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O INVERNO DO MUNDO / Ken Follett
O INVERNO DO MUNDO / Ken Follett

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

  

“Esta é a história de meus avós e dos seus, de nossos pais e de nossas próprias vidas. De alguma forma é a história de todos nós”. —Ken Follett No ano 1933, Berlim é um foco de agitação política e social. Lady Maud, agora a esposa do Walter von Ulrich e mãe de dois filhos, publica em uma revista semanal artigos que ridicularizam ao Partido Nazista, enquanto que Walter manifesta sua oposição no Parlamento. Entretanto, parece que nada poderá frear o poder ascendente do Adolf Hitler. Quando Ethel Williams e seu filho Lloyd visitam a família Von Ulrich, tudas serão testemunhas da tirania e a repressão da nova a Alemanha. O domínio do Terceiro Reich se estenderá até a França e além da fronteira russa. Enquanto, na Inglaterra, Lloyd Williams, ativista político como sua mãe, lutará no exército britânico para tentar frear o avanço dos nazistas e se alistará nas brigadas internacionais durante a guerra civil espanhola. No Ty Gwyn, a mansão familiar dos Fitzherbert no Gales, alojarão-se os oficiais britânicos e, durante sua estadia, o tenente Lloyd Williams se sentirá atraído pela mulher do Boy Fitzherbert, a rica herdeira americana Daisy Peshkov. Nesta magnífica novela épica, Ken Follett conduz ao leitor através de uma Europa em ruínas, quebrada de novo pelas guerras e os conflitos ideológicos. Os filhos das cinco famílias protagonistas da queda dos gigantes forjarão seu destino nos anos turbulentos da Segunda guerra mundial, a guerra civil espanhola, o bombardeio do Pearl Harbor e a era da bomba atômica.

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Carla sabia que seus pais estavam a ponto de enfrascarse em uma discussão. Assim que entrou na cozinha percebeu a hostilidade, como o vento gélido que varria as ruas do Berlim em fevereiro antes de uma tempestade de neve. Esteve a ponto de dá-la volta e sair da cozinha. Não era habitual neles que discutissem. Pelo general eram muito afetuosos, inclusive muito. Carla sentia vergonha alheia quando se beijavam diante de outra gente. Seus amigas acreditavam que era algo estranho já que seus pais não demonstravam esse carinho em público. Em uma ocasião o tinha comentado a sua mãe, que reagiu soltando uma risada de satisfação e lhe disse: —O dia depois de nossas bodas, a seu pai e nos separou a Grande Guerra. —Sua mãe era inglesa de nascimento, embora apenas lhe notava o acento—. Eu me fiquei em Londres enquanto ele retornava a Alemanha e se incorporava ao exército. —Carla tinha ouvido essa história um sem-fim de vezes, mas sua mãe nunca se cansava de contar acreditávamos que a guerra duraria três meses, mas não voltei a vê-lo até ao cabo de cinco anos. Durante todo esse tempo joguei muito de menos poder acariciá-lo, assim agora não me canso de fazê-lo. Seu pai era igual. —Sua mãe é a mulher mais inteligente que conheci jamais —lhe havia dito aí mesmo, na cozinha, uns dias antes—. Por isso me casei com ela. Não teve nada que ver com… —Deixou a frase inacabada e ambos riram de forma cúmplice, como se Carla não soubesse nada de sexo à idade de onze anos. Resultava-lhe tudo muito violento. Entretanto, de vez em quando brigavam. Carla conhecia os sinais e sabia que estava a ponto de estalar uma nova discussão. Cada um estava sentado a um extremo da mesa. Seu pai vestia um traje cinza escuro de estilo muito sombrio, uma camisa branca engomada e uma gravata negra de raso. Era um homem pulcro, apesar das entradas e da ligeira barriga que aparecia sob o colete e a cadeia do relógio de ouro. Tinha o rosto congelado em uma expressão de falsa calma. Carla conhecia esse olhar, era a que dirigia a algum membro da família quando tinha feito algo que o enfurecia. Sustentava na mão um exemplar do semanário para o que trabalhava sua mãe, Der Demokrat, no qual escrevia uma coluna de rumores políticos e diplomáticos com o nome do Lady Maud. Seu pai começou a ler em voz alta: —Nosso novo chanceler, herr Adolf Hitler, fez sua estréia na sociedade diplomática na recepção do presidente Hindenburg. Carla sabia que o presidente era o chefe de Estado. Tinha sido eleito, mas estava por cima das penas do dia a dia político e exercia principalmente de árbitro. O chanceler era o primeiro-ministro. Embora tinham renomado chanceler ao Hitler, seu Partido Nazista não dispunha de uma maioria absoluta no Reichstag, o Parlamento alemão, de modo que, no momento, outros partidos podiam pôr reserva aos excessos nazistas. Seu pai falou com desagrado, como se o tivessem obrigado a mencionar algo repulsivo, como águas residuais. —Parecia sentir-se incômodo vestido com um fraque. A mãe da Carla tomou um sorvo de seu café e olhou para a rua através da janela, fingindo interesse pela gente que se apressava para chegar ao trabalho, protegendo do frio com cachecol e luvas. Ela também fingia calma, mas Carla sabia que solo estava esperando seu momento. Ada, a criada, estava em pé, vestida com um avental, cortando queijo. Deixou um prato diante de seu pai, que não lhe fez o mais mínimo caso. —Não é nenhum secreto que herr Hitler ficou cativado pelo Elisabeth Cerruti, a culta mulher do embaixador italiano, que luzia um vestido rosa adornado com peles da Marta. Sua mãe sempre descrevia como vestia a gente. Dizia que assim ajudava aos leitores a imaginar-lhe Ela também tinha roupa elegante, mas corriam tempos difíceis e fazia vários anos que não se comprou nenhum vestido novo. Essa manhã tinha um aspecto esbelto e elegante com um vestido de cachemira azul marinho que devia de ter tantos anos como Carla. —A signora Cerruti, que é judia, é uma fascista acérrima, e falaram durante vários minutos. Pediu ao Hitler que deixasse de avivar o ódio para os judeus? —O pai deixou a revista na mesa com um forte golpe. Agora começa, pensou Carla. —Imagino que te terá dado conta de que isto enfurecerá aos nazistas —disse seu pai. —Isso espero —replicou sua mãe com frieza—. O dia que estejam contentes com o que escrevo, deixarei de fazê-lo. —São perigosos quando estão enfurecidos. Os olhos de sua mãe refulgiram de ira. —Nem te ocorra me tratar com condescendência, Walter. Já sei que são perigosos, por isso oponho a eles. —É que não entendo do que serve enfurecê-los. —Você os ataca no Reichstag. —Walter era um representante parlamentario da Partida Socialdemócrata eleito nas urnas. —Eu tomo parte de um debate raciocinado. A situação era a habitual, pensou Carla. Seu pai era um homem lógico, precavido e respeitoso com a lei. Sua mãe tinha estilo e senso de humor. Ele se saía com a sua graças a sua perseverança serena; ela com seu encanto e seu descaramento. Nunca ficariam de acordo. —Eu não volto para os alemães loucos de ira —acrescentou seu pai. —Possivelmente isso é porque suas palavras não lhes causam nenhum dano. O engenho do Maud tirou de gonzo ao Walter, que elevou a voz. —E crie que lhes faz mal com seus sarcasmos? —Burlo-me deles. —Em lugar de contribuir com argumentos. —Acredito que se necessitam ambas as coisas. Walter se enfureceu ainda mais. —Mas, Maud, não vê que te põe em perigo a ti mesma e a toda a família? —Ao contrário. O verdadeiro perigo seria não burlar-se dos nazistas. Como será a vida para nossos filhos se a Alemanha se converter em um estado fascista? Esse tipo de discussões incomodavam a Carla. Não suportava ouvir que a família estava em perigo. A vida devia prosseguir tal e como tinha feito até então. O único que desejava era poder sentar-se na cozinha todas as manhãs, com seus pais situados nos extremos da mesa de pinheiro, Ada junto à encimera, e seu irmão, Erik, brincando de correr acima porque chegava tarde de novo. por que tinham que trocar as coisas? Durante toda sua vida tinha escutado conversações políticas à hora do café da manhã e acreditava que entendia o que faziam seus pais, que tinham a aspiração de converter a Alemanha em um lugar melhor para todo mundo. Entretanto, nos últimos tempos tinham começado a falar de um modo distinto. Era como se acreditassem que se morava um grande perigo, mas Carla ainda era incapaz de imaginar-se do que se tratava. —Bem sabe Deus que estou fazendo tudo o que posso para conter ao Hitler e a seus coroinhas —disse Walter. —E eu também. Mas quando você o faz, crie que está tomando o caminho sensato. —Ao Maud lhe crispou o rosto de ressentimento—. E quando o faço eu, acusa-me de pôr em perigo à família. —E com razão —replicou Walter. A discussão não tinha feito mais que começar, mas nesse momento Erik baixou os degraus de forma estrondosa, como um cavalo, e apareceu na cozinha com a carteira da escola pendurada de um ombro. Tinha treze anos, dois mais que Carla, e um fino pêlo negro começava a aparecer em seu lábio superior. Quando eram pequenos, Carla e Erik sempre tinham jogado juntos, mas aqueles dias tinham ficado relegados ao passado, e como ele era tão alto gostava de acreditar que sua irmã era tola e infantil. Em realidade, era mais inteligente que ele, e sabia muitas coisas que ele não entendia, como os ciclos mensais da mulher. —O que era essa melodia que estava tocando? —perguntou a sua mãe. O piano despertava freqüentemente pela manhã. Era um piano de cauda Steinway, herdado, ao igual que a casa, dos avós paternos. Sua mãe tocava pelas manhãs porque, conforme dizia, o resto do dia estava muito ocupada e de noite lhe podia o cansaço. Aquela manhã tinha interpretado uma sonata do Mozart e a seguir uma melodia de jazz. —chama-se Tiger Rag —disse ao Erik—. Quer um pouco de queijo? —O jazz é decadente —replicou seu filho. —Não diga tolices. Ada deu ao Erik um prato com queijo e salsicha em rodelas, e este o devorou com avidez. Carla pensou que seu irmão tinha uns maneiras espantosos. Walter mantinha um semblante sério. —Quem te inculcou todas essas estupidezes? —Hermann Braun diz que o jazz não é música, que tão solo é um punhado de negros fazendo ruído. —Hermann era o melhor amigo do Erik e seu pai era membro do Partido Nazista. —Pois Hermann deveria tentar tocar um pouco de jazz. —Walter olhou ao Maud e lhe relaxou o rosto. Sua mulher lhe sorriu e ele prosseguiu—: Faz muitos anos sua mãe tentou me ensinar a tocar ragtime, mas fui incapaz de dominar o ritmo. Sua mãe riu. —Foi como lhe ensinar a uma girafa a ir em patins. Carla comprovou com grande alívio que a briga tinha acabado. Começou a sentir-se melhor. Agarrou um pedaço de pão negro e o molhou no leite. Entretanto, agora era Erik quem tinha vontades de discutir. —Os negros são uma raça inferior —disse em tom desafiante. —Duvido-o —repôs Walter, sem perder a paciência—. Se um menino negro fora criado em uma boa casa cheia de livros e pinturas, e se o enviassem a uma escola cara com bons professores, talvez chegaria a ser mais inteligente que você. —Isso é uma estupidez! —protestou Erik. —Será presunçoso… Que não te ouça dizer nunca mais que seu pai diz estupidezes —o repreendeu sua mãe, que tinha rebaixado um pouco o tom já que tinha gasto toda sua ira no Walter. Agora solo parecia cansada e decepcionada—. Não sabe de que falas, e Hermann Braun tampouco. —Mas a raça ária tem que ser superior, somos os que governamos o mundo! —exclamou o moço. —Seus amigos nazistas não sabem nada de história —disse Walter—. Os antigos egípcios construíram as pirâmides quando os alemães ainda viviam em covas. Os árabes dominavam o mundo na Idade Média e os muçulmanos eram grandes peritos em álgebra quando os príncipes alemães não sabiam nem escrever seu nome. Como vê, a raça não importa. —Então, o que é o que importa? —perguntou Carla, com a frente enrugada. Seu pai a olhou com ternura. —É uma boa pergunta e demonstra uma grande inteligência ao expô-la. —Carla estava radiante de felicidade pelo elogio de seu pai—. As civilizações, os chineses, os astecas, os romanos, nascem e caem mas ninguém sabe por que. —Venha, acabem o café da manhã e lhes ponha os casacos —disse Maud—, que já vamos tarde. Walter tirou o relógio do bolso do colete, olhou-o e arqueou as sobrancelhas. —Não é tarde. —Tenho que levar a Carla a casa dos Franck —explicou Maud—. A escola de garotas estará fechada hoje porque estão reparando a caldeira, de modo que Carla vai a passar o dia com a Frieda. Frieda Franck era a melhor amiga da Carla. Suas mães também eram muito boas amigas. De fato, quando eram jovens, Monika, a mãe da Frieda, tinha estado apaixonada do Walter; um fato muito gracioso que a avó da Frieda tinha revelado um dia depois de beber algumas monopoliza de champanha de mais. —por que não pode encarregar-se Ada da Carla? —perguntou Walter. —Ada tem que ir ao médico. —Ah. Carla esperava que seu pai perguntasse o que acontecia a Ada, mas se limitou a assentir como se já soubesse, e se guardou o relógio. Carla queria saber o que acontecia, mas algo lhe dizia que não devia falar disso e tomou nota mental para lhe perguntar a sua mãe mais tarde. Mas se esqueceu de tudo imediatamente. Walter foi o primeiro em partir, vestido com seu comprido abrigo negro. Logo Erik ficou sua boina —tornando-lhe para trás tudo o que pôde sem que chegasse a cair, tal e como estava de moda entre seus amigos— e saiu à rua com seu pai. Carla e sua mãe ajudaram a Ada a recolher a mesa. Carla queria quase tanto a Ada como a sua mãe. Quando era pequena, Ada tinha cuidado dela até que foi o bastante major para ir à escola, já que sua mãe sempre tinha trabalhado. Ada ainda não se casou. Tinha vinte e nove anos e não era muito agraciada, embora tinha um sorriso bonito e agradável. O verão anterior tinha tido um romance com um policial, Paul Huber, mas não durou muito. Carla e sua mãe ficaram em pé frente ao espelho do saguão e ficaram os chapéus. Maud se tomou seu tempo. Escolheu um modelo de feltro azul, com coroa redonda e de asa estreita, do estilo que levavam todas as mulheres; mas sua mãe o inclinava em um ângulo distinto, o que lhe conferia um aspecto chique. Enquanto Carla ficava seu gorro de lã, perguntava-se se alguma vez teria tanto estilo como sua mãe. Maud parecia uma deusa da guerra, com seu pescoço comprido e seu queixo e maçãs do rosto esculpidos em mármore branco; era bela, sem dúvida, embora não preciosa. Carla tinha o mesmo cabelo escuro e os olhos verdes, mas parecia mais uma boneca rechoncha que uma estátua. Em uma ocasião tinha ouvido por acaso que sua avó dizia a sua mãe: —Seu patito feio se converterá em um cisne, já o verá. —Carla ainda estava esperando a que isso acontecesse. Quando Maud acabou de polir-se, saíram. Seu lar se encontrava em uma fileira de casas altas e elegantes do bairro do Mitte, no centro da cidade, construídas para ministros e oficiais do exército de alta fila como o avô da Carla, que tinha trabalhado nos edifícios governamentais que havia não muito longe de ali. Carla e sua mãe tomaram um bonde que percorreu Unter dêem Confinem, logo trocaram ao trem interurbano para ir da Friedrichstrasse até o parque zoológico. Os Franck viviam em um bairro residencial do Schöneberg, situado na zona sudoeste da cidade. Carla tinha vontades de ver o Werner, o irmão da Frieda, que tinha quatorze anos. Gostava de muito. Em ocasiões Carla e seu amiga fantasiavam com que se casavam a uma com o irmão da outra e que eram vizinhas, e que seus filhos se convertiam em bons amigos. Para a Frieda não era mais que um jogo, mas Carla desejava em secreto que todo aquilo se fizesse realidade. Werner era um menino bonito e amadurecido, absolutamente parvo como Erik. Na casa de bonecas que Carla tinha em sua habitação, o pai e a mãe que dormiam juntos na cama de matrimônio de miniatura se chamavam Carla e Werner, algo que ninguém sabia, nem tão sequer seu melhor amiga. Frieda tinha outro irmão, Axel, de sete anos, que tinha nascido com espinho bífido e requeria de uma atenção médica constante. O menino vivia em um hospital especial situado aos subúrbios do Berlim. Sua mãe se mostrou preocupada durante o trajeto. —Espero que tudo vá bem —murmurou para si, ao descer do trem. —claro que sim —disse Carla—. Me passarei isso em grande com a Frieda. —Não referia a isso. Falo do parágrafo que escrevi sobre o Hitler. —Corremos perigo? Tinha razão papai? —Seu pai está acostumado a ter razão. —O que nos acontecerá se tivermos incomodado aos nazistas? Sua mãe a olhou de um modo estranho durante um bom momento. —meu deus, a que mundo te trouxe? —perguntou-se Maud, e a seguir emudeceu. Depois de um passeio de dez minutos chegaram a uma esplêndida casa com um grande jardim. Os Franck eram ricos: o pai da Frieda, Ludwig, era o dono de uma fábrica de aparelhos de rádio. Havia dois carros no caminho de entrada. O maior e brilhante era o de herr Franck. O motor rugiu e o escapamento expulsou uma baforada de vapor azul. O chofer, Ritter, que levava as calças do uniforme colocados por dentro das botas de cano alta, aguardava com a boina na mão, preparado para abrir a porta. —bom dia, frau Von Ulrich —a saudou o homem detrás fazer uma reverência. O segundo carro era algo mais pequeno, de cor verde, e só tinha dois lugares. Um homem baixinho com uma barba cã saiu da casa com uma maleta de pele e se tocou o chapéu para saudar o Maud enquanto entrava no pequeno veículo. —Pergunto-me o que faz aqui o doutor Rothmann tão cedo —disse Maud, com inquietação. Não demoraram para averiguá-lo. Monika, a mãe da Frieda, saiu à porta. Era uma mulher alta e ruiva. Seu rosto pálido refletia seu nervosismo. Em lugar de lhes dar a bem-vinda, situou-se frente à porta, como se pretendesse lhes impedir o passo. —Frieda tem o sarampo! —exclamou. —Sinto-o muito! —repôs Maud—. Como se encontra? —Muito mal. Tem febre e tosse, mas o doutor Rothmann diz que se curará. Entretanto, está em quarentena. —Claro. Você o passaste? —Sim, quando era uma menina. —E Werner também, lembrança a erupção que lhe saiu por todo o corpo. Mas e seu marido? —Ludi a teve de menino. Ambas as mulheres olharam a Carla, que não tinha passado o sarampo. A garota se deu conta imediatamente de que isso implicava que não poderia passar o dia com a Frieda. Carla se levou uma desilusão, mas sua mãe parecia ainda mais afetada. —Esta semana a revista vai publicar o número especial dedicado às eleições, não posso ficar em casa. —Parecia consternada. Todos os adultos estavam preocupados pelas eleições gerais que foram celebrar se no domingo seguinte. Seus pais temiam que os nazistas obtiveram os votos necessários para fazer-se com o controle absoluto do governo—. Além disso, vou receber a visita de uma velha amiga de Londres. Pergunto-me se poderia convencer ao Walter de que se tomasse o dia livre para cuidar da Carla. —por que não o chama por telefone? Poucas pessoas tinham telefone em casa, mas os Franck estavam entre os afortunados, e Carla e sua mãe entraram no saguão. O aparelho se encontrava sobre uma mesa de patas largas e altas, perto da porta. Sua mãe o desprendeu e deu o número do escritório do Walter no Reichstag, o edifício do Parlamento. Quando a puseram em contato com ele, explicou-lhe a situação. Escutou durante um minuto e logo pôs cara de aborrecimento. —Minha revista fará que cem mil leitores votem à Partida Socialdemócrata —disse—. De verdade tem que fazer algo mais importante? Carla adivinhou como ia acabar a discussão. Sabia que seu pai a queria com loucura, mas também sabia que seu pai nunca se ocupou dela nem um sozinho dia nos onze anos que tinham passado desde seu nascimento. Os pais de todas seus amigas eram iguais. Os homens não faziam esse tipo de coisas; entretanto, em ocasione sua mãe fingia que desconhecia as regras pelas que se regiam as vistas das mulheres. —Pois terei que me levar isso à redação comigo —disse Maud—. Não quero nem pensar o que dirá Jochmann. —Herr Jochmann era seu chefe—. Não é que seja precisamente um feminista declarado. —E pendurou sem despedir-se. Carla não suportava que discutissem, e já era a segunda vez esse dia. Suas rixas faziam que o mundo parecesse um lugar instável. Davam-lhe mais medo essas brigas que os próprios nazistas. —Pois vamos —disse sua mãe, que pôs-se a andar em direção à porta. Nem tão sequer verei o Werner, lamentou-se Carla. Justo nesse instante apareceu o pai da Frieda no saguão: era um homem de rosto rosado, com um pequeno bigode negro, cheio de energia e alegre. Saudou ao Maud com simpatia, e ela se deteve para lhe devolver a cortesia enquanto Monika o ajudava a ficar um casaco negro com o pescoço de pele. O homem se dirigiu até o pé das escadas. —Werner! —gritou—. Vou sem ti! —ficou um chapéu de feltro cinza e saiu. —Já estou! Já estou! Werner baixou as escadas com a agilidade de um bailarino. Era tão alto como seu pai e mais bonito, com o cabelo de um loiro avermelhado, um pouco comprido. Sob o braço levava uma carteira de couro que parecia cheia de livros; na outra mão sujeitava um par de patins de gelo e um pau de hóquei. —bom dia, frau Von Ulrich —disse de forma educada. E a seguir, em um tom mais informal—: Olá, Carla. Minha irmã tem o sarampo. Carla sentiu que se ruborizava sem um motivo aparente. —Sei —respondeu ela. Tentou pensar em um pouco divertido e agradável que dizer, mas não lhe ocorreu nada—. Não o passei, assim não posso vê-la. —Eu o passei de menino —disse Werner, como se aquilo tivesse acontecido muito tempo atrás—. Tenho que ir, sinto-o —acrescentou a modo de desculpa. Carla não queria que o encontro fora tão fugaz e o seguiu até fora. Ritter sujeitava a porta aberta. —Que carro é? —perguntou Carla. Os meninos sempre sabiam as marca e os modelos dos carros. —Um Mercês-benz W10 limousine. —Parece muito cômodo. —Viu que sua mãe a olhava de esguelha, médio surpreendida e médio divertida. —Quer que lhes levemos? —perguntou Werner. —É claro que sim. —O perguntarei a meu pai. —Werner colocou a cabeça no carro e disse algo. —De acordo, mas lhes dê pressa! —ouviu Carla que respondia herr Franck e se voltou para sua mãe. —Podemos ir de carro! Maud só duvidou um instante. Não gostava das idéias políticas de herr Franck, que financiava aos nazistas, mas não ia rechaçar que as levasse em seu carro quente em um dia frio como aquele. —É muito amável de sua parte, Ludwig —disse Maud. Entraram no veículo. Havia espaço para os quatro detrás. Ritter pôs o carro em marcha de forma muito suave. —Suponho que vão ao Kochstrasse —disse herr Franck. Muitos periódicos e editoriais tinham seus escritórios na mesma rua do bairro do Kreuzberg. —Não faz falta que te desvie da rota habitual. Leipziger Strasse vai bem. —Não me importaria lhes deixar na porta da revista, mas imagino que não quer que seus colegas esquerdistas lhes vejam sair do carro de um plutocrata fátuo como eu —disse com um tom a meio caminho entre cômico e hostil. Sua mãe lhe dedicou um sorriso encantador. —Não é um tipo fátuo, Ludi… Solo um pouco presunçoso. —E lhe deu uma palmada na lapela do casaco. Ludwig riu. —Procurei-me isso. —A tensão se aliviou. Herr Franck agarrou o tubo para dar as instruções ao Ritter. Carla estava muito emocionada por compartilhar carro com o Werner, e queria aproveitar o trajeto ao máximo falando com ele, mas ao princípio não lhe ocorreu o que dizer. O que em realidade queria lhe perguntar era: Quando for maior, crie que lhe casarão com uma garota com o cabelo escuro e os olhos verdes, uns três anos mais jovem que você e inteligente?. Entretanto, ao final assinalou os patins e disse: —Tem partido hoje? —Não, só treinamento depois de classe. —Do que joga? —Não sabia nada de hóquei, mas nos esportes de equipe sempre havia diferentes posicione. —De extremo direito. —Não é um esporte bastante perigoso? —Não se for rápido. —Deve ser um bom patinador. —Bom, defendo-me —disse com modéstia. Carla reparou de novo em sua mãe, que a observava com uma sonrisita enigmática. Tinha descoberto quais eram seus sentimentos para o Werner? Sentiu que ia a ruborizar-se de novo. Então o carro se deteve frente ao edifício de uma escola e Werner saiu. —Adeus a todos! —disse e pôs-se a correr em direção à porta de entrada ao pátio. Ritter retomou a marcha, seguindo a borda sul do Landwehrkanal. Carla olhou as barcaças e o carvão que transportavam talher de neve, como montanhas. apoderou-se dela uma sensação de decepção. Tinha conseguido acontecer mais momento com o Werner deixando entrever que necessitavam que as acompanhassem de carro, mas logo tinha jogado a perder a ocasião falando de hóquei sobre gelo. Do que lhe teria gostado de falar com ele? Não sabia. —Li sua coluna no Der Demokrat. —Espero que você gostasse. —Não me fez muita ilusão ler seus comentários desrespeitosos sobre nosso chanceler. —Crie que os jornalistas deveriam escrever com respeito sobre os políticos? —replicou Maud com Isso alegria é radical. A imprensa nazista também deveria ser mais educada com meu marido! E isso não gostariam. —Não referia a todos os políticos, claro —disse Franck, de maus modos. Atravessaram o cruzamento do Potsdamer Platz, lotado de gente. Os carros e os bondes pugnavam com os carros atirados por cavalos e os pedestres em um enxame caótico. —Não é melhor que a imprensa possa criticar a todo mundo por igual? —perguntou Maud. —É uma idéia maravilhosa —concedeu Ludwig—. Mas os socialistas vivem em um mundo de sonho. Entretanto, nós os homens práticos sabem que a Alemanha não pode viver sozinho de idéias. A gente deve ter pão, sapatos e carvão. —Estou de acordo —disse Maud—. Não me viria mal um pouco mais de carvão, mas quero que Carla e Erik cresçam como cidadãos de um país livre. —Sobrevaloras a liberdade, que não faz mais feliz às pessoas. Preferem liderança. Quero que Werner e Frieda e o pobre Axel cresçam em um país orgulhoso e disciplinado, e unido. —E para ser um país unido necessitamos que uns valentões vestidos com camisas pardas se dediquem a dar surras a lojistas judeus anciões? —A política é dura. Não podemos fazer nada a respeito. —Ao contrário. Você e eu somos líderes, Ludwig, cada um a nosso modo. Nossa responsabilidade é que a política seja menos dura, mais honesta, mais racional, menos violenta. Se não o fizermos, fracassaremos em nosso dever patriótico. Herr Franck se enfureceu. Carla não sabia muito de homens, mas se tinha dado conta de que não gostavam que as mulheres fossem lhes dando lições a respeito de seus deveres. Aquela manhã sua mãe devia haver-se esquecido de ativar o interruptor de seu encanto. Mas todo mundo estava tenso. As próximas eleições os tinham sumido a todos em um estado de grande crispação. O carro chegou ao Leipziger Platz. —Onde quer que lhes deixe? —perguntou herr Franck com frieza. —Aqui já vai bem —respondeu Maud. Franck golpeou o cristal que os separava do chofer. Ritter deteve o carro e se apressou a baixar para abrir a porta. —Espero que Frieda melhore logo —disse Maud. —Obrigado. Mãe e filha desceram do carro e Ritter fechou a porta. Ainda ficava um bom trecho para chegar à redação da revista, mas era evidente que Maud não tinha querido permanecer mais tempo do estritamente necessário no carro. Carla esperava que sua mãe não fora a estar sempre zangada com herr Franck já que aquilo poria travas a sua relação com a Frieda e Werner, algo que não suportaria. Puseram-se a andar com passo rápido. —Tenta não causar moléstias quando chegarmos à redação —pediu sua mãe. O deixe de súplica de sua voz comoveu a Carla, e fez que se envergonhasse de ser a causador dessa preocupação, de modo que tomou a decisão de comportar-se perfeitamente. Sua mãe saudou várias pessoas durante o caminho: levava escrevendo sua coluna desde que Carla tinha uso de razão, e era bem conhecida entre os jornalistas. Todos a chamavam lady Maud, em inglês. Perto do edifício onde se encontravam os escritórios do Der Demokrat, viram alguém a quem conheciam: o sargento Schwab. Tinha lutado com seu pai na Grande Guerra, e ainda levava o cabelo rapado, ao estilo militar. depois da guerra tinha trabalhado como jardineiro, primeiro para o avô da Carla e logo para seu pai; mas tinha roubado dinheiro do moedeiro de sua mãe, e seu pai o tinha despedido. Agora luzia o feio uniforme militar das tropas de assalto, os camisas pardas, que não eram soldados, a não ser nazistas aos que tinham concedido a autoridade de polícia auxiliar. —bom dia, frau Von Ulrich! —disse Schwab em voz alta, como se não se envergonhasse o mais mínimo de ser um ladrão. Nem tão sequer se tocou a boina. Maud assentiu fríamente e passou de comprimento. —Pergunto-me o que fará aqui —murmurou com inquietação enquanto entravam no edifício. A revista ocupava o primeiro andar de um moderno edifício de escritórios. Carla sabia que uma menina não seria bem recebida, e confiava em poder chegar ao despacho de sua mãe sem que a vissem. Mas se cruzaram com herr Jochmann nas escadas. Era um homem robusto que levava uns óculos grosas. —O que é isto? —perguntou com brutalidade sem tirar o cigarro da boca—. É que agora temos uma creche? Maud não reagiu ante as grosseiras palavras de seu chefe. —Estava pensando no comentário que fez o outro dia —disse Maud—. Sobre o fato de que a gente jovem se imagina o jornalismo como uma profissão cheia de glamour e que não entende que requer de um grande esforço e dedicação. O homem enrugou a frente. —Disse eu isso? Bom, é certo, sem dúvida. —decidi trazer para minha filha para que veja a realidade. Acredito que será muito positivo para sua educação, sobre tudo se decide converter-se em escritora. Redigirá um pequeno relatório da visita para a escola. Estava convencida de que você daria sua aprovação. Maud se inventou a história de forma improvisada, mas, em opinião da Carla, soou convincente. Até ela mesma esteve a ponto de acreditar-lhe Por fim tinha ativado o interruptor de seu encanto. —Não tem hoje uma visita importante de Londres? —perguntou Jochmann. —Sim, Ethel Leckwith, mas é uma velha amiga. Conheceu a Carla quando era um bebê. Jochmann se acalmou um pouco. —Hum. Bom, temos uma reunião de redação dentro de cinco minutos, assim que tenha comprado os cigarros. —Carla se encarregará disso. —Sua mãe se voltou para ela—. Há um estanque três portas mais à frente. A herr Jochmann gosta dos cigarros Roth-Händle. —Ah, assim me economizo a viagem. —Jochmann lhe deu uma moeda de um marco a Carla. —Quando voltar me encontrará ao final das escadas, junto ao alarme antiincendios —lhe disse Maud, que se deu a volta e agarrou a herr Jochmann do braço em um gesto de confiança—. Acredito que o número da semana passada foi o melhor que publicamos jamais —disse enquanto subiam. Carla saiu correndo à rua. Sua mãe se saiu com a sua, jogando mão dessa mescla tão típica dela de audácia e paquera. Em ocasiões dizia: As mulheres têm que aproveitar todas as armas a nosso alcance. Ao pensar nisso, Carla se deu conta de que tinha utilizado a tática de sua mãe para obter que herr Franck as levasse de carro. Possivelmente ao final sim que era como sua mãe e talvez por isso lhe tinha arrojado essa estranha sonrisilla: via-se si mesmo trinta anos antes. Havia penetra no estanque. Parecia que a metade dos jornalistas do Berlim estavam comprando suas provisões de tabaco para o dia. Ao final Carla conseguiu o pacote do Roth-Händle e retornou ao edifício do Der Demokrat. Encontrou o alarme antiincendios facilmente, era uma grande alavanca que me sobressaía da parede, mas sua mãe não estava em seu escritório. foi-se à reunião de redação. Carla percorreu o corredor. Todas as portas estavam abertas, e a maioria das salas permaneciam vazias salvo por umas quantas mulheres que deviam ser datilógrafas e secretárias. Ao fundo do piso, ao outro lado de uma esquina, havia uma porta fechada com um rótulo que dizia SALA DE REUNIÕES. Carla ouvia vozes masculinas discutindo. Bateu na porta mas não houve resposta. Duvidou um instante, mas girou o pomo e entrou. A sala estava alagada de fumaça de tabaco. Havia umas oito ou dez pessoas sentadas em torno de uma larga mesa. Sua mãe era a única mulher. Todos ficaram em silêncio, ao parecer surpreendidos, quando Carla se aproximou da cabeceira da mesa e deu ao Jochmann o tabaco e a mudança. Aquele silêncio lhe fez pensar que fazia mal ao entrar na sala. —Obrigado —lhe disse Jochmann entretanto. —De nada —disse ela, e por algum motivo fez uma pequena reverência. Os homens riram. —É sua nova ajudante, Jochmann? —perguntou um dos homens. Então Carla se deu conta de que tinha tomado a decisão acertada. Saiu imediatamente da sala e retornou ao despacho de sua mãe. Não se tirou o casaco já que fazia frio. Olhou ao redor. No escritório havia um telefone, uma máquina de escrever e pilhas de papel e papel carvão. Junto ao telefone havia uma fotografia emoldurada da Carla e Erik com seu pai. Tinham-na tomado um par de anos antes, um dia ensolarado na praia, junto ao lago Wannsee, a vinte e cinco quilômetros do centro do Berlim. Walter levava calças curtas. Todos riam. Foi antes de que Erik começasse a dar-se as de homem sério e duro. Na outra fotografia que havia, pendurada da parede, aparecia Maud com o Friedrich Ebert, herói dos socialdemócratas, que tinha sido o primeiro presidente da Alemanha depois da guerra. A foto se tomou uns dez anos atrás. Carla sorriu ao fixar-se no vestido folgado e de cintura baixa e o corte de cabelo masculino de seu mãe: ambos deviam estar de moda por então. Na estantería havia diversos listines telefônicos, dicionários em distintos idiomas e atlas, mas nada que ler. No escritório havia lápis, vários pares de luvas de etiqueta ainda envoltos em papel de seda, um pacote de compressas, e uma caderneta com nomes e números de telefone. Carla trocou a data do calendário e o pôs ao dia, segunda-feira 27 de fevereiro de 1933. Logo colocou uma folha de papel na máquina de escrever. Teclou seu nome completo, Heike Carla von Ulrich. Quando tinha cinco anos anunciou a todo mundo que não gostava do nome do Heike e que queria que todos utilizassem seu segundo nome, e para sua grande surpresa, a família fez conta. Cada tecla da máquina de escrever fazia que uma barra metálica se elevasse, golpeasse uma cinta colorida e imprimisse uma letra. Quando apertou duas teclas sem querer, estas ficaram entupidas. Tentou as separar, mas não pôde. Apertou outra tecla mas não serve de nada: agora já lhe tinham entupido três. Lançou um grunhido: colocou-se em um problema. Um ruído da rua a distraiu. aproximou-se da janela. Uma dúzia de camisas pardas partiam pelo centro da rua, gritando palavras de ordem: Morte aos judeus! Judeus, ao inferno!. Carla não entendia por que odiavam daquele modo aos judeus, que pareciam pessoas iguais a outros, salvo por sua religião. sobressaltou-se ao ver o sargento Schwab à frente dos camisas pardas. Sentiu pena pelo homem quando o despediram porque sabia que lhe custaria encontrar trabalho. Na Alemanha havia milhões de homens sem emprego: seu pai dizia que era uma Depressão. Mas sua mãe replicou: Como podemos ter a um homem que rouba em nossa casa?. Os camisas pardas ficaram a cantar outra ordem. Destrocem os periódicos judeus!, disseram ao uníssono. Um deles lançou algo, uma verdura podre contra a porta de um periódico nacional. Então, voltaram-se para o edifício onde se encontrava Carla, que se horrorizou. A moça se apartou um pouco e apareceu a cabeça pelo bordo do marco da janela, com a esperança de que não a vissem. detiveram-se fora, sem deixar de entoar cânticos. Um deles atirou uma pedra. Impactou na janela da Carla e, embora não a rompeu, a garota lançou um grito de medo. Ao cabo de um instante entrou uma das datilógrafas, uma moça que levava posta uma boina vermelha. —O que aconteceu? —perguntou, e logo olhou pela janela—. OH, demônios. Os camisas pardas entraram no edifício e Carla ouviu pisadas de botas nas escadas. Estava assustada, o que foram fazer? O sargento Schwab entrou no despacho de sua mãe. O homem vacilou ao as ver, mas em seguida se armou de valor. Agarrou a máquina de escrever e a atirou pela janela, atravessando o cristal, que ficou feito pedacinhos. Carla e a datilógrafa gritaram. Vários camisas pardas mais passaram frente à porta, gritando palavras de ordem. Schwab agarrou à datilógrafa do braço. —Agora, carinho, nos diga onde está a caixa forte da redação —lhe ordenou. —No arquivo! —disse a garota, aterrorizada. —Insígnia me a —¡Sí, lo que diga! —Sim, o que diga! Schwab a tirou do despacho do Maud. Carla ficou a chorar, mas em seguida parou. Por um instante lhe passou pela cabeça a idéia de esconder-se sob o escritório, mas não lhe convenceu. Não queria que vissem quão assustada estava. Havia algo em seu interior que a impulsionava a desafiar a aqueles homens. Mas o que podia fazer? Decidiu avisar a sua mãe. Saiu ao corredor e olhou a um lado e a outro. Os camisas pardas entravam e saíam dos diversos despachos, mas ainda não tinham chegado ao final. Carla não sabia se a gente que se encontrava na sala de reuniões podia ouvir o alvoroço. Percorreu o corredor tão rápido como pôde, mas um grito a fez deter-se. Olhou em o interior de uma sala e viu que Schwab sacudia à datilógrafa da boina vermelha. —Onde está a chave? —perguntava-lhe. —Não sei, juro-lhe que lhe estou dizendo a verdade! —gritou a datilógrafa. Carla estava indignada. Schwab não tinha nenhum direito a tratar à mulher daquele modo. —Deixa-a em paz, Schwab! Não é mais que um ladrão! —gritou-lhe Carla. Schwab lhe lançou um olhar de ódio, e de repente o temor da pequena se multiplicou por dez. Então o homem olhou a alguém que apareceu detrás dela. —Tira a maldita cria daqui —lhe disse Schwab. Alguém agarrou a Carla por detrás. —É um pequeno feijão? —perguntou uma voz masculina—. Tem toda a pinta, com esse cabelo negro. Aquele comentário a aterrou. —Não sou judia! —gritou. O camisa parda a arrastou pelo corredor e a meteu no despacho de sua mãe. Carla caiu ao chão. —Fique aqui —lhe ordenou o homem, e se foi. Carla ficou em pé. Não estava ferida. O corredor estava abarrotado de camisas pardas, e já não podia chegar até sua mãe. Mas tinha que pedir ajuda. Olhou através da janela. Na rua começava a congregar uma pequena multidão. Havia dois policiais entre a gente, conversando. —Socorro! Socorro, polícia! —gritou-lhes Carla. Os homens a viram e riram. Aquilo a enfureceu e a ira lhe fez perder o medo. Olhou de novo fora do escritório e reparou no alarme antiincendios que havia na parede. aproximou-se e agarrou a alavanca. Vacilou um instante. Em teoria não podia ativar o alarme se não havia um incêndio, e um pôster que havia na parede advertia das graves conseqüências se não se fazia caso da norma. Apesar de tudo, atirou da alavanca. Durante uns instantes não aconteceu nada. Possivelmente o mecanismo não funcionava. Então se ouviu o som forte e estridente de uma sereia, que subia e baixava, que alagou o edifício. De forma quase imediata, as pessoas que se encontravam na sala de reuniões saíram em tromba ao corredor. Jochmann foi o primeiro. —Que demônios está acontecendo? —perguntou, feito uma fúria, dando vozes para que o ouvissem por cima do estrondo do alarme. —Esta revista desprezível, feijão e comunista insultou a nossa líder, e vamos fechar a —disse um dos camisas pardas. —Saiam de minha redação! O camisa parda não lhe fez caso e entrou em uma sala. Ao cabo de um instante se ouviu um grito de mulher e um estrondo, como se alguém tivesse derrubado um escritório. Jochmann se voltou por volta de um de seus trabalhadores. —Schneider, chama à polícia imediatamente! Carla sabia que não ia servir de nada. A polícia já estava aí, e se tinha ficado de braços cruzados. Sua mãe se abriu passo entre a multidão e percorreu o corredor. —Está bem? —perguntou-lhe e a abraçou com força. Carla não queria que a consolassem como se fora uma menina. Apartou a sua mãe. —Estou bem —lhe disse. Sua mãe olhou ao redor. —Minha máquina de escrever! —Atiraram-na pela janela. —deu-se conta de que já não ia se meter em nenhum problema por ter entupido as teclas. —Temos que sair daqui —disse Maud. Agarrou a foto do escritório, agarrou a Carla da mão e saíram precipitadamente do despacho. Ninguém tentou as deter enquanto desciam pelas escadas. diante delas havia um homem jovem e fornido que podia ser um jornalista; tinha agarrado a um camisa parda da cabeça e o estava tirando rastros do edifício. Carla e sua mãe os seguiram até a rua. Outro camisa parda ia atrás delas. O jornalista se aproximou dos policiais sem soltar à camisa parda. —Detenham este homem —disse—. O encontrei roubando na redação. Encontrarão um frasco de café em um de seus bolsos. —Solte-o, por favor —disse o major dos dois policiais. O jornalista obedeceu a contra gosto. O segundo camisa parda se situou junto a seu companheiro. —Como se chama, senhor? —perguntou-lhe o policial ao jornalista. —Sou Rudolf Schmidt, correspondente parlamentario do Der Demokrat. —Rudolf Schmidt, fica detido acusado de agressão às forças da ordem. —Não diga estupidezes. pilhei a este homem roubando! O policial lhe fez um gesto com a cabeça aos camisas pardas. —Levem a delegacia de polícia. Agarraram ao Schmidt dos braços. Parecia que ia opor resistência, mas trocou de opinião. —Todos os detalhes deste incidente aparecerão no seguinte número do Der Demokrat! —disse. —Não haverá nenhum número mais —replicou o policial—. lhes Levem isso —Tenemos que desalojar el edificio —anunció. Chegou um caminhão de bombeiros de que baixaram seis homens. O chefe destes se dirigiu aos policiais de forma brusca. —Temos que desalojar o edifício —anunciou. —Retorna ao parque de bombeiros, não há nenhum incêndio —disse o policial maior—. Solo são as tropas de assalto, que estão fechando uma revista comunista. —Isso não me incumbe —replicou o bombeiro—. O alarme soou e nossa principal obrigação é desalojar a todo mundo, aos soldados e a outros. Faremo-lo sem sua ajuda. —E se dirigiu ao interior do edifício, acompanhado por seus homens. —OH, não! —ouviu-lhe Carla dizer a sua mãe. A garota se voltou e viu que Maud estava olhando sua máquina de escrever, que estava no chão, onde tinha cansado. A coberta metálica se desprendeu e tinha deixado ao descoberto o mecanismo de teclas e alavancas. O teclado estava deformado, um extremo do carro se soltou e o timbre que soava ao chegar ao final da linha jazia tristemente no chão. A máquina de escrever não era um objeto valioso, mas parecia que sua mãe estava a ponto de romper a chorar. Os camisas pardas e os trabalhadores da revista saíram do edifício, acompanhados pelos bombeiros. O sargento Schwab opunha resistência. —Não há nenhum incêndio! —gritou. Mas os bombeiros o empurraram para que avançasse. Jochmann também saiu e se aproximou até elas. —Não tiveram muito tempo para causar danos, os bombeiros o impediram. Seja quem é a pessoa que ativou o alarme, tem-nos feito um grande favor! —disse-lhes. A Carla tinha preocupado que a brigaram por fazer soar o alarme, mas agora se dava conta de que tinha feito o adequado. Agarrou a sua mãe da mão, que pareceu sobressaltar um instante. secou-se as lágrimas dos olhos com a manga, um gesto pouco habitual nela que demonstrava quão alterada estava: se o tivesse feito Carla, haveriam-lhe dito que utilizasse o lenço. —O que fazemos agora? —Sua mãe nunca dizia isso, sempre sabia o que fazer. Carla se fixou em duas pessoas que havia perto delas. Olhou-as. Alguém era uma mulher da mesma idade que sua mãe, muito bonita, com certo ar de autoridade. Conhecia-a, mas não sabia do que. A seu lado havia um homem o bastante jovem para ser seu filho. Era um menino magro e não muito alto, mas parecia uma estrela de cinema. Tinha um rosto atrativo que teria resultado irresistível de não ser pelo nariz chato e disforme. Ambos pareciam horrorizados, e o menino estava pálido de ira. A mulher falou primeiro e o fez em inglês. —Olá, Maud —disse, e a voz resultou vagamente familiar a Carla—. Não reconhece? —prosseguiu—. Sou Eth Leckwith, e este é Lloyd. II Lloyd Williams encontrou um clube de boxe no Berlim onde podia treinar durante uma hora por uns quantos peniques. O local se achava em um bairro de classe operária chamado Wedding, ao norte do centro da cidade. exercitou-se com as maças índias e o balão medicinal, saltou à curva, praticou com o saco de areia e logo ficou o casco e fez cinco assaltos no ring. O treinador do clube lhe encontrou um sparring, um alemão de sua mesma idade e peso (Lloyd era um peso welter). O menino alemão tinha um direto muito rápido que aparecia de um nada e golpeou ao Lloyd em várias ocasiões, até que Lloyd conectou um gancho de esquerdas e o enviou
à lona. Lloyd se tinha criado em um favela do East End londrino. Quando tinha doze anos se converteu na vítima dos valentões da escola. —O mesmo me aconteceu  —lhe disse seu padrasto, Bernie Leckwith—. Como é o mais preparado da escola, agarrou-te mania o shlammer da classe. —Seu pai era judeu e sua avó só falava yídish. Bernie tinha levado ao Lloyd ao clube de boxe do Aldgate. Ethel se havia oposto, mas Bernie decidiu não ter em conta sua opinião, algo que não acontecia freqüentemente. Lloyd tinha aprendido a mover-se com rapidez e a golpear com força, pelo que o valentão deixou de intimidá-lo. Entretanto, ele acabou com o nariz rota que lhe conferia um aspecto mais tosco. E descobriu que tinha um talento. Possuía uns reflexos muito rápidos e uma veia combativa, e tinha ganho vários prêmios no ring. Seu treinador levou-se uma decepção quando lhe disse que queria ir-se estudar a Cambridge em lugar de seguir a carreira de púgil profissional. deu-se uma ducha, ficou o traje, foi a um bar de operários, pediu uma cerveja de barril, e se sentou para lhe escrever a sua meio-irmã Millie e lhe contar o incidente com os camisas pardas. Millie estava ciumenta dele pela viagem que estava fazendo com sua mãe, e Lloyd lhe tinha prometido que lhe enviaria boletins informativos com freqüência. Ainda estava impressionado pela briga da manhã. Para ele, a política formava parte de sua vida cotidiana: sua mãe tinha sido membro do Parlamento, seu pai era vereador em Londres e ele era o presidente da Liga Trabalhista Juvenil de Londres. Entretanto, até então todo se submeteu a debate e votação. Nunca tinha visto um escritório assaltado por valentões uniformizados enquanto a polícia observava o que acontecia com os braços cruzados. Aquilo era política a punho nu, o que lhe surpreendeu. Poderia chegar a acontecer isto em Londres, Millie?, escreveu. Seu primeiro instinto lhe fez pensar que não era assim, mas Hitler tinha admiradores entre os industriais e os magnatas da imprensa britânicos. Tão solo uns meses antes o membro do Parlamento sir Oswald Mosley tinha criado a União Britânica de Fascistas. Da mesma forma que os nazistas, gostavam de pavonear-se em público com uniformize de estilo militar. O que podia ser o seguinte? Acabou a carta, dobrou-a e a seguir tomou o trem para retornar ao centro da cidade. Sua mãe e ele tinham ficado com o Walter e Maud von Ulrich para jantar. Lloyd tinha ouvido falar do Maud durante toda sua vida. Sua mãe e ela formavam um casal de amigas algo inverossímil: durante seus primeiros anos de vida trabalhista Ethel tinha trabalhado como criada em uma casa magnífica que era propriedade da família do Maud. Mais tarde, ambas se tinham convertido em sufragistas e tinham feito campanha juntas para obter o direito a voto das mulheres. Durante a guerra tinham escrito em um periódico feminista, The Soldier’s Wife. Logo discutiram por questões de estratégia política e se distanciaram. Lloyd recordava à perfeição a viagem da família Von Ulrich a Londres em 1925. Por então ele tinha dez anos, o bastante major para sentir vergonha por não falar alemão enquanto que Erik e Carla, de cinco e três anos, eram bilíngües. Foi então quando Ethel e Maud resolveram suas diferenças. Chegou ao restaurante Bistro Robert. O interior estava decorado ao estilo art déco com cadeiras e mesas implacavelmente retangulares, pés de abajur de ferro muito elaborados com telas de cristal de cores; mas gostava dos guardanapos brancos e engomados que estavam firmes junto aos pratos. Os outros três comensais já tinham chegado. Enquanto se aproximava da mesa se deu conta de que as mulheres estavam deslumbrantes: ambas foram bem vestidas, eram elegantes e mostravam uma grande segurança e desenvoltura. Recebiam os olhares de admiração de outros clientes. perguntou-se até que ponto era influência de seu amiga aristocrata o bom gosto de do que fazia ornamento para a moda sua mãe. Quando tiveram pedido, Ethel lhes contou os motivos da viagem. —Perdi meu banco em 1931 —disse—. Espero recuperá-lo nas próximas eleições, mas enquanto isso tenho que ganhar a vida. Por sorte, Maud, ensinou a ser jornalista. —Não te ensinei muito —repôs Maud—. Possuía um talento natural. —Estou escrevendo uma série de artigos sobre os nazistas para o News Chronicle e assinei um contrato para escrever um livro para um editor chamado Victor Gollancz. Decidi trazer para o Lloyd como intérprete já que está estudando francês e alemão. Lloyd se fixou em seu sorriso orgulhoso e sentiu que não a merecia. —Ainda não há posto muito a prova meus dotes de tradutor —disse o menino—. De momento tratamos com gente como vós, que fala um inglês perfeito. Lloyd tinha pedido vitela empanada, um prato que nunca tinha visto na Inglaterra. Encontrou-o delicioso. —Não deveria estar na escola? —perguntou-lhe Walter enquanto comiam. —Minha mãe acreditou que aprenderia mais alemão assim, e meus professores se mostraram de acordo. —por que não deves trabalha comigo no Reichstag uns dias? Temo-me que teria que ser sem salário, mas passaria todo o dia falando alemão. Lloyd estava entusiasmado. —eu adoraria. É uma oportunidade maravilhosa! —Sempre que Ethel possa prescindir de ti, claro —acrescentou Walter. Sua mãe sorriu. —Crie que me poderia emprestar isso de vez em quando, quando o necessitar de verdade? —É obvio. Ethel estirou o braço por cima da mesa e tocou a mão ao Walter. Foi um gesto íntimo, e Lloyd se deu conta de que o vínculo que unia aos três era muito estreito. —É muito amável, Walter —disse Ethel. —Absolutamente. Sou eu quem se beneficiará de contar com um ajudante jovem e brilhante que entende a política. —Acredito que sou eu a que não entende a política —disse Ethel—. Que demônios está acontecendo aqui na Alemanha? —Em meados da década dos vinte estávamos mais ou menos bem —começou a explicar Maud—. Tínhamos um governo democrático e a economia crescia. Entretanto, tudo se foi ao traste com o crash da Wall Street de 1929. E agora estamos sumidos em uma grande depressão. —A voz lhe quebrou por uma emoção que raiava no dor—. Por cada oferta de trabalho se formam caudas de até cem homens. Os Miro à cara e vejo o desespero refletido em seu rosto. Não sabem como vão a alimentar a seus filhos. Logo os nazistas lhes oferecem um pouco de esperança e então se perguntam a si mesmos: O que posso perder?. Walter parecia opinar que estava exagerando a situação. —As boas notícias —acrescentou com um tom mais alegre— som que Hitler fracassou em seu intento por convencer à maioria dos alemães. Nas últimas eleições os nazistas só obtiveram um terço dos votos. Entretanto, foram a partida mais votada, mas Hitler se viu obrigado a formar um governo em minoria. —Por isso exigiu que se convoquem outras eleições —atravessou Maud—. Necessita uma maioria absoluta para converter a Alemanha na brutal ditadura que quer. —E o obterá? —perguntou Ethel. —Não —disse Walter. —Sim —disse Maud. —Não acredito que o povo alemão vote jamais a favor de uma ditadura —acrescentou Walter. —Mas não serão umas eleições justas! —exclamou Maud, zangada—. Olhe o que lhe aconteceu hoje a minha revista. Todo aquele que critique aos nazistas corre perigo. Enquanto isso, sua propaganda o alaga tudo. —Dá a sensação de que ninguém planta cara! —interveio Lloyd. arrependia-se de não ter chegado uns minutos antes aos escritórios do Der Demokrat aquela manhã para repartir uns quantos murros mais entre os camisas pardas. deu-se conta de que tinha fechado o punho com força e se obrigou a abrir a mão, apesar de o qual a indignação não se desvaneceu—. por que a gente de esquerdas não assalta as revistas nazistas? Terá que lhes pagar com a mesma moeda! —Não devemos combater a violência com mais violência! —exclamou Maud—. Hitler está procurando uma desculpa para tomar medidas mais drásticas e declarar o estado de exceção, eliminar os direitos civis e colocar aos opositores no cárcere. —Sua voz adquiriu um deixe de súplica—. Por muito difícil que resulte, não podemos lhe dar nenhum pretexto. Acabaram a comida e o restaurante começou a esvaziar-se. Enquanto lhes serviam o café, sentou-se com eles o dono do café, um primo longínquo do Walter, Robert von Ulrich, e o chef, Jörg. Robert tinha sido diplomático na embaixada austríaca em Londres antes da Grande Guerra, enquanto que Walter fazia o próprio em a embaixada alemã, e se tinha apaixonado pelo Maud. Robert se parecia com o Walter, mas vestia com roupa mais recarregada, com um alfinete de ouro na gravata, selos na cadeia do relógio, e o cabelo muito engominado. Jörg era mais jovem, um homem loiro de rasgos delicados e um sorriso alegre. Os dois tinham sido prisioneiros de guerra na Rússia. Agora viviam em um apartamento sobre o restaurante. Recordaram as bodas do Walter e Maud, que se celebrou em segredo em vésperas da guerra. Não teve convidados, mas Robert e Ethel exerceram de padrinhos. —Bebemos champanha no hotel —disse Ethel—, e logo anunciei com muito tato que Robert e eu íamos, e Walter… —Reprimiu um ataque de risada—. Walter disse: OH, acreditava que íamos jantar juntos!. Maud riu. —Não imagina o que me alegrei para ouvir isso! Lloyd olhou sua taça de café, envergonhado. Tinha dezoito anos e era virgem, pelo que as brincadeiras sobre a lua de mel o incomodavam. —tiveste notícias do Fitz ultimamente? —perguntou- Ethel ao Maud com mais seriedade. Lloyd sabia que as bodas secreta tinha provocado um enorme distanciamento entre o Maud e seu irmão, o conde Fitzherbert. Fitz a tinha repudiado porque não havia ido a ele, como cabeça de família que era, para lhe pedir permissão para casar-se. Maud negou com a cabeça em um gesto triste. —Escrevi-lhe essa vez que fui a Londres, mas nem tão sequer quis lombriga. Feri-o em seu orgulho ao me casar com o Walter sem dizer-lhe Temo-me que meu irmão é um homem dos que não perdoam. Ethel pagou a conta. Na Alemanha todo resultava muito barato se a gente tinha moeda estrangeira. Estavam a ponto de levantar-se e partir quando um desconhecido se aproximou à mesa e, sem que ninguém o convidasse, tomou assento. Era um homem fornido com um bigotito no centro de seu rosto ovalado. Levava um uniforme dos camisas pardas. —O que posso fazer por você? —perguntou Robert fríamente. —Sou o delegado criminoso Thomas Macke. —Agarrou por braço a um garçom que passava a seu lado e lhe disse—: me Traga um café. O garçom lançou um olhar inquisitivo ao Robert, que assentiu. —Trabalho no departamento político da polícia prusiana —prosseguiu Macke—. Estou a cargo da seção de inteligência do Berlim. Lloyd foi traduzindo as palavras do Macke a sua mãe em voz baixa. —Entretanto —disse Macke—, quero falar com o proprietário do restaurante sobre um assunto pessoal. —Onde trabalhava faz um mês? —perguntou Robert. Aquela pergunta inesperada surpreendeu ao Macke, que respondeu imediatamente. —Na delegacia de polícia de polícia do Kreuzberg. —E no que consistia seu trabalho? —Estava a cargo do arquivo. por que o pergunta? Robert assentiu como se tivesse esperado essa resposta precisamente. —De modo que passou que arquivista a chefe da seção de inteligência do Berlim. Felicito-o por sua rápida ascensão. —voltou-se para o Ethel—. Quando Hitler se converteu em chanceler no fim de janeiro, seu secuaz, Hermann Göring, foi renomado ministro do Interior da Prusia, ao mando da força policial maior do mundo. Após, Göring se dedicou a se despedir de policiais a cestas e a substitui-los por nazistas. —voltou-se para o Macke e lhe disse em tom sarcástico—: Não obstante, no caso de nosso convidado surpresa, estou convencido de que a ascensão se deveu unicamente a seus méritos. Macke ficou vermelho, mas conseguiu manter a calma. —Tal e como lhe hei dito, eu gostaria de falar com o proprietário sobre um assunto pessoal. —Rogaria-lhe que viesse para ver-me pela manhã. Parece-lhe bem às dez? Macke não fez caso da sugestão. —Meu irmão também está no negócio dos restaurantes —prosseguiu. —Ah! Possivelmente o conheça. apelida-se Macke? Que tipo de estabelecimento tem? —Um pequeno local para operários no Friedrichshain. —Ah, então é pouco provável que o tenha conhecido. Lloyd não acreditava que ao Robert conviesse mostrar-se tão sarcástico. Macke era um mal educado e não era digno de nenhuma consideração por sua parte, mas se queria podia lhe causar muitos problemas. —A meu irmão gostaria de comprar seu restaurante —disse Macke. —Seu irmão quer ascender, como tem feito você. —Estamos dispostos a lhe oferecer vinte mil Marcos, pagáveis em dois anos. Jörg estalou em gargalhadas. —me permita que lhe explique uma coisa —disse Robert—. Sou um conde austríaco. Faz vinte anos era o proprietário de um castelo e um grande imóvel na Hungria, onde viviam minha mãe e minha irmã. Durante a guerra perdi a minha família, o castelo, as terras e inclusive meu país, que ficou… miniaturizado. —Seu tom sarcástico havia desaparecido e agora falava com uma voz áspera, prenhe de emoção—. Quando cheguei ao Berlim quão único tinha era a direção do Walter von Ulrich, minha primo longínquo. Entretanto, consegui abrir este restaurante. —Tragou saliva—. É quão único tenho. —Fez uma pausa e bebeu café. Outros permaneceram em silêncio. Robert recuperou a compostura e o tom de voz autoritário—. Embora me oferecesse uma cifra generosa, algo que não tem feito, rechaçaria-a porque estaria vendendo toda minha vida. Não desejo ser grosseiro com você, apesar de que se comportou de um modo desagradável, mas meu restaurante não está em venda a nenhum preço. —ficou em pé e lhe tendeu a mão para estreitar-lhe boa noite, delegado. Macke lhe estreitou a mão de forma automática, mas pareceu que se arrependia imediatamente. levantou-se, claramente zangado. Seu rosto ovalado se tingiu de um tom púrpura. —Já falaremos mais adiante —disse, e partiu. —Miúdo toco —espetou Jörg. —Vê o que temos que agüentar? —perguntou- Walter ao Ethel—. Solo pelo fato de que leva esse uniforme, pode fazer o que lhe venha em vontade! O que preocupava ao Lloyd era a confiança que tinha demonstrado Macke em si mesmo. Parecia seguro de poder comprar o restaurante ao preço que havia dito e ante a negativa do Robert tinha reagido como se solo fora um contratempo passageiro. Tão capitalistas eram já os nazistas? Aquilo era o tipo de coisas que Oswald Mosley e seus Fascistas Britânicos queriam, um país no qual o império da lei fora substituído pelos valentões e as surras. Como podia ser tão estúpida a gente? ficaram os casacos e os chapéus e se despediram do Robert e Jörg. Assim que saíram à rua, Lloyd cheirou a fumaça, mas não de tabaco, mas sim de outra coisa. Os quatro subiram ao carro do Walter, um BMW Dixi 3/15, que Lloyd sabia que era um Austin Seven de fabricação alemã. Enquanto atravessavam o parque Tiergarten, adiantaram-nos dois caminhões de bombeiros, com os sinos repicando. —Pergunto-me onde será o incêndio —disse Walter. Ao cabo de um instante viram o resplendor das chamas através das árvores. —Parece que é perto do Reichstag —apontou Maud. Ao Walter trocou o tom de voz. —É melhor que joguemos uma olhada —disse com preocupação, e girou o carro de forma brusca. O aroma da fumaça era cada vez mais forte. por cima das taças das árvores Lloyd via as chamas que se elevavam para o céu. —É um grande incêndio —disse. Saíram do parque pela Königsplatz, a ampla praça que havia entre o edifício do Reichstag e da Ópera Kroll, situado em frente. O Reichstag estava em chamas. Umas luzes vermelhas e amarelas dançavam detrás das clássicas fileiras de janelas. As chamas e a fumaça saíam pela cúpula central. —OH, não! —exclamou Walter. Ao Lloyd pareceu um lamento carregado de pena—. OH, pelo amor de Deus, não. Deteve o carro e saíram todos. —Isto é uma catástrofe —acrescentou Walter. —Um edifício tão antigo e bonito —disse Ethel. —Não me importa o edifício —replicou Walter, que surpreendeu a todo mundo—. O que está ardendo é nossa democracia. Um grupo de gente observava desde uns cinqüenta metros. Frente ao edifício havia vários caminhões de bombeiros tentando sufocar o incêndio com as mangueiras, que arrojavam os jorros de água através das janelas rotas. Havia um punhado de policiais que não faziam nada. Walter se dirigiu a um deles. —Sou um deputado do Reichstag. Quando começou o incêndio? —Faz uma hora —disse o policial—. apanhamos a um dos culpados, um homem que solo levava calças! utilizou sua própria roupa para provocar o incêndio. —Deveriam pôr um cordão policial —disse Walter com autoridade— e manter às pessoas a uma distância segura. —Sim, senhor —disse o policial, e se foi. Lloyd se afastou dos outros e se aproximou do edifício. Os bombeiros estavam controlando o incêndio: havia menos chama e mais fumaça. Passou junto aos caminhões e se aproximou de uma janela. A situação não parecia muito perigosa e, de todos os modos, sua curiosidade se impôs a seu sentido da autoprotección, como lhe acontecia habitualmente. Quando olhou através da janela viu que o incêndio tinha causado danos importantes: várias paredes e tetos se derrubaram e convertido em escombros. além de bombeiros viu civis vestidos com casacos, provavelmente funcionários do Reichstag, que se abriam passo entre os restos para avaliar os danos. Lloyd dirigiu-se à entrada e subiu os degraus. Ouviu o rugido de duas Mercedes negros, que chegaram no momento em que a polícia estava montando o cordão policial. Lloyd o observou tudo com interesse. Do segundo carro baixou um homem com uma gabardina clara e um chapéu de feltro negro. Tinha um bigode estreito sob o nariz. Lloyd se deu conta de que tinha diante ao novo chanceler, Adolf Hitler. detrás do Hitler havia um homem mais alto vestido com o uniforme negro das Schutzstaffel, as SS, seu guarda-costas pessoal. Joseph Goebbels, o chefe de Propaganda que não dissimulava seu ódio para os judeus, tentava segui-los apesar de sua claudicação. Lloyd os reconheceu pelas fotografias dos periódicos. Era tal a fascinação que sentiu ao ver os de perto, que se esqueceu de horrorizar-se. Hitler subiu os degraus de dois em dois, avançando diretamente para o Lloyd, que, de forma impulsiva, abriu-lhe a grande porta ao chanceler. Hitler o saudou com um gesto da cabeça e passou seguido de seu séquito. Lloyd os acompanhou. