A Itália do Mussolini se aliou com a Alemanha mediante o Pacto de Aço. Esse mesmo ano, Madrid tinha cansado finalmente em mãos dos rebeldes de Franco, e Espanha tinha agora um governo afim ao fascismo. Como podia nenhum alemão desejar a reversão de todo isso e colocar o país sob o punho dos bolcheviques? A olhos do Macke, quem o fazia eram escória, imundície, insetos que terei que procurar de forma implacável e aniquilar. Enquanto pensava neles, sua cara se contraiu em um gesto carrancudo e furioso, e repicou com o pé sobre a calçada como preparando-se para pisotear a um comunista. Então viu o Peshkov. Era um homem jovem, embelezado com um traje de sarja azul e com um casaco ligeiro pendurado do braço, como em previsão de que o tempo fosse trocar. em que pese a ir vestido de civil, o cabelo talhado ao corte de barba e o brio de seus andar evocavam ao exército, e o modo em que escrutinou a rua, com um gesto falsamente despreocupado mas minucioso, fazia pensar nos serviços secretos do Exército Vermelho ou no NKVD, a polícia secreta russa. Ao Macke lhe acelerou o pulso.
......
Obviamente, seus homens e ele conheciam de vista a todos os empregados da embaixada. As fotografias de seus passaportes estavam arquivadas, e a equipe as examinava a todas as horas. Mas ele não sabia muito a respeito do Peshkov. Recordava ter lido em seu expediente que tinha uns vinte e cinco anos, de modo que devia ser um ajudante irrelevante. Ou talvez lhe dava bem fingir que o era. Peshkov cruzou Unter dêem Confinem e caminhou para onde se encontrava Macke, perto da esquina com o Friedrichstrasse. Enquanto se aproximava dele, Macke observou que o russo era bastante alto e de compleição atlética. Tinha um ar vivaz e olhar intenso. Macke voltou a cara, repentinamente nervoso. Tomou a taça e sorveu os sedimentos frios do café, tampando-se parcialmente a cara com ela. Não queria encontrar-se com aqueles olhos azuis. Peshkov dobrou pelo Friedrichstrasse. Macke fez um gesto afirmativo em direção ao Reinhold Wagner, que estava apostado na esquina de em frente, e Wagner seguiu ao Peshkov. Continuando, Macke ficou em pé e seguiu ao Wagner. Não todos os agentes dos serviços secretos do Exército Vermelho eram espiões ao uso, claro está. Conseguiam a maior parte da informação por meios legítimos, em particular os periódicos alemães. Não acreditavam necessariamente tudo o que liam, mas tomavam nota de chaves como o anúncio de uma fábrica de armas que solicitasse dez torneiros com experiência. Do mesmo modo, os russos podiam viajar livremente pela Alemanha e observar a seu ar, a diferença dos diplomáticos alemães na União Soviética, a quem não se permitia abandonar Moscou sem escolta. O jovem a quem Macke e Wagner seguiam bem podia pertencer à classe de informadores mansos, um leitor de periódicos; o único que se requeria para levar a cabo esse trabalho era falar alemão com fluidez e ter uma boa capacidade de síntese. Seguiram ao Peshkov mais à frente do restaurante do irmão do Macke. Ainda se chamava Bistro Robert, mas sua clientela era diferente. Tinham desaparecido já os homossexuais opulentos, os executivos judeus e suas senhoras, e as atrizes com salários exagerados que pediam champanha rosado. Todos eles tratavam agora de passar inadvertidos, se acaso não estavam já em campos de concentração. Alguns tinham abandonado a Alemanha, toda uma bênção, pensou Macke, embora isso significasse, por desgraça, que o restaurante não tivesse tantos benefícios. perguntou-se o que teria sido do anterior proprietário, Robert von Ulrich. Recordava vagamente que se foi a Inglaterra. Talvez tivesse aberto ali um restaurante para pervertidos. Peshkov entrou em um bar. Wagner o fez um ou dois minutos depois, e Macke ficou fora para vigiar a entrada. Era um local popular. Enquanto esperava a que Peshkov reaparecesse, Macke viu entrar em um soldado e a uma garota, e sair e afastar-se a duas mulheres bem vestidas e a um ancião com um casaco imundo. Ao pouco Wagner saiu sozinho, olhou diretamente ao Macke e abriu os braços em um gesto de perplexidade. Macke cruzou a rua. Wagner parecia consternado. —Não está dentro! —olhaste em todas partes? —Sim, inclusive nos serviços e a cozinha. —perguntaste se tiver saído alguém pela porta de atrás? —Hão-me dito que não. Wagner estava assustado, e com razão. Aquela era a nova a Alemanha, e os enganos já não se sancionavam com um puxão de orelhas. Poderia receber um castigo severo. Embora não nessa ocasião. —Está bem —disse Macke. Wagner não pôde ocultar o alívio que sentiu. —Seriamente? —averiguamos algo importante —disse Macke—. Que nos tenha dado esquinazo com tanta perícia nos confirma que é um espião… e muito bom. II Volodia entrou na estação do Friedrichstrasse e subiu a bordo de um trem do Ou-bahn. tirou-se a boina, os óculos e a gabardina suja que lhe tinham conferido a aparência de um ancião. sentou-se, tirou um lenço e limpou o pó com que se melou os sapatos para lhes dar um aspecto gasto. Tinha duvidado com respeito à gabardina. Era um dia tão ensolarado que temia que a Gestapo tivesse reparado nela e deduzido o que se propunha. Mas não haviam sido tão ardilosos e ninguém lhe tinha seguido do bar depois de que se trocasse no serviço de cavalheiros. Estava a ponto de fazer algo extremamente perigoso. Se o surpreendiam contatando com um dissidente alemão, o melhor que podia esperar era que o deportassem de volta a Moscou com sua carreira arruinada. Se tinha menos sorte, o dissidente e ele desapareceriam no porão dos quartéis gerais da Gestapo, no Prinz Albrecht Strasse, e não voltariam a ser vistos. Os soviéticos reclamariam o desaparecimento de um de seus diplomáticos, e a polícia alemã fingiria levar a cabo uma busca do susodicho para, continuando, informar que, lamentando-o, não tinham obtido resultados. Obviamente, Volodia nunca tinha estado nos quartéis gerais da Gestapo, mas sabia como deviam ser. O NKVD dispunha de umas instalações similares na Delegação Comercial soviética, no número 11 da Lietsenburgerstrasse: portas de aço, sala de interrogatórios com paredes de azulejos que podiam lavar-se facilmente para retirar o sangue, uma banheira para esquartejar os corpos e um forno elétrico para incinerá-los. Volodia tinha sido enviado ao Berlim para ampliar a rede de espiões soviéticos na cidade. O fascismo triunfava na Europa, e Alemanha constituía mais que nunca uma ameaça para a URSS. Stalin tinha destituído a seu ministro de Exteriores, Litvínov, e o tinha substituído pelo Viacheslav Mólotov. Mas o que podia fazer Mólotov? Os fascistas pareciam imparables. O Kremlin estava acossado pela humilhante lembrança da Grande Guerra, em que os alemães tinham derrotado a um exército russo formado por seis milhões de homens. Stalin tinha dado passos para assinar um pacto com a França e Grã-Bretanha a fim de refrear a Alemanha, mas as três potências tinham sido incapazes de ficar de acordo, e as conversações tinham fracassado nos últimos dias. esperava-se que, antes ou depois, estalasse a guerra entre a Alemanha e a União Soviética, e o trabalho da Volodia consistia em solicitar informação militar secreta que ajudasse aos soviéticos a ganhar essa guerra. desembarcou do trem no Wedding, um distrito operário e deprimido situado ao norte do centro do Berlim. Uma vez fora da estação, deteve-se esperar, observando aos passageiros que saíam e fingindo consultar um horário pego à parede. Não ficou em marcha até que esteve do todo seguro de que ninguém o tinha seguido até ali. encaminhou-se para o restaurante barato que tinha escolhido como lugar de encontro. Seguindo sua tática habitual, não entrou nele mas sim aguardou em uma parada de ônibus situada na calçada de em frente e de ali vigiou a entrada. Tinha a certeza de ter avoado a qualquer que pudesse lhe haver estado seguindo, mas naquele momento precisava assegurar-se de que tampouco ninguém seguia ao Werner. Duvidava de se reconheceria ao Werner Franck, que era um moço de quatorze anos a última vez que o tinha visto e que contava já vinte. Ao Werner ocorria outro tanto, pelo que tinham acordado levar ambos um exemplar daquele dia do Berliner Morgenpost aberto pela seção de esportes. Volodia lia um avanço da nova temporada de futebol enquanto esperava, elevando o olhar cada poucos segundos em busca do Werner. Desde seus anos de escolar no Berlim, Volodia tinha seguido a trajetória da principal equipe da cidade, o Hertha. Tinha cantado freqüentemente o Há! Ho! Hei! Hertha B-S-C!. Interessava-lhe a situação da equipe, mas o nervosismo lhe impedia de concentrar-se e leu a mesma reportagem uma e outra vez sem reter nada. Os dois anos que tinha passado na Espanha não tinham potencializado sua carreira como ele tinha esperado; mas bem, tinha ocorrido justamente o contrário. Volodia tinha destampado a numerosos espiões nazistas, como Heinz Bauer, entre os voluntários alemães. Mas depois o NKVD se serviu disso como pretexto para prender voluntários genuínos que unicamente tinham expresso uma leve disconformidad com a linha comunista. Centenares de homens jovens e idealistas tinham sido torturados e assassinados nas prisões do NKVD. Em ocasiões tinha dado a impressão de que os comunistas estavam mais interessados em lutar contra os aliados anarquistas que contra seus inimigos fascistas. E tudo para nada. A política do Stalin tinha sido um fracasso catastrófico: ao final se acabou impondo uma ditadura de direitas, o pior resultado imaginável para a União Soviética. Mas a culpa se atribuía a quão russos tinham estado na Espanha, embora se tivessem limitado a seguir fielmente as instruções do Kremlin. Alguns deles tinham desaparecido ao pouco de retornar a Moscou. Volodia tinha voltado para casa atemorizado depois da queda de Madrid e tinha encontrada muitas mudanças. Em 1937 e 1938, Stalin tinha purgado o Exército Vermelho. Milhares de altos mandos tinham desaparecido, entre eles numerosos habitantes da residência governamental, onde viviam seus pais. Entretanto, homens aos que previamente deixou-se de lado, como Grigori Peshkov, tinham recebida ascensões e agora ocupavam os postos das vítimas da purgação. Assim, a carreira do Grigori havia experiente um novo impulso. Estava ao cargo da defesa de Moscou contra os ataques aéreos e sumido em um agitação frenético. Provavelmente, sua ascensão era o motivo pelo que Volodia não se contava entre os cabritos expiatórios do fracasso da política espanhola do Stalin. De algum modo, o desagradável Ilia Dvorkin também tinha evitado o castigo. Estava de volta em Moscou e casado com a Ania, irmã da Volodia, para grande pesar de este. Era evidente que sobre as decisões que tomavam as mulheres nestas questões não havia nada escrito. Já estava grávida, e Volodia não conseguia reprimir a angustiosa imagem dela arrulhando a um bebê com cabeça de rato. Depois de uma breve permissão, Volodia tinha sido destinado ao Berlim, onde havia tornado a demonstrar sua valia. Elevou o olhar uma vez mais e viu o Werner aproximando-se pela rua. Não tinha trocado muito. Era algo mais alto e corpulento, mas conservava aquele cabelo vermelho, que lhe caía sobre a frente de um modo que às garotas parecia irresistível, assim como o olhar risonho e tolerante em seus olhos azuis. Levava um elegante traje do verão de cor azul céu e em seus punhos cintilavam uns gêmeos de ouro. Ninguém o seguia. Volodia cruzou a rua e o interceptou antes de que chegasse à cafeteria. Werner esboçou um amplo sorriso, deixando à vista uma branca dentadura. —Não te teria reconhecido com esse corte de cabelo militar —disse—.-me alegro de verte, depois de tantos anos. Volodia advertiu que não tinha perdido um ápice de seu calidez e seu encanto. —Vamos dentro. —Não quererá entrar nesse tugúrio… —disse Werner—. Estará cheio de encanadores comendo salsichas com mostarda. —O que não quero é que fiquemos na rua. Poderia nos ver qualquer que acontecesse. —Há um beco a três portas daqui. —De acordo. Caminharam um breve trecho e dobraram por um estreito beco situado entre um pátio de armazém e venda de carvão e uma loja de comestíveis. —A que te dedicaste todo este tempo? —perguntou Werner. —A lutar contra os fascistas, igual a você. —Volodia se expôs a conveniência de lhe proporcionar mais informação—. Estive na Espanha. —Não era nenhum secreto. —Onde não teve mais êxito que nós aqui, na Alemanha. —Mas ainda não terminou. —Deixa que te pergunte algo —disse Werner, apoiando-se contra a parede—: se acreditasse que o bolchevismo é perverso, trabalharia como espião contra a União Soviética? O primeiro impulso da Volodia foi responder: Não! É obvio que não!. Entretanto, antes de pronunciar essas palavras compreendeu que seria uma resposta desconsiderada, pois a opção que mais o repugnava era precisamente a que Werner tinha eleito, traindo a seu país por uma causa mais elevada. —Não sei —disse—. Suponho que para ti deve ser difícil trabalhar contra Alemanha, embora odeie aos nazistas. —Sim, tem razão —repôs Werner—. E o que ocorreria se estalasse a guerra? Teria que te ajudar a matar a nossos soldados e a bombardear nossas cidades? Volodia se inquietou. Werner parecia fraquejar. —É a única forma de derrotar aos nazistas —disse—. Sabe. —Sim. Tomei uma decisão faz muito tempo. E os nazistas não têm feito nada para que troque de opinião. É duro, isso é tudo. —Entendo-o —disse Volodia, pormenorizado. —Pediu-me que recomendasse a outras pessoas que pudessem fazer o mesmo trabalho que eu —acrescentou Werner. Volodia assentiu. —Pessoas como Willi Frunze. Lembra-te dele? O guri mais inteligente da escola. Era um socialista sério… Presidiu aquele comício que arrebentaram os camisas pardas. Werner negou com a cabeça. —partiu a Inglaterra. A Volodia lhe caiu a alma aos pés. —por que? —É um físico brilhante e estuda em Londres. —Mierda. —Mas pensei em outro. —Bem! —Conhece o Heinrich von Kessel? —Acredito que não. Estudou em nossa escola? —Não, foi a uma escola católica. E nnaquele tempo naquele tempo tampouco compartilhava nossos ideais políticos. Seu pai era um peixe gordo da Partida de Centro… —A partida que pôs ao Hitler no poder em 1933! —Exato. Heinrich trabalhava para seu pai então. O pai se uniu aos nazistas, mas o filho vive atormentado pelo sentimento de culpa. —Como sabe? —embebedou-se e o disse a minha irmã Frieda, que tem dezessete anos. Acredito que gosta. Aquilo prometia. Volodia se animou. —É comunista? —Não. —O que te faz acreditar que trabalhará para nós? —O perguntei diretamente: Se tivesse a oportunidade de lutar contra os nazistas espiando para a União Soviética, faria-o?. Disse que sim. —No que trabalha? —Está no exército, mas tem problemas respiratórios, pelo que lhe atribuíram tarefas administrativas, por sorte para nós, porque agora trabalha para o Alto Mando, no departamento de planejamento financeira e abastecimento. Volodia estava impressionado. Um homem naquele posto saberia com exatidão quantos caminhões, tanques, metralhadoras e submarinos estava comprando o exército alemão mês a mês, e onde os estavam desdobrando. Começou a entusiasmar-se. —Quando posso me reunir com ele? —Agora. fiquei com ele para tomar uma taça no hotel Adlon ao sair do trabalho. Volodia grunhiu. O Adlon era o hotel mais chique do Berlim. Estava no Unter dêem Confinem, no distrito governamental e político, pelo que seu bar era o lugar de encontro predileto dos jornalistas, que o freqüentavam com a esperança de fazer-se com alguma fofoca. Não teria sido o que Volodia teria escolhido para a ocasião, mas não podia permitir-se perder aquela oportunidade. —De acordo —disse—, mas não penso me deixar ver falando com nenhum dos dois nesse sítio. Entrarei detrás de ti, identificarei ao Heinrich, seguirei-o fora e abordarei-o mais tarde. —Muito bem. Levo-te. Tenho o carro à volta da esquina. Enquanto caminhavam para o outro extremo do beco, Werner deu a Volodia as direções do lugar de trabalho e do domicílio do Heinrich e seus números de telefone, e Volodia os memorizou. —Já estamos —disse Werner—. Sobe. O carro era um Mercedes 540K Autobahn Kurier, um modelo de lhe impactem beleza, com pára-lama de curvas sensuais, um capô mais comprido que um Ford T de extremo a extremo e uma parte traseira aerodinâmica. Era tão caro que apenas se venderam um punhado desde que tinha saído ao mercado.
Volodia ficou olhando horrorizado. —Não deveria ter um carro menos ostentoso? —perguntou com incredulidade. —É um dobro farol —respondeu Werner—. Seguro que pensam que nenhum espião de verdade seria tão empolado. Volodia estava a ponto de perguntar como podia costear um carro como aquele, mas então recordou que o pai do Werner era um rico fabricante. —Não penso subir a essa coisa —disse Volodia—. Irei de trem. —Como quer. —Vemo-nos no Adlon, mas não me saúde. —Tranqüilo. Meia hora depois, Volodia viu o carro do Werner estacionado de qualquer maneira frente ao hotel. Aquela atitude desdenhosa do Werner lhe parecia insensata, mas perguntou-se se acaso não seria um componente necessário de sua coragem. Possivelmente tinha que fingir indolência para assumir os terríveis riscos que suportava a espionagem dos nazistas. De reconhecer o perigo que corria, talvez não seria capaz de seguir adiante. O bar do Adlon estava cheio de mulheres vestidas na moda e homens refinados, muitos com elegantes uniformize entalhados. Volodia viu o Werner nada mais entrar, sentado a uma mesa com outro homem, presumivelmente Heinrich von Kessel. Ao passar perto deles, Volodia ouviu que Heinrich dizia, com vontades de discutir: Buck Clayton é muito melhor trompetista que Hot Lips Page. Se fez sítio com dificuldade na barra, pediu uma cerveja e observou com discrição ao espião potencial. Heinrich tinha a tez pálida e um denso arbusto de cabelo, algo comprido para os patrões militares. Embora falavam de um tema relativamente corriqueiro como o jazz, parecia muito veemente, discutindo com gestos e passando uma e outra vez os dedos pelo cabelo. Levava um livro no bolso da jaqueta, e Volodia teria apostado a que era poesia. Volodia se tomou duas cervejas e fingiu ler o Morgenpost de princípio a fim. Tentou não fazer-se muitas ilusões com o Heinrich. O homem parecia alentadoramente prometedor, mas não havia garantias de que fora a cooperar. Recrutar informadores era a parte mais árdua do trabalho da Volodia. Não era fácil tomar precauções porque o objetivo ainda não se pronunciou. Com freqüência terei que fazer a proposta em lugares inapropriados, pelo general públicos. Era impossível saber como reagiria: podia enfurecer-se e negar-se a gritos, ou aterrar-se e sair correndo literalmente. Mas pouco podia fazer o recrutador para controlar a situação. Em algum momento, simplesmente tinha que expor a pergunta, simples e direta: Quer ser um espião?. Pensou em como abordaria ao Heinrich. Era provável que a religião fosse a chave de sua personalidade. Volodia recordava que seu chefe, Lemítov, havia dito: Os católicos renegados são bons agentes. Rechaçam a autoridade absoluta da Igreja só para aceitar a autoridade absoluta da partida. Talvez Heinrich precisasse procurar o perdão pelo que tinha feito. Mas arriscaria a vida? Ao final Werner pagou a conta e os dois homens saíram. Volodia os seguiu. Uma vez fora do hotel se separaram, Werner ao volante de seu carro, fazendo chiar os pneumáticos, e Heinrich a pé pelo parque. Volodia foi detrás o Heinrich. Começava a anoitecer, mas o céu estava espaçoso e havia visibilidade. Muitas pessoas passeavam e desfrutavam de do ar quente da tarde, a maioria em casais. Volodia olhou atrás várias vezes para assegurar-se de que ninguém os tinha seguido nem a ele nem ao Heinrich do Adlon. Quando esteve seguro, respirou fundo, armou-se de valor e alcançou ao Heinrich. —Há expiação para o pecado —disse Volodia, enquanto caminhava a seu lado. Heinrich o olhou com receio, como a um louco. —É você sacerdote? —Poderia devolver o golpe ao regime que contribuiu a criar. Heinrich seguiu caminhando, mas parecia inquieto. —Quem é você? O que sabe de mim? Volodia seguiu evitando as perguntas do Heinrich. —Algum dia os nazistas serão derrotados. Esse dia poderia estar mais perto com sua ajuda. —Se for um agente da Gestapo com a esperança de me tender uma armadilha, economize-a moléstia. Sou um alemão leal. —Reconhece meu acento? —Sim… Parece russo. —Quantos agentes da Gestapo falam alemão com acento russo, ou possuem suficiente imaginação para impostarlo? Heinrich riu nervoso. —Não sei nada dos agentes da Gestapo —disse—. Não teria que ter tirado o tema… foi uma estupidez por minha parte. —Seu escritório elabora informe da quantidade de armamento e outros fornecimentos que compra o exército. Dispor de uma cópia desses relatórios resultaria extremamente útil aos inimigos dos nazistas. —Ao Exército Vermelho, quererá dizer. —Quem, se não, vai acabar com este regime? —Fazemos um seguimento muito meticuloso desses informe. Volodia conteve um arrebatamento de triunfalismo. Heinrich estava pensando em dificuldades de caráter prático. Isso significava que, em princípio, estava predisposto a aceitar. —Poderia fazer uma cópia de carvão adicional —disse Volodia—. Ou à mão. Ou conseguir a cópia que outro guarde em seu arquivo. Há maneiras. —Claro que as há. E qualquer delas poderia fazer que me matassem. —Se não fazermos nada com os crímenes que está cometendo este regime… merece a pena viver? Heinrich se deteve e olhou fixamente a Volodia, que não conseguia adivinhar o que estava pensando, mas o instinto lhe aconselhou que guardasse silêncio. Depois de uma larga pausa, Heinrich suspirou e disse: —Pensarei-o. Tenho-o, pensou Volodia, exultante. —Como me porei em contato com você? —perguntou Heinrich. —Não o fará —respondeu Volodia—. Serei eu quem fique em contato com você. tocou-se a asa do chapéu e se afastou por onde tinha vindo. sentia-se eufórico. Se Heinrich não tivesse tido intenção de aceitar a proposta, a teria recusado tajantemente. A promessa de pensá-lo era quase tão boa como a aceitação. Consultaria-o com o travesseiro. Consideraria o perigo. Mas, finalmente, faria-o. Volodia estava quase seguro. obrigou-se a não sentir-se muito crédulo. Um centenar de coisas podiam ir mau. Contudo, transbordava esperança quando saiu do parque e se internou no bulício da cidade, deixando atrás as lojas e os restaurantes do Unter dêem Confinem. Não tinha jantado, mas não podia permitir-se fazê-lo naquela avenida. Tomou um bonde em direção ao este, para o bairro humilde chamado Friedrichshain, e depois se encaminhou a um bloco de pisos. Abriu-lhe a porta de um pequeno apartamento uma garota bonita, miúda e loira de uns dezoito anos. Levava um pulôver rosa e umas calças negras e folgadas, e ia descalça. Embora era magra, tinha uns seios deliciosamente generosos. —Sinto me apresentar sem avisar —disse Volodia—. Chego em mau momento? Ela sorriu. —Absolutamente —respondeu—. Passa. Entrou. Ela fechou a porta e o abraçou. —Sempre me alegro de verte —disse, e o beijou com avidez. Lili Markgraf era uma jovem com muito carinho por dar. Volodia tinha saído com ela uma vez por semana desde que tinha voltado para o Berlim. Não estava apaixonado e sabia que ela saía com outros homens, entre eles Werner, mas quando estavam juntos se mostrava ardente. —ouviste a notícia? vieste por isso? —perguntou-lhe um momento depois. —Que notícia? Lili trabalhava como secretária em uma agência de notícias e sempre era primeira em inteirar-se das novidades. —A União Soviética assinou um pacto com a Alemanha! —disse. Aquilo não tinha sentido. —Quererá dizer Grã-Bretanha e França, contra Alemanha. —Não! Essa é a surpresa: Stalin e Hitler se feito amigos. —Mas… —Volodia emudeceu, desconcertado. de repente eram amigos do Hitler? Parecia uma loucura. Era essa a solução ideada pelo novo ministro dos Exteriores soviético, Mólotov? Como não conseguimos deter a maré do fascismo mundial, deixamos de tentá-lo? Liberou meu pai uma revolução para isto? III Woody Dewar voltou a ver o Joanne Rouzrokh quatro anos depois. Nenhuma das pessoas que conheciam seu pai acreditava que na verdade tivesse tentado violar a uma aspirante a estrela no hotel Ritz-Carlton. A jovem havia retirado os cargos, mas o periódico apenas lhe tinha dado proeminência a uma notícia tão tediosa. Em conseqüência, Dave seguia sendo um violador aos olhos de a população do Buffalo. Por isso, os pais do Joanne se mudaram ao Palm Beach, e Woody perdeu o contato com ela. A seguinte vez que a viu, foi nesse momento na Casa Branca. Woody estava com seu pai, o senador Gus Dewar, e juntos foram ver o presidente. Woody tinha coincidido com o Franklin D. Roosevelt em várias ocasiões. Seu pai e o presidente eram amigos desde fazia muitos anos. Mas se tinha tratado de eventos sociais nos que Roosevelt tinha estreitado a mão ao Woody e lhe havia perguntado como ia na escola. Aquela ia ser a primeira vez que Woody assistia a uma autêntica reunião política com o presidente. Franquearam a entrada principal da Asa Oeste, cruzaram o vestíbulo e acessaram a uma ampla sala de espera; e ali estava ela. Woddy a olhou deleitado. Logo que tinha trocado. Com a cara fina e altiva e o nariz aquilino, seguia parecendo a soma sacerdotisa de uma religião ancestral. como sempre, levava roupa simples mas efectista: aquele dia, um traje de cor azul escura e fresca, e um chapéu de palha da mesma cor e asa larga. Woody alegrou-se de haver ficado aquela manhã uma camisa branca e sua nova gravata de raias. Ela parecia alegrar-se de vê-lo. —Tem um aspecto fantástico! —disse—. Agora trabalha na cidade? —Só durante o verão, ajudando a meu pai —respondeu ele—. Sigo estudando no Harvard. Ela se voltou para seu pai. —Boa tarde, senador —o saudou, com cortesia. —Olá, Joanne. Ao Woody emocionou encontrá-la ali. Seguia sendo tão sedutora como sempre. Queria prolongar a conversação. —O que faz aqui? —perguntou-lhe. —Trabalho no Departamento de Estado. Woody assentiu. Isso explicava a deferência para com seu pai. Ela tinha ingressado em um mundo no qual a gente inclinava a cabeça ante o senador Dewar. —No que consiste seu trabalho? —perguntou Woody. —Sou ajudante de uma ajudante. Meu chefe está agora com o presidente, mas eu não tenho nível para entrar com ele. —Sempre te interessou a política. Lembrança uma discussão sobre o linchamento. —Sinto falta de Buffalo. Como nos divertíamos ali! Woody se lembrou de que a tinha beijado no baile do Clube de Tênis e notou como se ruborizava. —Por favor, saúda seu pai de minha parte —disse Gus, dando a entender que não podiam atrasar-se mais. Woody estava pensando em lhe pedir seu número de telefone, mas ela lhe adiantou. —eu adoraria voltar a verte, Woody —disse. Ele estava deleitado. —Claro! —Faz algo esta noite? Uns amigos vão vir para casa a tomar uma taça. —Sonha fantástico! Joanne lhe deu sua direção, um piso situado não muito longe de ali, e seu pai o apressou para que fora com ele para uma porta situada no outro extremo da sala. Um guarda saudou o Gus com um gesto de familiaridade, e ambos acessaram a outra sala de espera. —Bem, Woody, não diga nada a menos que o presidente se dirija —lhe advertiu Gus. Woody tentou concentrar-se na iminente reunião. Na Europa se produziu um terremoto político: a União Soviética tinha assinado um acordo de paz com a Alemanha nazista, o qual tinha desbaratado os cálculos de todos. O pai do Woody era um membro chave da Comissão de Relações Exteriores do Senado, e o presidente queria conhecer sua opinião. Gus Dewar tinha outra questão que comentar. Queria persuadir ao Roosevelt para que reativasse a Sociedade das Nações. Não ia resultar lhe fácil. Estados Unidos nunca tinha sido membro da Sociedade e seus compatriotas não lhe professavam simpatia. A Sociedade tinha fracassado estrepitosamente no manejo da crise dos anos trinta: a agressão japonesa em Extremo Oriente, o imperialismo italiano na África, as anexações nazistas na Europa, o colapso da democracia na Espanha. Mas Gus estava decidido a provar. Woody sabia que sempre tinha sido seu sonho: um conselho mundial para resolver os conflitos e evitar a guerra. Respaldava-o totalmente. Tinha pronunciado um discurso a respeito em um debate no Harvard. Quando dois países discrepavam, a pior medida que se podia tomar era matar aos do outro bando. Era algo que lhe parecia óbvio. Entendo por que ocorre, é obvio —havia dito no debate—, do mesmo modo que entendo por que os bêbados se encetam em brigas a murros. Mas isso não faz que seja menos irracional. Entretanto, naquele momento ao Woody custava pensar na ameaça de uma guerra na Europa. Seus velhos sentimentos pelo Joanne retornaram em turba. perguntava-se se voltaria a beijá-lo…, talvez o fizesse essa noite. Sempre lhe tinha gostado, e parecia que ainda gostava…, por que, se não, o teria convidado a sua festa? Em 1935 o tinha rechaçado porque ele tinha quinze anos e ela, dezoito, algo compreensível, embora ele não o tinha considerado assim nnaquele tempo. naquele tempo. Mas agora que os dois tinham quatro anos mais, a diferença de idade não parecia tão grande…, ou sim? Confiava em que não. Tinha saído com garotas no Buffalo e no Harvard, mas por nenhuma havia sentido a arrolladora paixão que Joanne tinha despertado nele. —Entendeste-o? —disse seu pai. Woody se sentia ridículo. Seu pai estava a ponto de fazer uma proposta ao presidente que poderia conduzir a paz mundial, e ele sozinho podia pensar em beijar ao Joanne. —Sim, claro —respondeu—. Não direi nada a menos que me ele fale primeiro. Uma mulher alta e magra, de quarenta e poucos anos, entrou na sala com ar tranqüilo e seguro, como se fosse a proprietária do lugar, e Woody a reconheceu: Marguerite LeHand, apelidada Missy e encarregada do despacho do Roosevelt. Tinha a cara alargada, masculina, e o nariz grande, e seu cabelo negro luzia um matiz cinza. Dedicou-lhe um sorriso cálida ao Gus. —Que prazer voltar a vê-lo, senador. —Como vai, Missy? lembra-se de meu filho, Woodrow? —Sim. O presidente os espera. A devoção que Missy professava ao Roosevelt era notória. O presidente estava mais afeiçoado com ela do que cabia esperar de um homem casado, segundo os falatórios de Washington. Woody sabia, por comentários comedidos mas reveladores de seus pais, que a paralisia do Roosevelt não afetava a suas aptidões sexuais. Entretanto, sua esposa, Eleanor, negou-se a dormir com ele desde que desse a luz a seu sexto filho, do qual fazia já mais de vinte anos. Talvez isso lhe dava direito a ter uma secretária carinhosa. Acompanhou-os por outra porta e por outro corredor estreito, e finalmente chegaram ao Despacho Oval. O presidente estava sentado de costas a três ventanales salientes curvados. Os estores estavam baixados para atenuar o sol de agosto que iluminava aquela vidraça orientada ao sul. Woody observou que Roosevelt descansava em uma cadeira de escritório corrente, não na de rodas. Levava um traje branco e fumava com boquilha. Não era especialmente atrativo. Tinha entradas pronunciadas e queixo proeminente, e levava uns quevedos que pareciam aproximar seus olhos entre si. Contudo, havia algo que lhe conferia um atrativo imediato em seu encantador sorriso, em seu gesto ao tender a mão e no cordial tom de voz com que disse: —Me alegro de verte, Gus. Passa. —Senhor presidente, suponho que recordará a meu filho maior, Woodrow. —É obvio. Como vai no Harvard, Woody? —Bem, senhor, obrigado. Estou no grupo de debate. —Sabia que os políticos tinham a habilidade de fingir que conheciam todo mundo intimamente. Ou tinham uma excelente memória ou suas secretárias a refrescavam com soma eficácia. —Eu também estudei no Harvard. Sentem-se, sentem-se. —Roosevelt retirou o resto do cigarro da boquilha e o apagou em um cinzeiro a transbordar—. Gus, que diabos está ocorrendo na Europa? Woody pensou que, obviamente, o presidente sabia o que estava ocorrendo na Europa. Dispunha de todo um Departamento de Estado para que lhe informasse a respeito. Mas queria conhecer a análise do Gus Dewar. —Em minha opinião, Alemanha e a União Soviética seguem sendo inimigos mortais —disse Gus. —É o que todos acreditam. Mas, então, por que assinaram o pacto? —Pela conveniência de ambos os a curto prazo. Stalin necessita tempo. Quer reforçar o Exército Vermelho para derrotar aos alemães se se der o caso. —E o outro? —Hitler está claramente a ponto de fazer algo na Polônia. A imprensa alemã vai repleta de histórias ridículas sobre o mau trato que os poloneses dispensam à população germanohablante. Hitler não esporeia o ódio sem uma finalidade. Seja o que seja o que está planejando, não quer que os soviéticos se interponham em seu caminho. Daí o pacto. —Hull opina virtualmente o mesmo —Cordell Hull era secretário de estado—, mas não sabe o que ocorrerá depois. Permitirá Stalin que Hitler faça o que queira? —Inclino-me a acreditar que se repartirão a Polônia nas próximas duas semanas. —E depois, o que? —Faz umas horas os britânicos assinaram um novo tratado com os poloneses comprometendo-se a lhes brindar ajuda se são atacados. —Mas o que podem fazer? —Nada, senhor. O exército, a armada e as forças aéreas britânicas não têm capacidade para evitar que os alemães invadam a Polônia. —O que crie que deveríamos fazer, Gus? —perguntou o presidente. Woody sabia que aquela era a oportunidade de seu pai. ia dispor de toda a atenção do presidente durante uns minutos. Era uma ocasião extraordinária para fazer que algo ocorresse. Woody cruzou os dedos discretamente. Gus se inclinou para diante. —Não queremos que nossos filhos vão à guerra, como fizemos nós. —Roosevelt tinha quatro filhos de entre vinte e trinta anos. Woody compreendeu nesse instante por que se encontrava ali: seu pai o tinha levado a reunião para que sua presença fizesse pensar ao presidente em seus próprios filhos. Gus prosseguiu, pausadamente—: Não podemos voltar a enviar aos jovens americanas a Europa para que os aniquilem. O mundo necessita um corpo policial. —No que está pensando? —disse Roosevelt, sem comprometer-se. —A Sociedade das Nações não foi o fracasso que a gente crie. Nos anos vinte resolveu um conflito de fronteiras entre a Finlândia e Suécia, e outro entre Turquia e Iraque. —Gus enumerava também aqueles lucros com os dedos—. Impediu que a Grécia e Yugoslavia invadissem Albania e convenceu a Grécia para que se retirasse da Bulgaria. E enviou uma força de paz para evitar hostilidades entre a Colômbia e Peru. —Certo. Mas nos anos trinta… —A Sociedade não era o bastante forte para frear a agressão fascista. A Sociedade esteve agarre desde o começo porque o Congresso se negou a ratificar o pacto, pelo que os Estados Unidos nunca formou parte dela. Necessitamos uma versão nova, liderada pelos Estados Unidos, eficaz. —Gus fez uma pausa—. Senhor presidente, é muito logo para renunciar a um mundo em paz. Woody conteve o fôlego. Roosevelt assentiu com a cabeça, embora Woody sabia que o fazia sempre. Estranha vez discrepava abertamente. Detestava a confrontação. Woody tinha ouvido dizer a seu pai que convinha ser prudente e não interpretar seu silêncio como um consentimento. Não se atreveu a olhá-lo, mas, sentado a seu lado, percebia a tensão nele. —Acredito que tem razão —disse o presidente ao cabo de um instante. Woody teve que reprimir um grito de alegria. O presidente consentia! Olhou a seu pai. Gus, que pelo general se mostrava imperturbável, logo que ocultava sua surpresa. Tinha sido uma vitória certamente rápida. Gus se apressou a consolidá-la. —Em tal caso, posso sugerir que Cordell Hull e eu redijamos um rascunho de proposta para que o considere? —Hull está muito atarefado. Fala com o Welles. Sumner Welles era o subsecretário de Estado, um homem tão ambicioso como extravagante, e Woody sabia que não teria sido a primeira opção de seu pai. Mas fazia muito tempo que era amigo da família Roosevelt; tinha sido pajem nas bodas do presidente. Em qualquer caso, Gus não tinha intenção de pôr objeções neste aspecto. —É obvio —disse. —Algo mais? Era, sem dúvida, um formalismo para despachá-los. Gus ficou em pé, e Woody o imitou imediatamente. —Como se encontra sua mãe, a senhora Roosevelt, senhor? —perguntou Gus—. Quão último soube é que estava na França. —Seu navio zarpou ontem, graças a Deus. —Alegra-me sabê-lo. —Obrigado por vir —disse Roosevelt—. Valoro muito sua amizade, Gus. —Nada poderia me agradar mais, senhor —repôs Gus. Estreitou a mão do presidente, e Woody fez o próprio. Depois partiram. Woody albergava uma ínfima esperança de que Joanne seguisse por ali, mas já se foi. —vamos tomar uma taça para celebrá-lo —propôs Gus enquanto saíam do edifício. Woody consultou seu relógio. Eram as cinco em ponto. —Claro —disse. Foram ao Old Ebbitt, na rua F, perto da Quinze: vidraças de cores, veludo verde, abajures de latão e troféus de caça. O local estava cheio de congressistas, senadores e seu séquito habitual: assessores, representantes de lobbies e jornalistas. Gus pediu diretamente um dry Martini com uma rodela de limão para ele e uma cerveja para o Woody, que sorriu; possivelmente lhe teria gostado de um Martini. Na verdade, não gostava —dele sozinho tinha sabor de genebra fria—, mas lhe teria gostado que perguntasse-lhe. em que pese a isso, elevou a taça e disse: —Felicidades. conseguiste o que queria. —O que o mundo necessita. —estiveste brilhante. —Quase não fazia falta convencer ao Roosevelt. É uma liberal, mas pragmático. Sabe que não é possível fazê-lo tudo, que terá que escolher as batalhas que podem ganhar. O new deal é sua prioridade absoluta, que os parados voltem a ter trabalho. Não fará nada que interfira nisso, é sua principal missão. Se meu plano resultar muito controvertido e desgosta a seus partidários, rechaçará-o. —De modo que ainda não ganhamos nada. Gus sorriu. —demos o primeiro passo, muito importante. Mas não, não ganhamos nada. —É uma lástima que te obrigue a trabalhar com o Welles. —Não de tudo. Sumner reforça o projeto. Está mais perto que eu do presidente. Mas é imprevisível. Poderia agarrar o projeto e represá-lo em outra direção. Woody olhou para o fundo do local e viu uma cara conhecida. —Adivinha quem está aí. Deveria havê-lo sabido. Seu pai olhou na mesma direção. —Em pé na barra —disse Woody—. Com um par de tipos maiores que ele com chapéu e uma garota loira. Greg Peshkov. Como de costume, Greg ia desalinhado face à roupa deliciosa que vestia: levava a gravata torcida, a camisa lhe saía pela cinturilla e luzia uma mancha de cinza de tabaco nas calças de cor marfim. Entretanto, a loira o olhava com veneração. —O mesmo —disse Gus—. O vê freqüentemente no Harvard? —está-se especializando em física, mas não sai com cientistas; muito aborrecidos para ele, suponho. me estou acostumado a encontrar isso na redação do Crimson. —O Harvard Crimson era o periódico estudantil no qual o Woody publicava fotografias e Greg, artigos—. Está fazendo práticas no Departamento de Estado este verão, por isso está aqui. —No escritório de imprensa, imagino —disse Gus—. Os dois homens com os que está são jornalistas; o do traje marrom trabalha para o Tribune de Chicago e o da pipa, para o Plain Dealer de Cleveland. Woody viu que Greg falava com os jornalistas como se fossem velhos amigos, tirando do braço a um e aproximando-se dele para lhe dizer algo em voz baixa, e dando palmadas nas costas ao outro em um gesto falso de felicitação. Os outros pareciam com gosto com ele, pensou Woody enquanto riam a gargalhadas de algo que havia dito. Woody invejava esse talento. Resultava muito útil para os políticos…, embora possivelmente não imprescindível; seu pai carecia desse aspecto jovial e afável e era um dos estadistas mais veteranos dos Estados Unidos. —Pergunto-me o que opinará sua meio-irmã, Daisy, sobre a ameaça de guerra. Está em Londres. casou-se com um lorde inglês —disse Woody. —Para ser exatos, casou-se com o primogênito do conde Fitzherbert, a quem cheguei a conhecer muito bem. —É a inveja de todas as garotas do Buffalo. O rei assistiu a suas bodas. —Também conheci a irmã do Fitzherbert, Maud… uma mulher maravilhosa. casou-se com o Walter von Ulrich, um alemão. Eu também me teria casado com ela se não se tivesse-me adiantado Walter. Woody arqueou as sobrancelhas. Não era próprio de seu pai falar daquele modo. —Isso foi antes de que me apaixonasse por sua mãe, é obvio. —É obvio. —Woody reprimiu um sorriso. —Walter e Maud desapareceram do mapa depois de que Hitler ilegalizara aos socialdemócratas. Espero que estejam bem. Se estalar uma guerra… Woody advertiu que seu pai ficava nostálgico ao falar da guerra. —Ao menos os Estados Unidos está à margem. —Isso é o que creímos a última vez. —Gus trocou de tema—. O que sabe de seu irmão pequeno? Woody suspirou. —Não vai trocar de idéia, papai. Não irá ao Harvard, nem a nenhuma outra universidade. Era uma crise familiar. Chuck tinha anunciado que assim que cumprisse os dezoito se arrolaria na armada. Carecendo de um título universitário, seria um soldado raso, sem possibilidades de chegar a oficial. Era algo que horrorizava a seus bem-sucedidos pais. —Maldita seja! É o bastante inteligente para ir à universidade. —Ganha no xadrez. —A mim também. O que lhe ocorre? —Detesta estudar. E adora os navios. Navegar é o único que lhe importa. —Woody consultou seu relógio de pulso. —Tem uma festa a que ir —disse seu pai. —Não há pressa… —Sim que a há. É uma garota muito atrativa. te largue daqui. Woody sorriu. Seu pai podia ser surpreendentemente ardiloso. —Obrigado, papai. —ficou em pé. Greg Peshkov partia nesse momento, e saíram juntos. —Olá, Woody. Como vai tudo? —perguntou Greg com tom cordial. Foram na mesma direção. Houve um tempo em que Woody teria atirado um murro ao Greg por sua implicação no turvo assunto do Dave Rouzrokh. Esses sentimentos se esfriaram com os anos, e em realidade o responsável tinha sido Lev Peshkov, não seu filho, que então solo tinha quinze anos. De todos os modos, Woody se limitou a ser correto. —Estou desfrutando de Washington —disse enquanto caminhavam por um dos amplos bulevares parisinos da cidade—. E você? —Eu gosto. surpreendem-se ao conhecer meu nome, mas lhes passa em seguida. —Ao ver o olhar inquisitivo do Woody, Greg se explicou—: No Departamento de Estado tudo são Smith, Faber, Jensen e McAllister. Ninguém se apelida Kozinski, Cohen ou Papadopoulos. Woody caiu na conta de que era verdade. As rédeas do governo as levava um