peço, em nome da Senhora, para me oferecer a proteção e hospitalidade de Tróia. Por seu filho, eu me tornei uma exilada entre os akaios que conquistaram minha terra. Poderia me mandar de volta para ser uma rejeitada entre eles?

Príamo fitou aqueles olhos adoráveis e pela primeira vez Kassandra percebeu o efeito que Helena sempre exercia sobre estranhos; o rosto do rei parecia se derreter. Ele engoliu em seco e tornou a fitá-la.

- Isso parece justo. - Mesmo numa frase tão curta, Príamo teve de respirar duas vezes. - Nunca se apelou em vão à hospitalidade de Tróia. Não podemos devolve-la a um marido que a tomou pela força...

Kassandra não pôde mais se manter em silêncio e gritou.

- Pelo menos nisso ela mente! Lembra que Odisseu nos contou que ela própria escolheu entre mais de duas dúzias de pretendentes e fez com que os outros jurassem que defenderiam seu marido eleito contra qualquer um que se recusasse a aceitar a decisão? Pai, não aceite essa mulher! Ela é que trará a ruína e o desastre à nossa cidade, ao nosso mundo! O que ela realmente deseja aqui?

A boca adorável de Helena se abriu em surpresa; soltou um grito - como um animal atacado, pensou Kassandra, fazendo um esforço para não sentir pena da rainha de Esparta.

Páris olhou para Kassandra com uma aversão furiosa.

- Eu sempre soube que você era louca - disse ele. - Minha senhora, eu lhe Suplico para que não dê atenção a ela; é minha irmã gêmea, a quem os Deuses fulminaram com a loucura. Os iludidos pensam que é uma profetisa. Só fala em ruína e morte para Tróia e agora resolveu pensar que você será a causa.

Os olhos grandes de Helena fixaram-se em Kassandra.

- E uma pena que uma jovem tão bonita sofra de loucura.

- Tenho pena dela, mas não precisamos escutar seus delírios - acrescentou Páris. - Não é capaz de entoar outra canção, Kassandra? Todos já ouvimos essa antes e estamos cansados.

Kassandra cerrou os punhos e apelou:

- Pai, pelo menos veja a luz da razão. Se estou louca ou não, o que isso tem a ver com o que Páris fez? Ele não pode casar com esta mulher; ela tem um marido, com quem dezenas de testemunhas viram-na casar por sua livre e espontânea vontade; e Páris também já é casado. Ou será que esqueceu Enone?

-,Quem é Enone? - indagou Helena.

- Não é ninguém com quem precise se preocupar, minha amada - respondeu Páris, fitando-a nos olhos. - É uma sacerdotisa do Deus Rio local, Escamandro, e amei-a por algum tempo; mas ela saiu para sempre dos meus pensamentos no dia em que contemplei seu rosto pela primeira vez.

- Ela ë a mãe de seu primogênito, Páris - declarou Kassandra. - Atreve-se a negar isso?

- Claro que nego. As sacerdotisas de Escamandro tomam amantes onde querem; como posso saber quem foi o pai da criança que ela teve? Por que acha que não a tomei em casamento?

- Espere um pouco - interveio Hécuba. - Aceitamos Enone porque ela gerou seu filho...

Enone servia para a esposa de um pastor, filho de Agelau, mas não era de linhagem bastante alta para o filho de Príamo, pensou Kassandra. Ela disse em voz alta:

- Se abandonar Enone, você é um tolo e um vilão. Mas o que quer que ele faça, pai, eu lhe suplico para que não aceite a espartana, pois posso garantir agora que no mínimo ela atrairá a guerra para esta cidade...

Páris não a deixou continuar:

- Pai, prefere escutar esta louca em vez de seu filho? Também posso garantir uma coisa: se recusar abrigo à esposa que os Deuses me concederam, irei embora de Tróia e nunca mais voltarei.

- Não! - exclamou Hécuba, em desespero. - Não diga isso, meu filho! Já o perdi uma vez...

Com uma expressão transtornada, Príamo disse:

- Não quero uma luta com o irmão de Menelau. Heitor, o que você acha?

Heitor adiantou-se e fitou Helena nos olhos; Kassandra, angustiada, percebeu que ele também sucumbiu à beleza da espartana. Será que nenhum homem podia contemplar Helena e conservar a razão?

- Pai, parece-me que já temos uma discórdia com Agamenon - declarou Heitor. - Ou já esqueceu que ele ainda está com Hesíone? E sempre podemos dizer que a mantemos como refém para trocar por Hesíone. Será que não passamos de um acampamento insignificante de onde os akaios roubam as mulheres e o gado? Eu lhe dou as boas-vindas a Tróia, cara Helena... irmã... - Ele estendeu a mão e pegou a de Helena. - Declaro que todo inimigo de Helena de Esparta é um inimigo de Heitor de Tróia e toda a sua família. É suficiente para você, meu irmão?

- Se a aceitar nesta cidade, pai, é você quem está louco! - gritou Kassandra. - Não pode sequer perceber o fogo e a morte que ela traz em sua esteira? Vai deixar Tróia em chamas porque um homem não tem lealdade e deseja a esposa de outro homem?

Ela resolvera permanecer calma e sensata, mas sentiu as águas escuras subirem para sufocá-la pela garganta e gritou estridente, consternada: - Não! Não! Eu lhe suplico, pai...

Príamo tornou a subir em seu carro.

- Tentei ser paciente com você, menina, mas agora não posso mais agüentar. Volte para o Templo do Senhor do Sol... Ele é o padroeiro dos dementes. Ore a Apolo para que lhe dê visões mais amenas. Quanto a mim, que nunca se diga que Príamo de Tróia recusou hospitalidade a uma mulher que o procurou como suplicante.

- Oh, Deuses, será que nem mesmo vocês podem ver? - gritou Kassandra. - Estão todos seduzidos por essa mulher? Mãe, não percebe o que ela fez com meu pai e meus irmãos?

Heitor adiantou-se e arrastou Kassandra, sob protesto, da frente dos carros.

- Não fique parada aí a se lamentar - disse ele, jovialmente. - Acalme- se, Olhos Brilhantes. O que poderia acontecer se de fato entrássemos em guerra com os akaios? Acha que não somos capazes de mandá-los de volta ganindo para aquelas pastagens de cabras a que eles chamam de terra natal? A guerra acarretaria o desastre não para Tróia, mas para nossos inimigos.

Sua voz era compadecida. Kassandra inclinou a cabeça para trás e soltou um longo gemido de consternação e desespero.

- Pobre criança... - murmurou Helena, aproximando-se. - Por que resolveu me odiar? É a irmã do meu amado; estou disposta a amá-la como uma irmã.

Kassandra desvencilhou-se das mãos estendidas de Helena; sentia que cairia e vomitaria se aquela mulher a tocasse. Olhou de novo para Príamo, na mais profunda angústia.

- Por que não quer me escutar? Será que não compreende o que isso vai acarretar? Não são apenas os homens que lutam aqui, mas também os Deuses... e nenhum homem pode viver quando há guerra entre os Imortais. E, mesmo assim, diz que sou eu que estou louca! Pois saiba que sua loucura é pior do que a minha!

Ela virou-se e correu para o palácio. O coração estava disparado, como se tivesse corrido desde a morada do Senhor do Sol; sentia-se nauseada e trêmula, parecia que passava por chamas que a envolviam, engolfando todo o palácio no cheiro de coisa queimada, uma fumaça densa... Quando mãos a tocaram, ela soltou um grito de terror e tentou se livrar; mas as mãos a seguraram com firmeza e no momento seguinte ela se descobriu entre braços afetuosos. A escuridão se dissipou; não havia mais fogo. E Kassandra contemplou confusa os olhos escuros de Andrômaca.