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Ao parecer, os acompanhantes do Hitler deram por sentado que era um funcionário do Reichstag. Um aroma insuportável de cinzas molhadas o impregnava tudo. Hitler e seu séquito pisaram em vigas queimadas, mangueiras e atoleiros enlameados. No vestíbulo se encontrava Hermann Göring, que levava um casaco de cabelo de camelo que cobria sua enorme barriga, e a parte dianteira do chapéu dobrada para cima, ao estilo Potsdam. Aquele era o homem que estava enchendo o corpo de polícia de nazistas, pensou Lloyd, que recordou a conversação do restaurante. —Isto é o início da sublevação comunista! —gritou Göring assim que viu o Hitler—. Agora começarão os ataques! Não podemos perder nem um minuto mais! Lloyd teve uma estranha sensação, como se formasse parte do público de uma representação teatral, e esses homens poderosos fossem interpretados por atores. Hitler foi inclusive mais histriônico que Göring. —A partir de agora não teremos piedade! —gritou. Parecia que se dirigia a uma multidão congregada em um estádio—. Todo aquele que se interponha em nosso caminho achará a morte. —Começou a tremer enquanto sua ira ia em aumento—. Todo aquele comunista que encontremos será fuzilado. E os deputados comunistas do Reichstag serão enforcados esta mesma noite. —Parecia que estava a ponto de estalar. Entretanto, todo aquilo tinha um ar artificial. O ódio do Hitler parecia real, mas o arrebatamento de ira era como uma espécie de atuação levada a cabo para benefício dos que estavam a seu redor, sua própria gente e outros. Era um ator embargado por uma emoção verdadeira, mas que a exagerava para seu público. E Lloyd pôde comprovar que sortia efeito: todo mundo observava ao Hitler com fascinação. —Meu Führer, este é meu chefe da polícia política, Rudolf Diels —assinalou a um homem magro e com o cabelo escuro que estava a seu lado—. Já deteve a um de os responsáveis. Diels não se deixou contagiar pela histeria. —Marinus vão der Lubbe, um operário da construção holandês —disse com grande aprumo. —E comunista! —acrescentou Göring com tom triunfal. —Expulso da Partida Comunista Holandês por pirómano —disse Diels. —Sabia! —exclamou Hitler. Lloyd entendeu que o Führer estava predisposto a culpar aos comunistas sem lhe importar os fatos. —Devo dizer —prosseguiu Diels de forma respeitosa— que, do primeiro interrogatório, ficou claro que se trata de um lunático que trabalha sozinho. —Tolices! —gritou Hitler—. Isto se planejou a muito tempo tempo. Mas cometeram um engano! Não entenderam que contamos com o apoio da gente. Göring se voltou para o Diels. —A partir deste momento a polícia se encontra em uma situação de emergência —disse—. Temos várias listas de comunistas: deputados do Reichstag, representantes do governo local e organizadores e ativistas da Partida Comunista. Que os detenham todos esta mesma noite! Têm permissão para utilizar as armas de fogo sem restrições e interrogá-los sem piedade. —Sim, ministro —disse Diels. Lloyd se deu conta de que Walter se preocupou com razão. Aquele era o pretexto que tinham estado esperando os nazistas. Não foram escutar a ninguém que dissesse que o incêndio tinha sido obra de um transtornado que trabalhava sozinho. Necessitavam a existência de uma trama comunista para poder anunciar medidas severas. Göring olhou com asco o barro de seus sapatos. —Minha residência oficial está a solo um minuto daqui, mas por sorte não se viu afetada pelo incêndio, meu Führer —disse—. Talvez seria um bom lugar para prosseguir com o debate e tomar as decisões correspondentes. —Sim, temos muito de que falar. Lloyd sujeitou a porta e saíram todos. Enquanto se afastavam, cruzou o cordão policial e se reuniu com sua mãe e os Von Ulrich. —Lloyd! Onde estava? Tinha-me preocupadísima! —disse Ethel nada mais vê-lo. —entrei no Reichstag. —O que? Como? —Ninguém me impediu isso. Tudo é caos e confusão. Ethel levantou as mãos em um gesto de desespero. —Não tem sentido do perigo —disse ela. —conheci ao Adolf Hitler. —Há dito algo? —perguntou Walter. —Culpa aos comunistas do incêndio. vai haver uma purgação. —Que Deus nos atira —disse Walter. III Ao Thomas Macke ainda doíam as palavras sarcásticas do Robert von Ulrich. Seu irmão quer ascender, como tem feito você, havia dito Von Ulrich. Macke se arrependeu de que não lhe tivesse ocorrido uma resposta como E por que não? Somos tão bons como você, presumido. Agora ansiava vingança. Entretanto, durante uns dias ia estar muito ocupado para levá-la a cabo. O quartel geral da polícia secreta prusiana se encontrava em um edifício grande e elegante, um exemplo de arquitetura clássica, no número 8 do Prinz-Albrecht-Strasse, no bairro governamental. Macke se enchia de orgulho cada vez que atravessava a porta. Eram uns dias de grande agitação. Tão só vinte e quatro horas depois do incêndio do Reichstag tinham detido a quatro mil comunistas, e a cifra aumentava a cada hora que passava. Estavam erradicando uma praga que assolava a Alemanha, e ao Macke parecia que o ar do Berlim era mais puro. Entretanto, os arquivos policiais não estavam atualizados. A gente se transladou de casa, perderam-se e ganho eleições, os anciões tinham morrido e os jovens tinham ocupado seu lugar. Macke estava ao mando de um grupo encarregado de atualizar o arquivo, de encontrar novos nomes e direções. Era uma tarefa que lhe dava bem. Gostava dos registros, os diretórios, os guias de ruas, os recortes de imprensa, qualquer tipo de lista. Não tinham sabido apreciar seu talento na delegacia de polícia do Kreuzberg, onde a principal estratégia dos agentes consistia em dar uma surra aos suspeitos até que revelavam algum nome. Esperava que em seu novo destino soubessem apreciá-lo melhor. Entretanto, tampouco tinha reparos em pegar aos suspeitos. Em seu escritório situado ao fundo do edifício podia ouvir os gritos dos homens e mulheres que eram torturados no porão, mas não lhe incomodava. Eram traidores, elementos subversivos e revolucionários. Tinham arruinado a Alemanha com suas greves, e iriam a mais se o permitiam. Não sentia nenhum tipo de compaixão por eles. Tão solo desejava que Robert von Ulrich fora um deles e que acabasse gemendo de dor e suplicando clemência. Até as oito da noite da quinta-feira 2 de março não teve a oportunidade de investigar ao Robert. Enviou a sua equipe a casa, e levou um maço de listas atualizadas a seu chefe, o inspetor criminoso Kringelein. Logo retornou ao arquivo. Não tinha pressa por ir-se a casa. Vivia sozinho. Sua esposa, uma mulher indisciplinada, tinha fugido com um garçom do restaurante de seu irmão. Quando se foi sozinho o disse que queria ser livre. Não tinham tido filhos. Começou a repassar os arquivos. Já tinha averiguado que Robert von Ulrich se havia afiliado ao Partido Nazista em 1923 e que o tinha deixado ao cabo de dois anos, o qual não significava muito em si. Macke necessitava algo mais. O sistema de arquivo não era tão lógico como lhe teria gostado. Em geral, estava decepcionado com a polícia prusiana. Corria o rumor de que Göring tampouco estava muito impressionado com seu trabalho, e que planejava separar os departamentos de inteligência e políticos de outros e formar com eles um policial secreto novo e mais eficiente. Macke acreditava que era uma boa idéia. Enquanto isso, não conseguiu encontrar ao Robert von Ulrich em nenhum dos arquivos habituais. Possivelmente aquilo não era tão solo um signo de incompetência. Cabia a possibilidade de que fora um homem sem mancha. Posto que era um conde austríaco, as probabilidades de que fora comunista ou judeu eram baixas. Ao parecer, o pior que se podia dizer dele era que sua segundo primo Walter era um socialdemócrata. E aquilo não era um delito… Ao menos ainda. Macke se deu conta então de que deveria ter investigado ao Robert antes de abordá-lo. Mas ao final tinha seguido adiante sem possuir toda a informação necessária. Deveria ter sabido que era um engano. Como conseqüência disso tinha sido objeto de um trato condescendente e sarcástico. havia-se sentido humilhado. Mas já chegaria-lhe o momento de desforrar-se. Começou a revisar uma série de documentos variados guardados em um armário coberto de pó, situado ao fundo da sala. O sobrenome Von Ulrich não aparecia por nenhum lado, mas faltava um documento. Segundo a lista que tinha cravada na parte interior da porta, teria que haver um expediente de 117 páginas com o título Locais de vício. Parecia um estudo dos clubes noturnos do Berlim. Macke supôs por que não se encontrava em seu sítio. Deviam havê-lo utilizado em datas recentes: todos os locais noturnos mais decadentes se fecharam quando Hitler se converteu em chanceler. Macke não vacilou em interromper a seu chefe. Kringelein não era um nazista e, portanto, não se atreveria a repreender a um membro das tropas de assalto. —Estou procurando o expediente dos Locais de vício —disse Macke. Kringelein pareceu zangar-se, mas não se queixou. —Na mesa auxiliar —disse—. você Sirva-se mesmo. Macke agarrou o expediente e retornou a sua sala. O estudo se realizou cinco anos antes. Detalhava os clubes que existiam então e expor que tipo de atividades se levavam a cabo neles: jogo e apostas, atos indecentes, prostituição, venda de drogas, homossexualidade e outras depravações. O expediente mencionava o nome dos proprietários e investidores, sócios do clube e empregados. Macke leu com paciência todas as entradas: talvez Robert von Ulrich era drogado ou cliente de prostitutas. Berlim era uma cidade famosa por seus clubes homossexuais. Macke leu a pesada entrada do Sapato Rosa, onde os homens dançavam com os homens e atuavam cantantes travestidos. Em ocasiões, pensou, seu trabalho era repugnante. Repassou com o dedo a lista de sócios e encontrou ao Robert von Ulrich. Lançou um suspiro de satisfação. Seguiu lendo a lista e viu o nome do Jörg Schleicher. —Bom, bom —disse—. A ver se for tão sarcástico agora. IV Quando Lloyd voltou a coincidir com o Walter e Maud, encontrou-os mais zangados e mais assustados. Foi na sábado seguinte, em 4 de março, o dia antes das eleições. Lloyd e Ethel tinham pensado assistir ao comício da Partida Socialdemócrata organizado por Walter, e foram a casa dos Von Ulrich, que se encontrava no bairro do Mitte, para almoçar antes do comício. Era uma casa do século XIX com estadias espaçosas e grandes ventanales, embora uma boa parte do mobiliário estava desgastado. O almoço foi singelo: chuletas de porco com batatas e repolho, mas acompanhado com um bom vinho. Walter e Maud falavam como se fossem pobres, e não cabia dúvida de que levavam uma vida mais modesta que seus pais, mas mesmo assim não passavam fome. Entretanto, estavam assustados. Hitler tinha convencido ao envelhecido presidente da Alemanha, Paul von Hindenburg, para que aprovasse o Decreto de Incêndios do Reichstag, que concedia autoridade aos nazistas para fazer o que já faziam, dar surras e torturar a seus adversários políticos. —detiveram a mais de vinte mil pessoas desde segunda-feira de noite! —disse Walter, com voz tremente—. Não só comunistas, mas também gente que os nazistas definem como simpatizantes comunistas. —O que inclui a todo aquele que lhes desagrade —acrescentou Maud. —Como vão se celebrar eleições democráticas agora? —Temos que nos esforçar ao máximo —disse Walter—. Se não fazermos campanha a favor delas, os únicos que se beneficiarão serão os nazistas. —Quando deixarão de aceitar isto e começarão a plantar cara? —perguntou Lloyd com impaciência—. Ainda criem que seria errôneo empregar a violência para acabar com a violência? —É obvio —respondeu Maud—. A resistência pacífica é nossa única esperança. —A Partida Socialdemócrata tem uma asa paramilitar, o Reichsbanner, mas é débil. Um pequeno grupo de socialdemócratas propôs dar uma resposta violenta a os nazistas, mas perderam a votação. —Recorda, Lloyd —disse Maud—, que os nazistas têm à polícia e ao exército de sua parte. Walter olhou seu relógio de bolso. —Devemos nos pôr em marcha. —Walter, por que não cancela o comício? —perguntou Maud de repente. Ele a olhou surpreso. —vendemos setecentas entradas. —OH, ao diabo com as entradas —disse Maud—. É você quem me preocupa. —Tranqüila. Os assentos se atribuíram com cuidado, pelo que não deveria haver bagunceiros na sala. Lloyd não acreditava que Walter estivesse tão seguro como pretendia. —Além disso —prosseguiu Walter—, não posso defraudar às pessoas que ainda está disposta a assistir a um comício político e democrático. São a única esperança que fica. —Tem razão —disse Maud, que olhou ao Ethel—. Talvez Lloyd e você deveriam ficar em casa. Por muito que diga Walter, é um ato perigoso, e, a fim de contas, este não é seu país. —O socialismo é internacional —replicou Ethel de forma categórica—. Ao igual que seu marido, agradeço que se preocupe por mim, mas vim para ser testemunha direto da política alemã, e não penso me perder o comício. —Bom, pois os meninos não podem ir —disse Maud. —Eu nem tão sequer quero ir —acrescentou Erik. Carla parecia decepcionada, mas não disse nada. Walter, Maud, Ethel e Lloyd subiram ao pequeno carro do Walter. Lloyd estava nervoso, mas também emocionado. Estava obtendo uma visão da política alemã muito mais completa que qualquer de seus amigos ingleses. E se ia haver briga, não tinha medo. dirigiram-se para o este, cruzaram Alexanderplatz, e entraram em um bairro de casas pobres e lojas pequenas, algumas das quais tinham letreiros escritos em hebreu. A Partida Socialdemócrata era de classe operária, mas ao igual que a Partida Trabalhista britânica, contava com uns quantos partidários enriquecidos. Walter von Ulrich pertencia a essa pequena minoria de classe alta. O carro se deteve frente a uma marquise que rezava: TEATRO POPULAR. No exterior já se formou uma cauda. Walter se dirigiu para a porta, saudando às pessoas que esperava fora, que o aclamaram. Walter lhe estreitou a mão com solenidade a um menino de uns dezoito anos. —É Wilhelm Frunze, secretário da seção local de nossa partida. —Frunze era um desses meninos que pareciam ter nascido com aspecto de homens de média idade. Levava um blazer com os bolsos abotoados que tinha estado de moda dez anos antes. Frunze mostrou ao Walter como se podiam trancar as portas de dentro. —Quando os assistentes se sentaram, fecharemos as portas para que não possam entrar bagunceiros —disse. —Muito bem —conveio Walter—. Boa ideia. Frunze os acompanhou ao auditório. Walter subiu ao cenário e saudou outros candidatos que já estavam ali. O público começou a entrar e a tomar assento. Frunze ensinou ao Maud, Ethel e Lloyd as cadeiras que lhes tinha reservado em primeira fila. Lhes aproximaram dois meninos. O mais jovem, que devia ter quatorze anos mas era mais alto que Lloyd, saudou o Maud com bons maneiras e realizou uma pequena reverência. Maud se voltou para o Ethel. —Este é Werner Franck, o filho de meu amiga Monika. —A seguir perguntou ao Werner—: Sabe seu pai que está aqui? —Sim, há-me dito que devia averiguar no que consistia a socialdemocracia por mim mesmo. —É um homem com amplitude de miras para ser nazista. Ao Lloyd pareceu que Maud adotava uma atitude bastante dura com um menino de quatorze anos, mas Werner demonstrou estar a sua altura. —Em realidade meu pai não acredita no nazismo, mas opina que Hitler é uma boa opção para a economia alemã. —Como pode ser uma boa opção para a economia colocar a milhares de pessoas no cárcere? Além de uma injustiça, não podem trabalhar! —exclamou Wilhelm Frunze, indignado. —Estou de acordo contigo —disse Werner—. E, entretanto, medida-las do Hitler contam com o apoio da gente. —A gente acredita que a está salvando de uma revolução bolchevique —disse Frunze—. A imprensa nazista os convenceu que os comunistas estavam a ponto de lançar uma campanha de assassinatos, incêndios e envenenamentos em todos os povos e cidades. —Entretanto são os camisas pardas, e não os comunistas, os que arrastam às pessoas aos porões e lhes rompem os ossos com seus porretes —disse o menino que acompanhava ao Werner, que era mais baixo mas maior. Falava um alemão fluido com um leve acento que Lloyd não podia se localizar. —me desculpem, esqueci-me que lhes apresentar ao Vladímir Peshkov. Assiste à Academia Juvenil Masculina do Berlim, minha escola, e todos o chamamos Volodia. Lloyd se levantou para lhe estreitar a mão. Volodia devia ter a mesma idade que Lloyd, era um jovem atrativo com uns olhos azuis de olhar sincero. —Conheço a Volodia Peshkov. Eu também estudo na Academia Juvenil Masculina do Berlim —disse Frunze. —Wilhelm Frunze é o gênio da escola, que obtém as notas mais altas em física, química e matemática —disse Volodia. —É certo —admitiu Werner. Maud olhou fixamente a Volodia. —Peshkov? Seu pai se chama Grigori? —perguntou-lhe. —Sim, frau Von Ulrich. É agregado militar na embaixada soviética. De modo que Volodia era russo. Falava alemão com grande fluidez, pensou Lloyd com certa inveja. Obrigado, sem dúvida, ao feito de viver no Berlim. —Conheço muito bem a seus pais —disse Maud a Volodia. Conhecia os diplomáticos do Berlim, tinha deduzido Lloyd. Formava parte de seu trabalho. Frunze olhou seu relógio. —chegou a hora de começar —disse. Subiu ao cenário e pediu ordem. O teatro ficou em silêncio. Frunze anunciou que os candidatos pronunciariam discursos e logo aceitariam perguntas dos assistentes. Solo se tinham vendido entradas em filiados da Partida Socialdemócrata, acrescentou, e tinham fechado as portas, de modo que todo mundo podia falar com liberdade, sabendo que estavam entre amigos. Era como ser um membro de uma sociedade secreta, pensou Lloyd. Aquilo não era o que ele chamava democracia. Walter foi o primeiro em tomar a palavra. Lloyd em seguida se deu conta de que não era um demagogo. Não se andou com florituras retóricas, mas adulou a seu público lhes dizendo que eram homens e mulheres inteligentes e bem informados que entendiam a complexidade das questões políticas. Tão solo levava uns poucos minutos falando quando um camisa parda subiu ao cenário. Lloyd o amaldiçoou. Como tinha entrado? Provinha de entre os bastidores: alguém devia ter aberto a entrada dos artistas. Era uma besta enorme com o cabelo rapado ao estilo militar. dirigiu-se à parte dianteira do cenário. —Isto é uma reunião sediciosa —disse o homem—. Na Alemanha atual não queremos a comunistas nem elementos subversivos. A reunião finalizou. A arrogância e o presunção daquele indivíduo indignaram ao Lloyd, que nesses momentos desejou poder enfrentar-se a esse toco em um ring de boxe. —Sal daqui, valentão! —gritou Wilhelm Frunze, que se tinha posto em pé e se situou frente ao intruso. O homem lhe deu um forte empurrão no peito. Frunze se cambaleou e caiu para trás. A gente ficou em pé, alguns começaram a gritar a modo de protesto e outros a chiar de medo. Apareceram mais camisas pardas pelos bastidores. Lloyd se deu conta com consternação de que aqueles bodes o tinham planejado tudo muito bem. —Fora! —gritou o homem que tinha empurrado ao Frunze. Os outros camisas pardas entoaram o mesmo grito. —Fora! Fora! Fora! —Agora eram uns vinte, mas a cifra ia em aumento. Alguns levavam porretes de polícia ou fortificações improvisados. Lloyd viu um pau de hóquei, uma marreta de madeira e inclusive a pata de uma cadeira. Foram de um lado ao outro do cenário, com um sorriso diabólico nos lábios e blandiendo as armas enquanto vociferavam. Ao Lloyd não cabia a menor duvida de que morriam de vontades de empreendê-la a golpes com a gente. Estava em pé. De forma não premeditada, Werner, Volodia e ele tinham formado um cordão de amparo diante do Ethel e Maud. A metade dos assistentes ao comício tentavam sair do teatro, enquanto que a outra metade se dedicava a gritar e agitar o punho aos intrusos. Os que queriam fugir empurravam a outros e estalaram pequenas refregas. Muitas das mulheres choravam. No cenário, Walter se agarrou ao suporte de livro. —Que todo mundo mantenha a calma, por favor! —gritou—. Este alvoroço não nos vai beneficiar em nada! —A metade da gente não o ouvia e a outra metade não o fez conta. Os camisas pardas começaram a descer do cenário e a arremeter contra os assistentes. Lloyd agarrou a sua mãe do braço, e Werner fez o próprio com o Maud. Se dirigiram para a saída mais próxima formando um grupo, mas todas as portas estavam bloqueadas por grupos de gente em estado de pânico que tentava sair. Os camisas pardas não se alteraram pela situação e seguiram gritando às pessoas que saísse. Os agressores eram homens fornidos, enquanto que entre o público havia mulheres e anciões. Lloyd queria contra-atacar, mas não era boa idéia. Um homem que levava um casco de aço da Grande Guerra investiu ao Lloyd com o ombro, e este perdeu o equilíbrio e se chocou com sua mãe. Resistiu a tentação de voltar-se e encarar-se com o homem. Sua prioridade era proteger a sua mãe. Um menino com o rosto coberto de grãos que levava um porrete lhe pôs uma mão nas costas ao Werner e lhe deu um forte empurrão. —te aparte, te aparte! —gritou-lhe. Werner se voltou rapidamente e deu um passo para ele. —Não me toque, porco fascista —lhe disse. de repente o camisa parda se deteve e pareceu assustar-se, como se não tivesse previsto que alguém fora a lhe plantar cara. Werner se voltou de novo, concentrado, ao igual que Lloyd, em garantir a segurança de ambas as mulheres. Entretanto, aquele homem tão grande tinha ouvido a rixa. —A quem chamas porco? —gritou. Deu- um murro ao Werner que impactou na nuca. Não tinha muito boa pontaria e foi um golpe oblíquo, mas mesmo assim Werner soltou um grito e se cambaleou para diante. Volodia se interpôs entre ambos e golpeou ao homem na cara duas vezes. Lloyd admirou o rápido uno-dos da Volodia, mas voltou a concentrar-se em sua missão. Ao cabo de uns segundos, os quatro alcançaram a porta. Lloyd e Werner conseguiram ajudar às mulheres para que chegassem ao vestíbulo, que estava vazio e onde a situação era mais tranqüila já que os camisas pardas não tinham entrado até aí. Depois de assegurar-se de que as mulheres estavam a salvo, Lloyd e Werner olharam para o auditório. Volodia se enfrentava ao gigante com valentia, mas tinha problemas. Não parava de lhe dar murros na cara e o corpo, mas seus golpes logo que sortiam efeito e o homem se limitava a negar com a cabeça, como se o estivesse aporrinhando um inseto. O camisa parda era torpe e lento, mas conseguiu golpear a Volodia no peito e logo na cabeça, e o jovem se cambaleou. O gigante jogou o punho para trás para rematar a Volodia. Lloyd tinha medo de que o matasse. Então Walter deu um salto do cenário e caiu sobre as costas do homem. Ao Lloyd deu vontade de lhe aclamar. Ambos caíram ao chão, enredados em um matagal de braços e pernas, e Volodia se salvou, ao menos de momento. O jovem com acne que tinha empurrado ao Werner se dedicava agora a perseguir às pessoas que tentava sair, golpeando-a na nuca e a cabeça com seu porrete. —Covarde asqueroso! —gritou Lloyd, que deu um passo à frente, mas Werner lhe adiantou. Apartou ao Lloyd de um empurrão e agarrou o porrete para tentar tirar-lhe al ojo izquierdo de aquel. ao menino. O homem maior do casco de aço se uniu à briga e pegou ao Werner com a manga de um pico. Lloyd se aproximou deles e lhe lançou um muito direito que impactou junto ao olho esquerdo daquele. Entretanto, o homem era um veterano de guerra e não foram conseguir dissuadi-lo tão facilmente. voltou-se bruscamente e tentou golpear ao Lloyd com seu porrete. Este esquivou-o com soltura e lhe golpeou duas vezes mais. Alcançou-lhe na mesma zona, junto aos olhos, e lhe abriu várias feridas. Entretanto, o casco lhe protegia a cabeça e Lloyd não pôde recorrer ao gancho de esquerda, seu golpe predileto para deixar aos adversários fora de combate. Esquivou de novo a manga do pico e atiçou-lhe na cara ao homem, que retrocedeu com o rosto ensangüentado pelos cortes que tinha ao redor dos olhos. Lloyd olhou a seu redor. Viu que os socialdemócratas tinham começado a contra-atacar e sentiu uma pontada de imenso prazer. Grande parte dos assistentes ao comício tinham conseguido atravessar as portas. No auditório ficavam principalmente homens jovens, que avançavam sem deter-se, saltando por cima das poltronas, para chegar até os camisas pardas; e havia dúzias deles. Algo duro lhe tinha impactado na parte posterior da cabeça. A dor era tão forte que lançou um rugido. deu-se a volta e viu um menino de sua idade com um madeiro nas mãos, elevando-o para golpeá-lo de novo. Lloyd se equilibrou sobre ele e lhe golpeou duas vezes no estômago, primeiro com o punho esquerdo e logo com o direito. O menino ficou sem ar e deixou cair o madeiro. Lloyd lhe lançou um gancho ao queixo e o moço perdeu o conhecimento. Lloyd se esfregou a parte posterior da cabeça. Doía-lhe uma barbaridade mas não lhe tinha feito sangue. Viu que tinha os nódulos em carne viva e que sangravam. agachou-se e agarrou o madeiro que tinha atirado o menino. Quando olhou de novo a seu redor, alegrou-se ao ver que alguns camisas pardas se retiravam, subiam ao cenário e desapareciam entre bastidores, a bom seguro com a intenção de abandonar o teatro pela porta pela que tinham entrado. O homem gigante que o tinha começado tudo estava no chão, grunhindo e agarrando-a joelho como se se deslocou algo. Wilhelm Frunze se encontrava em pé a seu lado, golpeando-o com uma pá de madeira uma e outra vez, repetindo a gritos as palavras que tinha pronunciado o tipo para desatar a briga: —Não! Vos! Queremos! Em! A! Alemanha! Atual! Indefeso, o homem tentou sortear os golpes rodando sobre si mesmo, mas Frunze o seguiu, até que duas camisas pardas agarraram ao tipo dos braços e se levaram-no a rastros. Frunze os deixou ir. Vencemo-los? —pensou Lloyd, cada vez mais exultante—. Talvez sim! Vários dos meninos mais jovens perseguiram os camisas pardas até o cenário, mas se detiveram aí e se contentaram insultando-os a gritos enquanto desapareciam. Lloyd olhou a outros. Volodia tinha a cara torcida e um olho fechado. A americana do Werner luzia um rasgão e um quadrado de tecido que pendurava. Walter estava sentado em um assento da primeira fila; tinha a respiração entrecortada e se esfregava um cotovelo, mas sorria. Frunze atirou a pá, que caiu entre os assentos vazios das últimas fileiras. Werner, que solo tinha quatorze anos, estava transbordante de alegria. —Demo-lhes uma boa surra, verdade? —Sim, sem dúvida —respondeu Lloyd com um sorriso. Volodia jogou ao Frunze o braço sobre o ombro. —Não está mal para ser um punhado de colegiais, né? —Mas nos obrigaram a suspender o comício —disse Walter. Os jovens lhe lançaram um olhar de ressentimento por lhes haver aguado o triunfo. Walter parecia zangado. —Sede realistas, meninos. Nosso público fugiu aterrorizado. Quanto tempo terá que acontecer essas pessoas recuperem o valor necessário para acudir de novo a um comício político? Os nazistas se saíram com a sua. Resulta perigoso escutar inclusive a algum outro partido que não seja o seu. O grande perdedor de hoje é a Alemanha. —Odeio a esses bodes dos camisas pardas —disse Werner a Volodia—. Acredito que me farei comunista, como vós. Volodia o olhou fixamente com seus olhos azuis e falou em voz baixa. —Se quer lutar contra os nazistas a sério, há outra coisa mais efetiva que possivelmente poderia fazer. Lloyd se perguntou a que se referia Volodia. Então retornaram correndo Maud e Ethel, ambas falando de uma vez, chorando e rendo de alívio; e Lloyd se esqueceu das palavras da Volodia e jamais voltou para pensar nelas. V Ao cabo de quatro dias, Erik von Ulrich chegou a casa vestido com o uniforme das Juventudes Hitlerianas. sentia-se como um príncipe. Levava uma camisa parda como a das tropas de assalto, com várias insígnias e um bracelete com a suástica. Também luzia a gravata negra e as calças curtos negros regulamentares. Era um soldado patriótico dedicado ao serviço de seu país. Por fim formava parte do grupo. Aquilo era melhor inclusive que ser aficionado do Hertha, a equipe de futebol favorito do Berlim. Erik assistia de vez em quando às partidas, os sábados em que seu pai não tinha que assistir a nenhum comício político. Aquilo lhe proporcionava a sensação de pertencer a uma grande massa de gente em que todos sentiam as mesmas emoções. Entretanto, o Hertha perdia às vezes e ele retornava a casa desconsolado. Os nazistas eram ganhadores. Aterrava-lhe o que ia dizer lhe seu pai. Ele se enfurecia porque seus pais não lhe permitiam partir ao passo de outros. Todos os meninos se uniram às Juventudes Hitlerianas. Praticavam esporte e cantavam e corriam aventuras nos campos e bosques que havia aos subúrbios da cidade. Estavam em boa forma e eram preparados, fiéis e eficientes. Ao Erik inquietava o fato de que algum dia tivesse que lutar em alguma batalha, tal e como tinham feito seu pai e seu avô, e queria estar preparado para o momento, treinado e curtido, disciplinado e agressivo. Os nazistas odiavam aos comunistas, mas seus pais também. Então, o que tinha que mau em que os nazistas também odiassem aos judeus? Os Von Ulrich não eram judeus, o que lhes importava ?Entretanto, seus pais se negaram com teima a filiar-se ao Partido Nazista, pelo que o Erik se fartou de ficar excluído e tinha tomado a decisão de lhes plantar cara. Estava muito assustado. Como era habitual, nem sua mãe nem seu pai se encontravam em casa quando Erik e Carla chegaram da escola. Ada franziu os lábios em um gesto de desaprovação enquanto lhes servia o chá. —Hoje terão que recolher vós a mesa —lhes disse—. Me dói muito as costas e vou deitar me um momento. Carla pôs cara de preocupação. —Por isso foste ver o médico? Ada duvidou antes de responder. —Sim, foi por isso. Estava claro que ocultava algo. O mero feito de pensar que Ada estivesse doente, e que mentisse a respeito, inquietou ao Erik. Jamais chegaria ao extremo de imitar a sua irmã e dizer que queria a Ada, mas a mulher tinha sido uma presença carinhosa ao longo de sua vida, e sentia um afeto por ela maior do que estava disposto a admitir. Carla estava tão preocupada como ele. —Espero que melhore. Nos últimos tempos Carla tinha adotado uma atitude mais adulta, o que em certo modo tinha surpreso ao Erik. Embora era dois anos maior que ela, ainda se sentia como um menino, mas ela se comportava como um adulto a metade do tempo. —Encontrarei-me melhor depois de descansar —disse Ada de modo tranqüilizador. Erik comeu um pedaço de pão. Quando Ada saiu da cozinha, tragou o pão. —Estou na seção juvenil, mas assim que cumpra os quatorze passarão a seguinte —disse o menino. —Papai ficará feito uma fúria! —exclamou Carla—. É que te tornaste louco? —Herr Lippmann diz que papai se meterá em problemas se tenta me obrigar a deixá-lo. —Ah, fantástico —disse Carla. Tinha desenvolvido um resistente gosto pelo sarcasmo que em ocasiões mortificava ao Erik—. Assim quer que papai brigue com os nazistas —espetou com desdém—. Uma idéia maravilhosa. É algo ideal para toda a família. Erik ficou desconcertado. Não o tinha pensado daquele modo. —Mas todos os meninos de minha classe pertencem às Juventudes Hitlerianas —disse, indignado—. Exceto Fontaine o Gabacho e Rothmann o Judeu. Carla lubrificou uma fatia de pão com patê de pescado. —por que tem que ser igual a outros? —perguntou-lhe—. A maioria são estúpidos. Você mesmo me disse que Rudi Rothmann era o mais preparado da classe. —Não quero estar com o Gabacho e Rudi! —gritou Erik, que se sentiu humilhado quando notou que as lágrimas começavam a lhe correr pela cara—. por que tenho que jogar com os meninos que não se agradam a ninguém? —Aquilo era o que lhe tinha proporcionado o valor necessário para desafiar a seu pai: já não suportava sair de a escola com os judeus e os estrangeiros enquanto todos os meninos alemães partiam ao redor do pátio, com seus uniformize. Então ouviram um grito. Erik olhou a Carla. —O que foi isso? Sua irmã enrugou a frente. —Acredito que foi Ada. A seguir ouviram um grito mais claro. —Socorro! Erik se ficou em pé mas Carla já lhe tinha adiantado. Seguiu-a. A habitação da Ada se encontrava no porão. Baixaram correndo as escadas e entraram no pequeno dormitório. Havia uma única cama junto à parede. Ada estava tombada com o rosto crispado pela dor. Tinha a saia empapada e havia um atoleiro no chão. Erik não podia acreditar o que estava vendo. mijou-se em cima? Aquilo dava medo. Não havia nenhum adulto na casa. Não sabia o que fazer. Carla também estava assustada, Erik o viu em sua cara, mas não tinha cansado presa do pânico. —Ada, o que te passa? —perguntou a menina, com um estranho deixe de tranqüilidade. —Tenho quebrada águas —disse Ada. Erik não entendia a que se referia. Carla tampouco. —Não te entendo —disse. —Significa que vai nascer o bebê. —Está grávida? —perguntou Carla, estupefata. —Mas se não estar casada! —exclamou Erik. —Fecha o pico, Erik —lhe espetou Carla—. É que não entende nada? É obvio que entendia que as mulheres podiam ter filhos embora não estivessem casadas… Mas não Ada! —Por isso foi ao médico a semana passada —disse Carla a Ada, que assentiu. Erik ainda tentava fazer-se à idéia. —Crie que mamãe e papai sabem? —claro que sim. O que passa é que não nos disseram isso. nos traga uma toalha. —De onde? —Do armário da caldeira que está no patamar de acima. —Poda? —Claro que tem que ser poda! Erik subiu correndo as escadas, agarrou uma toalha pequena branca do armário e baixou correndo de novo. —Não nos vai ser de grande ajuda —disse Carla que, entretanto, agarrou-a e secou as pernas a Ada. —O bebê não demorará para chegar, noto-o. Mas não sei o que fazer. —A mulher rompeu a chorar. Erik olhou a Carla, que era quem estava ao mando da situação agora. Dava igual a ele fora o major: esperou a que sua irmã lhe desse alguma ordem. Ela mantinha a calma e tinha adotado uma atitude prática, mas ele sabia que também estava aterrada e que sua serenidade podia desmoronar-se em qualquer momento. Carla se voltou para o Erik. —vá procurar ao doutor Rothmann —lhe ordenou—. Já sabe onde tem a consulta. Erik se sentiu muito aliviado de que lhe encarregasse uma tarefa que podia cumprir sem nenhum problema. Então pensou em um possível contratempo. —E se tiver saído? —Pois pergunta a frau Rothmann o que deve fazer, idiota! —espetou-lhe Carla—. Venha, vete! Erik se alegrou de poder sair da habitação. O que estava acontecendo aí era algo misterioso e aterrador. Subiu os degraus de três em três e saiu disparado pela porta principal. Correr era uma das coisas que lhe dava bem. A consulta do doutor estava a menos de um quilômetro de sua casa. Pôs-se a correr a toda velocidade e não deixou de pensar na Ada em nenhum momento. Quem era o pai do bebê? Recordou que Ada tinha ido ao cinema com o Paul Huber um par de vezes o verão passado. Tinham mantido relações sexuais? Não havia outra explicação! Erik e seus amigos falavam muito de sexo, mas em realidade não sabiam nada sobre o tema. Onde o tinham feito Ada e Paul? Não podia ser no cinema, verdade? Não terei que tombar-se para fazê-lo? Estava desconcertado. A consulta do doutor Rothmann se encontrava em uma rua humilde. Tinha-lhe ouvido dizer a sua mãe que era um bom médico, mas visitava muita gente de classe trabalhadora que não podia pagar honorários muito elevados. A casa do doutor tinha uma sala de consulta e outra de espera na planta baixa, e a família vivia acima. Frente à casa havia um Opel 4 verde, um automóvel bastante feio de dois lugares que tinha recebido o mote de Rã de árvore. A porta dianteira da casa não estava fechada com chave. Erik entrou, com a respiração entrecortada, e se dirigiu para a sala de espera. Havia um homem maior tossindo em um rincão e uma moça com um bebê. —Olá! —disse Erik—. Doutor Rothmann? A mulher do doutor saiu da consulta. Hannelore Rothmann era uma mulher alta e loira, de facções marcadas, e fulminou ao Erik com o olhar. —Como te atreve a vir a esta casa com esse uniforme? —espetou-lhe. Erik ficou petrificado. Frau Rothmann não era judia, mas seu marido sim, algo que Erik, presa da emoção, tinha esquecido. —Nossa criada vai ter um bebê! —disse-lhe. —E quer que um médico judeu te ajude? Aquela réplica pilhou completamente despreparado ao Erik. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que os ataque dos nazistas pudessem obrigar aos judeus a lhes plantar cara. Mas, de repente, entendeu que frau Rothmann tinha toda a razão. Os camisas pardas foram pela cidade gritando Morte aos judeus!. por que ia ajudar um médico judeu a esse tipo de gente? Agora não sabia o que fazer. Havia outros doutores, claro, muitos, mas não sabia onde tinham a consulta nem se lhe fariam caso a um completo desconhecido. —Enviou-me minha irmã —disse com um fio de voz. —Carla tem mais sentido comum que você. —Ada diz que tem quebrada águas. —Erik não estava muito seguro do que significava aquilo, mas parecia algo importante. Frau Rothmann entrou de novo na consulta com um olhar de asco. O ancião do rincão riu. —Todos somos judeus até que necessitam nossa ajuda! —disse—. Então dizem: Venha, por favor, doutor Rothmann e Que conselho me dá, advogado Koch? e me Empreste cem Marcos, herr Goldman e… —Nesse instante lhe deu outro ataque de tosse. Uma garota de uns dezesseis anos entrou na sala de espera. Erik acreditou que devia ser Eva, a filha do Rothmann. Fazia anos que não a via. Agora tinha peito, mas ainda era pouco agraciada e gordinha. —Deu-te permissão seu pai para te unir às Juventudes Hitlerianas? —perguntou-lhe a garota. —Não sabe —respondeu Erik. —OH, pois te colocaste em uma boa confusão —disse Eva. Erik dirigiu o olhar para a porta da consulta. —Crie que seu pai me acompanhará? Sua mãe estava muito zangada comigo. —Claro que irá contigo. Se a gente estiver doente, ele a ajuda —disse com desdém—. Ele não antepor a raça nem a política. Não somos nazistas. —E voltou a sair. Erik estava perplexo. Em nenhum momento lhe tinha passado pela cabeça que o uniforme fora a lhe causar tantos problemas. Na escola a todos tinha parecido fantástico. Ao cabo de um instante apareceu o doutor Rothmann. dirigiu-se aos dois pacientes que havia na sala de espera. —Voltarei assim que possa. Sinto muito, mas o bebê não pode esperar. —Olhou ao Erik—. Vamos, jovencito, é melhor que venha comigo no carro, apesar desse uniforme. Erik o seguiu e se sentou no assento do acompanhante. adorava os carros e morria de vontades de ter a idade necessária para conduzir; pelo general o gostava de montar em qualquer tipo de veículo, ver os diales e analisar a técnica do condutor. Mas agora se sentia como se chamasse muito a atenção, sentado junto a um doutor judeu com sua camisa parda. E se o via herr Lippmann? O trajeto foi uma verdadeira tortura. Por sorte foi breve, e ao cabo de uns minutos tinham chegado à casa da família Von Ulrich. —Como se chama a jovem? —perguntou Rothmann. —Ada Hempel. —Ah, sim, veio para ver-me a semana passada. É um bebê prematuro. Vamos, me leve a sua habitação. Erik o guiou pela casa. Ouviu o pranto de um bebê. Já tinha nascido! Baixou correndo as escadas do porão, seguido do doutor. Ada estava tombada de barriga para cima. A cama estava empapada de sangue e algo mais. Carla sustentava em braços ao diminuto bebê, que estava coberto de babas. Algo que parecia um fio grosso pendurava do bebê, sobre a saia da Ada. Carla estava aterrorizada e tinha os olhos exagerados. —O que faço? —gritou. —Está fazendo o correto —a tranqüilizou o doutor—. Agüenta ao bebê um minuto mais. —sentou-se junto à Ada. Auscultou-lhe o coração, tomou o pulso e disse—: Como te encontra? —Cansadísima —respondeu ela. Rothmann assentiu com a cabeça. ficou em pé e olhou ao bebê que Carla sustentava em braços. —É um menino —disse. Erik observou ao doutor com uma mescla de fascinação e repugnância enquanto este abria sua maleta, tirava uma parte de linho e atava dois nós no cordão. Enquanto o fazia lhe falava em voz baixa a Carla. —por que chora? Tem-no feito de fábula. Você sozinha ajudaste a trazer para o mundo a um bebê. Não me necessitaste! Espero que seja médico de maior. Carla se acalmou um pouco. —Note-se na cabeça —lhe disse ao doutor Rothmann, que teve que inclinar-se para diante para ouvir—. Acredito que lhe acontece algo. —Sei. —O doutor agarrou um par de tesouras afiadas e cortou o cordão à altura de ambos os nós. Logo agarrou ao bebê nu e o sustentou em alto para analisá-lo. Erik não viu nada estranho, mas o menino estava tão vermelho, enrugado e talher de uma substância viscosa que resultava difícil afirmá-lo com rotundidad—. OH, Deus —disse o doutor ao cabo de um instante. Ao observá-lo com maior parada, Erik viu que algo não ia bem. O bebê tinha a cara torcida. Um lado era normal, mas o outro parecia estar fundo, e também havia algo estranho no olho. Rothmann devolveu o bebê a Carla. Ada grunhiu de novo e pareceu que fazia um grande esforço. Quando se relaxou, Rothmann deslizou a mão por debaixo de sua saia e tirou algo que tinha um aspecto asqueroso e parecia um pedaço de carne. —me traga um periódico, Erik —lhe ordenou. —Qual? —Seus pais compravam os principais periódicos diariamente. —Dá igual, moço —disse Rothmann—. Não quero lê-lo. Erik subiu correndo as escadas e encontrou um exemplar do dia anterior do Vossische Zeitung. Quando retornou, o doutor envolveu aquela coisa que parecia carne com o periódico e o deixou no chão. —É o que chamamos a placenta —explicou a Carla—. É melhor queimá-la. Então se sentou no bordo da cama. —Ada, querida, deve ser valente —disse—. Seu bebê está vivo, mas pode que tenha sofrido algum problema. Agora o lavaremos, envolveremo-lo para que esteja calentito e logo teremos que levá-lo a hospital. Ada parecia assustada. —O que acontece? —Não sei, mas têm que lhe jogar uma olhada. —Passará-lhe algo? —Os doutores do hospital farão tudo o que facilmente possam. O resto está em mãos de Deus. Erik recordou que os judeus adoravam o mesmo Deus que os cristãos. Era fácil esquecer algo assim. —Crie que poderia te levantar e ir ao hospital comigo, Ada? Seu bebê necessita que o amamente. —Estou cansadísima —disse de novo. —Então descansa um par de minutos, mas não muito mais porque alguém tem que visitá-lo. Carla te ajudará a te vestir. Esperarei-lhes acima. Você, vêem comigo, pequeno nazista —disse ao Erik com uma ironia isenta de má intenção. Erik morria da vergonha. A paciência do doutor Rothmann era inclusive pior que o desprezo de frau Rothmann. —Doutor? —disse Ada quando saíam pela porta. —Sim. —Chamará-se Kurt. —Uma excelente eleição —disse o doutor Rothmann, que saiu seguido do Erik. VI O primeiro dia do Lloyd Williams como ajudante do Walter von Ulrich também foi o primeiro dia do novo Parlamento. Walter e Maud lutavam a braço partido para salvar a frágil democracia da Alemanha. Lloyd compartilhava seu desespero, em parte porque eram boas pessoas às que tinha tratado em várias ocasiões ao longo de sua vida, e em parte porque temia que Grã-Bretanha pudesse acabar seguindo a Alemanha e tomasse também a estrada que conduzia ao inferno. As eleições não haviam resolvido nada. Os nazistas tinham obtido 44 por cento dos votos, o qual supunha um aumento, mas ainda estavam longe de 51 por cento que ansiavam. Walter ainda albergava esperanças. —Nem com a intimidação maciça que cometeram —disse, enquanto se dirigiam ao Parlamento em carro—, conseguiram obter os votos da maioria dos alemães. —Deu-lhe um murro ao volante—. Apesar de tudo o que dizem, não gozam de tanto apoio. E quanto mais permaneçam no governo, mais oportunidades terá a gente de conhecer sua verdadeira maldade. Lloyd não estava tão convencido. —fecharam periódicos da oposição, encarceraram a deputados do Reichstag, corromperam a polícia —disse—. E mesmo assim, o quarenta e quatro por cento dos alemães os vota? Este dado não resulta muito tranqüilizador. O edifício do Reichstag tinha sofrida graves imperfeições por culpa do incêndio e tinha ficado inutilizable, pelo que o Parlamento se reunia na Ópera Kroll, ao outro lado do Königsplatz. Era um edifício muito grande com três salas de concertos e quatorze auditórios mais pequenos, além de restaurantes e bares. Quando chegaram, levaram-se uma grande surpresa. O lugar estava rodeado de camisas pardas. Os deputados e seus ajudantes se amontoavam em torno das portas, tentando entrar. —É assim como pensa Hitler sair-se com a sua? nos impedindo de entrar no Reichstag? —exclamou Walter feito uma fúria. Lloyd viu que os camisas pardas bloqueavam o passo. Deixavam entrar sem perguntar nada a todos aqueles que levavam o uniforme nazista, mas outros deviam mostrar seus créditos. Um menino mais jovem que Lloyd o olhou de cima abaixo com desdém antes de deixá-lo passar a contra gosto. Era intimidação, simples e sinceramente. Lloyd se deu conta de que começava a lhe ferver o sangue. Não suportava que o maltratassem daquele modo. Sabia que podia derrubar à camisa parda com um bom gancho de esquerda. Entretanto, decidiu reprimir-se, voltou-se e cruzou a porta. Depois da briga no Teatro Popular, sua mãe lhe tinha examinado o vulto em forma de ovo que lhe tinha saído na cabeça e lhe tinha ordenado que retornasse a Inglaterra. Ao final, tinha conseguido convencer a de que não o obrigasse a partir, mas tinha estado a ponto de voltar para casa. Sua mãe lhe havia dito que não tinha sentido do perigo, mas isso não era certo. Em ocasiões sim se assustava, mas aquele sentimento fazia aumentar seu espírito combativo. Seu instinto o impulsionava a passar ao ataque, não a bater-se em retirada. E isso assustava a sua mãe. Por irônico que pudesse parecer, ela era igual. Tampouco pensava voltar para casa. Estava assustada, mas também emocionada por estar no Berlim, nesse momento crucial da história alemã, e indignada pela violência e a repressão das que era testemunha; além disso, estava convencida de que poderia escrever um livro que servisse de advertência para os democratas de outros países a respeito das táticas fascistas. —É pior que eu —lhe havia dito Lloyd, ao que ela não pôde replicar. No interior, o teatro da ópera era um hervidero de camisas pardas e homens das SS, muitos deles armados. Montavam guarda em todas as portas e mostravam, com o olhar e os gestos, seu ódio e desprezo por tudo aquele que não fora partidário dos nazistas. Walter chegava tarde a uma reunião do grupo da Partida Socialdemócrata. Lloyd percorreu todo o edifício procurando a sala correta. Jogou uma olhada na sala de debate e viu que havia uma suástica gigante que pendurava do teto e dominava o lugar. O primeiro assunto que deviam tratar quando se iniciasse a sessão essa tarde era a Lei de Habilitação, que permitiria que o gabinete do Hitler pudesse aprovar leis sem a permissão do Reichstag. A lei oferecia um panorama lúgubre. Converteria ao Hitler em um ditador. A repressão, a intimidação, a violência, a tortura e os assassinatos que a Alemanha havia visto nas últimas semanas se converteriam em permanentes. Era algo impensável. Entretanto, Lloyd não concebia que nenhum Parlamento do mundo pudesse aprovar semelhante lei. Seria como depor-se a gente mesmo. Era um suicídio político. Encontrou aos socialdemócratas em um pequeno auditório. A reunião já tinha começado. Lloyd acompanhou ao Walter depressa e correndo até a sala, e logo foi a procurar café. Enquanto esperava na cauda, deu-se conta de que se encontrava detrás de um homem jovem, pálido e de olhar intenso que vestia um traje de um negro fúnebre. O alemão do Lloyd era já mais fluido e coloquial, e tinha ganho a confiança necessária para manter uma conversação improvisada com um desconhecido. O tipo de negro era Heinrich von Kessel. Estava fazendo o mesmo que Lloyd, trabalhando como ajudante sem salário de seu pai, Gottfried von Kessel, um deputado da Partida de Centro, que era católico. —Meu pai conhece muito bem ao Walter von Ulrich —disse Heinrich—. Ambos foram adicionados na embaixada alemã de Londres em 1914. O mundo da diplomacia e a política internacional era muito pequeno, pensou Lloyd. Heinrich disse ao Lloyd que a resposta aos problemas da Alemanha era uma volta à fé cristã. —Não sou muito cristão —disse Lloyd com ingenuidade—. Espero que não te importe que o diga. Meus avós são uns pregadores entusiastas da Bíblia, mas minha mãe é diferente e meu padrasto é judeu. de vez em quando vamos ao Calvary Gospel Hall do Aldgate, sobre tudo porque o pastor é um membro da Partida Trabalhista. Heinrich sorriu. —Rezarei por ti. Lloyd recordou que os católicos não eram proselitistas. Miúdo contraste com seus dogmáticos avós do Aberowen, que ensinavam às pessoas que não acreditava o mesmo que eles que estavam fechando os olhos de forma intencionada ao evangelho, e seriam condenados à perdição eterna. Quando Lloyd retornou à reunião da Partida Socialdemócrata, Walter tinha tomado a palavra. —Não se pode passar! —disse—. A Lei de Habilitação é uma emenda constitucional. Dois terços dos representantes devem estar pressente, quer dizer, 432 de os 647 possíveis. E dois terços desses pressente têm que aprová-la. Lloyd fez uma série de cálculos mentais enquanto deixava a bandeja na mesa. Os nazistas tinham 288 bancos, e os nacionalistas, que eram seus principais aliados, 52, o que somava um total de 340. Faltavam-lhes quase cem. Walter tinha razão. A lei não se podia passar. Lloyd se sentiu aliviado e se sentou para escutar o debate e melhorar seu alemão. Entretanto, o alívio durou pouco. —Não esteja tão seguro —disse um homem com um acento berlinense de classe trabalhadora—. Os nazistas estão negociando com a Partida de Centro —era o grupo do Heinrich, recordou Lloyd—, o que lhes poderia proporcionar 74 votos mais —disse o homem. Lloyd enrugou a frente. por que ia apoiar a Partida de Centro uma medida que lhes tiraria todo o poder? Walter expressou a mesma dúvida de maneira mais terminante. —Como é possível que os católicos sejam tão estúpidos? Lloyd desejou ter sabido tudo isto antes de ir procurar o café porque assim poderia ter tratado o tema com o Heinrich. Talvez teria descoberto algo útil. Maldição. —Na Itália, os católicos alcançaram um acordo com o Mussolini: um concordata para proteger à Igreja. por que não aqui? —disse o homem do acento berlinense. Lloyd calculou que o apoio da Partida de Centro permitiria aos nazistas contar com 414 votos. —Ainda não chegariam aos dois terços —disse ao Walter com alívio. Outro jovem ajudante o ouviu e atravessou na conversação. —Mas com esses cálculos não está tendo em conta o último anúncio do presidente do Reichstag. —O presidente do Parlamento alemão era Hermann Göring, o colaborador mais estreito do Hitler. Lloyd não sabia nada do anúncio. E ao parecer não era o único. Os parlamentarios guardaram silêncio e o ajudante pôde prosseguir—: decretou que não se computará aos deputados comunistas que se encontrem ausentes por estar encarcerados. Houve um estalo de indignação e protestos que se estendeu por toda a sala. Lloyd viu que Walter ficava vermelho de ira. —Não pode fazê-lo! —gritou. —É absolutamente ilegal —disse o ajudante—. Mas o tem feito. Lloyd estava consternado. Era possível saltá-la lei com uma mutreta como essa? Fez alguns cálculos mais. Os comunistas tinham 81 bancos. Se não se tinham em conta, os nazistas necessitavam dois terços de 566, quer dizer, 378 bancos. De modo que não lhes bastava com o apoio dos nacionalistas, mas se conseguiam convencer aos católicos, sairiam-se com a sua. —Isto é de tudo ilegal —disse alguém—. Deveríamos nos retirar a modo de protesto. —Não! Não! —replicou Walter—. Aprovariam a lei em nossa ausência. Temos que convencer aos católicos para que não pactuem com os nazistas. Devemos falar com Ks imediatamente. —Otto Wels era o chefe da Partida Socialdemócrata; o prelado Ludwig Ks era o chefe da Partida de Centro. Um murmúrio de acordo percorreu a sala. Lloyd respirou fundo. —Herr Von Ulrich —o interpelou—, por que não convida a comer ao Gott fried von Kessel? Acredito que ambos trabalharam juntos em Londres antes da guerra. Walter soltou uma risada amarga. —Esse lameculos! —disse. Possivelmente o almoço não era tão boa idéia. —Não sabia que não lhe agradava —disse Lloyd. Walter lhe lançou um olhar pensativo. —Odeio-o, mas prometo que farei tudo o que esteja ao alcance de minha mão. —Quer que fale com ele e que lhe transmita o convite? —perguntou Lloyd. —Está bem, tenta-o. Se aceitar, lhe diga que se reúna comigo no Herrenklub à uma. —De acordo. Lloyd se dirigiu à sala onde se encontrava Heinrich e entrou nela. estava-se celebrando uma reunião similar a que mantinham os socialdemócratas. Varreu a estadia com o olhar, viu o traje escuro do Heinrich, olhou-o aos olhos e lhe fez um gesto. Ambos saíram ao corredor. —Corre o rumor de que ides votar a favor da Lei de Habilitação! —Não é seguro —disse Heinrich—. Os deputados estão divididos. —Quem se opõe aos nazistas? —Brüning e alguns outros. —Brüning tinha sido chanceler e era uma figura importante da partida. Lloyd se sentiu mais otimista. —Quem mais? —Tem-me feito sair da sala para me surrupiar informação? —Sinto muito, não. Walter von Ulrich quer almoçar com seu pai. Heinrich o olhou com receio. —Não se agradam muito precisamente, sabe, verdade? —Deduzi-o, mas deixarão suas diferenças à margem por um dia! Heinrich não parecia tão convencido. —O perguntarei. Espera aqui. —E entrou de novo na sala. Lloyd se perguntou se existia alguma possibilidade de que todo aquilo funcionasse. Era uma pena que Walter e Gottfried não fossem bons amigos. Entretanto, resultava-lhe difícil de acreditar que os católicos fossem votar aos nazistas. O que mais lhe preocupava era o fato de que se aquilo acontecia na Alemanha, também podia acontecer em Grã-Bretanha. Aquela lúgubre perspectiva o aterrou. Tinha toda a vida por diante e não queria viver em uma ditadura repressiva. Queria trabalhar na política, como seus pais, e fazer de seu país um lugar melhor para gente como os mineiros do Aberowen. Para obter seu objetivo necessitava mítines políticos onde a gente pudesse expressar-se livremente, e periódicos que pudessem atacar ao governo, e pubs onde os homens pudessem debater sem ter que olhar para trás para ver quem os estava escutando. O fascismo punha em perigo todo isso. Entretanto, também existia a possibilidade de que fracassasse. Possivelmente Walter seria capaz de convencer ao Gottfried e impedir que a Partida de Centro apoiasse aos nazistas. Heinrich saiu da sala. —aceitou o convite. —Fantástico! Herr von Ulrich propõe o Herrenklub à uma em ponto. —De verdade? Ele é sócio? —Suponho… por que? —É uma instituição conservadora. Imagino que por isso se chama Walter von Ulrich. Deve pertencer a uma família nobre, embora seja socialista. —Acredito que deveria reservar uma mesa. Sabe onde está? —À volta da esquina. —Heinrich lhe indicou a direção exata. —Reservo mesa para quatro? Heinrich sorriu. —por que não? Se não quererem que estejamos pressentem você e eu, sempre podem nos pedir que vamos. Dito isto, Heinrich retornou à sala. Lloyd saiu do edifício e cruzou a praça rapidamente, passou junto ao Monumento da Vitória e o edifício queimado do Reichstag, e entrou no Herrenklub. Em Londres também havia clubes de cavalheiros, mas Lloyd nunca tinha entrado em nenhum. Este parecia um lugar a meio caminho entre um restaurante e uma funerária, pensou. Os garçons, vestidos de etiqueta, caminhavam sem fazer ruído e punham os talheres em silencio sobre as toalhas brancas das mesas. O chefe dos garçons tomou nota de sua reserva e apontou o nome Von Ulrich com grande solenidade, como se estivesse anotando uma entrada no Livro dos Mortos. Retornou ao teatro da ópera. Cada vez havia mais gente e bulício no interior, e a tensão também parecia ir em aumento. Lloyd ouviu que alguém anunciava emocionado que o próprio Hitler abriria a sessão essa tarde com a apresentação da lei. Uns minutos antes da uma, Lloyd e Walter cruzaram a praça. —Heinrich von Kessel se surpreendeu quando soube que é sócio do Herrenklub —disse Lloyd. Walter assentiu. —Fui um dos fundadores, faz uma década ou um pouco mais. Naqueles tempos se chamava Juniklub. Unimo-nos para solicitar forças contra o Tratado do Versalles. Agora se converteu em um bastión da direita, e devo ser o único socialdemócrata, mas sigo sendo sócio porque é um lugar útil no qual reunir-se com o inimigo. No interior do clube, Walter assinalou a um homem de aspecto impecável. —Esse é Ludwig Franck, o pai do Werner, que lutou conosco no Teatro Popular. Estou seguro de que não é sócio do clube, nem tão sequer é alemão, mas parece que está comendo com seu sogro, o conde Von der Helbard, o ancião que está a seu lado. me acompanhe. aproximaram-se da barra e Walter realizou as apresentações pertinentes. —Meu filho e você lhes meteram em uma boa briga faz umas semanas —disse Franck ao Lloyd, que se apalpou a parte posterior da cabeça em um ato reflito: o inchaço tinha diminuído, mas ainda lhe doía quando se tocava. —Tínhamos que proteger às mulheres, senhor —respondeu Lloyd. —Não há nada de mau em uns quantos murros —disse Franck—. Lhes sinta bem aos jovens. Walter interrompeu o bate-papo. —Venha, Ludi. Arrebentar mítines já é algo grave, mas seu chefe quer destruir por completo nossa democracia! —Possivelmente a democracia não seja a forma de governo adequada para nós —disse Franck—. A fim de contas, não somos como os franceses ou os americanos, graças a Deus. —Não te importa perder sua liberdade? Fala a sério! de repente Franck abandonou seu tom zombador. —De acordo, Walter —disse com frieza—. Te falarei a sério, se insistir. Minha mãe e eu chegamos aqui da Rússia faz mais de dez anos. Meu pai não pôde nos acompanhar. Descobriram que estava em posse de literatura subversiva, em concreto de um livro titulado Robinson Crusoe; ao parecer se trata de uma novela que fomenta o individualismo burguês, seja o que seja isso. Enviaram-no a um campo para prisioneiros do Ártico. Possivelmente… —Lhe quebrou a voz, mas fez uma pausa, tragou saliva, e prosseguiu—: Possivelmente esteja aí ainda. Houve um momento de silêncio. Lloyd ficou horrorizado para ouvir a história. Sabia que o governo comunista russo podia ser cruel, em geral, mas era muito distinto ouvir um relato pessoal, contado por um homem que ainda sofria. —Ludi, todos odiamos aos bolcheviques —disse Walter—, mas os nazistas poderiam ser pior! —Estou disposto a correr o risco —replicou Franck. —É melhor que nos vamos comer —disse o conde Von der Helbard—. Tenho uma entrevista esta tarde. nos desculpe. —Ambos os homens se foram. —É o que dizem sempre! —exclamou Walter—. Os bolcheviques! Como se fossem a única alternativa aos nazistas! Me dá vontade de chorar. Heinrich entrou acompanhado de um homem maior que estava claro que era seu pai: tinham o mesmo arbusto de cabelo escuro e abundante, penteado com raia, embora Gottfried levava-o mais curto e estava sulcado de nervuras chapeadas. Embora tinham umas facções similares, Gottfried parecia um burocrata meticuloso com um pescoço passado de moda, enquanto que Heinrich tinha mais aspecto de poeta romântico que de ajudante político. Os quatro entraram no comilão. Assim que tiveram pedido, Walter foi ao grão: —Não entendo que espera ganhar sua partida em troca de apoiar esta Lei de Habilitação, Gottfried. Von Kessel também falou com franqueza. —Somos um partido católico, e nosso primeiro dever é proteger a posição da Igreja na Alemanha. Isso é o que espera a gente quando nos vota. Lloyd enrugou a frente em um gesto de desacordo. Sua mãe tinha sido parlamentaria, e sempre dizia que seu dever era servir às pessoas que não a tinha votado, assim como a aqueles que o tinham feito. Walter recorreu a um argumento distinto. —Um Parlamento democrático é o melhor amparo para todas nosso Iglesias; entretanto, estão a ponto de estragar essa possibilidade! —Abre os olhos, Walter —disse Gottfried, mal-humorado—. Hitler ganhou as eleições. chegou ao poder. Façamos o que façamos, governará a Alemanha no futuro imediato. Temos que nos proteger. —Suas promessas não valem nada! —Pedimo-lhe que nos garanta certos compromissos por escrito: o Estado não interferirá nos assuntos da Igreja católica, nem nas escolas católicas; do mesmo modo, tampouco se discriminará aos funcionários católicos. —Lançou um olhar inquisitivo a seu filho. —Prometeram-nos que este acordo será o primeiro que assinem pela tarde —disse Heinrich. —Sopesa as opções! —disse Walter—. Um pedaço de papel assinado por um tirano, frente a um Parlamento democrático: qual é melhor? —O major poder de todos é Deus. Walter entreabriu os olhos. —Então, que Deus salve a Alemanha —disse. Lloyd pensou que os alemães não tinham tido tempo para que arraigasse neles a fé na democracia enquanto Walter e Gottfried seguiam discutindo. Solo fazia quatorze anos que o Reichstag era soberano. Tinham perdido uma guerra, tinham visto como sua moeda se desvalorizava até não valer nada e tinham que fazer frente a uma taxa de desemprego muito alto: para eles, o direito ao voto era um amparo insuficiente. Gottfried se manteve inflexível. Ao final do almoço seguia em seus treze. Sua responsabilidade era proteger a Igreja católica, um argumento que exacerbava ao Lloyd. Retornaram ao teatro da ópera e os deputados tomaram assento no auditório. Lloyd e Heinrich ocuparam um camarote. Lloyd viu os deputados socialdemócratas, situados no extremo esquerdo. À medida que se aproximava a hora, reparou em vários camisas pardas e homens das SS que se situaram nas saídas e ao longo das paredes, riscando um arco ameaçador depois dos socialdemócratas. Era quase como se queriam impedir que os deputados pudessem sair do edifício até que tivessem aprovado a lei. Ao Lloyd pareceu um ato extremamente sinistro. perguntou-se, com um estremecimento de medo, se também ele podia acabar encarcerado aí. Houve um estalo de vítores e aplausos quando entrou Hitler, vestido com um uniforme dos camisas pardas. Os deputados nazistas, a maioria vestidos desta guisa, ficaram em pé, em estado de êxtase, enquanto seu chefe de partida subia à tribuna. Solo os socialdemócratas permaneceram sentados; entretanto, Lloyd se deu conta de que um ou dois olhavam para trás, incômodos, em direção aos guardas armados. Como podiam falar e votar com liberdade se os punha nervosos o mero feito de não unir-se à ovação ensurdecedora que tinha recebido seu adversário? Quando por fim se fez o silêncio, Hitler começou a falar. Estava em pé, com as costas erguida, o braço esquerdo apoiado no flanco; solo movia o direito. Tinha uma voz áspera e bronca mas forte, que recordava ao Lloyd uma metralhadora e um cão ladrando. Empregou um tom prenhe de sentimento quando falou dos traidores de novembro de 1918 que se renderam quando a Alemanha estava a ponto de ganhar a guerra. Não fingia, Lloyd estava convencido de que se acreditava até a última palavra estúpida e ignorante que pronunciava. Os traidores de novembro era um dos temas mais habituais do Hitler, mas então seu discurso tomou um novo rumo. ficou a falar das Iglesias, e do importante lugar que ocupava a religião cristã no Estado alemão. Era um tema muito pouco habitual nele, e estava claro que suas palavras foram dirigidas à Partida de Centro, cujos votos decidiriam o resultado da votação. Disse que via duas confissões principais, a protestante e a católica, como os fatores mais importantes para defender a nação. O governo nazista não modificaria nenhum de seus direitos. Heinrich lançou um olhar triunfal ao Lloyd. —Se estivesse em seu lugar, pediria-lhe que o pusesse por escrito —murmurou Lloyd. O discurso do Hitler se estendeu durante duas horas e meia mais. Acabou com uma ameaça inequívoca de violência. —O governo da sublevação nacionalista está decidida e preparado para fazer frente ao anúncio de que a lei se rechaçou, e com isso, à resistência que se há oposto. —Fez uma pausa dramática para deixar que os assistentes assimilassem a mensagem: votar contra a lei seria uma declaração de resistência. Continuando, afundou em sua idéia—: Cavalheiros, agora devem tomar a decisão: preferem a paz ou a guerra?! sentou-se acompanhado pelo clamor de aprovação dos delegados nazistas, e se levantou a sessão. Heinrich estava eufórico; Lloyd, deprimido. Ao sair tomaram direções opostas: suas partidas foram celebrar umas reuniões de última hora à desesperada. O ambiente no grupo socialdemócrata era pessimista. Seu chefe, Wels, tinha que falar na câmara, mas o que podia dizer? Vários deputados disseram que se criticava ao Hitler talvez não sairia com vida do edifício, e eles também temiam por sua vida. Se matavam aos deputados, pensou Lloyd em um momento de pânico, o que os aconteceria a seus ajudantes? Wels confessou que tinha uma cápsula de cianeto no bolso do colete. Se o detinham, se suicidaría para evitar que o torturassem. Lloyd estava horrorizado. Wels era um representante eleito nas urnas e, entretanto, via-se obrigado a atuar como uma espécie de sabotador. Lloyd tinha começado o dia com falsas esperanças. mostrou-se convencido de que a Lei de Habilitação era uma idéia absurda que não tinha nem a mais remota possibilidade de fazer-se real. Agora via que a maioria dos parlamentarios esperavam que a lei se fizesse realidade esse mesmo dia. Tinha avaliado a situação de um modo absolutamente equivocado. equivocava-se também ao acreditar que algo como isso não podia acontecer em seu país? enganava-se a si mesmo? Alguém perguntou se os católicos tinham tomado uma decisão definitiva. Lloyd ficou em pé. —vou averiguar o —disse, e se foi correndo até a sala de reuniões da Partida de Centro. Tal e como tinha feito a vez anterior, apareceu a cabeça pela porta e chamou o Heinrich com um gesto. —As dúvidas assaltam ao Brüning e Ersing —disse Heinrich. Ao Lloyd lhe encolheu o coração. Ersing era um importante líder sindical católico. —Como é possível que um sindicalista se exponha sequer a possibilidade de votar a favor da aprovação desta lei? —perguntou. —Ks diz que a pátria está em perigo. Todos acreditam que o país se sumirá em uma anarquia e que se derramará muito sangue se não aprovarmos esta lei. —Então haverá uma tirania sangrenta se a passarem. —E o que opinam vós? —Todos acreditam que morrerão fuzilados se votarem em contra. Mas mesmo assim vão fazer o. Heinrich retornou à sala onde estava reunido seu grupo, e Lloyd fez o próprio. —Os principais opositores à lei se estão desmoronando —disse Lloyd ao Walter e a outros—. Têm medo de que estale uma guerra civil se se rechaçar a lei. A sensação de pessimismo aumentou. Todos retornaram à câmara de debate às seis em ponto. Wels foi o primeiro que tomou a palavra. Estava tranqüilo e adotou um tom razoável e desapaixonado. Ressaltou que a vida em uma república democrática tinha sido, em geral, positiva para os alemães, que lhes tinha dado liberdade de oportunidades e bem-estar social, e tinha permitido que a Alemanha se reincorporasse à comunidade internacional como um membro mais. Lloyd se precaveu de que Hitler estava tomando notas. Ao final, Wels teve a valentia de professar sua lealdade à humanidade e a justiça, a liberdade e o socialismo. —Nenhuma Lei de Habilitação pode conceder o poder de aniquilar idéias que são eternas e indestrutíveis —disse, armando-se de valor enquanto os nazistas começavam a rir e burlar-se dele. Os socialdemócratas aplaudiram, mas não os ouviu. —Saudamos os perseguidos e oprimidos! —gritou Wels—. Saudamos nossos amigos do Reich. Sua firmeza e lealdade merecem toda nossa admiração. Ao Lloyd custou entender as palavras devido aos gritos e vaias dos nazistas. —O valor de suas convicções e seu otimismo inquebrável garantem um futuro mais brilhante! sentou-se entre escandalosos protestos. Tinha servido de algo o discurso? Lloyd não sabia o que pensar. depois do Wels, Hitler tomou de novo a palavra. Nesta ocasião, empregou um tom distinto. Lloyd se deu conta de que o chanceler tinha aproveitado o discurso só para entrar em calor. Agora falava com voz mais forte, empregava expressões mais desmedidas, um tom cheio de desdém. Utilizava o braço direito de forma constante para fazer gestos agressivos: assinalava, dava golpes, fechava o punho, levava-se a mão ao coração e varria com ela a metade da sala, como se quisesse deixar a um lado à oposição. As frases mais apaixonadas eram recebidas com vítores de seus partidários. Todas expressavam a mesma emoção: uma ira selvagem e criminal que o corroía por dentro. Hitler também se mostrava muito seguro. Afirmou que não tinham por que pedir a aprovação da Lei de Habilitação. —Apelamos ao Reichstag alemão para que nos conceda algo que teríamos tomado de todos os modos! —exclamou. Heinrich parecia preocupado e abandonou o camarote. Ao cabo de um minuto, Lloyd o viu no pátio de poltronas do auditório, lhe sussurrando algo ao ouvido a seu pai. Quando retornou ao camarote, parecia muito aflito. —Têm o compromisso por escrito? —perguntou Lloyd. Heinrich não se atreveu a olhá-lo aos olhos. —Estão datilografando o documento —respondeu. Hitler acabou sua intervenção menosprezando aos socialdemócratas. Não queria seus votos. —Alemanha será livre —gritou—. Mas não graças a vocês! Os chefes de outros partidos realizaram uns discursos breves. Todos pareciam abatidos. O prelado Ks disse que a Partida de Centro votaria a favor da lei. Outros seguiram seu exemplo. Os socialdemócratas foram os únicos que se atreveram a votar em contra. anunciou-se o resultado da votação e os nazistas o celebraram fora de si. Lloyd estava sobressaltado. Tinha visto as conseqüências do exercício do poder de forma brutal e não lhe tinha gostado. Abandonou o camarote sem dirigir a palavra ao Heinrich. Encontrou ao Walter no vestíbulo, chorando. Estava utilizando um grande lenço branco para secá-la cara, mas as lágrimas seguiam caindo. Lloyd só havia visto chorar assim a um homem em um funeral. Não sabia o que fazer nem o que dizer. —Minha vida foi um fracasso —disse Walter—. Aqui acabam todas as esperanças. A democracia alemã morreu. VII na sábado 1 de abril foi o dia de Boicote aos Judeus. Lloyd e Ethel, que tomou notas para seu livro, percorreram Berlim e observaram o que acontecia com incredulidade. Nas cristaleiras das lojas dos judeus tinham pintado a estrela do David. Nas portas dos comércios judeus havia camisas pardas que intimidavam a todo aquele que queria entrar. Os advogados e os médicos judeus foram vítimas dos piquetes. Lloyd viu um par de camisas pardas cortando o passo a pacientes que queriam ir ver o médico dos Von Ulrich, o doutor Rothmann, mas um carvoeiro com as mãos calosas que se torceu o tornozelo disse aos camisas pardas que se fossem a mierda, e estes fugiram em busca de uma presa mais fácil. —Como pode ser tão ruim a gente? —perguntou Ethel. Lloyd pensava em seu padrasto, ao que tanto queria. Bernie Leckwith era judeu. Se o fascismo chegava a Grã-Bretanha, Bernie se converteria no objetivo disso tipo de ódio. Aquele pensamento estremeceu ao Lloyd. Essa noite se celebrou uma espécie de velório no Bistro Robert. Ao parecer ninguém o tinha organizado, mas às oito o local estava cheio de socialdemócratas, colija jornalistas do Maud e amigos do mundo do teatro do Robert. Os mais otimistas afirmavam que a liberdade simplesmente tinha entrado em estado de hibernação enquanto durasse a depressão econômica, e que um dia despertaria. Outros choravam a perda. Lloyd logo que provou a bebida. Não gostava dos efeitos do álcool. Nublava-lhe o pensamento. estava-se perguntando a si mesmo o que poderiam ter feito os alemães de esquerdas para impedir essa catástrofe e não encontrou uma resposta. Maud lhes contou o que lhe tinha acontecido ao bebê da Ada, Kurt. —Trouxe-o para casa do hospital e de momento o pequeno parece feliz, mas sofreu danos cerebrais e nunca será normal. Quando for major terá que viver em uma instituição, o pobre. Lloyd tinha ouvido que a pequena Carla, de tão só onze anos, tinha assistido no parto. Essa menina tinha muito valor. O delegado Thomas Macke chegou às nove e meia, vestido com sua uniforme dos camisas pardas. A última vez que tinha estado no restaurante, Robert se tinha mofado dele, mas Lloyd tinha percebido o tom ameaçador do homem. Tinha um aspecto ridículo com esse bigotito em sua cara gorda, mas havia um brilho de crueldade em seu olhar que inquietava ao Lloyd. Robert se tinha negado a lhe vender o restaurante. O que queria Macke agora? O delegado se deteve no centro do comilão e gritou: —Este restaurante se está utilizando para fomentar o comportamento degenerado! Os clientes guardaram silêncio, perguntando-se a que vinha aquilo. Macke levantou um dedo em um gesto que pretendia advertir: Mais vale que me escutem!. Lloyd teve a sensação de que havia algo espantosamente familiar naquela ação, e se deu conta de que Macke estava imitando ao Hitler. —A homossexualidade é incompatível com o caráter masculino da nação alemã! —disse Macke. Lloyd enrugou a frente. Estava dizendo que Robert era investido? Jörg saiu da cozinha e entrou na sala com seu gorro de cozinheiro. ficou junto à porta, olhando ao Macke. Ao Lloyd lhe passou pela cabeça uma idéia surpreendente. Possivelmente Robert era investido. Lloyd olhou a seus amigos do mundo da farándula e se deu conta de que todos eram casais de homens, salvo duas mulheres com o cabelo curto… sentiu-se desconcertado. Sabia que existiam os investidos, e como pessoa tolerante que era acreditava que não terei que persegui-los, a não ser ajudá-los. Entretanto, sempre tinha-os considerado pervertidos e estranhos. Robert e Jörg pareciam homens normais que dirigiam um negócio e levavam uma vida tranqüila… quase como um matrimônio! —Robert e Jörg são…? —Se voltou e perguntou a sua mãe. —Sim, céu —respondeu ela. —De jovem Robert era o terror dos criados —acrescentou Maud, que estava sentada junto ao Ethel. Ambas as mulheres riram. Lloyd se surpreendeu por partida dobro: Robert não só era investido, mas sim Ethel e Maud o consideravam uma questão sobre a que podiam brincar alegremente. —Este estabelecimento fica fechado! —disse Macke. —Não tem nenhum direito a fazê-lo! —replicou Robert. Macke não podia fechar o local por vontade própria, pensou Lloyd; então recordou como os camisas pardas tinham invadido o cenário do Teatro Popular. Olhou para a porta e ficou horrorizado ao comprovar que vários camisas pardas entravam no restaurante. Foram passando pelas mesas derramando taças e garrafas. Alguns clientes permaneceram sentados imóveis; outros ficaram em pé. Vários homens gritaram e uma mulher chiou. Walter se levantou e falou em voz alta mas sem perder a calma. —Deveríamos ir todos tranqüilamente —disse—. Não há necessidade de armar alvoroço. Que todo mundo agarre o casaco e o chapéu e se vá a sua casa. Os clientes começaram a desfilar: alguns tentaram agarrar o casaco, mas outros simplesmente fugiram. Walter e Lloyd acompanharam ao Maud e Ethel à porta. A caixa estava perto da saída e Lloyd viu como um camisa parda a abria e se metia o dinheiro nos bolsos. Até esse momento Robert se manteve à margem, observando com tristeza como os clientes de toda a noite abandonavam o restaurante precipitadamente; mas aquilo era muito. Lançou um grito de protesto e apartou à camisa parda da caixa com um empurrão. O ladrão lhe deu um murro que o atirou ao chão e ato seguido começou a propinarle patadas. Outro camisa parda o imitou. Lloyd se lançou ao resgate do Robert. Ouviu que sua mãe gritava Não! enquanto apartava aos camisas pardas. Jörg reagiu quase com a mesma rapidez, e ambos se agacharam para ajudar ao Robert a levantar-se. Os três foram atacados imediatamente por vários camisas pardas mais. Lloyd recebeu murros e patadas, e um objeto contundente lhe golpeou na cabeça, o que o fez proferir um grito de dor. Não, outra vez não, pensou. voltou-se contra os agressores, soltando murros a destro e sinistro, assegurando-se de que cada golpe impactasse com força em um camisa parda, tentando atravessar o objetivo com o punho, tal e como lhe tinham ensinado. Derrubou a dois homens, mas então o agarraram por detrás e lhe fizeram perder o equilíbrio. Ao cabo de um instante estava no chão e dois homens o sujeitavam enquanto um terceiro lhe dava patadas. Então o puseram de lado, retorceram-lhe os braços nas costas e notou algo metálico nas bonecas. Tinham-no algemado pela primeira vez em sua vida. Sentiu um novo tipo de medo. Aquilo já não era uma simples trifulca. Tinham-lhe dado golpes e patadas, mas o pior ainda estava por vir. —lhe levante —lhe ordenou alguém em alemão. ficou em pé como facilmente pôde. Doía-lhe a cabeça. Viu que Robert e Jörg também estavam algemados. Robert sangrava pela boca e Jörg tinha um olho fechado. Meia dúzia de camisas pardas os vigiavam. Outros bebiam das taças e garrafas que ficavam nas mesas, ou se abarrotavam com os doces do carrinho de as sobremesas. Ao parecer todos os clientes se foram. Lloyd se sentiu aliviado de que sua mãe tivesse saído. abriu-se a porta do restaurante e retornou Walter. —Delegado Macke —disse, fazendo ornamento da típica facilidade dos políticos para recordar nomes. Fez provisão de valor e autoridade e prosseguiu—: O que significa este escândalo? Macke assinalou ao Robert e Jörg. —Estes dois homens são homossexuais —disse—. E esse moço agrediu a um policial que os estava detendo. Walter assinalou