reduzido e bastante exclusivo grupo étnico. Como não tinha reparado nisso antes? Talvez porque se encontrou o mesmo na escola, na igreja e no Harvard. —Mas não são curtos de idéias —prosseguiu Greg—. Estão dispostos a fazer uma exceção com alguém que fala russa com fluidez e provém de uma família enriquecida. Greg se mostrava displicente, mas se espionava nele um trasfondo de autêntico rancor, e Woody advertiu que estava certamente ressentido. —Acreditam que meu pai é um gângster —disse Greg—, mas não lhes importa. A maioria dos ricos contam com algum gângster entre seus antepassados. —Falas como se odiasse Washington. —Justamente o contrário! Não viveria em nenhum outro lugar. O poder está aqui. Woody se sentiu mais magnânimo. —Eu vim porque há coisas que quero fazer, coisas que quero trocar. Greg sorriu. —Suponho que te refere à mesma coisa: o poder. —Hum. —Woody não o tinha exposto dessa forma. —Crie que haverá guerra na Europa? —perguntou Greg. —Você deveria sabê-lo, trabalha no Departamento de Estado! —Sim, mas estou no escritório de imprensa. Quão único sei são os contos de fadas que soltamos aos jornalistas. Não tenho nem idéia de qual é a verdade. —Já, eu tampouco. Acabo de estar com o presidente e acredito que nem ele sabe. —Minha irmã, Daisy, está ali. O tom do Greg tinha trocado. Woody viu que sua preocupação era genuína e tentou reconfortá-lo. —Sei. —Se houver bombardeios, nem sequer as mulheres e os meninos estarão a salvo. Crie que os alemães bombardearão Londres? Só havia uma resposta franco: —Suponho que sim. —Oxalá tivesse voltado para casa. —Talvez não estale a guerra. O ano passado, Chamberlain, o primeiro-ministro britânico, assinou um pacto in extremis com o Hitler em relação com a Checoslovaquia. —Uma claudicação in extremis. —Certo. Assim é possível que faça o mesmo em relação com a Polônia… embora se acaba o tempo. Greg assentiu taciturno e trocou de tema. —Aonde vai agora? —Ao apartamento do Joanne Rouzrokh. Celebra uma festa. —Sim, ouvi algo. Conheço uma de suas companheiras de piso, mas não me hão convidado, como certamente suporá. Seu edifício é… Santo Deus! —Greg deixou a frase pela metade. Woody também se deteve. Greg olhava fixamente à frente. Woody olhou nessa mesma direção e viu uma atrativa mulher negra que caminhava para eles pela rua E. Tinha aproximadamente sua idade e era formosa, com uns lábios carnudos de cor marrom rosácea que fizeram pensar ao Woody de novo em beijos. Levava um singelo vestido negro que poderia ter formado parte de um uniforme de garçonete, mas o acompanhava com um coquete chapéu e uns sapatos modernos que lhe conferiam um ar elegante. Ela os viu, olhou ao Greg e voltou a cara. —Jacky? Jacky Jakes? —perguntou Greg. A garota o evitou e seguiu caminhando, mas ao Woody pareceu que se inquietava. —Jacky, sou eu, Greg Peshkov —insistiu Greg. Jacky, se acaso era ela, não respondeu, embora dava a impressão de estar a ponto de romper a chorar. —Jacky… Te chama Mabel, em realidade. Conhece-me! —Greg se colocou em meio da calçada com os braços estendidos em um gesto de súplica. Ela o esquivou deliberadamente, sem pronunciar palavra nem olhá-lo aos olhos, e seguiu andando. Greg se voltou. —Espera um momento! —gritou a suas costas—. Faz quatro anos me abandonou sem mais… Me deve uma explicação! Aquilo era impróprio do Greg, pensou Woody. Sempre tinha sabido enrolar às garotas, tanto na escola como no Harvard. Naquele momento parecia aborrecido de verdade: desconcertado, ferido, quase desesperado. Faz quatro anos, refletiu Woody. Podia ser aquela a garota do escândalo? Tinha tido lugar ali, em Washington. Sem dúvida ela vivia na cidade. Greg correu atrás dela. Um táxi tinha parado na esquina e o passageiro, um homem com smoking, apeou-se e pagava ao taxista da calçada. Jacky subiu ao carro e deu uma portada. Greg se aproximou e gritou através do guichê: —Fala comigo, por favor! O táxi se afastou e deixou ao Greg ali, olhando-o. Greg voltou com passo lento até onde Woody o esperava, intrigado. —Não o entendo —disse Greg. —Parecia assustada —comentou Woody. —Do que? Nunca lhe fiz mal. Estava louco por ela. —Pois algo a assustava. Greg parecia afetado. —Sinto-o —disse—. Em qualquer caso, não é seu problema. me desculpe. —Não há de que. Greg assinalou um bloco de pisos situado a apenas uns passos. —Esse é o edifício do Joanne —disse—. Que te divirta. —E partiu. Um pouco desconcertado, Woody se encaminhou para a entrada. Mas em seguida esqueceu a vida sentimental do Greg e começou a pensar na sua. Seriamente gostava ao Joanne? Talvez não o beijasse essa noite, mas possivelmente poderia lhe pedir uma entrevista. Era um edifício modesto, sem porteiro nem zelador. Um listrado no portal lhe informou que Rouzrokh compartilhava piso com o Stewart e Fisher, presumivelmente outras duas garotas. Woody subiu no elevador. Nesse momento caiu na conta de que ia com as mãos vazias; deveria ter comprado doces ou flores. Pensou em dar meia volta, mas chegou à conclusão de que isso seria levar muito longe os bons maneiras. Chamou o timbre. Uma garota de pouco mais de vinte anos abriu a porta. —Olá. Sou… —disse Woody. —Passa —disse ela, sem esperar para ouvir seu nome—. As bebidas estão na cozinha, e há comida na mesa do comilão, se é que fica algo. —E se deu meia volta, com a evidente certeza de que aquele recebimento tinha sido mais que suficiente. O pequeno apartamento estava repleto de gente que bebia, fumava e se gritava para fazer-se ouvir sobre o ruído do fonógrafo. Joanne havia dito uns amigos, e Woody tinha imaginado a oito ou nove jovens sentados ao redor de uma mesa de centro conversando sobre a crise na Europa. sentiu-se desiludido; naquela festa tão concorrida dificilmente ia encontrar a ocasião de demonstrar ao Joanne quanto tinha crescido. Buscou-a com o olhar. Era mais alto que a maioria e podia olhar sobre suas cabeças. Não a viu. abriu-se passo entre os convidados sem deixar de procurá-la. Uma garota de peitos turgentes e bonitos olhos castanhos o olhou enquanto ele passava com muita dificuldade por seu lado e lhe disse: —Olá, grandalhão. Sou Diana Taverner. E você? —Estou procurando o Joanne —respondeu ele. Ela se encolheu de ombros. —Boa sorte. —E se deu meia volta. Conseguiu chegar à cozinha. O volume do ruído diminuiu um instante. Não se via o Joanne por nenhuma parte, de modo que Woody decidiu servir uma taça. Um homem de uns trinta anos e largas costas agitava uma coqueteleira. Bem vestido, com traje de cor canela, camisa azul céu e gravata azul marinho, era evidente que não se tratava do garçom, embora se comportava como um anfitrião. —O uísque escocês se terminou —disse a outro convidado—. te Sirva. Estou preparando martinis para quem quer. —Há bourbon? —perguntou Woody. —Aqui. —O homem lhe tendeu uma garrafa—. Sou Bexforth Ross. —Woody Dewar. —Woody encontrou um copo e se serve. —O gelo está nessa cubitera —disse Bexforth—. A que te dedica, Woody? —Estou fazendo práticas no Senado. E você? —Trabalho no Departamento de Estado. Estou a cargo da seção da Itália. —Começou a repartir os martinis. Sem dúvida uma figura emergente, pensou Woody. O homem parecia tão seguro de si mesmo que resultava irritante. —Procurava o Joanne. —Está por aí. Do que a conhece? Em este ponto Woody sentiu que podia fazer ornamento de uma óbvia superioridade. —OH, somos velhos amigos —disse como se nada—. Em realidade, conheço-a de toda a vida, de quando fomos meninos no Buffalo. E você? Bexforth tomou um gole comprido do Martini e soltou um suspiro de satisfação. Logo olhou ao Woody com ar especulativo. —Não conheço o Joanne há tanto tempo como você —disse—, mas acredito que a conheço melhor. —Mas como? —Tenho intenção de me casar com ela. Woody se sentiu como se o tivessem esbofeteado. —te casar com o Joanne? —Sim. Não é fantástico? Woody foi incapaz de ocultar sua consternação. —Sabe ela? Bexforth riu e deu umas palmadas ao Woody no ombro com atitude condescendente. —Pois claro que sabe, e está encantada. Sou o homem mais afortunado do mundo. Era evidente que Bexforth tinha adivinhado que Woody se sentia atraído pelo Joanne. Woody se sentiu como um estúpido. —Felicidades —disse com desalento. —Obrigado. Bexforth se afastou. Woody deixou sua taça intacta. —Joder —murmurou. E partiu. IV Em primeiro de setembro foi um dia sufocante no Berlim. Carla von Ulrich despertou banhada em suor e incômoda, com os lençóis no chão depois de uma noite de intenso calor. Olhou pela janela de seu dormitório e viu a cidade coberta por uma capa de nuvens cinzas e baixas que encerravam o calor como a coberta de uma panela. Aquele era um grande dia para ela. De fato, ia decidir o rumo de sua vida. colocou-se frente ao espelho. Tinha herdado a tez de sua mãe, e o cabelo negro e os olhos verdes dos Fitzherbert. Era mais bonita que Maud, que tinha facções angulosas, mais impactantes que belas. Mas havia uma diferença ainda major entre elas. Sua mãe atraía a virtualmente todos os homens que conhecia. Carla, por o contrário, não sabia flertar. Via fazê-lo a outras garotas de sua idade, luzindo sorrisos afetados, atendo-os jerséis à altura do peito, apartando o cabelo e pestanejando, e se sentia morta de calor. Sua mãe era mais sutil, naturalmente, de modo que os homens não podiam saber que os estava enfeitiçando, mas em essência era o mesmo jogo. Em qualquer caso, aquele dia Carla não queria parecer atrativa. Pelo contrário, precisava dar uma impressão de jovem pragmática, sensata e competente. ficou um singelo vestido de algodão de cor pedra que lhe chegava até meia pantorrilha, calçou as sandálias plainas e nada sofisticadas da escola e se recolheu o cabelo em duas tranças, seguindo o popular estilo de donzela alemã. O espelho lhe devolveu a imagem da estudante ideal: conservadora, séria, assexuada. levantou-se e arrumado antes que o resto da família. A criada, Ada, estava na cozinha, e Carla a ajudou a pôr a mesa para o café da manhã. O seguinte em aparecer foi seu irmão. Erik, de dezenove anos e com bigode negro e recortado; apoiava aos nazistas, algo que enfurecia ao resto da família. Estudava na Charité, a faculdade de medicina da Universidade do Berlim, igual a seu melhor amigo Hermann Braun, também filonazi. Os Von Ulrich não podiam costear as taxas de matrícula, mas Erik tinha obtido uma beca. Carla também a tinha solicitado para estudar na mesma instituição. A entrevista teria lugar esse dia. Se saía graciosa, estudaria e chegaria a ser médico. Em caso contrário… Não tinha sabor do que outra profissão poderia dedicar-se. A chegada ao poder dos nazistas tinha destroçado a vida de seus pais. Seu pai já não era deputado do Reichstag; tinha perdido o cargo com a ilegalización da Partida Socialdemócrata e de todos outros partidos salvo o nazista. Não havia nenhum emprego que requeresse sua experiência como político e diplomático. ganhava a vida traduzindo artigos jornalísticos alemães para a embaixada britânica, onde ainda conservava alguns amigos. Sua mãe tinha sido famosa como jornalista de esquerdas, e os periódicos tinham vetados seus artigos. A Carla a situação parecia dilaceradora. Adorava a sua família, da que também formava parte Ada. Entristecia-lhe o declive de seu pai, que quando ela era menina tinha trabalhado com denodo e tinha gozado de certo poder político, e agora não era a não ser um homem derrotado. Ainda pior era a coragem que tinha demonstrado sua mãe, uma famosa representante sufragista na Inglaterra antes da guerra que agora repartia classes de piano para ganhar uns quantos Marcos. Mas ambos diziam que podiam suportar algo enquanto seus filhos tivessem uma vida feliz e satisfatória. Carla sempre tinha estado segura de que consagraria sua vida a fazer do mundo um lugar melhor, como tinham feito seus pais. Não sabia se teria seguido a seu pai na política ou a sua mãe no jornalismo, mas ambas as opções estavam já descartadas. A que outra profissão podia dedicar-se com um governo que premiava a crueldade e a brutalidade por cima de todo o resto? Seu irmão lhe tinha dado a pista. Os médicos faziam do mundo um lugar melhor à margem de quem governasse, pelo que se tinha proposto ingressar na faculdade de medicina. aplicava-se mais nos estudos que qualquer outra garota de sua classe e tinha aprovado todos os exames com notas excelentes, sobre tudo nas disciplinas de ciências. Estava melhor capacitada que seu irmão para obter uma beca. —Não há nenhuma garota em minha promoção —disse Erik. Parecia mal-humorado. Carla acreditava que não o fazia graça a idéia de que seguisse seus passos. Seus pais estavam orgulhosos de seus lucros, em que pese a seus repulsivos ideais políticos. Tal vez temia que o eclipsasse. —tirei melhores nota que você em tudo: biologia, química, matemática… —disse Carla. —Vale, vale. —E, em princípio, as garotas também podem solicitar a beca. Comprovei-o. Sua mãe entrou em final desta conversação, vestida com uma bata de muaré cinza, com dobro volta do cinturão ao redor de sua fina cintura. —Deveriam seguir suas próprias normas —disse—. Ao fim e ao cabo, isto é a Alemanha. —Sua mãe dizia que amava a seu país de adoção, e talvez o fizesse, mas desde a chegada dos nazistas tinha começado a fazer comentários irônicos fruto do desalento. Carla molhou o pão no café com leite. —Como se sentirá se a Inglaterra atacar a Alemanha? —Terrivelmente desgraçada, como me senti a última vez —respondeu—. Me casei com seu pai justo antes da Grande Guerra, e durante mais de quatro anos, todos os dias, aterrou-me a possibilidade de que pudessem matá-lo. —Mas de que bando estaria? —perguntou Erik com tom desafiante. —Sou alemã —disse ela—. Me casei com um alemão, para bem ou para mau. Claro que nunca imaginamos que fora a existir algo tão perverso e opressor como o regime nazista. Ninguém imaginou. —Erik grunhiu a modo de protesto; ela o evitou—. Mas uma promessa é uma promessa, e, em qualquer caso, quero a seu pai. —Ainda não estamos em guerra —repôs Carla. —Não de tudo —disse Maud—. Se os poloneses tiverem um pouco de sentido comum, recuarão e darão ao Hitler o que pede. —Isso é o que deveriam fazer —acrescentou Erik—. a Alemanha agora é forte. Podemos ficar com o que queiramos, gostem ou não. Maud pôs os olhos em branco. —Deus nos libere. ouviu-se a buzina de um carro. Carla sorriu. Um minuto depois, seu amiga Frieda Franck entrou na cozinha. ia acompanhar a Carla à entrevista, solo para lhe dar apoio moral. Ela também ia vestida como uma estudante sóbria e formal, embora, a diferença da Carla, tinha um armário repleto de roupa à última moda. Depois dela entrou seu irmão maior. A Carla, Werner Franck lhe parecia maravilhoso. Contrariamente à maioria dos meninos bonitos, ele era amável, atento e divertido. No passado tinha sido muito de esquerdas, mas seus antigos ideais pareciam haver-se desvanecido e se tornou apolítico. Tinha tido várias noivas, bonitas e modernas. De ter sabido flertar, Carla teria começado com ele. —Ofereceria-te café, Werner, mas solo temos sucedâneo e sei que em casa tomadas café autêntico —se desculpou Maud. —Quer que furte um pouco de nossa cozinha para você, frau Von Ulrich? —disse ele—. Acredito que o merece. Maud se ruborizou levemente, e Carla compreendeu, com uma pontada de desaprovação, que inclusive aos quarenta e oito anos sua mãe era sensível ao encanto daquele moço. Werner olhou seu relógio de ouro. —Tenho que ir —anunciou—. Ultimamente há uma atividade frenética no Ministério do Ar. —Obrigado por me trazer —disse Frieda. —Um momento… —disse Carla a Frieda—. Se tiver vindo de carro com o Werner, onde está sua bicicleta? —Fora. Trouxemo-la maça à parte traseira do carro. As duas garotas eram membros do Clube Ciclista Mercury e foram em bicicleta a todas partes. —Muita sorte na entrevista, Carla —disse Werner—. Adeus a todos. Carla acabou de comer o pão. Quando estava a ponto de ir-se, seu pai baixou. Não se tinha barbeado nem posto gravata. Carla o recordava algo rechoncho de quando era menina, mas agora estava magro. Walter a beijou carinhosamente. —Não escutamos as notícias! —disse Maud. Acendeu a rádio que havia em uma prateleira. Enquanto o aparelho se esquentava e entrava em funcionamento, Carla e Frieda partiram, sem ouvir as notícias. O hospital universitário se encontrava no Mitte, no centro do Berlim, onde viviam os Von Ulrich, de modo que o trajeto em bicicleta foi curto. Carla começou a sentir-se nervosa. Os gases que despediam os carros lhe resultavam nauseabundos, e nesse momento preferiria não ter tomado o café da manhã. Chegaram ao hospital, um edifício novo construído nos anos vinte, e se dirigiram ao despacho do professor Bayer, encarregado da recomendação de estudantes para a beca. Uma altiva secretária disse-lhes que chegavam logo e que esperassem. Carla desejou haver ficado chapéu e luvas. A teriam ajudado a parecer maior e mais séria, alguém em quem os doentes confiariam. A secretária teria sido amável com uma garota com chapéu. A espera foi larga, mas Carla lamentou que chegasse a seu fim e que a secretária lhe dissesse que o professor podia recebê-la já. —Boa sorte! —sussurrou-lhe Frieda. Carla entrou. Bayer era um homem magro, de uns quarenta e tantos anos e com bigode fino e grisalho. Estava sentado a um escritório e levava uma jaqueta de linho de cor canela sobre o colete de um traje de rua cinza. Na parede pendurava uma fotografia em que aparecia estreitando a mão do Hitler. longe de saudar a Carla, bramou: —O que é um número imaginário? Sua brutalidade a pilhou despreparada, mas ao menos era uma pergunta fácil. —A raiz quadrada de um número real negativo; por exemplo, a raiz quadrada de menos a gente —respondeu com voz trêmula—. Não lhe pode atribuir um valor numérico real, mas sim pode empregar-se em cálculos. O homem pareceu um pouco surpreso. Talvez tinha esperado deixá-la sem palavras. —Correto —disse, depois de vacilar um instante. Carla olhou ao redor. Não havia cadeira para ela. ia entrevistar a em pé? O professor lhe fez várias perguntas de química e biologia, às quais respondeu sem dificuldade. Começava a sentir-se algo mais relaxada. —Enjoa-te ao ver sangue? —perguntou ele de repente. —Não, senhor. —Estraguem! —repôs ele com ar triunfal—. Como sabe? —Assisti em um parto quando tinha onze anos —respondeu ela—. Vi bastante sangue. —Deveria ter avisado a um médico! —Fiz-o —replicou ela, indignada—, mas os bebês não esperam pelos médicos. —Hum. —Bayer se levantou—. Espera aqui. —E abandonou o despacho. Carla ficou ali, em pé. Estava sendo submetida a uma rigorosa prova, mas acreditava que no momento o estava fazendo bem. Felizmente, estava acostumada às conversações de concessões com homens e mulheres de todas as idades; as discussões acaloradas eram habituais no lar dos Von Ulrich, e ela mantinha-as com seus pais e seu irmão desde que lhe alcançava a memória. Bayer levava ausente já vários minutos. O que estava fazendo? Teria ido procurar a um colega para que conhecesse aquela candidata de qualidades sem precedentes? Isso seria muito esperar. Sentiu a tentação de agarrar um livro da estantería e ficar a ler, mas temia ofendê-lo, pelo que seguiu em pé sem fazer nada. Bayer voltou ao cabo de dez minutos com um maço de cigarro de cigarros. Não era possível que a tivesse deixado plantada em metade do despacho enquanto ele ia à tabacaria… Ou se tratava de outra prova? Começou a irritar-se. O professor se tomou seu tempo para acender um cigarro, como se precisasse pôr em ordem seus pensamentos. Ao cabo de um momento exalou a fumaça e perguntou: —De que modo trataria, como mulher, a um homem com uma infecção no pênis? Ela se sentiu sobressaltada e notou que se ruborizava. Nunca tinha falado do pênis com um homem. Mas sabia que tinha que ser forte em situações como aquela se queria chegar a ser médico. —Do mesmo modo que você, como homem, trataria uma infecção vaginal —respondeu. Ele parecia horrorizado e ela temeu ter sido insolente. apressou-se a acrescentar—: Examinaria minuciosamente a zona afetada, tentaria identificar a natureza da infecção e com toda probabilidade a trataria com sulfamida, embora deva admitir que na disciplina de biologia de minha escola não contemplamos este caso. —Alguma vez viu a um homem nu? —perguntou ele, cético. —Sim. Ele fingiu escandalizar-se. —Mas é uma jovem solteira! —Pouco antes de morrer, meu avô esteve acamado e sofreu incontinência. Eu ajudava a minha mãe a asseá-lo; ela não podia fazê-lo sozinha, pesava muito. —Esboçou um sorriso—. As mulheres fazem estas coisas a todas as horas, professor, com os mais pequenos e os mais velhos, com os doentes e os impedidos. Estamos acostumadas. Só os homens encontram embaraçosas estas tarefas. Ele parecia cada vez mais irado, embora Carla estava respondendo bem. O que era o que ia mau? Quase dava a impressão de que ele tivesse preferido intimidá-la com sua atitude e que suas respostas tivessem sido néscias. Apagou o cigarro com ar pensativo no cinzeiro que tinha sobre o escritório. —Temo-me que não é apta como candidata a esta beca —disse. Ela ficou atônita. No que tinha falhado? Tinha respondido a todas as perguntas! —por que não? —perguntou—. Minhas notas são irrepreensíveis. —É pouco feminina. Fala sem disfarces da vagina e do pênis. —foi você quem tirou o tema! Eu me limitei a responder a sua pergunta. —É evidente que cresceste em um entorno ordinário no qual viu a nudez dos varões de sua família. —Acredita que algum homem lhe trocaria o fralda a um ancião? Eu gostaria de vê-lo você fazendo-o! —E o pior de tudo: é desrespeitosa e impertinente. —Tem-me feito pergunta provocadoras! Se lhe tivesse dado respostas tímidas, haveria-me dito que não sou o bastante forte para ser médico, não é assim? Bayer emudeceu uns instantes, e ela soube que isso era exatamente o que haveria dito. —Tem-me feito perder o tempo —disse ela, e se encaminhou à porta. —te case —disse ele—. Tenha filhos para o Führer. Essa é sua função na vida. Cumpre com seu dever! Carla saiu e fechou de uma portada. Frieda a olhou inquieta. —O que passou? Carla se dirigiu à saída sem responder. Olhou à secretária, que parecia agradada, sabedora, sem dúvida, pelo que tinha ocorrido. —Felpa essa sonrisita de sua cara, zorra velha e murcha —lhe soltou, e teve a satisfação de ver sua comoção e seu horror. Uma vez fora do edifício, disse a Frieda: —Não tinha nenhuma intenção de me recomendar para a beca porque sou mulher. Minhas notas são irrelevantes. Tudo o que trabalhei não serviu para nada. —E rompeu a chorar. Frieda a abraçou. Um minuto depois, já se sentia melhor. —Não penso ter filhos para o maldito Führer —murmurou. —O que? —Vamos a casa. Contarei-lhe isso quando chegarmos. Montaram nas bicicletas. respirava-se um ar estranho nas ruas, mas Carla estava muito sumida em suas tribulações para perguntar-se o que estaria acontecendo. A gente se congregava ao redor dos alto-falantes que em ocasiões emitiam discursos do Hitler da Ópera Kroll, o edifício que substituía em suas funções ao incendiado Reichstag. Provavelmente estava a ponto de falar. Quando chegaram a casa dos Von Ulrich, Maud e Walter seguiam na cozinha, ele sentado junto à rádio com expressão carrancuda e de concentração. —Rechaçaram-me —anunciou Carla—. À margem do que digam suas normas, não querem conceder becas às garotas. —OH, Carla, sinto-o —disse sua mãe. —O que dizem na rádio? —Não te inteiraste? —respondeu Maud—. invadimos a Polônia esta manhã. Estamos em guerra. V A temporada tinha concluído em Londres, mas a maioria de seus habitantes seguiam na cidade por causa da crise. O Parlamento, pelo general em recesso em essa época do ano, tinha sido convocado em sessão extraordinária. Mas não se celebravam festas, nem recepções reais, nem dance. Era como encontrar-se em um centro turístico de praia em fevereiro, pensou Daisy. Aquele dia era sábado e ela se preparava para ir jantar a casa de seu sogro, o conde Fitzherbert. Podia haver algo mais tedioso? sentou-se ao penteadeira com um vestido de ornamento de seda de cor verde pálido e decote em pico com saia vincada. Levava flores de seda no cabelo e uma fortuna em diamantes ao redor do pescoço. Seu marido, Boy, também se preparava em seu vestidor. alegrava-se de que estivesse ali. Ele passava muitas noites fora. Embora viviam na mesma casa do Mayfair, às vezes transcorriam vários dias sem que se vissem. Mas essa noite ele estava em casa. Agarrou uma carta que sua mãe lhe tinha escrito desde o Buffalo. Olga tinha deduzido que não era feliz em seu matrimônio. Daisy devia ter deixado entrever algo em suas cartas. Sua mãe tinha boa intuição. Solo quero que seja feliz —lhe escrevia—, de modo que me faça caso quando te digo que não te renda muito logo. Algum dia será a condessa Fitzherbert, e seu filho, se o tiver, será conde. Poderia te arrepender de atirar todo isso pela amurada só porque seu marido não te empresta suficiente atenção. Talvez tivesse razão. Todos se dirigiam ao Daisy como milady desde fazia já quase três anos, embora era algo que seguia lhe produzindo um rapto de prazer, como uma imersão a um cigarro. Entretanto, Boy parecia opinar que aquele matrimônio não tinha por que alterar em nada sua vida. Passava as noites com amigos, viajava por todo o país para assistir a carreiras de cavalos e rara vez informava a sua esposa de seus planos. Ao Daisy resultava abafadiço ir a uma festa e surpreender-se ao encontrar-lhe ali. Mas se queria saber aonde ia, tinha que perguntar a sua ajuda de câmara, e aquilo era muito degradante. Iria maturando pouco a pouco e começaria a comportar-se como correspondia a um marido, ou seria sempre assim? Boy apareceu pela porta. —Vamos, Daisy, chegaremos tarde. Guardou a carta de sua mãe em uma gaveta, fechou-o com chave e saiu. Boy a esperava no vestíbulo, embelezado com smoking. Fitz tinha sucumbido finalmente na moda e permitia a assistência a seus jantares com esse traje informal. Poderiam ter ido caminhando até a moradia do Fitz, mas chovia e Boy tinha pedido que lhe levassem o carro. Era um turismo Bentley Airline de cor nata e aros brancos. Boy compartilhava a paixão de seu pai pelos carros bonitos. Boy ficou ao volante. Daisy confiava em que à volta a deixasse conduzir a ela. Gostava de conduzir e, em qualquer caso, não era sensato que o fizesse ele depois de jantar, especialmente com o pavimento molhado. Londres se preparava para a guerra. Por toda a cidade flutuavam globos de barreira a uns seiscentos metros de altitude para entorpecer a ação dos bombardeiros. Em caso de que falhassem, empilhou-se sacos de areia no exterior dos edifícios importantes. Também se tinha pintado de branco os paralelepípedos alternos dos meio-fios para que os condutores pudessem orientar-se melhor durante os blecautes, que tinham começado no dia anterior, assim como franjas brancas nos árvores de maior envergadura, nas estátuas das ruas e em outros obstáculos que pudessem ocasionar acidentes. A princesa B recebeu ao Boy e ao Daisy. Rondava os cinqüenta anos e estava grosa, mas seguia vestindo como uma jovencita. Aquela noite levava um vestido rosa adornado com contas e lentejoulas. Nunca falava daquilo que o pai do Daisy tinha arejado nas bodas, mas tinha deixado de insinuar que Daisy era inferior socialmente, e agora sempre se dirigia a ela com cortesia, se não com calidez. Daisy se mostrava cautelosamente cordial, e tratava a B como a uma tia ligeiramente assobiada. O irmão pequeno do Boy, Andy, já estava ali. Mai e ele tinham dois filhos, e aos curiosos olhos do Daisy dava a impressão de que Mai estivesse esperando o terceiro. Boy, obviamente, queria ter um filho varão, que seria o herdeiro do título e a fortuna dos Fitzherbert, mas no momento Daisy não se ficou grávida. Era um tema espinhoso, e a evidente fecundidade do Andy e Mai o agravava. Daisy teria tido mais possibilidades de ficar grávida se Boy tivesse passado mais noites em casa. adorou encontrar ali a sua amiga Eva Murray, embora sem seu marido. Jimmy Murray, agora capitão, encontrava-se com sua unidade e não tinha podido ausentar-se, pois a maioria dos soldados estavam nos barracões e, com eles, os oficiais. Eva formava já parte da família, pois Jimmy era irmão do Mai, e por conseguinte converteram-se em parentes políticas. Por isso, Boy se tinha visto obrigado a superar seus prejuízos contra os judeus e a mostrar-se educado com a Eva. Eva seguia adorando ao Jimmy como no dia de suas bodas, três anos antes. Também eles tinham tido dois filhos nesse tempo. Mas aquela noite Eva parecia preocupada, e ao Daisy não custou imaginar o motivo. —Como estão seus pais? —perguntou-lhe. —Não podem sair da Alemanha —respondeu Eva, abatida—. O governo não lhes concede o visto para viajar ao estrangeiro. —Fitz não pode fazer nada? —Tentou-o. —O que têm feito para merecer isto? —Não são sozinho eles. Há milhares de judeus alemães na mesma situação. Solo uns poucos conseguem o visto. —Lamento-o. Suas palavras ficavam curtas para expressar o que sentia. estremeceu-se morta de calor ao recordar que Boy e ela tinham apoiado aos fascistas em seus inícios. Ela começou a albergar dúvidas rapidamente à medida que a brutalidade do fascismo, tanto no país como fora, tornava-se mais evidente, e ao final sentiu inclusive alívio quando Fitz lhes disse que o estavam morrendo de calor e lhes suplicou que abandonassem a partida do Mosley. Agora Daisy se sentia completamente néscia por haver inclusive chegado a filiar-se a ele. Boy não estava tão arrependido. Seguia acreditando que os europeus de classe alta constituíam uma raça superior, escolhida Por Deus para governar a Terra. Mas já não considerava-a uma filosofia política prática. A democracia britânica o enfurecia freqüentemente, embora não advogava por aboli-la. sentaram-se para jantar cedo. —Neville vai comparecer na Câmara dos Comuns às sete e meia —disse Fitz. Neville Chamberlain era primeiro-ministro—. Quero vê-lo. Sentarei-me na tribuna dos pares. Talvez tenha que lhes deixar antes da sobremesa. —O que crie que vai ocorrer, papai? —perguntou Andy. —Na verdade não sei —respondeu Fitz com uma nota de exasperação—. Naturalmente, todos preferiríamos evitar a guerra, mas é importante não dar uma imagem de indecisão. Daisy se surpreendeu. Fitz acreditava na lealdade e raramente criticava a seus colegas do governo, nem sequer de forma tão indireta. —Se estalar a guerra, irei viver ao Ty Gwyn —disse a princesa B. Fitz negou com a cabeça. —Se estalar a guerra, o governo pedirá a todos os proprietários de mansões que as ponham a disposição do exército enquanto dure. Como membro do governo, devo dar exemplo. Terei que ceder Ty Gwyn aos Fuzileiros Galeses para que a utilizem como centro de treinamento, ou possivelmente como hospital. B estava indignada. —Mas é minha casa de campo! —Talvez possamos reservar parte da casa para uso privado. —Não quero viver em uma pequena parte da casa! Sou uma princesa! —Possivelmente seria acolhedor. Poderíamos utilizar a despensa do mordomo como cozinha, e a sala do café da manhã como salão, além de três ou quatro habitações pequenas. —Acolhedor! —B parecia enojada, como se lhe tivessem colocado diante algo vomitivo, mas não disse nada mais. —É possível que Boy e eu tenhamos que nos alistar nos Fuzileiros Galeses —interveio Andy. Mai emitiu um som gutural, similar a um soluço. —Eu me alistarei nas Forças Aéreas —disse Boy. Fitz estava perplexo. —Mas… não pode. O visconde do Aberowen sempre combateu com os Fuzileiros Galeses. —Não dispõem de aviões. A próxima guerra será aérea. A RAF necessitará desesperadamente pilotos. E eu levo anos voando. Fitz estava a ponto de iniciar uma discussão, mas nesse momento entrou o mordomo e disse: —O carro está preparado, milord. Fitz olhou o relógio que havia sobre o suporte da chaminé. —Diabo! Tenho que ir. Obrigado, Grout. —Olhou ao Boy—. Não tome uma decisão definitiva até que tenhamos falado mais a respeito. Está equivocado. —Muito bem, papai. Fitz olhou a B. —me desculpe, querida, por partir em metade do jantar. —É obvio —disse ela. Fitz se levantou da mesa e se dirigiu à porta. Sem poder evitá-lo, Daisy reparou em sua claudicação, um funesto aviso das seqüelas da última guerra. O resto do jantar transcorreu sumida no desânimo. Todos se perguntavam se o primeiro-ministro declararia a guerra. Quando as damas ficaram em pé para retirar-se, Mai pediu ao Andy que lhe oferecesse seu braço. Ele se desculpou ante os outros dois homens. —Minha esposa se encontra em um estado delicado. —Era o eufemismo habitual para referir-se ao embaraço. —Oxalá minha esposa fosse igual de rápida para ficar delicada —disse Boy. Foi um golpe baixo, e Daisy notou como lhe acendia o rosto. Conteve uma réplica, mas imediatamente se perguntou por que tinha que guardar silêncio. —Já sabe o que dizem os jogadores de futebol, Boy —respondeu em voz bem alta—: para marcar, terá que disparar. Agora foi Boy quem se ruborizou. —Como te atreve! —espetou-lhe, furioso. Andy se pôs-se a rir. —Procuraste-lhe isso, irmão. —Basta, os dois —exclamou B—. Espero de meus filhos que sejam o bastante respeitosos para encetar-se nesta classe de discussões quando as damas se ausentaram. —E partiu. Daisy a seguiu, mas se separou das demais mulheres no patamar e subiu as escadas, ainda irada e com vontades de estar sozinha. Como podia Boy dizer algo assim? Na verdade a considerava responsável por que não ficasse grávida? A mesma parte de culpa tinha ele! Talvez sabia e tentava culpá-la porque temia que a gente acreditasse que era estéril. Provavelmente essa era a verdade, embora isso não justificava um insulto em público. dirigiu-se a seu antigo dormitório. depois de casar-se, tinham vivido três meses ali enquanto redecoraban sua futura casa. alojaram-se em duas habitações, a do Boy e a contigüa, embora nnaquele tempo naquele tempo dormiam juntos todas as noites. Entrou e acendeu a luz. Para sua surpresa, viu que tudo dava a impressão de que Boy seguia vivendo ali. Havia uma navalha de barbear no lavamanos e um exemplar da revista Flight na mesinha de noite. Abriu uma gaveta e encontrou uma lata do Leonard’s Liver-Aid, remédio que tomava todas as manhãs antes do café da manhã. Dormia ali quando se encontrava em um estado de embriaguez o bastante nauseabundo para não dar a cara ante sua esposa? A gaveta inferior estava fechada com chave, mas sabia que a guardava em um jarro que havia sobre o suporte da chaminé. Não teve reparos em farejar; a seu modo de ver, seu marido não devia ter secretos com ela. Abriu a gaveta. O primeiro que encontrou foi um livro de fotografias de mulheres nuas. Pelo general, nos quadros e as fotografias artísticas as mulheres posavam ocultando quase por completo suas partes íntimas, mas aquelas garotas faziam justo o contrário: pernas em jarras, nádegas separadas, inclusive os lábios da vagina abertos para deixar à vista seu interior. Daisy fingiria comoção se alguém a surpreendia, mas em realidade estava fascinada. Folheou todo o livro com supremo interesse, comparando-se com aquelas mulheres: o tamanho e a forma de seus seios, a quantidade de pêlo, seus órgãos sexuais. Que maravilhosa variedade existia entre os corpos femininos! Algumas das garotas se estimulavam, ou aparentavam fazê-lo, e outras apareciam em casais, a estimulando-se uma à outra. No fundo, ao Daisy não surpreendia que aos homens gostasse dessa classe de coisas. sentia-se uma bisbilhoteira. Aquilo lhe fez recordar a época em que ia a sua habitação no Ty Gwyn, antes de casar-se. Nnaquele tempo naquele tempo estava se desesperada por saber mais dele, por conhecer intimamente ao homem ao que amava, por encontrar o modo de fazê-lo seu. A que se dedicava agora? A espiar a seu marido, que já não parecia querê-la, e a tratar de compreender o que tinha feito mal. Debaixo do livro havia uma bolsa de papel marrom. Dentro, vários envelopes pequenos e quadrados, de cor branca e com inscrições em vermelho no anverso. Leu-as: Prentif. Marca registrada SERVISPAK ADVERTÊNCIA Não deixar o sobre nem seu conteúdo em lugares públicos. Poderia resultar ofensivo Manufatura britânica Borracha de látex Suporta todos os climas Nada daquilo tinha sentido. Tampouco especificava o que continha o sobre, de modo que o abriu. Dentro havia uma peça de borracha. Desenrolou-a. Tinha forma de tubo, fechado por um extremo. Levou-lhe vários segundos cair na conta do que era. Nunca tinha visto um, mas tinha ouvido às pessoas falar deles. Os americanos o chamavam troyano; os britânicos, borracha. O término correto era preservativo, e servia para acautelar embaraços. por que tinha seu marido uma bolsa enche? Solo podia haver uma resposta: para utilizá-los com outra mulher. Sentiu vontades de chorar. Tinha-lhe dado tudo o que ele queria. Nunca lhe havia dito que estava muito cansada para fazer o amor —embora o estivesse— nem lhe havia negado nada do que lhe propunha na cama. Inclusive teria posado como as mulheres do livro, se o tivesse pedido. O que tinha feito mal? Decidiu que o perguntaria. A aflição se tornou em cólera. ficou em pé. Baixaria os envelopes de papel ao salão e os plantaria diante. por que tinha que proteger seus sentimentos? Nesse instante entrou ele. —Vi a luz do vestíbulo —disse—. O que faz aqui? —Viu as gavetas abertas da mesinha de noite—. Como te atreve a me espiar? —Suspeitava que me estava sendo infiel —respondeu ela. Sustentou em alto o preservativo—. E estava no certo. —Maldita bisbilhoteira! —Maldito adultero! Boy levantou uma mão. —Deveria te pegar como um marido vitoriano. Ela agarrou um pesado candelabro do suporte da chaminé. —Tenta-o e te golpearei eu como uma esposa do século XX. —Isto é ridículo —disse ele, e se sentou pesadamente em uma cadeira que havia junto à porta, com ar derrotado. Sua visível desdita apaziguou a ira do Daisy, que já solo sentia tristeza. sentou-se na cama. Entretanto, não tinha perdido a curiosidade. —Quem é ela? Ele sacudiu a cabeça. —Que mais dá. —Quero sabê-lo! Ele se removeu, incômodo. —Acaso importa? —É obvio que sim. —Sabia que acabaria surrupiando-lhe —Bueno, un día Joanie tenía…, como dicen los franceses, elle avait les fleurs. Ele não a olhava. —Ninguém que conheça ou que vás conhecer. —Uma prostituta? A sugestão o feriu. —Não! Ela seguiu incitando-o. —Paga-lhe? —Não. Sim. —Era evidente que se sentia muito morto de calor para negá-lo—. Bom, uma atribuição. Não é o mesmo. —por que lhe paga, se não ser uma prostituta? —Para que não tenham que ver ninguém mais. —Tenham? Tem várias amantes? —Não! Só dois. Vivem no Aldgate. São mãe e filha. —O que? Não pode falar a sério… —Bom, um dia Joanie tinha…, como dizem os franceses, elle avait os fleurs. —As garotas americanas a chamam a maldição. —Assim Pearl se ofereceu a… —A fazer de suplente? É o mais sórdido que se pode imaginar! Então, deita-te com as duas? —Sim. Daisy pensou no livro de fotografias, e de repente lhe assaltou uma vergonhosa possibilidade. Tinha que perguntar-lhe —Sí —dijo Daisy. Aquel parecía un momento apropiado para la verdad, por lo que añadió—: Me toca el culo siempre que puede. —Mas não de uma vez… —Ocasionalmente. —É de tudo repugnante. —Não tem que preocupar-se pelas enfermidades. —Assinalou o preservativo que ela tinha nisso mão evita o contágio. —Aflige-me sua consideração. —Olhe, a maioria dos homens fazem estas coisas, sabe. Ao menos, a maioria dos homens de nossa classe. —Não, não o fazem —disse, mas pensou em seu pai, que tinha uma mulher e uma amante desde fazia muitos anos, e mesmo assim precisava flertar com o Gladys Angelus. —Meu pai não é fiel —disse Boy—. Tem filhos bastardos por toda parte. —Não te acredito. É evidente que quer a sua mãe. —Estou seguro de que ao menos tem um. —Onde? —Não sei. —Então não pode estar tão seguro. —Uma vez ouvi que dizia algo ao Bing Westhampton. Já sabe como é Bing. —Sim —disse Daisy. Aquele parecia um momento apropriado para a verdade, pelo que acrescentou—: Me toca o culo sempre que pode. —Velho verde. Em qualquer caso, todos estávamos um pouco bêbados, e Bing disse: A maioria temos um ou dois bastardos escondidos por aí, não é assim?. E papai respondeu: Eu estou bastante seguro de que solo tenho um. Então pareceu cair na conta do que acabava de dizer, pigarreou como um idiota e trocou de tema. —Bem, não me importa quantos filhos bastardos tenha seu pai, sou uma garota norte-americana moderna e não penso viver com um marido infiel. —E o que vais fazer? —Deixarei-te. —Pôs uma expressão desafiante, mas se sentia ferida, como se ele a tivesse apunhalado. —E voltará para o Buffalo com o rabo entre as pernas? —É possível. Ou poderia fazer alguma outra coisa. Tenho muito dinheiro. —Quando se casaram, os advogados de seu pai se asseguraram de que Boy não colocasse as garras em a fortuna Vyalov-Peshkov—. Poderia ir a Califórnia. Atuar em um dos filmes de meu pai. me fazer estrela de cinema. Estou segura de que o conseguiria. —Tudo era uma impostura. Solo queria chorar. —Pois me deixe —disse ele—. Por mim pode ir ao inferno. Ela se perguntou se seria verdade. lhe olhando à cara, acreditou que não. Ouviram um carro. Daisy apartou um pouco a cortina opaca e viu o Rolls-Royce negro e nata do Fitz, com a luz atenuada pelos ralos dos faróis. —Seu pai há voltado —disse—. Me pergunto se estaremos em guerra. —Será melhor que baixemos. —Vê você diante. Boy saiu e Daisy se olhou no espelho. surpreendeu-se ao ver que seu aspecto não diferia do da mulher que tinha entrado ali meia hora antes. Sua vida se havia transtornado, mas não havia indício disso em seu semblante. Sentia uma imensa lástima por si mesma e queria chorar, mas se conteve. Fez de tripas coração e baixou. Fitz estava no salão, com gotas de chuva nos ombros do smoking. Como tinha tido que ir-se antes da sobremesa, Grout, o mordomo, tinha-lhe levado queijo e fruta. A família se sentou ao redor da mesa enquanto Grout lhe servia uma taça de burdeos. —foi absolutamente espantoso —disse Fitz depois de tomar um gole. —Que demônios ocorreu? —perguntou Andy. Fitz degustou uma lâmina de queijo cheddar antes de responder. —Neville falou quatro minutos. foi o pior comparecimento de um primeiro-ministro que jamais vi. Balbuciava e divagava, e disse que é provável que a Alemanha retire-se da Polônia, algo que não se crie ninguém. Nenhuma palavra sobre a guerra, nem tampouco sobre um ultimato. —Mas por que? —disse Andy. —Em privado, Neville