- Kassandra, minha querida, o que a aflige?

Kassandra, arrancada abruptamente do pesadelo, mas ainda não de todo consciente do que acontecia ou de onde se encontrava, limitou-se a fitá-la, incapaz de falar.

- Irmã, está esgotada, passou muito tempo ao sol - murmurou Andrômaca.

Ela passou um braço pela cintura de Kassandra e conduziu-a a um aposento ensombreado e fresco. Depois que Andrômaca a acomodou num banco com almofadas e levou uma taça com água fresca a seus lábios, Kassandra balbuciou:

- Ah, se não fosse pior do que isso... Pensa que eu não preferia estar louca ou alucinada pelo sol, se isso significasse não ver as coisas que vejo?

- Acredito em você, Kassandra. Não penso que está louca; mas também não acredito em suas visões.

- Pensa que eu inventaria uma coisa assim? Como deve me julgar perversa!

Kassandra estava indignada. Andrômaca manteve-a firme em seu abraço afetuoso.

- Não, irmã. Creio que os Deuses a têm atormentado com falsas visões. Ninguém pode acreditar que você seria bastante iníqua para simular tais coisas.

Mas deve escutar a voz da razão. Nossa cidade é forte e bem defendida; não carecemos de guerreiros ou de armas, nem mesmo de aliados; se os akaios forem suficientemente tolos para virem resgatar sua cadela no cio, em vez de dizerem "Boa viagem para uma sem-vergonha sem valor e incômoda", por que acha que conseguiriam mais alguma coisa contra Tróia do que até hoje?

Kassandra compreendia o bom senso dessa posição, mas mesmo assim gemeu, comprimindo o coração.

- Heitor falou mais ou menos isso, mas. . . - Ela se ouviu chorando outra vez. - São os Imortais que estão furiosos com a gente!

Ela lutou desesperadamente para emergir das águas escuras, acrescentando depois de um momento:

- Pelo menos você sabe que ela não passa de uma cadela no cio.

- Claro. Reparei no olhar que ela lançou para Heitor e até mesmo para seu pai. E é bem possível que ela seja uma maldição enviada contra nossa cidade por um dos Imortais; mas se é a vontade deles, não poderemos evitar.

Kassandra balançava para a frente e para trás, angustiada; as palavras serenas e a resignação de Andrômaca aumentavam ainda mais o seu desespero.

- Acredita sinceramente que os Deuses se rebaixariam a lutar contra uma cidade mortal? Que motivo poderiam ter? Não somos iníquos ou ímpios; não provocamos a ira de qualquer Deus.

- Talvez os Deuses não precisem de motivos para o que fazem.

- Se os Deuses não são justos - insistiu Kassandra, soluçando -, que esperança nos resta?

Como que envolta numa chama, ela viu então o rosto da Bela, a Deusa que tentara Páris com pleno sucesso.

Eu lhe darei a mais linda mulher do mundo...

Como pensara na ocasião, ela tornou a pensar agora: Mas ele já tem uma mulher! Kassandra levantou os olhos para Andrômaca.

- Para onde Enone foi?

- Não sei. Pensei que ela tivesse ido cuidar de seu bebê.. .

- Não foi isso. Ela viu Páris com Helena e fugiu. Vou procurá-la.

- Não entendo como Páris pôde abandoná-la, até mesmo por Helena, por mais bonita que ela seja... a menos que alguma Deusa assim tenha determinado.

- Eu nunca serviria a uma Deusa tão injusta - comentou Kassandra, amargurada.

Andrômaca pôs as mãos nos ouvidos.

- Não diga isso! É urna blasfêmia! Estamos todos sujeitos aos Imortais...

Kassandra levantou a taça inacabada e sorveu tudo; as mãos tremiam tanto que quase a largou.

- Vou falar com Enone agora - murmurou ela, levantando-se.

- Diga a ela que a amamos e nunca aceitaremos aquela espartana em seu lugar, mesmo que fosse a própria Afrodite.

Kassandra procurou por todo o palácio, mas não encontrou Enone em parte alguma; ela nunca mais seria vista no palácio de Príamo. Finalmente, ouvindo a comitiva real na escada - preparando-se, pensou Kassandra, para oficializar o casamento de Páris, o que não se podia evitar, já que Enone não estava ali para protestar -, ela deixou o palácio e retornou ao Templo do Senhor do Sol. Não tinha o menor desejo de ouvir os hinos nupciais cantados para Helena, quando haviam sido negados a Enone. Estaria disposta a censurá-los em nome de qualquer Deus, se um Deus assim lhe falasse; mas nada aconteceu e Kassandra não queria se transformar em outro espetáculo, apregoando a morte e desastre que não podia deixar de ver.

 

O PRESENTE DE AFRODITE

Kassandra não falou com ninguém, no Templo do Senhor do Sol ou em qualquer outro lugar, sobre Helena e Páris; mas deveria saber que era impossível manter em silêncio notícias assim. Antes de transcorrerem três dias, a história de Helena e a profecia de Kassandra já estavam em todas as línguas de Tróia.

Houve até os que, contemplando a beleza de Helena, acreditaram ou disseram que acreditavam que a própria Deusa akaia do amor e da beleza, Afrodite, viera à cidade. Kassandra, se indagada a respeito, dizia apenas que Helena era de fato bonita - bastante bonita para virar a cabeça de qualquer mortal - e que em sua terra pensavam que era filha de um Imortal.

Ela não sabia nem se importava se alguém acreditava nisso; Sua grande preocupação agora era com Enone. Torcia para que a moça simplesmente tivesse levado a criança de volta ao Templo de Escamandro, mas não acreditava em tal possibilidade. No fundo de sua mente havia o medo obcecante de que Enone tivesse optado por se sacrificar e ao filho ao Deus Rio. Se Afrodite era mesmo uma Deusa do Amor, por que não preferira resguardar o amor entre Enone e Páris?

Kassandra especulou sobre aquela Deusa Afrodite, que punha tanta tentação no coração dos homens... e das mulheres também; não era apenas Páris que escolhera e não pudera resistir a Helena, mas também Helena, embora rainha de Esparta, por direito da mãe, que optara por se entregar a Páris,,.. depois de escolher seu marido, como poucas mulheres no mundo akaio podiam fazer. Se eu fosse rainha, pensou Kassandra, preferiria ser como Imandra e reinaria sozinha, sem tomar nenhum consorte.

As Deusas de Tróia e da Cólquida eram sensatas, reconheciam a primazia da Terra e da Maternidade; mas aquela Deusa que confundia todas as coisas por um capricho a que chamavam de amor. . . não, aquela era uma Deusa a que ela jamais poderia consentir em servir. E veio uma noite em que ela sonhou que estava num templo estranho, diante daquela Deusa akaia, que parecia muito com a rainha de Esparta.

Então você jurou que não vai me servir, Kassandra de Tróia? Mas consagrou sua vida ao serviço dos Imortais...

Kassandra sabia mais ou menos que estava sonhando; contemplou a Deusa e constatou que Ela era muito mais bonita do que a espartana Helena; por um momento, parecia que no rosto de Afrodite estava a beleza meio esquecida da visão de Apolo, Senhor do Sol. Poderia resistir ao chamado daquele amor?

- Jurei servir à Mãe de Tudo - murmurou ela. - Você não é Ela e não tem qualquer parte em Seu culto, pois acho que A está negando.

Um riso distante soou como o repicar de sinos.

Você também me servirá ao final, filha de Príamo. Tenho mais poder do que você e mais do que as Deusas comuns de suas cidades. Todas as mulheres aqui vão me idolatrar e você também.