a caixa registradora, que estava aberta e vazia, salvo por umas quantas moedas. —Acaso os agentes de polícia se dedicam a cometer ataques hoje em dia? —Um cliente deve haver-se aproveitado da confusão criada pelos que se estavam resistindo à detenção. Alguns dos camisas pardas soltaram uma risada de cumplicidade. —Antes era um agente da lei, não é certo, Macke? Possivelmente então estivesse orgulhoso de você. Mas, agora, o que é? O delegado se sentiu ofendido. —Nosso objetivo é manter a ordem para proteger a pátria. —Aonde pensa transladar aos detidos? —insistiu Walter—. Será um centro de arresto constituído conforme à legalidade? Ou um porão não oficial e médio escondido? —Levaremo-los a quartel do Friedrichstrasse —respondeu Macke, indignado. Lloyd viu que uma expressão de satisfação iluminava fugazmente o rosto do Walter, e se deu conta de que tinha manipulado ao delegado com inteligência, aproveitando-se do pouco orgulho profissional que ficava para obter que revelasse suas intenções. Agora, ao menos, Walter sabia aonde foram levar ao Lloyd e a outros. Mas o que aconteceria no quartel? Nunca tinham detido ao Lloyd. Entretanto, vivia no East End de Londres, pelo que conhecia muita gente que se metia em problemas com a polícia. Durante grande parte de sua vida tinha jogado a futebol na rua com meninos cujos pais eram detidos com certa freqüência. Conhecia a reputação da delegacia de polícia do Leman Street, no Aldgate. Poucos homens saíam daquele edifício ilesos. A gente dizia que havia manchas de sangue em todas as paredes. Existia alguma possibilidade de que o quartel do Friedrichstrasse fora melhor? —Isto é um incidente internacional, delegado —disse Walter. Lloyd supôs que fazia contínua referência à fila do Macke para que se comportasse mais como um agente e menos como um valentão—. deteve a três cidadãos estrangeiros: dois austríacos e um inglês. —Levantou uma mão como se queria atalhar qualquer protesto—. Agora é muito tarde para dar marcha atrás. Ambas as embaixadas serão informadas, e não me cabe a menor duvida de que seus representantes baterão na porta do Ministério de Assuntos Exteriores do Wilhelmstrasse dentro de menos de uma hora. Lloyd se perguntou se era certo. Macke fez uma careta desagradável. —O Ministério de Assuntos Exteriores não se incomodará em defender a dois investidos e a um jovem vândalo. —Nosso ministro dos Assuntos Exteriores, Von Neurath, não é um membro de sua partida —disse Walter—. É provável que antepor os interesses da pátria. —Acredito que não demorará para averiguar que nosso ministro faz o que lhe ordena. E agora é você quem está impedindo que leve a cabo minha tarefa. —O advirto! —disse Walter com valentia—. Mais lhe vale seguir ao pé da letra o que ditam as normas… ou haverá problemas. —Com exceção de se de minha vista —espetou Macke. Walter se foi. Lloyd, Robert e Jörg foram obrigados a sair à rua e os meteram na parte traseira de uma espécie de caminhão. Forçaram-nos a tombar-se no chão enquanto os camisas pardas se sentavam em uns bancos para vigiá-los. O veículo ficou em marcha. Lloyd descobriu que estar algemado podia resultar muito doloroso. Teve sempre a sensação de que o ombro se o fora a deslocar de um momento a outro. Por sorte, a viagem foi curto. Tiraram-nos do caminhão e os meteram em um edifício que estava escuro, de modo que Lloyd não pôde ver muito. Em um escritório, tomaram nota de seu nome em um livro e lhe tiraram o passaporte. Robert perdeu seu alfinete de gravata de ouro e o relógio de cadeia. Ao final lhes tiraram as algemas e os meteram em uma sala com luz tênue e barrotes nas janelas em que já havia uns quarenta prisioneiros. Lloyd tinha todo o corpo machucado. Doía-lhe tanto o peito que acreditava que se quebrado uma costela. Tinha cardeais na cara e uma dor de cabeça atroz. Queria uma aspirina, uma taça de chá e um travesseiro. Tinha a sensação de que teriam que passar umas horas até que pudesse satisfazer algum desses desejos. Os três se sentaram no chão, perto da porta. Lloyd se sujeitava a cabeça com as mãos, enquanto Robert e Jörg falavam do tempo que passaria até que recebessem ajuda. Estavam convencidos de que Walter chamaria um advogado, mas as leis habituais tinham ficado suspensas pelo Decreto de Incêndios do Reichstag, de modo que sob a nova lei não gozavam do amparo adequado. Walter também ficaria em contato com as embaixadas: nesse momento a influência política era seu principal esperança. Lloyd pensou que provavelmente sua mãe tentaria realizar uma chamada internacional à sede do Foreign Office em Londres. Se alguém a atendia, o governo certamente teria algo que dizer sobre a detenção de um colegial britânico. Tudo levaria seu tempo, uma hora ao menos, certamente dois ou três. Entretanto passaram quatro horas, logo cinco, e a porta não se abriu. Os países civilizados tinham uma lei que especificava o tempo máximo que podia reter a polícia a alguém com os trâmites correspondentes: apresentar cargos, um advogado, um tribunal. Lloyd se deu conta então de que tal regra não era um mero tecnicismo. Sem ela podia passá-la eternidade nessa estadia. Averiguou que outros prisioneiros que havia eram todos políticos: comunistas, socialdemócratas, organizadores sindicais e um padre. A noite passou com lentidão. Nenhum dos três dormiu. Ao Lloyd pareceu algo inconcebível tentar conciliar o sonho. A luz cinza do amanhecer atravessava os barrotes das janelas quando por fim se abriu a porta. Entretanto, não entrou nenhum advogado nem diplomático, tão só dois homens vestidos com aventais que empurravam um carrinho no qual havia uma grande panela. Serviram umas rações generosas de flocos de aveia. Lloyd não os provou, mas bebeu uma taça de lata de café que tinha sabor de cevada queimada. imaginou que o pessoal que estava de guarda de noite na embaixada britânica eram diplomáticos sem muita experiência nem influência. Pela manhã, quando despertasse o embaixador, empreenderiam-se as ações adequadas. Uma hora depois do café da manhã se abriu de novo a porta, mas esta vez só havia camisas pardas. Fizeram sair a todos os prisioneiros e os obrigaram a subir a um caminhão, uns quarenta ou cinqüenta homens em um veículo coberto com lona, tão apertados que tiveram que permanecer em pé. Lloyd conseguiu ficar perto de Robert e Jörg. Possivelmente os transladavam ao tribunal, apesar de que era domingo. Era o que esperava. Ao menos teria advogados e pareceria que se estavam submetendo ao bom fazer da justiça. Acreditava que dominava o suficiente o alemão para expor o que aconteceu de forma simples, e inclusive preparou mentalmente seu discurso. Tinha jantado em um restaurante com sua mãe; tinha visto que alguém roubava o dinheiro da caixa; tinha intervindo na briga. imaginou as perguntas que lhe formulariam, se o homem ao que atacou era um camisa parda, algo ao que responderia: Não me fixei em sua roupa, solo vi um ladrão. Haveria risadas e o fiscal faria o ridículo. Levavam-nos a algum lugar dos subúrbios. Podiam ver através dos ocos da lona que tampava o caminhão. Lloyd acreditava que tinham percorrido algo mais de trinta quilômetros quando Robert disse: —Estamos no Oranienburg. —Uma pequena população ao norte do Berlim. O caminhão se deteve frente a uma porta de madeira que havia entre dois pilares de tijolos. Duas camisas pardas armados com fuzis montavam guarda. O temor do Lloyd aumentou um pouco mais. Onde estava o tribunal? Aquilo parecia mas bem um campo de prisioneiros. Como podiam encarcerar às pessoas sem um juiz? Depois de uma breve espera, o caminhão entrou e se deteve frente a um grupo de edifícios abandonados. Lloyd ficou mais nervoso. A noite anterior tinha tido o consolo ao menos de que Walter sabia onde estava. Mas nesse momento cabia a possibilidade de que ninguém soubesse. E se a polícia dizia que não se encontrava sob sua custódia e que não tinham perseverança de sua detenção? Como foram resgatar o? Saíram do caminhão e os meteram no que parecia uma espécie de fábrica. O lugar cheirava como um pub. Possivelmente tinha sido uma fábrica de cerveja. Voltaram a tomar o nome. Lloyd se alegrou de que houvesse um registro de seus movimentos. Não estavam maniatados nem algemados, mas estavam submetidos a uma vigilância constante por parte de uns camisas pardas armados com fuzis, e Lloyd tinha o lúgubre pressentimento de que aqueles jovens estavam ansiosos porque proporcionassem-lhes uma desculpa para utilizá-los. Deram a tudo um lençol fino e um colchão de lona cheio de palha. Meteram-nos em um edifício em ruínas que no passado devia ter feito as vezes de armazém. Então começou a espera. Aquele dia ninguém foi ver o Lloyd. De noite chegou outro carro e outra panela, esta cheia de um guisado de cenouras e nabos. Cada homem recebeu uma terrina e um pedaço de carne. Lloyd estava faminto já que não tinha provado bocado nas últimas vinte e quatro horas, de modo que devorou o jantar e ainda teria comido mais. Em algum lugar do campo havia três ou quatro cães que uivaram toda a noite. Lloyd se sentia sujo. Era a segunda noite que tinha que acontecer a mesma roupa. Necessitava um banho, barbear-se e uma camisa limpa. O asseio, dois barris que havia em um rincão, era absolutamente asqueroso. Entretanto, o dia seguinte era segunda-feira. Então haveria ação. Lloyd ficou dormido ao redor das quatro. Às seis despertaram os gritos de um camisa parda. —Schleicher! Jörg Schleicher! Quem é Schleicher? Talvez foram liberar os. —Eu sou Schleicher —disse Jörg detrás ficar em pé. —Vêem comigo —disse o camisa parda. —por que? Para que o querem? Aonde vai? —perguntou Robert com voz assustada. —Você quem é, sua mãe? —perguntou o camisa parda—. te Tombe e fecha o pico. —Empurrou ao Jörg com o fuzil—. Você, fora. Ao vê-los sair, Lloyd se perguntou por que não lhe tinha dado um murro à camisa parda e lhe tinha tirado o fuzil. Possivelmente teria podido escapar. E se tivesse fracassado, o que lhe teriam feito? Colocá-lo no cárcere? Entretanto, no momento crucial, nem tão sequer lhe passou pela cabeça a idéia de escapar. Estava adotando já a mentalidade do prisioneiro? Inclusive tinha vontades de que lhes levassem os flocos de aveia. Antes do café da manhã, fizeram-nos sair a todos. Meteram-nos em um pequeno pátio, rodeado por uma grade, que tinha o tamanho de uma quarta parte de uma pista de tênis. Parecia que o tinham utilizado para armazenar mercadorias não muito valiosas, como madeira ou pneumáticos. Lloyd se estremeceu no ar frio da manhã: seu casaco ainda estava no Bistro Robert. Então viu que se aproximava Thomas Macke. O policial levava um casaco negro sobre o uniforme dos camisas pardas. Lloyd se deu conta de que arrastava os pés ao caminhar. detrás do Macke havia duas camisas pardas que sustentavam pelos braços a um homem nu com um cubo na cabeça. Lloyd o olhou horrorizado. O prisioneiro tinha as mãos atadas à costas, e o cubo apertado ao queixo com um cordão para que não lhe caísse. Era um homem magro, de aspecto juvenil, com o pêlo púbico loiro. —OH, Deus, é Jörg —gemeu Robert. Todos os camisas pardas se congregaram no pátio. Lloyd enrugou a frente. Era uma espécie de jogo cruel? Colocaram ao Jörg no recinto cercado e o deixaram aí, tremendo. Os dois tipos que o acompanhavam saíram. Desapareceram e retornaram ao cabo de uns instantes, cada um acompanhado com dois pastores alemães. Aquilo explicava os latidos que tinha ouvido durante toda a noite. Os cães estavam magros e tinham várias calvas de aspecto doentio na pelagem marrom. Pareciam famintos. Os camisas pardas os acompanharam até o recinto cercado. Lloyd tinha um vago mas horrível pressentimento do que ia acontecer. —Não! —gritou Robert, que pôs-se a correr—. Não, não, não! —Tentou abrir a porta do recinto. Três ou quatro camisas pardas o separaram de más maneiras. Tentou opor resistência, mas eram uns valentões jovens e fortes, e Robert rondava os cinqüenta. Ao final não pôde fazer nada. Atiraram-no ao chão com desprezo. —Não —disse Macke a seus homens—. Obriguem a olhar. Puseram ao Robert em pé e o sujeitaram de cara à grade. Os cães entraram no recinto. Estavam muito nervosos, não paravam de ladrar e salivar. Os duas camisas pardas os trataram com mão perita e sem medo; saltava à vista que tinham experiência. Lloyd se perguntou, pesaroso, quantas vezes o tinham feito já no passado. Os adestradores soltaram aos cães e saíram do recinto. Os cães se equilibraram sobre o Jörg. Alguém o mordeu na pantorrilha, outro no braço, uma terceira na coxa. Sob o cubo metálico se ouviam os gritos amortecidos de dor e pânico. Os camisas pardas animavam aos cães e aplaudiam. Os prisioneiros observavam o que acontecia horrorizados e em silêncio. Depois do primeiro susto, Jörg tentou defender-se. Estava maniatado e não podia ver, mas podia dar patadas ao azar. Entretanto, os cães não se arredaram, mas sim esquivaram seus ataques e começaram a lhe pegar dentadas com seus dentes afiados. Jörg tentou correr. Seguido pelos cães, correu às cegas e em linha reta até que se chocou contra a grade. Os camisas pardas aclamaram de júbilo. Jörg jogou a correr em outra direção com o mesmo resultado. Um cão lhe arrancou uma parte de carne do culo e os guardas estalaram em gargalhadas. Um camisa parda que estava junto ao Lloyd gritou: —A cauda! lhe remoa a cauda! —Lloyd supôs que penetra em alemão, der Schwanz, era o término coloquial para referir-se ao pênis. O camisa parda estava histérico da emoção. O corpo branco do Jörg estava manchado de sangre por culpa das diversas feridas. ficou de cara à grade, protegendo-os genitálias, dando patadas para atrás e para os lados. Entretanto, começavam a lhe falhar as forças. As patadas eram cada vez mais débeis. Custava-lhe manter-se em pé. Os cães eram cada vez mais atrevidos, mordiam-lhe para lhe arrancar partes de carne e tragar-lhe y se los llevaron. Ao final Jörg caiu ao chão. Os cães se acalmaram um pouco antes de dar o banquete. Entretanto, os adestradores entraram no recinto e com uma série de movimentos peritos voltaram a pôr as cadeias aos cães, separaram-nos do Jörg e os levaram. O espetáculo tinha finalizado e os camisas pardas se retiraram, falando animadamente. Robert entrou no recinto e esta vez ninguém tratou de impedir-lhe inclinou-se sobre o Jörg, gemendo. Lloyd o ajudou a lhe tirar o cubo e a desatar as mãos ao Jörg, que estava inconsciente, mas respirava. —Levemo-lo dentro —disse Lloyd—. Você agarra o das pernas. Lloyd levantou o Jörg pelas axilas e entre ambos o transladaram ao edifício onde tinham dormido. Puseram-no sobre um colchão. Outros prisioneiros se formaram redemoinhos em torno deles, assustados e aturdidos. Lloyd esperava que algum deles anunciasse que era médico, mas ninguém o fez. Robert se tirou a jaqueta e o colete, logo a camisa e a utilizou para limpar o sangue. —Necessitamos água limpa —disse. Havia um fornecedor no pátio. Lloyd saiu mas não tinha com o que transportar a água. Retornou ao interior do edifício. O cubo seguia no chão. Lavou-o e o encheu de água. Quando retornou, o colchão estava empapado em sangue. Robert molhou a camisa no cubo e lhe lavou as feridas o Jörg, ajoelhado junto a ele. Ao cabo de pouco também a camisa branca se tingiu de vermelho. Jörg se retorceu. —Tranqüilo, carinho —disse Robert em voz baixa—. Já aconteceu tudo e estou a seu lado. —Entretanto, parecia que Jörg não o ouvia. Então entrou Macke acompanhado de quatro ou cinco camisas pardas. Agarrou ao Robert do braço. —Bom! —disse—. Agora já sabe o que pensamos dos pervertidos homossexuais. Lloyd assinalou ao Jörg. —Aqui o único pervertido é o que provocou tudo isto —exclamou, feito uma fúria. E presa de toda a ira e o desdém que o corroíam por dentro, acrescentou—: Delegado Macke. O chefe dos camisas pardas fez um gesto com a cabeça apenas perceptível a um de seus homens. Com um movimento na aparência fortuito, o homem lhe deu a volta ao fuzil e golpeou ao Lloyd na cabeça com a culatra. Lloyd caiu ao chão, agarrando-a cabeça. A dor era espantosa. —Por favor, me deixem cuidar do Jörg —ouviu dizer ao Robert. —Talvez —disse Macke—. Antes vêem aqui. A pesar da dor, Lloyd abriu os olhos para ver o que acontecia. Macke se levou ao Robert até o outro lado da estadia, junto a uma mesa de madeira áspera. tirou-se uma pluma do bolso. —Agora seu restaurante vale a metade do que te ofereci a última vez: dez mil Marcos. —O que seja —disse Robert, soluçando—. me Deixe voltar com o Jörg. —Assina aqui —lhe ordenou Macke—. E logo lhes poderão ir os três a casa. Robert assinou. —Este cavalheiro fará de testemunha —disse Macke. Deu-lhe a pluma a um dos camisas pardas. Olhou para o outro lado do armazém e seus olhos se cruzaram com os de Lloyd—. E possivelmente nosso imprudente convidado inglês poderia ser a segunda testemunha. —Faz o que pede, Lloyd —disse Robert. Lloyd ficou em pé como facilmente pôde, esfregou-se a cabeça, agarrou a pluma e assinou. Macke guardou o contrato com um gesto triunfal e se foi. Robert e Lloyd retornaram junto ao Jörg. Mas Jörg tinha morrido. VIII Walter e Maud chegaram à estação Lehrte, ao norte do edifício queimado do Reichstag, para despedir-se do Ethel e Lloyd. O edifício da estação era de estilo neorrenacentista e parecia um palácio francês. Tinham chegado antes de tempo e se sentaram em um café da estação enquanto esperavam o trem. Lloyd se alegrava de partir. Em seis semanas tinha aprendido muito, de alemão e de política alemã, mas agora queria voltar para casa, contar às pessoas o que tinha visto e adverti-los que podia lhes acontecer o mesmo. Não obstante, também se sentia muito culpado. Ia a um sítio governado pela lei, onde havia liberdade de imprensa e ser socialdemócrata não era um delito. ia deixar à família Von Ulrich vivendo em uma cruel ditadura em que um homem inocente podia morrer devorado por uns cães sem que ninguém tivesse que responder ante a justiça pelo crime. Os Von Ulrich pareciam desolados; Walter incluso mais que Maud. Pareciam duas pessoas que tinham recebido uma má notícia ou que tinham sofrido a morte de um familiar. Eram incapazes de pensar em outra coisa que não fora a catástrofe da que eram vítimas. Lloyd tinha sido posto em liberdade e tinha recebido as desculpas do Ministério de Assuntos Exteriores alemão, assim como uma nota explicativa que era abjeta, e ao mesmo tempo mendaz, que dava a entender que Lloyd se viu envolto em uma refrega por culpa de sua própria estupidez e que, continuando, haviam-no retido como prisioneiro devido a um engano administrativo que as autoridades lamentavam profundamente. —recebi um telegrama do Robert. chegou são e salvo a Londres —disse Walter. Como cidadão austríaco, Robert tinha podido sair da Alemanha sem muitos problemas. Entretanto, havia-lhe flanco mais tirar seu dinheiro. Walter lhe tinha exigido ao Macke que enviasse o dinheiro a um banco suíço. Ao princípio o delegado lhe havia dito que era impossível, mas Walter o pressionou ameaçando-o denunciando a venda em um tribunal, e lhe disse que Lloyd declararia como testemunha de que o contrato se assinou sob coação; ao final Macke moveu alguns fios. —Alegra-me que Robert tenha podido sair —disse Lloyd. Ele também seria mais feliz quando estivesse em Londres. Ainda lhe doía a cabeça e também as costelas cada vez que se dava a volta na cama. —por que não vêm a Londres? Os dois. Toda a família, quero dizer —perguntou Ethel ao Maud. Walter olhou a sua mulher. —Possivelmente deveríamos —disse, mas Lloyd se deu conta de que não falava a sério. —Fez tudo o que pudeste —disse Ethel—. lutaste com valentia, mas ganhou o outro bando. —Isto ainda não acabou —replicou Maud. —Mas correm perigo. —Ao igual que a Alemanha. —Se devêsseis vivessem a Londres Fitz possivelmente adotaria uma atitude menos intransigente e te ajudaria. Lloyd sabia que o conde Fitzherbert era um dos homens mais ricos de Grã-Bretanha graças às minas de carvão que havia sob suas terras do Gales do Sul. —Não me ajudará —disse Maud—. Fitz nunca transige. Sei, e você também. —Tem razão —disse Ethel. Lloyd se perguntou como podia estar tão segura, mas não teve a oportunidade de expressar suas dúvidas. Ethel prosseguiu—: Bom, com sua experiência poderia encontrar trabalho em Londres facilmente em um periódico. —E o que faria eu em Londres? —perguntou Walter. —Não sei —respondeu Ethel—. O que fará aqui? Não tem muito sentido ser deputado em um Parlamento impotente. Lloyd acreditava que Ethel estava fazendo ornamento de uma honestidade brutal, mas, como acontecia freqüentemente, estava dizendo o que terei que dizer. Compreendia a situação, mas acreditava que os Von Ulrich deviam ficar. —Sei que será duro —disse—. Mas se a gente honrada foge do fascismo, estenderá-se ainda mais rápido. —está-se estendendo de todos os modos —disse sua mãe. —Eu não vou —declarou Maud, o que surpreendeu a todos—. Nego rotundamente a abandonar a Alemanha. Todos a olharam fixamente. —Sou alemã, há quatorze anos —disse—. Este é meu país agora. —Mas nasceu inglesa —repôs Ethel. —Um país é principalmente a gente que vive nele —disse Maud—. Não me entusiasma a Inglaterra. Meus pais morreram faz muito tempo e meu irmão me repudiou. Entusiasma-me a Alemanha. Para mim, Alemanha é meu maravilhoso marido, Walter; meu insensato filho, Erik; minha filha incrivelmente capaz, Carla; Ada, nossa criada, e seu filho deficiente; meu amiga Monika e sua família; meus colegas jornalistas… Fico para lutar contra os nazistas. —Já tem feito mais do que te correspondia —disse Ethel com doçura. Maud se emocionou. —Meu marido dedicou todo seu ser, toda sua vida, a converter esta terra em um país livre e próspero. Não serei a causa de que se veja obrigado a renunciar à obra de toda uma vida. Se perder isso, perde sua alma. Ethel esgrimiu um argumento que solo podia utilizar uma velha amiga. —Entretanto —disse—, deve ter a tentação de levar a seus filhos a um lugar seguro. —A tentação? Quererá dizer desejo, desejo desesperado! —Rompeu a chorar—. Carla tem pesadelos com camisas pardas, e Erik fica esse uniforme de cor mierda à mínima oportunidade que tem. —Ao Lloyd surpreendeu seu ardor. Era a primeira vez que ouvia dizer mierda a uma mulher respeitável. Prosseguiu—: Claro que quero levar-me isso Lloyd se deu conta então de que estava destroçada. esfregou-se as mãos como se as estivesse lavando, moveu a cabeça de um lado a outro, e falou com um tom de voz que refletia o tremendo conflito interior que a corroía—. Mas não seria o correto, nem para eles nem para nós. Não penso ceder! É melhor sofrer as conseqüências do mal que ficar quieto e não fazer nada. Ethel acariciou ao Maud no braço. —Sinto haver lhe perguntado isso. Possivelmente tenha sido uma tolice por minha parte. Deveria ter sabido que não quereria fugir. —Me alegro de que o perguntasse —disse Walter, que estirou o braço e agarrou as finas mãos de sua mulher entre as suas—. Era uma perguntava que flutuava no ar, entre o Maud e eu, e que não me tinha atrevido a formular. Já era hora de que enfrentássemos a ela. —Suas mãos unidas repousavam sobre a mesa do café. Lloyd quase nunca pensava na vida afetiva da geração de sua mãe (eram pessoas de média idade e casadas, e isso parecia explicá-lo tudo), mas agora via que entre o Walter e Maud existia um estranho vínculo que ia muito além dos hábitos adquiridos por um matrimônio amadurecido com o passado do tempo. Eram realistas: sabiam que se ficavam no Berlim punham em perigo suas vidas e as de seus filhos. Mas tinham um compromisso comum que desafiava à morte. Lloyd se perguntou se alguma vez encontraria um amor como esse. Ethel olhou o relógio. —OH, Meu deus! —exclamou—. vamos perder o trem! Lloyd agarrou a bagagem e puseram-se a correr pela plataforma. Soou um apito. Subiram ao trem bem a tempo. Ambos apareceram pelo guichê enquanto saíam de a estação. Walter e Maud ficaram na plataforma, despedindo-se com a mão, fazendo-se cada vez mais pequenos, até que ao final desapareceram. 2
1935 I Há duas coisas que deve saber sobre as garotas do Buffalo —disse Daisy Peshkov—. Bebem como cossacos e são todas umas esnobes. Eva Rothmann soltou uma risilla nervosa. —Não te acredito —respondeu. Seu acento alemão tinha desaparecido quase por completo. —Pois é verdade —repôs Daisy. Estavam em seu quarto, decorado em tons brancos e rosas, provando-se roupa ante o espelho tríptico de corpo inteiro—. Ao melhor lhe fica bem a combinação de azul marinho e branco —sugeriu Daisy—. O que te parece? —Levantou uma blusa até situar a à altura da cara da Eva e estudou o contraste. A mescla de cores lhe sentava bem. Daisy estava rebuscando em seu armário um conjunto que seu amiga pudesse levar a um almoço na praia. Eva não era uma garota bonita, e os volantes e laços que complementavam muitas dos objetos do Daisy só contribuíam a que Eva parecesse antiquada e desgracioso. As raias lhe pegavam mais a suas facções marcadas. Eva tinha o cabelo negro e os olhos castanho escuro. —Pode levar cores claras —lhe sugeriu Daisy. Eva tinha pouca roupa. Seu pai, médico judeu no Berlim, tinha passado a vida economizando para enviá-la aos Estados Unidos e, fazia um ano, a jovem tinha chegado com posto-o a esse país. Uma organização benéfica lhe tinha pago para que fora ao internato onde estudava Daisy. As jovens tinham a mesma idade: dezenove anos. Não obstante, Eva não tinha aonde ir durante as férias do verão e, em um arrebatamento, seu amiga a tinha convidado a casa. Ao princípio, a mãe do Daisy, Olga, mostrou-se reticente. —Vá, mas se te passa todo o ano no internato, longe de casa...! Tinha muitas vontades de te ter em exclusiva para mim durante o verão. —De verdade que é estupenda, mamãe —havia dito Daisy—. É encantadora, de trato fácil e amiga fiel. —Suponho que te dá pena porque é uma refugiada que foge dos nazistas. —A mim os nazistas trazem sem cuidado, eu gosto dela. —Está bem, mas tem que viver conosco? —Mamãe, não tem aonde ir! como sempre, Olga deixou que Daisy se saísse com a sua. Agora, enquanto ambas as amigas se provavam roupa, Eva retomou a conversação. —Esnobes? Ninguém deveria ser esnobe contigo! —disse Eva. —Pois claro que o serão. —Mas se você for muito bonita e jovial. Daisy não se incomodou em negá-lo. —Isso é o que odeiam de mim. —E é rica. Era certo. O pai do Daisy era rico, sua mãe tinha herdado uma fortuna, e Daisy teria dinheiro ao cumprir os vinte e um. —Isso não significa nada. Nesta cidade o que de verdade conta é desde quando é rico. Se trabalhar, não é ninguém. A élite está formada pelos que vivem de os milhões que lhes deixaram seus bisavôs. —Falou com tom de brincadeira despreocupada para ocultar seu ressentimento. —E seu pai é famoso! —exclamou Eva. —Acreditam que é um gângster. O avô do Daisy, Josef Vyalov, tinha sido dono de bares e hotéis. Seu pai, Lev Peshkov, tinha investido os benefícios na compra de teatros de vodevil de capa queda para convertê-los em cinemas. Nesse momento, além disso, era dono de um estudo de produção de Hollywood. Eva se indignou pelo Daisy. —Como podem dizer semelhante coisa? —Acreditam que era contrabandista. E certamente estão no certo. Se não, não me explico como pôde fazer dinheiro com os bares em plena época da Lei Seca. Em qualquer caso, é o motivo pelo que não convidarão nunca a minha mãe a unir-se à Sociedade de Damas do Buffalo. Ambas ficaram olhando a Olga, que estava sentada na cama de sua filha lendo o Buffalo Sentinel. Em fotografias que lhe tinham tirado de jovem, a mãe de Daisy parecia uma mulher bela de figura esbelta. Na atualidade era gordinha e sem nenhum atrativo destacável. Tinha perdido todo interesse em sua aparência, embora comprava compulsivamente com o Daisy, sem reparar em gastos no empenho de que sua filha luzisse estupenda. Olga levantou a vista do periódico. —Não acredito que a suposta condição de contrabandista de seu pai seja o que de verdade lhes importa, filha —disse—. O que passa é que é imigrante e russo, e as poucas vezes que decide assistir à liturgia religiosa, vai à igreja ortodoxa russa de Ideal Street, o qual é quase tão mau como ser católico. —Isso é muito injusto —comentou Eva. —Devo te advertir, além disso, que tampouco gostam de muito os judeus —acrescentou Daisy. Em realidade, Eva era médio judia—. Sinto ser tão sincera. —Sei tão sincera como quer; depois da Alemanha, este país me parece a terra prometida. —Não te acomode muito —lhe advertiu Olga—. Segundo este periódico, são muitos os diretores de empresa americanas que odeiam ao presidente Roosevelt e admiram ao Adolf Hitler. E me consta, porque o pai do Daisy é um deles. —O que aborrecida é a política —opinou Daisy—. É que não dizem nada interessante no Sentinel? —Sim, sim que há algo interessante. vão apresentar ao Muffie Dixon ante a corte britânica. —Bem por ela —comentou Daisy com acritud, sem poder ocultar a inveja que sentia. Olga leu a notícia: —A senhorita Muriel Dixon, filha do defunto Charles “Chuck” Dixon, cansado na França durante a guerra, acudirá a próxima terça-feira ao palácio do Buckingham em companhia da senhora do Robert W. Bingham, embaixador americano, para ser apresentada ante a corte britânica. Daisy já tinha escutado bastante sobre o Muffie Dixon. —estive em Paris, mas alguma vez em Londres —disse a Eva—. E você? —Nem em um sítio nem em outro —respondeu—. A primeira vez que saí da Alemanha foi para minha travessia rumo aos Estados Unidos. —OH, santo céu! —exclamou Olga de repente. —O que acontece? —perguntou Daisy. Sua mãe enrugou o periódico. —Seu pai levou ao Gladys Angelus à Casa Branca. —O que? —Foi como uma bofetada para o Daisy—. Mas se disse que me levaria ! O presidente Roosevelt tinha organizado uma recepção para um centenar de empresários em um intento de que aceitassem seu new deal. Lev Peshkov opinava que Franklin D. Roosevelt era pior que um comunista, embora lhe adulava que o tivesse convidado à Casa Branca. Entretanto, Olga se tinha negado a acompanhá-lo e tinha argumentado, irada: Não penso fingir ante o presidente que somos um matrimônio normal. Oficialmente, Lev vivia ali, na elegante casa de campo de antes da guerra construída pelo avô Vyalov, embora passava mais noites no moderno apartamento que lhe tinha comprado a seu amante de fazia já tantos anos, Marga. Para cúmulo, todo mundo supunha que tinha uma aventura com a estrela mais lhe rutilem de seu estudo de produção, Gladys Angelus. Daisy entendia por que sua mãe se sentia desprezada. Ela também se sentia rechaçada quando Lev subia ao carro para ir passar a noite com sua outra família. Daisy se tinha emocionado quando seu pai lhe tinha pedido que o acompanhasse à Casa Branca em substituição de sua mãe. A jovem já tinha contado a todo mundo que iria. Nenhum de seus amigos tinha conhecido ao presidente, à exceção dos irmãos Dewar, cujo pai era senador. Lev não lhe havia dito a data exata, e ela tinha suposto que a informaria no último momento, como acostumava a fazê-lo tudo. Entretanto, seu pai havia trocado de idéia ou simplesmente se esqueceu. Fora como fosse, havia tornado a rechaçar ao Daisy. —Sinto muito, céu —disse sua mãe—. Mas seu pai nunca deu muito valor às promessas. Eva se mostrou compassiva. Sua lástima feriu o Daisy. O pai da Eva se encontrava a milhares de quilômetros e cabia a possibilidade de que não voltasse a vê-lo jamais, mas se sentia triste pelo Daisy, como se o padecimento de seu amiga fora pior. Ocorrido-o fez que Daisy se rebelasse; não pensava permitir que lhe arruinasse o dia. —Pois serei a única garota do Buffalo a que tenham dado plantão pelo Gladys Angelus —concluiu—. Bom, o que me ponho? Esse ano se levavam as saias exageradamente curtas em Paris, mas o círculo conservador do Buffalo seguia os cánones da moda parisina guardando certas distâncias. Não obstante, Daisy tinha um vestido de tênis, de comprimento até o joelho, em cor azul celeste como seus olhos. Talvez esse fora o dia ideal para estreá-lo. Se tirou o que levava e ficou o objeto novo. —O que te parece? —perguntou. —OH, Daisy, é muito bonito! Mas… —titubeou Eva. —Lhes sairão os olhos das órbitas —concluiu Olga. Gostava quando sua filha se vestia para matar. Pode que lhe recordasse sua própria juventude. —Daisy, se forem tão esnobes, por que quer ir à festa? —Irá Charlie Farquharson, e estou pensando em me casar com ele —esclareceu Daisy. —Fala a sério? —É uma grande partida —acrescentou Olga com entusiasmo. —Como é? —perguntou Eva. —Totalmente adorável —disse Daisy—. Não é o menino mais bonito do Buffalo, mas é carinhoso e amável, e bastante tímido. —Parece muito distinto a ti. —Os pólos opostos se atraem. —Os Farquharson —atravessou Olga de novo— se contam entre as famílias mais antigas do Buffalo. Eva arqueou suas negras sobrancelhas. —São esnobes? —E muito —respondeu Daisy—. Mas o pai do Charlie perdeu todo seu dinheiro durante o crash da Wall Street e morreu; se suicidó, em realidade. Por isso precisam recuperar a fortuna familiar. Eva ficou pasmada. —Esperas que se case contigo por dinheiro? —Não, casará-se comigo porque o deslumbrarei. Mas sua mãe me aceitará por meu dinheiro. —Há dito que o deslumbrará. E ele está ao tanto? —Ainda não. Mas acredito que poderia começar esta tarde. Sim, este é o vestido ideal, está decidido. Daisy ficou o azul celeste e Eva o de raias brancas e azuis. Quando por fim estiveram preparadas, já lhes tinha feito tarde. A mãe do Daisy não tinha chofer. —Casei-me com o chofer de meu pai e isso me arruinou a vida —dizia em ocasiões. Aterrorizava-lhe que Daisy acabasse cometendo um engano similar, por isso gostava tanto Charlie Farquharson. Se precisava ir a algum sitio em seu desmantelado Stutz de 1925, fazia que Henry, o jardineiro, tirasse-se as botas de borracha e se embainhasse um traje negro. Entretanto, sua filha tinha carro próprio: um coupé esportivo Chevrolet de cor vermelha. Ao Daisy gostava de conduzir, adorava o poder e a velocidade que sentia ao volante. dirigiam-se para a saída sul da cidade, e a verdade era que lamentava estar a tão só oito quilômetros da praia a que foram. Enquanto conduzia ia imaginando sua vida como esposa do Charlie. Com o dinheiro que ela tinha e a posição social dele, seriam o casal de moda na sociedade do Buffalo. Em seus jantares, as mesas seriam tão elegantes que os convidados ficariam boquiabertos do assombro. Teriam o iate com maior comprimento do navio do embarcadero e celebrariam festas a bordo para outros casais ricos e amantes da diversão. Todos desejariam receber um convite da senhora do Charles Farquharson. Não haveria acontecimento benéfico com êxito sem a presença do Daisy e Charlie na mesa presidencial. Daisy se montou tudo o filme e se imaginou com um muito elegante vestido confeccionado em Paris, caminhando entre uma multidão de homens e mulheres que a admiravam enquanto ela recebia seus cumpridos com um grácil sorriso. Seguia sonhando acordada quando por fim chegaram a seu destino. A cidade do Buffalo se encontrava ao norte do estado de Nova Iorque, próxima à fronteira com o Canadá. A praia do Woodlawn era um areal de quilômetro e médio à beira do lago Erie. Daisy estacionou, e Eva e ela cruzaram as dunas. Já tinham chegado umas cinqüenta ou sessenta pessoas. Eram os filhos adolescentes da élite do Buffalo: um grupito privilegiado que passava os verões navegando e praticando esqui aquático durante o dia e assistindo a festas e a bailes de noite. Daisy saudou as pessoas que conhecia, que era quase todo mundo, e foi apresentando a Eva. serviram-se umas taças de ponche. Daisy o provou com cautela: a alguns meninos parecia hilariante enfeitar as bebidas com um par de garrafas de genebra. A festa se celebrava em honra ao Dot Renshaw, uma jovem de língua afiada com quem ninguém queria casar-se. Os Renshaw eram uma antiga família do Buffalo, como os Farquharson, mas sua fortuna tinha sobrevivido ao crash. Daisy se assegurou de aproximar-se do anfitrião, o pai do Dot, para lhe dar as obrigado. —Sinto o atraso —se desculpou—. perdi a noção do tempo! Philip Renshaw a olhou de pés a cabeça. —Essa saia é muito curta. —A desaprovação competiu com a lascívia em seu olhar. —Me alegro muito de que goste de —respondeu Daisy, fingindo que tinha entendido claramente o comentário como um completo. —Em qualquer caso, está bem que por fim tenha chegado —prosseguiu ele—. vai vir um fotógrafo do Sentinel e necessitamos que saiam garotas bonitas na foto. —Por isso me hão convidado… Que amável por sua parte me haver isso dito! —sussurrou Daisy ao ouvido da Eva. Dot se aproximou. Tinha o rosto afiado e o nariz bicudo. Daisy sempre tinha pensado que tinha cara de estar a ponto de dar um bicada a alguém. —Acreditava que foi com seu pai a conhecer presidente —lhe soltou. Daisy se sentiu morrer. Desejou não ter presumido disso acima de tudo o mundo. —Já vi que levou a seu… Isto… Como dizê-lo…? A sua atriz principal —disse Dot—. É algo que não se usa muito na Casa Branca. Daisy respondeu: —Suponho que ao presidente também gosta de conhecer estrelas de cinema de vez em quando. merece-se um pouco de glamour, não te parece? —Não acredito que Eleanor Roosevelt o tenha aprovado. Segundo o Sentinel, todos outros convidados levaram a suas algemas. —Que cavalheiros tão considerados! —Daisy deu meia volta, em desesperada fuga. Localizou ao Charlie Farquharson, que tentava instalar uma rede para jogar tênis praia. Ele era muito bom para burlar-se do Daisy pelo assunto do Gladys Angelus. —Como está, Charlie? —perguntou, animada. —Bem, suponho. —incorporou-se: era um moço alto de uns vinte e cinco anos, com ligeiro sobrepeso e um pouco curvado, como se temesse que sua altura resultasse intimidatória. Daisy apresentou a Eva. O desconforto que sentia Charlie em companhia de outras pessoas era enternecedora, sobre tudo com as garotas, embora fez um esforço e perguntou a Eva se gostava dos Estados Unidos e que notícias tinha recebido de sua família no Berlim. Eva lhe perguntou se estava desfrutando do lanche. —Não muito —respondeu ele com ingenuidade—. Preferiria estar em casa com meus cães. Não cabia dúvida de que acreditava que era mais fácil tratar com seus mascotes que com as garotas, ou isso pensava Daisy. Mas o fato de que mencionasse aos cães era um dado interessante. —De que raça são? —perguntou-lhe ela. —Terriers Jack Russell. Daisy o memorizou. Lhes aproximou uma mulher de facções angulosas e uns cinqüenta anos. —Pelo amor de Deus, Charlie, ainda não puseste a rede? —Já quase está, mamãe —respondeu. Nora Farquharson levava uma fina pulseira de ouro, das que se puseram de moda nas pistas de tênis, brincos de diamante e um colar do Tiffany; mais jóias das realmente necessárias para assistir a um lanche. Ao Daisy lhe ocorreu que a pobreza dos Farquharson era relativa. Afirmavam que o tinham perdido tudo, mas a senhora Farquharson seguia tendo donzela, chofer e um par de cavalos para sair a montar pelo parque. —Boa tarde, senhora Farquharson. Esta é minha amiga Eva Rothmann, do Berlim. —Encantada —disse Nora Farquharson sem lhe tender a mão. Não sentia necessidade alguma de ser amável com os russos arrivistas, nem muito menos com os convidados judeus. Então pareceu como se tivesse tido uma súbita ocorrência. —Ah, Daisy!, pode te dar uma volta e averiguar a quem gosta de jogar tênis? A jovem sabia que estava tratando-a como a uma criada, mas decidiu ser complacente. —É obvio —respondeu—. Proponho casais mistos. —Boa idéia. —A senhora Farquharson lhe entregou um lápis pequeno e uma parte de papel—. Aponta os nomes. Daisy sorriu com doçura e se tirou da bolsa uma caneta dourada e uma pequena libretita com tampas de couro. —Vou equipada. Sabia quem jogavam tênis: quais eram bons e os quais eram maus. Pertencia ao Clube de Tênis, que não era tão exclusivo como o Clube Náutico. Emparelhou a Eva com o Chuck Dewar, o filho de quatorze anos do senador Dewar. Pôs ao Joanne Rouzrokh com o primogênito dos Dewar, Woody, que solo tinha quinze anos, mas que já era tão alto como o larguirucho de seu pai. Naturalmente, ela se apontou como casal do Charlie. Daisy se surpreendeu ao topar-se com alguém que lhe resultava familiar: seu meio-irmão, Greg, o filho da Marga. Não se encontravam freqüentemente, e fazia um ano que não via-o. Ao parecer, nesse lapso de tempo, feito-se um homem. Media uns quinze centímetros mais e embora tinha sozinho quinze anos, a sombra de uma barba aparecia em seu rosto. De pequeno ia sempre despenteado e nisso não tinha trocado. Vestia sua roupa cara com despreocupação: as mangas da americana arregaçadas; a gravata a raias com o nó solto; as calças de linho com as pernas das calças molhadas pelo mar e cheias de areia. Daisy sempre se sentia envergonhada ao encontrar-se com o Greg. Era a prova vivente das vezes que seu pai as abandonava a ela e a sua mãe para estar com Marga e seu filho. Muitos homens casados tinham aventuras, Daisy já sabia; mas seu pai, e não outro, era o que fazia ornamento de uma descarada indiscrição em todas as festas. Seu pai deveria ter levado a viver a Marga e ao Greg a Nova Iorque, onde todo mundo era anônimo, ou a Califórnia, onde ninguém via nada mau em o adultério. No Buffalo, eram objeto de escândalo permanente, e Greg era parte da razão pela que outros olhavam ao Daisy por cima do ombro. O moço teve a cortesia de lhe perguntar como estava. —Estou até o coque, se por acaso te interessa —respondeu ela—. Meu pai me decepcionou… outra vez. —O que tem feito? —perguntou Greg com cautela. —Tinha-me pedido que fora com ele à Casa Branca… e ao final levou a essa fulana do Gladys Angelus. Agora sou o bobo da cidade. —Deve ter sido uma boa estratégia publicitária para Paixão, seu novo filme. —Você sempre te põe de sua parte porque é seu preferido. Greg pareceu molesto. —Talvez é porque eu o admiro em lugar de estar me queixando continuamente pelo que faz. —Não… —Daisy esteve a ponto de negar que sempre se estivesse queixando, mas se deu conta de que era certo—. Bom, ao melhor sim que me queixo, mas ele poderia cumprir suas promessas, não crie? —Tem muitas coisas na cabeça. —Pois ao melhor não deveria ter dois amantes além de uma esposa. Greg se encolheu de ombros. —Não pode atender a todo mundo. Ambos caíram na conta de como tinha divulgado aquilo e, passados uns segundos, romperam a rir. —Bom, suponho que não deveria te culpar a ti. Você não pediu nascer —disse Daisy. —E suponho que eu não deveria te culpar a ti por te levar a meu pai três noites à semana, sem importar o muito que chorasse ou lhe rogasse que não partisse. Daisy jamais o tinha considerado desde essa óptica. Para ela, Greg era o usurpador, o filho ilegítimo que não parava de lhe roubar a seu pai. Entretanto, nesse momento, deu-se conta de que ele se sentia tão ferido como ela. ficou olhando-o. Algumas garotas podiam considerá-lo atrativo, supôs. Não obstante, era muito jovem para a Eva. E certamente se converteria em um homem tão egoísta e informal como seu pai. —Em qualquer caso —disse Daisy—, sabe jogar tênis? Ele negou com a cabeça. —No Clube de Tênis não admitem a gente como eu. —Forçou um sorriso de indiferença e Daisy se deu conta de que, ao igual que ela, Greg se sentia rechaçado por a sociedade do Buffalo—. Eu pratico o hóquei sobre gelo —esclareceu. —Lástima. Daisy seguiu com sua ronda. Quando já teve suficientes nomes, retornou junto ao Charlie, que por fim tinha conseguido instalar a rede. Enviou a Eva a procurar os dois primeiros casais do primeiro partido de dobre. —me ajude a preparar o quadro de enfrentamentos —pediu ao Charlie. ajoelharam-se um ao lado do outro e riscaram um diagrama na areia com eliminatórias, semifinais e uma final. —Você gosta do cinema? —perguntou Charlie enquanto escreviam os nomes. Daisy pensou em se estaria a ponto de lhe pedir uma entrevista. —Claro —respondeu. —Por acaso viu Paixão? —Não, Charlie, não a vi —respondeu, exasperada—. A protagoniza a amante de meu pai. Ele ficou perplexo. —A imprensa diz que são sozinho bons amigos. —E por que crie que a senhorita Angelus, que logo que tem vinte anos, é tão amiguita de meu pai, que já tem quarenta? —perguntou Daisy com sarcasmo—. Crie que gosta de seu cabelo, que já começa a ralear? Ou sua barriga incipiente? Ou serão mas bem seus cinqüenta milhões de dólares? —Ah, entendo —disse Charlie, envergonhado—. O sinto. —Não deveria senti-lo. fui um pouco bruta. Você não é como outros… não pensa sempre o pior de todo o mundo. —Suponho que sou um parvo. —Não. É agradável. Charlie parecia envergonhado, embora encantado. —vamos pôr nos com isto —propôs Daisy—. Temos que arrumá-lo para que os melhores jogadores cheguem a final. Nora Farquharson voltou a fazer ato de presença. Olhou ao Charlie e ao Daisy ajoelhados um junto ao outro na areia e ficou contemplando seu desenho. —Está bastante bem, mamãe, não te parece? —Desejava sua aprovação, saltava à vista. —Muito bem. —E escrutinou ao Daisy com o olhar, como uma cadela que vê que um desconhecido se aproxima de seus cachorrinhos. —Charlie o tem feito quase tudo —esclareceu Daisy. —Não, não é certo —desmentiu a senhora Farquharson sem nenhum reparo. Dirigiu o olhar para seu filho e voltou a esquadrinhar ao Daisy—. É uma garota lista —opinou. Olhou-a como se estivesse a ponto de acrescentar algo mais, mas duvidasse se fazê-lo. —O que? —perguntou Daisy. —Nada —respondeu ela. Daisy se levantou. —Sei o que estava pensando —murmurou a Eva. —O que? —É uma garota lista… E seria quase o bastante boa para meu filho se pertencesse a uma família melhor. Eva se mostrou cética. —Isso não pode sabê-lo. —Claro que posso. E me casarei com ele embora solo seja para demonstrar que sua mãe se equivoca. —OH, Daisy!, por que te importa tanto o que pense esta gente? —vamos ver a partida de tênis. Daisy se sentou na areia junto ao Charlie. Talvez não fora bonito, mas adoraria a sua esposa e faria algo por ela. A sogra seria um problema, mas Daisy estava convencida de poder arrumar-lhe —Quizá debería ir a ver Pasión —dijo. Tirou Joanne Rouzrokh, que era alta e levava uma faldita branca que ressaltava suas largas pernas. Seu casal, Woody Dewar, que era inclusive mais alto, passou-lhe a bola. Houve algo em sua forma de olhar ao Joanne que fez pensar ao Daisy que se sentia atraído por ela, pode que inclusive estivesse apaixonado. Mas ele tinha quinze anos e ela dezoito, assim não tinham nenhum futuro. Daisy se voltou para o Charlie. —Possivelmente deveria ir ver Paixão —disse. Ele não captou a indireta. —Sim, possivelmente sim —respondeu com indiferença. Já não era o momento. Daisy se voltou para a Eva. —Eu gostaria de saber onde posso comprar um terrier Jack Russell. II Lev Peshkov era o melhor pai que um filho pode ter, ou ao menos o teria sido se se tivesse deixado cair um pouco mais por casa. Era rico e generoso, era mais preparado que ninguém e, além disso, vestia bem. Certamente tinha sido bonito de jovem já que inclusive em sua maturidade as mulheres caíam rendidas a seus pés. Greg Peshkov o adorava e sua única queixa era que não o via o suficiente. —Deveria ter vendido a maldita fundição quando tive a oportunidade —se lamentou Lev enquanto percorriam a fábrica silenciosa e vazia—. Já perdia dinheiro incluso antes da condenada greve. Deveria me limitar aos cinemas e aos bares. —Agitou um dedo com gesto didático—. A gente sempre gasta em álcool, nos bons e nos maus tempos. E vão ao cinema embora não possam permitir-lhe Nunca o esqueça. Ao Greg constava que seu pai não estava acostumado a colocar a pata em questão de negócios. —Então, por que lhe ficou? —perguntou. —Por sentimentalismo —respondeu Lev—. Quando tinha sua idade trabalhava em um lugar como este, na fábrica metalúrgica Putílov, em São Petersburgo. —Jogou uma olhada às caldeiras, os moldes, os tornos, os cabrestantes e os bancos de trabalho que os rodeavam—. Em realidade, aquele lugar era muito pior. Metalurgia Buffalo fabricava ventiladores mecânicos de todas classes, incluídas gigantescas hélices para navios. Greg sentia verdadeira fascinação pela matemática dos sinais de multiplicação curva. Era o primeiro da classe em matemática. —Foi engenheiro? —perguntou. Lev sorriu de brinca a orelha. —Isso é o que conto quando tenho que impressionar a alguém —respondeu—. Mas a verdade é que cuidava os cavalos. Era a moço de quadras. Jamais me deram bem as máquinas. Esse era o talento de meu irmão Grigori. Você saíste a ele. Bom, ao que ia: nunca compre uma fundição. —Não o farei. Greg tinha que passar o verão pego a seu pai para aprender o negócio. Lev acabava de retornar de Los Anjos, e as lições paternas tinham começado aquele mesmo dia. Entretanto, o menino não queria saber coisas sobre a fundição. Era bom em matemática, mas o que lhe interessava era o poder. Desejava que seu pai levasse-o em uma de suas freqüentes viagens a Washington em busca de financiamento para a indústria do cinema. Ali era onde se tomavam as autênticas decisões. Greg estava desejando que chegasse a hora do almoço. Seu pai e ele foram reunir se com o senador Gus Dewar. Greg queria lhe pedir um favor. Não obstante, não o tinha comentado ainda com seu pai. Punha-lhe nervoso o perguntar-lhe assim, em lugar de fazê-lo, disse: —tornaste ou seja algo de seu irmão do Leningrado? Lev negou com a cabeça. —Não da guerra. Não me surpreenderia que tivesse morrido. Muitos velhos bolcheviques desapareceram. —E falando da família, na sábado vi minha meio-irmã. Foi em um lanche celebrado na praia. —Passaram-no bem? —Está muito zangada contigo, sabia? —O que tenho feito agora? —Disse que a levaria a Casa Branca e logo levou ao Gladys Angelus. —É verdade. Esqueci-o. Mas é que queria promocionar Paixão. Lhes aproximou um homem alto com um traje de raias que resultava grosseiro inclusive para a moda da época. —bom dia, chefe —disse o homem, que se tocou a asa de seu chapéu fedora. —Joe Brekhunov se encarrega da segurança deste lugar. Joe, este é meu filho Greg —disse Lev. —O que acontece, menino! —respondeu Brekhunov. Greg lhe estreitou a mão. Como em muitas fábricas, a fundição tinha seu próprio corpo de polícia. Embora Brekhunov tinha mais pinta de gorila que de poli. —Tudo bem? —perguntou Lev. —Um pequeno incidente noturno —respondeu Brekhunov—. Dois operários tentaram surrupiar uma barra de aço de uns quarenta centímetros, de qualidade aeronáutica. Jogamo-lhes a luva tentando acontecê-la por cima da grade. —chamaste à polícia? —perguntou Greg. —Não tem feito falta. —Brekhunov sorriu de forma exagerada—. tivemos uma charlita sobre o conceito de propriedade privada e os enviamos ao hospital a pensar pelo que falamos. Ao Greg não surpreendeu saber que os encarregados da segurança de seu pai houvessem propinado semelhante surra aos ladrões para enviá-los diretos ao hospital. Embora Lev jamais tinha pego nem a ele nem a sua mãe, Greg intuía que a violência era um rasgo que aflorava facilmente à encantadora superfície do caráter de seu pai. Supunha que era pelo passado juvenil do Lev nos baixos recursos de São Petersburgo. Um tipo corpulento com traje azul e boina de operário apareceu por detrás de uma caldeira. —Este é o chefe do sindicato, Brian Hall —anunciou Lev—. bom dia, Hall. —bom dia, Peshkov. Greg levantou as sobrancelhas. A gente estava acostumada dirigir-se a seu pai chamando-o senhor Peshkov. Lev estava em pé com as pernas separadas e os braços em jarra. —Bom, já tem uma resposta? A Hall trocou a expressão da cara, que agora refletia teima. —Os homens não voltarão para trabalho com um recorte salarial, se for isso ao que te refere. —Mas se tiver melhorado minha oferta! —Segue sendo um recorte salarial. Greg começou a ficar nervoso. A seu pai não gostava que lhe levassem a contrária e podia estalar em qualquer momento. —O gestor me há dito que não recebemos encargos porque não pode ofertar um preço competitivo com o que gastamos em salários. —Isso te passa porque tem a maquinaria antiquada, Peshkov. Há caldeiras que estavam aqui antes da guerra! Precisa te modernizar. —Em plena depressão? perdeste o julgamento? Não penso atirar mais dinheiro. —Isso é o que opinam seus homens —sentenciou Hall, com ire de ter sabido jogar sua vaza—. Não pensam te dar dinheiro quando não têm suficiente nem para eles mesmos. Greg pensou que os operários eram idiotas porque faziam greve em plena depressão e lhe enfurecia o coalho demonstrado por Hall. O homem falava como se fora um igual do Lev, não seu empregado. —Bom, tal como estão as coisas, estamos perdendo dinheiro —esclareceu Lev—. Que sentido tem isso? —Agora já não está em minhas mãos —anunciou Hall. Ao Greg soou petulante—. O sindicato vai enviar uma equipe da central para que se encarregue do tema. —Se tirou um pomposo relógio de aço do bolso do colete—. Teriam que chegar de trem dentro de uma hora. Ao Lev lhe escureceu o rosto. —Não necessitamos a ninguém de fora que deva criar problemas. —Se não querer problemas, não deveria havê-los provocado. Lev fechou um punho, mas Hall partiu. Peshkov se voltou para o Brekhunov. —Sabia algo desses tipos da central? —perguntou, furioso. O valentão parecia nervoso. —Agora mesmo me encarrego, chefe. —Averigua quem som e onde vão alojar se. —Não será difícil. —Logo envia os de volta a Nova Iorque em uma maldita ambulância. —deixe-me isso , chefe. Lev se voltou e Greg o seguiu. Isso sim que é poder, pensou o jovem com certo assombro. Seu pai dava a ordem e os chefes sindicais recebiam uma surra. Saíram ao exterior e subiram ao carro do Lev, um sedan Cadillac de cinco lugares, um modelo da nova linha aerodinâmica. Seu pára-lama alargados e curvilíneos recordavam ao Greg os quadris femininos. Lev conduziu pelo Porter Avenue até o mole e estacionou no Clube Náutico do Buffalo. A luz do sol projetava formosos reflexos sobre os navios do porto esportivo. Greg estava bastante seguro de que seu pai não pertencia a aquele clube elitista. Gus Dewar devia ser membro. Avançaram pelo embarcadero. A sede do clube estava construída sobre uns pilares inundados na água. Lev e Greg entraram e deixaram seus chapéus no guarda-roupa. O jovem se sentiu incômodo imediatamente, consciente de que era um convidado em um clube que não o admitia como membro. As pessoas ali pressente certamente acreditavam que se sentia privilegiado de que lhe permitissem a entrada. meteu-se as mãos nos bolsos e caminhou curvado e arrastando os pés, para dar a entender que não se deixou impressionar. —Antes eu era membro deste clube —disse Lev—. Mas em 1921, o presidente me disse que tinha que renunciar porque era um contrabandista. Logo me pediu que lhe vendesse uma caixa de uísque. —por que quer comer contigo o senador Dewar? —perguntou Greg. —Agora saberemos. —Importa-te se lhe peço um favor? Lev franziu o cenho. —Suponho que não. O que anda tramando? Entretanto, antes de que Greg pudesse responder, Lev saudou um homem de uns sessenta anos. —Este é Dave Rouzrokh —disse ao Greg—. É meu principal competidor. —Adula-me —disse o homem. As salas de cinema Roseroque era uma cadeia de desvencilhados cinemas de Nova Iorque, embora seu dono era a antítese da decrepitude. Possuía certo ar patrício: era alto, grisalho e com nariz aquilino. Levava uma americana de cachemira azul com o escudo do clube no bolso do peitilho. —Este sábado tive o prazer de ver jogar tênis a sua filha Joanne —comentou Greg. Dave se mostrou encantado. —É bastante boa, verdade? —Muito boa. —Me alegro de te haver encontrado, Dave… Estava pensando em te chamar —disse Lev. —por que? —Seus cinemas necessitam uma remodelação. ficaram-se muito antiquados. Ao Dave pareceu lhe fazer graça. —Tinha pensado em me chamar para me dizer isso? —por que não toma medidas? O homem se encolheu de ombros com elegância. —Para que incomodar-se? Ganho dinheiro suficiente. A minha idade, já não me interessa me colocar em confusões. —Certamente poderia dobrar seus benefícios. —Subindo o preço das entradas. Não, obrigado. —Está louco. —Não todo mundo está obcecado com o dinheiro —replicou Dave com certo desprezo. —Então, vende me sugeriu isso Lev. Greg estava surpreso. Isso não o esperava. —Farei-te uma boa oferta —acrescentou Lev. Dave negou com a cabeça. —Eu gosto de ser dono de uns cinemas —afirmou—. Entretêm às pessoas. —Oito milhões de dólares —ofereceu Lev. Greg estava desconcertado. Pensou: De verdade acabo de ouvir meu pai oferecer oito milhões de dólares?. —É um preço justo —admitiu Dave—. Mas não vou vender. —Ninguém te dará tanto —insistiu Lev, exasperado. —Já sei. —Dave pôs cara de ter suportado já bastante intimidação. Apurou a taça de um sorvo—. Encantado de lhes haver visto ambos —disse, e se afastou do bar em direção ao comilão. Lev parecia enojado. —Não todo mundo está obcecado com o dinheiro —repetiu—. O bisavô do Dave chegou a este país desde a Persia faz cem anos com o que tinha posto e seis tapetes. Ele não teria rechaçado oito milhões de dólares. —Não sabia que tinha tanto dinheiro —comentou Greg. —Não o tenho, não em dinheiro lhe contem e lhe soem. Para isso estão os bancos. —Então, teria pedido um empréstimo para pagar ao Dave? Lev levantou uma vez mais o dedo indicador. —Nunca use seu próprio dinheiro se pode gastar o de outros. Gus Dewar entrou; era um homem alto com a cabeça alargada. Tinha uns quarenta e tantos e seu cabelo castanho claro estava jaspeado de cãs. Saudou-os com despreocupada cortesia, estreitou-lhes a mão e lhes ofereceu uma taça. Greg se precaveu imediatamente da mútua animadversión que se professavam Lev e Gus. Temeu que isso supusera que o senador não fora a lhe fazer o favor que queria lhe pedir. Possivelmente devia esquecê-lo tudo. Gus era um peixe gordo. Seu pai já tinha sido senador, uma sucessão dinástica que, em opinião do Greg, não formava parte dos costumes norte-americanos. Gus havia ajudado ao Franklin D. Roosevelt a converter-se em governador de Nova Iorque e mais tarde em presidente. Agora era membro da poderosa Comissão de Relações Exteriores do Senado. Seus filhos, Woody e Chuck, foram ao mesmo colégio que Greg. Woody era um cerebrito; Chuck, um esportista destacado. —Senador, o presidente te ordenou que arrume o de minha greve? —perguntou Lev. —Não… Não ainda, em qualquer caso. —Gus sorriu. Lev se voltou para o Greg. —A última vez que houve uma greve na fundição, faz vinte anos, o presidente Wilson enviou ao Gus a me intimidar para que subisse o salário aos operários. —Economizei-te dinheiro —comentou o senador com amabilidade—. Pediam um dólar mais e eu o arrumei para que fora a metade. —Que foram exatamente cinqüenta centavos mais do que eu queria lhes dar. Gus sorriu e se encolheu de ombros. —Comemos? Entraram em comilão. —O presidente se alegra de que tenha podido assistir à recepção na Casa Branca —disse Gus assim que tomaram nota. —Certamente não deveria ter levado ao Gladys —admitiu Lev—. A senhora Roosevelt esteve algo fria com ela. Suponho que não gosta das estrelas de cinema. Greg pensou: O que certamente não gosta de são as estrelas de cinema que se deitam com homens casados, mas não disse nada. Gus conversou com despreocupação enquanto comiam. Greg esperou que chegasse o momento adequado para lhe pedir o favor. Queria trabalhar em Washington um verão, para aprender como funcionava tudo e fazer contatos. Seu pai certamente poderia lhe haver conseguido algum trabalho dentro da Casa Branca, como bolsista, mas haveria sido com algum político republicano e sua partida já não estava no poder. Greg queria trabalhar para o grupo do influente e respeitado senador Dewar, amigo pessoal e aliado do presidente. perguntou-se a si mesmo por que lhe poria tão nervoso o fato de pedir-lhe Quão pior podia ocorrer era que Dewar se negasse a ajudá-lo. Quando terminaram a sobremesa, Gus foi direto ao grão. —O presidente me pediu que fale contigo sobre a Liberty League —anunciou. Greg tinha ouvido falar dessa organização: um grupo ultraconservador que se opunha ao new deal. Lev acendeu um cigarro e jogou a fumaça pela boca. —Devemos nos manter em guarda ante o sigiloso avanço do socialismo. —O new deal é o único que nos libera do pesadelo que estão vivendo na Alemanha, por exemplo. —os da Liberty League não são nazistas. —Ah, não? Têm um plano de levantamento armado para derrocar ao presidente. Não é algo realista, é obvio, mas de todas formas… —Acredito que tenho direito a ter minhas próprias idéias. —Pois está apoiando às pessoas equivocada. os da Liberty League não têm nada que ver com a liberdade e você sabe. —Não me fale de liberdade —lhe espetou Lev com raiva contida—. Quando tinha doze anos, a polícia de São Petersburgo me deu uma surra porque meus pais estavam em greve. Greg não estava seguro de por que havia dito isso seu pai. A brutalidade do regime do czar parecia um argumento a favor do socialismo, não em seu contrário. —Roosevelt sabe que financia a Liberty League e quer que deixe de fazê-lo. —Como sabe ele a quem lhe dou dinheiro? —O conta o FBI. Investigam a gente como essa. —Vivemos em um Estado policial! E você te faz chamar liberal. Os argumentos de seu pai não tinham muita lógica, Greg se precaveu disso. Lev estava fazendo todo o possível para pilhar despreparado ao Gus e não lhe importava ter que contradizer-se no processo. O senador permaneceu tranqüilo. —Estou tentando conseguir que não se converta em um assunto policial —advertiu. Lev sorriu. —O presidente sabe que te levantei a prometida? Isso era novo para o Greg, mas tinha que ser certo, porque Lev conseguiu por fim desestabilizar ao Gus. O senador parecia fora de combate; apartou o olhar e se ruborizou. Primeiro tanto para nossa equipe, pensou Greg. Lev o explicou a seu filho. —Gus estava prometido com a Olga, em 1915 —disse—. Mas ela o pensou melhor e se casou comigo. Gus recuperou a compostura. —Fomos todos muito jovens. —Está claro que esqueceu a Olga bastante rápido —comentou Lev. Gus dedicou ao Lev um olhar gélido. —Você também —lhe soltou. Greg se precaveu de que então foi seu pai o envergonhado. O senador se marcou um tanto. produziu-se um violento silêncio e Gus o rompeu. —Você e eu estivemos em uma guerra, Lev. Eu estava em um batalhão de metralhadoras com meu amigo da escola Chuck Dixon. Em um pueblecito francês chamado Château-Thierry, Chuck voou em pedaços diante de meus narizes. —Gus mantinha um tom de conversação cordial, mas Greg caiu na conta de que ele estava contendo a respiração. O senador prosseguiu—: O que ambiciono para meus filhos é que não tenham que passar nunca pelo que nós passamos. Essa é a razão pela que terá que cortar de raiz a existência de grupos como a Liberty League. Greg viu que essa era sua oportunidade. —Eu também estou interessado em política, senador, e eu gostaria de aprender mais. Poderia me empregar como ajudante durante um verão? —Conteve a respiração. Gus pareceu surpreso. —Sempre me vem bem ter um jovem a meu lado disposto a trabalhar em equipe —disse ao final, o qual não era nem um sim nem um não. —Sou o primeiro da classe em matemática e capitão da equipe de hóquei —insistiu Greg aproveitando para vender-se—. Pergunte ao Woody sobre mim. —Farei-o. —Gus se voltou para o Lev—. E você pensará na petição do presidente? É muito importante. Dava a sensação de que Gus estava sugiriendo um intercâmbio de favores. Mas acessaria a isso Lev? O pai do Greg se mostrou dúbio durante comprido momento, apagou o cigarro e disse: —Suponho que poderíamos fazer um trato. O senador se levantou. —Bem —disse—. O presidente estará encantado. Consegui-o!, pensou Greg. Saíram do clube e se dirigiram aos carros. Quando chegavam ao estacionamento, Greg disse: —Obrigado, papai. Agradeço-te o que tem feito de todo coração. —soubeste escolher o momento —disse Lev—. Me alegro de que seja tão preparado. O completo encantou ao Greg. Em certa forma sabia mais que Lev —sem dúvida alguma entendia melhor as ciências em geral e as matemática em particular—, mas temia não ser tão ardiloso como seu pai. —Quero que seja um tipo preparado —prosseguiu Lev—. Não como um desses mudas de alface. —Greg não tinha nem idéia dos quais eram os mudas de alface—. Tem que ir sempre um passo por diante de outros. Assim é como se avança na vida. Lev conduziu até seu escritório, situado em um moderno edifício do centro da cidade. —Agora vou dar uma lição a esse idiota do Dave Rouzrokh —disse Lev quando entraram no vestíbulo de mármore. Enquanto subiam no elevador, Greg se perguntou como teria pensado fazê-lo. Peshkov Pictures ocupava todo o apartamento de cobertura. Greg seguiu ao Lev por um largo corredor e até uma zona de recepção com duas secretárias jovens e atrativas. —me ponha a Sol Starr ao telefone, quer? —ordenou Lev ao entrar em seu escritório. O senhor Peshkov se sentou depois da mesa de escritório. —Solly é dono de um dos estudos mais importantes de Hollywood —explicou. O telefone do escritório soou e Lev ficou ao aparelho. —Sol! —exclamou—. Como está? —Greg escutou os sarcasmos entre machitos e, passado um momento, Lev foi direto ao grão—. Um consejito —disse—. Aqui em Nova Iorque há uma cadeia de cinemas de má morte chamados Salas Roseroque… Sim, essa é… me faça caso, não lhes envie filmes de estréia este verão, pode que não lhe paguem. —Greg soube que aquilo suporia um duro golpe para o Dave: sem emocionantes filmes de estréia que exibir, a arrecadação da bilheteria cairia em picado—. A bom entendedor… Já sabe o que quero dizer. Solly, não me dê as obrigado, você fazer o mesmo por mim. Uma vez mais, Greg ficou aniquilado ante o poder de seu pai. Podia fazer que dessem uma surra a alguém. Podia oferecer oito milhões de dólares do dinheiro de outros. Podia amedrontar ao presidente. Podia seduzir à prometida de outro homem. E podia arruinar um negócio com uma simples chamada Telefónica. —Você espera e verá —anunciou seu pai—. dentro de um mês, Dave Rouzrokh me rogará que lhe compre o negócio pela metade de dinheiro que lhe ofereci hoje. III —Não sei o que ocorre a este cachorrinho —se lamentou Daisy—. Não faz nada do que lhe ordeno. Estou me voltando louca. —Tremia-lhe a voz e tinha os olhos banhados em lágrimas, e isso que estava exagerando sozinho um pouco. Charlie Farquharson olhou de perto ao cão. —Não lhe ocorre nada —sentenciou—. É um cachorrinho encantador. Como se chama? —Jack. —Mmm… Estavam sentados no impecável jardim de oito mil metros quadrados da casa do Daisy. Eva tinha saudado o Charlie e logo tinha tido o detalhe de retirar-se a escrever uma carta para sua família. O jardineiro, Henry, estava passando a enxada a um canteiro de pensamentos violetas e amarelos situado ao longe. Sua esposa, Ela, a criada, tinha-lhes levado uma jarra de limonada e um par de copos, e os tinha disposto sobre uma mesita dobradiça. O cachorrinho era um pequeno terrier Jack Russell, miúdo e robusto, branco com manchitas marrons. Tinha um olhar inteligente, como se entendesse todas e cada uma das palavras que lhe diziam, mas, ao parecer, não estava muito disposto a obedecer. Daisy o tinha sobre o regaço e lhe acariciava o focinho com a clara intenção de inquietar ao Charlie, de uma forma que lhe resultava extrañamente desconcertante. —Você não gosta do nome? —Não te parece um tanto óbvio? —Charlie ficou olhando a branca mão sobre o focinho do cão e se removeu com desconforto na cadeira. Daisy não queria exceder-se. Se excitava muito ao Charlie, acabaria por partir a sua casa. Era a razão pela que seguia solteiro aos vinte e cinco: várias garotas do Buffalo, incluídas Dot Renshaw e Muffie Dixon, tinham fracassado em seu intento de lhe jogar a luva. Mas Daisy era diferente. —Então deveria lhe pôr você nomeie —sugeriu ela. —Convém que seja um nome de duas sílabas, como Bonzo, para que lhe resulte mais fácil reconhecê-lo. Daisy não tinha nem idéia de como pôr nome a um cão. —O que te parece Rover? —Muito comum. Rusty estaria melhor. —Perfeito! —exclamou ela—. Então se chamará Rusty. O cão conseguiu escapar sem esforço do Daisy e saltou ao chão. Charlie o levantou. A jovem se fixou em que tinha as mãos grandes. —Tem que ensinar ao Rusty que você é a que manda —lhe aconselhou Charlie—. Agarra-o com força e não o deixe baixar até que você o diga. —Voltou a lhe colocar o cachorrinho no regaço. —Mas é que tem muita força! E tenho medo de lhe fazer danifico. Charlie sorriu com condescendência. —Não lhe faria mal nem que o tentasse. Agarra-o com força pela pele do cangote, retorça-lhe um pouco se fizer falta, e logo lhe ponha a outra emano sobre o lombo com firmeza. Daisy seguiu as ordens do Charlie. O cão percebeu o aumento de pressão no tato do Daisy e ficou quieto, como se esperasse a ver o que ocorria a seguir. —Dá a ordem de sit e logo lhe empurre os quartos traseiros para baixo. —Sit —disse Daisy. —Diga-o mais alto e pronuncia com muita claridade a letra lhe. Logo volta a empurrá-lo com força por detrás. —Sit, Rusty! —exclamou ela e o empurrou para baixo. O perrito se sentou. —Já o tem —disse Charlie. —É tão preparado! —exclamou ela com efusão. O jovem parecia encantado. —O único secreto é atuar com convicção —respondeu com modéstia—. Sempre terá que mostrar-se enérgico e decidido com os cães. Virtualmente terá que lhes ladrar. —Se repanchingó no assento, satisfeito. Era bastante gordinho e enchia a cadeira. Falar sobre os temas nos que era perito o relaxava, tal como Daisy havia suposto. Tinha-o chamado aquela manhã. —Estou desesperada! —havia-lhe dito—. Me comprei um cachorrinho e sou incapaz de controlá-lo. Poderia me dar algum conselho? —De que raça é o cachorrinho? —É um Jack Russell. —Pois resulta que é minha raça preferida. Tenho três! —Mas que casualidade! Tal como Daisy tinha suposto, Charlie se ofereceu para ir a sua casa e lhe ajudar a adestrar ao perrito. —Seriamente crie que Charlie te convém? —tinha perguntado Eva, com reservas. —Fala a sério? —respondeu a jovem—. É um dos solteiros de ouro mais cotizados do Buffalo! Já em companhia do Charlie, Daisy comentou: —Seguro que também lhe darão muito bem os meninos. —Bom, isso não sei. —você adora os cães, mas é firme com eles. Estou segura de que essa técnica também funciona com os meninos. —Não tenho nem idéia. —Trocou de tema—. Tem