diz que está esperando a que os franceses deixem de titubear e declarem a guerra simultaneamente conosco. Mas muitos suspeitam que não é mais que uma desculpa covarde. —Tomou outro gole de vinho—. depois dele falou Arthur Greenwood. —Greenwood era deputado e dirigente da Partida Trabalhista—. Quando ficou em pé, Leio Amery, um parlamentario conservador, por certo, gritou: Fala pela Inglaterra, Arthur!. E pensar que um maldito socialista podia falar pela Inglaterra enquanto um primeiro-ministro conservador não tinha sabido fazê-lo! Neville parecia chateado. Grout lhe encheu a taça. —Greenwood esteve bastante moderado, mas há dito: Pergunto-me quanto tempo podemos nos permitir seguir duvidando, e para ouvir isto parlamentarios dos dois lados da câmara estalaram em gritos e vítores. Estou seguro de que Neville queria que o tragasse a terra. —Fitz agarrou um pêssego e o cortou em rodelas com faca e garfo. —Como ficaram as coisas? —perguntou Andy. —Não se resolveu nada! Neville voltou para número dez do Downing Street. Mas a maior parte do gabinete se encerrou no despacho do Simon, na Câmara dos Comuns. —Sir John Simon era chanceler do Exchequer—. Dizem que não sairão até que Neville envie um ultimato aos alemães. Enquanto isso, o Comitê Executivo Nacional trabalhista está reunido, e parlamentarios descontentes se reúnen também no piso do Winston. Daisy sempre tinha afirmado que não gostava da política, mas desde que formava parte da família do Fitz e o via tudo de dentro tinha começado a interessar-se por ela, e a situação lhe parecia fascinante e aterradora. —Então, o primeiro-ministro deve atuar! —disse. —Sim, sem dúvida —conveio Fitz—. antes de que o Parlamento volte a reunir-se amanhã ao meio dia, acredito que Neville deveria declarar a guerra ou demitir. Soou o telefone no vestíbulo e Grout foi responder. Um minuto depois voltou e disse: —Chamavam do Foreign Office, milord. O cavalheiro não quis esperar a que você ficasse ao telefone, mas insistiu em que lhe transmita um recado —o ancião mordomo parecia desconcertado, como se lhe tivessem falado com brutalidade—: o primeiro-ministro convocou uma reunião imediata do gabinete. —Movimento! —disse Fitz—. Bem! —Ao secretário do Foreign Office —prosseguiu Grout— gostaria que você assistisse, se não ter inconveniente. Fitz não formava parte do gabinete, mas em ocasiões se solicitava aos subsecretários que assistissem a reuniões de seu âmbito de especialização, nas que não se sentavam à mesa central a não ser a um lado da sala para responder a perguntas muito pormenorizadas. B olhou o relógio. —São quase as onze. Suponho que tem que assistir. —Sim, devo ir. A frase: Se não ter inconveniente é um mero formalismo. —deu-se uns toquecitos nos lábios com um guardanapo níveo e voltou a partir mancando. —Prepara mais café, Grout —disse a princesa B—, e leva-o a sala de estar. Pode que esta noite nos deitemos tarde. —Sim, alteza. Todos voltaram para a sala de estar, conversando animadamente. Eva estava a favor da guerra: queria ver esmagado o regime nazista. Lamentava-o pelo Jimmy, é obvio, mas se tinha casado com um soldado e sempre tinha sabido que ele teria que arriscar sua vida em combate. B também era partidária da guerra, agora que os alemães se tinham aliado com os bolcheviques aos que tanto odiava. Mai temia que pudessem matar ao Andy e era incapaz de deixar de chorar. Boy não entendia por o que dois grandes países como a Inglaterra e Alemanha tinham que ir à guerra por um baldio semibárbaro como a Polônia. Assim que teve ocasião, Daisy pediu a Eva que a acompanhasse a outra estadia onde pudessem falar em privado. —Boy tem uma amante —lhe disse imediatamente. Mostrou a Eva os preservativos—. encontrei isto. —OH, Daisy, sinto-o —disse Eva. Daisy pensou em compartilhar com a Eva os truculentos detalhes —estavam acostumados a contar-lhe tudo—, mas nessa ocasião se sentia muito humilhada, pelo que se limitou a dizer: —Enfrentei a ele, e o admitiu. —arrepende-se? —Não exatamente. Diz que todos os homens de sua classe o fazem, incluído seu pai. —Jimmy não —repôs Eva com determinação. —Não, estou segura de que não. —O que vais fazer? —vou deixar lhe. Podemos nos divorciar para que outra mulher seja a viscondessa. —Mas não poderá se estalar a guerra! —por que não? —É muito cruel, ele estará no campo de batalha. —Deveria ter pensado nisso antes de deitar-se com um par de prostitutas do Aldgate. —Mas, além disso, seria covarde. Não pode deixar a um homem que está arriscando a vida para te proteger. Reticente, Daisy compreendeu seu argumento. A guerra transformaria ao Boy, um desprezível adultero que merecia repulsa, em um herói que defendia a sua esposa, a seu mãe e a seu país do terror da invasão e a conquista. E não lhe preocupava sozinho que todo mundo em Londres e no Buffalo fosse ver a como uma covarde por abandoná-lo, mas sim ela também se sentiria assim. Se ia haver uma guerra, queria ser valente, embora não estava segura do que isso podia implicar. —Tem razão —disse a contra gosto—. Não posso lhe deixar se estalar a guerra. ouviu-se um trovão. Daisy olhou o relógio; era meia-noite. O som da chuva se voltou estrepitoso quando esta se converteu em um aguaceiro torrencial. Daisy e Eva voltaram para a sala de estar. B dormia em um sofá. Andy rodeava com um braço ao Mai, que seguia soluçando. Boy fumava um charuto e bebia brandy. Daisy decidiu que, definitivamente, seria ela quem conduziria de volta a casa. Fitz chegou acontecida a meia-noite, com o smoking empapado. —acabou-se o hesitação —disse—. Pela manhã Neville enviará um ultimato aos alemães. Se não começarem a retirar suas tropas da Polônia a meio-dia, às onze de aqui, estaremos em guerra. Todos se levantaram e se dispuseram a partir. —Eu conduzirei —disse Daisy, já no vestíbulo. Boy não se opôs. Subiram ao Bentley de cor nata, e Daisy pôs em marcha o motor. Grout fechou a porta de casa. Daisy acionou os limpador de pára-brisas, mas não moveu-se. —Boy —disse—, voltemos a tentá-lo. —A que te refere? —Não quero te deixar. —E eu não quero que vá. —Deixa de ver essas mulheres do Aldgate. Dorme comigo todas as noites. vamos tentar de verdade ter um bebê. Isso é o que quer, não é assim? —Sim. —Então, fará o que te peço? Houve um comprido silencio. —De acordo —disse ele ao cabo. —Obrigado. Ela o olhou; esperava um beijo, mas ele permaneceu imóvel, olhando ao frente a través do vidro enquanto os rítmicos limpador de pára-brisas retiravam a incessante chuva. VI no domingo deixou de chover e saiu o sol. Lloyd Williams tinha a sensação de que lhe tinham lavado a cara a Londres. Ao longo da manhã a família Williams foi congregando-se na cozinha da casa do Ethel, no Aldgate. Não o tinham planejado, mas sim todos foram apresentando-se ali de forma espontânea. Queriam estar juntos, supôs Lloyd, se se declarava a guerra. Lloyd ansiava que se atuasse contra os fascistas, e ao mesmo tempo sentia pavor ante a perspectiva da guerra. Na Espanha já havia visto suficiente sangre derramada e sofrimento para o que ficava de vida. Mesmo assim, confiava com toda sua alma que Chamberlain não recuasse. Tinha sido testemunha na Alemanha do que significava o fascismo, e os rumores procedentes da Espanha eram igual de aterradores: o regime de Franco estava assassinando aos antigos partidários do governo eleito por centenares e milhares, e os sacerdotes voltavam a controlar as escolas. Aquele verão, justo depois de graduar-se, alistou-se nos Fuzileiros Galeses, e como antigo membro do Corpo de Instrução de Oficiais lhe havia atribuído a fila de tenente. O exército se preparava com brio para o combate, e lhe tinha resultado muito difícil conseguir uma permissão de vinte e quatro horas para visitar sua mãe o fim de semana. Se o primeiro-ministro declarava a guerra esse dia, Lloyd se contaria entre os primeiros em ir. Billy Williams chegou à casa do Nutley Street no domingo pela manhã, depois do café da manhã. Lloyd e Bernie estavam sentados junto à rádio com os periódicos abertos sobre a mesa da cozinha enquanto Ethel preparava uma perna de porco para o jantar. O tio Billy esteve a ponto de chorar ao ver o Lloyd uniformizado. —É sozinho que me faz pensar em nosso Dave —disse—. Agora seria um recruta, se tivesse retornado da Espanha. Lloyd nunca lhe tinha contado ao Billy a verdade sobre como tinha morrido Dave. Fingia desconhecer os detalhes, que o único que sabia era que Dave tinha morrido em ato de serviço no Belchite e que provavelmente estava enterrado ali. Billy tinha participado da Grande Guerra e sabia a displicência com que se tratavam os corpos dos cansados no campo de batalha, e sem dúvida isso agravava sua dor. Seu grande esperança era poder visitar Belchite algum dia, quando a Espanha fora livre ao fim, e apresentar seus respeitos ao filho que morreu lutando por aquela grande causa. Lenny Griffiths era outro dos que nunca retornaram da Espanha. Ninguém sabia onde podia estar enterrado. Era inclusive possível que seguisse vivo, em algum dos campos de prisioneiros de Franco. Nesse momento a rádio emitiu o discurso breve do primeiro-ministro Chamberlain na Câmara dos Comuns da noite anterior, mas não deu mais informação. —Ou seja a animação que se montaria depois —comentou Billy. —A BBC nunca informa das animações —disse Lloyd—. Sempre tentam tranqüilizar. Billy e Lloyd eram membros da Executiva Nacional da Partida Trabalhista, Lloyd como representante da seção juvenil da partida. depois de voltar da Espanha, as tinha engenhado para que o readmitissem na Universidade de Cambridge, e enquanto terminava seus estudos tinha percorrido o país dirigindo-se a grupos da Partida Trabalhista, explicando às pessoas como o governo eleito da Espanha tinha sido traído pelo britânico, afim aos fascistas. De nada tinha servido —os rebeldes antidemocráticos de Franco tinham acabado ganhando—, mas Lloyd se converteu em um personagem conhecido, inclusive em uma espécie de herói, especialmente entre os jovens de esquerdas, daí sua eleição para a Executiva. Assim, tanto Lloyd como o tio Billy tinham assistido a noite anterior à reunião do comitê. Sabiam que Chamberlain tinha prometido pressionar do gabinete e enviado o ultimato ao Hitler. Agora esperavam em brasas o desenlace. Pelo que sabiam, ainda não se tinha recebido resposta do Hitler. Lloyd se lembrou do Maud, a amiga de sua mãe, e de sua família, que viviam no Berlim. Os dois meninos teriam já dezessete e dezenove anos, calculou. Imaginava sentados ao redor de uma rádio perguntando-se se acabariam encetados em uma guerra contra Inglaterra. Às dez em ponto chegou a meio-irmã do Lloyd, Millie. Tinha dezenove anos e estava casada com o irmão de seu amiga Naomi Avery, Abe, um atacadista de couro. Ganhava bastante dinheiro como dependienta a comissão em uma loja de roupas cara. Tinha intenção de abrir no futuro seu próprio estabelecimento, e Lloyd não duvidava de que acabaria fazendo-o. Embora não era a profissão que Bernie teria eleito para ela, Lloyd via o orgulhoso que se sentia de sua inteligência, sua ambição e sua elegância. Entretanto, aquele dia sua serena confiança se derrubou. —Quando esteve na Espanha foi horrível —disse ao Lloyd entre lágrimas—. E Dave e Lenny não voltaram. Agora você e meu Abie lhes partirão ou seja onde e as mulheres passaremo-nos aqui o dia esperando suas notícias, nos perguntando se já haveriam morto. —E também sua primo Keir. Já tem dezoito anos —interveio Ethel. —Em que regimento combateu meu pai biológico? —perguntou Lloyd a sua mãe. —OH, acaso importa isso? —Nunca se mostrava muito disposta a falar do pai do Lloyd, talvez por consideração para com o Bernie. Mas Lloyd queria sabê-lo. —Sim me importa —disse. Ela jogou uma batata cortada em uma panela com mais ímpeto do necessário. —Combateu com os Fuzileiros Galeses. —Como eu! por que não me há isso dito antes? —Passado-o, passado está. Lloyd sabia que podia haver algum outro motivo que justificasse sua reserva. Talvez estivesse grávida quando se casou. Não era algo que incomodasse ao Lloyd, mas para a geração dela era ignominioso. Mesmo assim, insistiu. —Meu pai era galês? —Sim. —Do Aberowen? —Não. —De onde, então? Ela suspirou. —Seus pais viajavam muito, pelo trabalho de seu pai, mas acredito que eram da Swansea. Contente? —Sim. A tia Mildred chegou da igreja; era uma mulher moderna de média idade, bonita salvo por sua proeminente dentadura. Levava um caprichoso chapéu; regentaba um pequena oficina de chapéus. As duas filhas que tinha de seu primeiro matrimônio, Enid e Lillian, ambas perto já dos trinta anos, estavam casadas e tinham filhos. Seu primogênito era o Dave que tinha morrido na Espanha. Seu filho menor, Keir, entrou atrás dela na cozinha. Mildred insistia em levar a seus filhos à igreja, embora seu marido, Billy, não queria saber nada da religião. Já tive mais que suficiente quando era menino —estava acostumado a dizer—. Se ainda não estou salvo, ninguém o está. Lloyd olhou a seu redor. Aquela era sua família: sua mãe, seu padrasto, sua meio-irmã, seu tio, sua tia e sua primo. Não queria deixá-los e partir a algum lugar para morrer. Lloyd consultou seu relógio, um modelo de aço inoxidável com esfera quadrada que Bernie lhe tinha dado como presente de graduação. Eram as onze em ponto. Na rádio, a voz pastosa do locutor Alvar Liddell anunciou que se esperava que o primeiro-ministro comparecesse breve, ao que prosseguiu música clássica solene. —Agora, lhes cale todos —disse Ethel—. Depois lhes prepararei uma taça de chá. A cozinha ficou em silêncio. Alvar Liddell anunciou ao primeiro-ministro, Neville Chamberlain. O contemporizador do fascismo, pensou Lloyd, o homem que tinha entregue Checoslovaquia ao Hitler, o homem que se negou teimosamente a ajudar ao governo eleito da Espanha depois de que se fizesse incontestablemente óbvio que os alemães e os italianos estavam Armando aos rebeldes. ia ceder de novo? Lloyd observou como seus pais se davam a mão e como os dedos do Ethel se afundavam na palma do Bernie. Voltou a olhar o relógio. As onze e quinze. Então ouviram dizer ao primeiro-ministro: —Falo-lhes da sala de reuniões do gabinete, no número dez do Downing Street. A voz do Chamberlain era aguda e excessivamente meticulosa. Parecia um professor de escola pedante. O que precisamos é um guerreiro, pensou Lloyd. —Esta manhã o embaixador britânico no Berlim entregou ao governo alemão uma última notificação declarando que, a menos que o governo britânico fora informado por sua parte antes das onze em ponto de que estavam dispostos a retirar imediatamente suas tropas da Polônia, existiria entre nós um estado de guerra… Lloyd se impacientou com a palavrório do Chamberlain. Existiria entre nós um estado de guerra; que modo tão estranho de defini-lo. Segue —pensou—, vê o grão. É uma questão de vida ou morte. Chamberlain adotou um tom de voz mais profundo, digno de um estadista. Possivelmente já não olhava o microfone, mas sim via milhões de seus compatriotas em suas casas, sentados junto às rádios, esperando as fatídicas palavras. —Devo lhes comunicar que não se recebeu tal notificação. —OH, Deus nos libere —ouviu dizer a sua mãe. Olhou-a. Seu rosto se tingiu de um tom cinzento. Chamberlain pronunciou muito devagar as seguintes e funestas palavras. —… E que, por conseguinte, este país está em guerra com a Alemanha. Ethel rompeu a chorar. SEGUNDA PARTE Os anos sangrentos 6 1940 (I) I Aberowen tinha trocado. Em suas ruas havia carros, caminhões e ônibus. Quando Lloyd, de menino, tinha visitado a localidade para ir ver seus avós na década de 1920, um carro estacionado era uma raridade que atraía inclusive uma multidão. Entretanto, a cidade seguia estando dominada pelas torres geme as da bocamina, com suas rodas girando majestuosamente como sempre. Não havia nada mais: nem fábricas nem edifícios de escritórios, nenhuma outra indústria que não fora a do carvão. Quase todos os homens da localidade trabalhavam no fundo do poço, a exceção de tão só algumas dezenas: uns quantos lojistas, vários clérigos de todas as confissões, um secretário da prefeitura, um médico. Cada vez que a demanda de carvão caía e se produziam demissões, como tinha acontecido nos anos trinta, os mineiros não podiam dedicar-se a nenhuma outra atividade. Por isso a reclamação mais veemente da Partida Trabalhista era a de uma ajuda para os desempregados, para que esses homens não voltassem a sofrer jamais a angústia e a humilhação de ver-se incapazes de alimentar a suas famílias. O tenente Lloyd Williams chegou no trem do Cardiff um domingo de abril de 1940. Levava uma pequena mala e percorreu a pé toda a costa que subia até o Ty Gwyn. Tinha passado oito meses formando a novos recrutas —o mesmo trabalho do que se encarregou na Espanha— e treinando à equipe de boxe dos Fuzileiros Galeses, mas o exército por fim se deu conta de que falava alemão com fluidez, assim que o tinham destinado aos serviços secretos e o tinham enviado a um curso de instrução. A instrução era o único ao que se dedicou o exército até o momento. As tropas britânicas ainda não se enfrentaram ao inimigo em nenhum combate mínimamente significativo. Alemanha e a URSS tinham invadido a Polônia e a tinham repartido entre ambos, e a garantia de independência para os poloneses proposta pelos Aliados tinha ficado em nada. Os britânicos chamavam o conflito a guerra falsa, e estavam impacientem por que chegasse a hora da verdade. Lloyd não se fazia nenhuma ilusão romântica com a guerra; tinha ouvido as vozes lastimeras dos homens agonizantes suplicando um pouco de água nos frontes da Espanha. Mas mesmo assim, estava desejoso por dar começo à confrontação definitiva com o fascismo. O exército esperava enviar mais tropas a França, já que supunha que os alemães a invadiriam. Entretanto, nada disso tinha ocorrido ainda, assim que os soldados aguardavam preparados e, enquanto isso, não deixavam de receber instrução. A iniciação do Lloyd aos mistérios dos serviços segredos militares teria lugar na casa solariega que durante tanto tempo tinha ocupado um lugar preeminente no destino de sua família. Enriquecido-los e nobres proprietários de muitas dessas mansões as tinham cedido temporalmente às forças armadas, possivelmente por medo a que, de outro modo, pudessem confiscar-lhe para sempre. O exército tinha transformado muitíssimo o aspecto geral do Ty Gwyn, sem dúvida. No jardim tinha estacionados uma dúzia de veículos de um anódino verde oliva, e seus pneumáticos se comeram a exuberante grama do conde. O elegante pátio da entrada, com seus degraus curvos de granito, converteu-se em um armazém de fornecimentos, e havia latas gigantescas de feijões cozidos e manteiga para cozinhar amontoadas em cambaleantes pilhas ali onde, antigamente, mulheres enjoyadas e homens de fraque tinham descido de suas carruagens. Lloyd sorriu de brinca a orelha: gostava da forma em que a guerra o igualava tudo. Entrou na mansão e ali o recebeu um oficial algo bochechudo, vestido com um uniforme enrugado e cheio de manchas. —Vem para o curso dos serviços secretos, tenente? —Sim, senhor. Meu nome é Lloyd Williams. —Eu sou o comandante Lowther. Lloyd tinha ouvido falar dele. Era o marquês do Lowther, e seus amigos o chamavam Lowthie. Olhou em redor. Tinham protegido os quadros das paredes com enormes lençóis para que não ficassem talheres de pó. Ornamentada-las chaminés de mármore lavrado se tinham fechado com tablones toscos e unicamente tinham deixado uma estreita abertura para acender o fogo. O escuro mobiliário antigo do que sua mãe falava às vezes com carinho tinha desaparecido e o tinham substituído por escritórios de aço e cadeiras trocas. —meu deus, que diferente está isto —comentou. Lowther sorriu. —Já tinha estado aqui antes. Conhece a família? —Estudei em Cambridge com o Boy Fitzherbert. Também ali conheci a viscondessa, embora naquela época ainda não estavam casados. Mas imagino que terão transladado sua residência a algum outro lugar enquanto dura a guerra. —Não de tudo. reservaram algumas habitações para seu uso particular, mas não nos incomodam absolutamente. Ou seja, que esteve você aqui como convidado? —Santo céu, não, não somos tão amigos. Não, quando era pequeno me deixaram entrar na casa um dia em que a família tinha saído. Minha mãe trabalhou aqui, na mansão, faz muito tempo. —Seriamente? A cargo da biblioteca do conde ou algo assim? —Não, como donzela. —Assim que essas palavras saíram de sua boca, Lloyd soube que tinha cometido um engano. A expressão do Lowther se transformou em uma careta de desagrado. —Vá —disse—. Que interessante. Lloyd soube que acabava de ficar famoso como um proletário arrivista. A partir desse momento o tratariam como a um cidadão de segunda durante toda sua estadia ali. Teria que ter omitido qualquer referência ao passado de sua mãe: sabia o esnobe que podia chegar a ser o exército. —Acompanhe à tenente a sua habitação, sargento. Dependências do desvão. Ao Lloyd tinham atribuído um quarto nas antigas habitações dos criados. Não lhe importou muito. Foi o bastante bom para minha mãe, pensou. Enquanto subiam pelas escadas do serviço, o sargento comunicou ao Lloyd que não tinha nenhuma obrigação até o jantar, e que esta se servia no comilão de oficiais. Lloyd perguntou se algum dos Fitzherbert estava por acaso na casa nesses momentos, mas o homem não sabia. Demorou dois minutos em desfazer a mala. penteou-se um pouco, ficou uma camisa de uniforme poda e foi visitar seus avós. A casa do Wellington Row parecia mais pequena e cinza que nunca, embora já dispunha de água quente na pia e um privada com cadeia no escusado exterior. A decoração não se alterou na lembrança do Lloyd: o mesmo tapete tecido a emano no chão, as mesmas cortinas de estampado esvaído, as mesmas pesadas cadeiras de carvalho na sala única que conformava a planta baixa e que fazia as vezes de cozinha e comilão. Mas seus avós sim que tinham trocado. Os dois tinham já uns setenta anos, supunha Lloyd, e seu aspecto era frágil. O avô sofria de dores nas pernas e se tinha retirado a contra gosto de seu posto no sindicato de mineiros. A avó tinha o coração débil: o doutor Mortimer lhe havia dito que pusesse os pés em alto durante um quarto de hora depois das comidas. adoraram ver o Lloyd vestido de uniforme. —Tenente, verdade? —perguntou-lhe a avó. Apesar de ter sido toda a vida uma combatente da luta de classes, não conseguia esconder o orgulho que sentia ao ver seu neto vestido de oficial. As notícias corriam como a pólvora no Aberowen, e o fato de que o neto do Dai o Sindicalista estivesse ali de visita certamente tinha percorrido a metade da cidade antes de que Lloyd se acabou a primeira taça do forte chá que preparava a avó. Por isso não lhe surpreendeu ver que Tommy Griffiths se deixava cair por ali. —Suponho que meu Lenny também teria chegado a tenente, como você, se houvesse tornado da Espanha —disse Tommy. —Suponho que sim —repôs Lloyd. Nunca tinha conhecido a nenhum oficial que tivesse trabalhado de mineiro do carvão em sua anterior vida civil, mas algo podia acontecer uma vez a guerra se pôs verdadeiramente em marcha—. Foi um grande sargento na Espanha, isso o asseguro. —Os dois passaram por muito juntos. —Passamos um inferno —disse Lloyd—. E perdemos, mas os fascistas não ganharão esta vez. —Brindo por isso —disse Tommy, e esvaziou sua taça de chá. Lloyd acompanhou a seus avós ao ofício de tarde do templo da Bethesda. A religião não era uma parte muito importante de sua vida, e certamente não compartilhava absolutamente o dogmatismo do avô. Lloyd acreditava que o universo era misterioso e que a gente faria melhor em admiti-lo, mas a seus avós gostava que fosse ao templo com eles. As orações improvisadas eram muito eloqüentes, engastavam frases bíblicas com a linguagem da pé sem nenhum tipo de reparo. Ao Lloyd o sermão lhe fez um pouco pesado, mas os cânticos lhe entusiasmavam. Os paroquianos galeses cantavam automaticamente a quatro vozes e, quando se animavam, eram capazes de organizar tudo um recital. Ao unir-se a eles, Lloyd sentiu que ali, no interior desse templo de paredes branqueadas, era onde se encontrava o palpitante coração de Grã-Bretanha. A gente que tinha a seu redor ia mal vestida e carecia de educação, suas vidas consistiam em uma interminável jornada de duro trabalho, os homens extraindo o carvão subterrâneo, as mulheres criando a seguinte geração de mineiros. Entretanto, tinham costas fortes e mente perspicazes, e eles sozinhos haviam criado toda uma cultura que fazia que a vida valesse a pena. Em seu cristianismo não conformista encontravam esperança, e também na política de esquerdas. Desfrutavam com os partidos de rugby e os coros de vozes masculinas, e todos eles se sentiam unidos pela generosidade nos bons tempos e pela solidariedade nos maus. Justamente por tudo isso lutaria Lloyd: por essa gente, por essa cidade. E se ao final tinha que dar sua vida por eles, faria-o por uma boa causa. O avô se preparou para pronunciar a oração final. levantou-se com os olhos fechados e se apoiou em sua fortificação. —Vê hoje entre nós, OH, Senhor, a seu jovem servo Lloyd Williams, aí sentado com sua uniforme. Pedimo-lhe, em toda sua sabedoria e sua graça, que proteja seu vida durante o conflito que está por chegar. Por favor, Senhor, traga-nos o de volta a casa são e salvo. Faça-se sua vontade, Senhor. A congregação pronunciou um sentido Amém, e Lloyd se enxugou uma lágrima. Acompanhou aos anciões a casa enquanto o sol ficava depois da montanha e uma penumbra crepuscular descendia sobre as fileiras de casitas cinzas. Rechaçou o jantar que lhe ofereceu sua avó e se apressou a retornar ao Ty Gwyn, onde chegou bem a tempo para jantar no comilão de oficiais. Serviram-lhes vitela guisada, batatas fervidas e couve. Não era nem melhor nem pior que a maioria da comida do exército, e Lloyd a devorou, consciente de que a tinham pago pessoas como seus avós, que estavam jantando apenas um pedaço de pão com manteiga. Na mesa havia uma garrafa de uísque e Lloyd bebeu um pouco por mostrar-se cordial. Olhou com atenção a seus companheiros de instrução e tentou recordar como se chamavam. Quando já se ia à cama cruzou o Salão Escultórico, no qual não se viam obras de arte, mas sim tinha ficado mobiliado com uma piçarra e doze escritórios baratos. Ali se encontrou com que o comandante Lowther estava falando com uma mulher. Ao olhar melhor, viu que a mulher era Daisy Fitzherbert. ficou tão surpreso que se deteve. Lowther olhou em redor com uma expressão molesta. Viu o Lloyd e disse com um tom relutante: —Lady Aberowen, parece-me que já conhece tenente Williams. Se o nega —pensou Lloyd—, recordarei-lhe aquela vez que me beijou, esse beijo comprido e impetuoso na escuridão do Mayfair Street. —Me alegro de voltar a vê-lo, senhor Williams —disse ela, e lhe tendeu uma mão para saudá-lo. Tinha a pele cálida e suave ao tato. Ao Lloyd lhe acelerou o coração. —Williams me contou que sua mãe trabalhou de faxineira nesta casa —comentou Lowther. —Já sabia —repôs Daisy—. Me contou isso ele mesmo em um baile do Trinity. Também me repreendeu por ser uma esnobe, e sinto dizer que tinha toda a razão. —É você generosa, lady Aberowen —disse Lloyd, um pouco envergonhado—. Não sei o que me impulsionaria a lhe dizer semelhante coisa. —Daisy parecia menos frágil do que ele recordava: possivelmente tinha maturado. —A mãe do senhor Williams é agora parlamentaria, não obstante —disse Daisy ao Lowther. Este ficou de pedra. —E como está seu amiga feijão, Eva? —perguntou Lloyd—. Sei que se casou com o Jimmy Murray. —Têm já dois meninos. —Conseguiu tirar seus pais da Alemanha? —É você muito amável lembrando-se disso… mas não, por desgraça, os Rothmann não podem tramitar visados para sair do país. —Sinto-o muitíssimo. Deve ser muito duro para ela. —é. Lowther estava claramente impaciente por pôr fim a essa conversação sobre criadas e judeus. —Voltando para o que lhe dizia, lady Aberowen… —Desejo-lhes boa noite —disse Lloyd. Saiu da habitação e subiu correndo ao desvão. Enquanto se preparava para deitar-se, tirou o chapéu cantando o último hino do ofício dessa tarde: Não há tormenta que turve minha calma pois a Sua rocha aferro. O Senhor é o Amor que a terra abrange, como não lhe cantar a Seu fôlego? II Três dias depois, Daisy estava acabando de escrever a seu meio-irmão, Greg. Ao estalar a guerra, lhe tinha enviado uma carta cheia de ternura lhe expressando sua inquietação, e após se escreviam mais ou menos uma vez ao mês. Greg lhe tinha falado de seu encontro com o Jacky Jakes, a garota de quem tinha estado perdidamente apaixonado. Tinha-a visto na rua E, em Washington, e perguntava ao Daisy o que podia ter provocado que uma garota reagisse fugindo dessa maneira. Sua irmã não tinha nem idéia. Assim o disse e lhe desejou sorte. Logo assinou. Olhou ao relógio da parede. Faltava sozinho uma hora para a comida dos alunos, assim que as classes teriam terminado já e tinha muitas probabilidades de encontrar ao Lloyd em seu quarto. Subiu às antigas dependências do serviço, no desvão. Os jovens oficiais estavam sentados ou tombados em suas camas, lendo ou escrevendo. Encontrou a Lloyd em um estreito dormitório que tinha um velho espelho em pé. Estava sentado junto à janela, estudando um livro ilustrado. —Os algo interessante? —perguntou. Ele ficou em pé, sobressaltado. —Caray, miúda surpresa. —ruborizou-se. Certamente seguia meio apaixonado por ela. Tinha sido muito cruel por sua parte beijá-lo quando não tinha nenhuma intenção de deixar que a relação fora mais à frente, mas aquilo tinha acontecido fazia quatro anos, quando os dois não eram mais que uns meninos. Lloyd deveria havê-lo superado, a essas alturas. Daisy olhou o livro que tinha nas mãos. Estava escrito em alemão e nele se viam ilustrações de insígnias a cor. —Temos que reconhecer os emblemas alemães —explicou ele—. Grande parte da informação dos serviços secretos se obtém interrogando aos prisioneiros de guerra imediatamente depois de havê-los capturado. Alguns não dizem nada, claro está, assim que o interrogador tem que ser capaz de distinguir, solo olhando o uniforme do prisioneiro, qual é sua fila e a que corpo do exército pertence, se for de infantaria, de cavalaria, de artilharia ou de alguma unidade especializada, como a veterinária, por exemplo. —Isso é o que aprendem aqui? —perguntou ela com cepticismo—. O significado das insígnias alemãs? Lloyd riu. —É uma das coisas que aprendemos. Uma da que posso te falar sem desvelar nenhum segredo militar. —Ah, vá. —por que está aqui, no Gales? Surpreende-me que não esteja fazendo nada para contribuir à campanha de guerra. —Já estamos outra vez —repôs Daisy—. Uma reprimenda moral. A ti quem te há dito que essa é boa forma de cativar às mulheres? —Perdoa —disse ele com desconforto—. Não pretendia te recriminar nada. —Além disso, tampouco existe nenhuma campanha de guerra. No ar flutuam globos de barreira para obstaculizar a uns aviões alemães que não chegam nunca. —Em Londres teria vida social, ao menos. —Sabe que antes isso para mim era o mais importante do mundo e agora já não? —disse ela—. Devo estar me fazendo maior. Havia outro motivo pelo que tinha deixado Londres, mas não pensava lhe dizer nada. —E eu que imaginava com uniforme de enfermeira… —Não é muito provável. Não suporto aos doentes. Mas, antes de que me dedique outra de suas caretas de recriminação, olhe isto. —Passou-lhe uma fotografia emoldurada que tinha subido consigo. Ele a olhou com atenção, enrugando a frente. —De onde a tiraste? —Estava revisando uma caixa de fotos velhas no trastero do porão. Era uma fotografia de grupo tomada no jardim oriental do Ty Gwyn uma manhã do verão. No centro se via o conde Fitzherbert de jovem com um grande cão branco aos pés. A garota que estava junto a ele devia ser sua irmã, Maud, a quem Daisy não conhecia. Formando a um e outro lado de ambos havia uns quarenta ou cinqüenta homens e mulheres vestidos com diferentes uniformize do serviço. —Olhe a data —disse Daisy. —Mil novecentos e doze —leu Lloyd em voz alta. Ela ficou olhando-a para estudar suas reações ante a foto que sustentava. —Sai sua mãe? —Santo céu! Poderia ser. —Lloyd a observou atentamente—. Me parece que sim —disse ao cabo de um momento. —Insígnia me a —No hay de qué. —Daisy fue hacia la puerta—. Sigue estudiando. Lloyd assinalou com um dedo. —Parece-me que é esta daqui. Daisy viu uma jovem magra e bonita de uns dezenove anos, com o cabelo negro e encaracolado aparecendo sob uma touca branca de faxineira, e um sorriso que irradiava algo mais que um indício de picardia. —Caray, é encantadora! —comentou. —Ao menos o era nnaquele tempo —naquele tempo —disse Lloyd—. Agora a gente está acostumada dizer dela que é imponente. —Chegou a conhecer lady Maud? Crie que é a que está ao lado do Fitz? —Suponho que a conheço de toda a vida, embora solo a temporadas. Minha mãe e ela foram sufragistas juntas. Não a vejo desde que fui do Berlim, em 1933, mas não me cabe a menor duvida que a da foto é ela. —Não é tão bonita. —Pode, mas é uma mulher muito preparada, e viu muito bem. —Enfim, pensei que você gostaria de ter esta fotografia. —Posso ficar a que iría a verla y pasaría la noche con ella. —É obvio. Ninguém mais a quer… por isso estava em uma caixa no porão. —Obrigado! —Não há de que. —Daisy foi para a porta—. Segue estudando. Enquanto baixava as escadas do serviço esperou não ter paquerado com ele. O certo era que não deveria ter ido vê-lo sequer, mas tinha sucumbido a um impulso de generosidade. Não quisesse o céu que Lloyd a interpretasse mal. Sentiu uma pontada de dor no ventre e se deteve em um patamar intermédio. Levava todo o dia com uma ligeira dor de costas —que ela tinha atribuído ao colchão barato no qual tinha que dormir—, mas aquilo era diferente. Tentou recordar o que tinha comido, mas não conseguiu identificar nada que pudesse lhe haver sentado mau: nem frango muito cru nem fruta verde. Tampouco tinha comido ostras… não tinha tido essa sorte! A dor desapareceu tão depressa como se apresentou e Daisy se disse que não seria nada. Retornou a seus aposentos do porão. Estava alojada no que tinha sido as dependências do ama de chaves: um dormitório diminuto, uma salita, uma pequena cozinha e um quarto de banho aceitável, com banheira. Um velho lacaio de nome Morrison era o que fazia de zelador e se ocupava da casa, e Daisy tinha como donzela a uma jovem do Aberowen. À garota a chamavam Maisie Owen a Pequena, embora era bastante grande. —Minha mãe também se chama Maisie, assim que eu sempre fui Maisie a Pequena, embora agora já sou mais alta que ela, a verdade —lhe tinha explicado a garota. Soou o telefone justo quando Daisy entrava. Desprendeu e ouviu a voz de seu marido. —Como está? —perguntou Boy. —Bem. A que hora vais chegar? —Uma missão tinha levado ao Boy ao St. Athan, uma grande base aérea da RAF que havia aos subúrbios do Cardiff, e lhe tinha prometido que iria ver a e passaria a noite com ela. —Não vou poder, sinto muito. —Ai, que decepção! —Temos um jantar solene na base e me pediram que atira. Não parecia especialmente afligido por não poder vê-la, o qual a enfureceu. —Que sorte tem —disse. —Será muito aborrecido, mas não posso me negar. —Não será nem a metade de aborrecido que estar vivendo aqui eu sozinha. —Deve ser tedioso, mas está melhor aí, em seu estado. Milhares de pessoas tinham saído de Londres assim que tinha estalado a guerra, mas a maioria tinham ido retornando ao ver que os esperados bombardeios aéreos e os ataques com gás não se materializavam. Entretanto, B e Mai, e inclusive Eva, tinham estado de acordo em que Daisy devia passar seu embaraço no Ty Gwyn. Muitas mulheres davam a luz sem perigo em Londres todos os dias, tinha alegado Daisy; mas, claro está, o herdeiro do condado era diferente. O certo era que tampouco lhe importava tanto como tinha pensado em um princípio. Ao melhor o embaraço havia a tornado extrañamente mansa. De todas formas, a vida social de Londres estava ao meio gás da declaração de guerra, como se a gente sentisse que não tinha direito a divertir-se. Eram como párocos em um pub, sabedores de que aquilo tinha que ser divertido mas incapazes de imbuir do espírito festivo. —Oxalá tivesse aqui minha motocicleta —disse—. Assim, ao menos poderia explorar Gales. —A gasolina estava racionada, mas não muito. —Que coisas tem, Daisy! —exclamou ele, em tom reprobatorio—. Não pode montar em motocicleta… o médico lhe proibiu isso categoricamente. —Bom, dá igual, tenho descoberto a literatura —repôs ela—. A biblioteca daqui é uma maravilha. Algumas edições pouco comuns e muito valiosas as guardaram, mas quase todos outros livros seguem nas estanterías. Estou adquirindo agora a educação que tanto me esforcei por evitar no colégio. —Fantástico. Bom, você acurrúcate com uma boa novela de mistério e assassinatos e passa o bem. —Faz um momento hei sentido uma dor no ventre. —Seguro que será indigestão. —Espero que tenha razão. —lhe dê lembranças de minha parte a esse vago do Lowthie. —Não beba muito oporto nesse jantar. Justo quando pendurava, Daisy voltou a sentir essa espécie de contração. Esta vez durou mais. Maisie entrou e, ao lhe ver a cara, disse: —encontra-se você bem, milady? —Não é mais que uma pontada. —vim a perguntar se já está lista para o jantar. —Não tenho fome. Acredito que esta noite não jantarei. —Mas se lhe preparei um bolo de carne delicioso… —disse Maisie em tom de recriminação. —Tampa-o bem e guarda-o na despensa. Comerei- isso amanhã. —Preparo-lhe uma boa taça de chá? —Sim, por favor —respondeu Daisy, solo para livrar-se dela. Apesar de levar quatro anos ali, seguia sem acostumar-se a esse chá britânico tão forte, com leite e açúcar. A dor foi remetendo, e ela se sentou e abriu O moinho do Floss. obrigou-se a beber o chá do Maisie e se foi encontrando algo melhor. depois de terminar-se a infusão, quando a garota esfregou a taça e o platito, enviou-a a casa. Tinha que caminhar quilômetro e médio na escuridão, mas levava uma lanterna e dizia que não lhe importava. Uma hora depois, a dor retornou e esta vez não lhe passava. Daisy foi ao banho com a leve esperança de aliviar a pressão de seu abdômen. Surpreendeu-lhe e lhe preocupou ver umas escuras manchas de vermelho sangue em sua roupa interior. ficou uns calções limpos e, agora já sim muito inquieta, desprendeu o telefone. Pediu o número da base aérea do St. Athan e chamou. —Tenho que falar com o tenente de aviação o visconde do Aberowen —disse. —Não podemos lhes passar chamadas pessoais aos oficiais —respondeu um galês puntilloso. —trata-se de uma emergência. Tenho que falar com meu marido. —Não há telefones nas habitações, isto não é o hotel Dorchester. —Pode que fora sua imaginação, mas aquele homem parecia encantado de não poder ajudá-la. —Meu marido estará no banquete solene. Por favor, envie a um regulamento para buscá-lo. —Eu não tenho regulamentos e, além disso, aqui não há nenhum banquete. —Não há banquete? —Por um momento, Daisy não soube que mais dizer. —Só o jantar habitual no comilão de oficiais —acrescentou o operador—, e já faz uma hora que terminou. Daisy pendurou de repente. Como que não havia nenhum banquete? Boy lhe havia dito claramente que devia assistir a um jantar solene na base. Tinha que lhe haver mentido. Sentiu vontades de chorar. Boy tinha preferido não vê-la e, em lugar disso, ir-se beber com seus amigões, ou inclusive a visitar alguma outra mulher. Pouco importava o motivo. Daisy não era sua prioridade. Respirou fundo. Necessitava ajuda. Não sabia qual era o telefone do médico do Aberowen, se é que o havia. O que podia fazer? A última vez, antes de ir-se, Boy lhe havia dito: Terá a um centenar de oficiais do exército, ou mais, para cuidar de ti em caso necessário, mas não podia acudir ao marquês do Lowther para lhe dizer que sangrava pela vagina. A dor era cada vez pior e Daisy sentia algo morno e pegajoso entre as pernas. Foi ao banho outra vez e se lavou. Viu que havia coágulos no sangue. Não tinha nenhuma compressa à mão… tinha pensado que as grávidas não as necessitavam para nada. Cortou um farrapo de uma toalha de mãos e o colocou no interior de os calções. Então pensou no Lloyd Williams. Era um homem amável. Tinha-o criado uma feminista de fortes convicções. Adorava ao Daisy. Ajudaria-a. Subiu ao vestíbulo. Onde poderia estar? Os alunos já tinham terminado o jantar, assim possivelmente o encontraria acima, mas lhe doía tanto a tripa que não acreditou que pudesse chegar até o alto do desvão. Talvez estava na biblioteca. Os alunos utilizavam essa sala para estudar em silêncio. Entrou. Havia um sargento inclinado sobre um atlas. —Seria você tão amável —lhe pediu Daisy— de ir procurar à tenente Lloyd Williams de minha parte? —Certamente, milady —disse o homem, fechando o livro—. O que quer que lhe diga? —lhe peça que baixe um momento ao porão. —encontra-se você bem, senhora? Está um pouco pálida. —Não me passará nada, mas vá procurar ao Williams o antes possível. —Agora mesmo. Daisy retornou a suas dependências. O esforço de oferecer um aspecto normal a tinha deixado exausta e se tombou na cama. Pouco depois sentiu já o sangue que empapava-lhe o vestido, mas a dor era muito intenso para que nada disso lhe importasse. Consultou o relógio. por que não tinha baixado Lloyd? Ao melhor o sargento não o encontrava. Aquela casa era muito grande. Possivelmente morreria ali abaixo, sozinha. Alguém bateu na porta e logo, para imenso alívio dele, Daisy ouviu sua voz. —Sou Lloyd Williams. —Adiante —respondeu. ia encontrar a em um estado espantoso. Pode que jamais voltasse a olhá-la como antes. Ouviu-o passar a salita contigüa. —demorei um momento em encontrar seus aposentos —disse Lloyd—. Onde está? —por aqui. Lloyd entrou no dormitório. —Deus bendito! —exclamou—. Que demônios te passou? —vá procurar ajuda —pediu ela—. Há algum médico nesta cidade? —Pois claro, o doutor Mortimer. Faz séculos que vive aqui, mas pode que não tenhamos tempo. Deixa que… —Duvidou um momento—. Ao melhor está sangrando, mas sem olhar não posso estar seguro. Daisy fechou os olhos. —Adiante. —Tinha muito medo para conservar um pouco de vergonha. Sentiu que Lloyd lhe levantava a saia do vestido. —meu deus —disse—. Pobrecilla. —Então lhe rasgou a roupa interior—. O sinto. Há água por algum…? —No banheiro —respondeu ela, assinalando para ali. Lloyd entrou no banheiro e abriu um grifo. Um momento depois, ela sentiu o trapo morno e molhado com o que a estava limpando. —Não é mais que uma pequena destilação. Vi a homens morrer sangrados, e não corre esse perigo. —Ela abriu os olhos e viu como lhe voltava a baixar a saia—. Onde está o telefone? —perguntou Lloyd. —Na sala. —me ponha com o doutor Mortimer —o ouviu pedir—, o antes possível. —produziu-se uma pausa—. Lloyd Williams ao aparelho, estou no Ty Gwyn, poderia falar com o doutor?