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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INDOMÁVEL / Harold Robbins
O INDOMÁVEL / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INDOMÁVEL

Primeira Parte

 

O QUE HOUVE ANTES

A Sra. Cozzolina provou a sopa. Estava gostosa e grossa, com muito tomate e com o tempero exato do alho. Deu um estalo com a língua — estava boa. Voltou com um suspiro à mesa onde estava re­cheando raviólis com galinha desfiada. Tinha sido um comprido e quente dia de junho, mas o tempo estava começando a ficar úmido. O céu lá fora havia escurecido e ela teve de acender a luz da cozinha.

"Essas americanas", pensava ela enquanto dava forma à massa com os dedos gordos e ia colocando a galinha. O suor lhe escorria pela testa e logo acima dos lábios, onde havia a leve sombra escura de um buço. "Marcam quando vão ter filhos para não terem de car­regá-los no verão! Onde é que já se viu disso? Lá na velha terra — e sorriu, pensando no tempo em que fora moça — as mulheres tinham filhos quando eles vinham. Ninguém pensava em marcar a época". Ela tinha o direito de criticar as mulheres americanas. Era parteira, havia ganho muito pouco naquele verão e tinha sete filhos seus para criar desde que o marido morrera.

A campainha da porta tocou. Levantou a cabeça ao ouvir o som e inclinou-se para o lado, como se quisesse adivinhar quem era. Ne­nhuma das suas freguesas estava esperando para aquele mês. Devia ser alguém querendo vender alguma coisa.

— Maria, — gritou ela, com a voz ressoando pelos corredores, — vá ver quem está na porta.

A voz dela era forte de tanto gritar com os filhos e com os ven­dedores ambulantes da rua, a quem comprava quase todos os gêne­ros.

Ninguém respondeu. A campainha tornou a tocar, dessa vez com um som mais forte, estridente e imperioso. Sem muita vontade, ela limpou as mãos no avental e desceu pelo corredor comprido e es­treito ate chegar à porta da rua. Abriu a porta.

Era uma moça com uma pequena maleta nos degraus ao lado dela. O rosto era magro e estava abatido, mas os olhos brilhavam com uma luminosidade quente e assustada, como os de um animal no escuro. Estava evidentemente grávida e os olhos experimentados da Sra. Cozzolina calcularam que já era o último mês.

A senhora é a parteira? — perguntou ela com voz suave, mas um pouco receosa.

Sou, Madame, — respondeu a Sra. Cozzolina, que sabia quando se tratava de uma pessoa de qualidade. Gente assim mostra­va sempre o que era ainda quando passava as piores dificuldades.

Desculpe incomodá-la, mas cheguei há pouco a Nova York e... — Calou-se um instante, enquanto um tremor pareceu sacudir-lhe o corpo. Quando voltou a falar, a voz estava mais apressada. — A criança está para nascer e eu não tenho para onde ir.

A Sra. Cozzolina ficou calada alguns segundos, pensando. Se ela aceitasse a moça, Maria teria de sair do quarto dela e não iria gostar. Detestava dormir com as outras irmãs. Depois, a moça não tinha dinheiro. Talvez não fosse nem casada. Olhou automaticamen­te para a mão da moça e viu um anel de ouro no dedo.

Tenho algum dinheiro, — disse a moça, como se lesse os pensamentos da Sra. Cozzolina.

Mas eu não tenho quarto, minha filha.

Arranje-me qualquer lugar. Não tenho tempo de ir procurar outra coisa e vi a sua placa na porta: Parteira.

A Sra. Cozzolina cedeu. Maria iria dormir com as irmãs, gos­tasse ou não gostasse.

— Entre, — disse ela à moça, pegando-lhe a maleta.

A moça seguiu a Sra. Cozzolina pelo corredor e subiu alguns degraus para o quarto de Maria. Estava claro ali e ela viu uma fila de casas de cômodos de três andares e um menino que separava pombos com uma comprida vara num terraço próximo.

Tire o casaco e fique à vontade, — disse a Sra. Cozzolina.

Ajudou a moça a despir-se e a deitar-se na cama. — A que horas começaram as dores, minha filha?

Há uma hora. Vi que não podia ir mais adiante. Tive de pa­rar aqui.

A Sra. Cozzolina examinou-a. A moça estava um pouco nervo­sa. Não era assim que ela havia pensado em ter filho. Devia estar num hospital com George perto dela ou nas imediações para dar-lhe a certeza de que tudo acabaria bem. Ou então estaria em casa, onde poderia sentir a presença de pessoas que a amavam e lhe dariam co­ragem. Aquilo era tão diferente. Estava com um pouco de medo.

A Sra. Cozzolina terminou o exame. A moça era pequena, de conformação pequena. Ia ter um parto difícil. A passagem era muito estreita para a criança sair com facilidade. De qualquer maneira, ain­da faltavam seis ou sete horas e a dilatação talvez fosse maior do que se podia esperar. Era sempre uma coisa maravilhosa ver uma moci­nha tornar-se mulher diante da gente e botar no mundo um bebê. Mas tudo indicava que aquele seria difícil. Mas nada do que a Sra. Cozzolina pensava lhe apareceu no rosto.

Você ainda tem de esperar um pouco, — disse ela com um sorriso. — Mas não se preocupe que tudo correrá bem. Sei disso porque tive sete.

Obrigada, muito obrigada, — murmurou tremulamente a moça.

Veja agora se dorme um pouco, — disse a Sra. Cozzolina, encaminhando-se para a porta. — Voltarei daqui a algum tempo para saber como vai indo. Um pouco de sono é sempre bom.

Desceu e voltou para a cozinha. Tinha quase acabado de prepa­rar o jantar quando se lembrou de que nem havia perguntado o nome da moça. "Ora, pergunto quando subir de novo", disse ela, tratando de acabar o jantar.

A moça tinha fechado os olhos e tentara dormir, mas não con­seguia. Os pensamentos passavam pela cabeça dela como paisagens que se vêem ao longe da janela de um trem. A casa e George. Eram as duas coisas importantes a que o seu pensamento sempre voltava. "Que será que pensam de mim agora? E George? Para onde foi ?" Ela tinha de encontrar-se com ele num dia, há muito tempo.

Estava chovendo e ela tinha saído para encontrar-se com ele na esquina, perto do restaurante. Ventava muito e ela sentia muito frio mas, ainda assim, esperara durante duas horas para então voltar para casa. No outro dia de manhã, telefonara para o escritório dele e lá haviam dito que ele saíra na véspera na hora do costume mas não havia ainda chegado naquele dia. E George desaparecera. Nunca mais o vira, nem tivera notícia dele e não podia compreender. Geor­ge não era assim, não era um tipo de homem para fazer dessas coi­sas. Alguma coisa terrível devia ter acontecido.

Olhou pela janela e tentou calcular que horas eram. Já estava bem escuro e, de vez em quando, se ouvia a trovoada distante e ha­via riscos de relâmpago no céu, mas não começara a chover. O ar es­tava abafado e opressivo e ela podia ouvir o barulho dos pratos e das vozes na cozinha e sentir o cheiro da comida que entrava pela porta entreaberta porque o quarto onde ela estava ficava bem em cima da cozinha.

Quando os filhos começaram a chegar para o jantar, a Sra. Cozzolina pediu-lhes que não fizessem barulho porque havia gente lá em cima. Maria fizera uma cena por causa do quarto, mas acabara sossegando porque a mãe lhe havia prometido um presente quando aquele caso terminasse. Tinham acabado de comer e a Sra. Cozzoli­na olhou para o relógio em cima da geladeira. Oito horas. Levantou-se de um pulo. A pobrezinha já estava lá em cima sozinha havia qua­tro horas e não se tinha ouvido nem um pio dela. Era uma moça co­rajosa, pensou a Sra. Cozzolina, pensando nas mulheres cujo traba­lho de parto era três quartos de gritaria e um quarto de esforço por parte delas.

Recomendando às meninas que lavassem os pratos, subiu para o quarto onde estava a moça.

Como vai?

Achou que vou bem, — respondeu a moça tranqüilamente.

Qual é o espaço agora entre as dores? — perguntou a Sra. Cozzolina, voltando a examiná-la.

Parece que de meia em meia hora.

Está bem, — disse a Sra. Cozzolina, levantando-se.

Mas não estava nada bem. Não havia dilatação alguma. Desceu e deu ordem às meninas de terem água quente e toalhas limpas à mão.

Foi quase à meia-noite que a tempestade desabou sobre a cida­de. Foi quase à meia-noite que a criança começou a nascer. A moça estava ali calada, com a boca apertada, agarrando a toalha amarrada à cabeceira da cama e torcendo-se de dor. O rosto estava pálido e os olhos eram largos e negros poços de medo.

Eram quase duas horas da madrugada quando a Sra. Cozzolina mandou seu filho mais velho ir chamar o Dr. Buonaventa, que mora­va na esquina. Quando voltasse, acrescentou ela, não custava nada passar pela casa paroquial e chamar um padre

Viu o médico abrir a barriga da moça e tirar de lá a criança já quase toda roxa. Fez o bebê voltar à vida com umas palmadas e ou­viu o seu zangado protesto por haver deixado o quente e confortável abrigo onde até então estivera. Viu o médico lutar desesperadamente para salvar a vida da moça. Compreendeu que ele fora derrotado quando o viu fazer um gesto para o padre aproximar-se. E quando o padre chegou junto da moça, ela se ajoelhou ao lado da cama e re­zou.

Rezou pela moça que era tão jovem e tão corajosa.

Rezou porque havia perdido o marido e sabia que aquela moça devia também ter passado por isso.

A moça voltou-se para ela e sorriu. Havia em seus olhos uma pergunta. A Sra. Cozzolina pegou a criança que chorava e colocou-a ao lado dela. A moça olhou o filho, descansou a cabeça ao lado da cabecinha e fechou os olhos.

A Sra. Cozzolina lembrou-se então de que ainda não havia per­guntado o nome da moça. Inclinou-se sobre ela e perguntou "Seu nome ?" cheia de medo de que a criança pudesse passar o resto da vida sem saber o nome que tinha.

A moça abriu os olhos com um jeito de quem tinha vindo de muito longe.

—        France Cain, — disse ela, com uma voz que a Sra. Cozzoli­ na mal pôde ouvir.

Depois, fechou os olhos, mas de repente abriu-os e a cabeça descambou pelo travesseiro.

A Sra. Cozzolina pegou a criança. Viu o médico cobrir a moça com o lençol. Tirou depois uma folha de papel da mala e disse em i-taliano:

—        Vamos tratar primeiro do registro de nascimento, não é?

A Sra. Cozzolina fez um gesto grave de assentimento. Primei­ro, os vivos.

Qual vai ser o nome dele?

Francis Kane, — disse a Sra. Cozzolina.

Era apenas justo — um nome de que ele poderia ter orgulho, um nome que poderia ostentar. A vida dele ia ser bem difícil, mas ele a enfrentaria com aquele nome, que era o de sua mãe…

 

Do outro lado da rua, no alto do campanário de St. Thérèse, os sinos estavam chamando para a missa das oito horas. Os meninos es­tavam todos formados, esperando a hora de entrar nas salas de aula e as irmãs haviam acabado de entrar no pátio. Um segundo antes, tudo tinha sido confusão, enquanto nós corríamos de um lado para outro, brincando, gritando uns para os outros, mas naquele mo mento tudo estava calmo. Formamos em fila dupla e marchamos para a escola, subindo a escada para as salas de aula. Sentamo-nos com um barulho de livros em cima das carteiras do lado dos meninos e um farfalhar de blusas e saias engomadas do lado das meninas.

—        Começaremos o dia com uma oração, crianças,   — disse a irmã Anne.

Juntamos as mãos em cima das carteiras e inclinamos a cabeça.

Aproveitei a oportunidade para jogar uma bola de papel em Jerry Cowan. A bola acertou em cheio na nuca e ficou presa ali. Achei isso tão engraçado que quase comecei a rir no meio da oração, mas parei em tempo. Quando a reza acabou, Jerry se virou para ver quem tinha sido, mas eu fingi que estava ocupado com os meus livros.

Irmã Anne me chamou:

—        Francis.

Levantei-me desconsoladamente, pensando que ela me vira jo­gar a bola de papel em Jerry. Mas não. Ela queria apenas que eu fos­se escrever no quadro o dia da semana, do mês e do ano. Fui até ao quadro-negro e, pegando na caixa um pedaço de giz, escrevi em grandes letras: "Sexta-feira, 5 de junho de 1925".

Fiquei esperando e a professora me disse:

—        É só, Francis. Pode voltar para o seu lugar.

A manhã custou muito a passar. O ar estava quente e abafado e as férias começariam daí a poucas semanas. Além do mais, eu não estava interessado na escola. Tinha treze anos, era grande demais pa­ra a minha idade e, logo que a escola acabasse, Jimmy Keough me mandaria dar recados e ir pegar as apostas para ele com os homens que trabalhavam nas garagens vizinhas, apostas de meio dólar e de um quarto de dólar que ele não queria perder tempo em receber. Eu ganhava com tudo isso um bocado de dinheiro — às vezes até dez dólares por semana. E não ligava nem um pingo à escola.

Na hora do almoço, quando os outros garotos iam almoçar em casa, eu ia para o prédio dos dormitórios nos fundos da escola e nós, órfãos, comeríamos no refeitório que havia ali. O nosso almoço era um copo de leite, um sanduíche e um pedaço de bolo. Com toda a certeza, o nosso almoço era melhor do que o da maioria dos garotos da vizinhança que iam comer em casa. Depois, voltávamos para a escola para a parte da tarde. Todas as tardes, eu sentia uma vontade louca de fazer gazeta. Como estava quente! Seria melhor ir tomar banho nas docas na Rua 54 e no Hudson. Mas eu bem me lembrava do que havia acontecido na última vez em que fizera gazeta.

Acho que sou o recordista do mundo em matéria de gazeta. Deixei de ir à aula durante seis semanas seguidas. E quem achar que isso não é nada deve levar em conta que eu morava na escola e vol­tava para dormir lá todas as noites. Roubava as cartas que as irmãs mandavam para o Irmão Bernhard, que era o encarregado do dormi­tório, queixando-se da minha ausência. Falsificava as respostas di­zendo que eu estava doente e assinando "Bernhard". Isso continuou assim até que uma das irmãs resolveu ir fazer-me uma visita e tudo foi descoberto. Cheguei naquela noite depois de um dia muito puxa­do, passado nas salas dos cinemas. Tinha visto quatro filmes, um atrás do outro. Irmão Bernhard e Irmã Anne estavam à minha espera na entrada.

—        Aí está o malandro! — exclamou Irmão Bernhard. — Vai aprender a ficar doente, ora se vai! E que era que estava fazendo, meu caro senhor? Por onde é que andou metido?

Quando ele ficava irritado, o seu sotaque galês, que em geral fazia a voz dele suave e bonita, complicava tudo de tal modo que não se entendia mais uma palavra do que ele estava dizendo.

Estava trabalhando, — disse eu.

Trabalhando, hem? Mentiroso! — disse ele, dando-me um tabefe. Levei a mão ao rosto.

Irmã Anne olhou para mim.

—        Francis, Francis, como é que foi fazer isso? — perguntou ela suavemente, quase com tristeza. — Bem sabe que eu tinha muitas esperanças em você.

Fiquei calado. O Irmão Bernhard tomou a me bater.

—        Responda à sua professora.

Olhei-os cheio de raiva e as palavras me saíram da boca aos borbotões.

—        Estou farto de tudo isso — farto da escola, do orfanato, de tudo Não sou senão um prisioneiro aqui dentro. Os presos na cadeia têm mais liberdade do que eu aqui. E eu nada fiz para merecer isso, para merecer cadeia, para ser trancado toda a noite como se fosse um animal feroz. A Bíblia diz que a verdade nos fará livres. Aqui ensi­nam que devemos amar o Senhor pelo muito que nos dá. Fazem-me começar o dia com uma oração de graças — de agradecimento por ter nascido numa prisão, sem liberdade.

Estava quase chorando e com a respiração ofegante.

Havia lágrimas nos cantos dos olhos de Irmã Anne e até Irmão Bernhard estava em silêncio. Irmã Anne chegou perto de mim e me passou o braço pelo ombro.

—        Meu pobre Francis, não pode ver que estamos procurando ajudá-lo? O que você fez foi errado, muito errado.

Agitei-me nos braços dela. Procurei levantar as mãos para en­xugar os olhos, mas as mãos ficaram presas nas dobras do hábito e chegaram à altura do seu coração. Deixei inocentemente as mãos ali. Ela estava de costas para o Irmão Bernhard e este não podia ver o que eu estava fazendo. Ela estava ficando confusa, mas eu olhava inocentemente para ela.

—        Vai-me prometer que nunca mais fará isso, Francis!

Fiquei sem saber de que ela estava falando... Era da gazeta ou...

—        Prometo!

Ela se voltou para o Irmão Bernhard. Estava muito branca e ti­nha a testa cheia de suor.

—        O castigo já. foi suficiente para ele, Irmão Bernhard. De hoje em diante, vai proceder bem. Tenho certeza disso porque ele me prometeu. Vou agora rezar pelo bem dele, — disse ela, encaminhando-se para a porta.

Voltei-me para o Irmão Bernhard.

—        Venha jantar, — disse ele, tomando o caminho do refeitório.

Eu tinha treze anos, era crescido demais para a minha idade e tinha uma grande experiência aprendida na rua. Não faria gazeta naquela tarde, por mais agradável que fosse dar um mergulho dentro da água. Ia ser bom, voltar para a aula e atormentar a minha professora, Irmã Anne, que me fizera saber, sem querer, que as freiras eram mu­lheres. Eu tinha apenas treze anos.

Quando cheguei ao recreio, as filas ainda não estavam forma­das. Havia um jogo de bola perto do portão e todo o mundo gritava. Interessei-me pelo jogo e tão distraído estava que só percebi o que estava acontecendo quando rolei no chão. Jerry Cowan e outro garo­to haviam-me dado una cama-de-gato Quando me levantei, Jerry es­tava rindo.

Que foi que viu de tão engraçado?

Ah! Ah! Isso foi pela bolinha que me jogou. Pensou que não tivesse visto, hem?

Levantei-me e disse:

—        Então estamos quites.

Ficamos olhando o jogo até a escola começar de novo. Éramos muito amigos, Jerry Cowan e eu — ele, filho do prefeito de Nova York, e eu, um filho natural que vivia no orfanato de St. Thérèse, mas que pela graça de Deus freqüentava a mesma escola paroquial que ele.

Eu tinha vivido no orfanato desde quando a minha memória al­cançava. Não era um vida tão ruim quanto muita gente parecia achar. Tinha comida, roupa e instrução, tudo de boa qualidade. Não tinha re­cebido a parte que me cabia de amor da família e de interesse pessoal, mas isso não me interessava muito. Eu tinha sido dotado, entre outras coisas, de uma boa dose de auto-suficiência e de independência, coisas que a maioria só adquire com uma idade bem além da minha.

Eu havia sempre trabalhado num biscate ou noutro e quase sempre emprestava algum dinheiro aos outros garotos da escola que viviam aparentemente melhor do que eu. Sempre sabia o dia em que cada um deles recebia a mesada e, quando não me pagavam o baru­lho era certo Eu havia emprestado vinte centavos a Peter Sampero Na semana seguinte, ele havia fugido de mim e, quando afinal consegui agarrá-lo, não tinha mais um tostão. Mas naquela semana eu tinha de arrancar dele o meu dinheiro.

Naquela tarde, depois da escola, encontrei-o no recreio, com mais dois colegas.

—        Olá, Pete! Cadê meus vinte centavos?

Pete considerava-se um sujeito forte. Sabia de tudo. Era mais baixo do que eu, mais cheio de corpo e mais pesado.

Que é que tem seus vinte centavos?

Você tem de me pagar. Eu lhe emprestei o dinheiro, não lhe dei.

Ora, vá para o inferno com os seus vinte centavos! — ex­clamou ele e acrescentou, voltando-se para os que estavam com ele:

— Isso é o que têm de ruim esses bastardos do orfanato. Nós paga­mos a escola e fazemos contribuições para eles serem mantidos e eles procedem como se fossem os donos de tudo. Escute aqui! Só vou pagar a você quando bem quiser e entender, ouviu?

Aborreci-me. Não me incomodava de ser chamado de bastardo. Já me havia habituado a isso. Não era como um garoto chamado McCracy a quem Irmão Bernhard aconselhara a acrescentar "Júnior" ao nome para que ninguém o julgasse filho natural. Ele se incomo­dava com isso, mas eu não. Ouvira muitas vezes o Irmão Bernhard dizer: "Vocês são os mais felizes. Todos nós somos filhos de Deus, mas vocês só têm como pai a Nosso Senhor". Não me importava de ser chamado bastardo. Mas ninguém podia roubar meu dinheiro e fi­car por isso mesmo.

Atirei-me contra ele. Ele se desviou para o lado e aplicou-me um soco no queixo. Fui ao chão. "Italiano miserável", gritei. Ele se jogou em cima de mim e começou a bater-me no rosto. Senti o san­gue começar a correr-me do nariz. Encolhi a perna e dei-lhe um pon­tapé com toda a força nas virilhas. O rosto dele ficou muito branco e ele me largou e rolou para o lado. Livrei uma mão e dei-lhe um mur­ro no pescoço logo abaixo do queixo. Ele rolou de lado e ficou es­tendido de cara no chão, com os joelhos encolhidos e uma mão nas virilhas. Estava gemendo.

Levantei-me e cheguei perto dele. O sangue que me pingava do nariz caiu nas roupas dele. Meti a mão no bolso dele e tirei um pu­nhado de níqueis. Contei vinte centavos e mostrei aos dois amigos dele.

—        Vocês são prova de que eu só tirei o meu dinheiro. Está aqui. Vinte centavos. E é melhor nenhum de vocês achar ruim, senão eu faço o mesmo que fiz com ele.

Sai, com o nariz apertado de encontro ao braço, e fui para o bi­lhar de Jimmy Keough. Jimmy estava sentado atrás do balcão dos cigarros, com uma pala verde sobre os olhos.

Que foi que houve com você, garoto? — perguntou ele, rindo.

Nada demais, Sr. Keough. Um camarada pensou que me po­dia roubar, mas eu mostrei que ele estava muito enganado.

Fez muito bem, Frankie. Nunca consinta em ser roubado.

No momento em que isso acontecer, você está perdido, pois todos vão querer aproveitar. Agora, vá lavar-se lá nos fundos e, depois, trate de fazer a limpeza. — Já ia saindo quando o ouvi dizer a um homem que estava perto dele. — Esse garoto vai longe. Tem apenas treze anos, mas sabe calcular o que tenho de receber e pagar nas pu­ les dos cavalos melhor do que eu.

O lavatório tinha um cheiro de sarro e de urina. Lavei as mãos e o rosto na pia e enxuguei com a fralda da camisa. Depois, fui para o bilhar e comecei a fazer o meu trabalho do dia.

As tardes que eu passava no bilhar de Keough eram o tempo melhor do meu dia. Começava varrendo tudo. Havia oito mesas de bilhar e eu varria o chão entre elas e embaixo delas. Depois escovava o feltro das mesas com muito cuidado para não estragar o pano. Em seguida, passava um pano na madeira das mesas. Quando acabava isso, ia trabalhar no balcão dos refrigerantes e da cerveja. Era no tempo da Lei Seca e a cerveja era guardada lá embaixo no porão. Quando algum freguês queria uma cerveja ou uma dose de uísque, pedia a Jimmy e ele, quando estava muito ocupado, me mandava ir buscar. Às vezes, escondia duas ou três garrafas embaixo do balcão.

Às quatro horas, o telefone começava a tocar, dando os resulta­dos das corridas. Eu então ia marcar os resultados e os rateios num quadro-negro que havia nos fundos e que ficava num canto escondi­do, de modo que só pudesse ser visto por quem já soubesse e fosse olhar. Arrumava as bolas de sinuca nas mesas e ia dar recados e comprar coisas para os fregueses. Tinha no bilhar uma caixa de en­graxate e, Se alguém queria limpar os sapatos, era comigo.

Ganhava três dólares fixos por semana e o mais que pudesse fazer de gorjetas. Regulava fazer de seis a oito dólares todas as se manas Nas férias, Jimmy ia-me mandar pegar o jogo pequeno nas garagens Havia dito que eu ganharia com isso de dez a quinze dóla­res por semana. Às seis e meia, Jimmy me dava todos os papéis do Jogo para eu fazer os cálculos. Às sete horas, eu saía e ia jantar no orfanato. Depois d jantar, ainda poderia passar umas duas horas la, mas Jimmy, não sei por que, nunca permitiu que eu pusesse os pés lá à noite.

Peter Sampero não apareceu na escola no dia seguinte, mas a mãe dele entrou no meio da manhã na sala de aula e falou com Irmã Anne sem tirar os olhos de cima de mim. Irmã Anne mandou-a ir fa­lar com a Irmã Superiora. Um pouco depois, uma moça chegou com um recado para Irmã Anne.

—        Mary Peters olhará a classe enquanto eu estiver ausente — disse Irmã Anne. — Francis, venha comigo.

Segui-a pelo corredor até à sala da Irmã Superiora. Entramos. A Irmã Superiora, o Irmão Bernhard e a Sra. Sampero estavam à nossa espera. A Sra. Sampero estava falando:

—        Se não tomarem providências   com esses   desordeiros, mandando-os para o lugar deles...

Calou-se ao ver-me entrar.

—        Venha cá, Francis, — disse a Irmã Superiora.

Obedeci.

Que quer dizer isso que estou sabendo? Você lutou com Pe­ter e machucou-o muito. Por quê? — perguntou ela, com voz calma e bondosa.

Ele me devia vinte centavos, não quis pagar e ainda por cima me chamou de bastardo, — disse eu, sabendo que com isso ga­nharia alguma simpatia.

Francis, você tem de aprender a dominar-se. Os insultos não maltratam e Jesus nos mandou que perdoássemos as ofensas. Agora, quero que peça desculpa à Sra. Sampero.

Pedir desculpas não custava nada. Voltei-me para a mãe de Pe­ter e disse:

—        Desculpe, Sra. Sampero. Não tive a intenção de machucar Peter.

Ela nada me disse.

E agora, Francis, — disse a Irmã Superiora, — como castigo por você ter brigado, disse ao Irmão Bernhard que não deixasse você ir à rua depois da escola durante quinze dias.

Quinze dias! — exclamei. — Não podem fazer isso comigo!

Não podemos? — exclamou Irmão Bernhard. — Por quê?

Porque então alguém pegará o meu emprego no bilhar de Jimmy Keough.

Está empregado então? — continuou ele. — E pode-me di­zer o que é que faz lá?

Varro a casa, limpo e dou recados.

É mesmo? Pois vai varrer, limpar e dar recados comigo!

Pode voltar para a aula, Francis, — disse a Irmã Superiora.

Venha, Francis, — disse a Irmã Anne.

Segui-a em silêncio pelo corredor. No patamar da escada que descia para a sala de aula, ela parou, voltou-se para mim e tomou a minha mão. Estava dois degraus abaixo de mim e o rosto dela estava à altura do meu.

—        Não fique triste, Francis. Tudo vai acabar bem.

Antes que eu soubesse o que estava fazendo, beijei-lhe a mão.

—        Gosto da senhora. Só a senhora aqui é justa e compreende as coisas. Gosto da senhora.

Ela se inclinou para mim com os olhos cheios de lágrimas e me beijou dizendo:

—        Pobre garoto...

Depois, virou-se, baixou a cabeça e nós continuamos em silên­cio para a sala de aula.

O problema de evitar o Irmão Bernhard foi muito simples e, ao fim de dois ou três dias, funcionou que era uma maravilha. Apresen­tava-me a ele no dormitório. Depois, saía pela janela e descia por um poste, indo tratar da minha vida. À noite, voltava pelo mesmo cami­nho e nada acontecia.

Foi numa dessas ocasiões que fiquei conhecendo Silk Fennelli.

Era o grande figurão do nosso bairro. Controlava tudo: bebidas, jogo e as contribuições do comércio. Era o homem mais respeitado e temido no distrito. Via-o de vez em quando, pois costumava passar pelo bilhar de Jimmy para tratar de negócios. Andava sempre acompanhado dos seus homens. Era perigoso, valente e esperto. Não tinha medo de nada nem de ninguém. Era o meu herói.

Às vezes, quando acabava cedo o meu serviço no bilhar, pega­va a caixa de engraxate e ia fazer algum dinheiro extra. Naquela tar­de, entrei no bar clandestino da esquina da Broadway com a Rua 65. Era nesses bares que se podia ganhar mais dinheiro.

Perguntei aos fregueses que estavam no bar, um por um: "Vai engraxar?"

O homem do bar, gordo e careca, brigou comigo:

—        Dê o fora, garoto! Quantas vezes tenho de dizer a vocês que não venham aborrecer os fregueses? Saia daqui antes que eu lhe dê um pontapé no traseiro!

Não respondi nada e, virando-me, tornei o caminho da porta. Quando fui passando, algum engraçadinho que estava no bar achou de estender o pé à minha frente. Tropecei e caí. A caixa me escorre­gou do ombro, e os vidros de tinta se quebraram, sujando o chão to­do. Fiquei um instante estendido no chão, sem ação.

De repente, agarraram-me pelo pe Era o homem do bar.

—        Vamos! Saia logo antes que eu perca a paciência! — excla­mou ele, arrastando-me para a porta.

Quase na porta, voltei a mim do atordoamento e desvencilhei-me dele, dizendo:

Quero minha caixa!

Vá saindo! Assim vai aprender a não vir mais aqui! Saia!

Não saio sem minha caixa!

Esquivei-me dele e voltei para o salão, onde comecei a meter na caixa as escovas, as latas de graxa e os panos que se haviam espa­lhado pelo chão.

O homem do bar me pegou no momento em que eu me ia le­vantando. Deu-me um tapa na cabeça e meus ouvidos começaram a zumbir.

—        Vou ensinar vocês, pestinhas, a não botarem mais os pés aqui!

Bateu-me de novo e me segurou pelo pescoço para que eu não pudesse mover o corpo. Procurei livrar-me dele e dar pontapés, mas estava bem seguro.

—        Largue-o, Tong. Quero engraxar os sapatos, — disse uma voz calma e bem modulada de um dos reservados do lado da parede.

O homem do bar e eu nos viramos. Ele ficou paralisado, mas ainda me segurava. Não sei quem de nós dois ficou mais surpreso. Vi um homem esbelto e simpático de trinta e cinco ou quarenta anos, que estava sentado num dos reservados, com uma das mãos em cima da mesa e a outra brincando com um canivete pendente de uma cor­rente que lhe passava pelo colete. Estava com um terno cinza-escuro, um chapéu de feltro elegante e lustrosos sapatos pretos. Tinha os o-lhos meio fechados e um bigode curto se mostrava sobre os lábios bem feitos. Era Silk Fennelli.

—        Está bem, Sr. Fennelli, — disse o homem do bar, deixando-me e voltando para o seu balcão.

Enxuguei o rosto com a manga e aproximei-me do reservado. Havia duas pessoas em companhia dele: um homem moço e bem vestido e uma mulher muito bonita.

Não posso engraxar os sapatos do senhor, — disse eu.

Por quê?

Derramei toda a tinta preta no chão.

Ele meteu a mão no bolso, apanhou uma carteira, tirou uma no­ta de cinco dólares e me entregou, dizendo:

—        Vá comprar então.

Olhei para a nota e, sem dizer uma palavra, dirigi-me para a porta. Um empregado havia começado a limpar o chão com um pano molhado. Ao sair, ouvi o outro dizer:

Aposto cinqüenta contra cem como ele não vai voltar, Silk.

Casado, — disse Fennelli. rindo.

Acho que ele nunca viu tanto dinheiro em toda a sua vida. — disse a moça.

Talvez tenha razão, — disse Silk. — Quando eu tinha a ida­de dele, eu também não havia visto ainda tanto dinheiro.

Não ouvi mais porque já havia chegado à rua. Quando voltei, estavam comendo. Coloquei o troco em cima da mesa e disse:

—        Desculpe ter demorado, mas o homem da loja não tinha tro­co para os cinco e eu tive de correr o quarteirão todo para trocar.

Depois disso, ajoelhei-me no chão e comecei a limpar os sapa­tos dele.

O outro homem puxou a carteira e tirou algumas notas que en­tregou a Fennelli. Ele guardou-as no bolso sem contar e disse:

—        Acho que já aprendeu a não discordar da opinião de um téc­nico.

Quando acabei com um pé, bati na caixa e ele botou o outro pé.

Como é seu nome, garoto? — perguntou ele.

Francis Kane. Mas pode chamar-me de Frankie. Todos os meus amigos me chamam Frankie.

Ah, sou então seu amigo? Tenha cuidado, garoto. A minha amizade não é uma coisa fácil.

Não sei muito bem o que está dizendo, mas o senhor comigo é OK.

Quando acabei o lustro, o homem e a moça se levantaram.

Bem, vamos indo, Silk. Até logo.

Até logo, — disse Silk, levantando-se para despedir-se de­les. Logo que saíram, perguntei:

Recebeu, Sr. Fennelli?

Recebi o quê, garoto?

A aposta. Eu ouvi. Ele pagou?

Ouviu mesmo? — perguntou Fennelli, rindo.

Claro que ouvi. Não sou trouxa. Sei como é a escrita.

Fennelli tornou a rir e disse:

Sente-se aqui e coma um sanduíche. De onde é você?

Do Orfanato de St. Thérèse.

Está bem, já que você sabe a escrita, — disse ele, falando como se eu fosse um igual. — Você não me é desconhecido. Onde foi que já o vi? Nos brinquedos?

Estava-se referindo às lojas que havia transformado em peque­nos playgrounds no nosso distrito. Todos diziam que era uma grande coisa que ele estava fazendo pelas crianças do bairro, porque isso as afastava da rua. Keough dizia, porém, que não era só isso. Com a-quilo, Fennelli estava educando os seus futuros fregueses. Havia nas lojas toda a espécie de jogos com que os garotos podiam divertir-se sem gastar um tostão — jogos de perícia e de sorte que, fora dali, custavam bom dinheiro. A partir de uma certa idade, os garotos não podiam mais entrar nas lojas e iam então procurar os lugares onde se tinha de pagar para jogar. Sim, Fennelli era tão importante que até mandava os seus fregueses para a escola. Mas, como muita gente di­zia, alguém tinha de fazer aquilo e ele com certeza merecia a oportu­nidade porque era um bom sujeito.

—        Não, — disse eu. — Trabalho para Jimmy Keough.

Fennelli chamou o garçom e eu pedi um sanduíche de rosbife e uma garrafa de cerveja.

—        Você ainda é muito pequeno para tomar cerveja, — disse Fennelli. Mandou o garçom trazer-me um refrigerante.

Comi rapidamente e me levantei.

Obrigado, Sr. Fennelli.

De nada, garoto, — disse ele, sorrindo. — Já engraxei sapa­tos como você. — Tirou algumas notas do bolso e me entregou. — Tome, pegue isso e vá-se embora.

Sim, senhor, — disse eu e acrescentei, quando vi que havia cinco notas: — Mais uma vez, obrigado.

Aqueles camaradas gostavam de que se agradecesse Fazia-lhes bem, não custava nada e eu sabia que valia a pena tratar bem Fennel­li. Por isso, agradeci mais uma vez e saí.

Ray Callahan estava na esquina com a sua caixa de engraxate. Fui falar com ele. Ray era um bom rapaz. O pai dele era um bêbado. A família vivia do socorro do governo. Ray entregava à mãe tudo o que ganhava, mas ela também gastava dinheiro em bebida tanto quanto o marido.

Alô, Frankie, — disse ele.

Alô. Tudo bem?

Mais ou menos. Só fiz quarenta centavos hoje à tarde.

Mostrei-lhe a minha nota de cinco dólares e ele arregalou os olhos.

Epa! Como foi que você conseguiu isso?

Isso depende dos conhecimentos que a gente faz, — disse eu, rindo e contei tudo o que acontecera.

Que sorte a sua! — comentou Ray.

Saímos juntos pela rua. Estava começando a escurecer. As ja­nelas iam-se acendendo uma por uma.

—        Quer subir comigo? — perguntou ele. — Isto é, se você não tem outra coisa para fazer.

Eu sabia que ele queria que eu subisse para que a mãe não ba­tesse nele por não ter ganho muito dinheiro como engraxate.

—        OK. Posso subir.

Logo que chegamos ao corredor, ouvimos os gritos do pai e da mãe que estavam brigando.

—        Eles nunca param! Qual! Acho que hoje não me livro mes­mo!

Eu nada disse e nós começamos a subir as escadas. No primeiro andar, um homem saiu de uma porta, passou por nós e desceu as es­cadas. Havia deixado a porta entreaberta e uma voz de mulher per­guntou lá de dentro:

É você, Ray?

Sou, sim, — disse ele, parando. E explicou-me: — É Mary Cassidy. Costumo fazer compras para ela.

Ela chegou à porta.

Quer ir comprar cerveja para mim, Ray?

Pois não, — disse Ray. Colocou a caixa de engraxate no chão, tomou o dinheiro da mão dela e, pedindo-me que esperasse por ele, desceu as escadas.

Mary Cassidy olhou para mim e disse:

—        Não precisa esperar aí no corredor. Traga as caixas aqui pa­ra dentro e venha sentar-se.

Peguei as caixas e entrei. Ela me mostrou uma cadeira.

—        Sente-se até Ray voltar.

Sentei-me. Ela andou de um lado para outro e em dado momen­to perguntou:

Como é? Ele ainda não voltou?

Não, senhora, — disse eu olhando para ela.

Naquele momento, parecia até bonita, com o rosto e a boca pintados. Tinha cabelos claros levemente ondulados. Olhei-a tanto que ela chegou a ficar um pouco nervosa. Havia gotas de suor na testa dela. Os olhos eram verde-azulados e ela era um pouco alta. Saberia Ray o que ela era? Como era que eu poderia falar com ela? Eu nunca... Mas tinha cinco dólares no bolso e isso me deu cora­gem.

Tenho dois dólares no bolso, — disse eu a ela.

E daí? — perguntou ela, olhando-me com curiosidade.

Eu não sabia bem o que devia dizer mas fiquei olhando para e-la. Por fim, ela disse:

Você é bem menino ainda, não é?

Tenho quinze anos, — disse eu, achando mais fácil mentir todo o tempo. Além disso, eu estava quase convencido mesmo de que tinha quinze anos.

Você já... alguma vez?

Claro, — disse eu, nervosamente. — Uma porção de vezes.

OK, venha, — disse ela, levando-me para o quarto. — Onde está o dinheiro?

Tirei dois dólares do bolso e entreguei a ela, sentindo a mão trêmula. Ela pegou o dinheiro e guardou embaixo do travesseiro. Depois, deitou-se.

Eu sentia os joelhos tremerem e estava muito nervoso, muito amedrontado.

Ela ficou impaciente.

—        Depressa! Ray pode voltar a qualquer instante.

Não, não adiantava. Eu estava nervoso demais e tivemos de desistir. Fiquei ali, olhando-a. Quando ela voltou um instante as costas, meti a mão por baixo do travesseiro e peguei meu dinheiro. Não ia gastar dois dólares à-toa. Ela não me viu e eu guardei o di­nheiro no bolso.

Fomos para a sala e ela me disse, rindo:

—        Volte quando crescer um pouco mais, está bem? Afinal, um garoto não pode fazer o trabalho de um homem, não é mesmo?

Fiquei branco de raiva e tive vontade de bater nela com a mi­nha caixa de engraxate. Ela devia ter sentido isso porque recuou um passo. Nessa momento, a porta se abriu.

Era Ray.

—        Olhe a cerveja, Mary.

Olhei mais uma vez para ela, peguei minha caixa e saí para o corredor. Ray disse alguma coisa e ela riu. Chegando à porta, deu dez centavos a Ray por ter ido comprar a cerveja. Já ia fechar a por­ta, quando se lembrou de alguma coisa e disse a Ray: — Tome aqui também dez centavos para seu amigo que ficou esperando você.

Em seguida, fechou a porta. Tomei a moeda e joguei-a na por­ta.

— Bandida, ordinária! — gritei e, sem olhar sequer para Ray, desci as escadas e sai da casa.

 

Mais quinze dias e as férias começariam. Estava ansioso por is­so, para que pudesse trabalhar mais para Keough e ganhar dinheiro de verdade:

Naquela tarde, saí da escola com Jerry. Ele pareceu surpreso quando saí com ele pelo portão.

Você não está proibido de sair da escola, Frankie?

Não estou mais. Ontem foi o último dia.

Vai fazer alguma coisa especial hoje?

Por quê?

Por nada. Curiosidade apenas.

Andamos alguns minutos sem dizer uma palavra. Por fim, Jerry disse:

Frank, você gostaria de ir passar este verão no campo comi­go?

Deixe de brincadeira.

Não estou brincando não, é verdade. Falei com papai e ele me disse que levasse você para jantar lá em casa esta semana para conversarmos sobre isso.

Tolice Não me deixariam ir de qualquer maneira.

Deixariam se meu pai pedisse. Sabe quem é meu pai? — perguntou Jerry.

Sabia quem era o pai dele. Era um homem que todos conheci­am, o grande Jerry Cowan, o sorridente prefeito de Nova York. O re­trato dele saía todos os dias nos jornais — com o cravo na lapela, os dentes à mostra num riso permanente, apertando as mãos de uma de­legação ou de um visitante ilustre. Sem dúvida alguma, o pai dele poderia conseguir o que quisesse.

Chegamos à porta do bilhar e eu parei. Olhei para dentro. Esta­va muito escuro e eu quase nada pude distinguir. Pensei no que era passar o verão ali com aquele cheiro de cerveja azeda e de urina no lavatório e em como seria diferente se eu fosse passar o verão no campo com Jerry. A casa deles devia ser ótima, com criados e tudo mais. Com certeza, podia-se pescar, nadar e fazer muitas outras coi­sas assim. Fiz uma imagem mental do mergulho num lago. Eu nunca havia entrado num lago. Devia ser formidável. Já havia ido duas ou três vezes a Coney Island para tomar banho no mar, mas onde eu na­dava mesmo era no rio, no cais da Rua 54. Um verão no campo de­via ser mesmo uma maravilha. Mas, apesar disso, disse a Jerry:

—        Muito obrigado, mas não posso aceitar. Eles... não é isso... tenho um emprego aqui e tenho de trabalhar muito neste verão para ganhar o dinheiro de que ando bem precisado. E de qualquer modo não gosto do campo. Sempre fico com saudade da cidade quando vou para lá.

Jerry deu uma risada. Não tinha nada de tolo o meu amigo. Sa­bia muito bem o que eu estava pensando. Era um amigo estranho. Não era pessoa de fazer amizade facilmente, ainda que não fosse or­gulhoso. Era, isso sim, diferente. Não sabia por que ele gostava de mim, mas se eu pudesse olhar para o futuro naquele tempo e saber o que Jerry e eu... mas deixemos isso para quando chegarmos lá. Já é bem ruim podermos recordar o que aconteceu; pior ainda seria se a gente pudesse saber do que vai acontecer.

Está bem, — disse ele, —já que é assim que você quer. Mas isso não impede você de jantar uma noite destas lá em casa.

Vou, sim, — disse eu desajeitadamente sem saber se devia agradecer-lhe novamente ou não. Cheguei afinal à conclusão de que já havia agradecido e disse: — Até à vista. Tenho de entrar para tra­balhar.

E fiquei olhando enquanto ele descia a rua e dobrava a esquina.

Entrei no bilhar. O relógio da parede marcava 3h15m. Era cedo ainda. Eu começava a trabalhar às quatro horas e naquele momento não estava com muita vontade de fazer coisa alguma. Procurei Jimmy. Estava falando com alguém e não me viu. Sai então, andei um pouco pela rua e fui-me sentar ao sol na escada da frente de uma velha casa de cômodos para esperar a minha hora de entrada. Tornei a pensar em como seria bom ir para o campo com Jerry.

Acendi um cigarro e estava esperando que o tempo passasse quando ouvi uma algazarra do outro lado da rua. Dois garotos que eu conhecia tinham acuado num canto um garotinho judeu e estavam mexendo feio e firme com ele. Olhei para eles sem muito interesse. Estava com muita preguiça para ir divertir-me junto com eles. Os dois tinham o judeu encostado à parede e o atormentavam.

Meio homem!

Assassino de Cristo!

O garoto os enfrentava muito sério, com o rosto pálido mas calmo. Os olhos lhe faiscavam de ódio. Deixara no chão o livro que estava levando e se encostava bem à parede. Levantou os pu­nhos fechados. Era menor do que eu, louro, de olhos azuis e fei­ções delicadas.

Falou afinal:

—        Numa luta honesta, posso bater qualquer de vocês! Os outros deram uma gargalhada.

—        A única coisa que você pode fazer conosco é lamber os nos­sos pés!

Levantei-me e atravessei a rua. Aquilo ali prometia.

Alô Frankie, — disse um dos garotos.

Alô, Willie.

Vamos dar uma surra no judeuzinho! — gritou outro rapaz da turma.

Não, — disse eu. — Não ouviram o que ele disse? Disse que pode bater qualquer de nós. Não vão deixar isso sem resposta, vão?

Um de nós tem de lutar com ele!

Os outros me olharam desconfiadamente.

Quem é que vai ser? — perguntei. Não houve resposta.

Está bem. Serei eu então.

Abriram-me caminho e eu passei. O garoto olhou para mim. Eu sabia que ele estava medindo a minha força.

Levantei os punhos. Ele avançou e atacou desordenadamente e eu me esquivei com a maior facilidade. Não sabia lutar. Só fazia a-vançar e desfechar uns socos que eu bloqueava sem qualquer esforço.

Os outros começaram a gritar.

Duro nele, Frankie!

Acabe logo com isso

Recuei até quase à beira do passeio quando percebi que ainda estava com o cigarro na boca. Resolvi não tirá-lo para mostrar aos outros que sabia o que estava fazendo. Deu outro soco e não me al­cançou. Estava começando a respirar com dificuldade. "Ora essa!", pensei eu. "Ele sabe que vai perder para mim. Por que é então que não foge ?" Fingi que havia escorregado no passeio e o cigarro me caiu da boca. Quando levantei o corpo, ele ainda estava ali à minha espera. Avancei para ele, dei-lhe um direto no estômago e, logo de­pois, um cruzado, de direito no queixo. Ele caiu de costas. Os garo­tos começaram a dar pulos de satisfação. "Dê-lhe um ponta-pé!" gri­tavam. O garoto tentou levantar-se mas não conseguiu. Ficou ali a olhar-me. Baixei os braços.

— Agora é a nossa vez! gritou Willie.

Os outros começaram a avançar para ele. Mas eu tomei a frente e disse.

Agora, chega. Vocês já se divertiram. Agora, dêem o fora!

Saíram ainda discutindo a luta e, rindo, dobraram a esquina. Sentei-me então no passeio ao lado do garoto e ofereci-lhe um cigar­ro do meu maço. Ele não aceitou e agradeceu. Acendi o meu cigarro. Ao fim de algum tempo, ele se sentou no passeio e disse:

Obrigado.

Por quê? Pelo soco que lhe dei?

Não, por ter-me livrado daquela turma.

Mas não são ruins aqueles garotos. Estavam apenas queren­do se divertir. Não tinham intenção nenhuma.

Belo divertimento! — exclamou ele, levantando-se e apa­nhando o livro.

Escute, — disse-lhe eu então, — se você quiser continuar a viver neste bairro, terá de aprender a lutar.

Ele nada disse, mas o jeito pelo qual cerrou os queixos mostra­va que era isso mesmo que ele ia fazer.

Nesse momento, o Padre Quinn apareceu na rua e eu me levantei.

Alô, Francis, — disse ele.

Alô, Padre, — exclamei, levando a mão à cabeça numa meia continência.

—        Será que você estava brigando com esse garoto, Francis?

Antes que eu pudesse responder, o garoto disse:

Nada disso. Não estávamos brigando. Francis estava era me dando uma lição de box.

Está bem, — disse o Padre Quinn, sorrindo, — mas não o deixe entusiasmar-se muito com as lições porque às vezes se esquece e pode passar da conta. Como é seu nome, meu filho? Não me lem­bro de já tê-lo visto na missa.

Sou judeu, — disse o outro, calmamente. — Meu nome é Martin Cabell.

Ah! Então deve ser o filho de Joe Cabell não é?

Sou, sim.

Conheço seu pai. É um bom homem. Quer dar-lhe lembran­ças minhas?

—. Pois não. E muito obrigado, Padre.

—        Bem, já vou indo. Não se esqueçam do que eu disse: nada de brigas. E mais uma coisa, Francis, tire logo esse cigarro do bolso se não vai abrir um buraco nas calças.

Tirei o cigarro o bolso. Julgava que ele não me houvesse visto escondê-lo. Martin e eu nos olhamos e rimos.

Parece ótima pessoa, — disse Martin.

E é mesmo.

Descemos a rua juntos

Mora aqui por perto? — perguntei-lhe.

— Moro, sim. Meu pai é dono do drugstore da esquina da Rua 59 com a Broadway. Moramos em Central Park Oeste.

Chegamos â esquina da Nona Avenida. Olhei para a vitrina de uma joalheria e vi que já passava das quatro.

Tendo de ir correndo, Martin Está na hora do meu trabalho.

Quando acabar, vá até ao drugstore de meu pai e tome um sorvete por minha conta.

Está bem. Até logo.

Poucos passos adiante, comecei a correr. Não queria chegar atrasado para Jimmy não se aborrecer.

 

O bilhar estava vazio quando cheguei. Naquela tarde, os fre­gueses não estavam querendo aparecer. Fiz a limpeza rapidamente e depois pe os livros para fazer os cálculos quando os resultados che­gassem

Mais ou menos às cinco e meia, chegaram alguns fregueses e eu tive de descer para pegar algumas garrafas de cerveja. Quando subi, encontre; Silk Fennelli conversando com Keough. Logo que ele me viu disse:

A Frankie

Alô, Sr. Fennelli — respondi, muito satisfeito de que ele ainda se lembrasse de mim.

Ele continuou a conversar com Keough. Quando acabou, che­gou aonde eu estava.

Que tal um daqueles lustros especiais Frankie?

Neste momento — disse eu e fui buscar a caixa no armário, correndo

Foi um lustro especial mesmo. Esfreguei até que podia ver qua­se meu rosto no couro.

Vi que ele ficou satisfeito. Deu-me meio dólar e me perguntou se eu havia sido posto para fora de mais algum salão.

Disse que não e ri. Keough apareceu e Fennelli contou o que havia acontecido. Ambos riram

Guardei a caixa e voltei a fazer os cálculos. Keough e Fennelli chegaram perto e começaram a olhar.

É ele que faz os seus cálculos, Jimmy?

É, sim, e é muito bom nisso. Sabe onde tem a cabeça com esses números todos.

Continue assim, rapaz, — disse-me Fennelli sorrindo. Um dia, você será um grande homem nesse negócio.

Depois disso, deu adeus e saiu, tomando o carro que estava en­costado ao passeio

"Grande homem nesse negócio!", pensei, com as palavras de Fennelli nos ouvidos. "Está certo, serei o maior jogador da cidade, isso é que é. Só que para mim não será jogo. Dirigirei os negócios como Silk Fennelli. Os outros farão o trabalho para mim e eu só receberei o creme. E vou ter um carro ainda maior do que o de Fennelli...