Kassandra gritou "Não!" e despertou com um sobressalto, encontrando seu quarto vazio e apenas a face brilhante do sol na janela, como um escárnio da beleza que acabara de ver.

Como aqueles akaios eram estranhos; primeiro, elegiam o culto a uma Deusa do casamento, que puniria qualquer mulher que se desgarrasse; e depois elegiam uma Deusa do amor arrebatado, que tentaria uma mulher a renunciar aos votos que fizera. Era como se os akaios ao mesmo tempo temessem e desejassem a infidelidade de suas esposas... ou talvez quisessem apenas uma desculpa para

abandoná-las.

Talvez fosse melhor que uma criança pertencesse apenas à mãe. Talvez o casamento e a paternidade não fossem importantes para os homens. Uma mulher devia cuidar do bem-estar da criança que carregara em seu corpo, mas gerar filhos era fácil demais para os homens; não passavam de joguetes a serem usadas em proveito dos pais. Talvez Filida, no final das contas, tivesse conseguido o melhor; um Deus podia ter tantas esposas quanto desejasse e não precisava se descartar da antiga quando escolhia uma nova.

O pensamento lembrou a Kassandra que tinha deveres a cumprir no templo; embora jurasse nunca servir a Afrodite, assumira o compromisso de servir ao Senhor do Sol. Deveria descer agora e se juntar aos outros sacerdotes e sacerdotisas para a saudação ao sol nascente.

Já estavam todos reunidos, dos veneráveis anciãos que eram sacerdotes curandeiros aos noviços mais jovens; ela foi quase a última a ocupar seu lugar e recebeu de Cárites um olhar paciente de desaprovação. O sumo sacerdote correu os olhos pelos outros e disse:

- Em nove do Senhor do Sol, peço que recebam um recém-chegado entre nós. Ele serviu no santuário em Delos, a ilha do Senhor do Sol. Dêem as boas vindas a nosso irmão, que se chama Krises.

O nove era apropriado, Krises: o dourado. Era um homem excepcionalmente alto, embora não tanto quanto Heitor, nem tão musculoso e bem formado. As feições refinadas estavam cobertas por uma camada de sardas minúsculas; os cabelos brilhavam ainda mais louros porque ele estava bronzeado pelo sol. O sorriso era radiante, mostrando dentes brancos e perfeitos, os olhos tinham o brilho do azul domar.

Quando falou, a voz era forte e vibrante, com ecos ressonantes que lembraram Kassandra das ocasiões em que ouvira a voz do Deus. Ainda bem que ele escolheu um Deus para servir, pensou ela. De um mortal assim o Senhor do Sol poderia sentis ciúme.

- Quem está de serviço hoje para receber e contar as oferendas? - indagou Cárites.

Kassandra lembrou suas obrigações, estremeceu e disse:

- Sou eu.

- Então deve levar nosso irmão para o pátio e mostrar como são concedidas.

Kassandra baixou os olhos, timidamente, quase como se sentisse que Krises podia ler seus pensamentos, que eram ousados demais, ao que lhe pareciam.

- Agradeço por esta recepção - disse Krises. - Mas se eu pudesse antes lhe pedir uni favor, Senhora...

- Claro que pode pedir - falou Kassandra, bruscamente, quando ficou patente que Cárites não ia responder. - Mas nada posso prometer, enquanto não souber o que deseja.

Ele levantou os olhos, falando assim para todos:

- Gostaria que abrigassem aqui minha filha, que é sem mãe.

Ele chamou unia menina que se escondia entre os arbustos à beira do pátio. A princípio, Kassandra pensou que ela devia ter onze anos. Usava uma túnica esfarrapada e muito pequena, que mal chegava aos joelhos. Os cabelos, da mesma espantosa cor dourada dos cabelos do pai, pendiam numa massa emaranhada, que caía quase até a cintura.

- Estou viajando há muito tempo e é difícil para uni homem sozinho cuidar de unia menina - explicou Krises, acompanhando o olhar de Kassandra. - Ela pode viver aqui, na morada do Senhor do Sol?

- Pode, sim, mas ainda é muito jovem para ser escolhida como uma das donzelas de Apolo - respondeu Cárites. - Haverá tempo suficiente, quando ela crescer, para escolher o caminho que desejar. Mas por enquanto... Kassandra, quer levar a criança agora e providenciar para que ela seja bem cuidada?

- Ficarei duas vezes grato à Senhora Kassandra - murmurou Krises, inclinando-se e sorrindo para ela.

Fazendo um esforço para não olhar de novo para Krises, ela estendeu a mão para a menina.

- Venha comigo, querida. Está com fome?

- Estou, sim... mas o pai disse que eu não deveria pedir coisa alguma.

- Mas será alimentada; ninguém passa fome na casa do Deus.

Kassandra levou a menina para seu quarto, chamou uma serva e pediu-lhe que trouxesse pão e vinho, assim como uma cesta com frutas.

- Em primeiro lugar, você deve tomar um banho e vestir roupas limpas - disse ela, pois os trajes da menina estavam imundos, além de esfarrapados.

Ela banhou a menina com a ajuda de uma governanta. Ensaboando o corpo, constatou que a menina não era tão jovem quanto parecia; os seios já se formavam e havia um emaranhado de cabelos dourados no púbis. Sem a sujeira da estrada, ela exibia a beleza do pai; indagando seu nome, Kassandra não ficou surpresa ao ouvir a resposta:

- Minha mãe me deu o nome de Helike no nascimento, mas o pai sempre me chamou de Criseide.

Dourada.

- O nome bem lhe cabe -, comentou Kassandra -, especialmente se os seus cabelos não estivessem tão emaranhados. - Acho que terão de ser cortados.

- Oh, não! - exclamou Kassandra. - Seria uma pena. São lindos demais para se cortar.

Ela pegou um pente e com todo cuidado desfez os piores emaranhados; dois ou três estavam impossíveis e teve de cortá-los. Escovados até ficarem macios e brilhantes, os cabelos dourados enroscaram-se pelos ombros da menina. Depois que vestiu uma túnica branca de noviça, com uma das faixas de seda de Kassandra, Criseide passou os dedos pela cintura, reverente.

- Nunca usei uma coisa tão bonita!

- Parece agora digna de ser uma das donzelas do Senhor do Sol - comentou Kassandra. - O Senhor Apolo ficará satisfeito com você, como não ficaria com uma criança suja.

A menina ainda parecia faminta; as mãos tremiam quando se pôs a comer o pão e as uvas, como se há dias não se alimentasse, embora Kassandra percebesse que ela tentava se controlar e demonstrar boas maneiras. Agradeceu a Kassandra com lágrimas nos olhos:

- Enquanto viajávamos, o pai às vezes alimentava-se nos santuários, mas não queria que homens estranhos me vissem. - Depois, para não parecer que criticava o pai, ela acrescentou. - Ele guardava um pouco para mim sempre que podia.

Contra sua vontade, Kassandra ficou comovida.

- Se as governantas derem permissão, você poderá dormir em meu quarto e será bem cuidada.

Criseide sorriu timidamente.

- E também terei deveres no templo?

- Claro; nenhuma pessoa fica ociosa na casa do Deus. Mas até descobrirmos o que melhor pode fazer, terá tarefas apropriadas à sua idade. - Kassandra virou-se para a governanta e sugeriu. - Leve-a para Filida e deixe que ajude a cuidar do bebê.