… Ah, olá, senhora Mortimer, quando se espera que retorne?… É uma mulher com dor abdominal e uma hemorragia vaginal… Sim, sou consciente de que a maioria das mulheres passam por isso todos os meses, mas isto se sai claramente do normal… Tem vinte e três… Sim, casada… Sem filhos… O perguntarei. —Levantou a voz—: Poderia estar grávida? —Sim —respondeu Daisy—. De três meses. Lloyd repetiu a resposta ao telefone e logo se produziu um comprido silencio. Ao final pendurou o auricular e retornou junto a ela. sentou-se no bordo da cama. —O médico virá assim que possa, mas está operando um mineiro que foi enrolado por uma vagoneta fora de controle. Entretanto, sua mulher está quase segura de que tiveste um aborto natural. —Agarrou-lhe a mão—. O sinto, Daisy. —Obrigado —sussurrou ela. A dor parecia ir remetendo, mas a tristeza cada vez era maior. O herdeiro do condado já não existia. Boy se zangaria muitíssimo. —A senhora Mortimer diz que é bastante freqüente —lhe contou Lloyd—, e que a maioria das mulheres sofrem um ou dois abortos entre embaraços. Não há nenhum perigo, sempre que a hemorragia não seja muito abundante. —E se piorar? —Então teria que te levar em carro ao hospital do Merthyr. Mas percorrer quinze quilômetros em um caminhão do exército poderia te prejudicar muito, assim deveríamos evitá-lo a menos que sua vida corresse perigo. Daisy já não estava assustada. —Me alegro muito de que estivesse aqui. —Posso fazer uma sugestão? —Claro. —Crie que poderá dar alguns passos? —Não sei. —me deixe que te prepare um banho. Se pode chegar até ali, sentirá-se muito melhor quando estiver poda. —Sim. —E logo talvez pode improvisar algum tipo de vendagem. —Sim. Lloyd retornou ao quarto de banho e ela ouviu correr a água. incorporou-se na cama. Estava enjoada, assim descansou uns momentos. Em seguida sentiu a cabeça mais limpa e baixou os pés ao chão. Estava sentada em cima daquela sangre geada, sentia repugnância de si mesmo. Ouviu que os grifos se fechavam e Lloyd retornou e a agarrou do braço. —Se crie que te vais deprimir, diga-me isso lhe advertiu—. Não te deixarei cair. —Tinha uma força assombrosa e quase a levou em volandas enquanto ela dava passos em direção ao banho. Sua roupa interior, feita farrapos, caiu em algum momento ao chão. Daisy ficou em pé junto à banheira e deixou que lhe desabotoasse os botões da parte de atrás do vestido—. Poderá você sozinha com o resto? —perguntou-lhe. Daisy assentiu e ele saiu do banho. Inclinada sobre a cesta da roupa suja, foi tirando tudo os objetos devagar e foi deixando no chão, em um montão ensangüentado. meteu-se na banheira com muitíssimo cuidado. A água tinha a temperatura justa e a dor começou a passar assim que se tombou e tentou relaxar-se. sentia-se transbordada pela gratidão para o Lloyd. Era tão bom com ela que tinha vontades de chorar. Ao cabo de uns minutos, a porta se abriu uma fresta e a mão dele apareceu com um pouco de roupa limpa. —Uma camisola e demais —disse. Deixou-o tudo em cima do cesto da roupa suja e fechou de novo. Quando a água começou a esfriar-se, Daisy se levantou. Voltava a estar um pouco enjoada, mas foi sozinho um momento. secou-se com uma toalha e logo ficou a camisola e a roupa interior que havia lhe trazido Lloyd. colocou-se uma toalha de mãos dentro dos calções para que empapasse o sangue que seguia expulsando. Quando retornou ao dormitório, encontrou-se a cama feita com lençóis e mantas podas. meteu-se nela e ficou sentada, muito erguida, tampando-se até o pescoço com as mantas. Ele entrou da sala. —Seguro que já te encontra melhor —lhe disse—. Parece que tenha vergonha. —Vergonha não é a palavra. Abafado, talvez, embora inclusive isso me parece muito suave. A verdade não era tão simples. estremecia-se sozinho recordando como a tinha visto… mas, por outra parte, ele não parecia haver sentido nenhum asco. Lloyd entrou no quarto de banho e recolheu a roupa que ela tinha deixado ali tiragem. Pelo visto não era nada apreensivo com o sangue menstrual. —O que tem feito com os lençóis? —perguntou Daisy. —encontrei uma grande pia na sala das flores. Pu-las a encharco em água fria. Farei o mesmo com sua roupa, parece-te bem? Ela assentiu com a cabeça. Lloyd voltou a desaparecer. Onde tinha aprendido a ser tão competente e auto-suficiente? Na guerra civil espanhola, supôs. Ouvia-o mover-se pela cozinha e então reapareceu com duas taças de chá. —Seguro que esta mistura você não gosta de nada, mas fará que se sinta melhor. —Daisy se tomou o chá. Lloyd abriu a palma da mão e lhe ensinou duas pílulas brancas—. Aspirina? Ao melhor alivia um pouco os retortijones. Ela as aceitou e as tragou ajudando do chá quente. Lloyd sempre lhe tinha parecido muito amadurecido para sua idade. Recordou então a segurança com a que havia saído a procurar o Boy, bêbado, no teatro do Gaiety. —Sempre foste assim —lhe disse—. Um homem feito, quando o resto de nós sozinho fingíamos ser maiores. terminou-se o chá e sentiu que a vencia o sonho. Lloyd se levou as taças. —Pode que fechamento os olhos um momento —disse Daisy—. Ficará aqui, se dormir? —Ficarei todo o momento que você queira —respondeu ele. Depois disse algo mais, mas sua voz parecia desvanecer-se ao longe à medida que Daisy ficava dormida. III A partir dessa noite, Lloyd começou a passar muitas horas no pequeno apartamento do ama de chaves. Durante todo o dia esperava que chegasse o momento. Baixava uns minutos passadas as oito, quando já tinha terminado o jantar no comilão de oficiais e a donzela do Daisy se foi a casa a dormir. sentavam-se uma frente ao outras nas duas velhas poltronas, Lloyd levava consigo algum libero para estudar —sempre tinham tarefas e exames pela manhã— e Daisy lia uma novela; mas o que mais faziam era conversar. contavam-se o que tinha acontecido durante o dia, conversavam sobre o que fora que estavam lendo e se explicavam um ao outro a história de sua vida. Lhe relatou suas experiências na batalha de Cabo Street. —Estando ali em pé, entre aquela multidão pacífica, a polícia montada carregou contra nós gritando que fomos sujos judeus —disse—. Nos golpearam com os porretes e nos empurraram contra as luas das cristaleiras até que se romperam. a tinham obrigado a ficar com os fascistas sem sair do Tower Gardens, de maneira que não tinha visto nada das brigas. —Não foi assim como nos informaram do que aconteceu —comentou. Ela tinha acreditado em quão periódicos tinham falado de distúrbios nas ruas provocados por bandas de bagunceiros. Ao Lloyd não surpreendeu. —Minha mãe viu o noticiário no cinema, o Aldgate Essoldo, uma semana depois —recordou—. Esse comentarista de voz engolada disse: A polícia não recebeu por parte de observadores imparciais outra coisa que não sejam elogios. Minha mãe me contou que todo o público pôs-se a rir com vontades. Ao Daisy surpreendeu o cepticismo com que se tomava as notícias. Lloyd lhe explicou que a maioria dos periódicos britânicos eliminavam todos os artigos que falavam das atrocidades do exército de Franco na Espanha, e pelo contrário exageravam qualquer notícia que lhes chegava sobre o mau comportamento das forças republicanas. Ela admitiu que sempre tinha acreditado com convicção a versão do conde Fitzherbert de que os rebeldes eram uns cristãos altruístas que pretendiam liberar a Espanha da ameaça do comunismo. Daisy não sabia nada das execuções maciças, as violações nem os saques perpetrados pelos franquistas. Pelo visto nunca lhe tinha ocorrido pensar que os periódicos eram propriedade de capitalistas e que estes podiam lhe subtrair importância às notícias que deixassem em mau lugar ao governo conservador, o exército ou a classe empresarial, e que entretanto aproveitavam qualquer incidente de condutas reprochables por parte de sindicalistas ou partidos de esquerdas. Lloyd e Daisy falavam também da guerra. Por fim se passou à ação. Tropas britânicas e francesas tinham desembarcado na Noruega, e ali se disputavam com os alemães, que tinham feito o próprio, o controle do país. Os periódicos não conseguiam ocultar do todo o fato de que aos Aliados não estava indo nada bem. A atitude do Daisy para com o Lloyd tinha trocado. Já não flertava com ele. Sempre se alegrava de vê-lo, e se queixava se chegava tarde de noite, às vezes inclusive arreganhava-o; mas nunca com ânimo de paquerar. Comentou-lhe quão decepcionados estavam tudo pelo menino que tinha perdido: Boy, Fitz, B, sua mãe, no Buffalo, e inclusive seu pai, Lev. Não conseguia tirar-se de cima a sensação irracional de que tinha feito algo vergonhoso, e lhe perguntou se ele acreditava que era uma parva por isso. Lloyd não acreditava. Nada do que fizesse a convertia em uma parva a seus olhos. Suas conversações eram pessoais, mas sempre mantinham a distância física entre ambos. Ele não pensava aproveitar-se da grande intimidade que tinha surto entre eles a noite do aborto do Daisy. Embora, certamente, aquela cena viveria em seu coração para sempre. lhe limpar o sangue das coxas e o ventre não havia sido nada sensual —absolutamente—, mas sim lhe tinha resultado de uma ternura insuportável. Entretanto, tratava-se de uma emergência médica, e isso lhe impedia de tomar-se liberdades depois. Tinha tanto medo de transmitir uma impressão equivocada a esse respeito que sempre atuava com muita precaução para não tocá-la. Às dez em ponto ela preparava um chocolate, que lhe encantava e Daisy dizia que a ela também, embora Lloyd se perguntava se o diria sozinho por ser amável. Depois lhe desejava as boa noite e subia acima, a sua habitação do desvão. converteram-se em dois velhos amigos. Não era o que Lloyd desejava, mas Daisy era uma mulher casada e aquilo era o melhor ao que podia aspirar. Freqüentemente lhe esquecia a posição que ocupava Daisy ali. Uma noite se surpreendeu quando lhe anunciou que ia fazer lhe uma visita ao mordomo retirado do conde, Peel, que vivia em uma casita que confinava com os limites da propriedade. —Terá oitenta anos! —disse ao Lloyd—. Seguro que Fitz se esqueceu dele. Deveria me aproximar de ver como está. Lloyd levantou as sobrancelhas, surpreso, e ela acrescentou: —Preciso me assegurar de que se encontra bem. É meu dever como membro do clã Fitzherbert. Ocupar-se dos velhos criados é uma obrigação das famílias enriquecidas… Não sabia? —Tinha-o esquecido. —Quererá me acompanhar? —Certamente. O dia seguinte era domingo, e saíram pela manhã, quando Lloyd não tinha nenhuma aula. Aos dois surpreendeu o estado em que se encontrava a casita. A pintura estava descascada, o papel de parede se separava e as cortinas estavam cinzas a causa do pó de carvão. A única decoração consistia em uma fileira de fotografias recortadas de periódicos e cravadas com tachinhas na parede: o rei e a reina, Fitz e B, assim como alguns membros mais da nobreza. Fazia anos que ninguém limpava aquele sítio como é devido e tudo cheirava a urina, cinza e podridão. Lloyd, não obstante, supôs que não era nada fora do comum para um ancião que vivia com uma pobre pensão. Peel tinha as sobrancelhas brancas. Olhou ao Lloyd e disse: —bom dia, milord… Pensava que tinha morrido você! Lloyd sorriu. —Só sou uma visita. —Seriamente, senhor? Meu pobre cérebro está revolto, igual aos ovos do café da manhã. O velho conde morreu fará, o que?, trinta e cinco ou quarenta anos? Bom, bom, e quem é você, jovem cavalheiro? —Lloyd Williams. Conheceu você a minha mãe, Ethel, faz muitos anos. —É o menino do Eth? Bom, em tal caso, certamente… —Em tal caso o que, senhor Peel? —perguntou Daisy. —Ah, pois nada. Tenho o cérebro revolto, igual aos ovos do café da manhã! Perguntaram-lhe se necessitava algo, e ele insistiu em que tinha tudo que um homem podia desejar. —Não como muito, e quase nunca bebo cerveja. Tenho dinheiro suficiente para comprar o periódico e picada para a pipa. você crie que nos invadirá esse Hitler, jovem Lloyd? Espero não viver para vê-lo. Daisy lhe limpou um pouco a cozinha, embora as tarefas domésticas não eram seu forte. —Não posso acreditá-lo —disse ao Lloyd em voz baixa—. Vivendo aqui, assim, e diz que o tem tudo… Acredita que é um homem afortunado! —Muitos homens de sua idade vivem pior —repôs Lloyd. Estiveram uma hora falando com o Peel. antes de partir, ao ancião lhe ocorreu algo que sim queria. Olhou à fileira de retratos da parede. —No funeral do velho conde tomaram uma fotografia —disse—. Eu então não era mais que um lacaio, ainda não era o mordomo. Formamos todos em fila junto ao carro fúnebre. Havia uma grande câmara, das de antes, com um pano negro cobrindo-a, não como essas pequenas modernas de agora. Era 1906. —Parece-me que sei onde pode estar essa fotografia —comentou Daisy—. iremos ver. Retornaram à mansão e baixaram ao porão. O trastero, junto à adega, era bastante grande. Estava cheio de caixas e arcas, além de adornos que não serviam para nada: um navio dentro de uma garrafa, uma maquete do Ty Gwyn feita de fósforos, uma cômoda em miniatura, uma espada com uma vagem ornamental. Começaram a procurar entre fotos e quadros velhos. O pó fazia espirrar ao Daisy, mas ela insistiu em continuar. Encontraram a fotografia que queria Peel e, nessa mesma caixa, havia outra ainda mais antiga do conde anterior. Lloyd ficou olhando-a com certo assombro. O retrato cor sépia tinha doze centímetros de alto por uns sete e meio de largura, e nele se via um jovem vestido com o uniforme de um oficial do exército vitoriano. Era igual a Lloyd. —Olhe isto —disse, passando a foto ao Daisy. —Poderia ser você, se te deixasse costeletas —repôs ela. —Ao melhor o velho conde teve uma aventura com alguma antepassada minha —comentou Lloyd com ligeireza—. Se era uma mulher casada, pode que fizesse passar ao menino como filho de seu marido. Não me faria muita graça, isso sim lhe posso dizer isso me inteirar de que descendo ilegitimamente da aristocracia… Um socialista convencido como eu! —Lloyd, como pode ser tão estúpido? —disse Daisy. Ele não soube se tomar-lhe a sério. Além disso, tinha uma mancha de pó tão graciosa no nariz que sentiu vontades de beijá-la. —Bom —respondeu—, pu-me em evidencia mais de uma vez, mas não vejo… —me escute. Sua mãe foi donzela nesta casa. De repente, em 1914, partiu a Londres e se casou com um homem chamado Teddy do que ninguém sabe nada, além de que se apelidava Williams, igual a ela, assim não teve que trocar o nome de solteira. O misterioso senhor Williams morreu antes de que ninguém pudesse conhecê-lo, e com seu seguro de vida ela pôde costeá-la casa em que vive ainda. —Exato. Aonde quer ir parar? —Depois, quando o senhor Williams morreu, deu a luz a um filho que resulta guardar um assombroso parecido com o defunto conde Fitzherbert. Lloyd começou a ver por onde queria levá-lo Daisy. —Continua. —Alguma vez te tinha ocorrido pensar que toda essa história poderia ter uma explicação completamente diferente? —Não, até agora… —O que faz uma família aristocrática quando uma de suas filhas fica grávida? Acontece muitíssimas vezes, sabe? —Suponho que sim, mas não sei como atuam. Essas coisas nunca se explicam. —Exatamente. A garota desaparece uns quantos meses, vai a Escócia, à Bretanha ou a Genebra, com sua donzela. Quando as duas retornam da viagem, a donzela traz consigo a um pequeno ao que, conforme diz, deu a luz durante as férias. A família a trata com uma gentileza surpreendente, embora tenha admitido ter fornicado, e a envia a viver a uma distância segura, com uma pequena pensão. Parecia um pouco tirado de um conto de fadas, nada que ver com a vida real; mas de todas formas Lloyd se sentia intrigado e inquieto. —E você crie que eu fui o menino de uma dessas farsas? —Acredito que lady Maud Fitzherbert teve um namorico com um jardineiro, um mineiro ou possivelmente um encantado vagabundo de Londres, e ficou grávida. Depois se foi a algum sitio a dar a luz em segredo. Sua mãe acessou a fingir que o menino era dele, e em troca lhe compraram uma casa. Ao Lloyd o assaltou uma lembrança que parecia confirmar a história. —Sempre responde com evasivas quando lhe pergunto por meu verdadeiro pai. —de repente lhe parecia suspeito. —Aí o tem! Jamais existiu nenhum Teddy Williams. Para manter sua respeitabilidade, sua mãe disse que era viúva. Chamou a seu defunto e fictício marido Williams para evitar o problema da mudança de sobrenome. Lloyd negou com a cabeça, não podia acreditá-lo. —Sonha muito fantasioso. —Maud e ela seguiram sendo amigas, e Maud a ajudou a te criar. Em 1933, sua mãe te levou ao Berlim porque sua verdadeira mãe queria voltar a verte. Lloyd tinha a sensação de estar sonhando, ou que acabava de despertar. —Crie que sou filho do Maud? —perguntou com incredulidade. Daisy deu uns golpecitos com o dedo no marco da foto que ainda sustentava nas mãos. —E que é parecido a seu avô! Lloyd estava perplexo. Não podia ser certo… e, mesmo assim, tudo encaixava. —Estou acostumado a que Bernie não seja meu verdadeiro pai —disse—. Tampouco Ethel será minha verdadeira mãe? Daisy deveu ver uma expressão de grande indefensión em seu rosto, porque se inclinou para diante, tocou-o, algo que não estava acostumado a fazer nunca, e disse: —Sinto muito, falei com muita crueldade? Solo queria que visse o que tem diante dos olhos. Se Peel suspeitar a verdade, não crie que também outros poderiam fazê-lo? Esta classe de notícias é melhor que lhe dê isso alguém que lhe… que lhe dê isso um amigo. ouviu-se um gongo ao longe. —O almoço, será melhor que suba ao comilão de oficiais —disse Lloyd mecanicamente. Tirou a fotografia do marco e a guardou em um bolso da jaqueta do uniforme. —Está aborrecido —comentou Daisy, preocupada. —Não, não. Solo… desconcertado. —Os homens sempre negam estar desgostados. Vêem ver-me depois, por favor. —Está bem. —Não te vás dormir sem voltar a falar comigo. —Não o farei. Lloyd saiu do trastero e subiu pelas escadas em direção ao grandioso comilão, utilizado agora pelos oficiais. comeu-se a vitela picada em conserva como um autômato; sua agitação interior não lhe dava trégua. Na mesa, não participou da conversação sobre os combates que estavam assolando a Noruega. —Sonha acordado, Williams? —perguntou o comandante Lowther. —Sinto muito, senhor —respondeu Lloyd sem pensar. Em seguida improvisou uma desculpa—. Tentava recordar que fila alemã é mais alta, Generalleutnant ou Generalmajor. —o do Generalleutnant é mais alto. —E logo Lowther acrescentou com calma—: O que não tem que esquecer é a diferença entre meine Frau e deine Frau. Lloyd sentiu que se ruborizava. Estava visto que sua amizade com o Daisy não era tudo quão discreta ele imaginava. Tinha chegado para ouvidos do Lowther. Estava indignado: Daisy e ele não tinham feito nada impróprio. Mesmo assim, não protestou. sentia-se culpado embora não o fora. Não podia levá-la mão ao coração e jurar que suas intenções eram puras. Sabia o que lhe diria o avô: Qualquer que olhe a uma mulher para cobiçá-la, já cometeu adultério com ela em seu coração. Tais eram os ensinos do Jesucristo, um deixa de tolices ao que não lhe faltava razão. Ao pensar em seus avós acabou perguntando-se se saberiam quem eram seus verdadeiros pais. Ter dúvidas sobre sua ascendência o fazia sentir-se perdido, ou como se estivesse sonhando que caía ao vazio. Se lhe tinham mentido sobre isso, também podiam lhe haver enganado com qualquer outra coisa. Decidiu que lhes perguntaria ao avô e a avó. Podia fazê-lo esse mesmo dia, já que era domingo. Assim que encontrou uma desculpa para desculpar-se educadamente e abandonar o comilão, baixou a pé a colina até o Wellington Row. Lhe ocorreu que se lhes perguntava diretamente se era filho do Maud, ao melhor eles o negavam tudo em redondo. Possivelmente com uma tática mais soslayada poderia lhes tirar algo mais de informação. Encontrou-os sentados na cozinha. Para eles no domingo era o Dia do Senhor, um dia consagrado à religião, e não liam os periódicos nem escutavam a rádio. Mas se alegraram de vê-lo e a avó preparou chá, como sempre. —Oxalá soubesse algo mais sobre meu verdadeiro pai —começou a dizer Lloyd—. Mamãe sempre diz que Teddy Williams estava nos Fuzileiros Galeses, sabiam? —Ai, e a que vem remover agora o passado? —disse a avó—. Seu pai é Bernie. Lloyd não a contradisse. —Bernie Leckwith foi tudo o que um pai devesse ter sido para mim. O avô assentiu com a cabeça. —Judeu, mas bom homem, disso não há dúvida. —Imaginou que estava sendo magnánimamente tolerante. Lloyd passou o comentário como alto. —O caso é que sinto curiosidade. Chegaram a conhecer o Teddy Williams? O avô parecia zangado. —Não —disse—, mas esse homem foi uma desgraça para nós. —Veio ao Ty Gwyn como ajuda de câmara de um dos hóspedes. Não soubemos que sua mãe se via com ele em términos amorosos até que partiu a Londres para casar-se. —por que não foram à bodas? Os dois guardaram silêncio. —lhe diga a verdade, Cara —disse então o avô—. Das mentiras nunca sai nada bom. —Sua mãe caiu na tentação —explicou a avó—. Quando o ajuda de câmara já se partiu do Ty Gwyn, descobriu que estava grávida. —Lloyd o tinha suspeitado, acreditava que isso podia explicar suas evasivas—. Seu avô ficou furioso —acrescentou a mulher. —Muito —admitiu o avô—. Esqueci que Jesucristo disse: Não julguem, para que não sejam julgados. Seu pecado foi a luxúria, mas o meu foi o orgulho. —Lloyd ficou de pedra ao ver lágrimas nos olhos azul claro de seu avô—. Deus a perdoou, mas eu não, durante muitíssimo tempo. Para então a meu genro já o haviam matado, na França. Lloyd estava mais desconcertado que antes. de repente tinha outra história cheia de detalhes que não acabavam de coincidir com o que sempre lhe havia dito sua mãe, e completamente diferente da teoria do Daisy. Chorava o avô por um genro que alguma vez tinha existido? Não se deu por vencido. —E a família do Teddy Williams? Minha mãe me disse que era da Swansea. Certamente teria pais, irmãos… —Sua mãe nunca nos disse nada de sua família —repôs a avó—. Me parece que estava envergonhada. Fora qual fosse o motivo, nunca quis conhecê-los. E não era coisa nossa lhe levar a contrária nisso. —Mas talvez tenho outros dois avós na Swansea. E tios e tias e primos aos que não conheço. —Pois sim —disse o avô—. Mas não sabemos. —Minha mãe sim que sabe. —Suponho que saberá. —Pois o perguntarei a ela —disse Lloyd. IV Daisy estava apaixonada. de repente se dava conta de que, antes do Lloyd, nunca tinha amado a ninguém. Ao Boy nunca o tinha querido de verdade, embora sim a excitava. Quanto ao pobre Charlie Farquharson, como muito lhe tinha tido carinho. Sempre tinha acreditado que o amor era algo que podia lhe conceder a quem ela quisesse, e que sua maior responsabilidade era escolher com inteligência. de repente sabia que todo isso não era assim. A inteligência não tinha nada que ver com isso, e tampouco tinha tido eleição. O amor era um terremoto. A vida estava vazia salvo por essas duas horas que passava com o Lloyd todas as noites. O resto do dia o ocupava a espera impaciente; a noite era para a lembrança. Lloyd era o travesseiro em que apoiava a bochecha. Era a toalha com a que se secava os peitos ao sair da banheira. Era o nódulo que se metia na boca e sugava, ensimesmada em seus pensamentos. Como podia não lhe haver feito nenhum caso durante quatro anos? O amor de sua vida se apresentou ante ela naquele baile do Trinity, e a ela sozinho se o tinha ocorrido que parecia ter posto um traje emprestado! por que não o tinha abraçado e o tinha beijado, por que não tinha insistido em que se casassem imediatamente? Ele o tinha sabido desde o começo, supunha. Devia haver-se apaixonado por ela do primeiro momento. Tinha-lhe suplicado que abandonasse ao Boy. o deixe havia dito aquela noite ao retornar do Gaiety—, e sei minha noiva. E ela se riu dele. dele, que tinha visto em seguida uma verdade que ela tinha sido incapaz de ver. Entretanto, uma intuição no mais profundo de seu ser a tinha feito beijá-lo, ali, naquela calçada do Mayfair, na escuridão de entre duas luzes. Naquele momento o tinha considerado um capricho passageiro, mas o certo é que era o mais inteligente que tinha feito na vida, porque certamente com isso tinha selado a devoção dele. Nesses momentos, no Ty Gwyn, Daisy se negava a pensar no que aconteceria a partir de então. Vivia o dia a dia, nas nuvens, sonriendo por nada. Recebeu uma carta cheia de inquietação desde o Buffalo, de sua mãe, que se preocupava com sua saúde e seu estado de ânimo depois do aborto, e lhe enviou uma resposta tranqüilizadora. Olga lhe explicava também alguma que outra novidade: Dave Rouzrokh tinha morrido no Palm Beach; Muffie Dixon se casou com o Philip Renshaw; a mulher do senador Dewar, Rosa, tinha escrito um livro titulado A Casa Branca entre bastidores, com fotografias do Woody, que tinha sido um êxito de vendas. Um mês atrás, uma carta assim lhe teria feito sentir nostalgia, mas de repente a notícia logo que despertava um leve interesse nela. Só se entristecia quando pensava no menino que tinha perdido. A dor tinha remetido imediatamente, e a hemorragia demorou sozinho uma semana em desaparecer do tudo, mas a perda lhe seguia pesando. Já não chorava por isso, mas de vez em quando se surpreendia olhando ao vazio e pensando se teria sido menino ou menina, a quem teria se parecido… e então, sobressaltada, dava-se conta de que levava uma hora sem mover-se. Chegou a primavera e Daisy saía a passear pela ladeira da montanha com botas de água e uma gabardina para proteger do vento. Às vezes, quando estava segura de que ninguém mais que as ovelhas poderia ouvi-la, gritava a pleno pulmão: Quero-lhe!. Inquietava-lhe a reação do Lloyd às dúvidas que lhe tinha exposto sobre seus pais. Possivelmente tinha feito mal tirando o tema: solo tinha conseguido entristecê-lo. Entretanto, sua desculpa tinha sido muito pertinente: a verdade certamente sairia à luz cedo ou tarde, e era melhor inteirar-se dessas coisas por boca de alguém querido. O doloroso desconcerto que via em lhe chegava ao coração, e isso fazia que o quisesse mais ainda. Um dia Lloyd lhe disse que tinha pedido uma permissão. Queria ir a uma localidade vacacional da costa sul, Bournemouth, para assistir ao congresso anual da Partida Trabalhista a segunda semana de maio, na Páscoa do Pentecostés, que em Grã-Bretanha era festivo. Sua mãe também estaria no Bournemouth, havia-lhe dito, assim teria ocasião de lhe perguntar por seus verdadeiros pais; e Daisy pensou que parecia impaciente e temeroso de uma vez. Lowther se teria negado a deixá-lo partir, evidentemente, mas Lloyd tinha falado com o coronel Ellis-Jones já em março, quando o tinham atribuído ao curso, e o coronel, bem porque sentia simpatia pelo Lloyd ou porque simpatizava com a partida —ou ambas as coisas—, tinha acessado. Lowther não podia contradizer sua ordem. Mesmo assim, se os alemães invadiam a França, certamente ninguém poderia desfrutar de nenhuma permissão. Daisy sentiu uma estranha sensação de medo ante a perspectiva de que Lloyd partisse do Aberowen sem saber que ela o amava. Não sabia muito bem por que, mas tinha que dizer-lhe antes de que se fora. Lloyd tinha pensado partir na quarta-feira e retornar seis dias depois. Casualmente, Boy tinha anunciado que iria fazer uma visita ao Daisy e chegaria na quarta-feira de noite. Ela, por razões que não era capaz de entender de tudo, alegrou-se de que os dois homens não fossem coincidir na casa. Decidiu fazer sua confissão ao Lloyd na terça-feira, o dia antes de sua partida. Não tinha a menor ideia do que ia dizer lhe a seu marido, um dia depois. Ao imaginar a conversação que teria com o Lloyd, deu-se conta de que ele certamente a beijaria e, quando se beijassem, seus sentimentos os transbordariam e acabariam fazendo o amor. Depois passariam toda a noite abraçados um ao outro. Nesse ponto, suas fantasias se viram interrompidas pela necessidade de discrição. Ninguém devia ver o Lloyd saindo das dependências dela pela manhã, pelo bem de ambos. Lowthie já suspeitava algo: Daisy sabia pela atitude que tinha para ela, que era de uma vez de recriminação e picardia, quase como se o homem acreditasse que teria que ser ele, e não Lloyd, que a tivesse apaixonado. Sem dúvida, seria muito melhor que Lloyd e ela pudessem ver-se em algum outro lugar para ter essa providencial conversação. Pensou nos dormitórios da asa oeste que estavam vazios e sentiu que ficava sem ar. Ele poderia deixá-la à alvorada, e se alguém o via, não saberiam que tinha estado com ela. Ela poderia baixar mais tarde, vestida já, e fingir que andava procurando algum objeto perdido propriedade da família, possivelmente um quadro. De fato, elaborando a mentira que explicaria se surpreendiam-na, pensou que podia fazer-se com algum troço do trastero e levá-lo a dormitório um pouco antes, e assim já estaria ali preparado para servir de prova material de seu álibi. Às nove em ponto da terça-feira, quando todos os alunos estavam em classe, percorreu o piso superior levando um conjunto de botellitas de perfume com plugues de prata deslustrada e um espelho de mão a jogo. Já se sentia culpado. Tinham tirado o tapete e seus passos ressonavam com força sobre os tablones do chão, como se anunciassem a chegada de uma mulher marcada com a letra escarlate. Por sorte, não havia ninguém nas habitações. Foi à Suíte Gardênia, que vagamente acreditava recordar que se estava utilizando como armazém de roupa de cama. Não havia ninguém no corredor quando entrou. Fechou a porta em seguida. Faltava-lhe o ar. Mas se ainda não tenho feito nada…, disse-se. Não lhe falhava a memória: por toda a habitação, em altas pilhas apoiadas contra o papel cenário de gardênias da parede, viu pulcros jogos de lençóis, mantas e almofadões, envoltos em arruda tecido de algodão e maços com corda em enormes pacotes. A habitação cheirava um pouco a mofo, assim abriu uma janela. O mobiliário original seguia ali: uma cama, um armário, uma cômoda, um pequeno escritório e um penteadeira de linhas sinuosas com três espelhos. Deixou as botellitas de perfume no penteadeira e logo fez a cama com um daqueles jogos. Os lençóis estavam fritem ao tato. Agora já sim que tenho feito algo —pensou—. Tenho feito a cama para meu amante e para mim. Olhou os travesseiros brancos e as mantas de cor rosa com seu cós de cetim, e se viu si mesmo com o Lloyd, unidos em um comprido abraço, beijando-se com loucura. Sozinho pensando-o-se excitou tanto que se sentiu desfalecer. Fora ouviu uns passos que ressonavam nos tablones igual a acabavam de fazer os seus. Quem poderia ser? Morrison, possivelmente, o velho lacaio, de caminho a ocupar-se de uma canaleta que gotejava ou um cristal quebrado. Esperou, sentindo os culpados pulsados de seu coração, até que os passos chegaram ante a porta e logo se afastaram de novo. O susto relaxou sua excitação e esfriou o calor que sentia por dentro. Contemplou a cena uma última vez e se foi. Não havia ninguém no corredor. Seus sapatos, de novo, anunciavam seu avanço ao caminhar, mas agora podia mostrar do todo inocente, disse-se. Podia ir aonde quisesse, tinha mais direito a estar ali que nenhuma outra pessoa: ela estava em sua casa, seu marido era o herdeiro de toda aquela mansão. O marido ao que com tantas precauções pensava trair. Sabia que a culpabilidade teria que paralisá-la, mas em realidade estava impaciente por fazê-lo, consumia-a o desejo. O seguinte seria informar ao Lloyd. A noite anterior tinha ido vê-la a suas dependências, como sempre, mas ela ainda não tinha podido lhe propor essa entrevista, porque ele teria querido algum tipo de explicação e Daisy sabia que então o haveria dito tudo, o teria levado a cama e teria quebrado seu plano. Assim teria que conseguir falar com ele durante o dia. Normalmente não se viam durante a jornada, a menos que tropeçassem por acaso no vestíbulo ou a biblioteca. Como podia assegurar-se de encontrá-lo? Subiu as escadas do desvão. Os alunos não estavam em suas habitações, mas em qualquer momento um deles podia retornar a seu quarto a procurar algo que se houvesse deixado. Daisy tinha que dar-se pressa. Entrou no dormitório do Lloyd. Cheirava a ele. Não sabia dizer exatamente qual era a fragrância; não viu nenhuma garrafa de colônia na habitação, mas sim havia um bote com uma espécie de loção para o cabelo junto a seu cuchilla de barbear. Abriu-o e inspirou: sim, isso era, limão e especiarias. perguntou-se se seria presumido. Ao melhor um pouco. Normalmente o via bem vestido, até com o uniforme. Tinha que lhe deixar uma nota. Em cima do penteadeira encontrou um caderno barato. Abriu-o e logo olhou a seu redor procurando algo com o que escrever. Sabia que Lloyd tinha uma estilográfica negra com seu nome gravado no canhão, mas seguro que a tinha levado consigo para tomar apontamentos em classe. Encontrou um lápis no primeira gaveta. O que podia lhe escrever? Tinha que ser cuidadosa se por acaso alguma outra pessoa lia a nota. Ao final decidiu pôr simplesmente Biblioteca e deixou o caderno aberto em cima do penteadeira, onde seguro que o veria. Depois partiu. Não a viu ninguém. Certamente Lloyd retornaria a seu quarto em algum momento do dia, supôs, talvez para recarregar a pluma com o tinteiro que havia no penteadeira. Então veria a nota e iria procurá-la. Baixou à biblioteca a esperá-lo. A manhã foi larga. Daisy estava lendo a autoras vitorianas —pareciam compreender como se sentia naqueles momentos—, mas nem sequer a senhora Gaskell obtinha captar toda sua atenção, e se passou grande parte do tempo olhando pela janela. Era maio, e normalmente o sortido de flores primaveris dos jardins do Ty Gwyn teria sido esplendoroso, mas a maioria dos jardineiros se arrolaram nas forças armadas, e os que não, cultivavam verduras, não floresça. Muitos alunos entraram na biblioteca pouco antes das onze e se acomodaram nas poltronas de couro verde com seus cadernos, mas Lloyd não estava entre eles. Daisy sabia que a última classe da manhã terminava às doze e meia. Nesse momento os homens se levantaram e saíram da biblioteca, mas Lloyd seguia sem aparecer. Seguro que subiria a sua habitação, pensou, embora solo fora para deixar os livros e lavá-las mãos no quarto de banho do desvão. Passaram os minutos e soou o gongo da comida. Lloyd entrou em fim, e ao Daisy deu um tombo o coração. Parecia inquieto. —Vi sua nota —disse—. Te encontra bem? Ela era sempre sua principal preocupação. Um problema do Daisy não era uma moléstia, a não ser uma ocasião para ajudá-la, e estava mais que disposto a isso. Nenhum outro homem se ocupou assim dela, nem sequer seu pai. —Sim, tudo vai bem. Sabe como são as gardênias? —Levava toda a manhã ensaiando seu discurso. —Suponho que sim. parecem-se um pouco às rosas. por que? —Na asa oeste há umas habitações às que chamam Suíte Gardênia. Têm uma gardênia branca grafite na porta principal e agora é o armazém da roupa de cama. Crie que poderá encontrá-la? —Certamente. —Reuniremo-nos ali esta noite, em lugar de em meu apartamento. Na hora de sempre. Lloyd ficou olhando-a, tentando adivinhar o que ocorria. —Ali estarei —disse—. Mas por que? —Quero te dizer uma coisa. —Que emocionante —repôs ele, um pouco desconcertado. Daisy imaginava tudo o que lhe estava passando pela cabeça. Devia sentir-se eletrizado ante a idéia de que ela pudesse ter preparado uma entrevista romântica, e ao mesmo tempo se estaria dizendo que aquilo era um sonho inalcançável. —vá comer —lhe disse. Lloyd duvidou. —Verei-te esta noite —insistiu ela. —Morro de impaciência —disse ele, e saiu. Daisy retornou a suas habitações. Maisie, que não era muito boa cozinheira, tinha-lhe preparado um sándwich com duas fatias de pão e uma fatia de presunto em conserva, mas Daisy estava muito nervosa: não poderia ter comido nem que lhe tivessem devotado sorvete de pêssego. tombou-se a descansar. Suas fantasias sobre a noite próxima eram tão explícitas que inclusive se ruborizava. Tinha aprendido muito de sexo graças ao Boy, ao que sem dúvida não lhe faltava experiência com outras mulheres, assim sabia muito bem o que gostava aos homens. E queria fazer-lhe tudo ao Lloyd, lhe beijar em todos os rincões de seu corpo, lhe fazer o que Boy chamava um soixante-neuf, tragar-se seu sêmen. Todo isso lhe resultava tão excitante que teve que jogar mão de toda sua força de vontade para resistir à tentação de dar-se agradar ela mesma. Às cinco se tomou um café, depois se lavou o cabelo e se deu um comprido banho, que aproveitou para barbeá-las axilas e recortar-se um pouco o pêlo púbico, que o crescia muito abundante. secou-se e se aplicou uma suave loção por todo o corpo. perfumou-se e começou a vestir-se. ficou roupa interior limpa. provou-se todos seus vestidos. Gostava de um de rayitas azuis e brancas, mas pela parte de diante tinha uma larga fileira de botões que demorava séculos em desabotoar-se, e sabia que esse dia quereria despir-se depressa. Penso como uma furcia, disse-se, embora não sabia se isso a divertia ou a envergonhava. Ao final se decidiu por um singelo vestido de cachemira, de cor verde memora, que lhe chegava até os joelhos e com o que ensinava suas bonitas pantorrilhas. olhou-se com atenção no estreito espelho do interior da porta do armário. Estava bonita. sentou-se no bordo da cama para ficá-las médias, e então entrou Boy. Daisy se sentiu desfalecer. Desde não ter estado já sentada, teria se cansado. Ficou olhando sem dar crédito. —Surpresa! —exclamou ele com jovialidade—. cheguei um dia antes. —Sim —disse ela quando por fim conseguiu recuperar a voz—. Que surpresa. inclinou-se e a beijou. Nunca lhe tinha gostado de muito que lhe colocasse a língua na boca, porque sempre lhe tinha sabor de álcool e tabaco. A ele isso trazia sem cuidado; de fato, inclusive parecia lhe gostar de levá-la ao limite. Nesse momento, não obstante, por causa da culpabilidade, Daisy respondeu com sua própria língua. —Caramba! —disse Boy ao ficar sem fôlego—. Que brincalhona está. Nem lhe imagina —pensou Daisy—. Ao menos, isso espero. —adiantaram um dia o exercício —explicou ele—. Não tive tempo de te avisar. —Ou seja, que estará aqui esta noite? —Sim. E Lloyd partia pela manhã. —Não parece muito contente —disse Boy. fixou-se em seu vestido—. Tinha planos? —Que planos vou ter? —repôs ela. Tinha que recuperar a compostura—. Uma saída para o Two Crowns, ao melhor? —perguntou com sarcasmo. —Agora que o menciona, por que não tomamos uma taça? —Saiu da habitação em busca de álcool. Daisy afundou o rosto entre as mãos. Como podia ser? Seus planos se foram ao traste. Teria que encontrar a forma de avisar ao Lloyd. E não poderia lhe declarar seu amor em um sussurro apressado, com o Boy à volta da esquina. disse-se que teria que pospor sem remédio toda sua estratégia. Seria sozinho por uns dias: Lloyd tinha previsto retornar na terça-feira seguinte. O atraso seria uma tortura para ela, mas sobreviveria, e seu amor também. Mesmo assim, quase chorou de decepção. Terminou de ficá-las meias e os sapatos, depois foi à pequena salita. Boy encontrou uma garrafa de uísque escocês e dois copos. Ela bebeu um pouco por educação. —Vi que essa garota está fazendo um bolo de pescado para o jantar. Morro de fome. É boa cozinheira? —perguntou Boy. —Não muito. O que prepara se pode comer, se tiver muita fome. —Ah, bom, sempre fica o uísque —disse Boy, e se serve outro copo. —O que estiveste fazendo? —Estava desesperada por fazê-lo falar e assim não ter que lhe dar conversação ela—. voaste a Noruega? —Os alemães estavam ganhando ali a primeira batalha terrestre. —Não, graças a Deus. Aquilo é um desastre. Esta noite haverá um grande debate na Câmara dos Comuns. —Começou a falar dos enganos que tinham cometido os comandantes britânicos e franceses. Quando o jantar esteve preparado, Boy baixou à adega a procurar um vinho e Daisy viu então a ocasião de subir a alertar ao Lloyd. Mas onde estaria? Consultou seu relógio de pulso. Eram as sete e meia. Estaria jantando no comilão de oficiais. Não podia entrar nessa sala e lhe sussurrar algo ao ouvido enquanto estava sentado à mesa com seus companheiros; isso seria virtualmente como lhe dizer a todo mundo que eram amantes. Havia alguma forma de tirá-lo dali? Se devanó os miolos; mas antes de que lhe ocorresse nada, Boy retornou já, triunfal, com uma garrafa de Dom Pérignon de 1921 nas mãos. —Da primeira colheita que fizeram —disse—. Histórica. sentaram-se à mesa e se comeram o bolo de pescado do Maisie. Daisy bebeu uma taça de champanha, mas lhe resultou difícil comer nada. Passeou um pouco a comida pelo prato em um claro intento de fingir normalidade. Boy, pelo contrário, repetiu. De sobremesa, Maisie lhes serve pêssegos em calda de açúcar com leite condensado. —A guerra foi um duro golpe para a cozinha britânica —disse Boy. —Tampouco é que antes fora nada do outro mundo —comentou Daisy, esforçando-se ainda por fingir normalidade. A essas alturas Lloyd devia estar já na Suíte Gardênia. O que faria se ela não era capaz de lhe fazer chegar uma mensagem? ficaria ali toda a noite, com a esperança de vê-la aparecer? renderia-se a meia-noite e retornaria a sua própria cama? Ou baixaria a procurá-la? Isso poderia resultar incômodo. Boy tirou um grande puro e começou a fumar-lhe com satisfação, inundando de vez em quando o extremo apagado em um copo de brandy. Daisy tentou pensar em alguma desculpa para deixá-lo um momento e subir acima, mas não lhe ocorreu nada. Que pretexto podia dar para ir visitar os alunos a suas habitações a aquelas horas da noite? Ainda não tinha feito nada quando Boy apagou o puro e disse: —Bom, já é hora de dormir. Quer ir você primeiro ao banho? Sem saber que mais fazer, Daisy se levantou e entrou no dormitório. Devagar, tirou-se a roupa com a que tão cuidadosamente se vestiu para o Lloyd. lavou-se a cara e ficou sua camisola menos sedutora. Depois se meteu na cama. Boy estava um pouco bebido quando se tombou junto a ela, mas mesmo assim tinha vontades de