E assim com os meus sonhos a tarde passou e, de repente che­gou a hora de ir para casa.

Quando saí, tinha começado a chover. Não me deu vontade de voltar para jantar. Fui andando na direção da Broadway. Quando cheguei ao drugstore de Cabe estava já bem molhado. Entrei e logo Martin veio ao meu encontro.

—        Que bom você ter vindo, Francis Vamos tomar aquele sor­vete?

O meu foi de chocolate. Quando acabamos, ficamos por ali conversando. Ele era um ano mais moço do que eu, mas cursava o mesmo ano na escola pública. Em dado momento, uma mocinha se aproximou dele e disse:

—        Ande depressa, Marty, senão chegaremos atrasados para o jantar.

Ele nos apresentou.

—        Frankie, está é minha irmã, Ruth.

Alô, — disse eu.

Ela sorriu para mim.

Muito prazer.

Devia ter uns quinze anos e era realmente bonita — com os ca­belos louros cortados quase como os de um rapaz e os mesmos olhos azuis de Martin. Como ele, tinha também jeito de olhar diretamente quando falava. Eu era um pouco mais alto do que ela quando Marty perguntou qual era a minha idade, eu disse dezesseis, na esperança de impressioná-la.

Martin contou-lhe o que havia acontecido naquela tarde e ela se afastou depois de me olhar de uma maneira estranha. Notei o fato, mas nada disse a Martin.

Escute aqui, — disse-me ele. — Não disse que ia me ensinar a lutar? Eu tenho luvas de box em casa. Por que não vem comigo pa­ra dar-me uma lição? Vá jantar e depois apareça lá em casa.

Não sei se posso. Moro no orfanato e se aparecer lá para jantar, talvez não possa mais sair.

Tenho uma idéia. Espere um instante.

Foi para os fundos do drugstore e eu o vi conversar com o pai do outro lado da divisão envidraçada. Apontou-me. O pai disse al­guma coisa e ele voltou para onde eu estava.

—        Já arranjei tudo, Frankie. Depois, teremos a nossa aula. Vai jantar em casa conosco.

Eu não queria a princípio, mas acabei concordando.

O pai e a mãe dele não jantaram em casa naquela noite, O jan­tar nos foi servido aos três, Marty, Ruth e eu, por uma empregada de vinte e poucos anos chamada Julie. Era uma franco-canadense e fa­lava com um sotaque bem divertido. Sentou-se para jantar conosco. A comida era simples e nós acabamos prontamente. Fomos depois para a sala. Tinham um rádio novo e pudemos pegar com ele um pouco de música. Era a terceira vez que eu ouvia um rádio e achei bem interessante. Uma hora depois do jantar, Marty sugeriu que descêssemos para fazer um pouco de box.

Concordei. Ruth ficou na sala e disse que ia ler um pouco.

Havia embaixo uma boa sala com as paredes tomadas por es­tantes cheias de livros, um sofá e algumas cadeiras espalhadas. Jun­tamos as cadeiras num canto e calçamos as luvas.

—        Levante as mãos, — disse-lhe eu. — Faça o movimento com a esquerda. Mantenha a direita para trás, perto do queixa... assim.

Fiquei em posição de luta. Ele me imitou. Recuei um pouco e olhei-o. Movi-lhe a mão esquerda mais para fora e encostei-lhe o cotovelo mais para o corpo.

OK — disse eu. — Agora, você só precisa é acertar-me.

Não quero machucá-lo, Frankie.

—        Não se preocupe que isso não vai acontecer

Ele baixou a esquerda e golpeou com a direita. Bloqueei o soco e aproximei-me.

Não é assim. Você deixou a guarda inteiramente aberta.

Quando você baixa a esquerda, eu posso entrar e atingir você assim, está vendo? Tem de bater também com a esquerda para manter o ad­versário afastado, entendeu?

Entendi, — disse ele. E lembrou-se durante alguns segun­dos, mas depois esqueceu. Deixei-o dar mais um dois socos e errar.

Depois, parei para repetir o conselho.

Não se esqueça de ficar com a esquerda levantada.

Tínhamos começado de novo quando a porta se abriu. Olhei au­tomaticamente por cima do ombro dele. Ruth entrou. Eu estava o-lhando para ela ele me atingiu no ombro. Sem pensar, dei um cruza­do com a direita e atingi-o no olho. Marty foi ao chão.

Ruth correu para ele, que estava sentado no chão, e olhou para mim.

—        Animal! Não pode escolher um do seu tamanho?

Fiquei tão confuso que não pude falar.

—        file não teve culpa, Ruth — disse Marty. — Pedi a ele que me ensinasse a lutar.

—        Mas veja como ficou seu olho. Agora, vai ficar todo roxo.

Disso não havia dúvida. Devia estar uma beleza no dia seguin­te. Consegui falar afinal.

Desculpe, Marty. Não queria bater com tanta força.

Ajudei-o a levantar e ele disse rindo:

Não tem importância.

Julie ouviu o barulho e chegou à sala.

—        É melhor botar uma toalha molhada aí em cima, senão vai inflamar.

Ele tirou as luvas e disse:

—        OK. O resto da lição fica para depois. Espere-me aqui que eu não demoro.

Saiu da sala com Ruth e logo depois ouvi a água correr no ba­nheiro.

Eu ainda estava com as luvas. Julie pegou as luvas que Marty deixara cair no chão e perguntou:

—        Posso experimentá-las?

À vontade. Não são minhas.

Ela calçou as luvas e disse

A gente fica meio sem jeito com elas.

Só no princípio. Depois, a gente se acostuma.

Meu pai sempre disse que eu devia ser menino. Sempre gos­tei das coisas que os rapazes gostam.

Fiquei calado.

Ensine-me box, Frankie De verdade não... Só para eu ter uma idéia...

OK, disse eu.

Mas não me acerte, veja lá. Tenho muito medo de me ma­chucar, principalmente aqui, — disse ela, colocando as mãos por baixo dos seios e levantando-os

Gaguejei uma resposta.

— Está bem. Procure dar-me alguns socos e pronto.

Ela estendeu os braços de maneira engraçada e tentou desfechar alguns socos que não acertaram. Bloqueei-os e então avancei e entrei em clinch. Ela prendeu os braços debaixo dos cotovelos de encontro ao seu corpo. Estava muito junto a mim. Aquela luta com uma moça teve um mau efeito sobre mim. Era excitante demais.

— Você é muito forte, — disse ela, apertando o corpo contra o meu.

Ela era um pouco mais alta do que eu — com cabelos fartos e pretos e boca entreaberta. Os olhos tinham um ar estranho. Ficamos assim um instante e de repente percebemos que Ruth estava a obser­var-nos da porta. Separamo-nos imediatamente.

Ela me pediu que eu lhe ensinasse box também, — disse eu, vermelho e sentindo uma zoeira nos ouvido

É então um verdadeiro Gene Tunney, não é? — disse Ruth ironicamente. — Martin que falar com você.

Tirei as luvas e entreguei-as a Julie e, depois fui com Ruth até ao quarto de Martin. Ele estava deitado na cama com uma toalha molhada no olho.

—        Sinto muito que isso tenha acontecido, Frankie Mas apareça amanhã no drugstore de meu pai e ficaremos de novo juntos.

OK, Marty. Desculpe tê-lo machucado. Até amanhã.

Ruth me levou até à porta.

Boa noite, Ruth.

Boa noite. Escute pode-me fazer um favor?

Claro.

—        Então afaste-se de meu irmão. Você é grosseiro e vulgar e só poderá ser ruim para Martin.

Disse isso com a maior aspereza e bateu-me a porta na cara. Comecei a descer vagarosamente o corredor.

Psiu! — Era alguém que me chamava. Olhei e vi Julie que estava em outra porta mais adiante. No primeiro momento, fiquei sem saber o que ela estava fazendo ali.

Venha cá, — disse-me ela com voz nervosa.

Entrei. Era a cozinha do apartamento de Martin, depois da qual ficava um pequeno quarto, bem afastado do resto do apartamento. Fez-me entrar com ela e fechou a porta.

—        Isto aqui é meu quarto, — disse ela em voz baixa. — Não faça barulho.

Não fazer barulho... Eu estava tão nervoso que não podia nem falar e fiquei olhando para ela. Apagou a luz e aproximou-se de mim. Passou os braços pelo meu corpo e beijou-me. Senti-lhe a lín­gua nos lábios e as mãos no corpo. Passei também as mãos pelo cor­po dela e Julie caiu na pequena cama...

Era meia-noite quando sai de lá. Indo pelas ruas, molhado da chuva e cansado, sentia que já era um homem. Mas era apenas um idiota. Não tinha ainda quatorze anos e era grande demais para a mi­nha idade e para as calças que vestia.

Na manhã do sábado, Keough me deixou sozinho no bilhar. Ia levar a mulher e o filho até à estação onde tomariam o trem para o lugar onde iriam passar o verão.

Limpei todas as mesas, botei a cerveja para gelar no porão e ar­rumei tudo. Havia feito a limpeza dos lavatórios, polira os vidros do balcão dos cigarros. Tratei depois de lavar as vidraças. Eram meio cobertas de tinta preta para que ninguém pudesse olhar para dentro e em cada uma delas estava pintada a palavra "Bilhares" em pequenas letras. Passei água com sabão nas vidraças e, depois, enxuguei tudo com um pano amarrado à ponta de uma longa vara.

Ainda estava trabalhando quando Jerry e Ray apareceram na rua. Pararam para ver.

Ih! exclamou Ray. — Você é mesmo um craque para lavar janelas.

Ora, é muito fácil, — disse eu, todo satisfeito. — Basta a gente pegar a prática.

Passei ainda uma vez o esfregão para causar efeito e concluí o trabalho. Apanhei o balde e os outros apetrechos e disse

—        Podem entrar. Keough não está aí.

Entrara no bilhar. Era a primeira vez para eles. A entrada de crianças era proibida.

Podemos jogar um pouco de bilhar, Frankie? — perguntou Ray.

Não. Só os adultos podem. Os menores não podem jogar, — disse eu, apontando uma cartaz na parede acima da máquina regis­tradora. — A polícia pode fechar isto aqui se vocês jogarem.

Quer ir ao banho com a gente hoje à tarde? — perguntou Jerry.

Eu bem que gostaria. Passem por aqui na hora e, se houver pouco movimento, talvez Jimmy me deixe ir.

  1. — disse Jerry. — Vamos passar por aqui.

Fez muito calor à tarde. Jimmy voltara da estação muito con­tente, assobiando até e, desde que os fregueses eram poucos, me deu folga por algum tempo.

Fomos os três pela rua rumo ao cais da Rua 54. Vi Marty do outro lado da rua e chamei-o. Apresentei-o aos outros e perguntei se ele queria ir tomar banho com a gente.

Seria bom, — disse ele. .— Desde que os seus amigos não se importem.

Claro que não se importam, — disse eu. — Com mais gente é até mais divertido.

O cais estava cheio. alguns camaradas que eu conhecia. Pete Sampero estava lá com a turma dele, mas não me disse nada e eu não lhe dei a menor atenção. Fomos para debaixo do cais è tiramos a roupa. Depois, caímos na água. Esta era quente e suja porque a boca de um esgoto ficava ali por perto, mas quando se nadava um pouco para fora a água era limpa e fresca. Demos algumas braçadas e mer­gulhos e então eu disse aos outros:

Gostaria de voar daqui para o cais para não ter de passar na volta por aquela água suja.

Ora, — disse Jerry. — se você quisesse ir para o campo, como lhe convidei, poderia nadar num lago de verdade.

Um avião passou e nós todos olhamos e gritamos. Ray então disse:

Será Rickenbacker que vai ali?

Nunca ouvi dizer que fantasmas pudessem pilotar aviões, — disse eu. — Rickenbacker já morreu.

Não morreu não, — replicou Marty. — Está vivo. Foi ele que derrubou o maior piloto alemão, Von Richthofen.

A verdade é que nós temos os melhores aviões do mundo e os nossos pilotos são os maiores, — disse Ray.

Boiamos um pouco, olhando as barcas e os navios que passa­vam pelo Hudson. Depois, saímos da água e nos estendemos ao sol, no cais. Estávamos nus mas tão longe da rua que ninguém nos podia ver. Ficamos ali durante algum tempo em silêncio. O sol estava mui­to quente e eu cobri o rosto com a camisa.

Uma sombra se estendeu sobre mim e eu ouvi uma voz dizer:

—        Quem deixou esse judeu imundo vir para o nosso cais?

Pensei que era alguém falando a respeito de Marty e fiquei ali

bem quieto, esperando para ver o que acontecia.

—. Eh, pessoal! — gritou a mesma pessoa. — Venham ver co­mo é um judeu!

Ouvi passos que se aproximavam e pararam perto de mim.

—        Engraçado, não é? — disse alguém. E todos riram.

—        Vamos, judeu, — disse o que primeiro falara. — Mostre a cara. — Houve um minuto de silêncio ele então me cutucou com o pé, dizendo: — Estou falando com você. Será que não entende?

Tirei a camisa do rosto e me sentei. Jerry, Ray e Marty estavam sentados perto, olhando para mim. Vi que Marty havia vestido as calças, de modo que o camarada devia estar falando comigo mesmo. Eu tinha sido circuncidado em garoto. Levantei-me e enfrentei o su­jeito. Era um camarada que eu não conhecia.

Meu nome é Kane, Francis Kane. E não sou judeu. Quer pu­xar alguma questão por isso?

Ele está dizendo a verdade, — exclamou alguém. — É de St. Thérèse.

Está bem, — disse o outro. — Desculpe. Mas não gosto de judeus. Gostaria de encontrar um por aqui pan jogá-lo dentro da água.

Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Marty apareceu dian­te dele.

—        Pois eu sou judeu. Vamos ver você me jogar dentro da água.

O rapaz era um pouco mais alto do que Marty, que estava de costas para a água. De repente, o camarada avançou para ele, dispos­to a jogá-lo dentro da água. Mas Marty fez uma ágil esquiva de cor­po para o lado e o camarada, não conseguindo frear o seu ímpeto, continuou e caiu do cais, espadanando água para todos os lados. Dei uma gargalhada, no que fui acompanhado pelos outros.

Cheguei à beira do cais e gritei para o garoto que se debatia dentro da água:

—        O judeu foi mais sabido do que você, hem?

Ele gritou um palavrão e procurou subir para o cais. Mas estava tão furioso que falseou o pé e caiu de novo na água. Novas garga­lhadas. Nisto, começaram a gritar:

—        Lá vem uma mulher!

Todos nós estávamos sem roupas nos jogamos dentro da água. Depois, quando a mulher foi-se embora, saímos da água e nos vestimos.

—        Tenho de voltar para o trabalho, — disse eu e voltamos em silêncio pela Décima Avenida.

À porta do bilhar, Jerry disse:

—        Não se esqueça. Amanhã, depois da missa, você irá lá em casa para conhecer meu pai.

Entrei e encontrei Keough, suarento e atarefado. Logo que me viu gritou:

—        Vá buscar cerveja lá embaixo. Está fazendo calor e o pesso­al está com sede!

Aos domingos, o bilhar não se abria. Eu tinha de ficar na igreja até acabarem as missas porque era coroinha. Depois da última missa, quase ao meio-dia, eu voltava em geral para o orfanato, almoçava e depois saia pelo resto do dia, para ir ao cinema ou a Polo Grounds para ver o jogo de beisebol. Naquele domingo, havia prometido a Jerry que ia conhecer o pai dele.

O pai de Jerry era o prefeito de Nova York — grande demo­crata, homem do povo, sempre muito cordial e disposto a cumpri­mentar todo o mundo, apertar as mãos de quem quer que fosse e beijar todas as crianças. Eu não gostava dele. Isso vinha de muito tempo de antes até de eu conhecer Jerry Cowan. Nesse tempo, o pai de Jerry era vereador do nosso distrito e tinha ido fazer um discur­so no orfanato por ocasião do jantar do Dia de Graças. Fez um belo discurso que nenhum de nós compreendeu e pouco se importou com isso. Estávamos todos cheios de peru. Eu tinha nessa época meus nove anos. Ele me havia mandado ao gabinete do superinten­dente para apanhar um charuto no sobretudo dele. Quando voltei com o charuto, ele tirou do bolso uma moeda de 25 centavos e me deu, dizendo:

Você é um bom garoto. Tome para você.

Obrigado. — disse eu, tomando o dinheiro. Lembrei-me en­tão do que o professor havia dito e fui colocar o dinheiro na caixa da igreja.

O Sr. Cowan me viu fazer isso e me chamou.

Gostei do que você fez. Como é seu nome, meu jovem?

Francis Kane.

Muito bem, Francis. Aqui estão mais cinco dólares para a igreja, mas antes que você coloque o dinheiro na caixa, quer-me di­zer o que era que você gostaria mais de ganhar pelo Natal?

Um trem elétrico.

Pois vai ganhar um trem elétrico. Tenho um filho mais ou menos da sua idade, e é isso o que ele quer também. E os dois vão ter o que querem.

Ele sorriu quando eu botei a nota de cinco dólares na caixa da igreja.

Comecei a contar os dias que faltavam para o Natal. Na manhã de Natal, quando desci para o refeitório onde estava armada a grande árvore, esperava encontrar o trem elétrico lá, mas não o vi. Talvez ainda não tivesse chegado. Não podia imaginar que ele fosse esque­cer. Mas o dia se passou sem nenhum trem elétrico chegar.

Só perdi mesmo a esperança quando fui para a cama. Comecei então a chorar com a cabeça no travesseiro.

Irmão Bernhard, que estava passando pelo corredor, ouviu os meus soluços e entrou no dormitório.

Que é que há, Francis? — perguntou ele com a sua voz bon­dosa. Sentei-me na cama e falei do trem elétrico.

Ora, Francis, não chore por uma coisa à toa como essa. É melhor chorar pelo amor dos seus amigos e por nós que não lhe po­demos dar metade do amor de que você precisa. — E acrescentou porque era prático, além de sentimental: — Aliás, soube que Cowan está na Flórida desde o princípio do mês e deve estar tão ocupado com as suas outras atividades que nem se lembrou de você. Agora, vá dormir que você vai precisar de toda a sua força amanhã. Vou le­ var você para andar de trenó no Parque Central. Está nevando, como você pode ver se olhar pela janela.

Olhei e vi que a neve estava mesmo caindo em grandes flocos. Deitei-me de novo, já de olhos enxutos. Irmão Bernhard saiu e eu o ouvi dizer a uma pessoa que encontrou no corredor:

—        Não faz mal que os políticos faltem às promessas que fazem aos eleitores, mas gostaria de que não fizessem também as crianças sofrerem.

A luz do corredor foi então apagada e eu comecei a odiar Co-wan com toda a fúria de minha alma de garotinho.

Quando conheci Jerry pouco antes da eleição do pai para pre­feito, fiquei sem saber o que fazer. Ele era um garoto simpático e amigo, que não percebia que a única razão da transferência dele de uma escola particular para St. Thérèse tivera sido fins políticos. Simpatizei com ele mas não sabia se devia estender a ele a raiva que tinha do pai.

Tomei então o caminho melhor para chegar a uma decisão. Provoquei-o para uma briga. No meio da luta, sem vantagem para qualquer de nós, que éramos de forças iguais, baixei os braços e disse:

—        Não posso brigar mais. Eu gosto de você.

Ele nunca soube por que eu fiz isso. Talvez pensasse que eu era um pouco amalucado. Mas naquele seu jeito gentil e cordial, me es­tendeu a mão e disse:

—        Ótimo. Eu também gosto de você.

E nos tornamos amigos íntimos. Tinha sido no ano anterior. A nossa camaradagem havia aumentado no decorrer do ano escolar e ele queria que eu fosse conhecer o pai para que pudesse levar-me pa­ra o campo. Nunca havia dito por que não gostava do pai dele e, para dizer a verdade, ele não sabia nem que eu não gostava do Prefeito. Havia esperado que Jerry se esquecesse do convite, mas não houve jeito. Logo depois da última missa, ele me apareceu.

Pronto, Frankie? — perguntou ele com um sorriso.

Pronto.

Que é que estamos esperando então? Vamos. Um mordomo nos abriu a porta.

Onde está Papai, Robert? — perguntou-lhe Jerry.

Na biblioteca, à sua espera.

Fui com Jerry para a biblioteca, onde estavam o pai e a mãe de­le. O pai ainda tinha o mesmo sorriso fácil e o mesmo olhar cordial. Fiquei admirado da maneira pela qual Jerry se parecia com ele quan­do sorria. Mas Jerry tinha também a placidez e a delicadeza da mãe

—        Ah, afinal chegou, Jerry! — exclamou o pai. — Estávamos esperando por você para almoçar.

—        Obrigado, Papai. Este meu amigo Frankie, de quem já falei.

Os dois voltaram-se para mim e eu me senti de repente muito envergonhado das roupas surradas que estava usando.

—        Prazer em conhecê-lo, — disse o pai, estendendo a mão.

Não me lembro do que eu disse, mas nesse momento o mordo­mo apareceu e anunciou que o almoço estava na mesa. Fomos todos para a sala de jantar.

A mesa era enorme e quadrada e tinha no centro um grande va­so de flores. Quando se queria dizer alguma coisa a outra pessoa sen­tada à mesa, era preciso olhar por cima das flores ou pelos lados. Havia mais garfos, facas e colheres do que eu podia imaginar e eu não sabia como usá-los. Mas fiquei observando Jerry e me saí bem. A sobremesa foi sorvete. Depois, voltamos para a biblioteca.

Jerry me disse que ele quer levá-lo para passar as férias no campo —- disse-me o Sr. Cowan.

É verdade. Fico muito grato a tanta gentileza mas, infeliz­mente, não posso ir.

Por quê? É contra o regulamento... do orfanato?

Não é por isso. Mas tenho um emprego durante o verão e não posso deixá-lo.

Mas o campo é muito melhor para você do que trabalhar na cidade com todo esse calor, — disse então a mãe de Jerry.

Sei disso, — murmurei sem querer ofender-lhe os sentimen­tos, pois simpatizava com ela. — Mas eu preciso. Vou passar para o curso secundário em setembro e um pouco de grana, isto é, de dinheiro, seria muito bom. Compreendam eu quero ser um pouco co­mo os outros... e não depender sempre da caridade. Desculpe, mas não tive intenção de ser grosseiro.

Ela se aproximou de mim e segurou- a mão.

—        Não acho que tenha sido grosseiro. Frankie. Acho você um ótimo rapaz.

Não sabia o que devia dizer a isso. Alguns minutos depois o ca­sal se retirou. Tinham um compromisso em algum lugar e nós subi­mos para o quarto de Jerry.

Ficamos por ali um pouco sem nada fazer de específico. Por fim, Jerry disse:

—        Vamos até ao sótão? Está arrumado como uma sala de brin­quedos e nós podemos divertir-nos.

  1. primeira coisa que vi quando entramos foi um grande trem elétrico armado. Era uma maravilha; havia pontes. túneis, desvios e três locomotivas.

Que beleza! — exclamei, atônito.

Papai comprou isso para mim há três anos antes de irmos para a Flórida. Quer brincar um pouco com ele?

Olhei tudo em silêncio por um minuto, enchendo os olhos. A-proximei-me quase instintivamente. Mas alguma coisa me fez parar. Um pensamento me ocorreu. Ao menos, ele não se esquecera do pre­sente do filho.

—        Não, — disse eu, com a voz trêmula. — Está fazendo muito calor aqui. Vamos nadar.

Eu ia começar o curso secundário naquele ano. Jerry ia para a Escola Secundária George Washington e eu resolvi ir para lá tam­bém. Marty estava com os mesmos planos. Eu não estava muito inte­ressado nisso porque considerava a escola um mal necessário. Dei­xaria os estudos logo que tivesse dezessete anos e pudesse legalmen­te abandonar a escola. A minha única ambição era ser jogador e bo-okmaker para enriquecer

A conclusão do curso em St. Thérèse foi uma cerimônia simples e calma. Reunimo-nos num grande salão com pais, amigos e professo­res. Houve três discursos e cada um de nós recebeu um diploma.

Chamaram-me pelo nome. Fui até ao estrado e recebi o diplo­ma das mãos do monsenhor que tinha ido especialmente presidir o ato. Depois, voltei para o meu lugar e sentei-me com o resto da tur­ma. Depois da cerimônia, fiquei olhando os outros garotos em com­panhia dos pais, todos sorridentes e orgulhosos

Creio que estranhei um pouco ficar tão sozinho assim. Olhei para Jerry e o pessoal dele. Estavam cercados por uma verdadeira multidão, que não deixava Jerry ver-me senão ele me chamaria para ficar com eles. Ao fim de algum tempo, comecei a encaminhar-me para a porta. De qualquer maneira, não apareceria ninguém para a-braçar-me e eu me sentiria melhor lá fora. De repente, alguém me bateu no ombro e eu me virei. Era o Irmão Bernhard. O Padre Quinn estava com ele e ambos me sorriam.

— Parabéns! — disse o bom Irmão Bernhard com o seu vozei­rão.

—        parabéns! — disse o Padre Quinn.

Sorri de repente ao mesmo tempo que sentia lágrimas nos o-lhos. Fiquei um momento sem poder falar.

O Irmão Bernhard me olhou atentamente. Havia ocasiões em que eu julgava que ele podia ler os meus pensamentos.

Pensou que nós não viríamos, hem? Mas não podíamos per­der a formatura de um dos nossos rapazes, não era mesmo, Padre?

Claro que não, — disse o Padre Quinn. — Temos muito orgulho de você, Francis.

Encontrei afinal a voz — não a voz que eu normalmente usava, mas de qualquer modo uma voz.

—        Obrigado, muito obrigado!

Irmão Bernhard pôs a mão no meu ombro quando nos dirigimos para a porta. Comecei a sentir-me bem. Quando chegamos lá fora, o Padre Quinn se despediu, desejou-me felicidades e tomou o caminho da igreja, enquanto o Irmão Bernhard e eu íamos para o orfanato.

Entramos no pátio em silêncio. De repente, ele me fez parar e me disse:

—        Francis, tenho um presente para você.

E abriu a mão. Fiquei um momento surpreso, olhando sem compreender para o embrulho que estava na mão dele.

—        É seu, Francis. Tome.

Peguei o embrulho e abri-o. Era um relógio de pulso. Era uma beleza! Coloquei a correia no braço com dedos trêmulos.

Gosta? — perguntou ele.

Se gosto? — exclamei com voz leve e alegre. — Gosto mais disto do que de qualquer outra coisa que já tive na vida!

Ele sorriu, me tomou pela mão e entramos juntos no grande prédio cinzento.

Aquele verão foi o primeiro em que passei tanto tempo na companhia dos outros. Aprendi a conviver com as pessoas — a pi­lheria e rir, a não me enfurecer ante cada insulto. Aprendi uma por­ção coisas naquele verão e Julie me ensinou a maioria delas.

Um dia depois da formatura, Marty me convidou para jantar em casa dele de novo. Os pais iam sair naquela noite. Cheguei cedo. Ele me abriu a porta e disse

—        Que tal fazermos um pouco de box agora, para ficarmos sem fazer nada depois do jantar?

Concordei. Já estávamos boxeando havia uma hora quando Ju-lie apareceu à porta.

—        O jantar está na mesa.

Tiramos as luvas e eu lavei as mãos. Marty quis tomar uma chuveirada e eu fui para a cozinha esperá-lo.

Onde está Marty? — perguntou Julie.

Foi tomar um banho e não demora.

Ela estava com um avental que se fechava do lado. Estava com um vestido muito justo e parecia um rapaz, menos na maneira de andar.

Como vão as lições de box? — perguntou ela, tomando-me as mãos.

Muito bem.

E as outras lições Que outras lições?

Esta — disse ela, passando-me os braços em volta do corpo dela.

Abracei-a. Ela estava quente e era bom apertá-la assim. Dei-lhe beijo na boca e ela fechou os olhos.

Depois, ela inclinou a cabeça para o lado e disse, apontando o pescoço.

Beije-me aqui.

Por quê?

Porque eu gosto, seu bobo. Você vai gostar também. Não gosta de mim?

Isso é coisa de criança.

Coisa de criança? E pode-se saber a sua idade, velhote?

Tenho quase dezesseis anos.

Bem, eu tenho quase quatro anos mais do que você e não acho Isso coisa de criança. Beije-me.

Beijei-lhe o pescoço. A princípio, não achei graça nenhuma, mas depois gostei. Ela pegou a minha mão e colocou-a em cima do seio suave quente. Falou-me ao ouvido quase como se estivesse fa­lando consigo mesma:

—        Não sei o que é que há com você, Frankie. Os garotos não me fazem sentir nada. Mas você é diferente. Você é como um homem, frio, egoísta, calculista, mas ainda com muita coisa de criança. Você é forte, mas quando me abraça é delicado como um bebê. Diga que gosta de mim.

Sacudi a cabeça, ainda beijando-lhe o pescoço.

—        Diga, vamos! Diga: "Gosto de você, Julie".

Levantei os lábios para ela, mas nada disse. Ouvimos Marty sair do banheiro assobiando e nos separamos. Olhei-a. Era linda. Os olhos dela cintilavam e a boca ainda estava marcada pelo meu beijo.

—        Vou fazer você dizer isso... mais tarde, — disse ela com de­ terminação, antes que Marty entrasse.

Eu estava rindo com prazer no momento em que Marty entrou.

De que é que está rindo? — perguntou ele.

De nada. Uma coisa de que me lembrei.

Sentamo-nos para jantar. Cerca de dez minutos depois, Ruth chegou.

Desculpe ter chegado atrasado para o jantar, Julie. Mas fi­quei presa no clube. Tivemos de eleger uma nova diretoria. — Sen­tou-se à mesa e olhou para mim. — Você aqui?

Sim, — murmurei, sentindo que nada poderia aborrecer-me naquele momento. — Dá licença?

Julie trouxe o prato de Ruth e sentou-se à mesa. Olhou para mim e para Ruth como se estivesse percebendo o antagonismo que havia entre nós. Tive a impressão de que ela intimamente estava rindo.

Depois do jantar, fomos para a sala e Ruth tornou a me levar até à porta, quando me despedi às oito e meia.

Estou vendo que não seguiu a minha sugestão.

Por que não se mete com a porcaria da sua vida e não me deixa em paz?

A aspereza das minhas palavras foi um golpe para ela. Quando a olhei vi que tinha lágrimas nos olhos. Instintivamente, estendi a mão para ela e murmurei:

—        Desculpe.

Ela recuou o corpo e disse:

—        Não me toque! Odeio tudo o que há em você: Não é como os outros garotos da sua idade, Há em você alguma coisa de velho, mesquinho e ordinário, alguma coisa fundamentalmente ruim. Tenho a impressão de que você contamina tudo aquilo em que toca, até meu irmão.

Tentei dizer alguma coisa, mas não pude. Sai e ela fechou a porta.

Julie estava-me esperando na outra porta.

—        Por que demorou tanto? Pensei que nunca mais fosse sair.

Entrei com ela para o quarto. Beijei-a, primeiro na boca e de­pois no pescoço, onde ela queria que a beijasse antes. Tirei-lhe o vestido e passei as mãos pela pele fresca e macia.

Diga primeiro que gosta de mim.

Gosto de você, Julie, — disse eu, com voz rouca, abraçando-a com mais força.

— É muito fácil, — dizia-me Jimmy Keough. — Você vai fi­car com todo o território daqui até à Rua 64: disse aos rapazes que você iria aparecer. Você só tem de receber as apostas, tomar nota de­las e trazer tudo para mim antes das corridas. Se não puder chegar aqui em tempo, terá de me dizer pelo telefone o que é que tem. As suas apostas serão bancadas à parte. Dividiremos os lucros meio a meio. Quando houver prejuízo, você terá de cobrir o deficit da sua metade antes de fazermos a divisão.

Já havíamos conversado muito sobre aquilo. Eu estava ansioso para começar. Tinha um bloco, duas lapiseiras e dois programas de corridas nos bolsos. Encaminhei-me para ,a porta.

Não se esqueça, — disse-me ainda Jimmy. — Nada de fre­gueses novos. Só aqueles que eu aprovar. E não deixe de telefonar se não puder chegar aqui a tempo.

Está bem, Jimmy, — disse eu, saindo.

A rua estava quente e cheia de sol. Eram quase onze horas e o dia ia ser de torrar. Olhei para a lista de endereços que Jimmy me tinha dado. O primeiro era uma garagem na esquina da Décima Avenida com a Rua 63. Tinha de procurar um camarada chamado Christy.

Entrei e vi um preto corpulento que estava lavando um carro.

Queria falar com Christy, — disse eu.

Christy sou eu, — disse ele — Que é que você quer?

Venho da parte de Jimmy Keough.

Trouxe o programa? — perguntou ele, largando a mangueira com que lavava o carro.

Claro, — disse eu, entregando-lhe o programa.

Joe! — gritou ele para dentro. — O bookmaker está aqui. Gostei de que ele me chamasse assim. Já era alguma coisa. Dos

fundos da garagem, veio outro homem. Olhou para mim um momen­to com curiosidade e foi para junto de Christy. Estudaram juntos o programa. Encostei-me a um carro enquanto eles resolviam. Por fim, Christy me chamou. Sentei-me no estribo do carro e preparei-me com o bloco, de lápis em punho.

Sócios em tudo hoje, Joe? — perguntou Christy.

Claro.

—        Então tome as apostas, garoto. Amanhã, seu patrão vai estar arruinado.

—        Não faz mal. Ele agüenta. Riram e Christy disse:

—. Quero 50 centavos em Docket e Red Rose na dupla. E 50 centavos ponta e placê em Garageman. É um palpite, sabe?

—. Tem possibilidade, — disse eu, como se entendesse muito daquilo.

Claro. E se ganhar deve pagar uma boa pule. E 50 centavos no placê de Red Rose.

Ésó?

Por hoje, é só. Mas se você me trouxer um montão de di­nheiro amanhã, o jogo será melhor, — disse ele, devolvendo-me o programa.

Está bem. Se eu precisar de ajuda para trazer o dinheiro, te­lefono e você vai com um caminhão, está bem?

É só falar, garoto! É só falar! — disse ele, rindo. Entregou-me dois dólares, que eu guardei no bolso.

Até amanhã, amigos.

Em seguida, passei pelo pátio de carga de um edifício na Rua 62. Havia uma grande plataforma de carga de cerca de um metro a-cima do solo. Dois caminhões estavam ali encostados e em volta al­guns homens comiam sanduíches e fumavam. Cheguei perto de um deles e perguntei:

Conhece Al Andrews?

Conheço. É aquele ali encostado à porta do elevador.

Obrigado, disse eu e fui para onde estava Andrews.

Al Andrews?

Que é que há?

Trabalho para Jimmy Keough.

—        Entre aqui comigo, — disse ele. — Não quero que o chefe me veja.

Entrei com ele por um corredor até os lavatórios. Entreguei-lhe o programa e ele desabotoou as calças e se sentou num dos compartimentos.

Alguns minutos depois, exclamou:

Sabe que hoje não estou gostando de nada? Eu ri.

Toda a corrida tem um vencedor.

Isso é para os outros. Para mim, não. Todos os matungos em que apostei na semana passada ainda estão correndo.

Talvez a coisa hoje seja diferente.

Talvez, — disse ele, continuando a estudar o programa. Ao fim de alguns minutos, disse: — Já sei o que é que eu vou fazer. Um dólar em Smoothie no segundo páreo e dois na ponta em Short Stope no quinto.

Tomei nota e perguntei:

—        Mais alguma coisa?

Ele olhou para o programa mais alguns minutos como se fosse uma bola de cristal. Depois, sacudiu a cabeça e me entregou o pro­grama. Puxou um pouco as calças para cima e tirou o dinheiro do bolso, entregando-me.

—        Até amanhã, — disse eu. Ele não respondeu. Estava tirando papel higiênico do rolo.

Passei depois por uma farmácia e recolhi três dólares. Depois, fui a um restaurante, onde alguns fregueses que estavam almoçando jogaram sete dólares. Um salão de beleza, uma bombonnière, mais algumas garagens, uma tenda de sapateiro, outro restaurante e só me ficou faltando um endereço. Uma casa de quartos mobiliados. To­quei a campainha e uma empregada preta me abriu a porta.

Olhei para a lista de endereços.

Mis Neal está?

Está, sim. Mas você não é muito moço ainda para estar procurando por ela? — levou-me até o segundo andar e disse diante de uma porta fechada: — Miss Neal?

Entre, — responderam.

Entrei. Havia algumas mulheres por ali sentadas de quimono e robe.

Que é que você quer? — perguntou uma mulher morena de cabelos pretos.

Keough me mandou passar por aqui, — disse eu e corri os olho pela sala, sabendo que havia feito um juízo certo. Estava numa casa de mulheres

—        Tem ai o programa?

Entreguei-o e outra mulher tomou o outro. Fiquei esperando até que uma delas disse que eu me sentasse. Peguei 19 dólares de apos­tas ali. Olhei para o relógio que o Irmão Bernhard me tinha dado. Quase duas horas. Tinha de andar depressa, senão chegaria atrasado. Corri sem parar até o bilhar.

Como correu tudo? — perguntou Jimmy.

Muito bem, — disse eu, colocando em cima da mesa o di­nheiro e os talões das apostas. Tinha feito 51 dólares e 50 cents de apostas. Tratei então de fazer a limpeza e a tarde passou rapidamen­te. Quando os resultados chegaram, fiz os cálculos de Keough e de­pois os meus. Havia um lucro de 22 dólares e meio nas minhas apos­ tas. A minha parte era de 11 dólares e 25 centavos.

"Onze dólares e vinte e cinco centavos por um dia de trabalho", fui pensando quando voltava para o orfanato naquela noite. Mais do que eu jamais fizera numa semana. Mais dinheiro do que eu já tivera em minha mão de uma só vez. Era bem melhor do que ir passar o ve­rão no campo.

Ao fim da minha primeira semana, tinha ganho 51 dólares. Esse dinheiro e os seis dólares que eu ganhava para fazer a limpeza do bi­lhar elevavam a minha receita a 57 dólares numa semana, o que era bem mais do que muitas famílias do bairro ganhavam. Não creio que realmente soubesse o valor do dinheiro. Enchia-me de sanduíches, hamburgers e refrigerantes. Pela primeira vez na vida, tinha sempre dinheiro no bolso. Todos os garotos da vizinhança sempre comiam ou bebiam alguma coisa à minha custa. Não podia resistir à tentação de mostrar o meu dinheiro e de pagar coisas para os outros. Conside­rava-me uma figura muito importante.

Marquei encontro com Julie para irmos nadar depois da igreja no domingo. Quando ela chegou, estava carregando uma maleta.

Onde está sua roupa de banho? — perguntou ela, logo que nos sentamos no trem.

Estou vestido com ela.

E na volta? — perguntou ela, rindo. — Vai ficar com o ter­no todo molhado.

E eu que não havia pensado nisso!

Bem, guardarei na minha mala, bobinho.

O trem estava em Times Square e a multidão se amontoava. Todos se dirigiam para a ilha a fim de fugir ao calor. Alugamos ca­binas numa pequena casa de banhos perto de Steeplechase. Quase ia deixando o dinheiro na cabina, mas me lembrei em tempo de que era arriscado e levei-o. No caminho para a praia comprei um cinto branco que se adaptava ao maiô e que tinha um bolso onde eu podia guardar o dinheiro. Cheguei à praia antes dela. Esperei alguns minutos. Ela estava com um maiô vermelho e me pareceu belíssima. Sem os sapa­tos de saltos altos, era um pouco mais baixa do que eu. Parecia ter a minha idade em vez de ser mais velha e fiquei satisfeito com isso.

A água estava ótima. Nadamos durante algum tempo e depois nos estendemos na areia. O sol estava quente e ela, muito branca, começou a ficar um pouco queimada. Eu já estava moreno de tomar banho no cais.

Como é que está indo no seu emprego, Frankie? Virei o corpo para ela e respondi:

Muito bem. Fiz 51 dólares na semana passada.

Cinqüenta e um dólares? Sério?

Claro. Quer ver? — disse eu, tirando o dinheiro do cinto.

Guarde isso. Acredito em você. Guardei o dinheiro.

Que é que vai fazer com isso?

—        Não sei ainda. Talvez comprar umas roupas e algumas coi­sas que sempre quis ter. Estou cansado de usar roupas de esmola. Gostaria de ter coisas que eu mesmo escolhesse e de que eu gostasse.

Tirei um maço de cigarros e acendi um para mim e outro para ela.

Você devia era abrir uma conta num banco, Frankie. Algum dia esse dinheiro pode ser-lhe muito útil. Por exemplo, quando você for para a universidade.

Quem quer ir para a universidade? Quero é continuar mes­mo como bookmaker e ganhar um bom dinheiro. E você vai ser mi­nha pequena.

Quer mesmo que eu seja sua pequena?

Claro! — disse eu.

Ela estava tão bonita que tive vontade de beijá-la, mas havia muita gente por perto.

Na véspera de partir para o campo, Jerry foi ao bilhar despedir-se de mim.

Gostaria tanto de que você fosse comigo, Frankie.

Não posso, Jerry. O meu emprego aqui...

Eu sei. Mas se mudar de idéia, me escreva e eu farei papai tomar todas as providências.

Está bem. Boas férias, Jerry.

Para você também, disse ele.

Até setembro.

Apertamo-nos as mãos e ele saiu. Invejava-o naquele momento mais do que nunca. Devia ser ótimo ter tudo o que se quisesse, bas­tando para isso abrir a boca. Mas fui limpar os lavatórios. Quando acabei, saí para correr a freguesia. Eu havia tomado o conselho de Julie e abrira uma conta num banco da esquina de Broadway com a Rua 63. Estava na minha segunda semana de trabalho e tinha já qua­se 70 dólares no banco. No dia anterior, as minhas apostas tinham dado um prejuízo de 80 dólares e eu tinha de cobrir esse deficit antes de haver nova divisão de lucros. Mas não estava preocupado. Eu sa­bia que uma sorte de vez em quando era tão boa para o banqueiro quanto para o jogador. Eles sempre perdiam o que tinham ganho e mais ainda. Achavam que estavam com sorte e jogavam mais pesa­do. Dentro em pouco, estavam de novo no prejuízo.

Encontrei-me com Ray e Marty, na rua. Iam tomar banho no cais. Convidaram-me para ir com eles e eu disse que não podia. Marty me convidou para ir à casa dele e eu disse que iria naquela noite se tivesse tempo. Outros rapazes os chamaram e eles me deixa­ram. Perto da garagem que era o meu primeiro ponto havia um grupo que jogava stickball. Apanhei uma bola desviada e devolvi-a.

Quer jogar, Frankie? — perguntou um deles.

Não, muito obrigado.

Deixei-os e entrei na garagem.

Alô, Christy! Onde está você?

Ele saiu debaixo de um carro e disse com o rosto todo aberto num sorriso:

—        Alô, Frankie!

—        Muito bem, desta vez você acertou, — disse eu, sorrindo. — Ganhou 21 dólares.

Paguei-lhe o dinheiro. Joe, seu companheiro, chegou e eu en­treguei-lhes o programa. Jogaram seis dólares em vez dos dois de costume.

Mas o dia, fosse como fosse, não foi tão agradável para mim. Em conseqüência do que os apostadores haviam ganho, arrecadei mais dinheiro do que em qualquer outro dia desde que começara, mas nem isso me contentou. Quando voltava para o bilhar, passei pe­lo cais na Rua 54, encostei-me a um poste e fiquei vendo os rapazes mergulharem e nadarem, contentes da vida. Tive vontade de ir para o meio deles, mas tinha de voltar com as apostas.

Uma voz atrás de mim disse:

Aposto que gostaria de estar com eles, hem, Frankie? Virei-me. Era Silk Fennelli.

Bem, não senhor... isto é... eu... Ele sorriu.

Está certo, rapaz. Compreendo perfeitamente. Sei o que você está sentindo. Gostaria de estar com eles — nadando, jogando bola ou jogando dados nas esquinas. Mas você não pode. Você tem uma res­ ponsabilidade... com você mesmo. Esses meninos não pensam um só minuto no futuro, mas você é diferente. Você quer progredir. Você quer ser alguma coisa. E está aprendendo agora que para conseguir al­guma coisa é preciso sacrificar um pouco de outra coisa — de uma coisa de que você talvez precise ou que gostaria de fazer. E você já decidiu como vai ser. Eu um dia já fui assim como você.

É isso mesmo, Sr. Fennelli. Já me sinto bem longe desses garotos.

Assim é que é, — disse ele, pondo a mão amistosamente no meu ombro. — Para onde é que vai agora?

Para o bilhar de Keough.

Venha no meu carro. Eu ia justamente para lá. E quando chegarmos lá você me pode dar um dos seus lustros especiais.

Fui com ele para o carro. Senti-me muito importante quando paramos em frente ao bilhar e eu saltei com o chefão. Ele me havia perguntado como eu ia de negócios e eu disse. Ele achou ótimo.

Entreguei os talões e o dinheiro a Jimmy. Depois, apanhei a caixa e dei um lustro daqueles em Fennelli.

—        O garoto é cem por cento, — disse Fennelli a Jimmy.

—        Muito vivo, — disse Jimmy, orgulhoso como se fosse meu pai. Quando Fennelli quis pagar o lustro, eu não aceitei. Era meio dólar.

Ora, garoto, pegue o dinheiro. Vi que ele ia insistir e propus:

Vamos jogar cara ou coroa. Ou ganho o dobro ou nada.

OK, — disse ele, jogando a moeda para o alto. — Pode pedir.

Olhei a moeda rodar no ar. Quando ia quase chegando ao chão, gritei:

—        Coroa!

E foi coroa. Ele apanhou a moeda e me deu um dólar que eu guardei no bolso.

Você vai longe, Frankie, — disse ele, rindo.

Assim espero. Muito obrigado. Jimmy riu.

Vá buscar cerveja para a gente, Frankie.

Levei duas bem geladas do porão e abri-as. Beberam rapida­mente. Quando acabaram, Fennelli perguntou a Jimmy:

Vamos acertar a semana passada?

Claro, Silk! Você bem sabe como eu sou — pago na hora! Tirou do bolso um maço de notas, contou seiscentos dólares e entregou o dinheiro a Fennelli, que meteu tudo no bolso sem contar.

Deixei-os, fui pegar o balde e o esfregão e tratei de limpar o chão de ladrilhos da frente, perto do balcão. Estava muito quente e eu tirei a camisa, jogando-a num canto. O suor me escorria pelo ros­to e eu o enxuguei com o braço. Quando Fennelli passou a caminho da porta, me deu adeus. Retribui com uma meia continência, como fazia com o Padre Quinn.

O verão foi passando. Foi como qualquer outro verão em Nova York — quente, úmido, enervante. As pessoas voltavam do trabalho com o cansaço estampado no rosto como se fosse uma máscara. Os garotos faziam algazarra na rua. Os parques e as praias viviam reple­tos. Os jornais falavam do calor, nas manchetes. Não havia escola. O barulho da cidade entrava pelas janelas abertas.

Um verão com outro qualquer em Nova York. Mas para mim foi um verão diferente. Sentia-me feliz. Pela primeira vez em minha vida, era livre e não dependia de ninguém. Tinha 700 dólares no banco. Tinha uma pequena. Tinha dois ternos novos. Comia em restaurantes e vivia com dinheiro no bolso. Podia ir aonde quisesse e fazer o que quisesse. Atraía as atenções de pessoas grandes e de garotos. Já era alguém. Estava vivendo à grande. Comecei a pensar em ter de voltar para a escola. Eu não queria ir. Estava ganhando bom dinheiro. Mas sabia que não podia deixar de ir. Não tinha ainda i-dade suficiente para abandonar os estudos. Pensei em continuar a trabalhar como bookmaker enquanto cursasse a escola. Estudaria no turno da manhã e sairia a tempo de pegar as apostas. As coisas es­tavam correndo muito bem. Comecei a olhar com superioridade pa­ra os outros garotos do orfanato e do bairro. Eu estava realmente su­bindo.

Foi no fim da tarde do sábado, 22 de agosto. Eu havia feito as contas daquela semana com Jimmy e tinha mais 84 dólares no bol­so. O bilhar estava cheio de fregueses que riam, discutiam e grita­vam. Dai a pouco, a maioria sairia para ir aprontar-se para os seus programas da noite do sábado. O nosso estoque de cerveja e refri­gerantes estava quase no fim. Keough olhou para mim por cima do balcão e disse:

—        Estou cansado. Acho que vou fechar cedo hoje para pegar um trem e ir ver a patroa.

Quer que dê o aviso? Quero. Fui de mesa em mesa, gritando:

Vamos fechar! Vamos fechar!

Dai a alguns minutos, a casa estava vazia. Keough contou o di­nheiro da féria e guardou-o no bolso.

—        Vamos!

Quando Keough estava trancando a porta, o carro de Fennelli parou em frente à porta. Silk desceu e veio para onde estávamos.

Está fechando cedo, Jimmy? — perguntou ele, sorrindo.

Estou. Vou dar um pulo lá em cima para ver a patroa.

Ótimo. Tem alguma coisa para mim?

Claro que tenho, Silk. Você me conhece!

Meteu a mão no bolso e tirou o maço de dinheiro, no qual esta­va passada uma grande tira de borracha. Estavam na porta e eu recu­ei para dar-lhes lugar, de costas para a rua.

Ouvi o barulho de um carro atrás de mim. De repente, Silk e Keough levantaram a vista. Pareciam estar olhando para alguma coi­sa atrás de mim. Nada notei de estranho. De repente, Keough ficou muito pálido e o dinheiro lhe caiu das mãos.

Abaixei para apanhar o dinheiro dizendo que ele não devia ser tão descuidado, quando ouvi os tiros. Levantei os olhos, subitamen­te. Keough tinha as mãos na barriga e estava escorregando encostado à porta. Fennelli estava com as mãos no peito e começou a cair para a frente, tirando as mãos lentamente do paletó. Vi o sangue correr. Foi então que me movimentei. Não pensei em mais nada. Saí cor­rendo, a princípio de quatro pés e, depois, com toda a força das per­nas. Não olhei para trás. Entrei por uma rua, depois por outra e não sabia mais por onde ia. Sabia apenas que estava correndo.

Parei instintivamente defronte do edifício de apartamento onde Marty morava. Mergulhei pela porta adentro e corri pelas escadas até ao andar dele. Fui até a porta dos fundos, onde eu sabia que Julie iria atender e toquei a campainha. Foi só então que comecei a compreen­der como estava apavorado. Até então, correra por uma reação pu­ramente mecânica. O coração batia alucinadamente e eu mal podia respirar.

Julie abriu a porta. Passei impetuosamente por ela e fechei a porta.

—        Olá, Frankie — disse ela. Depois, vendo a minha camisa co­berta de sangue, exclamou: — Alguma coisa? Que foi que aconte­ceu?

Não respondi. Corri para o quarto dela depois da cozinha e jo­guei-me em cima da cama, onde fiquei arquejante.

Ela entrou também no quarto, fechou a porta e perguntou com os olhos cheios de medo:

Que foi que houve, Frankie? Está ferido?

Não. Mas acabaram de matar meu patrão e Silk Fennelli.

Quem foi?

Não sei. Depois dos tiros, fugiram.