Ainda era cedo quando Kassandra retornou ao pátio em que Cárites e Krises a esperavam. A velha sacerdotisa ajudava-o a registrar as oferendas deixadas no pátio do templo durante a noite; eram oferendas simples, deixadas por mera devoção por cidadãos que não tinham pedidos especiais a formular. Estavam fazendo marcas nas tábuas: uma marca para um pote de óleo ou vinho, outra para uma bandeja de bolinhos, uma terceira para o par de pombos numa gaiola de junco entrelaçado. Kassandra comunicou as disposições que adotara para a criança.

Foi o mais sensato - reconheceu Cárites. - Nada de mal poderá lhe acontecer enquanto cuida do bebê e deixará Filida livre para voltar a seus deveres.

- Não tenho palavras para expressar minha gratidão - disse Krises. - É quase impossível para um homem cuidar de uma menina; se fosse um garoto, eu ainda poderia dar um jeito. Era mais simples quando ela era bem pequena; agora que é quase adulta, tenho de vigiá-la dia e noite. Mas não preciso temer por ela entre as virgens do Senhor do Sol.

- Pode estar certo de que saberemos guardar sua virgindade - garantiu Cárites - Mas por que isso é tão importante agora? Pensei que ela tivesse apenas sete ou oito anos.

- Eu também - acrescentou Kassandra. - Mas quando lhe dei banho, verifiquei que era mais velha.

Krises pensou por um momento.

- A mãe morreu há dez anos e tenho certeza de que ela não tinha ainda três anos na ocasião. Tornou-se uma moça há quatro meses e nem mesmo sei o que se pode dizer a uma filha assim. Foi então que decidi que estava na hora de deixar a vida errante e me assentar em algum lugar, a fim de que ela pudesse ser tratada de modo adequado. Na estrada nem mesmo podia alimentá-la direito e ela era muito bonita para que a deixasse sair como uma mendiga.

- Pobre criança sem mãe... - murmurou Kassandra. - Cuidarei dela como se fosse minha própria filha.

- Não tem filhos seus, Senhora?

- Não. Sou uma virgem de Apolo.

Kassandra sentiu que corava pelo olhar que ele lhe lançou e apressou-se em acrescentar:

- Estão começando a trazer oferendas das e consultar o santuário; preciso me preparar para responder.

O primeiro homem trouxera como oferenda um jarro de bom vinho, perguntou:

- Sacerdotisa, eu gostaria de perguntar ao Deus como posso arrumar um bom casamento para minha irmã. Meu pai morreu e há muitos anos estou ausente da minha aldeia, servindo no exército do rei.

Kassandra já ouvira muitas indagações similares; entrou no santuário e respeitosamente repetiu a indagação. Não acreditava que fosse bastante importante para o Deus responder; mesmo assim, esperou vários minutos, caso Ele tivesse alguma coisa a dizer. Depois, voltou ao homem à espera e disse:

- Procure o amigo mais velho de seu pai e peça um conselho, por amizade a seu pai; e não se esqueça de lhe dar um presente generoso.

O rosto do homem se iluminou.

- Agradeço ao Deus pelo conselho.

Kassandra acenou com a cabeça cortesmente, tendo de se controlar para não dizer: Se usasse o espírito que o Deus achou por bem lhe conceder, teria se poupado o trabalho de vir aqui; mas como qualquer pessoa sensata poderia lhe dar tal resposta, fazemos jus a um presente por isso. Mais tarde, Krises perguntou:

- Como sabe o que responder? Acho difícil acreditar que um Deus perca tempo com esses problemas.

Ela explicou que os sacerdotes já haviam definido as respostas apropriadas para as perguntas mais comuns.

Mas nunca se esqueça de ficar em silêncio por alguns momentos, caso o Deus queira conceder outra resposta. Mesmo as perguntas mais tolas... cio nosso ponto de vista.. . podem às vezes receber unia resposta do Deus.

Depois de algum tempo, outro homem apareceu, trazendo um cesto com excelentes melões.

- O que devo plantar no meu campo do sul este ano?

- Houve fogo, inundação ou alguma outra grande mudança em sua terra? - Não, Senhora.

Kassandra entrou no santuário, sentou por um momento diante da grande estátua do Senhor do Sol, lembrando a primeira vez em que a vira, quando criança, e pensara que fosse um homem vivo. Como o Deus não lhe falasse, ela voltou ao homem e disse:

- Plante a colheita que plantou há três anos.

A resposta não poderia causar mal algum; se ele estivesse fazendo uma rotação das colheitas, como os líderes da maioria das aldeias agora aconselhavam, não haveria conflito com tais sugestões; e se não estivesse, não poderia de jeito nenhum piorar a situação. Enquanto ele agradecia, Kassandra sentiu-se exasperada; aquela era a resposta segura para qualquer camponês, em qualquer ano, ele deveria saber sem precisar perguntar. Mas, de qualquer forma, todos no templo apreciariam os melões.

A manhã foi passando devagar, com apenas uma indagação que fez Kassandra pensar por um momento; um homem trouxe um cabrito como oferenda e disse que a esposa acabara de dar à luz uni filho.

- E deseja agradecer ao Senhor do Sol?

O homem arrastou os pés, inquieto, como uma criança culpada.

- Não exatamente - murmurou ele. - Desejo saber se o filho é meu ou minha esposa foi infiel.

Era sempre a indagação que Kassandra mais temia; o ano que passara entre as amazonas lhe ensinara que quando uni homem desconfiava de uma mulher isso geralmente significava que não se sentia digno da consideração de uma mulher.

Mas ela aceitou a oferenda calmamente e entrou no santuário. Às vezes essa pergunta era respondida de fato, aparentemente ao acaso: Se não tem certeza, abandone a criança imediatamente. Mas o Deus não se manifestou agora e por isso ela ofereceu a resposta conveniente para tais ocasiões:

- Só pode confiar em sua esposa em outras coisas, não há motivo para duvidar nisso.

O homem pareceu profundamente aliviado; Kassandra suspirou e acrescentou:

- Vá para casa agora e agradeça à Deusa por seu filho... e não se esqueça de pedir desculpas à sua esposa por duvidar dela sem motivo.

- Está bem, Senhora.

Como não havia outros suplicantes aguardando consulta, Kassandra virou-se e disse a Krises:

A esta hora devemos fechar o santuário e descansar até que o sol comece a declinar; o costume é comer um pouco de pão e frutas antes de voltarmos para receber quem apareça.

Ele agradeceu e acrescentou:

- A Senhora Cárites me contou que você é a segunda filha do rei Príamo e de sua rainha. É de nascimento nobre e tão bela quanto Afrodite; como pode servir aqui no santuário, quando todos os príncipes e nobres, nesta costa e para o sul até Creta, devem tê-la pedido em casamento?

- Não foram tantos assim - respondeu Kassandra, soltando uma risada nervosa. - E no meu caso, o Senhor do Sol me chamou para Seu serviço quando eu era mais jovem do que sua filha.

Krises mostrou-se cético.

- Ele a chamou? Como?

- Você é um sacerdote. Certamente o Deus já lhe falou.

- Não tive tal sorte, Senhora. Creio que os Imortais só falam com os grandes. Meu pai... era um homem pobre... me consagrou ao serviço do Deus, quando meu irmão mais velho foi poupado da febre que devastou Mikenas há uma vintena de anos. Ele achou que era uma boa troca; meu irmão era um guerreiro, enquanto eu, na sua opinião, não tinha qualquer serventia.

Kassandra soltou outra risada.

- Isso é estranho, pois você é mais forte do que eu e fui uma guerreira por um ano, cone as amazonas.

-. Já ouvi falar das mulheres guerreiras e me disseram que matam seus amantes e filhos homens.

- Isso não acontece, embora os homens vivam separados das mulheres e os filhos sejam enviados para os pais assim que são desmamados.