sexo. A só idéia horrorizava ao Daisy. —Sinto-o —lhe disse—. O doutor Mortimer há dito que nada de relações maritais durante três meses. —Não era verdade. Mortimer havia dito que tudo iria bem em quanto cessasse a hemorragia. sentia-se terrivelmente desonesta. Tinha planejado fazê-lo com o Lloyd essa noite. —O que? —espetou Boy, indignado—. por que? —Se o fizermos muito logo —respondeu Daisy, improvisando—, poderia afetar às probabilidades de que volte a ficar grávida, parece ser. Com isso o convenceu. Não havia nada que Boy desejasse mais que um herdeiro. —Ah, bom —disse, e se voltou do outro lado. Ao cabo de um minuto já estava dormido. Daisy seguia acordada, a cabeça não deixava de lhe dar voltas. Poderia escapar um momento? Teria que vestir-se… não podia passear-se pela casa em camisola. Boy tinha o sonho pesado, mas despertava freqüentemente para ir ao banho. E se o fazia justo quando ela não estava, e a via retornar com a roupa posta? O que história poderia lhe explicar que tivesse uma pequena possibilidade de resultar acreditável? Todo mundo sabia que solo havia uma razão que pudesse levar a uma mulher a percorrer nas pontas dos pés uma mansão de noite. Lloyd teria que sofrer. E ela sofria com ele, imaginando-o só e decepcionado naquela habitação mofada. tombaria-se sem tirar o uniforme e ficaria dormido? Teria frio, a menos que se tampasse com uma manta. Pensaria que tinha tido alguma emergência, ou acreditaria que o tinha deixado plantado sem mais? Ao melhor sentia-se defraudado, ao melhor se zangava com ela. Lhe saltaram as lágrimas. Boy estava roncando, assim não se deu conta de nada. Daisy ficou transposta já de madrugada e sonhou que tinha que agarrar um trem, mas que não deixavam de ocorrer tolices que cada vez a atrasavam mais: o táxi a levava a um lugar equivocado, tinha que caminhar muitíssimo carregando com sua mala, não encontrava o bilhete e, quando ao fim chegava à plataforma, resultava que a estava esperando uma antiga diligência que demoraria dias em chegar a Londres. Ao despertar desse sonho, Boy estava no banheiro, barbeando-se. Daisy se sentia abatida. levantou-se e se vestiu. Maisie preparou o café da manhã e Boy tomou ovos com beicon e uma torrada com manteiga. Quando teve terminado já eram as nove. Lloyd havia dito que partia às nove. Pode que estivesse no vestíbulo, com a mala na mão. Boy se levantou da mesa e foi ao banho, levando-se com ele o periódico. Daisy conhecia seus costumes matutinos: estaria ali dentro cinco ou dez minutos. de repente sua apatia desapareceu. Saiu do apartamento e correu escada acima para o vestíbulo. Lloyd não estava por nenhuma parte. Devia haver-se ido já. sentiu-se vencida pelo desânimo. Mas seguro que iria a pé até a estação: solo os ricos e os doentes tomavam táxis para percorrer pouco mais de um quilômetro. Talvez podia alcançá-lo ainda, assim saiu pela porta principal. Viu-o uns quatrocentos metros caminho abaixo, andando com passo elegante e a mala na mão, e lhe deu um tombo o coração. Abandonando toda precaução, jogou a correr atrás dele. Um caminhão ligeiro do exército, desses que chamavam Tilly, baixava também a toda velocidade por diante dela. Para sua desgraça, diminuiu a marcha ao aproximar-se ao Lloyd. —Não! —gritou Daisy, mas Lloyd estava muito longe para ouvi-la. Lançou a mala à parte de atrás e subiu de um salto à cabine, junto ao condutor. Daisy não deixou de correr, mas não serviria de nada. O pequeno caminhão estava agarrando velocidade. Daisy se deteve. Ali em pé, viu como o Tilly cruzava a grade do Ty Gwyn e desaparecia ao longe. Tentou não chorar. Ao cabo de um momento se voltou e entrou outra vez na casa. V De caminho ao Bournemouth, Lloyd tinha que passar uma noite em Londres; e essa noite, a da quarta-feira 8 de maio, esteve na tribuna de espectadores da Câmara dos Comuns, assistindo ao debate que decidiria o destino do primeiro-ministro, Neville Chamberlain. Era como estar no galinheiro do teatro: os assentos eram muito estreitos e duros, e olhava um para baixo, em um vertiginoso picado, ao espetáculo que se desenvolvia na câmara. Essa noite a tribuna estava enche. Ao Lloyd e a seu padrasto, Bernie, havia-lhes flanco bastante conseguir entradas e só o tinham obtido obrigado à influência de sua mãe, Ethel, que nesses momentos estava sentada com seu tio Billy entre os parlamentarios trabalhistas, ali, na abarrotada câmara. Lloyd não tinha tido ocasião de perguntar ainda por seus verdadeiros pais: todo mundo estava muito preocupado pela crise política. Tanto Lloyd como Bernie queriam que Chamberlain demitisse. O contemporizador do fascismo tinha pouca credibilidade como líder na guerra, e a derrota da Noruega não tinha feito mais que pôr o de manifesto. O debate tinha começado a noite anterior. Chamberlain tinha sido objeto de ferozes ataques, não só por parte de parlamentarios trabalhistas, mas também dos de sua própria partida, conforme lhes tinha explicado Ethel. O conservador Leão Amery lhe tinha chamado ao Cromwell: estivestes muito tempo aqui sentado para o bem que têm feito. Partam, digo-lhes, e nos liberem de você. No nome de Deus, partam!. Eram umas palavras muito crudas vindo de um correligionário, e ainda foram mais hirientes por causa das vozes disso, isso! que se elevaram a um e outro lado da câmara. A mãe do Lloyd e as demais mulheres do Parlamento se reuniram em sua própria sala do palácio do Westminster e tinham acordado forçar uma votação. Os homens não podiam impedir-lhe assim em lugar disso se uniram a elas. Quando se fez o anúncio, já na quarta-feira, a sessão ficou convertida em uma moção de confiança contra Chamberlain. O primeiro-ministro tinha aceito a provocação e —no que Lloyd percebeu como um sinal de debilidade— apelou a seus amigos para que o respaldassem. Os ataques prosseguiam ainda de noite e Lloyd os estava desfrutando. Detestava ao primeiro-ministro pela política que tinha mantido respeito a Espanha. Durante dois anos, de 1937 a 1939, Chamberlain tinha seguido insistindo na não intervenção de Grã-Bretanha e França, enquanto que a Alemanha e Itália não faziam mais que enviar armas e tropas ao exército rebelde, e os ultraconservadores americanos vendiam gasolina e caminhões aos franquistas. Se havia algum político britânico culpado dos assassinatos em massa que estava levando a cabo Franco, esse era Neville Chamberlain. —E mesmo assim —disse Bernie ao Lloyd durante uma pausa—, o certo é que não se pode culpar ao Chamberlain do desastre da Noruega. Winston Churchill é o primeiro lorde do Almirantado, e sua mãe diz que foi ele quem pressionou para que se realizasse a invasão. depois de tudo o que tem feito Chamberlain, Espanha, Austria, Checoslovaquia, seria irônico que abandonasse o poder por causa de algo que em realidade não é culpa dela. —Tudo é, em última instância, culpa do primeiro-ministro —disse Isso Lloyd é o que implica ter o poder. Bernie sorriu com ironia, e Lloyd soube que estava pensando que os jovens viam as coisas de um modo muito simples; mas o fato de que não dissesse nada honrava a seu padrasto. O debate estava sendo acalorado, mas a câmara ficou em silêncio quando o antigo primeiro-ministro, David Lloyd George, ficou em pé. Ao Lloyd tinham posto seu nome por ele. Com seus já setenta e sete anos, era um ancião homem de Estado de cabelo grisalho que falava com a autoridade do artífice da vitória na Grande Guerra. Não teve piedade. —Não é questão dos quais são aqui amigos do primeiro-ministro —disse, afirmando o evidente com um sarcasmo mordaz—. Se trata de um assunto de proporções muito maiores. De novo, Lloyd se sentiu animado ao ver que o coro de aprovação vinha tanto do bando conservador como da oposição. —Ele insistiu a que se façam sacrifícios —disse Lloyd George, e seu acento nasal do Gales do Norte parecia afiar as cuchillas de seu desprezo—. Não há nada que possa contribuir mais à vitória, nesta guerra, que o fato de que ele sacrifique seu selo oficial. A oposição rugiu sua aprovação, e Lloyd viu sua mãe aclamando ao velho homem de Estado. Churchill fechou o debate. Como orador podia equiparar-se ao Lloyd George, e Lloyd temeu que sua oratória pudesse salvar ao Chamberlain. Mas tinha à câmara em contra, interrompendo-o e animando às vezes com tanto alvoroço que não o ouvia por cima do clamor. Churchill se sentou às onze da noite e então se realizou a votação. O sistema se fazia lento e pesado. Em lugar de levantar as mãos ou marcar papeletas, os parlamentarios tinham que abandonar a câmara para ser contados a medida que aconteciam um dos dois vestíbulos, o do Sim ou o do Não. O procedimento se alargou durante quinze ou vinte minutos. Ethel sempre dizia que solo podia ter sido ideado assim por homens que não tinham nada mais que fazer. Estava segura de que não demorariam para modernizá-lo. Lloyd estava em brasas. A queda do Chamberlain lhe proporcionaria uma profunda satisfação, mas não era nem muito menos segura. Para distrair-se pensou no Daisy, sempre uma ocupação agradável. Que estranhas tinham sido as últimas vinte e quatro horas no Ty Gwyn: primeiro aquela nota com uma só palavra, Biblioteca; depois a conversação apressada e aquela tentadora entrevista na Suíte Gardênia; logo toda uma noite de espera, com frio, aborrecido e desconcertado, e tudo por uma mulher que não tinha aparecido. Lloyd tinha estado ali até as seis da manhã, abatido mas resistente a abandonar as esperanças até o momento em que se visse obrigado a lavar-se, barbear-se e trocar-se de roupa, fazer a mala e sair de viagem. Estava claro que algo tinha saído mau, ou ao melhor Daisy tinha trocado de opinião; mas qual tinha sido sua intenção em primeiro lugar? Tinha-lhe sussurrado que tinha algo que lhe dizer. Tinha pensado lhe confessar algo tão estremecedor para merecer toda aquela montagem? Ou seria algo tão banal que se esqueceu inclusive de sua entrevista? Teria que esperar até na terça-feira seguinte para perguntar-lhe —Churchill exigirá el rearme hasta en el Paraíso, cuando el león morará con el cordero. Não lhe havia dito a sua família nada de que Daisy estava no Ty Gwyn. Isso teria suposto ter que lhes explicar também a nova relação que o unia a ela, e não podia fazê-lo porque nem sequer ele acabava de entendê-la. Estava apaixonado por uma mulher casada? Não sabia. O que sentia ela por ele? Não sabia. O mais provável, pensou, era que Daisy e ele se converteram em dois bons amigos que tinham perdido sua oportunidade com o amor. E em certa forma, não queria admitir isso diante de ninguém, porque então lhe resultaria insoportablemente definitivo. —Quem subirá ao poder se Chamberlain cair? —As apostas favorecem ao Halifax. —Lorde Halifax era então secretário do Foreign Office. —Não! —exclamou Lloyd, indignado—. Não podemos ter a um conde como primeiro-ministro em um momento assim. Além disso, também é um contemporizador, é tão mau como Chamberlain! —Estou de acordo —disse Bernie—. Mas quem fica, se não? —E Churchill? —Sabe o que disse Stanley Baldwin do Churchill? —Baldwin, conservador, tinha sido primeiro-ministro antes que Chamberlain—. Quando nasceu Winston, muitas fadas baixaram revoando até seu berço para lhe levar dons: a imaginação, a eloqüência, a diligência, a capacidade… E então chegou uma fada que disse: Nenhuma pessoa tem direito a tantos dons. O agarrou em braços e lhe deu tal meneio e tal sacudida que o deixou sem discernimento nem sensatez. Lloyd sorriu. —Muito gracioso, mas é isso certo? —Algo disso há. Na última guerra foi o responsável pela batalha dos Dardanelos, que supôs uma terrível derrota para nós. Agora nos empurrou à aventura a Noruega, outro fracasso. É um orador veemente, mas a história indica que tem certa tendência a deixar-se levar por quimeras. —Esteve no certo com a necessidade de rearmamento durante os anos trinta, quando todo mundo se mostrava em contra, a Partida Trabalhista incluída. —Churchill exigirá o rearmamento até no Paraíso, quando o leão morará com o cordeiro. —Parece-me que necessitamos a alguém com certa agressividade. Queremos que nosso primeiro-ministro ladre, não que choramingue. —Bom, ao melhor se cumpre seu desejo. Já entram outra vez os escrutinadores. anunciaram-se os votos: 280 para o Sim, 200 para o Não. Chamberlain tinha ganho. A câmara estalou em protestos. Os partidários do primeiro-ministro o aclamavam, mas outros lhe gritavam que demitisse. Lloyd ficou amargamente decepcionado. —Como podem desejar que fique, depois de todo isso? —Não tire conclusões precipitadas —disse Bernie enquanto o primeiro-ministro saía e o alvoroço começava a remeter. Bernie estava fazendo uns cálculos a lápis na margem do Evening News—. O governo está acostumado a ter uma maioria de 240 votos. Agora têm cansado até 80. —Fez umas rápidas notas numéricas, somas e subtrações—. Caso por cima o número de parlamentarios ausentes, calculo que uns quarenta partidários do governo votaram contra Chamberlain, e outros sessenta se abstiveram. É um golpe muito duro para um primeiro-ministro: um centenar de seus companheiros de partida não depositam sua confiança nele. —Mas bastará isso para obrigá-lo a demitir? —perguntou Lloyd com impaciência. Bernie estendeu os braços em um gesto de rendição. —Não sei.
VI Ao dia seguinte, Lloyd, Ethel, Bernie e Billy se foram ao Bournemouth em trem. O trem estava cheio de delegados vindos de toda Grã-Bretanha, que se passaram o trajeto inteiro discutindo sobre o debate da noite anterior e do futuro do primeiro-ministro. Seus acentos foram do cru sincopado do Glasgow até as fintas e os regates do cockney. Uma vez mais, Lloyd não encontrou a ocasião de lhe expor a sua mãe aquele tema que o tinha obcecado. Igual à maioria dos delegados, tampouco eles podiam permiti-los hotéis de presunção que se elevavam ao bordo dos escarpados, assim que se alojaram em uma casa de hóspedes dos subúrbios. Essa tarde, os quatro foram a um pub e se sentaram em um rincão tranqüilo, e então Lloyd viu sua oportunidade. Bernie pediu uma ronda de bebidas. Ethel se perguntou em voz alta como devia estar indo a seu amiga Maud no Berlim: já não recebia notícias delas, posto que a guerra tinha interrompido o serviço postal entre a Alemanha e Grã-Bretanha. Lloyd bebeu uns sorvos de sua pinta de cerveja e logo disse com aprumo: —Eu gostaria de saber algo mais sobre meu verdadeiro pai. —Seu pai é Bernie —repôs Ethel, cortante. Outra vez com evasivas! Lloyd conteve a fúria que sentiu crescer imediatamente em seu interior. —Isso não faz falta nem que o diga —respondeu—. Como tampouco faz falta que eu diga ao Bernie que o quero como a um pai, porque já sabe. Bernie lhe deu umas palmadas no ombro, um gesto de afeto torpe mas genuíno. Lloyd adotou um tom de obrigação. —Mas sinto curiosidade pelo Teddy Williams. —Pelo que terá que falar é do futuro, não do passado… Estamos em guerra. —Exatamente —disse Lloyd—. Por isso quero respostas para minhas perguntas agora mesmo. Não estou disposto a esperar, porque logo terei que ir à frente e não quero morrer na ignorância. —Não via forma de que pudesse lhe rebater esse argumento. —Já sabe tudo o que terá que saber —disse Ethel, mas evitava olhá-lo aos olhos. —Não, isso não é certo —insistiu Lloyd, obrigando-se a ter paciência—. Onde estão meus outros avós? Tenho tios, tias, primos? —Teddy Williams era órfão —respondeu Ethel. —E cresceu em um orfanato? —por que é tão cabezota? —disse sua mãe, molesta. Lloyd deixou que sua voz adotasse um tom de chateio correspondente. —Porque sou igual a você! Bernie não pôde conter um sorriso. —Pelo menos isso é verdade. Lloyd não lhe via a graça. —Que orfanato? —Pode que me dissesse isso, mas não me lembro. Um do Cardiff, acredito. Então interveio Billy: —Está colocando o dedo na chaga, Lloyd, moço. te beba a cerveja e deixa-o correr. —Eu também tenho essa mesma chaga, maldita seja, tio Billy, muitíssimas obrigado. Já estou farto de mentiras. —Vamos, vamos —disse Bernie—. Não falemos de mentiras. —Sinto muito, papai, mas alguém tinha que dizê-lo. —Lloyd levantou uma mão para sossegar qualquer interrupção—. A última vez que lhe perguntei, mamãe me disse que a família do Teddy Williams era da Swansea, mas que se transladaram muitas vezes a causa do trabalho de seu pai. Agora me diz que cresceu em um orfanato do Cardiff. Uma das duas histórias tem que ser mentira… se é que não o são as duas. Ethel por fim o olhou aos olhos. —Bernie e eu lhe alimentamos, compramo-lhe roupa e lhe enviamos à escola e logo à universidade —disse, indignada—. Não tem nada do que te queixar. —E eu sempre lhes darei as obrigado por isso, e sempre lhes quererei —disse Lloyd. —por que saiu o tema, então? —Por algo que me hão dito no Aberowen. Sua mãe não disse nada, mas em seus olhos apareceu um brilho de medo. No Gales há alguém que sabe a verdade, pensou Lloyd. —Disseram-me que ao melhor Maud Fitzherbert ficou grávida em 1914 —seguiu dizendo Lloyd, implacável—, e que fizeram passar a seu bebê por teu filho, pelo que recompensaram-lhe com a casa do Nutley Street. Ethel soltou um bufido de desdém. Lloyd levantou uma mão. —Isso explicaria duas coisas —disse—. Uma, a insólita amizade entre lady Maud e você. —Procurou algo no bolso de sua jaqueta—. E dois, este meu retrato com costeletas. —Ensinou- a fotografia a todos. Ethel ficou olhando-a sem dizer nada. —Poderia ser eu, verdade? —inquiriu Lloyd. —Sim, Lloyd, poderia ser você —repôs Billy—. Mas é evidente que não é o caso, assim deixa de tomar o cabelo e nos diga de uma vez quem é. —É o pai do conde Fitzherbert. Assim deixa de tomar o cabelo você , tio Billy, e também você, mamãe. Sou filho do Maud? —A amizade entre o Maud e eu foi, acima de tudo, uma aliança política. interrompeu-se ao não chegar a um acordo quanto à estratégia das sufragistas, mas depois retomamo-la. Tenho-lhe muito carinho e me ofereceu oportunidades importantes na vida, mas não existe entre nós nenhum vínculo secreto. Ela não sabe quem é seu pai. —De acordo, mamãe —disse Lloyd—. Poderia te acreditar nisso. Mas é que esta foto… —A explicação desse parecido… —Ethel ficou sem voz. Lloyd não pensava deixá-la escapar. —Vamos —disse sem piedade alguma—. me Diga a verdade. Billy interveio de novo. —Está-lhe ladrando à árvore equivocada, moço. —Seriamente? Bom, pois então, por que não me diz em que direção ladrar? —Eu não sou quem para fazê-lo. Isso era quase uma confissão. —Ou seja que sim que me mentistes. Bernie se tinha ficado sem fala. —Está dizendo que a história do Teddy Williams não é certa? —perguntou ao Billy. Estava claro que também ele a tinha acreditado durante todos esses anos, igual que Lloyd. Billy não respondeu. Todos olharam ao Ethel. —Ao corno —espetou ela—. Como diria meu pai: Saibam que lhes alcançará seu pecado. Bom, pediste a verdade, pois a terá. Embora não te vai gostar. —me ponha a prova —respondeu Lloyd com ânimo temerário. —Não é filho do Maud —disse Ethel—. Mas sim do Fitz. VII Ao dia seguinte, na sexta-feira 10 de maio, Alemanha invadiu a Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Lloyd ouviu a notícia pela rádio enquanto estava tomando o café da manhã com seus pais e o tio Billy na casa de hóspedes. Não lhe surpreendeu: no exército todo mundo acreditava que a invasão era iminente. As revelações da noite anterior o tinham muito mais aturdido. passou-se as horas em vela sem poder dormir, furioso por ter vivido tanto tempo enganado, consternado ao saber que era filho de um contemporizador aristocrata e de direitas que, por uma estranha casualidade, também era o sogro da encantada Daisy. —Como pôde te apaixonar por ele? —tinha-lhe perguntado a sua mãe no pub. Sua resposta tinha sido cortante: —Não seja hipócrita. Você estava louco por sua norte-americana rica, e era tão de direitas que até se casou com um fascista. Lloyd tivesse querido lhe responder que aquilo era diferente, mas em seguida se deu conta de que era exatamente o mesmo. Fora qual fosse a relação que o unia ao Daisy, não havia dúvida de que no passado sim tinha estado apaixonado por ela. O amor não conhecia a lógica. Se ele tinha sucumbido a uma paixão irracional, também sua mãe podia havê-lo feito; o certo era que ambos tinham tido a mesma idade, vinte e um anos, quando lhes tinha acontecido. Lloyd lhe havia dito a sua mãe que teria que lhe haver contado a verdade desde o começo, mas também para isso tinha ela um bom argumento. —Como teria reagido, quando foi menino, se te houvesse dito que foi filho de um homem rico, de um conde? Quanto tempo teria demorado para alardear disso diante dos outros meninos do colégio? Pensa em como se teriam burlado de suas fantasias infantis. Pensa em como lhe teriam odiado por ser superior a eles. —Mas mais tarde… —Não sei —disse Ethel com cansaço—. Nunca parecia ser bom momento. Ao princípio Bernie ficou branco de assombro, mas não demorou para recuperar-se e voltar a ser o mesmo homem fleumático de sempre. Disse que compreendia que Ethel não lhe tivesse contado a verdade. —Um segredo compartilhado deixa de ser um segredo. Lloyd se perguntou qual seria a relação de sua mãe com o conde na atualidade. —Suponho que deve lhe encontrar isso muitos dias, no Westminster. —Só de vez em quando. Os pares dispõem de uma seção do palácio própria, com bares e restaurantes para eles sozinhos, e quando os vemos está acostumado a ser porque havemos consertado uma entrevista. Essa noite, Lloyd estava muito conmocionado e desconcertado para saber quais eram seus sentimentos. Seu pai era Fitz: o aristocrata, o Tory, o pai de Boy, o sogro do Daisy. Tinha que sentir tristeza, ira, impulsos suicidas? A revelação era tão demolidora que quase o tinha deixado intumescido. Era como uma ferida tão grave que ao princípio não produzia dor. As notícias da manhã lhe deram algo mais no que pensar. Durante a madrugada, o exército alemão tinha realizado um avanço relâmpago para o oeste. Embora já o tinham antecipado, Lloyd sabia que os serviços secretos aliados se tinham mostrado incapazes de averiguar a data adiantado, assim que os alemães tinham pilhado aos exércitos desses pequenos países despreparados. Mesmo assim, contra-atacavam com valentia. —Certamente é certo —comentou o tio Billy—, mas a BBC o diria embora não o fora. O primeiro-ministro, Chamberlain, tinha convocado uma reunião do gabinete ministerial que se estava produzindo nesses mesmos instantes. Entretanto, o exército francês, com o reforço de dez divisões britânicas que já estavam na França, fazia tempo que tinha um plano decidido para enfrentar-se a essa possível invasão, e esse plano se pôs em marcha automaticamente. As tropas aliadas tinham cruzado a fronteira francesa para a Holanda e Bélgica do oeste e corriam a encontrar-se com os alemães. Com o coração em um punho por causa dessa transcendental noticia, a família Williams tomou o ônibus para o centro da localidade para chegar ao Pavilhão Bournemouth, onde ia celebrar se o congresso da partida. Ali se inteiraram das notícias procedentes do Westminster. Chamberlain se aferrava ao poder. Billy soube que o primeiro-ministro tinha pedido ao chefe da Partida Trabalhista, Clement Attlee, que fora ministro de seu gabinete, com o que converteria ao governo em uma coalizão dos três partidos principais. Aos três horrorizava essa idéia. Chamberlain, o contemporizador, seguiria sendo primeiro-ministro e, com um governo de coalizão, a Partida Trabalhista se veria obrigado a respaldá-lo. Não suportavam nem pensá-lo sequer. —O que há dito Attlee? —perguntou Lloyd. —Que teria que consultá-lo com seu Comitê Executivo Nacional —respondeu Billy. —Esses somos nós. —Tanto Lloyd como Billy eram membros do comitê, que tinha uma reunião programada para as quatro dessa mesma tarde. —Tem razão —atravessou Ethel—. Comecemos a sondar às pessoas para ver com quanto apoio poderia contar o plano do Chamberlain dentro de nosso executivo. —Eu diria que com nenhum —repôs Lloyd. —Não esteja tão seguro —disse sua mãe—. Haverá quem queira manter ali ao Churchill a qualquer preço. Lloyd passou as seguintes horas imerso em uma incessante atividade política, falando com os membros do comitê, com seus amigos e seus ajudantes, nas cafeterias e bares que havia no pavilhão e o passeio marítimo. Não comeu nada ao meio dia, mas bebeu tanto chá que acreditou que até poderia flutuar na água. Decepcionou-lhe descobrir que não todos compartilhavam suas opiniões sobre o Chamberlain e Churchill. Ainda ficavam alguns pacifistas da última guerra que desejavam a paz a qualquer preço e aprovavam a atitude acomodaticia do Chamberlain. Por outra parte, os parlamentarios galeses ainda pensavam no Churchill como no secretário do Home Office que tinha enviado às tropas a arrebentar uma greve no Tonypandy. Aquilo tinha acontecido fazia trinta anos, mas Lloyd estava aprendendo que, em política, a memória podia alargar-se muito. Às três e meia, Lloyd e Billy percorreram o passeio marítimo acompanhados por uma fresca brisa e entraram no hotel Highcliff, onde ia celebrar se a reunião. Pensavam que a maioria do comitê estaria contra aceitar a oferta do Chamberlain, mas não podiam estar completamente seguros, e Lloyd seguia preocupado pelo resultado. Entraram na sala e se sentaram à larga mesa junto ao resto dos membros do comitê. O chefe da partida chegou pontualmente às quatro. Clem Attlee era um homem magro, tranqüilo, despretensioso, calvo e com bigode. Tinha pinta de advogado —como o era seu pai— e a gente estava acostumada subestimá-lo. Com seu habitual tom seco e pouco emotivo, resumiu ante o comitê os fatos das últimas vinte e quatro horas, incluída a oferta do Chamberlain de uma coalizão com os trabalhistas. —Tenho duas perguntas que lhes fazer —disse então—. A primeira é a seguinte: formariam vocês parte de um governo de coalizão com o Neville Chamberlain como primeiro-ministro? ouviu-se um Não terminante entre os reunidos ao redor da mesa, mais contundente do que tinha esperado Lloyd. Estava entusiasmado. Chamberlain, o amigo dos fascistas, o traidor da Espanha, estava acabado. Sim que havia justiça no mundo. Lloyd também reparou em quão sutil tinha sido o insustancial Attlee para controlar a reunião. Não tinha aberto o tema a um debate geral. Sua pergunta não havia sido: o que devemos fazer? Não lhe tinha dado às pessoas ocasião de expressar inseguranças nem vacilações. Com seu discreto proceder, tinha-os posto entre a espada e a parede e lhes tinha feito escolher. Lloyd estava seguro de que a resposta que lhe tinham dado era a que ele tinha querido. —A segunda pergunta —disse Attlee— é: formariam parte de uma coalizão com outro primeiro-ministro? A resposta não foi tão veemente, mas foi um Sim. Enquanto Lloyd percorria a mesa com o olhar, compreendeu que quase todo mundo estava a favor. Se havia alguém em contra, não se incomodou em solicitar uma votação. —Em tal caso —disse Attlee—, comunicarei ao Chamberlain que nossa partida formará parte de uma coalizão, mas unicamente se ele demitir e outro primeiro-ministro ocupa seu lugar. ouviu-se um murmúrio de aquiescencia por toda a mesa. Lloyd se deu conta de quão inteligente tinha sido Attlee ao evitar a pergunta de quem acreditavam que devia ser o novo primeiro-ministro. —Agora mesmo irei pedir uma comunicação Telefónica com o número dez do Downing Street —disse, e abandonou a sala. VIII Essa noite, Winston Churchill foi convocado ao palácio do Buckingham, conforme mandava a tradição, e o rei lhe pediu que assumisse o cargo de primeiro-ministro. Lloyd tinha muitas esperanças postas no Churchill, embora fora conservador. Com o passar do fim de semana, Churchill se ocupou das disposições que acreditou pertinentes. Constituiu um Gabinete de Guerra de que formavam parte Clem Attlee e Arthur Greenwood, presidente e vice-presidente da Partida Trabalhista, respectivamente. O líder sindicalista Ernie Bevin foi renomado ministro do Trabalho. Era evidente, pensou Lloyd, que Churchill pretendia formar um governo autenticamente pluripartidista. Lloyd fez a mala para chegar a tempo a agarrar o trem que o levaria de volta ao Aberowen. Uma vez ali, supunha que lhe atribuiriam um novo destino, certamente na França, mas ele sozinho necessitava uma ou duas horas. Estava desesperado por conhecer a explicação do comportamento do Daisy da última terça-feira. Como sabia que ia ver a logo, sua impaciência por compreendê-lo não fazia mais que crescer. Enquanto isso, o exército alemão avançava implacável pela Holanda e Bélgica, esmagando a enérgica oposição a uma velocidade que tinha ao Lloyd assombrado. no domingo pela tarde noite, Billy falou por telefone com um contato no Ministério de Guerra, e depois Lloyd e lhe pediram à proprietária da casa de hóspedes que lhes deixasse um velho atlas escolar e estudaram o mapa do noroeste da Europa. O índice do Billy riscou uma linha deste ao oeste de Düsseldorf até o Lille, passando por Bruxelas. —Os alemães se estão abrindo caminho pelas partes mais fracos das defesas francesas, a seção setentrional da fronteira com a Bélgica. —Seu dedo descendeu pela página—. O sul da Bélgica linda com a região das Ardenas, uma grande franja de terreno acidentado e boscoso, virtualmente intransitável para os exércitos motorizados modernos. Isso há dito meu amigo do Ministério de Guerra. —Voltou a deslocar o dedo—. Entretanto, mais ao sul, a fronteira franco-alemã está defendida por uma série de firmes fortificações que recebem o nome de Linha Maginot e que se estende até tocar com a Suíça. —Seu dedo retornou ao alto da página—. Mas não há fortificações entre a Bélgica e o norte da França. Lloyd estava desconcertado. —É que a ninguém lhe tinha ocorrido pensá-lo até agora? —Claro que o pensamos, e temos uma estratégia para nos enfrentar a isso. —Billy baixou a voz—. Se chama Plano D. Já não pode seguir considerando-se secreto, posto que o estamos desdobrando sobre o terreno. O melhor do exército francês, além de toda a Força Expedicionária Britânica, que já se encontra ali, estão cruzando a fronteira belga a toda velocidade. Formarão uma sólida linha de defesa no rio Dyle. Isso deterá o avanço dos alemães. Aquilo não acabou de convencer ao Lloyd. —Ou seja, que estamos dedicando a metade de nossas forças ao Plano D? —Temos que nos assegurar de que dê resultado. —Mais vale. Interrompeu-os a proprietária, que trazia um telegrama para o Lloyd. Tinha que ser do exército, porque lhe tinha facilitado ao coronel Ellis-Jones essa direção antes de agarrar a permissão. Sentiu saudades não ter recebido notícias antes ainda. Rasgou o sobre e leu o telegrama: NÃO RETORNE ABEROWEN STOP PRESENTE se MOLES SOUTHAMPTON IMEDIATAMENTE STOP À BIENTÔT FDO ELLISJONES Não voltaria para o Ty Gwyn. Southampton era um dos maiores portos de Grã-Bretanha, habitual ponto de embarque para viajar ao continente, e se encontrava a tão sozinho uns quilômetros do Bournemouth seguindo a costa, possivelmente a uma hora em trem ou ônibus. Com uma pontada no coração, Lloyd compreendeu que não veria o Daisy ao dia seguinte. Pode que nunca chegasse ou seja o que era o que tinha querido lhe dizer. Esse À BIENTÔT do coronel Ellis-Jones confirmava seus evidentes suspeita. Lloyd se ia a França. 7 1940 (II) I Erik von Ulrich passou os três primeiros dias da batalha da França em um entupo. Erik e seu amigo Hermann Braun pertenciam a uma unidade médica anexa a 2.ª Divisão Panzer. Durante o percurso para cruzar o sul da Bélgica, não tinham sido testemunhas da ação bélica, o trajeto tinha consistido em quilômetros e quilômetros de verdes colinas e árvores. Sem dúvida se encontravam na região boscosa das Ardenas. Viajavam por caminhos estreitos, muitos dos quais nem sequer estavam pavimentados, e um tanque avariado podia provocar um entupo de uns oitenta quilômetros em questão de segundos. Permaneciam detidos, entupidos em largas caudas, mais que em movimento. Hermann tinha o rosto sardento congelado em uma careta de ansiedade. —Isto é ridículo! —murmurou ao Erik, em voz tão baixa que ninguém mais pôde ouvi-lo. —Parece mentira que precisamente você diga isso. Você que esteve nas Juventudes Hitlerianas —respondeu seu companheiro com moderação—. Tenha fé no Führer —espetou, embora não estava o bastante furioso para denunciar a seu amigo. Ao avançar experimentavam um desconforto doloroso. Foram sentados no duro chão de madeira de um caminhão militar e este passava ricocheteando sobre raízes de árvores e esquivava com brutalidade os buracos. Erik desejava poder entrar em combate só para poder baixar-se daquele maldito veículo. —O que estamos fazendo aqui? —perguntou Hermann elevando a voz. Seu chefe, o doutor Rainer Weiss, ia sentado em um assento de verdade junto ao condutor. —Obedecemos as ordens do Führer, que são sempre as corretas, é obvio —o disse sem trocar de expressão, embora Erik teve a certeza de que estava sendo sarcástico. O comandante Weiss, um homem magro de cabelo negro e óculos, acostumava a falar com cinismo do governo e os militares, embora sempre o fazia nesse tom enigmático, para que não pudesse provar-se nada em seu contrário. De todas formas, o exército não podia permitir-se prescindir de um bom médico a essas alturas da batalha. Viajavam outros dois regulamentos médicos no caminhão, ambos os maiores que Erik e Hermann. Um deles, Christof, tinha uma resposta mais satisfatória para a pergunta do Hermann. —Pode que os franceses não esperem que ataquemos por aqui, pela grande dificuldade do terreno. —Teremos a vantagem do fator surpresa e sua defesa será fraco —apontou seu amigo Manfred. —Graças a ambos pela lição de táticas de guerra —agradeceu Weiss com sarcasmo—. foi muito esclarecedor. —Embora não disse que estivessem equivocados. em que pese a tudo o que tinha ocorrido, ainda ficavam pessoas às que lhes fraquejava a fé no Führer, para assombro do Erik. Sua própria família seguia negando-se a reconhecer os triunfos dos nazistas. Seu pai, que tinha sido um homem com um bom cargo e poder, converteu-se em um personagem lastimero. Em lugar de regozijar-se pela conquista da Polônia, não fazia mais que queixar-se de quão mau tratavam aos poloneses, algo que devia ter escutado de forma clandestina em alguma emissora de rádio estrangeira. Um comportamento assim podia colocá-los em confusões a todos, incluindo o Erik, que seria acusado de não informar disso ao supervisor nazista da comunidade. A mãe do Erik dava os mesmos problemas. Cada certo tempo desaparecia com pequenos pacotes de pescado defumado ou ovos. Não dava nenhuma explicação, mas Erik estava seguro de que o levava a frau Rothmann, cujo marido judeu já não tinha a prática permitida da medicina. Apesar disso, Erik enviava a casa um bom beliscão de sua soldada, pois sabia que seus pais passariam fome e fria se não o fazia. Detestava suas idéias políticas, mas os queria. Eles, sem dúvida, sentiam o mesmo pelas idéias políticas de seu filho e por ele. A irmã do Erik, Carla, tinha querido ser médico, como seu irmão, e se havia posto feita um alfavaca quando lhe deixaram claro que, na Alemanha que lhe havia meio doido viver, essa profissão era assunto de homens. Nesse momento estava formando-se como enfermeira, uma ocupação muito mais apropriada para uma garota alemã. E ela também ajudava a seus pais com seu exíguo salário. Erik e Hermann sonhavam alistando-se nas unidades de infantaria. A idéia que tinham do combate era que foram equilibrar se correndo sobre o inimigo enquanto disparavam seu fuzil e que foram matar ou morrer pela mãe pátria. Mas não matariam a ninguém. Ambos tinham um ano de medicina, e uma formação assim não podia desperdiçar-se; acabaram nomeando-os regulamentos médicos. O quarto dia na Bélgica, na segunda-feira 13 de maio, foi como os três primeiros até a tarde. por cima do estrondoso rugido de centenas de motores de tanques e caminhões, começaram para ouvir outro som mais alto. Eram aviões que sobrevoavam baixo, a não muita distância, bombardeando algum objetivo. Erik enrugou o nariz ao farejar os explosivos de grande potencializa. Fizeram um alto no caminho para a pausa de meia tarde em um terreno elevado com vistas a um te serpenteiem cerque fluvial. O comandante Weiss informou que se tratava do rio Mosa, e que se encontravam ao oeste da cidade de Sedan. portanto, já tinham entrado na França. Os aviões da Luftwaffe os ultrapassavam voando e rugindo, um após o outro, e se lançavam em picado sobre o rio a uns quilômetros de distância, bombardeando e acribillando as aldeias que salpicavam as ribeiras, onde, supostamente, encontravam-se as posições defensivas francesas. elevavam-se colunas fumegantes dos incontáveis incêndios entre as moradias e as granjas arrasadas. A cortina de fogo era incessante, e Erik começou a sentir pena por qualquer que pudesse ter ficado apanhado naquele inferno. Aquela era a primeira luta que presenciava. Não passaria muito tempo até que ele entrasse em combate, e talvez houvesse um jovem soldado francês que estivesse observando a batalha de um seguro ponto avantajado e sentisse lástima pelos alemães aos que encurralavam e matavam. Essa idéia acelerou o pulso ao Erik, a emoção fazia que o coração lhe retumbasse como um enorme tambor no peito. Ao olhar para o este, onde os detalhes da paisagem ficavam esfumados pela distância, pôde ver, não obstante, os aviões como pequenos pontos e as volutas de fumaça que subiam para o céu, e se precaveu de que a batalha se livrou ao longo de vários quilômetros daquele rio. Enquanto olhavam, o bombardeio aéreo tocou a seu fim, os aviões viravam, punham rumo ao norte e agitavam as asas para dizer: Boa sorte quando os sobrevoavam de retorno a casa. Perto de onde se encontrava Erik, sobre a planície que conduzia ao rio, os tanques alemães estavam entrando em ação. encontravam-se a uns três quilômetros do inimigo, mas a artilharia francesa já estava martilleándolos do povo. Ao Erik surpreendeu a quantidade de artilheiros que tinham sobrevivido ao bombardeio. Entretanto, o fogo seguia refulgindo entre as ruínas, o estrondo dos canhões retumbava pelos campos e uma autêntica chuva de terra francesa caía sobre os pontos onde impactavam os projéteis. Erik viu que um tanque saía voando pelos ares depois de um impacto direto: fumaça, fragmentos de metal e corpos desmembrados foram cuspidos pela boca da cratera. O jovem soldado se sentiu desfalecer. Não obstante, o bombardeio francês não deteve o avanço dos alemães. Os tanques reptaban sem pausa para o lance do rio situado ao leste da população, que, segundo Weiss, chamava-se Donchery. A infantaria os seguia de perto, em caminhões e a pé. —O ataque aéreo não foi suficiente —valorou Hermann—. Onde está nossa artilharia? Necessitamos que tirem a artilharia pesada no povo e que dêem a nossos tanques e à infantaria uma oportunidade para cruzar o rio e levantar uma cabeça de ponte. Erik desejou lhe fechar a bocaza de um murro. Estavam a ponto de entrar em ação, deviam ser otimistas! —Tem razão, Braun, mas a munição de nossa artilharia se encontra em pleno entupo no bosque das Ardenas —comentou Weiss—. Temos sozinho quarenta e oito projéteis. Um comandante de rosto avermelhado aconteceu correndo. —lhes mova! lhes mova! —exortou-lhes. —Instalaremos o hospital de campanha no este —indicou o comandante Weiss assinalando com o dedo—. Onde está essa granja. —Erik conseguiu distinguir um telhado baixo e de cor cinza a uns setecentos metros do rio—. Está bem, em marcha! Subiram de um salto ao caminhão e saíram colina abaixo com o motor a todo gás. Depois do descida avançaram dando tombos por um caminho de terra. Erik se perguntou o que fariam com a família que supostamente vivia no edifício que pensavam converter em hospital de campanha. Supôs que os jogariam de sua casa ou que os matariam se davam muitos problemas. Mas acessariam a ir-se? Estavam em pleno campo de batalha. Não tinha por que preocupar-se: já se tinham partido. O edifício estava a um quilômetro do mais cruento da batalha, conforme apreciou Erik. Imaginou que não tinha sentido montar um hospital de campanha no rádio de alcance do fogo inimigo. —Carregadores de maca, adiante! —gritou Weiss—. Quando retornarem, já estaremos preparados. Erik e Hermann agarraram uma maca enrollable e uma equipe de primeiros socorros do caminhão de material sanitário, e se dirigiram para o campo de batalha. Christof e Manfred foram justo por diante deles, e uma dúzia de seus camaradas foram atrás. Já está —pensou Erik, exultante —, esta é nossa oportunidade de nos converter em heróis. Quem manterá a calma sob o fogo inimigo e quem perderá o norte e se arrastará para esconder-se em um buraco? Correram a acampo través em direção ao rio. Foi uma larga carreira e ia parecer lhes mais larga de volta, pois transportariam aos feridos. Passaram junto a tanques calcinados, mas não ficavam superviventes; Erik apartou o olhar dos restos de homens esquartejados, dispersados entre o metal retorcido. As bombas caíam ao redor deles, embora não eram muitas: a defesa do rio era mas bem débil, e a prática totalidade de artilheiros tinham sucumbido no ataque aéreo. Em qualquer caso, para o Erik, era a primeira vez na vida que lhe disparavam, e sentiu o impulso estúpido e infantil de tampá-los olhos com as mãos. Mas seguiu correndo para diante. Então uma bomba caiu justo em frente deles. ouviu-se um terrorífico estrondo seco e a terra tremeu como se um gigante tivesse dado um enérgico pisão. Christof e Manfred receberam o impacto direto, e Erik viu que seus corpos saíam despedidos pelos ares, como se de plumas se tratasse. A explosão atirou ao Erik ao chão. Enquanto jazia convexo de barriga para cima, ficou coberto pela chuva de terra gerada pela detonação, mas não resultou ferido. levantou-se como pôde. Justo diante dele se encontravam os corpos desmembrados do Christof e Manfred. Christof estava tendido como uma boneca rota, como se lhe tivessem arrancado as extremidades. A explosão tinha decapitado ao Manfred, e a cabeça lhe tinha ficado tendida aos pés ainda calçados com as botas. Erik ficou paralisado pelo horror. Na faculdade de medicina não tinha praticado com corpos mutilados e sangrantes. Estava acostumado aos cadáveres da classe de anatomia —trabalhavam com um cada dois estudantes e Hermann e ele tinham compartilhado o cadáver de uma anciã murcha—, também tinha visto pessoas viva sobre a mesa de operações abertas em canal com o bisturi. Entretanto, nenhuma daquelas práticas o tinha preparado para o que estava vendo em esse momento. Só desejava sair correndo. Deu meia volta. Não podia sentir nem pensar em nada que não fora o medo. Começou a retroceder o caminho que tinham feito até ali, dirigia-se ao bosque, afastando-se do campo de batalha, com grandes e decididas pernadas. Hermann o salvou. ficou diante do Erik. —Aonde vai? Não seja idiota! —exclamou Hermann. Erik continuou avançando e tentou passar por diante de seu amigo. Este o propinó um forte murro na boca do estômago; Erik se dobrou sobre si mesmo e caiu de joelhos. —Não fuja! —gritou Hermann, consternado—. Te fuzilarão por desertor! Entra em razão! Enquanto Erik tentava recuperar o fôlego, conseguiu pensar em frio. Não podia sair fugindo, não devia desertar, devia ficar ali, de repente o viu claro. Pouco a pouco, a força de vontade se foi impondo ao terror que sentia. Ao final conseguiu levantar-se. Hermann o olhou com preocupação. —Sinto-o —se desculpou Erik—. Me deixei levar pelo pânico. Agora já estou bem. —Então levanta a maca e vamos. Erik levantou a maca enrollable, a pôs em equilíbrio sobre o ombro, voltou-se e começou a correr. Ao aproximar-se mais ao rio, Erik e Hermann se mesclaram com a infantaria. Alguns soldados descarregavam a pulso os botes pneumáticos da parte traseira dos caminhões e os levavam até a borda do rio, enquanto os tanques tentavam cobri-los disparando às defesas francesas. Entretanto, Erik, que tinha recuperado rapidamente a lucidez, deu-se conta de que aquela era uma batalha perdida: os franceses se encontravam depois dos muros e no interior dos edifícios, enquanto que a infantaria alemã tinha ficado exposta na borda do rio. Assim que expulsassem uma lancha pneumática, esta seria o branco de uma intensa rajada de fogo de metralhadoras. Em um lance superior, o rio descrevia uma curva para a direita, por isso o corpo de infantaria não poderia escapar do alcance dos franceses sem antes retroceder uma larga distância. Tal como estava a situação, já havia um grande número de mortos e feridos no campo de batalha. —Recolhamos a este —ordenou Hermann com decisão, e Erik se agachou para obedecer. Desenrolaram a maca sobre o chão junto a um soldado de infantaria que gemia de dor. Erik lhe deu de beber água de um cantil, como tinha aprendido na faculdade. Apreciou que o homem apresentava numerosas feridas superficiais na cara e um braço desconjuntado. Erik supôs que tinha sido alcançado pelas metralhadoras, embora, por sorte, os disparos não tinham afetado aos órgãos vitais. Não havia hemorragia, pelo que não se entretiveram em lhe fazer um torniquete. Levantaram o ferido e o colocaram na maca, elevaram-no e iniciaram o caminho de volta correndo para o hospital de campanha. O ferido emitia gritos agônicos enquanto avançavam. —Não parem, não parem! —gritou quando se detiveram, e apertou os dentes. Levar a um homem em maca não era tão fácil como podia parecer. Erik tinha a sensação de que foram cair o os braços e estavam sozinho a metade do percurso. Entretanto, sabia que a dor do paciente era muito mais intenso, assim que se limitou a seguir correndo. precaveu-se, agradecido, de que as bombas tinham deixado de cair a seu redor. Os franceses tinham fixado seu objetivo na borda do rio, em um intento de evitar que os alemães o cruzassem. Erik e Hermann chegaram por fim à granja com sua carga. Weiss tinha o lugar organizado: as habitações limpas dos móveis dispensáveis; lugares marcados no chão para colocar aos pacientes, e a mesa da cozinha disposta como mesa de operações. Indicou ao Erik e ao Hermann onde situar ao homem ferido. A continuação, enviou-os de retorno ao campo, em busca de seu próximo paciente. A carreira de volta ao rio foi mais fácil. Foram livres de carga e o caminho descrevia uma ligeira pendente custa abaixo. À medida que se aproximavam do rio, Erik ia perguntando-se, preocupado, se voltaria a ser presa do pânico. Atemorizou-lhe o dar-se conta de que a batalha seguia indo mau. Havia várias embarcações à deriva em pleno rio e mais corpos na borda; e ainda não se divisavam alemães ao longe. —Isto é uma catástrofe —sentenciou Hermann—. Deveríamos ter esperado a nossa artilharia! —Sua voz se tornou estridente. —Então teríamos perdido a vantagem do fator surpresa —atravessou Erik—, e os franceses teriam tido tempo de pedir reforços. A larga travessia pelas Ardenas não teria servido para nada. —Bom, pois isto não está funcionando —concluiu Hermann. Em seu foro interno, Erik começava a perguntar-se se os planos do Führer eram realmente infalíveis. Essa idéia fez cambalear sua determinação e ameaçou desestabilizando-o por completo. Por sorte, não tinham mais tempo para a reflexão. detiveram-se junto a um homem com uma perna quase desmembrada. Tinha mais ou menos a mesma idade que eles, uns vinte anos, a pele pálida e sardenta, e o cabelo avermelhado. A perna esquerda lhe acabava metade da coxa, em um coto descarnado. Resultava surpreendente, mas não se deprimiu, e os olhou como se fossem dois anjos da guarda. Erik localizou o ponto de pressão na virilha e deteve a hemorragia enquanto Hermann tirava um torniquete e o aplicava. Logo o colocaram na maca e retornaram à carreira. Hermann era um alemão leal, embora às vezes se deixava levar por seus sentimentos negativos. Se Erik tinha essa aula de sentimentos, cuidava-se muito de expressá-los em voz alta. Dessa forma não menosprezava as convicções de ninguém e não se metia em confusões. Entretanto, não podia evitar pensar. Ao parecer, o avanço através das Ardenas não tinha resultado na vitória fácil que os alemães esperavam obter. As defesas do rio Musa eram débeis, mas os franceses contra-atacavam com virulência. Erik se expôs se sua primeira experiência na batalha poderia acabar com a fé que tinha no Führer. Esse pensamento fez que sentisse verdadeiro pânico. perguntou-se se aos destacamentos alemães apostados mais ao este estaria indo melhor. A 1.