Percebi então que tinha alguma coisa na mão. Era o dinheiro de Keough. Devia tê-lo agarrado instintivamente. Meti o no bolso, fui até à janela e murmurei:

Será que me seguiram até aqui?

Pobrezinho! — disse Julie, puxando-me para junto dela. — Está tão apavorado!

Não estou com medo não, — disse eu, mentindo. Encostei a cabeça no seio dela. Sentia-me ali tão tranqüilo, tão seguro. Não queria mover-me. Um tremor me sacudiu o corpo. Depois, outro.

Tentei resistir, mas não pude. Daí a poucos segundos, o corpo todo me tremia e eu estava com a camisa coberta de suor. Continuei nos braços dela, tremendo e batendo os dentes como uma criancinha...

Pouco depois, estava sentado na pequena poltrona no canto do quarto de Julie e comecei a pensar. "Ninguém me viu chegar aqui. Queriam apenas atingir Fennelli. Nada tinham comigo. Tinham de atirar em Jimmy porque ele os viu e sabia quem eram. Não os vi e eles não quiseram nada comigo. A polícia pode querer interrogar-me. Mas eu nada vi. Nada me acontecerá enquanto eu ficar calado". Julie foi buscar alguma coisa para eu beber. "Que farei com o di­nheiro?" Tirei e contei. Havia 653 dólares. Guardei de novo o di­nheiro no bolso. Julie voltou com uma xícara de café.

—        Tome um pouquinho de café que você se sentirá melhor. Sorri para ela e tomei um gole de café

—        Já estou melhor mas não posso sair daqui com esta camisa toda cheia de sangue. Jogue-a no incinerador e vá buscar para mim uma camisa de Marty.

Ela pegou a camisa e saiu. Pouco depois, ouvi a porta da cozi­nha abrir-se e, logo a seguir, a batida da tampa do incinerador. Al­guns minutos depois voltava com uma camisa de Marty.

Vesti-a. Estava um pouco apertada, mas servia.

Obrigado, Julie. Acho bom eu sair antes que a família chegue.

Não é preciso correr, Frankie. Foram todos passar o fim-de-semana fora, menos o Sr. Cabell. E ele só chega lá para uma hora da madrugada depois que fechar o drugstore.

Jantei lá e sai perto das nove horas e fui para o orfanato. Entrei sem ser visto e subi para o dormitório. Os outros garotos estavam todos dormindo. Despi-me e joguei-me na cama satisfeito. Estava muito cansado e adormeci quase imediatamente.

De manhã, desci antes dos outros e dei uma olhada nos jornais. O Daily News tinha dado a notícia na primeira página. Uma grande manchete dizia: "Atiraram em Fennelli". Estava no canto direito um retrato de Silk Fennelli e embaixo vinha a notícia. Dizia assim:

"Nova Guerra de Pistoleiros em Nova York

Silk Fennelli, conhecido jogador e quadrilheiro, foi alvejado e gravemente ferido e James (Jimmy) Keough foi morto a tiros ontem por um gangster desconhecido. Keough levou dois tiros no coração e Fennelli dois tiros, um no peito e outro na virilha, ontem à tarde em frente a um bilhar de propriedade de Keough. A polícia está à procu­ra de um garoto que trabalhava para Keough e que pode ter sido tes­temunha do crime. Os médicos do Hospital Roosevelt declararam hoje que o estado de Fennelli é grave, mas não desesperador. Fiel às leis do baixo mundo do crime, Fennelli não quis fazer declarações. Limi­tou-se a dizer: "Não sei quem possa ter querido eliminar-me, desde que sou uma pessoa que só se mete com a sua vida". A polícia conti­nua a trabalhar no caso e espera que fatos novos surjam dentro em breve ".

Julguei pressentir um aviso de Fennelli para mim no jornal — um aviso para que só me metesse com a minha vida. Fui tomar café no refeitório e, depois, fui ajudar missa. Não tinha com que me preo­cupar.

Depois que uma semana passou e ninguém me procurou come­cei de novo a sentir-me em segurança. Podia andar pelas ruas sem medo. Tinha lido nos jornais que Fennelli estava melhor e teria alta do hospital daí a umas três semanas. O bilhar estava fechado e eu perdera o meu empregO, mas isso não chegava a me aborrecer. Co­loquei o dinheiro em outra conta e nesse particular não tinha com que me preocupar. Vira Julie algumas vezes durante a semana, mas não falamos mais sobre o que havia acontecido.

Um dia, de manhã, o Irmão Bernhard apareceu na porta do dormitório e me disse

Quer ir ao meu gabinete depois que tomar café, Francis?

Sim senhor.

Mais tarde, desci para o gabinete dele e encontrei várias pesso­as lá: a Irmã Superiora, o Padre Quinn e um desconhecido Tinha to­da a pinta de um detetive

Eu estava muito preocupado, mas procurei dissimular o mais possível. Cheguei diante do Irmão Bernhard e disse:

Queria falar comigo, Irmão?

Queria, Francis. Este aqui é o Inspetor Buchalter, da Comis­são de Assistência aos Menores. — Voltou-se para Buchalter e disse: — É esse o rapaz de quem estávamos falando.

Esperei que falassem. Durante alguns momentos, houve um si­lêncio carregado de tensão na sala. Por fim, a Irmã Superiora disse:

Francis, você tem sido um bom menino na escola. conheço e observo você desde que era bebezinho. E agora tenho de lhe dizer uma coisa. Não gosto, mas tenho de dizer. Francis, já pensou em ser outra coisa senão um bom menino católico?

Não, senhora — respondi cautelosamente

—        Está vendo? — exclamou o Padre Quinn. — Exatamente o que eu disse

A Irmã Superiora continuou

—        Se alguém chegasse agora e lhe dissesse que você era de ou­tra religião, como você se sentiria?

Quase dei um suspiro de alívio. Não era sobre o caso de Jimmy e Fennelli

—        Não poderia acreditar nisso, Irmã

Houve sorrisos por toda a sala, os quais diziam orgulhosamen­te: "Trata-se de um bom menino católico" Ela continuou com mais tranqüilidade:

—        Lembra-se de alguma coisa de seus pais, Francis?

A pergunta me pareceu boba. Ela sabia tão bem quanto eu que eu vivia no orfanato desde que podia lembrar-me das coisas. Mas respondi delicadamente

Não, senhora.

Está bem, Francis. O Sr. Buchalter faz investigações sobre os pais de todas as crianças que estão aqui. De tempos em tempos, faz uma revisão para ver se sabe mais a respeito delas na esperança de ajudá-las. E ele tem alguma coisa para lhe dizer

O detetive parecia pouco à vontade quando disse:

Bem, Francis, tive de fazer uma revisão do seu caso quando você concluiu os seus estudos em St. Thérèse. Quando a pessoa vai entrar para o curso secundário, é de praxe fazermos uma revisão de toda a sua história para ver se é possível apurar mais alguma coisa ou encontrar algum parente. Para encurtar razões, encontramos um parente seu ainda vivo: um tio, irmão de sua mãe. Há algum tempo, ele nos escreveu falando da irmã que tinha vindo para Nova York na ocasião em que você nasceu. Ela tinha morrido quando nós o encon­tramos. Seu tio a identificou por um anel que ela usara e que nós tí­nhamos em nossos arquivos para entregar-lhe quando você chegasse à maioridade. E agora ele quer legalmente que você vá morar com ele. Apuramos que se trata de um homem bom e responsável. Tem duas filhas. Poderá dar-lhe um lar e cuidar da sua vida.

Mas, Francis — disse então o Padre Quinn, — ele é diferen­te de nós. Não acredita no que nós acreditamos. Não é da nossa fé.

Não é da nossa fé? — perguntei sem saber ao certo o que ele queria dizer

Sim, Francis, ele não é católico.

Com toda a certeza, Francis, — disse então o Irmão Bernhard, — você terá de ir viver com ele depois que certas formalidades forem preenchidas. Mas não se esqueça nunca do que nós lhe ensinamos aqui. Nunca se esqueça da Igreja que o abrigou e o criou. Seja sempre um bom católico, aconteça o que acontecer.

Sim, Irmão Bernhard, — disse eu, cada vez mais perplexo.

Seu tio está lá fora, Francis. Gostaria de conhecê-lo? — per­guntou-me delicadamente a Irmã Superiora.

Gostaria, sim, disse eu, com o espírito trabalhando. Eu tinha uma família. Não era um bastardo. Tinha uma família.

O Sr. Buchalter foi até à porta.

—        Quer fazer o favor de entrar, Sr. Kane?

Um homem apareceu à porta. Era alto, um tanto calvo, de om­bros largos e rosto vermelho. Tinha olhos castanhos que pareciam um pouco enevoados. Olhando-o, lembrei-me vagamente de ter ou­vido dizer que todos os que não eram católicos iam para o inferno. Mas eu não me incomodava. Não fazia mal que eu fosse para o in­ferno desde que eu tivesse alguém que me olhasse assim — com amor e bondade e com os olhos toldados pelo receio de que eu não gostasse dele. Ele sorriu e a sala toda se iluminou. Estendeu-me a mão e eu a tomei. Era uma mão quente e cordial, cheia de compreen-sões secretas que pareciam correr entre nós como correntes elétricas.

—        Então você é que é Frankie!

A voz dele era muito como ele, profunda, comovida e um pouco trêmula.

—        Sim, senhor, — disse eu com voz também trêmula.

E havia lágrimas nos meus olhos e amor no meu coração. Por­que eu sabia que era parente daquele homem, era do seu sangue e de sua família. Isso eu sabia e sentia.

Foi só um pouco depois que eu fiquei sabendo que o nome dele se escrevia "Cain".

E só alguns dias depois eu soube que era judeu.

Ouvi dizer já não sei onde que as notícias têm uma maneira misteriosa de propagar-se. Pouco depois de eu ter voltado para o dormitório, todo o mundo no orfanato sabia que eu tinha sido ado­tado. Os outros garotos me fizeram perguntas e eu as respondi da melhor maneira possível. Não tinha muito para dizer-lhes. Mas es­tava ansioso para que a tarde chegasse e eu pudesse ir dar a noticia a Julie

Telefonei-lhe antes para saber se o caminho estava livre e de­pois subi.

Ela me abriu a porta da cozinha. Parecia um pouco cansada, mas não dei muita importância a isso. Contei-lhe então no quarto de­la o que havia acontecido naquele dia.

Quando acabei, ela me disse:

—        Fico muito satisfeita com tudo isso. Você bem que merecia uma oportunidade assim.

Mas falou sem entusiasmo, O tom de voz dela parecia cansado e apático.

—        Mas não parece contente com isso, Julie.

Ela se levantou e foi até à janela. Depois de alguns momentos em silêncio, falou, sem se voltar para mim, com uma voz seca e ás­pera que eu ainda não conhecia.

Vou voltar para casa, Frankie.

Por quê? Não é preciso fazer isso. Continuarei a vir ver vo­cê, aconteça o que acontecer.

Para ter uma mulher à sua disposição?

Não. Porque gosto de você. Devia saber disso porque já me fez dizer isso muitas vezes.

Você não gosta mais de mim do que gostaria de qualquer outra mulher que deixasse você fazer com ela o que eu deixo. Nós nunca mais nos veremos

Mas você ainda não me disse por que, Julie.

Já que você quer saber, eu vou dizer. Para mim, dormir com um garoto como você não tem futuro nenhum. Você nada pode fazer por mim. Não pode nem casar comigo se eu ficar esperando. Qual é então a vantagem que eu tiro, salvo a de ser sua professora? Não, Frankie, a escola de verão acabou. Saia então como um bom garoto. Já se divertiu demais. Agora, vá saindo!

Fui até onde ela estava e peguei-lhe no braço. Ela sacudiu o braço.

Mas, Julie...

Saia, Frankie!

Senti um aperto na garganta e encaminhei-me para a porta.

—        Adeus, Julie.

Ela não me respondeu. Abri a porta e sai.

No corredor, tirei um cigarro do bolso e acendi-o. Ouvi o estalo das molas da cama dela e depois ouvi-lhe os soluços. Afastei-me da porta e desci.

Cheguei à rua. Era uma tarde luminosa, mas eu sentia frio. En­trei no parque e estendi-me na grama. Olhava para o céu sem vê-lo. Os pensamentos me corriam pela cabeça... Julie, Julie, Julie.

Escrevi para Jerry e disse-lhe que tinha sido adotado. Ele me respondeu com uma carta em que falava da sua satisfação. A semana passou voando e chegou afinal o dia da minha saída. Meu tio chega­ria naquela tarde para levar-me. Eu havia arrumado tudo o que era meu em duas caixas de papelão que levara para baixo, guardando-as no gabinete do superintendente.

Não tinha vontade de voltar ao meu quarto. Ouvi algum baru­lho no ginásio que ficava no porão e desci para ver o que estava ha­vendo.

No meio da escada, ouvi o sino tocar chamando para o almoço. Subi então para o refeitório. Sentei-me à mesa e baixei a cabeça en­quanto o Irmão Bernhard fazia a oração. Foi então que comecei a ter o estranho sentimento de que nunca tinha estado ali. Os rostos em torno de mim me pareciam estranhos, indiferentes. O mármore da mesa me parecia frio e hostil. Passei os dedos por ela e encontrei o lugar onde eu havia riscado meu nome com uma chave. Já nem me lembrava de quando fizera aquilo. Tinha sido há tanto tempo. Não estava com fome. Comecei a pensar na casa para onde ia sem saber se minha tia ou meus primos gostariam de mim. Fiquei sabendo en­tão que não queria sair do orfanato.

Em dado momento, pedi a Irmão Bernhard licença para sair da mesa. Ele parecia compreender o que eu estava sentindo e concor­dou.

Sai para o recreio. Era ali que eu havia jogado bola e entrara tantas vezes em fila para ir para a escola. Naquele momento, estava silencioso e deserto, mas eu ouvi perfeitamente a algazarra das cri­anças que esperavam o toque do sino. Podia vê-las correndo e gri­tando, brincando de esconder, deixando os livros no chão para mar­car os seus lugares na fila. Olhei para a torre de St. Thérèse quase esperando ouvir o carrilhão tocar.

De repente, vi alguém ao meu lado. Ergui os olhos. Era o Irmão Bernhard.

—        Está sentindo uma coisa estranha, não é, Francis? Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.

—        Sei como se sente, Francis. Acompanhei você durante muitos anos desde quando era um bebê. Lembro-me de quando você come­çou a andar, da cara que você fazia quando caía e procurava levantar-se. Você nunca chorava. Apertava a boca de uma maneira engraçada e tentava de novo. Tentei ser mãe e pai para você — atenuar suas decepções, fazê-lo conservar a cabeça erguida quando estava deses­perado. Sempre o conheci melhor do que qualquer pessoa, me lhor do que você mesmo. Sabia Quando estava feliz e quando se sentia triste. Havia algumas coisas que não lhe podia dizer. Você teria de aprendê-las por si mesmo. Vi você aprendê-las, quando havia linhas de dureza na sua boca e sombras nos seus olhos. Mas nada eu podia fazer. Tinha de limitar-me a ter esperança de que tudo acabasse bem e você não sofresse demais - Mas tenho sempre a impressão de que o que fiz não foi bastante.

—        Não diga isso, Irmão Bernhard! Foi formidável! Nunca lhe poderei agradecer mesmo tudo o que fez por mim!

Ele sorriu.

—        Não é a mim que deve agradecer, Frankie, é à Igreja. E, ape­sar de tudo, o sentimento persiste em mim. Sei que ensinamos mui­tas coisas boas aqui. Mas é fora desses muros que se aprende mais do que em qualquer outro lugar. Nós que vivemos aqui, levamos uma vida protegida, serena, livre de lutas e perdemos contato com a vida real. Quando você estava aqui dentro, podíamos vigiá-lo e ori­ entá-lo. Mas agora que você vai lá para fora... quem poderá ajudá-lo? Quem lhe dará abrigo e o defenderá da insensatez dos outros? Não, Francis, tenho receio de que haja muito mais do que isso, coi­sas em que nós, aqui, dentro, nem chegamos a pensar. Devíamos an­dar mais lá. por fora para poder guiar os nossos rapazes...

Tirou um lenço e assoou o nariz. — Chega de sentimentalismo, Francis! Já se despediu do Padre Quinn, da Irmã Superiora e de to­das as suas professoras? Teremos saudades de você.

Terei também saudades de todos, Irmão Bernard. Já me des­pedi deles hoje de manhã.

Muito bem, disse ele, entrando comigo. — Ainda nos vere­mos antes da sua partida.

Escute, Irmão Bernhard.

Que é, meu filho?

É pecado mortal ser judeu?

O rosto dele encheu-se de suavidade ao olhar para mim. Por fim, falou com voz muito lenta e serena:

Não, meu filho, não é. Nem poderia ser. Há gente que se es­quece com muita facilidade de que Jesus Cristo foi judeu.

Mas, Irmão, se eu sou judeu e tenho de viver com a minha gente, talvez não possa mais ir à igreja, nem me confessar e ser ab­solvido dos meus pecados. Neste caso, quando morrer, irei certa­ mente para o inferno.

Francis, por mais que muita gente goste de pensar o contrá­rio, o céu não é propriedade exclusiva dos católicos. É um lugar on­de todas as pessoas boas são bem recebidas. Acredito que seja aberto a toda a humanidade seja qual for a maneira pela qual a pessoa vene­re Nosso Senhor. Basta acreditar Nele e viver de acordo com as Suas luzes. Seja um bom rapaz, Francis, e ame a sua gente. Faça o que for direito e nada terá de temer, Compreende, meu filho?

Compreendo, sim, senhor. E é assim que fazer.

Ótimo! Agora, tenho de ir que o almoço já deve estar quase acabando.

Desmanchou-me afetuosamente os cabelos e entrou.

Os garotos estavam saindo do almoço. Derramaram-se pelo recreio saindo de todas as portas. Entrei no prédio pela porta do ginásio.

Desci a escada que dava para o ginásio e fiquei olhando. Al­guns garotos estavam batendo uma bola de basquete do outro lado da quadra. Peter Sampero era um deles. Resolvi ir até lá despedir-me e dizer a ele que esquecesse tudo o que tinha havido entre nós.

O grupo ficou em silêncio quando me aproximei. Senti que ha­via alguma coisa anormal e um arrepio me correu a espinha, embora eu não pudesse compreender de que se tratava. Mas havia aprendido desde há muito a não dar sinais de apreensão. Continuei a caminhar em direção a eles. Parei em frente a Pete e estendi-lhe a mão.

—        Quer esquecer-se do que aconteceu, Pete?

Ele olhou para mim, sem tomar conhecimento da minha mão estendida. Depois, deu um passo à frente.

—        Claro que vou-me esquecer disse ele, dando-me um murro no queixo.

Cambaleei para trás e cai por cima de um garoto que me dera uma cama-de-gato. Várias mãos me agarraram, prendendo-me ao chão. Não podia mover-me. A minha surpresa foi a princípio tanta que nem tentei. Pete estava diante de mim.

—        Judeu cachorro! — exclamou ele. Entrou escondido na nos­sa escola e nunca disse nada!

Deu-me um pontapé no lado e eu senti uma dor fortíssima. Em seguida, curvou-se e bateu-me no rosto. Consegui então soltar uma das mãos e agarrei-o pela camisa. Ele procurou levantar o corpo ao mesmo tempo que me batia no rosto. Continuei agarrado à camisa e ele me levantou consigo. Livrei a outra mão a apertei am­bas em torno do pescoço dele. Encostei-o à parede. Os outros garotos pulavam em volta de mim, batendo-me nas costas e nas pernas. Não lhes dei atenção. Pela primeira vez em minha vida, lutava sem pensar. Estava alucinado pelo ódio. Apertei-lhe o pescoço e come­cei metodicamente a bater com a cabeça dele na parede. Ele conti­nuava a esmurrar-me o estômago. O sangue do nariz e da boca me escorria pelo rosto. Depois, os outros garotos pularam sobre mim e todos nós começamos a rolar pelo chão. Senti as roupas rasgarem-se. Mas pouco me importava. Queria apenas era matar Pete, matar, matar! Bati com a cabeça dele no chão de cimento. De repente, fui agarrado pelos ombros por mãos fortes que me levantaram e me a-fastaram de Pete. E então tudo ficou em silêncio. O Irmão Ber-nhard estava-me agarrando e eu não podia mover-me. Pete ainda estava estendido no chão.

—        Quem começou isso? — disse severamente o Irmão Benhard.

Sem pensar no que estava dizendo, um dos garotos menores contou tudo.

—        Foi Peter! Disse que estava na hora de dar uma lição a esse judeu imundo!

Sem deixar de segurar-me, o Irmão Bernhard disse aos outros:

—        Vão para os seus dormitórios. Voltou-se em seguida para Peter e disse:

—        Vá para casa e nunca mais ponha os pés neste ginásio, que é só para os que moram aqui.

Só me largou quando o último garoto havia saído do ginásio. Olhou então para mim e disse:

—        Não tenha raiva deles. Ainda têm de aprender.

Olhei para ele, todo ensangüentado e dolorido e respirando com dificuldade. Nada disse.

—        Vá-se lavar, Frankie. Seu tio já está esperando e você não pode trocar de roupa porque tudo já está arrumado nas malas.

Fui para o lavatório e arrumei-me da melhor maneira possível, ajudado pelo Irmão Bernhard. Depois, subimos para o gabinete do superintendente.

Meu tio estava lá. Havia uma mulher com ele e eu supus que fosse minha tia. Acho que meu aspecto era horrível, com as roupas ensangüentadas e rasgadas. O rosto da mulher ficou muito branco. Atravessei a sala, sentindo dores no corpo todo. Havia um barulho tremendo nos meus ouvidos. Senti que estava caindo no meio de uma porção de rostos que giravam — .. irmão Bernhard, meu tio, Pe­ter, Marty, Raymond, Jerry, o pai de Jerry, Ruth, irmã Atine, o Padre Quinn, Jimmy Keough, Fennelli, Julie.

Tentei abrir os olhos. Não pude. As lágrimas não deixavam. A-final, depois de horas de esforço, consegui. Estava nu quarto branco. Minha tia, meu tio e o Irmão Bernhard estavam inclinados sobre mim. Pelo canto dos olhos, vi uma enfermeira sair do quarto, sem compreender o que era que uma enfermeira estava fazendo ali. Ten­tei dizer alguma coisa.

O Irmão Bernhard colocou o dedo nos meus lábios.

— Não fale, rapaz. Você está no Hospital Roosevelt com três costelas quebradas. Procure repousar.

Rolei a cabeça no travesseiro. Na parede havia uma folhinha na qual se lia: 10 de setembro de 1925.

Foi o meu último dia no orfanato de St. Thérèse.

 

INTERLÚDIO

MARTY

Martin estava à porta ouvindo o carrilhão da campainha da por­ta que tocava dentro do apartamento. Tirou o quepe. A luz forte do teto transformava em ouro fosco os seus louros cabelos já escassos, quase da mesma cor das folhas de carvalho do posto de capitão que levava nas platinas da farda. Como estariam todos? Quatro anos... Era muito tempo.

As pessoas mudavam muito em quatro anos. Ele devia saber disso. Vira durante quatro anos meninos transformarem-se em ho­mens ou, melhor, em velhos cansados. Tinha-os visto chegar ao pronto-socorro com a decepção e o horror estampados nos rostos. A incredulidade em face das realidades do sofrimento e de horror que os cercavam deixaria dentro deles marcas profundas.

Essa tinha sido a sua tarefa — livrá-los daquelas cicatrizes o-cultas e invisíveis que lhes estavam gravadas nas almas. O que havia no corpo era relativamente simples. Pegava-se num bisturi, cortava-se e rezava-se. Ao fim de algum tempo, deixava-se de rezar, mas continuava-se a cortar com um sentimento íntimo de desespero. Ou sobreviviam ou não. As coisas eram simples assim.

A sua tarefa não era tão simples. As coisas que ele fazia com e-les não eram tangíveis. Não viviam nem morriam em conseqüência do que ele tinha de fazer. Apesar disso, fazia tanta diferença como se eles tivessem morrido ou vivido. Só que nada se via quando não se sabia como olhar. Às vezes, via-se uma boca cessar de súbito o seu quase imperceptível tremor ou a luz chegar a olhos apáticos ou a mão tornar-se mais firme. Outras vezes, tudo se traduzia pela posição da cabeça de um homem quando andava. E compreendia-se então que se havia vencido a batalha. Era uma vitória intangível, secreta, que quase não se poderia perceber se não se olhasse no momento exato.

Janet abriu a porta. Ficaram um momento a olhar-se. "Ela não mudou muito", pensou ele febrilmente. "O mesmo rostinho, os mesmos olhos azuis e os mesmos cabelos louros com as pontas es-voaçantes que a fazem ficar com um jeito infantil de garoto."

—        Marty, — murmurou ela com a voz doce e agradável.

Ele sentiu a suave pressão dos lábios dela no rosto e na boca. O leve e terno beijo da amizade, da acolhida.

Já faz...

Quatro anos, — disse ele com um sorriso. — Estive pensan­do...

E nós também, Marty. Já faz muito tempo. Pensamos que talvez você tivesse mudado.

Engraçado. Estive pensando a mesma coisa sobre você e so­bre Jerry. — Ela tomou-lhe o braço e levou-o para o living. Ele con­tinuou a falar enquanto se deixava levar por ela. — Durante alguns segundos, enquanto esperava que você me abrisse a porta. tive a im­pressão de que me havia tornado um estranho para você.

Ela tirou o quepe das mãos dele e entregou-o a uma empregada que apareceu de repente e desapareceu quase no mesmo instante. Jerry chegou correndo à sala.

Os dois homens se apertaram as mãos com os olhos fitos um no outro e assim ficaram durante muito tempo. Depois, começaram quase ao mesmo tempo a dizer as coisas sem muito nexo que os a-dultos se dizem quando estão profundamente comovidos.

Janet chegou com alguns drinques. Ergueram os copos.

À nossa reunião 1 — brindou Jerry com um sorriso.

À vocês dois, — retribuiu Marty.

Esperem um instante, — disse Janet.

Os dois olharam para ela, que ergueu o copo, sorridente e feliz.

—        À amizade que o tempo não destrói! Beberam todos, enternecidos.

O jantar foi uma daquelas coisas com que Martin havia muito sonhava — uma toalha de linho impecavelmente alva, pratarias cin­tilantes, louças finas, velas na mesa. E, além de tudo isso, os amigos os amigos da sua infância, com quem ele podia recordar os tempos idos e reviver aqueles dias jovens e febris quando o mundo inteiro era novo e cada dia era diferente, trazendo a promessa e a esperança de um amanhã melhor.

Era inevitável que falassem em Francis. Era o que sempre a-contecia mais cedo ou mais tarde. Dessa vez, foi Janet quem tocou nele e Martin pegou a deixa. As recordações encheram-lhe o espíri­to e fizeram-no falar — Francis, os primeiros dias da sua amizade e, depois, o longo convívio. Era como se houvesse acontecido na véspera.

— Ainda me lembro do dia em que o conheci, — disse ele. — Éramos bem garotos. Eu devia ter treze anos e um grupo de garotos me atacou quando eu voltava da escola. Naquele tempo, eu estava interessado em box, mas não era muito bom. Ele era excelente e eu fiquei sabendo disso desde o primeiro momento em que tentei atin­gi-lo.

"Mas havia nele outras coisas que me atraíram: um senso ins­tintivo, quase relutante, de honestidade, de sentimentos para com os outros, uma competência tranqüila e um sentimento de segurança em tudo o que ele fazia. As pessoas mais velhas não o intimidavam. Fa­lava com elas como se fosse um igual, como se fosse adulto também.

"Foi ele que me inspirou o sentimento de igualdade. Antes de conhecê-lo, tivera presente sempre no espírito o fato de ser judeu. Não podia esquecer-me disso em vista das obscenidades escritas nas paredes, das agressões que sofria, das piadas que ouvia, das grosse­rias por que passava. Já estava quase ficando também deformado e fanático, atribuindo a essa circunstância todos os pequenos inciden­tes que me aconteciam. Mas ele me curou disso, aceitando-me no seu pequeno grupo sem discussão e me aproximando dos amigos de­le sem qualquer explicação ou justificativa.

"Aceitou-me e os amigos dele tiveram de aceitar-me. Talvez por causa dele, não sei. Mas agrada-me pensar que ele contribuiu pa­ra isso. Muitos anos depois, quando fui para a escola de Medicina, pensava nele e compreendia que devia a ele tanto quanto a qualquer outra pessoa estar ali. Uma vez, ele me disse a respeito de um cama­rada de quem eu não gostava muito: 'Ora, ele é OK. Você só precisa é de compreendê-lo'.

"E nessas palavras dele achei uma solução para quase tudo o que me estava fermentando na cabeça. Quando se compreende um homem, quando se compreende por que ele faz as coisas, não se pre­cisa de ter medo dele, nem de que esse medo leve a gente a querer destruí-lo. Não sei se, quando era rapaz ou se quando estava na esco­la, pensava exatamente assim, mas é a ele que atribuo esses conceito que me têm inspirado a vida.

"Foi na Alemanha em 1935 que pensei de novo intensamente nele. Estava ali fazendo curso de especialização numa universida­de. Um dia, de volta das aulas, ia pela rua lendo um livro no qual estava muito interessado no momento. Tinha de concentrar-me na leitura porque nessa época não dominava bem o alemão e, sem ver, esbarrei num homem. Sem levantar a vista, pedi desculpas e conti­nuei. Foi então que a coisa aconteceu. Por um momento, fiquei confuso e voltei a ser um garotinho atormentado na Rua 59 por um grupo de garotos ignorantes. Depois, ouvi a palavra "Jude", usada daquela maneira odiosa e má. Levantei os olhos e vi que o homem estava com a farda das tropas de assalto nazista. Ele me bateu e eu reagi, deixando-o prostrado.

"Voltei então à escola e perguntei a um professor, que também era judeu, por que se permitia que tais coisas acontecessem. 'Você não compreende, meu filho', disse ele sacudindo a cabeça grisalha, 'mas essa gente está doente e com medo e o medo deles se transfor­ma em ódio'. Nesse momento, lembrei-me de Frankie e perguntei: 'Por que quem compreende as coisas não explica tudo a eles ?' O professor me respondeu: 'Somos bem poucos e, além disso, eles não nos querem escutar'.

"Sai da Alemanha no dia seguinte sem completar os cursos. Sabia alguma coisa que procurei dizer ao povo daqui, mas também aqui não compreenderam o que eu dizia. Só algumas pessoas me ou­viram — vocês dois, Ruth e mais alguns que eu podia contar com os dedos da mão. Os outros não acreditaram ou não se interessaram.

"Em outras ocasiões, foram muitas as vezes em que me cansava e desanimava com o tratamento de um doente e sentia a vontade de dizer-lhe: 'Não me apareça mais aqui! Nada posso fazer por você' Mas me lembrava de Frankie e dizia: 'A culpa não é do doente, é minha. Não compreendo, não sei ao certo o que ele tem. E se eu não sei, como é que posso curá-lo ?'

"Devia insistir no caso e lutava durante mais algum tempo. Às vezes dava resultado, às vezes não dava. Houve alguns casos em que nada pude fazer, mas não foi porque não tentasse. Foi porque não os compreendia, não tinha acuidade nem conhecimento suficientes para ver onde era que estava o mal. A culpa era da minha ignorância e não deles".

Riu um pouco e levou o copo de vinho aos lábios.

— Assim fala Martin Cabell um dos maiores psiquiatras do mundo, explicando os seus insucessos à luz da razão. Ou pode ser que tudo seja porque tenho um sentimento de inferioridade.

Olhou para os amigos e o rosto perdeu a sua intensidade, tor­nou-se mais repousado, mais calmo, mais jovem. Sorriu com o mesmo velho sorriso — quente, amigo, moço.

"Velhos amigos", pensou ele satisfeito. "Como antigamente. Não mudaram. Posso ainda falar e ser escutado por eles". O mundo parecia ter voltado aos eixos e pela primeira vez desde que voltara se sentiu ajustado.

 

Durante os dias que passei no hospital, aprendi muito sobre meu tio e sua família. Ele trabalhava como vendedor de uma fábrica de roupas no centro e o casal já vivia em Nova York havia dez anos. Tinham um confortável apartamento de cinco peças em Washington Heights.

Minha tia era uma mulher calada e gentil a quem passei a ado­rar desde o primeiro momento. Nem por palavras, nem por gestos, parecia jamais pensar mal de mim. Ia todos os dias ao hospital, le­vando um presente de frutas, de biscoitos ou um livro para me ajudar a passar o tempo. Ficava tanto quanto lhe era possível e depois ia-se embora. Às vezes, levava minhas primas. Eram duas meninas de oito e dez anos.

A princípio, as duas não se aproximaram muito de mim, trava­das por uma curiosa mistura de amizade e timidez. Mais tarde, co­meçaram a beijar-me o rosto na entrada e na saída.

Morris e Bertha Cain e as filhas deles, Esther e Irene, foram a primeira família que tive e, se havia uma certa dose de estranheza entre nós, isso era perfeitamente compreensível. As relações de fa­mília, que parecem normais para a maioria das pessoas, eram para mim. estranhamente complicadas. Não podia compreender as intrin­cadas ramificações das famílias, mas fomos rompendo.

Saí do hospital quase nos fins de setembro e entrei diretamente para um mundo novo. O tio Morris tinha um pequeno Buick e me le­vou nele para casa. Tinha ido buscar-me sozinho. Quando cheguei ao apartamento, vi que haviam arrumado uma festinha para mim. Tia Bertha fizera um bolo e eu fiquei conhecendo muitos outros parentes.

Depois que todos saíram, levaram-me para o quarto que ia ser meu. Tinha sido o quarto de Irene (a mais velha das duas primas) mas ela passara a dormir no mesmo quarto com Esther ou Essie, como cha­mavam a mais nova. As minhas roupas já estavam arrumadas no ar­mário e tudo me parecia cordial e sincero.

Lembro-me de Tio Morri ter dito, abrindo a porta: "É este o seu quarto, Frankie". Entrei, seguido por ele e por Tia Bertha. As meni­nas já estavam na cama. A primeira coisa que vi foi o retrato emol­durado de um mulher jovem em cima da cômoda.

—        Sua mãe, Frankie, — disse-me Tia Bertha. — É o único retrato que temos dela e eu pensei que devia ficar com você.

Examinei-o. Ela devia ter dezenove anos quando tirara aquele retrato. Os cabelos estavam presos atrás num coque, como era moda naquela época. Havia um sorriso nos lábios e um reflexo de riso inte­rior parecia dançar-lhe nos olhos. O queixo era forte — redondo mas forte, talvez forte demais para aqueles olhos e aqueles lábios. Olhei o retrato durante alguns minutos.

—        Você se parece muito com ela, Frankie, — disse Tio Morris. — Os olhos são da mesma cor e a boca é tão parecida com a dela que quase não é uma boca de rapaz. Gostaria de saber alguma coisa dela?

Fiz um gesto afirmativo

—        Troque então de roupa para dormir e, enquanto isso, conver­saremos.

Tia Bertha abriu uma gaveta da cômoda e tirou um pijama novo.

Julgamos que você talvez precisasse de algumas coisas, — disse ela, com um sorriso.

Muito obrigado, — disse eu, pegando o pijama e me sentin­do pouco à vontade. Tinha ainda de aprender a aceitar um presente. Comecei a tirar a camisa.

Nunca se sinta envergonhado de sua mãe, Frankie. Era uma moça excepcional. Há muito tempo, todos nós vivíamos em Chicago. É de onde somos. Sua mãe era o orgulho da família. Aos vinte anos, já havia terminado o curso na universidade e estava pensando em trabalhar. Foi nessa época que se tirou esse retrato, pouco depois da formatura dela. Fran era uma criatura muito interessada e ativa. Par­ ticipava de campanhas pelo voto feminino e pela igualdade de direi­tos do homem e da mulher. Fazia muitos discursos sobre isso e a fa­ mília, como já disse, se orgulhava dela. Trabalhava na contabilidade de Marshall Field's, uma grande loja de departamentos de Chicago, e ela era a única pessoa capaz de descobrir os enganos nos balancetes mensais. Foi mais ou menos por essa época que eu vim para No­va York. Pouco depois, ela começou a gostar de um homem que trabalhava ali também. Queria casar-se com ele, mas minha mãe e meu pai não consentiram, O rapaz não era judeu e meus pais costumavam ser muito rigorosos nessas coisas. Para resumir a história, ela acabou fugindo com ele. Recebi uma carta dela dizendo que viria procurar-me em Nova York, logo que chegasse aqui. Foi a última notícia que qualquer pessoa da família teve dela. Tentamos procurá-la sem resultado. Não havia o menor vestígio dela. Pouco depois, minha mãe morreu e meu pai veio morar conosco. Sempre me dizia: "Se não fossemos loucos e não tentássemos Faigele a fazer o que nós queríamos, ainda estaríamos todos juntos". Não durou muito depois da morte de minha mãe. Sentia muito a falta dela.

Mas tudo isso aconteceu ontem, — disse Tia Bertha. — O que está acontecendo hoje é que interessa. Tenho a impressão de que todos eles sabem que você está conosco e se sentem felizes, tão feli­zes quanto nós nos sentimos de tê-lo aqui. Queremos que goste de nós como gostamos de você, Frankie.

Sim, senhora, — disse eu, sentando-me na cama para tirar os sapatos e as meias.

Boa-noite, — disseram.

Tia Bertha curvou-se para mim e beijou-me o rosto.

—        Boa noite, — respondi.

Antes de saírem do quarto, Tia Bertha parou na porta e mur murou:

Frankie...

Sim, senhora?

Não me chame de "senhora". Chame-me Tia Bertha.

—        Sim, Tia Bertha, — disse eu, levando a mão ao rosto, no lu­gar onde ela me havia beijado. Adormeci com o luar batendo no re­trato de minha mãe e tive a impressão no escuro de que ela estava sorrindo.

Acordei cedo na manhã seguinte. O apartamento estava em si­lêncio e todo o mundo parecia estar dormindo ainda. Levantei-me, fui até à cômoda e olhei para o meu relógio. Seis e meia. Fui até à janela.

A manhã ainda não estava bem clara. O sol ainda não havia aparecido. O meu quarto dava para um pátio, onde se viam mais duas casas. De vez em quando, saía das janelas abertas um som de despertador e o cheiro do primeiro café. As paredes dos edifícios que davam para o pátio estavam pintadas de branco para melhor re­fletirem a luz. Saí da janela e vesti-me sem fazer barulho para ir lavar-me no banheiro.

Quando acabei, voltei para o meu quarto e sentei-me. Tinha de acostumar-me a tudo aquilo. Era estranho para mim dormir sozinho e não em companhia de uma porção de garotos e eu sentia falta das conversas e brincadeiras matinais. Ouvi alguém passar pelo corredor diante da minha porta. Fui até à porta e abri-a. Era minha tia.

—        Bom dia, Frankie. Acordou cedo, — disse ela com um sorriso.

É que eu costumo mesmo acordar cedo.

Já se lavou

Já. E estou vestido.

Quer então me fazer o favor de ir comprar pão na padaria? Assim, eu não terei de ir.

Vou sim, Tia Bertha.

Ela me deu o dinheiro, disse onde ficava a padaria e eu saí de casa.

Eram quase sete horas e os homens estavam começando a ir pa­ra o trabalho. Comprei os pães e, na volta, comprei o News.

Chegando à casa, coloquei as compras em cima da mesa da co­zinha e me sentei para ler o jornal. Alguns minutos depois, minha tia me deu o meu café. Cerca de dez minutos depois, meu tio entrou, sentou-se a mesa e disse:

Bom dia, Frankie. Dormiu bem?

Otimamente, Tio Morris.

Estou vendo que comprou o jornal. Alguma novidade?

Nada demais. Quer ler?

Quero, sim. Obrigado, — disse ele, pegando o jornal.

Tia Bertha chegou com um prato de torradas e colocou um co­po de suco de laranja diante dele.

Depois, comemos ovos e alguns pedaços de pastel que eu havia trazido da padaria. Quando estávamos acabando, as meninas apare­ceram.

—        Bom dia, — disseram quase ao mesmo tempo e beijaram o rosto do pai, cada uma de um lado. Ele abraçou-as e continuou a ler o jornal, tomando outra xícara de café. As meninas foram então bei­jar a mãe. Ela se inclinou para beijá-las e disse-lhes alguma coisa em voz baixa.

Aproximaram-se de mim e beijaram-me também. Ri, satisfeito. Tio Morris olhou para o relógio

Está na minha hora. Vai à escola hoje, Frankie?

Acho que sim

Muito bem. Conte-me à noite como foi que se saiu, — disse ele, beijando a mulher e saindo.

Para que escola vai você, Frankie? — perguntou Essie, a mais nova

Para a George Washington

Eu vou para a P.S. 181 — disse ela.

Ótimo, — disse eu

Ficamos em silêncio durante algum tempo. Não sabíamos sobre o que havíamos de falar.

Tia Bertha deu café às filhas e sentou-se.

Gostou do seu café, Frankie?

Foi ótimo, Tia Bertha

Fico muito satisfeita com isso. Agora, vá-se aprontar. Você não deve chegar atrasado no seu primeiro dia de escola

Voltei para o quarto, botei a gravata, vesti o paletó e desci para a cozinha. Tia Bertha levantou-se e me levou até à porta. Na saleta de entrada, deu-me algum dinheiro

—        Isto aqui é a sua mesada da semana, para lanche, condução e o mais que precisar. Se quiser mais alguma coisa, é só me dizer.

Eram três dólares.

—        Não, — disse eu. — Chega de sobra. Acho que não vou pre­cisar de mais. Muito obrigado

—        Que tudo lhe corra bem, — disse ela, fechando a porta. Sentia-me pouco à vontade, não sabia bem por quê. Tudo me parecia diferente. Talvez fosse porque eu não havia ouvido missa an­tes de ir para a escola.

A Escola Secundária George Washington ficava na esquina da Rua 181 com a Avenida Audubon, no alto, dominando Heights e, do outro lado do East River, o Bronx. Era um edifício novo com uma cúpula.

Fui mandado ao gabinete do diretor. Dei meu nome à secretá­ria, ela procurou o meu cartão de matrícula. e me disse que fosse pa­ra a Sala 608 quando o sino tocasse às nove horas

Quando o sino tocou, os corredores ficaram cheios de alunos que passavam para cima e para baixo, rumo às suas salas. Não tive muita dificuldade em encontrar a minha. Entrei e dei o meu cartão ao professor. Ele me indicou um lugar nos fundos da sala. A turma pa­recia mista, cerca de vinte rapazes de cor e vinte, brancos. O que es­tava sentado ao meu lado era preto.

Novo aqui? — perguntou ele com um grande sorriso. — Meu nome é Sam Cornell.

E o meu é Kane. Francis Kane

As coisas eram sem dúvida diferentes ali.

Foi no fim da primeira semana de escola que começamos a fa­lar de religião. Tinha muitas vezes estranhado que os judeus fossem como eram, mas estava começando a compreender. Não iam à igreja durante a semana, nem mesmo no sábado, que era o domingo deles. Acho que me fazia falta o costume de ir à missa todos os dias.

Eu estava dentro de casa, tinha lido todos os jornais e estava começando a ficar inquieto. Tio Morris tinha ido ao escritório, como fazia aos sábados pela manhã, a fim de fazer as contas da semana. Estávamos em casa apenas Tia Bertha e eu. As meninas estavam brincando lá fora,

Tia Bertha, será que posso ir à cidade um instante?

Claro que pode, Frankie. Não precisa nem perguntar.

Fui à outra sala para pegar meu casaco e voltei. Ela me estava olhando de maneira curiosa, como se alguma coisa a estivesse emba­raçando. Era muito delicada para me perguntar aonde é que eu ia e eu não sabia bem o que iria dizer-lhe. Não sabia se podia dizer-lhe que ia ver o Irmão Bernhard e talvez depois passar pela igreja. Mas ela foi mais inteligente do que eu. Quando fui chegando à porta, fa­lou comigo.

Vai demorar muito, Frankie?

Não sei, Tia Bertha. Estou com vontade de ir ver alguns amigos.

Sabe, seu tio e eu tínhamos pensado em levá-lo à sinagoga hoje conosco. Pensei que gostaria de ir agora, desde que não tenha nada de melhor fazer.

Fiquei ali um instante calado, examinando a idéia. Minha tia era decerto inteligente. Talvez fosse capaz até de ler os pensamentos da gente.

Acha que seria direito eu ir? Afinal de contas, nunca estive lá.

É claro que é direito, meu filho. E nós ficaríamos muito con­tentes com isso.

Está bem, então.

Espere um pouco que eu vou com você.

No caminho para a sinagoga, ela nada disse. Chegamos a um edifício cinzento.

—        É aqui a sinagoga, — disse-me tia Bertha.

Não tinha nada de impressionante. Uma casa baixa, sem torres, sem imagens de santos na porta e até sem a estrela dos judeus. Uma casa igual à outras. Não parecia um lugar sagrado onde as pessoas fossem adorar a Deus. Senti-me vagamente decepcionado.

Fiquei ainda mais decepcionado quando entramos. A porta fi­cava alguns degraus abaixo do nível da rua e era preciso descer um pouco para entrar. Depois que se passava a porta, chegava-se a uma sala de paredes nuas pintadas de cinzento. Comecei a tirar o chapéu.

Minha tia me interrompeu.

—        Na sinagoga, Frankie, fica-se sempre de chapéu. Não se po­de estar com a cabeça descoberta.

Ela me fez passar pela porta do outro lado da sala e nós chega­mos à igreja. Havia algumas pessoas lá. Tudo também ali era muito simples. Havia bancos estendidos, muitos deles precisando de uma mão nova de tinta. A parede também e ainda mais de reboco, porque estava estalada em muitos pontos.

No fundo, havia um estrado do qual se levantavam quatro pos­tes entre os quais havia estendido um toldo desbotado de veludo vermelho. Debaixo do toldo, havia uma espécie de armário, diante do qual estava um homem. Estava lendo em voz alta em hebraico um rolo de papel que dois homens seguravam diante dele.

Entramos e fomos sentar-nos num dos bancos da frente. Come­cei a ajoelhar-me, mas minha tia me pegou pelo braço e sacudiu de leve a cabeça. Sentei-me junto dela e me disse em voz baixa:

—        Um judeu não se ajoelha diante de Deus. A sua humildade deve ser de espírito e não de corpo.

Olhei para ela, arregalando os olhos. Aquilo não parecia abso­lutamente uma igreja. Não era preciso proceder diferentemente de qualquer outro lugar. Tinha-se apenas de ficar de chapéu na cabeça.

—        Onde está o rabino? — perguntei. Os únicos homens que eu via no estrado estavam todos com roupas comuns.

—        É o homem que está lendo a Tora.

Calculei que estivesse falando do homem que lia o rolo de pa­pel. Talvez eu esperasse alguém vestido em roupas aparatosas. Mas se era isso mesmo que eu esperava, não vi ninguém assim.

Minha tia apanhou um livrinho no banco ao lado dela e me deu. Metade da página estava impressa em hebraico e a outra metade, em inglês.

—        É isto aqui que ele está lendo, — disse minha tia, apontando uma linha. — Ele está lendo em hebraico, mas você pode ler em in­glês.

O homem fez uma pausa por um momento enquanto o rolo era virado. Depois, recomeçou. A voz dele tinha um tom monótono de cantiga.

"Boruch atto adonai, elohenu melech ho 'olom... "

Olhei para o livro. Minha tia me apontou uma linha em inglês e eu li:

"Bendito seja tu, Senhor nosso Deus...'

Essas palavras eu podia compreender. Fechei os olhos e pude ver o Padre Quinn ajoelhado em frente ao altar, com a suave luz das velas dourando a alvura dos seus paramentos. Podia ouvir as vozes do coro. Sentia o cheiro de incenso e o calor da igreja. Meus lábios se moveram involuntariamente: "Santa Maria, Mãe de Deus".

Minha tia me tocou o ombro. Abri os olhos espantado. Ela es­tava sorrindo mas eu podia ver que tinha os olhos marejados de lá­grimas.

—        É o mesmo Deus, Frankie.

A tensão me abandonou e eu sorri para ela.

Ela estava certa. A Palavra significa Deus em qualquer língua que se falasse — inglês, latim... ou hebraico.

Quando voltamos para casa, encontramos Tio Morri e minha tia disse a ele de onde vínhamos.

Que foi que achou? — perguntou-me ele.

Não sei. É tudo muito estranho para mim.

Gostaria de ir para uma escola hebraica para aprender mais sobre tudo?

Hesitei e minha tia respondeu por mim

—        Acho melhor deixarmos que ele decida por si mesmo nessa questão, Morris. Ele já tem idade bastante para saber o que quer. Vamos deixá-lo pensar sobre isso e, se ele quiser ir, poderá dizer-nos.

Fiquei muito grato a ela por isso. Naquele momento, eu não sa­bia se queria ir ou não. Tia Bertha me havia dito a mesma coisa que o Irmão Bernhard e, sendo assim, eu não podia ver que diferença fa­ria que eu fosse ou deixasse de ir.

Mas ele tem de se preparar para a sua bar mitzvah, — disse Tio Morris

Já agora, não faz muita diferença, — disse minha tia. — A bar mitzvah não o fará mais homem do que já é e, se ele sentir a ne­ cessidade de uma fé, não terá a menor dificuldade de abraçá-la. Já é duplamente abençoado.

Foram essas as últimas palavras que meus tios jamais me fala­ram sobre religião. Fiquei com liberdade de decisão no assunto e nunca mais pensei nisso senão de passagem. Não fui para a escola hebraica e nunca mais entrei depois disso numa igreja ou numa sina­goga. Também não pensava muito em Deus. Tinha certeza de poder entender-me com Ele quando chegasse a ocasião — como me havia entendido com tudo mais na vida, quando chegava o momento e nunca antes.

Nunca se pode fazer reviver o passado. Foi uma verdade que aprendi naquela época. Embora Jerry, Marty e eu continuássemos juntos como bons amigos, nunca mais pudemos voltar à intimidade que havia entre nós antes de eu mudar-me para longe do centro. Não era que houvesse menos camaradagem entre nós. Segundo penso, a nossa amizade se estava tornando mais normal. Eu não estava mais do lado de fora olhando com olhos compridos para as coisas. Tinha minha família e gostava de que fosse assim. Comecei a aprender coi­sas sobre cuidados e consideração pelos outros de que não fazia a menor idéia. Mas esse sentimento só se referia às pessoas de minha família. Para os outros, mantinha a minha atitude original. Era quase como se eu fosse duas pessoas. Seria difícil dizer onde um grupo de sentimentos terminava e o outro começava. Mas eu não pensava nis­so e, o que é mais, nem sabia disso naquela época e, portanto, tudo pouco me interessava.

As coisas iam correndo. Eu era um bom estudante, nem melhor nem pior do que os outros. Não tive grande surpresa quando acabei assumindo uma posição de liderança entre os colegas. Recebi isso

como um fato que estava na ordem natural das coisas. Eu sempre ti­nha sido um líder. Era mais agressivo do que a maioria, mais atirado do que os outros. Não me sentia perturbado pelas vagas especulações dos adolescentes sobre o sexo e observava com divertido interesse as suas conversas e atitudes. Eu já havia passado por essa fase. Mais ainda era um atleta um pouco acima da média. Entrei para o time de basquetebol e para a equipe de natação no meu primeiro ano de es­cola. Jogava basquetebol da única maneira pela qual sabia fazer as coisas, isto é, para ganhar. Queria lá saber de espírito esportivo! Isso era bom para os idiotas que não tinham velocidade ou inteligência bastante para violar as regras. Além disso, detestava perder.