intenção de ir à universidade em setembro? —Pode que vá ao Oakdale. É uma universidade para senhoritas com licenciaturas de dois anos. A menos que… —A menos que o que? A menos que me case, queria dizer, mas disse: —Não sei. A menos que ocorra alguma outra coisa. —Como o que? —Eu gostaria de visitar a Inglaterra. Meu pai foi a Londres e conheceu príncipe do Gales. E você? Tem algum plano? —Sempre tinham suposto que tomaria a substituição de meu pai em seu banco, mas agora já não há banco que valha. Minha mãe tem um pouco de dinheiro de sua família, e eu administro-o, mas, salvo por isso, vou atirando sem rumo fixo. —Deveria criar cavalos —sugeriu Daisy—. Sei que teria mão para isso. —Ela era boa amazona e tinha ganho prêmios de pequena. imaginou a si mesmo e ao Charlie no parque, a lombos de dois cavalos cinzas idênticos, com seus dois filhos atrás, montando em poni. A visão lhe produziu um quente rubor. —eu adoro os cavalos —confessou Charlie. —E a mim também! Quero criar cavalos de carreiras. —Daisy não teve que fingir entusiasmo. Sonhava produzindo uma estirpe de campeões. Considerava os donos de purasangres a élite internacional de moda. —Mas os purasangres custam muitíssimo dinheiro —comentou Charlie em tom lúgubre. Ao Daisy sobrava o dinheiro. Se Charlie se casava com ela, não teria que voltar a preocupar-se jamais por isso. É obvio que ela não disse nada, mas supunha que o jovem estava ruminando-o e deixou a idéia no ar permanecendo em silêncio todo o tempo que pôde. Ao final, Charlie retomou a conversação. —É verdade que seu pai ordenou dar uma surra a esses duas líderes sindicais? —Que idéia tão absurda! —Daisy não sabia se Lev Peshkov fazia tal coisa, embora em realidade não lhe teria surpreso. —Os homens que chegaram de Nova Iorque para encarregar-se da greve —insistiu Charlie—. foram hospitalizados. O Sentinel diz que tiveram uma bronca com líderes sindicais do Buffalo, mas todo mundo acredita que seu pai está detrás. —Eu alguma vez falo de política —respondeu Daisy com despreocupação—. Quando teve seu primeiro cão? Charlie começou uma larga rememoração. Daisy pensou que passo devia dar a seguir: Já o tenho aqui e obtive que se relaxe; agora terá que pô-lo a tom. Mas acariciando ao cão de forma lhe sugiram o hei posto nervoso. O que fazia falta era que seus corpos se roçassem como por acaso. —O que é o que devo fazer agora com o Rusty? —perguntou quando Charlie teve terminado com sua história. —Tem que lhe ensinar a caminhar pego a ti —respondeu o jovem sem pensá-lo. —Isso como se faz? —Tem bolachas para cães? —Claro. —As janelas da cozinha estavam abertas, e Daisy elevou a voz para que a criada pudesse ouvi-la—. Ela, seria tão amável de me trazer a caixa de huesitos Milkbone? Charlie partiu uma das bolachas pela metade e subiu o cachorrinho ao regaço. meteu-se uma bolacha no punho, deixou que Rusty a farejasse, abriu a mão e permitiu que o cão desse uma dentada. Tomou outra bolacha e se assegurou de que o animal se precavesse de que a tinha em seu poder. Então se levantou e deixou ao cachorrinho a seus pés. Rusty manteve o olhar atento dirigido ao punho fechado do Charlie. —Ao pé! —ordenou Charlie e deu um par de passos. O cão o seguiu. —Bom menino! —disse Charlie e deu ao Rusty outra bolacha. —foi maravilhoso! —exclamou Daisy. —depois de um tempo já não necessitará a bolacha, fará-o para receber um tapinha. E ao final, fará-o de forma automática. —Charlie, é um gênio! O jovem estava transbordante de satisfação. Daisy observou que tinha uns bonitos olhos castanhos, ao igual que o cão. —Agora, tenta-o você —sugeriu a jovem. Ela imitou o que Charlie fazia e obteve o mesmo resultado. —Vê-o? —disse ele—. Não é tão difícil. Daisy riu, encantada. —Deveríamos montar um negócio —comentou—. Farquharson e Peshkov, adestradores caninos. —Que idéia tão boa —afirmou ele, e parecia falar a sério. Isto está indo sobre rodas, pensou Daisy. Foi para a mesa e serve dois copos de limonada. —Pelo general, sou bastante tímido com as garotas —disse Charlie, que se encontrava junto a ela. Não me diga!, pensou Daisy, mas não abriu a boca. —É muito fácil falar contigo —prosseguiu o jovem. Acreditava que tudo foi uma casualidade. Quando Daisy lhe aconteceu o copo, atirou-lhe um pouco de limonada em cima. —OH, que torpe! —exclamou ela. —Não passa nada —a desculpou ele, mas a bebida lhe tinha manchado a americana de linho e as calças de algodão branco. Tirou um lenço e começou a secar-se. —Espera, me deixe a mim —disse Daisy, e lhe tirou o lenço da imponente emano. pegou-se muitíssimo a ele para lhe secar a lapela. Charlie ficou quieto e Daisy estava plenamente convencida de que ele podia cheirar seu perfume Jean Naté: notas de lavanda com um leve aroma de almíscar. entreteve-se percorrendo o peitilho da americana com o lenço, embora ali não havia líquido derramado. —Já quase está —disse como se lamentasse ter que parar tão logo. Logo fincou um joelho como se estivesse venerando-o. Começou a secar as manchas de umidade nas calças com delicados roce, como uma mariposa brincalhona. Enquanto lhe acariciava a coxa pôs um olhar de inocência cativante e levantou a vista. Ele estava olhando-a, resfolegando com força, boquiaberto e pasmado. IV Woody Dewar inspecionava com impaciência o Sprinter, revisando que os moços o tivessem deixado tudo limpo e ordenado. tratava-se de um iate de vela para regata de quatorze metros e meio de comprimento do navio, alargado e de linhas afiadas como uma faca. Dave Rouzrokh o tinha deixado emprestado aos Amigos da Vela, um clube ao que Woody pertencia que convidava a navegar aos filhos dos desempregados do Buffalo pelo lago Erie e lhes ensinava os rudimentos da navegação. Woody alegrou-se ao ver que as amarras do mole e as defesas estavam colocadas, as velas recolhidas e pregadas, as drizas atadas e todos outros cabos enrolados e em ordem. Seu irmão Chuck, que tinha quatorze anos e com o que se levava sozinho doze meses, já estava no embarcadero brincando com um par de meninos de cor. Chuck era uma pessoa de trato tão fácil que se levava bem com todo mundo. Woody, que queria dedicar-se à política como seu pai, invejava o encanto natural de seu irmão. Os meninos só levavam calças curtas e sandálias, e a imagem dos três no embarcadero era como uma postal da força e vitalidade juvenis. Ao Woody lhe teria gostado de lhes tirar uma foto se tivesse levado em cima a câmara. Era um fotógrafo entusiasta e se montou um quarto escuro em casa para poder revelar e imprimir suas próprias fotos. Contente de que tivessem deixado o Sprinter tal como o tinha encontrado essa mesma manhã, Woody desceu de um salto ao mole. Um grupo de doze jovens descendeu de uma vez da embarcação, despenteados pelo vento e torrados pelo sol. mostravam-se doloridos mas satisfeitos pelo esforço e riam aliviados, enquanto recordavam as meteduras de pata, os pancadas e as brincadeiras da jornada. O abismo que separava aos dois irmãos ricos do grupo de meninos pobres tinha desaparecido enquanto se encontravam em alta mar, trabalhando juntos para governar o navio, mas nesse momento, no estacionamento do Clube Náutico do Buffalo, esse abismo se reabria. Havia dois veículos estacionados um ao lado do outro: o Chrysler Airflow do senador Dewar, com chofer uniformizado ao volante, para o Woody e Chuck, e uma ranchera Roadster do Chevrolet com dois bancos de madeira na parte traseira para outros. Woody se sentiu envergonhado enquanto se despedia com a mão ao tempo que o chofer lhe agüentava a porta. Entretanto, aos meninos não parecia lhes importar já que lhe deram as obrigado. —Até na sábado que vem! —disseram-lhe. Enquanto percorriam Delaware Avenue, Woody comentou: —foi divertido, mas não estou seguro de se lhes fizermos muito bem. Chuck se surpreendeu. —por que? —Bom, não estamos ajudando a seus pais a encontrar trabalho e isso é quão único em realidade importa. —Isto poderia ajudar a seus filhos a encontrar trabalho dentro de uns anos. —Buffalo era uma cidade portuária; em épocas de bonança havia milhares de postos de trabalho nos navios mercantes que sulcavam os Grandes Lagos e o canal Erie, assim como em cruzeiros disso prazer em caso de que o presidente não seja capaz de voltar a relançar a economia. Chuck se encolheu de ombros. —Pois vete a trabalhar para o Roosevelt. —por que não? Papai trabalhou para o Woodrow Wilson. —Eu ficarei com os navios. Woody consultou seu relógio de pulso. —Temos o tempo justo para nos trocar antes do baile. —foram assistir a um jantar no Clube de Tênis. As expectativas que abrigava fizeram que lhe acelerasse o pulso—. Desejo estar com seres de pele tersa, que falem com voz aguda e tenham vestidos rosas. —Mmm —resmungou Chuck com ironia—. Joanne Rouzrokh não levou rosa em sua vida. Woody ficou perplexo. Tinha estado sonhando com o Joanne todo o dia e a metade das noites das passadas duas semanas, mas como se teria informado seu irmão? —O que te faz pensar que…? —OH, venha já! —espetou Chuck com desdém—. Quando chegou à festa da praia com seu faldita curta de tênis esteve a ponto de te deprimir. Todo mundo vê que está louco por ela. Por sorte, ela não se deu conta. —E por que é isso uma sorte? —Pelo amor de Deus… tem quinze anos e ela dezoito. É vergonhoso! Ela procura um marido, não um colegial. —OH, vá, muito obrigado!, me tinha esquecido que é todo um perito em mulheres. Chuck se ruborizou. Jamais tinha tido noiva. —Não terá que ser um perito para dar-se conta de algo evidente. Falavam assim todo o tempo. Não havia malícia em seu tom: a sinceridade entre irmãos era brutal. Eram família, portanto, não havia necessidade de ser agradável com o outro. Chegaram a casa, uma mansão que imitava o estilo gótico edificada por seu defunto avô, o senador CAM Dewar. Correram dentro para tomar banho e trocar-se. Woody já media quão mesmo seu pai, e ficou um de seus antigos trajes. Estava um pouco desgastado, mas não passava nada. Os meninos mais jovens levariam o uniforme do colégio ou americana, mas os universitários levariam smoking, e Woody queria parecer maior. Esta noite dançarei com ela, pensava enquanto se penteava com brilhantina. Poderia sustentá-la entre seus braços. Sentiria a calidez de sua pele na palma das mãos. Olharia-a aos olhos e lhe sorriria. Lhe roçaria a jaqueta com os seios enquanto dançavam. Quando baixou, seus pais esperavam na sala de estar: seu pai estava bebendo um coquetel e sua mãe estava fumando um cigarro. Seu pai era alto e magro, e ia feito um pincel com seu smoking cruzado. Sua mãe era bonita, em que pese a ter um só olho e manter o outro permanentemente fechado; era um defeito de nascimento. Essa noite estava arrebatadora com seu vestido comprido até o chão, de cetim negro sobre fundo de seda vermelha, complementado com um bolero de veludo também negro. A avó do Woody foi a última em chegar. A seus sessenta e oito anos era uma dama de grande aprumo e elegância, tão magra como seu filho mas miúda. ficou olhando o vestido de sua nora e disse: —Rosa, querida, está maravilhosa. —Sempre era amável com a esposa de seu filho. Com todos outros era mordaz. Gus lhe preparou um coquetel sem lhe perguntar previamente. Woody ocultou sua impaciência enquanto ela se tomava seu tempo para bebê-lo. A avó jamais tinha pressa. Dava é obvio que nenhum acontecimento social começaria antes de que ela chegasse: era a grande dama anciã da sociedade do Buffalo, viúva de um senador e mãe de outro, matriarca de uma das famílias mais antigas e distinguidas da cidade. Woody tentou pensar em quando se apaixonou pelo Joanne. Conhecia-a virtualmente de toda a vida, embora sempre tinha considerado as garotas meras e insossas espectadoras das emocionantes aventura dos meninos. Até fazia dois ou três anos, quando as garotas, de repente, converteram-se em um pouco mais fascinante inclusive que os carros ou as lanchas barcos a motor. Nesse momento se interessou mais em moças de sua mesma idade ou um pouco menores. Joanne, por sua parte, sempre o havia tratado como a um menino: um menino muito preparado, com o que valia a pena falar de vez em quando, mas saltava à vista que não o considerava um noivo futurible. Sem embargo, esse verão, e, para ele, sem motivo aparente, de repente tinha começado a vê-la como a garota mais atrativa do mundo. Por desgraça, os sentimentos de ela para ele não tinham experiente a mesma transformação. Ainda não. —Que tal vai o colégio, Chuck? —perguntou a avó. —Fatal, avó, como já muito bem sabe. Sou o cretino da família, uma involução a nossa origem simiesca. —Os cretinos não usam expressões do tipo nossa origem simiesca, pelo que eu sei. Está do todo seguro que a vacância não tem nada que ver com isso? Rosa colocou vaza. —Os professores do Chuck dizem que se esforça bastante no colégio, mamãe. —E sempre ganha no xadrez —acrescentou Gus. —Então eu gostaria de saber qual é o problema —insistiu a avó—. Se isto seguir assim não irá ao Harvard. —É que me custa ler, isso é tudo —confessou Chuck. —Curioso —comentou a avó—. Meu sogro, seu bisavô paterno, foi o banqueiro com mais prestígio de sua geração; entretanto, logo que sabia ler nem escrever. —Não sabia —disse Chuck. —É certo —confirmou ela—. Mas não o use como desculpa. te esforce ainda mais. Gus se olhou o relógio. —Se já estiver preparada, mamãe, será melhor que vamos. Ao final subiram ao carro e se dirigiram ao clube. O pai do Woody tinha reservado uma mesa para o jantar e tinha convidado aos Renshaw e a seus filhos, Dot e George. Woody jogou uma olhada a seu redor, mas, para sua decepção, não viu o Joanne. Revisou o listrado das mesas, colocado sobre um cavalete do vestíbulo, e lhe caiu a alma aos pés ao ver que o sobrenome Rouzrokh não figurava entre os assistentes. É que não foram assistir? Isso lhe arruinaria a velada. A conversação mantida entre o prato de lagosta e o da carne versou sobre os últimos acontecimentos na Alemanha. Philip Renshaw opinava que Hitler estava fazendo um bom trabalho. —Segundo o Sentinel de hoje, encarceraram a um sacerdote católico por criticar aos nazistas —comentou o pai do Woody. —É católico? —perguntou a senhora Renshaw, surpreendida. —Não, episcopaliano. —Não é uma questão religiosa, Philip —interveio Rosa com resolução—. É uma questão de liberdade. —A mãe do Woody tinha sido anarquista em sua juventude e seguia sendo libertária de coração. Algumas pessoas se saltaram o jantar e chegaram mais tarde, diretamente ao baile; continuaram aparecendo festeiros enquanto serviam a sobremesa aos Dewar. Woody seguia com os olhos totalmente abertos se por acaso via chegar ao Joanne. No salão contigüo, a orquestra começou a tocar The Continental, um êxito do ano anterior. Woody não teria sabido dizer com exatidão o que lhe resultava tão cativante do Joanne. A maioria das pessoas não a consideravam uma grande beleza, embora não podiam negar seu intenso atrativo. Parecia uma rainha asteca, com os maçãs do rosto marcados e o mesmo nariz aquilino de seu pai, Dave. Tinha o cabelo negro, grosso e abundante, e a pele cítrica, sem dúvida alguma por sua ascendência persa. Irradiava uma intensidade turbadora que fazia que Woody desejasse conhecê-la melhor, conseguir que se relaxasse e lhe sussurrar brandamente ao ouvido doces palavras. Tinha a sensação de que seu formidável presencia era um sinal inequívoco de sua entrega total à paixão. Depois daquela reflexão, disse-se: Quem é agora o perito em mulheres?. —Procura a alguém, Woody? —perguntou a avó, a que não lhe escapava nenhuma. Chuck soltou uma risita porque soube que o tinham pilhado. —A ninguém, solo estava vendo quem assistiu ao baile —respondeu Woody como se nada, embora não pôde evitar ruborizar-se. Seguia sem havê-la visto quando sua mãe se levantou e todos abandonaram a mesa. Desconsolado, entrou caminhando desinteressado ao salão de baile enquanto soavam os acordes do Moonglow, composta pelo Benny Goodman. Ali estava Joanne: devia ter entrado justo quando ele não estava olhando. Ao lhe vê-la subiu a moral. Essa noite, luzia um vestido de seda cinza pérola de chamativa simplicidade com um profundo decote em pico que realçava sua figura. O dia do lanche na praia estava sensacional com uma simples saia curta de tênis, que deixava à vista suas pernas largas e douradas pelo sol, mas o objeto daquela noite era inclusive mais lhe sugiram. À medida que avançava pela sala, com gracilidad e determinação, Woody notou que ia secando a boca. O jovem se dirigiu para o Joanne, mas o salão de baile estava de expulse em bote e, de repente, Woody se converteu em um moço de popularidade irritante: todo o mundo queria falar com ele. Enquanto se abria passo entre a multidão, surpreendeu-lhe ver o atordoado do Charlie Farquharson dançando animadamente com a vivaz Daisy Peshkov. Não recordava ter visto nunca ao jovem Farquharson dançando com ninguém, nem muito menos com um bombom como Daisy. O que teria feito ela para tirá-lo do casca de ovo? No momento em que chegou junto ao Joanne, ela se encontrava no extremo da sala mais afastado da orquestra e, para decepção do Woody, achava-se imersa em uma acalorada discussão com um grupo de meninos quatro ou cinco anos maiores que ele. Por sorte, Woody era mais alto que a maioria deles, pelo que a diferença não resultava tão evidente. Nenhum dos moços era o bastante major para comprar bebidas alcoólicas de forma legal, assim que todos sustentavam copos de Coca-cola, embora Woody cheirou a uísque. Um deles devia levar uma cigarreira no bolso. Ao unir-se ao grupo, ouviu que Victor Dixon dizia: —Nenhum de nós aprova os linchamentos, mas deve entender os problemas que têm no Sul. Woody sabia que o senador Wagner fazia uma proposta de lei para que se castigasse aos xerifes que permitiam os linchamentos, mas o presidente Roosevelt negou-se a respaldá-la. Joanne estava escandalizada. —Como pode dizer algo assim, Victor? O linchamento é um assassinato! Não devemos mostrar compreensão por seus problemas, devemos impedir que sigam matando! Woody se sentiu encantado ao ver até que ponto Joanne compartilhava seus ideais políticos. Entretanto, ficou claro que não era o momento mais propício para lhe pedir um baile, o que era uma desgraça. —Não o entende, Joanne, querida —disse Victor—. Esses negros sulinos não estão civilizados. Pode que eu seja jovem e inexperiente —pensou Woody—, mas não teria cometido o engano de lhe falar em um tom tão condescendente ao Joanne. —Os que não estão civilizados são os responsáveis pelos linchamentos! —exclamou a jovem. Woody decidiu que tinha chegado o momento de participar da discussão. —Joanne tem razão —afirmou. Falou em um tom mais grave do habitual para parecer major—. Houve um linchamento na cidade natal de nosso serviço doméstico, Joe e Betty, que nos cuidaram de meu irmão e a mim desde que nascemos. À primo da Betty o deixaram nu e o queimaram com um maçarico enquanto uma multidão observava o que ocorria. Logo o enforcaram. —Victor ficou olhando cheio de ressentimento a esse pirralho que estava captando toda a atenção do Joanne; o resto do grupo o escutava com horrorizado interesse—. Me dá igual que delito tivesse cometido —disse Woody—. Os brancos que lhe fizeram isso são uns selvagens. —Entretanto, seu querido presidente Roosevelt não apoiou a proposta de lei em contra do linchamento, verdade? —apostilou Victor. —É certo, e foi muito decepcionante —comentou Woody—. Sei por que tomou essa decisão. Tinha medo de que os congressistas do Sul contrariados se vingassem sabotando o new deal. De todos os modos, me tivesse gostado de mandá-los ao corno. —E você o que sabe? —espetou-lhe Victor—. Não é mais que um mucoso. —tirou-se uma cigarreira chapeada do bolso da jaqueta e se encheu a taça até acima. —As idéias políticas do Woody são muito mais amadurecidas que as tuas, Victor —afirmou Joanne. Woody se cresceu. —Em casa, a política é um assunto de família —disse. Continuando, sentiu-se irritado porque alguém lhe deu uma cotovelada. Como era muito educado para não lhe fazer caso, voltou-se e viu o Charlie Farquharson, suarento por seus esforços na pista de baile. —Posso falar contigo um minuto? —perguntou Charlie. Woody resistiu a tentação de lhe dizer que se fora a passeio. Charlie era um menino amável que não fazia machuco a ninguém. Terei que sentir lástima por um homem com uma mãe como a sua. —O que ocorre, Charlie? —perguntou com toda a amabilidade que pôde. —É sobre o Daisy. —Vi-te dançando com ela. —Verdade que dança de maravilha? —Nem que o diga! —disse Woody com cordialidade, apesar de que não se fixou nisso. —Faz-o tudo de maravilha. —Charlie —disse Woody tentando dissimular sua incredulidade—, Daisy e você estão cortejando? O jovem Farquharson se mostrou tímido. —fomos a montar a cavalo pelo parque um par de vezes e coisas pelo estilo. —Então, sim que estão cortejando. —Woody estava surpreso. Não pegavam muito como casal. Charlie era um toco e Daisy, um encanto. Charlie acrescentou: —Não é como as demais garotas. Com ela posso falar tão facilmente! E adora os cães e os cavalos. Mas a gente acredita que seu pai é um gângster. —E suponho que sim é, Charlie. Todo mundo lhe comprava álcool durante a Lei Seca. —Isso é o que diz minha mãe. —Assim a sua mãe não gosta de Daisy. —Ao Woody não surpreendia. —Sim que gosta de Daisy. O que não gosta de é sua família. Ao Woody lhe ocorreu uma idéia incluso mais surpreendente. —Não estará pensando em te casar com o Daisy? —OH, Deus, sim! —respondeu Charlie—. Se o pedisse, acredito que aceitaria. Bom —pensou Woody—, Charlie tem classe, mas não tem dinheiro, e com o Daisy passa justo o contrário; talvez se complementem o um com o outro. —Coisas mais estranhas se viram —disse. Era algo fascinante, mas o que ele queria era concentrar-se em sua própria vida amorosa. Jogou uma olhada a seu redor para ver se Joanne seguia por aí—. por que me conta isso ? —perguntou ao Charlie. Não é que fossem amigos íntimos precisamente. —Pode que minha mãe trocasse de idéia se convidassem à senhora Peshkov a pertencer à Sociedade de Damas do Buffalo. Aquilo pilhou ao Woody por surpresa. —por que? Se for o clube mais esnobista da cidade! —Exato. Se Olga Peshkov fora membro, como ia pôr pega alguma minha mãe ao Daisy? Woody não sabia se esse plano funcionaria ou não, mas não cabia dúvida da genuína candura dos sentimentos do Charlie. —Pode que esteja no certo —disse Woody. —Poderia medir a sua avó por mim? —Vá, vá! Joga o freio. Minha avó é uma leoa. Na vida me ocorreu lhe pedir um favor para mim, nem muito menos vou pedir lhe um para ti. —Woody, me escute. Já sabe que é a chefa dessa camarilha. Se quiser a alguém dentro, entra, e se não, pois fica fora. Era certo. A Sociedade de Damas tinha uma presidenta, uma secretária e uma tesoureira, mas Ursula Dewar dirigia o clube como se fora dele. De todas formas, Woody mostrava-se reticente a lhe pedir nada. Podia lhe arrancar a cabeça de uma dentada. —Não sei —disse com tom de desculpa. —OH, vamos, venha já, Woody, por favor! Você não o entende. —Charlie baixou o volume de sua voz—. Não sabe o que se sente quando a gente está tão apaixonado por alguém. Sim, sim que sei —pensou Woody, e isso lhe fez trocar de parecer—. Se Charlie se sente tão mal como eu, como posso lhe negar minha ajuda? Eu gostaria que alguém fizesse o mesmo por mim, no caso de que tivesse mais possibilidades com o Joanne. —Está bem, Charlie —acessou—. Falarei com ela. —Obrigado! E… sua avó está aqui, não? Poderia fazê-lo esta noite? —Pelo amor de Deus, não! Tenho outras coisas nas que pensar. —Vale, sim, claro… mas quando o fará? Woody se encolheu de ombros. —Farei-o amanhã. —Você sim que é um amigo! —Não me dê as obrigado ainda. Certamente dirá que não. Woody se voltou para falar com o Joanne, mas ela se partiu. Começou a procurá-la, mas se deteve. Não devia parecer desesperado. Um homem necessitado não resultava interessante, isso sim sabia. Dançou diligentemente com várias garotas: Dot Renshaw, Daisy Peshkov e com a amiga alemã do Daisy, Eva. Agarrou uma Coca-cola e saiu ao exterior, ao lugar onde os meninos fumavam cigarros. George Renshaw lhe jogou um pouco de uísque na Coca-cola do Woody, o que melhorou seu sabor, embora ele não queria embebedar-se. Já tinha-o feito antes e não lhe tinha gostado. Woody pensou que ao Joanne gostaria de um homem com quem pudesse compartilhar seus interesses intelectuais e isso deixava fora da competição ao Victor Dixon. Woody tinha ouvido o Joanne mencionar ao Karl Marx e ao Sigmund Freud. Na biblioteca pública tinha lido o Manifesto comunista, mas lhe tinha parecido pura perorata política. O tinha passado melhor com Estudos sobre a histeria, do Freud, uma espécie de narração detectivesca sobre casos de enfermidades mentais. Essa noite estava decidido a dançar com o Joanne embora fora uma vez e, passado um momento, foi procurar a. Não a encontrou no salão de baile nem no bar. Acaso havia perdido sua oportunidade? Tinha permanecido muito passivo para não parecer desesperado? Resultava-lhe insuportável pensar em que o baile pudesse tocar a seu fim sem que ele tivesse podido sequer lhe tocar o ombro. Voltou a sair. Era de noite, mas a viu virtualmente em seguida. Estava afastando-se do Greg Peshkov, um tanto sufocada, como se tivesse estado discutindo com ele. —Pode que seja a única pessoa deste lugar que não é um maldito conservador —espetou ao Woody. Soava algo bêbada. Woody sorriu. —Obrigado pelo completo… ou isso acredito. —Sabe o da manifestação de amanhã? —perguntou-lhe a jovem de sopetón. Sim que sabia. Os grevistas de Metalurgia Buffalo planejavam uma manifestação em repulsa da surra que tinham recebido os sindicalistas de Nova Iorque. Woody supôs que esse tinha sido o tema da discussão com o Greg: seu pai era o dono da fábrica. —Tinha pensado em assistir —disse—. Talvez tire umas quantas fotos. —Muitíssimas obrigado —respondeu ela, e lhe beijou. Ele ficou tão surpreso que esteve a ponto de não reagir. Durante um segundo permaneceu paralisado enquanto ela o beijava apaixonadamente e ele degustava seus lábios com sabor a uísque. Mas então recuperou a compostura. Rodeou-a com seus braços e atraiu seu corpo para si, sentiu seus seios e as coxas deliciosamente apertadas contra ele. Uma parte dele temia que ela pudesse sentir-se ofendida, empurrasse-o e o acusasse, irada, de tratar a de forma desrespeitosa; mas um instinto mais profundo lhe indicava que pisava em terreno seguro. Tinha pouca experiência beijando a garotas, e nenhuma beijando a mulheres amadurecidas de dezoito anos, mas gostava tão do tato terso da boca do Joanne que movia os lábios sobre os dela com movimentos similares a pequenos mordisquitos que lhe produziam um gozo delicioso. Ela o recompensou gemendo brandamente de prazer. Era consciente, embora solo em parte, de que se algum dos convidados adultos passava por ali, o beijo poderia converter-se em uma cena embaraçosa, mas estava muito excitado para preocupar-se com isso. Joanne abriu a boca e ele notou sua língua. Aquilo era novo para ele: as poucas garotas que tinha beijado não o tinham feito. Embora imaginou que ela devia saber o que fazia. Emulou os movimentos da língua do Joanne. Aquele contato era de uma intimidade lhe impactem e tremendamente excitante. E devia estar fazendo-o como tocava, porque ela voltou a gemer. Armando-se de valor, posou-lhe a mão direita sobre o seio esquerdo. Descobriu uma tersura e voluptuosidad inimagináveis sob o vestido de seda. Enquanto o acariciava notou uma pequena protuberância e pensou, com o calafrio que dão os descobrimentos, que devia tratar do mamilo. Brincou com ele servindo do dedo polegar. Joanne se apartou de repente. —Pelo amor de Deus! —exclamou—. Mas o que estou fazendo? —Está me beijando —respondeu Woody com despreocupação. Posou as mãos sobre seus torneadas quadris. Sentiu o calor de sua pele através do vestido de seda—. Vamos a seguir um momento mais. Joanne lhe apartou as mãos de sopetón. —Devo me haver voltado louca. Estamos no Clube de Tênis, pelo amor de Deus. Woody se deu conta de que o feitiço se quebrado e de que, por desgraça, já não haveria mais beijos aquela noite. Jogou uma olhada a seu redor. —Tranqüila —disse—. Ninguém o viu. —A cumplicidade lhe resultava agradável. —Será melhor que vá a casa, antes de que faça algo inclusive mais estúpido. Ele tentou não sentir-se ofendido. —Posso te acompanhar até o carro? —Está louco? Se entrarmos juntos, todos saberão o que estivemos fazendo, sobre tudo por esse sorriso idiota que te pôs. Woody tentou deixar de sorrir. —Então, por que não entra e eu fico aqui fora esperando um minuto? —Boa idéia. Joanne partiu. —Até manhã —lhe disse ele. Ela não se voltou a olhar. V Ursula Dewar tinha suas dependências privadas, com mais de uma habitação, na antiga mansão de Delaware Avenue. Constavam de um dormitório, um banho e um vestidor; quando seu marido faleceu, transformou o vestidor em uma pequena sala de estar. A maioria do tempo, desfrutava de toda a casa para ela sozinha: Gus e Rosa viajavam freqüentemente a Washington, e Woody e Chuck residiam em um internato. Entretanto, quando chegavam a casa, Ursula passava grande parte do dia em seu apartamento. Woody foi falar com ela no domingo pela manhã. Seguia flutuando em uma nuvem depois do beijo do Joanne, embora tinha passado meia noite tentando imaginar o que teria querido dizer aquele gesto. Poderia ter significado algo, desde amor verdadeiro até verdadeira bebedeira. Quão único sabia com certeza era que morria de vontades de voltar a ver o Joanne. Entrou no dormitório de sua avó detrás da criada, Betty, quando esta lhe levou a bandeja do café da manhã. Tinha-lhe gostado que Joanne se zangasse ao saber que os familiares sulistas da Betty se viram em perigo. Em política, os argumentos desapaixonados estavam sobrevalorados, assim opinava ele. A gente devia rebelar-se contra a crueldade e as injustiças. A avó já estava sentada na cama, com uma mañanita de encaixe sobre uma camisola de seda cor areia. —bom dia, Woodrow! —exclamou, surpreendida. —Eu gostaria de tomar uma taça de café contigo, avó, se for possível. —Já tinha pedido a Betty que servisse duas taças. —Será uma honra —disse Ursula. Betty era uma mulher de cabelo grisalho, de uns cinqüenta anos, com um tipo de compleição que em algumas ocasione poderia qualificar-se de generosa. Situou a bandeja diante da Ursula, e Woody serve o café em taças de porcelana do Meissen grafite à mão. O jovem tinha estado pensando no que devia dizer e se armou de argumentos. A época da Lei Seca tinha terminado e Lev Peshkov era um empresário legal, essa seria sua tese principal. Além disso, não era justo castigar ao Daisy porque seu pai tivesse sido um delinqüente, sobre tudo tendo em conta que a grande maioria das famílias respeitáveis do Buffalo tinham comprado suas bebidas ilegais. —Conhece o Charlie Farquharson? —perguntou para começar. —Sim. É obvio que o conhecia. Conhecia todas as famílias do Livro Azul, o Quem é quem do Buffalo. —Quer uma torrada? —perguntou-lhe a avó. —Não, obrigado, já tomei o café da manhã. —Os meninos de sua idade nunca se cansam de comer. —Olhou-o com sagacidade—. A menos que estejam apaixonados. Parecia que se levantou de bom humor. —Charlie vive sob o jugo de sua mãe —disse Woody. —Também tinha submetido a seu marido —comentou Ursula com secura—. Morrer foi a única forma que teve de liberar-se. —Tomou um pouco de café e começou a comer o toronja com um garfo. —Charlie se aproximou de mim ontem à noite e me perguntou se podia te pedir um favor. Ursula levantou uma sobrancelha, mas não disse nada. Woody inspirou com força. —Quer que convide à senhora Peshkov a unir-se à Sociedade de Damas do Buffalo. Ursula atirou o garfo e se ouviu o tinido da prata sobre a porcelana fina. —me sirva mais café, por favor, Woody —disse, para dissimular sua confusão. O jovem obedeceu a ordem e não disse nada mais no momento. Não recordava havê-la visto desconcertada jamais. Ursula tomou um sorvo de café. —Pelo amor de Deus! —exclamou—. por que ia querer Charles Farquharson ou qualquer outra pessoa, para o caso, que Olga Peshkov pertencesse à Sociedade? —É que quer casar-se com o Daisy. —Ah, sim? —E tem medo de que sua mãe se oponha. —Não anda desencaminhado. —Mas acredita que poderia convencê-la… —Se eu admitisse a Olga na Sociedade. —A gente esqueceria que seu pai era um gângster. —Um gângster? —Bom, contrabandista, como mínimo. —É por isso? —disse Ursula com desprezo—. Pois não é. —Seriamente? —Era o turno do Woody para mostrar-se surpreso—. Então, por que é? Ursula adotou uma expressão reflexiva. Permaneceu em silencio durante tanto tempo que Woody se perguntou se se teria esquecido de que ele estava ali. Mas então sua avó retomou a palavra. —Seu pai estava apaixonado pela Olga Peshkov. —Deus! —Não seja vulgar. —Sinto muito, avó, surpreendeste-me. —Estavam prometidos. —Prometidos? —perguntou Woody, assombrado. ficou pensando um instante e logo disse—: Suponho que sou a única pessoa do Buffalo que não sabia. A avó lhe sorriu. —Existe uma estranha combinação de sabedoria e inocência que é sozinho própria dos adolescentes. A lembrança com toda claridade em seu pai e também a vejo em ti. Sim, no Buffalo sabe todo mundo, embora sua geração deve considerá-la uma história antiga e aborrecida. —Bom, o que ocorreu? —perguntou Woody—. O que quero dizer é quem cortou? —Foi ela, ao ficar grávida. Woody ficou boquiaberto. —De papai? —Não, de sua chofer, Lev Peshkov. —Era o chofer? —Estava recebendo um impacto atrás de outro. Woody permanecia em silêncio, tentando assimilá-lo—. Por Deus santo!, papai deveu haver-se sentido como um idiota. —Seu pai nunca foi um idiota —lhe espetou Ursula com brutalidade—. A única idiotice que tem feito em toda sua vida foi pedir a mão da Olga. Woody recordou sua missão. —Em qualquer caso, avó, isso ocorreu faz um montão. —Faz muitíssimo tempo é mais correto. Faz um montão é vulgar. Embora sua óptica sobre os fatos é mais apropriada que sua expressão oral. Sim que faz muito tempo. Seu tom soava esperanzador. —Então, fará-o? —Como crie que sentaria a seu pai? Woody o pensou. Sabia que não podia fazer o parvo com a Ursula, teria descoberto o bolo em um abrir e fechar de olhos. —Que se lhe importaria? Suponho que se sentiria envergonhado se Olga rondasse por aí como aviso constante de um capítulo humilhante de sua juventude. —Pois supõe bem. —Por outra parte, está convencido de que deve comportar-se justamente com as pessoas que o rodeiam. Odeia as injustiças. Não gostaria de castigar ao Daisy por algo que fez sua mãe. Nem muito menos castigar ao Charlie. Meu pai tem um coração bastante generoso. —Mais generoso que o meu, quiseste dizer —particularizou Ursula. —Não pretendia insinuar isso, avó. Mas arrumado a que, se o perguntasse, não poria objeção a que Olga entrasse em formar parte da Sociedade. Ursula assentiu. —Estou de acordo. Mas eu gostaria de saber se te expuseste quem é a verdadeira pessoa solicitante desta petição. Woody viu aonde queria ir parar. —OH!, insinúas que foi Daisy quem deu a idéia ao Charlie? Não me surpreenderia. Troca isso sua opinião sobre a conveniência ou inconveniência da decisão final? —Suponho que não. —Então, fará-o? —Me alegro de ter um neto com bom coração, embora suspeite que o está utilizando em benefício próprio uma garota lista e ambiciosa. Woody sorriu. —Isso é que sim, avó? —Já sabe que não posso te assegurar nada. Sugerirei-o à comissão. As sugestões da Ursula eram consideradas por todas as demais como mandatos reais, mas Woody não pensava dizê-lo. —Obrigado. É muito amável. —Agora me dê um beijo e te prepare para a igreja. Woody saiu apitando. Esqueceu rapidamente ao Charlie e ao Daisy. Sentado em um banco da catedral do St. Paul, no Shelton Square, não escutou o sermão —sobre o Noé e o dilúvio universal— e pensou todo o momento no Joanne Rouzrokh. Seus pais tinham ido à igreja, mas ela não. De verdade que iria à manifestação? Se ia, lhe pediria uma entrevista. Mas aceitaria? É muito lista para preocupar-se com a diferença de idade, pensou Woody. Seguro que sabia que tinha mais costure em comum com ele que com cabeças de chorlito como Victor Dixon. E esse beijo! Ainda lhe punha a pele de galinha. Isso que tinha feito ela com a língua… As outras garotas o faziam? Desejava voltar a prová-lo, e o antes possível. Pensando no futuro se expôs o que ocorreria em setembro se ela acessava a sair com ele. Joanne iria à Universidade do Vassar, na cidade do Poughkeepsie, Woody sabia. Ele retornaria ao colégio e não a veria até Natal. Vassar era sozinho para garotas, mas no Poughkeepsie havia homens. Sairia ela com outros meninos? Woody já estava ciumento. Ao sair da igreja disse a seus pais que não comeria em casa, mas sim iria à manifestação de protesto. —Bem por ti! —exclamou sua mãe. De jovem tinha sido a diretora do Buffalo Anarchist. voltou-se para seu marido—. Você também deveria ir, Gus. —O sindicato apresentou cargos —respondeu o pai do Woody—. Já sabe que não posso defender julgamentos paralelos prévios à falha do tribunal sobre um caso. A esposa do senador se voltou para o Woody. —Você procura que os valentões do Lev Peshkov não lhe dêem uma surra. Woody tirou a câmara do porta-malas do carro de seu pai. Era uma Leica III, tão pequena que podia levá-la pendurando com uma correia ao redor do pescoço. A pesar de seu tamanho, tinha uma velocidade de obturação de 1/500. Caminhou um par de maçãs até a Niagara Square, onde ia iniciar se a marcha. Lev Peshkov tinha tentado convencer à prefeitura de que proibisse a manifestação argumentando que acabaria sendo violenta, mas o sindicato tinha insistido em que seria um ato pacífico. Ao parecer, os sindicalistas se saíram com a dela, porque várias centenas de pessoas se amontoavam ao redor da prefeitura. Muitos levavam pancartas bordadas à mão, bandeirolas vermelhas e pôsteres que rezavam: CHEFE, TE leve A SEUS VALENTÕES. Woody jogou uma olhada para localizar ao Joanne, mas não teve êxito. Fazia bom tempo e os assistentes estavam animados; o jovem Dewar tirou umas quantas fotografias: operários com o traje dos domingos tocados com chapéu, um carro decorado com pancartas, um jovem polícia mordendo-as unhas. Seguia sem ver nem rastro do Joanne, e Woody começou a pensar que não apareceria por ali. Possivelmente despertou-se com dor de cabeça. A marcha devia começar a meio-dia. Ao final não ficou em movimento até uns minutos antes da uma. Woody se precaveu da importante presencia policial em todo o percurso. deu-se conta de que tinha ficado virtualmente no centro da multidão de manifestantes. Quando se dirigiam para o sul por Washington Street, com destino ao núcleo industrial da cidade, viu o Joanne unindo-se à marcha uns metros por diante, e lhe deu um tombo o coração. Vestia umas calças de alfaiate que ressaltavam suas curvas. Woody apertou o passo para alcançá-la. —Boa tarde! —saudou-a, pletórico. —Pelo amor de Deus, sim que está animado! —comentou ela. ficou-se curta, Woody estava exultante de felicidade. —Tem ressaca? —Das duas uma: ou tenho ressaca ou agarrei a peste negra. Você o que crie que é? —Se tiver picores, é a peste. Tem alguma mancha? —Woody não sabia o que dizia—. Não sou médico, mas eu adoraria te fazer uma verificação. —Para um pouco o carro. Já sei que é encantador, mas não estou de humor. Woody tentou tranqüilizar-se. —Lhe sentimos falta de na igreja —disse—. O sermão foi sobre o Noé. Para sua surpresa, ela rompeu a rir. —Ai, Woody, eu gosto tão quando fica gracioso… mas, por favor, hoje não me faça rir. Imaginou que aquele comentário era algo favorável, mas estava muito equivocado. Localizou uma loja de comestíveis aberta na calçada de em frente. —Necessita líquido —disse—. Em seguida volto. —Entrou correndo ao comércio e comprou duas garrafas da Coca-cola, muito frescas, recém tiradas da geladeira. Pediu ao lojista que as abrisse e retornou à marcha. Deu- uma garrafa ao Joanne. —OH, vá, é meu salvador! —disse ela. levou-se o refresco aos lábios e jogou um bom gole. Woody teve a sensação de que ia ficando em cabeça. Os manifestantes mostravam bom ânimo, pese ao desagradável incidente contra o que protestavam. Um grupo de anciões fazia coro hinos políticos e canções populares. Inclusive havia um par de famílias com meninos. E o céu estava espaçoso. —Tem lido Estudos sobre a histeria? —perguntou Woody enquanto avançavam. —Não tinha ouvido esse título em minha vida. —Aí vai! Pois é do Sigmund Freud. Acreditava que você gostava. —Interessam-me suas idéias. Mas não tenho lido nenhum livro dele. —Deveria. Estudos sobre a histeria é assombroso. Ela o olhou com curiosidade. —E o que te levou a ler um livro desse tipo? Arrumado a que não ensinam psicologia em seu muito caro colégio de tradição clássica. —Pois não sei. Suponho que ao te escutar falar de psicanálise, pensei que soava realmente extraordinário. E sim que é. —Em que sentido? Woody tinha a sensação de que estava pondo-o a prova, para ver se de verdade tinha entendido o livro ou estava fanfarroneando. —A idéia de que um ato de loucura, como derramar de forma obsessiva tinta sobre uma toalha, possa ter alguma lógica oculta. Joanne assentiu com a cabeça. —Sim —disse—. Isso é. Woody intuiu que ela não tinha nem idéia do que estava falando. Já a tinha superado quanto a conhecimentos sobre o Freud, mas ao Joanne dava vergonha reconhecê-lo. —O que é o que mais você gosta de fazer? —perguntou-lhe ele—. Ir ao teatro? A concertos de música clássica? Suponho que ir ao cinema não soa muito emocionante para alguém cujo pai tem umas cem salas de cinema. —por que o pergunta? —Bom… —decidiu ser sincero—. Quero te pedir uma entrevista e eu gostaria de te tentar com algo que de verdade você goste. Você dava o que é e o faremos. Lhe sorriu, mas não era o tipo de sorriso que ele esperava. Era um sorriso amigável, embora compassiva, e lhe anunciava que se aproximavam más notícias. —Woody, eu gostaria, mas tem quinze anos. —Como disse ontem à noite, sou mais amadurecido que Victor Dixon. —Tampouco sairia com ele. Ao Woody lhe secou a boca e lhe quebrou a voz. —Está me dando cabaças? —Sim, com total rotundidad. Não quero sair com um menino três anos mais jovem que eu. —lhe posso pedir isso outra vez dentro de três anos? Então já teremos a mesma idade. Ela riu. —Deixa de te fazer o listillo, dá-me dor de cabeça. Woody decidiu não ocultar sua dor. O que tinha que perder? Angustiado, perguntou: —Então, o que significou esse beijo? —Não significou nada. Sacudiu a cabeça, abatido. —Pois para mim sim que significou algo. foi o melhor beijo que dei nunca. —OH, Deus!, sabia que ia ser um engano. Olhe, passamo-lo bem e ponto. Sim, eu gostei; já pode te sentir adulado, merece-lhe isso. É um pirralho muito bonito, preparado como o que mais, mas um beijo não é uma declaração de amor, Woody, sem importar o muito que o desfrute. Tinham chegado virtualmente à cabeça da marcha, e Woody viu seu destino justo em frente: o elevado muro que rodeava Metalurgia Buffalo. A grade estava fechada e vigiada por uma dúzia ou mais de policiais da fábrica: valentões com camisas celestes em imitação do uniforme da polícia. —E estava bêbada —acrescentou Joanne. —Sim, eu também estava bêbado —disse Woody. Foi um intento penoso de salvar sua dignidade, embora Joanne teve o amável detalhe de fingir que lhe acreditava. —Então ambos temos feito uma pequena tolice e deveríamos esquecê-la —sugeriu ela. —Sim —respondeu Woody e apartou o olhar. Nesse momento se encontravam à entrada da fábrica. Os que encabeçavam a marcha se detiveram na porta, e alguns começaram a pronunciar um discurso pelo megafone. Ao olhar com maior parada, Woody se deu conta de que o orador era um chefe sindical local, Brian Hall. O pai do Woody o conhecia e era de seu agrado: em algum momento do passado remoto tinham trabalhado juntos para pôr fim a uma greve. A cauda da marcha seguia avançando e se formou uma aglomeração em todo o largo da rua. A polícia da fábrica mantinha limpa a entrada, embora a grade estava fechada. Woody se precaveu nesse momento de que foram armados com porretes como as dos agentes oficiais. —Mantenham-se afastados da entrada! Isto é propriedade privada! —gritava um deles. Woody levantou a câmara e tirou uma foto. Entretanto, as pessoas que estavam em primeira fila eram empurradas pelas de atrás. Woody agarrou ao Joanne pelo braço e tentou tirá-la do foco de tensão. Não obstante, resultava difícil: a multidão era numerosa e ninguém queria apartar-se. Contra sua vontade, Woody se deu conta de que estava cada vez mais perto da entrada da fábrica e dos guardas com seus porretes. —Isto fica feio —disse ao Joanne. Mas ela estava acesa de emoção. —Esses bodes não poderão nos deter! —gritou. —Sim, senhor! Dava que sim, joder! —exclamou um homem que estava junto a ela. A multidão seguia a uns dez metros de distância da porta, mas, de todas formas e embora não fora necessário, os guardas começaram a apartar a empurrões aos manifestantes. Woody tirou uma foto. Brian Hall tinha estado gritando pelo megafone, falando sobre valentões e assinalando com dedo acusador à polícia da fábrica. Mas então trocou a cantinela e iniciou uma chamada à calma. —lhes afaste da grade, por favor, companheiros —disse—. Retroceda, não nos ponhamos violentos. Woody viu como um guarda empurrava a uma jovem com a força suficiente para fazê-la cambalear. Ela não caiu, mas gritou e o homem que a acompanhava-lhe espetou ao guarda: —Ouça, tome o com calma, vale? —É que tenta me provocar? —perguntou o guarda, desafiante. —Deixa de empurrar e já está! —gritou a mulher. —Atrás, atrás! —bramou o guarda. Levantou o porrete. A mulher gritou. Justo quando o porrete descendia, Woody tirou uma foto. —O muito filho de puta golpeou a essa mulher! —gritou Joanne e avançou uns passos. Entretanto, a maioria dos manifestantes começaram a mover-se em direção contrária, afastando-se da fábrica. Se davam a volta, os guardas lhes jogavam em cima, empurrando, dando patadas e propinando golpes com seus porretes. —Não há nenhuma necessidade de usar a violência! —exclamou Brian Hall—. Policiais da fábrica, atrás! Não usem os porretes mais! —E o megafone saiu despedido de sua mão ao receber a porrada de um policial. Alguns jovens respondiam à agressão. Meia dúzia de autênticos policiais se mesclaram com a multidão. Não faziam nada por reprimir à polícia da fábrica, mas começaram a deter tudo o que se defendia. O guarda que tinha começado a briga caiu ao chão e dois manifestantes a empreenderam a patadas com ele. Woody tirou uma foto. Joanne gritava de raiva. equilibrou-se sobre um guarda e lhe arranhou a cara. O homem lançou um tapa para tirar-lhe de cima. Por acidente ou não, quem sabe, a mão impactou violentamente contra o tabique nasal do Joanne. Ela caiu ao chão com o nariz ensangüentado. O guarda levantou o porrete. Woody a agarrou por a cintura e atirou dela para trás. O porrete não lhe deu. —Vamos! —gritou-lhe Woody—. Terá que largar-se daqui! O golpe na cara tinha desinflado seu arranque de fúria, e não opôs resistência enquanto Woody médio atirava dela e médio a arrastava para afastar a da grade da fábrica o mais rápido possível, com a câmara lhe dançando pendurada ao pescoço. A essas alturas, a multidão estava aterrorizada: os manifestantes tropeçavam, caíam e outros os pisavam em um intento ofuscado de escapar. Woody era mais alto que a maioria e conseguiu evitar que os derrubassem. Conseguiram avançar pese ao tumulto, mantendo-se justo por diante dos porretes. Ao final, a multidão foi reduzindo-se. Joanne se soltou do Woody e ambos começaram a correr. O alvoroço do enfrentamento se ouvia cada vez mais longe. Dobraram um par de esquinas e, passado um minuto, chegaram a uma rua deserta, povoada de fábricas e armazéns, todos fechados porque era domingo. Frearam o passo e caminharam a velocidade normal, para recuperar o fôlego. Joanne começou a rir. —foi muito emocionante! —exclamou. Woody não podia compartilhar seu entusiasmo. —foi detestável —soltou—. E poderia ter acabado pior. —Tinha-a resgatado, e albergava certa esperança de que aquilo pudesse fazê-la trocar de parecer sobre o fato de sair com ele. Embora ela não acreditava que lhe devesse muito. —Vamos, venha já! —exclamou com tom de menosprezo—. Não teve mortos. —Esses guardas provocaram a briga de forma deliberada! —É obvio que sim! Peshkov quer que os sindicalistas sejam os maus do filme. —Bom, mas nós sabemos a verdade. —Woody deu um golpecito a sua câmara—. E eu posso prová-lo. Caminharam quase um quilômetro, Woody viu um táxi que passava e o parou. Deu ao condutor a direção da casa da família Rouzrokh. O jovem ia sentado na parte traseira do táxi e tirou um lenço do bolso. —Não quero te levar a casa de seu pai nestas condições —disse. Desdobrou o retângulo de algodão branco e lhe secou com supremo cuidado o sangue do lábio superior. Foi um ato íntimo, e lhe pareceu sensual, mas ela não permitiu que se prolongasse. —Já o faço eu —disse ao cabo de uns segundos. Tirou-lhe o lenço e se limpou ela sozinha—. Que tal agora? —Deixaste-te um pouco —mentiu. Recuperou o lenço. Joanne abriu muito a boca, tinha os dentes brancos e os lábios com um inchaço encantador. Woody fingiu ter visto algo sob seu lábio inferior. Limpou-o com delicadeza e disse—: Melhor assim. —Obrigado. —Olhou-o com expressão sentida saudades, entre simpática e molesta. Ela sabia que lhe tinha mentido sobre o sangue no queixo, e ele o supunha, mas não estava segura de se zangar-se com ele ou não. O táxi se deteve na porta da casa do Joanne. —Não entre —lhe pediu—. vou mentir a meus pais sobre onde estive e não quero que te escape a verdade. Woody sabia que, certamente, ele era o mais discreto dos dois, mas não disse nada. —Chamarei-te mais tarde. —Está bem. Ela desceu do táxi e avançou pelo caminito que levava a porta ao tempo que se despedia com a mão com gesto mecânico. —É um bomboncito —comentou o condutor—. Mas é muito major para ti. —me leve a Delaware Avenue —disse Woody. Deu o número e o nome da rua que cruzava por ali. Não pensava falar do Joanne com um taxista falso. Refletiu sobre o fato de que o tivessem rechaçado. Não deveria lhe haver surpreso: todo mundo, desde seu irmão até o taxista, dizia que era muito jovem para ela. Isso não tirava que lhe doesse. Tinha a sensação de não saber o que fazer com sua vida a partir desse momento. Como poderia sobreviver o resto do dia? Já em casa, seus pais estavam jogando a acostumada cabezadita dos domingos pela tarde. Chuck supunha que era o momento que aproveitavam para ter relações. Betty informou ao Woody de que seu irmão se partiu com um grupo de amigos. Woody entrou em quarto escuro para revelar o filme de sua câmara. Jogou água morna na bacia para pôr os produtos químicos à temperatura ideal, logo colocou o filme em uma bolsa negra para transferi-la a um tanque de revelação. Era um processo comprido que requeria paciência, mas gostava de estar sentado na escuridão e pensar no Joanne. Sobreviver juntos à briga não tinha provocado que ela se apaixonasse por ele, mas seguro que os tinha aproximado mais. Estava convencido de que ao menos começava a lhe gostar de um pouco mais. Possivelmente seu rechaço não fora definitivo. Possivelmente devia seguir tentando-o. Tinha claro que não ia interessar se por outras garotas. Quando soou o minutero, passou o filme ao banho de parada para deter a reação química. Logo a introduziu em um banheiro fixador para fazer que a imagem fora permanente. Por último, lavou e secou o filme e analisou as imagens do negativo em branco e negro do carretel. Pareceram-lhe bastante boas. Cortou o filme foto a foto e colocou a primeira no ampliador. Pôs uma folha de papel fotográfico de vinte por vinte e cinco centímetros na base do ampliador, acendeu a luz e expôs o papel à imagem do negativo enquanto contava os segundos. Logo colocou o papel em um banheiro aberto de líquido revelador. Essa era a melhor parte do processo. Pouco a pouco, o papel branco começava a revelar manchas cinzas, e aparecia a imagem que tinha fotografado. Sempre lhe parecia um milagre. Na primeira imagem se via um negro e a um homem branco, ambos com o traje dos domingos e tocados com chapéu, sujeitando uma pancarta que dizia FRATERNIDADE com grandes letras. Quando a imagem se via com nitidez passava a folha a um banho de fixador, logo a lavava e a secava. Imprimiu todas as fotos que tinha tirado, expô-las à luz e as desdobrou sobre a mesa do comilão. Estava encantado: eram cenas vívidas, com movimento, que refletiam com toda claridade uma seqüência de acontecimentos. Quando ouviu que seus pais começavam a mover-se no piso de acima, chamou a sua mãe. Ela havia sido jornalista antes de casar-se e ainda escrevia livros e artigos para algumas revista. —O que opina? —perguntou-lhe. Sua mãe estudou as imagens a conscientiza com seu único olho. —Acredito que são boas. Deveria as levar a um periódico —disse ao cabo de um momento. —Seriamente? —perguntou ele. Começava a emocionar-se—. A que periódico? —Por desgraça, são todos conservadores. Possivelmente ao Buffalo Sentinel. O diretor é Peter Hoyle, leva ali desde que o mundo é mundo. Conhece bem a seu pai, certamente acessará a verte. —Quando deveria lhe ensinar as fotos? —Agora. A manifestação é uma notícia candente. Amanhã sairá em todos os periódicos. Necessitam as fotos esta noite. Woody se sentia eletrizado. —Está bem —disse. Recolheu o papel acetinado e formou uma pilha ordenada. Sua mãe tirou uma pasta de cartolina do estudo de seu pai. Woody a beijou e saiu de casa. Agarrou um ônibus em direção ao centro da cidade. A entrada principal da redação do Sentinel estava fechada. A desilusão se apoderou do Woody durante um instante, mas logo pensou que os jornalistas deviam de poder entrar e sair se tinham que imprimir um periódico para a manhã da segunda-feira; e encontrou a entrada alternativa. —Tenho umas fotos para o senhor Hoyle —disse a um homem que estava sentado do outro lado da porta e o remeteram ao segundo piso. Localizou o despacho do diretor, uma secretária tomou nota de seu nome e, passado um minuto, estava estreitando a mão ao Peter Hoyle. O diretor era um homem alto e imponente, com o cabelo grisalho e bigode negro. Pelo visto, estava pondo fim a uma reunião com um colega mais jovem. Falava com voz muito alta, como se estivesse gritando para que lhe ouvisse pesar do ruído das rotativas. —O fio condutor da história está bem, mas o princípio é um asco, Jack —disse com um gesto de despedida apoiando uma mão no ombro do tipo, lhe dirigindo para a porta—. Enfoca-o de um ponto de vista diferente. Desagrade a declaração do prefeito para o final e começa com os meninos aleijados. —Jack partiu e Hoyle se voltou para o Woody—. O que tem, moço? —perguntou sem mais preâmbulos. —Hoje participei da manifestação. —Quererá dizer na briga. —Não foi uma briga até que os guardas da fábrica começaram a golpear às mulheres com seus porretes. —ouvi que os manifestantes tentaram entrar na fábrica e que os guardas o impediram. —Não é certo, senhor, e as fotos o demonstram. —Insígnia me as —Los guardias estaban esperando en la puerta. Aquí se ven las porras. —La siguiente foto la había sacado cuando empezaron los empujones—. Los manifestantes estaban Woody as tinha disposto em ordem enquanto viajava no ônibus. Colocou a primeira sobre a mesa do diretor. —O princípio foi pacífico. Hoyle apartou a foto. —Isto não demonstra nada —disse. Woody tirou uma foto que tinha feito na fábrica. —Os guardas estavam esperando na porta. Aqui se vêem os porretes. —A seguinte foto a tinha tirado quando começaram os empurrões—. Os manifestantes estavam ao menos a dez metros da grade, os guardas não tinham por que obrigá-los a retroceder. Foi uma provocação deliberada. —Está bem —disse Hoyle, e não apartou as fotos. Woody tirou sua melhor foto instantânea: um guarda blandiendo o porrete para golpear a uma mulher. —Fui testemunha de todo este incidente —afirmou o jovem—. Quão único fez a mulher foi lhe dizer que deixasse de empurrá-la, e lhe pegou assim. —Boa foto —comentou Hoyle—. Alguma mais? —Alguém —anunciou Woody—. A maioria dos manifestantes escaparam assim que começou a briga, mas uns quantos contra-atacaram. —Mostrou ao Hoyle a fotografia de dois manifestantes chutando a um guarda no chão—. Estes homens a empreenderam a golpes com o guarda que pegou à mulher. —Fez um bom trabalho, jovem Dewar —disse Hoyle. sentou-se à mesa e tomou um formulário de uma bandeja—. Te parece bem vinte perus? —Quer dizer que vai publicar minhas fotos? —Tenho suposto que estava aqui por isso. —Sim, senhor, obrigado, vinte dólares me parece bem, quero dizer que me parece muito bem. Bom, quero dizer que me parece um montão. Hoyle rabiscou algo no formulário e o assinou. —Llévaselo a cajera. Minha secretária te dirá aonde tem que ir. O telefone do escritório começou a soar. O diretor o agarrou e respondeu com brutalidade. —Hoyle. —Woody supôs que devia ir-se e saiu do despacho. Estava em êxtase. O pagamento tinha sido assombrosa, mas era ainda mais emocionante que o periódico fora a utilizar suas fotos. Seguiu as indicações da secretária para chegar a uma pequena habitação com um mostrador e um guichê, e recebeu seus vinte dólares. Logo voltou para casa em um táxi. Seus pais estavam encantados com aquele golpe professor e inclusive seu irmão parecia admirado. Durante o jantar, a avó expressou sua opinião. —Está bem, sempre que não te exponha o jornalismo como carreira. Isso seria cair muito baixo. Em realidade, Woody tinha pensado que poderia estudar para ser fotógrafo de imprensa em lugar de político, e lhe surpreendeu saber que sua avó não o passava. Sua mãe sorriu. —Mas, Ursula, querida, eu era jornalista —disse. —Isso é distinto, você é mulher —respondeu a avó—. Woodrow deve converter-se em um homem distinto, como seu pai e seu avô antes que ele. Rosa não se sentiu ofendida com o comentário. Gostava da avó e a escutava com simpática tolerância enquanto lançava seus peroratas radicais. Entretanto, Chuck se sentiu contrariado pois desejava para si o interesse familiar pelo primogênito. —E o que querem que eu seja, um mindundi? —perguntou. —Não seja ordinário, Charles —disse a avó, que, como sempre, tinha a última palavra. Essa noite Woody permaneceu comprido momento em vela. Estava impaciente por ver as fotos publicadas no periódico. sentia-se como um menino em Véspera de natal: o desejo por que amanhecesse o mantinha insone. Pensava no Joanne. Ela se equivocava ao acreditar que ele era muito jovem. Era o homem perfeito para ela. lhe gostava: tinham muitas coisas em comum e havia desfrutado lhe beijando. Woody seguia acreditando que podia ganhar seu amor. Ao final dormiu e, ao despertar, já tinha amanhecido. ficou um batín sobre o pijama e baixou correndo as escadas. Joe, o mordomo, sempre saía a primeira hora para comprar os periódicos e os dispunha em abano sobre a mesa do café da manhã. Os pais do Woody estavam já ali: seu pai comendo ovos mexidos e sua mãe bebendo café a sorbitos. Woody tomou o Sentinel. Sua obra estava em primeira página. Embora não como ele esperava. Tinham usado sozinho uma de suas fotos, a última. Nela se via um guarda da fábrica atirado no estou acostumado a recebendo as patadas de dois trabalhadores. O titular rezava: BRIGADO PROTAGONIZADO PELOS GREVISTAS DO METAL. —OH, não! —exclamou. Leu o artigo com incredulidade. Afirmava que os manifestantes tinham tentado entrar na força na fábrica e que tinham repelido com violência aos guardas do recinto, vários dos quais tinham sofrido feridas leves. O comportamento dos trabalhadores tinha sido condenado pelo prefeito, o chefe de polícia e Lev Peshkov. Ao pé do artigo, como declaração de última hora, citavam ao porta-voz sindicalista Brian Hall, quem negava a veracidade da história e culpava aos guardas da violência. Woody pôs o periódico diante de sua mãe. —Contei ao Hoyle que os guardas tinham provocado o follón e lhe dava as fotos para prová-lo! —exclamou, furioso—. por que publicou justamente o contrário à verdade? —Porque é conservador —respondeu ela. —supõe-se que os periódicos devem contar a verdade! —exclamou Woody, elevando a voz pela indignação enfurecida—. Não podem inventar-se mentiras! —Sim, sim que podem —replicou ela. —Mas isso não é justo! —Bem-vindo ao mundo real —concluiu sua mãe. VI Greg Peshkov e seu pai estavam no vestíbulo do hotel Ritz-Carlton de Washington, onde se encontraram com o Dave Rouzrokh. Dave levava traje branco e chapéu de palha. Olhou-os com desprezo. Lev o saudou, mas lhe voltou as costas com desdém e não lhe respondeu. Greg sabia por que. Dave tinha perdido dinheiro todo o verão, porque as Salas Roseroque não conseguiam filmes de estréia. E Dave devia supor que Lev tinha parte de culpa. Na semana anterior, Lev tinha devotado a seu competidor quatro milhões de dólares por sua cadeia de cinemas, a metade com respeito à oferta original, e Dave havia voltado a rechaçá-la. O preço segue caindo, Dave, tinha-lhe advertido Lev. —Eu gostaria de saber o que está fazendo aqui —comentou Greg. —vai reunir se com Sol Starr. vai perguntar lhe por que não lhe facilita bons filmes. —Estava claro que Lev sabia tudo. —E o que fará o senhor Starr? —lhe dar larga. Ao Greg maravilhava a habilidade de seu pai para sabê-lo tudo e permanecer na crista da onda durante uma situação de mudança. Sempre jogava com vantagem. Entraram em elevador. Era a primeira vez que Greg visitava a suíte permanente que seu pai tinha no hotel. Sua mãe, Marga, jamais tinha estado ali. Lev passava muito tempo em Washington porque o governo interferia continuamente no negócio do cinema. Homens que se consideravam a si mesmos líderes morais alteravam-se do lindo pelo que se mostrava na grande tela, e exerciam pressão para que o governo censurasse os filmes. Lev o via como uma negociação —considerava sua vida inteira como tal—, e seu objetivo constante era evitar a censura formal cumprindo voluntariamente com um código, uma estratégia que contava com o respaldo de Sol Starr e a grande maioria dos peixes gordos de Hollywood. Chegaram a um comilão de extremado luxo, muito mais que o do espaçoso apartamento do Buffalo onde viviam Greg e sua mãe, e que para o jovem sempre tinha sido luxuoso. Aquela sala tinha móveis de patas alargadas e magras que ao filho do Lev lhe pareceram franceses, janelas vestidas com pesadas cortinas de veludo em tons marrons e um enorme fonógrafo. ficou de pedra ao ver, no centro da habitação, sentada em um sofá de seda amarela, à estrela de cinema Gladys Angelus. A gente dizia que era a mulher mais formosa do mundo. E Greg entendeu por que. Irradiava sensualidade: desde seus insinuantes olhos azul escuro até as largas pernas cruzadas sob sua rodeada saia. Quando lhe tendeu uma mão para estreitar-lhe seus vermelhos lábios desenharam um sorriso e seus arredondados seios se moveram com erótico balanço sob seu terso pulôver. Greg duvidou um instante antes de corresponder o gesto. Sentia que era ser desleal com sua mãe, Marga. Ela nunca mencionava o nome do Gladys Angelus, claro sinal de que sabia o que se rumoreaba sobre a atriz e Lev. Greg tinha a sensação de que podia estar cercando amizade com a inimizade de sua mãe. Pensou: Se mamãe inteirasse-se, ficaria a chorar. Mas o tinham pilhado por surpresa; de ter sido advertido, de ter tido tempo para pensar em sua reação, teria estado preparado e teria ensaiado uma retirada cortês. Entretanto, não encontrou a força para ser torpemente grosseiro ante aquela mulher de beleza arrebatadora. Assim que lhe deu a mão, olhou a seus assombrosos olhos e lhe dedicou um sorriso dessas que servem para tragar bílis, como está acostumado a dizer-se. Ela seguiu sem lhe soltar a mão. —Me alegro muito de te conhecer por fim —disse—, depois de tanto tempo. Seu pai me contou isso tudo sobre ti, embora não tinha mencionado quão bonito foi! Aquele comentário lhe resultou desagradável, como se ela se acreditasse proprietária e senhora do lugar, como se fora membro da família em lugar da furcia que lhe havia roubado o homem a sua mãe. De todos os modos, caiu de forma irremediável sob seu feitiço. —eu adoro seus filmes —disse como sem pensá-lo. —OH, deixa-o, não tem por que dizê-lo! —respondeu ela, embora Greg se precaveu de que lhe tinha gostado de ouvir o de todas formas—. Vêem e sente-se a meu lado —prosseguiu ela—. Quero te conhecer melhor. Greg obedeceu. Não pôde evitá-lo. Gladys perguntou a que colégio ia e, enquanto ele o contava, soou o telefone. O jovem logo que escutava o que seu pai dizia. —supunha-se que era amanhã… De acordo, se for necessário, me podemos adiantá-lo… Deixe isso , eu me encarregarei. Lev pendurou e interrompeu ao Gladys. —Sua habitação está ao final do corredor, Greg —disse. Passou-lhe uma chave—. Dentro encontrará um presente de minha parte. te acomode e desfruta. Veremo-nos para jantar às sete. Foi algo brusco, e Gladys pôs cara de decepção, mas Lev podia ser autoritário algumas vezes, e o melhor era obedecer e ponto. Greg agarrou a chave e partiu. No corredor havia um homem de costas largas e traje barato. Ao Greg recordou ao Brekhunov, o chefe de segurança de Metalurgia Buffalo. Greg o saudou com a cabeça. —Boa tarde, senhor —disse o tipo. supunha-se que era um empregado do hotel. Greg entrou em sua habitação. Era o bastante agradável, embora não tão elegante como a suíte de seu pai. Não via o presente que tinha mencionado Lev, mas sua mala já estava ali e começou a tirar as coisas enquanto pensava no Gladys. Estava sendo desleal com sua mãe ao estreitar a mão a amante de seu pai? Embora, em realidade, Gladys só estava fazendo o mesmo que Marga fez em seu dia, deitar-se com um homem casado. De todas formas, era presa de um doloroso desconforto. ia contar a sua mãe que tinha conhecido ao Gladys? Pelo amor de Deus, não! Enquanto pendurava as camisas ouviu que alguém chamava. O golpe procedia de uma porta que conduzia, pelo visto, à habitação do lado. Passado um segundo, a porta se abriu e apareceu uma garota. Era maior que Greg, mas não muito. Tinha a pele de cor chocolate, levava um vestido de lunares com corpete e um bolsito tipo baguette. Sorriu de brinca a orelha, o que deixou à vista sua branca dentadura. —Olá, tenho a habitação do lado —lhe disse. —Isso já o suponho —respondeu Greg—. Quem é? —Jacky Jakes. —Tendeu-lhe uma mão—. Sou atriz. Greg saudou a segunda atriz formosa que tinha conhecido em questão de uma hora. Jacky tinha um olhar divertido que ao Greg pareceu mais atrativa que o magnetismo arrebatador do Gladys. Sua boca era como um laço de cor rosa escuro. —Meu pai me há dito que tinha que me dar um presente. É você? Ela riu com nervosismo. —Suponho que sim. Disse-me que eu gostaria. Prometeu-me um lugar no mundo do cinema. Greg entendeu tudo o filme. Seu pai tinha suposto que se sentiria mal por mostrar-se amável com o Gladys. Jacky era seu prêmio por não lhe haver montado uma escenita. Supôs que deveria ter rechaçado um suborno dessa classe, mas não pôde resistir. —É um presente precioso —disse. —Seu pai é muito bom contigo. —É maravilhoso —afirmou Greg—. E você também. —É uma macacada. —A garota deixou a bolsa sobre a cômoda, avançou para o Greg, ficou nas pontas dos pés e o beijou na boca. Tinha os lábios tersos e quentes—. Me gosta de —declarou. Apalpou-lhe os ombros—. Está forte. —Jogo a hóquei sobre gelo. —Isso faz que alguém se sinta segura. —Apoiou as mãos em suas bochechas e voltou a beijá-lo durante mais tempo, logo suspirou e exclamou—: minha Mãe, acredito que vamos a nos passar isso muito bem! —Ah, sim? Washington era uma cidade do Sul, onde ainda havia muita segregação racial. No Buffalo, brancos e negros podiam comer nos mesmos restaurantes e beber em os mesmos bares, em sua grande maioria, mas na capital era distinto. Greg não conhecia o ditado exato da lei, mas estava seguro de que, na prática, o feito de que um homem branco estivesse com uma mulher negra podia lhe trazer problemas. Surpreendeu-lhe que Jacky ocupasse uma habitação nesse hotel: Lev devia havê-lo arrumado. O que não ocorreria de maneira nenhuma era que Greg e Jacky fossem sair pela cidade em plano casais com o Lev e Gladys. Então, como pensava Jacky que foram passar o bem juntos? Greg caiu na conta: embora não desse crédito, ela podia estar pensando em deitar-se com ele. Rodeou-a pela cintura com as mãos, atraiu-a para assim para lhe dar outro beijo, mas a garota o apartou. —Preciso me dar uma ducha —advertiu—. me Dê um par de minutos. —voltou-se e desapareceu pela porta que comunicava as habitações; fechou-a a seu passo. Greg se sentou na cama para tentar assimilar o ocorrido. Jacky queria entrar no mundo do cinema e parecia disposta a usar o sexo como arma para crescer em sua carreira. Sem dúvida não era a primeira atriz, branca ou negra, que utilizava aquela estratégia. Gladys estava fazendo o mesmo ao deitar-se com o Lev. Greg e seu pai eram os afortunados beneficiários. precaveu-se de que a garota se deixou seu bolsito baguette. Agarrou-o e tentou abrir a porta. Não estava fechada com chave. Entrou. Jacky estava ao telefone, levava um penhoar rosa. —Sim, tudo parte às mil maravilhas —estava dizendo—, sem problemas. —Sua voz soava diferente, mais natural, e Greg se deu conta de que com ele tinha utilizado um tom de garotinha provocadora que não era espontâneo. Então ela o viu, sorriu e voltou para a voz aniñada para dizer por telefone—: Por favor, não me passe nenhuma chamada. Não quero que me incomodem. Obrigado. Adeus. —Deixaste-te isto —disse Greg, e lhe entregou o bolsito. —Você o que queria era lombriga em penhoar —respondeu com voz coquete. A parte dianteira do batín não tampava do todo seus seios, e ele pôde ver a encantadora curvatura de seu tersa pele marrom. Greg sorriu de brinca a orelha. —Não, mas me alegro de havê-lo feito. —Volta para sua habitação. Vou me dar uma ducha. Ao melhor logo te deixo ver mais. —OH, Deus! —exclamou ele. Retornou a sua habitação. Aquilo era assombroso.