ª e a 10.ª Panzer tinham avançado junto à divisão do Erik, a 2.ª, em sua aproximação à fronteira, e deviam ser elas as responsáveis pelo ataque rio acima. Sofria uma constante e lacerante dor na musculatura dos braços. Chegaram ao hospital de campanha pela segunda vez. O lugar era um hervidero de atividade: o estou acostumado a estava lotado de homens que gemiam e choravam; havia ataduras manchadas de sangue por toda parte; Weiss e seus ajudantes passavam a tudo correr de um corpo mutilado ao seguinte. Erik jamais tinha imaginado que um lugar tão pequeno pudesse albergar tanto sofrimento. Em certo modo, quando o Führer falava da guerra, o jovem jamais tinha imaginado esse tipo de situação. Então se precaveu de que seu paciente tinha os olhos fechados. O comandante Weiss tomou o pulso. —Levem a celeiro e não percam o tempo me trazendo cadáveres, joder! —espetou. Erik poderia ter começado a gritar de frustração e pela dor de braços, que começava a lhe afetar também às pernas. Levaram o corpo ao celeiro e viram que ali já havia uma dúzia de jovens mortos. Aquilo era pior que algo que tivesse podido imaginar. Até esse momento, a idéia da luta lhe tinha evocado o valor ante o perigo, o estoicismo ante o sofrimento, o heroísmo ante a adversidade. Entretanto, o que estava vendo nesse instante era a agonia, os gritos, o terror irracional, os corpos mutilados e a total desconfiança na lógica de sua missão. Retornaram uma vez mais ao rio. O sol estava baixo e algo tinha trocado no campo de batalha. Os defensores franceses do Donchery estavam sendo objeto de um ataque aéreo no extremo mais distante do rio. Erik supôs que mais acima, a 1.ª Panzer tinha tido melhor fortuna, e tinha assegurado a cabeça de ponte na borda meridional; nesse momento, os homens tinham chegado até o ponto onde podiam receber ajuda de seus camaradas dos flancos. Estava claro que sua munição não estava retida no bosque. Animados, Erik e Hermann resgataram a outro ferido. Esta vez, ao retornar ao hospital de campanha, serviram-lhes duas latas de saborosa sopa. No descanso de dez minutos, enquanto bebiam o caldo, Erik desejou tombar-se a dormir toda a noite. Fez falta um esforço sobre-humano por sua parte para que se levantasse, agarrasse seu extremo da maca e retornasse correndo de volta ao campo de batalha. Nesse momento foram testemunhas de uma cena diferente. Os tanques cruzavam o rio. Os alemães procedentes do curso superior chegavam sob uma intensa rajada de fogo, mas estavam respondendo com ajuda dos reforços da 1.ª Panzer. Erik entendeu que, apesar de tudo, seu bando tinha alguma oportunidade de obter seu objetivo. Isso o animou e começou a sentir-se envergonhado por ter duvidado do Führer. Hermann e ele seguiram resgatando feridos durante horas, até que esqueceram o que era não sentir dor em braços e pernas. Alguns dos homens que transportavam estavam inconscientes; outros lhes davam as obrigado, alguns os insultavam; muitos solo gritavam; alguns viviam e outros morriam. Às oito da tarde havia uma cabeça de ponte alemã no curso superior do rio e, às dez, já estava assegurada. A luta tocou a seu fim ao cair a noite. Erik e Hermann continuaram varrendo o campo de batalha em busca de feridos. A meia-noite levaram o último ao hospital. Logo se tombaram sob uma árvore e se sumiram em um sonho profundo, de puro esgotamento. Ao dia seguinte, Erik e Hermann e o resto da 2.ª Panzer retornaram ao oeste e penetraram no que ficava das defesas do exército francês. Dois dias mais tarde, já se encontravam a oitenta quilômetros de distância, no rio Oise, e avançavam a toda pressa por território sem defender. Em 20 de maio, uma semana depois de ter aparecido por surpresa no bosque das Ardenas, tinham chegado à costa do canal da Mancha. O comandante Weiss explicou seu lucro ao Erik e ao Hermann. —Verão, nosso ataque da Bélgica foi uma ameaça. Seu objetivo era atrair a franceses e ingleses a uma armadilha. Nós, as divisões Panzer, fomos as mandíbulas da armadilha e agora os temos entre as fauces. A maior parte do exército francês e quase toda a Força Expedicionária Britânica estão na Bélgica, rodeados por o exército alemão. Faltam-lhes mantimentos e reforços, estão desesperados e abatidos. —Esse era o plano do Führer de um princípio! —exclamou Erik com tom triunfal. —Sim —afirmou Weiss e, embora Erik não soube se estava sendo sincero, acrescentou—: Ninguém pensa como o Führer! II Lloyd Williams se encontrava em um estádio de futebol de algum lugar entre o Calais e Paris. Com ele havia outros mil prisioneiros de guerra ingleses ou mais. Não tinham onde cobrir do sol abrasador de junho, embora agradeciam a calidez das noites, já que não havia mantas. Tampouco havia banhos nem água para assear-se. Lloyd estava cavando um buraco com as mãos. Tinha organizado um grupo de trabalho com alguns dos mineiros galeses para construir umas letrinas em um dos extremos do campo de futebol. Ele trabalhava com eles, cotovelo com cotovelo, para dar exemplo de força de vontade. Outros homens se somaram, pois não tinham outra coisa que fazer, e logo foram perto de um centenar colaborando. Quando um guarda passou por ali rondando para ver o que se cozia, Lloyd o explicou. —Falas bem o alemão —comentou o guarda com amabilidade—. Como te chama? —Lloyd. —Eu sou Dieter. Lloyd decidiu tirar partido para aquela pequena amostra de simpatia. —Poderíamos cavar mais depressa se tivéssemos ferramentas. —A que vem tanta pressa? —Uma melhor higiene lhes beneficiaria a vós tanto como a nós. Dieter se encolheu de ombros e se afastou. Lloyd tinha a incômoda sensação de ser um fracassado. Não tinha entrado em ação. Os Fuzileiros Galeses tinham ido a França em qualidade de reservistas, como substituição de outros soldados em uma luta que se previa prolongada. Entretanto, os alemães tinham demorado sozinho dez dias em derrotar ao grosso do exército aliado. Muitos dos ingleses vencidos tinham sido evacuados do Calais e Dunkerque, mas milhares de soldados tinham perdido o navio, e Lloyd se contava entre eles. Supostamente, os alemães se dirigiam para o sul a marchas forçadas. Ao Lloyd constava que os franceses seguiam lutando, mas suas melhores tropas haviam ficado isoladas na Bélgica. Os guardas alemães luziam uma expressão triunfalista, como se tivessem o convencimento de uma vitória garantida. Lloyd era prisioneiro de guerra, mas durante quanto tempo mais? A essas alturas do conflito, as nações deviam estar pressionando ao governo britânico para a assinatura de um tratado de paz. Churchill jamais acessaria, mas era um dissidente, distinto a todos outros políticos, e podia ser destituído. Os homens como lorde Halifax se andariam com poucos olhares na hora de assinar um tratado de paz com os nazistas. Embora ao Lloyd entristecesse reconhecê-lo, o mesmo podia dizer do subsecretário de Assuntos Exteriores, o conde Fitzherbert, quem agora resultava ser seu pai, para abafado de seu filho ilegítimo. Se a paz chegava logo, seus dias como prisioneiro de guerra seriam contados. Talvez passasse todo o conflito ali, naquele estádio francês. Retornaria a casa esquelético e queimado pelo sol, mas, salvo por isso, de uma peça. Não obstante, se os ingleses persistiam na luta, seria farinha de outro saco. A última guerra se prolongou durante mais de quatro anos. Lloyd não podia suportar a idéia de perder quatro anos de sua vida em um campo de prisioneiros de guerra. Decidiu que tentaria fugir-se para escapar a esse destino. Dieter reapareceu carregado com uma dúzia de pás. Lloyd as repartiu entre os homens mais robustos e o trabalho se acelerou. Em algum momento, os prisioneiros seriam transladados a um campo de concentração de forma permanente. Essa seria a ocasião perfeita para tentar a fuga. Apoiando-se em sua experiência na Espanha, Lloyd supôs que o exército não consideraria prioritária a vigilância dos prisioneiros. Se a gente tentava fugir, tinha a possibilidade de sair gracioso ou podia cair abatido de um disparo; de uma forma ou outra, seria uma boca menos que alimentar. Passaram o que ficava do dia terminando as letrinas. Além de constituir uma melhora para a higiene, esse projeto lhes tinha levantado a moral, e Lloyd permaneceu aquela noite em vela, contemplando as estrelas e tentando idear novas atividades em grupo. Decidiu que organizaria uma competição esportiva por todo o alto: uns Jogos Olímpicos para prisioneiros. Embora não teve a oportunidade de pô-lo em prática, porque, a manhã seguinte, obrigaram-nos a partir a pé. Ao princípio, não estava seguro de em que direção os levavam, mas, transcorrido certo tempo, chegaram a Route Napoléon, uma estrada de dois sulcos, e avançaram para o este sem desviar-se. Ao Lloyd lhe ocorreu, que, com toda probabilidade, pretendiam levá-los caminhando até a Alemanha. Sabia que, assim que tivessem chegado, a fuga lhe resultaria muito mais difícil. Devia aproveitar essa oportunidade. quanto antes, melhor. Estava assustado, aí estavam os guardas com suas armas, mas decidido. Não havia muito tráfico rodado, salvo algum que outro carro oficial alemão, mas a estrada estava lotada de pessoas que viajavam a pé, justo no sentido contrário ao grupo de prisioneiros. Transportavam suas posses em carretas e carromatos, alguns levavam a suas cabeças de gado encabeçando a marcha. Claramente, se tratava de refugiados cujos lares tinham ficado destruídos na luta. Lloyd a considerou uma visão alentadora. Um prisioneiro fugido podia confundir-se entre eles. Os prisioneiros não estavam submetidos a uma vigilância muito férrea. Solo havia dez alemães encarregados dessa coluna de um milhar de homens em movimento. Os guardas tinham um carro e uma motocicleta; outros viajavam a pé e em bicicletas que deviam haver sustraído aos habitantes do lugar. De todas formas, em um princípio, Lloyd considerou a fuga como impossível. Não havia matas depois das que ocultar-se, como na Inglaterra, e a sarjeta não tinha a profundidade suficiente para esconder-se nela. Um homem à fuga seria um branco fácil para um fuzileiro perito. Então chegaram a uma aldeia. Ali os guardas teriam maior dificuldade para manter vigiado a todo mundo. Os aldeãos, homens e mulheres, mantinham-se a ambos os lados da coluna, observando aos prisioneiros. Um pequeno rebanho de ovelhas se mesclou entre eles. Havia cabanas e lojas ao bordo do caminho. Lloyd observava tudo à espera de uma oportunidade. Necessitava um lugar onde ocultar-se de forma imediata: uma porta aberta, uma passagem entre casas ou um arbusto detrás o qual refugiar-se. E devia passar junto a esse esconderijo no momento exato em que não houvesse guardas à vista. Transcorridos um par de minutos, tinham deixado atrás a aldeia sem haver-se apresentado a memorada oportunidade. Lloyd estava furioso e teve que obrigar-se a ter paciência. Haveria mais oportunidades. Ficava um comprido percorrido até a Alemanha. Por outra parte, com cada dia que passasse, os alemães consolidariam o domino do território conquistado, melhorariam sua organização, imporiam toque de silêncio, passe e controles, impediriam o movimento de refugiados. Estar fugido seria fácil ao princípio, mas se dificultaria com o passado do tempo. Fazia calor, e se tirou a jaqueta e a gravata do uniforme. desfaria-se desses objetos assim que pudesse. Visto de perto, possivelmente seguisse tendo aspecto de soldado inglês, com as calças e a camisa cáquis, embora, a certa distância, esperava não resultar tão suspeito. Passaram por duas aldeias mais até chegar a uma pequena cidade. Lloyd pensou com nervosismo que ali contaria com maior número de possíveis vias de escapamento. deu-se conta de que, em parte, desejava não chegar a ter uma boa oportunidade, assim não teria que ficar a tiro dos fuzis alemães. É que estava habituando-se ao cativeiro? Era muito fácil continuar partindo: doloroso para os pés, mas seguro. Devia cortar com aquilo de raiz. Por desgraça, a estrada era bastante larga no lance que atravessava a cidade. A coluna se manteve no centro da rua, deixando um corredor a cada lado que qualquer homem à fuga deveria cruzar antes de encontrar um esconderijo. Algumas tenda estavam fechadas e uns poucos edifícios estavam murados com pranchas, mas Lloyd localizou prometedores becos, cafeterias com as portas abertas e uma igreja, embora não podia chegar até nenhum desses lugares sem deixar de ser observado. Analisou os rostos dos vizinhos do lugar enquanto contemplavam a quão prisioneiros passavam. Eram expressões de compaixão? Recordariam que aqueles homens tinham lutado pela França? Ou teriam tanto medo aos alemães, coisa por outra parte compreensível, que rechaçariam ficar em perigo? Certamente era certo aos cinqüenta por cento. Alguns arriscariam sua vida por ajudá-lo; outros o entregariam aos alemães sem pensá-lo. E ele não saberia distinguir quem faria o que até que fora muito tarde. Chegaram ao centro da cidade. Já perdi a metade de oportunidades —se disse—. chegou a hora de atuar. Mais adiante divisou um cruzamento de caminhos. Uma cauda de carros que ia em direção contrária esperava para girar à esquerda, pois tinha o passo bloqueado por os homens que partiam. Lloyd identificou uma caminhonete civil na cauda. Poeirenta e maltratada, parecia o veículo de algum empreiteiro ou um peão de estradas. A parte traseira estava aberta, mas Lloyd não via o interior porque os laterais eram altos. Pensou que conseguiria montar à caminhonete por um lado e dar-se impulsiono até saltar a seu interior. Uma vez dentro não seria visível para ninguém que estivesse em pé ou caminhando pela rua, nem para os guardas montados em bicicleta. Mas sim poderiam vê-lo diretamente as pessoas apostadas nas janelas superiores dos edifícios que flanqueavam as ruas. Trairiam-no? aproximou-se mais à caminhonete. Olhou para trás. O guarda mais próximo se encontrava a uns cento e oitenta metros por detrás dele. Olhou para diante. Havia um guarda em bicicleta a uns vinte metros nessa direção. —me agüente isto um momento, quer? —disse ao homem que se encontrava a seu lado, e lhe entregou a jaqueta. ficou à altura da cabine da caminhonete. Ao volante ia um homem de expressão enfastiada com macaco de trabalho e meio doido com boina, com um cigarro pendurado do lábio. Lloyd o deixou avançar. Então se situou junto à lateral do veículo. Não havia tempo de voltar a comprovar onde se encontravam os guardas. Sem deter-se, Lloyd pôs ambas as mãos no lateral da caminhonete, deu-se impulso, levantou uma perna por cima da carroceria e logo a outra, caiu dentro e impactou contra o chão do veículo com um golpe tão forte que soou estrondoso a pesar do barulho do milhar de pares de pés que partiam pelo caminho. pegou-se ao chão de barriga para baixo sem pensá-lo. ficou aí quieto, esperando escutar uma gritaria de gritos em alemão, o rugido de uma motocicleta aproximando-se ou o restallido de um disparo de fuzil. Ouviu o rugido irregular do motor da caminhonete, o passo firme e também o miserável dos pés dos prisioneiros, os ruídos de fundo do tráfico rodado e dos viandantes de uma pequena cidade. saiu-se com a sua? Olhou a seu redor, mantendo a cabeça encurvada. junto a ele, na caminhonete, viu uns cubos, tablones, uma escada de mão e um carrinho de mão. Tinha albergado a esperança de encontrar alguns sacos com os que tampar-se, mas não havia nenhum. Ouviu uma motocicleta. Pareceu-lhe que freava em seco por ali perto. Logo, a uns centímetros de onde ele se encontrava, alguém falou em francês com um forte acento alemão. —Aonde se dirige? —Um guarda estava falando com o condutor da caminhonete, supôs Lloyd, com o coração na boca. Tentaria o guarda revisar a parte traseira do veículo? Ouviu responder ao condutor, com tom indignado e com um francês tão acelerado que Lloyd não conseguiu decifrar. Quase com total segurança, o soldado alemão tampouco foi capaz de entendê-lo. Repetiu a pergunta. Lloyd levantou a vista e viu duas mulheres apostadas em uma janela olhando à rua. Olhavam-no, boquiabertas. Alguém estava assinalando-o, aparecendo o braço por a janela aberta. Lloyd tentou que o olhasse aos olhos. Imóvel no chão, agitou uma mão de lado a lado com um gesto que queria dizer: Não. Ela captou a mensagem. Baixou o braço e se tampou a boca com a mão como se tivesse cansado na conta, horrorizada, de que seu gesto poderia supor uma sentença de morte. Lloyd desejava que ambas as mulheres se separassem da janela, mas isso era desejar muito, e seguiu as olhando. O guarda da motocicleta não quis seguir insistindo. Passados uns minutos, a motocicleta se afastou com grande estrondo. Pisada-las se ouviam cada vez mais longe. O grupo de prisioneiros tinha passado. Era livre? ouviu-se o ruído dos motores e a caminhonete se moveu. Lloyd notou que dobrava a esquina e tomava velocidade. ficou quieto, muito assustado para mover-se. Olhava ao alto dos edifícios à medida que foram passando, alerta se por acaso alguém o divisava, embora não sabia o que faria se isso ocorria. Cada segundo que transcorria afastava-o dos guardas, isso pensava para animar-se. Para sua decepção, a caminhonete não demorou nada em deter-se. O condutor apagou o motor, abriu sua portinhola e a fechou de repente. Logo não passou nada. Lloyd permaneceu quieto durante um momento, mas o condutor não retornava. Lloyd elevou a vista ao céu. O sol estava alto: deviam ser mais das doze. Certamente, o condutor tinha ido comer. O problema era que Lloyd seguia sendo visível das janelas dos pisos superiores de ambas as calçadas. Se permanecia onde estava, precaveriam-se de sua presença cedo ou tarde. E então não cabia nenhuma dúvida do que ocorreria. Viu que uma cortina se movia em um apartamento de cobertura, e isso o fez decidir-se. levantou-se e olhou para um lado. Na calçada viu um homem com traje de escritório, este ficou olhando-o com curiosidade, mas não se deteve. Lloyd saltou como pôde pelo lateral do veículo e caiu ao chão. encontrou-se na entrada de um bar restaurante. Esse era o lugar ao que tinha ido o condutor, estava claro. Lloyd se precaveu, horrorizado, de que havia dois homens com uniforme do exército alemão sentados em uma mesa junto à janela, com jarras de cerveja na mão. De puro milagre, não olharam em direção ao prisioneiro fugido. Lloyd se afastou caminhando a toda pressa. Olhava a seu redor, alerta, enquanto avançava. Todas as pessoas com as que se cruzava ficavam olhando-o: sabiam exatamente o que era. Uma mulher soltou um grito e saiu correndo. Lloyd entendeu que devia trocá-la camisa e a calça cáquis por alguma objeto mais francesa o antes possível. Um jovem o agarrou pelo braço. —Venha conmigó —disse com um forte acento francês—. O ayudagué a escondegse. Tomaram um beco paralelo. Lloyd não tinha motivos para confiar nesse moço, mas devia tomar uma decisão sem pensá-lo, e se deixou levar. —por aqui —lhe indicou o jovem, e conduziu ao Lloyd ao interior de uma pequena casa. Em uma cozinha vazia havia uma garota com um bebê. O jovem se apresentou, disse que se chamava Maurice; ela era sua esposa, Marcelle, e a pequena se chamava Simone. Lloyd se permitiu um instante de agradecido alívio. Tinha fugido dos alemães! Seguia em perigo, mas já não estava na rua e se encontrava em um lar hospitalar. O francês acadêmico e formal que Lloyd tinha aprendido na escola se tornou mais coloquial durante sua fuga da Espanha e, sobre tudo, durante as duas semanas que tinha passado vendimiando no Burdeos. —São muito amáveis —disse—. Obrigado. Maurice lhe respondeu em francês, claramente aliviado por não ter que falar em inglês. —Suponho que gostará de comer algo. —Muitíssimo. Marcelle fatiou a toda pressa uma alargada barra e a serve na mesa junto a um queijo redondo e uma garrafa de vinho sem etiquetar. Lloyd se sentou e o engoliu com avidez. —Emprestarei-te um pouco de roupa velha —se ofereceu Maurice—. Mas além disso deveria tentar caminhar de outra forma. Foi andando sem deixar de olhar a seu redor, muito alerta e interessado no entorno. É como se levasse um pôster pendurado ao pescoço que dissesse: Visitante da Inglaterra. Será melhor que vá arrastando os pés com a vista cravada ao chão. —Recordarei-o —disse Lloyd com a boca cheia de pão e queijo. Havia uma pequena estantería de livros, entre os que se contavam traduções ao francês do Marx e do Lenin. Maurice se deu conta de que Lloyd estava as olhando. —Eu era comunista, até o pacto entre o Hitler e Stalin —esclareceu—. Agora, acabou-se. —Fez um gesto de corte limpo com a mão—. Seja como for, temos que vencer ao fascismo. —Eu estive na Espanha —explicou Lloyd—. antes disso, acreditava na possibilidade de um frente unido de todos os partidos de esquerdas. Mas já não. Simone rompeu a chorar. Marcelle se tirou um voluptuoso peito por debaixo do vestido folgado e começou a amamentar ao bebê. As francesas faziam ornamento de uma atitude mais relaxada ante a lactação materna que as dissimuladas damas inglesas, Lloyd não o tinha esquecido. Quando terminou de comer, Maurice o levou a piso de acima. De um armário quase vazio, tirou um par de macacos de trabalho azul marinho, uma camisa celeste, cueca e meias três-quartos, tudo usado mas limpo. A generosidade daquele homem sem dúvida pobre afligiu ao Lloyd, e não tinha nem idéia de como lhe expressar seu agradecimento. —Deixa o uniforme militar no chão —lhe indicou Maurice—. Eu o queimarei. Ao Lloyd teria gostado de lavar-se, mas não havia asseio. Supôs que estava no pátio traseiro. ficou a roupa limpa e se olhou fixamente em um espelho que pendurava da parede. O azul francês lhe sentava melhor que o caqui militar, embora seguia parecendo inglês. Voltou a baixar. Marcelle estava lhe tirando o flato à pequena. —Uma boina —disse. Maurice tirou a típica boina francesa azul escuro, e Lloyd a encasquetou. Então seu generoso anfitrião olhou com preocupação as resistentes expulsa de pele negra do exército inglês que calçava Lloyd, poeirentas mas de excelente qualidade. —Delatam-lhe —assegurou. Lloyd não queria deixar suas botas. Ficava um comprido caminho por percorrer. —E se fizermos que pareçam velhas? —sugeriu. Maurice não se mostrou muito convencido. —Como? —Tem uma faca afiada? O francês se tirou uma navalha do bolso. Lloyd se descalçou. fez-se uns buracos na ponta, logo rachou os canos. Retirou-lhes os cordões e voltou a colocá-los, retorcendo-os e atando-os. Agora já pareciam as botas de um pobre, embora seguiam sendo cômodas e lhe durariam muitos quilômetros. —Aonde irá? —perguntou Maurice. —Tenho duas opções —respondeu Lloyd—. Posso me dirigir ao norte, para a costa, e ali convencer a algum pescador de que me ajude a cruzar o canal da Mancha. Ou posso ir em direção sudoeste para cruzar a fronteira com a Espanha. —Espanha era um país neutro, e ainda tinha cônsuis ingleses nas principais cidades—. Conheço a rota espanhola, tenho-a feito duas vezes. —O canal da Mancha está muito mais perto que a Espanha —lhe esclareceu Maurice—. Mas acredito que os alemães fecharão todos os portos marítimos e comerciais. —Onde está a primeira linha? —Os alemães tomaram Paris. Lloyd sofreu um brutal impacto fugaz. Paris já tinha cansado! —O governo francês se transladou ao Burdeos —informou Maurice e se encolheu de ombros—. Mas nos derrotaram. Já nada pode salvar a França. —Toda a Europa será fascista —vaticinou Lloyd. —Salvo a Inglaterra. Por isso deve voltar para casa. Lloyd o pensou. Norte ou sudoeste? Não conseguia decidir qual seria melhor opção. —Tenho um amigo, um antigo comunista —disse Maurice—, que vende penso para o gado aos granjeiros. Sei que vai fazer uma entrega esta tarde a um lugar ao sudoeste daqui. Se decide ir a Espanha, poderia te levar uns trinta quilômetros. Isso ajudou ao Lloyd a tomar uma decisão. —Irei com ele —disse. III Daisy tinha realizado um comprido viaje para acabar chegando ao ponto de partida. Quando enviaram ao Lloyd a França, lhe partiu o coração. Tinha perdido a oportunidade de lhe confessar que o amava. Nem sequer o tinha beijado! E talvez não voltasse a ter oportunidade de fazê-lo. Tinham-no declarado desaparecido em combate depois do Dunkerque. Isso significava que não tinham encontrado seu corpo para identificá-lo, embora tampouco estava registrado como prisioneiro de guerra. O mais provável era que estivesse morto: mutilado em mil pedaços por o impacto de um projétil ou possivelmente apanhado, sem identificar, sob as ruínas de alguma granja ruída. Daisy esteve dias chorando. Durante um mês mais andou como alma em pena pelo Ty Gwyn, com a esperança de obter mais informação, mas não chegou notícia alguma. Então começou a sentir-se culpado. Havia muitas mulheres em uma situação tão penosa como a seu ou inclusive pior. Algumas tinham que enfrentar-se à realidade de ter que criar a dois ou três meninos sem ajuda do homem da casa. Ela não tinha nenhum direito a sentir lástima de si mesmo porque tivesse desaparecido o homem com o que tinha desejado manter uma relação. Devia recuperar o bom sentido e fazer algo positivo. O destino não tinha querido que estivesse com o Lloyd, isso era indubitável. Ela já tinha marido, um marido que arriscava a vida diariamente. disse-se a si mesmo que era seu dever cuidar do Boy. Retornou a Londres. Reabriu a casa do Mayfair, acondicionou-a o melhor que pôde com o limitado número de criados, e a converteu em um lar agradável ao que pudesse retornar Boy quando estivesse de licença. Devia esquecer ao Lloyd e ser uma boa esposa. Talvez voltasse a ficar grávida. Muitas mulheres se alistavam no exército, uniam-se à Força Aérea Auxiliar Feminina, ou desempenhavam tarefas de lavoura no Exército Feminino para o Trabalho da Terra. Outras trabalhavam de forma altruísta para o Serviço Voluntário Feminino de Prevenção para os Bombardeios. Entretanto, não havia recursos suficientes para tudo o que essas mulheres queriam fazer. The Teme tinha publicado cartas ao diretor nas que os leitores se queixavam de que as medidas preventivas para os bombardeios eram um desperdício de dinheiro. A guerra na Europa continental parecia ter finalizado. Alemanha tinha ganho. Europa era fascista da Polônia até a Sicilia, e da Hungria até o Portugal. Já não se livravam combates em nenhum sítio. Se rumoreaba que o governo britânico tinha negociado com os alemães os términos do tratado de paz. Entretanto, Churchill não assinou a paz com o Hitler, e esse verão estalou a Batalha da Inglaterra. Ao princípio, os civis não se viram muito afetados. Os sinos das Iglesias foram silenciadas, seu repique se reservou ao anúncio da esperada invasão alemã. Daisy seguiu o conselho do governo e colocou cubos de areia e água em todos os patamares da casa, como precaução contra incêndios, embora não foram necessários. A Luftwaffe bombardeava os portos, com o propósito de cortar as vias de fornecimento da Inglaterra. Seguiram com as bases militares, em um intento de destruir a Royal Air Force. Boy pilotava um Spitfire e derrubava caças inimigos em batalhas aéreas contempladas por granjeiros boquiabertos do Kent e Sussex. Em uma das poucas cartas que escrevia a casa contava com orgulho que tinha derrubado três aviões alemães. Não lhe concederiam nenhuma permissão até ao cabo de várias semanas, e Daisy ficou plantada e só em uma casa infestada de flores para ele. Ao final, a manhã do sábado 7 de setembro, Boy se apresentou com um passe de fim de semana. Fazia um tempo fantástico, caloroso e ensolarado, um último momento de calidez que chamavam veranico de São Martín. Deu a casualidade de que foi o dia em que a Luftwaffe trocou de estratégia. Daisy beijou a seu marido e se assegurou de ter camisas podas e muda de roupa interior recém engomada no vestidor. Pelo que tinha ouvido dizer a outras mulheres, os combatentes retornavam a casa desejosos de sexo, álcool e boa comida, nessa ordem. Boy e ela não se tornaram a deitar do aborto. Essa seria a primeira vez. sentia-se culpado por não arder em desejos de fazê-lo. Entretanto, não pensava negar-se a cumprir com seus deveres de boa esposa. Daisy esperava que Boy a atirasse sobre a cama assim que chegasse, mas não estava tão desesperado. tirou-se o uniforme, banhou-se, lavou-se o cabelo e voltou a vestir seu traje de civil. Daisy ordenou à cozinheira que não regulasse em cupons de racionamento para a preparação de um suculento menu, e Boy subiu da adega uma de suas garrafas de clarete de melhor acrescente. —vou sair um par de horas. Voltarei para o jantar —anunciou Boy. Daisy se sentiu surpreendida e doída. Desejava ser uma boa esposa, mas não passiva. —É a primeira permissão que tem há meses! —protestou—. Aonde narizes vai? —A ver um cavalo. Isso estava bem. —Ah, bom! Pois te acompanho. —Não, não me acompanhará. Se me apresentar ali com uma mulher pega a mim, acreditarão que sou um calzonazos e me subirão o preço. Ela foi incapaz de ocultar seu mal-estar. —Sempre sonhei com que seria algo que faríamos juntos, comprar e criar cavalos de carreiras. —Pois esse não é um mundo para mulheres. —OH, ao diabo com isso! —exclamou, indignada—. Sei tanto de cavalos como você. Boy parecia molesto. —Pode que sim, mas sigo sem querer que esteja por aí enquanto eu negocio com esses tipos e não se fale mais. Ela desistiu. —Como gosta de —respondeu, total, e partiu do comilão. Mas seu instinto lhe disse que ele mentia. Os combatentes de licença não pensam em comprar cavalos. decidiu-se a averiguar o que estava tramando. Inclusive os heróis devem ser sinceros com suas algemas. Foi a seu quarto e se vestiu com calças e botas. Enquanto Boy descendia a escalinata da entrada, ela baixou correndo pelas escadas de serviço, saiu pela cozinha, cruzou o pátio traseiro e chegou às velhas quadras. Ali ficou uma jaqueta de couro, óculos de motorista e um casco. Abriu a porta da garagem que dava à passagem e tirou sua motocicleta, uma Triumph Tiger 100, chamada assim porque alcançava as cem milhas por hora. Pisou no pedal do gás e saiu disparada para a rua. passou-se rapidamente à motocicleta quando o racionamento de gasolina voltou a entrar em vigor em setembro de 1939. Era como montar em bicicleta, mas mais fácil. adorava a liberdade e a independência que o fazia sentir. Entrou na rua bem a tempo de ver o Bentley Airline cor nata do Boy desaparecer ao dobrar a seguinte esquina. Seguiu-o. Ele cruzou Trafalgar Square e percorreu o bairro dos teatros. Daisy o seguia a uma distância prudencial, pois não queria levantar suspeitas. O tráfico ainda era denso no centro de Londres, onde havia centenas de carros em missões oficiais. Além disso, o racionamento de gasolina para os veículos particulares não era especialmente restritivo, sobre tudo, para as pessoas que solo queriam conduzir pela cidade. Boy seguiu para o este, pelo distrito financeiro. por ali havia pouco tráfico um sábado pela tarde, e ao Daisy começou a lhe preocupar que a vissem. Entretanto, não era fácil reconhecê-la com os óculos de motorista e o casco. E Boy não emprestava muita atenção ao entorno, pois ia conduzindo com o guichê aberto e fumando um puro. dirigiu-se para o Aldgate, e Daisy teve a terrível sensação de saber por que. entrou em uma das ruas menos miseráveis do East End e estacionou à entrada de uma agradável casa do século XVIII. Não se via nenhum estábulo: não era um lugar em que comprassem e vendessem purasangres. Miúda patranha lhe tinha contado Boy! Daisy parou a motocicleta ao cabo da rua e ficou olhando. Seu marido desceu do carro e fechou a porta de repente. Não olhou a seu redor nem comprovou o número da casa; estava claro que tinha estado ali antes e que sabia exatamente aonde ia. Caminhando com ar desenvolvido, com o puro na boca, dirigiu-se à porta de entrada e a abriu com uma chave. Daisy sentiu vontades de chorar. Boy desapareceu no interior da moradia. Em algum ponto do este se produziu uma explosão. Daisy olhou nessa direção e viu aviões no céu. É que os alemães tinham escolhido justo esse dia para bombardear Londres? Se assim era, lhe dava igual. Não pensava deixar que Boy desfrutasse de sua infidelidade em paz. Daisy se aproximou até a casa e estacionou a moto atrás do carro do Boy. tirou-se o casco e os óculos, aproximou-se da porta e chamou. Ouviu uma nova explosão, esta última se produziu mais perto; continuando, as sereias que anunciavam o bombardeio iniciaram seu funesto cântico. A porta se abriu um poquito, e Daisy lhe deu um forte empurrão. Uma jovem com uniforme negro de criada gritou e se cambaleou para trás, e a irada esposa entrou. Fechou de uma portada atrás dela. achava-se no vestíbulo de uma típica casa londrino de classe média, embora estava decorada com um estilo exótico: com tapetes orientais, pesadas cortinas e um quadro de mulheres nuas dando um banho. Abriu de repente a porta que ficava mais à mão e entrou no salão principal. A iluminação era tênue, cortinas de veludo filtravam a luz do sol. Havia três pessoas na habitação. Em pé, olhando-a aniquilada, viu uma mulher de uns quarenta anos, com um batín de seda muito solto, embora cuidadosamente maquiada com carmim vermelho: a mãe, supôs. detrás dela, sentada em uma poltrona, encontrava-se uma garota de uns dezesseis anos vestida somente com roupa interior e meias, e estava fumando um cigarro. junto à garota estava sentado Boy, com a mão sobre a coxa dela, por cima da média. Apartou a mão de repente, em um gesto de culpabilidade. Foi uma reação ridícula, como se o fato de retirar a mão fizesse que aquela escenita parecesse inocente. Daisy conteve as lágrimas. —Prometeu-me que as deixaria! —gritou. Queria mostrar-se fria e zangada, como o anjo vingador, mas se ouviu falar e percebeu que a tristeza e a dor já tinham-lhe quebrado a voz. Boy se ruborizou e adotou uma expressão de pânico. —Mas que narizes está fazendo aqui? —Joder, que é sua mulher —exclamou a mulher maior. chamava-se Pearl, Daisy o recordava, e a filha era Joanie. Que horroroso saber os nomes de umas mulheres assim. A criada apareceu pela porta da sala. —Eu não deixei entrar nesta puta, entrou me dando um empurrão! —acusou-a. —Eu que me tinha esforçado tanto em que a casa estivesse acolhedora e bonita para ti… e mesmo assim prefere isto! —reprovou Daisy a seu marido. Boy ia dizer algo, mas não encontrava as palavras. Balbuciou de forma incoerente durante um instante. Uma potente e próxima explosão fez tremer o chão e vibrar as janelas. —É que estão todos surdos? —disse a criada—. Há um puto bombardeio aí fora! —Ninguém a olhou—. vou baixar ao porão —anunciou, e desapareceu. Todos precisavam procurar refúgio. Mas Daisy tinha algo que dizer ao Boy antes de ir-se. —Não volte a vir a minha cama, jamais, por favor. Nego-me a que me polua. —Mas se solo estamos nos divertindo um pouco, carinho. por que não te une à festa? Ao melhor gosta de —sugeriu a garota da poltrona, Joanie. Pearl, a maior, olhou ao Daisy de cima abaixo. —Tem um corpo miúdo e bonito. Daisy se deu conta de que a humilhariam ainda mais se lhes dava a ocasião. Não lhes fez caso e se dirigiu ao Boy. —Você escolheste —disse—. E eu já me decidi. —Saiu da habitação com a cabeça bem alta, embora se sentia humilhada e rechaçada. —OH, mierda, vá confusão! —ouviu dizer ao Boy. Vá confusão? —pensou ela—. Isso é tudo? Saiu à rua. Então olhou para cima. O céu estava infestado de aviões. A visão a fez estremecer de medo. Estavam muito acima, a uns três mil metros, embora pareciam tampar o sol. Eram centenas de aparelhos, enormes bombardeiros e caças estilizados e ligeiros como vespas, uma frota que devia ter uns trinta quilômetros de largura. Para o este, em direção aos moles e Woolwich Arsenal, colunas de fumaça se elevavam do chão, onde impactavam as bombas. As explosões se aconteciam com tormentoso estrondo, como o do mar enfurecido. Daisy recordou que Hitler tinha pronunciado um discurso no Parlamento alemão, precisamente aquela passado quarta-feira, no qual destrambelhou contra a debilidade de os bombardeios aéreos da RAF sobre o Berlim e ameaçou apagando as cidades inglesas do mapa como represália. Pelo visto, havia-o dito a sério. Pretendiam arrasar com Londres. Tal como estavam as coisas, aquele já era o pior dia da vida do Daisy. Então se deu conta de que seria o último. Não obstante, não tinha corpo para voltar a entrar nessa casa e compartilhar o refúgio subterrâneo com seus ocupantes. Tinha que escapar. Precisava estar em seu lar, onde poderia chorar em privado. A toda pressa, ficou o casco e os óculos. Resistiu um impulso irracional embora capitalista