Mas, apesar desse estado de espírito em relação aos outros, a minha intimidade com minha família crescia à medida que eles iam desbastando as arestas mais ásperas ou mais doloridas da minha na­tureza. Pouco a pouco, a defensiva em que eu vivia permanentemen­te começou a desaparecer e, em breve, não restou senão uma agres­sividade, que por sua vez se tornou mais dissimulada à medida que eu aprendi a usar as conveniências sociais para dobrar os outros à minha vontade. Na noite de sexta-feira antes das férias de Natal a nossa escola teve um jogo de basquete com a James Monroe, deven­do haver uma dança depois do jogo. Estavam falando em eleger-me presidente da classe e eu sabia que muito dependia da minha atuação no jogo daquela noite.

Fui para o campo disposto a dar tudo. A minha atuação foi cheia de intenções. Em primeiro lugar, o meu jogo foi violento, den­tro das melhores tradições do que eu havia aprendido na Décima Avenida. Depois, joguei muito para as arquibancadas a ponto de não deixar sobressair ninguém mais do meu time. Quando o jogo termi­nou, havíamos vencido e eu tinha sido o astro indiscutível no campo.

Alguns dos companheiros não gostaram da minha atitude, pois os ouvi resmungarem quando estavam no chuveiro. Pouco me inte­ressava a opinião daqueles bobocas! Se falassem demais, eu saberia fazer com que se calassem. Vesti-me e fui para o salão de dança. Fi­quei da porta olhando o pessoal até que avistei Marty e Jerry em a-nimada conversa com um professor. Eu sabia que havia necessidade de obter permissão para que a minha candidatura pudesse ser apre­sentada. Fingindo que não estava a par de coisa alguma, passei por eles como se estivesse a caminho da saída, mas procurando ficar bem à vista deles.

— Alô, Frankie! — exclamou Marty. — Para onde é que vai assim?

Vou para casa. Prometi a minha tia que...

Mas não pode ir, — replicou ele. — Você é o grande suces­so da noite. Todos querem vê-lo. Além disso, você está sendo espe­rado na dança.

Por quem?

Pelo pessoal todo. Não pode abandoná-los agora. Estão fa­lando no seu nome para presidente da classe e imagine a decepção se você não aparecesse.

Ri intimamente e nesse momento Jerry se aproximou.

Ouviu essa, Jerry? — disse Marty, pegando-o pelo braço. — Frankie quer ir para casa.

Por quê? — perguntou Jerry. — Está doente ou o que é?

Nada disso! Estou é cansado. Pensam que é brincadeira cor­rer em campo como eu corri?

Nada disso! — exclamou Jerry. — Você tem de ir à dança porque vai ser o novo presidente da classe.

Escutem aqui, — disse eu. — Vocês querem me explicar o que é que há a respeito dessa história de ser presidente da classe? Quem foi que teve essa idéia?

A coisa é a seguinte, — disse Marty. — Pensamos que seria uma boa idéia. Você é o camarada mais conhecido da classe. Todo o mundo gosta de você e acha que você seria um ótimo presidente.

Que é que eu teria de fazer?

Quase nada, — disse Jerry. — Faria parte do conselho con­sultivo de alunos e professores e poderia ajudar muito a classe. Além disso, gozaria de alguns privilégios. Vamos para a festa e eu lhe direi o resto.

Está bem — disse eu. — Mas primeiro tenho de telefonar para casa.

Telefonei e voltei para o ginásio onde se estava fazendo a festa. Uma orquestra de seis figuras estava tocando num canto e alguns pa­res dançavam. Havia uma mesa num lado onde se servia ponche e refrigerantes. Marty se aproximou de mim em companhia de uma pequena. Reconheci-a, embora não me lembrasse do nome. Era uma pequena que estudava Biologia comigo.

—        Vocês dois já se conhecem, — disse Marty. — Ela vai fazer chapa com você como candidata a vice-presidente.

Em seguida, afastou-se e nos deixou. Olhamo-nos e ela sorriu. Tinha um sorriso bem bonito, que lhe animava extraordinariamente o rosto.

Não quer dançar, Frankie — perguntou ela.

Claro, mas acontece que não sou muito bom nisso.

Não faz mal. Eu o ajudarei um pouco.

Tomei-a nos braços e nos primeiros momentos fiquei meio de­sajeitado e cheguei a pisar-lhe o pé.

—        Calma! Calma!

Aceitei a sugestão e fiquei calmo. E não me sai muito mal. A música parou.

Não foi muito difícil, foi? — perguntou ela.

Não. Mas você dança bem demais para mim.

Você vai indo muito bem, Frankie. Só precisa é de um pou­quinho de prática.

Quer tomar um copo de ponche?

Fomos até à mesa dos refrigerantes. Falamos com uma porção de rapazes no caminho, mas ninguém a chamou pelo nome e eu não pude saber como se chamava. Dançamos muitas vezes depois disso. Várias pessoas me cumprimentaram pela minha atuação no jogo. A festa acabou às onze horas e nós saímos juntos. Ela morava num edi­fício de apartamentos não muito longe de mim e eu a levei até à par­ta. Ficamos ali conversando sobre a festa e eu de repente percebi que me havia divertido muito.

Tenho de entrar agora, — disse ela por fim. — Já está fican­do tarde.

Sim, já é tarde.

Boa noite, — disse eu e num impulso beijei-a. Ela me pas­sou os braços pelo pescoço e eu senti o doce perfume dos seus cabe­los. Comecei a beijá-la como havia beijado Julie, mas alguma coisa me fez parar. O beijo dela era inocente e puro, sem nada da feroci­dade que Julie mostrava quando me beijava. Fiquei mais calmo. Cheguei a mover as mãos para sentir-lhe os seios, mas parei antes. Depois, ela afastou os lábios dos meus e encostou a cabeça no meu ombro. Continuei a abraçá-la. O contato dos nossos corpos não era sexual. Era uma coisa jovem e pura, que dava apenas uma grande fe­licidade calma.

Não sei o que você está pensando, Frankie, — disse ela. — Mas não beijo assim todos os rapazes a quem conheço.

Sei disso — murmurei, sentindo-lhe o perfume.

Boa noite, Frankie, — disse ela afinal, entrando e fechando a porta.

Já ia saindo quando me lembrei de que ainda não sabia o nome dela. Voltei e olhei para a campainha da porta. Dizia "Lindell".

Lembrei-me então do nome. Era Janet Lindell Saí do edifício assobiando.

Durante a semana de Natal, .Jerry e Marty foram à minha casa para ver-me. Tia Bertha havia ido ao cinema com minhas primas. Sentamo-nos na sala.

Jerry, como de costume, foi quem mais falou. Estava tentando convencer-me de que era a melhor coisa que eu poderia fazer candi­datar-me a presidente da classe, embora na realidade não fosse preci­so convencer-me muito.

Escute aqui, — dizia ele. — Isso pode ser ótimo para você

Fará parte do conselho consultivo e terá pontos a seu favor.

Claro! disse Marty. — Você comandará a turma e todo o es­cutarão. Você é um líder natural.

Gostei de ouvir isso.

  1. Que é que eu tenho de fazer?

Muito pouca coisa, — disse Jerry prontamente. — Já pro­gramamos a campanha toda e nos encarregaremos dos detalhes. Vo­cê só terá de fazer um pequeno discurso na sessão de abertura da campanha na sexta-feira depois que voltarmos à escola.

Não! Isso é que não! Não me vou levantar e fazer um dis­curso na frente de todo o mundo. Nessa eu não caio!

Ora essa, é muito fácil, — disse Marty. — Já escrevemos até o seu discurso: — Tirou uma folha de papel dobrado do bolso e me entregou: Tenho mesmo uma cópia aqui.

Comecei a ler e quando cheguei ao meio parei.

Que foi isso que vocês escreveram? É uma coisa inteiramen­te maluca. Se querem mesmo que eu seja eleito, dêem isto ao meu adversário. Não faz sentido nenhum.

A política também não faz, — disse Jerry, — e eu devo sa­ber. Já ouvi meu pai dizer isso uma porção de vezes. Não é o que se diz ou se faz que tem importâncias mas sim se o povo gosta da gente ou não. O melhor homem do mundo não pode ser eleito nem para li­xeiro se não tem o que se chama de personalidade. Marty e eu arran­jaremos tudo. Você será o último orador do programa. Antes de vo­cê, falarão muitos outros arrasando a assistência com coisas cheias de sentido. Você então se levantará, fará o seu discurso e tomará conta do pessoal.

É isso mesmo, — disse Marty.

Está bem Mas se não der certo, vou ficar bem aborrecido com vocês dois.


—        Não se preocupe que vai dar tudo certo.

Pratiquei o tal discurso durante dez noites a fio. Jerry e Marty me treinaram até eu ficar enjoado. Disseram-me por onde eu devia caminhar, a posição em que deviam ficar as mãos, como eu devia es­tar vestido. Dois dias antes da reunião, disseram-me que não pensas­se mais no discurso senão no momento em que tivesse de fazê-lo.

Mas não pude deixar de pensar. O discurso não me saía da ca­beça durante o dia, enquanto eu estava nas aulas. Ficava acordado à noite pensando nele e, quando ia dormir, era para sonhar com aquilo mesmo. Afinal, chegou o dia. Seguindo as sugestões deles, usei uma gravata borboleta e uma suéter debaixo do paletó.

Senti-me terrivelmente constrangido quando me sentei na pla­taforma junto com os outros candidatos. Pensei que toda a assis­tência tinha os olhos voltados para mim. Janet estava sentada ao meu lado. de vez em quando, sorria para mim e eu tentava retribu­ir-lhe o sorriso. Mas acho que devia estar com um aspecto de com­pleta depressão.

O diretor da escola foi quem primeiro falou. Disse em resumo que os alunos deviam esforçar-se por ser bons cidadãos e praticar a democracia, mas quase não prestei atenção de tão nervoso que esta­va. Depois, o primeiro orador se levantou.

Prometeu dar aos colegas a melhor representação que a turma já tivera e levou dez minutos falando para dizer isso. Quando ter mi­nou, os chefes da torcida se levantaram e comandaram uma ovação para ele. Depois, houve silêncio e o segundo orador se levantou. Prometeu as mesmas coisas que o primeiro no mesmo espaço de tempo. Notei que os estudantes estavam ficando enervados. Ganhou os mesmos aplausos do primeiro e então foi a minha vez.

Sentia o coração bater com força e a garganta estava seca. A-chei que não iria conseguir falar. Olhei para Janet e ela levantou as mãos para me mostrar que estava com os dedos cruzados para dar-me sorte. Encaminhei-me lentamente para o centro da plataforma. Olhei para a assistência e os rostos dos rapazes me pareceram uma massa indistinta. Tive de fazer uma esforço bem grande para come­çar a falar.

—        Sr. Diretor, Srs. Professores, colegas.

Minha voz pareceu ecoar do fundo do auditório. "Está alto de­mais", pensei.

Todos pareciam de olhos muito abertos, como se eu os tivesse tirado do sono.

Para dizer a verdade, estou com medo, — disse com um pouco mais de calma e de naturalidade. Todos riram, inclusive os professores. Senti a tensão desaparecer e continuei

Talvez não acreditem, mas o fato é que não sei o que estou fazendo aqui em cima

Novas gargalhadas e eu senti que estava senhor da situação.

—        Foi ainda há poucos dias que dois colegas e amigos meus me abordaram dizendo: "Você não gostaria de ser presidente da classe ?" E eu, como o grande idiota que sou, fui logo dizendo: "Boa idéia!" Eu agora pergunto: esses dois foram realmente meus amigos?

A assistência riu e houve até algumas palmas. "Jerry tinha ra­zão! É isso mesmo que eles querem !" Continuei a falar.

—        Acabei de ouvir os discursos dos concorrentes e já estou começando a duvidar de que vá votar em mim mesmo.

Houve muitos risos e vi que os estudantes se inclinaram para a frente nas cadeiras a fim de não perderem o que eu ia dizer. Encami­nhei-me lentamente até um canto da plataforma e só então foi que falei de novo.

—        Afinal de contas, se fazer parte do time de basquete e da equipe de natação pode servir de recomendação para um presidente de classe (e abri o paletó para que pudessem ver o suéter laranja e preto com a letra "W" da escola), ganharão então um bom jogador de pin­gue-pongue para a equipe de tênis!

Isso não fez grande sucesso, mas ainda assim houve quem ris­se. Voltei ao centro da plataforma

—        Não sei o que vou prometer fazer caso seja eleito presidente da classe. Meus oponentes já prometeram tudo e nada deixaram para mim

Isso provocou muitos risos e aplausos. Levantei as mãos pedin­do silêncio.

—        Não é que eu pense que eles estão errados. Nada disso! Es­tão absolutamente certos e concordo com eles em todos os pontos. Gostaria de prometer-lhes menos deveres para casa, menos horas de aula, mas não posso. Tenho a impressão de que o diretor não concordaria.

Risos e aplausos. Olhei para Marty e Jerry que estavam senta­dos na primeira fila e vi que estavam sorrindo. Jerry me fez um sinal dizendo que tudo estava ótimo. Continuei.

—        Não lhes vou tomar mais o tempo. Sei que estão ansiosos por voltarem para as aulas. (Risos.) Mas quero assegurar a todos, em meu nome e no dos meus oponentes, que quem for eleito fará o má­ximo pela classe e não é preciso dizer mais nada

Fui para o meu lugar e sentei-me. Os estudantes todos se levantaram, batendo palmas e gritando. Janet me disse ao ouvido:

Levante-se e agradeça

Só se for comigo também, — disse eu.

Ela concordou, tomei-lhe a mão e fomos juntos até ao centro da plataforma. Sorrimos para a turma. Ela estava muito bonita com um vestido cor-de-rosa. Levantei a mão e consegui silêncio.

—        Se não quiserem votar em mim, — disse eu, — votem em Janet para vice-presidente. Ela será a vice-presidente mais linda e mais elegante que a George Washington já teve

Riram e aplaudiram até que o sino tocou e a reunião foi encer­rada. Descemos da plataforma e fomos logo cercados pelos amigos.

A eleição foi naquela tarde e enquanto estavam apurando os votos, Janet e eu esperamos na redação do jornal da escola. Ruth Cabell apareceu quando eu estava conversando com Janet.

—        Você devia inscrever-se no clube dramático, Frankie, — disse ela ironicamente. — Tenho certeza de que Miss Gibbs gostaria de contar com você.

Ruth, que escrevia no jornal, foi saindo antes que eu pudesse dar-lhe uma resposta.

Quem é essa? — perguntou Janet

É a irmã de Marty

Marty entrou nesse momento, todo entusiasmado

—        Vencemos! Vocês dois foram eleitos! Foi um passeio! Não disse?

Apertou-me a mão todo feliz. Durante um momento, não sorri — pensando no que Ruth havia dito — mas depois comecei a rir.

Jerry apareceu com uma dezena de rapazes, inclusive os meus rivais. Estes me desejaram felicidades, a sala ficou cheia e eu me es­queci inteiramente do que Ruth havia dito.

Se eu não tivesse sido eleito presidente da classe, não teria tal­vez conhecido a Sra. Scott e Marty não seria o que é hoje. Mas estou antecipando muito as coisas — os pensamentos me surgem com maior rapidez do que os posso escrever.

Conheci a Sra. Scott na primeira reunião do conselho de alunos e professores a que compareci. Fomos apresentados. Vi uma senhora de aspecto bondoso, que devia ter os seus cinqüenta anos de idade, de óculos e com uma boca determinada e de lábios finos. Estava realizando uma tarefa qualquer de psicologia para o Departamento do Bem-Estar Infantil.

Quase todos os problemas debatidos na reunião eram sem im­portância: referiam-se a alunos que chegavam habitualmente tarde ou faltavam muito, que não compareciam às aulas estando na escola e que respondiam aos professores. A nossa missão não era puni-los. Discutíamos cada caso isoladamente, tentando descobrir quem tinha culpa ou não dessas irregularidades, se o aluno, o professor ou os pais do aluno. Todos os casos eram encaminhados à Sra. Scott. Ela conversava com o aluno e procurava apurar as razões do seu proce­dimento.

Numa escola tão grande quanto a nossa, o número desses peque nos casos era enorme. A moça que sempre havia ajudado a Sra. Scott a manter um fichário dos casos, formava-se naquele ano. A Sra. Scott me perguntou se eu sabia de alguém que pudesse substituí-la e eu sugeri Marty, sabendo que ele estava procurando melhorar a sua ficha escolar.

Marty e ela deram-se muito bem. Marty gostou do trabalho. Foi decerto nesse época que ele resolveu ser psiquiatra. Sempre havia querido estudar medicina e aquilo estava bem dentro do que ele de­sejava.

Janet e eu continuamos muito amigos e, dentro da escola, todos nos consideravam namorados. Eu gostava dela, mas a verdade era que, depois de haver conhecido Julie, as coisas não eram nem seriam jamais simples para mim nesse particular. Mas continuamos a sair juntos, a beijar-nos em despedida depois que eu a levava para casa nas noites de sábado e a passar assim pelo enfadonho processo de crescer.

A escola foi correndo. Dentro em pouco, chegamos à Páscoa e as férias de verão começaram. Passei em todas as cadeiras e naquele verão fui para Rockaway com meus parentes.

Foi o melhor verão que eu até então já passara. Havia muitos ra­pazes e moças e nós nos divertíamos muito. Eu passava quase o dia todo na praia. Olhávamos as moças nos seus maiôs de banho, conver­sávamos sobre os seus atributos físicos e procurávamos adivinhar as que eram sérias e as que não eram. Deparei com uma que não era e pensei que havia encontrado uma coisa exclusiva até o dia em que descobri que quase todos os outros rapazes pensavam a mesma coi­sa. Abandonei-a sem explicações.

Ganhei quase cinco quilos durante o verão. Afinal, chegou o tempo de fechar o bangalô e voltar para a cidade e para a escola. A-cho que foi o verão mais feliz da minha vida. Não sei por que não me posso lembrar com todos os detalhes de tudo o que aconteceu, mas foi tudo tão agradável que os dias pareceram fundir-se uns com os outros e, quando menos eu esperava, tudo terminou.

De novo na escola. Estava no segundo ano, continuava a brilhar no basquete e na natação e era um dos principais homens da escola, vivendo sempre cercado de um grupo que me servia e adulava, da maneira por que só pode acontecer a um herói de escola secundária.

Todos nós havíamos crescido muito naquele verão — Jerry, Marty e eu, e Janet também. Mas só vim a compreender quanto ela crescera no dia em que a levei para casa depois do jogo de futebol americano do Dia de Graças. Ela ia jantar na casa da avó. Os pais dela já haviam saído e ela iria encontrar com eles depois de ter tro­cado de roupa. Esperei-a dentro do apartamento porque havia pro­metido levá-la até a casa da avó antes de voltar para minha casa. Joguei o sobretudo em cima do sofá na sala de estar dela e me sen­tei para ler o jornal.

Poucos minutos depois, ela apareceu vestida com um roupão de banho e com uma combinação na mão.

—        Tenho de passar isto a ferro, — disse-me ela. — Botei para secar hoje de manhã, mas ainda está molhada.

Entrou então na cozinha. Cheguei à porta e fiquei a olhá-la. Ela preparou a tábua de passar, ligou o ferro na tomada e veio para a sala comigo.

—        O ferro leva alguns minutos para esquentar, Frankie. Mas não demora.

Para mim, tanto faz. Tenho tempo de sobra Ela foi até à janela e exclamou:

Veja! Está nevando!

Fui para junto dela, olhei e murmurei:

Não esperava por isso hoje

É a primeira neve do ano.

—        Sim, — disse eu, abraçando-a e beijando-a. — A primeira do ano.

Ficamos por um momento assim abraçados. De repente ela se afastou de mim.

O ferro já deve estar quente, — disse ela, voltando para a cozinha.

E eu também estou!

Ela riu e experimentou o ferro.

Não, não está bem quente ainda.

Que foi que disse? — exclamei, fingindo-me de desentendi­do. — Estou fervendo por dentro.

Não é de você que eu estou falando, bobinho. É do ferro.

Viu então o sorriso no meu rosto e aproximou-se de mim. Bei­jei-a com um abraço bem apertado. Ela quase nada tinha por baixo do roupão de banho. Fomos até o sofá se sentamo-nos. Beijei-a e ela me beijou também com mais calor. Meti a mão por dentro do rou­pão. A pele era macia e suave e o seu contato me fez crispar os de­dos. Ela teve um sobressalto quando sentiu as minhas mãos nela. Beijei-a de novo, acariciando-lhe as costas em pequenos movimen­tos circulares. Ela me abraçou com mais força. Meti a mão por den­tro do soutien e senti-lhe os seios nus. Depois, comecei a beijar-lhe o pescoço, os ombros.

Pare, Frankie! — disse ela, quase num gemido.

Não querida! — exclamei, beijando-lhe o seio.

Oh, Frankie, Frankie, — murmurou ela, enquanto eu a aca­riciava.

Tentei desamarrar-lhe o cinto do roupão. De repente, ela me fez parar, segurando-me as mãos.

—        Não podemos fazer isso, Frankie! Não é direito! Tentei beijá-la de novo, mas ela afastou o rosto.

—        Temos de parar, Frankie, — disse ela, ofegante. — Isso é tão vulgar.

Eu ainda a abraçava. Por fim, ela me empurrou para o lado e levantou-se, ajeitando o roupão no corpo.

—        Não somos mais crianças, Frankie. Não devemos ficar tão excitados assim.

Tomei-lhe a mão, beijei-a e passei-a depois no meu rosto.

Não devemos não. Você é que está certa.

Você é tão bom, Frankie! — disse ela, beijando-me impulsi­vamente voltando para a cozinha.

Fui até à porta, olhei-a e disse, com um sorriso

—        Mas você é muito má, Janet por me provocar assim.

Ela levantou a vista do ferro com uma expressão de mágoa nos olhos.

Mas eu não o provoco, Frankie. Acho que estou gostando de você.

Sei que não me provocou de propósito, querida, — disse eu, tão sério quanto ela.

Ela acabou de passar a ferro a combinação e arrumou tudo na cozinha. Depois, foi para o quarto e se vestiu.

Quando reapareceu, beijei-a. Saímos então do apartamento e fomos a pé até à casa da avó dela.

Despedimo-nos, depois dos cumprimentos pelo dia. Fui pela rua pensativamente. Janet havia também crescido naquele verão.

Foi três dias antes do Natal que eu soube da existência de Sam Cornell Era estranho, mas embora eu fizesse parte do conselho de alunos e professores, nunca estivera presente a qualquer das reuniões em que o caso dele tinha sido discutido. Perdia algumas sessões em virtude dos meus treinos de basquete ou então porque estava com preguiça e sem muito interesse de comparecer.

Marty me encontrou no corredor e me pediu que fosse conver­sar com a Sra. Scott naquela tarde. Perguntei-lhe o motivo.

É a respeito de Sam Cornell. Estão pensando em mandá-lo para o reformatório.

Por que?

Ele se meteu numa tremenda encrenca. Você estaria a par de tudo se não faltasse de vez em quando às sessões.

Não tenho tempo para aquela amolação, Marty. Desde já, fi­ que sabendo que não me vou candidatar à reeleição. Tenho muito oque fazer e não posso estar tratando ainda disso. Sabe que sou agora o capitão do time de basquete?

Está bem, figurão! — disse ele, sorrindo. — Mas vai falar com a Sra. Scott?

Vou sim. E agora mesmo que estou com o tempo livre.

Continuamos juntos pelo corredor e ele me levou até à porta dela. Entrei.

Alô, Sra. Scott. Quer falar comigo?

Alô, Frankie. Quero falar com você, sim. Por onde tem an­dado ultimamente? Não o tenho visto nas reuniões.

Tenho tido muito o que fazer. Sou agora o capitão do time de basquete e tenho de tomar uma porção de providências e de trei­nar quase todos os dias.

Soube disso, mas acho que você deve dar um jeito de com­parecer às reuniões. Foi para isso que o elegeram presidente da classe.

Sei disso, mas já resolvi não me candidatar à reeleição.

O fato de você não querer mais o lugar não justifica o seu descaso enquanto ainda o está exercendo. Não é justo para os seus colegas que votaram em você e é justamente sobre isso que eu quero falar-lhe.

Soube que queria falar comigo a respeito de Sam Cornell.

É isso mesmo. Creio que uma das razões pelas quais não chegamos a qualquer resultado no caso de Sam Cornell foi a sua au­sência nas reuniões. Sam foi um dos que votaram em você. E quando ele se viu em dificuldades e teve de comparecer perante o conselho, você não estava presente. Se você estivesse lá ele poderia ter tido mais confiança em nós se visse um rosto amigo, alguém que ele sou­besse que faria por ele tudo o que fosse possível.

OK! — exclamei. — E agora? Que é que eu devo fazer? Pe­dir desculpas?

Não. Não é essa a atitude que deve tomar. Em primeiro lu­gar, não seria sincero nas suas desculpas. Você agora está muito preocupado consigo mesmo e julgando-se muito importante para ter pena de Sam. Mas não estou preocupada com você. Sei que você acabará voltando ao seu normal. Mas gostaria de fazer alguma coisa por Sam e sei que você pode ajudar-me.

Como?

Sente-se e ouça, Francis.

Sentei-me na cadeira ao lado da mesa dela.

—        Como deve saber, Francis, é uma coisa que detesto ter de mandar alguém para o reformatório. Nego-me a acreditar que exista alguma pessoa jovem fundamentalmente ruim. Os princípios dentro dos quais procuro nortear o meu trabalho são os que afirmam que não há incorrigíveis. Se alguns assim parecem, é por nós assim os fazermos e a culpa não é apenas deles, mas nossa também. Compre­ende o que estou querendo dizer?

Acho que sim

Ótimo então! Poderemos trabalhar melhor se nos entender­ mos. — Apanhou uma ficha em cima da mesa e. continuou: — No primeiro e no segundo período escolar, Sam foi um bom aluno. Al­cançou 85 de média e o seu procedimento foi irrepreensível. Só teve uma falta durante todo esse tempo e só chegou tarde duas vezes.

"Neste período, porém, já deu trinta faltas, faltou a inúmeras aulas e o seu procedimento tem deixado muito a desejar. As suas no­tas caíram verticalmente e eu não tenho dúvida de que será reprova­do neste ano. Mas nada disso, por pior que seja, seria motivo para expulsá-lo da escola. Mas acontece que já foi surpreendido em vá­rios furtos e foi acusado com outros rapazes do bairro em que vive de arrombar lojas para roubar. Como é natural, fizemos investiga­ções sobre o caso. Quase todas as suas faltas são injustificadas. Fa­lamos com os pais dele, que nada sabem explicar. A mãe nos disse que Sam foi sempre um bom menino e que são as más companhias que o estão estragando. Estou inclinada a concordar com ela. Ainda acho que Sam é um bom menino. Mas, no verão passado, mudou de idéia a respeito do que é certo e errado. Conversei com ele e não pu­de chegar ao fundo da questão. Não pude apurar o que foi que fez Sam mudar de idéia e não consegui explicar-lhe que era melhor para ele voltar ao caminho certo. 5am não tem confiança em mim e sem essa confiança nada poderei fazer por ele.

"Está sob sentença suspensa do Juiz de Menores e já violou as obrigações que assumiu quando foi julgado. Deveria ir automatica­mente para o reformatório, mas estou procurando provar que ele po­de melhorar e que não dará mais preocupações desde que possamos descobrir a causa de tudo e explicar-lhe a situação. Já disse quenada consegui ainda e acho que não vou conseguir. Pensei que Martin po­deria fazer alguma coisa, mas ele também não conhece Martin bem e esse não chegou a qualquer resultado. Foi Martin que se lembrou de você. Disse-me que você e Sam tinham sido muito amigos logo que chegaram à escola."

É verdade. Estive doente e comecei um pouco depois dos outros. Sam me ajudou muito nessa ocasião.

Nesse caso, Francis, se você o ajudasse agora, estaria apenas retribuindo um favor.

Mas como é que vou ajudá-lo? Não sei nada sobre o que se faz nessa espécie de trabalho.

Não precisa saber. Basta mostrar-se amigo dele, cultivar-lhe a amizade. Se ele gosta de você, falará e dir-lhe-á o que está fazen­do. Você então me contará tudo e eu lhe direi o que deverá fazer. Se ele tiver confiança em você, estará em suas mãos ajudá-lo. Afinal decontas, é esse um dos motivos da existência do conselho de alunos e professores. Se um rapaz se vir diante de pessoas estranhas e de pro­fessores, colocar-se-á imediatamente em posição defensiva, o que automaticamente nos exclui e nos impede de ajudá-lo. Mas quando vê colegas, perde a sua hostilidade e ganha confiança. Você não cal­ cula a quantos estudantes já temos ajudado. Dizem que, quando o médico consegue a confiança do doente, venceu metade da batalha. E você terá de proceder com Sam como se fosse médico.

Vou fazer o possível, Sra. Scott.

Creio nisso, Francis. Quer ler a ficha dele?

—        Não, muito obrigado. Prefiro saber de tudo por ele mesmo.

Ela sorriu, quase radiante dessa vez.

Gostei de você ter dito isso, Francis. Essa é que é a atitude certa. Você parece saber instintivamente o que deve fazer. Que idade tem você?

Quinze anos

E engraçado, mas às vezes penso que você é muito mais ve­lho. Você tem uma segurança a seu respeito que não é muito comum nos jovens. Talvez se surpreendesse se soubesse quantos dos seus colegas têm os olhos voltados para você. Marty, por exemplo, fala em você como em alguma coisa quase sagrada.

Ora, isso é porque já nos conhecemos há muito tempo.

Não é só isso, Francis. Ele me contou como foi que vocês se conheceram.

Lembrei-me de Marty naquele dia, do garoto um pouco pálido mas sem medo que esperava pelos meus murros.

—        Ah, ele lhe contou.

—        Sim, e contou-me também como você lhe ensinou a lutar box, que iam nadar no cais e que você trabalhava depois da escola e durante todo o verão. Sei muitas coisas a seu respeito.

Nesse momento, o sino tocou. Estava na hora da minha aula de matemática.

Tenho aula agora — disse eu, levantando-me. Ela me levou até à porta e disse:

Tenho a impressão de que vai resolver o caso de Sam.

Espero poder. Ele é um bom garoto.

Outra coisa, Francis. Peço-lhe que pense bem na sua decisão de não se candidatar à reeleição. Isso é mais importante do que mui­tas coisas.

É uma questão de opinião. Adeus.

—        Sem dúvida, — disse ela, sorrindo, — mas voltaremos a conversar sobre o assunto. Obrigada por ter vindo falar comigo.

—        No hay de qué, — disse eu, praticando com ela um pouco do meu espanhol.

Ela fechou a porta e eu saí para o corredor cheio de alunos.

Tornei a falar com Marty depois da aula de Matemática.

Conversou com ela, Frankie? Conversei.

E que é que vai fazer?

Não sei, Marty. Não sei nem por onde vou começar.

Em primeiro lugar, você terá de procurá-lo. — disse ele, sorrindo

Ora, disso sei eu, mas não me agrada muito a idéia de servir de espião junto ao rapaz.

Escute aqui. Frankie. Você não vai ser espião coisíssima ne­nhuma. Vai apenas ajudá-lo a sair das dificuldades em que se meteu, como faria qualquer amigo.

E se ele não quiser nenhuma ajuda e me disser que me meta com a minha vida?

Você tratará de superar isso. Se não conseguir, ao menos tentou. Mas acho que vai conseguir.

Obrigado pelo voto de confiança. Mas vamos ver.

É, vamos ver. Vou chamar Jerry para tomarmos um refrige­rante. Que ir conosco?

Não, muito obrigado. Tenho uma aula agora.

  1. Até logo.

Continuei pelo corredor e diante da sala de Biologia esbarrei em Ruth, que ia saindo.

—        É você! — exclamou ela. — Eu devia saber que só podia ser você!

Aborreci-me. Já estava farto das piadas dela comigo e naquele momento não me sentia com nenhuma disposição para elas.

Se eu tivesse sabido que ia ver você aqui, teria dado uma volta muito grande para passar a léguas. Você é a última pessoa no mundo a quem eu quero ver.

Que é que há, garotinho? Zangou?

Não, não me zanguei. Mas já estou ficando cansado dessa sua má vontade permanente. Que é que tem contra mim, afinal de contas?

Nada, rapaz, — disse ela, sorrindo com um sorriso igualzi­nho ao de Marty. — É apenas que acho você falso e impostor. É ru­im e cruel e eu não gosto de gente assim.

Fiquei alucinado com aquilo e repliquei furiosamente:

—        E você se julga muito melhor do que eu? Não passa de uma cadela mesquinha e egoísta que diz o que entende a respeito de gente que nem conhece.

Ela levantou a mão para me dar uma bofetada, mas eu fui mais ligeiro. Agarrei-lhe a mão com força pelo pulso. Ficamos a olhar-nos assim alguns instantes. Os olhos dela fuzilavam. Depois, larguei-lhe o pulso, onde haviam ficado as marcas dos meus dedos.

—        Eu não faria isso se fosse você, — disse eu, sorrindo. — É muito pouco distinto para uma moça fina.

O brilho morreu nos olhos dela, o rosto se descontraiu e ela tentou sorrir. Aquela pequena tinha fibra.

Tem razão, Frankie. Desculpe. Acho mesmo que nunca lhe dei uma oportunidade... Desde o dia...

Em que acertei Marty em casa?

Não. Não foi isso. Foi Julie.

Julie? Sabia de alguma coisa?

Sabia que Julie tinha um caso com você e isso me enfurecia. Vivíamos como irmãs até você aparecer e modificar tudo. Ela come­çou a ficar muito cheia de segredos... e eu acho que tive um pouco de ciúme. Depois que ela saiu la de casa, perguntava sempre por vo­cê nas cartas que escrevia e lhe mandava lembranças, mas eu nunca lhe disse nada.

O sino tocou marcando o início da aula, mas eu não entrei. Queria que ela me dissesse o que sabia a respeito do que tinha havi­do entre mim e Julie. Peguei-a pelo braço e saí com ela pelo corre­dor. Ela me acompanhou sem resistência.

—        Por que, Ruth?

—        Já lhe disse por quê. Foi uma infantilidade da minha parte. Sei agora que tudo está acabado. Julie se casou.

Experimentei uma sensação inexplicada de alívio ao saber disso.

Quando foi que descobriu que eu tinha alguma coisa com Julie?

Foi num domingo quando vocês dois voltaram da praia e fi­caram em frente à porta dela. Ouvi vozes no corredor. Abri a porta da frente do apartamento e vi você beijando-a. Isso completou a mi­nha raiva, pois eu já não gostava de você por causa de Marty.

Ora, — disse eu, — só isso?

E não acha que chega?

Compreendi naquele momento que não tinha mais de preocu­par-me com ela. E tive grande satisfação com isso. Estávamos num canto do corredor e não havia muitos alunos passando, porque mui­tas aulas estavam em funcionamento.

—        Acho, porque um beijo não é nada, — disse eu, pegando-a de repente pelos ombros e beij ando-lhe a boca. — Viu?

Ela começou mais uma vez a levantar a mão. Levantei o braço à altura do rosto, fingindo que ia defender-me.

Nada disso de novo! — disse eu, sorrindo. Ela sacudiu a cabeça.

Não, nunca mais.

Amigos? — perguntei, estendendo-lhe a mão.

Amigos! — disse ela. Apertamos solenemente as mãos.

Bem, vou indo, Ruth. Tenho uma aula agora.

Já ia no meio do corredor quando olhei para trás. Ruth estava em prantos.

Que é, Ruth? — perguntei, voltando. — Desculpe, não tive a menor intenção de magoá-la.

Nada, nada! Por que não se vai embora e não deixa em paz quem quer ficar em paz, seu grande idiota!

E saiu correndo para as escadas.

"As mulheres são birutas", pensei eu quando entrei na aula e pedi desculpas ao professor pelo meu atraso.

O Professor Weisbard era um bom homem. Sorriu quando eu lhe disse que me havia atrasado com assuntos da classe.

—        Muito bem! — disse ele, num aparte de teatro que foi ouvi­ do por toda a classe. — Aqui entre nós, Francis, se eu fosse você limparia dos lábios um pouco desses assuntos da classe antes de sentar-me.

Alguém me agarrou pelo braço quando eu saía da aula, ainda aborrecido com a piada do professor. Era Marty.

Ah, é você? — exclamei.

Quem pensou que era?

Ninguém.

Escute aqui, Frankie. Sam está agora mesmo lá na sala espe­rando a Sra. Scott. Você pode entrar lá como por acaso e começar a falar acidentalmente com ele. As coisas seriam mais fáceis assim.

De quem é essa brilhante idéia?

Da Sra. Scott. Ela está de propósito fazendo-o esperar para que você tenha uma oportunidade.

Está bem. Mas vou precisar de uma justificação para faltar á aula de Espanhol.

A Sra. Scott já pensou nisso também. Entregou-me uma nota para levar ao seu professor.

Ela pensa em tudo, não é?

Em quase tudo, Frankie! — disse Marty saindo e sem ligar ao meu sarcasmo.

Entrei na sala de espera da Sra. Scott e vi Sam que esperava sentado num banco. Olhei-o como se fosse uma surpresa encontrá-lo ali.

Olá, Sam! Que é que está fazendo aqui?

Alô, Frankie, — disse ele com um sorriso fraco. — Estou esperando para falar com a Sra. Scott.

Coloquei os livros em cima da mesa e fui sentar-me ao lado dele.

Vim pegar uns papéis, Sam. E você? Para que é que quer fa­lar com essa velhota?

Não quero nada, mas sou forçado a vir falar com ela. Estou metido numa encrenca daquelas, rapaz!

Mas encrenca mesmo?

—        Estou-lhe dizendo. Estão com vontade até de me mandar andar.

Não diga! Há alguma coisa que eu possa fazer?

Acho que não — disse ele desviando o olhar. Estava quase chorando.

—        Escute, Sam, por que não veio falar comigo? Afinal de contas, sou presidente da classe e posso fazer alguma coisa, desde que saiba do que está .acontecendo. Somos amigos e eu lhe devo al­guns favores. Vamos ali para aquele canto e você me conta o que é que há. Talvez eu possa ajudá-lo e, se não puder, não custa nada ten­tar. Que é que acha?

Ele me olhou e eu julguei ver-lhe nos olhos um brilho de espe­rança. Fomos para a janela e ele começou a falar.

Foi no verão que tudo começou. Queria trabalhar durante as férias porque o pessoal lá em casa estava muito precisado de dinhei­ro. Fui procurar emprego numa porção de lugares que bota ram a- núncio dizendo que precisavam de mensageiros, mas não fui aceito porque sou preto. Em outros lugares, poderia ajudar na portaria, mas acharam que eu não tinha idade suficiente. Poderia tentar ganhar al­gum dinheiro com a minha caixa de engraxate, mas o que se ganha com isso é muito pouco. A concorrência, no verão, dos outros garo­ tos é muito grande.

Claro. Que sei muito bem disso! Trabalhei muito como en­graxate quando estava no orfanato.

É mesmo? Então você sabe como é difícil. Bem, um dia, um camarada chegou junto de mim e disse: "Por que não vai vender coi­sas usadas, Sam ?" Eu respondi: "Ora, isso não rende nada". "Do jei­to que nós fazemos a coisa, rende um bom dinheiro", afirmou ele. "Como assim ?" "Escute, Sam, sei que você é um garoto direito e que está procurando emprego, mas sei também que não está podendo conseguir. E sabe por quê? Porque você é preto." "Escute aqui", dis­se eu, "por que é que você não me diz alguma coisa que eu ainda não saiba?" "E pensa que é isso só?", disse ele. "Levamos uma vida in­ fernal aqui em Harlem. Dizem uma porção de tolices a respeito de oportunidades e outras conversas fiadas e fica tudo por isso mesmo. Estudei na escola para ser contador. Formei-me em um bom curso — sempre fui o primeiro da minha turma. Até aí, muito bem. Mas quando chegou na hora de arranjar emprego, o caso mudou de figu­ ra. Os brancos, por mais burros que sejam, pegam os empregos. Nós, pretos, só conseguimos conversa fiada e um emprego de varredor da casa. Que vão para o diabo! A gente tem de agarrar o que puder e eles que se vão estourar no inferno

"Falar é fácil", disse eu. "Mas não estou só falando", respon­deu ele. "Conheço um camarada que compra coisas de segunda mão e não tem muito interesse em saber de onde foi que vieram. E paga um bom dinheiro. O que eu quero saber é se você já não está cansado de viver por baixo? Ou é como o resto desses idiotas que passam a vida inteira levando na cabeça e saboreiam as tolices que os outros dizem como se fossem creme?" "Não sou idiota", disse eu, "e por isso mesmo é que eu não quero que me peguem". "Ora", disse ele, "tudo isso é coisa arrumada. Nós só trabalhamos com ga­rotos como você. Se por acaso algum de vocês for pegado, isso se­rá levado na conta de brincadeira de garoto. Você pode levar uma repreensão na polícia, depois vai para casa e está tudo resolvido. Mas não ser preso. Tudo está arranjado". "Arranjado como?" "Isso é comigo", disse ele. "Da parte que me toca, eu pago à polícia. To­da a vez que vamos fazer um serviço, avisamos o guarda e ele vai para outro lado. Como eu consigo isso, não lhe interessa. Você só tem de fazer o que lhe mandarmos. Está bom ?" "Não sei. Vou pensar", disse eu. "Então pense, mas olhe lá, bico calado, senão vai-se arrepender, ouviu ?" Pensei e resolvi aceitar. Parecia um ne­gócio seguro. Mas não era. Fomos todos presos. O homem que me falou e o que comprava as coisas estão na cadeia e parece que vou de ter de fazer companhia a eles.

Puxa! Que situação! Mas que é que isso tem que ver aqui com a escola?

Bem, depois que o homem falou comigo, comecei a pensar no caso e achei que ele estava certo. Para que estudar e ter um bom preparo se isso depois não me vai servir de nada? Comecei então a faltar à escola sempre que arranjava um biscate. Fiz um bocado de gazeta e acho que isso junto com a outra coisa vai estragar tudo.

Pensei no caso. Ficamos durante um tempo sem falar. "Que é que eu vou dizer a ele?", pensei. "Ele sabe mais das dificuldades que está enfrentando do que eu".

—        Escute, — disse eu, afinal, — vou conversar com ela. Tenho uma idéia (Era mentira. Não tinha idéia alguma.) que talvez dê certo. Quando eu sair do gabinete dela, direi alguma coisa a você.

Saí antes que ele pudesse fazer-me alguma pergunta e entrei no gabinete da Sra. Scott.

—        Então, Francis? — perguntou ela.

Disse-lhe o que ele me havia contado.

Quando acabei, ela me perguntou se eu tinha alguma sugestão.

Nenhuma!

Mas eu tenho, Francis. Se você o convidar para que ele o ajude nas suas atividades em favor da classe, isso fará com que ele se sinta útil e integrado. Se você o nomear para um dos comitês de que você participa, creio que tudo estará resolvido. E se você mantiver estreito contato com ele, pode ser que se consiga atenuar um pouco a sua falta de confiança e os seus preconceitos.

Mas como é que eu posso fazer isso? Todas as minhas no­ meações têm de ser aprovadas pelo diretor.

Deixe isso comigo.

Está bem. Vou falar com ele.

Espere um pouco, Francis. Não lhe diga que a idéia foi mi­nha. Diga que foi sua. Até porque, de hoje em diante, você será o guardião dele e ele ficará sob a sua responsabilidade. Espero que ele não deixe você mal.

Tenho a impressão de que não deixará. Ainda quer falar com ele?

Quero sim. Vou dizer-lhe que, se não fosse você, ele não te­ria a menor chance. Estou envolvendo você nisso mais do que você pensa.

Sei disso, — murmurei, já com a mão na porta para sair, — mas está certo.

Sam conseguiu um lugar de ajudante de caixa na cantina e tra­balhava na escrita geral da organização. Fazia bem o seu serviço, ganhava dinheiro pelo seu trabalho e isso ainda figurava como pon­tos favoráveis na sua ficha escolar. A sua freqüência e as suas notas melhoraram. Via-o quase sempre, pois às vezes ia diretamente pro­curá-lo. Achei que estava indo muito bem.

A época da eleição se aproximava. Eu não queria candidatar-me de novo. As minhas outras atividades me tomavam muito tempo. Fora da escola, eu era tratado com muita consideração por minha família e por meus amigos. Sentia-me o centro de todos os aconte­cimentos importantes. O meu mundo girava em torno de mim.

Uma tarde, fomos todos à casa de Janet para conversar sobre os nossos assuntos — Janet, Jerry, Marty e eu. Peguei meu lugar favori­to, a poltrona do pai dela, e coloquei os pés no almofadão em frente. Gostava da poltrona não só porque era confortável, mas também por­que nela eu ocupava a posição mais importante da sala. Jerry e Janet ficaram no sofá diante de mim e Marty sentou-se numa poltrona me­nor à minha direita. Fui eu quem primeiro falou.

Escutem, vocês todos sabem que não quero a reeleição. Te­nho muitas outras coisas para fazer.

Mas você pode vencer outra vez. É conhecido e estimado. Só isso.

Conversa! O lugar dá muito trabalho e eu não o quero.

Pode dar muito trabalho, — disse Jerry, — mas não para vo­cê. É Janet quem faz quase tudo.

Se Janet tem queixas a esse respeito, é melhor que ela mes­ma as faça. Que é que você diz, Janet?

Ela sorriu e sacudiu a cabeça.

Não tenho queixas a fazer.

Escute aqui, — disse eu a Marty. — Se acham que o lugar é tão bom assim, por que é que um de vocês não se candidata?

Você bem sabe que eu não posso, — disse Marty. — O meu trabalho com a Sra. Scott me toma o tempo todo e será muito impor­tante para mim quando eu for para a universidade.

  1. Então não reclame comigo. E vocês dois? — perguntei, olhando para Jerry e Janet.

Janet não! — exclamou Marty. — Nunca houve um caso de uma moça ser eleita presidente da classe.

Isso não quer dizer que ela não possa ser. Que é que acha, Janet?

—        Eu não, Frankie. Não tenho a menor chance. Mas Jerry...

Ela olhou para ele, que ficou um instante pensativo e, depois, sorriu.

Se é assim que vocês querem, aceito, mas com uma condi­ção.

Qual é? — perguntou Marty, mas eu já sabia qual era.

Que Janet forme a chapa comigo, — disse ele, sorrindo paraela.

É claro que Janet fará a chapa com você, — disse eu, antes que ela tivesse tempo de dizer alguma coisa.

Por um momento, julguei que Janet ficara um pouco decepcio­nada com a minha pronta aceitação. Mas eu podia estar enganado. E isso passou.

No dia seguinte, a Sra. Scott me viu no corredor e veio falar comigo.

Soube que não se vai candidatar à reeleição, Frankie.

As notícias voam! — disse eu, sorrindo, certo de que Marty havia dito a ela.

Pensei que houvesse mudado de idéia depois da nossa con­versa.

Mas não mudei.

E as outras coisas que eu disse que você poderia fazer? E o caso de Sam?

Sam não será mais problema e Jerry pode encarregar-se dis­so. Ele gosta dessas coisas.

Sabe, Francis? Estou com a impressão de haver cometido um erro a seu respeito.

É bem possível. Todos nós cometemos erros.

Espero que não tenha havido erro no seu caso. Sempre o apreciei.

Depois que Jerry e Janet foram eleitos, vi cada vez menos os velhos amigos da turma. As minhas atividades esportivas me ligaram a estudantes mais adiantados e eu fui mais ou menos aceito no grupo deles. Sentia-me mais à vontade com eles do que com o pessoal da minha turma porque na verdade era mais velho em experiência do que eles.

Só uma vez por semana ia procurar Janet e saía com ela. Nos outros dias, saía com outras pequenas. Eram um pouco mais sabidas do que ela e eu costumava ir mais longe.

Um dia, quando saía da escola, Jerry apareceu ao meu lado.

Olá, — disse eu.

Olá, Frankie. Que é que há? Quase não se vê mais você.

Tenho andado por ai.

Sei disso. Janet também sabe. E não creio que esteja muito contente.

Não sou mais criança, Jerry. Sei tomar conta de mim mes­mo... e Janet também.

Mas Janet...

—        Ora, Janet e eu não temos nenhum compromisso. Ele me segurou o braço e eu olhei para ele.

Sabe de uma coisa, Frankie? Há muito tempo que espero ouvir você dizer isso.

Então já disse. Que é que vai fazer agora, irmãozinho?

—        Nada. E não me chame de irmãozinho. Largou-me o braço e saiu pela rua, assobiando.

Fiquei ali pensando no que podia significar tudo aquilo. Mas, apesar disso, fui ver Janet naquela noite.

Cheguei à casa dela mais ou menos às se,te horas e toquei a campainha. Ela me foi abrir a porta e sorriu quando me viu.

—        Entre, Frankie.

Quando cheguei à sala, encontrei lá dentro Marty e Jerry. Fi­quei surpreso, mas nada demonstrei. Agi como se fosse habitual chegar à casa de Janet e encontrá-los.

Alô, vocês! — disse eu.

Ah! — disse Marty, voltando-se para Jerry. — Hoje é o dia em que os deuses descem do Olimpo! Salve pela tua volta, ó irmão há tanto perdido!

Muito engraçado! — disse eu. — Não ligue para ele, Jerry. A família dele gosta muito de falar.

Que é que o traz aqui? — perguntou-me Marty.

Vim ver Janet, — disse eu sorrindo. — E vocês?

Eu sabia que nenhum deles confessaria que só tinham ido para ver Janet, ainda que essa fosse a verdade.

Marty murmurou a velha desculpa sobre assuntos da classe.

Bem, não quero interrompê-los, — disse eu. Esperarei que vocês acabem. — Sentei-me na poltrona do pai dela e peguei uma revista. — Onde está seu pessoal, Janet?

Foram ver Vovó, que não está passando bem.

Isso é que é ruim. Mas não é nada de grave, é?

Não. Um resfriado apenas.

Os dois desistiram. Jerry levantou-se e disse:

Bem, acho que vamos indo. Já dissemos tudo o que tínha­mos para dizer.

Escutem, — murmurei com um falso tom de quem pede per­dão na voz, —já disse que não quero interrompê-los.

É mesmo, — disse Janet, pegando a minha deixa. — Não vão ainda. Vou ligar o rádio. Talvez se pegue alguma coisa boa.

Marty disse que havia prometido chegar em casa cedo.

—        Eu também, — disse Jerry

E os dois saíram apesar dos nosso protestos. Quando os dois sa­íram, nós nos olhamos e rimos.

—        Venha-me dar um beijo, menina, — disse eu, abrindo-lhe os braços.

Ela se aproximou e eu a beijei demoradamente. Depois, ela sor­riu e murmurou:

Há quanto tempo não aparece!