- E teve um amante quando vivia com elas, bela amazona?

- Não - respondeu Kassandra, suavemente. - Como eu já disse, fui prometida como uma virgem ao Senhor do Sol.

- E uma pena que uma dama tão bela deva envelhecer sem amor.

- Não precisa se compadecer de mim - protestou Kassandra, indignada. - Estou muito contente mesmo sem um amante.

- O que me parece o mais lamentável. É uma princesa e bela, além de gentil... como demonstrou com minha filha; mas vive sozinha aqui e se dedica a esses mesquinhos suplicantes, servindo como qualquer donzela de baixa extração poderia fazer...

Abruptamente, Krises puxou-a e beijou-a; aturdida, Kassandra tentou se desvencilhar, mas ele a segurava com tanta firmeza que não pôde escapar. Sua boca ficou surpresa com o calor dos lábios de Krises.

- Não tenho a menor intenção de desonrá-la - sussurrou ele. - Seria seu amante... ou seu marido, se quiser me aceitar.

Ela se debateu freneticamente e saiu, correndo do aposento, subiu a escada como que perseguida por demônios, o coração disparado, o sangue latejando nos ouvidos. Foi para o quarto de Filida e encontrou Criseide ninando o bebê e cantando com vozinha fina. Filida dormia, mas sentou no leito no instante em que Kassandra irrompeu no quarto.

Kassandra estava disposta a contar toda a história, mas olhou para Criseide e pensou. Se eu me queixar do pai, vão mandá-lo embora; e esta criança ficará outra vez à mercê dos acasos da estrada. Por isso, ela se limitou a dizer:

- Sinto a cabeça doer do sol. Filida, quer trocar de lugar comigo esta tarde, recebendo as oferendas no santuário, enquanto eu cuido do bebê? Posso mandar alguém chamá-la quando chegar o momento de mamar.

Filida concordou com a maior satisfação, comentando que já estava cansada de ficar no quarto com a criança e que, de qualquer forma, já estava na hora de desmamá-la. Depois que ela se retirou, Kassandra pôs o bebê para brincar ao sol e sentou para refletir sobre o que lhe acontecera.

Entrara em pânico tolamente, ela tinha certeza; nenhum sacerdote de Apolo a teria violentado no santuário do Deus.

Krises certamente não tencionava lhe causar qualquer mal; e ela não sentira a mesma repulsa que experimentara quando aquele homem tentara violentá-la quando cavalgava com as amazonas. Se ela não tivesse fugido, o que Krises poderia dizer ou fazer? Não gostaria de matá-lo; mas ele a levaria a uma situação em que isso se tornaria necessário?

Kassandra não queria realmente saber; gostava de Krises e não sentia uma raiva genuína, mas apenas um senso de impotência. Aquilo não era para ela. Sentiu o ímpeto das águas escuras em seu íntimo e compreendeu que também não era isso o que a Deusa lhe desejava.

 

Kassandra conseguiu por vários dias evitar o serviço de aceitar as oferendas; mas soube que Krises estava se tomando bastante popular entre os outros sacerdotes e sacerdotisas. Não apenas conhecia o ofício secreto de cuidar das abelhas e a arte de retirar seu mel (embora em Creta, como Kassandra fora informada, esse trabalho estivesse proibido aos homens e permitido apenas a sacerdotisas especiais), mas também estava a par de muitas das artes conhecidas em Creta e Egito. Cárites lhe contou:

- Ele viajou pelo Egito e ali aprendeu a arte de marcar a talha; e disse que ensinará a qualquer pessoa que desejar aprender. Vai simplificar muito os nossos registros e poderemos saber a qualquer momento o que há em nossos depósitos, sem precisar contar tudo... bastará contar as talhas.

Outras pessoas comentaram a afabilidade de Krises, as muitas histórias que contava sobre suas viagens, a devoção à filha; e Kassandra começou a sentir que se comportara como uma tola. Veio o dia em que ela retornou a seus deveres normais; ao entrar no santuário e encontrar Krises ali, para trabalhar com ela, sentiu-se envergonhada de fitá-lo nos olhos.

- Eu me regozijo por vê-la de novo, Senhora Kassandra. Ainda está zangada comigo?

Algo em sua voz reforçou a determinação de Kassandra, disse-lhe que pelo menos não imaginara o que acontecera entre os dois. Por que devo me envergonhar de fitá-lo nos olhos? Não fiz nada de errado; se houve alguma transgressão, foi dele e não minha.

- Não guardo ressentimento, mas eu lhe peço para nunca mais me tocar. Kassandra ficou irritada consigo mesma por ter falado como se lhe pedisse

um favor, não como se exigisse o seu direito de recusar um contato indesejável. - Não tenho palavras para expressar o quanto lamento te-la ofendido, Senhora Kassandra.

- Não há necessidade de desculpas; não vamos mais falar sobre isso.

Ela recuou um pouco, bastante nervosa.

- Não posso deixar assim. Sei que não sou digno; afinal, não passo de um pobre sacerdote, enquanto você é filha de um rei.

- O problema não é esse, Krises. Jurei que não pertenceria a nenhum homem, apenas ao Deus.

Ele riu, um som breve e amargo.

- O. Deus nunca a solicitará nem sentirá ciúme.

- Eu não seria a primeira...

Krises soltou outra risada.

- Ora, Kassandra, creio que é inocente, mas não pode per tão inocente assim... ou tão criança... para acreditar nessas velhas histórias!

Ela não o deixou continuar:

- Não vamos falar sobre essas coisas, mas apenas se é verdade ou falso que o Deus pode reclamar o que lhe pertence. Eu não sou para você.

- Não diga isso, Kassandra. Nunca, em toda a minha vida, desejei uma mulher tanto quanto a você... e pensava que jamais poderia querer uma mulher com tanta intensidade, até que a conheci.

- Acredito que assim seja, se é o que me diz; mas mesmo sendo verdade, nunca mais torne a me falar sobre isso.

Ele inclinou a cabeça.

- Como quiser. Nem por todos os mundos eu poderia ofende-la, princesa; devo-lhe toda gratidão pela bondade com que trata minha filha. Mas sinto que Afrodite, Aquela que comanda o desejo, me exorta a amá-la.

- Uma Deusa assim só envia a loucura a homens e mulheres; eu nunca amaria qualquer homem à sua ordem. Pertenço ao Senhor do Sol. E agora não me fale mais sobre isso ou teremos uma autêntica discórdia.

- Como quiser. Digo apenas que se você negar o poder d'Aquela a quem todas as mulheres devem servir, é possível que Ela venha a puni-la.

Essa nova Deusa é criada pelos homens para desculpar sua própria devassidão; não acredito em seu poder. Kassandra lembrou-se então de seu sonho, mas deu de ombros. Já tenho muita coisa na cabeça, é como sonhar com a trovoada quando se ouve o barulho da chuva no telhado.

- Há devotos no templo e devemos aceitar as oferendas; pode une ensinar o novo método de registrá-las por escrito? Conheço a escrita de imagens do Egito, mas é muito complicada. Há muitos anos um velho que lá viveu me disse que os escribas egípcios precisam estudar a vida inteira para aprende-la.

- E é mesmo o que acontece - confirmou Krises. - Mas os sacerdotes do Egito possuem uma escrita mais simples, que não é tão difícil de aprender. O estilo cretense é ainda mais simples, pois cada marca não é uma imagens ou unia idéia, como nas tumbas dos reis, mas um som, o que permite que seja escrita em qualquer língua.

- Mas que idéia extraordinária! Que Deus ou grande homem criou esse sistema?