de ocultar-se depois do primeiro muro que encontrasse. Subiu à moto de um salto e ficou em marcha. Não chegou muito longe. A duas ruas dali, caiu uma bomba sobre uma casa que estava justo em seu campo de visão, e freou em seco. Viu o buraco no teto, sentiu a vibração do golpe surdo provocado pela detonação e, passados um par de segundos, viu as chamas que ardiam no interior, como se o querosene de um aquecedor se houvesse derramado e tivesse aceso. Uns segundos depois, uma menina de uns doze anos saiu da casa, gritando, com o cabelo em chamas e correndo diretamente para Daisy. Ela desceu de um salto da motocicleta, tirou-se a jaqueta de couro e a utilizou para tampar a cabeça da pequena; envolveu-a com força para deixar sem oxigênio às chamas. Os gritos cessaram. Daisy retirou a jaqueta. A menina seguia chorando. Já não se sentia morrer, mas estava calva. Daisy olhou a rua de ponta a ponta. Um homem com casco metálico e uma banda no braço do encarregado voluntário de Prevenção para os Bombardeios se aproximou correndo com uma caixa metálica de primeiros auxílios que levava uma cruz grafite no lateral. A menina olhou ao Daisy, abriu a boca e gritou: —Minha mãe está dentro! —Tranqüila, carinho, primeiro vamos jogar te uma olhada —disse o supervisor de Prevenção. Daisy deixou à menina com ele e correu para a porta de entrada do edifício. Parecia uma casa antiga parcelada em apartamentos. Os pisos superiores estavam ardendo, mas podia entrar no saguão. Guiada por uma intuição, correu para o fundo e chegou à cozinha. Ali viu uma mulher inconsciente no chão e a um bebê em um berço. Agarrou ao bebê e voltou a sair correndo. —É minha irmã! —gritou a menina com o cabelo chamuscado. Daisy depositou à pequena em braços de sua irmã e voltou a entrar na moradia. A mulher inconsciente pesava muito para poder levantá-la sem ajuda. Daisy se situou detrás dela, incorporou-a até sentá-la, agarrou-a pelas axilas e a arrastou pelo chão da cozinha até tirá-la pelo vestíbulo e sair à rua. Tinha chegado uma ambulância: era um turismo reconvertido, com a parte traseira coberta por um teto de lona e sem portas. O voluntário de Prevenção estava ajudando à menina a subir ao veículo. O condutor se aproximou do Daisy a toda pressa. Entre ambos, colocaram à mulher na ambulância. —Fica alguém mais na casa? —perguntou o condutor ao Daisy. —Não sei! O homem se precipitou para o saguão. Nesse momento, todo o edifício tremeu. Os pisos se desabaram sobre o chão. O condutor da ambulância entrou em um verdadeiro inferno. Daisy se ouviu gritar. tampou-se a boca com uma mão e ficou olhando as chamas, em busca do condutor, embora não tivesse podido ajudá-lo e teria sido um suicídio tentá-lo. —OH, Meu deus, Alf morreu! —exclamou o encarregado de Prevenção. ouviu-se outra explosão quando uma bomba impactou a uns noventa metros rua acima. —Agora não tenho condutor, não posso abandonar o lugar —disse o voluntário, e olhou a ambos os lados da rua. Havia pequenos grupos de gente à entrada de algumas casas, mas a maioria estavam nos refúgios. —Já conduzo eu. Onde tenho que ir? —perguntou Daisy. —Sabe conduzir? A maioria das mulheres inglesas não sabiam conduzir, seguia sendo coisa de homens. —Não faça perguntas idiotas —replicou Daisy—. Aonde terá que levar a ambulância? —Ao St. Bart’S. Sabe onde está? —É obvio. —St. Bartholomew’s era um dos maiores hospitais de Londres, e Daisy tinha vivido quatro anos na cidade—. No West Smithfield —acrescentou, para assegurar-se de que acreditava. —Urgências está por detrás. —Já o encontrarei. —Subiu ao veículo de um salto. O motor ainda estava em marcha. —Como te chama? —gritou o encarregado de Prevenção. —Daisy Fitzherbert. E você? —Nobby Clarke. me cuide bem a ambulância. O carro tinha a mudança de marchas clássico. Daisy colocou primeira e partiu. Os aviões continuavam rugindo sobre suas cabeças e as bombas caíam sem pausa. Daisy desejava com todas suas forças transladar aos feridos ao hospital, e St. Bart’s estava a pouco menos de quilômetro e médio, mas o trajeto era de uma dificuldade lhe desenquadrem. Conduziu pelo Leadenhall Street, Poultry e Cheapside, mas em várias ocasiões encontrou o caminho bloqueado, pelo que devia retroceder e dar com uma rota alternativa. fixou-se em que, ao menos, havia uma casa destruída por rua. A totalidade da paisagem estava em ruínas e fumegante, e havia pessoas sangrando e chorando. Sentindo um tremendo alívio, chegou ao hospital e seguiu a outra ambulância até a entrada de urgências. O lugar era uma verdadeira loucura: uma dúzia de veículos descarregavam pacientes mutilados e queimados para pô-los em mãos de acelerados carregadores de maca embelezados com aventais talheres de sangue. Talvez tenha salvado a a mãe dessas meninas —pensou Daisy—. Embora meu marido não me queira, não sou uma inútil total. A menina sem cabelo seguia levando a seu hermanita em braços. Daisy ajudou a ambas a descer de sua ambulância. Uma enfermeira a ajudou a levantar a mulher inconsciente e a levá-la dentro. Entretanto, Daisy se precaveu de que a mulher tinha deixado de respirar. —Estas duas meninas são suas filhas! —gritou à enfermeira, e se precaveu do tom de histeria em sua própria voz—. O que será agora delas? —Já me encarregarei eu —respondeu a enfermeira de forma expedita—. Terá que voltar. —Tenho que fazê-lo? —perguntou Daisy. —lhe tranqüilize —lhe aconselhou a enfermeira—. Haverá muitos mais mortos e feridos antes de que acabe a noite. —Está bem —respondeu Daisy, e voltou a ficar ao volante da ambulância disposta a partir. IV Em uma cálida tarde mediterránea de outubro, Lloyd Williams chegou à ensolarada cidade francesa do Perpiñán, a só trinta e dois quilômetros da fronteira com a Espanha. Tinha passado o mês de setembro na zona do Burdeos, trabalhando na colheita de uvas, ao igual que tinha feito o desgraçado ano de 1937. Agora tinha dinheiro no bolso para ônibus e bondes, e podia comer em restaurantes baratos em lugar de alimentar-se de hortaliças verdes arrancadas em pomares particulares ou de ovos crudos roubados nos galinheiros. Estava retornando pela rota que tinha tomado ao sair da Espanha fazia três anos. Tinha chegado desde o Burdeos passando pelo Toulouse e Béziers, percorrendo certos lances como vagabundo em trens de carga e, grande parte do trajeto, viajando com caminhoneiros que acessavam a levá-lo. Nesse momento se encontrava em um bar de passagem situado junto à estrada principal que percorria o sudeste, desde o Perpiñán em direção à fronteira com a Espanha. Ainda embelezado com o macaco de trabalho e a boina do Maurice, levava uma pequena bolsa de lona onde transportava uma paleta oxidada e um nível salpicado de argamassa, provas de que era um pedreiro espanhol que retornava a casa. Deus não quisesse que alguém lhe oferecesse trabalho: não tinha nem idéia de como levantar um muro. Preocupava-lhe se saberia orientar-se pelas montanhas. Fazia três meses, quando estava em Picardia, havia-se dito a si mesmo, em um excesso de confiança, que seria capaz de reencontrar a rota através dos Pirineos pela que o tinham levado os guias a Espanha em 1936, lances da qual tinha percorrido em sentido contrário quando se tinha partido um ano mais tarde. Entretanto, quando os picos de cor violeta e os passos de montanha verdes começaram a aparecer no longínquo horizonte, as perspectivas lhe desejaram muito mais desalentadoras. Tinha pensado que cada passado do caminho ficaria gravado em sua memória; entretanto, quando tentava recordar caminhos concretos, pontes e curvas, deu-se conta de que tinha as imagens imprecisas e não conseguia rememorar os detalhes exatos, o qual o enfurecia. Terminou seu almoço —um guisado de pescado com muita pimenta— e logo conversou tranqüilamente com um grupo de caminhoneiros que ocupava a mesa contigüa. —Necessito que alguém me leve até o Cerbère. —Era a aldeia situada justo antes da fronteira com a Espanha—. Algum vai nessa direção? Certamente foram nessa direção, era a única razão para encontrar-se nessa estrada do sudeste. De todas formas, o pensaram. Era a França do Vichy: desde o ponto de vista técnico, tratava-se de uma zona independente; na prática, estava sob o jugo dos alemães que ocupavam a outra metade do país. Ninguém corria a ajudar a um estrangeiro com acento de outro país. —Sou pedreiro —assegurou Lloyd, e levantou sua bolsa de lona—. Volto para minha casa, na Espanha. Meu nome é Leandro. —Eu posso te levar até médio caminho —se ofereceu um homem gordo com camiseta interior. —Obrigado. —Está preparado já? —É obvio. Saíram do restaurante e entraram em uma caminhonete Renault imunda e suja com o nome de uma loja de fornecimentos elétricos no lateral. Ao arrancar, o condutor perguntou ao Lloyd se estava casado. Seguiram uma série de desagradáveis pergunta pessoais, e Lloyd se precaveu de que o homem sentia verdadeira fascinação pela vida sexual de outros. Sem dúvida alguma, essa era a razão pela que tinha acessado a levar ao Lloyd: dava-lhe oportunidade de fazer seu indiscreto interrogatório. Vários dos homens que tinham levado ao Lloyd tinham algum perverso motivo pelo estilo. —Sou virgem —informou Lloyd, e era certo; mas isso solo levou a um interrogatório sobre os ardentes tocamientos que tivesse podido praticar com colegialas. Em realidade, Lloyd tinha uma considerável experiência no tema, embora não pensava compartilhá-la. negou-se a dar detalhes ao tempo que tentava não resultar grosseiro, mas o condutor acabou se desesperando-se. —Até aqui posso chegar —anunciou, e deteve o veículo. Lloyd lhe deu as obrigado pela viagem e seguiu andando. Tinha aprendido a não caminhar como um soldado e arrastava os pés de uma forma que lhe parecia bastante acreditável e própria de um camponês. Jamais levava em cima nem um periódico nem um livro. A última vez que lhe tinham talhado o cabelo o tinha feito um barbeiro extremamente incompetente no bairro mais pobre do Toulouse. Se barbeava aproximadamente uma vez à semana, pelo que estava acostumado a levar barba de vários dias, que resultava de uma tremenda efetividade para fazê-lo parecer um dom ninguém. Deixou de lavar-se e adquiriu um aroma rançoso que atuava como repelente contra possíveis curiosos. Poucas pessoas de classe trabalhadora tinham relógio, na França ou na Espanha, e teve que desfazer do relógio de pulso quadrado de aço inoxidável que lhe tinha agradável Bernie por sua graduação. Não pôde dar de presente-lhe a nenhum dos muitos franceses que o tinham ajudado, pois um relógio inglês os teria incriminado também a eles. Ao final, com grande pesar, tinha-o arrojado a um lago. Seu talão do Aquiles era o ir indocumentado. Tinha tentado comprar a documentação a um homem que se parecia ligeiramente a ele, e tinha planejado roubar-lhe a outros dois, mas todo mundo estava alerta para evitar esse tipo de furtos, e não resultava surpreendente. Assim as coisas, a estratégia do Lloyd consistia em evitar as situações nas que podiam lhe obrigar a identificar-se. Conseguia passar inadvertido, caminhava a acampo través em lugar de ir por estradas quando tinha a possibilidade, e jamais viajava como passageiro em trem porque estava acostumado a haver postos de controle nas estações. Até esse momento, a sorte lhe tinha sorrido. O guarda de uma aldeia lhe tinha pedido os papéis, e quando lhe explicou que os tinham roubado depois de embebedar-se e ficar inconsciente em um bar da Marsella, o policial lhe tinha acreditado e lhe tinha ordenado que circulasse. Entretanto, a sorte deixou de lhe sorrir. Passava por um terreno agrícola pobre. Estava nas saias dos Pirineos, perto do Mediterrâneo, e o estou acostumado a era arenoso. O caminho poeirento percorria pequenas parcelas que lutavam por sobreviver e paupérrimas aldeias. Era uma paisagem insuficientemente povoada. A sua esquerda, entre as colinas, vislumbrou o azul do longínquo mar. Quão último esperava era que o adiantasse um Citroën verde no qual viajavam três guardas. Ocorreu de forma muito repentina. Ouviu como se aproximava o carro, o único que tinha ouvido desde que o homem gordo o tinha deixado no caminho. Seguia arrastando os pés ao caminhar, como um cansado trabalhador de volta a casa. A ambos os lados da estrada havia campos ermos talheres de más ervas e tocos. Quando o veículo se deteve, expôs-se durante um segundo sair correndo a acampo través. Desprezou a idéia ao ver as cartucheiras dos duas guardas que descenderam de um salto do carro. Certamente não tinham muito boa pontaria, mas era melhor não arriscar-se. Tinha mais possibilidades de sair gracioso falando com eles. Eram guardas locais, de povo, mais amigáveis que os estirados policiais urbanos franceses. —Documentação? —perguntou em francês o guarda mais próximo a ele. Lloyd separou as mãos com gesto de impotência. —Monsieur, sou tão desgraçado que me roubaram a documentação na Marsella. Meu nome é Leandro, sou pedreiro espanhol, dirijo a… —Sobe ao carro. Lloyd duvidou um instante, mas não tinha saída. A opção de escapar era pior. Um guarda o agarrou com força pelo braço, colocou-o com brutalidade no assento traseiro e se sentou a seu lado. A alma caiu aos pés quando o carro ficou em marcha. —É inglês ou o que? —perguntou-lhe o guarda que ia sentado a seu lado. —Sou espanhol. Meu nome é… —Não gaste saliva —aconselhou o francês fazendo um gesto depreciativo com a mão. Lloyd se deu conta de que tinha sido muito otimista. Era um estrangeiro indocumentado que se dirigia à fronteira espanhola: não lhes custou supor que se tratava de um soldado inglês à fuga. Se tinham alguma dúvida, encontrariam provas quando lhe pedissem que se despisse, porque veriam a placa identificativa que levava pendurada ao pescoço. Não a tinha atirado, porque, sem ela, disparariam-lhe sem pensá-lo por espião. Agora estava encerrado naquele carro com três homens armados, e não tinha nenhuma probabilidade de poder escapar. Seguiram avançando, na mesma direção em que viajava Lloyd, enquanto o sol se ocultava depois das montanhas do lado direito. Não havia grandes cidades entre esse ponto do caminho e a fronteira, por isso supôs que foram encerrar o em um quartel local para passar a noite. Talvez pudesse escapar dali. Se não o obtinha, sem dúvida o levariam de retorno ao Perpiñán ao dia seguinte e o entregariam à polícia da cidade. E então o que? Submeteriam-no a um interrogatório? Essa possibilidade fez que sentisse um medo aterrador. A polícia francesa lhe golpearia, os alemães o torturariam. Se sobrevivia, acabaria em um campo de prisioneiros de guerra, onde permaneceria até o final da luta ou até morrer de desnutrição. O irônico era que estava sozinho a uns quilômetros da fronteira! Chegaram a uma pequena cidade. Poderia escapar no trajeto do carro à a prisão? Não podia fazer nenhum plano: desconhecia o terreno. Não havia nada que pudesse fazer salvo manter-se alerta e aproveitar qualquer oportunidade. O carro virou pela rua principal e entrou em um beco situado justo detrás de uma fileira de lojas. foram executar o ali e deixar atirado seu cadáver? O carro se deteve na entrada traseira de um restaurante. O pátio estava coberto de caixas e latas gigantescas. Através de uma pequena janela, Lloyd divisou uma cozinha muito iluminada. O guarda sentado no assento do co-piloto desceu do carro e abriu a portinhola do Lloyd, pelo lado que ficava mais próximo ao edifício. Era esta sua oportunidade? Teria que sair correndo do carro e percorrer a toda pressa o beco. Estava escuro: depois de uma carreira de poucos metros, deixaria de ser um branco fácil. O guarda se meteu no carro e agarrou ao Lloyd pelo braço, retendo-o enquanto baixava e se endireitava. O segundo guarda saiu imediatamente atrás do inglês. A oportunidade não era o bastante boa. Mas para que o tinham levado até ali? Fizeram-no entrar na cozinha. Um cozinheiro batia ovos em uma terrina e um menino adolescente lavava pratos em uma lança enorme. —Aqui tem a um inglês. faz-se chamar Leandro —informou um dos guardas. —Teresa! Vêem aqui! —gritou o cozinheiro sem deixar de trabalhar e levantando a cabeça. Lloyd recordou a outra Teresa, uma bela anarquista espanhola que ensinava aos soldados a ler e escrever. A porta da cozinha se abriu de repente e ela entrou. Lloyd ficou olhando-a, atônito. Não havia possibilidade de engano: jamais esqueceria aqueles ojazos nem esse arbusto de cabelo negro, embora levasse uma boina de algodão branco e um avental de garçonete. Ao princípio, ela não o olhou. Deixou uma pilha de pratos no mostrador, junto ao jovem máquina de lavar pratos, voltou-se para os guardas com um sorriso e os beijou a ambos na bochecha. —Pierre! Michel! Como estão? —perguntou. Logo se voltou para o Lloyd, ficou olhando-o e disse em espanhol—: Não… não é possível. Lloyd… De verdade é você? Ele não pôde mais que assentir com cara de embevecido. Ela o abraçou, apertou-o e lhe plantou dois beijos nas bochechas. —Pois já estamos —disse um dos guardas—. Todo arrumado. Temos que ir. Boa sorte! —Passou ao Lloyd sua bolsa de lona e partiram. Lloyd por fim conseguiu falar. —O que está passando? —perguntou a Teresa em espanhol—. Acreditava que foram levar me a prisão! —Odeiam aos nazistas e por isso nos ajudam —esclareceu ela. —Como que nos? —Já lhe explicarei isso mais tarde. me acompanhe. —Teresa abriu uma porta que dava a umas escadas e o levou a piso superior, onde havia uma habitação com poucos móveis—. Espera aqui, trarei-te algo de comer. Lloyd se tombou na cama e ficou pensando em sua imensa sorte. Fazia cinco minutos tinha acreditado que estavam a ponto de torturá-lo e matá-lo. Agora estava esperando que uma formosa mulher lhe levasse o jantar. A situação podia voltar a dar um giro radical, era consciente disso. Teresa retornou meia hora depois com uma omelete e umas batatas fritas servidas em um robusto prato. —estivemos ocupados, mas fechamos cedo —disse ela—. Voltarei em um par de minutos. Lloyd engoliu a comida com avidez. Caiu a noite. Ouviu o murmúrio da conversação entre os clientes que partiam e o entrechocar metálico dos cacharros que se recolhiam; logo Teresa reapareceu com uma garrafa de vinho tinjo e dois copos. Lloyd lhe perguntou por que se partiu da Espanha. —Nossos compatriotas estão morrendo assassinados por milhares —assegurou—. Para aqueles aos que não mataram, aprovaram a Lei de Responsabilidades Políticas, e criminalizan a todo aquele que tenha apoiado ao governo republicano. Pode perder todas suas propriedades se opuser a Franco incluso por passividade grave. Sozinho consideram-lhe inocente se pode provar que o apoiaste. Lloyd pensou com amargura na confiança com que Chamberlain tinha informado à Câmara dos Comuns de que Franco tinha renunciado às represálias políticas. Que maldito mentiroso tinha resultado ser Chamberlain! —Muitos de nossos camaradas se encontram em campos de prisioneiros em condições infrahumanas —acrescentou Teresa. —Suponho que não terá nem idéia do que lhe pôde passar ao sargento Lenny Griffiths, meu amigo. Teresa negou com a cabeça. —Não voltei a vê-lo depois do Belchite. —E você…? —Eu escapei das tropas de Franco, cheguei a este lugar, consegui trabalho de garçonete… E descobri que podia me dedicar a outra coisa. —A que outra coisa? —Ajudo a cruzar as montanhas aos soldados fugitivos. Por isso os guardas lhe trouxeram até aqui. Lloyd se sentiu animado. Tinha pensado chegar sozinho até a Espanha e se esteve preocupando se por acaso saberia encontrar o caminho. E agora inclusive contaria com uma guia. —Tenho a outros dois esperando —disse—. Um soldado de artilharia inglês e um piloto canadense. Estão em uma granja das montanhas. —Quando quer que cruzemos? —Esta noite —respondeu ela—. Não beba muito vinho. Voltou a partir e retornou meia hora depois com um velho casaco puído. —Iremos por um lugar frio —explicou. Saíram com sigilo pela porta da cozinha e se abriram passo pela pequena cidade iluminados pelas estrelas. Uma vez que deixaram atrás as casas, seguiram por um atalho ascendente com uma costa cada vez mais pronunciada. Depois de uma hora de percurso chegaram a um pequeno grupo de edificações de pedra. Teresa assobiou e abriu a porta de um celeiro, e dele saíram dois homens. —Sempre usamos nomes falsos —comentou ela em inglês—. Eu sou María e estes dois são Fred e Tom. Nosso novo amigo é Leandro. —Os homens se estreitaram a mão. Ela prosseguiu—: Nada de falar, nem de fumar e o que se atrase, aí fica. Estamos preparados? Desde esse ponto, o caminho se voltava mais íngreme. Lloyd começou a escorregar com as pedras. de quando em quando, agarrava-se às raquíticas moitas de urze que cresciam junto ao atalho e se dava impulso para cima com sua ajuda. A miúda Teresa imprimia um ritmo que não demorou para fazer resfolegar e soprar aos três homens. Ela levava uma lanterna, mas se negava a acendê-la enquanto brilhassem as estrelas, argumentando que não queria gastar a pilha. O ar foi esfriando-se. Cruzaram um arroio gélido, e ao Lloyd não voltaram a esquentar-se o os pés depois daquilo. —Aqui procurem permanecer no centro do caminho —lhes advertiu Teresa uma hora depois. Lloyd olhou para baixo e se precaveu de que estava ao bordo de um precipício entre duas ladeiras escarpadas. Quando viu o abismo ao que podia cair, sentiu-se algo enjoado e rapidamente levantou a vista e a cravou à frente, na silhueta grácil e ligeira da Teresa. Em circunstâncias normais, teria desfrutado de cada minuto da caminhada depois de um corpo como aquele, mas nesse momento estava tão cansado e tinha tão frio que nem sequer ficavam energias para comer-lhe com os olhos. As montanhas não estavam habitadas. Em um ponto do caminho, um cão ladrou ao longe; em outro, escutaram um horripilante repico de sinos, que assustou aos homens até que Teresa lhes explicou que os pastores penduravam guizos a suas ovelhas para poder localizar os rebanhos. Lloyd pensava no Daisy. Estaria ainda no Ty Gwyn? Ou teria retornado com seu marido? Esperava que não tivesse retornado a Londres, porque, conforme publicava a imprensa francesa, a cidade era bombardeada todas as noites. Estaria viva ou morta? Voltaria a vê-la alguma vez? Se o fazia, o que sentiria ela por ele? detinham-se a cada duas horas para descansar, beber água e tomar um par de goles de uma garrafa de vinho que levava Teresa. Começou a chover quase ao despontar o alvorada. O sotobosque se tornou imediatamente escorregadio e traiçoeiro, e todos tropeçavam e se trastabillaban, mas Teresa não diminuiu a marcha. —Dêem obrigado de que não neve —disse. A luz do dia revelou uma paisagem de maleza entre a que apareciam afloramentos de rocha qual lápides. A chuva não cessava e uma fria bruma obscurecia o horizonte. depois de um momento, Lloyd se deu conta de que foram caminhando costa abaixo. —Já estamos na Espanha —anunciou Teresa em sua seguinte parada. Lloyd deveria haver-se sentido aliviado, mas simplesmente se sentia esgotado. Pouco a pouco, a paisagem se voltou mais agradável, as pedras foram dando passo à densa erva e os toscos matagais. de repente, Teresa se deixou cair ao chão e ficou tombada de barriga para cima. Os três homens a imitaram imediatamente, sem necessidade de que os animasse a fazê-lo. Seguindo o olhar da Teresa, Lloyd viu dois homens com uniforme verde e umas peculiares boinas: guardas fronteiriços espanhóis, supostamente. deu-se conta de que o fato de estar na Espanha não supunha que se livrou dos problemas. Se o pilhavam entrando no país de forma ilegal, podiam inclusive enviar o de volta. Pior ainda, podia acabar desaparecendo em um campo de prisioneiros franquista. A patrulha fronteiriça avançava por um atalho de montanha em direção aos fugitivos. Lloyd se dispôs para a briga. Teria que mover-se depressa para derrubá-los antes de que tirassem as armas. perguntou-se como se defenderiam as outra duas em uma briga. Entretanto, não tinha nada que temer. Os dois guardas chegaram a uma espécie de fronteira invisível e deram meia volta. Teresa reagiu como se tivesse sabido que aquilo ia ocorrer. Quando os guardas se esfumaram, ela se levantou e os quatro seguiram caminhando. Pouco depois, a bruma se dissipou. Lloyd viu uma aldeia de pescadores à beira de uma baía arenosa. Já tinha estado ali antes, durante sua estadia na Espanha em 1936. Inclusive recordava que havia uma estação de trem. Chegaram caminhando ao povo. Era um lugar tranqüilo, sem sinal alguma de burocracia: nem polícia, nem prefeitura, nem soldados, nem postos de controle. Sem dúvida alguma, era a razão pela que Teresa o tinha escolhido como ponto do destino. Foram à estação e Teresa comprou os bilhetes, paquerando com o vendedor como se fossem velhos amigos. Lloyd se sentou em um banco da sombria plataforma, com os pés inchados e doloridos, esgotado, agradecido e feliz. Uma hora mais tarde, subiram ao trem com destino a Barcelona. V Daisy não tinha entendido até esse momento o verdadeiro significado do trabalho. Nem do esgotamento. Nem da tragédia. sentou-se em um sala-de-aula de colégio, enquanto bebia um doce chá inglês em uma taça sem pires. Levava casco de aço e botas de borracha. Eram as cinco da tarde e ainda estava cansada pelo trabalho da noite anterior. Formava parte do grupo voluntário de Prevenção para os Bombardeios destinado ao bairro do Aldgate. Em teoria realizava um turno de oito horas, seguidas de oito horas de guarda e oito horas de descanso. Na prática trabalhava enquanto durava o bombardeio e tinha feridos que transladar ao hospital. Londres foi bombardeado todas as noites de outubro de 1940. Daisy sempre trabalhava com outra mulher, a ajudante da condutora, e quatro homens que compunham a equipe de primeiros socorros. Seu quartel geral era um colégio, e nesse momento estavam sentados às carteiras dos meninos, à espera de que os aviões e as sereias começassem a uivar e as bombas a cair. A ambulância que conduzia era um Buick americano reconvertido. Também tinham veículos sem reconverter e um condutor para transportar o que chamavam casos de assento: feridos que podiam permanecer sentados sem ajuda enquanto os transladavam ao hospital. Sua ajudante era Naomi Avery, uma atrativa jovem loira do East End a que gostava dos homens e a camaradagem de equipe. Aproveitava o descanso para brincar com o supervisor de zona, Nobby Clarke, um policial aposentado. —O supervisor chefe é um homem —disse ela—. O supervisor do bairro é um homem. Você é um homem. —Isso espero —disse Nobby, e outros estalaram de risada. —Há muitas mulheres em Prevenção para os Bombardeios —prosseguiu Naomi—. Como é que nenhuma tem um posto de mando? Os homens riram. —Já estamos outra vez com o dos direitos das mulheres —atravessou um calvo com um narigudo enorme chamado George o Bonito. Era um homem com certa tendência misógina. Daisy se uniu à conversação. —De verdade criem que todos os homens são mais inteligentes que as mulheres? —Pois resulta que há algumas supervisoras chefes —respondeu Nobby. —Não as vi em minha vida —respondeu Naomi. —É como uma tradição, verdade? —comentou Nobby—. As mulheres sempre foram amas de casa. —Como Catalina a Grande da Rússia —acrescentou Daisy com sarcasmo. —Ou a reina Isabel da Inglaterra —interveio Naomi. —Amelia Earhart. —Jane Austen. —Enjoe Curie, a única científica que ganhou o prêmio Nobel duas vezes. —Catalina a Grande? —perguntou George o Bonito—. Não há uma história sobre ela e seu cavalo? —Bom, bom, que há senhoritas diante —advertiu Nobby em tom reprobatorio—. De todas formas, eu posso responder à pergunta do Daisy —acrescentou. —Adiante pois —o convidou Daisy, desejosa de escutar esse argumento em seu favor. —Garanto-lhes que há mulheres tão inteligentes como os homens —disse Nobby como se estivesse fazendo uma concessão de incrível generosidade—. Não obstante, existe uma razão de peso para que quase todos os altos cargos de Prevenção sejam homens. —E que razão é essa, Nobby? —É muito simples. Os homens não aceitariam ordens de uma mulher. —Voltou a ajeitar-se com expressão triunfal, seguro de ter ganho a discussão. O irônico era que, quando as bombas caíam e rebuscavam entre as ruínas aos feridos, homens e mulheres sim eram iguais. Então não existiam as hierarquias. Se Daisy dizia a gritos ao Nobby que levantasse o outro extremo de uma viga derrubada, ele a obedecia sem demora. Ao Daisy adorava aqueles homens, inclusive George. Teriam dado sua vida por ela e ela teria reagido de igual modo. Ouviu um assobio no exterior, que pouco a pouco foi subindo de tom até converter-se na já lenta e familiar sereia que avisava do início de um ataque aéreo. Transcorridos uns segundos, caiu a bomba e se ouviu uma explosão ao longe. O alarme anti-aéreo estava acostumada chegar tarde; sempre soava quando já tinham cansado as primeiras bombas. O telefone soou e Nobby respondeu. —É que estes alemães não se tomam nem um puñetero dia livre? —comentou George, enojado. —Nutley Street —anunciou Nobby detrás pendurar o telefone. —Sei onde está —disse Naomi enquanto saíam a toda pressa—. A parlamentaria de nossa circunscrição vive ali. Subiram a toda pressa aos veículos. —Que época tão feliz! —comentou Naomi, sentada junto ao Daisy, quando esta pôs o motor em marcha. Naomi estava sendo irônica embora, por estranho que pudesse resultar, Daisy sim era feliz. Que sensação tão estranha, pensou enquanto tomavam a toda pressa uma curva. Todas as noites era testemunha da destruição, da dor dilaceradora e de corpos terrivelmente mutilados. Havia muitas probabilidades de que ela mesma muriese em uma explosão essa mesma noite. Contudo, sentia-se de maravilha. Estava trabalhando e sofrendo por uma causa e, paradoxalmente, isso era melhor que conceder-se caprichos a si mesmo. Formava parte de um grupo que o arriscava tudo por salvar a outros e essa era a melhor sensação do mundo. Daisy não odiava aos alemães porque tentassem matá-la. Seu sogro, o conde Fitzherbert, tinha-lhe contado por que bombardeavam Londres. Até o mês de agosto, a Luftwaffe tinha atacado sozinho portos e aeroportos. Fitz lhe tinha explicado, em um momento de ingenuidade nada típico nele, que os ingleses não eram tão escrupulosos: o governo tinha aprovado o ataque a objetivos civis alemães, e já no mês de maio, e durante os meses de junho e julho, a RAF tinha arrojado suas bombas sobre mulheres e meninos que se encontravam em suas casas. O fato enfureceu à opinião pública alemã, que exigiu vingança. O Blitz foi o resultado. Daisy e Boy mantinham as aparências, mas ela fechava com chave a porta de sua habitação quando ele estava em casa, e ele não punha nenhuma objeção. Seu matrimônio era uma farsa, mas ambos estavam muito preocupados para fazer algo a respeito. Quando Daisy pensava nisso, entristecia-se; porque agora tinha perdido tanto ao Boy como ao Lloyd. Por sorte, logo que tinha tempo para pensar nisso. Nutley Street estava envolta em chamas. A Luftwaffe tinha arrojado uma mistura de bombas incendiárias e explosivos de grande potencializa. O fogo provocou os majores danos, mas os explosivos de grande potencializa contribuíram a propagar as chamas, o que arrebentou os cristais das janelas e avivou o incêndio com mais oxigênio. Daisy freou a ambulância em seco e todos ficaram mãos à obra. As pessoas com feridas de pouca gravidade foram conduzidas até o posto mais próximo de primeiros auxílios. Os feridos mais graves foram transladados ao St. Bart’s ou ao Hospital de Londres, no Whitechapel. Daisy fez uma viagem atrás de outro. Quando caiu a noite, acendeu os faróis. Este estavam cobertos com um ralo e projetavam um tênue feixe de luz, como parte da camuflagem do veículo, embora resultava uma medida um tanto desnecessária quando Londres estava acesa como uma gigantesca fogueira. O bombardeio se prolongou até o amanhecer. A plena luz do dia, caça-os eram um branco muito fácil para a frota de aviões de combate pilotada pelo Boy e seus camaradas, assim que a patrulha aérea se retirou, esgotada. Quando a fria luz cinzenta banhou as ruínas, Daisy e Naomi retornaram ao Nutley Street e viram que já não ficavam vítimas que transladar ao hospital. sentaram-se exaustas entre os entulhos de um jardim com muros de tijolo. Daisy se tirou o casco de aço. Estava destroçada e coberta de pó. Eu gostaria saber o que pensariam agora de mim as garotas do Clube Náutico do Buffalo, pensou. E logo se deu conta de que já não lhe importava grande costure o que pensassem. Os dias em que sua aprovação era o mais importante lhe pareciam estar já em um passado muito longínquo. —Gosta de uma taça de chá, querida minha? —perguntou-lhe alguém. Reconheceu o acento galês. Levantou a vista e viu uma atrativa mulher de média idade com uma bandeja nas mãos. —OH, Deus, é justo o que preciso —respondeu, e se serve ela mesma. Agora já gostava do chá. Tinha um sabor amargo, mas um notável efeito lhe revitalizem. A mulher beijou ao Naomi. —Somos parentes —esclareceu ela—. Sua filha, Millie, está casada com meu irmão, Abie. Daisy observou como a mulher levava a bandeja para o pequeno grupo de encarregados de Prevenção para os Bombardeios, bombeiros e vizinhos. Imaginou que devia ser alguém influente na zona: gotejava autoridade. Embora estava claro que, ao mesmo tempo, também era uma mulher afável, falava com todo mundo com amabilidade e os fazia sorrir. Conhecia o Nobby e ao George o Bonito, e os saudou como a dois velhos amigos. serve-se a última taça de chá da bandeja para ela e foi sentar se junto ao Daisy. —Parece norte-americana —disse em tom agradável. Daisy assentiu em silêncio. —Estou casada com um inglês. —Eu vivo nesta rua, mas minha casa se livrou ontem à noite do bombardeio. Sou parlamentaria da circunscrição do Aldgate. Meu nome é Eth Leckwith. Ao Daisy lhe parou o coração. Era a famosa mãe do Lloyd! estreitaram-se a mão. —Daisy Fitzherbert. Ethel levantou as sobrancelhas. —OH! —exclamou—. É a viscondessa do Aberowen. Daisy se ruborizou e falou em voz baixa. —Em Prevenção para os Bombardeios não sabem. —Seu segredo está a salvo comigo. —Conhecia seu filho, Lloyd —disse Daisy, hesitante. Não pôde evitar que lhe enchessem os olhos de lágrimas quando pensou em sua época juntos no Ty Gwyn, e na forma em que ele a tinha cuidado depois do aborto—. Foi muito amável comigo em uma ocasião que necessitei ajuda. —Obrigado —disse Ethel—. Mas não dele fale como se tivesse morrido. A recriminação foi amável, mas Daisy teve a sensação de ter tido pouquíssimo tato. —Sinto-o muito! —desculpou-se—. Está desaparecido em combate, sei. Que estúpido comentário por minha parte! —Mas já não está desaparecido —esclareceu Ethel—. Escapou pela Espanha. Chegou ontem a casa. —OH, Meu deus! —Ao Daisy lhe acelerou o pulso—. Se encontra bem? —Perfeitamente. De fato, tem muito bom aspecto apesar de tudo o que lhe há meio doido viver. —Onde…? —Daisy tragou saliva—. Onde está agora? —Bom, deve andar por aqui. —Ethel olhou a seu redor—. Lloyd? —chamou-o. Daisy olhou com extrema atenção entre a multidão. Podia ser aquilo certo? Um homem com um estragado casaco marrom se voltou. —Sim, mamãe? Daisy ficou olhando-o. Tinha o rosto queimado pelo sol e estava nos ossos, mas mais atrativo que nunca. —Vêem aqui, carinho meu —o convidou Ethel. Lloyd avançou um passo e então viu o Daisy. de repente lhe mudou o rosto. Sorriu de felicidade. —Olá —saudou. Daisy se levantou de um salto. —Lloyd, aqui há alguém a quem talvez recorde… —disse Ethel. Daisy não pôde reprimir-se. Saiu correndo em direção ao Lloyd e se tornou em seus braços. Olhou seus olhos verdes, beijou-o nas bochechas moréias e logo nos lábios. —Quero-te, Lloyd! —exclamou sem Te pensá-lo quero, quero-te, quero-te! —Eu também te quero, Daisy —respondeu ele. A suas costas, Daisy ouviu o comentário irônico do Ethel. —Bom, já vejo que a recorda. VI Lloyd estava comendo uma torrada com geléia quando Daisy entrou na cozinha da casa do Nutley Street. sentou-se à mesa, com cara de cansada, e se tirou o casco. Tinha o rosto manchado e o cabelo sujo de cinza e pó, e ao Lloyd pareceu arrebatadora. Chegava a maioria das manhãs quando o bombardeio tinha finalizado e a última vítima tinha sido transladada ao hospital. A mãe do Lloyd lhe havia dito que não necessitava convite e ela o tinha tomado ao pé da letra. Ethel serve ao Daisy uma taça de chá. —Uma noite dura, querida minha? —perguntou. Daisy assentiu com gesto grave. —Uma das piores. O edifício Peabody do Orange Street se incendiou. —OH, não! —Lloyd estava horrorizado. Conhecia o lugar: um bloco de apartamentos de famílias pobres com muitíssimos meninos. —É um edifício enorme —comentou Bernie. —Era —retificou Daisy—. Centenas de pessoas morreram queimadas e Deus sabe quantos meninos terão ficado órfãos. Quase todos meus pacientes morreram de caminho ao hospital. Lloyd alargou a mão sobre a pequena mesa e tomou a do Daisy. Ela levantou a vista da taça de chá. —Uma não chega a acostumar-se. Crie que com o tempo te acabará curtindo, mas não. —Estava destroçada pela pena. Ethel lhe pôs uma mão no ombro com gesto compassivo. —E nós vamos fazer o mesmo com as famílias da Alemanha —concluiu Daisy. —Incluídos meus velhos amigos Maud e Walter e seus filhos, suponho —interveio Ethel. —Verdade que é horrível? —Daisy sacudiu a cabeça com desespero—. Mas o que nos ocorre? —O que lhe ocorre à espécie humana? —inquiriu Lloyd. —Irei mais tarde ao Orange Street para comprovar que está fazendo-se todo o possível pelos meninos —atravessou Bernie, sempre tão prático. —Acompanharei-te —disse Ethel. Bernie e Ethel pensavam igual e atuavam em equipe sem esforço; freqüentemente parecia que eram capazes de lê-la mente. Desde sua volta a casa, Lloyd tinha estado observando-os com atenção, preocupado porque seu matrimônio pudesse haver-se visto afetado pela lhe impactem revelação de que Ethel jamais tinha tido um marido chamado Teddy Williams, e que o pai do Lloyd era o conde Fitzherbert. Tinha-o falado comprido e tendido com o Daisy, que já conhecia toda a verdade. Como se sentiria Bernie ao descobrir que lhe tinham mentido durante vinte anos? Entretanto, Lloyd não detectava signos de que isso tivesse trocado nada. A sua maneira absolutamente sentimental, Bernie adorava ao Ethel, e, em sua opinião, ela não podia fazer nada mal. Acreditava que sua esposa jamais faria nada para feri-lo, e estava no certo. Tudo aquilo fazia que Lloyd desejasse poder ter um matrimônio assim algum dia. Daisy se precaveu de que Lloyd tinha posto o uniforme. —Aonde vai esta manhã? —Convocaram-me no Ministério de Guerra. —Olhou o relógio do suporte da chaminé—. Será melhor que vá. —Acreditava que já tinha dado o parte. —Vêem meu quarto enquanto me ponho a gravata e lhe o conto. te traga a taça de chá. Subiram à habitação. Daisy olhou a seu redor com interesse e ele se deu conta de que nunca antes tinha estado ali. Ele olhou a cama individual, estropia-a com livros em alemão, francês e espanhol e o escritório com a fileira de lápis afiados, e se perguntou o que estaria pensando ela ao ver todo aquilo. —Que cuartito tão encantador! —comentou Daisy. Não era um quarto pequeno. Tinha as mesmas dimensões que qualquer das outras habitações da casa. Mas ela tinha padrões distintos. A jovem tomou uma fotografia emoldurada. Nela se via toda a família na costa: o pequeno Lloyd com calças curtas, Millie de bebê com traje de banho, uma jovem Ethel com um chapéu de palha de asa larga, Bernie com traje cinza e camisa branca, com o pescoço desabotoado e um lenço pacote na cabeça. —Southend —explicou Lloyd. Tomou sua taça, colocou-a sobre o velador e abraçou ao Daisy. Beijou-a nos lábios. Ela o beijou com ternura e esgotamento, acariciou-lhe uma bochecha e deixou repousar seu corpo sobre o do Lloyd. Passado um minuto, ele a soltou. Ela estava realmente cansada para os mímicos e ele tinha um compromisso. Daisy se tirou as botas e se tombou na cama. —Os do Ministério de Guerra me pediram que vá vê-los de novo —explicou ele enquanto se fazia o nó da gravata. —Mas se a última vez esteve quatro horas ali. Era certo. Tinha tido que espremer o cérebro para recordar até o último minuto de sua fuga da França. Queriam saber a fila e regimento de todos os alemães com os que se topou. Não tinha sido capaz de recordá-los todos, é obvio, mas tinha realizado de forma meticulosa todas as tarefas do curso do Ty Gwyn e estava em disposição de lhes entregar grande quantidade informação detalhada. Era um procedimento habitual para os serviços segredos militares. Embora também lhe tinham perguntado pela fuga, pelos caminhos que tinha seguido e sobre quem o tinha ajudado. interessaram-se inclusive pelo Maurice e Marcelle, e lhe reprovaram que não conhecesse seu sobrenome. entusiasmaram-se muito ante a menção da Teresa, que sem dúvida podia ser um pilar chave para a ajuda de futuros fugitivos. —Hoje me reúno com outro grupo. —ficou olhando uma nota datilografada que tinha sobre o velador—. No hotel Metropole, no Northumberland Avenue. Habitação 424. —O lugar se encontrava à saída do Trafalgar Square, em um bairro de despachos oficiais—. Ao parecer é um novo departamento encarregado dos prisioneiros de guerra ingleses. —ficou sua boina acabada em pico e se olhou ao espelho—. Estou bonito? Não recebeu resposta. Olhou à cama. Daisy se tinha ficado dormida. Tampou-a com uma manta, beijou-a na frente e saiu. Disse a sua mãe que Daisy estava dormindo em sua cama e ela respondeu que subiria mais tarde para ver se seguia bem. Lloyd tomou o metro até o centro. Tinha-lhe contado ao Daisy a verdadeira história sobre seu pai, o qual a desenganou da idéia de que era filho do Maud. Daisy acreditou a história, pois recordou de logo que Boy lhe tinha contado que Fitz tinha um filho ilegítimo em algum lugar. —É horripilante —tinha comentado com expressão reflexiva—. Os dois ingleses dos que me apaixonei são meio-irmãos. —E detrás lançar um olhar inquisitivo ao Lloyd, tinha acrescentado—: Você herdaste a beleza de seu pai. Boy só herdou seu egoísmo. Lloyd e Daisy ainda não tinham feito o amor. Um dos motivos era que ela não tinha tido noites livres. Além disso, na única ocasião que tinham estado a sós, as coisas se torceram. Tinha sido no domingo anterior, na casa do Daisy, no Mayfair. Suas criadas tinham a tarde do domingo livre, e ela o tinha levado a sua habitação na casa vazia. Mas Daisy esteve nervosa e incômoda de um princípio. Beijou-o, mas logo apartou a cara. Quando lhe pôs as mãos nos seios, ela as apartou. Ele se sentiu confuso: se se supunha que não devia comportar-se assim, o que faziam na habitação dela? —Sinto-o —se desculpou Daisy ao final—. Te quero, mas não posso fazer isto. Não posso enganar a meu marido em sua própria casa. —Mas ele enganou a ti. —Ao menos o fazia em outro lugar. —Está bem. Ela o olhou. —Crie que sou tola? Ele se encolheu de ombros. —depois de tudo o que passamos, parece-me que te está pondo muito escrupulosa, sim, mas… escuta, tem a liberdade de te sentir como quer. Seria um bode se tentasse te forçar a fazer algo para o que ainda não está preparada. Ela o abraçou e lhe deu um bom empurrão. —Já lhe hei isso dito antes —disse—. maturaste. —Não deixemos que isto nos danifique a tarde —sugeriu ele—. Vamos ao cinema. Viram O grande ditador, do Charlie Chaplin, e se partiram da risada, logo ela voltou para trabalho. De caminho à estação do Embankment a mente do Lloyd se manteve ocupada com agradáveis pensamentos sobre o Daisy, logo caminhou pelo Northumberland Avenue até o Metropole. No hotel tinham retirado as reproduções de antiguidades e o tinham mobiliado com mesas e cadeiras mais utilitárias. Depois de um par de minutos de espera, levaram ao Lloyd em presença de um coronel alto com gestos enérgicos. —Tenho lido seu relatório, tenente —anunciou—. Bem feito. —Obrigado, senhor. —Esperamos que outras pessoas sigam seus passos e nós gostaríamos de lhes ajudar. Temos um interesse especial nos pilotos cansados. Sua formação é cara e nos interessa que retornem para que voltem a voar. Ao Lloyd pareceu algo duro. Se um homem sobrevivia a um acidente aéreo, de verdade podia pedir-se o que se arriscasse a pilotar de novo? Mas aos feridos enviavam-nos de retorno ao campo de batalha assim que se recuperavam. Assim era a guerra. —Estamos construindo uma espécie de linha férrea clandestina que vai da Alemanha até a Espanha —lhe informou o coronel—. Você fala alemão, francês e espanhol, pelo que vejo, mas, o que é mais importante, esteve em uma situação limite. Nós gostaríamos de transladar o de forma temporária a nosso departamento. Lloyd não o esperava e não estava muito seguro de como encaixá-lo. —Obrigado, senhor. É uma honra. Mas se trata de um cargo burocrático? —Absolutamente. Queremos que volte para a França. Ao Lloyd lhe disparou o pulso. Acreditava que não teria que enfrentar-se de novo a esses perigos. O coronel se precaveu de sua expressão de desespero. —Já sabe quão perigoso é. —Sim, senhor. —Pode negar-se se quer —sugeriu o coronel com tom brusco. Lloyd pensou no Daisy em pleno Blitz, e nas pessoas que tinham morrido queimadas no edifício Peabody, e soube que nem sequer tinha vontades de negar-se. —Se você considerar que é importante, senhor, voltarei encantado, é obvio. —Bom moço —disse o coronel. Meia hora mais tarde, Lloyd se dirigia, aturdido, à estação de metro. Agora formava parte de um departamento chamado MI9. Retornaria a França com documentação falsa e uma grande soma de dinheiro em efetivo. Dúzias de alemães, holandeses, belgas e franceses tinham sido recrutados em território ocupado para levar a cabo a missão arriscada e potencialmente letal de ajudar aos soldados ingleses e pilotos da Commonwealth em sua volta a casa. ia converter se em um dos numerosos agentes do MI9 que ampliassem a rede de atuação. Se o apanhavam, torturariam-no. Embora estava assustado, embargava-o a emoção. ia viajar de avião até Madrid: seria sua primeira viagem em avião. Voltaria para a França cruzando os Pirineos e contataria com a Teresa. disfarçaria-se para confundir-se com o inimigo, resgataria a pessoas nos narizes da Gestapo. asseguraria-se de que esses homens seguissem seus passos para que não se sentissem tão sós e desamparados como ele. Retornou ao Nutley Street às onze da manhã. Miss a América não moveu nem um cabelo, informava-lhe sua mãe em uma nota. Depois de visitar o lugar do bombardeio, Ethel iria à Câmara dos Comuns, e Bernie, à prefeitura. Lloyd e Daisy tinham a casa para eles sozinhos. Lloyd subiu a sua habitação. Daisy seguia dormindo. Sua jaqueta de couro e suas calças de grosa lã estavam atirados no chão de qualquer maneira. Seguia na cama em roupa interior. Era a primeira vez. Ele se tirou a jaqueta e a gravata. —E o resto —lhe ordenou Daisy com voz dormitada da cama. Ele ficou olhando-a. —O que? —Que te tire toda a roupa e te meta na cama. A casa estava vazia, ninguém lhes incomodaria. tirou-se as botas, as calças, a camiseta, os meias três-quartos e duvidou. —Não terá frio —disse ela. meneou-se sob as mantas e lhe atirou suas calcinhas de seda. Ele tinha acreditado que seria um momento solene de paixão acesa, mas, pelo visto, ao Daisy parecia um pouco divertido. Lloyd esperava que ela o orientasse. tirou-se a camiseta e as cueca e se meteu na cama junto a ela. Seu corpo era todo calidez e entrega. Ele estava nervoso: não lhe tinha confessado que era virgem. Sempre tinha ouvido que o homem devia tomar a iniciativa, mas parecia que Daisy não sabia. Beijou-o e o acariciou, e logo lhe agarrou o pênis. —Vá! —exclamou—. Esperava que teria um destes. Depois daquilo, Lloyd deixou de sentir-se nervoso. 