Tenho andado muito ocupado. Mas se soubesse o que era que estava perdendo, teria vindo mais aqui.

Não minta, Frankie. Não me minta nunca. Não é preciso.

Sei disso, meu bem.

Eu o amo, Frankie.

Beijei-a, mas sabia que não a beijaria muito tempo. Alguma coisa me dizia que ela e Jerry... Mas os beijos eram tão doces e nós éramos tão jovens e tão sérios — ainda que eu dissesse a mim mes­mo que eu não era.

Eu estava fazendo lanche uma tarde várias semanas depois quando Marty se sentou ao meu lado.

Olá, Frankie. Que há de novo?

Nada. Você é que vai dizer.

Não há muito o que dizer. A novidade da escola continua a ser você.

Sério?

Sim, todos ainda comentam o fato de você desistir do seu cargo na classe. Dizem que você naturalmente se acha superior a to­dos nós.

Que mal faz falarem? — perguntei, rindo.

A Sra. Scott também não ficou satisfeita.

E daí?

Escute, Frankie. Que é que há com você?

Nada. Quanto à Sra. Scott já estou é farto dessa história dela de estar ajudando os estudantes. O que ela faz é servir-se de nós para os seus estudos. Com certeza, depois vai escrever um livro e chamar a todos nós de experiência 999 ou coisa parecida.

Ele pegou a minha garrafa de leite e tomou um gole num copo.

Coma um pedaço de torta também, — disse eu.

Obrigado, Frankie. Não estou com fome.

Que veio então fazer aqui?

Se quer mesmo saber, vim falar com você. A Sra. Scott acha que você poderá gostar de trabalhar conosco. Ela faz muito bom juí­zo de você.

Foi justamente o que imaginei. Pois pode voltar no mesmo pé e diz a ela para arranjar outro. Estou fora do mercado.

Está bem, — disse ele, levantando-se. — Se é isso o que vo­cê pensa, direi a ela, mas acho que está cometendo um erro.

Sei disso, mas pouco me importa. Cometo erros a cada ins­tante.

Saí da cantina para o pátio e atravessei a rua. Havia alguns ban­cos ali. Sentei-me e acendi um cigarro. Era um lugar alto e dali podia avistar-se o rio até ao Bronx. Era em meados de abril e o dia estava quente e meio enevoado. Ouvi o sino da escola tocar, mas não tinha a menor vontade de ir às aulas. Estudantes entravam e saíam. Acomodei-me no banco. O cigarro estava no fim. Acendi outro com a ponta e joguei-a fora.

Algumas moças vinham para onde eu estava, entre as quais es­tava Janet. Virei o rosto para o lado, na esperança de que ela não m visse. Havia três semanas que não ia procurá-la desde a noite em que encontrara Marty e Jerry em casa dela. Mas ela me viu. Disse algu­ma coisa às amigas e se aproximou de mim. O sol lhe iluminava os cabelos e ela estava linda, mas eu não queria falar com ela.

—        Alô, Frankie, — disse ela sorrindo. Havia no seu sorriso al­guma coisa que me impressionou. Era como se ela dissesse: "Não se zangue comigo. Se fiz alguma coisa errada, foi sem intenção".

Sorri também.

Alô, Janet.

Não tem aula agora

Tenho, mas estou com preguiça. Acho que a febre da prima­vera me atacou.

Está um dia lindo, não é?

Está.

Posso sentar-me?

Claro que pode. Para isso é que servem os bancos.

Ela se sentou um pouco afastada de mim. Durante algum tem­po, ficamos calados a olhar para o rio. Mas era como se estivésse­mos conversando. Eu podia imaginá-la perguntando-me por que não tinha ido vê-la e eu respondendo que tinha tido muita vontade mas tivera muito que fazer, e, então ela me perguntava se eu não ia voltar a trabalhar com a Sra. Scott, e eu diria que não porque a Sra. Scott era uma impostora e pouco se interessava pela gente, e ela replicava dizendo que a Sra. Scott era cem por cento e que eu estava errado, fazendo-me responder que isso era a opinião dela a que ela tinha to­do o direito, e ela depois perguntava como eu ia de estudos e eu dizia que muito bem, pois estava com a média 80, e ela queria saber se eu continuaria naquele ano na equipe de natação e eu dizia que ainda não sabia e ela me perguntava como iam minha tia e meu tio eu dizia que muito bem, mas meu tio havia lutado durante todo o inverno com um resfriado que afinal deixara uma tosse teimosa, e eu então perguntava pelos pais e pela avó dela e ela dizia que estavam todos bem, mas que a avó cada dia ficava mais velha e, enquanto falásse­mos, eu me lembraria do nosso primeiro beijo, de como ela havia di­to que me amava, no dia em que fora passar a combinação a ferro na cozinha, do seu perfume nos cabelos, dos colegas, de Jerry... mas continuávamos calados ali no banco, olhando para o Bronx.

O segundo cigarro acabou e eu acendi outro com a ponta. Jo­guei-a por cima do gradil e vi-a ir caindo até desaparecer. Foi então que ela falou.

Você está mudado, Frank... mudou muito no ano passado.

Isso acontece a todo o mundo. Não estamos ficando mais moços...

Não é isso, Frankie. Tenho a impressão de que você é outra pessoa que eu não conheço, tão diferente você ficou. Sei que todos nós estamos mudados — Jerry, Marty e eu — mas você parece que se tornou frio, cruel e egoísta. Dantes você não era assim.

Lembrei-me do que Ruth me dissera um dia e olhei para Janet.

—        Sou o que sempre fui.

Ficamos de novo em silêncio, olhando um pequeno barco que lutava para subir o rio. Joguei o cigarro fora e não acendi outro, pois sentia a garganta por demais seca. Um vento leve soprava às nossas costas e eu o sentia nos cabelos. Os cabelos de Janet eram também agitados pelo vento e eu senti vontade de tocar neles, para sentir-lhes de novo a sedosa maciez.

Ela olhou para mim.

—        Você parece um garotinho depois de ter levado uma surra imerecida, — disse-me ela, com um esforço não muito bem sucedido de sorrir.

Não respondi.

—        Frankie, por que é que você não vai mais me ver?

Pronto, ela já falara. Eu nunca saberia quanta coragem lhe fora necessária para que ela fizesse essa pergunta.

Não soube o que responder. Limitei-me a murmurar alguma coisa sobre ter andado muito ocupado...

—        Você dantes andava ocupado e sempre achava tempo...

Falei então de estar ela saindo com Jerry.

Só comecei a sair com Jerry depois que você me trocou por seus novos amigos. Que era que você queria que eu fizesse? Que fi­casse em casa chorando à espera do dia em que se lembrasse de mim?

Mas, Janet, nós éramos muito crianças e não sabíamos o que dizíamos, nem o que queríamos...

Você talvez não soubesse, — replicou ela, chorando. As lá­grimas lhe brilhavam nos olhos como pequenos diamantes. — Mas eu sabia e pensei que você gostasse de mim.

Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar mansamente.

Senti uma coisa estranha na garganta. Quase não podia falar. Corri os olhos nervosamente em torno. Felizmente, não havia nin­guém por perto de nós! Toquei-lhe o ombro. Como podia dizer-lhe que sentia muito havê-la magoado ou que tinha a impressão de que era um verdadeiro imbecil? Pensei em Ave, a pequena do último ano com quem eu havia saído naquelas últimas semanas, nos seus beijos quentes e do seu jeito de prometer com um olhar ou com um meneio do corpo — de prometer muito e dar bem pouco. Como poderia di­zer a Janet que amava sua inocência, sua maneira simples, direta, sincera e o calor dos seus olhos? Como poderia dizer-lhe que a que­ria... e alguma coisa mais?

Ela sacudiu os ombros para afastar-me a mão e exclamou zan­gada:

—        Vá-se embora! Vá-se embora! Sinto-me tão humilhada e como o odeio!

Levantou-se e voltou correndo para a escola, tentando enxugar os olhos com um lencindo pequeno e ineficiente. Pensei em levantar-me e correr atrás dela. Mas me lembrei de que poderíamos ser vistos das janelas da escola e continuei sentado.

O dia estava ficando mais frio e eu senti um arrepio. O sino a-nunciou mudança de aulas e eu me levantei e entrei. Tinha uma aula de Espanhol. No segundo andar, vi Janet que saía da sala das moças. Aproximei-me dela.

—        Janet.

Ela me virou o rosto e disse num tom de voz baixo e frio:

Não fale nunca mais comigo!

Está bem, — disse eu, com o mesmo tom de voz. — Se é as­sim que você quer, faça-se a sua vontade.

Ela se afastou pelo corredor e desapareceu. "Vá para o inferno !", pensei eu. "Ela e a escola que vão para o inferno! Tudo isso é coisa de criança !" E, virando-me, saí para a rua.

A família havia-se sentado para jantar quando eu cheguei. Irene já estava à mesa, mas Essie ajudava a mãe na cozinha.

Olá, pessoal! — disse eu, entrando.

Já estava estranhando a sua demora, Frankie, — disse minha tia. — Vá-se lavar depressa. Nós quase já íamos começando sem es­perá-lo.

Olhei para ela com estranheza. Para ela, aquilo era quase uma repreensão. Notei-lhe no rosto algumas rugas de preocupação.

—        Já me conhece, Tia Bertha! — disse eu, tentando levar a coisa na brincadeira. — Nunca me atraso na hora da comida.

As meninas riram e Essie disse:

—        É verdade, Mamãe.

Passei pela sala. Meu tio estava sentado numa cadeira perto da janela. Parecia estar olhando para o espaço, agarrando nervosamente os braços da cadeira.

Não vai jantar, Tio Morris? Pensei que não estivesse em casa.

Cheguei cedo hoje, Frankie, — disse ele, tentando sorrir sem conseguir. — Estava muito cansado.

Fui para o banheiro comecei a lavar as mãos. Quando passei de novo, chamei-o.

—        Não estou com fome, Frankie.

Havia alguma coisa. Eu podia sentir a tensão no ar. Seria por minha causa, por alguma coisa que eu tivesse feito? Não havia. Sentei-me à mesa na casinha e jantamos em silêncio. Tio Morris não apareceu. Depois do jantar, ajudei Essie a lavar os pratos. De­pois, fomos para a sala e ouvimos rádio durante algum tempo. Às oito horas, as meninas foram dormir. Às nove e meia, disse que ia m deitar também. Tinha a impressão de que minha tia e meu tio es­tavam querendo conversar e eu os atrapalhava. Tinha sido uma noi­te silenciosa e um tanto triste. Quase sempre, Tio Morris ria, brin­cava e jogava com as meninas. Mas naquela noite, não. Quando as filhas o beijaram na hora de dormir, ele não lhes retribuiu o beijo. Fui para meu quarto, fechei a porta e comecei a despir-me. Através da porta fechada, ouvia meus tios que conversavam em voz baixa. De vez em quando, entendia uma ou outra palavra. Estendi-me na cama, cruzei os braços sob a cabeça e olhei pela janela. Tinha sido um dia longo e exaustivo. Dormi um pouco, apesar da de pressão que estranhamente me dominava. De repente, acordei. Meu tio e mi­nha tia estavam conversando no corredor diante da minha porta. O-lhei para o despertador em cima da cômoda. O mostrador luminoso marcava duas horas. Tratei de escutar.

Minha tia chorava mansamente e meu tio falava.

—        Não há grandes motivos para preocupações. Ouviu o que o médico disse. Uns dois anos no Arizona e eu ficarei curado. Foi uma sorte sabermos da doença ainda no começo. Assim, é perfeitamente curável.

Ela falou nas meninas. Mencionou também meu nome, mas não pude entender bem o que dizia. Tinha alguma relação com a minha idade.

—        Não se preocupe com isso, — disse meu tio. — Há escolas lá também e tão boas quanto as daqui. E Frankie irá conosco. Basta explicarmos a situação.

Ela disse mais alguma coisa e eu ouvi a porta do quarto deles fechar-se. Fiquei pensando no que ele iria fazer no Arizona e na re­lação que a minha idade tinha com isso. Estava quase adormecendo quando compreendi. Arizona... tuberculose.., era isso! Isso explicava a tosse de meu tio durante todo o inverno. Não era resfriado. Era tu­berculose!

Pulei da cama, vesti o roupão de banho e fui bater na porta do quarto deles.

Sou eu, Frankie. Posso entrar?

Pode, sim, — disse meu tio, que me perguntou depois que eu entrei: — Que é que está fazendo acordado até estas horas?

Ouvi falarem no corredor e acordei. Há alguma coisa, tenho certeza. Que é?

Minha tia e meu tio se entreolharam e ele falou:

—        Nada. Estávamos apenas pensando em nos mudarmos daqui. É só.

Eu sei. Para o Arizona. Por quê? Não responderam.

É por que está doente?

Ouviu?

Ouvi e posso calcular o que seja. Não sou criança.

Neste caso, já sabe.

—        Escutem, — disse eu, sentando-me na cama deles. — Tenho algum dinheiro num banco da Broadway, se houver necessidade.

Não, obrigado, Frankie, — disse meu tio. — Dinheiro nós temos. Fique com o que é seu.

Se precisar é só dizer, Tio Morris. São mais de mil e qui­nhentos dólares.

Mil e quinhentos dólares. É muito dinheiro! Como foi que conseguiu tudo isso?

Eu tinha um emprego. Algum dia, contarei tudo ao senhor. Se precisar desse dinheiro, é só dizer.

 

Não, meu filho, não preciso. Mas muito obrigado. Já ia saindo, mas minha tia me chamou.

Venha cá dar-me um beijo, Frankie. Curvei-me sobre ela e beijei-a.

—        Você é um ótimo rapaz, — disse ela, sorrindo. — Agora, volte para a sua cama e não se preocupe mais com isso. Tudo vai acabar bem.

Deitei-me e pensei no que ela dissera sobre a minha idade. Ha­via-me esquecido de fazer uma pergunta sobre isso. Tive vontade de voltar ao quarto deles para perguntar, mas resolvi deixar para o dia seguinte. De qualquer modo, fora bom deixá-los saber que eu tinha dinheiro para me manter. Adormeci.

Acordei tarde na manhã seguinte e tive de sair às pressas de ca­sa sem falar com ninguém. Só tive tempo de dizer: "Até depois da escola". Cheguei na hora em que a minha primeira aula estava co­meçando. Vi Jerry e falei com ele de passagem. Na hora do almoço, vi Ruth e me sentei ao lado dela.

Como vai, Ruth?

Bem, mas estudando muito. Vou concluir o curso este ano, como sabe.

Sei, sim

Por onde é que tem andado ultimamente? Há muito que não vejo você nem Marty. Vocês dois tiveram alguma discussão e estão brigados por acaso?

Nada disso. O que acontece é que fazemos coisas diferentes.

Bem, apareça lá em casa. O pessoal terá prazer em vê-lo.

Depois de dizer isso levantou-se. Olhei para a sala. A escola es­tava com um aspecto diferente para mim, talvez porque eu soubesse que teria de sair de. lá se a família se mudasse para o Arizona.

Voltei para casa logo depois do treino de basquete. Entrei no momento em que as meninas iam saindo para brincar. Minha tia es­tava lendo um jornal na sala e levantou a vista quando me sentei per­to dela.

É a primeira oportunidade que tenho de pegar hoje no jornal.

Escute, Tia Bertha, — disse eu. — Quando é que vamos nos mudar?

Não sei ainda. É preciso resolver antes algumas coisas. Seu tio tem de vender o território em que trabalha para outra pessoa. Te­mos de arranjar lá um lugar para morarmos e de conseguir escolas para você e para as crianças. E teremos de ter muito cuidado com as despesas. Seu tio vai passar algum tempo sem poder trabalhar.

Eu posso trabalhar.

Espero que não seja necessário. Quero que você acabe o secundário e entre para a universidade. Já pensou no que você quer ser?

Não, ainda não.

Estive pensando que você podia estudar para ser médico ou advogado. Isso nos daria muita alegria e seria bom para você.

Não sei. Tenho tempo de sobra para pensar nisso. Mas como é mesmo que está o Tio Morris? Que foi que o médico disse?

De algum modo, estamos com sorte. Seu tio está com tuber­culose, mas está muito no princípio e o médico disse que ele ficará completamente curado dentro de pouco tempo.

Se for assim, muito bem. Estava muito preocupado.

Aqui entre nós, eu também. Mas já me estou sentindo me­lhor. Ontem, eu estava terrivelmente deprimida.

Sei disso. Ouvi tudo.

Há pouco que lhe passe despercebido, não é, Frankie? Você é um rapaz estranho. Um tanto velho para a sua idade e um pouco delicado, mas eu gosto.

Passei o braço pelos ombros dela e disse

Também gosto da senhora.

Quer um copo de leite? — perguntou ela, batendo-me no rosto.

—        Se for com biscoitos, conseguiu um freguês.

Nesse momento, meu tio chegou. Ela se levantou e beijou-o.

Como é que vão as coisas, Morris?

Muito bem. Vão-me pagar quinze mil dólares pelo meu ter­ritório, O preço é muito bom e nós poderemos viver muito tempo com esse dinheiro. Só uma coisa não deu certo. Fui procurar o Ser­ viço de Menores para comunicar a minha intenção de sair do estado.

Perguntaram-me por que e eu disse. Disseram-me então, que não posso levar Frankie.

Por quê? — perguntei, dando quase um pulo da cadeira,

Parece que há uma regra no orfanato que diz que, quando aparecer uma doença contagiosa na família que adotou um dos rapa­zes lá criados, a custódia voltará automaticamente para eles. Talvez você tenha de voltar durante algum tempo para o orfanato. Mas ain­da não sei. Amanhã, vou procurar o meu advogado e talvez possa­ mos resolver tudo.

Seja como for, não voltarei para o orfanato.

E não vai voltar, Frankie. Tomarei providências.

Foi uma semana muito cheia de trabalho em casa. Tínhamos entrado em entendimentos para ir viver numa casa perto de Tucson. Minha tia já começara a arrumar a bagagem. A mudança estava mar­cada para daí a quinze dias. Era uma tarde de sábado em maio e eu estava ajudando minha tia. Estávamos apesar de tudo entusiasmados com a viagem. As meninas não falavam em outra coisa.

Meu tio chegou às duas horas, muito cansado. Sentou-se numa poltrona da sala. Tia Bertha fez uma xícara de chá para ele. Eu esta­va na cozinha, embrulhando alguns pratos com papel e encaixotan-do-os, quando meu tio me chamou.

Tia Bertha entrou comigo e nós dois nos sentamos no sofá. Ela me pegou na mão.

—        Não sei como é que lhe vou dizer isso, Frankie, — começou meu tio, — mas você tem mesmo de saber mais cedo ou mais tarde e é melhor que seja agora. Você não poderá ir conosco.

Quis dizer alguma coisa, mas minha tia me apertou a mão e disse:

Deixe seu tio acabar.

Fui procurar meu advogado na esperança de que ele pudesse fazer alguma coisa. Mas não adiantou. A lei é muito clara e nada pu­ demos fazer. Falamos inutilmente com várias autoridades. Você terá de voltar para o orfanato e ficar lá até completar dezoito anos. Só en­tão poderá viver conosco.

Senti um aperto na garganta, como se fosse chorar. Afinal de contas, sempre havia esperado ir com eles. Nada disse. Minha tia disse então com a sua voz suave e terna:

De algum modo, Frankie, isso tem suas vantagens. Você poderá concluir o curso secundário aqui junto com os seus amigos. Tio Morris falou com o Irmão Bernhard, que é muito seu amigo, e ele prometeu que cuidará bem de você. Daqui a pouco, você conclui­rá o curso e irá viver de novo conosco. Poderá cursar a universidade lá. E enquanto estiver aqui, podemos fingir que você está apenas au­sente por algum tempo, como se estivesse numa universidade.

Não me interessa. Não me interessa fingir nada. Não me in­teressam os amigos. Não sentirei falta deles. Mas sentirei falta de to­dos aqui. Quero ficar com os senhores.

E nós o queremos conosco, — disse minha tia. — Não sabe quanto. Gostamos muito de você, mas nada podemos fazer. Temos de obedecer à lei. Não há outro jeito.

Senti as lágrimas me subirem aos olhos. Tentei falar e não pu­de. Fiquei ali calado, sem solução, mas com as lágrimas a correrem-me pelo rosto. Minha tia começou a chorar também. Levantei-me, corri para o meu quarto e joguei-me em cima da cama.

Ouvi meu tio e minha tia que chegavam diante da minha porta.

Morris, vou entrar e consolá-lo. Viu como ele ficou? Parecia um garotinho castigado.

Não, — disse meu tio, — é melhor deixá-lo. Ele vai reagir. Sei que é um homem de verdade.

Afastaram-se e eu fiquei pensando no que ele dissera. Eu era um homem de verdade. E era mesmo. Mas estava agindo como um garotinho castigado. Eu era um homem. Procurei dominar-me. Parei de chorar e saí da cama. Fui ao banheiro e lavei o rosto. Depois, fui para a cozinha.

Meus tios estavam sentados à mesa e levantaram a vista quando entrei.

—        Está-se sentindo melhor? — perguntou meu tio.

Bati com a cabeça, sem querer falar. Ainda não tinha muita confiança em minha voz.

—        Sente-se e tome um pouco de chá — disse minha tia.

Foi só anos depois que compreendi que meu tio falara alto de propósito para eu ouvir diante da minha porta. Não percebi isso na­quela ocasião e me sentia profundamente abatido. Não queria voltar para o orfanato.

Fora muito bom eu não ter falado com ninguém a respeito da minha ida para o Arizona. Não queria também que ninguém soubes­se que eu tinha de voltar para o orfanato. Não queria que ninguém tivesse pena de mim.

Foi na sexta-feira, 13 de maio de 1927. Toda a bagagem estava pronta. A minha também. Meu tio ia levar-me para o orfanato com a minha bagagem. Eles partiriam no dia seguinte. Eu só iria para o or­fanato depois que eles viajassem. Íamos apenas levar para lá o que era meu.

Está pronto? — perguntou meu tio.

Estou, — disse eu pegando minha mala e levando-a para o carro. Rodamos em silêncio para o centro da cidade.

Nunca pensei que isso pudesse acontecer, — murmurou meu tio, como se estivesse pedindo desculpas.

Não respondi. Não sabia que poderia dizer. Quando chegamos, peguei minha mala e subi para a sala do Irmão Bernhard. Ele apertou a mão de meu tio e depois a minha.

—        Você vai voltar para o seu antigo quarto, Frankie, — disse ele, tentando ser agradável. — Podemos levar o que é seu para lá.

Fomos ao meu antigo quarto. Abri a mala em cima da cama. Alguns garotos apareceram, olharam-nos com curiosidade e foram-se embora. Não conhecia nenhum. Deviam ser novatos. Afinal, apa­receu um que eu conhecia — Johnny Egan. Tinha crescido durante a minha ausência e estava quase tão alto quanto eu.

Alô, Frankie. Está de volta?

Estou.

Ele ficou mais alguns minutos por ali e saiu.

Abri as gavetas da cômoda e arrumei o que era meu. Depois, pendurei os ternos no armário e guardei os sapatos embaixo. Quando acabei, fechei a mala e disse a meu tio.

Vou levá-la para casa.

Não, Frankie. Fique com ela. Vai precisar quando voltar a viver conosco.

Descemos para a sala do Irmão Bernhard. Meu tio teve de assi­nar alguns papéis, depois do que se levantou e apertou a mão do Ir­mão Bernhard.

Não se preocupe com Frankie, Sr. Cain. Cuidaremos bem dele.

Sei disso, Irmão Bernhard. Frankie estará aqui amanhã à tarde. Virá logo depois que nos embarcar no trem.

A que horas?

Mais ou menos às três. O nosso trem partirá à uma hora da tarde

Vou esperá-lo então a essa hora. Espero que o senhor fique bom depressa

Tornaram a apertar-se as mãos e o Irmão Bernhard disse:

Até amanhã, Frankie.

Até amanhã, Irmão Bernhard

Saímos da sala, descemos pelo corredor, passamos pelo ginásio e chegamos à rua. Alguns garotos estavam jogando basquete no gi­násio. Aquilo não mudara em nada.

Voltamos para casa em silêncio. Foi a noite mais triste que já havíamos passado lá. Fomos para á cama cedo porque era preciso acordar bem cedo no dia seguinte.

De manhã, chegaram os carregadores para fazer a mudança. As dez e meia, a casa estava vazia. Só iam levar com eles duas maletas com as coisas indispensáveis para a viagem. Acompanhei-os até à estação. O trem chegou um pouco antes do meio-dia. Levamos tudo para dentro. O tempo voou porque de repente estava na hora das despedidas.

Beijei as meninas e dei a cada uma delas uma caixa de bom-bons que eu havia comprado.

—        Vou ter saudades de você, Frankie, — disse Irene, a mais velha, abraçando-me.

E eu de você, — disse, afagando-lhe os cabelos. Estendi a mão para meu tio.

Adeus, Tio Morris. Felicidades e melhoras.

—        Adeus, Frankie. Seja um bom rapaz. Não ficaremos muito tempo separados.

Minha tia me abraçou e me beijou chorando.

Gostaria tanto de que você viesse conosco, Frankie!

Eu também gostaria, — disse eu com vontade de chorar mas contendo-me para que eles não se sentissem mal. — Obrigado por tudo, Tia Bertha.

—        Oh, Frankie, Frankie! Não agradeça nada. Queremos muito bem a você e ficaremos à sua espera, sentindo muitas saudades.

Eu não sabia o que dizer. Nesse momento, um empregado do trem me bateu no ombro.

É melhor saltar. O trem vai partir a qualquer momento. Olhei para todos e disse

Bem, adeus!

As lágrimas me jorraram dos olhos e eu saí correndo. Fui para a plataforma diante da janela deles e dei adeus. As meninas estavam com o rosto colado à vidraça. Meu tio estava tentando dizer alguma coisa, mas eu não o ouvia por causa da janela fechada. O trem pôs-se em movimento. Meu tio abriu a janela e eu saí correndo ao lado do trem.

Não se. preocupe, Frankie. Não vai demorar muito.

Sei disso, Tio Morris

Cheguei ao fim da plataforma e o trem entrou no túnel. Ainda os ouvi dizerem-me adeus. Estava quase sem fôlego. Voltei lenta­mente. Nunca me havia sentido mais sozinho na vida.

Saí para a rua, atravessei a cidade e cheguei ao orfanato. De­morei-me um pouco do lado de fora, olhando para o prédio. Fechei os olhos e me lembrei de minha tia quando me beijava à noite. Lembrei-me dos sons e dos cheiros agradáveis de casa. Quantas noites amáveis havíamos passado juntos — eu fazendo os meus deveres, Tio Morris lendo o jornal, Tia Bertha levando as meninas para a cama.

Em contraste com isso, ali estava o orfanato desolado e cinzen­to, com a escola ao lado, a igreja ao canto o hospital do outro lado. Lembrei-me do sino que nos chamava para o refeitório, da regulari­dade cuidadosamente planejada de tudo o que fazíamos, dos regula­mentos que tinham de ser rigorosamente observados. Odiava aquilo. Não queria voltar. E não voltaria.

Olhei para o meu relógio. Eram duas horas. Corri para o banco onde estava o meu dinheiro e retirei duzentos dólares.

Tomei o subway para a estação Grand Central. Ia tomar o pri­meiro trem para Tucson. Quando cheguei ao guichê, pensei que Tuc-son seria o primeiro lugar onde me iriam procurar. Estava fugindo e não sabia para onde iria. Vi um cartaz que dizia: "Estrada de Ferro Baltimore e Ohio". Ao lado, havia um horário. Um trem ia partir pa­ra Baltimore às 3hlOm. Cheguei ao guichê e disse:

—        Quero uma passagem para Baltimore no trem das 3hl0m.

 

INTERLÚDIO

JANET

Janet estava escutando Martin falar com os olhos semicerrados. A luz suave e amarelada das velas lançava sombras tranqüilas sobre o rosto dele. Janet deixava os pensamentos correrem desordena­damente pela cabeça. A sala parecia ter sumido e todas as coisas que ela então prezava ainda estavam para acontecer.

Era segunda-feira, na escola. Mal ela havia chegado, um em­pregado lhe disse que ela estava sendo chamada à sala da Sra. Scott. Foi até lá sem saber a razão do chamado. Devia ser alguma coisa de que se havia esquecido.

A Sra. Scott estava sentada à sua mesa, tendo ao lado um ho­mem a quem ela não conhecia e mais Jerry e Marty. Os dois levanta­ram a vista quando ela entrou. O rosto de Marty estava pálido e aba­tido e a preocupação era visível no rosto de Jerry.

Irmão Bernhard, — disse a Sra. Scott, — esta é Janet Lindell, a moça de quem lhe falei. Janet, Irmão Bernhard é do orfanato de St. Thérèse.

Muito prazer, — murmurou Janet.

Irmão Bernhard olhou para ela e perguntou diretamente com alguma ansiedade na voz:

Viu Francis ou teve alguma notícia dele durante o fim-de-semana?

Não, — disse ela, surpresa. — Por quê? Houve alguma coi­sa?

Foi a Sra. Scott quem respondeu

Parece que Francis fugiu. Devia voltar para o orfanato no sábado. Nesse mesmo dia, levou os tios até à estação e não apareceu mais no orfanato.

Talvez tivesse ido com eles, — disse Janet.

Não, — replicou o Irmão Bernhard. — Mandamos um tele­grama para o tio e ele mandou dizer que Frankie não está com eles.

Ele não disse nada a nenhum de vocês? — perguntou a Sra. Scott. — Não falou em ir-se embora, não disse para onde gostaria de ir?

Nenhum deles respondeu. Janet sentou-se numa cadeira e co­meçou a chorar. Jerry se aproximou dela.

Não chore, Janet. Ele deverá aparecer depois. Você bem sa­be como ele é independente. Quis fazer alguma coisa por si mesmo.

Talvez tenha sofrido algum acidente ou caísse doente e nin­guém sabe quem é ele, — disse ela em soluços.

Jerry tomou-lhe a mão e apertou-a.

Não se preocupe. Nada vai acontecer. Eu o conheço. Ela o olhou por entre as lágrimas e perguntou:

Acha realmente isso?

Ele balançou solenemente a cabeça em sinal afirmativo. Janet viu nos olhos dele alguma coisa que a fez olhá-lo de novo. A testa de Jerry estava franzida de preocupação, mas não era por Francis e, sim, por ela. Havia naqueles olhos uma piedade profunda. Mas não era de Francis, era dela. Viu o rosto concentrado com uma nova es­pécie de interesse e respirou fundo.

Era a primeira vez que percebia o que Jerry sentia por ela. E voltou a chorar — por Jerry, por Francis, por si mesma.

A sala voltou a ser focalizada pelos olhos dela. Martin ainda es­tava falando e, de maneira bem estranha, ainda que o seu espírito es­tivesse bem distante, ela ouvira tudo e registrara tudo o que tinha ouvido. Martin tomou outro gole de vinho e continuou a falar en­quanto os pensamentos dela enveredavam por outro caminho.

Ela e Jerry tinham-se naturalmente aproximado depois disso. Nunca falavam muito a respeito de Francis até àquela noite, pouco antes de que ela e Jerry se casassem.

Havia jantado em casa de Jerry com os pais dele. Jerry fora li­cenciado como advogado e iria trabalhar daí a algumas semanas no escritório do Procurador-Geral. Estavam sentados diante da grande lareira da sala de estar, vendo as achas estalarem e inflamarem-se, lançando pequenas fagulhas. Ficaram muito tempo ali sem dizer uma palavra, com os ombros juntos e os dedos entrelaçados.

Em que está pensando, querida? — perguntou-lhe Jerry.

Acho que em nada, — respondeu ela com a luz da lareira a dançar-lhe no rosto.

Você estava tão calada que cheguei a pensar que se havia esquecido da minha presença.

Como pode dizer uma coisa dessas, Jerry? — perguntou ela, com um começo de riso. — Mas acontece que... vamo-nos casar de­pois de amanhã e uma moça tem o direito de olhar para a sua mocidade e despedir-se dela antes de entrar na vida de casada.

Mas você tem certeza do que quer, não tem? — perguntou ele com um ar de preocupação. — Ou ainda tem alguma dúvida?

Jerry querido, — disse ela, beijando-lhe o rosto, — deixe de tolice. É claro que o amo. Não há dúvida alguma a esse respeito.

Acho apenas que estou um pouquinho deprimida.

Ele passou o braço pelos ombros dela e fê-la descansar a cabeça.

Perdão, meu amor. Falei sem pensar. Mas é que a amo tanto que não queria vê-la infeliz, ainda que isso significasse...

Jerry, pare de falar assim. Amo você, vamo-nos casar em St. Patrick depois de amanhã ao meio-dia e vamos viver felizes para sempre, como acontece nas histórias de fadas e nos filmes.

Ela encostou o dedo nos lábios dele e Jerry mordeu-o de leve.

—        É que eu estava nesse momento pensando em Frankie, Janet.

É engraçado, não é, como a nossa cabeça funciona? Não se vê uma pessoa durante anos e anos, mas de repente ela aparece em nossos pensamentos tão real e viva quanto se estivesse em nossa presença.

Um dia, quando eu estava na escola, um marinheiro bateu aqui na porta e perguntou a Robert se eu estava em casa. Robert disse que não e ele foi-se embora e não voltou. Nunca soube quem foi. Não conhecia nenhum marinheiro. Pensei muito no caso e quanto mais pensava mais me convencia de que tinha sido Frankie. Mas nada dis­se a ninguém, nem mesmo a Marty ou a você, porque tive medo... medo de que, se ele voltasse, eu a perdesse.

Dentro dela, o coração procedia de maneira bem estranha. Co­meçou a doer e a bater rapidamente. Mas falou tranqüilamente, censurando-o.

—        Como pôde fazer isso, Jerry? Não sabia que a família dele estava muito preocupada? É a você que eu amo e não a Frankie. O que senti por Frankie foi apenas simpatia, coisa de criança, bem di­ferente do que sinto por você. Devia ter contado a alguém.

E todo o tempo havia uma dúvida dentro dela. Era verdade que o que ela sentira por Frankie não era o mesmo que sentia por Jerry. Mas amava Jerry, tinha certeza disso. Não ia casar-se com ele?

Sei que errei, querida, — disse ele, com o contentamento na voz a desmentir-lhe as palavras. — Procedi mesquinhamente, mas amava você, amei você desde a primeira vez em que a vi e não que­ria perdê-la.

Você não me perderia ainda que tentasse, — disse ela sor­rindo e acrescentou em fingida seriedade e torcendo bigodes imagi­nários: — Não pense que eu o deixaria fugir das minhas garras, meu caro rapaz!

Ele riu, feliz.

Como a amo, Janet!

E eu a você, Jerry.

Casaram-se ao meio-dia em St. Patrick, exatamente como se dizia no convite.

Com algum esforço, o espírito de Janet voltou ao presente. Marty estava dizendo:

—        Ele sempre foi o que eu quis ser, desde os meus tempos de garoto.

Janet disse então tranqüilamente.

—        Havia em Frankie alguma coisa diferente e que atraía os ou­tros para ele. Parecia cercado de uma aura de aventura, de espírito diabólico que atraía todas as moças do meu tempo, inclusive a mim.

Olhou ternamente para Jerry e sorriu. Tudo isso acontecera ha­via muito tempo e não havia mais perigo em mencioná-lo.

—        Mas havia também alguma coisa furtiva. Era um jeito dos olhos ou do rosto que fazia pensar que ele estava rindo da gente ou de si mesmo ou que se estava divertindo muito com a gente e com a vida. Nunca se podia saber ao certo o que ele estava pensando. Só deixava a gente saber aquilo que ele queria. Tudo isso gerava em mim incerteza, mas me levava a tentar sempre compreender os meus sentimentos.

Continuou, sorrindo para eles:

—        Creio que ele procurava conservar a gente na instabilidade e no desequilíbrio, sem jamais dar uma chance à pessoa de firmar-se. As coisas que nos ofendiam e magoavam nunca parecia magoá-lo.

Era sempre senhor de si mesmo. Parecia estar sempre desafiando a gente e ria quer se aceitasse o desafio, quer não. Não sei. Acho que não era possível compreendê-lo. Tinha tantas facetas que nunca se podia saber a que era verdadeira e a que não era. E isso parecia não ter a menor importância. Gostava-se dele apesar de tudo. Talvez fos­se o desafio da personalidade dele que empolgava a gente.

De repente, vieram-lhe lágrimas aos olhos e ela as enxugou com um lencinho.

—        Acho que sou uma tola sentimental, mas estou tão feliz de tê-los aqui comigo. Não podem nem saber como me senti sozinha com vocês todos ausentes — Jerry em Saipan, você na França e Ruth... — enxugou de novo os olhos e disse: — Vamos tomar ca­ fé na sala?

Marty sorriu e segurou-lhe a mão.

—        Você é uma tolinha adorável, querida, e eu a amo por isso.

 

Acordei no dia seguinte num quarto estranho. Ainda meio tonta de sono, corri os olhos em torno. E compreendi afinal onde estava. Baltimore. Não tinha sido a minha intenção fugir. Talvez fosse me­lhor voltar. Levantei-me e comecei a vestir-me. Enquanto lavava o rosto na pia do quarto, pensei no que poderia estar acontecendo em Nova York. Com toda a certeza, quando eu não aparecera, o Irmão Bernhard devia ter telefonado para minha família. Depois de haver recebido resposta, havia procurado a polícia. Esta faria investigações nas estações da estrada de ferro e mais cedo ou mais tarde descobri­ria que eu havia comprado passagem para Baltimore. Sabia, portan­to, que não poderia ficar muito tempo sem ser descoberto. O melhor que eu tinha a fazer era sair do hotel onde estava e perder-me na ci­dade.

Acabei de vestir-me e desci. Entreguei na portaria a chave da quarto e disse que ia deixar o quarto. O homem da portaria nada dis­se. Jogou a chave numa mesa perto dele e continuou a ler o seu jor­nal. Comprei um jornal no balcão de cigarros do hotel e saí. Poucos passos adiante, encontrei um pequeno restaurante. Entrei e pedi suco de laranja, ovos e café, 25 centavos de dólar. Abri o jornal e comecei a ler os anúncios de empregos. Havia alguns para rapazes: auxiliares de escritório, mensageiros, ajudantes de balcão e assim por diante. Marquei-os com o lápis e acabei o café.

Quando chegou a hora do almoço, tinha passado em todos o lu­gares marcados mas não conseguira emprego. Perdi-me duas ou três vezes, mas sempre perguntava a alguém que passava e me ensina­vam gentilmente o caminho. Não era como em Nova York, onde também ensinavam, mas dando a impressão de que estavam rindo da ignorância de quem perguntava.

Cheguei à conclusão de que era melhor procurar um lugar para dormir antes de ir a qualquer outro lugar. Tornei a abrir o jornal e passei os olhos pela seção de quartos para alugar. Pareciam estar to­dos na mesma parte da cidade. Entrei num restaurante para almoçar e ali obtive informação sobre a maneira de ir até lá. Acabei o almo­ço, peguei um ônibus à porta e saltei na Rua Stafford, numa parte um pouco velha da cidade. Quase em todas as janelas, havia pequenos cartazes que diziam "Vaga" ou "Quarto para alugar". Fui andando até encontrar uma casa que parecia mais limpa do que as outras. To­quei a campainha da porta. Ninguém respondeu. Esperei um pouco e tornei a tocar. Ninguém apareceu e eu já ia desistir e afastar-me quando a porta se abriu e apareceu uma velha, com os cabelos esqui­sitamente cheios de fitas.

Que idéia é essa de acordar uma pessoa no meio da tarde?

É que eu vi o cartaz na janela dizendo que havia um quarto para alugar.

Ah! Foi isso?

Foi. Posso alugar o quarto?

Não, já está alugado. Desde ontem. Esqueci-me de tirar o cartaz da janela.

Desculpe que a tivesse incomodado então, — disse eu, dan­do meia volta. Já me ia afastando pela rua quando ela me chamou.

Venha cá, rapazinho. Volte. Voltei.

Pronto, senhora.

Não me chame de "senhora". Não gosto.

Desculpe.

Ela me olhou atentamente e perguntou:

—        Você é novo na cidade, não é?

Isso me aborreceu. Se ela podia ter visto isso com tanta facili­dade, como era que eu ia passar despercebido?

Sou. E isso faz alguma diferença?

Nenhuma. De onde é que você vem? De Nova York?

Não tem nada com isso! Só fiz foi perguntar se tinha um quarto para alugar. Não entrei numa delegacia de polícia para ser in­terrogado. Passe bem!

Espere um pouco, rapaz. Perguntei por perguntar. E quero ajudá-lo. Talvez eu tenha um quarto. Entre.

Entrei com ela para uma espécie de hall. À direita, havia uma grande porta dupla que ela abriu, fazendo-me entrar numa grande sa­la onde havia sofás, poltronas e um piano com algumas garrafas de uísque vazias em cima. Havia muitos cinzeiros cheios de pontas de cigarros e charutos, as quais também se viam no chão perto de uma enorme lareira. Sentia-se um cheiro azedo de fumaça e uísque e de alguma coisa mais que lembrava o que se sentia quando o vento so­prava do hospital para o orfanato.

1h! Como isto aqui está cheirando mal! — disse ela, diri­gindo-se a uma das janelas e abrindo-a. As cortinas que fechavam as janelas que davam para a rua eram bem pesadas.

Sente-se, — disse ela, apontando para um sofá.

Abriu depois um pequeno armário, tirou uma garrafa de gim e se serviu de um cálice, que bebeu de um gole.

—        Ah! Assim é melhor! — disse ela sem pestanejar. Tinha um aspecto muito esquisito, vestindo uma espécie de quimono, com os cabelos grisalhos enrolados com pedacinhos de fitas e o rosto afogueado da bebida. Nada disse. Tinha vontade era de rir. Tudo aquilo me parecia maluco.

Ela se sentou e olhou para mim. Ficamos alguns momentos em silêncio.

—        Que idade tem você? — perguntou ela afinal, com voz mais calma e controlada.

Hesitei um pouco e vi que de qualquer maneira teria de mentir.

Dezenove!

Humm. Por que saiu de Nova York?

Já lhe disse que nada tem com isso. Só quero saber é se tem ou não um quarto para alugar?

E comecei a levantar-me. Ela me fez sentar de novo.

Espere um pouco, rapazinho! Não seja tão zangado.

Está bem.

Não sabia o que a velha queria. Aquilo me parecia nada mais nada menos que uma casa de mulheres. E tinha um terrível mau cheiro. Não viveria ali de jeito nenhum.

—        Teve uma encrenca com alguma moça? — perguntou ela, olhando-me atentamente.

Sacudi a cabeça.

—        Com a policia, talvez?

Isso podia ser, pensei eu. A menos, depois que o Irmão Ber-nhard desse parte do meu desaparecimento. Encolhi os ombros displicentemente, mas não falei.

Oh! — murmurou ela, sorrindo. Podia ver-se que tinha fica­do satisfeita com a sua previsão. — Era o que eu pensava. Que é que vai fazer aqui em Baltimore?

Conseguir um emprego e um quarto para morar logo que sa­ir daqui.

Ela riu.

—        E vai proceder direito agora, não é? Não me venha com es­sa! E outra coisa: quanto tempo você calcula que iria ficar livre? Pe­ gariam você num instante e o mandariam de volta para Nova York e para a cadeia antes que você soubesse o que estava acontecendo.

Olhei-a sem dizer nada. Ela se levantou e começou a andar no seu nervosismo de um lado para outro.

Você não é de falar muito, não é? — disse ela em dado mo­mento.

Só falo quando tenho o que dizer. Aliás, acho que está fa­lando que chegue por nós dois.

Ela parou diante de mim e me apalpou os braços. Pensei que estava tentando fazer alguma coisa e contraí os músculos.

—        Bem, é bastante forte, — murmurou ela.

Levantou-se, foi até ao armário e tomou outro gim também de um gole.

Gosto de você, — disse da. — Gosto desse seu olhar duro e mau. Tenho um lugar para você.

Para fazer o quê? — perguntei. Não me sorria a idéia de par­ticipar diretamente do negócio dela.

Sabe qual é a casa que tenho aqui?

Sei.

Muito bem. Preciso de alguém aqui que mantenha os clien­tes na linha, que não os deixe ficarem muito barulhentos. Não terá muito o que fazer. Só de quando em quando é que surge alguma coisa, mas é com alguém que bebeu demais e isso é fácil de se re­solver. Você só precisa é de ficar por aqui, assumir ares de valentão e deixar que o vejam. Basta isso. Quero também que me acompanhe quando eu for fazer compras para que pareça que eu sou apenas uma dona de pensão familiar. Trinta dólares por semana, com casa e comida. Serve?

Parece que sim, mas é um pouco diferente do que eu estava fazendo.

E que era que você estava fazendo? Um assaltozinho aqui e ali? Conseguindo pouco e sujeito a levar uma bala no corpo a qual­ quer momento? Isto aqui é melhor e paga mais.

Mas não vou ter de lhe arranjar fregueses?

Claro que não! E que casa você pensa que é a minha? Não é qualquer pessoa que pode entrar aqui, fique sabendo. Tenho uma cli­entela escolhida e fina.

  1. Quando é que eu começo?

Agora mesmo. Mas quero dizer-lhe uma coisa. Deixe as pe­quenas em paz. Isso não quer dizer que não possa de vez em quando divertir-se com uma delas, quando tiver vontade, mas não quero é que tenha favoritas. Não quero discussões, nem brigas entre as mi­nhas pequenas.

Está bem. Compreendo.

Faça o seu serviço, meta-se exclusivamente com a sua vida e você nunca será encontrado aqui dentro.

É nisso mesmo que estou pensando.

Então está empregado, — disse ela. Foi ao armário bebeu outro cálice e perguntou: — Como é seu nome?

Frankie. Frankie Kane. E o seu?

Basta chamar-me Vovó.

Ela foi até à porta e gritou com toda a força dos pulmões:

—        Mary! Mary!

Depois, voltou-se para mim.

Onde está sua bagagem?

Que bagagem?

Você deve ter saído mesmo às pressas. Os moços são assim mesmo. Fazem tudo irrefletidamente. Nunca pensam naquilo de que vão precisar. Deve estar sem dinheiro também.

Nada disse.

—        Eu sabia! — exclamou ela triunfantemente. — Bastou olhar para você para saber. Aposto que não tem nem dinheiro para pagar um quarto se conseguisse um.

Sorri pensando nos 185 dólares que tinha no bolso.

—        OK. Quando formos fazer compras hoje à tarde, comprarei algumas roupas para você. Um terno com ombros bem armados para você parecer ainda maior e umas camisas vistosas. — Foi até à porta e tornou a chamar Mary. — Mas não pense que vou dar isso de pre­sente a você. Descontarei do ordenado da primeira semana. Calou-se quando viu uma preta enorme entrar na sala.

Pronto, — disse e à velha.

Meu neto acaba de chegar de Nova York. Leve-o para o quarto vazio no terceiro andar

A mulher me olhou com incredulidade e a velha exclamou:

—        Que é que há? Não ouviu o que disse? É meu neto! Ou acha eu não posso ter um neto? Sou igualzinha às outras mulheres têm filhos

A preta sorriu

Trabalho aqui há seis anos, Sra. Mander, e nunca a ouvi fa­lar em neto nenhum

Gente preta é assim mesmo! — gritou a velha. — A gente trata bem e eles logo pensam que mandam na gente. Vá para o infer­no! Já lhe disse que é meu neto. Olhe para ele e veja se não se parece comigo. Até os olhos são iguaizinhos aos meus.

A preta me olhou com hesitação, mas murmurou

Acredito, já que está dizendo.

Assim, sim, — exclamou a velha, exultante. — Mas fique sabendo que não é meu neto coisa nenhuma. É a primeira vez que o vejo. Mas ele vai trabalhar aqui e para todos os efeitos é meu neto. — Voltou-se pan mim e disse: — Não se pode enganar Mary. Ela já trabalha comigo há muito tempo. Não é fácil enganá-la, hem, Mary?

Não, Sra. Mander, — disse a preta sorrindo

Leve-o então para o quarto dele. Depois, me traga o que comer. E limpe esta sala que está um verdadeiro chiqueiro! Já almo­çou, Frankie?

Já, Vovó

Está bem. Então vá para seu quarto. Vou chamá-lo daqui a uma hora para irmos fazer compras

Subi a escada com Mary. A casa estava em silêncio. Os corre­dores eram escuros e um pouco sujos. No terceiro andar, parou dian­te de uma porta e abriu-a. Era um quarto pequeno que dava para a rua. As cortinas da janela eram também pesadas. Havia uma cama de solteiro encostada à parede e um lavatório do outro lado.

—        O banheiro fica ali no fim do corredor. Aquele outro quarto é da Sra. Mander. O meu é mais em cima ainda. As pequenas ficam todas no segundo andar

—        Obrigado, Mary.

Ela me olhou um instante.

Você é mesmo de Nova York?

Sou.

Mas não é parente dela, é?

Não

Ela saiu e eu fechei a porta. Tirei o paletó e joguei-o em cima de uma cadeira. Estendi-me na cama. Sentia-me cansado e intranqüi-lo. Não sabia ainda como era duro procurar emprego. Tentei fechar os olhos, mas eles me ardiam. Levantei-me, fui até à janela e abri as pesadas cortinas pretas. Mas logo vi que o quarto no escuro me a-gradava mais. Estendi-me de novo na cama.

A velha podia pensar o que bem quisesse. Ela estava certa nu­ma coisa. A polícia não me iria encontrar ali. Logo que as coisas se acalmassem, eu poderia dar o fora e ir para onde estava minha famí­lia. Como estariam eles? Podia imaginar Tia Bertha toda ansiosa com o telegrama recebido do Irmão Bernhard e meu tio dizendo que ela não devia ficar preocupada. O Irmão Bernhard devia estar furioso comigo. A Sra. Mander pensava que eu era um criminoso... Encren­ca com a polícia... engraçado... Baltimore... Vovó... casa de mulhe­res... não quero favoritas...

Comecei a cochilar. A porta se abriu e a Sra. Mander entrou. Estava decentemente vestida, como qualquer outra senhora da mes­ma idade. Sentei-me na cama.

Vamos fazer compras, Frankie

Levantei-me, vesti o paletó e disse

Vamos. Estou pronto

Saímos. Passamos primeiro por um açougue, depois por um armazém. Ela pagava tudo a dinheiro e eles mandavam levar em ca­sa. Depois, entramos numa pequena alfaiataria

O dono parecia judeu. Cumprimentou-nos cheio de mesuras e disse:

—        Estou às suas ordens.

Tem aí ternos usados de boa qualidade? — perguntou a velha.

Se eu tenho ternos usados de boa qualidade? — perguntou ele dramaticamente, abrindo os braços. — Apontou para os cabides cheios de roupas. — Tenho o que há de melhor. Pode-se até dizer que são novos. Quase não foram usados!

Quero um terno para meu neto.

Olhamos pelos cabides até que ela viu alguma coisa que lhe a-gradou.

—        Experimente este, — disse ela.

—        Tenho tanta mercadoria na loja e ela vai escolher justamente o melhor terno, — exclamou o homem, — o terno que eu estava pensando em guardar para mim!

Ao mesmo tempo que falava, tirava o terno do cabide e o esco­vava. Era de casimira cinzenta com listras finas. Experimentei o pa­letó. Estava um pouco frouxo nos ombros e na cintura. As mangas estavam boas.