—Ao melhor logo te deixo ver mais —repetiu para si em voz alta. Miúda frasecita para uma garota! Tinha uma ereção, mas não queria masturbar-se quando o bom de verdade estava ao cair. Para deixar de pensar nisso, seguiu desfazendo a mala. Tinha um muito caro conjunto de barbeado, cuchilla e broxa com mangas de madrepérola, presente de sua mãe. Deixou seus úteis de asseio no banheiro e se perguntou se aquilo impressionaria ao Jacky quando o visse. As paredes eram magras e pôde ouvir o ruído da água corrente da habitação do lado. Imaginar seu corpo nu e úmido o obcecava. Tentou concentrar-se em ordenar sua roupa interior e os meias três-quartos em uma gaveta. Então a ouviu chiar. ficou paralisado. Durante umas décimas de segundo se sentiu tão impactado que foi incapaz de mover-se. O que significava aquilo? por que teria chiado assim? Então voltou a chiar e Greg se lançou à ação. Abriu de repente a porta que comunicava as habitações e entrou. Ela estava nua. Ele nunca tinha visto uma mulher nua na vida real. Tinha os peitos bicudos com os mamilos cor marrom escura. E seu entrepierna era um arbusto de hirsuto pêlo negro. Estava pega à parede, tentando em vão ocultar sua nudez com as mãos. Em pé, diante dela, encontrava-se Dave Rouzrokh, com dois arranhões simétricos em suas aristocráticas bochechas, supostamente feitos pelas unhas pintadas de rosa do Jacky. Havia sangre na ampla lapela da branca jaqueta cruzada do Dave. Jacky gritou: —Aparta o de mim! Greg levantou um punho. Dave era uns quarenta centímetros mais alto que ele, mas era um velho, e o filho do Lev, um adolescente atlético. O murro impactou contra o queixo do Dave, mais por acaso que por pontaria; o homem se cambaleou para trás e caiu ao chão. abriu-se a porta da habitação. Era o empregado do hotel de costas largas que Greg tinha visto entrar antes. Devia ser o porteiro, ou isso acreditou ele. —Sou Tom Cranmer, detetive do hotel —anunciou o homem—. O que está acontecendo aqui? Greg o explicou: —Ouvi-a chiar e, ao entrar, encontrei-me isso aqui. —tentou me violar! —gritou Jacky. Dave se levantou como pôde. —Isso não é verdade —disse—. Me pediram que subisse a esta habitação para me reunir com Sol Starr. Jacky começou a soluçar. —OH, agora vai mentir sobre o ocorrido! —Fique algo em cima, por favor, senhorita —disse Cranmer. Jacky ficou o penhoar rosa. O detetive levantou o telefone da habitação, marcou um número e disse: —Está acostumado a haver um poli na esquina. Sal para buscá-lo e leva-o a vestíbulo agora mesmo. Dave estava olhando ao Greg. —Você é o filho bastardo do Peskhov, verdade? Greg esteve a ponto de voltar a lhe pegar. —OH, Meu deus, isto foi um retiro! —exclamou Dave. Greg ficou impactado pelo comentário. Teve a intuição de que estava no certo. Deixou cair o punho. Lev devia ter orquestrado toda aquela cena. Dave Rouzrokh não era um violador. Jacky estava fingindo. E Greg não tinha sido mais que outro ator do filme. sentia-se afligido. —Por favor, me acompanhe, senhor —disse Cranmer e agarrou ao Dave com firmeza pelo braço—. Vós dois também. —Não pode me deter —protestou Dave. —Sim, senhor, sim que posso —respondeu Cranmer—. E vou entregar o ao agente de polícia. —Quer te vestir? —perguntou- Greg ao Jacky. Ela negou com a cabeça rápida e decididamente. Greg se deu conta de que era parte do plano que ela saísse em penhoar. Tomou ao Jacky pelo braço e seguiram ao Cranmer e ao Dave pelo corredor até o elevador. Havia um policial esperando no vestíbulo do hotel. Greg supôs que tanto ele como o detetive do hotel deviam estar metidos no alho. —Ouvi um grito em sua habitação e encontrei a este velho dentro. Ela diz que tentou violá-la. O menino foi testemunha —disse Cranmer. Dave parecia aturdido, como se estivesse pensando que aquilo devia ser um pesadelo. Greg se deu conta de que sentia lástima pelo Dave. Tinham-lhe tendido uma armadilha cruel. Lev era mais desumano do que seu filho tinha imaginado. Uma parte dele admirava a seu pai; mas a outra parte se perguntava se aquela falta de misericórdia era realmente necessária. —Já está, vamos —disse o policial detrás algemar ao Dave. —Vamos? Aonde? —perguntou Dave. —Ao centro —respondeu o policial. —Temos que ir todos? —inquiriu Greg. —Sim. Cranmer falou com o Greg em voz baixa. —Não se preocupe, filho —disse—. Tem feito um grande trabalho. Iremos à delegacia de polícia do distrito e emprestaremos declaração. Depois já lhe pode atirar isso sem parar até o dia de Natal. O policial conduziu ao Dave até a porta do hotel e outros os seguiram. Ao sair à rua, um fotógrafo disparou seu flash. VII Woody Dewar conseguiu um exemplar de Estudos sobre a histeria, do Freud, que lhe tinha enviado por correio um livreiro de Nova Iorque. A noite do baile do Clube Náutico —o acontecimento social culminante da temporada do verão no Buffalo—, envolveu-o com delicadeza em papel de embalar e lhe pôs um laço vermelho. —Bombons para uma garota com sorte? —perguntou sua mãe ao passar junto a ele na entrada de sua casa. Era torta, mas não lhe escapava uma. —Um livro —disse—. Para o Joanne Rouzrokh. —Ela não irá ao baile. —Já sei. Sua mãe se deteve e lhe jogou um olhar analítico. —É sério o que sente por ela? —perguntou-lhe ao cabo de um momento. —Suponho que sim. Mas ela acredita que sou muito jovem. —Certamente tenha algo que ver com seu orgulho. Seus amigas lhe perguntariam por que não sai com um menino de sua idade. As garotas são assim de cruéis. —Pois penso insistir até que mature. Sua mãe sorriu. —Estou segura de que a faz rir. —Sim. É minha melhor vaza. —Pois bom, que diabos!, eu esperei bastante a seu pai. —Ah, sim? —Apaixonei-me por ele a primeira vez que o vi. Estive coladita por ele durante anos. Tive que ver como bebia os ventos por essa superficial da Olga Vyalov, que não merecia-o mas que tinha dois olhos sãs. Graças a Deus que sua chofer lhe fez um tambor grande. —A linguagem de sua mãe podia ser um pouco subidito de tom, sobre tudo se a avó não estava presente. Tinha adquirido maus costumes durante seus anos na redação do periódico—. Logo partiu à guerra. Tive que lhe seguir até a França antes de poder conseguir lhe jogar o laço. A nostalgia se mesclava com a dor em sua lembrança, Woody se precaveu disso. —Mas então se deu conta de que você foi sua garota. —Ao final sim. —Ao melhor ocorre o mesmo. Sua mãe lhe deu um beijo. —Boa sorte, filho meu —lhe desejou ela. A casa dos Rouzrokh se encontrava a menos de um quilômetro e meio de distância e Woody foi caminhando. Nenhum membro da família Rouzrokh iria ao Clube Náutico essa noite. Dave tinha saído em todos os periódicos depois de um misterioso incidente que tinha tido lugar no hotel Ritz-Carlton de Washington. Um dos titular mais publicados tinha sido: MAGNATA DO CINEMA ACUSADO POR JOVEM ATRIZ. Woody tinha aprendido fazia pouco a desconfiar da imprensa. Entretanto, os crédulos diziam que devia haver algo de verdade no assunto; de não ser assim, por que teriam detido ao Dave? Após, não se tinha visto nenhum membro da família em eventos sociais de nenhuma classe. Na entrada da casa havia um guarda armado que cortou o passo ao Woody. —A família não recebe visitas —lhe advertiu com brutalidade. Woody supôs que o homem tinha passado muito tempo repelindo a entrada de repórteres, e lhe perdoou o tom de descortesia. Então recordou o nome da criada dos Rouzrokh. —Por favor, lhe peça à senhorita Estella que diga ao Joanne que Woody Dewar tem um livro para ela. —me pode entregar isso  —disse o guarda e tendeu uma mão. Woody agarrou o livro com firmeza. —Obrigado, mas não. O guarda parecia aborrecido, mas conduziu ao Woody pelo caminho de entrada e tocou o timbre da porta. Estella a abriu e exclamou imediatamente: —Olá, señorito Woody, entre! Joanne estará encantada de vê-lo! —Woody se permitiu lançar um olhar triunfal ao guarda ao entrar na casa. Estella o levou até uma sala de estar vazia. Ofereceu-lhe leite e bolachas, como se ainda fora um menino, e ele rechaçou a oferta com amabilidade. Transcorrido um minuto, entrou Joanne. Tinha o rosto gasto e sua pele cítrica parecia descolorida, mas lançou um sorriso amável ao Woody e se sentou a conversar com ele. Estava encantada com o livro. —Agora terei que ler ao doutor Freud em lugar de me limitar a fanfarronear falando dele —disse ela—. É uma boa influência para mim, Woody. —Eu gostaria de poder ser uma má influência. Joanne passou o comentário como alto. —Não vai ao baile? —Tenho uma entrada, mas, se você não for, não me interessa. Preferiria ir ao cinema em lugar do baile? —Não, obrigado, sério. —Ou poderíamos ir simplesmente para jantar. A algum sítio tranqüilo de verdade. Se não te importa ir em ônibus. —Vamos, Woody, pois claro que não me importa ir em ônibus, mas é que é muito jovem para mim. De todas formas, o verão já quase terminou. Você logo voltará para a escola e eu vou ao Vassar. —Onde sairá com meninos, suponho. —Isso espero! Woody se levantou. —Vale, está bem, vou fazer voto de castidade e a ingressar em um monastério. Por favor, não venha para ver-me, distrairia a outros irmãos. Joanne riu. —Obrigado por me fazer pensar em outra coisa que não sejam nossos problemas familiares. Era a primeira menção que fazia ao que lhe tinha ocorrido a seu pai. Woody não tinha pensado em tirar o tema, mas, agora que ela o tinha feito, não deixou passar a oportunidade. —Já sabe que estamos todos de sua parte. Ninguém se crie a história dessa atriz. Toda a cidade sabe que foi uma montagem ideada por esse porco do Lev Peshkov, e estamos furiosos por isso. —Já sei —disse ela—. Mas a simples acusação é algo muito forte que meu pai não pode suportar. Acredito que minha mãe e ele vão transladar se a Flórida. —Sinto-o muito. —Obrigado. Agora, vete ao baile. —Talvez vou. Joanne o acompanhou até a porta. —Posso te dar um beijo de despedida? —perguntou ele. Ela se inclinou para diante e lhe deu um beijo nos lábios. Ao Woody não teve sabor de último beijo e teve o instinto de não tomá-la entre seus braços nem pressionar seus lábios sobre sua boca. Foi um beijo amável, sentiu seus lábios em contato com sua própria boca durante um doce instante que durou um suspiro. Logo ela se afastou e abriu a porta da casa. —boa noite —disse Woody ao sair. —Adeus —se despediu ela. VIII Greg Peshkov estava apaixonado. Sabia que seu pai lhe tinha comprado ao Jacky Jakes como recompensa por lhe ajudar a tender uma armadilha ao Dave Rouzrokh, mas, apesar disso, o que sentia por essa garota era amor verdadeiro. Tinha perdido a virgindade uns minutos depois de retornar da delegacia de polícia do distrito, e, após, os dois tinham acontecido quase uma semana metidos na cama do Ritz-Carlton. Greg não teve que usar nenhum método anticoncepcional, o disse ela, porque, segundo suas palavras, já o tinha tudo hábil. Greg tinha uma idéia muito vaga do que significava isso, mas confiou no Jacky. Não tinha sido mais feliz em toda sua vida e a adorava, sobre tudo quando tinha deixado a pose de garotinha para deixar passo a uma inteligência sagaz e um sentido do humor mordaz. Admitiu que tinha seduzido ao Greg seguindo ordens de seu pai, mas confessou que, sem poder evitá-lo, apaixonou-se por ele. Seu verdadeiro nome era Mabel Jakes e, embora fingia ter dezenove anos, em realidade tinha dezesseis; era sozinho um par de meses maior que Greg. Lev lhe tinha prometido um papel em um filme, mas, conforme disse, seguia procurando o personagem indicado para ela. —Embora crrreo que não está matando-se muito para encontrrrarlo —disse imitando à perfeição o acento com deixe russo do Lev. —Suponho que não há muitos papéis escritos para atores negros —disse Greg. —Já sei. Acabarei interpretando à criada, pondo os olhos em branco e dizendo frasecitas do tipo: Sim, senhorita. Saem africanos em filmes e peças teatrais, como na Cleopatra, Aníbal, Otelo, mas normalmente os interpretam atores brancos. —Seu pai, que já havia falecido, tinha sido professor em uma faculdade para negros, e ela sabia mais de literatura que Greg—. Em qualquer caso, por que têm os negros que interpretar sozinho a pessoas de cor? Se Cleopatra pode ser interpretada por uma atriz branca, por que Julieta não pode ser negra? —Às pessoas lhe pareceria estranho. —A gente se acostumaria. acostumam-se a tudo. Jesus tem que ser interpretado por um judeu? A ninguém importa. Greg pensou que ela tinha razão, mas, de todas formas, nunca aconteceria. Quando Lev tinha anunciado sua volta ao Buffalo —deixando-o para o último minuto, como sempre—, seu filho se ficou desconsolado. Tinha-lhe perguntado a seu pai se Jacky podia ir ao Buffalo, mas Lev se riu e havia dito: —Filho, não mescle o prazer com o de comer. Já a verá a próxima vez que venha a Washington. Apesar daquilo, Jacky o tinha seguido até o Buffalo ao dia seguinte e se instalou em um modesto piso perto de Canal Street. Lev e Greg estiveram ocupados durante as duas semanas seguintes na conquista de Salas Roseroque. Ao final, Dave tinha vendido seu negócio por dois milhões de dólares, uma quarta parte da oferta original, e a admiração que Greg sentia por seu pai cresceu um ponto mais. Jacky tinha retirado os cargos e se filtrou à imprensa que tinha aceito um acordo econômico. Ao Greg atemorizava a falta de escrúpulos de seu pai. E ele tinha conseguido ao Jacky. Dizia a sua mãe que saía todas as noites com seus amigos, embora em realidade passava todo seu tempo livre em companhia do Jacky. Tinha-lhe ensinado a cidade, tinham lanchado na praia, inclusive tinha conseguido sair a navegar com ela em uma lancha barco a motor emprestado. Ninguém a relacionava com a imagem bastante imprecisa da garota que saía do hotel Ritz-Carlton em penhoar. Passaram grande parte do verão gozando de intermináveis faça a sessão de sexo, empapados em suor e embriagados por uma felicidade delirante, enredando-as lençóis desgastados da estreita cama do pequeno piso do Jacky. Decidiram que foram casar se assim que tivessem completo a maioria de idade. Essa noite, Greg ia levar a ao baile do Clube Náutico. Tinha resultado tremendamente difícil conseguir as entradas, mas o filho do Lev tinha subornado a um amigo do colégio. Tinha comprado ao Jacky um vestido de cetim rosa. Tinha conseguido que Marga lhe emprestasse uma generosa soma e ao Lev adorava lhe dar de presente de dissimulação cinqüenta perus de quando em quando, pelo que sempre contava com mais dinheiro de que necessitava. Não queria lhe dar muitas voltas, mas um alarme interno lhe advertia de certo perigo. Jacky seria a única negra do baile que não estaria servindo bebidas. Ela se mostrou muito reticente a assistir, mas Greg tinha acabado convencendo-a. Os meninos mais jovens o invejariam, embora os majores talvez se mostrassem hostis, estava convencido disso. fariam-se comentários pelo baixo. Entretanto, Greg tinha a intuição de que a beleza e o encanto do Jacky bastariam para que muitos superassem seus prejuízos: como poderia ninguém resistir a seus encantos? Mas se algum imbecil se embebedava e a insultava, Greg lhe daria uma lição com seus punhos. Embora pensasse assim, não podia deixar de ouvir o conselho de sua mãe quando lhe dizia que não se comportasse como um idiota por amor. Mas um homem não pode ir pela vida escutando sempre a sua mãe. Enquanto caminhava por Canal Street com fraque e passarinha, morria de impaciência por vê-la com seu vestido novo; talvez se ajoelhasse para lhe levantar a saia até lhe ver a roupa interior e o liguero. Chegou a seu edifício, uma casa antiga dividida em apartamentos. Havia um tapete vermelho desfiado nas escadas e aroma de comida muito condimentada. Entrou em o piso dela com sua própria chave. O lugar estava vazio. Que estranho! Aonde teria ido ela sem ele? Com o coração encolhido, abriu o armário. O vestido de festa de cetim rosa era o único objeto que pendurava do perchero. O resto de sua roupa já não estava. —Não! —gritou Greg. Como tinha podido ocorrer? Sobre a maltratada mesa de madeira de pinheiro havia um sobre. Tomou e viu seu nome escrito nele, com a caligrafia clara e de colegiala do Jacky. Invadiu-o o medo. Rasgou o sobre e com as mãos trementes leu a breve mensagem. Meu querido Greg: As três últimas semanas foram as mais felizes de toda minha vida. Em meu interior sabia que nunca poderíamos nos casar, mas foi bonito fingir que o faríamos. É um moço adorável e te converterá em um bom homem, se não te parecer muito a seu pai. Tinha descoberto Lev que Jacky vivia ali e de algum modo a tinha obrigado a partir? Não teria sido capaz de fazê-lo, verdade? Adeus e não me esqueça. Seu presente, Jacky. Greg enrugou o papel e rompeu a chorar. IX —Está deslumbrante —disse Eva Rothmann ao Daisy Peshkov—. Se fosse um menino me apaixonaria por ti imediatamente. Daisy sorriu. Eva já estava algo apaixonada por ela. E Daisy estava realmente deslumbrante, com seu vestido de festa de organdi cor azul gelo que intensificava o celeste de seus olhos. A saia do vestido tinha volantes, por diante lhe chegava até os tornozelos, mas, por detrás, levantava-se, coquetamente, até a metade da pantorrilha, o qual proporcionava uma sedutora visão das pernas do Daisy embainhadas em umas meias transparentes. Além disso luzia um colar de safiras de sua mãe. —Comprou-me isso seu pai quando ainda se dignava a ser agradável comigo de vez em quando —disse Olga—. Mas, date pressa, Daisy, ou chegaremos tarde. Olga ia de azul marinho, com aspecto de matrona, e Eva, de vermelho, uma cor que favorecia a seu tom escuro de pele. Daisy baixou as escadas flutuando em uma nuvem de felicidade. Saíram da casa. Henry, o jardineiro, que fazia de chofer essa noite, abriu as portas do velho Stutz negro, flamejante e recém lavado. Era a grande noite do Daisy. Durante a velada, Charlie Farquharson lhe declararia formalmente. Ofereceria-lhe um anel de diamantes que era uma herança familiar; ela o tinha visto e lhe tinha dado sua aprovação, e já o tinham ajustado para que lhe entrasse. Daisy aceitaria a proposição, e logo anunciariam seu compromisso a todos os assistentes ao baile. Subiu ao carro sentindo-se como Cinzenta. Solo Eva tinha expresso certas dúvidas. —Acreditava que foste pretender a alguém mais acorde contigo —havia dito. —Você quer dizer um homem que não me deixasse manipulá-lo —tinha respondido Daisy. —Não, mas sim alguém mais parecido a ti: bonito, encantador e atrativo. Tinha sido um comentário especialmente hiriente vindo da Eva: implicava que Charlie era vulgar, sem encantos nem glamour. Ao Daisy a tinha pilhado por surpresa e não soube o que responder. Sua mãe a tinha tirado do atoleiro. —Eu me casei com um homem que era bonito, encantador e atrativo, e me fez profundamente desgraçada. Eva não havia dito nada mais. À medida que o carro se aproximava do Clube Náutico, Daisy se jurou a si mesmo que tentaria reprimir-se. Não devia mostrar o triunfal que se sentia. Devia atuar como se não houvesse nada de inesperado no fato de que a sua mãe oferecessem unir-se à Sociedade de Damas do Buffalo. Quando mostrasse às demais suas garotas enorme pedra bruta, devia ter a gracilidad de afirmar que não se merecia a alguém tão maravilhoso como Charlie. Tinha planos para convertê-lo em alguém inclusive mais encantador. Assim que terminasse a lua de mel, Charlie e ela começariam a construir o estábulo para a cria de purasangres. Em questão de cinco anos, poderiam participar das carreiras mais prestigiosas do mundo: Saratoga Springs, Longchamps, Ascot. O verão ia convertendo-se em outono e já estava anoitecendo quando o carro chegou ao porto. —Temo-me que esta noite retornaremos muito tarde, Henry —anunciou Daisy com alegria. —Isso está muito bem, senhorita Daisy —respondeu. Adorava-a—. Agora passem o de maravilha. Ao entrar, a filha da Olga se precaveu de que Victor Dixon ia detrás delas. —Ouça, Victor, ouvi que sua irmã conheceu ao rei da Inglaterra. Felicidades! —disse-lhe, já que se sentia de bom ânimo com todo mundo. —Mmm… sim —disse ele, sobressaltado. Entraram em clube. A primeira pessoa a que viram foi Ursula Dewar, que tinha acessado a aceitar a Olga em seu clube esnobista. —boa noite, senhora Dewar —disse Daisy, sonriendo com calidez. Ursula parecia distraída. —Desculpa um momento —respondeu, e se dirigiu ao outro extremo do vestíbulo. Daisy pensou que se acreditava uma rainha, mas significava isso que não tinha por que ter bons maneiras? Um dia, Daisy seria a rainha da sociedade do Buffalo, mas jurou-se a si mesmo que sempre seria encantada com todo mundo. As três mulheres entraram no penteadeira de senhoras, onde comprovaram seu aspecto no espelho, se por acaso algo lhes tinha deslocado nos vinte minutos que levavam fora de casa. Dot Renshaw entrou, olhou-as e voltou a sair. —Miúda estúpida —espetou Daisy. Mas sua mãe parecia preocupada. —O que está ocorrendo? —perguntou—. Levamos aqui cinco minutos e já nos tornaram a cara três pessoas! —Está ciumenta —esclareceu Daisy—. Ao Dot teria gostado de ser ela quem se casasse com o Charlie. —A estas alturas, ao Dot Renshaw gostaria de casar-se mais ou menos com qualquer —acrescentou Olga. —Venha, vamos divertir nos —disse Daisy, e foi primeira em sair. Ao entrar no salão de baile, Woody Dewar a saudou. —Por fim, um cavalheiro! —exclamou Daisy. —Só queria te dizer que acredito que está mal que a gente culpe a ti por algo que tenha feito seu pai —disse ele em voz baixa. —Sobre tudo quando todos lhe compravam álcool! —respondeu ela. Então viu sua futura sogra, com um vestido de festa de cor rosa e tecido vincado que não favorecia absolutamente a sua figura ossuda. Nora Farquharson não estava pletórica com a eleição de noiva de seu filho, mas tinha aceito ao Daisy e se mostrou encantada com a Olga em suas mútuas visitas. —Senhora Farquharson! —exclamou Daisy—. O que vestido tão bonito! Nora Farquharson lhe voltou as costas e se afastou. Eva lançou um suspiro afogado. Uma horrorosa sensação invadiu ao Daisy. voltou-se para o Woody. —Isto não é pelo do álcool, verdade? —Não. —Então, por que é? —Terá que perguntar-lhe ao Charlie. Aqui chega. Charlie estava suando, embora não fazia calor. —O que ocorre? —perguntou-lhe Daisy—. Todo mundo me dá as costas! O jovem parecia um molho de nervos. —A gente está muito zangada com sua família —esclareceu ele. —por que motivo? —perguntou ela elevando a voz. Várias pessoas que se encontravam por ali perto se precaveram do tom elevado e se voltaram para ver quem falava. lhe dava igual. —Seu pai arruinou ao Dave Rouzrokh —disse Charlie. —Refere-te ao incidente no Ritz-Carlton? O que tem que ver isso comigo? —Dave agrada a todo mundo, embora seja persa ou algo assim. E não acreditam que seja um violador. —Jamais hei dito tal coisa! —Já sei —disse Charlie, que, era evidente, estava sofrendo muitíssimo. Pressente-os os olhavam com descaramento: Victor Dixon, Dot Renshaw, Chuck Dewar. —Mas a culpa a tenho eu, verdade? —disse Daisy. —Seu pai tem feito algo horrível. Daisy estava paralisada pelo medo. De verdade podia sofrer uma derrota no último momento? —Charlie —disse—. O que está querendo me dizer? Fala clara, pelo amor de Deus. Eva rodeou com um braço pela cintura a seu amiga como gesto de apoio. —Minha mãe opina que é imperdoável —respondeu Charlie. —O que significa isso de imperdoável? Ele a olhou, abatido. Não lhe saíam as palavras. Embora não eram necessárias. Ela sabia o que ia dizer lhe. —terminou-se, verdade? —perguntou ela—. Está me dando plantão. Ele assentiu em silêncio. —Daisy, temos que ir —disse Olga, que estava chorando. Sua filha jogou uma olhada a seu redor. Levantou o queixo com altivez e os olhou a todos, um por um: Dot Renshaw, com um olhar de satisfação maliciosa; Victor Dixon, com gesto de admiração; Chuck Dewar, boquiaberto e impressionado como adolescente que era, e seu irmão Woody, com expressão compassiva. —Vades todos ao inferno! —exclamou Daisy—. Eu vou a Londres a dançar com o rei! 3 1936 I Era uma ensolarada tarde de sábado. Corria o mês de maio de 1936 e Lloyd Williams estava terminando seu segundo ano em Cambridge quando o cruel fantasma do fascismo voltou a aparecer-se entre os claustros de pedra branca da antiga universidade. Lloyd assistia ao Emmanuel College —mais conhecido como Emma—, onde estudava Línguas Modernas. Tinha escolhido francês e alemão, mas o alemão gostava mais. Enquanto se empapava do esplendor da cultura germana lendo ao Goethe, Schiller, Heine e Thomas Mann, de vez em quando levantava a cabeça do escritório que ocupava na silenciosa biblioteca para contemplar com tristeza como a Alemanha se afundava aqueles dias na barbárie. Pouco depois, a seção local da União Britânica de Fascistas anunciou que seu fundador, sir Oswald Mosley, pronunciaria um discurso em um comício que ia celebrar se em Cambridge. Essa notícia transladou ao Lloyd ao Berlim de três anos atrás. Voltou a ver os valentões dos camisas pardas destroçando os escritórios da revista do Maud von Ulrich; voltou a ouvir o lhe crispem som da voz prenhe de ódio do Hitler enquanto, em pé ante seu Parlamento, carregava cheio de desprezo contra a democracia; de novo se estremeceu ao recordar as fauces ensangüentadas daqueles cães que tinham atacado ao Jörg, enquanto tinha a cabeça tampada com um cubo. Lloyd se encontrava na plataforma da estação ferroviária de Cambridge, esperando a que chegasse sua mãe no trem de Londres. junto a ele estava Ruby Carter, uma companheira militante da Partida Trabalhista local. Ruby lhe tinha ajudado a organizar o comício desse dia, que trataria sobre A verdade do fascismo. A mãe do Lloyd, Eth Leckwith, era uma das oradoras. Seu livro sobre a Alemanha tinha tido um êxito enorme; Eth havia tornado a apresentar-se às eleições ao Parlamento em 1935 e outra vez ocupava um banco na câmara como parlamentaria pelo Aldgate. Lloyd estava algo nervoso pelo do comício. O novo partido político do Mosley tinha conseguido muitos milhares de afiliados, obrigado em parte para entusiasta apoio que lhes brindava o Daily Mail, que tinha publicado em capa o desafortunado titular de Um hurra pelos camisas negras!. Mosley era um orador com muitíssimo carisma e era indubitável que no comício desse dia voltaria a recrutar novos membros, assim começava a ser fundamental que uma clara voz da razão se elevasse para rebater suas sedutoras mentiras. Ruby, pelo contrário, estava muito faladora e não fazia mais que queixar-se da vida social de Cambridge. —Com os meninos de por aqui me aborreço muitíssimo —dizia—. Quão único querem fazer é ir a um pub a embebedar-se. Lloyd se surpreendeu. Sempre tinha acreditado que a vida social do Ruby era do mais animada. A garota estava acostumada vestir-se com objetos trocas que sempre ficavam um pouco rodeadas e com as que luzia suas generosas curvas. Lloyd pensava que a maioria dos homens deviam encontrá-la atrativa. —E a ti o que você gosta de fazer? —perguntou-lhe ele—. Além de organizar mítines da Partida Trabalhista. —eu adoro ir dançar. —Pois seguro que não lhe faltarão casais de baile. Na universidade há doze homens por cada mulher. —Sem ânimo de ofender, mas a maioria dos homens da universidade são joaninhas. Certo. Lloyd sabia que havia muitos homossexuais na Universidade de Cambridge, mas se sobressaltou para lhe ouvir tirar o tema. Ruby era famosa por sua franqueza, mas uma afirmação como aquela resultava escandalosa inclusive vindo dela. Não sabia como reagir ante esse comentário, de modo que não disse nada. —Você não será um deles, verdade? —perguntou Ruby. —Não! Que coisas diz. —Não tem por que te ofender. É o bastante bonito para ser joaninha, o único que te sobra é esse nariz esmagado que tem. Lloyd se pôs-se a rir. —Miúdo completo, a verdade é que não sei como tomar o —Porque no he conocido aún a la chica adecuada. —Mas é verdade que é bonito. Parece-te um pouco ao Douglas Fairbanks Júnior. —Vá, pois obrigado, mas não sou joaninha. —Tem noiva? Aquilo se estava pondo tenso. —Não, agora mesmo não. —Fez como se consultasse seu relógio de pulso e olhou a ver se o trem chegava já. —por que não? —Porque não conheci ainda à garota adequada. —Ah, muito obrigado pela parte que me toca. Lloyd a olhou e comprovou que falava médio em brincadeira. Mesmo assim, sentiu-se envergonhado ao ver que se tomou o comentário de uma forma tão pessoal. —Não me referia… —Sim, sim que te referia para mim. Mas tranqüilo. Aí chega o trem. A locomotiva entrou na estação e se deteve envolta em uma nuvem de vapor. Comporta-as se abriram e os passageiros baixaram à plataforma: estudantes com jaquetas de tweed, matronas de granja que foram fazer suas compras, operários com suas boinas plainas. Lloyd passeou o olhar por aquela multidão procurando a sua mãe. —Estará em um vagão de terceira —disse—. Questão de princípios. —Virá a minha festa de aniversário? Cumpro vinte e um. —claro que sim. —Tenho uma amiga que vive em um pequeno apartamento do Market Street, e sua caseira é surda. Lloyd não se sentia cômodo com esse convite e duvidou se tinha feito o correto aceitando, mas então viu sua mãe, bonita como um petirrojo com seu casaco ligeiro de cor carmesim e um vistoso sombrerito. Deu-lhe um abraço e um beijo. —Está estupendo, meu carinho —disse Ethel—, mas tenho que comprar um traje novo para o próximo semestre. —Com este tenho o bastante, mamãe. Lloyd contava com uma beca que lhe pagava a matrícula da universidade e os gastos de manutenção mais básicos, mas não lhe dava para trajes. Quando entrou em Cambridge, sua mãe tinha jogado boa mão de suas economias e lhe tinha comprado um traje de tweed para jornal e um traje de etiqueta para os jantares formais. o de tweed se tinha-o posto todos os dias durante os dois últimos anos, e já começava a notar-se. Ao Lloyd preocupava muito seu aspecto e sempre se assegurava de levar a camisa branca bem limpa, a gravata com o nó perfeito e um lenço branco dobrado que me sobressaía do bolso superior da jaqueta; devia ter algum antepassado dandi na família. Apesar de que levava o traje muito bem engomado, era certo que se via já um pouco desalinhado, e a verdade é que lhe tivesse gostado ter um novo, mas não queria que sua mãe se gastasse as economias nisso. —Já veremos —repôs a mulher. voltou-se para o Ruby, sorriu-lhe com carinho e lhe tendeu uma mão—. Sou Eth Leckwith —disse, apresentando-se com a graça natural de uma duquesa que estava de visita. —Encantada de conhecê-la. Eu sou Ruby Carter. —Você também estuda aqui, Ruby? —Não, trabalho de donzela no Chimbleigh, uma grande casa solariega. —Ruby parecia um pouco envergonhada ao fazer essa confissão—. Fica a uns oito quilômetros da cidade, mas sempre há alguém que me deixa uma bicicleta. —Que casualidade! —disse Ethel—. Quando eu tinha sua idade, também era donzela em uma casa de campo, no Gales. Ruby ficou de pedra. —Você, donzela? E chegou a parlamentaria! —Bom, nisso consiste a democracia. —Ruby e eu organizamos juntos o comício de hoje —disse Lloyd. —E que tal vai por agora? —perguntou sua mãe. —Cheio total. De fato, tivemos que procurar um salão de atos maior. —Disse-te que funcionaria. O comício tinha sido idéia do Ethel. Ruby Carter e muitos outros membros da Partida Trabalhista tinham querido organizar uma manifestação de protesto para partir pela cidade. Ao princípio Lloyd também tinha estado de acordo com eles. —Temos que aproveitar todas as oportunidades que nos pressentem para nos enfrentar publicamente ao fascismo —tinha argumentado. Ethel, entretanto, tinha-lhe aconselhado seguir outra tática. —Se partimos gritando palavras de ordem, a gente acreditará que somos iguais que eles —havia dito—. lhes Demonstrem que somos diferentes. Organizem um comício tranqüilo e inteligente para debater sobre a realidade do fascismo. —Lloyd tinha tido suas dúvidas—. Eu mesma irei falar, se quiser —lhe tinha proposto sua mãe. Lloyd tinha transladado essa oferta ao partido de Cambridge, onde se tinha produzido um vivo debate no qual o Ruby tinha sido a maior caluniadora do plano do Ethel, mas ao final a possibilidade de contar com uma parlamentaria e feminista de fama falando para eles tinha acabado por resolver a discussão. Lloyd ainda não estava seguro de que tivessem tomado a decisão acertada. Recordava ao Maud von Ulrich no Berlim, dizendo: Não devemos combater a violência com mais Essa violência tinha sido a política da Partida Socialdemócrata alemão. Uma política que, para a família Von Ulrich e para a Alemanha, tinha resultado uma catástrofe. Saíram atravessando a arquería do meio ponto da estação, toda construída em tijolo amarelado, e se apressaram a descer pela frondosa Station Road, uma rua de presunçosas casas de classe média feitas com esse mesmo tijolo amarelo pardusco. Ethel tomou o braço ao Lloyd. —Bom, como vai a meu pequeno universitário? —perguntou. Ele sorriu para ouvir esse pequeno. Era dez centímetros mais alto que ela, e seu treinamento com a equipe de boxe da universidade lhe tinha feito desenvolver a musculatura: poderia havê-la levantado em alto com uma só mão. Sabia que sua mãe estava que não cabia em si de orgulho. Poucas coisas na vida a tinham agradado tanto como vê-lo ir estudar a Cambridge. Certamente por isso queria comprar trajes. —eu adoro estar aqui, já sabe —respondeu ele—. E ainda eu gostarei mais quando estiver cheio de meninos de classe operária. —E garotas! —acrescentou Ruby. Torceram pelo Hills Road, a via principal que conduzia ao centro da cidade. Da chegada da ferrovia, Cambridge se tinha expandido em direção sul, para a estação, e ao longo do Hills Road se construíram várias Iglesias para dar serviço a esse novo bairro dos subúrbios. Eles se dirigiam a um templo Baptista cujo pastor, que era de esquerdas, tinha acessado a ceder-lhe sem lhes cobrar nada. —cheguei a um acordo com os fascistas —explicou Lloyd—. Os pinjente que nos absteríamos de sair em manifestação se eles prometiam não partir. —Surpreende-me que tenham aceito —disse Ethel—. Aos fascistas adoram as marchas. —Ao princípio não queriam, mas lhes comuniquei minha proposta às autoridades universitárias e à polícia, e então não ficou mais opção. —Que inteligente. —Mas, mamãe, a que não sabe quem é seu chefe aqui, na cidade? O visconde do Aberowen, também conhecido como Boy Fitzherbert. O filho de seu antigo patrão, o conde Fitzherbert! —Boy tinha vinte e um anos, a mesma idade que Lloyd. Estudava no Trinity College, ao que assistiam todos os aristocratas. —O que? meu deus! Parecia mais afetada do que seu filho tinha esperado; ele a olhou com atenção: ficou-se pálida. —Surpreende-te muito? —Sim! —Parecia que ia recuperando a compostura—. Seu pai é subsecretário do Foreign Office. —O governo estava formado por uma coalizão de maioria conservadora—. Fitz deve estar envergonhado. —me parece que a maioria dos conservadores são bastante transigentes com o fascismo. Não vêem nada de mau em matar comunistas e perseguir judeus. —Pode que alguns sim, mas está exagerando. —Olhou ao Lloyd de reojo—. Ou seja, que foste ver o Boy? —Sim. —Lloyd intuía que aquilo tinha algum significado especial para o Ethel, mas não conseguia imaginar por que—. Me pareceu um jovem do mais espantoso. Em sua habitação do Trinity tinha toda uma caixa de uísque escocês… doze garrafas! —Já o tinha conhecido antes. Não te lembra? —Não. Quando foi? —Tinha nove anos. Levei-te a palácio do Westminster, pouco depois de que me escolhessem. Encontramos ao Fitz e ao Boy nas escadas. Lloyd o recordava com vaguedad. Nnaquele tempo, naquele tempo, igual a nesta ocasião, o incidente pareceu resultar misteriosamente importante para sua mãe. —Esse era ele? Que curioso. —Eu o conheço. É um porco. dedica-se a manusear às criadas —atravessou Ruby. Lloyd se surpreendeu, mas a sua mãe não pareceu sentir saudades. —É algo muito desagradável, mas acontece em todas partes. —Sua crua aceitação fez que ao Lloyd parecesse mais horrível ainda. Chegaram ao templo e entraram pela porta de atrás. Ali, em uma espécie de sacristia, encontraram ao Robert von Ulrich com um traje de quadros verdes e marrons e uma gravata de raias que lhe conferiam um aspecto assombrosamente britânico. ficou em pé e Ethel lhe deu um abraço. —Querida Ethel, que chapéu tão perfeitamente encantado —disse Robert em um inglês impecável. Lloyd apresentou a sua mãe às mulheres da seção local da Partida Trabalhista, que estavam preparando grandes bules e pratos de bolachas para servir depois do comício. Como tinha ouvido o Ethel queixar-se muitíssimas vezes de que a gente que organizava atos políticos parecia acreditar que os parlamentarios nunca tinham que ir ao banho, disse: —Ruby, antes de começar, poderia lhe ensinar a minha mãe onde está o serviço de senhoras? As duas mulheres partiram e Lloyd se sentou junto ao Robert para lhe dar conversação. —Que tal vai o negócio? Robert tinha chegado a ser o proprietário de um restaurante muito freqüentado por esses homossexuais dos que Ruby acabava de queixar-se fazia um momento. De algum modo inteirou-se de que Cambridge, nos anos trinta, era um lugar muito tolerante com esses homens, igual ao tinha sido o Berlim dos anos vinte. Seu novo local levava o mesmo nome que o antigo, Bistro Robert. —O negócio vai bem —respondeu. Em seu rosto apareceu uma sombra, uma expressão de autêntico medo, breve mas intensa—. Esta vez espero poder conservar o que construí. —Fazemos todo o possível por acabar com os fascistas, e mítines como este são a melhor forma de consegui-lo —disse Lloyd—. Seu bate-papo será de grande ajuda. Abrirá-lhe os olhos a muita gente. —Robert ia falar lhes de sua experiência pessoal sob um regime fascista—. Muitos dizem que aqui nunca poderia acontecer algo assim, mas equivocam-se. Robert assentiu com gesto sério. —O fascismo é uma mentira, mas com um grande poder de sedução. A visita do Lloyd ao Berlim, fazia já três anos, seguia muito viva em sua lembrança. —Freqüentemente me pergunto o que terá sido do velho Bistro Robert —disse o menino. —Recebi uma carta de um amigo —respondeu Robert com a voz carregada de tristeza—. Nenhum dos antigos habituais segue indo por ali. Os irmãos Macke malvendieron a adega. Agora a clientela consiste sobre tudo em policiais de médio pêlo e burocratas. —Sua expressão de dor se acentuou ao acrescentar—: Já não usam toalhas. —Trocou de tema com brutalidade—. Vai ao baile do Trinity? A maioria dos colleges organizavam bailes do verão para celebrar que se acabaram os exames. Esses bailes, com as festas e os lanches campestres que os acompanhavam, constituíam a Semana de Maio, que paradoxalmente tinha lugar em junho. O baile do Trinity era famoso por seu esbanjamento. —eu adoraria, mas não me posso permitir —disse isso Lloyd—. As entradas valem dois guineas, verdade? —Me deram de presente uma, mas lhe pode ficar isso se quiser. Várias centenas de estudantes bêbados dançando ao ritmo de uma banda de jazz é justamente a idéia que tenho eu do inferno. Lloyd se sentiu tentado. —Mas é que não tenho fraque. —Os bailes dos colleges exigiam traje de ornamento e passarinha. —Deixo-te o meu. A calça te virá um pouco largo de cintura, mas somos igual de altos. —Então, sim que irei. Obrigado! Ruby voltou a aparecer. —Sua mãe é um encanto —comentou ao Lloyd—. Não sabia que antes tivesse sido donzela! —Faz mais de vinte anos que conheço o Ethel —disse Robert—. É uma pessoa realmente extraordinária. —Agora entendo por que não encontraste à garota adequada —disse Ruby ao Lloyd—. Está procurando a alguém como ela, e não há muitas. —Nisto último, pelo menos, tem razão —repôs Lloyd—. Não há ninguém como ela. Ruby se estremeceu, como se lhe doesse algo. —O que te acontece? —perguntou Lloyd. —Dói-me o molar. —Tem que ir ao dentista. Ela ficou olhando-o como se acabasse de dizer uma estupidez, e Lloyd se deu conta de que, com seu pagamento, uma donzela não podia permitir-se ir ao dentista; sentiu-se como um idiota. Depois se aproximou da porta para aparecer à nave principal. Igual a em muitos templos não conformistas, era uma simples sala retangular com as paredes pintadas de branco. O dia era quente e as janelas de cristais claros estavam abertas. As fileiras de cadeiras estavam enchem e o público esperava com espera. —Se a todo mundo parece bem, eu darei começo ao comício —disse Lloyd quando apareceu Ethel—. Depois Robert nos contará sua experiência pessoal, e logo meu mãe extrairá dela as conclusões políticas. Todos estiveram de acordo. —Ruby, encarregará-te de ter vigiados aos fascistas? Se acontecer algo, diga-me isso espurio, igual que los fascistas mismos se visten con imitaciones de uniformes militares. Ethel franziu o cenho. —De verdade é necessário? —Não acredito que devamos albergar grandes esperança em que cumpram sua promessa. —Pensam reunir-se a uns seiscentos metros daqui, rua acima. Não me importa me aproximar correndo um momento a ver. Ruby saiu pela porta de atrás, e Lloyd entrou com outros na igreja. Não havia nenhum cenário, a não ser uma mesa com três cadeiras que tinham disposto quase no altar, com um suporte de livro a um lado. Enquanto Ethel e Robert ocupavam seus assentos, Lloyd se aproximou do suporte de livro e os assistentes aplaudiram com moderação. —O fascismo se pôs em marcha —começou dizendo Lloyd—, e resulta perigosamente atrativo. Dá-lhes falsas esperanças aos parados. veste-se de um patriotismo espúrio, igual aos fascistas mesmos se vestem com imitações de uniformes militares. Para consternação do Lloyd, o governo britânico tendia a mostrar-se mas bem complacente com os regimes fascistas. Estava formado por uma coalizão na que dominavam os conservadores, com algumas liberais e algum que outro ministro trabalhista renegado que tinha quebrado com sua partida. Em novembro passado, apenas uns dias depois de que fora reeleito, o secretário do Foreign Office tinha proposto ceder grande parte da Abisinia aos conquistadores italianos e a sua líder fascista, Benito Mussolini. Pior ainda, Alemanha se estava rearmando e era cada vez mais agressiva. Apenas um par de meses antes, Hitler tinha violado o Tratado do Versalles ao enviar tropas à desmilitarizada Renania… e Lloyd se escandalizou ao ver que nenhum país parecia disposto a impedir-lhe Robert se acercó al atril. Qualquer esperança que pudesse ter albergado de que o fascismo não era mais que uma aberração temporária se desvaneceu já. Lloyd acreditava que países democráticos como a França e Grã-Bretanha deveriam estar dispostos a tomar as armas. Em seu discurso desse dia, não obstante, não disse nada disso porque sabia que sua mãe e a maioria da Partida Trabalhista se opunham ao rearmamento de seu país, e esperavam que a Sociedade das Nações fora capaz de lutar com os ditadores europeus. Queriam evitar a qualquer preço que se repetisse o espantoso açougue da Grande Guerra. Lloyd simpatizava com essa esperança, mas temia que não fosse realista. Ele já se estava preparando para uma guerra. Tinha sido oficial cadete no colégio e, ao chegar a Cambridge, uniu-se ao Corpo de Instrução de Oficiais: o único menino de classe operária e, certamente, o único membro da Partida Trabalhista que tinha entrado nele. sentou-se ouvindo de novo esse comedido aplauso. Era um orador claro e coerente, mas não possuía a habilidade de sua mãe para chegar ao coração da gente… ainda não, pelo menos. Robert se aproximou do suporte de livro. —Eu sou austríaco —disse—. Fui ferido na guerra, os russos me capturaram e enviaram a um campo de prisioneiros da Siberia. Quando os bolcheviques assinaram a paz com as Potências Centrais, os guardas abriram as portas e nos disseram que podíamos ir aonde quiséssemos. Voltar para casa era nosso problema, não deles. Desde a Siberia há um comprido caminho até a Austria… quase cinco mil quilômetros. Não havia nenhum ônibus, assim comecei a andar. Umas risadas de assombro percorreram a sala acompanhadas de algum aplauso de reconhecimento. Lloyd viu que Robert já os tinha metido no bolso. Ruby lhe aproximou com cara de estar um pouco preocupada e lhe falou com ouvido. —Os fascistas acabam de passar por aqui diante. Boy Fitzherbert levava ao Mosley à estação em carro, e um grupo de exaltados com camisas negras corriam detrás deles lançando vítores. Lloyd torceu o gesto. —Prometeram não organizar nenhuma marcha. Suponho que dirão que correr detrás de um carro não conta. —Eu gostaria de saber que diferença há entre o um e o outro. —Eram violentos? —Não. —Não baixe o guarda. Ruby se retirou. Lloyd estava preocupado, era evidente que tinham violado o espírito do acordo, embora possivelmente não a letra pequena. Tinham saído à rua vestidos com seus uniformize sabendo que não se encontrariam com nenhuma contramanifestación. Os socialistas estavam ali dentro, na igreja, invisíveis. O único que demonstrava sua postura era uma pancarta que pendurava na parede do templo e que dizia A VERDADE SOBRE O FASCISMO em grandes letras vermelhas. —É um prazer para mim estar aqui; é uma honra que me tenham convidado para lhes falar, e estou encantado de ver muitos clientes do Bistro Robert entre o público. Entretanto, devo lhes advertir que a história que tenho que contar é mas bem desagradável, pode que inclusive truculenta. Robert relatou como ao Jörg e os tinham detido depois de negar-se a vender o restaurante do Berlim a um nazista. Descreveu ao Jörg como seu chef, além de sócio durante muitíssimo tempo, sem dizer nada de sua relação sexual, embora os mais chicoteados do público certamente imaginaram. Os assistentes guardaram o mais completo silêncio enquanto ele começava a descrever os sucessos que tinha vivido no campo de concentração. Lloyd ouviu como continham o fôlego com horror quando chegou à parte em que apareciam aqueles cães famintos. Robert narrou a tortura do Jörg com uma voz grave, clara, que se projetava até o final da sala. Quando chegou à morte do Jörg, havia muita gente chorando. O próprio Lloyd reviveu a crueldade e a angústia daqueles momentos, sentiu-se presa de um arrebatamento de raiva para idiotas como esse Boy Fitzherbert, cujo capricho passageiro pelas marchas militares e os uniformes elegantes ameaçava levando a Inglaterra esse mesmo tortura. Robert se sentou e Ethel se aproximou do suporte de livro. Justo quando começava a falar, Ruby apareceu de novo e com aspecto de estar furiosa. —Disse-te que isto não sairia bem! —vaiou ao Lloyd ao ouvido—. Mosley se foi já, mas seus meninos estão cantando Rule, Britannia frente à estação. Lloyd, irado, pensou que com isso sim que incumplían o acordo. Não havia dúvida. Boy tinha quebrado sua promessa. Adeus muito boas a sua palavra de cavalheiro inglês. Ethel estava explicando que o fascismo oferecia falsas soluções, culpando de uma forma simplista a grupos como os judeus e os comunistas de problemas muito mais complexos, como a parada ou a delinqüência. burlou-se sem contemplações do conceito do triunfo da vontade e deixou ao Führer e ao Duce como dois valentões de pátio de colégio. Clamavam pelo apoio popular, mas proibiam toda forma de oposição. Lloyd se deu conta de que, quando os fascistas retornassem da estação ao centro da cidade, teriam que passar por diante do templo. Começou a emprestar atenção aos sons que chegavam pelas janelas abertas e ouviu o rugido de carros e caminhões avançando pelo Hills Road, interrompido por algum que outro timbre de bicicleta ou o grito de um menino. Acreditou ouvir então uma gritaria ao longe e lhe pareceu que soava como o alvoroço organizado por uns vândalos muito jovens ainda para sentir-se orgulhosos da gravidade recém estreada de suas vozes. Aquilo não pressagiava nada bom. ficou tenso, tentando ouvir melhor, e percebeu mais gritos. Os fascistas estavam partindo. Ethel se viu obrigada a levantar a voz à medida que a animação de fora se fazia cada vez mais forte. Defendia que os operários de todas as procedências tinham que unir suas forças mediante os sindicatos e a Partida Trabalhista para assim construir uma sociedade mais justa dando um passo democrático depois de outro, e não recorrendo a levantamentos violentos como os que tão mal tinham acabado na Rússia comunista ou a Alemanha nazista. Ruby entrou uma vez mais. —Já estão partindo pelo Hills Road, vêm para aqui —disse em um murmúrio grave, premente—. Temos que sair a lhes fazer frente! —Não! —sussurrou Lloyd—. A partida tomou uma decisão coletiva: não nos manifestaremos. Devemos nos ater a isso. Temos que ser um movimento disciplinado! —Sabia que com a menção à disciplina de partida a convenceria mais. Os fascistas já não estavam muito longe e entoavam seus cânticos a voz em grito. Lloyd calculou que deviam ser uns cinqüenta ou sessenta. morria de vontades de sair aí fora e encarar-se a eles. Dois jovens que estavam sentados bastante ao fundo se levantaram e foram às janelas a olhar. Ethel pediu cautela. —Não respondam às provocações desses vândalos lhes convertendo também vós no mesmo —disse—. Quão único conseguirão assim é lhes dar aos periódicos uma desculpa para dizer que um bando é tão mau como o outro. ouviu-se um estrépito de cristais quebrados e uma pedra entrou voando pela janela. Uma mulher deu um grito e várias pessoas ficaram em pé. —Permaneçam sentados, por favor —disse Ethel—. Seguro que partem dentro de nada. —Continuou falando com uma voz serena e tranqüilizadora, mas já poucas pessoas prestavam atenção a seu discurso. Todo mundo olhava para trás, à porta do templo, onde se ouviam os gritos e assobios de vaia que soltavam os bagunceiros no exterior. Ao Lloyd custou-lhe muitíssimo trabalho ficar em seu sítio. Olhava a sua mãe com uma expressão neutra, como se se tivesse posto uma máscara. Todos os ossos de seu corpo queriam sair correndo ali fora e começar a soltar murros. Passados uns minutos, o público começou a tranqüilizar-se até certo ponto. Voltaram a prestar atenção ao Ethel, embora ainda se removiam em seus assentos e não deixavam de olhar atrás por cima do ombro. —Somos como uma ninhada de coelhos —murmurou Ruby— que se revolve na toca enquanto a raposa espreita fora. —Havia desdém em sua voz, e Lloyd se deu conta de que tinha razão. Mas o prognóstico de sua mãe resultou ser acertado e já não atiraram mais pedras. Os cânticos foram remetendo. —por que desejam os fascistas a violência? —disse Ethel, lançando uma pergunta retórica—. Pode que esses que estão aí fora, no Hills Road, não sejam mais que uns vândalos, mas alguém os está dirigindo e sua tática tem um propósito. Se se produzem brigados nas ruas, poderão afirmar que se quebrantou a ordem público e que se precisam medidas drásticas para restabelecer o império da lei. Essas medidas de emergência suporão também a proibição de partidos políticos democráticos como o Trabalhista, a condenação da ação sindical e o encarceramento de pessoas sem julgamento prévio: pessoas como nós, homens e mulheres de paz, cujo único delito é o de não estar de acordo com o governo. Parece-lhes algo muito fantasioso, improvável, algo que jamais poderia acontecer? Bom, pois são justamente as táticas que utilizaram na Alemanha… e funcionaram. Passou então a falar de como terei que enfrentar-se ao fascismo: mediante grupos de discussão, em reuniões e mítines como esse, escrevendo cartas aos periódicos, aproveitando toda oportunidade para advertir a outros desse perigo. Mas inclusive ao Ethel resultava difícil conseguir que essa postura parecesse valorosa e decisiva. Lloyd se havia sentido ferido no mais profundo de seu ser com esse comentário do Ruby sobre os coelhos. sentia-se um covarde, e isso o frustrava tanto que apenas podia estar-se quieto na cadeira. A atmosfera da sala foi recuperando pouco a pouco a normalidade. Lloyd se voltou para o Ruby e disse: —Ao menos os coelhos estão a salvo. —por agora —repôs ela—, mas a raposa voltará. II —Se um menino você gostar, pode deixar que te dê um beijo na boca —disse Lindy Westhampton, sentada na grama tomando o sol. —E se você gosta de verdade, pode te tocar os peitos —disse sua irmã geme-a, Lizzie. —Mas nada de nada por debaixo da cintura. —Pelo menos até que lhes tenham prometido. Daisy estava intrigada. Tinha imaginado que as garotas inglesas seriam um pouco reprimidas, mas se tinha equivocado. As gêmeas Westhampton estavam obcecadas com o sexo. Estar convidada no Chimbleigh, a casa de campo de sir Bartholomew Bing Westhampton, era toda uma sensação para o Daisy. Sentia que a sociedade inglesa já a havia aceito em seu seio, embora ainda não tinha conhecido ao rei. Recordou a humilhação da que tinha sido objeto no Clube Náutico do Buffalo com uma sensação de abafado que ainda lhe ardia, como uma queimadura na pele que segue doendo até muito depois de que a chama se extinguiu. Mas cada vez que sentia essa dor, pensava em que um dia iria dançar com o rei, e imaginava a todas —ao Dot Renshaw, Nora Farquharson, Ursula Dewar— comendo-se com os olhos sua fotografia no Buffalo Sentinel e lendo até a última palavra da crônica, invejando-a e desejando poder dizer, sem faltar à verdade, que sempre tinham sido amigas delas. Ao princípio nada tinha resultado fácil. Daisy tinha chegado fazia três meses com sua mãe e sua amiga Eva. Seu pai lhes tinha dado umas quantas cartas de apresentação dirigidas a pessoas que tinham resultado não ser precisamente a flor e nata do panorama social de Londres. Daisy começava a arrepender-se de haver partido do baile do Clube Náutico com tanta prepotência: e se ao final não chegava a nenhuma parte? Entretanto, era uma garota decidida e não lhe faltavam recursos, assim no momento lhe bastava tendo um pé dentro. Inclusive em espetáculos que eram mais ou menos públicos, como as carreiras de cavalos ou as funções de ópera, podia acotovelar uma com gente de alta linhagem. Daisy paquerava com os homens e despertava a curiosidade das matronas lhes deixando cair que era rica e estava solteira. Muitas famílias aristocráticas inglesas se arruinaram na Grande Depressão, e uma herdeira americana sempre era bem-vinda, inclusive embora não fosse bonita e encantadora. Gostavam de seu acento, toleravam-lhe que agarrasse o garfo com a mão direita e lhes divertia saber que era capaz de ficar ao volante de um carro; na Inglaterra eram os homens quem conduzia. Muitas garotas inglesas montavam a cavalo igual de bem que Daisy, mas muito poucas igualavam a coquete segurança que exibia ela sobre a cadeira. Algumas das mulheres mais majores a olhavam com receio, mas inclusive a elas as acabaria ganhando, estava segura. Paquerar com o Bing Westhampton tinha resultado fácil. Era um homenzinho miúdo e com um sorriso irresistível ao que foram os olhos detrás das garotas bonitas; e o instinto dizia ao Daisy que os olhos não seriam o único que iria se tinha a oportunidade de levar-lhe a dar um escuro passeio pelo jardim ao entardecer. Estava claro que suas filhas tinham saído a ele. A reunião na casa de campo dos Westhampton era uma das muitas que se celebravam no Cambridgeshire durante a Semana de Maio e que duravam vários dias. Entre os convidados se contavam o conde Fitzherbert, conhecido como Fitz, e sua esposa, B. Ela era a condessa Fitzherbert, claro está, mas preferia utilizar seu título de princesa russa. Seu filho maior, Boy, estudava no Trinity College. A princesa B era uma das matriarcas da alta sociedade que ainda olhavam ao Daisy com certo reparo. Sem chegar a dizer nenhuma falsidade, Daisy tinha dado a entender que seu pai era um nobre russo que o tinha perdido tudo na revolução, e não um operário de uma fábrica que tinha fugido a América escapando da polícia. Mas B não se deixou enganar. —Não recordo a nenhuma família de nome Peshkov em São Petersburgo nem em Moscou —lhe havia dito sem incomodar-se muito em fingir desconcerto, ao que Daisy obrigou-se a sorrir como se o fato de que a princesa o recordasse ou não fosse do todo intrascendente. Na casa havia outras três garotas da mesma idade que Daisy e Eva: as gêmeas Westhampton e Mai Murray, que era filha de um general. Os bailes se alargavam toda a noite, assim que todos dormiam até o meio-dia, mas as tardes se faziam um pouco pesadas. As cinco garotas passavam os momentos mortos no jardim ou se foram a passear pelo bosque. —E o que é o que se pode fazer depois de haver-se prometido? —perguntou Daisy nesse momento, incorporando-se em sua rede. —Pode lhe esfregar a coisa —respondeu Lindy.