- Não sei... mas dizem que o olímpico Hermes, o Deus mensageiro que viaja nas asas do pensamento, é o padroeiro da escrita. - Krises pegou suas tábuas. - Vou mostrar os sinais mais simples e como anotá-los. Depois, podem ser copiados em tábuas de argila; ao secarem, haverá um registro que nunca vai perecer e que não dependerá da memória de qualquer homem.

Kassandra aprendeu depressa; era como se algo nela clamasse por aquele novo conhecimento e apreendeu-o com a mesma sofreguidão com que a terra ressequida absorve a chuva depois de unia longa estiagem. E aprendeu tão bem a escrita cretense que ameaçava ser melhor do que Krises; foi então que ele insistiu que Kassandra não deveria aprender mais, explicando: - É para o seu próprio bem. Em Creta, nenhuma mulher pode aprender

esta escrita, nem mesmo a rainha. Os Deuses determinaram que as mulheres não devem saber essas coisas, pois isso prejudicará suas mentes, deixará os ventres estéreis e o mundo se tornará árido por toda parte. E quando as fontes sagradas secam, o mundo tem sede.

- Isso é um absurdo - protestou Kassandra. - Não me prejudicou de nenhuma forma.

- Como pode julgar? Já me recusou e a qualquer amante; não é um insulto à Deusa e um sinal de que já se recusou a assumir seu papel como mulher?

- Então me nega o conhecimento em represália só porque o recusei como amante?

Krises pareceu ficar magoado e amargurado.

- Não foi só a mim que recusou, mas também a grande força da natureza, que determinou que a mulher fosse feita para o homem. Somente as mulheres possuem o poder sagrado e precioso de gerarem...

A coisa era tão absurda que Kassandra não pôde deixar de rir.

- Está tentando me dizer que antes de os Deuses e Deusas concederem aos homens sabedoria e conhecimentos, os homens podiam gerar crianças, mas essa capacidade lhes foi negada porque criaram outras coisas? Até mesmo as amazonas sabem que não é esse o caso. Fazem todas as coisas proibidas às mulheres aqui, mas também geram seus filhos.

- Filhas - disse Krises, desdenhoso.

- Muitas amazonas geram filhos excelentes.

- Fui informado de que as amazonas matam os filhos homens.

- Isso não acontece. Elas os mandam para os pais. E conhecem todas as artes que estão reservadas aos homens em tribos de costumes diferentes. Sendo assim, se as mulheres em Creta não têm permissão para aprender a escrita, o que isso tem a ver comigo? Não estamos em Creta.

- Uma mulher não deve ser capaz de argumentar assim - insistiu Krises. - A vida da mente destrói a vida do corpo.

- Você é ainda mais tolo do que eu pensava. Se isso fosse verdade, seria ainda mais importante não ensinar a nenhum homem, para não destruí-lo como um guerreiro. Por acaso todos os sacerdotes de Creta são eunucos?

- Você pensa demais - comentou Krises, tristemente. - Isso ainda vai destruí-la como mulher.

Os olhos de Kassandra faiscaram de malícia.

- E se eu me entregasse a você, estaria salva desse terrível destino? É muito generoso, meu amigo, e sou uma ingrata por não apreciar o grande sacrifício que está disposto a fazer por mim.

- Não deve desprezar esses mistérios. Não acredita que o Deus, ao incutir em meu- coração desejo por você, estava transmitindo a mensagem de que devo tê-la?

Alteando as sobrancelhas com desdém, Kassandra respondeu:

- Cada sedutor tem falado isso desde o início dos tempos e cada mãe ensina à filha que não deve dar ouvidos a esses falsos absurdos. Gostaria que eu ensinasse à sua filha que é seu dever se entregar porque algum homem a deseja?

- Minha filha não tem nada a ver com isso.

- Sua filha tem tudo a ver com isso; meu comportamento será para ela o modelo de virtude. Gostaria que ela se entregasse ao primeiro homem que alegar que a deseja?

- Claro que não, mas...

- Então você é um hipócrita também, além de tolo e mentiroso. Houve um momento em que gostei de você, Krises; não complete o trabalho de destruir a boa vontade que ainda me resta.

Ela se afastou e saiu do santuário. Enquanto trabalhavam juntos, ele não deixara de importuná-la por um momento sequer. Kassandra não admitiria tal situação por mais tempo; procuraria Cárites ou o sumo sacerdote, diria que não mais trabalharia com Krises, que só a queria para uma coisa, que não podia permitir.

Seria mais simples se eu deixasse o templo. Mas devo deixar que um homem assim me afugente?

Era o crepúsculo; tentando atenuar sua irritação, Kassandra desceu a encosta para o alojamento das sacerdotisas. Ao passar pelo prédio, ouviu um ruído nos arbustos; virou-se e divisou dois vultos, fundidos nas sombras. Num súbito impulso, ela se adiantou. O homem se ergueu e saiu correndo. Kassandra não o reconheceu e não se importou. Mas o segundo vulto era diferente; ela avançou depressa e pegou o braço da jovem Criseide.

O traje da moça estava amarrotado, levantado quase até a cintura, deixando o púbis exposto; a boca estava inchada e machucada, o rosto avermelhado e sonolento. Chocada, Kassandra pensou: Mas ela é apenas uma criança! Contudo, era evidente pelo que eles estavam fazendo - e não podia haver a menor dúvida a respeito - que a menina fora uma participante de boa vontade.

Subitamente, Criseide baixou a túnica e esfregou o rosto com o braço. Kassandra finalmente explodiu:

- Mas que vergonha! Como ousa fazer uma coisa assim? E uma virgem de Apolo!

Assumindo uma atitude de desafio, Criseide murmurou:

- Não me olhe assim, sua solteirona azeda e ressequida; só porque nenhum homem jamais a desejou, como se atreve a me censurar?

- Como me atrevo?

E Kassandra pensou: Foi porque estava preocupada com essa moça que escondia a ofensa de seu pai! Não há necessidade de especular como ela adquiriu esse comportamento.

- O que quer que possa pensar de mim, Criseide, não é a minha conduta que está em jogo, mas a sua; isso é proibido às donzelas aqui. Você procurou refúgio no Templo do Senhor do Sol; deve então obedecer às regras pelas quais viver as outras donzelas.

Talvez, refletiu Kassandra, fosse melhor mandar embora da morada do Deus aquela filha e aquele pai indignos. Mas acrescentou, tão gentilmente quanto podia:

- Vá para o quarto, Criseide, troque de roupa e se lave ou não serei a única a censurá-la.

A moça fora entregue aos seus cuidados; de alguma forma, precisava evitar que Criseide fosse uma desgraça para a casa do Senhor do Sol e para os seus ensinamentos. Enquanto Criseide entrava, ela pensou: Parece agora que ficarei à mercê de Afrodite; Criseide também vai alegar que está sob a influência da Deusa, cujo empenho é atrair as mulheres para o amor indisciplinado e ilegítimo?

Kassandra levantou os olhos para a face do Sol, que estava bem alto no céu.

- Estamos em Seu poder, Senhor Apolo - orou ela. - Está no comando de Sua Casa, dos corações e mentes daqueles que Lhe consagraram suas vidas. Não quero cometer qualquer desrespeito com os Imortais, mas não pode manter a ordem em Sua própria morada, em Seu próprio santuário?

Não houve uma resposta imediata à sua indagação, mas ela também não esperava nenhuma. Evitou o santuário por vários dias, alegando doença; parecia que a morada do Senhor do Sol, antes tão feliz, tornara-se hostil, pois Krises se encontrava em toda parte. Kassandra acabou subindo a colina para o ponto mais alto da cidade, onde ofereceu uni sacrifício à Donzela, a Deusa padroeira de Tróia; seus pensamentos estavam em turbilhão e se perguntou se isso não seria uma deslealdade com o Senhor do Sol, de quem era sacerdotisa. Mas fora chamada para a Mãe Terra, de quem se tornara também uma sacerdotisa.