Está como se fosse uma luva, — disse ele. — Talvez um pouquinho folgado aqui nos ombros. Mas, tirando isso, perfeito!

Quanto? — perguntou ela.

—        Doze dólares e meio porque é para a senhora. Acabou deixando por nove.

Está bem, — disse ele, afinal. — Não queria vender o terno, mas a senhora o comprou. Que é que se vai fazer? Vou tratar de ajei­tá-lo. Vou tirar um pouquinho dos ombros, só um pouquinho.

Não, — disse ela. Ponha mais enchimento neles. Gosto de ombros largos.

Está muito bem. A senhora é quem manda. Ficamos esperando. Daí a quinze minutos estava pronto.

Vista, Frank, — disse a Sra. Mander.

Vesti e olhei-me num espelho. Ela estava com a razão. Os om­bros eram bem largos e eu parecia mais velho. Procurei não me mos­trar muito satisfeito.

O homem embrulhou o terno velho e nós saímos. Eram quase seis horas quando chegamos de volta à casa. Mary nos abriu a porta.

—        O jantar é às seis e meia. Não se atrase.

—        Fique descansada, Vovó — disse eu, subindo a escada para o meu quarto.

Pouco depois, ouvi tocar um sino. Devia estar chamando para o jantar. Desci para a cozinha. Ouvi um murmúrio de muitas vozes a-trás da porta fechada. Dominando tudo, ouvi a voz da Sra. Mander. Ajeitei a gravata e entrei.

As conversas pararam e todos os olhos se voltaram para mim. Havia muitas expressões, sendo a predominante a da curiosidade. Calculei que estivessem falando sobre mim antes da minha chegada. Fiquei um momento ali parado, correndo os olhos em torno da mesa. Havia uma cadeira vaga no fim da mesa, defronte da Sra. Mander. Fui até lá e sentei-me.

—        Muito bem, Frank, — disse a Sra. Mander. — Trate de ser­vir-se

Tirei alguns pedaços de carne que estavam numa travessa no centro da mesa.

A Sra. Mander voltou-se para as mulheres.

—        Esse é Frank Kane, que vai trabalhar conosco para manter a ordem. — Apanhou uma garrafa de gim que estava embaixo da mesa e serviu-se de uma boa dose. Depois de beber, voltou-se para mim.

— Esta que está sentada aí ao seu lado, Frank, é Mary. Depois dela, está Belle.

Foi assim dizendo o nome de todas elas e a cada uma eu fazia um breve cumprimento com a cabeça. Pareciam variar em idade de vinte e cinco a quase quarenta e eram de todos os tamanhos e feitios, desde a enorme Mary, que estava sentada ao meu lado e devia ter mais de trinta, até Jenny, que estava sentada ao lado da Sra. Mander e que era bem pequena e de aspecto recatado. Estavam vestidas com um variado sortimento de robes e quimonos. Algumas tinham o rosto todo pintado, com sombra nos olhos. Outras não estavam com pintu­ra alguma e tinham o aspecto cansado, como se tivessem acordado naquele instante. Uma coisa todas tinham em comum: olhos brilhan­tes, vivos e penetrantes e os cantos da boca levemente torcidos para baixo, mesmo quando sorriam, dando-lhes um ar de arrogante ego­ísmo.

Mary parecia dominar as outras. Era uma mulher robusta e vas­ta, vestida com um peignoir cinza, de seios enormes, braços grossos, papada e cabelos oxigenados. Olhou-me cuidadosamente. Continuei a comer, sem tomar conhecimento do seu exame.

—        Que idéia é essa de trazer um garoto para cá como leão-de-chácara? — perguntou ela afinal à Sra. Mander. — Precisamos de alguém que se garanta — de um homem!

Olhou-me pan ver o que eu diria, mas eu fiquei calado e conti­nuei a comer.

A Sra. Mander riu e tomou outro cálice de gim, sem dizer nada também.

Mary se levantou e era claro que ela sentia mais confiança, desde que nenhum de nós dissera coisa alguma.

—        Não passa de um garotinho! — disse ela à Sra. Mander. — Mande-o para casa antes que ele comece a chorar. Olhe! Já está qua­se chorando!

Larguei o talher e olhei-a. Ela devia pesar mais de setenta qui­los e ter quase um metro e oitenta de altura. Continuei calado e vi que as outras pequenas estavam a observar-nos. Eu sabia que iriam agir de acordo com a orientação dada por Mary, de modo que eu não podia deixá-la dizer o que quisesse.

Ela tornou a sentar-se e, voltando-se para mim, pegou-me o rosto com os dedos, com muita força.

—        Vejam o queridinho! Gordinho como um bebê! Quando ela tirou a mão, senti o rosto dolorido.

Ela tornou a voltar-se para mim.

—        Por que é que não vai para casa, bebezinho?

O rosto era grosseiro e a voz era cruel e insultuosa. Levantei as mãos e coloquei-as em cima da me,sa.

—        Perdeu a língua, filhinho?

Sem me levantar, bati-lhe no rosto com as costas da mão e com o pulso, com toda a força de que dispunha. Ela caiu para trás com cadeira e tudo. O sangue lhe escorria do canto da boca e do nariz. Ficou estendida ali no chão, com a mão no rosto, a olhar-me estupi-damente. As outras pequenas corriam os olhos de mim para Mary.

Olhei para ela e disse:

—        Você fala demais.

Continuei a comer. Ela se levantou, sem tirar os olhos de mim. Colocou a mão em cima da mesa para firmar-se, com o peignoir en-treaberto, a mostrar-lhe o seio grande e forte, como um melão madu­ro. Limpou o sangue do rosto com a manga do peignoir. Hesitou um pouco como se não soubesse se devia sentar-se de novo. Era eviden­te que estava com medo de mim.

—        Sente-se e acabe de comer, — disse-lhe eu. — Depois, suba e vá ajeitar esse rosto. Você tem de trabalhar.

Falei com voz ríspida e seca, tal como ouvira Fennelli fazer muitas vezes. Até a mim dava a impressão de crueldade. Ela enrolou o corpo no peignoir e sentou-se.

—        Eu bem disse! — exclamou a Sra. Mander. — Recomendei que o deixassem em paz!

Uma por uma, as pequenas acabaram de comer e foram saindo. Não conversara muito depois do que havia acontecido. Por fim, só ficamos na mesa a Sra. Mander e eu. Ela já estava meio bêbeda. "Deve ter a capacidade de um camelo", pensei eu. "Ou então, tem dentro do corpo algum recipiente secreto para receber o gim".

136


—        Frankie, meu rapaz, — disse ela. — Sempre pensei que pre­cisávamos de um homem permanentemente aqui para dar mais cor local.

Mais ou menos às sete horas, as pequenas desceram dos quartos e foram para a sala. Estavam vestidas com brilhantes vestidos de ce­tim preto e cuidadosamente pintadas. Era evidente que nada tinham por baixo dos vestidos. Isso se via da maneira pela qual os seios se balançavam quando elas andavam, do jeito pelo qual os vestidos se colavam aos quadris e às costas e do modo de caminhar. Sentaram-se na sala mal iluminada, formando pequenos grupos à espera de que os fregueses aparecessem. Mary Grande, como era chamada, desceu também e balançou a cabeça tranqüilamente quando passou por mim, como se nada houvesse acontecido. Era chamada de Mary Grande para distinguir-se de Mary, a empregada preta. Esta desceu também alguns minutos depois. Estava com um vestido vistosamente estampado que contrastava violentamente com a sua pele escura e com os vestidos das outras. Sentou-se ao piano e começou a tocar e a cantar com voz chorosa. Era aquele o seu serviço à noite.

Finalmente, a Sra. Mander apareceu. Estava perfeita, como se não houvesse bebido uma só gota. Não sabia como era que ela fa­zia isso. Quando nos levantamos da mesa do jantar, ela estava tão embriagada que quase não podia andar. Estava vestida com elegân­cia, quase com distinção, bem penteada, o rosto levemente empoa-do e os óculos no nariz. Parecia tudo menos a dona de uma casa de mulheres.

Disse-me:

—        Quem recebe o dinheiro é você, como já lhe disse. Adianta­do. Cinco dólares de cada um. Vinte e cinco dólares para quem qui­ser passar a noite. Não deixe ninguém subir antes de ter o dinheiro na mão. Fique aqui no hall. Tomarei conta deles lá dentro. Caso al­gum possa pagar mais e valha a pena, eu lhe direi.

Entrou. Vi-a do hall abrir o armário das bebidas e tirar algumas garrafas que arrumou em cima do piano juntamente com alguns co­pos vazios. Depois, veio de novo ao hall e me avisou:

—        Não deixe nenhum bêbedo entrar. É uma gente que só dá trabalho.

A campainha da porta tocou.

—        Vá abrir, — disse ela, voltando para a sala. Vi as pequenas arrumando-se, levantando o corpo, com um certo brilho de competi­ção nos olhos. O trabalho ia começar.

Olhei pela abertura quadrada que havia no centro da porta. Era um homem que parecia um empregado de banco ou um pequeno ne­gociante.

—        A Sra. Mander? — perguntou.

Abri a porta e deixei-o entrar. Era um velho freguês. Foi dire­tamente para a sala. Ouvi-o cumprimentar algumas das pequenas. Alguns minutos depois, reapareceu no hall em companhia de Mary Grande. Esta tinha no rosto um ar de triunfo — conseguira o primei­ro freguês da noite. O homem tirou dinheiro do bolso e me deu. Três dólares. Olhei pela porta pan a Sra. Mander e mostrei-lhe três dedos. Ela bateu com a cabeça.

—        OK, — murmurei. Era um velho freguês.

A campainha tocou de novo. Abri a porta para outro freguês. Mais outros apareceram. Ouvia-se na sala o tilintar dos copos, risos e música suave. Algumas pequenas subiam acompanhadas. Mary desceu com o homem. Ajudou-o a vestir o sobretudo e disse:

Até para a semana.

Sem dúvida.

Abri-lhe a porta para ele sair. Mary voltou para a sala.

A noite se passou sem qualquer incidente. Era pontilhada dos mais diversos barulhos: copos batendo, a melodia do St. Louis Blues no piano, descargas nos banheiros, passos na escada, portas que bati­am, a voz rouca da Sra. Mander, camas que rangiam, sons que se repetiam no silêncio. A noite foi correndo.

Mais ou menos às três horas, a Sra. Mander chegou perto de mim e perguntou:

Há alguém lá em cima que vá sair já?

Nenhum.

Pode fechar então.

Tranquei a porta. Fomos para a cozinha. Havia ali um pequeno cofre embutido na parede, perto da geladeira.

—        Você deve ter 315 dólares, — disse ela, olhando para um papel. Olhei-o. Ela havia escrito os nomes das pequenas, com a ano­ tação dos fregueses que tinham tido e do que eles haviam pago. Con­tei o dinheiro. Estava certo, sem nada a mais ou a menos. Tirei da cabeça a idéia de ficar com alguma coisa para mim, pelo menos por enquanto.

Ela contou também o dinheiro e guardou-o no cofre. Depois, abriu um armário e pegou uma garrafa de gim.

Não quer? — disse ela, passando-me a garrafa

Não, Vovó. Muito obrigado.

Ela tomou o primeiro cálice e disse:

Tem razão. Não toque nisto. É um veneno.

Serviu-se de outro.

Ah! Eu estava precisando disso. Nunca bebo quando estou trabalhando. — E acrescentou, olhando-me por cima dos óculos:

Pode ir dormir, Frank. Você serve.

Subi para o meu quarto. Tirei a roupa no escuro, joguei as rou­pas em cima da cadeira e estendi-me na cama.

Fiquei ali no escuro, com os olhos abertos. Virei-me de um la­do para outro. Os olhos me doíam de cansaço e eu não podia dormir. Acendi um cigarro e dei uma tragada forte.

Não estava nada bem. Era a primeira vez em minha vida que não conseguia dormir quando queria. Tinha medo, essa é que era a verdade — medo de coisas que não podia compreender, medo de es­tar sozinho e longe dos meus e sem Irmão Bernhard, medo de pensar no futuro, pois me parecia estar enterrado num poço de lama. Come­cei a chorar.

Sentia-me sujo, incrivelmente sujo até os ossos, tão emporca­lhado que nunca mais poderia lavar toda aquela sujeira.

Por que havia fugido?

Passei a noite toda sem poder dormir. Vi a luz do dia chegar ao quarto. Logo que ficou claro, fui até à janela e acendi um cigarro. A rua estava quase deserta. Só se via um caminhão de entrega de leite e alguns madrugadores que já iam para o trabalho. As lâmpadas da rua se apagaram. Fui até ao lavatório e lavei a cabeça e o rosto com água fria. Depois, vesti-me com uma camisa e roupa de baixo limpa, jo­gando a suja em cima da cama. Desci o corredor sem fazer barulho. Todos os quartos estavam em silêncio. Cheguei à porta da rua e saí. Do outro lado, havia um pequeno parque. Fui até lá e sentei-me num banco. Perto de mim, uma fonte lançava para o ar um jato de água que rebrilhava ao sol da manhã. Um bando de pardais desceu em re­voada até à beira da fonte.

Do outro lado do parque, um marinheiro estava dormindo num banco, com um braço por cima dos olhos, para resguardá-los da cla­ridade. O seu gorro branco estava no chão perto do banco. Um guarda entrou no parque e acordou o marinheiro, sacudindo-o delicada­mente pelo ombro. Disse ao marinheiro alguma coisa que eu não pu­de ouvir. O marinheiro respondeu, pegou o gorro no chão, levantou-se e saiu do parque. O guarda continuou a fazer a sua ronda pelo par­que. Pensei em sair antes que ele me visse, mas resolvi que se ele me prendesse eu estava preso e pronto. Talvez no fundo eu esperasse mesmo ser preso e mandado de volta. Eu sabia que por mim mesmo não poderia voltar, reconhecendo o meu erro. Mas se mandassem de volta...

Muito bom dia, meu jovem, — disse o guarda, quando se aproximou de mim.

Bom dia, — respondi, acendendo um cigarro e esperando que ele não percebesse o tremor de minh voz.

Um lindo dia, — disse ele, parando diante de mim. — Acordou um pouco cedo, não foi?

Não Consegui dormir.

É, já está um pouco quente demais para o mês de maio, — disse ele, sorrindo. — Mora aqui perto?

Moro. Vim para a casa de minha avó, que mora aí na rua, — disse eu, movendo vagamente o braço, sem apontar casa alguma em particular. — Sou de Nova York.

Ótima cidade! Meu irmão mora lá. Está na polícia. É o Sar­gento Flaherty. Conhece?

Não. A cidade é muito grande.

É verdade. Bem, vou continuar a minha ronda. Adeus.

Adeus, — disse eu.

Descansei a cabeça no encosto do banco e senti no rosto o calor do sol. Era bom e como que me lavava de tudo. Comecei a cochilar.

Acordei assustado. Um cachorro que corria pelo parque me a-cordara com os seus latidos. Olhei para o meu relógio. Passava um pouco das oito. Senti fome. Levantei-me, segui pela rua e, um pouco adiante, encontrei um restaurante. Entrei e tomei café. Mais ou me­nos às dez horas, voltei para casa. Mary me abriu a porta.

Já se levantou? — perguntou ela.

Já.

Tomou café?

Num restaurante aí adiante.

Fui para a sala. Ela estava com um pano amarrado na cabeça e acabara de limpar a casa. As janelas estavam abertas e uma leve bri­sa entrava na sala. Sentei-me num sofá e comecei a ler o jornal que havia comprado. Dali podia ver qualquer pessoa que descesse as es­cadas. Cerca de uma hora passou. Sentia o cheiro do bacon frito na cozinha. As outras pessoas da casa deviam também senti-lo e começaram a descer.

Mary Grande foi a primeira. Olhou para a sala, viu-me e conti­nuou para a cozinha. Alguns minutos depois, chegou à porta e perguntou quase servilmente:

Posso entrar?

Pode, — disse eu, ainda lendo o jornal.

Ainda está zangado comigo? — disse ela, sentando-se diante de mim de uma maneira que me mostrou as pernas até às coxas.

Não. Foi só um mal-estendido.

Isso mesmo, — disse ela, aproveitando-se da palavra, — um mal-entendido.

Claro.

Não quero que fique aborrecido comigo. Sabe o que eu que­ro dizer?

Eu sabia o que ela queria dizer.

Se quiser alguma coisa... — murmurou ela, com os olhos fi­tos em mim.

Não é preciso nada. Não haverá mais aborrecimento entre nós.

Ela se levantou e disse, antes de voltar para a cozinha:

—        Bem, não se esqueça. Qualquer hora...

Poucos minutos depois, a Sra. Mander desceu. Foi diretamen­te ao armário de bebidas e se serviu de uma dose. Depois, virou-se para mim.

Bom dia. Levantou-se cedo. Não pôde dormir?

Sempre me levanto cedo.

Já comeu?

Já.

Entrou então na cozinha.

Jenny foi a última que desceu. Era a única que estava com um vestido. As outras usavam robes ou quimonos. Ela estava com um estampado alegre e tinha ao pescoço uma pequena cruz de ouro pen­dente de um cordão de ouro.

Entrou diretamente na sala e disse:

Bom dia.

Alô..

Já tomou café?

Ela se aproximou de mim muito séria, mas com os quadris ba­lançando um pouco.

Estou muito satisfeita hoje e estou com vontade de ir à mis­sa. Quer ir comigo?

Não, — respondi laconicamente. Como podia alguém sair de um lugar como aquele para ir à missa?

Venha. Só lhe poderá fazer bem.

Ora, deixe-me em paz! — disse eu, aborrecido. Pouco me interessa que você vá para a missa ou para o inferno. O que eu quero é que me deixe em paz.

Ela me deu as costas, mas, chegando à porta, voltou-se para mim e disse, sorrindo:

—        Sei que irei para o inferno, sim. Mas você também irá. Ire­mos todos nós. Você vai ver!

A Sra. Mander voltou à sala e perguntou:

De que é que estavam falando?

De quem era que iria para o inferno, Vovó.

Oh, Jenny está sempre falando nisso. Acredita que vai pagar pelos seus pecados agora e depois. E escute aqui uma coisa: ouvi al­guém gemendo esta noite. Ela não lhe pediu que batesse nela, pediu?

Claro que não.

É, não podia mesmo ser. Ela teve um freguês por toda a noi­te. Bem, se ela um dia lhe pedir isso, espero que massacre de verda­de aquela tarada.

Conservei-me impassível, olhando a Sra. Mander. Mas não adi­antava. De minuto a minuto, aquela casa me enojava mais.

Foi só na noite da quinta-feira que eu cheguei a uma decisão sobre o que ia fazer. Aqueles dias tinham sido relativamente calmos. Eu fora aceito pelas outras pessoas da casa. Tinham o seu lugar e eu tinha o meu. Respeitávamos os direitos uns dos outros. Eu vivia in­quieto, mais ou menos descontente comigo mesmo por achar que me havia acomodado com muita facilidade àquela espécie de trabalho.

Tinha dúvidas sobre a natureza do meu trabalho. Achava-o desonro­so e não sabia se gostava dele ou não. Os meus sentimentos eram um tanto confusos em relação a tudo.

Na quinta-feira à tarde, sentei-me na sala, lendo um jornal e fumando. Chovia lá fora, uma chuva miúda e triste. A Sra. Mander tinha ido ao cinema com uma das mulheres. Eu tinha ido também no dia anterior. O filme era Sétimo Céu. Lembrava-me da música que um pianista tocara durante as passagens mais românticas do filme. Deixei o cinema meio deprimido e atravessei a rua para tomar um refrigerante. Passei por um posto de recrutamento da Marinha e olhei pela vidraça. Um oficial alto e queimado de sol estava apontando al­guns cartazes a um candidato. Via os gestos mas não podia ouvir o que ele estava dizendo. Imaginei-me nos lugares remotos de que fa­lavam os cartazes. Tive vontade de entrar e fazer perguntas, mas de­sisti e afastei-me da vitrina.

Larguei o jornal. Sem dúvida, eu estava deprimido naquele dia. Mary entrou, sentou-se ao piano e começou a tocar. Isso não me adi­antou nada. A música tinha um subtom de melancolia que não me fez bem algum. Comecei a pensar em casa e na família. Gostaria de saber o que tinha acontecido desde que eu me separara deles.

O piano me enervou.

—        Pelo amor de Deus, pare com isso.

Mary nada disse. Fechou o piano e saiu da sala.

Que é que há, Frank? — perguntou Jenny, que ia passando naquele momento pelo hall. Estava com o seu vestido de cetim em cima da pele e com a cruz de ouro ao pescoço, a cruz que era uma promessa falsa de inocência. Entrou na sala com a sua pele muito clara.

Nada! — exclamei.

Ela se sentou no braço da minha poltrona, olhando para o jornal que eu estava lendo. Larguei o jornal e perguntei:

—        Por que não se vai embora?

Ela me olhou calmamente. Eu me sentia curiosamente enjoado. Era uma sensação desagradável, um frio que me subia da boca do es­tômago. Era como se eu fosse duas pessoas, uma enjoada das neces­sidades da outra. Do estômago para cima, eu era uma pessoa; do es­tômago para baixo, outra.

—        Quem deve ir-se embora é você, — disse ela, como se esti­vesse lendo os meus pensamentos.

Não respondi. Não tinha o que responder. Ela me pegou a mão e passou-a pelo estômago, bem embaixo. Senti-lhe a pele quente por baixo do vestido.

—        Por que não se vai embora? — insistiu ela. — Você é um bom rapaz. Quer ir caindo, caindo, até não se poder mais levantar? Quer ser também um condenado?

E enquanto dizia essas coisas, guiava a minha mão pelo corpo dela.

Desprendi a mão e bati-lhe em cheio no rosto. Ela caiu do bra­ço da poltrona, rolando no chão. Olhou para mim com um ar vitorio­so como se eu tivesse feito o que ela queria. Não fiz menção de le­vantar-me da poltrona.

—        Você é forte, — disse ela com voz terna.

Levantei-me e passei por cima dela. Ela ergueu o corpo e segu­rou uma das minhas pernas, impedindo-me de completar a passada. Tirei-lhe a mão da minha perna. Ela tentou agarrar-me a mão, mas eu lhe dei uma bofetada. Olhei para ela e vi que tinha os olhos semi-cerrados. Gemia, torcendo o corpo.

Puxou-me pelas pernas, mas eu lhe dei um pontapé nos quadris e ela me largou. Fui até à porta e fiquei olhando a chuva. Acendi um cigarro. Um minuto depois, ela estava ao meu lado.

—        Você não pode ir-se embora! — exclamou ela. Está com medo!

Senti-me melhor de repente. Estava tudo claro agora, o que me atormentava bem no fundo do espírito. Sorri.

Ela arregalou os olhos e levantou as mãos, como para proteger-se de uma pancada. Olhou-me por um segundo e disse num sussurro:

—        Você está louco! Louco de verdade!

Foi depois correndo para dentro da casa. Dei uma gargalhada. Tirei mais uma fumaça do cigarro e joguei a ponta na rua.

O resto do dia pareceu voar. Pensava de vez em quando: "Eu estava com medo". Cada vez que dizia isso, sentia-me melhor. Co­mecei a compreender por que aceitara aquele lugar. Eu não fora tão esperto, quanto julgara. A velha me havia embrulhado. Em primeiro lugar, me havia amedrontado com a sua história sobre a polícia. De­pois, me oferecera o lugar, sabendo que, se eu mordesse a isca, tudo estaria resolvido. Mas eu já não estava com medo.

Foi com um estado de espírito diferente que exerci as minhas funções naquela noite. Vi com maior clareza a sordidez do ambiente, o caráter furtivo e baixo dos fregueses, o barato ar afrodisíaco das mulheres, a travessia imunda da escada pelas mulheres e pelos fre­gueses na ida e na volta.

Por volta da meia-noite, apareceu um marinheiro. Parecia já ter estado ali antes e pouco depois subia com jenny. Desceu meia hora depois e disse, ao passar por mim.

Que mulher!

Ri com ele e disse:

Boa, hem?

Claro, garoto! — Olhou-me então de mais perto e me per­guntou: — Não é moço demais para estar trabalhando aqui?

Não vai ser por muito tempo. Vou sair daqui.

Ótimo, — disse ele, encaminhando-se para a porta. Obedecendo a um impulso, fui atrás dele.

Espere um pouco, marinheiro!

Que é que você quer? — perguntou ele, com ar belicoso.

É verdade o que dizem sobre a Marinha?

Se é verdade o quê?

Que a gente fica conhecendo o mundo, se instrui e...

Claro que é! Está com vontade de alistar-se?

Se me quiserem...

Vão querer, sim. Você vai ver.

Que quer dizer?

Vá em frente e aliste-se, garoto. Só depois é que você verá.

Não dei importância ao sarcasmo na voz dele.

É o que eu vou fazer amanhã.

Faça isso. Você verá o mundo de trás de uma vigia.

Está falando sério? Ele me olhou e sorriu.

—        É isso mesmo, garoto. Eu, por exemplo, já andei pelo mun­do inteiro — Europa, China, os Mares do Sul. É uma grande vida. De qualquer maneira, é muito melhor do que esse antro aí.

Vi-o afastar-se pela rua e voltei ao meu lugar no hall. Havia chegado a uma decisão.

Como de costume, a Sra. Mander fechou a casa às três horas. Quando contávamos o dinheiro, ela de repente me perguntou:

—        Que foi que você ficou conversando com aquele marinheiro? Por um segundo, cheguei a pensar que ela ouvira alguma coisa.

Mas logo compreendi que não seria possível ela ouvir — da sala e com o piano tocando.

—        Nada, — disse eu, — ele deixou cair a carteira e eu a estava devolvendo.

Ela olhou para mim um instante e tomou um cálice de gim.

—        É isso o que me agrada em você, Frank. Você é honesto. É a desonestidade que dá má fama a uma boa casa.

Às dez horas da manhã do dia seguinte, eu estava à espera dian­te do posto de alistamento da Marinha no centro de Baltimore. Não estava aberto ainda, de modo que fui tomar um café ao lado. Pela ja­nela do café, vi um sargento de fuzileiros abrir a porta. Acabei o café mais que depressa e saí.

Entrei no posto no momento em que o sargento se sentava à mesa.

Quero alistar-me, — disse eu.

Fuzileiros ou Marinha? — perguntou ele, laconicamente.

Marinha.

Ele apontou para uma cadeira junto à parede e disse:

—        Sente-se ali. O Tenente Ford não demora.

Olhei os cartazes e depois peguei um folheto que mostrava di­versos aspectos da vida de um marinheiro no mar e em terra. Um o-ficial entrou.

O sargento fez continência.

—        Um recruta para o senhor, tenente.

O tenente era bem moço. Olhou para mim e me chamou. Sen­tei-me numa cadeira diante da mesa dele.

Começou a fazer-me perguntas num tom seco. Respondi pron­tamente.

Nome?

Frank Kane.

Nome médio?

Mander.

Talvez fosse preciso ter três nomes para entrar na Marinha e eu disse o primeiro que me ocorreu.

—        Endereço?

Dei-lhe o endereço da casa da Sra. Mander.

Data de nascimento?

10 de maio de 1909.

Tem então dezoito anos. Vai precisar do consentimento de seus pais.

Meus pais morreram.

E seu tutor?

É minha avó. Moro com ela.

—        Muito bem. Remeter-lhe-emos os papéis pelo correio.

Eu não havia pensado nesse problema, mas não tive dúvidas de que poderia interceptar os papéis e assinar por ela, antes que ela pu­desse vê-los. Eu era sempre o primeiro que acordava na casa. O te­nente fez mais algumas perguntas e levantou-se. Levantei-me tam­bém.

Quando sua avó assinar os papéis, traga-os aqui. Traga tam­bém roupa que chegue para três dias. Fará o exame de saúde e, se passar, prestará juramento e será imediatamente mandado para um campo de treinamento.

Obrigado, tenente.

Ele sorriu e me estendeu a mão.

—        Felicidades.

Voltei para a casa, pisando em nuvens.

A carta chegou na manhã de segunda-feira. Vi-a na mesa do hall, onde Mary a colocara com o resto da correspondência. Apa­nhei-a, levei-a para o meu quarto e abri-a. Vi que o oficial havia marcado com um "x" o lugar onde ela devia assinar. Assinei-a com uma caligrafia diferente da minha. Depois, guardei tudo no bolso do meu terno azul, o velho.

A minha última noite ali correu sem novidades, na rotina de costume. Quando fechamos a casa, fui como todas as noites para a cozinha a fim de fazer as contas com a Sra. Mander. Quando acaba­mos, continuei sentado a olhá-la.

Como sempre fazia, ela tomou uma dose de gim. Quando viu que eu. continuava sentado em vez de ir para a cama como de cos­tume, olhou-me, cheia de estranheza.

Que é que há, Frank?

Vou deixá-la. Amanhã.

—        Que é que vai fazer? Não respondi.

Está bem, sei que não tenho nada com isso! — exclamou ela, tomando outro gim. E as roupas que comprei para você?

Fique com elas. Não preciso mais.

Não quero saber se precisa ou não precisa! Paguei bom di­nheiro por elas!

E daí?

Ela pensou por um momento e disse.

Vou dar-lhe um aumento de dez dólares por semana.

Não me interessa. Não gosto do trabalho

Não faça isso, Frank. Fique e ganhará bom dinheiro. Talvez até eu lhe dê sociedade. Gosto de você. Nós nos entenderemos, fique certo disso.

Vou-me embora, — disse eu, levantando-me.

Escute, Frank. Não tenho nenhum parente no mundo e tenho muito bom dinheiro guardado. Estou ficando velha para esse traba­ lho e preciso de alguém em quem possa confiar. Você é honesto. Continue comigo e será um homem rico.

Tive pena da velha. A vida para ela era bem dura.

—        Desculpe, mas não posso ficar.

Ela perdeu a calma. Deu um soco na mesa e me disse com voz trêmula:

—        Vá para o inferno!

Levantei-me e dirigi-me para a porta sem responder. Ela me chamou.

Frank.

Que é? — perguntei, voltando-me.

Precisa de dinheiro? Sacudi a cabeça.

Ela apanhou algumas notas e me deu.

Leve isso, Frank. Tenho mais do que preciso. Peguei o dinheiro e guardei no bolso.

Obrigado.

Venha cá um instante. Aproximei-me e ela me segurou a mão.

—        Você é um bom rapaz, Frank. Há dentro de você alguma coisa feroz e cruel que tem de atenuar-se, mas há também uma qua­lidade de gentileza e bondade. Faça o que fizer, mas não mude. Não perca o que o impede de ser ruim e mesquinho. — Riu, servindo-se de outro gim. — Acho que estou ficando velha, senão não estaria di­zendo essas coisas.

Fiquei calado. A velha gostava de mim.

Então? — perguntou.

Adeus, — disse eu.

Num impulso, beijei-lhe o rosto velho e seco como um pedaço de papel velho.

Ela levou as mãos ao rosto e pensou alto.

—        Há quanto tempo ninguém me beija... Sai e subi para o meu quarto.

No dia seguinte, prestei compromisso na Marinha dos Estados Unidos. Quando acabei o exame de saúde, o médico disse rindo:

—        Já está na Marinha, rapaz.

Mais três homens prestaram compromisso comigo.

—        Levantem a mão direita e repitam o que eu disser, — disse o Tenente Ford.

Levantei a mão direita. O silêncio foi tamanho por um instante que ouvi as batidas do meu coração.

Juro lealdade... — disse o Tenente Ford.

Juro lealdade... — repeti.

 

INTERLÚDIO

JERRY

Jerry recostou-se na sua poltrona favorita, apanhou um cigarro na mesinha ao lado e olhou para Marty e Janet que estavam sentados diante dele. Correu os olhos pela sala. Agradava-lhe a elegância simples e rica da decoração, os quadros nas paredes, o kodakhrome ampliado de Janet em cima do rádio.

A fotografia fora batida durante a lua-de-mel. Tinham ido ao Grande Canyon. Janet estava apontando a rir para alguma coisa que lhe despertara a atenção e ele havia batido o flagrante. Ela aparecia em semiperfil sobre o fundo imenso e belo do canyon. Era a melhor fotografia que havia tirado e muito se orgulhava dela.

Tirou uma fumaça do cigarro e escutou o que diziam. Estavam ainda falando de Francis. Sentia-se aborrecido com o rumo que a conversa havia tomado. Mas sorriu intimamente. Estava procedendo insensatamente. Ninguém podia aborrecer-se com fantasmas. Os fan­tasmas pertenciam ao passado. E Frankie fazia parte do passado.

Marty dirigiu-se a ele.

—        É engraçado, Jerry, mas você nunca me contou como foi que conheceu Frankie. E tem estado muito calado a noite toda.

Jerry viu que estavam esperando uma resposta. Pensou cuida­dosamente e começou a falar com aquela encantadora sinceridade de que aprendera a fazer tão bom uso.

—        Conheci-o da maneira mais simples possível. Mais ou me­nos como aconteceu com você: numa luta. Não conseguimos vencer um ao outro. Apertamos então as mãos e nos consideramos quites.

"Foi há muito tempo. Eu estava freqüentando a Academia La-wrence em Connecticut quando, num fim-de-semana, meu pai entrou no meu quarto para conversar comigo. Sentei-me na minha cama e fiquei a vê-lo andar de um lado para outro enquanto falava. Meu pai era um homem admirável. Ainda quando eu era muito moço, ele me tratava como igual e queria saber da minha opinião a respeito dos mais variados assuntos.

"Naquele dia, aconteceu assim. Ele me disse que daí a dois a-nos ia ser candidato a prefeito de Nova York e os seus companheiros de partido achavam que. .. 'Que eu devia estudar em Nova York', disse eu, sem o deixar acabar. Compreendia perfeitamente isso. Fora criado dentro da política. Observara meu pai desde garotinho e muito aprendera com ele."

" 'É isso mesmo, meu filho', disse êle 'Seria ótimo para mim se você concordasse com isso. Se o povo visse você junto com outros garotos de Nova York, a reação seria muito favorável para mim. Sei que você gosta muito da sua escola e que tem os seus amigos lá. Por isso mesmo, acho que você é que deve resolver. Já é quase um ho­mem e está em condições de saber o que é melhor para você, o que é melhor para nós.'

"Eu queria ser como meu pai. Para mim, ele era o maior ho­mem do mundo. Era um líder e isso era o que eu queria ser também, um homem a quem os outros olhassem com respeito e admiração. Sabia o que eu queria e o que tinha de ser feito. Não queria deixar Lawrence, mas havia coisas mais importantes na vida. Fui, por isso estudar em St. Thérèse.

"Mas nunca pude gostar de lá. Era um lugar maltratado e sujo e os outros alunos eram na sua maioria grosseiros sem maneiras e sem compreensão. Nunca lhes mostrei hostilidade, mas não podia sentir-me integrado lá como me sentia em Lawrence."

Riu-se.

— Acho que era um pouco esnobe. Mas procurei superar isso. E acho que consegui, porque a maioria pareceu aceitar-me. Aceita­ram-me e gostavam de mim, mas vi logo que nunca seria um líder entre eles, porque havia outro. Era Francis Kane.

"Os outros o conheciam. Era enérgico e forte, fazia as regras e os outros faziam o que ele mandava. A princípio, ficamos longe um do outro, estudando-nos. Tivemos então de empenhar-nos numa luta. Embora nenhum de nós pudesse vencer fisicamente, eu sabia que no fundo ele havia vencido, e que venceria ainda que eu o superasse fi­sicamente.

"Compreendam que ali naquela escola, eu é que era de um meio diferente. Ele era um deles, vinha deles, vivia com eles e fazia parte deles. E isso era uma coisa que eu nunca poderia ser. Foi ele uma das primeiras pessoas a quem invejei.

"Bem, há um velho ditado em política que diz que, quando não se pode vencer um adversário, deve-se fazer aliança com ele. Foi o que eu fiz. E quanto mais o conhecia, mais gostava dele, apesar da sua maneira de falar, das roupas que usava e das mãos e do rosto su­jos. Ele e eu éramos muito parecidos. A única diferença é que o líder era ele. Foi o que sempre procurei identificar nele — essa pequena fagulha que marcava a diferença. Nunca a descobri, mas sabia que existia. Até meu pai viu isso. Um dia, levei Frank para jantar em mi­nha casa e naquela noite meu pai me perguntou quem era ele. Eu disse e ele me advertiu: "Esse rapaz é perigoso. É inteligente, resis­tente e apressivo. Não se iluda com a sua maneira de falar".

Sorri e disse a meu pai que sabia disso. Mas Frankie nunca foi perigoso para mim. Era meu amigo e gostava de mim.

Uma empregada entrou na sala com o café e as xícaras numa bandeja.

Pode deixar que eu sirvo o café, Mary, — disse Janet.

Sim, senhora, — disse a empregada, retirando-se. Jerry continuou, tendo na mão a xícara de café.

—        Lembram-se de quando ele se candidatou a presidente da classe na velha escola? Ele tinha de fazer o discurso que havíamos escrito para ele. Lembra-se, Marty, do trabalho que tivemos para treiná-lo e do receio que tínhamos de que ele fosse estragar tudo? Bem, além do receio, confesso que tinha um pouco de esperança de que isso acontecesse, para que houvesse ao menos uma coisa em que eu fosse superior a ele. Lembram-se de quando ele chegou ao centro da plataforma e começou a falar com voz alta demais? Pen­sei: "Pronto. Ele agora vai estourar". Mas não, começou a falar como se estivesse conversando com outra pessoa — com simplici­dade, calma e cordialidade. Foi então que compreendi bem o que Papai dissera. Todos nós sabíamos que Frankie estava apavorado com o discurso que tinha de fazer. Mas, apesar disso, estava domi­nando a reunião e a assistência. Mostrou ainda que tinha instinto teatral da maneira por que apresentou Janet ao público. Ele estava certo, instintivamente certo. Fazia por instinto as coisas que eu ti­nha de planejar. Era naturalmente o político que eu sempre me es­forçara por ser desde que era garotinho. Ele reunia na sua pessoa meu pai e eu, o magnetismo e o instinto que meu pai tinha pelas pessoas e os planos que eu formulava.

"Naquele momento, cresci mais, vendo os dois aplaudidos ali na plataforma. Disse a mim mesmo que não encontraria muita gente como ele e que devia aprender com ele. E aprendi também a gostar dele.

"Para mim, não havia nada de complicado em relação a Frankie. Considerava-o a essência da simplicidade direta e do tato combinados com uma inteligência agilíssima. Sabia o que queria e lutava por isso. Dizia o que pensava e fazia o que queria, aconte­cesse o que acontecesse."

Levou a xícara aos lábios. O café já estava frio. Colocou a xíca­ra na mesa.

Desse modo, — continuou ele, — Frankie nunca foi para mim o mistério que foi para vocês. Cheguei a conhecê-lo muito bem. Sabia o que ele ia fazer antes mesmo que o fizesse.

Mas não sabia que ele ia fugir? — disse Marty.

É verdade. Mas lembre-se de que não estive com ele no dia em que foi levar a família à estação. Se o tivesse visto ao menos uma vez, teria sabido.

Disse isso, mas os pensamentos que lhe corriam pela cabeça e-ram diferentes.

"Terei sabido mesmo? Cheguei a conhecê-lo de fato como es­tou dizendo? Ou ele foi para mim uma ameaça ou um desafio, como sempre imaginei que fosse? As coisas que depois aconteceram não podiam ser previstas por ninguém. Ninguém podia ler o futuro. Mas ele sempre teve as coisas que eu mais queria. Ele era o homem prin­cipal da escola e foi o primeiro com Janet. E, embora eu tivesse as coisas que queria depois que ele as deixava, como posso saber se as conseguiria se ele não se tivesse afastado ?"

O que Janet queria fazer — seria direito ou faria Frankie voltar para persegui-lo? Não tinha objeções básicas à idéia de Janet, mas desejava saber de onde ela viera. Afinal de contas, Frank tinha exis­tido e, embora pertencesse ao passado, ainda havia um caminho para a sua volta.

 

Da escada do edifício da administração, olhei para a base naval. Era o dia 30 de dezembro de 1931 e um vento frio soprava sobre a baía de San Diego. Levantei a gola e acendi um cigarro. Tinha os meus papéis de baixa no bolso e a mochila com o pouco que me per­tencia estava no chão aos meus pés.

Estava satisfeito de estar saindo. Não era que eu pensasse que a Marinha não prestasse. Para mim, tinha sido apenas um lugar melhor do que o orfanato para passar o tempo até que pudesse voltar para junto de minha família. Talvez eu tivesse trocado uma prisão por ou­tra, mas felizmente estava tudo acabado.

A vida na Marinha era em geral monótona e irritante. As restri­ções, a rotina, o planejamento minucioso de todos os minutos da vida, tudo isso concorria para embotar um pouco a capacidade que se tinha de fazer as coisas por si mesmo. Mas sem dúvida me fez algum bem. Li muito e aprendi muitas coisas. Fiz um curso de Matemática para especializar-me como artilheiro e aprendi Contabilidade para o serviço de intendência, além de inglês, História e um pouco de Geografia.

Mas tudo isso estava encerrado. Tirei a última fumaça do cigar­ro, joguei a ponta fora, peguei a mochila no ombro e me encaminhei para o portão principal.

Mostrei os meus papéis de baixa ao oficial de dia. Examinou-os e depois devolveu-os.

OK, marinheiro, — disse, sorrindo. — Até logo.

Até logo, coisa nenhuma. Adeus. Estou saindo mesmo.

É o que todos dizem. Mas voltam. Sempre voltam.

Mas o papai não. Vou para casa.

Sai pelo portão e fui para o ponto de ônibus.

Lancei um último olhar para a base quando o ônibus arrancou e acomodei-me no banco.

O pessoal da família teria prazer em ter noticias minhas. Lem­brei-me da última vez em que lhes havia escrito. Fora de Nova York. Tivera uma licença de vinte e quatro horas de meu navio e havia an­dado a esmo pela cidade durante toda a manhã sem saber o que iria fazer. De repente, me vi diante da casa de Jerry. Impulsivamente, subi a escada e toquei a campainha.

Um mordomo abriu a porta.

Jerry está? — perguntei.

Não. Está na universidade. Quer deixar algum recado? Hesitei um momento e disse:

Não. Nenhum recado.

Desci as escadas e a porta se fechou atrás de mim.

Senti então realmente saudades de casa. Ali estava eu numa ci­dade onde havia vivido toda a minha vida e não encontrava uma só pessoa conhecida com quem pudesse falar. Sentia-me desolado. En­trei num hotel, sentei-me a uma mesa na sala dos hóspedes e come­cei a escrever uma carta.

"Tio Morris, Tia Bertha, Irene e Essie:

Apenas algumas linhas para dizer que estou bem e espero que também estejam. Espero especialmente que Tio Morris esteja melhor. Sinto muito que lhes tivesse causado preocupação por ter fugido, mas eu não poderia absolutamente voltar para o orfanato depois ter vivido com todos daí. Tenho gozado de boa saúde todo o tempo e estou trabalhando. Espero poder voltar a viver com essa minha família a quem tanto quero quando tiver idade bas­tante para não ter de voltar para o orfanato. Até então, quero que não se preocupem, pois tenho tudo, inclusive dinheiro.

Todo o meu amor para todos.

Frank".

Quando acabei de escrever, tive uma idéia. Fui ao banco e fiz um cheque de todo o meu saldo. Coloquei-o dentro da carta e botei-a no correio. Não havia mais nada que eu quisesse de Nova York.

Mas isso havia acontecido quase dois anos antes. Estava fora da Marinha e ia para o Arizona para viver com eles. Saltei do ôni­bus no centro de San Diego, fui para um hotel e ali tomei um quarto. Mas, antes mesmo de subir para o meu quarto, fui ao balcão do telégrafo.

Peguei uma fórmula e comecei a escrever, sorrindo para mim mesmo. Tudo iria correr bem daí por diante. Ia para casa e tinha du­zentos dólares no bolso.

O telegrama foi o seguinte:

"Morris Cain, Lincon Drive 221, Tucson, Arizona.

Dei baixa da Marinha hoje. Gostaria de ir imediatamente para aí. Espero partir no fim da semana. Comunicarei o dia em que devem esperar-me. Ansioso por ver todos.

Saudades. Frank".

Subi com o empregado que me levou ao meu quarto. Esvaziei a mochila na cômoda e desci. Perguntei na portaria onde poderia comprar algumas roupas. Disseram-me e eu escolhi lá três ternos de 19 dólares cada um. O homem da loja prometeu-me aprontá-los o mais depressa possível. Disse-lhe que tinha a máxima urgência e ele me disse que os entregaria no sábado, um dia depois do Ano Novo. Fui depois a uma loja de artigos para homens e comprei seis camisas a um dólar e um quarto cada uma. Completei as compras com cuecas, meias e gravatas. Comprei também uma maleta por seis dólares e voltei para o hotel. Poderia partir logo que os ternos ficassem prontos.

Os dias se arrastaram. Passei a véspera e o dia de Ano Novo no quarto. Houve várias festas à noite no hotel e eu ouvi durante a noite música e o barulho das conversas e risadas embora estivesse com a porta fechada. Era curioso, mas eu não me sentia isolado. Tinha mui­tas coisas em que pensar. Imaginava como a família tinha ficado fe­liz com o meu telegrama e como estavam todos ansiosos pela minha volta. Com certeza, não conheceria mais as meninas. Já deviam ser umas mocinhas.

No dia seguinte, desci e fui receber meus ternos. Tirei o uni­forme e olhei-me no espelho. Havia tanto tempo que não me vestia à paisana que quase não me conheci. Resolvi sair e ir comprar a pas­sagem. Havia um trem que saía para Tucson no dia seguinte. Voltei então para o hotel e tratei de pagar a minha conta. Enquanto ali esta­va, vi um empregado colocar alguma coisa no escaninho do meu quarto. Pedi que me entregassem o que era.

Era um telegrama de Tucson. Fiquei tão nervoso que não quis abri-lo ali. Subi para o meu quarto a fim de lê-lo.

Encontrei dentro do envelope uma cópia do meu telegrama com a seguinte anotação: "O seu telegrama de 30 de dezembro não pôde ser entregue pelo seguinte motivo: mudança do destinatário para endereço ignorado".

Fiquei por um momento sem compreender. Joguei-me numa cadeira, vendo todas as minhas esperanças desfazerem-se. Durante alguns minutos, senti-me tão arrasado que a cabeça ficou inteiramen­te vazia. Depois, comecei a refletir, mas sem saber o que ia fazer. Nunca pensei que se mudassem sem me avisar. Mas logo vi que não me podiam avisar pois não sabiam onde eu estava. Senti-me então sozinho, perdido, abandonado e sem esperança. Os rumores da rua entravam pela janela aberta. Ouvi um riso de mulher no corredor. Acendi um cigarro atrás do outro. Não sei quanto tempo fiquei ali sentado, mas, quando olhei para fora, vi que já era noite. Levantei-me e olhei pela janela. A cidade estava toda iluminada. Comecei a andar no quarto de um lado para outro. Não podia fixar a cabeça em coisa alguma.

Desci para o restaurante, pedi um prato e não comi. Paguei a conta, sai e fui para o vestíbulo de entrada. Passei algum tempo ali sentado, olhando para as pessoas, mas sem vê-las. Não pensava em coisa alguma. Sentia apenas um insondável vazio. Fui até ao balcão do telégrafo e a moça que lá estava olhou para mim.

Tirei o telegrama do bolso.

Sabe alguma coisa sobre isto? Ela olhou e respondeu:

Não, Sr. Kane. Logo que o recebi, mandei para a portaria.

É possível que se tenham enganado?

Não creio. Verificam essas coisas com muito cuidado.

Obrigado, — disse eu.

Perto do balcão do telégrafo, havia um lance de escada que le­vava ao posto telefônico. Havia menos gente ali do que no vestíbulo. Não queria ficar inteiramente só, mas não queria ficar lá embaixo no meio de toda aquela gente. Sentei-me numa cadeira perto de uma das cabinas. Já estava ali havia uma hora quando a moça do balcão do telégrafo subiu. Vi-a entrar na cabina perto de mim e fechar a porta. Não ouvi a moeda cair no telefone, nem qualquer conversa. Alguns minutos depois, ela saiu. Parou à porta da cabina e pareceu surpresa de me ver ali sentado. Sorriu para mim e eu cumprimentei-a polida­mente. Não estava com muita vontade de sorrir.

Ela tirou um cigarro da bolsa.

—        Quer dar-me fogo, Sr. Kane?

Era muito claro! Mas não me interessava. Tirei os fósforos do bolso e acendi-lhe o cigarro. Ela se sentou ao meu lado e eu me afas­tei um pouco para dar-lhe lugar.

Obrigada.

De nada.

Roupa nova?

O quê? — exclamei, sem saber por um momento de que ela estava falando. — É a primeira vez que a visto.

Como se sente fora da Marinha?

Muito bem, eu acho...

Mas com certeza é preciso algum ajustamento, — murmu­ rou ela, parecendo interessada.

É verdade. Mas pouco a pouco, tudo entrará nos eixos.

Senti muito o caso do telegrama.

Eu devia ter esperado por isso, — disse eu e comecei a sen­tir-me melhor. Ela era a primeira pessoa que parecia interessar-se por mim, ali. Era bem simpática: cabelos pretos, olhos azuis, corpo esbelto e elegante. Sorri-lhe. — Não quero aborrecê-la com os meus problemas. Já é muito gentil da sua parte interessar-se por eles.

Bem, eu tenho um parente muito chegado que está na Mari­nha e penso às vezes no que ele sentirá quando sair.

Talvez não seja tão ruim desde que a pessoa saiba o que quer fazer.

E que é que vai fazer?

Acendi um cigarro antes de responder. Que era que eu ia fazer? Não sabia. Não havia pensado nisso.

Palavra que não sei. Arranjar um emprego talvez.

Alguma coisa especial?

Não. A primeira coisa que aparecer.

É muito difícil arranjar emprego agora.

Não sei. Nunca tive muita dificuldade em conseguir o que quisesse.

Ficamos alguns momentos ali calados. Por fim, ela se levantou.

Bem, vou andando. Está ficando tarde e eu não quero chegar atrasada em casa para o jantar.

Escute, por que não telefona para casa e não diz que vai jan­tar fora? Isto é, por que não janta comigo? Perdoe o atrevi mento, mas bem poderíamos jantar juntos e depois correr a cidade. Não co­nheço isto aqui muito bem:

Ela sorriu.

—        É muita gentileza sua convidar-me, Sr. Kane. Mas tenho mesmo de ir para casa.

Pois sim! Tinha de ir como eu tinha. Mas aceitei o jogo.

—        Seria um favor que eu muito lhe agradeceria. Não calcula como uma pessoa pode sentir-se sozinha numa cidade desconhecida.

Ela fingiu que estava examinando o caso.

Está bem, Sr. Kane. Sairei com o senhor. Mas não posso deixar de telefonar para casa, Sr. Kane.

Meu nome é Frank, — disse eu, pegando a deixa.

Está bem, Frank, — disse ela, sorrindo. — Meu nome é Helen.

Entrou na cabina e eu fiquei esperando. Mais uma vez ela não deu telefonema algum. Ri comigo mesmo.