—Até que lhe sai o chorrito —acrescentou sua irmã. —Que asqueroso! —exclamou Mai Murray, que não era tão atrevida como as gêmeas. Isso não fez mais que as animar. —Também a pode chupar —disse Isso Lindy é o que mais gostam. —lhes cale já! —protestou Mai—. Lhes estão inventando isso. Deixaram-no correr, já tinham incomodado bastante ao Mai. —Aborreço-me —disse Lindy—. O que poderíamos fazer? Daisy se deixou levar por um impulso travesso. —por que não apresentamos ao jantar vestidos de homem? —arrependeu-se nada mais havê-lo dito. Um numerito como esse podia dar ao traste com sua carreira social quando apenas se tinha começado. O decoro alemão da Eva fez que se sentisse violentada. —Daisy, não o dirá a sério! —Não —admitiu ela—. foi uma tolice. As gêmeas tinham o mesmo cabelo loiro e fino que sua mãe, não os cachos escuros de seu pai, mas sim tinham herdado dele sua veia pícara, e às dois adoraram a idéia. —Hoje baixarão todos com fraque, assim podemos lhes roubar os esmóquines —disse Lindy. —Isso! —soltou sua irmã geme-a-o faremos quando estiverem tomando o chá. Daisy se deu conta de que já era muito tarde para dar marcha atrás. —Mas não podemos nos apresentar assim no baile! —exclamou Mai Murray. Todos eles pensavam assistir ao baile do Trinity depois de jantar. —Trocaremo-nos outra vez antes de sair para ali —disse Lizzie. Mai era uma criatura tímida, a que certamente seu pai militar tinha tímido o caráter, e sempre acessava a tudo o que decidiam as demais. Eva, sendo a única voz lhe discrepem, viu-se anulada e o plano seguiu adiante. Quando chegou o momento de vestir-se para o jantar, uma donzela levou dois trajes de etiqueta à habitação que Daisy compartilhava com a Eva. A donzela se chamava Ruby e no dia anterior tinha tido uma dor de dente horrível, assim Daisy lhe tinha dado dinheiro para que fora ao dentista, onde lhe tinham arrancado a peça. Ruby, com a dor de dente já esquecida, tinha os olhos acesos da emoção. —Aqui têm, senhoras! —disse—. Sir Bartholomew deve levar uma talha o bastante pequena para você, senhorita Peshkov, e o traje do senhor Andrew Fitzherbert para a senhorita Rothmann. Daisy se tirou o vestido e ficou a camisa. Ruby a ajudou com os estranhos gêmeos e os punhos, aos que não estava acostumada. Depois se meteu dentro de as calças do Bing Westhampton, negros e com uma raia de raso. Remeteu por dentro a combinação e logo subiu os suspensórios até os ombros. Ao fechar os botões da braguilha, sentiu-se um pouco ousada. Nenhuma das garotas sabia fazer o laço da passarinha, assim que os murchos resultados deixaram muito que desejar. Daisy, entretanto, foi a que conseguiu o toque mais convincente: agarrou um lápis para as sobrancelhas e se pintou um bigode. —Que maravilha! —disse Eva—. Está ainda mais bonita! Daisy pintou umas costeletas a Eva. As cinco garotas se reuniram no dormitório das gêmeas. Daisy ficou a andar com um balanço masculino que desatou as risitas histéricas das demais. Mai expressou a preocupação que também ocupava em parte o pensamento do Daisy. —Espero que não vamos colocar nos em uma confusão por isso. —Ora, e a quem lhe importa? —disse Lindy. Daisy decidiu deixar de lado seus receios e passar-lhe bem, assim encabeçou a marcha para baixar ao salão. Foram as primeiras em chegar, a sala estava vazia. Repetindo algo que lhe tinha ouvido o Boy Fitzherbert lhe dizer ao mordomo, Daisy pôs voz de homem e, arrastando as palavras, pediu: —Grimshaw, comporte-se bem comigo e me sirva um uísque… este champanha tem sabor de mijados. As demais quase estalaram em gargalhadas nervosas. Bing e Fitz entraram juntos. Bing, com seu colete branco, fez-lhe pensar ao Daisy em uma aguzanieves pinta, um descarado pássaro branco e negro. Fitz era um homem arrumado, de média idade, com o cabelo escuro intercalado de cinza. Por causa das feridas de guerra caminhava com uma ligeira claudicação e tinha uma pálpebra média cansada, mas essas provas de seu valor na batalha não faziam a não ser aumentar sua galhardia. Fitz viu as garotas e teve que as olhar uma segunda vez. —Deus santo! —exclamou. Seu tom era de severo reprovação. Daisy viveu uns instantes de pânico absoluto. Tinha-o quebrado tudo? Os ingleses podiam ser puritanos a mais não poder, todo mundo sabia. Convidariam-na a deixar a casa? Algo assim seria espantoso. Se voltava para o Buffalo com desonra, Dot Renshaw e Nora Farquharson o esfregariam pelos narizes. Preferiria morrer. Entretanto, Bing se pôs-se a rir a gargalhada limpa. —Caray, isto sim que é bom —disse—. Olhe isso, Grimshaw. O ancião mordomo, que entrava com uma garrafa de champanha metida em uma cubitera de prata, observou-as com gesto sombrio. —Muito divertido, sir Bartholomew —disse com um deixe de mordaz hipocrisia. Bing seguiu as olhando a todas com uma mescla de regozijo e lascívia, e Daisy se deu conta, muito tarde, de que vestir-se como o sexo contrário podia induzir a alguns homens a supor um grau de liberdade sexual e uma vontade de experimentar que não se correspondiam com a realidade; uma insinuação que, evidentemente, podia lhes conduzir problemas. Quando os convidados se reuniram para o jantar, quase todos seguiram o exemplo de seu anfitrião e se tomaram a brincadeira das garotas como uma palhaçada divertida, embora Daisy percebeu com claridade que não todo mundo estava igual de encantado. Sua mãe ficou branca do susto ao as ver e se sentou em seguida, como se estivesse a ponto de cair. A princesa B, uma engravatada mulher de quarenta e tantos anos que no passado deveu ser bonita, enrugou a frente empoeirada em um gesto de censura. Mas lady Westhampton era uma mulher alegre que se enfrentava à vida, igual à seu rebelde marido, com um sorriso tolerante: riu com vontades e felicitou ao Daisy pelo bigode. Os meninos, que foram os últimos em chegar, também se mostraram encantados. O filho do general Murray, o tenente Jimmy Murray, que não era tão enrijecido como seu pai, estalou em prazenteiras gargalhadas. Os filhos dos Fitzherbert, Boy e Andy, entraram juntos, mas foi a reação do Boy a que resultou mais interessante que nenhuma outra. ficou olhando fixamente às garotas, fascinado, encantado. Tentou dissimulá-lo com sua jovialidade, mofando-se delas como outros homens, mas estava claro que sentia uma estranha confusão. No jantar, as gêmeas fizeram igual a Daisy e falaram como se fossem homens, com vozes graves e em tom afável, o que desatou as risadas de todo o mundo. Lindy levantou sua taça de vinho e disse: —O que me diz deste burdeos, Liz? —Pois acredito que tem muito pouco corpo, moço. Dá-me a impressão de que Bing o rebaixou com água, não te parece? Durante tudo o jantar, Daisy não fez mais que surpreender ao Boy olhando-a com insistência. Não se parecia muito a seu arrumado pai, mas de todas formas era bonito, e tinha herdado os olhos azuis de sua mãe. A garota começou a sentir vergonha, como se Boy lhe estivesse olhando os peitos todo o momento. —tiveste exames, Boy? —disse para romper o feitiço. —Santo céu, não —respondeu ele. —esteve muito ocupado voando em seu avião para estudar nada —disse seu pai. Embora pretendia ser uma crítica, soou como se em realidade Fitz estivesse orgulhoso de seu filho maior. Boy se fez o ofendido. —Calúnias! —exclamou. Eva estava perplexa. —Para que vai à universidade se não querer estudar? —Alguns meninos não se incomodam em graduar-se, sobre tudo se não terem inclinações acadêmicas —explicou Lindy. —Sobre tudo se forem ricos e folgazões —acrescentou Lizzie. —Eu sim que estudo! —protestou Boy—. Mas a verdade é que não tenho nenhuma intenção de me submeter aos exames. Tampouco desejo acabar ganhando a vida trabalhando de médico, precisamente. —Boy herdaria uma das maiores fortunas da Inglaterra à morte do Fitz. E sua afortunada esposa seria a condessa Fitzherbert. —Espera um momento —disse Daisy—. De verdade tem seu próprio avião? —Certamente. Um Hornet Moth. Sou membro do Clube Aéreo da Universidade. Temos um pequeno campo de aviação nos subúrbios da cidade. —Que maravilha! Tem que me levar a voar! —Ai, não, por favor! —exclamou a mãe do Daisy. —Não terá medo? —perguntou-lhe Boy. —Nenhuma pingo! —Então te levarei. —voltou-se para a Olga e disse—: É muito seguro, senhora Peshkov. Prometo-lhe que devolverei a sua filha intacta. Daisy estava emocionada. A conversação virou para o tema predileto desse verão: o elegante novo monarca, Eduardo VIII, e seu romance com o Wallis Simpson, uma norte-americana separada de seu segundo marido. Os periódicos de Londres não diziam nada dessa história e se limitavam a incluir à senhora Simpson nas listas de convidados aos acontecimentos reais, mas a mãe do Daisy fazia que lhe enviassem os periódicos americanos, e esses sim que foram carregados de especulações sobre o futuro divórcio do Wallis do senhor Simpson para casar-se com o rei. —É algo de tudo impensável —disse Fitz com severidade—. O rei é o chefe da Igreja anglicana. É impossível que se case com uma divorciada. Quando as damas se retiraram e deixaram aos homens desfrutando de do oporto e os puros, as garotas correram acima a trocar-se de roupa. Daisy quis deixar claro que em realidade era muito feminina e se decidiu por um vestido de baile de seda rosa com um estampado de florecillas minúsculas que tinha uma chaquetita de manga farol a jogo. Eva ficou um espetacular vestido sem mangas de simples seda negra. Esse último ano tinha perdido peso, trocou-se o penteado e, seguindo os ensinos do Daisy, tinha aprendido a vestir-se com um estilo elegante e simples que lhe favorecia muito. Eva se tinha convertido em uma mais da família, e a Olga adorava comprar roupa. Para o Daisy era como a irmã que nunca tinha tido. Ainda não se pôs o sol quando todos subiram a carros e carruagens para percorrer os oito quilômetros que os separavam do centro da cidade. Daisy pensou que Cambridge era o sítio mais pitoresco que tinha visto na vida, com seus callecitas sinuosas e os elegantes edifícios dos colleges. Uma vez chegados ao Trinity, apearam-se e ela levantou o olhar para a estátua de seu fundador, o rei Enrique VIII. Quando cruzaram a porta de tijolo da torre da entrada, construída no século XVI, Daisy ficou sem fala de emoção ao ver o que tinha ante seus olhos: um grande pátio retangular com uma grama verde muito bem cuidado, percorrido por atalhos pavimentados e com uma fonte arquitetônica no centro. Em cada um dos quatro lados, uns edifícios de desgastada pedra dourada formavam a cortina de fundo contra o que muitíssimos jovens embelezados com fraque dançavam com garotas esplendidamente vestidas para a ocasião, enquanto dezenas de garçons com traje de ornamento lhes ofereciam bandejas repletas de taças de champanha. Daisy deu uma palmada unindo as mãos com regozijo: aquilo sim que era o que gostava a ela. Dançou com o Boy e logo com o Jimmy Murray, depois com o Bing, que a abraçou com força enquanto deixava que sua mão direita se deslizasse do final das costas para o ondulação do quadril. Daisy decidiu não protestar. A música da orquestra inglesa era uma descafeinada imitação de uma banda de jazz norte-americana, mas os músicos eram animados e rápidos, e se sabiam todos os últimos êxitos. Caiu a noite e o pátio retangular ficou iluminado por brilhantes tochas. Daisy descansou um momento para ir ver como estava Eva, que não era muito segura e às vezes necessitava um pouco de ajuda para apresentar-se. Entretanto, não teria que haver-se preocupado: encontrou-a falando com um estudante muito bonito que levava um traje algo grande para sua talha. Eva o apresentou: Lloyd Williams. —Estávamos falando sobre o fascismo na Alemanha —disse Lloyd, como se Daisy pudesse querer unir-se à conversação. —Mas o que aborrecidos chegam a ser os dois —disse Daisy. Lloyd não pareceu ouvir seu comentário. —Estive no Berlim faz três anos, quando Hitler subiu ao poder. Então não coincidi com a Eva, mas resulta que temos vários conhecidos em comum. Jimmy Murray apareceu de repente e pediu um baile a Eva. Lloyd ficou claramente decepcionado ao vê-la partir, mas jogou mão de suas bons maneiras, pediu-lhe ao Daisy com elegância que lhe concedesse um baile e juntos se aproximaram algo mais à orquestra. —Sua amiga Eva é uma pessoa muito interessante —lhe disse. —Caray, senhor Williams, isso é o que todas as garotas desejam que nos diga nosso casal de baile —repôs Daisy. Assim que as palavras saíram de sua boca, lamentou ter sido tão maliciosa, mas Lloyd riu. —Que torpe sou, tem você razão —disse, sonriendo—. Me mereço a reprimenda. Devo tentar ser mais cavalheiro. Ao Daisy começou a lhe gostar de assim que viu que era capaz de rir de si mesmo. Isso demonstrava segurança. —Está você convidada no Chimbleigh, como Eva? —perguntou Lloyd. —Sim. —Então deve ser a norte-americana que deu dinheiro ao Ruby Carter para que fora ao dentista. —Como diabo se inteirou disso? —É amiga minha. Daisy se surpreendeu. —É muito freqüente que os estudantes da universidade sejam amigos das donzelas? —Céu santo, que comentário mais esnobe por sua parte! Minha mãe foi donzela antes de chegar a parlamentaria. Daisy sentiu que se ruborizava. Detestava o esnobismo e freqüentemente acusava a outros dessa atitude, sobre tudo no Buffalo. Ela se acreditava totalmente inocente de condutas tão indignas. —comecei com mau pé com você, verdade? —Nem tanto —disse —.lhe parece aborrecido falar de fascismo, mas acolhe em sua casa a uma refugiada alemã e inclusive a convida a viajar a Inglaterra com você. Crie que as donzelas não têm direito a ser amigas dos estudantes, mas pagou a essa Ruby visita dentista. Não acredito que esta noite conheça nenhuma outra garota nem a metade de fascinante que você. —Tomarei como um completo. —Aqui chega seu amigo fascista, Boy Fitzherbert. Quer que o espante? Daisy percebeu que ao Lloyd adoraria dispor de uma oportunidade para enfrentar-se com ele. —De maneira nenhuma! —exclamou, e se voltou para sorrir ao Boy. Este lhe dirigiu uma breve cabeçada de saudação ao Lloyd. —boa noite, Williams. —boa noite —respondeu ele—. Me decepcionou muito ver que seus fascistas partiam pelo Hills Road na sábado passada. —Ah, sim —disse Boy—. Possivelmente se ultrapassaram em seu entusiasmo. —Surpreendeu-me, sobre tudo porque você tinha dado sua palavra de que não o fariam. Daisy viu que Lloyd, baixo essa máscara de fria educação, estava muito zangado. Mas Boy se negou a tomar a sério seus comentários. —Sinto-o muito —disse como se nada, e se voltou para o Daisy—. Vêem, ensinarei-te a biblioteca —lhe disse—. É do Christopher Wren. —Será um prazer! —exclamou Daisy. despediu-se do Lloyd com a mão e deixou que Boy a agarrasse do braço. Lloyd parecia molesto ao vê-la partir, o qual lhe agradou o bastante. No lado oeste do grande retângulo havia uma passagem que levava a um pátio mais pequeno com um único e elegante edifício ao fundo. Enquanto Daisy admirava o claustro da planta baixa, Boy lhe explicou que os livros estavam no primeiro piso porque o rio CAM estava acostumado a transbordar-se freqüentemente. —Quer ir ver o rio? —propôs—. De noite está muito bonito. Daisy tinha vinte anos e, embora carecia de experiência nesse campo, sabia que em realidade ao Boy não interessava muito a contemplação noturna de rios. Por outro lado, depois de sua reação ao vê-la vestida de homem, perguntou-se se não gostaria mais dos meninos que do garotas. Supôs que estava a ponto de descobri-lo. —De verdade conhece rei? —perguntou-lhe enquanto ele a levava para um terceiro pátio. —Sim. É mais amigo de meu pai, certamente, mas às vezes vem a casa. E, além disso, adora algumas de minhas idéias políticas, isso lhe asseguro isso. —eu adoraria conhecê-lo. —Sabia que se estava levando como uma ingênua, mas era sua oportunidade e não pensava desperdiçá-la. Cruzaram uma grade e saíram a uma cuidado grama que descendia em suave pendente até um rio encerrado por um estreito canal. —Esta zona recebe o nome do The Backs —explicou Boy—. A maioria dos colleges mais antigos têm em propriedade os campos que há ao outro lado do rio. —O rodeou a cintura com seu braço enquanto se aproximavam do pequena ponte. Sua mão se deslizou para cima, como por acaso, até que com o dedo indicador roçou toda a curva inferior de um peito do Daisy. Ao outro extremo do puentecillo havia dois criados do college vestidos de uniforme montando guarda, certamente para evitar que ninguém penetrasse sem convite. —boa noite, visconde do Aberowen —murmurou um deles, e o outro conteve uma risilla. Boy respondeu com um gesto da cabeça apenas perceptível. Daisy se perguntou a quantas outras garotas não teria levado Boy por essa ponte. Sabia que tinha um motivo muito concreto para levá-la a fazer essa pequena excursão, sem dúvida. Boy se deteve na escuridão e posou as mãos nos ombros dela. —Caray, estava mais que atrativa com esse traje que te puseste no jantar. —Sua voz soava algo rouca por causa da excitação. —Me alegro de que lhe parecesse isso. —Sabia que se aproximava o beijo e só pensando-o-se acalorou, mas não estava de tudo preparada. Pôs uma mão com a palma estendida no peitilho do Boy, para mantê-lo a certa distância—. Gostaria muitíssimo ser apresentada ante a corte real —disse—. É muito difícil consegui-lo? —Não é difícil, absolutamente —respondeu ele—. Ao menos não para minha família. E menos ainda no caso de uma garota tão bonita como você. —Ofegante, baixou a cabeça para ela. Daisy se apartou. —Faria isso por mim? Prepararia-o tudo para que me pressentem na corte? —claro que sim. Ela se aproximou um pouco e sentiu a ereção que crescia dentro de suas calças. Não —pensou—, não gosta dos meninos. —Promete-me isso? —Lhe prometo —disse isso Boy sem fôlego. —Obrigado. —E deixou que a beijasse. III Era uma da tarde do sábado e a pequena casa do Wellington Row, no Aberowen, Gales do Sul, estava abarrotada. O avô do Lloyd estava sentado à mesa da cozinha com aspecto de sentir-se muito orgulhoso. A um lado tinha a seu filho Billy Williams, um mineiro do carvão que tinha chegado a parlamentario pelo Aberowen. Ao outro lado tinha a seu neto, Lloyd, estudante da Universidade de Cambridge. A que não estava era sua filha, membro do Parlamento também. Ali ninguém falaria nunca de uma dinastia —a só idéia resultava antidemocrática, e essa gente acreditava na democracia igual Ao Papa acreditava em Deus—, mas de todas formas Lloyd suspeitava que o avô o sentia assim. A essa mesma mesa estava sentado Tom Griffiths, amigo de toda a vida e delegado do tio Billy. Para o Lloyd era toda uma honra estar sentada entre esses homens. O avô era um veterano do sindicato de mineiros; ao tio Billy lhe tinham formado um conselho de guerra em 1919 por revelar a guerra secreta de Grã-Bretanha contra os bolcheviques; Tom tinha lutado junto ao Billy na batalha do Somme. Aquilo era mais impressionante que jantar com a realeza. A avó do Lloyd, Cara Williams, tinha-lhes servido guisado de vitela com pão de casa e agora, depois de comer, estavam tomando um chá e fumando. Amigos e vizinhos lhes tinham unido, como faziam sempre que Billy voltava por ali, e meia dúzia deles estavam apoiados contra as paredes, fumando em cachimbo ou cigarros de atar, e enchendo a cozinha com os aromas de homens e tabaco. Billy era de estatura baixa e tinha os ombros largos, igual a muitos mineiros, mas, ao contrário que outros, ia bem vestido, com um traje azul marinho e uma camisa branca, poda, rematada por uma gravata vermelha. Lloyd se deu conta de que todos se dirigiam freqüentemente a ele por seu nome de pilha, para recalcar que era um deles, elevado ao poder graças a seus votos. Ao Lloyd chamavam moço, deixando claro que não lhes impressionava absolutamente que estudasse na universidade, mas ao avô sempre se dirigiam como senhor Williams: era a ele ao que respeitavam de verdade. Pela porta de atrás, que estava aberta, Lloyd via a escombrera da mina, uma montanha que não deixava de crescer e que já tinha chegado até o caminho que havia detrás da casa. Esse verão, Lloyd passava as férias trabalhando por pouco dinheiro como organizador em um acampamento para carvoeiros parados. Tinham o projeto de renovar a Biblioteca do Instituto de Mineiros. O exercício físico que supunha lixar, pintar e construir estanterías resultava uma grata mudança para o Lloyd depois de tanto ler ao Schiller em alemão e ao Molière em francês. Gostava das brincadeiras que se gastavam os homens: tinha herdado de sua mãe o amor pelo senso de humor galês. Aquilo estava muito bem, mas não era lutar contra o fascismo. estremecia-se cada vez que recordava como se escondeu no templo Baptista enquanto Boy Fitzherbert e seus valentões cantavam pelas ruas e lhes lançavam pedras pela janela. Desejou ter saído ali fora e lhe haver pego um murro a algum de eles. Pode que tivesse sido uma estupidez, mas se haveria sentido melhor. Pensava-o todas as noites, antes de ficar dormido. Também pensava no Daisy Peshkov e sua jaqueta de seda rosa com mangas farol. Tinha-a visto uma segunda vez durante a Semana de Maio. Lloyd tinha ido a um recital na capela do King’s College, porque o estudante que ocupava a habitação contigüa à sua no Emmanuel ia tocar o violoncelo; Daisy também estava entre o público, com os Westhampton. Levava um chapéu de palha com a asa um pouco levantada que a fazia parecer uma colegiala travessa. Lloyd a tinha procurado ao terminar e lhe tinha feito pergunta sobre os Estados Unidos, um país no que ele não tinha estado. Sentia curiosidade pela administração do presidente Roosevelt e se por acaso tinha algo que lhe ensinar a Grã-Bretanha, mas Daisy não falava mais que das festas que se organizavam nas partidas de tênis, os torneios de pólo e os clubes náuticos. Apesar disso, havia o tornado a cativar por completo uma vez mais. Ao Lloyd adorava seu alegre palavrório, sobre tudo porque de vez em quando estava salpicada de inesperados dardos de um engenho sarcástico. —Não queria te separar de seus amigos… mas eu gostaria de te perguntar pelo new deal —lhe havia dito. —Caramba, você sim que sabe como adular a uma garota —tinha respondido ela. Mas ao despedir-se, havia-lhe dito—: me Chame quando vier a Londres: Mayfair dois e quatro três e quatro. Esse dia Lloyd tinha parado a comer em casa de seus avós de caminho à estação de trem. No acampamento de trabalho lhe tinham dado uns dias livres, e pensava agarrar o trem a Londres para desfrutar de um breve descanso. Tinha a vaga esperança de tropeçar-se ali com o Daisy, como se Londres fosse uma cidade igual de pequena que Aberowen. No acampamento também lhe tinham encarregado da educação política, e nesse momento contou a seu avô que tinha organizado uma série de conferências por parte de catedráticos de Cambridge que eram de esquerdas. —Digo-lhes que é uma oportunidade para sair de sua torre de marfim e entrar em contato com a classe trabalhadora, assim que lhes resulta muito difícil negar-se. Os pálidos olhos azuis do avô baixaram o olhar por seu nariz largo e afiado. —Espero que nossos meninos lhes ensinem três ou quatro coisas sobre o mundo real. Lloyd assinalou ao filho do Tom Griffiths, que estava em pé na soleira da porta de atrás, escutando. A seus dezesseis anos, Lenny já tinha essa sombra de barba negra tão característica dos Griffiths, que não desaparecia de suas bochechas nem quando estavam recém barbeados. —Lenny teve uma discussão com um professor marxista. —Bem por ti, Len —disse o avô. O marxismo era muito popular no Gales do Sul, que às vezes recebia médio em brincadeira o nome de Pequeno Moscou, mas o avô sempre tinha sido um anticomunista acérrimo. —o conte ao avô o que lhe disse, Lenny. Lenny sorriu com malícia e recitou: —Em 1872 o cabeça anarquista Mijaíl Bakunin advertiu ao Karl Marx de que se os comunistas chegavam ao poder seriam tão represores como a aristocracia à que substituíam. depois do que aconteceu na Rússia, pode dizer com sinceridade que Bakunin se equivocava? O avô ficou a aplaudir. Um bom tema de debate sempre era muito bem recebido em torno da mesa de sua cozinha. A avó do Lloyd lhe serve uma taça de chá recém feito. Cara Williams era uma mulher cinza, cheia de rugas e encurvada, igual a todas as mulheres de sua idade no Aberowen. —Já lhe faz a corte a alguma garota, meu carinho? —perguntou ao Lloyd, que se ruborizou imediatamente. —Ando muito ocupado com os estudos, avó. —Mas a imagem do Daisy Peshkov se cruzou por sua mente junto com aquele número de telefone: Mayfair dois e quatro três e quatro. —Então, quem é essa tal Ruby Carter? —perguntou a mulher. Os homens puseram-se a rir. —Pescaram-lhe, moço! Estava claro que a mãe do Lloyd se foi da língua. —Ruby é a responsável por filiados da Partida Trabalhista de Cambridge, nada mais —protestou Lloyd. —Sim, claro, claro. Muito convincente —disse Billy com sarcasmo, e todos puseram-se a rir de novo. —Avó, você não gostaria que Ruby e eu fôssemos noivos, me acredite —disse Lloyd—. Me diria que leva a roupa muito rodeada. —Pois não me parece apropriada para ti —disse Cara—. Agora é todo um universitário, assim tem que apontar mais alto. Lloyd se deu conta de que era igual de esnobe que Daisy. —Ruby Carter não tem nada de mau —disse—. Sozinho que não estou apaixonado por ela. —Você tem que te casar com uma mulher instruída, uma professora de escola ou uma enfermeira com titulação. O problema era que sua avó tinha acertado. Ao Lloyd gostava de Ruby, mas nunca a amaria. Era bastante bonita, e inteligente também, e Lloyd sentia tanta debilidade pelas figuras curvilíneas como qualquer filho de vizinho, mas, mesmo assim, sabia que não era a mulher adequada para ele. Pior ainda, a avó tinha metido seu dedo velho e enrugado na chaga: Ruby tinha muito pouca amplitude de miras, seus horizontes eram muito limitados. Não era emocionante. Não era como Daisy. —Já basta de tanto falar de mulheres —disse Cara—. Billy, nos conte que notícias tem que a Espanha. —A coisa está mal —respondeu ele. Europa inteira estava pendente da Espanha. O governo de esquerdas que tinha saído eleito em mês passado de fevereiro tinha sofrido uma tentativa de repente de Estado apoiado pelos fascistas e os conservadores. O general rebelde, Franco, tinha conseguido o respaldo da Igreja católica. A notícia tinha sacudido o resto do continente como se fora um terremoto. depois da Alemanha e Itália, também a Espanha, de repente, cairia sob a maldição do fascismo? —A sublevação foi uma porcaria, como seguro que saberão já, e esteve a ponto de fracassar —seguiu contando Billy—. Mas Hitler e Mussolini foram ao resgate e salvaram a sublevação transportando por avião a milhares de soldados rebeldes de reforço do norte da África. —Mas os sindicatos salvaram ao governo! —interveio Lenny. —Isso é certo —disse Billy—. O governo reagiu com lentidão, mas os sindicatos se puseram à frente organizando aos trabalhadores e provendo-os de armas que tiraram que arsenais militares, navios de guerra, armerías e dali de onde as puderam encontrar. —Ao menos alguém contra-ataca —disse o avô—. até agora os fascistas se saíram com a suas em todas partes. Na Renania e Abisinia simplesmente fizeram
ato de presença e agarraram o que lhes deu a vontade. Obrigado temos que lhe dar a Deus dos espanhóis, vá. tiveram suficientes guelra para opor-se. produziu-se um murmúrio de aprovação entre os homens que estavam apoiados nas paredes. Lloyd recordou de novo aquele sábado pela tarde em Cambridge. Também ele tinha deixado que os fascistas se saíssem com a sua. Bulia por dentro de frustração. —Mas podem impor-se? —perguntou o avô—. Parece que agora o crucial som as armas, verdade? —Justamente —disse Billy—. Os alemães e os italianos subministram armamento e munição aos rebeldes, e também aviões de combate e pilotos. Mas ao governo da Espanha eleito nas urnas não o ajuda ninguém. —E por que demônios não? —perguntou Lenny, zangado. Cara levantou o olhar dos fogões. Seus escuros olhos mediterrâneos refulgiam em um gesto de desaprovação, e Lloyd acreditou ver neles à garota bonita que tinha sido sua avó uma vez. —Não quero palavrões em minha cozinha! —advertiu. —Sinto muito, senhora Williams. —Eu posso lhes explicar o verdadeiro porquê —disse Billy, e todos os homens calaram para escutá-lo—. O primeiro-ministro francês, Léon Blum, socialista, como já sabem, tinha-o tudo disposto para enviar ajuda. Já conta com um vizinho fascista, Alemanha, e o último que quer é um regime fascista também em sua fronteira sul. Enviar armas ao governo espanhol poria em pé de guerra a toda a direita francesa, e também aos socialistas católicos do país, mas isso Blum poderia suportá-lo, sobre tudo se tivesse o apoio britânico e pudesse dizer que armar ao governo da Espanha é uma iniciativa internacional. —E o que se torceu? —perguntou o avô. —Nosso governo lhe tirou a idéia da cabeça. Blum veio a Londres e o secretário do Foreign Office, Anthony Eden, disse-lhe que não o secundaríamos. O avô foi às nuvens. —por que necessita nenhum apoio? Como pode um primeiro-ministro socialista deixar-se manipular assim por um governo conservador de outro país? —Porque também na França existe o perigo de um golpe de estado militar —explicou Billy—. Ali a imprensa é da direita mais recalcitrante, e estão esporeando a seus próprios fascistas até limites insuspeitados. Blum poderia enfrentar-se a eles com o apoio de Grã-Bretanha… mas possivelmente não sem ele. —Ou seja, que outra vez temos que ver como nosso governo conservador adota uma atitude benévola com o fascismo! —Todos esses toureie têm dinheiro investido na Espanha: veio, carvão, aço, indústrias têxteis… e lhes dá medo que o governo de esquerdas acabe expropriando-o tudo. —O que diz os Estados Unidos? Eles acreditam na democracia. Não estão dispostos a vender armas a Espanha? —diria-se que sim, verdade? Mas existe um influente grupo católico muito bem financiado, encabeçado por um milionário chamado Joseph Kennedy, que se opõe a enviar qualquer tipo de ajuda ao governo espanhol. E um presidente democrata necessita o apoio dos católicos. Roosevelt não fará nada que ponha em perigo seu new deal. —Bom, de todas formas sim há algo que podemos fazer —disse Lenny Griffiths, e em sua expressão se refletiu toda sua rebeldia adolescente. —O que, Len, moço? —perguntou Billy. —Podemos ir a Espanha a lutar. —Não diga bobagens, Lenny —disse seu pai. —Há muita gente que fala de ir ali, em todo mundo, inclusive nos Estados Unidos. Querem formar unidades de voluntários para lutar junto ao exército regular. Lloyd se ergueu em seu assento. —De verdade? —Era a primeira vez que ouvia falar disso—. Como sabe? —Tenho-o lido no Daily Herald. Lloyd não saía de seu assombro. Voluntários que se foram a Espanha a lutar contra os fascistas! —Bom, pois você não vai, e ponto —disse Tom Griffiths ao Lenny. —Recordam a aqueles meninos que mentiram sobre sua idade para poder lutar na Grande Guerra? —perguntou Billy—. Foram milhares. —E a maioria não serviram para nada de nada —repôs Tom—. Recordo a aquele menino que pôs-se a chorar antes da batalha do Somme. Como se chamava, Billy? —Owen Bevin. Ao final fugiu, verdade? —Sim… de cabeça a um pelotão de fuzilamento. Os muito bodes o mataram por desertor. Quinze anos, tinha, o pobre menino. —Eu tenho dezesseis —soltou Lenny. —Sim —disse seu pai—. Miúda diferencia. —Nosso Lloyd vai perder o trem de Londres que sai dentro de dez minutos —disse o avô. Lloyd se tinha ficado tão afetado com a revelação que lhe tinha feito Lenny que se esqueceu da hora. ficou em pé de um salto, deu-lhe um beijo a seu avó e agarrou sua pequena mala. —Acompanharei-te à estação —disse Lenny. Lloyd se despediu de todo o mundo. Enquanto se apressavam colina abaixo, Lenny não dizia nada. Parecia absorto em seus pensamentos. Lloyd agradeceu não ter que lhe dar conversação: também ele sentia certa confusão mental. O trem já tinha chegado. Lloyd comprou um bilhete de terceira a Londres e, quando já estava a ponto de subir a seu vagão, Lenny falou por fim. —Ouça, Lloyd, me diga uma coisa, como se tira um o passaporte? —Dizia muito a sério isso de ir a Espanha, verdade? —Venha, homem, não me chateie, quero sabê-lo. Soou o apito e Lloyd subiu ao trem, fechou a porta e baixou o guichê. —Tem que ir a correios e pedir um formulário. —Se for à agência de correios do Aberowen e peço um formulário para me tirar o passaporte, minha mãe se inteirou uns trinta segundos depois. —Pois vete ao Cardiff —disse Lloyd, e o trem ficou em marcha. Ocupou seu assento e se tirou do bolso um exemplar do Rouge et o Noir do Stendhal, em francês, mas ficou olhando a página sem assimilar nada do que lia. Solo podia pensar em uma coisa: ir a Espanha. Sabia que deveria lhe dar medo, mas o único que sentia era entusiasmo ante a idéia de ir-se lutar (a lutar de verdade, não só organizando mítines) contra a classe de homens que tinham açulado aos cães contra Jörg. Estava claro que o medo apareceria cedo ou tarde. antes de um combate de boxe, no vestuário, nunca estava assustado, mas assim que saía ao ring e via o homem que queria deixá-lo inconsciente de um murro, via seus ombros musculados, os punhos contundentes e o rosto cruel, então lhe secava a boca e o coração começava a lhe pulsar com tanta força que tinha que conter o impulso de dar meia volta e sair correndo. Naquele momento, quase o único que lhe preocupava eram seus pais. Bernie estava tão orgulhoso de ter a um enteado estudando em Cambridge —o tinha contado ao meio bairro do East End—, que lhe destroçaria ver partir ao Lloyd antes de tirar o título. O temor do Ethel porque pudessem ferir seu filho, ou matá-lo, seria constante. Os dois ficariam muito afetados. Mas também havia outros assuntos que ter em conta. Como chegaria a Espanha? A que cidade podia dirigir-se? Como pagaria o bilhete? Embora o certo é que só havia um inconveniente que o freasse de verdade. Daisy Peshkov. Não seja tolo, disse-se. Solo a tinha visto duas vezes e ela nem sequer demonstrava muito interesse por ele, o qual era inteligente por sua parte, porque não eram o casal mais adequado o um para o outro. Ela era filha de um milionário, uma menina superficial que solo vivia para as festas de sociedade e que pensava que falar de política era aborrecido. Gostava de homens como Boy Fitzherbert: solo com isso bastava para ver que não era mulher para o Lloyd. E mesmo assim, não podia deixar de pensar nela, e a só idéia de ir-se a Espanha e perder qualquer oportunidade de voltar a vê-la-o afundava na tristeza. Mayfair dois e quatro três e quatro. Envergonhava-lhe sentir tantas dúvidas, sobre tudo quando recordava a simples e firme determinação do Lenny. Lloyd levava anos falando de lutar contra o fascismo. de repente tinha a oportunidade de fazê-lo e… como podia não ir? Chegou a Londres, à estação do Paddington, agarrou o metro até o Aldgate e se dirigiu a pé até a humilde casa encostada do Nutley Street onde tinha nascido. Abriu com sua própria chave. Aquele lugar não tinha trocado muito desde que ele era menino, mas sim contava com uma inovação: o telefone que havia em uma mesita junto ao perchero. Era o único telefone de toda a rua, e os vizinhos o tratavam como se fora de propriedade pública. Junto ao aparelho havia uma caixa em que deixavam dinheiro cada vez que faziam uma chamada. Sua mãe estava na cozinha. Tinha posto o chapéu, assim devia estar a ponto de sair para ir dar um discurso em algum comício da Partida Trabalhista —o que, se não?—, mas pôs água a esquentar e lhe preparou um chá. —Como estão todos pelo Aberowen? —perguntou. —O tio Billy foi a passar o fim de semana —explicou Lloyd—. Todos os vizinhos se reuniram na cozinha do avô. Aquilo é como uma corte medieval. —Seus avós estão bem? —O avô está como sempre. À avó a vê maior. —deteve-se um momento—. Lenny Griffiths quer ir a Espanha a lutar contra os fascistas. Sua mãe apertou os lábios como com desgosto. —Isso quer? —Eu também estou pensando em ir com ele. O que te pareceria? Lloyd esperava encontrar resistência por parte de sua mãe, mas mesmo assim lhe surpreendeu sua reação. —Como te ocorra, você Mato, maldita seja —lhe soltou em tom agressivo—. Não quero nem que o pense! —Deixou a bule na mesa com um forte golpe—. Te pari com muito sofrimento e grandes dores, criei-te, pu-te os sapatos para te enviar ao colégio e não passei por tudo isso para que agora você te desgrace a vida em uma puñetera guerra! Lloyd ficou de pedra. —Não tenho intenção de me desgraçar a vida —disse—, mas sim que a poria em perigo por uma causa em que você mesma me ensinaste a acreditar. sentiu-se desconcertado ao ver que sua mãe começava a soluçar. Quase nunca chorava; de fato, Lloyd não recordava a última vez que a tinha visto fazê-lo. —Mãe, não. —Rodeou-lhe os ombros trementes com um braço—. Ainda não aconteceu nada. Bernie, um homem fornido de média idade com uma calva incipiente, entrou na cozinha. —O que é tudo isto? —perguntou. Parecia um pouco assustado. —Sinto muito, papai, desgostei-a —disse Lloyd. Retrocedeu um passo e deixou que Bernie abraçasse ao Ethel. —Vai a Espanha! Matarão-o! —gritou ela. —vamos acalmar nos todos um pouco e a discutir isto com um pouco de sensatez —disse Bernie. Seu padrasto era um homem muito sensato, levava um sensato traje escuro e uns sapatos de sensatas reveste grosas reparados milhares de vezes com betume. Não havia dúvida de que por isso mesmo o votava a gente: era político municipal e representava ao Aldgate no Conselho do Condado de Londres. Lloyd não tinha conhecido a seu verdadeiro pai, mas não podia imaginar querer a um pai de verdade mais do que queria ao Bernie, que tinha sido um padrasto carinhoso, sempre disposto a consolá-lo ou a lhe aconselhar, resistente a dar ordens e a castigar. Tratava ao Lloyd exatamente igual à sua própria filha, Millie. Bernie convenceu ao Ethel de que se sentasse à mesa da cozinha, e Lloyd lhe serve uma taça de chá. —Uma vez pensei que meu irmão tinha morrido —disse Ethel, que não deixava de chorar—. Ao Wellington Row chegavam telegramas e esse desventurado menino de correios tinha que ir casa em casa, entregando a homens e mulheres esses papelitos que diziam que seus filhos e maridos tinham morrido. Pobre moço, como se chamava? Geraint, me parece. Mas nunca trouxe nenhum telegrama a nossa casa e eu, que sou uma má mulher, dava-lhe graças a Deus porque fossem outros os que tinham morrido, e não Billy! —Você não é uma má mulher —disse Bernie, tranqüilizando-a com uns tapinhas. A meio-irmã do Lloyd, Millie, desceu do piso de acima. Tinha dezesseis anos, mas parecia maior, sobre tudo quando se vestia como essa tarde, com um traje negro muito elegante e uns pequenos pendentes de ouro. Fazia dois anos que trabalhava em uma loja de roupas feminina do Aldgate, mas era uma garota inteligente e ambiciosa, e uns dias antes tinha conseguido um emprego em uns grandes armazéns muito chique do West End. Olhou ao Ethel. —Mamãe, o que te passa? —Falava com acento cockney. —Que seu irmão quer ir-se a Espanha para que o matem! —exclamou Ethel. Millie lançou um olhar acusador ao Lloyd. —Mas o que lhe há dito? —Millie sempre culpava em seguida de algo a seu irmão maior; parecia-lhe que todo mundo o adorava sem muita razão. Lloyd reagiu com uma tolerância carinhosa. —Lenny Griffiths, do Aberowen, vai se lutar contra os fascistas, e lhe hei dito a mamãe que também eu estava pensando em ir com ele. —Será capaz —disse Millie, indignada. —Duvido que consiga chegar ali —disse Bernie, sempre tão prático—. A fim de contas, o país está sumido em plena guerra civil. —Posso ir de trem até a Marsella. Barcelona não fica muito longe da fronteira com a França. —A cento e trinta ou cento e cinqüenta quilômetros, e a travessia pelos Pirineos é muito fria. —Tem que haver navios que vão da Marsella a Barcelona. Por mar não está tão longe. —É verdade. —Basta já, Bernie! —exclamou Ethel—. Nem que estivessem decidindo a forma mais rápida de chegar ao Piccadilly Circus. Está falando de ir-se à guerra! Não penso permiti-lo. —Tem vinte e um anos, Ethel —disse Bernie—. Não podemos impedir-lhe a los voluntarios. Lo ideal sería ir acompañado de Lenny y otros más. Necesitaría visados, moneda extranjera, un buen par de botas… —Sei perfeitamente quantos anos tem, maldita seja! Bernie consultou seu relógio. —Temos que ir já ao comício. É a oradora principal e Lloyd não se irá a Espanha esta noite. —Como sabe? —respondeu ela—. Talvez voltamos para casa e nos encontramos uma nota dizendo que agarrou o trem que enlaça com o navio a Paris! —vamos fazer uma coisa —disse Bernie—. Lloyd, lhe prometa a sua mãe que não irá pelo menos até dentro de um mês. Não é má idéia, de todas formas. antes de partir correndo deveria fazer algumas averiguações para saber com o que te vais encontrar ao chegar. Deixa-a tranqüila, ao menos no momento. Mais adiante já voltaremos a falá-lo. Era uma solução de compromisso muito típica do Bernie, calculada para que todo mundo acessasse sem ter que ceder; mas Lloyd resistia a comprometer-se a nada. Por outra parte, certamente tampouco podia subir a um trem e preparados. Antes teria que ver que gestões tinha posto em marcha o governo espanhol para receber aos voluntários. O ideal seria ir acompanhado do Lenny e outros mais. Precisaria visados, moeda estrangeira, um bom par de botas… —Está bem —acessou—. Não irei até dentro de um mês. —Promete-o? —disse sua mãe. —Prometo-o. Ethel se tranqüilizou um pouco. Ao cabo de um momento se empoeirou a cara e seu aspecto já foi mais normal. bebeu-se a taça de chá. Depois ficou o casaco e Bernie e ela saíram. —Bom, pois eu também me parto —disse Millie. —Aonde vai? —perguntou-lhe Lloyd. —Ao Gaiety. Era um music-hall do East End. —Deixam entrar nas garotas de dezesseis anos? Millie o olhou arqueando as sobrancelhas. —Quem tem dezesseis anos? Eu não. Além disso, Dave também vai, e ele sozinho tem quinze. —Estava falando de sua primo, David Williams, filho do tio Billy e a tia Mildred. —Bom, porque lhes passem isso muito bem. Millie foi para a porta mas logo retrocedeu. —E a ti que não lhe matem na Espanha, pedaço de idiota. —Abraçou-o e o estreitou com força, depois saiu sem dizer nada mais. Assim que ouviu que se fechava a porta da rua, Lloyd foi até o telefone. Não teve que esforçar-se para recordar o número. Via o Daisy em sua lembrança, voltando-se enquanto ele a deixava, com um grande sorriso encantador sob seu chapéu de palha e dizendo: Mayfair dois e quatro três e quatro. Desprendeu o telefone e marcou. O que ia dizer lhe? Disse-me que te chamasse, pois aqui me tem? Era uma desculpa muito frouxa. A verdade? Não te admiro nem muito menos, mas não consigo deixar de pensar em ti. Estaria bem convidá-la a algo, mas a que? A um comício da Partida Trabalhista? Respondeu um homem. —Residência da senhora Peshkov. Boa tarde. —Pelo diferente do tom, Lloyd supôs que devia ser um mordomo. Seguro que a mãe do Daisy tinha alugado uma casa em Londres com o serviço incluído. —Sou Lloyd Williams… —Queria dizer algo que explicasse ou justificasse sua chamada, e acrescentou o primeiro que lhe veio à cabeça—: Do Emmanuel College. —Isso não queria dizer nada, mas com isso esperava impressionar um pouco ao homem—. Poderia falar com a senhorita Daisy Peshkov? —Não, sinto muito, professor Williams —disse o mordomo, caso que Lloyd devia ser catedrático—. saíram todos à ópera. Certamente, pensou Lloyd, decepcionado. Nenhum habitual dos acontecimentos de sociedade estava em casa a essa hora da tarde, e menos ainda em sábado. —Ah, agora o recordo —mentiu—. Me disse que pensava ir, mas o tinha esquecido. Ao Covent Garden, verdade? —Conteve a respiração. Entretanto, o mordomo não viu nada suspeito. —Sim, senhor. A flauta mágica, parece-me. —Obrigado. —Lloyd pendurou. foi a sua habitação e se trocou de roupa. No West End, a gente levava traje de etiqueta até para ir ao cinema. Mas o que faria ao chegar ali? Não podia permitir-se uma entrada à ópera, e de todas formas a função logo teria acabado. Foi para ali no metro. Embora não resultasse muito apropriado, a Royal Opera House estava situada junto ao Covent Garden, o mercado atacadista de frutas e verduras de Londres. Ambas as instituições se levavam bem porque seus horários eram muito diferentes: o mercado abria as portas às três ou as quatro da madrugada, quando até os farristas mais incorrigíveis começavam a partir a casa, e fechava muito antes da matiné. Lloyd passou por diante dos postos fechados do mercado e olhou ao interior do teatro da ópera através de suas portas de cristal. O esplendoroso vestíbulo estava vazio e se ouvia o Mozart amortecido de fundo. Entrou, adotou uma despreocupada atitude de classe alta e se dirigiu ao meirinho. —A que hora baixa o pano de fundo? Se se tivesse apresentado com seu traje de tweed, certamente lhe haveriam dito que aquilo não era de sua incumbência, mas o traje de etiqueta era o uniforme de a autoridade, assim que o meirinho respondeu: —dentro de uns cinco minutos, senhor. Lloyd assentiu brevemente. Dizer um Obrigado teria sido delatar-se. Saiu do edifício e deu a volta à maçã. Era um momento muito tranqüilo. Nos restaurantes, a gente estava pedindo já o café; nos cinemas, o filme principal se aproximava de seu melodramático clímax. Tudo trocaria dentro de poucos instantes, quando as ruas ficassem invadidas de gente pedindo táxis, caminhando para os clubes noturnos, despedindo-se com beijos nas paradas do ônibus e correndo para não perder o último trem de volta aos bairros periféricos. Lloyd retornou à ópera e voltou a entrar. A orquestra estava já em silêncio e o público justo tinha começado a sair. Liberados do comprido cativeiro de suas poltronas, conversavam muito animadamente, elogiando aos cantores, criticando o vestuário e acabando de concretizar os planos para os jantares às que assistiriam a seguir. Lloyd viu o Daisy quase imediatamente. Levava um vestido em tons lavanda com uma pequena capa de visom cor champanha que lhe cobria os ombros nus; estava arrebatadora. Saiu do auditório encabeçando um grupito de gente de sua mesma idade. Lloyd lamentou reconhecer ao Boy Fitzherbert a seu lado e vê-la a ela lhe renda alegremente algo que lhe tinha murmurado ao ouvido enquanto baixavam a escalinata coberta por um tapete vermelho. detrás dela ia aquela garota alemã tão interessante, Eva Rothmann, escoltada por um jovem alto vestido com uniforme de ornamento, o equivalente de um traje de etiqueta em uniforme militar. Eva reconheceu ao Lloyd e lhe sorriu. Ele se dirigiu a ela em alemão. —boa noite, fräulein Rothmann, espero que tenha desfrutado da ópera. —Muito, sim, obrigado —respondeu ela no mesmo idioma—. Não me tinha dado conta de que estivesse você entre o público. —Né, meninos, por que não falam em inglês? —disse Boy com tom amigável. Parecia que ia um pouco bebido. Era arrumado e tinha um ar algo dissoluto, como um adolescente bonito e mal-humorado, ou um cão de pedigree ao que freqüentemente lhe dão sobras para comer. Tinha um caráter afável, e seguro que sabia ser irresistivelmente encantador quando queria. —Visconde do Aberowen, este é o senhor Williams —disse Eva, em inglês. —Já nos conhecemos —esclareceu Boy—. Estuda no Emma. —Olá, Lloyd —disse Daisy—. Vamos de farra aos bairros baixos. Lloyd já tinha ouvido antes essa expressão. Significava ir ao East End a visitar pubs de má morte para ver como se divertia a classe trabalhadora, como o que vai a ver brigas de cães. —Seguro que Williams conhece muitos sítios —disse Boy. Lloyd duvidou sozinho uma fração de segundo. Estava disposto a tolerar ao Boy para poder desfrutar do Daisy? Certamente. —O certo é que sim —disse—. Quer que lhes acompanhe? —Fantástico! de repente apareceu uma mulher maior assinalando ao Boy com um dedo indicador conminatorio. —Tem que acompanhar a estas garotas a casa antes da meia-noite —disse com acento norte-americano—. E nem um segundo depois, por favor. —Lloyd supôs que seria a mãe do Daisy. —Deixe-o em mãos do exército, senhora Peshkov —disse o homem alto de uniforme de ornamento—. Seremos pontuais. detrás da senhora Peshkov se aproximou o conde Fitzherbert com uma mulher grosa que devia ser sua esposa. Ao Lloyd teria gostado de lhe perguntar ao conde pela política de seu governo respeito a Espanha. Fora tinham já dois carros esperando-os. O conde, sua mulher e a mãe do Daisy subiram a um Rolls-Royce Phantom III de cor negra e nata. Boy e seu grupo apinharam-se no outro, uma limusine Daimler E20 de cor azul escura, o carro preferido da família real. Em total eram sete jovens, contando ao Lloyd. Eva parecia estar com o soldado, que se apresentou ele mesmo ao Lloyd como o tenente Jimmy Murray. A terceira garota era sua irmã, Mai, e o outro moço (uma versão mais calada e magra do Boy) resultou ser Andy Fitzherbert. Lloyd lhe deu instruções à chofer para ir ao Gaiety. deu-se conta de que Jimmy Murray passava discretamente um braço ao redor da cintura da Eva. A reação da garota foi aproximar-se um pouco a ele: era evidente que estavam cortejando. Lloyd se alegrou por ela. Não era muito bonita, mas sim inteligente e encantadora. Lhe agradava e se alegrava de que tivesse encontrado a um soldado alto. Mesmo assim, perguntou-se como reagiriam outros nessas esferas da alta sociedade se Jimmy anunciasse que pensava casar-se com uma alemã médio judia. Então lhe ocorreu que outros formavam outras dois casais: Andy e Mai, e (embora não lhe fizesse nenhuma graça) Boy e Daisy. Lloyd era o único que ficava sozinho. Como não queria olhá-los com muita insistência, decidiu estudar a mogno polida que emoldurava os guichês. O carro subiu pelo Ludgate Hill para a catedral de São Pablo. —Vá pelo Cheapside —disse Lloyd à chofer. Boy deu um comprido gole de uma cigarreira de prata. —Sim que sabe te mover por aqui, Williams —disse detrás limpá-la boca. —Vivo aqui —repôs Lloyd—. Nasci no East End. —Que maravilha —disse Boy; Lloyd não estava seguro de se falava com uma ligeira descortesia ou se estava sendo desagradablemente sarcástico. No Gaiety todas as cadeiras estavam ocupadas, mas havia muito sítio para estar em pé e o público se movia sem parar por todo o local para ir saudar amigos ou pedir algo na barra. Todos foram muito arrumados, as mulheres com vestidos de cores vivas e os homens com seus melhores trajes. O ambiente era caloroso e estava cheio de fumaça, o aroma da cerveja derramada o invadia tudo. Lloyd encontrou sítio para seu grupo quase ao fundo. Sua vestimenta os assinalava como visitantes do West End, mas não eram os únicos: os music-halls tinham muito êxito entre todas as classes. No cenário, uma artista algo madurita com um vestido vermelho e uma peruca loira estava interpretando um número de equívocos. —E então lhe disse: Não penso te deixar entrar em meu passadiço. —O público estalou em gargalhadas—. E ele me disse: Já o vejo daqui, céu. E eu lhe disse: Deixa de aparecer os narizes!. —Afetava um tom de indignação—. E então me respondeu: Pois me parece que necessita uma boa limpeza. Bom! O que me dizem disso?. Lloyd viu que Daisy sorria de brinca a orelha. inclinou-se para ela e lhe murmurou algo ao ouvido. —Tinha-te dado conta de que é um homem? —Não! —lhe olhe as mãos. —Ai, santo céu! —exclamou ela—. Essa mulher é um homem! David, o primo do Lloyd, passou de comprimento junto a eles e, ao reconhecer ao Lloyd, voltou sobre seus passos. —Para que vão vestidos tão de ornamento? —perguntou com seu acento cockney. Ele levava um lenço atado ao pescoço e uma boina de tecido. —Olá, Dave, que tal vai? —Vou a Espanha com o Lenny Griffiths e contigo. —Não, nem pensar —disse Lloyd—. Tem quinze anos. —Na Grande Guerra lutaram meninos de minha idade. —Mas não serviram de nada… lhe pergunte a seu pai. De todas formas, a ti quem te há dito que eu vou? —Sua irmã, Millie —respondeu Dave, e seguiu seu caminho. —O que bebe a gente por aqui, Williams? —perguntou Boy. —Pintas da melhor cerveja amarga, os homens, e oporto com limão, as garotas —disse Lloyd, embora pensou que ao Boy já não convinha beber mais álcool. —Oporto com limão? —É oporto rebaixado com limonada. —Sonha do mais repugnante —disse Boy, e desapareceu. O cômico chegou ao clímax de seu número. —E então lhe disse: Idiota, que não é esse passadiço!. —Ele, ou ela, retirou-se entre tremendos aplausos. Millie apareceu frente a Lloyd. —Olá —disse, e olhou ao Daisy—. Quem é seu amiga? Lloyd se alegrou ao ver o Millie tão bonita com seu sofisticado vestido negro, seu colar de pérolas falsas e um discreto toque de maquiagem. —Senhorita Peshkov —disse—, me permita lhe apresentar a minha irmã, a senhorita Leckwith. Millie, esta é Daisy. deram-se a mão. —Encantada de conhecer a irmã do Lloyd —disse Daisy. —Meio-irmã, mas bem. —Meu pai morreu na Grande Guerra —explicou Lloyd—. Nunca o conheci. Minha mãe voltou a casar-se quando eu não era mais que um menino. —Que desfrutem de do espetáculo —disse Millie antes de dar meia volta; logo, quando já se ia, comentou-lhe em voz baixa ao Lloyd—: Agora entendo por que Ruby Carter não tem nenhuma possibilidade. Lloyd resmungou por dentro. Estava visto que sua mãe lhe tinha contado a toda a família que andava cortejando ao Ruby. —Quem é Ruby Carter? —perguntou Daisy. —É uma donzela do Chimbleigh. A garota a que lhe deu dinheiro para que fora ao dentista. —Já me lembro. Ou seja que seu nome está sentimentalmente unido ao teu. —Na imaginação de minha mãe, sim. Daisy riu ao vê-lo tão incômodo. —Ou seja que não vais casar te com uma donzela. —Não vou casar me com o Ruby. —Pode que seja a mulher ideal para ti. Lloyd a olhou diretamente aos olhos. —Não sempre nos apaixonamos pela pessoa que mais nos convém, verdade? Ela olhou ao cenário. O espetáculo estava a ponto de terminar e toda a partilha começava a cantar uma conhecida canção. O público lhes uniu com entusiasmo. Os clientes que estavam em pé ao fundo se agarraram dos braços e começaram a balançar-se ao ritmo da toada, e o grupo do Boy seguiu seu exemplo. Quando baixou o pano de fundo, Boy ainda seguia desaparecido. —Irei buscá-lo —disse Lloyd—. Acredito que sei onde posso encontrá-lo. O Gaiety tinha serviços para senhoritas, mas o de homens era um pátio traseiro com um privada que tinha o chão de terra e várias latas de azeite cortados pela metade. Encontrou ao Boy devolvendo em um deles. Passou-lhe um lenço para que se limpasse a boca, logo o sustentou do braço, acompanhou-o até o interior do estabelecimento, que já se estava esvaziando, e o levou até a limusine Daimler. Outros já estavam esperando-os. Subiram todos e Boy ficou dormido imediatamente. Quando chegaram de novo ao West End, Andy Fitzherbert lhe disse ao condutor que fora primeiro a casa dos Murray, em uma rua modesta que ficava perto do Trafalgar Square. —Vós sigam. Eu acompanharei ao Mai até a porta e logo irei a casa caminhando —disse enquanto descia do carro com o Mai. Lloyd supôs que Andy pensava lhe dedicar uma romântica despedida à garota na porta de sua casa. Seguiram caminho para o Mayfair. Quando o carro se aproximava do Grosvenor Square, onde estavam alojadas Daisy e Eva, Jimmy lhe disse à chofer: —Pare na esquina, por favor. —E logo ao Lloyd, em voz baixa—: Ouça, Williams, não te importa acompanhar à senhorita Peshkov até a porta, verdade? Eu te sigo com fräulein Rothmann dentro do meio minuto. —Certamente. Jimmy queria despedir-se da Eva com um beijo no carro, era evidente. Boy não se inteiraria: estava roncando. E o condutor, com a esperança de conseguir uma gorjeta, fingiria não ver nada de nada. Lloyd desceu do carro e ofereceu uma mão ao Daisy. Quando ela a aceitou, sentiu um estremecimento similar a uma leve corrente elétrica. Agarrou-a do braço e juntos puseram-se a andar lentamente pela calçada. A meio caminho entre duas luzes, onde a luz era mais tênue, Daisy se deteve. —lhes demos tempo —disse. —Alegra-me muito que Eva tenha um pretendente. —Sim, a mim também. Lloyd respirou fundo. —Não posso dizer o mesmo de ti com o Boy Fitzherbert. —Apresentou-me ante a corte! —explicou Daisy—. E dancei com o rei em um clube noturno… Saiu em todos os periódicos de meu país. —Por isso deixa que te corteje? —disse Lloyd sem poder acreditar-lhe —Me pregunto cuánto más van a tardar —dijo con desconsuelo. —Não só por isso. Gosta de tudo o que faço: ir a festas, as carreiras de cavalos, a roupa bonita. É muito divertido! Inclusive tem seu próprio avião. —Nada disso importa —disse Lloyd—. Deixa-o e sei minha noiva. Ao Daisy pareceu lhe gostar da declaração, mas riu. —Está louco. Embora eu gosto. —Digo-o a sério —insistiu ele, desesperado—. Não posso deixar de pensar em ti, embora seja a última pessoa do mundo com a que me conviria me casar. Ela voltou a rir. —Como pode dizer essas barbaridades! Não sei nem por que falo contigo. Suponho que me parece agradável, detrás dessa fachada de arrudas maneiras. —Em realidade não sou rude… solo me passa contigo. —Acredito-te. Mas não vou casar me com um socialista morto de fome. Lloyd lhe tinha aberto seu coração e ela o tinha rechaçado com graça. Estava destroçado. Voltou o olhar para o Daimler. —Pergunto-me quanto mais vão demorar —disse com desconsolo. —Mas sim poderia beijar a um socialista, embora solo seja por provar. Lloyd demorou um momento em reagir. Pensou que Daisy só estava especulando. Mas uma garota jamais diria algo assim solo por especular. Era um convite, e ele tinha sido tão parvo para estar a ponto de deixá-la passar. aproximou-se dela e lhe pôs as mãos na cintura. Daisy elevou a cabeça para cima, e sua beleza o deixou sem fala. Lloyd se inclinou e lhe deu um suave beijo em a boca. Ela não fechou os olhos, tampouco ele. Estava excitadísimo, olhando a seus olhos azuis enquanto seus lábios se moviam contra os dela. Daisy abriu a boca apenas um pouco, e ele roçou seus lábios separados com a ponta da língua. Um momento depois, sentiu que a língua de lhe correspondia. Ainda o olhava a os olhos, e Lloyd estava no paraíso, queria seguir detento desse abraço por toda a eternidade. Daisy apertou mais seu corpo contra o seu. Ele tinha uma ereção e retrocedeu um pouco, dava-lhe vergonha que ela o notasse… mas ela voltou a aproximar-se mais e, olhando-a aos olhos, Lloyd se deu conta de que queria sentir o roce de seu membro com seu suave corpo. Isso o acendeu mais ainda. Quase não podia suportá-lo, sentia que ia ejacular, e pensou que ao melhor ela inclusive o
desejava. Então ouviram que a porta do Daimler se abria, e ao Jimmy Murray falando com um volume um pouco exagerado para ser natural, como se lhes dirigisse um aviso. Lloyd pôs fim ao abraço com o Daisy. —Vá —murmurou ela, surpreendida—, foi um prazer inesperado. —Mais que um prazer —disse Lloyd, a voz algo rouca. Jimmy e Eva chegaram então onde estavam eles e todos juntos caminharam até a porta da casa da senhora Peshkov. Era um edifício senhorial, com uns degraus que subiam até um alpendre coberto. Lloyd se perguntou se o alpendre lhes proporcionaria proteção suficiente para camuflar outro beijo, mas enquanto subiam os degraus a porta se abriu de dentro. Um homem vestido de etiqueta, certamente o mordomo com o que tinha falado Lloyd antes. Como se alegrava de ter feito essa chamada! As duas garotas disseram boa noite com recato, sem que nada delatasse que apenas segundos antes tinham estado imersas em sendos abraços apaixonados; depois, a porta se fechou e elas desapareceram. Lloyd e Jimmy baixaram os degraus. —Eu voltarei para casa andando daqui —disse Jimmy—. Quer que lhe diga à chofer que te leve outra vez ao East End? Deve estar a cinco ou seis quilômetros de casa. E ao Boy não importará… seguirá dormindo até o café da manhã, diria eu. —É muito amável por sua parte, Murray, e lhe agradeço isso; mas, cria-o ou não, gosta de caminhar. Tenho muito no que pensar. —Como prefere. boa noite, então. —boa noite —disse Lloyd, e com a cabeça ainda lhe dando voltas enquanto a ereção diminuía pouco a pouco, voltou-se para o este e pôs-se a andar para casa. IV A temporada social de Londres terminou em meados de agosto e Boy Fitzherbert ainda não tinha proposto matrimônio ao Daisy Peshkov. Daisy se sentia ferida, e desconcertada também. Todos sabiam que saíam juntos. viam-se quase todos os dias. O conde Fitzherbert lhe falava com o Daisy como a uma filha, e inclusive a receosa princesa B a tratava com mais calidez. Boy a beijava cada vez que tinha ocasião, mas nunca dizia nada do futuro. A larga série de comidas e jantares opíparas, festas e bailes esplendorosos, acontecimentos esportivos tradicionais e lanches campestres com champanha que constituíam a temporada de Londres chegou a um abrupto final. de repente, muitos dos novos amigos do Daisy tinham abandonado a cidade. A maioria se transladavam a suas casas de campo, onde, pelo que ela tinha podido elucidar, passavam os dias caçando raposas, espreitando a cervos e provando sua pontaria com as aves. Daisy e Olga ficaram para assistir à bodas da Eva Rothmann. Ao contrário que Boy, Jimmy Murray tinha pressa por casar-se com a mulher a que amava. A cerimônia teve lugar na paróquia de seus pais, na Chelsea. Daisy tinha a sensação de ter feito muito bom trabalho com a Eva. Tinha-lhe ensinado a seu amiga a escolher a roupa que lhe sentava bem, um estilo elegante sem muitas florituras, com intensas cores lisas que faziam ressaltar seu cabelo escuro e seus olhos castanhos. Eva, ao ir ganhando em segurança, tinha aprendido a tirar partido de seu calidez natural e sua rápida inteligência para deslumbrar a homens e mulheres por igual. E Jimmy se apaixonou por ela. Jimmy não era nenhuma estrela de cinema, mas era alto e resultava grosseiramente atrativo. Vinha de família militar e dispunha de uma modesta fortuna, assim Eva teria uma vida cômoda, embora sem nadar na abundância. Os britânicos tinham tantos prejuízos como qualquer, e ao princípio o general Murray e sua senhora não tinham mostrado muito entusiasmo ante a idéia de que seu filho se casasse com uma refugiada alemã médio judia. Eva os tinha ganho em seguida, mas muitos de seus amigos ainda expressavam solapadamente seus receios. Nas bodas, ao Daisy tinham comentado quão exótica era Eva, que Jimmy era muito valente e que os Murray eram maravilhosamente tolerantes, todas elas forma de tentar lhe tirar o lado positivo a um casal nada afortunada. Jimmy lhe tinha escrito formalmente ao doutor Rothmann, ao Berlim, e tinha recebido sua permissão para pedir a mão da Eva em matrimônio, mas as autoridades alemãs negaram-se a deixar que a família Rothmann assistisse à bodas. —Odeiam tanto aos judeus —havia dito Eva entre lágrimas—, que quase teriam que alegrar-se de vê-los sair do país! O pai do Boy, Fitz, tinha ouvido esse comentário e mais adiante tinha falado com o Daisy disso. —lhe diga a sua amiga Eva que não vá falando por aí dos judeus se pode lhe evitá-lo tinha comentado com o tom de quem lança uma advertência amistosa—. Ter uma esposa médio judia não vai ajudar muito ao Jimmy a fazer carreira no exército, sabe? Daisy não tinha transladado esse conselho tão desagradável. O feliz casal se foi de lua de mel a Niza. Daisy, com uma pontada de culpabilidade, deu-se conta de que era um alívio haver-se tirado de cima a Eva. Boy e seus companheiros de partida desprezavam tanto a quão judeus Eva começava a ser um problema. Boy e Jimmy incluso tinham posto fim a sua amizade: Boy se tinha negado a ser o padrinho do Jimmy. depois das bodas, os Fitzherbert convidaram ao Daisy e a Olga a uma caçada que teria lugar em sua casa de campo do Gales. Daisy se fez ilusões. Agora que Eva tinha desaparecido de cena, não havia nada que impedisse ao Boy lhe propor matrimônio. Seguro que o conde e a princesa supunham que seu filho estava a ponto de decidir-se; possivelmente inclusive tinham planejado que o fizesse esse fim de semana. Daisy e Olga foram à estação do Paddington uma sexta-feira pela manhã para agarrar o trem para o oeste. Cruzaram o coração da Inglaterra, ricas terras de lavoura que se estendiam pelas suaves colinas salpicadas de aldeias, cada uma com sua igreja e seu campanário de pedra elevando-se de um pedestal de árvores muito velhos. Tinham um vagão de primeira para elas sozinhas, e Olga perguntou ao Daisy como acreditava que atuaria Boy. —Tem que saber que eu gosto de —respondeu sua filha—. Lhe deixei me beijar várias vezes. —demonstraste interesse em algum outro? —perguntou-lhe sua mãe com sagacidade. Daisy separou de sua mente a culpado lembrança daquele fugaz momento de loucura com o Lloyd Williams. Não havia forma de que Boy se inteirou, e de todas formas ela não havia tornado a ver o Lloyd, como tampouco tinha respondido às três cartas que lhe tinha enviado. —Em ninguém mais —respondeu. —Então é pela Eva —disse Olga—. E agora já não está. O trem entrou no comprido túnel subterrâneo que cruzava o estuário do rio Severn e, quando saíram dele, já se encontraram no Gales. Umas ovelhas pastavam por as colinas, e na vaguada de cada vale havia uma pequena cidade mineira, com o cabrestante de seu bocamina elevando-se de um punhado de feios edifícios industriais. O Rolls-Royce negro e nata do conde Fitzherbert as estava esperando na estação do Aberowen. Ao Daisy, aquela pequena cidade de barracões de pedra cinza dispostas em filas que desciam pelas escarpadas colinas lhe pareceu deprimente. O carro saiu da localidade e percorreu aproximadamente um quilômetro e médio antes de chegar à casa do conde, Ty Gwyn. Daisy conteve um suspiro de prazer quando cruzaram a grade. Ty Gwyn era uma mansão enorme e elegante, com largas fileiras de altas janelas em uma fachada perfeitamente clássica. O edifício se elevava entre suntuosos jardins de flores, arbustos e especímenes arbóreos que eram sem dúvida o orgulho do próprio conde. Que alegria devia de sentir-se sendo a senhora dessa casa, pensou. Embora a aristocracia inglesa já não governasse o mundo, tinham aperfeiçoado a arte de viver bem, e Daisy desejava ser um deles. Ty Gwyn significava Casa Branca, mas em realidade aquele edifício era cinza, e ao Daisy explicaram por que lhe sujavam os dedos de pó de carvão quando tocava suas pedras com a mão. Tinham-lhe atribuído uma habitação que recebia o nome de Suíte Gardênia. Essa tarde, antes de jantar, Boy e ela se sentaram na terraço a contemplar o pôr-do-sol sobre a violácea topo da montanha, Boy fumando um puro e Daisy dando sorvos de champanha. Estiveram sozinhos um bom momento, mas Boy não tirou o tema do matrimônio. A inquietação da garota cresceu com o passar do fim de semana. Boy tinha tido mais oportunidades para falar a sós com ela, a própria Daisy se assegurou disso. na sábado, os homens saíram de caça, mas Daisy foi receber os ao final da tarde, e Boy e ela retornaram passeando juntos pelo bosque. no domingo pela manhã, os Fitzherbert e a maioria de seus convidados assistiram à igreja anglicana da localidade. Depois do ofício, Boy se levou ao Daisy a um pub chamado Two Crowns, onde os mineiros robustos, baixos mas de ombros largos, todos eles com boina, ficaram olhando a ela e a seu casaco de cachemira cor lavanda como se Boy tivesse entrado levando a um leopardo com correia. Daisy lhe disse que sua mãe e ela logo teriam que retornar ao Buffalo, mas ele não captou a indireta. Podia ser que ao Boy gostasse, mas não o suficiente para casar-se com ela e já está? Chegados à comida do domingo, Daisy já não sabia que mais fazer. Ao dia seguinte, sua mãe e ela retornavam a Londres. Se Boy não lhe propunha matrimônio antes, seus pais começariam a pensar que as intenções do menino com ela não eram sérias e já não haveria mais convites ao Ty Gwyn. Essa perspectiva tinha ao Daisy aterrorizada. Estava decidida a casar-se com o Boy. Queria ser a viscondessa do Aberowen, e mais adiante, algum dia, condessa Fitzherbert. Sempre tinha sido rica, mas desejava com ânsia o respeito e a deferência que solo se conseguiam com a posição social. Desejava que se dirigissem a ela com um milady. Cobiçava a tiara de diamantes da princesa B. Queria contar com membros da realeza entre seus amigos. Sabia que ao Boy gostava, não cabia dúvida do desejo que sentia quando a beijava. —Necessita que lhe dêem um último empurrão —murmurou Olga ao Daisy enquanto tomavam o café na sobremesa, reunidas com as demais damas no salão. —Mas como? —Há algo que nunca falha com os homens. Daisy levantou as sobrancelhas. —Sexo? —Sua mãe e ela falavam de quase tudo, mas normalmente evitavam esse tema. —Com um embaraço o conseguiria —disse Olga—. Mas isso unicamente acontece justo quando uma não o deseja. —Então, o que faço? —Tem que lhe deixar entrever a terra prometida, mas sem deixá-lo entrar. Daisy sacudiu a cabeça. —Não estou segura, mas me parece que ao melhor ele já esteve na terra prometida com outra pessoa. —Com quem? —Não sei… Uma criada, uma atriz, uma viúva… Só me imagino. É que não tem um ar muito virginal. —Está no certo, não o tem. Isso quer dizer que deverá lhe oferecer algo que outras não possam lhe dar. Algo pelo que esteja disposto a fazer algo. Daisy pensou por um momento de onde tinha tirado sua mãe toda essa sabedoria se se tinha passado a vida apanhada em um frio matrimônio. Talvez tinha refletido comprido e tendido sobre por que seu marido, Lev, tinha acabado procurando consolo nos braços de seu amante, Marga. De todas formas, Daisy não tinha nada que lhe oferecer ao Boy que ele não pudesse conseguir de qualquer outra garota, ou sim? As mulheres estavam terminando já o café e pouco a pouco foram subindo a suas habitações para fazer uma sesta. Os homens estavam ainda no comilão, fumando puros, mas as seguiriam também ao cabo de um quarto de hora. Daisy se levantou. —O que vais fazer? —perguntou Olga. —Não estou segura, mas algo me ocorrerá. Saiu da salita. Pensava ir à habitação do Boy, já o tinha decidido, mas não queria dizer nada se por acaso sua mãe lhe punha algum reparo. Estaria-o esperando quando subisse a torná-la sesta. Os criados também tinham um momento de feriado escolar a essa hora do dia, assim não era muito provável que ninguém mais entrasse no dormitório. Teria ao Boy para ela sozinha. Mas o que lhe diria, o que faria? Isso não sabia ainda. Teria que improvisar. foi à Suíte Gardênia, lavou-se os dentes, deu-se uns toquecitos de colônia do Jean Naté no pescoço e avançou pelo corredor dando silenciosos passos em direção à habitação do Boy. Ninguém a viu entrar. Seu quarto era um dormitório espaçoso com vistas aos topos nebulosos. notava-se que aquela era sua habitação desde fazia anos. Havia cadeiras de couro muito masculinas, quadros de aviões e cavalos de carreiras nas paredes, uma cigarreira de madeira de cedro cheia de aromáticos puros, uma mesita com decantadores de uísque e brandy e uma bandeja com copos de cristal. Abriu uma gaveta e viu papel de cartas do Ty Gwyn, um tinteiro e plumas e lápis. O papel era azul e levava o escudo dos Fitzherbert. Seria algum dia também seu escudo? perguntou-se o que diria Boy ao encontrá-la ali. Gostaria, estreitaria-a entre seus braços e a beijaria? Ou se zangaria ao ver que tinha invadido sua intimidade e a acusaria de ser uma bisbilhoteira? Tinha que arriscar-se. Entrou no vestidor contigüo e viu um pequeno lavamanos com um espelho em cima. O jogo de barbeado do Boy estava sobre o mármore. Daisy pensou que gostaria de aprender a barbear a seu marido. Que íntimo seria isso! Abriu as portas do armário e olhou sua roupa: fraques formais, trajes de tweed, roupa de montar, uma jaqueta de couro de piloto com forro de peles e dois trajes de etiqueta. Então lhe ocorreu uma idéia. Recordou como se excitou Boy ao as ver ela e às demais garotas vestidas de homens na casa do Bing Westhampton, em mês passado de junho. Aquela noite tinha-a beijado pela primeira vez. Daisy não entendia muito bem por que se excitou tanto, mas, bom, essas coisas muitas vezes eram inexplicáveis. Lizzie Westhampton havia-lhe dito que a alguns homens gostava de açoitar às mulheres no traseiro: o que podia justificar semelhante conduta? Possivelmente podia vestir-se com a roupa do Boy. Algo pelo que está disposto a fazer algo, havia dito sua mãe. Acertaria com isso? ficou olhando a fileira de trajes pendurados de seus cabides, a pilha de camisas brancas dobradas, os sapatos de couro bem lustrados, cada um com sua fôrma de madeira dentro. Daria resultado? Tinha tempo? Tinha acaso algo que perder? Podia agarrar toda a roupa que necessitasse, levar a à Suíte Gardênia, trocar-se ali e logo voltar para tudo correr esperando que ninguém a visse… Não. Não havia tempo para todo isso. O puro que se estava fumando Boy não era tão largo. Tinha que trocar-se ali mesmo, e depressa… ou esquecer-se dessa idéia. decidiu-se. tirou-se o vestido. de repente estava em perigo. Até esse momento poderia ter explicado sua presença ali, de um modo ligeiramente plausível, fingindo que se desorientou entre os quilômetros de corredores do Ty Gwyn e tinha entrado por engano na habitação que não era. Mas não havia reputação feminina alguma que pudesse seguir intacta depois de ser descoberta em roupa interior na habitação de um homem. Agarrou a primeira camisa da pilha. Resmungou ao ver que terei que abotoar o pescoço com gêmeos. Encontrou uma dúzia de pescoços engomados em uma gaveta, junto a uma caixa de gêmeos, e lhe pôs um à camisa antes de passar-lhe pela cabeça. Ouviu os pesados passos de um homem no corredor, ante a porta, e ficou de pedra. O coração lhe pulsava tão forte como se fora um tambor; mas os passos passaram de comprimento. Decidiu ficar um elegante fraque. As calças, de raias, não levavam suspensórios, mas encontrou umas em outra gaveta. Esteve provando até conseguir grampeá-los às calças e logo os pôs. dentro daquela cinturilla havia sitio para dois como ela. Colocou seus pés, talheres por meias, em um par de brilhantes sapatos negros e se atou os cordões. grampeou-se os botões da camisa e ficou uma gravata de um cinza prateado. O nó estava médio desfeito, mas não importava, porque de todas formas ela não sabia como fazê-lo, assim que o deixou tal qual. ficou um colete cruzado de cor bege e um fraque negro, depois se olhou no espelho de corpo inteiro que havia no interior da porta do armário. A roupa ficava folgada, mas mesmo assim estava bonita. Ao ver que lhe sobrava tempo, ficou também uns gêmeos de oro nos punhos da camisa e um lenço branco no bolso do fraque. Faltava-lhe algo, assim que ficou olhando seu reflexo até que descobriu que mais necessitava. Um chapéu. Abriu outro armário e viu uma fileira de chapeleiras em uma estantería que ficava bastante acima. Encontrou uma cartola cinza e a colocou no alto da cabeça. Recordou então o bigode. Esta vez não levava nenhum lápis de olhos em cima. Retornou ao dormitório do Boy e se inclinou ante a chaminé. Ainda era verão, assim não tinham aceso o fogo. Recolheu um pouco de fuligem com a ponta de um dedo, voltou para espelho e se desenhou com cuidado um bigode sobre o lábio superior. Já estava preparada. sentou-se em uma das poltronas de couro a esperá-lo. Seu instinto lhe dizia que estava fazendo o correto embora racionalmente lhe parecesse muito estranho. Entretanto, a excitação sexual era um fenômeno inexplicável. Ela mesma se sentia úmida quando ele a levava em seu avião. Enquanto Boy estava concentrado em pilotar o pequeno avião de pequeno porte lhes era impossível beijocar-se, mas quase era melhor assim, porque o solo feito de estar sulcando o ar resultava ao Daisy tão excitante que certamente lhe teria deixado fazer com ela tudo o que tivesse querido. Mesmo assim, os meninos às vezes eram imprevisíveis; Daisy tinha medo de que Boy pudesse zangar-se. Quando isso acontecia, seu arrumado rosto se crispava em uma careta nada atrativa, começava a dar golpecitos nervosos com o pé e também podia comportar-se com bastante crueldade. Uma vez que um garçom um pouco coxo se equivocou ao lhe servir a bebida, Boy lhe tinha solto: Vete mancando outra vez até a barra e me traga o uísque escocês que te pedi; que esteja aleijado não quer dizer que seja surdo, verdade?. Aquele pobre homem se ruborizou de vergonha. perguntou-se o que diria Boy se se zangava ao encontrar-lhe em sua habitação. Chegou ao cabo de cinco minutos. Ela ouviu seus passos ao outro lado da porta e se deu conta de que já o conhecia tanto como para reconhecê-lo solo por esse detalhe. A porta se abriu e ele entrou sem vê-la. Daisy impostó uma voz grave e disse: —Olá, velho amigo, como está? —meu deus! —exclamou ele. Mas logo a olhou melhor—. Daisy? Ela se levantou. —A mesma —respondeu com sua voz normal. Boy a seguia olhando sem sair de seu assombro. Ela se tirou o chapéu, inclinou-se ligeiramente e disse—: A seu serviço. —E voltou a ficar o um pouco inclinado. Boy demorou um momento em recuperar-se da surpresa, mas em seguida lhe sorriu. Graças a Deus, pensou Daisy. —Caray, que bem fica essa cartola. —Pu-me isso para te gostar de. —aproximou-se mais a ele. —Um detalhe precioso por sua parte, devo dizer. Daisy voltou a cara para cima em atitude provocadora. Gostava de lhe beijar. A verdade é que gostava de beijar a quase todos os homens. Em segredo, sentia-se um pouco envergonhada do muito que o desfrutava. Inclusive tinha sentido prazer beijando a suas companheiras do internato, onde às vezes passavam semanas inteiras sem que vissem nenhum menino. Ele inclinou a cabeça e deixou que seus lábios se tocassem. A cartola caiu ao chão e os dois puseram-se a rir. de repente Boy lhe colocou a língua na boca, ela relaxou-se e o desfrutou. Boy era dos que se entusiasmavam com toda classe de prazeres sensuais, e lhe excitava sua ânsia. Então recordou que todo aquilo o fazia por algo. As coisas progrediam na direção correta, mas ela queria que lhe declarasse. Ficaria satisfeito só com um beijo? Tinha que lhe fazer desejar mais que isso. Muitas vezes, se dispunham de algo mais que um par de apressados minutos, ao Boy gostava de lhe acariciar os peitos. Em grande parte dependia da quantidade de vinho que tivesse tomado na comida. Tinha muita resistência, mas chegava um momento em que perdia o desejo. Daisy lhe aproximou para apertar seu corpo contra o dele, que lhe pôs uma mão no peito, mas como levava um folgado colete de pano de lã, Boy não obteve encontrar seus pequenos seios e soprou de frustração. Então sua mão desceu para o ventre dela e penetrou pela larga cinturilla daquelas calças que lhe vinham tão grandes. Daisy nunca tinha deixado que a tocasse aí abaixo. Ainda levava posta a combinação de seda e uns calções de algodão grosso, assim estava claro que Boy não podia notar muito, mas sua mão chegou à horcadura de suas coxas e apertou com firmeza através das capas de tecido. Daisy sentiu uma pontada de prazer. Separou-o de si. —fui muito longe? —perguntou Boy, ofegando. —Fecha a porta com chave. —minha mãe. —Foi até a porta, girou a chave e retornou. Voltaram a abraçar-se e Boy retomou suas manobras onde as tinha deixado. Lhe tocou a parte dianteira da calça, sentiu seu membro ereto através do tecido e o agarrou com firmeza. Ele gemeu de prazer. Daisy voltou a separar-se dele. No rosto do Boy apareceu um indício de fúria. Daisy recordou