Depois de oferecer o sacrifício, sentiu-se mais calma, embora a Deusa não lhe falasse diretamente. Voltou ao templo de Apolo e apresentou-se nas cerimônias vespertinas; quando avistou Krises entre os sacerdotes e ele sorriu-lhe, não procurou evitar seu olhar. Não fora ela quem fizera algo errado; por que deveria se sentir envergonhada?

Naquela noite seus sonhos foram confusos e assustadores; parecia-lhe que uma tempestade desabava sobre Tróia e que se encontrava na parte mais alta, na cidadela da Donzela, tentando de alguma forma atrair os raios para si mesma, a fim de que não fulminassem as pessoas que amava. O Deus Tonante dos akaios desfilava pelas muralhas construídas por gigantes, sacudindo os punhos. O Batedor da Terra, Senhor de Tróia, que fora chamado para ser consorte da Mãe Terra, esforçava-se' e lutava para proteger sua cidade. Havia também outros Imortais e de alguma forma Kassandra os enfurecera. Mas eu não fiz nada de errado, protestou ela, em confusão. Se alguém cometera unia transgressão, fora Páris. Ela conclamou o Senhor do Sol a salvar a cidade; mas Ele franziu o rosto e escondeu o brilho de sua face, dizendo: Os akaios também me veneram. Kassandra acordou com um grito de terror. Quando estava inteiramente desperta, compreendeu o absurdo do sonho... com toda certeza, os Deuses, tão sábios, não puniriam uma grande cidade pelas transgressões inadmissíveis de apenas um homem e unia mulher.

Ela voltou a dormir depois de algum tempo e recomeçou a sonhar. Pensou que comprimia o bebê de Filida contra o seio; e sentiu outra vez a mistura de profunda ternura com uma horrível repulsa e desespero. Alguma coisa estava errada, terrivelmente errada. E ela fez um grande esforço para recuperar a consciência. O contato em seu seio não desapareceu, uni vulto escuro se inclinava sobre ela, a não ser onde a claridade da lua cheia ¿brilhava sobre a máscara doura da de Apolo. Mas reconheceu o contato da mão em seu seio e abriu a boca para gritar. A mão se retirou depressa do seio para cobrir sua boca.

- Você é minha, Kassandra! - entoou uma voz familiar. - Rejeita o seu Deus?

Kassandra mordeu a mão, que foi removida com um grito que nada tinha de divino, e sentou na cama, puxando a túnica para o lugar.

- Conheço a voz do Deus! - exclamou ela, furiosa. - E não é a sua voz, Krises! Blasfemo, pensa que Apolo não é capaz de proteger os Seus?

Sua voz se alteara de maneira considerável na última frase e ela ouviu no corredor as vozes das outras sacerdotisas, empenhadas em investigar o distúrbio. Saiu da cama, tentando alcançar a porta, mas Krises bloqueou a passagem e empurrou-a contra a parede. As tentativas de mantê-la ali, em grande parte bem sucedidas, não foram silenciosas; logo o quarto foi invadido por um bando de mulheres, inclusive Cárites, Filida e Criseide. Krises virou a cabeça, mostrando a máscara às mulheres.

- Deixem-nos!

A voz era profunda e impressiva. Filida primeiro soltou uma exclamação de espanto, ao ver a máscara do Deus, mas depois reconheceu a voz do homem e fitou-o e a Kassandra com urna expressão horrorizada. Criseide soltou uma risadinha, enquanto as outras mulheres pareciam indecisas. Kassandra bateu com toda força na barriga de Krises e desvencilhou-se das mãos que a apertavam.

- Vil sacerdote! - balbuciou ela. - Você se atreve a assumir a semelhança do Deus para satisfazer seus desejos! Profana o que não compreende! - Ela tremia com uma mistura de raiva e horror. - Pela Mãe de Tudo, eu não deitaria com você mesmo que estivesse de fato possuído por Apolo!

- Não mesmo, Kassandra? - Um tremor sacudiu o corpo de Krises e depois, de forma inesperada, mas inconfundível, a voz era a de Apolo. - Você que é minha eleita.. . não pensou que eu deixaria de protege-la de um mortal iníquo e tolo, não é mesmo?

Kassandra ouviu o grito de reconhecimento de Filida; mas a maré escura inundou-a e sentiu que o ímpeto da Deusa aflorava. A última coisa que ouviu foi a voz da Deusa.

Sua, Senhor do Sol? Ela me foi dada antes mesmo de nascer neste mundo mortal ou sentir o seu contato!

E depois ela não soube de mais nada.

Seu corpo estava encostado na parede e cada centímetro da pele parecia ter sido queimado. Unhas lhe rasgaram o rosto e continuaram a arrancar a túnica no ombro.

- Assassina! - gritou Criseide em seu ouvido. - Você matou meu pai! Pensa que é boa demais para ele... pensa que é melhor do que todas nós por ser uma princesa! Age como se nem mesmo fosse humana! E não é... não passa de um animal, uma covarde repulsiva...

Kassandra abriu os olhos. Krises estava estendido no chão, muito branco e imóvel. Filida inclinou-se sobre o corpo, examinou-o e murmurou:

- Ele vai ficar bom, Criseide. O Deus o possuiu por um momento, foi apenas isso.

Mas Criseide não escutava.

- Ela é uma feiticeira! Lançou um encantamento maléfico sobre meu pai!

Cárites afastou a moça histérica de Kassandra e empurrou-a para os braços de duas outras sacerdotisas.

- Tirem essa pirralha insensata daqui!

Os gritos de Criseide continuaram a ressoar, enquanto ela era arrastada pelo corredor, depois desapareceram na distância, misericordiosamente.

Kassandra sentiu o corpo resvalar para o chão, mas nada podia fazer para impedir. Os olhos mantinham-se abertos, mas tudo parecia muito distante e irreal. Apenas uma parte do seu eu estava no corpo; o resto pairava sobre a cena, observando Cárites e uma governanta suspenderem-na e colocarem-na de volta na cama. Uma noviça trouxe um copo com vinho; Cárites despejou um pouco pela garganta de Kassandra. Esquentou-a ligeiramente e puxou-a um pouco mais de volta ao corpo, mas ainda sentia um frio terrível e insuportável, como se tivesse perdido a maior parte de sua força vital. Podia ver que Cárites segurava sua mão, mas não podia sentir a pressão dos dedos. E de repente foi dominada pela saudade do acampamento das amazonas e de Pentesiléia, que se mostrara mais sua mãe do que Hécuba jamais fora ou seria. Lágrimas lhe toldaram a visão e escorreram pelas faces.

- Calma, calma... - murmurou Cárites, puxando a manta e ajeitando-a em torno do corpo. - Descanse agora, não se preocupe com nada.

Por trás de Cárites, Kassandra viu Filida pegar reverente a máscara de Apolo. Dois sacerdotes entraram em silêncio, conversaram com a governanta por um instante e depois saíram carregando o corpo de Krises. Ele tinha os olhos abertos, mas estavam vidrados, não viam coisa alguma.

Os sacerdotes falavam um com o outro ao passarem pelo leito; Kassandra ouviu as palavras "possessão genuína"; continuou imóvel, pensando no que acontecera.