Fomos a um nightclub onde havia um bom show. Comemos e bebemos. Eu nunca bebia demais, mas dessa vez não estava ligando muito. Dentro em pouco, estava um pouco alto. Dançamos e bebe­mos e tornamos a dançar e a beber. Daí a pouco, eram quase duas horas da madrugada. Saímos e eu chamei um táxi.

Vou levá-la em casa.

Não posso ir para casa assim, — disse ela, rindo. — Meu pai ficaria furioso.

Onde vai ficar então?

No hotel. Sempre fico quando trabalho até tarde.

Entramos no táxi e eu dei ao chofer o endereço do hotel. Eu es­tava um pouco tonto, mas o ar puro que entrava pelas janelas do car­ro me fez melhorar. Recostei-me no banco e olhei-a. Ela riu.

—        Que é que há?

Estou-me sentindo tão esquisita.

—        É mesmo? — disse eu, passando o braço em torno dela e fa­zendo-a aproximar-se de mim.

O corpo dela se apertou de encontro ao meu, sem resistir às mi­nhas mãos. Beijei-a.

Ainda se sente esquisita? — perguntei e beijei-a de novo. Os lábios dela pareciam de fogo.

Não. Como você beija bem!

E você ainda não viu nada! — disse eu, continuando a beijá-la e acariciá-la. De repente, ela me empurrou.

O hotel! — murmurou ela.

De fato, o táxi estava parando diante do hotel. Ela ajeitou o vestido. Saltamos e eu paguei o táxi.

Vamos entrar, — disse eu, segurando-a pelo braço.

Não, disse ela, recuando. — Não posso entrar com você. Se­ria despedida. Somos proibidas de dar atenção pessoal aos hóspedes.

Temos de nos despedir aqui.

Despedir-nos ali? Estava louca? Eu não ia passar tanto tempo com ela e gastar tanto dinheiro para tudo acabar ali no passeio. Mas talvez eu estivesse errado. Parecia direita e só fizera aquilo mesmo com pena de mim por ver-me tão sozinho. Encolhi os ombros.

Tem certeza de que vai poder conseguir um quarto? Ela fez sinal afirmativo com a cabeça.

Neste caso, boa noite.

Entrei no hotel um pouco aborrecido e decepcionado. Mas co­mecei a rir quando cheguei ao quarto. Ao menos, ela me fizera es­quecer os meus problemas.

Tirei o paletó e a gravata. Peguei a carteira e contei o meu di­nheiro. Ainda me restavam 110 dólares. Resolvi pagar o hotel no dia seguinte e ir procurar um quarto barato. Na segunda-feira, trataria de procurar emprego. Tirei a camisa e me lavei no banheiro. Depois, voltei e sentei-me na cama para fumar um cigarro. Bateram então na porta, tão de leve que eu quase não ouvi. Fui até à mesa onde havia deixado o meu dinheiro e guardei-o dentro da cômoda. Em seguida, fui abrir a porta.

Era Helen. Procurei não demonstrar a minha surpresa.

Como é? — perguntou ela. — Não me vai convidar para entrar?

Claro, — disse eu, afastando-me um pouco da porta. — Entre.

Vim apenas agradecer-lhe a boa noite que tivemos. Percebi que me havia esquecido disso.

Quem deve agradecer sou eu, — disse eu polidamente.

Mas sabia que ela não havia subido ao meu quarto apenas para agradecer. Estendi a mão e desliguei o interruptor. Só a abajur da mesinha de cabeceira ficou aceso.

Olhando-nos um instante na penumbra e eu dei um passo em direção a ela. Recuou instintivamente. Segurei-a pela mão.

Que é que há, menina? — perguntei, beijando-a.

Estou com medo. É a primeira vez que faço isso.

Meti a mão por dentro do vestido dela. Os seios eram suaves e quentes. Ela estava com a respiração entrecortada. Levei-a para a cama e beijei-a de novo.

—        Uma vez tem que ser a primeira, — disse-lhe entre um beijo e outro. — E não vou machucar você.

Senti-lhe a carne por baixo do vestido, a carne firme de uma mulher jovem, carregada de eletricidade.

—        Tenho medo, Frank, — murmurou ela. — Mas você precisa de mim, precisa de alguém. Estava tão sozinho e abandonado lá em­ baixo.

Acordei de repente no meio da noite. Estendi a mão. Helen não estava na cama. Pulei da cama. Corri para a cômoda e abri a gaveta onde guardara o meu dinheiro. Estava vazia. Disse tudo quanto era nome feio enquanto me vestia. Só havia ficado com cerca de dez dó­lares de dinheiro trocado nos bolsos das calças. Olhei para o relógio. Quase cinco horas. Saí do quarto e desci pelo corredor,

Fui até à portaria.

A moça do balcão de telegramas anda por aqui?

Não, — respondeu o homem da portaria. — De qual é que está falando?

Da que trabalha durante o dia. Chama-se Helen.

Ah! Essa é extra. Só veio trabalhar ontem porque a efetiva ficou doente. Houve alguma coisa?

E ele ainda perguntava! Tinha havido muita coisa! Eu fora rou­bado. E ainda devia vinte dólares ao hotel.

—        Não. Pensei num telegrama que quero passar. Mas isso pode esperar.

Voltei para o meu quarto. Não me tardara muito ficar sem di­nheiro. Quando estava na Marinha, ouvira contar muitos casos de marinheiros que voltavam alguns dias depois de darem baixa porque não tinham mais um tostão, havendo gasto em poucos dias o que ti­nham levado anos para ganhar. Nunca pudera compreender isso. Mas tinha acontecido comigo. Acendi meu cigarro e fiquei pensando no que ia fazer.

Às dez horas, desci e fui ao balcão de telegramas.

Sabe onde está Helen? — perguntei à moça que encontrei lá.

Como é que eu posso saber? — perguntou ela, encolhendo os ombros. — Foi mandada pela agência de empregos para me subs­ tituir quando eu não pude vir trabalhar. Quer que procure saber do endereço dela?

Quero, sim. É muito importante para mim.

Ela telefonou para a agência e pouco depois me dava a resposta.

—        Ela foi contratada apenas por um dia e recebeu o dinheiro aqui no fim do trabalho. Não deu qualquer endereço.

Ponto final. Fui até à portaria e disse que queria falar com o ge­rente. Levaram-me ao escritório dele. Era um homem de estatura media, grisalho e de voz calma.

—        Às suas ordens, Sr. Kane.

Contei-lhe tudo. Ele ouviu em silêncio, com as mãos entrela­çadas. Quando acabou, perguntou-me o que era que eu queria que ele fizesse.

Não sei o que o senhor poderá fazer, — respondi-lhe com toda a sinceridade.

Também não sei. Temos um cofre para guardar o dinheiro e os valores dos hóspedes que nos pedem. Há na portaria um cartaz que avisa que não podemos assumir responsabilidade pelo dinheiro ou pelos valores que não forem confiados à nossa guarda. Não pode calcular quantos casos como o seu acontecem neste hotel. Há muita gente que me vem procurar depois de gastar o seu dinheiro em jogo e em outras coisas, na esperança de que o hotel possa fazer alguma coisa. Mas não podemos. Isto aqui é um negócio como outro qual­ quer e tem de ser corretamente administrado, pois do contrário, esta­remos perdidos. Ficou ainda com dinheiro suficiente para pagar a sua conta?

Não. Já lhe disse que ela me limpou.

Hum! Isto é que é mau...

Sei disso. E é por isso que lhe peço alguns dias de prazo.

Conseguirei um emprego e lhe pagarei tudo.

Tem alguma idéia de como os empregos estão difíceis ago­ra, Sr. Kane? E seu quarto não é barato — três dólares e meio por dia, se não estou enganado. Não, creio que os proprietários não vão concordar com isto.

E não pode deixar-me trabalhar aqui até pagar?

Desculpe, mas isso também não é possível. Já temos gente demais aqui e já recebi ordem para despedir alguns empregados na semana que vem.

Voltamos então ao ponto de partida e eu lhe pergunto: que é que vamos fazer?

Não sei. Mas, em vista das circunstâncias, o senhor terá de deixar o quarto imediatamente. Exigiremos que deixe as roupas — menos a que está usando, naturalmente. Será uma garantia do paga­mento do quarto.

Aborreci-me com isso e levantei-me.

—        Mas você é mesmo um patife! Isso é lá maneira de tratar quem procurou ser honesto com você? Se eu quisesse enganá-lo, po­deria ir-me embora do hotel sem lhe dizer nada. Mas não! Tive de ser trouxa e sujeitar-me a servir de bode-expiatório para todos os ou­tros que foram mais sabidos do que você!

Tentou interromper-me, mas eu falei mais forte do que ele.

—        Vou sair daqui levando tudo o que é meu e você que tente impedir-me! Espalharei pela cidade que você deixa as empregadas do hotel explorarem roubarem miseravelmente os seus hóspedes. E não sei se vai gostar disso.

Já ia saindo mas ele me fez parar na porta.

Está bem, Sr. Kane. Não é preciso ficar nervoso. Vamos imaginar que eu o deixe sair levando o que é seu. Tudo será esqueci­do, não é?

Você pode esquecer, mas eu não! — exclamei ainda zanga­do e saí, batendo a porta.

Subi para o meu quarto e comecei a arrumar o que era meu. Quando acabei, saí para o corredor e tomei o elevador para descer.

Saindo do hotel, parei na banca de jornais da esquina e comprei um jornal.

—        Sabe de alguma pensão onde se possa morar? — perguntei ao homem da banca. — Quero uma pensão boa o que não seja muito cara.

Ele me escreveu o endereço num pedaço de papel. Não ficava muito longe e eu fui a pé até lá. Aluguei um quarto por três dólares e meio por semana, pagando duas semanas adiantado. Isso me dei­xou com apenas três dólares e cerca de oitenta centavos em troca­dos. Guardei a roupa na cômoda. Aquele lugar era um lixo em comparação com o hotel, mas ao menos podia ficar ali durante duas semanas.

No dia seguinte, comecei a procurar emprego. Tive sorte. Ar­ranjei um lugar como entregador de um grande armazém em Center Street. Voltei para casa cansado e estendi-me na cama. Não será fácil andar de um lado para outro o dia inteiro, levando encomendas e eu tinha passado uma vida mais ou menos fácil naqueles últimos meses. Tentei calcular o meu orçamento. Peguei um pedaço de papel e fiz a seguinte conta:

 

Quarto........ $3

Comida...... $7

Total........... $10

Salário........ $14

Saldo.......... $4

 

Calculei que um dólar por dia de comida seria bastante. A pri­meira refeição seria apenas café com pão. O almoço seria um sanduíche e café ou um prato de sopa e café. No jantar, comeria al­guma coisa numa cafeteria. Não tinha motivo para preocupações. Eu me arrumaria.

Havia, porém, uma coisa que não entrara nos meus cálculos.

Chegava para trabalhar às sete horas da manhã. Tinha logo de ir fazer as primeiras entregas. Os caixeiros já as haviam preparado na noite anterior e eu as arrumava no carrinho e saía. Não me inte­ressava muito pelo trabalho. Procurava apenas ser cuidadoso e e-conomizar aqueles quatro dólares por semana até ter dinheiro sufi­ciente para ir para o Leste. Lá era que eu esperava encontrar a mi­nha gente.

Mas no fim de dois dias estourei. Ia levando uma encomenda para o carrinho, quando de repente fiquei tonto e com ânsias de vô­mito. Acho que foi a comida ruim que eu vinha comendo. O passeio começou a jogar como um convés de navio. Parecia-me cada vez mais difícil manter o equilíbrio. Deixei cair a encomenda no chão e encostei-me à parede do edifício. Tive consciência dos ovos quebra­dos e do leite derramado em cima do passeio. Suava frio e só por muita força de vontade não caí no chão. Lutei desesperadamente pa­ra não cair. Mas tudo me dançava diante dos olhos.

O patrão apareceu e olhou para o passeio e, depois, para mim Eu estava branco e o suor me escorria em bagas pela testa, dificul­tando a visão. O homem não fez a menor menção de ajudar-me. Ten­tei dizer alguma coisa, mas as palavras me saíram ininteligíveis.

— Entre e fale comigo quando estiver no seu juízo perfeito, — disse ele, dando-me as costas e voltando para o armazém.

Olhei-o sem nada poder fazer. Tentei de novo falar sem po­der. Fiquei encostado à parede, esperando que a tonteira passasse. E não era só a tonteira. Sentia dentro de mim raiva, vergonha e humilhação. O miserável pensava que eu estivesse bêbado! Podia ter chorado. Mas não tive tempo. Tinha de lutar com aquele passeio que se transformara numa corda bamba da qual eu podia cair a qualquer momento. Sentei-me afinal no passeio com os joelhos pa­ra cima e descansei a cabeça nas mãos. Fechei os olhos para não ver as coisas dançarem. Procurei não pensar nisso, não pensar em coisa alguma.

Afinal, passou. Comecei a sentir-me um pouco melhor. Abri os olhos. Estavam úmidos das lágrimas que eu havia contido. A cabeça me doía terrivelmente, mas o passeio não saía mais do lugar. Levan­tei-me, ainda trêmulo. Entrei no armazém, apoiando-me nas paredes. Um empregado apareceu para limpar o passeio. Fui até ao cubículo que o patrão chamava de escritório.

Sr. Rogers... — comecei.

Aqui estão as suas contas, Kane, — disse ele, entregando-me cinco dólares

Mas, Sr. Rogers, só me deu cinco dólares. Trabalhei três di­as. São sete dólares.

Descontei o prejuízo que você deu, — disse ele, olhando pa­ra outro lado.

Mas, Sr. Rogers, eu não estava bêbado. Tive uma verti­gem...

Ele nada disse. Era evidente que não acreditava em mim.

É verdade, Sr. Rogers! Tive uma vertigem...

É a mesma coisa, — respondeu ele. — Quem é doente, não pode trabalhar. Agora vá saindo que eu tenho muito o que fazer e não posso perder tempo.

Passei pelos caixeiros para tirar o avental e pegar o meu casaco. Olharam-me pelo canto dos olhos. Trabalhara ali muito pouco tempo e ainda não conhecia bem nenhum deles. Sentia que eles pensavam o mesmo que o patrão.

Voltei diretamente para casa. Não me sentia bem para procurar outro emprego naquele mesmo dia. Além disso, experimentava um estranho sentimento de vergonha. Pensei que todos na rua estavam olhando para mim. Fui para o meu quarto, deitei-me e não saí de lá o dia inteiro. Não tinha fome e não tentei comer.

Só saí de casa na manhã seguinte. Mas passei o dia e não con­segui emprego. Nem no outro dia, nem daí a dois dias. O meu di­nheiro estava quase no fim. Limitava-me a uma refeição bem barata por dia. No meio da semana seguinte, gastei o último níquel. Não havia perspectivas de emprego e no domingo eu teria de dar mais três dólares e meio pelo quarto.

Estava na rua quando me ocorreu a idéia. Iria para Nova York. Tinha amigos ali e conhecia os jeitos da cidade. Seria mais fácil alguém me ajudar a descobrir minha família. Voltei para o meu quarto. Reuni todas as minhas roupas — os ternos que eu ha­via comprado e todas as camisas menos uma — coloquei-as na ma­leta. Desci e disse à dona da pensão que iria desocupar o quarto no fim da semana.

Fui encontrar uma casa de penhores no fim de Main Street. En­trei e depositei tudo em cima do balcão. Um homem de óculos se a-proximou para atender-me.

—        Quanto posso conseguir por isso, meu tio?

E pegou os ternos novos e examinou-os cuidadosamente.

Nada feito, — disse-me afinal. — Não faço negócios com artigos duvidosos.

Não há nada de duvidoso. Comprei isso na semana passada.

Mais fui roubado quero dar o fora da cidade.

Terá por acaso a nota de venda dos ternos? — perguntou ele, sem muita convicção.

Procurei na carteira e encontrei a nota dos ternos.

Cinco dólares por terno — disse ele, depois de olhar a nota.

— E cinqüenta centavos por camisa.

Puxa! Paguei vinte dólares por um terno e você me oferece cinco dólares.

Os negócios estão ruins e roupa é coisa que não tem muita procura.

Comecei a arrumar tudo dentro da maleta.

Espere um pouco, — disse o homem. — Quer vender ou empenhar?

Vender. E a maleta também. Já lhe disse que vou dar o fora daqui.

Neste caso, darei sete dólares e meio por terno e dois e meio pela maleta.

Fechamos negócio por trinta dólares e mais camisa e calças de trabalho, de algodão azul. Mudei a roupa num quarto dos fundos. Dei-lhe o terno que estava usando junto com os outros. Saí dali e fiz uma boa refeição no primeiro restaurante que encontrei. Depois, comprei um maço de cigarros. Voltei para a pensão, sentindo-me um pouco melhor. Subi para o quarto e tratei de dormir.

Bem cedo no dia seguinte, eu estava perto do pátio de cargas da estação. Ia de volta para casa — de volta para Nova York.

A viagem não foi muito cansativa. Havia muita gente como eu, viajando de carona no trem de carga, por um motivo ou por outro. Alguns não tinham destino certo — gente sem raízes, que vivia à de­riva. Outros iam para algum lugar definido — para casa ou para on­de pudessem achar emprego.

Como em todos os grupos humanos, alguns eram delicados e prestimosos e outros, mesquinhos e grosseiros. Mas não me saí mal com eles. Tratava da minha vida, nunca ficava tempo demais no mesmo trem. Saltava de vez em quando num lugar qualquer, alu­gava um quarto barato, comia uma ou duas vezes bem e prosseguia a viagem.

Não me restava mais muito dinheiro quando saltei em Hobo-ken, defronte de Nova York, do outro lado do rio, mas isso não me preocupava muito. Sabia que ali me arranjaria.

O lugar onde saltei do trem ficava um pouco distante do cais das barcas e a chuva que caía quando pus os pés em terra havia vira­do neve quando tomei a barca.

A noite estava caindo e a multidão estava voltando do traba­lho. Muitos caminhões estavam indo para Nova York na barca. Pu­lei para dentro de um deles. Logo que o caminhão parou dentro da barca, saltei.

Dentro em pouco, a barca partiu. Fui para a parte coberta desti­nada aos passageiros e sentei-me, procurando ver Nova York através da vidraça da janela. Mas só via a neve que caía num espesso lençol, a água e o céu.

Quando a barca se aproximou do cais e eu vi os edifícios e as luzes de Nova York começarem a brilhar diante de mim, senti-me em casa, realmente em casa. Entendia perfeitamente aquela cidade e aquela gente.

Ouvi o barulho das correntes de atracação, os portões se abri­ram e eu me juntei aos outros passageiros que desembarcavam. Sen­tia frio, mas estava muito cheio de entusiasmo pela minha volta para dar atenção a isso. As calças e a camisa de algodão não davam muita proteção num tempo como aquele, mas na ocasião não dei importân­cia ao fato.

O cais das barcas era na R 42. Atravessei para Times Square e fiquei ali na esquina, como qualquer sujeito do interior que chega pela primeira vez a Nova York, embasbacado diante do grande jor­nal luminoso do edifício do Times que dizia: "7 horas da noites, 10 de fevereiro de 1932".

Tive fome, de repente. Entrei numa cafeteria e comi bem. Só na hora de pagar a conta foi que vi que ia ficar apenas com 40 centavos. Passei a noite num hotel barato no Bowery onde paguei 25 centavos. Tinha apenas 15 centavos para o dia seguinte, mas estava sorrindo quando me deitei. Estava na minha terra e não precisava de muito dinheiro para arrumar-me ali.

Ainda estava nevando quando acordei. Saí do hotel e fui até à Sexta Avenida, onde ficavam as agências. Em quase todas as esqui­nas, havia um homem com a gola do capote levantada e um boné com a pala puxada para os olhos, com um fogo de madeira aceso numa lata sobre a qual ele de vez em quando aproximava as mãos, com uma caixa de maçãs diante dele e um cartaz: "Compre uma Ma­çã a um Veterano".

Dormi naquela noite num portão e, quando acordei na manhã seguinte, a neve havia parado. Estava amontoada em frente a algu­mas lojas onde haviam limpado os passeios e por toda a parte havia gente tirando a neve dos passeios para a sarjeta.

Parei numa banca de jornais e li os títulos. Um deles dizia:

"Serão Contratados 30.000 Homens para Limpar a Neve". Era uma idéia. Entrei num restaurante e tomei café com pão, o que me custou cinco centavos.

Fui até ao Departamento de Higiene na Rua 8 para pegar o ser­viço de limpeza da neve. Encontrei uma fila que dava volta ao quar­teirão e crescia de instante a instante. Acendi um cigarro e encami­nhei-me para o elevado da Terceira Avenida. O portão de saída esta­va bem fechado e eu gastei o meu último níquel numa passagem.

Saltei do trem na Rua 125. No escritório do Departamento de Higiene, na Rua 126, peguei o lugar e fui logo mandado para o tra­balho com uma turma. O homem que chefiava os quinze homens da turma era um gari italiano com o aspecto de homem bem alimentado. Todos nós olhávamos com inveja o seu ar de prosperidade, pensando como era bom ter um emprego permanente na prefeitura.

— Muito bem, — disse ele. — Venham todos comigo.

Entregou-me uma grande pá de neve com formato de concha. Coloquei-a ao ombro e segui com os outros. Na esquina da Rua 135 com a Avenida Amsterdam, paramos.

Grandes caminhões seguiam de um lado e do outro da rua empurrando a neve para juntá-la em grandes montões. Outros ho­mens trabalhavam no meio da rua, jogando a neve para dentro de um bueiro. Mais adiante, um grupo jogava a neve dentro de um grande caminhão de lixo.

O italiano que chefiava a nossa turma nos levou para o meio da rua onde estavam jogando a neve dentro do bueiro. Disse algumas palavras em italiano ao homem que chefiava a outra turma e esta pe­gou as suas ferramentas, sendo substituída por nós.

O meu serviço era empurrar a neve até perto do bueiro, onde outros homens estavam esperando para jogá-la com as pás lá dentro. Quando o nosso chefe se convenceu de que havíamos começado a trabalhar de maneira satisfatória, foi para uma grande fogueira acesa num canto da rua, em torno da qual já havia outros homens do De­partamento de Higiene. Estavam todos assim se aquecendo e dando ordens de lá, aos gritos, aos grupos que dirigiam.

Um dos dois homens que trabalhavam ao meu lado era um ir­landês de lábios finos e rosto cheio e o outro era um preto baixo, mas robusto. Muitos dos homens usavam japonas, suéteres ou capo­tes e luvas para ter as mãos aquecidas. Não estava sentindo muito frio, mas em breve as mãos começaram a ficar duras de frio e os sa­patos e os pés se encharcaram. Quando os dedos ficaram tão frios que começaram a doer, larguei a pá e fui até à fogueira onde estavam os homens do Departamento. Ficaram em silêncio com a minha a-proximação e o meu chefe, que estava com um charuto preto aceso, me olhou atentamente.

Que é que há, rapaz? Preguiça?

Não. Estou com os dedos quase gelados!

Estendi as mãos para o fogo. O homem meteu a mão no bolso e me deu um par de luvas de trabalho.

—        Obrigado, — disse eu, calçando-as.

As luvas tinham muito buracos mas aqueciam bem. Saí de per­to do fogo, apanhei a minha pá e voltei a trabalhar. Cerca de uma hora depois, o irlandês me disse:

—        Daqui a pouco, é hora do almoço. — Olhou invejosamente para os homens reunidos em torno do fogo e acrescentou: — Olhe aqueles camaradas. Repare o que vão fazer quando o diretor deles chegar.

De fato, alguns minutos depois, apareceu um carro do qual sal­tou um homem que parecia ser uma espécie de chefe. No mesmo ins­tante, os capatazes se dirigiram para onde estavam as suas turmas e começaram a dar ativamente ordens.

Ouviu-se um apito e o nosso capataz disse:

—        Muito bem, rapazes. Guardem as ferramentas no caminhão e tratem de almoçar.

Alguns homens tiraram embrulhos de sanduíches dos bolsos e se espalharam por diversos portais e se sentaram para comer, en­quanto outros tomavam o caminho dos restaurantes e balcões de lan­che mais próximos.

Eram quase duas horas. Desci a rua até encontrar uma entrada de casa vazia onde eu pudesse entrar para fugir um pouco ao frio.

Entrei afinal num edifício e sentei-me nos primeiros degraus da escada. Tirei um cigarro do bolso, acendi-o e, no momento em que descansei o corpo, comecei a tremer. Não era porque eu sentisse frio ou fome, mas sem alguma coisa para fazer, meu corpo parecia sentir mais intensamente o frio.

Alguns minutos, depois, a porta se abriu e eu vi entrar o cama­rada que havia trabalhado ao meu lado, seguido por um preto mais ou menos do meu tamanho. Não me viram a princípio, porque o hall estava um pouco escuro.

O meu companheiro de trabalho disse:

Que foi que Mamãe mandou, Sam?

Sopa quente, sanduíches e café — respondeu o outro.

Ótimo! Estou com uma fome! Vamos sentar ali na escada enquanto eu como.

Encaminharam-se para onde eu estava e pararam ao ver-me.

—        Que é   que está fazendo   aqui? — perguntou o meu companheiro.

Estou fumando.

Por que não come?

Não estou com fome.

Sentaram-se na escada ao meu lado. O preto mais velho abriu um saco de papel e tirou duas garrafas de leite — uma com sopa quente e a outra com café — e alguns sanduíches. O cheiro da sopa me fez água na boca.

Está trabalhando muito? — perguntou o rapaz.

Muito não, Sam, — respondeu o mais velho que, então, se voltou para mim e disse: — Este é meu irmão mais moço, que veio trazer o meu almoço.

Muito bem.

Ele começou a beber a sopa na garrafa. Subi mais alguns de­graus para dar mais lugar aos dois e olhei para o mais velho. O garo­to me estava observando e eu tentei olhar para outro lado para não ver o outro comer. O cigarro me queimou os dedos e eu o joguei por cima do corrimão sem apagá-lo.

Como se alguma coisa sem palavras fosse dita entre os dois ir­mãos, o mais velho virou-se e olhou para mim.

—        Sabe que não estou com tanta fome quando pensava? E de­pois, Mamãe me mandou sopa demais. Não quer um pouco? É uma pena desperdiçar comida.

Tomei a garrafa, murmurei algum agradecimento e comecei a tomar a sopa. Não sei de que era, mas sei que estava deliciosa. Al­guns minutos depois, o homem estendeu a mão para trás sem olhar para mim e me entregou um sanduíche. Aceitei em silêncio. Ele compreendera, talvez instintivamente, as circunstâncias em que eu estava e com a extrema delicadeza da gente realmente simples, ofe­receu-me ajuda sem qualquer traço de ofensa. Não agradeci dessa vez. Era desnecessário e ele não o esperava.

Quando acabamos o café, meti a mão no bolso e tirei três cigar­ros. Ofereci cigarros aos dois, mas o garoto sacudiu a cabeça. O ir­mão me explicou:

—        Ele não pode. Está na equipe de atletismo do ginásio onde estuda.

Acendi o cigarro dele e o meu.

Está em Nova York há muito tempo? — perguntou ele.

Não. Cheguei ontem.

O frio está terrível hoje.

É verdade...

Meu nome é Tom Harris.

Disse-lhe o meu. Ficamos ali sentados sem conversar durante alguns minutos e de repente ouvimos um apito lá fora.

—        É para nós, — disse Tom. — Vamos! Espere um pouco.

Sam, empreste seu capote a ele. Você vai passar o dia todo em casa e não precisa dele. Quando voltar de noite, eu levo.

Sam tirou o capote sem a menor hesitação e entregou-me. Ves­ti-o. Não creio que pudesse ter agradecido, ainda que quisesse. Saí para a rua à frente dele para o lugar onde a turma já se estava reu­nindo.

A tarde passou um pouco mais depressa do que a manhã. Co­mecei a sentir que o dia não tinha sido tão ruim assim. A tarde, pou­co antes de largarmos o trabalho, o preto me perguntou:

Onde é que mora?

Ainda não consegui um lugar para morar.

Por que não vai para minha casa e não passa lá duas ou três noites — até receber o pagamento?

E há lugar para mim?

Claro que há! A casa é muito grande.

O trabalho acabou de repente. Fomos com o capataz até ao es­critório e entregamos as ferramentas. O preto me bateu no ombro e eu fui com ele para a Rua 126 entrando numa casa de cômodos entre Convent e a Avenida St. Nicholas, onde eu vi a sua "grande casa". Entramos por um corredor mal iluminado. Sabia-se logo, talvez pela escuridão, talvez pelo cheiro de carne de porco ou pelas luzes fracas junto ao teto, que era um edifício de pretos. Subimos três lances de escadas e eu entrei com Tom num dos apartamentos.

A porta da rua se abria diretamente para a cozinha, na qual havia uma mesa, algumas cadeiras, um armário sujo de madeira e um fogão em cima do qual havia uma grande panela no fogo. Uma preta grisalha de cerca de cinqüenta anos estava num canto da co­zinha.

Tom aproximou-se dela e disse:

—        Mamãe, este aqui é Francis Kane. Não tem onde ficar e vai passar a noite conosco.

Não sabia disso naquela ocasião, mas aquela noite se estendeu por quase um mês. Ela chegou perto de mim e me olhou. Não creio que nos fossemos julgar, um ao outro, mas sabia que se ela não con­cordasse, eu não poderia ficar.

Afinal, ela disse:

—        Sente-se aqui, Francis. Vamos comer neste momento. Agradeci. Jantamos e depois ficamos sentados à mesa. O calor do fogão me dava um pouco de sono e eu sentia a cabeça e os olhos pesados. De vez em quando, sacudia a cabeça para afugentar o sono. Já eram quase sete horas quando ela disse:

—        Tom, é melhor você e seu amigo irem dormir um pouco por­que às dez e meia você tem de ir para o outro distrito.

Olhei para Tom e ele explicou:

Posso conseguir trabalho à noite entre a Rua 129 e a Tercei­ra Avenida. Não sabem que trabalho durante o dia noutro ponto. Quer ir também?

Quero, sim. E muito obrigado.

Posso conseguir trabalho para você também.

Não tinha visto o garoto e, quando perguntei a Tom, ele me disse que o irmão trabalhava até tarde num armazém vizinho.

Fomos dormir numa grande cama num quarto onde havia outra cama, que ele me disse que era da irmã dele.

Tirei a roupa e os sapatos e deitei-me. Só me lembro depois dis­so do momento em que alguém me sacudiu pelos ombros, dizendo:

—        Acorde, rapaz! Levante-se! Está na hora de ir trabalhar.

Abri os olhos e sentei-me na cama. Quase não se via nada por­que não havia luz no quarto e esse só era iluminado pela luz do quar­to vizinho através de um buraco aberto na parede. Meio sonolento ainda, comecei a vestir-me. Logo que os meus olhos se habituaram à escuridão, vi que a outra cama estava ocupada. A cabeça de uma moça saía de baixo das cobertas e os seus olhos me observavam. Não senti o menor constrangimento e, quando saí, dei-lhe boa noite. Ela não respondeu. Desci para a rua com Tom. Cada um de nós le­vava um embrulho com o lanche que a mãe dele havia preparado. O trabalho era quase o mesmo que havíamos feito durante o dia e quando largamos, às cinco e meia da manhã, voltamos para a casa de Tom e fomos dormir diretamente. As oito e meia, acordamos e traba­lhamos o resto do dia.

Trabalhamos ao todo dois dias e meio antes de sermos dispen­sados. Quando me pagaram, recebi na realidade o salário de cinco dias porque havia trabalhado dois turnos. Tinha 17 dólares e meio no bolso e quando saí do guichê do pagador sentia-me dono de Nova York. Não era tão difícil assim ganhar dinheiro, nem achar trabalho. PeJa primeira vez em muitas semanas, tive consciência dos outros — não como seres excepcionais ou diferentes de mim — mas como um deles. Eu também havia trabalhado — durante algum tempo.

Passei por uma casa de penhores e comprei um terno, duas ca­misas, um capote e um par de sapatos, tudo em segunda mão, por onze dólares. Deixei lá as minhas roupas velhas.

Quando cheguei à casa de Tom, procurei a mãe dele e lhe dei metade do dinheiro que me restava, ma ela não quis aceitar. Disse que eu estava precisando do dinheiro.

Eram cerca de duas horas da tarde quando Tom e eu fomos dormir. Só acordamos lá para as nove horas da noite. Logo que nos levantamos, comemos alguma coisa. Estávamos comendo quando a irmã dele chegou e eu vi então como ela era. Tinha quatorze anos. Os cabelos eram crespos mas corridos e ela os penteava para trás, fa­zendo-os passar por trás das orelhas. O rosto era comprido, a pele pardo-escura e o batom arroxeado. Os ombros eram largos e os bra­ços e pernas magros mas levemente musculosos. Sentou-se à mesa e perguntou a Tom:

Foram dispensados?

Fomos, sim.

Que é que vão fazer agora? — perguntou ela, envolvendo-me visivelmente no seu interesse.

Tom nada disse e eu falei por ele.

Ainda não sei o que é que eu vou fazer. Acho que vou sair e procurar emprego.

Que esperança! — exclamou ela. — Não se encontra em­prego em lugar nenhum.

Isso é que eu não sei. Consegui esse com a maior facilidade.

Teve sorte. Talvez não seja a mesma coisa agora.

Onde está Mamãe? — perguntou Tom, mudando habilmente de assunto.

Ela e Sam foram para o culto, — disse Elly, — e eu vim chamar você para ir também logo que acordasse.

—        Está bem, — disse Tom. Vestiu o capote e os dois saíram.

Sabiam que eu não podia acompanhá-los e nem me convida­ram. Cerca de uma hora passou. Li o jornal, fumei e estava come­çando a cochilar quando a porta se abriu e Elly entrou.

Ainda está acordado? — disse ela, sentando-se a mesa.

Ainda.

—        Vão passar ainda uma hora ou duas no culto. Fiquei cansada e vim para casa mais cedo.

Não disse nada. Estava sentado ao lado da janela e olhei para o pátio. Costumavam deixar a janela um pouco aberta porque um dos vizinhos tinha um rádio e assim eles podiam escutar a música. Mas o rádio não estava tocando naquela noite.

Bem, boa noite, — disse Elly.

Boa noite.

Foi para o quarto e eu ouvia os movimentos dela lá dentro. Fa­lou-me pela porta aberta:

Não está cansado? Por que não vem dormir também?

Não, não estou cansado. Acho que vou esperar até Tom chegar.

Só vão chegar bem tarde.

Não faz mal. Não estou com sono.

Durante cerca de quinze minutos, não dissemos mais nada. En­tão, com o casaco passado por cima da camisola, ela atravessou a cozinha para ir ao banheiro no corredor. Quando voltou olhou para mim mas eu desviei o olhar. Durante mais alguns minutos, houve si­lêncio. Por fim, ela disse:

Quer fazer o favor de me trazer um copo de água, Frank?

Está bem.

Enchi um copo de água e fui levá-lo. Ela tomou o copo de mi­nha mão e bebeu a água sentada na cama com a colcha sobre o cor­po. Mas quando me entregou o copo, a colcha caiu e eu vi que o alto da camisola havia caído, deixando-lhe à mostra os ombros e os seios. Ela olhou para mim.

Fiz menção de sair e ela me pegou pelo braço.

Que é que há com você, rapaz? Está com medo?

Não... Pensando melhor, talvez esteja.

Ninguém vai saber.

Não é isso, — murmurei e saí do quarto pensando em Tom e na mãe dele e na sujeira que seria aquilo depois do que tinham feito por mim.

Ela pulou da cama e me agarrou pelos ombros, jogando-se em cima de mim. Estava inteiramente nua. Tentei desvencilhar-me dela, mas ela não me largou. Eu sabia que estava lutando não para fugir dela, mas para impedir-me de ir para ela. Finalmente, bati-lhe com força no rosto.

Ela recuou um pouco e disse-me furiosamente:

—        Se não ficar comigo, vou gritar bem alto. O prédio todo virá para cá e eu direi o que você tentou fazer comigo.

Voltei-me e dei um passo em direção à porta. Ela abriu a boca e começou a gritar. Fechei-lhe a boca com a mão e disse que se não fi­casse calado, eu a mataria. Levei-a para a cama, fi-la deitar-se e mais uma vez me encaminhei para a porta.

Vou gritar! — disse ela.

Está bem, está bem... — disse eu, indo afinal para a cama onde ela estava.

Já passava de meia-noite quando os outros chegaram. Elly es­tava dormindo no quarto e eu estava sentado à mesa da cozinha, ten­tando ler o jornal com aquela luz fraca.

Sam e Tom vieram falar comigo, e Sam disse:

Vai fazer muito frio esta noite. Está ventando.

Acho que a noite vai ser fria, sim, — murmurei.

Quer tomar alguma coisa quente, Mamãe? — perguntou

Não, meu filho. Talvez Tom e Frankie queiram café. Já está feito. É só esquentar.

Não quisemos café. Fomos diretamente para a cama.

Sai bem cedo no dia seguinte para procurar emprego, mas nada consegui. Gastei trinta e cinco centavos sem qualquer resultado. Não havia possibilidade de emprego mesmo por pouco dinheiro. Fui às agências da Sexta Avenida e, como muitos outros, voltei de mãos abanando. Voltei à sete horas para a casa de Tom e contei-lhes o que havia acontecido.

Vai conseguir alguma coisa, — disse a mãe de Tom. Deus o ajudará.

Obrigado por dizer isso, mas não têm aqui o que chegue pa­ra a família e uma boca a mais é muito pesada para agüentarem.

—Não diga isso, rapaz. Temos com que nos arrumar.

Comemos milho cozido durante três dias. Milho é uma coisa gostosa, mas como enjoa! Ao fim de uma semana, eu ainda não ha­via conseguido emprego e só me restavam três dólares.

No sábado à noite, Tom me perguntou:

Gostaria de ir a uma festa?

Gostaria, sim, mas...

Então vamos, — disse ele, não me deixando mais falar. — A entrada custa 25 centavos e as comidas e bebidas são de graça. E há cada pequena!

Está bem. Mas...

Mas nada... É uma festa mista. Com certeza, vão pensar que você é algum playboy que foi-se divertir no Harlem.

Cerca de uma hora depois, vestimos os capotes para sair. Quando passamos, Sam estava sentado à mesa da cozinha, lendo.

É um bocado inteligente ésse meu irmão, — disse Tom, en­quanto descíamos a escada. — É o primeiro da classe no ginásio.

É verdade. Parece que está sempre estudando.

Quem foi que já bebeu gim misturado com cerveja? Um copo de cerveja com dois cálices de gim dentro — era isso que se estava bebendo naquela festa. Creio que fiquei logo bêbado depois do primeiro copo sem quase poder saber o que estava acontecendo. Ha­via cerca de trinta pessoas no apartamento da Avenida St. Nicholas. Um homem tocava violão e havia vários homens e mulheres bran­cos. Os brancos pareciam evitar-se uns aos outros e só conversavam com os pretos. Uma pequena branca, com quem eu falei, deu-me as costas e continuou a conversar com um preto simpático que estava ao seu lado.

Lá pelas três horas da madrugada, a festa acabou. Tom estava tão alto que quase não podia andar. Peguei-o pelos ombros e ajudei-o a descer as escadas e ir para casa. O ar frio me fez bem e cheguei em casa já em meu juízo perfeito.

Tom estava cantando todo feliz quando entramos no prédio. Quando íamos começando a subir as escadas, caiu desacordado. Tentei levantá-lo e não consegui. A luz do hall estava apagada e eu risquei um fósforo. Nesse momento, ouvi algum movimento no hall ao lado da escada e olhei.

Vi então Elly em companhia de um branco de cerca de 40 anos. Ambos olharam para mim. O rosto do homem pareceu assustado. Tinha o paletó e o capote abertos e, um instante depois, se dirigiu para a porta da rua.

—        E o dinheiro? — perguntou Elly, agarrando-o pelo braço.

O homem meteu a mão no bolso, tirou uma moeda que entre­gou a ela e saiu apressadamente.

Ela então subiu calmamente a escada até onde eu estava e o-lhou para Tom.

Perdeu os sentidos?

Perdeu. Ajude-me a levá-lo para cima. Eu sozinho não agüento.

Segurando-o por debaixo dos braços, subimos com ele até ao apartamento e jogamo-lo em cima da cama. Eram três e meia. Sam estava dormindo e do outro quarto vinha o rumor dos roncos da mãe deles. Voltei para a cozinha e Elly me acompanhou.

Não vai contar? — perguntou ela.

Não, — disse eu

Precisamos de dinheiro, — disse ela, com voz de desespero. — Sam só recebe um dólar e meio por semana no armazém e mais um sortimento de víveres do armazém de quinze em quinze dias no valor de 13 dólares e meio, mais isso não chega. Tenho de conseguir algum dinheiro.

Qual é a explicação que dá a eles?

Minto dizendo que trabalho três vezes por semana à noite numa fábrica de fitas da Rua 132. Mas fui dispensada da fábrica no mês passado.

Há quanto tempo você faz isso?

Por que não se mete com a sua vida?

Está bem. É mesmo o que eu vou fazer, — pela janela e sentindo-me de repente muito triste.

Ela se aproximou de mim e perguntou:

Tem algum dinheiro?

Não, — disse eu, mentindo por uma razão que não compre­endi.

Ela me estendeu uma moeda de 25 centavos.

Tome, — disse ela. — Talvez precise disso igreja amanhã, que é domingo

Não quero! Muito obrigado! Não!

Ela começou a chorar e nós nos olhamos durante alguns minu­tos. As lágrimas rolavam-lhe pelo rosto. Os olhos ficaram empapuçados, como acontece com os olhos dos pretos quando choram. To­quei- lhe no ombro.

—        Não se preocupe. Tudo vai dar certo.

Ela saiu da cozinha e foi dormir. Quando fui para o quarto, vi que a cama dela estava vazia. Olhei para o outro quarto e vi que es­tava dormindo com a mãe. Voltei para o nosso quarto e me deitei na cama dela.

No dia seguinte, acordei cedo. Fiquei durante algum tempo na cama, ouvindo o ressonar de Tom e de Sam. Saí afinal da cama e fui à cozinha. Eram seis horas. Lavei o rosto. Ainda estava escuro lá fo­ra, e eu acendi a fraca luz da cozinha. Ensaboei o rosto e comecei a fazer a barba. Sam apareceu, sentou-se numa cadeira e começou a olhar-me.

—        Que é que está fazendo de pé tão cedo? — perguntei.

Tenho de ir ao armazém para fazer algumas entregas. Ficamos um pouco em silêncio e ele perguntou:

Que idade você tem, Frankie?

Vinte.

—        Então não é muito mais velho do que eu. Tenho quase de­ zoito anos. — Pensei que fosse mais velho.

Olhei-o. Era de fato um rapaz bem simpático, com as feições delicadas e os grandes olhos vivos e expressivos.

—        Que é que acha de nós, Frankie? De mim, de Tom, de Ma­mãe e de Elly? Não se sente diferente?

Vocês são uma ótima gente. Não poderia ser melhores se...

Se fossemos brancos, não é o que você quer dizer?

Não. O que eu quis dizer é que, se vocês fossem meus pa­rentes, eu não poderia ter encontrado mais bondade ou amizade.

Bem, tenho de ir, — disse ele, levantando-se. — Voltarei para casa às dez horas, quando tivermos de ir à igreja.

Até logo, então.

Acabei de fazer a barba, vesti-me e saí. Estava fazendo frio lá fora. Acendi um cigarro e fui até a Rua 125. Passei pelo armazém onde Sam trabalhava e que estava cheio de fregueses. Entrei impul­sivamente. Vi Sam, que estava arrumando compras em caixas de papelão. O armazém estava cheio de mulheres, principalmente ir­landesas que estavam de volta da igreja. Sam e eu nos falamos de longe.

Quando chegou minha vez, comprei uma dúzia de ovos, bacon, pão e um maço de cigarros. Andou tudo em 72 centavos. Paguei o embrulho e voltei para casa.

A Sra. Harris e Elly estavam na cozinha. Tom ainda estava dor­mindo. Coloquei o embrulho em cima da mesa.

Comprei coisas para o café, — disse eu.

Não devia ter feito isso, — disse a Sra. Harris.

Só comemos depois que 5am chegou. Tom se havia levantado e estava com a cabeça doendo.

Como nos divertimos! — disse ele.

Foi uma boa festa, — disse eu.

Quer ir à igreja? — perguntou à Sra. Harris.

Vou sim.

Saímos todos juntos. A igreja era numa pequena loja no mes­mo quarteirão. Havia uma grande estufa acesa no centro. Achava esquisito uma igreja numa loja. Para mim, uma igreja devia ser sempre uma construção imponente com cerimônia solenes. A Sra. Harris olhou para mim e disse, como se estivesse lendo os meus pensamentos:

—        Deus está em toda a parte, meu filho, até mesmo com os pobres.

Senti-me um pouco envergonhado de mim mesmo. Quando en­trei, todos me olharam mas, vendo com quem eu estava, não me de­ram mais atenção. A família conhecia todos os presentes e, depois dos serviços, apresentou-me. Falei com o ministro. Era um homem de sorriso muito cordial e eu me senti um pouco melhor quando a Sra. Harris disse que eu era amigo deles.

Voltamos para casa. Sam pegou os livros dele e começou a es­tudar.

Na terça-feira, Tom e eu conseguimos algum trabalho com a entrega de carvão de um caminhão. Cada um de nós ganhou três dó­lares. Mas não houve mais trabalho no resto da semana.

Na quinta-feira, houve culto à noite e eu fiquei sozinho em casa.

Elly voltou para casa cedo e ficamos sentados juntos, mas sem dizer coisa alguma. Havia muito em que pensar, mas não bastante para conversar. Quando os outros chegaram, fomos dormir.

Os dias foram passando. Em breve, estávamos em março e a temperatura subiu um pouco. Vi que a situação na casa estava pio­rando e resolvi sair de lá.

Uma tarde em que Elly e eu estávamos sozinhos em casa, eu lhe disse:

Acho que tenho de ir-me embora

Ela me olhou surpresa.

Bem sabe que não posso ficar aqui para sempre, Elly.

Ela me segurou a mão e eu a abracei. A lembrança daquela noi­te e a proximidade dela me provocaram. Ela percebeu isso imedia­tamente e me levou para o quarto. Alguma coisa no jeito pelo qual ela se deu, no ímpeto do seu corpo jovem me mostrou que ela não queria que eu me fosse embora. Não era amor, nem paixão. Era o ca­lor, a bondade e a compreensão.

Levantamo-nos da cama ofegantes, com as mãos dela nos meus quadris. Eu ainda tinha na mão o seio rígido. De repente, joguei-a de novo na cama.

—        Compreenda que tenho de sair daqui! É preciso! Não posso ficar aqui, tomando tudo sem dar nada.

Fui brutal com ela. Gemeu sem quase poder falar, mas disse com voz entrecortada:

—        Você... tem de... ir-se embora...

Naquela noite, disse aos outros que ia deixá-los. Pediram-me que não fizesse isso.

—        Conseguirei emprego em outro lugar. Já vi que aqui não há jeito. Vou-me embora amanhã.

Na manhã seguinte, fiz as despedidas, apertando a mão de Tom e de Sam e beijando a Sra. Harris e Elly. Agradeci o que tinham feito por mim.

Felicidades, Frankie, — disse a Sra. Harris. — Não se es­queça de nós se precisar de alguma ajuda.

Não me esquecerei, — disse eu, sorrindo. — Adeus.

Fechei a porta, desci as escadas e cheguei à rua. Era um dia de sol, quase quente e eu tinha certeza de que as coisas iriam melhorar para eles.

Não sabia para que lado ir. Levava as minhas poucas camisas num saco de papel debaixo do braço. Comecei a caminhar na direção da Oitava Avenida.

A voz gentil da Sra. Harris me soava aos ouvidos. "Não se es­queça de nós se precisar de alguma ajuda". Sorri comigo mesmo. Precisavam tanto de ajuda e, entretanto, sempre haviam tido muito para me dar. Parei na rua um instante, sentindo um bolo na garganta. "Você está ficando um molenga", disse a mim mesmo. E continuei meu caminho.

Desci a Oitava Avenida. Fui de loja em loja pelo caminho per­guntando se precisavam de um empregado. Algumas pessoas me dis­seram que não precisavam de ninguém, delicadamente. Outros, não. Dependia da maneira pela qual se sentiam. Na esquina da Rua 72 com a Avenida Colombo, consegui trabalho numa cafeteria, para la­var pratos à tarde. Pagaram-me depois das quatro horas com um dó­lar e comida. Guardei o dólar no bolso. Quando acabei de comer, fui procurar o gerente e perguntei se ele não precisava do mesmo servi­ço na tarde seguinte. Era um homem baixo e gordo que tinha olhos bondosos e um sorriso quente.

Desculpe, mas foi só hoje. E eu realmente não precisava, mas quis...

Compreendo, — disse eu, sorrindo-lhe. — De qualquer ma­neira, muito obrigado.

Sai. Estava escurecendo. Tinha de achar quanto antes onde dormir. Do contrário, passaria a noite na rua. Fui até ao Hotel Mills e aluguei um quartinho por 50 centavos. Havia jornais na portaria e fi­quei por ali lendo antes de ir deitar-me. Pensei que tinha de fazer al­guma coisa para procurar minha tia e meu tio. Mas não queria que eles me vissem sem dinheiro e mal vestido como eu estava. Tinha sempre receio de encontrar algum conhecido e ter de explicar a mi­nha situação.

Fui bem cedo para a Sexta Avenida, às sete e meia da manhã. As agências estavam cheias como de costume, mas nada aparecia. Fui mandado para vários lugares, mas quando chegava lá, já tinha havido alguém na minha frente ou a pessoa mudara de idéia. Comi num restaurante barato da Sexta Avenida perto da Rua 46. Paguei 35 centavos por um prato de salsichas com feijão e café. Voltei ao hotel e aluguei uma vaga num quarto onde havia mais dez pessoas. Eram de um tipo um tanto diferente das que se encontravam nos albergues da Bowery. Aqueles homens ainda não haviam chegado ao fim da corda. Alguns deles jogavam cartas. Espiei um pouco o jogo e fui dormir.

No dia seguinte, tentei outro lugar. Tive sorte. Entrei no depó­sito de uma grande cadeia de armazéns e fui contratado quase no mesmo instante. No armazém da Avenida Colombo com a Rua 69 o entregador havia acabado de sair da casa.

O gerente me olhou e perguntou quase como se estivesse fa­zendo um desafio:

Que é que você quer?

Emprego

Não há vaga.

Nesse momento, o telefone tocou e ele atendeu, dizendo:

—        É Rayzeus quem fala

Fiquei à espera. O gerente nada dizia, limitando-se a escutar o que lhe diziam do outro lado do fio. Não sei como foi que percebi que aquilo podia representar um emprego. Mas de repente senti as mãos cheias de suor e o coração a bater mais depressa. Havia um emprego e eu o queria, fosse qual fosse.

O gerente desligou o telefone. Um motorista de caminhão en­trou e lhe entregou uma fatura. Falaram durante alguns segundos e o motorista saiu. O gerente então olhou para mim.

Que é que ainda está fazendo aqui

Um emprego.

Já lhe disse que não há vaga.

Acabaram de pedir-lhe alguém pelo telefone. Ele me olhou um pouco espantado e disse:

Tem alguma experiência?