um episódio desagradável. Uma vez que tinha obrigado a um menino que se chamava Theo Coffman a que tirasse-lhe a mão dos peitos, ele se havia posto desagradável e a tinha chamado calientabraguetas. Nunca havia tornado a vê-lo, mas esse insulto a havia feito sentir-se irracionalmente envergonhada. Por um momento temeu que Boy pudesse estar a ponto de lhe lançar uma acusação parecida. Então viu que suavizava um pouco sua expressão. —Eu gosto de uma barbaridade, sabe, verdade? Aquele era seu momento. Ou afundar-se ou nadar, disse-se. —Não deveríamos fazer isto —disse Daisy sem ter que exagerar muito o pesar de sua voz. —por que não? —Nem sequer estamos prometidos. As palavras ficaram pendurando no ar um comprido momento. Que uma garota dissesse isso era quase como se se atreveu a lhe propor matrimônio. Daisy o olhou à cara, aterrorizava-lhe que ele pudesse assustar-se, dar meia volta, resmungar uma desculpa e lhe pedir que se fora. Boy não dizia nada. —Eu desejo te fazer feliz —disse Daisy—, mas… —Quero-te, Daisy. Com isso não bastava. —De verdade? —perguntou ela, sonriéndole. —Muitíssimo. Daisy não disse mais, seguiu olhando-o cheia de esperança. —Quer te casar comigo? —perguntou ele ao fim. —Ai, sim —disse ela, e voltou a lhe beijar. Com a boca apertada contra seus lábios, desabotoou-lhe a braguilha, afundou a mão entre sua roupa interior, encontrou seu pênis e o tirou. Notou sua pele sedosa e quente. Acariciou-o, recordando uma conversação com as gêmeas Westhampton. Pode lhe esfregar a coisa, havia dito Lindy, e Lizzie tinha acrescentado: Até que lhe sai o chorrito. Daisy estava intrigada e excitada ante a idéia de conseguir que um homem fizesse isso. Agarrou-o mais forte. Então recordou o seguinte comentário do Lindy. Também a pode chupar… Isso é o que mais gostam. Apartou os lábios dos do Boy e lhe falou com ouvido. —Por meu marido faria algo. E então se ajoelhou. V Foi as bodas do ano. Daisy e Boy se casaram na igreja do St. Margaret, no Westminster, na sábado 3 de outubro de 1936. Daisy estava algo triste porque não havia podido ser na abadia do Westminster, mas lhe disseram que ali solo se casava a família real. Coco Chanel lhe fez o vestido de noiva. A moda da Grande Depressão impunha linhas simples e as mínimas extravagâncias. O traje do Daisy era de raso, talhado ao viés e comprido até o chão, tinha umas coquetes mangas acampanadas e uma cauda curta que podia sustentar um só pajem. Seu pai, Lev Peshkov, cruzou o Atlântico para assistir à cerimônia. Sua mãe, Olga, acessou a sentar-se a seu lado na igreja só por manter as aparências, e em geral fingiu que eram um matrimônio mais ou menos feliz. O pesadelo do Daisy era ver aparecer em algum momento a Marga com o Greg, o filho ilegítimo do Lev, pego do braço; mas isso não aconteceu. As gêmeas Westhampton e Mai Murray foram suas damas de honra, e Eva Murray a dama principal. Boy se tinha posto um pouco escrupuloso com isso de que Eva era médio feijão —de fato, não tinha querido convidá-la sequer—, mas Daisy tinha insistido nisso. Nesses momentos se encontrava já na antiquísima igreja, consciente de que estava arrebatadoramente bonita, feliz de entregar-se ao Boy Fitzherbert em corpo e alma. Assinou o registro como Daisy Fitzherbert, viscondessa do Aberowen. Levava semanas praticando essa assina em papéis que depois rompia até convertê-los em pedacinhos ilegíveis, mas agora já tinha direito a ela. Esse era seu nome. Enquanto saíam da igreja em procissão, Fitz agarrou a Olga do braço com gentileza, mas a princesa B pôs um metro de espaço vazio entre o Lev e ela. A princesa B não era uma pessoa agradável. Sim que se comportava de uma forma bastante educada com a mãe do Daisy, e se seu tom estava carregado de condescendência, Olga não reparava nisso, assim que sua relação era amistosa. Mas B não suportava ao Lev. Daisy se deu conta então de que Lev carecia dessa pátina de respeitabilidade social. Caminhava e falava, comia e bebia, fumava e ria e se arranhava como um gângster, e não lhe importava o que pensasse a gente dele. Fazia o que lhe vinha em vontade porque era um milionário norte-americano, igual a Fitz fazia o que lhe vinha em vontade porque era um conde inglês. Daisy sempre o tinha sabido, mas lhe resultou especialmente duro ao ver seu pai entre toda aquela gente da alta sociedade inglesa durante o café da manhã das bodas, que tinha tido lugar no magnífico salão de baile do hotel Dorchester. Entretanto, pouco importava já. Era lady Aberowen, e isso ninguém podia tirar-lhe —Caray, princesa, ¿es que la he ofendido? Apesar de tudo, a contínua hostilidade com a que B tratava ao Lev era algo irritante, como um leve fedor ou um zumbido longínquo, e Daisy não podia evitar certa sensação de descontente. Sentada junto ao Lev à mesa presidencial, B sempre estava ligeiramente volta para o outro lado. Quando lhe falava, respondia de forma direta e sem olhá-lo aos olhos. Ele parecia não dar-se conta, não deixava de sorrir e de beber champanha, mas Daisy, sentada ao outro lado do Lev, sabia que os sinais não lhe tinham passado por cima. Seu pai era inculto, mas não idiota. Quando os brinde chegaram a seu fim e os homens começaram a fumar, Lev, que sendo o pai da noiva era o que pagava a conta, olhou ao longo da mesa e disse: —Bom, Fitz, espero que tenha desfrutado da comida. estiveram os vinhos à altura do que esperava? —Tudo muito bem, obrigado. —Tenho que dizer que me pareceu um banquete de primeira, droga. B estalou inclusive com desagrado. Os homens educados não diziam complicação em sua presença. Lev se voltou para a princesa. Sorria, mas Daisy reconheceu a perigosa expressão que viu em seu olhar. —Caray, princesa, é que a ofendi? Ela não queria lhe responder, mas aquele homem não deixava de olhá-la esperando uma resposta, não apartava os olhos dela. —Prefiro não ouvir palavras soezes —disse ao cabo. Lev agarrou um puro de sua caixa. Não o acendeu ainda, mas sim inspirou seu aroma com força e se dedicou a lhe dar voltas entre os dedos. —me deixem que lhes conte uma história —disse, e olhou a um e outro lado da mesa para assegurar-se de que todos lhe prestavam atenção, Fitz, Olga, Boy, Daisy e B—. Sendo eu um menino, acusaram a meu pai de levar a apascentar o gado às terras de outra pessoa. Pensarão que isso não é nada do outro mundo, embora fora declarado culpado. Mas o prenderam, e o administrador das terras construiu um patíbulo na pradaria norte. Então chegaram os soldados, agarraram a meu irmão, a minha mãe e a mim e nos levaram até aquele lugar. Meu pai estava nesse patíbulo, com uma soga ao pescoço. Ao cabo de pouco chegou o dono das terras. Daisy, que nunca lhe tinha ouvido contar essa história, olhou a sua mãe. Olga parecia tão surpreendida como ela. O pequeno grupo da mesa guardava silêncio. —Obrigaram-nos a olhar enquanto enforcavam a meu pai —disse Lev, e se voltou para B—. E sabe uma coisa curiosa? A irmã do latifundiário também estava ali. —meteu-se o puro na boca, umedeceu a ponta e o voltou a tirar. Daisy viu que B empalidecia. Tinha algo que ver com ela? —A irmã tinha então uns dezenove anos, e era princesa —disse Lev, com o olhar fixo em seu puro. Daisy ouviu que a B lhe escapava um leve grito e se deu conta de que sim, aquela história falava dela—. ficou ali em pé, olhando o enforcamento, fria como o gelo —concluiu Lev. Então olhou diretamente a B. —Bom, pois isso a mim sim que me parece soez. produziu-se um comprido silencio. Depois Lev voltou a meter o puro na boca. —Alguém tem fogo? VI Lloyd Williams estava sentado à mesa da cozinha da casa de sua mãe, no Aldgate, olhando um mapa com grande interesse. Era domingo, 4 de outubro de 1936, e esse dia foram se produzir brigados. A antiga cidade romana de Londres, construída sobre uma colina junto ao rio Támesis, tinha acabado por converter-se no distrito financeiro, apelidado como a City. Ao oeste dessa colina se encontravam os palácios dos ricos, assim como os teatros, lojas e catedrais que lhes ofereciam seus serviços. A casa na que Lloyd estava sentado se encontrava ao leste da colina, perto dos moles e os bairros baixos. Ali tinham ido parar séculos de quebras de onda de imigrantes, todos eles decididos a deixá-la pele trabalhando para que seus netos, algum dia, pudessem transladar-se desde seu humilde East End a aquele rico West End. O mapa que Lloyd estudava com tanto empenho se publicou em uma edição especial do Daily Worker, o periódico da Partida Comunista, e indicava o itinerário da marcha que a União Britânica de Fascistas pensava celebrar esse dia. Tinham previsto reunir-se frente à Torre de Londres, na fronteira entre a City e o East End, e logo partir para o este… Diretos ao bairro de entristecedora maioria judia do Stepney. A menos que Lloyd e mais gente que pensava como ele pudessem impedi-lo. Em Grã-Bretanha havia 330.000 judeus, segundo o periódico, e a metade deles viviam no East End. A maioria eram refugiados da Rússia, Polônia e Alemanha, onde tinham vivido com o temor a que qualquer dia a polícia, o exército ou os cossacos pudessem fazer uma batida na cidade e roubar em suas casas, espancar aos anciões e ultrajar às mulheres mais jovens, ou fazer formar em fila contra uma parede a pais e irmãos para fuzilá-los. Ali, nos subúrbios de Londres, esses judeus tinham encontrado um lugar onde tinham tanto direito a viver como qualquer. Como se sentiriam se, ao olhar por a janela, viam uma panda de valentões uniformizados partindo por suas próprias ruas com o evidente desejo de aniquilá-los a todos? Lloyd tinha claro que uma coisa assim não podia permitir-se. O Worker destacava que da Torre em realidade só havia duas rotas que pudessem seguir os manifestantes. Alguém cruzava Gardiner’s Corner, uma encruzilhada de cinco vias conhecida como a Porta do East End; a outra seguia Royal Mint Street e logo enlaçava com a estreita Cabo Street. Pelas ruas laterais havia uma dezena de rotas mais se se ia sozinho, mas não eram viáveis para uma manifestação. St. George Street conduzia mas bem para o católico Wapping, e não ao Stepney judeu, pelo que aos fascistas tampouco servia de nada. O Worker fazia uma chamada para formar uma muralha humana que bloqueasse o acesso ao Gardiner’s Corner e Cabo Street, e assim impedir a marcha. O periódico às vezes exortava a ações que logo não tinham lugar: greves, revoluções ou, fazia pouco, uma aliança de partidos de esquerdas para formar um Frente Popular. Pode que a muralha humana não fora mais que outra de suas fantasias. Fariam falta muitos milhares de pessoas para conseguir fechar os acessos ao East End. Lloyd não sabia se se apresentariam suficientes voluntários. O único que tinha sabor de ciência certa era que haveria problemas. À mesa, com o Lloyd, estavam sentados seus pais, Bernie e Ethel; sua irmã, Millie, e Lenny Griffiths, o menino de dezesseis anos do Aberowen, com sua roupa de domingo. Lenny formava parte de um pequeno exército de mineiros galeses que tinham acudido a Londres para unir-se a contramanifestación. Bernie levantou o olhar de seu periódico. —Os fascistas afirmam que os bilhetes de trem de todos os galeses que viestes a Londres os pagaram os peixes gordos judeus —disse ao Lenny. O menino tragou um bom bocado de ovo frito. —Não conheço nenhum peixe gordo judeu —respondeu—. A menos que conte a senhora do Levy Sweetshop, que é bastante gorda. De todas formas, eu cheguei a Londres metido na parte de atrás de um caminhão com sessenta cordeiros do Gales que foram rumo ao mercado de carne do Smithfield. —Isso explica o do aroma —disse Millie. —Millie! Não seja mal educada —a arreganhou sua mãe. Lenny ia compartilhar com o Lloyd sua habitação, e já tinha crédulo a todos que não pensava retornar ao Aberowen depois da manifestação. Dave Williams e ele foram a Espanha a unir-se às Brigadas Internacionais que se estavam formando para lutar contra a insurreição fascista. —conseguiste o passaporte? —tinha-lhe perguntado Lloyd. Os trâmites não eram complicados, mas o solicitante tinha que contribuir com referências de um clérigo, um médico, um advogado ou alguma outra pessoa de boa posição, para que assim a um jovem resultasse mais difícil mantê-lo em segredo. —Não faz falta —havia dito Lenny—. Iremos à estação de Vitória e pediremos um bilhete de fim de semana de ida e volta a Paris. Para isso não se necessita passaporte. Lloyd tinha uma vaga idéia a respeito. Era um vazio de regulação pensado para satisfazer à próspera classe média, mas os antifascistas podiam lhe tirar partido. —Quanto custa esse bilhete? —Três libras e quinze xelins. Lloyd tinha levantado as sobrancelhas. Era mais dinheiro de que pudesse ter um mineiro do carvão que estava na parada. —Mas a Partida Trabalhista Independente me paga —tinha acrescentado isso Lenny—, e ao Dave o paga a Partida Comunista. Deviam ter mentido ao lhes dizer a idade. —E logo? O que farão ao chegar a Paris? —tinha perguntado Lloyd. —Os comunistas franceses irão receber nos a Gare du Nord. —Pronunciou-o guer du nor, porque não falava nenhuma palavra de francês—. De ali nos escoltarão até a fronteira espanhola. Lloyd tinha estado atrasando sua própria marcha. Às pessoas lhe dizia que queria deixar a seus pais tranqüilos, mas a verdade era que não se dava por vencido com Daisy. Ainda sonhava com que abandonaria ao Boy. Não tinha nenhuma oportunidade —nem sequer lhe respondia as cartas—, mas não podia esquecê-la. Enquanto isso, Grã-Bretanha, França e Estados Unidos tinham chegado a um acordo com a Alemanha e Itália para adotar uma política de não intervenção na Espanha, o qual queria dizer que nenhum deles subministraria armas a nenhum dos dois bandos. Solo isso já havia posto furioso ao Lloyd: é que as democracias não tinham o dever de apoiar a um governo eleito nas urnas? Mas a coisa era ainda pior, porque a Alemanha e Itália quebrantavam esse acordo todos os dias, tal como a mãe do Lloyd e o tio Billy advertiam nos numerosos mítines públicos que tinham celebrado esse outono em Grã-Bretanha para falar da questão espanhola. O conde Fitzherbert, como ministro do governo responsável, defendia sua política com firmeza e dizia que não terei que armar ao governo da Espanha por temor a que se decantasse para o comunismo. Aquilo, tal como Ethel tinha exposto em um discurso mordaz, era a pescadinha que se mordia a cauda: a única nação que estava disposta a apoiar ao governo espanhol era a União Soviética, de modo que era natural que os espanhóis queriam aproximar-se do único país do mundo que lhes oferecia ajuda. O certo era que os conservadores tinham a sensação de que a Espanha tinha eleito a uns representantes perigosamente esquerdistas. A homens como Fitzherbert não lhes desagradaria ver que o governo espanhol era tombado pela força e substituído por outro de extrema direita. Lloyd fervia de frustração. E então lhe tinha apresentado essa oportunidade de lutar contra o fascismo em seu próprio país. —É ridículo —havia dito Bernie fazia uma semana, quando se tinha anunciado a marcha—. A polícia metropolitana tem que obrigá-los a trocar de rota. Estão em seu direito a manifestar-se, claro, mas não no Stepney. Entretanto, a polícia alegava que não tinha poder para interferir em uma manifestação perfeitamente legal. Bernie e Ethel, com os prefeitos de oito distritos municipais de Londres, tinham montado uma delegação para lhe suplicar ao secretário do Home Office, sir John Simon, que proibisse a marcha ou que pelo menos a desviasse; mas também ele se desculpou dizendo que não tinha poder para atuar. A questão de que ações terei que tomar a seguir tinha dividido ao Partido Trabalhista, à comunidade judia e à família Williams. O Conselho do Povo Judeu contra o Fascismo e o Anti-semitismo, baseado pelo próprio Bernie e mais pessoas fazia três meses, fazia uma chamada a uma contramanifestación multitudinaria para lhes impedir aos fascistas a entrada às ruas judias. Seu lema era uma frase em espanhol: Não passarão!, o grito de
os defensores antifascistas de Madrid. O Conselho era uma organização pequena com um nome grandilocuente. Ocupava duas salas em um piso de um edifício do Commercial Road, e não tinha em propriedade mais que um ciclostil Gestetner e um par de velhas máquinas de escrever, mas, apesar de tudo, contava com muitíssimo apóio no East End. Em quarenta e oito horas tinha recolhido a incrível quantidade de cem mil assinaturas para solicitar que se proibisse a marcha. Apesar disso, o governo não fez nada. Só um dos partidos políticos principais apoiava a contramanifestación, e eram os comunistas. O protesto também contava com o respaldo do minoritário Partido Trabalhista Independente, ao que pertencia Lenny. Outros partidos estavam em contra. —Vi que o Jewish Chronicle aconselhou a seus leitores que não saiam hoje à rua. Lloyd acreditava que esse era justamente o problema. Muita gente estava tomando a posição de que o melhor era evitar qualquer tipo de enfrentamento, mas isso os deixava via livre aos fascistas. Bernie, que era judeu embora não praticante, disse ao Ethel: —Como pode vir a me dizer nada do Jewish Chronicle? Acreditam que os judeus não teriam que estar em contra do fascismo, solo do anti-semitismo. Que classe de sentido político tem algo assim? —ouvi dizer que a Junta de Representantes dos Judeus Britânicos diz quão mesmo o Chronicle —insistiu Ethel—. Pelo visto ontem fizeram um anúncio em todas as sinagogas. —Esses mal chamados representantes são todos uns alrightniks, novos ricos do Golders Green —disse Bernie com desprezo—. A esses nunca os insultaram nas ruas os vândalos fascistas. —E você é membro da Partida Trabalhista —disse Ethel em tom acusador—. Nossa política é a de não nos enfrentar aos fascistas na rua. Onde ficou sua solidariedade? —E a solidariedade para com meus congêneres judeus? —perguntou Bernie. —Você sozinho é judeu quando te vem bem. E ninguém te insultou nunca na rua. —Dá no mesmo para mim, a Partida Trabalhista cometeu um engano político. —Você recorda uma coisa, se deixar que os fascistas provoquem atos violentos, a imprensa lhe jogará a culpa de tudo à esquerda, não importa quem tenha começado. —Se os meninos do Mosley provocam uma briga, terão o que se merecem —saltou Lenny em um arrebatamento. Ethel suspirou. —Pensa-o, Lenny: neste país, quem tem mais armas? Lloyd e você e a Partida Trabalhista, ou os conservadores com o exército e a polícia de sua parte? —Ah —disse Lenny. Estava claro que não tinha pensado nisso. —Como pode falar assim? —recriminou-lhe Lloyd a sua mãe, zangado—. Esteve no Berlim faz três anos… viu o que aconteceu. A esquerda alemã tentou fazer frente ao fascismo de forma pacífica e olhe como terminaram. —Os socialdemócratas alemães —interveio Bernie— não conseguiram formar um frente popular com os comunistas. Isso permitiu que os liquidassem por separado. Juntos, poderiam ter saído vencedores. —Bernie se tinha zangado muito quando a delegação local da Partida Trabalhista rechaçou uma oferta dos comunistas para formar uma coalizão contra a marcha. —Uma aliança com os comunistas é algo perigoso —disse Ethel. Bernie e ela não estavam de acordo nesse ponto. De fato, era um tema que tinha dividido também ao Partido Trabalhista. Lloyd pensava que Bernie tinha razão e que Ethel se equivocava. —Temos que aproveitar todos os recursos que tenhamos a emano para derrotar ao fascismo —sentenciou. Depois, com um pouco de diplomacia, acrescentou—: Mas mamãe tem razão, para nós será melhor que o dia de hoje termine sem violência. —Será melhor que fiquem todos em casa e lhes enfrentem aos fascistas pelos canais habituais da política democrática —disse Ethel. —Já tentou conseguir a igualdade de salários para as mulheres mediante os canais normais da política democrática —replicou Lloyd—, e não o conseguiu. Em abril desse mesmo ano, as parlamentarias trabalhistas tinham apresentado um projeto de lei para lhes garantir às funcionárias governamentais o mesmo pagamento que recebiam os homens pelo mesmo trabalho. O projeto tinha sido rechaçado na votação de uma Câmara dos Comuns dominada por homens. —A democracia não é algo que se abandone cada vez que se perde uma votação —respondeu Ethel com brutalidade. O problema era, e Lloyd sabia, que essas divisões podiam debilitar de uma forma fatídica às forças antifascistas, igual a tinha acontecido na Alemanha. Esse dia seria uma dura prova. Os partidos políticos podiam tentar erigir-se em líderes, mas a gente escolheria a quem seguir. ficariam em casa, tal como aconselhavam o tímido Partido Trabalhista e o Jewish Chronicle? Ou sairiam às ruas a milhares para lhe dizer Não ao fascismo? Ao final do dia conheceriam a resposta. Alguém bateu na porta de atrás, e seu vizinho, Sejam Doam, entrou vestido com seu traje dos domingos. —Reunirei-me com vós depois de missa —disse ao Bernie—. Onde querem que nos encontremos? —No Gardiner’s Corner, às dois em ponto a mais demorar —repôs este—. Esperamos reunir a suficiente gente para deter os fascistas ali. —Terão até ao último estivador do East End com vós —disse Sejam com entusiasmo. —E isso por que? —perguntou Millie—. Não lhes odeiam os fascistas, verdade? —É muito jovem para te lembrar, querida menina, mas os judeus sempre nos apoiaram —explicou Sejam—. Durante a greve dos moles de 1912, quando eu não era mais que um guri de nove anos, meu pai não tinha para nos dar de comer, assim que a senhora Isaacs, a mulher do padeiro de New Road, acolheu a meu irmão e a mim. Deus benza esse grande coração dele. Nnaquele tempo, naquele tempo, as famílias judias se fizeram cargo de centenas de filhos de estivadores. O mesmo passou em 1926. Não pensamos deixar que esses fascistas malnacidos se passeiem por nossas ruas… perdão por minha linguagem, senhora Leckwith. Lloyd recuperou os ânimos. No East End havia milhares de estivadores: se se apresentavam em bloco, suas filas cresceriam uma enormidade. Desde fora da casa chegou o som de um alto-falante. —Impeçamos que Mosley entre no Stepney —dizia uma voz masculina—. nos Reunamos no Gardiner’s Corner às dois em ponto. Lloyd se bebeu o chá e se levantou da cadeira. Esse dia seu papel era o de fazer de espião e comprovar as posições dos fascistas para lhe passar informe ao Conselho do Povo Judeu do Bernie. Levava os bolsos carregados de grandes peniques acobreados para chamar dos telefones públicos. —Será melhor que me ponha em marcha —disse—. Seguro que os fascistas já se estão congregando. Sua mãe ficou em pé e o seguiu até a porta. —Não te meta em nenhuma briga —lhe pediu—. Recorda o que aconteceu no Berlim. —Irei com cuidado —prometeu Lloyd. —A sua americana rica não gostará sem dentes —insistiu ela em um tom mais ligeiro. —De todas formas não gosta. —Não me acredito. Que garota poderia resistir a seus encantos? —Não me passará nada, mamãe —disse Lloyd—. De verdade que não. —Suponho que deveria me alegrar de que tenha esquecido essa maldita idéia de ir a Espanha. —Não irei hoje, pelo menos. —Deu-lhe um beijo a sua mãe e saiu. Era uma luminosa manhã de outono, o sol esquentava mais do habitual para a estação. Um grupo de homens tinha levantado uma tribuna improvisada em plena Nutley Street, e um deles falava por um megafone. —Gente do East End! Não temos por que ficar de braços cruzados enquanto uma multidão de anti-semitas desfilam nos insultando! —Lloyd reconheceu ao orador, era um dirigente local do Movimento Nacional de Operários Parados. Por causa da Grande Depressão, havia milhares de alfaiates judeus sem trabalho que se registravam a jornal no Escritório de Emprego do Settle Street. antes de que Lloyd tivesse percorrido dez metros, Bernie saiu atrás dele e lhe deu uma bolsa de papel cheia dessas bolinhas de cristal que os meninos chamavam gudes. —estive em muitas manifestações —disse—. Se a polícia montada carga contra a gente, isto tira aos cascos dos cavalos. Lloyd sorriu. Seu padrasto era pacifista, ao menos quase sempre, mas não era dos que se deixavam pisar. De todas formas, ao Lloyd não convenceu muito isso dos gudes. Nunca tinha tido muito que ver com cavalos, mas lhe pareciam uns animais pacientes e inofensivos, e não gostava da idéia de fazê-los cair ao chão. Bernie lhe leu o pensamento. —É melhor que caia um cavalo e não que pisoteiem a meu menino —disse. Lloyd se meteu os gudes no bolso, pensando que isso tampouco o comprometia a ter que as usar. Gostou de ver tanta gente já nas ruas. Encontrou também outros sinais alentadores. O lema de Não passarão, tanto em espanhol como em inglês, estava escrito a giz nas paredes lá onde olhasse. notava-se também uma grande presencia dos comunistas, que estavam repartindo panfletos. As bandeiras vermelhas cobriam os batentes de muitas janelas. Um grupo de homens que luziam condecorações da Grande Guerra sustentavam uma pancarta em que se lia: Associação do Excombatientes Judeus. Os fascistas detestavam que lhes recordassem a quantidade de judeus que tinham lutado do lado de Grã-Bretanha. Cinco soldados judeus tinham recebido a mais alta condecoração ao valor do país, a Cruz Vitória. Lloyd começava a pensar que, ao final, ao melhor sim que haveria pessoas suficientes para deter a marcha. Gardiner’s Corner era uma ampla intercessão de cinco ruas que recebia seu nome da loja de roupas escocesa, Gardiner and Company, que ocupava o edifício da esquina com sua inconfundível torre de relógio. Nada mais chegar ali, Lloyd viu que se esperava alvoroço. Havia vários postos de primeiros auxílios e centenas de voluntários do St. John Ambulance vestidos com seus uniformize. Havia ambulâncias estacionadas em todas as ruas. Lloyd esperou que não se produziram brigas; mas era melhor arriscar-se à violência, pensou, que deixar que os fascistas partissem sem nenhum impedimento. Decidiu dar um rodeio e chegar-se até a Torre de Londres do noroeste para que não o identificassem como vizinho do East End. Poucos minutos antes de chegar ali já se ouviam as bandas de música. A Torre era um palácio que se levantava junto ao rio e tinha simbolizado autoridade e repressão durante oitocentos anos. Estava rodeada por um comprido muro de velha pedra clara que parecia ter perdido a cor detrás séculos e séculos de chuva londrino. No exterior dessa muralha, no lado que dava a terra firme, havia um parque chamado Tower Gardens, e era ali onde se estavam reunindo os fascistas. Lloyd calculou que já deviam ser uns dois mil, e sua formação ocupava uma franja que se alargava para o oeste, onde se internava no distrito financeiro. de vez em quando entoavam a ritmo uma ordem: Um, dois, três, quatro, com os judeus terá que acabar. Terá que acabar, terá que lutar! Com os judeus terá que acabar! As bandeiras que levavam eram a Union Jack. Lloyd se perguntou por que aqueles que queriam destruir todo o bom de seu país eram precisamente os que mais pressa davam-se em hastear a bandeira nacional. Seu aspecto militar impressionava, todos com seus largos cinturões de couro negro e suas camisas negras, formando ordenadas colunas sobre a erva. Os oficiais levavam um uniforme mais elegante: uma jaqueta negra de corte militar, calças de montar de cor cinza, expulsa altas, uma boina militar negra com uma ponta metálica e um bracelete vermelho e branco. Havia muitos motoristas de uniforme dando estrondosas voltas em suas motocicletas com grande ostentação, entregando mensagens e oferecendo saudações fascistas. Cada vez chegavam mais integrantes da marcha, alguns deles em caminhonetes couraçadas com uma malha metálica nos guichês. Aquilo não era um partido político. Era um exército. O objetivo daquela exibição era adotar uma falsa autoridade, supôs Lloyd. Queriam que parecesse que tinham direito a cancelar mítines e a esvaziar edifícios, a irromper em casas e escritórios e prender gente, a levar-lhe a rastros até calabouços e acampamentos para ali espancá-los, interrogá-los e torturá-los, igual que faziam os camisas pardas na Alemanha baixo esse regime nazista tão admirado pelo Mosley e o proprietário do Daily Mail, lorde Rothermere. Aterrorizariam aos vizinhos do East End, gente cujos pais e avós tinham fugido da repressão e os pogromos da Irlanda, Polônia e Rússia. Sairiam os habitantes do bairro às ruas para enfrentar-se a eles? Se não o faziam, se a marcha desse dia saía adiante como tinham planejado, a que atreveriam-se os fascistas o dia de amanhã? Caminhou bordeando o parque, fazendo-se passar por uma das quase centenas de espectadores fortuitos. As ruas secundárias se estendiam desde aquele centro como os rádios de uma roda. Por uma delas, Lloyd viu aproximar um Rolls-Royce negro e nata que lhe resultou familiar. O chofer abriu a porta de atrás e Lloyd, estupefato e consternado, viu que quem baixava era Daisy Peshkov. Não havia dúvida de que estava ali. Levava uma versão feminina do uniforme de cuidada confecção, com uma larga saia cinza em lugar das calças de montar. Seus loiros cachos escapavam por debaixo da boina negra. Por muito que odiasse aquela vestimenta, Lloyd não pôde evitar pensar que estava irresistivelmente sedutora. deteve-se, sem poder lhe tirar os olhos de cima. Não sabia do que se surpreendia: Daisy lhe havia dito que gostava de Boy Fitzherbert, e era evidente que as idéias políticas do Boy não podiam trocar isso. Mas vê-la apoiando abertamente aos fascistas em seu ataque aos judeus londrinos caiu como um mazazo que lhe fez compreender o alheia que era ela a tudo o que importava a ele na vida. O melhor teria sido dar meia volta e ponto, mas não pôde. Ao vê-la apressar-se pela calçada, bloqueou-lhe o passo. —Que narizes está fazendo você aqui? —perguntou com brutalidade. Ela se manteve serena. —Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta, senhor Williams —respondeu—. Suponho que não terá intenção de partir conosco. —É que não entende o que representa esta gente? Arrebentam mítines pacíficos, acossam a jornalistas, metem no cárcere a seus rivais políticos. Você é norte-americana… como pode te pôr contra a democracia? —A democracia não é necessariamente o sistema político mais apropriado para todos os países e todas as épocas. —Lloyd supôs que estava citando a propaganda de Mosley. —Mas esta gente tortura e arbusto a tudo o que não está de acordo com eles! —Pensou no Jörg—. O vi com meus próprios olhos, no Berlim. Estive brevemente em um de seus campos. Obrigaram-me a olhar como uns cães famintos matavam a um homem nu em um ataque selvagem. Essa é a classe de coisas que fazem seus amigos os fascistas. Daisy não se deixou intimidar. —E exatamente a quem mataram os fascistas aqui, na Inglaterra, nos últimos tempos? —Os fascistas britânicos ainda não chegaram ao poder, mas esse teu Mosley admira ao Hitler. Se algum dia tiverem a oportunidade, farão exatamente o mesmo que os nazistas. —Refere-te a que eliminarão o desemprego e lhe darão ao povo orgulho e esperança? A atração que Lloyd sentia para ela era tão forte que lhe rompeu o coração para ouvi-la cuspir aquela fileira de sandices. —Sabe perfeitamente o que têm feito os nazistas com a família de sua amiga Eva. —Eva se casou, sabia? —comentou Daisy com o tom resolutamente alegre de quem tenta trocar de tema durante um jantar para tocar assuntos mais próprios—. Com o bom do Jimmy Murray. Agora é uma esposa inglesa. —E seus pais? Daisy apartou o olhar. —Não os conheço. —Mas sim sabe o que lhes têm feito os nazistas. —Eva o tinha explicado tudo ao Lloyd durante o baile do Trinity—. A seu pai já não permitem exercer a medicina, assim trabalha de ajudante em uma farmácia. Não pode entrar nos parques nem nas bibliotecas públicas. Inclusive apagaram o nome do pai dele do monumento aos cansados na guerra que há em seu povo! —Lloyd se deu conta de que tinha subido a voz. Mais acalmado, acrescentou—: Como pode estar aqui, apoiando aos mesmos que têm feito todo isso? Ela parecia turvada. —vou chegar tarde. Se me desculpa —disse, em lugar de lhe responder à pergunta. —Não há forma de desculpar o que está fazendo. —Muito bem, filho, já basta —interveio o chofer. Era um homem de média idade e estava claro que não fazia muito exercício, assim Lloyd não se sentiu nem muito menos intimidado, mas tampouco queria provocar uma briga. —Já vou —disse em um tom mais acalmado—. Mas não me chame filho. O chofer o agarrou do braço. —Será melhor que me tire as mãos de cima ou o tombarei de um murro antes de ir  —acrescentou Lloyd, olhando-o aos olhos. O chofer duvidou um momento e Lloyd ficou em guarda, preparando-se para reagir à espera do mais mínimo sinal, como faria no ring de boxe. Se o chofer tentava atacá-lo, seria com um golpe direto mas lento e cadencioso, resultaria-lhe fácil esquivá-lo. O homem, entretanto, ou percebeu que Lloyd estava em guarda, ou notou os músculos trabalhados do braço que lhe tinha agarrado; por uma ou outra razão, o caso é que retrocedeu e o soltou. —Tampouco faz falta andar-se com ameaças. Daisy se afastou. Lloyd ficou olhando suas costas, vestida com aquele uniforme que lhe caía à perfeição, enquanto caminhava a toda pressa para as filas dos fascistas. Com um grande suspiro de frustração, deu meia volta e pôs-se a andar na direção contrária. Tentou concentrar-se no trabalho que tinha entre mãos. Tinha sido uma tolice ameaçar a aquele condutor. Se se tivesse metido em uma briga, certamente o teriam detido e teria tido que passar o dia em um calabouço da polícia… No que teria ajudado isso a derrotar ao fascismo? Já eram as doze e meia. afastou-se do Tower Hill, procurou um telefone público e chamou o Conselho do Povo Judeu para falar com o Bernie. depois de lhe informar de tudo o que tinha visto, Bernie lhe pediu um cálculo aproximado da quantidade de policiais que havia nas ruas entre a Torre e Gardiner’s Corner. Lloyd cruzou para o lado leste do parque e explorou as ruas secundárias que saíam de ali. O que viu o deixou sem fala. Tinha esperado encontrar-se com um centenar de agentes, mais ou menos. Em realidade eram milhares. Flanqueavam as ruas ao longo das calçadas, esperavam em dezenas de ônibus estacionados, e também montados já em enormes cavalos que formavam umas filas incrivelmente fechadas. Solo deixavam um muito estreito corredor para a gente que queria percorrer as ruas a pé. Havia mais polícia que fascistas. Do interior de um dos ônibus, um agente uniformizado lhe dirigiu a saudação hitleriano. Lloyd o recebeu com consternação. Se todos esses policiais estavam do lado dos fascistas, como foram enfrentar se os contramanifestantes? Aquilo era muito pior que uma simples marcha fascista: era uma marcha fascista com autoridade policial. Que classe de mensagem enviavam com isso aos judeus do East End? No Mansell Street viu um policial ao que conhecia de quando fazia a ronda, Henry Clark. —Olá, Nobby —disse. Por alguma razão, a todos os Clark os chamavam Nobby—. Um policial acaba de me fazer a saudação hitleriano. —Não são de por aqui —explicou Nobby em voz baixa, como se lhe estivesse fazendo uma confidência—. Não vivem com os judeus, como eu. Eu já lhes hei dito que os judeus são como todo mundo, que quase todos são gente decente e que acata as leis, e alguns, malfeitores e buscapleitos. Mas não me acreditam. —Mesmo assim… a saudação do Hitler? —Talvez foi uma brincadeira. Lloyd não acreditava que o fora. Deixou ao Nobby e seguiu caminho. Viu que a polícia estava formando cordões ali onde as ruas secundárias entravam já na zona do Gardiner’s Corner. Entrou em um pub que tinha telefone (no dia anterior tinha localizado todos os telefones que teria à mão) e disse ao Bernie que havia pelo menos cinco mil policiais na vizinhança. —Não podemos nos enfrentar a tantos policiais —disse, sombrio. —Não esteja tão seguro —repôs Bernie—. vá jogar uma olhada ao Gardiner’s Corner. Lloyd encontrou a forma de evitar o cordão policial e se uniu a contramanifestación. Até que não conseguiu chegar ao centro da rua, frente a Gardiner’s, não pôde apreciar em sua totalidade a magnitude da multidão. Era a maior reunião de gente que tinha visto na vida. A encruzilhada das cinco ruas estava abarrotada, mas isso era sozinho o princípio. A gente ocupava também todo Whitechapel High Street, ao este, até onde alcançava a vista. Commercial Road, que se estendia em direção sudeste, também estava enche até os batentes. Pelo Leman Street, onde se encontrava a delegacia de polícia, não se podia nem passar. Lloyd pensou que deviam ser um centenar de milhares de pessoas. Sentiu vontades de lançar o chapéu ao ar e soltar um grito de júbilo. Os vizinhos do East End tinham saído em bloco a impedir o avanço dos fascistas. Já não havia dúvida de quais eram seus sentimentos. No centro do cruzamento havia um bonde detido, abandonado pelo condutor e os passageiros. Lloyd, cada vez mais imbuído de otimismo, deu-se conta de que nada poderia atravessar aquela multidão de pessoas. Viu seu vizinho, Sejam Doam, subir a uma luz e atar uma bandeira vermelha no alto. A banda de vento da Brigada de Jovens Judeus estava tocando… certamente sem o conhecimento dos respeitáveis e conservadores dirigentes do clube. Um avião de pequeno porte da polícia sobrevoava a zona, uma espécie de helicóptero, pareceu-lhe ao Lloyd. Perto das cristaleiras do Gardiner’s se encontrou com sua irmã, Millie, e seu amiga, Naomi Avery. Não queria que Millie se visse envolta em nenhuma situação violenta: solo pensando-olhe gelava o coração. —Sabe papai que vieste? —perguntou-lhe em tom de reprimenda. —Não seja bobo —respondeu Millie, sempre tão despreocupada. De fato, ao Lloyd surpreendia muito encontrar-lhe ali. —Mas se a ti normalmente não interessa nada que tenha que ver com a política —disse—. Pensava que ia mais fazer dinheiro. —É verdade —disse ela—, mas isto é diferente. Lloyd se imaginou o desgosto que se levaria Bernie se Millie resultava ferida. —Parece-me que será melhor que volte para casa. —por que? Ele olhou em redor. O ambiente da aglomeração era amistoso e tranqüilo. A polícia estava a bastante distancia, aos fascistas não os via por nenhuma parte. Esse dia não haveria nenhuma marcha, estava claro. A gente do Mosley não poderia abrir-se caminho a cotoveladas por uma multidão de cem mil pessoas decididas a detê-los, e seria uma loucura por parte da polícia deixar que o tentassem. Seguro que não haveria nenhum perigo para o Millie. Justo quando estava pensando isso, tudo trocou. ouviram-se muitos apitos e, ao olhar em direção a esses sons, Lloyd viu a polícia montada aproximar-se formando uma fila sinistra. Os cavalos pisavam com força e sopravam de agitação. Os agentes tinham tirado uns largos porretes que pareciam espadas. Dava a sensação de que se estavam preparando para carregar… mas aquilo não podia ser, era impossível. Um momento depois, fizeram-no. ouviram-se gritos furiosos e chiados de pavor entre a gente. Todo mundo pôs-se a correr como pôde para apartar do caminho daqueles enormes cavalos. A multidão foi abrindo uma via, mas os que ficaram ao bordo caíram sob os imperiosos cascos dos animais. A polícia golpeava a destro e sinistro com seus largos porretes. Lloyd tentou retroceder empurrando, mas não podia. Estava furioso: o que se acreditava a polícia que estava fazendo? Eram tão estúpidos para pensar que poderiam abrir acontecer com a gente do Mosley para partir? De verdade imaginavam que dois ou três mil fascistas entoando cânticos insultantes poderiam atravessar uma multidão de cem mil pessoas, a quem foi dirigidos esses insultos, sem que se produziram distúrbios? É que a polícia estava dirigida por imbecis, ou acaso não havia ninguém ao mando? Não sabia o que era pior. Os agentes retrocederam fazendo dar meia volta a seus cavalos, que resfolegavam, e se reagruparam formando uma fila irregular; então se ouviu um apito e os policiais esporearam a seus monturas para as lançar em uma carga temerária. Esta vez Millie estava assustada. Solo tinha dezesseis anos e sua fanfarronice tinha desaparecido. Gritou de medo quando a avalanche a esmagou contra a lua de uma das cristaleiras do Gardiner and Company. Manequins vestidos com trajes e casacos baratos olhavam fixamente a aquela multidão aterrorizada e aos cavaleiros quase bélicos. O rugido de milhares de vozes gritando seus temerosos protestos ensurdeceu ao Lloyd. colocou-se diante do Millie e resistiu a pressão com todas suas forças tentando protegê-la, mas tudo foi em vão. Apesar de seus esforços, esmagaram-no contra sua irmã. Quarenta ou cinqüenta pessoas que não deixavam de gritar tinham ficado apanhadas com as costas contra as cristaleiras, e a pressão não deixava de aumentar perigosamente. Lloyd, furioso, deu-se conta de que a polícia estava decidida a abrir um caminho entre a multidão ao preço que fora. Um momento depois se ouviu um terrível estrépito de cristais quebrados e a cristaleira cedeu. Lloyd caiu em cima de Millie, e Naomi sobre ele. Dezenas de pessoas gritavam de dor e pânico. Lloyd ficou em pé como pôde. Era um milagre que tivesse resultado ileso. Olhou em redor com angústia, procurando a sua irmã. Era desesperador o difícil que resultava distinguir às pessoas entre os manequins da cristaleira. Então viu o Millie atirada entre um montão de cristais quebrados. Agarrou-a dos braços e atirou dela para ajudá-la a ficar em pé. Estava chorando. —As costas! —dizia. Lloyd lhe deu a volta. Sua irmã tinha o casaco feito farrapos e estava toda ensangüentada. A angústia se apoderou dele e abraçou a sua irmã à altura de os ombros para protegê-la. —Há uma ambulância ali, à volta da esquina —lhe disse—. Pode andar? Logo que tinham percorrido uns metros quando voltaram a ouvi-los apitos da polícia. Ao Lloyd dava pavor ver-se miserável com o Millie de volta ao interior da cristaleira do Gardiner’S. Então se lembrou do que lhe tinha dado Bernie e tirou de seu bolso a bolsa de papel cheia de gudes. A polícia carregou. Agarrando impulso com o braço, Lloyd lançou a bolsa de papel por cima das cabeças da gente para que caísse justo diante dos cavalos. Não era o único que se tinha equipado assim, e muitos outros lançaram então seus gudes. Quando os cavalos chegaram a elas se ouviu um ruído como de petardos. Um animal escorregou sobre as bolas de cristal e caiu ao chão. Outros se detiveram e retrocederam ante esses estalos de foguetes. A carga policial se converteu em um tumulto. Naomi Avery tinha conseguido chegar à frente da multidão de alguma forma e Lloyd a viu arrebentar uma bolsita de pimenta sob os ollares de um cavalo, com o que o animal apartou a cabeça dando enérgicas sacudidas. A multidão remeteu um pouco, e Lloyd se levou ao Millie até a esquina. Ainda lhe doía, mas tinha deixado de chorar. Havia uma fila de gente esperando a ser atendida pelos voluntários do St. John Ambulance: uma menina que chorava e a que parecia que lhe tinham esmagado uma mão; vários jovens aos que lhes sangrava a cabeça e a cara; uma mulher maior sentada no chão, sujeitando um joelho inflamado. Quando Lloyd e Millie chegaram à cauda, Sejam Doam se ia dali com uma vendagem que lhe rodeava toda a cabeça, direto ao coração da multidão. Uma enfermeira jogou uma olhada à costas do Millie. —Tem mau aspecto —disse—. Será melhor que vá ao Hospital de Londres. Levaremo-lhe em uma ambulância. —Olhou ao Lloyd—. Quer ir você com ela? Lloyd queria, mas também se supunha que tinha que ir chamando para informar, assim duvidou. Millie acabou com seu dilema jogando mão de seu habitual gênio. —Nem te atreva a me acompanhar —disse—. Não pode fazer nada por mim, e aqui tem um trabalho importante de que te ocupar. Tinha razão. Ajudou-a a subir a uma ambulância que tinha estacionada ali ao lado. —Está segura…? —Sim, estou segura. Tenta não acabar no hospital você também. Lloyd se convenceu de que a estava deixando nas melhores mãos. Deu-lhe um beijo na bochecha e retornou à refrega. Os agentes tinham trocado de tática. A gente tinha resistido as cargas dos cavalos, mas a polícia seguia decidida a abrir-se passo. Enquanto Lloyd se dirigia para o fronte da manifestação, carregaram a pé, atacando com os porretes. Os manifestantes, desarmados, acovardaram-se ante eles, retrocederam como folhas que empilha o vento e logo avançaram em turba por outra parte da linha. A polícia começou a efetuar detenções, possivelmente com a esperança de minar a resolução da multidão levando-se aos cabeças. No East End, levar-se a alguém detido não era uma mera formalidade legal. Pouca gente saía do calabouço sem um olho arroxeado ou uns quantos dentes de menos. A delegacia de polícia do Leman Street tinha uma reputação especialmente má. Lloyd se encontrou detrás de uma jovem que vociferava seus protestos elevando uma bandeira vermelha. Reconheceu ao Olive Bishop, uma vizinha do Nutley Street. Um agente o golpeou na cabeça com sua clava. Puta judia!, gritou-lhe. Olive não era judia, e menos ainda puta; de fato, tocava o piano no Calvary Gospel Hall, mas pelo visto tinha esquecido que Jesus sempre falava de pôr a outra bochecha, e lhe arranhou toda a cara à polícia, em cuja pele deixou várias linhas vermelhas paralelas. Outros dois agentes a agarraram pelos braços e a sustentaram enquanto o que tinha recebido o arranhão voltava a lhe golpear na cabeça. Ver três homens fortes atacando a uma garota enfureceu ao Lloyd. adiantou-se e lhe lançou ao agressor do Olive um muito direito no qual imprimiu toda a raiva que sentia. O golpe lhe deu à polícia na têmpora. Aturdido, cambaleou-se um pouco e caiu ao chão. Mais agentes foram ao lugar dos sucessos sem deixar de atiçar com seus porretes a destro e sinistro, golpeando contra braços, pernas, cabeças e mãos. Quatro deles agarraram ao Olive, cada um de um braço ou uma perna. A garota gritou e se debateu desesperadamente, mas não conseguiu liberar-se. Os manifestantes que estavam ali, entretanto, tampouco ficaram quietos. Atacaram aos policiais que queriam levar-lhe para tentar se separar dela aos homens uniformizados. Os agentes se voltaram contra os defensores do Olive ao grito de Judeus malnacidos!, embora não todos eram judeus, e a gente era inclusive um marinho somalí negro. Os agentes soltaram ao Olive e a deixaram cair sobre o meio-fio, então começaram a defender-se. A garota se abriu passo entre a gente e desapareceu. Os policiais retrocediam golpeando em sua retirada a tudo o que tinham ao alcance. Lloyd, exaltado ante a perspectiva do triunfo, viu que a estratégia da polícia não estava dando resultado. Apesar de toda sua brutalidade, os ataques não haviam conseguido abrir uma via de passagem entre a multidão. Voltaram então para a carga com suas fortificações, mas a multidão acalorada se precipitou para diante para lhes fazer frente, esta vez ansiosos por combatê-los. Lloyd decidiu que tinha chegado o momento de informar outra vez. abriu-se passo entre a gente para a retaguarda e procurou um telefone. —Não acredito que vão conseguir o, papai —disse ao Bernie, exaltado—. Estão tentando abrir um caminho a pauladas, mas não conseguem avançar. Somos muitos. —Estamo-lhe dizendo às pessoas que vá a Cabo Street —repôs Bernie—. A polícia poderia estar a ponto de trocar de ofensiva pensando que terão mais possibilidades por aí, assim estamos enviando reforços. Vê você também para ali a ver o que está acontecendo e faça-me saber. —De acordo —disse Lloyd, e pendurou antes de dar-se conta de que não lhe havia dito a seu padrasto que se levaram ao Millie ao hospital. Embora possivelmente era melhor não preocupá-lo no momento. Chegar a Cabo Street não ia resultar tarefa fácil. Desde o Gardiner’s Corner, Leman Street levava diretamente em direção sul até o extremo mais próximo de Cabo Street, uma distância de uns oitocentos metros, mas o meio-fio estava bloqueado por manifestantes que se enfrentavam à polícia. Lloyd teve que dar um rodeio para chegar. abriu-se aconteço como pôde em direção leste até o Commercial Road. Uma vez ali, de novo resultava complicado seguir adiante. Não havia polícia, pelo que não havia violência, mas a aglomeração de gente era igual ou inclusive maior. Era frustrante, mas Lloyd se consolou pensando que tampouco a polícia conseguiria abrir-se caminho à força entre tantísimas pessoas. perguntou-se o que estaria fazendo Daisy Peshkov. Certamente estaria sentada no carro, esperando a que começasse a marcha, tamborilando com a ponta de seu caro sapato na catapora do RollsRoyce. A idéia de que ele estava ajudando a frustrar seus planos lhe transmitia um estranho sentimento de maliciosa satisfação. Com persistência e tratando com certa brutalidade a tudo o que lhe cruzava pelo caminho, Lloyd se abriu passo entre a gente. A linha férrea que cruzava por o extremo norte de Cabo Street lhe cortava o passo, assim teve que caminhar um bom trecho antes de chegar a uma rua lateral em que encontrou um passo subterrâneo que lhe permitiu cruzar baixo as vias e chegar a seu destino. Ali a aglomeração de gente não era tão grande, mas Cabo Street era uma rua estreita e ainda se fazia difícil avançar. Isso tinha uma parte positiva: à polícia resultaria-lhe mais complicado ainda abrir-se passo. Mas Lloyd viu então que havia outra obstrução. Alguém tinha cruzado um caminhão na rua e a gente o tinha derrubado. Logo tinham estendido a barricada a um e outro lado do veículo para que ocupasse toda a rua com mesas e cadeiras velhas, tablones de madeira soltos e toda classe de lixo empilhado. Uma barricada! Lloyd não pôde evitar pensar na Revolução francesa, solo que aquilo não era uma revolução. Os vizinhos do East End não pretendiam derrocar o governo britânico. Ao contrário, sentiam um profundo respeito por suas eleições, seus conselhos municipais e seu Parlamento. Gostavam tanto seu sistema de governo que estavam dispostos a defendê-lo contra o fascismo, embora ele mesmo não queria defender-se. Tinha saído do passo subterrâneo justo detrás da barreira e então se aproximou mais a ela para ver o que acontecia. subiu a um muro para ter melhor panorâmica e se encontrou com uma ocupada cena. Ao outro lado, a polícia tentava desmantelar a obstrução apartando móveis quebrados e arrastando velhos colchões para liberar o passo, mas não lhes estava resultando fácil. Sobre seus cascos caía uma chuva de objetos, alguns lançados desde detrás da barricada, outros das janelas dos pisos superiores das casas que se elevavam a lado e lado da estreita rua: pedras, garrafas de leite, expulse quebrados e tijolos que, pelo que viu Lloyd, tinham tirado de um armazém de material para a construção que havia ali perto. uns quantos jovens atrevidos se subiram ao alto da barricada e de ali arremetiam contra os agentes lhes atirando paus. de vez em quando estalava uma refrega quando a polícia tentava atirar de um deles para fazê-lo cair e chutá-lo no chão. Lloyd se sobressaltou ao reconhecer a dois dos meninos no alto da barricada. Eram Dave Williams, sua primo, e Lenny Griffiths, do Aberowen. Cotovelo com cotovelo se enfrentavam aos agentes e os afugentavam com pás. Entretanto, à medida que passavam os minutos, Lloyd viu que a polícia ia ganhando terreno. Trabalhavam de forma sistemática, recolhiam os trastes que formavam a barricada e os levavam dali. De dentro, a gente ia reforçando o muro e recolocaba de novo o que a polícia tinha afastado, mas estavam menos organizados e não contavam com um fornecimento infinito de material. Ao Lloyd deu a sensação de que a polícia não demoraria muito em impor-se. E se conseguiam desobstruir Cabo Street, deixariam que os fascistas partissem por ali, passando por diante de uma loja judia detrás de outra. Então olhou para trás e viu que quem fora que estava organizando a defesa de Cabo Street se antecipou já a todo isso. Embora a polícia desmantelasse a barricada, encontraria-se com outra umas centenas de metros mais à frente rua abaixo. Lloyd retrocedeu e ficou a ajudar com entusiasmo a construir a segunda barreira. Os estivadores levantavam os paralelepípedos da rua com picaretas, as amas de casa tiravam cubos do lixo de seus pátios e os lojistas procuravam caixas e gavetas vazias. Lloyd ajudou a levantar um banco de parque, depois arrancou um tablón de anúncios de um edifício municipal. Os construtores da barricada tinham aprendido da experiência e esta vez faziam um melhor trabalho, utilizavam os materiais de forma mais eficiente, assegurando-se de que a estrutura fosse resistente. De novo, Lloyd olhou para trás e viu uma terceira barricada que já estavam levantando mais ao este. A gente começou a retirar-se da primeira e a reagrupar-se detrás da segunda. Uns minutos depois, a polícia por fim conseguiu abrir um passo na primeira barreira e se precipitou por ele. Os primeiros agentes em atravessá-la foram depois dos poucos jovens que ainda ficavam ali, e Lloyd viu o Dave e ao Lenny correndo diante de eles por uma ruela. As casas de um e outro lado ficaram enclausuradas em seguida, portas e janelas se fecharam de repente. Então Lloyd viu que a polícia não sabia o que fazer a seguir. Quão único tinham conseguido atravessando a barricada era encontrar-se com outra, mais sólida ainda. Não pareciam ter ânimo suficiente para ficar a desmontar a segunda, assim que ficaram dando voltas na metade do Cabo Street, intercambiando impressões com inapetência e olhando com remorso a quão vizinhos os observavam das janelas superiores. Era muito logo para proclamar a vitória, mas de todas formas Lloyd não podia conter uma alegre sensação de êxito. Começava a parecer que esse dia foram a ganhar os antifascistas. ficou em seu posto outro quarto de hora, mas a polícia não fez nada mais, assim ao final abandonou a cena para ir em busca de uma cabine de telefone desde a que chamar. Bernie se mostrou prudente. —Não sabemos o que está acontecendo —disse—. Parece que em todas partes nos estão dando trégua, mas temos que descobrir qual é a intenção dos fascistas. Pode retornar à Torre? Estava claro que Lloyd não podia cruzar por entre aquela congregação de policiais, mas talvez havia outro caminho. —Poderia tentá-lo indo pelo St. George Street —disse com certas dúvidas. —Você faz o que possa. Quero saber qual será seu seguinte movimento. Lloyd retornou para o sul por um labirinto de ruelas. Esperava não equivocar-se com o St. George Street. Ficava fora da zona mais comprometida, mas era possível que a multidão se estendeu até ali. Entretanto, tal como tinha esperado, ali não havia aglomerações, embora ainda ouvia o alvoroço da contramanifestación e também os gritos e os apitos da polícia. Havia algumas mulheres falando na rua, e uma turma de meninas que saltavam à curva em meio do meio-fio. Lloyd torceu para o oeste apertando o passo até ir quase correndo. A cada esquina esperava ver grupos de manifestantes e polícia. encontrou-se com umas pessoas que tentavam afastar-se das brigas —dois homens com vendagens na cabeça, uma mulher com o casaco esmigalhado, um excombatiente com medalhas que levava o braço em tipóia—, mas não havia multidões. Ao final correu até o lugar em que a rua desembocava na Torre e conseguiu entrar caminhando sem impedimentos no Tower Gardens. Os fascistas seguiam ali. Só isso já era todo um lucro; assim o sentiu Lloyd. Eram as três e meia: os integrantes da marcha levavam horas esperando imóveis. Viu que seu ânimo exultante tinha desaparecido. Já não cantavam nem entoavam palavras de ordem; limitavam-se a esperar calados e indiferentes, ainda em formação mas já não em filas tão ordenadas. Tinham baixado seus estandartes, as bandas tinham deixado de tocar. Já pareciam derrotados. Entretanto, poucos minutos depois se produziu uma mudança. Um carro sem capota saiu de uma travessia lateral e percorreu as linhas dos fascistas, que o receberam com gritos de júbilo. As filas se endireitaram, os oficiais saudaram, os fascistas ficaram firmes. No assento de atrás desse carro ia sentado seu cabeça, sir Oswald Mosley, um homem arrumado, com bigode, vestido com o uniforme completo, boina incluída. As costas erguida com rigidez, ia saudando sem parar enquanto seu carro avançava a passo lento, como se fora um monarca passando revista a suas tropas. Sua presença insuflou um novo ímpeto às forças fascistas e preocupou ao Lloyd. Aquilo significava que certamente partiriam tal como tinham planejado. Se não, que fazia esse homem ali? O carro percorreu toda a formação fascista e se internou no distrito financeiro por uma rua lateral. Lloyd esperou. Meia hora depois, Mosley retornou, esta vez a pé, saudando de novo e recebido com mais vítores. Quando chegou à cabeça da marcha, deu meia volta e, acompanhado por um de seus oficiais, entrou em uma travessia. Lloyd o seguiu. Mosley se aproximou de um grupo de homens de mais idade que formavam um carriola na calçada. Lloyd se surpreendeu ao reconhecer entre eles a sir Philip Game, o inspetor chefe da polícia, com passarinha e chapéu de feltro. Os dois homens se encetaram em uma conversação avivada. Sir Philip devia estar lhe dizendo a sir Oswald que a multidão dos contramanifestantes era muito nutrida e que não poderiam dispersá-la. Mas qual seria seu conselho para os fascistas? Lloyd desejou poder aproximá-lo bastante para ouvir o que diziam, mas decidiu não arriscar-se a acabar detido e ficou a uma distância prudencial. O inspetor chefe foi o que mais falou. O cabeça dos fascistas assentiu com brio várias vezes e fez algumas pergunta. Depois, os dois homens se deram a mão e Mosley se afastou. Retornou ao parque e consultou com seus oficiais. Entre eles Lloyd reconheceu ao Boy Fitzherbert, que levava o mesmo uniforme que Mosley. Ao Boy não ficava tão bem: o corte militar dessa vestimenta não parecia ajustar-se a sua constituição branda, suave, e à relaxada sensualidade de sua pose. Parecia que Mosley estava lhes dando ordens. Os homens se despediram com uma saudação e se afastaram, sem dúvida para levar a cabo suas instruções. O que lhes haveria ordenado? A única opção sensata era que se dessem por vencidos e partissem a casa; mas, de ter tido um pouco de sensatez, não teriam sido fascistas. ouviram-se apitos, as ordens se transmitiram a gritos, as bandas começaram a tocar e os homens ficaram firmes. Lloyd compreendeu que foram partir. A polícia devia lhes haver atribuído um itinerário. Mas qual? Então iniciaram a marcha… e avançaram na direção contrária. Em lugar de dirigir-se para o este e o East End, foram para o oeste, ao distrito financeiro, que estava deserto aquele domingo pela tarde. Lloyd quase não podia acreditar. —renderam-se! —gritou em voz alta. —Isso parece, verdade? —disse um homem que estava a seu lado. ficou cinco minutos olhando como as colunas se foram afastando lentamente. Quando já não houve dúvida alguma do que estava acontecendo, correu a uma cabine e chamou ao Bernie. —Estão partindo! —O que? Pelo East End? —Não, na outra direção! Vão para o oeste, para a City. ganhamos! —Deus bendito! —Bernie falou então com a gente que tinha junto a ele—: me Ouçam todos! Os fascistas partem para o oeste. renderam-se! Lloyd ouviu como toda a sala estalava em gritos de alegria. —Não os estorvos olho de cima e nos avise quando já não ficar nenhum só no Tower Gardens —disse Bernie quando pôde falar, um minuto depois. —Certamente. —Lloyd pendurou. Percorreu todo o perímetro do parque louco de entusiasmo. A cada minuto que passava estava mais claro que os fascistas tinham sido derrotados. Suas bandas tocavam e eles partiam seguindo o ritmo, mas seus passos não tinham ímpeto algum e eles já não cantavam que pensavam acabar com os judeus. Os judeus tinham acabado com eles. Ao passar por diante do Byward Street, voltou a ver o Daisy. Caminhava para o inconfundível Rolls-Royce negro e nata, e sua rota a faria cruzar-se com o Lloyd. Ele não pôde resistir a tentação de desfrutar-se. —A gente do East End lhes rechaçou, a vós e a suas idéias repugnantes —disse. Ela se deteve e o olhou, fria como nunca. —Obstruiu-nos o passado uma panda de malfeitores —espetou com desdém. —Mesmo assim, agora partem na direção contrária. —ganhastes uma batalha, mas não a guerra. Lloyd pensou que isso podia ser certo, mas tinha sido uma batalha bastante importante. —Não volta para casa partindo com seu noivo? —Prefiro ir de carro —respondeu ela—. E não é meu noivo. Ao Lloyd deu um tombo o coração, esperançoso. Mas Daisy acrescentou: —É meu marido. ficou olhando-a. Nunca tinha pensado que de verdade pudesse ser tão tola. Tinha-o deixado sem fala. —É verdade —disse ela ao ver a incredulidade de sua expressão—. Não viu as crônicas de nosso enlace nos periódicos? —Não leio as páginas de sociedade. Daisy lhe ensinou a mão esquerda, em que levava um anel de compromisso de diamantes e uma aliança de ouro. —Casamo-nos ontem. Havemos posposto a lua de mel para participar hoje na marcha. Amanhã voamos ao Deauville no avião do Boy. Percorreu os passos que havia até o carro e o chofer lhe abriu a porta. —A casa, por favor —lhe disse ela. —Sim, milady. Lloyd estava tão furioso que queria lhe pegar um murro a alguém. Daisy voltou o olhar por cima do ombro. —Adeus, senhor Williams. —Adeus, senhorita Peshkov —conseguiu responder Lloyd. —Ah, não. Agora sou a viscondessa do Aberowen. Ele se deu conta do muito que gostava de dizê-lo. converteu-se em uma lady com título nobiliário, e isso o era tudo para ela. Daisy subiu ao carro e o chofer fechou a porta. Lloyd deu meia volta. envergonhou-se ao notar que tinha lágrimas nos olhos. —Maldita seja —disse em voz alta. Inspirou forte e se tragou as lágrimas. Ergueu os ombros e se dirigiu de novo ao East End apertando o passo. O triunfo do dia tinha ficado embaciado. Sabia que tinha sido uma tolice encapricharse dela posto que estava claro que não lhe interessava absolutamente, mas de todas formas lhe partia o coração que Daisy tivesse decidido tornar-se a perder junto ao Boy Fitzherbert. Tentou tirar-se a da cabeça. Os agentes da polícia estavam retornando a seus ônibus e partiam da zona. Ao Lloyd não tinha surpreso sua brutalidade —tinha vivido no East End toda sua vida, e era um bairro duro—, mas sim que lhe tinha sentido saudades seu anti-semitismo. Tinham insultado às mulheres as chamando putas judias, e aos homens, judeus malnacidos. Na Alemanha, a polícia tinha apoiado aos nazistas e tinha feito frente comum com os camisas pardas. Aconteceria o mesmo na Inglaterra? Claro que não! A multidão do Gardiner’s Corner tinha começado a celebrá-lo dando gritos de alegria. A banda da Brigada de Jovens Judeus tocava uma melodia de jazz para que homens e mulheres dançassem, e as garrafas de uísque e genebra já tinham começado a passar de emano em mão. Lloyd decidiu ir ao Hospital de Londres a ver como estava Millie. Depois certamente teria que ir à sede do Conselho Judeu e lhe dar ao Bernie a notícia de que tinham ferido a sua filha. antes de poder fazer nada mais, tropeçou-se com o Lenny Griffiths. —Mandamo-los ao corno! —exclamou com entusiasmo. —É claro que sim que sim! —Lloyd sorria de brinca a orelha. Lenny baixou então a voz. —Vencemos aos fascistas aqui e também os venceremos na Espanha. —Quando lhes partem? —Amanhã. Dave e eu vamos agarrar o trem a Paris pela manhã. Lloyd lhe pôs um braço sobre os ombros. —Vou com vós —disse. 4 1937 I Volodia Peshkov agachou a cabeça ante a copiosa nevada enquanto cruzava a ponte sobre o rio Moscova. Levava um grosso sobretudo, um chapéu de pele e um par de botas de couro forte. Poucos moscovitas vestiam tão bem. Volodia era afortunado. Sempre tinha tido botas de boa qualidade. Seu pai, Grigori, era comandante do exército. Era um homem com pouca ambição: embora tinha sido um herói da revolução bolchevique e tinha conhecido ao Stalin, sua carreira se estancou em algum ponto durante os anos vinte. Contudo, sua família sempre tinha vivido com folga. Por contra, Volodia sim tinha ambições. depois de terminar a universidade tinha ingressado na prestigiosa Academia dos Serviços Secretos do Exército. Um ano mais tarde o tinham destinado ao quartel geral dos serviços secretos do Exército Vermelho. Seu maior filão tinha sido conhecer o Werner Franck no Berlim, onde seu pai trabalhava como agregado militar na embaixada soviética. Werner estudava na mesma escola que ele, embora em uma classe de grau inferior. Ao inteirar-se de que o jovem Werner odiava o fascismo, Volodia lhe sugeriu que a melhor forma de lutar contra os nazistas era trabalhar de espião para os russos. Nnaquele tempo naquele tempo Werner só tinha quatorze anos, mas agora tinha completo os dezoito, trabalhava no Ministério do Ar, odiava aos nazistas ainda mais e possuía um poderoso transmissor de rádio e um livro de códigos. Era engenhoso e valente, assumia grandes riscos e recolhia informação de valor inestimável. E Volodia era seu contato. Volodia não via o Werner desde fazia quatro anos, mas o recordava perfeitamente. Era alto, tinha o cabelo de uma chamativa cor vermelha e, por sua aparência e comportamento, sempre dava a impressão de ser maior do que em realidade era; inclusive aos quatorze anos tinha um êxito invejável com as mulheres. Fazia pouco que Werner o tinha posto sobre aviso com respeito ao Markus, um diplomático da embaixada alemã em Moscou que era comunista em segredo. Volodia se tinha posto em contato com o Markus e o tinha recrutado como espião. Markus levava uns quantos meses lhe proporcionando contínuos informe que Volodia traduzia ao russo e transladava a seu chefe. O último era um relato fascinante de como os líderes empresariais americanos filonazis abasteciam aos insurgentes direitistas espanhóis de caminhões, pneumáticos e combustível. O presidente do Texaco e admirador do Hitler, Torkild Rieber, utilizava os petroleiros da companhia para passar combustível de contrabando às tropas de Franco vulnerando a disposição expressa do presidente Roosevelt. Volodia ia caminho de encontrar-se com o Markus. Avançou pela avenida Kutúzovski e torceu para a estação do Kiev. Esse dia sua entrevista devia ter lugar em um bar próximo à estação freqüentado por operários. Nunca se encontravam duas vezes em um mesmo sítio mas sim ao final de cada reunião consertavam a seguinte: Volodia era muito meticuloso em relação com a forma de efetuar os intercâmbios. Sempre utilizavam bares ou cafés baratos onde os colegas diplomáticos do Markus não poriam os pés nem por indício. Se por algum motivo Markus acabava despertando suspeitas e o seguia um agente de contra-espionagem alemã, Volodia saberia porque o homem destacaria entre outros clientes. O bar em questão se chamava Ucrânia. Sua estrutura era de madeira, como a da maioria dos edifícios de Moscou. As janelas se viam empanadas, ou seja que pelo menos o interior devia estar esquentado. Não obstante, Volodia não entrou em seguida, tinha que tomar mais precauções. Cruzou a rua e penetrou no portal de um edifício de moradias. Aguardou em pé no frio vestíbulo enquanto observava o bar através de um ventanuco. perguntava-se se Markus apareceria. Até o momento, tinha-o feito sempre; entretanto, não podia estar seguro. E se ia à entrevista, que informação lhe levaria? Espanha era o tema mais candente da política internacional, mas os serviços secretos do Exército Vermelho também estavam extremamente interessados nos armamentos alemães. Quantos tanques fabricavam ao mês? Quantas metralhadoras Mauser MG34 ao dia? Qual era a fiabilidad do bombardeiro Heinkel Hei 111? Volodia desejava possuir essa informação para comunicar-lhe a seu chefe, o comandante Lemítov. Transcorreu uma hora, e Markus não apareceu. Volodia começava a preocupar-se. Teriam descoberto ao Markus? Trabalhava como ajudante do embaixador e, portanto, via tudo o que acontecia seu escritório; mas Volodia lhe tinha insistido a que se procurasse acesso a outros documentos, em especial à correspondência dos agregados militares. Teria cometido um engano pedindo-lhe Cuando Volodia se acercó, Markus se puso en pie y le propinó un puñetazo en la boca. Teria reparado alguém no Markus enquanto tratava de colocar os narizes em telegramas que não eram de sua incumbência? Então apareceu caminhando pela rua, uma figura imponente com óculos e um casaco loden de estilo austríaco cujo pano verde estava salpicado de brancos flocos de neve. Entrou no bar Ucrânia. Volodia aguardou, observando-o. Outro homem entrou detrás do Markus, e Volodia franziu o sobrecenho com preocupação; entretanto, estava claro que era um operário russo, não um agente de contra-espionagem alemã. tratava-se de um homem baixinho com cara de rato que levava um casaco puído e as botas envoltas com farrapos, e se enxugava a úmida ponta do nariz afiado com a manga. Volodia cruzou a rua e entrou no bar. Era um local carregado de fumaça, não precisamente limpo, e estava impregnado do aroma de homens que não se banhavam freqüentemente. Nas paredes tinha penduradas aquarelas esvaídas de paisagens ucranianas com o Marcos baratos. Era meia tarde, e não havia muitos clientes. A única mulher do local tinha aspecto de ser uma prostituta avejentada que se estava recuperando de uma ressaca. Markus se encontrava ao fundo do local, curvado sobre uma jarra de cerveja intacta. Estava na trintena mas parecia maior, com sua barba e seu bigode loiros e cuidados. Tinha arrojado seu casaco de modo que ficava aberto e revelava o forro de pele. O russo com cara de rato estava sentado a duas mesas de distância e atava um cigarro. Quando Volodia se aproximou, Markus ficou em pé e o propinó um murro na boca. —Enculavacas! —gritou-lhe em alemão—. Maior filho de cadela! Volodia estava tão assombrado que, por um instante, não reagiu. Doíam-lhe os lábios e notava o sabor do sangue. Em um ato reflito, levantou o braço para lhe devolver o golpe, mas se conteve. Markus quis lhe pegar outra vez, mas nesta ocasião Volodia estava prevenido e esquivou a brutal surriada com facilidade. —por que o tem feito? —gritou Markus—. por que? Então, de forma igualmente repentina, deixou-se cair no assento, afundou o rosto entre as mãos e começou a soluçar. Volodia falou com os lábios ensangüentados. —te cale, estúpido —lhe espetou. deu-se meia volta e se dirigiu aos outros clientes, que olhavam de marco em marco—. Não passa nada, está aborrecido. Todos apartaram o olhar, e um homem partiu. Os moscovitas nunca se metiam em confusões se podiam evitá-lo. Inclusive separar a dois bêbados encetados em uma briga podia resultar perigoso, não fora a ser que um deles tivesse influência na partida. E sabiam que Volodia era desses; deduziam-no por seu casaco de primeira qualidade. Volodia se voltou para o Markus e, com voz baixa e tom irado, disse-lhe: —A que chifres vem isso? —perguntou-lhe em alemão já que Markus falava mal o russo. —detiveste a Irina —respondeu o homem entre lágrimas—. Puto malnacido; queimaste-lhe os mamilos com um cigarro. Volodia crispou o rosto. Irina era a noiva do Markus, e era russa. Começava a compreender do que ia todo aquilo e teve um mau pressentimento. sentou-se em frente do Markus. —Eu não detive a Irina —disse—. E se lhe tiverem feito mal, sinto muito. me conte o que ocorreu. —foram procurar a de madrugada. Sua mãe me contou isso. Não disseram quem eram, mas não se tratava de simples agentes de polícia; foram melhor vestidos. Sua mãe não sabe aonde a levaram. Começaram-lhe a fazer perguntas sobre mim e a acusaram de ser uma espiã. Torturaram-na e a violaram, e logo a tiraram de casa. —Joder —exclamou Volodia—. O sinto seriamente. —Que o sente? Tem que ter sido tua coisa. De quem, se não? —Os serviços secretos não tiveram nada que ver, juro-lhe isso. —Isso não troca as coisas —repôs Markus—. Não quero saber nada mais de ti, nem tampouco quero saber nada mais do comunismo. —Às vezes se sofrem descem na guerra contra o capitalismo. —Inclusive a Volodia, enquanto o dizia, soou a pura palavrório. —Niñato estúpido —lhe espetou Markus com virulência—. Não compreende que o socialismo implica liberar-se de toda essa mierda? Volodia levantou a cabeça e viu entrar em um homem fornido com um casaco de couro. Seu instinto lhe dizia que não tinha acudido simplesmente a tomar um gole. Ali se estava cozendo algo e Volodia não sabia o que. Era novato no jogo, e nesses precisos momentos acusava sua falta de experiência tanto como se carecesse de um braço ou uma perna. Acreditava que podia estar em perigo mas não sabia o que fazer. O recém-chegado se aproximou da mesa da Volodia e Markus. Então o homem com cara de rato ficou em pé. Tinha mais ou menos a mesma idade que Volodia e, surpreendentemente, falou em um registro culto. —Vocês dois ficam detidos. Volodia soltou uns palavrões. Markus ficou em pé de um salto. —Sou agregado comercial em embaixada alemã! —gritou em um russo gramaticalmente incorreto—. Não podem deter! Tenho imunidade diplomática! Os outros clientes abandonaram o bar a toda pressa, propinándose empurrões enquanto se apertavam para passar pela porta. Solo ficaram duas pessoas: o garçom, que limpava a barra nervoso com um trapo imundo, e a prostituta, que estava fumando um cigarro e contemplava um copo de vodca vazio. —A mim tampouco podem me deter —disse Volodia com calma, e tirou o cartão de identificação de seu bolso—. Sou o tenente Peshkov, dos serviços secretos do exército. E você? Quem cojones é? —Dvorkin, do NKVD. —Berezovski, do NKVD —disse o homem do casaco de couro. A polícia secreta. Volodia resmungou: deveria havê-lo suposto. As competências do NKVD se ocultavam com as dos serviços secretos. Tinham-lhe advertido que as duas organizações se passavam a vida pisando o terreno, mas era a primeira vez que ocorria a ele. dirigiu-se ao Dvorkin. —Suponho que são vós os que torturastes à noiva deste homem. Dvorkin se limpou o nariz com a manga; ao parecer, o desagradável costume não formava parte de seu disfarce. —Não tinha informação. —Ou seja que lhe queimastes os mamilos para nada. —teve sorte. Se tivesse sido uma espiã, lhe teria ido pior. —Não lhes ocorreu consultá-lo primeiro conosco? —É que vós nos consultastes algo alguma vez? —Eu vou —disse Markus. Volodia se exasperou. Estava a ponto de perder a um bom contato. —Não vá —suplicou—. Arrumaremos o da Irina de alguma forma. Conseguiremo-lhe o melhor tratamento hospitalar… —Vete a mierda —espetou Markus—. Não voltará para ver-me nunca mais. —E saiu do bar. Dvorkin, evidentemente, não sabia o que fazer. Não queria deixar que Markus partisse, mas estava claro que não podia detê-lo sem dar a impressão de que cometia uma estupidez. Ao final disse a Volodia: —Não deveria permitir que lhe falassem desse modo, fazem-lhe ficar como um brando. Deveriam te respeitar mais. —Bode —saltou Volodia—. Acaso não vê o que tem feito? Esse homem era uma fonte fidedigna de informação secreta, mas jamais voltará a trabalhar para nós, graças a seu engano garrafal. Dvorkin se encolheu de ombros. —Tal como você mesmo há dito, às vezes se sofrem baixas. —Maldita a hora —repôs Volodia, e abandonou o local. Sentiu umas ligeiras náuseas enquanto cruzava o rio de volta. Repugnava-lhe o que o NKVD fazia a uma mulher inocente, e estava abatido por ter perdido a seu contato. Tomou o bonde: não tinha a categoria suficiente para dispor de carro próprio. Ia refletindo enquanto o veículo avançava pouco a pouco entre a neve rumo a seu posto de trabalho. Tinha que informar à comandante Lemítov, mas vacilava, perguntando-se como ia explicar lhe a história. Precisava deixar claro que a culpa não era dela sem que parecesse que procurava pretextos. A sede central dos serviços secretos do exército ocupava uma esquina do aeródromo da Jodinka, onde uma paciente máquina máquina de limpar neve ia de um lado a outro para manter a pista limpa. Tinha um estilo arquitetônico peculiar: um edifício de dois novelo sem janelas em nenhuma fachada exterior rodeava um pátio no qual se localizava o edifício de nove novelo dos escritórios centrais, que sobressaía qual dedo indicador de um punho de tijolo. Não se permitia a entrada com acendedores nem plumas estilográficas posto que podiam fazer saltar os detectores de metais da porta, assim que o exército provia a sua palmilha de ambas as coisas no interior. As fivelas dos cinturões também resultavam problemáticas, pelo que a maioria do pessoal levava suspensórios. Medida-las de segurança estavam de mais, é obvio. Os moscovitas procuravam manter-se afastados do edifício por todos os meios; nenhum estava o bastante louco para querer penetrar ali. Volodia compartilhava um despacho com três oficiais mais, seus escritórios de aço estavam situados um ao lado do outro, contra as paredes opostas. Havia tão pouco espaço que o escritório da Volodia impedia que a porta se abrisse de tudo. Kamen, o cerebrito do despacho, observou seus lábios inchados. —me deixe adivinhá-lo… Seu marido retornou a casa antes do previsto —disse. —Não me pergunte nada —repôs Volodia. Em seu escritório havia uma mensagem decodificada da seção de radiotelegrafia; as palavras em alemão apareciam escritas em lápis letra por letra debaixo dos grupos de códigos. A mensagem era do Werner. Ao princípio, Volodia reagiu com temor. Teria denunciado Markus o que aconteceu a Irina e teria convencido ao Werner para que também deixasse a espionagem? Parecia um dia o bastante desgraçado como para que coincidissem dois desastres de semelhante calibre. Mas a mensagem não anunciava nenhum desastre a não ser justamente o contrário. Volodia o leu com crescente perplexidade. Werner explicava que o exército alemão tinha decidido enviar espiões a Espanha para fazer-se passar por voluntários antifascistas à espera de poder lutar junto ao governo na guerra civil. Do fronte, informariam de forma clandestina aos postos radiotelegráficos do acampamento das tropas nacionais atendidos pelos alemães. Isso solo já era informação extremamente importante. Mas havia mais. Werner tinha os nomes. Volodia teve que refrear-se para não ficar a gritar de alegria. Pensou que uma situação como aquela solo se dava uma vez na vida de um agente dos serviços secretos. Compensava de sobra a perda do Markus. Werner era um autêntico tesouro. A Volodia dava medo pensar nos riscos que tinha que ter deslocado para sustraer a lista com os nomes e tirá-la escondido dos escritórios centrais do Ministério do Ar no Berlim. Sentiu a tentação de pôr-se a correr escada acima e irromper no despacho do Lemítov imediatamente, mas se conteve. Os quatro oficiais compartilhavam uma máquina de escrever. Volodia levantou a pesada e velha máquina do escritório do Kamen e a colocou no seu. Com o dedo indicador de ambas as mãos, teclou uma tradução ao russo da mensagem do Werner. Enquanto o fazia, a luz do dia começou a apagar-se e os potentes focos de segurança do exterior do edifício se acenderam. Depois de deixar uma cópia de papel carvão na gaveta de seu escritório, tomou a folha superior e subiu as escadas. Lemítov se encontrava em seu escritório. tratava-se de um homem bem plantado de uns quarenta anos, com o cabelo escuro penteado para trás com brilhantina. Era sagaz, e tinha o dom de pensar sempre um pouco mais lá que Volodia, que se esforçava por emular sua capacidade de antecipação. Não comungava com a rígida doutrina do exército segundo a qual a ordem militar consistia em gritar e intimidar ao próximo; entretanto, não tinha compaixão com os incompetentes. A Volodia infundia respeito e temor. —É possível que esta informação seja de uma utilidade tremenda —disse Lemítov quando teve lido a tradução. —Como que é possível? —Volodia não via nenhuma razão para duvidá-lo. —Poderia tratar-se de informação falsa —observou Lemítov. Volodia não queria acreditá-lo, mas, com um sentimento de decepção, reparou em que tinha que considerar a possibilidade de que tivessem descoberto ao Werner e este converteu-se em um agente dobro. —Que classe de informação falsa? —perguntou com desalento—. Nomes de pessoas inexistentes para nos fazer perder o tempo? —Talvez. Também é possível que os nomeie sejam verdadeiros e correspondam a autênticos voluntários, a comunistas e socialistas que fugiram que a Alemanha nazista e se dirigiram a Espanha para lutar pela liberdade. Poderíamos acabar detendo autênticos antifascistas. —Maldita seja. Lemítov sorriu. —Não ponha essa cara tão triste! Mesmo assim, a informação é de grande valor. Na Espanha temos espiões próprios, jovens soldados e oficiais russos que se alistaram voluntariamente nas Brigadas Internacionais. Eles o investigarão. —Tomou um lápis vermelho e escreveu na folha de papel com letra miúda e pulcra—. Bom trabalho —disse. Volodia o interpretou como uma autorização para retirar-se e se dirigiu à porta. —Viu hoje ao Markus? —perguntou Lemítov. Volodia se deu meia volta. —tivemos um problema. —Imaginava, por como tem a boca. Volodia lhe explicou o ocorrido. —Assim perdi a um bom confidente —concluiu—. Mas não sei do que outro modo poderia ter obrado. Teria que ter falado com o NKVD do Markus e lhes advertir que se mantiveram à margem? —E uma mierda —exclamou Lemítov—. Não são nada de confiar, nunca lhes conte nada. Mas não se preocupe, não perdeste ao Markus. Pode recuperá-lo facilmente. —Como? —perguntou Volodia sem compreendê-lo—. Agora odeia a todos. —Volta a deter a Irina. —O que? —Volodia estava horrorizado. Acaso a garota não tinha sofrido já bastante?