Uma coisa era certa: Krises usara - de maneira ilegítima - a máscara do Deus e tentara seduzi-la. Não tinha certeza do que acontecera em seguida; lembrou-se de Criseide a lhe cravar as unhas e gritar, depois lembrou-se da voz de Apolo, sobrepondo-se ao barulho e confusão no quarto, e as palavras malfadadas que lançara contra Krises.

- Eu não deitaria com você mesmo que estivesse de fato possuído por Apolo!

Ela dissera realmente essas palavras a seu Deus? Krises as merecera; contudo, todo o seu corpo se contraía em desespero ao pensamento de que Apolo, Senhor do Sol, podia arrebatar os dois.

Apesar de tudo, além do medo ou pesar, ela conhecia agora a fonte das águas escuras: era o Deus, que a reclamava. Entregara-se ao Deus com toda a sinceridade do primeiro amor, só que não estava livre para isso.

A porta se abriu e Cárites entrou, inclinando-se sobre ela com enorme ternura.

- Pode se levantar, Kassandra? Estamos sendo todos chamados ao santuário, a fim de discutir o que de fato aconteceu aqui ontem à noite.

Cárites serviu-lhe um pouco de vinho, pão e mel, mas Kassandra não conseguiu engolir; a garganta se encontrava fechada e ela sabia que passaria mal se tentasse comer.

Cárites ajudou-a a pôr uma roupa e escovar os cabelos. Kassandra prendeu-os numa trança meio solta e seguiu a sacerdotisa mais velha para o santuário, onde todo o pessoal do templo se reunia. Um dos sacerdotes mais idosos, que conhecia Kassandra desde a infância, pediu ordem e anunciou:

- Devemos descobrir a verdade desse lamentável incidente. Filha de Príamo, pode nos contar o que aconteceu?

- Eu dormia e sonhava, acordei deparando com um homem em meu quarto. Ele usava a máscara do Deus, mas reconheci a voz de Krises. Pediu-me que cedesse aos seus desejos e recusei.

Ela levantou a cabeça, fitando Krises nos olhos, antes de acrescentar: - Perguntem ao blasfemo devasso se tem coragem de negar! O sacerdote indagou:

- O que tem a dizer, Krises?

Ele também olhou para Kassandra.

- Não me lembro de nada, apenas que despertei em seu quarto, com essa gata selvagem me cravando as unhas!

- Não pôs a máscara do Deus deliberadamente para enganar essa jovem?

- Mas claro que não! - protestou Krises, indignado. - Chamo Apolo para testemunhar.. . mas duvido que Ele venha me acusar ou defender.

- Ele mente! - interveio Filida. - Conheço a voz do Deus... e juro que ouvi apenas a voz de Krises! Kassandra já se queixara a mim antes que ele lhe pedira o que não era legítimo dar a qualquer mortal! E depois o ouvi falar com a

voz do Senhor do Sol...

- Todas ouvimos isso - declarou Cárites. - A questão agora é determinar qual dos dois, ambos ou nenhum, blasfemou.

- Declaro que ela foi culpada de recusar a palavra de Apolo - disse Krises. - Ela blasfemou; em nome do Deus que ambos servimos...

- Ela invocou a Deusa no Templo de Apolo, o que é proibido - lembrou Cárites.

- Acho que os dois devem ser expulsos por criarem um escândalo - sugeriu o velho sacerdote.

Kassandra protestou:

- Não sei por que eu deveria ser punida por resistir a um sacerdote devasso que queria violentar uma mulher que se entregou ao Deus que ele fingia servir. Quanto à Deusa, não procurei Sua proteção; Ela vens e vai a Seu critério. Nada tenho a ver com Sua discórdia com Apolo.

- Chamo Apolo para testemunhar... - disse Krises, com a maior veemência.

- E o que fará, blasfemo, se Ele responder? - indagou Kassandra bruscamente.

- Tenho certeza de que Ele não responderá - declarou Krises, arrogante. - Procurei Kassandra, é verdade; sirvo ao Deus, como ela diz que faz.. .

- Tome cuidado. . . - advertiu Cárites.

Krises soltou uma risada.

- Assumo esse risco!

- Devemos proteção a Kassandra - insistiu Cárites. - As donzelas do templo estão prometidas ao Deus e delas não pode abusar uni mero mortal, seja eles, sacerdote ou não; e muito menos por meio de um truque assim.

Houve murmúrios pela sala; Kassandra sentiu-se grata a Cárites por interferência sua defesa.

- Preciso fazer uma pergunta - anunciou o velho sacerdote. - Venha até aqui, filha de Príamo. Ouviram quando disse que não se entregaria a ele mesmo que fosse Apolo de verdade. Estava falando sério ou apenas se manifestou em ira?

- Como o Deus não me procurou, falei apenas para rejeitar aquele que teria me violentado em nome de Apolo.

Houve uma claridade intensa e Kassandra levantou os olhos para a luminosidade que surgira no lugar em que Krises estivera um momento antes.

A voz profunda e familiar ressoou por todos os cantos da câmara: Kassandra,. .

Não podia haver a menor dúvida de que era a voz do Deus. Kassandra sentiu os joelhos vergarem e resvalou. para o chão, sem se atrever a levantar os olhos de novo nem falar.

Este Meu servo não acreditou que Eu poderia usá-lo assim; mas agora ele sabe do que sou capaz. Ele tomará conhecimento de Meu poder em pouco tempo. Deixe-o Comigo; cuidarei dos Meus.

A Forma reluzente estava virada para Kassandra, que tremia e inclinou a cabeça.

Quanto a você, Kassandra, você a quem tenho amado: entregou-se à Minha antiga Inimiga, mas eu reclamei e agora Me pertence. Não a libertarei; contudo, você Me ofendeu e retiro o dom divino da profecia que havia lhe concedido. Tenho dito!

A voz vibrava de tristeza. Kassandra, ajoelhada, a cabeça inclinada, sentiu um ímpeto de protesto e ressentimento.

- Senhor do Sol, eu bem que gostaria que assim fosse - disse ela, em voz alta. - O que mais quero é me livrar desse dom que não procurei!

Ela se curvou como que atingida pela rajada de um vento poderoso; o corpo era um campo de batalha, os olhos ardiam, as águas escuras e impetuosas da Deusa arremetiam contra o calor implacável da ira de Apolo.

Você também conhecerá o meu poder!

Subitamente, a presença desapareceu; Kassandra, liberta da pressão dos Imortais em conflito, arriou no chão. Vagamente, percebeu que Cárites se inclinava para levantá-la. Como se flutuasse em algum lugar perto do teto da sala, viu Krises cair, o corpo sacudindo em arrancos frenéticos, os calcanhares batendo no chão, os dentes chocalhando. Uma espuma rosada de sangue irrompeu de seus lábios, um grito assustador lhe esvaziou os pulmões.

A lição é merecida, pensou ela, para quem pensava falar com o poder de Apolo para enganar uma de suas sacerdotisas...

E ela ouviu então, como um eco da voz de Apolo: Terei de usar até mesmo a ele nos dias que virão...

Estremecendo de frio, Kassandra sentiu as águas escuras recuarem e voltou, como se aflorasse de um mergulho muito profundo. Ainda não podia falar; os sacerdotes cuidavam de Krises, enquanto ela estava com a cabeça no colo de Cárites. E embalando-a gentilmente, Cárites sussurrou:

- Não chore; mesmo que a ira de Apolo seja terrível, será bom para você se livrar dessa terrível maldição da profecia.

Como eu podia dizer a ela que não chorei pela perda do dom da profecia? Ou que não era a ira de Apolo que eu temia, mas sim o Seu amor? Não desejei ser um campo de batalha entre os Imortais.

 

                                                                                 CONTINUA

 

                      

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