Tenho, sim. Trabalhei num grande armazém em San Diego.

Mas não disse que só havia trabalhado dois dias.

Que idade tem?

Vinte anos.

Então, não vai querer o lugar. É para trabalhar como entre­gador. O salário é de oito dólares por semana.

Aceito

Mas eu disse que são apenas oito dólares por semana.

Aceito, — disse eu, metendo as mãos no bolso para que ele não visse como tremiam. Como eu desejava que ele não me mandas­se embora! Nunca havia querido mais coisa alguma na vida!

Não poderia contentar-se com oito dólares por semana, — disse-me ele. — Já não é um garoto e precisa de mais do que isso pa­ra viver.

Escute, cavalheiro, — disse eu, com as mãos nos bolsos e a voz um pouco alterada pela tensão, — preciso desesperadamente de um emprego. Estou sem um tostão. Trabalhei há seis semanas no serviço de remoção de neve das ruas e esse foi o último serviço que eu tive. Oito dólares representam uma fortuna para mim!

O homem se recostou na cadeira, olhou um pouco para o lado e perguntou:

Vive com sua família?

Não. Não tenho família. Neste momento, estou dormindo no Hotel Mills.

Por que vai querer trabalhar em troca de oito dólares por semana? Um homem grande, forte e moço como você, com certeza pode conseguir um lugar onde ganhe mais.

Já procurei, meu caro senhor. Palavra de honra que fiz tudo, mas não houve jeito. E não se pode viver de mãos vazias.

O homem ficou alguns minutos em silêncio. Eu já não sabia onde tinha a cabeça. Aquela brincadeira de gato com rato me estava endoidecendo. De repente, ele se virou na cadeira para mim.

—        Está bem. Vou dar-lhe o emprego.

Senti uma fraqueza nas pernas. Sentei-me numa cadeira perto da mesa e tirei um cigarro do bolso. Coloquei-o na boca e tentei a-cendê-lo, mas não pude nem riscar o fósforo, tanto as mãos me tre­miam. Foi o homem que riscou o fósforo e acendeu o cigarro para mim.

—        Obrigado, senhor. Muito obrigado.

Senti um começo de vertigem durante alguns segundos. Che­guei apensar que fosse vomitar. O estômago se embrulhou e eu senti na boca o gosto amargo da bile. Engoli desesperadamente. Não, meu Deus! Por piedade, agora não! Descansei a cabeça entre as mãos.

O homem se levantou da cadeira e chegou perto de mim. Colo­cou a mão em meu ombro e disse com uma voz que havia perdido todo o tom agressivo.

—        As coisas devem ter sido bem ruins para você, meu filho. Fiz um sinal afirmativo, sem levantar a cabeça. Sentia-me me­lhor e a náusea havia passado. Olhei para ele.

Está melhor agora? — perguntou.

Estou, sim, senhor. Estou bem. Foi só... o... sabe o que que­ro dizer, não sabe? Quando. é que começo a trabalhar e onde?

Ele voltou para a mesa e sentou-se. Escreveu num pedaço de papel que me entregou. Peguei-o e li o endereço.

—        Pode começar agora mesmo se quiser.

Era o que gostaria, se fosse conveniente para o senhor. Pegou outra folha de papel em cima da mesa e perguntou:

Como é seu nome?

Frank Kane.

Escreveu algumas palavras e me entregou o papel.

Isto basta, — disse ele, sorrindo. — Entregue esse papel ao gerente do armazém e, se ele tiver algumas perguntas para fazer, di­ga-lhe que telefone para Rayzeus, no escritório central.

Obrigado, Sr. Rayzeus. Muitíssimo obrigado.

Felicidades, Frank, — disse ele, levantando-se da cadeira e estendendo-me a mão.

Apertei a mão dele e saí. O dia estava maravilhoso. Eu já me sentia diferente. Um emprego tinha uma influência decisiva sobre o estado de espírito. Jurei a mim mesmo que, me sairia bem. Não po­dia deixar mal um homem como' o Sr. Rayzeus. Olhei para a carta de apresentação que levava. Eram as palavras mais lindas que eu já tinha lido.

"Harry

Apresento-lhe Frank Kane. Faça-o trabalhar. Vai ganhar 10 dólares por semana.

  1. Rayzeus"

Não podia falhar àquele homem. Dera-me espontaneamente mais dois dólares por semana. Seria capaz de cortar o braço direito para ser-lhe agradável! Fui até ao subway da Rua Franklin assobi­ando.

Saltei do subway na estação da Rua 66 e caminhei até ao arma­zém. Era quase meio-dia e o sol fazia cair sombras esquisitas dos tri­lhos do elevado para a rua. Fui até ao armazém e parei diante dele. Era uma casa pequena com uma vitrina. Na fachada, estava pendura­da uma tabuleta que dizia: "A Maravilha — Chá e Café". A vitrina tinha uma pequena exposição de comestíveis, mas o povo passava sem olhar para ela. Ficava num prédio reformado, um pouco afasta­do da esquina, entre um drugstore e uma casa de bebidas. Mais adi­ante, havia uma sorveteria, uma quitanda e um açougue, que forma­vam o centro comercial do quarteirão. Por cima do armazém havia um clube em cujas janelas lia-se: "Aliança dos Trabalhadores".

Entrei no armazém. Uma freguesa estava escolhendo algumas coisas de lata, tendo ao lado um homem de avental branco que a ser­via. Esperei que ela acabasse e saísse para então falar com o homem.

O Sr. Rayzeus, do escritório, me mandou aqui.

Ótimo! — disse ele, que parecia estar esperando alguma coisa.

Dei-lhe a carta. Ele a leu e guardou-a no bolso.

—        OK, — disse sorrindo e estendendo a mão. — Sou Harry Kronstein.

Apertei-lhe a mão.

—        Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Kronstein.

Ele apanhou um avental embaixo do balcão e me entregou.

—        Vista isso. A primeira coisa que pode fazer é varrer a casa. Peguei o avental. Havia uma vassoura num canto, aos fundos do armazém. Comecei a varrer da frente do armazém, começando da porta, indo até em frente ao balcão e passando para o canto da sala dos fundos. Varri depois atrás do balcão até aos fundos. Servi-me da tampa de uma caixa para juntar o lixo e esvaziei tudo numa caixa que havia na sala dos fundos. Depois disso, fui procurá-lo.

—        E agora?

Harry olhou para mim satisfeito e perguntou:

Onde foi que aprendeu a varrer uma casa assim? Há muita gente que não sabe nem como começar.

Já trabalhei em muitas casas, — disse eu.

Havia espalhados pelo chão muitos caixões de latas de conservas que um caminhão havia acabado de levar. Ele apontou os caixões.

—        Arrume aquelas latas nas prateleiras onde puder e leve o res­to para a sala dos fundos.

As prateleiras pareciam bem cheias, mas em alguns lugares ha­via falta de certos artigos. Vi quais eram os artigos de que havia poucas latas e procurei um caixão da mesma espécie. Logo que en­contrava, levava o caixão para perto da prateleira correspondente. Dentro em pouco tinha vários caixões espalhados pela casa. Os ou­tros para que não pude achar lugar, levei-os para a sala dos fundos e empilhei-os lá. Perguntei, então, onde era que estava a escada para que eu pudesse encher as prateleiras. Já havia arrumado nas pratelei­ras cerca de três caixões, quando ele me fez parar.

—        Vamos, — disse ele. — Está na hora de fechar para o al­moço.

Fomos almoçar na sorveteria. Sentamo-nos num dos comparti-mentos que ali havia e eu pude observá-lo bem. Era um pouco mais baixo do que eu. Tinha olhos azuis muitos claros, escondidos pelas lentes grossas dos óculos. Era calvo, tendo apenas uma franja de ca­belos ruivos nos lados da cabeça e um bigode bem ruivo e basto. Ti­nha um queixo comprido e redondo que descia quase até ao seu po-mo-de-adão. Falava pausadamente e parecia cuidadoso e estudado nos movimentos até no sorriso. O sorriso era cordial, mas de certo modo não tinha o ar de espontaneidade que seria de desejar.

Falou muito. Eu lhe contei o que havia acontecido ultimamente e ele me disse que o armazém não tinha caixeiro. Eu teria de servir de vendedor e de entregador ao mesmo tempo. Almocei um sanduí­che e uma xícara de café. Depois, voltamos para o armazém.

Mais ou menos às quatro horas, acabei de arrumar as latas. A esse tempo, ele já havia recebido uma porção de pedidos, que eu fui entregar. Recebi cerca de 40 centavos de gorjetas. Quando vol­tei para o armazém, ele me mandou esvaziar a vitrina. Esta era pe­quena e num instante eu a esvaziei. Lavei depois os vidros por den­tro e por fora, como me lembrava de ter feito no bilhar de Keough. Quando entrei, ele me levou para o refrigerador e me mostrou co­mo devia cortar diversas qualidades de queijos e de manteiga para arrumá-las na vitrina.

Agradeci-lhe por ter-me ensinado e ele sorriu.

—        Quanto mais depressa você aprender, melhor. Poderá ser muito útil aqui e eu preciso muito de ajuda.

Se há mais alguma coisa que eu possa fazer, é só me dizer, — disse eu. — Quero fazer um bom serviço aqui, pois preciso do emprego.

Vai fazer um bom serviço, — disse ele. Tirou o relógio do bolso. Eram sete horas e estava na hora de fechar o armazém e ir pa­ra casa. Tiramos os nossos aventais, fechamos tudo e saímos.

Fui até o hotel e tornei a tomar um quarto para mim só. Depois saí e fui jantar. Acabado o jantar, senti-me melhor. Dei um pequeno passeio pelos arredores e voltei para o hotel. Pedi ao porteiro que me acordasse às sete horas porque não tinha despertador e não queria chegar atrasado ao trabalho.

No dia seguinte, esperei à porta do armazém que Harry chegas­se para abri-lo. Apareceu na rua com o seu andar descansado e me deu bom dia. Entramos e eu varri a casa. Ele me mandou buscar café na sorveteria. Cerca de uma hora depois de termos aberto a casa, às oito horas, o Sr. Rayzeus apareceu. Eu estava limpando os vidros do balcão. Levantei os olhos e dei-lhe bom dia. Ele me respondeu com um aceno de cabeça e foi conversar com Harry, que estava junto à registradora.

Os dois conversaram durante algum tempo e ouvi mencionarem o meu nome várias vezes. Depois, o Sr. Rayzeus saiu, entrou num carro e foi-se embora. Acabei de limpar os vidros do balcão e Harry me disse que fosse apanhar algumas latas na sala dos fundos. Íamos acabar de arrumar a vitrina.

Acabamos a vitrina antes da hora do almoço e fomos almoçar na sorveteria. Depois do almoço, voltamos para o armazém e eu fui fazer algumas entregas. Recebi uns 20 centavos de gorjetas. A nossa freguesia era uma mistura de gente muito pobre —. até os que vivi­am do socorro do governo — e de famílias da classe média que ga­nhavam de vinte a trinta dólares por semana. Tínhamos um sorti-mento de gêneros baratos, mas sempre tínhamos alguns artigos espe­ciais para vender. O grosso do nosso movimento era feito por alguns restaurantes que Harry chamava os nossos fregueses por atacado. Compravam caixas de ovos, sacos de açúcar e caixas de alimentos enlatados. Hary me mandou passar por lá para receber os pedidos. Às sete horas, preparei-me para sair. Ele ainda ficou com a casa a-berta alguns minutos depois das sete e eu esperei até que ele fechas­se. Fui jantar então e voltei para o hotel.

O dia seguinte era sábado. Era um dia de muito trabalho, como Harry me havia dito. Ficaríamos abertos até à meia-noite e eu iria começar a atender os fregueses. Era também o dia do pagamento.

O dia amanheceu luminoso e claro. Cheguei de novo antes de Harry e fiquei esperando por ele. Abrimos a casa, e tomamos café. Depois, arrumei as garrafas de leite e de creme no refrigerador e es­perei a freguesia. Às nove horas, entraram algumas freguesas.

Harry me fez um sinal e eu fui atender uma delas.

Era uma italiana alta e morena que falava com a voz áspera, que parecia característica dos italianos da classe mais pobre. As pri­meiras coisas que ela pediu foram muito simples. Depois, pediu queijo e eu fui tirá-lo do refrigerador. Queria 250 gramas mas, com a falta de prática, eu cortei um pouco mais. A balança acusava umas 400 gramas. Ao preço de 80 centavos o quilo, aquele pedaço custava bem 30 centavos. Já ia dizer o preço, mas Harry se aproximou de mim e disse baixinho. "Trinta e seis".

Tirei o queijo da balança e disse à mulher o preço que Harry me havia recomendado. Ela disse que estava bem e eu embrulhei o queijo. Ela ainda comprou uma dúzia de ovos dos mais baratos e meio quilo de café também barato. Peguei um pedaço de papel e fiz a lista das compras da mulher. Quando acabei de escrever tudo, so­mei e o resultado foi 2 dólares e 38 centavos. Harry tinha olhado por cima do meu ombro quando eu marcava os preços e eu tive uma i-déia de que ele queria conferir a minha nota. Entreguei-lhe o papel, ele correu os olhos e me devolveu sem comentários. Devia estar tudo certo. A freguesa me deu uma nota de cinco dólares. Coloquei-a em cima da registradora e disse em voz alta:

—        Dois e trinta e oito em cinco.

Harry registrou a venda me deu o troco. Contei-o para a mulher e disse:

—        Muito obrigado. Apareça.

Havia feito a primeira venda. Virei-me para atender a outra fre­guesa, mas Harry já havia tratado disso. Aproximou-se de mim com um sorriso.

Saiu-se muito bem. Mas ainda precisa aprender algumas coi­sas. Quando se corta queijo e sai um pouco mais do que o peso pedi­do, não tenha receio de cobrar um pouco mais além do peso marcado. Os fregueses não percebem nada, a maioria não é capaz nem de calcular o preço exato e isso nos ajuda a acertar a escrita em relação ao que comemos de manhã e à quebra dos ovos, por exem­plo, para a qual o escritório não nos dá nenhum desconto.

Compreendo! — disse eu.

Claro que compreendia! Isso só servia para confirmar as minhas idéias. Tudo tem um ângulo. O que é preciso apenas é procurá-lo.

Era domingo e eu dormi até tarde. Logo que acordei olhei pa­ra a cômoda onde havia colocado o novo despertador de 65 centa­vos que comprara na noite anterior. Passava um pouco das onze. Olhei e vi que o saco de compras ainda estava lá. Apanhei um ci­garro e acendi-o. Acomodei a cabeça no travesseiro e olhei a fuma­ça que subia para o teto. Sentia-me repousado e satisfeito e pensei no dia anterior.

As semanas anteriores pareciam bem distantes. Nunca mais sentira frio, nem trabalhara na neve ou passara fome. Estava feliz.

Lembrei-me da noite anterior, quando o Sr. Rayzeus havia che­gado perto das dez horas em companhia de outro homem. Harry me disse que aquele era o patrão, o dono de todos os armazéns da cadeia de que o nosso fazia parte. Era um homem calmo, sorridente e grisa­lho que me sorriu amavelmente quando passou por mim. Eu estava atendendo a um freguês e sorri também, sem saber quem era ele. Foi até a registradora, apertou a mão de Harry e conversou alguns minu­tos com ele. Depois, deu uma volta pelo armazém e saiu.

O Sr. Rayzeus ainda falou alguns segundos com Harry e saiu também. Ao passar por mim, disse "Boa noite, Frank" e eu fiquei contente de que ainda se lembrasse de mim.

Mais tarde, depois que fechamos e eu varri a casa, Harry me chamou à registradora para me pagar. Entregou-me sete dólares e perguntou se estava certo.

Fiquei um tanto confuso e disse:

—        Deu-me demais. Só trabalhei três dias, meia semana. São cinco dólares.

Harry sorriu.

Os outros dois são por minha conta. Sempre deixo os em­pregados levarem para casa um pacote de gêneros no sábado à noite. Mas você não precisa dos gêneros e eu lhe dou o equivalente em di­nheiro. Ande direito comigo que eu andarei com você.

Obrigado, — disse eu. Farei o possível para merecê-lo.

Sei disso.

Se me permite, gostaria de levar alguns gêneros para algu­mas pessoas que foram boas comigo. Vou pagar.

Pode escolher, — disse Harry, voltando-se para a registrado­ra a fim de conferir a caixa.

Peguei uma dúzia de ovos dos melhores, um quilo da melhor manteiga, um pacote de bacon, um queijo bom, açúcar, farinha de trigo, algumas latas e uns pacotes de cereais. Calculei os preços e a-crescentei dois pães e um grande bolo de 25 centavos. Cheguei junto de Harry e entreguei-lhe a nota. Havia escrito cada artigo que esco­lhera com os preços. Andava tudo em três dólares e dez centavos. Coloquei o dinheiro em cima da registradora e comecei a arrumar tudo dentro de um saco.

Harry se aproximou de mim com o dinheiro na mão.

Para quem vai levar isso?

Para uns amigos meus. Quando cheguei a Nova York em fe­vereiro sem um tostão, acolheram-me em casa deles. São muito po­bres e eu não podia ficar muito tempo lá, mas se não fossem eles, eu teria morrido de fome.

Ele ficou em silêncio enquanto eu acabava de arrumar o saco e, depois, me entregou o dinheiro.

Fique com ele.

Mas eu quero pagar, Harry. O dinheiro que tenho me chega.

Fiz hoje mais de dois dólares de gorjetas.

Fique com o seu dinheiro, Frank. Desta vez, será por conta da casa.

Guardei o dinheiro no bolso e disse:

Muito obrigado. Não sabe quanto lhe agradeço.

Nem pense nisso! Vamos tomar um café no restaurante an­tes de irmos para casa.

Ficamos sentados conversando mais de uma hora. Eram quase duas horas da madrugada quando voltei para o hotel. O porteiro da noite me reconheceu quando eu entrei e me deu a chave do quarto. Olhou para o pacote e disse com um sorriso:

Não se pode cozinhar nos quartos, Sr. Kane.

Não se preocupe. É coisa que não pretendo fazer.

O cigarro estava quase no fim. Apaguei-o num pires em cima da cômoda, fiz a barba e desci para o corredor a fim de tomar um banho de chuveiro. Era tarde e não havia fila. Tomei um bom banho quente e esfreguei-me com a toalha até a pele ficar vermelha. Voltei então para o quarto e me vesti. Tomei o subway, saltei na Rua 125 e tomei o caminho da casa dos Harris. Era quase uma hora da tarde. Subi as escadas mal iluminadas com o velho cheiro de carne de por­co frita e bati na porta.

Foi Tom quem abriu, O rosto dele se abriu num sorriso ao ver-me.

—        Estava agora mesmo falando em você. Entre! Entrei e ele falou para o quarto:

—        Adivinhe quem está aqui, Mamãe! — Virou-se para mim e me apertou a mão com força. — Como vai, rapaz?

Consegui tirar a mão antes que ele a esmagasse.

—        Bem, muito bem!

Sam e Elly entraram na sala, correndo, seguidos mais lenta­mente pela mãe. Apertei a mão de Sam e Elly e beijei a Sra. Harris. Da maneira pela qual me receberam, parecia que não me viam havia anos em vez de apenas cinco dias. Quando as coisas serenaram um pouco, coloquei o saco em cima da mesa.

—        Estou empregado, — disse eu, com satisfação. — Trabalho num armazém, como Sam, e trouxe alguma coisas para vocês. Ovos, manteiga, queijo, um bolo..

Parei ao ver que a Sra. Harris se havia sentado numa cadeira e estava chorando.

Fui para junto dela, passei as mãos pelos ombros dela, sentin-do-lhe os ossos, e disse:

Ora, Mamãe, que é isso? Que é que há?

Nada, Frankie. Acho que estou chorando de alegria. Tenho rezado todos os dias por você, para que você conseguisse alguma coisa e pudesse sorrir de novo.

Fiquei em silêncio. Olhei para 5am, Tom e Elly.

—        É verdade, Frank, — disse Tom. — Ela nos dizia todos os dias que devíamos rezar por você. E foi o que fizemos, não foi?

Os dois irmãos bateram com a cabeça. Virei-me para a Sra. Harris:

Não sei o que dizer.

Então não diga nada, — disse ela com um sorriso. — Não é preciso. O Senhor nos ouviu e nós só temos é que dizer: obrigado, Senhor. Obrigado por tantas graças.

Mais tarde, depois que comemos e eu contei tudo o que me ha­via sucedido — o emprego que eu tinha, quanto estava ganhando e o que fazia — a Sra. Harris disse:

Para nós a semana foi boa também.

Como assim?

Ela olhou muito contente para a filha e disse:

Elly conseguiu um bom emprego. Está trabalhando em outra fabrica de fita onde faz mais de quinze dólares por semana.

Ótimo, — disse eu, olhando automaticamente para Elly. Ela estava muito séria e me olhou com um ar quase de desafio. Fiquei sabendo no mesmo instante em que era que Elly estava trabalhando, mas não podia dizer coisa alguma. A velha não merecia isso.

—        Há noites agora em que ela trabalha até tarde, — continuou a Sra. Harrys. — Mas Elly é muito boa e não se importa com isso. — Olhou para o relógio na prateleira da cozinha e se levantou. — Co­mo o tempo voa! Já quatro horas e nós ternos de ir para o culto da tarde. Você irá comigo, Tom. E você também, Sam. Elly já foi à i- greja hoje de manhã e pode ficar fazendo companhia a Frank até a gente voltar. Andem depressa!

Os dois homens saíram com a mãe, um de cada lado, ajudando-a a descer a escada. A Rainha da Inglaterra não poderia ser tratada com mais gentileza, mais carinho e mais ternura do que eles a trata­vam. Fechei a porta e voltei-me para Elly.

Estava à janela, olhando para o pátio. Sentei-me perto dela, a-cendi um cigarro e disse calmamente:

—        Está empregada então, Elly?

Ela não olhou para mim e respondeu com voz amarga e baixa:

Sabe muito bem que não estou.

Não sei de nada. Por que não me conta?

Trabalho num apartamento com algumas mulheres. O que fazemos é dividido pelo meio com a dona do apartamento.

Deve haver alguma outra coisa para você fazer.

Acha que há?

Fez uma pausa e continuou:

—        Há uma coisa mais que eu poderia fazer, mais isso se eu fos­se branca. Podia entrar na loja de departamentos da Rua 125 e dizer:

"Sou branca e vocês podem me contratar para vender coisas aos po­bres negros que não podem conseguir empregos porque são pretos e aqui nesta loja só há empregados brancos".

"Se eu pudesse fazer isso, Tom não teria também de ficar em casa o dia inteiro sem fazer nada, olhando para as mãos fortes e ca­pazes, mas que não encontram nenhum trabalho até que a cabeça de­le começa a encher-se de coisas. Sinto um aperto na garganta só de ver meu irmão sofrendo assim até encontrar o que lhe parece uma solução. Sai então e vai beber um gim ordinário e venenoso feito por algum branco que o vende bem barato aos pobres negros para que eles fiquem com a cabeça em fogo e não se lembrem mais de que são pretos. Durante algum tempo, ele é branco e o dono do mundo e ri satisfeito da vida até mergulhar no sono da bebida. Acorda no dia seguinte com a cabeça estourando, a garganta seca e o estômago queimado. Põe então as mãos na cabeça, as mãos que são pretas e não têm o que fazer. Chora então não com lágrimas nos olhos, mas no coração e pergunta: 'Onde estão aquelas belas mãos brancas que eu tinha ontem ?'

"Sam trabalha num armazém todas as manhãs antes da escola. Sabe de tudo no armazém, dos preços e do estoque. Mas só serve mesmo é para fazer entregas. Não pode atender aos fregueses. Não pode cortar queijo, nem manteiga. O pretume de suas mãos poderia passar para o creme ou para o pão branco que tem de descer pela garganta dos brancos."

Olhou-me com o rosto fechado e triste os olhos tão velhos quanto o tempo.

—        Talvez haja outra coisa que eu possa fazer, mas o que faço mesmo é estender-me nua em cima de uma cama e fingir que estou com vontade e ansiosa para enganar quem está no quarto comigo. A pessoa nunca se preocupa de que a cor pegue nele, mas sempre me pergunta: "Não tem nada, menina? Se tem, diga que eu não me zan­ go. Só quero é procurar um médico quanto antes". Eu bem que gos­taria de dizer: 'Não tenho nada, fique descansado. Posso ser preta por fora, mas por dentro sou tão limpa quanto qualquer branca que você possa conhecer". Mas isso não daria certo e eu digo apenas:

"Estou bem. cavalheiro".

Olhou para mim firmemente e repetiu:

—        Estou bem, cavalheiro.

A maneira pela qual disse me tocou no fundo do coração. Es­tendi os braços para ela e disse:

—        Para mim, você está sempre bem.

Ela se aproximou de mim, sentou-se no meu colo, encostou a cabeça no meu peito e chorou. Deixei-a chorar à vontade. Ao fim de muitos minutos, parou, levantou-se e acendeu um dos cigarros do maço que eu havia deixado em cima da mesa.

Não sei por que lhe conto essa coisas, — disse ela em voz tão baixa que eu quase não podia ouvir. — Você não tem culpa de que o mundo seja como é. Mas eu tenho de desabafar com alguém e não pode ser com o povo daqui de casa.

Sei como é que a gente se sente quando tem alguma coisa na cabeça e não tem a quem contar. Já me tenho sentido assim al­gumas vezes

Ela foi até à pia e lavou o rosto. Depois, penteou o cabelo que estava amaciado por um preparado especial. A pele preta era muito fina e brilhava com uma palidez translúcida que lhe dava um subtom branco. o corpo era esbelto, com os seios firmes, uma suspeita de barriga, ancas fortes e pernas esguias que ainda o pareciam mais com os sapatos de salto alto. Sentou-se, tirou mais algumas fumaças do cigarro aceso e disse:

—        Agora, sinto-me melhor.

Eu estava arrasado de pena dela. Ficamos em silêncio, esperan­do a volta da família. Ouvimos a voz de Tom nas escadas. Ela apa­gou o cigarro e foi lavar a boca.

—        Mamãe não gosta de que eu fume, — disse-me ela.

Saí da casa deles às sete horas, antes do jantar, porque não que­ria tirar coisa alguma deles. A minha porção teria de sair da escassa ração com que viviam. Prometi ir vê-los de novo na semana seguinte e fui comer numa cafeteria da Rua 125. Fui depois a um cinema e vi um filme chamado Skippy, baseado numa história em quadrinhos publicada no American. Mas não havia verdade de espécie alguma no filme. Não há ninguém que viva assim.

No fim da semana seguinte, minha vida se havia organizado numa espécie de rotina. Na sexta-feira à noite, quando voltei do trabalho, falei com o gerente do hotel sobre um quarto permanente. Por três dólares por semana, consegui um quarto com banheiro. Era bem maior do que aquele que eu tinha ocupado. Tinha duas janelas de frente para a rua e um armário embutido bem grande. Havia du­as poltronas, uma cadeira comum e uma mesinha de cabeceira. Uma mesa de um lado e uma cômoda do outro completavam o quadro.

O sábado foi um dia de muito trabalho. Corri de um lado para outro o dia inteiro e recebi boas gorjetas como acontecera durante toda a semana. Os fregueses pareciam gostar de mim e eu tinha o maior cuidado em ser delicado e em fazer tudo o que me pediam. Descobri que tinha muito jeito para vender. Conversava com a maior facilidade com os fregueses, pilheriando com os que gostavam disso e tratando respeitosamente os que exigiam respeito. O trabalho era árduo, mas eu gostava.

A minha visita à família Harris no domingo foi bem calma. Tom estava lendo um jornal quando cheguei. Coloquei o saco de ví-veres em cima da mesa.

Onde está o pessoal, Tom?

Foram dar um passeio.

Alguma novidade

Não. Trabalhei um dia no caminhão de carvão. Mas isso e nada é a mesma coisa.

É duro.

Claro que é.

Dei-lhe um dólar, que ele aceitou naturalmente.

Compre um maço de cigarros ou vá a um cinema. O que vo­cê precisa é mudar um pouco de vida. Ficar sentado aqui dentro pen­sando e preocupando não adianta nada.

Quem é que está preocupado? Eu? Não.

Esperamos que os outros voltassem do passeio e, então, senta-mo-nos e comemos. Sai às seis horas e fui jantar. Depois, comprei um jornal e subi para o meu quarto. Tirei a roupa, deitei-me na cama e li o jornal. Depois, apaguei a luz, acendi um cigarro e fiquei ali no escuro fumando pensando. Talvez eu pudesse arranjar um emprego para Tom. Peguei no sono com um idéia começando a formar-se na cabeça.

As semanas foram passando e fundindo-se umas com as outras, correndo mansamente pela minha vida. Estava ganhando bastante para viver bem se tivesse cuidado e o único dinheiro extra que eu gastava era com o que eu levava no domingo para a casa dos Harris. Ia lá to­dos os domingos e sempre saía de lá com uma vaga depressão.

Março deu lugar a abril, abril a maio, maio a junho. Comprei algumas roupas de que precisava, mas durante a semana só usava as calças e a camisa de trabalho. Comprei um terno novo para os do­mingos, mas só o vestia para ir à casa dos Harris.

Um dia, quando estava ajudando a descarregar o caminhão com as mercadorias, o motorista me disse que ia colocar outro caminhão em serviço.

Quem é que vai dirigir? — perguntei.

Tony, meu ajudante.

Quer dizer então que vai precisar de outro ajudante.

Vou, sim. Aliás, vamos precisar de dois ajudantes — um pa­ra mim e outro para ele.

Ali estava um emprego para Tom. Resolvi falar com o Sr. Ray-zeus quando ele aparecesse no dia seguinte.

Quando ele chegou, perguntei-lhe se podia falar com ele um minuto. Falei-lhe então de Tom e ele me perguntou se era pessoa de confiança

Claro que é. E quer trabalhar, pois precisa de um emprego.

Sabe de uma coisa, Frank? Não tenho tido muita sorte com empregados negros. Nas primeiras semanas são ótimos e não se pode desejar gente melhor. Mas no momento em que se vêem com algum dinheiro no bolso, metem-se na bebedeira e só reaparecem quando estão sem um níquel

Não sei dos outros, mas esse eu conheço. Fará um bom ser­viço e não é um vagabundo.

Conhece mesmo o rapaz bem

Conheço, sim. Já trabalhei com ele e sei que é direito.

Está bem. Mande-o falar comigo na semana que vem. Vou ter uma conversa com ele

Obrigado, Sr. Rayzeus

Fui trabalhar de novo, exultante. Agora, talvez as coisas fossem melhorar para eles. Estava ansioso para que chegasse o domingo e eu pudesse dar a notícia

O domingo foi claro e quente. Vesti o meu terno novo e fui pa­ra a casa dos Harris. No caminho, fui pensando em como eles ficari­am contentes quando soubessem, especialmente a Sra. Harris. Che­guei ao prédio e comecei a subir as escadas. O velho casarão nunca mudava. O cheiro continuava o mesmo e os degraus soltos rangiam quando se pisava neles. A luz era mortiça como sempre e as paredes continuavam com a tinta descascada

Entrei no apartamento. Elly estava sentada lendo o Sunday News, com a página colorida das histórias em quadrinhos aberta na mesa diante dela, A janela escancarada deixava entrar no apartamen­to todos os barulhos que vinham do pátio. Uma criança chorava, um casal estava discutindo em altas vozes e um rádio ligado a todo o vo­lume tocava música de jazz, tudo isso formando uma e de sinfonia da pobreza.

Alô, Frank! — disse Elly, levantando a vista.

Alô. Onde estão os outros?

Mamãe foi à igreja com Sam, — respondeu ela com voz cansada. — Tom saiu bem cedo e só vai voltar à tarde.

Coloquei o saco em cima da mesa e abri

—        Convém guardar isso na geladeira. Algumas coisas podem estragar-se.

Ela se levantou e foi guardar o que eu havia levado. Estava muito quente ali dentro e eu tirei o paletó, colocando-o nas costas da cadeira. Elly estava com um vestido novo. Era der cetim preto e es­tava tão justo que os seus movimentos me mostraram que ela não devia ter muita coisa além dele em cima da pele. Quando acabou, voltou para a cadeira onde estava sentada.

O tempo foi passando. O suor me corria pelo pescoço, enso-pando-me o colarinho. Abri a gola da camisa.

Ela descansou a cabeça no braço em cima da mesa e ficou as­sim em silêncio. Quando ela se inclinou, percebi o tom mais claro dos seios pelo decote do vestido

Que é que há, Elly? Não está passando bem?

Não. Estou doente.

Levantei-me e cheguei perto dela.

Que é que está sentindo?

Tem um cigarro aí?

Acendi-lhe um dos meus cigarros. Ao vê-la tão perto de mim, abracei-a impulsivamente. Ela não fez o menor gesto de resistência, mas deixou-se ficar inerte nos meus braços. Tentei inutiimente desper­tar-lhe alguma reação. Ela continuou impassível, sem ao menos largar o cigarro aceso que tinha entre os dedos. Larguei-a afinal e voltei para a minha cadeira, sentindo-me estranhamente decepcionado.

Ela foi até à janela, ficando alguns minutos ali a olhar para fo­ra. Depois, aproximou-se de mim e disse com voz triste:

Não pense que não me interesso por você, Frankie. Prefiro estar com você a estar com qualquer outra pessoa. Mas a verdade é que estou doente

Se está doente, por que não procura um médico?

Já procurei, — disse ela com um tom em que havia uma ponta de medo,

Que foi que ele disse?

Peguei uma doença ruim

Que foi?

Sífilis

—        Passaram-me imediatamente pela cabeça muitas coisas que eu não podia dizer. Tentei dizer alguma coisa, mas só fiz foi gaguejar. Ela me olhava de um jeito estranhamente arrogante

Que é que vai fazer agora? — consegui afinal perguntar.

Não sei. O médico diz que tenho de ir para o hospital para fazer um tratamento completo, mas...

Você não vai continuar a...

Por que não? — exclamou ela. — Por que não vou continu­ar? Não foi como eu peguei?

Mas você pode passar isso a outra pessoa.

Que me importa? Ninguém se importou de pegar isso em mim. Azar deles. Não vou passar fome por causa disso.

Não será preciso passar fome. Arranjei emprego para Tom num caminhão da cadeia em que trabalho.

Conversa sua...

Não é, não. Vim hoje mesmo dizer a Tom que vá procurar o homem no escritório.

Ela se mostrou convencida.

—        Assim sendo, você pode tratar-se e ficar curada, sem ter de preocupar-se com o resto da família.

Ela fez um jeito de quem ia chorar, mas não chorou. Chegou onde eu estava e segurou-me a mão.

—        É tão bom, Frankie! Tão bom que nem posso acreditar!

A Sra. Harirs chegou e ficou na porta olhando para nós. Elly correu para ela, dizendo:

—        Mamãe, Frank está-me dizendo que arranjou um emprego para Tom!

A boa velha escancarou o rosto num sorriso e perguntou:

É verdade, Frankie?

É, sim. Tom deve ir falar com o meu chefe amanhã mesmo.

O Senhor estava cuidando de todos nós quando Tom trouxe você a esta casa, — disse ela simplesmente.

Elly sorria, feliz. A mãe tinha também um ar de serena felici­dade. Sam chegou e recebeu a notícia. Sentíamo-nos todos muito a-legres. Pedi a Sam que descesse para me comprar um maço de cigar­ros e uma garrafa grande de refrigerante para tomarmos por causa do calor. Tom ainda não havia aparecido. Elly desceu com Sam.

A Sra. Harris estava sentada na sua velha cadeira de balanço que rangia no assoalho enquanto ela se balançava. Depois que os passos dos filhos na escada não foram mais ouvidos, ela me disse:

Você tem sido para nós um amigo de verdade, Frankie. Sou muito grata a tudo o que tem feito.

Não fiz nada. Fizeram mais por mim do que eu jamais pode­rei fazer por todos aqui.

Houve alguns minutos de silêncio e ela falou de novo.

—        Nunca lhe perguntei isso, Frankie — porque não é da minha conta — mas você não tem outros amigos além de nós? Não há al­guns brancos que você conheça?

Pensei em Jerry, em Marty e nos meus parentes antes de falar.

Não. E se houve, já passou e não adianta mais. Foi há tanto tempo...

Nunca procurou ninguém?

Não. Como já disse, sei que não adianta. Com certeza, todos já se esqueceram de mim.

Os amigos de verdade nunca se esquecem, passe o tempo que passar. E eu acho que você deve te alguns amigos brancos, gente com quem você possa sair e divertir-se, rapazes e moças da sua idade.

Não, basta-me a amizade de vocês. Têm sido tão bons para mim que não quero saber de mais ninguém.

Mas você não pode sair conosco, Frankie. Você não pode ir dançar conosco. Nós somos pretos. Não é assim que se vive.

Não quero saber como os outros vivem. E a verdade é que eu não gosto de dançar.

Ela sorriu e continuou:

—        Há mais uma coisa que eu quero lhe dizer. É a respeito de Elly. Tenho a impressão de que ela está começando a gostar de você e não pode haver senão aborrecimento para todos nós se a coisa for mais adiante na cabeça dela. Sem querer ofender os seus sentimen­tos, isso também não é possível.

Pensei naquilo e enquanto estava pensando ela continuou a fa­lar.

—        Ela fala a semana toda em sua vinda e, quando chega do­mingo, bota o vestido melhor para esperá-lo.

Eu sabia mais sobre Elly do que a própria mãe, mas ela nunca me dissera coisa alguma sobre o que pensava ou sentia. Sabia que não a amava e não acreditava nem por um minuto que ela tivesse amor por mim. Havia um sentimento entre nós, mas era uma mistura de camaradagem e de sexo, difícil de definir e que desafiava qual­quer tentativa de análise. Disse então:

Compreendo o que quer dizer e não tenho dúvida em fazer-lhe a vontade. Não gostaria de que ninguém aqui nesta casa sofresse por minha causa.

Eu sabia que você ia dizer isso, Frankie. Você é um bom ra­paz. Se eu achar que há necessidade de tomar alguma decisão, de­pois eu lhe direi.

Sam chegou com o refrigerante. Abrimos a garrafa e cada qual tomou um copo. Sam me perguntou então se eu queria ir com ele ao campo perto de City College para ver um jogo de beisebol.

Hesitei. Queria esperar por Tom para lhe falar no emprego, mas a Sra. Harris achou que eu devia ir com Sam. Disse que estava can­sada e gostaria de tirar um cochilo e que nada diria a Tom até à mi­nha volta. Vesti o paletó e saí com Sam. Quando descíamos as esca­das, ele me disse que Elly tinha ido ver uma amiga mas voltaria de­pois. Fomos para o parque.

Fazia muito calor no campo. O sol batia de chapa no lugar onde estávamos, mas o jogo estava muito bom e nos interessou muito. Compramos cachorro-quente e limonada olhamos o jogo até ao fim.

Voltamos para casa quase às seis horas e Tom ainda não havia chegado. Elly, que já havia voltado, queria que eu ficasse para jan­tar, mas eu pedi desculpas e fui jantar na Rua 125. Depois, fui a um cinema e saí de lá alguns minutos depois das dez horas. Resolvi vol­tar à casa dos Harris e ver se Tom já havia voltado. Entrei pela Ave­nida St. Nicholas e dirigi-me para a casa deles.

Quando dobrei a esquina para a casa, um carro de bombeiros passou por mim, tocando a sirene. Havia um incêndio no quarteirão. Saía fumaça em grande quantidade de um prédio. Fiquei olhando displicentemente o incêndio até compreender horrorizado que era no prédio onde os Harris moravam. Saí na carreira para lá.

Havia já muita gente nas imediações e a polícia estava fazendo recuar a multidão. Os bombeiros estavam levantando uma grande es­cada para o sexto andar e os fortes jatos das mangueiras convergiam para a casa em fogo. Comecei a andar por entre o povo para ver se via algum dos Harris. Mas estava escuro e eu não podia ver bem. Alguém me segurou pelo ombro. Virei-me. Era Tom.

Frankie! — exclamou ele. — Onde está o pessoal?

Não sei. Acabo de sair de um cinema. E você? Não estava em casa?

Não. Estou chegando agora.

Nesse momento, Sam e Elly apareceram correndo e pergunta­ram quase sem fôlego a Tom:

—        Onde está Mamãe?

Agora é que estou chegando aqui. Não estava com vocês?

Não. Disse que estava cansada e foi para a cama cedo. Falamos com um dos polícias que era um preto bem alto.

Tiraram minha mãe lá de dentro? — perguntou Tom.

Como é ela

Uma velha, a Sra. Harris, de sessenta e dois anos, cabelos grisalhos.

Não, não vi ninguém assim sair da casa, — disse.

É melhor perguntar ao comandante dos bombeiros que está ali.

A pergunta foi repetida ao comandante dos bombeiros, mas ele sacudiu também a cabeça.

—        Não, não vi nenhuma senhora assim. Mas não se preocupem.

Se ela estiver lá dentro, nós a tiraremos

Tom virou-se para a casa.

—        Mamãe ainda está lá e eu vou buscá-la! Correu para o prédio mas dois polícias o agarraram.

Não pode entrar. — disse um deles. — Os bombeiros vão salvar sua mãe.

Minha mãe está lá dentro! — gritou ele, lutando para livrar-se. No terceiro andar nos fundos. Tenho de ir buscá-la.

Mas não pode ir! — gritou um dos polícias.

Tom conseguiu soltar uma das mãos e assentou um murro no outro polícia que o segurava. O polícia se esquivou e acertou um murro no queixo de Tom que cambaleou. Deixaram-no cair no chão, amparando-o delicadamente.

—        Não podemos deixar que ele entre, — disse o polícia às pes­soas que o cercavam. — Iria morrer com certeza. A casa está-se queimando como se fosse uma caixa de fósforos.

Alguém deu um grito. Olhei e vi Elly que havia rompido o cor­dão de isolamento e corria para o prédio. Sam estava ajoelhado no chão ao lado do irmão. Sai correndo atrás de Elly.

—        Volte! Volte! — gritei desesperadamente.

Ela entrou pela porta do prédio e eu fui atrás dela. No momento em que ia chegando à porta, senti um jato de água nas costas.

Um bombeiro havia voltado a mangueira para mim. Entrei aos tropeções no prédio. O hall estava escuro e todo tomado de fumaça. A água da mangueira salpicava-me a cabeça. Rastejei até à escada e comecei a subir, gritando:

—        Volte, Elly! Elly! volte!

Ninguém me respondeu. Fui até ao terceiro andar. Elly estava entrando na cozinha. Dei um pulo pela porta e segurei-a. Tentei puxá-la para fora. As chamas haviam tomado todo o fundo do aparta­mento. Havia tanta fumaça que quase não nos podíamos ver. Elly es­tava tossindo.

Você tem de voltar comigo! — disse eu, puxando-a.

Mas Mamãe está ali dentro e eu tenho de salvá-la. Está-me ouvindo, Mamãe? Já vou!

Arranhou-me furiosamente o rosto com as unhas. Tentei bater nela, mas não acertei. Ela então me deu um pontapé, desvencilhou-se de mim e correu pan o quarto.

As chamas recrudesceram depois que ela passou. Senti que me queimavam o rosto. Procurei segui-la. Ouvia-lhe os gritos lá dentro:

—        Mamãe! Mamãe! Onde está você?"

Ouvi então um fragoroso barulho e um grito que se estrangulou no meio. Por um minuto, o fogo à minha frente diminuiu e eu vi que a parede entre os quartos havia caído e que parte do teto bloqueava a entrada. Em seguida, as chamas voltaram a crescer e eu tive de fugir para o corredor, com aquele grito ainda a ressoar-me nos ouvidos. Corri para as escadas. Tropecei no primeiro degrau e rolei até o pa­tamar seguinte. De todos os lados caíam em volta de mim pedaços de madeira em chamas. Corri até o último lance de escadas. Diante de mim, a entrada estava ardendo, mas não havia outro caminho. O jato de água de uma mangueira entrou pelo hall. Quase de rastos, procurando conservar-me sob o jato, corri para a rua. Levantei-me então e corri para onde estava o povo.

Um dos bombeiros segurou-me e perguntou asperamente:

Está bem?

Estou, — respondi, tossindo.

Ele me amparou, levando-me para uma distância segura. A multidão estava sendo forçada a recuar pela polícia, que gri­tava:

—        Afastem-se! Afastem-se! O prédio vai desabar!

Cheguei perto de Tom e de Sam. Tom ainda estava estendido no chão, mas começava a voltar a si, mexendo com a cabeça. No momento em que levantou o corpo, o prédio ruiu estrepitosamente.

Uma nuvem de pó se levantou no ar com uma ou outra língua de fogo a subir no céu negro da noite. Tom levantou-se. Não sabia que Elly havia corrido para o prédio. Deu dois passos na direção da casa incendiada e gritou com a cabeça para o alto, como se estivesse falando para o céu:

—        Eles vão pagar por isso, Mamãe! Está ouvindo? Vão pagar por isso, todos eles! Os exploradores dos brancos, todos esses malditos que não nos deixam viver em casas melhores! Vão pagar por is­so! É uma promessa, está ouvindo, Mamãe? É uma promessa!

Um polícia correu para ele e tentou fazê-lo recuar. Tom voltou-se contra ele. Agarrou-o pelo pescoço e tentou estrangulá-lo. O rosto do polícia se mostrou muito branco ao clarão das chamas.

—        Você é o primeiro! — gritou Tom com um brilho demente nos olhos. — É o primeiro mas não será o último! Todos vocês vão pagar!

O polícia preto com quem havíamos falado da correndo. Tentou afastar Tom do outro guarda e não conseguiu. Finalmente, recuou um pouco, pegou o cassetete e desfechou-o na cabeça de Tom. Este caiu como uma rês abatida. o guarda atacado continuou de pé ao la­do dele, atordoado e ofegante.

Dois homens vestidos de branco apareceram, colocaram Tom numa padiola e levaram-no para uma ambulância. Sam e eu corre­mos para junto do chofer.

Ele é meu irmão, — disse Sam. — Posso ir também?

Pode, sim. Entre lá atrás.

Entramos na ambulância. O interno que estava lá me olhou com curiosidade.

—        Está bem amarrotado, hem? — murmurou ele.

Olhei para o meu terno novo. Estava todo sujo, molhado e ras­gado. Nunca mais poderia usá-lo, mas isso não tinha a menor impor­tância.

—        Não foi você o camarada que saiu correndo atrás da moça? — perguntou o interno.

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça.

—        Deixe-me então examiná-lo, — disse ele, pegando o estetoscópio. — Tire o paletó.

Obedeci automaticamente. Fiquei olhando Sam, que estava sen­tado ao lado do irmão. O rosto dele estava parado. Parecia não haver compreendido ainda tudo o que acontecera. Não chorava. Limitava-se a olhar para o irmão. Creio que nem sabia que estávamos na am­bulância com ele.

Eu estava molhado até à pele. Sentia o rosto seco e queimado, os cabelos das costas das mãos estavam chamuscados e as mãos es­tavam quentes. O médico me deu alguma coisa para tomar depois que me examinou e me tomou o pulso.

—        Você tem muita sorte! — exclamou ele. — Não tem uma só queimadura grave!

Duas horas depois, eu estava sentado com Sam no corredor do hospital. esperando que o médico saísse e desse notícias de Tom. Ele havia levado uma pancada fortíssima na cabeça e, durante algum tempo, pensaram no hospital que não escapasse, o que teria sido bem melhor para ele.

Quando nos deixaram entrar no quarto, Tom estava sentado na cama, chorando. As lágrimas lhe rolavam pelas faces. Sam, que até àquele momento quase não havia falado, gritou: "Tom! Tom!" e cor­reu para ele e abraçou-o.

Tom olhou-o sem parecer reconhecê-lo. Continuou a chorar, balbuciando coisas ininteligíveis, incoerentes. Empurrou Sam.

—        Saia daqui. Quero é Mamãe. Onde está ela?

Olhei para o médico e este me respondeu antes que eu lhe fi­zesse a pergunta:

—        Nunca mais será o mesmo homem. Sofreu muitos choques e a cabeça dele não resistiu. Só precisa agora é de repouso e sossego.

Sam estava de costas para nós, olhando para Tom, mas ouviu tudo o que o médico disse. Virou-se para mim com lágrimas nos o-lhos e a boca torcida em soluços controlados.

—        Chore à vontade, — disse-lhe eu. — Há horas em que até os homens choram.

Ele se sentou numa cadeira, pôs a cabeça entre as mãos e cho­rou desesperadamente, com o corpo sacudido pelos soluços. Apro­ximei-me dele e coloquei a mão no seu ombro. Ao fim de algum tempo, parou de chorar e nós saímos para o corredor. Sentamo-nos de novo ali, sem a menor idéia do que íamos fazer.

Mais de meia hora passou e afinal ele falou. A voz dele se tor­nara de repente mais velha, mais amadurecida.

Frank, pode conseguir pan mim o emprego que ia arranjar para Tom?

E os seus estudos, Sam?

Vou conseguir dispensa do que me falta para poder traba­lhar. Já tenho idade bastante e tenho de fazer alguma coisa. Pode conseguir isso para mim?

Acho que sim.

E estranho, — murmurou ele, quase como se estivesse fa­lando consigo mesmo. — Há ainda poucas horas, eu tinha lar, famí­lia e um lugar para onde ir. Agora, não tenho mais nada!

Quer ir morar comigo até podermos acertar tudo?

Ele me olhou com gratidão. Nesse momento, um preto alto apa­receu no corredor. Veio para onde estava Sam e eu reconheci o mi­nistro a quem fora apresentado na igreja da loja.

Sam levantou-se ao vê-lo chegar.

Alô, Reverendo.

Sam, — disse o ministro, passando o braço pelos ombros do rapaz, — vim logo que soube. Você vai para minha casa comigo e vai ficar lá. Não está sozinho. E ainda tem o Senhor.

Conhece meu amigo? — perguntou Sam, apontando-me.

Já nos conhecemos, sim, — disse ele, estendendo-me a mão. — E disseram-me que procedeu com muita coragem.

Não respondi. Descemos juntos o corredor e nos despedimos à porta do hospital. O ministro levou Sam para um táxi e me pergun­tou se queria que me deixasse em algum lugar. Agradeci e disse que poderia ir para casa sozinho. Vi o táxi partir e tomei o caminho do hotel.

Elly e Mamãe Harris foram enterradas dois dias depois numa manhã chuvosa de terça-feira. O ofício fúnebre foi rezado na peque­na igreja e depois, dirigimo-nos para o cemitério. Quando a terra começou a cair me cima dos caixões, o ministro fechou o livro e fa­lou. Eu estava perto de Sam e olhei-o. Estava sozinho à beira das se­pulturas, enquanto a chuva caía. Tom ainda estava no hospital e lá ficaria por muito tempo.

O ministro falava e a chuva que lhe batia no rosto misturava-se com as lágrimas que não podia conter. Parecia uma grande estátua de ébano contra o céu cinzento.

—        Senhor! — exclamava ele. — Olha para nós, teu povo, que a ti recorremos em busca de força, compreensão e esperança..

Foi essa a palavra que durante alguns dias me ressoou nos ou­vidos. Esperança! Onde estaríamos nós sem ela?

 

                                                                               CONTINUA

 

                      

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