—. Assim ainda nos odiará mais. —lhe diga que se não continuar colaborando conosco, voltaremos a submetê-la a todo o interrogatório. Volodia tratou desesperadamente de dissimular a repugnância que sentia. Era importante não parecer muito impressionável. Além disso, sabia que o plano do Lemítov funcionaria. —Claro —conseguiu responder. —Só que esta vez —prosseguiu Lemítov— lhe diga que lhe colocaremos os cigarros acesos pelo coño. Volodia acreditava estar a ponto de vomitar. Tragou saliva e respondeu: —Boa idéia. Vou por ela. —Basta com que vá esta madrugada —disse Lemítov—. Às quatro, para obter o máximo efeito. —Sim, senhor. —Volodia saiu do despacho e fechou a porta detrás de si. deteve-se um momento no corredor, sentia-se enjoado. Mas um empregado administrativo que passava por ali o olhou com cara estranha e o obrigou a seguir caminhando. ia ter que fazê-lo. Não torturaria a Irina, por descontado: bastaria com a ameaça. Mas ela tomaria a sério e se levaria um susto de morte. Volodia tinha a impressão de que ele em seu lugar se voltaria louco. Quando se alistou no Exército Vermelho nunca imaginou que teria que levar a cabo semelhantes práticas. Claro que no exército se matava a gente, isso já sabia; mas torturar a moças? O edifício se estava ficando deserto, começavam a apagá-las luzes dos despachos e pelos corredores circulavam homens com o chapéu posto. Era hora de partir a casa. De caminho a seu escritório, Volodia telefonou à polícia militar e conveio em encontrar-se com uma brigada às três e meia da madrugada para deter a Irina. Logo ficou o casaco e saiu para tomar um bonde até sua casa. Volodia vivia com seus pais, Grigori e Katerina, e com sua irmã Ania, que tinha dezenove anos e ainda estudava na universidade. Durante o trajeto em o bonde, perguntou-se se podia falar com seu pai daquilo. imaginou lhe perguntando: Temos que torturar a gente na sociedade comunista?. Mas já sabia qual seria a resposta. tratava-se de uma necessidade temporária, imprescindível para proteger a revolução dos espiões e os elementos subversivos contratados pelos imperialistas capitalistas. Talvez poderia lhe perguntar: Quanto tempo falta para que abandonemos umas práticas tão atrozes?. É obvio, seu pai não sabia; ninguém sabia. Quando a família Peshkov retornou do Berlim, transladou-se a viver à residência governamental, também chamada às vezes a Casa do Dique, um bloco de pisos situado na borda do rio oposta ao Kremlin, destinado a alojar a membros da élite soviética. Era um edifício colossal de uso constructivista que albergava mais de quinhentas moradias. Volodia saudou com a cabeça à polícia militar apostado na entrada antes de cruzar o esplêndido vestíbulo (tão amplo que algumas noites se celebravam bailes amenizados por uma banda de jazz) e subir com o elevador. O piso era luxuoso para os padrões soviéticos, com água quente constante e telefone, mas não resultava tão acolhedor como seu lar do Berlim. Sua mãe se encontrava na cozinha. Katerina era uma cozinheira medíocre e pouco amante das tarefas domésticas, mas o pai da Volodia a adorava. Em 1914, em São Petersburgo, tinha-a salvado das indeseadas cuidados de um policial perseguidor, e após estava apaixonado por ela. A seus quarenta e três anos seguia sendo atrativa, conforme deduzia Volodia, e durante o tempo que a família levava formando parte do círculo diplomático tinha aprendido a vestir com mais elegância que a maioria das russas, embora procurava não luzir um aspecto ocidental: isso em Moscou constituía uma grave ofensa. —Deste-te um golpe na boca? —perguntou-lhe depois de que ele a saudasse com um beijo. —Não é nada. —Volodia notou o aroma do frango—. Temos um jantar especial? —Ania convidou a um amigo. —Ah! São companheiros de classe? —Não acredito. Não sei muito bem a que se dedica. Volodia se alegrou. Adorava a sua irmã, mas sabia que não era bonita. Era baixa e gordinha, e vestia roupa pouco favorecedora de cores escuras. Não tinha tido muitos noivos, e o fato de que algum o atraíra o suficiente para apresentá-lo em casa era uma grata notícia. dirigiu-se a seu dormitório, despojou-se da jaqueta e se lavou a cara e as mãos. Seus lábios quase tinham recuperado o aspecto normal. Markus não lhe tinha pego muito forte. Enquanto se secava as mãos ouviu vozes, pelo que deduziu que Ania e seu amigo deviam ter chegado. ficou uma jaqueta de ponto para estar mais cômodo e saiu do dormitório. Logo entrou na cozinha. Ania se encontrava sentada à mesa com um homem baixinho com cara de camundongo que Volodia reconheceu. —OH, não! —exclamou—. Você! Era Ilia Dvorkin, o agente do NKVD que tinha detido a Irina. tirou-se o disfarce e levava um traje convencional de cor escura e umas botas decentes. ficou olhando a Volodia, surpreso. —Claro… Peshkov! —disse—. Não tinha pacote cabos. Volodia se voltou para sua irmã. —Não me diga que este é seu noivo. —O que ocorre? —perguntou Ania, consternada. —Conhecemo-nos esta manhã. —respondeu Volodia—. Este homem estragou uma importante operação do exército por colocar os narizes onde não devia. —Estava fazendo meu trabalho —protestou Dvorkin, que se limpou a ponta do nariz com a manga. —Miúdo trabalho! Katerina interveio para salvar a situação. —Não mesclem o trabalho com a família —disse—. Volodia, por favor, serve um copo de vodca a nosso convidado. —Diz-o a sério? Os olhos de sua mãe cintilavam de ira. —Pois claro que o digo a sério! —Muito bem. —Agarrou a garrafa do suporte com inapetência. Ania tirou copos de um armário e Volodia serve a bebida. Katerina tomou um copo. —A ver, começaremos de novo —disse—. Ilia, este é meu filho Vladímir, a quem sempre chamamos Volodia. Volodia, este é Ilia, um amigo da Ania que veio a jantar. por que não lhes dão a mão? Volodia não teve mais remedeio que lhe estreitar a mão ao homem. Katerina serve algumas costure para picar: pescado defumado, pepinos japoneses em vinagre e salsicha atalho em rodelas. —No verão comemos alface da que tenho plantada na dacha, mas nesta época do ano não há nenhuma, é obvio —disse em tom de desculpa. Volodia se deu conta de que desejava impressionar a Ilia. De verdade sua mãe queria que Ania se casasse com semelhante rasteiro? Supôs que assim era. Grigori entrou embelezado com sua uniforme do exército, prodigalizando sorrisos de uma vez que olisqueaba o frango e se esfregava as mãos. A seus quarenta e oito anos, era um homem corpulento e de rosto corado: custava imaginá-lo tomando por assalto o Palácio de Inverno, tal como tinha feito em 1917. Certamente então estava mais magro. Beijou a sua esposa com deleite. Volodia tinha a impressão de que sua mãe agradecia as descaradas amostras de voluptuosidad por parte de seu pai embora não lhe correspondia por igual. Sorria-lhe quando lhe dava tapinhas no traseiro, atraía-o para si quando a abraçava e o beijava sempre que ele queria, mas nunca tomava a iniciativa. Encontrava-o atrativo, respeitava-o e parecia feliz casada com ele; não obstante, saltava à vista que não ardia de paixão. Volodia pensou que ele esperava mais do matrimônio. Entretanto, a questão não ia mais à frente do plano meramente hipotético: Volodia tinha tido aproximadamente uma dúzia de noivados curtos; não obstante, ainda não tinha conhecido a uma mulher com quem desejasse casar-se. Serve um pouco de vodca a seu pai, e Grigori o bebeu com ânsia de um só gole antes de tomar um pouco de pescado defumado. —Assim, Ilia, a que te dedica? —Trabalho no NKVD —respondeu Ilia, orgulhoso. —Ah! É magnífico trabalhar para essa organização! Volodia suspeitava que, em realidade, Grigori não pensava isso; solo tratava de ser amável. Em sua opinião, a família deveria comportar-se com antipatia para tratar de afugentar a Ilia. —Suponho, pai, que quando o resto do mundo imite à União Soviética e adote o sistema comunista, a polícia secreta deixará de ser necessária, e então o NKVD poderia suprimir-se. Grigori optou por passar nas pontas dos pés sobre o assunto. —Nada de polícia! —exclamou com jovialidade—. Nada de julgamentos criminais, nada das prisões. Nada de departamentos de contra-espionagem, posto que não haverá espiões. Tampouco haverá exército, posto que não teremos inimigos! A que nos dedicaremos então? —pôs-se a rir com vontades—. Claro que é possível que ainda falte um poquito de tempo para isso. Ilia parecia receoso, como se notasse que o discurso tinha algo de subversivo mas não acabasse de captar o que era. Katerina levou a mesa um prato com pão negro e cinco terrinas de borsch quente, e todos começaram a comer. —Quando era menino e vivia no campo —começou Grigori—, minha mãe se passava todo o inverno guardando a pele das verduras, o coração das maçãs, as folhas da couve que não nos comíamos, os filamentos das cebolas e tudo de coisas assim; deixava-o em um barril grande e velho no exterior da casa para que se gelasse. Logo, quando chegava a primavera, a neve se derretia e com isso preparava borsch. Isso é o borsch em realidade: sopa de mondaduras. Vós, os jovens, não têm nem idéia de quão bem vivem. Bateram na porta. Grigori enrugou a frente, não esperava visitas. —Uy, me esquecia! —exclamou Katerina—. Também vem a filha do Konstantín. —Refere a Zoya Vorotsintsev? A filha da Magda a parteira? —Recordo a Zoya —disse Volodia—. Uma menina flacucha com saca-rolhas loiros. —Já não é nenhuma menina —observou Katerina—. Tem vinte e quatro anos e é científica. —levantou-se para dirigir-se à porta. Grigori franziu o sobrecenho. —Não tornamos a vê-la desde que morreu sua mãe. A que vem esta visita repentina? —Quer falar contigo —respondeu Katerina. —Comigo? Do que? —De física. —Katerina saiu da cozinha. —Seu pai, Konstantín, e eu fomos delegados do Sóviet do Petrogrado em 1917. Promulgamos a famosa Ordem Número Um. —Lhe escureceu o rosto—. Morreu depois da guerra civil, por desgraça. —Devia ser jovem… Do que morreu? —perguntou Volodia. Grigori jogou uma olhada dissimulada a Ilia e se apressou a apartar o olhar. —De pneumonia —disse, e Volodia compreendeu que estava mentindo. Katerina retornou, seguida de uma mulher que deixou a Volodia sem respiração. Era uma clássica beleza russa, alta e magra, com o cabelo loiro claro, os olhos de um azul quase incolor de tão pálido e uma cútis branca e impecável. Levava um singelo vestido verde Nilo cuja sobriedade obrigava a concentrar toda a atenção em sua esbelta figura. Apresentaram a todos os comensais; logo se sentou à mesa e aceitou uma terrina de borsch. —Assim é científica, Zoya —disse Grigori. —Sou licenciada; agora estou cursando o doutorado e reparto classes na universidade —esclareceu ela. —Aqui, Volodia, trabalha nos serviços secretos do Exército Vermelho —explicou Grigori com orgulho. —Que interessante —respondeu a garota, embora era evidente que queria dizer o contrário. Volodia se precaveu de que Grigori via na Zoya a uma possível nora. Esperava que seu pai não fora muito insistente com as indiretas. Já tinha decidido lhe pedir uma entrevista antes de que terminasse a velada, mas podia arrumar-lhe sozinho. Não necessitava a ajuda de seu pai. Ao contrário: se alardeava de forma muito evidente poderia dissuadi-la. —Que tal está a sopa? —perguntou Katerina a Zoya. —Deliciosa, obrigado. Volodia começava a captar a personalidade pragmática que se ocultava atrás de seu físico esplêndido. Era uma combinação fascinante: uma mulher bonita que não fazia nenhum esforço por mostrar-se encantadora. Ania retirou as terrinas de sopa enquanto Katerina levava o segundo prato: frango com batatas à panela. Zoya se lançou ao ataque; enchia-se a boca de comida, mastigava, tragava e comia mais. Como a maioria dos russos, não estava acostumado a provar comida tão rica como aquela. —A que te dedica dentro do mundo científico, Zoya? —perguntou Volodia. Obviamente contrariada, ela deixou de comer para lhe responder. —Sou física —disse—. Tentamos analisar o átomo: quais são seus componentes e o que os mantém juntos. —É interessante? —Absolutamente fascinante. —Deixou o garfo—. Trabalhamos para descobrir do que parece o universo em realidade. Não há nada mais emocionante. —Seus olhos se iluminaram. Ao parecer, a física era o único capaz de desviar sua atenção do jantar. Ilia falou pela primeira vez. —Já, mas do que servem todas essas monsergas teóricas à revolução? Os olhos da Zoya cintilavam de ira, e a Volodia ainda gostou mais. —Alguns camaradas cometem o engano de subestimar a ciência pura em favor da investigação prática —disse—. Entretanto, os adiantamentos técnicos, como por exemplo os aeronáuticos, dependem em última instância dos avanços teóricos. Volodia dissimulou um sorriso. Uma simples conversação informal tinha deixado a Ilia como um trapo. Mas Zoya não tinha terminado. —Por isso queria falar com você, senhor —disse dirigindo-se ao Grigori—. Os físicos lêem as revistas científicas que se publicam no Ocidente; os muito tolos revelam seus resultados ao mundo inteiro. E, ultimamente, observamos que estão dando passos de gigante na compreensão da física atômica, o qual resulta alarmante. A ciência soviética corre um grave perigo de ficar atrasada. Pergunto-me se o camarada Stalin é consciente disso. A sala ficou em silêncio. A mínima ameaça de crítica contra Stalin resultava perigoso. —Sabe quase tudo —disse Grigori. —É obvio —conveio Zoya de forma automática—. Mas certamente algumas vezes os camaradas leais como você têm que lhe fazer reparar em questões que são importantes. —Sim, isso é verdade. —Sem dúvida o camarada Stalin acredita que a ciência deve ser conseqüente com a ideologia marxista-leninista —opinou Ilia. Volodia vislumbrou um brilho de desafio nos olhos da Zoya, mas esta baixou o olhar e acrescentou com humildade: —Não cabe dúvida de que tem razão. É evidente que os cientistas têm que redobrar nossos esforços. Aquilo era uma estupidez supina, e todos os pressente sabiam, mas ninguém pensava dizer nada a respeito. Deviam comportar-se com decoro. —Claro —disse Grigori—. Não obstante, mencionarei-o a próxima vez que tenha a oportunidade de falar com o camarada secretário geral da partida. É possível que queira analisá-lo mais a fundo. —Isso espero —disse Zoya—. Queremos ir por diante do Ocidente. —E, além do trabalho, que mais nos contas, Zoya? —perguntou Grigori em tom jovial—. Tem noivo? Está prometida talvez? —Papai! Isso não é nosso assunto! —indignou-se Ania. A Zoya não pareceu lhe importar. —Não estou prometida —respondeu em tom moderado—. E tampouco tenho noivo. —Vai igual de mal que a meu filho, Volodia! Ele também está solteiro. Tem vinte e três anos e um bom nível de estudos, é alto e bonito… E mesmo assim não tem noiva! Volodia morria de vergonha ante tão descarada indireta. —Costa acreditá-lo —disse Zoya, e quando olhou a este Volodia observou certo brilho zombador em seus olhos. Katerina posou a mão no braço de seu marido. —Já está bem —disse—. Deixa de incomodar a pobre garota. Soou o timbre da porta. —Outra vez? —saltou Grigori. —Agora sim que não tenho nem idéia de quem pode ser —disse Katerina saindo da cozinha. Retornou com o chefe da Volodia, o comandante Lemítov. Volodia, sobressaltado, ficou em pé de repente. —boa noite, senhor —disse—. Este é meu pai, Grigori Peshkov. Papai, apresento-te à comandante Lemítov. Lemítov saudou com elegância. —Descanse, Lemítov —disse Grigori—. Sinta-se e prove o frango. Fez algo mau meu filho? Essa era precisamente a suspeita que fazia que a Volodia tremessem as mãos. —Não, senhor; mas bem ao contrário. Mas… esperava poder falar em privado com ele e com você. Volodia se relaxou um pouco. Talvez não estivesse em apuros, depois de tudo. —Bom, quase acabamos que jantar —disse Grigori ficando em pé—. Vamos a meu escritório. Lemítov olhou a Ilia. —Você não trabalha no NKVD? —perguntou. —E a muita honra. Meu nome é Dvorkin. —Claro! Você é quem tentou deter a Volodia esta tarde. —Parecia-me que se comportava como um espião. E tinha razão, não? —Tem que aprender a deter os espiões inimigos, não aos nossos. —Lemítov abandonou a sala. Volodia sorriu. Era a segunda vez que Dvorkin se levava uma reprimenda. Volodia, Grigori e Lemítov cruzaram o saguão. O despacho ocupava uma pequena habitação logo que mobiliada. Grigori se instalou na única poltrona que havia. Lemítov se sentou junto a uma mesita baixa. Volodia fechou a porta e ficou em pé. —Seu camarada pai tem notícia da mensagem que recebemos esta tarde do Berlim? —perguntou Lemítov a Volodia. —Não, senhor. —Será melhor que o conte. Volodia lhe explicou a história dos espiões da Espanha. Seu pai se mostrou encantado. —Bom trabalho! —exclamou—. Claro que poderia tratar-se de informação falsa, mas o duvido, os nazistas não são tão imaginativos. Entretanto, nós sim. Somos capazes de deter espiões e utilizar seus rádios para enviar mensagens falsas aos rebeldes de direitas. A Volodia não lhe tinha ocorrido pensá-lo. Talvez seu pai se fizesse o parvo com a Zoya, pensou, mas seguia sendo muito perspicaz no relativo aos serviços secretos. —Exato —disse Lemítov. Grigori se dirigiu a Volodia. —Seu companheiro de escola, Werner, é um homem com guelra. —E perguntou ao Lemítov—: Como pensa tratar o assunto? —Precisamos enviar bons agentes a Espanha para que investiguem a esses alemães. Não deveria ser muito difícil. Se de verdade forem espiões, haverá provas: livros de códigos, equipes de rádio e demais. —Vacilou—. vim para lhe propor que enviemos a seu filho. Volodia ficou estupefato. Isso não o esperava. O semblante do Grigori se escureceu. —Vá —começou com ar pensativo—, devo confessar que a perspectiva me cheia de consternação. Jogaríamos muito de menos. —Então adotou uma expressão resignada, como se se tivesse dado conta de que, em realidade, não tinha eleição—. Mas o primeiro é defender a revolução, é obvio. —Os agentes dos serviços secretos se formam com a prática —disse Lemítov—. Você e eu combatemos, senhor, mas a geração mais jovem nunca esteve no campo de batalha. —Certo, certo. Quando deveria partir? —dentro de três dias. Volodia se dava conta de que seu pai estava procurando desesperadamente alguma razão que o retivera em casa, mas não encontrava nenhuma. Ele, por sua parte, se sentia emocionado. Espanha! Pensou no vinho tinjo como o sangue, nas moças de cabelo escuro com as pernas fortes e moréias, e no quente sol em lugar da neve de Moscou. Correria perigo, é obvio, mas não se alistou no exército para ter uma vida segura. —Bom, Volodia, o que diz você? —perguntou Grigori. Volodia sabia que seu pai desejava que pusesse alguma objeção, mas o único inconveniente que lhe ocorria era que não teria tempo de conhecer melhor a deslumbrante Zoya. —É uma oportunidade magnífica —disse—. Me adula que me tenham eleito. —Muito bem —disse seu pai. —Só há um pequeno problema —lhe advertiu Lemítov—. Se estipulou que os serviços secretos do exército se ocupem da investigação mas que não levem a cabo as detenções. Isso é prerrogativa do NKVD. —Não havia o menor espiono de humor em seu sorriso—. Me temo que te tocará trabalhar junto com seu amigo Dvorkin. II Era impressionante, pensou Lloyd Williams, o rápido que se aprendia a amar um lugar. Solo levava dez meses na Espanha, mas a paixão que esse país tinha despertado nele era quase tão forte como seu apego pelo Gales. Adorava ver uma flor pouco comum abrindo as pétalas no meio da paisagem ressecada; desfrutava dormindo a sesta; gostava do fato de que se tomasse vinho mesmo que não houvesse nada de comer. Tinha descoberto sabores que não tinha provado até então: as olivas, a páprica, o chouriço e o forte licor que chamavam bagaço. deteve-se em uma costa e, com um mapa na mão, posou o olhar mais à frente da paisagem velada pela cálida neblina. Havia uns quantos prados bordeando o rio, e algumas árvores nas ladeiras distantes, mas no meio se estendia um deserto árido e monótono de pó e pedras. —Não há grande coisa para cobrir nosso avanço —observou com preocupação. —Espera-nos uma batalha dura de narizes —disse Lenny Griffiths, a seu lado. Lloyd consultou o mapa. Zaragoza se estendia a ambas as bordas do rio Ebro, a mais de duzentos quilômetros da desembocadura no Mediterrâneo. A cidade concentrava a maior parte das comunicações da região do Aragón. Era uma importante encruzilhada, um lugar no qual confluíam várias linhas ferroviárias e três rios. Ali, o exército republicano combatia aos antidemócratas de Franco em uma desértica terra de ninguém. Algumas pessoas chamavam as forças do governo os republicanos e aos rebeldes, os nacionais, mas esses nomes podiam induzir a engano aos estrangeiros. Em ambos os bandos havia muitos republicanos, no sentido de que não queriam ser governados por nenhum rei. E todos eram nacionais, no sentido de que amavam seu país e estavam dispostos a morrer por ele. Lloyd os considerava o governo e os amotinados. Nesses momentos, Zaragoza estava ocupada pelos amotinados de Franco, e Lloyd observava a cidade de um mirante situado a oitenta quilômetros para o sul. —Mesmo assim, se conseguimos tomar a cidade, o inimigo ficará retido no norte durante outro inverno —disse. —Se o conseguimos —particularizou Lenny. O prognóstico era desalentador, pensou Lloyd com tristeza, posto que solo podiam aspirar, como máximo, a deter o avanço das tropas de Franco. Esse ano o governo não previa nenhuma vitória. Contudo, uma parte do Lloyd aguardava espectador o momento da batalha. Levava na Espanha dez meses, e essa seria sua primeira oportunidade de entrar em ação. Até o momento se limitou a fazer de instrutor em um acampamento. Quando, recém incorporado, os espanhóis descobriram que tinha formado parte do Corpo de Instrução de Oficiais de Grã-Bretanha, em seguida o subiram a tenente e o puseram ao mando dos soldados recém recrutados. Ele tinha que instrui-los até que obedecessem ordens como se fora um ato reflito, tinha que obrigá-los a partir até que os pés deixavam de lhes sangrar e as ampolas se tornavam calos, e também tinha que lhes ensinar a desmontar e limpar os poucos fuzis que houvesse disponíveis. Entretanto, a afluência de voluntários tinha diminuído e se recebiam muito poucas solicitudes, pelo que os instrutores tinham sido transladados a batalhões de combate. Lloyd ia embelezado com uma boina, uma jaqueta com cremalheira com o galão que indicava sua fila grosseiramente costurada na manga e umas calças de veludo cotelê. Levava um fuzil espanhol Mauser de canhão curto que disparava projéteis de 7 mm, ao parecer roubados de algum arsenal do Guarda Civil. Lloyd, Lenny e Dave tinham acontecido um tempo separados, mas ao final os reuniram no batalhão britânico da 15.ª Brigada Internacional para a batalha que preparava-se. Lenny luzia uma barba negra e aparentava dez anos mais dos dezessete que tinha. Tinham-no subido a sargento, embora não tinha uniforme; tão só levava umas calças azuis de peitilho e um lenço de seda de raias. Parecia mais um pirata que um soldado. —De todos os modos, esta ofensiva não tem nada que ver retendo aos de Franco. É algo puramente político. Esta região sempre esteve dominada pelos anarquistas. Lloyd tinha visto o anarquismo em ação durante uma breve estadia em Barcelona. Era uma forma alegremente radical de comunismo. Os oficiais e os soldados rasos percebiam o mesmo pagamento. Os comilões dos grandes hotéis se converteram em cantinas para os operários. Os garçons devolviam as gorjetas, explicando amavelmente que a prática das oferecer resultava degradante. Por toda parte havia pôsteres denunciando a prostituição como uma forma de explorar às camaradas do sexo feminino. respirava-se um maravilhoso ambiente de liberação e companheirismo. Os russos o odiavam. Lenny prosseguiu. —Agora o governo trouxe tropas comunistas da zona de Madrid e fundiu a todos para formar o novo Exército do Este; sob o mando geral de os comunistas, claro. Os discursos desse tipo tiravam de gonzo ao Lloyd. A única possibilidade de ganhar que tinham as facções esquerdistas era operando juntas, tal como tinham feito, pelo menos ao final, na batalha de Cabo Street. Entretanto, os anarquistas e os comunistas se enfrentaram nas ruas de Barcelona. —O primeiro-ministro Negrín não é comunista —disse. —Pois se comporta como se o fora. —O que passa é que sabe que sem o apoio da União Soviética estamos acabados. —Mas significa isso que devemos abandonar a democracia e deixar que os comunistas se façam com o poder? Lloyd assentiu. Todas as conversações sobre o governo terminavam igual: temos que fazer tudo o que os soviéticos queiram sozinho porque são os únicos dispostos a nos vender armas? Descenderam pela colina. —vamos tomar nos uma boa taça de chá, parece-te? —Sim, por favor. Para mim, dois torrões de açúcar. Era uma brincadeira sabida. Todos eles levavam meses sem provar o chá. Chegaram a seu acampamento, situado junto ao rio. A seção do Lenny se instalou em um pequeno grupo de edifícios de pedra tosca que provavelmente haviam servido de estábulos antes de que a guerra afugentasse aos granjeiros. uns quantos quilômetros rio acima, os alemães da 11.ª Brigada Internacional haviam ocupado um abrigo para guardar barcos. Dave Williams, o primo do Lloyd, foi ao encontro deste e do Lenny. Ao igual que Lenny, Dave tinha maturado dez anos em um sozinho. Lhe via fraco e endurecido, tinha a pele curtida e coberta de pó, e nas comissuras de seus olhos apareciam rugas quando os entreabria ante o sol. Levava uma jaqueta e umas calças de cor cáqui, um cinturão de couro com cartucheiras e umas botas tobilleras que se atiam à perna mediante fivelas, o qual constituía o uniforme regulamentar do que poucos soldados dispunham ao completo. Também luzia um lenço de seda de algodão vermelho ao redor do pescoço. Levava um fuzil russo Moisin-Nagant com a antiquada baioneta de ponta aguda colocada ao reverso, o qual conferia à arma um aspecto menos tosco. Pendurada do cinturão levava uma Luger alemã de 9 mm que devia haver roubado ao cadáver de um oficial rebelde. Ao parecer, tinha muito boa pontaria com o fuzil e a pistola. —Temos visita —disse com entusiasmo. —Quem é? —Uma mulher! —exclamou Dave, e a assinalou. À sombra de um relatório álamo negro, uma dezena de soldados britânicos e alemães conversavam com uma mulher de extraordinária beleza. —Duw! —exclamou Lenny, utilizando a palavra galesa que designava a Deus—. Que presente para a vista. Aparentava uns vinte e cinco anos, pensou Lloyd, e era miúda, com os olhos grandes e uma grosa arbusto de cabelo negro recolhimento no cocuruto e coberta por um gorro de quartel. Por algum motivo, o amplo uniforme desenhava suas formas qual vestido de noite. Um voluntário chamado Heinz, que sabia que Lloyd compreendia o alemão, dirigiu-se a ele nesse idioma. —Esta é Teresa, senhor. veio para nos ensinar a ler. Lloyd assentiu. As Brigadas Internacionais estavam formadas por voluntários estrangeiros além de por soldados espanhóis, e entre estes últimos a alfabetização era um problema. Tinham passado a infância recitando o catecismo em escolas rurais dirigidas pela Igreja católica. Muitos párocos evitavam ensinar a ler aos meninos, por medo de que mais adiante tivessem acesso a livros socialistas. Como resultado, solo a metade da população estava alfabetizada durante a monarquia. O governo republicano, eleito em 1931, tinha melhorado a educação; mesmo assim, milhões de espanhóis seguiam sem saber ler nem escrever, e os soldados continuavam recebendo formação incluso no fronte. —Sou analfabeto —disse Dave, que não o era. —Eu também —disse Joe Eli, que repartia classes de literatura espanhola na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Teresa falou em espanhol. Sua voz era fica, pausada e muito lhe sugiram. —Quantas vezes acreditam que ouvi essa brincadeira? —disse, mas não parecia muito molesta. Lenny se aproximou mais. —Sou o sargento Griffiths —se apresentou—. Farei tudo que esteja em minhas mãos para ajudá-la, é obvio. —Sua mensagem era de caráter prático, mas o tom de voz fez que parecesse uma proposição amorosa. Ela o obsequiou com um sorriso deslumbrante. —Isso me será de grande ajuda —disse. Lloyd se dirigiu a ela formalmente com seu melhor espanhol. —Me alegro muito de tê-la aqui, senhorita. —Tinha passado a maior parte dos últimos dez meses estudando o idioma—. Sou o tenente Williams. Posso lhe dizer com exatidão que membros do grupo precisam receber classes… e quais não. Lenny prosseguiu em tom displicente. —Mas o tenente tem que partir para o Bujaraloz para receber nossas ordens. —Bujaraloz era a pequena população onde as forças do governo tinham estabelecido seu quartel geral—. Talvez você e eu poderíamos ir jogar uma olhada e procurar um lugar apropriado para as classes. —Bem podia estar lhe propondo um passeio a a luz da lua. Lloyd sorriu e assentiu para mostrar sua conformidade. Não lhe importava absolutamente que Lenny flertasse com a Teresa, ele não estava de humor para romances e Lenny já parecia apaixonado. Em opinião do Lloyd, as possibilidades do Lenny eram mas bem nulas. Teresa era uma moça de vinte e cinco anos com estudos que provavelmente recebia uma dezena de proposições diariamente, enquanto que Lenny era um mineiro do carvão de dezessete anos que levava um mês inteiro sem banhar-se. Mesmo assim, não disse nada: Teresa dava a impressão de saber cuidar de si mesmo. Apareceu uma nova figura, um homem da idade do Lloyd que lhe resultava vagamente familiar. Ia melhor vestido que os soldados, com umas calças de montar de lã e uma camisa de algodão, e levava uma pistola em uma capa com botão. Tinha o cabelo tão curto que parecia haver-se rapado fazia pouco, um estilo habitual nos russos. Não passava de tenente, mas desprendia um ar de autoridade; de poder, inclusive. Falou em um alemão fluido. —Estou procurando o tenente García. —Não está aqui —respondeu Lloyd no mesmo idioma—. Do que nos conhecemos você e eu? O russo pareceu assombrado e molesto ao mesmo tempo, como quem acaba de encontrar uma serpente no esteira. —Não nos conhecemos —respondeu com firmeza—. Se confunde. Lloyd estalou os dedos. —Berlim —disse—. 1933. Atacaram-nos os camisas pardas. Uma fugaz expressão de alívio sulcou o rosto do homem, como se esperasse algo pior. —Sim, estive ali —disse—. Me chamo Vladímir Peshkov. —Mas lhe chamávamos Volodia. —Sim. —Ali, no Berlim, estava com um moço chamado Werner Franck. Por um momento, Volodia se alarmou, mas fez um esforço e dissimulou suas emoções. —Não conheço ninguém com esse nome. Lloyd decidiu não insistir. Compreendia por que Volodia estava à defensiva. Os russos temiam tanto como outros a sua polícia secreta, o NKVD, que estava atuando na Espanha e tinha fama de ser muito repressiva. Para eles, qualquer russo que mostrasse amabilidade com os estranhos podia ser um traidor. —Sou Lloyd Williams. —Recordo-lhe. —Volodia o observou com um olhar penetrante de seus olhos azuis—. Que estranho resulta que voltemos a nos encontrar aqui. —Em realidade, nem tanto —opinou Lloyd—. Lutamos contra os fascistas sempre que temos a oportunidade. —Podemos falar em privado? —É obvio. afastaram-se uns quantos metros de outros. —Há um infiltrado na seção do García —disse Peshkov. Lloyd ficou aniquilado. —Um espião? Quem? —Um alemão chamado Heinz Bauer. —Vá, é esse da camisa vermelha. É um espião? Está seguro? Peshkov não se incomodou em responder à pergunta. —Quero que o mande chamar a seu barracão, se o tiver, ou a qualquer outro lugar privado. Peshkov olhou seu relógio de pulso. —dentro de uma hora deverá levar se o uma unidade de arrestos. —Utilizo esse estábulo como despacho —disse Lloyd, assinalando-o—. Mas tenho que falar disto com minha comandante. —Sua comandante era comunista, e era pouco provável que interferisse, mas Lloyd necessitava tempo para pensar. —Como quero. —Era óbvio que a Volodia trazia sem cuidado o que opinasse o comandante do Lloyd—. Quero que se levem a espião com discrição, sem armar nenhum escândalo. Já expliquei à unidade de arrestos que é extremamente importante que atuem com tino. —expressava-se como se não estivesse seguro de que suas ordens fossem obedecer se—. Quanta menos gente saiba, melhor. —por que? —perguntou Lloyd, mas antes de que Volodia pudesse responder, deduziu a resposta—. Tem intenções de convertê-lo em um espião dobro, para que envie informação falsa ao inimigo. Mas se houver muita gente que saiba que o têm descoberto, outros espiões poderiam alertar aos rebeldes, e então não dariam crédito à informação. —É melhor não especular sobre esses temas —disse Peshkov com gravidade—. Venha, vamos a seu barracão. —Espere um momento —o atalhou Lloyd—. Como sabe que é um espião? —Não posso dizer-lhe sem pôr em perigo a segurança. —Essa explicação resulta um tanto deficiente. Peshkov parecia exasperado. Era óbvio que não estava acostumado a que lhe dissessem que suas explicações eram deficientes. O fato de que as ordens ficassem em interdição era uma das coisas que mais detestavam os russos da guerra civil espanhola. antes de que Peshkov pudesse acrescentar algo mais, outros dois homens se aproximaram do grupo que aguardava sob a árvore. Um dos recém chegados levava uma jaqueta de couro apesar da elevada temperatura. O outro, que dava a impressão de estar ao mando, era de constituição esquelética e tinha o nariz largo e o queixo afundada. Peshkov soltou uma exclamação irada. —Muito logo! —disse, e logo pronunciou algo em russo com tom indignado. O homem esquelético fez um gesto desdenhoso. Com um espanhol tosco, perguntou: —Quem é Heinz Bauer? Ninguém respondeu. O homem esquelético se limpou a ponta do nariz com a manga. Heinz fez um movimento. Não fugiu imediatamente, mas sim chocou contra o homem da jaqueta de pele e o atirou ao chão. Então pôs-se a correr; mas o homem esquelético lhe pôs a rasteira. Heinz sofreu uma boa queda e escorregou pela terra árida. ficou aturdido; tão solo foram uns instantes, mas mesmo assim duraram muito. Enquanto ficava de joelhos, os dois homens se equilibraram sobre ele e voltaram a derrubá-lo. Permaneceu imóvel. Não obstante, os homens começaram a lhe agredir. Tiraram sendos paus de madeira e, cada um por um lado, golpearam-lhe na cabeça e o corpo por turnos, levantando os braços por cima da cabeça e logo baixando-os de repente, como se interpretassem os movimentos de uma dança macabra. Ao cabo de poucos segundos o rosto do Heinz tinha ficado ensangüentado por completo. Tratou de escapar com desespero, mas quando conseguiu ficar de joelhos voltaram a derrubá-lo. Então se ovilló, choramingando. Era óbvio que estava acabado, mas os dois agressores não tinham terminado com ele. Seguiram propinándole uma porrada atrás de outro ao pobre homem. Lloyd tirou o chapéu protestando a voz em grito enquanto atirava do homem esquelético. Lenny fez o próprio com o outro indivíduo. Lloyd rodeou a sua presa fortemente com os braços e a levantou do chão; Lenny derrubou à sua. Então Lloyd ouviu a Volodia dizer em inglês: —Quietos, ou disparo! Lloyd soltou a seu homem e se deu a volta sem dar crédito ao que ouvia. Volodia tinha desencapado o revólver, um Nagant russo M1895 corrente, e o montou. —Em qualquer exército do mundo, ameaçar a um oficial com uma arma é motivo suficiente para formar um conselho de guerra —disse Lloyd—. Está em um grave apuro, Volodia. —Não seja estúpido —repôs Volodia—. Quando foi a última vez que um russo teve problemas neste exército? —Não obstante, baixou o revólver. O homem da jaqueta de couro elevou o pau como se fora a golpear ao Lenny, mas Volodia lhe gritou: —Atrás, Berezovski! E o homem obedeceu. Apareceram outros soldados, guiados pelo misterioso magnetismo que empurra aos homens a uma briga, e em questão de segundos o número deles subia a vinte. O homem esquelético assinalou ao Lloyd com o dedo. —misturou-se em assuntos que não lhe concernem! —disse em um inglês de acento muito marcado. Lloyd ajudou ao Heinz a ficar em pé. Gemia de dor e estava todo talher de sangue. —Não podem apresentar-se aqui e começar a propinar surras! —disse Lloyd ao homem esquelético—. Onde está sua autorização? —Este alemão é um espião trotskista-fascista! —soltou o homem a voz em pescoço. —Cale-se, Ilia —lhe espetou Volodia. Ilia não fez conta. —esteve fotografando documentos! —exclamou. —Onde estão as provas? —perguntou Lloyd com serenidade. Era evidente que Ilia não sabia, ou lhe trazia sem cuidado. Mas Volodia suspirou. —Registre sua esteira —disse. Lloyd assinalou com a cabeça ao Mario Rivera, um cabo. —vá comprovar o —lhe ordenou. O cabo Rivera correu para o abrigo e entrou nele. Entretanto, Lloyd tinha o terrível pressentimento de que Volodia dizia a verdade. —Embora tenha razão, Ilia, poderia ser um pouco mais cortês —disse. —Cortês? —saltou Isto Ilia é a guerra, não a cerimônia inglesa do chá. —Evitaria-lhe conflitos desnecessários. Ilia pronunciou umas palavras depreciativas em russo. Rivera saiu do abrigo com uma pequena câmara fotográfica de aspecto sofisticado e um montão de documentos oficiais. Os mostrou ao Lloyd. o de em cima de tudo era uma ordem geral do dia anterior para o desdobramento das tropas antes do iminente ataque. A folha tinha uma mancha de vinho que ao Lloyd resultava familiar, e lhe impactou descobrir que se tratava de seu próprio documento e que deviam havê-lo furtado de seu barracão. Olhou ao Heinz, e este ficou firme, fez a saudação fascista e exclamou: —Heil Hitler! Ilia adotou uma expressão triunfal. —Bem, Ilia, acaba de estragar a possibilidade de que o prisioneiro se converta em um agente dobro —disse Volodia—. Outro golpe professor do NKVD. Felicidades. —E se afastou. III Lloyd entrou em combate pela primeira vez na terça-feira 24 de agosto. Seu bando, o governo republicano eleito pelo povo, tinha oitenta mil homens. Os rebeldes antidemócratas só ascendiam na metade. O governo também contava com duzentos aviões frente aos quinze dos rebeldes. Para tirar o máximo partido para sua superioridade numérica, os republicanos avançaram com um frente amplo, formando uma linha nortesur de noventa e seis quilômetros de longitude, pelo que os rebeldes não podiam concentrar seu limitado número de homens. O plano era acertado; então, perguntou-se Lloyd dois dias mais tarde, por que não funcionava? As coisas tinham começado bastante bem. O primeiro dia, o bando republicano tinha tomado duas populações situadas ao norte de Zaragoza e duas mais situadas ao sul. O grupo do Lloyd, convocado no sul, tinha vencido uma forte resistência para ocupar uma população chamada Cotovelo. A única falha tinha tido lugar no avanço central subindo pelo vale do rio, que tinha chegado a um ponto morto no município de Fontes do Ebro. antes da batalha, Lloyd tinha medo e tinha passado a noite em branco imaginando como se desenvolveriam os acontecimentos, tal como às vezes fazia antes de um combate de boxe. Não obstante, uma vez iniciada, estava muito ocupado para preocupar-se. O pior momento foi o avanço através da maleza estéril sem mais amparo que os arbustos raquíticos, enquanto os nacionais disparavam do interior de edifícios de pedra. Mas, inclusive então, o que havia sentido não era medo a não ser uma espécie de imperiosa agudización do engenho que o impulsionava a correr em ziguezague, a arrastar-se e rodar pelo chão quando as balas passavam muito perto; e, logo, a levantar-se e pôr-se a correr, dobrar-se pela metade e avançar uns quantos quilômetros mais. O principal problema era a escassez de munições: tinham que obter proveito de cada disparo. Tomaram Cotovelo graças a sua superioridade numérica, e Lloyd, Lenny e Dave terminaram o dia ilesos. Os nacionais eram fortes e valorosos; claro que as forças republicanas também o eram. As brigadas estrangeiras estavam compostas por voluntários idealistas que tinham acudido a Espanha sabendo que talvez teriam que sacrificar sua vida. Freqüentemente os escolhiam como ponta de lança dos ataques devido a sua reputado coragem. A ofensiva começou a torcer-se durante o segundo dia. As forças do norte tinham mantido a posição, sem atrever-se a avançar devido à falta de informação sobre as defesas dos rebeldes, o qual ao Lloyd pareceu uma desculpa troca. O grupo central seguia sem poder tomar Fontes do Ebro, apesar de ter recebido reforços durante o terceiro dia, e ao Lloyd horrorizou ouvir que tinham perdido quase todos os carros de combate ante o devastador fogo defensivo. O grupo do sul, o do Lloyd, em lugar de forçar o avanço, recebeu ordens de desviar-se para a população ribeirinha de Quinto. De novo tiveram que vencer a grupos tenazes de soldados nacionais combatendo casa por casa. Quando o inimigo se rendeu, o grupo do Lloyd fez um milhar de prisioneiros. Nesse momento, Lloyd estava sentado à luz do entardecer no exterior de uma igreja destruída pelo fogo de artilharia, rodeado do pó que desprendiam os escombros das casas e dos corpos extrañamente imóveis dos mortos recentes. Um grupo de homens exaustos se reuniu em torno dele: Lenny, Dave, Joe Eli, o cabo Rivera e um galês chamado Muggsy Morgan. Na Espanha havia tantos galeses que alguém inventou uma rima burlesca que jogava com a similitude de seus nomes: Havia um soldadito chamado Price e outro soldadito chamado Price e um soldadito chamado Roberts e um soldadito chamado Roberts e outro soldadito chamado Price. Os homens fumavam em silêncio, à espera de descobrir se essa noite lhes tocaria jantar. encontravam-se muito cansados inclusive para brincar com a Teresa, que continuava ali, algo fora do habitual, posto que o transporte que devia levá-la a zona de retaguarda não apareceu. de vez em quando, ouviam uma rajada de disparos procedentes dos combates que se estavam liberando para eliminar os últimos pontos de resistência, a poucas ruas de distância. —O que ganhamos? —perguntou Lloyd ao Dave—. economizamos as munições, perdemos a muitos homens, e mesmo assim não conseguimos avançar. Pior ainda, demos tempo aos fascistas para que recebam reforços. —Eu te direi para que cojones serviu —disse Dave com seu acento do East End. Seu espírito se curtiu mais ainda que seu corpo, e havia se tornado cínico e desdenhoso—. Nossos oficiais têm mais medo dos delegados políticos que do puto inimigo. Com a menor desculpa poderiam tachar os de espiões trotskistas-fascistas e torturá-los até a morte, e por isso lhes aterra aparecer muito a cabeça. Preferem ficar sentados antes que mover-se, não farão nada por iniciativa própria, e menos assumir riscos. Aposto-me algo a que nem sequer cagam se não receberem a ordem por escrito. Lloyd se perguntou se o desrespeitoso raciocínio do Dave era acertado. Os comunistas não paravam de falar da necessidade de dispor de um exército disciplinado com uma cadeia de mando bem definida. referiam-se a um exército que acatasse as ordens dos russos, claro. Contudo, Lloyd compreendia seus motivos. Entretanto, um excesso de disciplina podia acabar com o pensamento crítico. Era isso o que não acabava de funcionar? Lloyd preferia acreditar que não. A bom seguro os socialdemócratas, os comunistas e os anarquistas eram capazes de lutar por uma causa comum sem que nenhum grupo tiranizasse a outros: todos odiavam o fascismo, e todos acreditavam em uma sociedade futura mais justa para todo mundo. perguntou-se o que pensava Lenny, mas Lenny estava sentado junto à Teresa, lhe falando em voz baixa. Algo do que lhe disse fez que ela soltasse uma risita, e Lloyd deduziu que o seu devia estar progredindo. Se conseguia que uma garota se riera, era um bom sinal. Então lhe tocou o braço, dirigiu-lhe umas palavras e se levantou. —Volta logo —disse Lenny. Ela se voltou e lhe sorriu. Que afortunado era Lenny, pensou Lloyd, mas não sentia nenhuma inveja. Não lhe atraíam os romances passageiros; não lhes via a graça. Supunha que ele era um homem dos de tudo ou nada. A única moça a quem tinha amado de verdade era Daisy, por então esposa do Boy Fitzherbert, e Lloyd ainda não tinha conhecido a outra moça que ocupasse esse lugar em seu coração. Algum dia a conheceria, estava seguro; mas, enquanto isso, não lhe seduziam as substitutas temporárias, embora fossem tão fascinantes como Teresa. —Aí estão os russos —disse alguém. Quem tinha falado era Jasper Johnson, um eletricista de raça negra procedente de Chicago. Lloyd levantou a cabeça e viu aproximadamente a uma dezena de assessores militares que atravessavam a população como se fossem conquistadores. Os russos se distinguiam por suas jaquetas de couro e suas capas de pistola abotoadas. —Que estranho, não os vi enquanto lutávamos —prosseguiu Jasper com ironia—. Deviam estar em outra zona do campo de batalha. Lloyd olhou ao redor para assegurar-se de que não havia perto nenhum delegado político que pudesse ouvir o bate-papo subversivo. Quando os russos cruzaram o cemitério da igreja em ruínas, Lloyd divisou a Ilia Dvorkin, o matreiro agente da polícia secreta com quem tinha discutido fazia uma semana. O russo se topou com a Teresa e se deteve falar com ela. Lloyd ouviu que lhe dizia algo sobre o jantar com seu pobre espanhol. Lhe respondeu, ele voltou a lhe falar e ela negou com a cabeça, obviamente recusando sua proposição. voltou-se para seguir seu caminho, mas ele a agarrou por braço e a reteve. Lloyd viu endireitar-se ao Lenny, atento à imagem das duas figuras enquadradas por um arco de pedra que tinha deixado de servir de entrada. —Mierda —exclamou Lloyd. Teresa tratou de afastar-se de novo, mas Ilia pareceu agarrá-la com mais força. Lenny se dispôs a ficar em pé, mas Lloyd lhe posou a mão no ombro e o manteve sentado. —Deixa que me eu ocupe —disse. Dave murmurou uma advertência. —Cuidado, companheiro; é do NKVD. Mais vale não mesclar-se com esses putos malnacidos. Lloyd se aproximou da Teresa e Ilia. O russo o viu e lhe disse em espanhol: —Perca-se. —Olá, Teresa —saudou Lloyd. —me posso arrumar isso sozinha, não se preocupe —respondeu ela. Ilia olhou ao Lloyd com maior atenção. —Eu o conheço —disse—. A semana passada quis me impedir que detivera um perigoso espião trotskista-fascista. —E esta jovem também é uma perigosa espião trotskista-fascista? —espetou-lhe Lloyd—. Me pareceu ouvir que a convidava para jantar. Então apareceu Berezovski, o adlátere da Ilia, e se situou perigosamente perto do Lloyd. Com a extremidade do olho, Lloyd observou que Dave extraía a Luger de sua capa. A situação começava a sair-se de mãe. —vim a lhe dizer, senhorita, que o coronel Bobrov quer que acuda imediatamente a seu quartel. Por favor, me siga e eu a acompanharei até ali —disse Lloyd. Bobrov era um assessor militar russo de alta fila. Não tinha feito chamar a Teresa, mas a história era verossímil, Ilia não sabia que se tratava de uma mentira. Transcorreram uns instantes de desconcerto nos que Lloyd não sabia o que ia ocorrer. Então se ouviu um disparo próximo, talvez procedente da rua contigüa, que pareceu devolver aos russos à realidade. Teresa se separou da Ilia de novo, e essa vez a deixou ir. Ilia assinalou ao Lloyd com gesto pugnaz. —Veremo-nos as caras —disse, e se afastou com um gesto teatral. Berezovski o seguiu com atitude servil. —Maldito imbecil —espetou Dave. Ilia fingiu não havê-lo ouvido. Todos se sentaram. —Procuraste-te um inimigo perigoso, Lloyd —disse Dave. —Não tinha muitas opções. —Seja como for, a partir de agora te guarde as costas. —Só foi uma disputa por uma garota —disse Lloyd lhe tirando importância—. Ocorre milhares de vezes diariamente. Ao cair a noite, uma campainha os convocou à cozinha de campanha. Lloyd recebeu uma terrina de carne guisado atalho muito fino, um pedaço de pão duro e um grande copo de vinho tinjo tão forte que teve a impressão de que lhe ia corroer o esmalte dos dentes. Molhou o pão no vinho, o qual melhorou o sabor de ambas coisas. Quando se teve terminado a comida, seguia tendo fome, como de costume. —Darão-nos uma boa taça de chá, verdade? —perguntou. —Claro —respondeu Lenny—. Dois torrões de açúcar para mim, por favor. Desenrolaram as magras mantas e se prepararam para dormir. Lloyd foi procurar uma letrina, mas não encontrou nenhuma e urinou em um pequeno horta aos subúrbios da população. Havia quase lua enche, e pôde observar as poeirentas folhas dos olivos que tinham sobrevivido ao fogo de artilharia. Enquanto se abotoava a braguilha ouviu passos. voltou-se devagar; muito devagar. Para quando viu o rosto da Ilia, o pau estava a ponto de lhe golpear a cabeça. Notou uma dor atroz e caiu ao chão. Médio enjoado, olhou para cima. Berezovski o apontava à cabeça com um revólver de canhão curto. Ilia, apostado a seu lado, disse: —Não se mova ou é homem morto. Lloyd estava apavorado. Sacudiu a cabeça com força para esclarecê-las idéias. Que situação tão absurda. —Morto? —perguntou com incredulidade—. E como justificarão o assassinato de um tenente? —Assassinato? —disse Ilia, e sorriu—. Isto é o fronte. Alcançou-lhe uma bala perdida. —O seguinte o disse em inglês—. Golpes do azar. Lloyd reconheceu com desesperança que Ilia tinha razão. Quando encontrassem seu cadáver, pareceria que tivesse perdido a vida na batalha. Miúda forma de morrer. Ilia se dirigiu ao Berezovski. —Acaba com ele. ouviu-se um disparo. Lloyd não notou nada. Era isso a morte? Então Berezovski se derrubou e caiu ao chão. Ao mesmo tempo, Lloyd se deu conta de que o disparo procedia de detrás e se voltou com incredulidade. À luz da lua viu o Dave empunhando a Luger roubada, e o invadiu uma grande sensação de alívio, como se fora um maremoto. Estava vivo! Também Ilia tinha visto o Dave, e pôs-se a correr como um coelho assustado. Dave o seguiu com a arma uns segundos, e Lloyd desejou que disparasse, mas Ilia, frenético, começou a brincar de correr entre os olivos como um rato em um labirinto até que desapareceu na escuridão. Dave baixou a pistola. Lloyd olhou ao Berezovski. Não respirava. —Obrigado, Dave —disse. —Já te havia dito que te guardasse as costas. —Por sorte, guardaste-me isso você. Lástima que não tenha podido acabar também com a Ilia. Agora o NKVD irá por ti. —Pergunto-me se Ilia quererá que a gente saiba que seu cupincha perdeu a vida por sua culpa, por havê-lo metido em uma briga por uma mulher —disse Dave—. Até o NKVD tem medo do NKVD. Parece-me que preferirá mantê-lo em segredo. Lloyd voltou a olhar o cadáver. —Como explicaremos isto? —Já ouviste esse tipo —respondeu Isto Dave é o fronte. Não há nada que explicar. Lloyd assentiu. Dave e Ilia tinham razão. Ninguém perguntaria como tinha morrido Berezovski. Tinha-o alcançado uma bala perdida. Deixaram o cadáver onde estava e se afastaram. —Golpes do azar —disse Dave. IV Lloyd e Lenny falaram com o coronel Bobrov e se queixaram de que o ataque a Zaragoza tinha chegado a um ponto morto. Bobrov era um russo maior que eles, com o cabelo grisalho quase ao corte de barba, estava a ponto de aposentar-se e era extremamente ortodoxo. Em teoria, solo estava ali para ajudar e aconselhar aos mandos espanhóis. Na prática, os russos eram quem tinha a última palavra. —Estamos perdendo tempo e energias nestas populações pequenas —disse Lloyd, traduzindo ao alemão o que opinavam Lenny e os homens experimentados—. Se supõe que os tanques são punhos blindados que devem utilizar-se para a incursão profunda, para penetrar bem em território inimigo. A infantaria deve ir detrás para limpar o terreno e afiançar a operação uma vez que se conseguiu dispersar ao inimigo. Volodia se apostava perto, escutando, e por sua expressão parecia estar de acordo embora não dissesse nada. —Os pequenos pontos fortificados como este pueblucho de má morte não devem atrasar o avanço mas sim devemos rodeá-los e deixar que as forças de segunda linha ocupem-se deles —terminou Lloyd. Bobrov parecia escandalizado. —Essa é a teoria do desacreditado marechal Tuchachevski! —espetou em voz muito baixa. Era como se Lloyd tivesse pedido a um bispo que rezasse a Buda. —E o que? —perguntou Lloyd. —Confessou que era um traidor e um espião, e o executaram. Lloyd ficou olhando-o sem dar crédito. —Está-me dizendo que o governo da Espanha não pode utilizar as modernas táticas dos tanques porque em Moscou purgaram a um general? —Tenente Williams, está-me faltando ao respeito. —Embora os cargos contra Tuchachevski sejam certos, isso não implica que seus métodos não funcionem —repôs Lloyd. —Já está bem! —rugiu Bobrov—. Esta conversação terminou. Se Lloyd ainda albergava alguma esperança, deveu desvanecer-se quando fizeram retroceder a seu batalhão desde Quinto em outra manobra indireta. Em 1 de setembro participaram da ofensiva do Belchite, uma pequena população com boas defesas mas sem nenhum valor estratégico, situada a quarenta quilômetros de distância de seu objetivo. A batalha também foi dura. Uns sete mil soldados do bando nacional se encontravam bem parapetados em São Agustín, a maior igreja da localidade, e em uma cúpula próxima, com trincheiras e albarradas. Lloyd e sua seção alcançaram as imediações da cidade sem ter sofrido baixas, mas então foram atacados com uma violenta rajada de disparos procedentes das janelas e os telhados. Ao cabo de seis dias seguiam ali. Os cadáveres exalavam um aroma fétido sob o calor. além de pessoas, também havia animais mortos, pois o fornecimento de água estava talhada e o gado morria de sede. Sempre que podiam, os engenheiros empilhavam os cadáveres, orvalhavam-nos com gasolina e lhes prendiam fogo; mas o aroma dos corpos humanos abrasando-se era pior que o fedor da decomposição. Custava respirar, e alguns homens levavam posta a máscara antigás. Os becos que rodeavam a igreja eram campos de extermínio. Não obstante, Lloyd ideou uma maneira de avançar sem sair ao exterior. Lenny tinha encontrado umas ferramentas em uma oficina e dois homens se encontravam abrindo um buraco na parede da casa onde se refugiavam. Joe Eli utilizava um pico, e o suor perlaba seu cocuruto calva. O cabo Rivera, que levava uma camisa de raias vermelhas e negras, as cores dos anarquistas, empunhava um maço. A parede estava construída com os magros tijolos cor ocre próprios do lugar, fixados de forma precária com argamassa. Lenny dirigia a operação para assegurar-se de que não derrubassem a casa inteira: como era mineiro, tinha certa intuição a respeito da resistência de um teto. Quando a abertura foi o bastante grande para que um homem pudesse passar por ela, Lenny fez um sinal com a cabeça ao Jasper, outro cabo. Jasper tomou uma de as poucas amadurecidas que ficavam na cartucheira, atirou da argola e a jogou contra a casa vizinha para evitar uma possível emboscada. Assim que explorou, Lloyd penetrou pelo buraco com o fuzil a ponto. encontrou-se em outra humilde morada espanhola, com as paredes caiadas e o chão de terra compactada. Dentro não havia ninguém, nem vivo nem morto. Os trinta e cinco homens que formavam sua seção o seguiram através da abertura e registraram o lugar a toda pressa para fazer sair aos possíveis inimigos. A casa era pequena e estava deserta. Dessa forma, avançaram devagar mas seguros por uma série de casas em direção à igreja. Estavam começando a abrir a seguinte brecha mas, antes de obtê-lo, um comandante chamado Márquez que tinha seguido seu mesmo percorrido através das aberturas nas paredes das casas os obrigou a deter-se. —Esqueçam-se disso —disse em inglês com acento espanhol—. vamos assaltar a igreja. Lloyd ficou gelado. Aquilo era um suicídio. —foi idéia do coronel Bobrov? —perguntou. —Sim —respondeu o comandante Márquez sem pronunciar-se ao respeito—. Aguardem o sinal: três toques fortes de apito. —Podem nos trazer mais munição? —perguntou Lloyd—. Não temos suficiente, e menos para uma ação semelhante. —Não há tempo —disse o comandante, e partiu. Lloyd estava horrorizado. Nos poucos dias transcorridos desde que tinha entrado em combate tinha aprendido muitas coisas, e sabia que a única forma de assaltar uma posição bem defendida era com a ajuda de uma cortina de fogo de contenção. De outro modo, os defensores acabariam acribillándolos. Entre os homens se respirava um ambiente de rebelião. —É impossível —sentenciou o cabo Rivera. Lloyd era o responsável por lhes manter a moral alta. —Nada de queixa, moços —disse em tom jovial—. Todos são voluntários. Acaso acreditavam que a guerra não era perigosa? Se fosse algo seguro, suas irmãs poderiam ocupar seu lugar. Todos se puseram-se a rir, e a sensação de perigo passou, no momento. Lloyd avançou para a parte dianteira da casa, abriu um pouco a porta e apareceu a cabeça pela fresta. O sol caía implacável sobre o estreito beco bordeado de casas e estabelecimentos comerciais. Os edifícios e o estou acostumado a apresentavam a mesma cor pálida do pão sem terminar de cozer, à exceção das zonas onde a artilharia tinha aberto brechas que revelavam a cor vermelha da terra. Justo ao outro lado da porta jazia um miliciano morto e uma nuvem de moscas se estavam dando um festim no buraco de bala de seu peito. Ao olhar para a praça, Lloyd viu que a rua se alargava perto da igreja. Os homens armados das altas torres as gema gozavam de uma boa visão, pelo que lhes custaria pouco disparar a qualquer que se aproximasse. No estou acostumado a havia poucas coisas que oferecessem amparo: uns quantos escombros, um cavalo morto e um carrinho de mão. Morreremos todos, pensou. Mas, se não, para que viemos aqui? voltou-se para seus homens, perguntando-se o que podia lhes dizer. Tinha que obter que seguissem pensando em positivo. —Avancem pegos aos laterais da rua, perto das casas —lhes aconselhou—. Recorde que quanto mais lentos sejam, mais tempo estarão em perigo; assim esperem para ouvir o apito e lhes jogue a correr a tudo leite. Os três toques estridentes do apito do comandante Márquez soaram antes do esperado. —Lenny, você sairá o último —disse. —Quem irá o primeiro? —perguntou Lenny. —Eu, é obvio. Adeus, mundo —pensou Lloyd—. Ao menos morrerei combatendo aos fascistas. Abriu a porta de tudo. —Vamos! —gritou, e pôs-se a correr. O efeito surpresa lhe concedeu uns segundos de graça e pôde correr sem obstáculos pela rua em direção à igreja. Notava no rosto a queimação do sol de meio-dia e ouvia detrás de si as pisadas das botas de seus homens; e, com um estranho sentimento de gratidão, reparou em que essas sensações significavam que seguia com vida. Então o fogo estalou como uma chuva de granizo. Durante uns instantes mais seguiu correndo enquanto ouvia os assobios e os estalos das balas; até que, de repente, notou uma sensação no braço esquerdo, como se tivesse recebido o impacto de algo e, sem razão aparente, caiu ao chão. deu-se conta de que estava ferido. Não sentia dor, mas tinha o braço intumescido e sem força. Conseguiu rodar pelo chão até topar com a parede do edifício mais próximo. Os disparos continuavam sulcando o ar, e se sentia tremendamente vulnerável, mas a pouca distância viu um cadáver. Era um soldado nacional, apoiado na casa. Dava a impressão de haver ficado dormido sentado no chão, com as costas contra a parede; solo que tinha uma ferida de bala no pescoço. Lloyd avançou serpenteando, com movimentos estranhos, sustentando o fuzil com a mão direita e arrastando o braço esquerdo detrás de si. Logo se escondeu detrás do cadáver e tratou de encolher-se. Apoiou o canhão de seu fuzil no ombro do soldado morto e apontou a uma janela alta da torre da igreja. Disparou os cinco projéteis da antecâmara um depois de outro. Não sabia se tinha ferido a alguém ou não. voltou-se a olhar atrás. Horrorizado, observou a rua atapetada com os cadáveres dos homens de sua seção. O corpo imóvel do Mario Rivera com sua camisa vermelha e negra parecia uma bandeira anarquista enrugada. junto ao Mario jazia Jasper Johnson, com os cachos negros talheres de sangue. Tantas horas de viagem desde uma fábrica de Chicago para acabar morrendo em uma rua de uma pequena população espanhola, pensou Lloyd, e tudo porque acreditava em um mundo melhor. Pior era contemplar aos que ainda viviam, tendidos no estou acostumado a gritando e queixando. Em algum lugar havia um homem agonizando, mas Lloyd não podia ver onde estava nem quem era. uns quantos homens seguiam correndo, mas, enquanto os olhava, alguns mais caíram e outros se jogaram no chão. Ao cabo de uns segundos não movia-se ninguém à exceção dos feridos que se retorciam de dor. Miúda matança, pensou, e uma mescla de ira e pesar subiu desde suas vísceras e se obstruiu em sua garganta. Onde estavam as outras unidades? Não era possível que a seção do Lloyd fora a única implicada na ofensiva, verdade? Talvez outros tinham avançado por ruas paralelas que desembocavam na praça. Uma operação de assalto requeria uma superioridade numérica entristecedora. Lloyd e seus trinta e cinco homens eram a todas luzes insuficientes. Os fascistas os tinham matado ou ferido a virtualmente todos, e os poucos membros da seção do Lloyd que seguiam em pé se haviam visto obrigados a resguardar-se antes de alcançar a igreja. Cruzou um olhar com o Lenny, que aparecia por detrás do cavalo morto. Ao menos ele seguia vivo. Lenny levantou o fuzil e fez um gesto de impotência, como dizendo não tenho munições. Lloyd tampouco as tinha. Ao cabo de um minuto, os disparos procedentes da rua cessaram quando também outros ficaram sem balas. Adeus ao assalto à igreja. De todos os modos, era uma missão impossível; e sem munições teria resultado um suicídio em vão. A chuva de disparos procedentes da igreja tinha amainado detrás eliminar aos brancos mais fáceis; mesmo assim, de vez em quando se produzia algum dirigido a quem permanecia a resguardo. Lloyd se deu conta de que todos seus homens acabariam mortos. Tinham que retirar-se. Embora, provavelmente, também os matariam enquanto se replegaban. Voltou a cruzar um olhar com o Lenny e fez um gesto enérgico para trás, em direção oposta à igreja. Lenny olhou ao redor e repetiu o sinal aos poucos que ficavam vivos. Teriam mais possibilidades de salvar-se se se moviam todos de uma vez. Quando já tinham advertido ao máximo número possível de homens, Lloyd se esforçou por ficar em pé. —Retirada! —gritou a todo pulmão. Então pôs-se a correr. Não havia mais de duzentos metros, mas lhe desejou muito o trajeto mais comprido de sua vida. Os rebeldes abriram fogo da igreja assim que viram mover-se às tropas republicanas. Com a extremidade do olho, Lloyd acreditou ver cinco ou seis de seus homens batendo-se em retirada. Correu dando pernadas irregulares já que o braço ferido o desequilibrava. Lenny ia diante dele e, ao parecer, estava ileso. As balas batiam as fachadas dos edifícios frente aos que Lloyd passava cambaleando-se. Lenny chegou à casa da que tinham saído, entrou a toda pressa e abriu a porta. Lloyd a cruzou resfolegando e se deixou cair no chão. Detrás entraram três homens mais. Lloyd ficou olhando aos superviventes: Lenny, Dave, Muggsy Morgan e Joe Eli. —Estamos todos? —perguntou. —Sim —respondeu Lenny. —Céu santo. Conseguimos sair cinco; cinco de trinta e seis. —Que grande assessor militar é o coronel Bobrov. ficaram em pé entre ofegos, lutando por recuperar o fôlego. Lloyd recuperou a sensibilidade do braço; a dor era insuportável. Sentiu que apesar de tudo podia movê-lo, assim que talvez não o deixasse quebrado. Baixou o olhar e viu que tinha a manga empapada em sangue. Dave se tirou o lenço de seda vermelho e com ele improvisou um tipóia. Ao Lenny o tinham ferido na cabeça. Tinha o rosto ensangüentado mas disse que não era mais que um arranhão, e tinha bom aspecto. Milagrosamente, Dave, Muggsy e Joe tinham resultado ilesos. —Será melhor que retornemos a por novas ordens —disse Lloyd quando levavam uns quantos minutos tombados—. De todos os modos, sem munição não podemos levar a cabo nenhuma ação. —O que lhes parece se antes tomamos uma boa taça de chá? —brincou Lenny. —Não podemos, não temos colherinhas —disse Lloyd. —Ah, de acordo. —Não podemos descansar um momento mais? —perguntou Dave. —Já descansaremos na retaguarda —respondeu Lloyd—. É mais seguro. Desfizeram o caminho através da série de casas, penetrando pelas brechas que tinham aberto nas paredes. Lloyd estava enjoado de tanto agachar-se. perguntou-se se a perda de sangue o teria debilitado. Saíram ao exterior longe da igreja de São Agustín, onde não podiam vê-los, e avançaram a toda pressa por uma rua lateral. O alívio que Lloyd sentia ao seguir vivo estava dando aconteço rapidamente à fúria pela absurda perda das vidas de seus homens. Chegaram ao estábulo dos subúrbios da população que as forças do governo tinham convertido em seu quartel. Lloyd viu a comandante Márquez detrás de uma pilha de caixas de embalar, repartindo munições. —por que não havia para nós? —perguntou, furioso. Márquez se encolheu de ombros. —Comunicarei- o que aconteceu ao Bobrov —disse Lloyd. O coronel Bobrov se encontrava na porta do estábulo, sentado em uma cadeira frente a uma mesa. Os dois móveis pareciam ter sido roubados de alguma casa. Tinha o rosto avermelhado, queimado pelo sol. Estava falando com a Volodia Peshkov. Lloyd foi direto para eles. —assaltamos a igreja, mas não recebemos apoio —disse—. E nos ficamos sem munições porque Márquez se negou a nos abastecer! Bobrov olhou ao Lloyd com frieza. —O que está fazendo aqui? —espetou-lhe. Lloyd ficou perplexo. Esperava que Bobrov o felicitasse pelo audaz esforço e que, ao menos, mostrasse-lhe sua empatia pela desamparo. —Já o hei dito —repôs ele—. Não recebemos apoio. Não pode assaltar um edifício fortificado com tão solo uma seção. Fizemos tudo que pudemos, mas nos aniquilaram. perdi a trinta e um de meus trinta e cinco homens. —Assinalou a seus quatro Isto companheiros é tudo o que fica de minha seção! —Quem lhes ordenou que se retirassem? Lloyd fazia esforços para não enjoar-se. Sentia que estava a ponto de perder o conhecimento, mas tinha que lhe explicar ao Bobrov com que coragem tinham lutado seus homens. —viemos por novas ordens. Que outra coisa podíamos fazer? —Teriam que ter seguido lutando enquanto ficasse um homem em pé. —E com o que tínhamos que lutar? Não ficavam balas! —Silêncio! —rugiu Bobrov—. Firmes! Imediatamente, todos se quadraram. Lloyd, Lenny, Dave, Muggsy e Joe formaram em linha. Lloyd temia deprimir-se de um momento a outro. —Meia volta! Todos se voltaram de costas. E agora, o que?, pensou Lloyd. —Os feridos, rompam filas. Lloyd e Lenny deram um passo atrás. —Os feridos leves serão transladados ao serviço de escolta de prisioneiros. Lloyd imaginou vagamente que lhe tocaria vigiar a prisioneiros de guerra em um trem com destino a Barcelona. cambaleou-se sem chegar a cair. Nesses momentos não seria capaz nem de vigiar um rebanho de ovelhas, pensou. —Retirar-se quando um se encontra sob o fogo inimigo sem ter recebido ordens é desertar. Lloyd se deu a volta e olhou ao Bobrov. Detento do horror e a estupefação, viu que tinha tirado o revólver de sua capa com botão. Bobrov deu um passo adiante, de modo que se situou justo detrás dos três homens que permaneciam firmes. —Os três são culpados e são condenados a pena de morte. —Levantou a pistola até que o canhão esteve a sete centímetros e meio da parte posterior da cabeça do Dave. Então disparou. ouviu-se um estampido. Na cabeça do Dave apareceu um buraco de bala e sua frente explorou em uma massa de sangue e miolos. Lloyd não dava crédito ao que estava presenciando. junto ao Dave, Muggsy se dispôs a voltar-se com a boca aberta para gritar; mas Bobrov foi mais rápido. Situou a pistola contra o pescoço do Muggsy e disparou de novo. A bala penetrou por detrás da orelha direita e saiu pelo olho esquerdo, e Muggsy se derrubou. Ao final Lloyd recuperou a voz, e gritou: —Não! Joe Eli se deu meia volta, bramando de estupor e fúria, e levantou as mãos para aferrar ao Bobrov. produziu-se um novo disparo e Joe recebeu um balaço na garganta. O sangue brotava do pescoço como de um manancial e salpicou o uniforme do Exército Vermelho do Bobrov, o qual provocou que o coronel retrocedesse de um salto, amaldiçoando. Joe caiu ao chão mas não morreu imediatamente. Lloyd observou, impotente, como o sangue emanava da artéria carótida do Joe e tingia a ressecada terra espanhola. Dava a impressão de que Joe queria falar, mas não conseguiu pronunciar palavra; e então seus olhos se fecharam e o abandonaram as forças. —Não há clemência para os covardes —disse Bobrov, e se afastou. Lloyd contemplou ao Dave tendido no chão: magro, imundo, valente como um leão, com dezesseis anos e morto. Não o tinham matado os fascistas a não ser um oficial soviético estúpido e sanguinário. Que perda tão absurda, pensou Lloyd, e lhe arrasaram os olhos em lágrimas. Um sargento saiu correndo do estábulo. —renderam-se! —gritou com alegria—. A cidade capitulou; içaram a bandeira branca. tomamos Belchite! Ao final o enjôo venceu ao Lloyd, e se deprimiu. V O clima em Londres era frio e úmido. Lloyd percorreu Nutley Street sob a chuva, em direção a casa de sua mãe. Ainda luzia a jaqueta com cremalheira e os calças de veludo cotelê que constituíam o uniforme do exército espanhol, e umas botas sem meias três-quartos. Levava uma pequena mochila que continha a muda limpa, uma camisa e uma taça de lata. Ao redor do pescoço levava o lenço de seda vermelho que Dave tinha convertido em um tipóia improvisado para seu braço ferido. O braço seguia lhe doendo, mas já não necessitava o tipóia. Era um entardecer de outubro. Tal como esperava, tinham-no subido a um trem de abastecimento com rumo a Barcelona, lotado de prisioneiros rebeldes. O trajeto não devia ser de mais de cento cinqüenta quilômetros, mas tinham demorado três dias em percorrê-lo. Em Barcelona, tinham-no separado do Lenny e perderam o contato. Logo obteve que o recolhesse um caminhão que se dirigia para o norte. Depois de apear-se, caminhou, fez carona e viajou de vagões de trem cheios de carvão, de cascalho e, em uma afortunada ocasião, de caixas de vinho. Cruzou a fronteira da França às escondidas, de noite. Tinha dormido ao raso, mendigado comida e realizado todo tipo de tarefas em troca de umas poucas moedas; e durante duas semanas teve a sorte de trabalhar de vendimiador em uma vinha do Burdeos, o que lhe permitiu economizar o dinheiro necessário para cruzar o canal da Mancha em navio. Agora estava em casa. Aspirou o aroma da fuligem e a umidade do Aldgate como se fora perfume. deteve-se frente à grade do jardim e observou a casa onde tinha nascido mais de vinte e dois anos atrás. A luz brilhava depois das janelas açoitadas pela chuva: havia alguém em casa. dirigiu-se à porta principal. Ainda tinha a chave, guardava-a junto com o passaporte. Entrou. Deixou a mochila no chão do saguão, junto ao cabide para chapéus. Ouviu uma voz procedente da cozinha. —Quem é? —Era seu padrasto, Bernie. Lloyd descobriu que se ficou sem fala. Bernie saiu ao saguão. —Quem…? —Então reconheceu ao Lloyd—. me Valha Deus! —exclamou—. É você. —Olá, papai —o saudou Lloyd. —meu filho —disse Bernie, e lhe deu um forte abraço—. Está vivo. —Lloyd notou o tremor de seus soluços. Ao cabo de um minuto, Bernie se esfregou os olhos com a manga da jaqueta de ponto e se dirigiu ao pé das escadas. —Eth! —gritou. —O que? —Tem visita. —Um momento. Baixou ao cabo de uns segundos embelezada com um vestido azul, tão bonita como sempre. A metade das escadas, reparou no rosto do Lloyd e empalideceu. —OH, Duw —disse—. Lloyd… —Baixou correndo o resto dos degraus e jogou os braços ao pescoço—. Está vivo! —exclamou. —Escrevi-te de Barcelona… —Não recebi essa carta. —Assim, não sabe… —O que? —Que Dave Williams morreu. —OH, não! —Mataram-no na batalha do Belchite. —Lloyd tinha decidido não contar a verdade a respeito da forma em que Dave tinha morrido. —E Lenny Griffiths? —Não sei. Perdemos o contato. Esperava que tivesse retornado a casa antes que eu. —Não, não sabem nada dele. —Que tal vão as coisas por ali? —perguntou Bernie. —Os fascistas estão ganhando. E a culpa é sobre tudo dos comunistas, que estão mais interessados em combater aos outros grupos de esquerdas. Bernie ficou horrorizado. —Não pode ser. —É certo. Se algo aprendi na Espanha é que temos que combater aos comunistas tanto como aos fascistas. São perversos, os uns e os outros. Sua mãe lançou um sorriso irônico. —Não sei por que, já me imaginava. —Lloyd se deu conta de que fazia muito tempo que o suspeitava. —Basta de política —disse ele—. Como está, mamãe? —Ah, igual a sempre. Mas e você? te olhe, está nos ossos! —Na Espanha não havia grande coisa para comer. —vou preparar te algo. —Não há pressa. Levo doze meses passando fome; poderei resisti-lo uns minutos mais. Mas te direi o que gosta de muito. —O que? Pede o que seja! —eu adoraria que me preparasse uma boa taça de chá. 5 1939 I Thomas Macke vigiava a embaixada soviética no Berlim quando Volodia Peshkov saiu dela. A polícia secreta prusiana se transformou na nova e mais eficiente Gestapo fazia seis anos, mas o delegado Macke continuava ao cargo da seção que seguia o rastro a traidores e subversivos na cidade do Berlim. Deles, os mais perigosos sem dúvida estavam recebendo ordens desde aquele edifício situado nos números 63-65 do Unter dêem Confinem. Por isso Macke e seus homens vigiavam a tudo o que entrava e saía dele. A embaixada era uma fortaleza art déco de pedra branca que refletia a luz cegadora do sol de agosto. Uma lanterna sustentada em colunas se erigia atenta sobre a edificação central, e nas asas que se estendiam a ambos os lados havia fileiras de janelas altas e estreitas, como soldados de ornamento em posição de firmes. Macke estava sentado frente a ele, na terraço de uma cafeteria. Pela avenida mais elegante do Berlim transitava um sem-fim de carros e bicicletas; as mulheres foram às compras embelezadas com vestidos e chapéus veraniegos; os homens caminhavam com passo enérgico com trajes ou elegantes uniformize. Resultava difícil acreditar que ainda houvesse comunistas alemães. Como podia ninguém opor-se aos nazistas? Alemanha estava transformada. Hitler tinha erradicado o desemprego, algo que nenhum outro dirigente europeu tinha conseguido fazer. As greves e as manifestações não eram a não ser uma lembrança longínqua dos maus tempos, já passados. A polícia gozava de eficazes competências para sufocar a criminalidade. O país prosperava; muitas famílias dispunham já de uma rádio e logo teriam carros do povo com os que viajar pelas novas auto-estradas. E isso não era tudo. Alemanha voltava a ser forte. O exército estava bem armado e era poderoso. Nos dois anos anteriores, tanto Austria como Checoslovaquia haviam sido anexados pela Grande a Alemanha, que era já a potência dominante da Europa.

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A Itália do Mussolini se aliou com a Alemanha mediante o Pacto de Aço. Esse mesmo ano, Madrid tinha cansado finalmente em mãos dos rebeldes de Franco, e Espanha tinha agora um governo afim ao fascismo. Como podia nenhum alemão desejar a reversão de todo isso e colocar o país sob o punho dos bolcheviques? A olhos do Macke, quem o fazia eram escória, imundície, insetos que terei que procurar de forma implacável e aniquilar. Enquanto pensava neles, sua cara se contraiu em um gesto carrancudo e furioso, e repicou com o pé sobre a calçada como preparando-se para pisotear a um comunista. Então viu o Peshkov. Era um homem jovem, embelezado com um traje de sarja azul e com um casaco ligeiro pendurado do braço, como em previsão de que o tempo fosse trocar. em que pese a ir vestido de civil, o cabelo talhado ao corte de barba e o brio de seus andar evocavam ao exército, e o modo em que escrutinou a rua, com um gesto falsamente despreocupado mas minucioso, fazia pensar nos serviços secretos do Exército Vermelho ou no NKVD, a polícia secreta russa. Ao Macke lhe acelerou o pulso.

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Obviamente, seus homens e ele conheciam de vista a todos os empregados da embaixada. As fotografias de seus passaportes estavam arquivadas, e a equipe as examinava a todas as horas. Mas ele não sabia muito a respeito do Peshkov. Recordava ter lido em seu expediente que tinha uns vinte e cinco anos, de modo que devia ser um ajudante irrelevante. Ou talvez lhe dava bem fingir que o era. Peshkov cruzou Unter dêem Confinem e caminhou para onde se encontrava Macke, perto da esquina com o Friedrichstrasse. Enquanto se aproximava dele, Macke observou que o russo era bastante alto e de compleição atlética. Tinha um ar vivaz e olhar intenso. Macke voltou a cara, repentinamente nervoso. Tomou a taça e sorveu os sedimentos frios do café, tampando-se parcialmente a cara com ela. Não queria encontrar-se com aqueles olhos azuis. Peshkov dobrou pelo Friedrichstrasse. Macke fez um gesto afirmativo em direção ao Reinhold Wagner, que estava apostado na esquina de em frente, e Wagner seguiu ao Peshkov. Continuando, Macke ficou em pé e seguiu ao Wagner. Não todos os agentes dos serviços secretos do Exército Vermelho eram espiões ao uso, claro está. Conseguiam a maior parte da informação por meios legítimos, em particular...

 

 

                                                                                                    

 

 

 

                                       

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