8 1941 (I) I Um frio domingo de inverno, Carla von Ulrich acompanhou a Ada, sua criada, a visitar seu filho Kurt à Clínica Infantil Wannsee, situada à beira do lago homônimo, no extrarradio ocidental do Berlim. Demoraram uma hora em chegar de trem. Carla se tinha acostumado a ir a aquelas visitas vestida com o uniforme de enfermeira, pois o pessoal da clínica falava com maior franqueza sobre o Kurt a uma colega de profissão. No verão, o lago se enchia de famílias com meninos que jogavam na areia e chapinhavam na borda, mas aquele dia logo que havia umas quantas pessoas passeando, bem abrigadas, e um robusto nadador a quem sua esposa esperava nervosa na borda. A clínica, especializada no cuidado de meninos com discapacidades graves, alojava-se em uma antiga mansão cujos salões tinham sido divididos em espaços mais pequenos, pintados de cor verde pálida e mobiliadas com camas de hospital e berços. Kurt tinha já oito anos. Podia caminhar e comer sozinho quase com a mesma autonomia de um menino de dois, mas não sabia falar e seguia levando fraldas. Não tinha dado amostras de melhoria durante anos. Entretanto, era indubitável que se alegrava ao ver a Ada. Irradiava felicidade, resmungava emocionado, estendia os braços para que agarrasse-o, e a abraçava e a beijava. Também reconhecia a Carla. Sempre que o via, ela recordava o aterrador drama de seu nascimento; tinha assistido ao parto enquanto seu irmão Erik ia procurar ao doutor Rothmann. Jogaram com ele durante aproximadamente uma hora. Gostava dos trens e os carros de brinquedo, e também os livros com desenhos de cores vivas. Logo chegou a hora da sesta, e Ada lhe cantou até que dormiu. Quando saíam, uma enfermeira se dirigiu a Ada. —Frau Hempel, me acompanhe ao despacho de herr professor doktor Willrich, por favor. Quer falar com você. Willrich era o diretor da clínica. Carla não o conhecia e acreditava que Ada tampouco. —Há algum problema? —perguntou Ada, nervosa. —Estou segura de que o diretor só quer lhe comentar os progressos do Kurt —respondeu a enfermeira. —Fräulein Von Ulrich virá comigo. À enfermeira não gostou da idéia. —O professor Willrich solo a mencionou a você. Mas Ada podia ser teimosa quando acreditava necessário. —Fräulein Von Ulrich virá comigo —repetiu com firmeza. A enfermeira se encolheu de ombros. —me acompanhem —disse com secura. Precedeu-as até um agradável despacho. Aquela sala não tinha sido dividida. Tinha uma chaminé onde naquele momento ardia carvão e uma janela saliente com vista ao lago Wannsee. Carla viu alguém navegando por ele, sulcando as pequenas ondas contra uma tenaz brisa. Willrich estava sentado ao outro lado de um escritório estofado em couro. Sobre ele havia uma tabaquera e um expositor com pipas de diferentes medidas. Rondava os cinqüenta anos e era alto e de compleição forte. Todas suas facções pareciam grandes: nariz proeminente, mandíbula angulosa, orelhas enormes e cabeça ovalada e calva. Olhou a Ada. —Frau Hempel, suponho —disse. Ada assentiu. Willrich se voltou para a Carla—. E você é fräulein… —Carla von Ulrich, professor. Sou a madrinha do Kurt. Ele arqueou as sobrancelhas. —um pouco jovem para ser madrinha, não lhe parece? —Assistiu ao parto do Kurt! —exclamou Ada com indignação—. Só tinha onze anos, mas o fez melhor que o médico, porque o médico não estava ali! Willrich passou por cima suas palavras e seguiu olhando a Carla. —E, pelo que vejo, tem intenção de ser enfermeira —disse com desdém. Carla levava o uniforme de aprendiz, mas se considerava mais que uma mera aspirante. —Sou enfermeira em práticas —repôs. Não gostava de Willrich. —Sentem-se, por favor. —Abriu uma pasta magra—. Kurt tem oito anos mas logo que alcançou a etapa de desenvolvimento próprio dos dois anos. —Fez uma pausa. Nenhuma delas disse nada—. O progresso não é satisfatório —concluiu. Ada olhou a Carla, que não sabia aonde pretendia chegar o doutor, e o fez saber encolhendo-se de ombros. —Existe um tratamento novo para casos como este. Entretanto, para que Kurt se dele beneficie tem que ser transladado a outro hospital. —Willrich fechou a pasta. Olhou a Ada e, pela primeira vez, sorriu—. Estou seguro de que lhe agrada a idéia de que Kurt se submeta a uma terapia que poderia melhorar sua estado de saúde. A Carla não gostava de seu sorriso, parecia-lhe repulsiva. —Poderia nos dizer algo mais sobre o tratamento, professor? —perguntou. —Temo-me que não alcançaria a entendê-lo —respondeu ele—, embora seja enfermeira em práticas. Carla não tinha intenção de lhe consentir aquilo. —Estou segura de que frau Hempel quererá saber se requerer cirurgia, medicação ou correntes elétricas, por exemplo. —Medicação —disse ele com evidente reticência. —Aonde teria que ir? —perguntou Ada. —O hospital está no Akelberg, na Baviera. Ada não tinha muitos conhecimentos de geografia, e Carla sabia que não podia fazer uma idéia da distância a que se encontrava aquele lugar. —Está a algo mais de trezentos quilômetros daqui —disse. —OH, não! —exclamou Ada—. Como iria visitar o? —Em trem —respondeu Willrich impaciente. —Seriam quatro ou cinco horas de viagem. Provavelmente teria que pernoitar ali. E o que há do custo do bilhete? —Eu não posso me preocupar com essas coisas! —espetou Willrich, irado—. Sou médico, não agente de viagens! Ada estava ao bordo das lágrimas. —Se isso significar que Kurt melhorará, que aprenderá a dizer embora seja umas palavras e que não precisará usar fraldas…, possivelmente um dia poderá voltar para casa. —Exatamente —disse Willrich—. Estava seguro de que deixaria de lado os motivos pessoais e egoístas e de que não o privaria da oportunidade de melhorar. —É isso o que nos está dizendo? —perguntou Carla—. Que Kurt poderia levar uma vida normal? —A medicina não oferece garantias —respondeu ele—. Inclusive uma enfermeira em práticas deveria sabê-lo. Carla tinha aprendido de seus pais a não tolerar as evasivas. —Não lhe peço uma garantia —repôs com secura—. Lhe peço um prognóstico. E o tem, porque do contrário não estaria propondo o tratamento. O homem se ruborizou. —O tratamento é novo. Confiamos em que Kurt melhorará com ele. Isso é o que lhe estou dizendo. —É experimental? —Toda a medicina é experimental. Todas as terapias funcionam com alguns pacientes e com outros não. Deve escutar o que lhe digo: a medicina não oferece garantias. Carla queria enfrentar-se a ele sozinho por sua arrogância, mas compreendeu que não tinha argumentos para contradizê-lo. Além disso, não estava segura de que Ada tivesse alternativa. Os médicos podiam opor-se aos desejos dos pais se a saúde do menino estava em perigo; de fato, podiam fazer o que quisessem. Willrich não estava pedindo permissão a Ada, não tinha a necessidade de fazê-lo. Solo a informava para evitar um escândalo. —Pode lhe dizer a frau Hempel quanto tempo poderia passar até que Kurt voltasse do Akelberg? —perguntou Carla. —Não muito —respondeu Willrich. Não era uma resposta, mas Carla tinha a impressão de que se o pressionava voltaria a irritá-lo. Ada parecia sentir-se impotente. Carla a entendia; também lhe resultava difícil decidir. Não lhes tinham dado suficiente informação. Carla tinha observado que os médicos estavam acostumados a comportar-se desse modo, como se queriam guardar em segredo todos seus conhecimentos. Preferiam enrolar aos pacientes com obviedades e adotar uma atitude defensiva ante suas perguntas. Ada tinha os olhos chorosos. —Bom, se houver alguma possibilidade de que melhore… —Essa é a atitude —disse Willrich. Mas Ada não tinha acabado. —O que opina, Carla? Willrich pareceu indignar-se ao ver que lhe pedia opinião a uma simples enfermeira. —Estou de acordo contigo, Ada. Terá que aproveitar esta oportunidade pelo bem do Kurt, embora seja duro para ti. —Muito sensata —disse Willrich, e ficou em pé—. Obrigado por vir para ver-me. aproximou-se da porta e a abriu. Carla teve a impressão de que desejava livrar-se delas. Saíram da clínica e se dirigiram a pé à estação. Enquanto o trem, quase vazio, ficava em marcha, Carla agarrou um panfleto que alguém tinha deixado em o assento. Sob o cabeçalho Como combater aos nazistas, enumerava dez conselhos para precipitar o fim do regime, começando por ralentizar o ritmo de trabalho. Carla tinha visto outros folhetos similares, embora não muitos. Distribuía-os algum movimento de resistência clandestino. Ada o arrebatou, espremeu-o e o atirou pela janela. —Poderiam te deter por ler essas coisas! —disse. Tinha sido sua babá, e às vezes se comportava como se ainda fora uma cria. A Carla não importavam aqueles arrebatamentos ocasionais, pois sabia que eram fruto do carinho. Entretanto, nessa ocasião Ada não estava reagindo de forma exagerada. Ler panfletos como aquele e inclusive não informar de ter encontrado um eram motivos de encarceramento. Ada poderia ter problemas pelo mero feito de havê-lo arrojado pela janela. Por sorte, foram sozinhas no vagão e ninguém a tinha visto fazê-lo. Ada seguia inquieta pelo que lhe haviam dito na clínica. —Parece-te que temos feito o correto? —perguntou a Carla. —Não estou segura —respondeu Carla com franqueza—, mas acredito que sim. —É enfermeira, entende mais que eu destas coisas. A Carla gostava de ser enfermeira, embora seguia sentindo-se frustrada porque não lhe tivessem permitido estudar para ser médico. Com tantos jovens no exército, a atitude para com as estudantes de medicina tinha trocado e cada vez havia mais mulheres na faculdade de medicina. Carla podia ter tornado a solicitar a beca, mas sua família era tão extremamente pobre que dependia inclusive de seus magros ganhos. Seu pai não tinha trabalho, sua mãe dava classes de piano e Erik enviava a casa quanto podia da atribuição que recebia do exército. A família levava anos sem pagar a Ada. Ada era estóica por natureza, e para quando chegaram a casa começava já a superar o desgosto. Foi à cozinha, ficou o avental e começou a preparar o jantar; a cômoda rotina pareceu consolá-la. Carla não jantaria em casa. Tinha ficado. Tinha a sensação de estar abandonando a Ada em um momento triste para ela, e se sentia algo culpado, mas não o bastante para sacrificar seus planos. ficou um vestido de tênis que lhe chegava pelos joelhos e que tinha confeccionado cortando a prega desfiada de um vestido velho de sua mãe. Não ia a jogar tênis, a não ser a dançar, e sua intenção era parecer norte-americana. pintou-se os lábios, maquiou-se e se escovou o cabelo desafiando a preferência do governo pelas tranças. O espelho lhe devolveu a imagem de uma garota moderna, bonita e com ire desafiador. Sabia que sua confiança em si mesmo e sua moderação afugentavam a muitos meninos. A vezes desejava ser sedutora, além de competente, algo que sua mãe sempre tinha conseguido sem esforço, mas ela não era assim. Fazia muito tempo que tinha deixado de tentar ser cativante; solo o fazia sentir-se tola. Os meninos tinham que aceitá-la como era. A alguns os assustava, mas a outros os atraía, e nas festas estava acostumadas acabar rodeada de vários admiradores. lhe gostavam dos meninos, especialmente quando deixavam de tentar impressionar às pessoas e começavam a falar com normalidade. Seus prediletos eram os que a faziam rir. Até o momento não tinha tido nenhum noivo formal, embora tinha beijado a uns quantos. Acabou de vestir-se com uma jaqueta esportiva de raias que tinha comprado em um posto ambulante de roupa de segunda mão. Sabia que a seus pais não gostaria seu aspecto e que tentariam obrigá-la a trocar-se com o argumento de que era perigoso questionar os prejuízos nazistas, assim tinha que sair da casa sem que a vissem. Seria fácil. Sua mãe estava dando uma aula de piano; Carla ouvia as vacilantes nota de seu aluno. Seu pai estaria lendo o periódico na mesma sala, pois não podiam permitir-se esquentar mais de uma estadia. Erik sempre estava fora, com o exército, embora nesse momento estava destinado perto do Berlim e logo voltaria de licença. abrigou-se com uma gabardina convencional e se guardou os sapatos brancos em um bolso. Baixou ao saguão e abriu a porta da rua. —Adeus! Voltarei logo! —gritou, e saiu a toda pressa. encontrou-se com a Frieda na estação do Friedrichstrasse. Seu amiga ia vestida de um modo similar, com um vestido de raias sob um casaco liso de cor canela, e também levava o cabelo solto; a principal diferencia entre ambas as era que a roupa da Frieda era nova e cara. Na plataforma, dois meninos embelezados com o uniforme das Juventudes Hitlerianas as olharam com uma mescla de reprovação e desejo. desembarcaram do trem no Wedding, um distrito proletário situado no norte do Berlim que tempo atrás tinha sido um baluarte de esquerdas. dirigiram-se à sala Pharus, onde no passado os comunistas tinham pronunciado conferências. Obviamente, já não se levava a cabo nele nenhuma atividade política. Entretanto, o edifício se tinha convertido em sede do movimento denominado Jovens do Balanço. Jovens de entre quinze e vinte e cinco anos começavam a congregar-se já nas ruas vizinhas à sala. Os meninos vestiam jaquetas de quadros e levavam guarda-chuva para parecer ingleses. deixavam-se o cabelo comprido como amostra de seu desprezo pelo exército. As garotas foram muito maquiadas e levavam roupa de sport norte-americana. Todos acreditavam que os adeptos às Juventudes Hitlerianas eram estúpidos e aborrecidos, com sua música folclórica e seus bailes coletivos. A Carla parecia irônico. Quando era pequena, os outros meninos se burlavam dela e a chamavam estrangeira porque sua mãe era inglesa; agora, aqueles mesmos meninos, majores já, consideravam que todo o inglês estava de moda. Carla e Frieda entraram na sala. Os jovens que se reuniram ali eram convencionais e inocentes: garotas com saias vincadas e meninos em calça curta jogando tênis de mesa e bebendo pringosos refrescos de laranja. Mas a ação se encontrava nas salas adjacentes. Frieda se apressou a levar a Carla a uma espécie de trastero grande com cadeiras empilhadas contra as paredes. Ali, seu irmão Werner tinha instalado um toca-discos. Cinqüenta ou sessenta meninos e garotas dançavam o balanço jitterbug. Carla reconheceu a canção que soava: MA, Hei’s Making Eyes at Me. As duas se arrancaram a dançar. Os discos de jazz estavam proibidos porque a maioria dos melhores músicos eram negros. Os nazistas denegriam todos os produtos de qualidade que não houvessem saído de mãos árias, pois supunham uma ameaça para suas teorias sobre a superioridade racial. Infelizmente para eles, aos alemães gostava do jazz tanto como a qualquer. Quem visitava outros países voltavam com discos, que também podiam comprar no Hamburgo a marinheiros norte-americanos. Havia um mercado negro muito ativo. Werner tinha infinidade de discos, por descontado. De fato, tinha-o tudo: um carro, roupa moderna, cigarros, dinheiro. Seguia sendo o menino dos sonhos de Carla, embora ele sempre escolhia a garotas maiores que ela; mulheres, em realidade. Todos davam por feito que se deitava com elas. Carla era virgem. O melhor amigo do Werner, Heinrich von Kessel, aproximou-se em seguida e ficou a dançar com a Frieda. A jaqueta negra e o colete que levava realçavam de forma espetacular seu cabelo comprido. Estava prendado da Frieda. Também gostava dele —desfrutava falando com homens inteligentes—, mas não podia sair com ele porque, como tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos, era muito major. Em seguida um menino ao que Carla não conhecia se aproximou de dançar com ela, de modo que a noite começava bem. Carla se abandonou à música: o irresistível e sensual ritmo da percussão, a lhe sugiram voz do cantor, os estimulantes solos de trompetista, o alegre vôo do clarinete. Dava voltas e patadas ao ar, fazia que sua saia se elevasse de forma escandalosa, deixava-se cair nos braços de seu companheiro e voltava a saltar. Quando levavam ao redor de uma hora dançando, Werner pôs uma canção lenta. Frieda e Heinrich se abraçaram para dançá-la. Carla não viu ninguém que gostasse o suficiente para compartilhar uma lenta, assim saiu e foi procurar uma Coca-cola. Alemanha não estava em guerra com os Estados Unidos, pelo que a Coca-cola se importava e engarrafava na Alemanha. Para sua surpresa, Werner saiu atrás dela depois de deixar a alguém ao cargo da música. A Carla a adulou que o homem mais atrativo da sala queria falar com ela. Comentou-lhe que foram transladar ao Kurt ao Akelberg, e Werner lhe disse que a seu irmão Axel, de quinze anos, também foram levar o ali. Axel tinha nascido com espinho bífida. —Pode funcionar o mesmo tratamento para os dois? —perguntou Werner com a frente enrugada. —Duvido-o, mas a verdade é que não sei —respondeu Carla. —por que os médicos não explicam alguma vez o que fazem? —disse Werner, irritado. Ela riu sem vontades. —Acreditam que se a gente entender de medicina deixarão de venerá-los como a heróis. —O mesmo princípio que o do prestidigitador: o truque resulta mais impressionante se se ignorar como se faz —disse Werner—. Os médicos são igual de egocêntricos que todos. —Inclusive mais —conveio Carla—. Sei por experiência. Falou-lhe do panfleto que tinha lido no trem. —O que opina? —perguntou-lhe Werner. Carla duvidou. Era perigoso falar abertamente sobre esses temas. Mas conhecia o Werner de toda a vida, ele sempre tinha sido de esquerdas e pertencia aos Jovens do Balanço. Podia confiar nele. —Alegra-me que alguém queira combater aos nazistas. Isso demonstra que não todos os alemães estão paralisados pelo medo. —podem-se fazer muitas coisas contra os nazistas —disse ele, pausadamente—. Não só pintá-los lábios. Ela deu por feito que se referia a distribuir essa classe de panfletos. Podia estar dedicando-se a essa atividade? Não, ele desfrutava de muito de sua faceta de sedutor. No caso do Heinrich, mais comprometido e profundo, podia ser diferente. —Não, obrigado —disse—. Me dá muito medo. Acabaram de tomá-la Coca-cola e voltaram para trastero. Encontraram-no a transbordar, sem logo que espaço para dançar. Para surpresa da Carla, Werner lhe pediu o último baile. Pôs Only Forever, do Bing Crosby. Carla se emocionou. Ele a aproximou de si e, mais que dançar, começaram a balançar-se ao ritmo da balada. Ao final, como já era tradição, alguém apagou a luz um minuto para que os casais pudessem beijar-se. Carla se sobressaltou; conhecia o Werner desde que os dois eram meninos, mas sempre se sentou atraída por ele, e nesse momento elevou ansiosa a cara. Tal como tinha esperado, ele a beijou com perícia, e lhe devolveu o beijo extasiada. Para seu deleite, notou como uma mão de lhe apertava meigamente um peito. Lhe convidou a seguir, abrindo a boca. Então voltou a luz e tudo acabou. —Bom —disse ela, sem fôlego—, miúda surpresa. Lhe brindou seu sorriso mais encantador. —Se quer poderia voltar a te surpreender algum dia. II Carla cruzava o saguão caminho da cozinha para tomar o café da manhã quando soou o telefone. Desprendeu-o. —Sim? Ouviu a voz da Frieda. —OH, Carla! Meu irmão pequeno morreu! —O que? —Carla não podia acreditá-lo—. Frieda, sinto-o muito! Onde foi? —Nesse hospital. —Frieda soluçava. Carla recordou que Werner lhe havia dito que tinham enviado ao Axel ao mesmo hospital do Akelberg que Kurt. —Como morreu? —Apendicite. —É terrível. —Carla estava triste por seu amiga, mas sentia certo receio. Tinha tido uma má sensação quando o professor Willrich lhes tinha falado do tratamento para o Kurt fazia um mês. Tinha sido mais experimental do que havia dito? Podia chegar a ser perigoso?—. Sabe algo mais? —Só recebemos uma carta com quatro linhas. Meu pai está furioso. chamou ao hospital, mas não conseguiu falar com os responsáveis. —vou verte. Chegarei em seguida. —Obrigado. Carla pendurou e entrou na cozinha. —Axel Franck morreu nesse hospital do Akelberg —disse. Seu pai, Walter, lia o correio. —OH! —disse—. Pobre Monika. Carla recordou que a mãe do Axel, Monika Franck, tinha estado apaixonada pelo Walter, conforme se contava na família. A expressão de inquietação e dor no rosto do Walter era tão intensa que Carla se perguntou se acaso não sentiria certa ternura pela Monika, em que pese a estar apaixonado pelo Maud. O que complicado era o amor. —Deve estar destroçada —disse a mãe da Carla, que era a melhor amiga da Monika. Walter seguiu revisando o correio. —Há uma carta para a Ada —anunciou com tom de surpresa. A cozinha ficou em silêncio. Carla olhou o sobre branco enquanto Ada o agarrava de mãos do Walter. Ada não recebia muitas cartas. Erik estava naquele casa era o último dia de sua breve permissão—, pelo que havia quatro pessoas olhando a Ada enquanto abria o sobre. Carla estava espectador. Ada tirou uma carta datilografada em uma folha com cabeçalho. Leu-a rapidamente, conteve o fôlego e gritou. —Não! —disse Ada—. Não pode ser! Maud ficou em pé de um salto e abraçou a Ada. Walter agarrou a carta que ainda sustentava Ada e a leu. —OH, Meu deus, é uma desgraça —disse—. Pobrecillo Kurt. —Deixou o papel sobre a mesa do café da manhã. Ada rompeu a chorar. —Meu filhinho, meu querido filhinho, e morreu sem sua mãe… Não suporto pensá-lo! Carla conteve as lágrimas. Estava desconcertada. —Axel e Kurt? —disse—. Ao mesmo tempo? Agarrou a carta. Levava o nome do hospital e sua direção do Akelberg. Dizia: Apreciada senhora Hempel: Lamento lhe informar do triste falecimento de seu filho, Kurt Walter Hempel, de oito anos de idade. Faleceu em 4 de abril neste hospital a conseqüência de uma apendicite. fez-se todo o possível por ele, mas foi em vão. Aceite minhas mais sinceras condolências. Ia assinada pelo diretor. Carla elevou a vista. Ada não deixava de chorar e sua mãe se sentou a seu lado, rodeando-a com um braço e lhe sustentando a mão. Estava afligida, mas mais inteira que Ada. dirigiu-se a seu pai com voz trêmula. —Aqui há algo sujo. —O que te faz pensá-lo? —Volta a ler a carta. —A tendeu—. Apendicite. —E? —Ao Kurt já tinham extirpado o apêndice. —Sim, recordo-o —disse seu pai—. O operaram de urgências, justo depois de cumprir os seis anos. A tristeza da Carla se mesclava com uma angustiosa suspeita. Tinha acabado com a vida do Kurt um perigoso experimento que o hospital tratava agora de encobrir? —por que teriam que mentir? —disse. Erik deu um murro na mesa. —por que diz que mintam? —gritou—. por que sempre tem que acusar ao regime? É evidente que se trata de um engano! Alguma datilógrafa se equivocou ao teclar! Carla não estava segura. —É muito provável que os datilógrafos que trabalham em um hospital saibam o que é o apêndice. —É capaz inclusive de aproveitar esta tragédia pessoal para atacar às autoridades! —lhes cale os dois —interveio seu pai. Ambos o olharam. Havia um matiz diferente em sua voz. —Erik poderia estar no certo —disse—. Em tal caso, o hospital não terá nenhum reparo em responder a nossas perguntas e nos proporcionar mais detalhes da morte do Kurt e Axel. —É obvio que o farão —disse Erik. —E se for Carla quem está no certo —prosseguiu Walter—, tentarão evitar essas perguntas, negarão-se a dar informação e intimidarão aos pais dos meninos insinuando que sua curiosidade é ilegítima. Erik parecia menos cômodo com essa opção. Meia hora antes, seu pai parecia um homem fundo e minguado. Nesse momento, de algum modo, dava a impressão de voltar a encher o traje que levava. —Averiguaremo-lo assim que comecemos a perguntar. —vou ver a Frieda —disse Carla. —Hoje não trabalha? —perguntou sua mãe. —Toca-me o turno de noite. Carla chamou por telefone a Frieda e lhe disse que Kurt também tinha morrido, e que ia a sua casa para falar disso. ficou o casaco, o chapéu e as luvas, e tirou a bicicleta à rua. Estava habituada a pedalar depressa e só demorou um quarto de hora em chegar à vila dos Franck, no Schöneberg. O mordomo a deixou entrar e lhe disse que a família estava reunida no comilão. Assim que entrou, o pai da Frieda, Ludwig Franck, bramou: —O que lhe disseram na Clínica Infantil Wannsee? A Carla não gostava de Ludwig. Era um fanfarrão de direitas e tinha secundado aos nazistas em seus primeiros tempos. Pode que tivesse trocado de parecer —muitos empresários o tinham feito já—, mas dava poucas amostras da humildade que devia prosseguir a um engano de semelhante calibre. Carla não respondeu imediatamente. sentou-se à mesa e olhou à família: Ludwig, Monika, Werner e Frieda, e o mordomo atarefado em um segundo plano. Pôs em ordem seus pensamentos. —Vamos, moça! Responde! —exigiu Ludwig. Tinha na mão uma carta que se parecia muito a da Ada, e a agitava irado. Monika posou uma mão no braço de seu marido para acalmá-lo. —te tranqüilize, Ludi. —Quero sabê-lo! —vociferou ele. Carla observou sua cara rosada e seu fino bigode negro. Viu que a dor o torturava. Em outras circunstâncias, teria se negado a falar com alguém tão grosseiro, mas naquele momento pensou que suas rudes maneiras estavam justificados e decidiu acontecê-los por alto. —O diretor, o professor Willrich, disse-nos que havia um novo tratamento para a enfermidade do Kurt. —O mesmo que nos disse —repôs Ludwig—. Que classe de tratamento? —Isso lhe perguntei. Disse-me que não o entenderia. Insisti e me respondeu que tinha que ver com fármacos, mas não me deu mais informação. Permite-me ver sua carta, herr Franck? O semblante do Ludwig lhe fez saber que era ele quem se acreditava na posição de fazer as perguntas, mas lhe tendeu a carta. Era idêntica a que tinha recebido Ada, e Carla teve a estranha sensação de que o datilógrafo tinha feito várias cópias, trocando sozinho o nome. —Como é possível que dois meninos tenham morrido de apendicite ao mesmo tempo? Não é uma enfermidade contagiosa —disse Franck. —É impossível que Kurt muriese de apendicite porque não tinha apêndice. O extirparam faz dois anos —acrescentou Carla. —Muito bem —disse Ludwig—. Basta de bate-papo. —Arrancou a carta de mãos da Carla—. vou consultar isto com alguém do governo. —E partiu. Monika o seguiu, e também o mordomo. Carla se aproximou da Frieda e tomou a mão. —Sinto-o muito —disse. —Obrigado —sussurrou Frieda. Carla foi até o Werner, que estava em pé e a abraçou. Ela notou uma lágrima na frente. Atendeu-a uma emoção que não teria sabido identificar. Tinha o coração cheio de dor, e entretanto se estremeceu ao sentir o corpo do Werner contra o seu e o delicado tato de suas mãos. Ao cabo de um momento, Werner se apartou. —Meu pai chamou duas vezes ao hospital —disse, aborrecido—. A segunda vez lhe hão dito que não dispunham de mais informação e lhe penduraram. Mas vou averiguar o que ocorreu a meu irmão, e não penso permitir que me tirem de cima. —Averiguá-lo não nos devolverá —disse isso Frieda. —Mesmo assim, quero sabê-lo. Se for preciso, irei ao Akelberg. —Talvez haja alguém no Berlim que possa nos ajudar —disse Carla. —Teria que ser alguém do governo —repôs Werner. —O pai do Heinrich trabalha para o governo —atravessou Frieda. Werner estalou os dedos. —Isso. Antes militaba na Partida de Centro, mas agora é nazista, e uma figura de peso no Ministério de Assuntos Exteriores. —Heinrich nos levaria a lhe ver? —perguntou Carla. —Fará-o se Frieda o pede —respondeu Werner—. Heinrich faria algo pela Frieda. Carla estava segura. Heinrich sempre se mostrou muito comprometido com tudo o que fazia. —vou chamar lhe —disse Frieda. Saiu ao saguão, e Carla e Werner se sentaram o um ao lado do outro. Ele a rodeou com um braço e ela recostou a cabeça em seu ombro. Não sabia se aquelas amostras de afeto eram sozinho fruto da tragédia ou significavam algo mais. Frieda voltou para salão. —O pai do Heinrich nos receberá se formos agora mesmo —disse. Os três subiram ao carro esportivo do Werner, apertando-se no assento dianteiro. —Não entendo como consegue seguir utilizando o carro —disse Frieda enquanto ficavam em caminho—. Nem sequer papai consegue gasolina para uso particular. —Digo a meu chefe que a necessito para tarefas oficiais —respondeu ele. Werner trabalhava para um importante general—. Mas não sei quanto tempo seguirá penetrando. A família Von Kessel vivia na mesma zona residencial. Chegaram em cinco minutos. A casa era luxuosa, embora mais pequena que a dos Franck. Heinrich os recebeu na entrada e os acompanhou a um salão no qual havia livros encadernados em couro e uma talha alemã antiga de uma águia. Frieda o beijou. —Obrigado por fazer isto —disse—. Certamente não foi fácil… Sei que não te leva muito bem com seu pai. Ao Heinrich lhe iluminou a cara. Sua mãe lhes levou café e bolo. Parecia uma mulher cálida e simples. Quando lhes teve servido, partiu, como se fosse uma criada. O pai do Heinrich, Gottfried, entrou nesse momento. Tinha o cabelo hirsuto, como ele, mas prateado em lugar de negro. —Papai, apresento ao Werner e Frieda Franck; seu pai fabrica rádios do povo —disse Heinrich. —Ah, sim —respondeu Gottfried—. Vi a seu pai no Herrenklub. —E esta é Carla von Ulrich. Acredito que também conhece seu pai. —Trabalhamos juntos na embaixada alemã em Londres —repôs Gottfried com Isso cautela foi em 1914. Era evidente que lhe incomodava que lhe recordassem sua relação com um socialdemócrata. Agarrou uma porção de bolo e lhe caiu torpemente sobre o tapete e, depois de tentar recolher sem êxito os miolos, abandonou o esforço e se sentou. Do que tem medo?, pensou Carla. Heinrich abordou diretamente o motivo da visita. —Papai, suponho que ouviste falar do Akelberg. Carla observava com atenção a aquele homem. Um brilho fugaz se refletiu em seu rosto, mas Gottfried adotou imediatamente um ar de indiferença. —A pequena cidade da Baviera? —perguntou. —Ali há um hospital —prosseguiu Heinrich— para discapacitados. —Acredito que isso não sabia. —Suspeitamos que está ocorrendo algo estranho no centro e pensávamos que igual você saberia algo a respeito. —A verdade é que não. O que criem que está acontecendo? —Meu irmão morreu ali, teoricamente de apendicite —interveio Werner—. O filho da criada de herr Von Ulrich morreu ao mesmo tempo, no mesmo hospital e pela mesma causa. —Muito triste…, embora sem dúvida se trata de uma coincidência. —O filho de minha criada não tinha apêndice —disse Carla—. O tinham extirpado faz dois anos. —Compreendo seu interesse por conhecer a verdade —repôs Gottfried—. É uma situação desconcertante. Não obstante, a explicação mais provável é que se trate de um engano de transcrição. —Em tal caso, nós gostaríamos de nos certificar —disse Werner. —É obvio. Têm escrito ao hospital? —Eu o fiz para perguntar quando poderia minha criada visitar seu filho. Não me responderam —disse Carla. —Meu pai chamou por telefone esta manhã —atravessou Werner—. O diretor lhe pendurou sem mais. —Vá Por Deus, que falta de educação. Mas, como sabem, não é algo que compita ao Ministério de Assuntos Exteriores. Werner se inclinou para diante. —Herr Von Kessel, é possível que os dois meninos estivessem participando de um experimento secreto que saísse mau? Gottfried se reclinou contra o respaldo da cadeira. —Absolutamente —respondeu, e Carla teve a sensação de que dizia a verdade—. É do todo impossível. —Parecia aliviado. Werner dava a impressão de haver ficado sem perguntas, mas Carla não estava convencida. Sentia saudades que Gottfried parecesse tão satisfeito com a terminante afirmação que acabava de fazer. Estaria ocultando algo pior? de repente a assaltou uma possibilidade tão atroz que logo que suportava considerá-la. —Bem, se isso for tudo… —disse Gottfried. —Está completamente seguro, senhor, de que não morreram a conseqüência de uma terapia experimental faltada? —perguntou Carla. —Completamente. —Para saber com tanta certeza que não é verdade, deve ter conhecimento do que se está fazendo no Akelberg. —Não necessariamente —respondeu ele, embora voltou a parecer tenso, e Carla soube que tinha chegado a algo. —Uma vez vi um pôster nazista —prosseguiu ela. Foi esse recordo o que lhe fez expor-se algo—. Nele se via um enfermeiro e a um homem discapacitado mental. O texto dizia algo como: Sessenta mil Marcos imperiais é o que esta pessoa que sofre uma deficiência hereditária lhe custa ao povo ao longo de sua vida. Compatriota, também é seu dinheiro!. Acredito que era um anúncio de uma revista. —Vi essa classe de propaganda —disse Gottfried com ar desdenhoso, como se não tivesse nada que ver com ele. Carla ficou em pé. —Você é católico, herr Von Kessel, e educou ao Heinrich na fé católica. Gottfried emitiu um som depreciativo. —Heinrich agora diz que é ateu. —Mas você não é, e acredita que a vida humana é sagrada. —Sim. —Você diz que os médicos do Akelberg não estão provando terapias novas e perigosas com pessoas discapacitadas e eu lhe acredito. —Obrigado. —Mas estão fazendo alguma outra coisa? Algo pior? —Não, não. —Estão matando deliberadamente aos discapacitados? Gottfried negou com a cabeça em silêncio. Carla se aproximou um pouco mais a ele e baixou a voz, como se estivessem sozinhos no salão. —Como católico que acredita que a vida humana é sagrada, estaria disposto a me dizer com a mão no coração que no Akelberg não estão matando aos meninos que sofrem enfermidades mentais? Gottfried sorriu, fez um gesto tranqüilizador e abriu a boca para falar, mas foi incapaz de pronunciar nenhuma só palavra. Carla se ajoelhou no tapete, frente a ele. —Fará-o, por favor, agora mesmo? Aqui tem a quatro jovens alemães, seu filho e três amigos. Tão solo nos diga a verdade. me olhe aos olhos e diga que nosso governo não está matando a meninos discapacitados. O silêncio se apoderou do salão. Gottfried parecia a ponto de falar, mas trocou de opinião. Fechou os olhos com força, contraiu a boca em uma careta e agachou a cabeça. Os quatro observavam suas caretas com perplexidade. Ao cabo abriu os olhos. Olhou-os um por um, e finalmente seu olhar se cravou em seu filho. Logo se levantou e abandonou o salão. III —É horrível —disse Werner a Carla ao dia seguinte—. Levamos vinte e quatro horas falando do mesmo. Se não fazermos outra coisa nos voltaremos loucos. Vamos a ver um filme. Foram ao Kurfürstendamm, uma rua de cinemas e lojas conhecida como Ku’damm. Fazia anos que a maioria dos diretores alemães de filmes de qualidade se haviam ido a Hollywood, e as produções nacionais eram de segunda fila. Viram Três soldados, ambientada na invasão da França. Os três soldados eram um sargento nazista, um homem quejica e chorão com certo ar de judeu e um jovem fervoroso. O jovem expor perguntas ingênuas do tipo: Na verdade nos prejudicam de algum modo os judeus?, e o sargento lhe oferecia largas peroratas a modo de resposta. Ao entrar em combate, o quejica admitia ser comunista, desertava e morria em um ataque aéreo. O jovem fervoroso lutava com coragem, era subido a sargento e acabava admirando ao Führer. Pese ao nefasto guia, as cenas de batalhas eram emocionantes. Werner sustentou a mão da Carla de princípio a fim. Ela esperava que a beijasse na escuridão, mas não o fez. —Bom, é muito mau, mas ao menos me distraiu durante um par de horas —disse ele quando se acenderam as luzes. Saíram e se dirigiram a seu carro. —Damos um passeio? —propôs Werner—. Poderia ser nossa última oportunidade. A semana que vem este carro irá ao desmantelamento. Puseram rumo ao Grunewald. Pelo caminho, os pensamentos da Carla retornaram indevidamente à conversação do dia anterior com o Gottfried von Kessel. Por muito que a reproduje mentalmente, não conseguia evitar a terrível conclusão a que os quatro tinham acabado chegando. Gottfried o tinha negado tudo de modo convincente. Mas não tinha sido capaz de negar que o governo estivesse matando deliberadamente aos discapacitados e mentindo às famílias. Resultava difícil de acreditar, inclusive tratando-se de seres tão desumanos e cruéis como os nazistas. Entretanto, a resposta do Gottfried tinha sido o exemplo mais claro de sentimento de culpabilidade que jamais tinha presenciado Carla. Quando se encontravam já no bosque, Werner deixou a estrada e enfiou por uma pista até que os arbustos ocultaram o carro. Carla supôs que tinha levado ali a outras garotas para as beijar. Werner apagou as luzes, e ficaram sumidos na mais densa penumbra. —vou falar com o general Dorn —disse ele. Dorn era seu chefe, um importante oficial das Forças Aéreas—. O que vais fazer você? —Meu pai diz que já não fica oposição política, mas as Iglesias seguem sendo fortes. Ninguém que seja conseqüente com suas crenças religiosas poderia tolerar o que se está fazendo. —É religiosa? —perguntou Werner. —Não exatamente. Meu pai sim. Para ele, a fé protestante forma parte do patrimônio alemão que tanto adora. Minha mãe o acompanha à igreja, embora suspeite que sua teologia é pouco ortodoxa. Eu acredito em Deus, mas não acredito que Lhe importe que a gente seja protestante, católica, muçulmana ou budista. E eu gosto de cantar hinos. A voz do Werner se reduziu a um sussurro. —Eu não posso acreditar em um Deus que permite que os nazistas matem a meninos. —Não te culpo. —O que vai fazer seu pai? —Falará com o pastor de nossa igreja. —Bem. Guardaram silêncio um momento. Ele a rodeou com um braço. —Você molesta? —perguntou-lhe com um fio de voz. Ela estava tensa e espectador pelo que estava a ponto de acontecer, e parecia lhe fraquejar a voz. Sua resposta brotou em forma de grunhido. Voltou a tentá-lo e ao fim conseguiu dizer: —Se fizer que deixe de te sentir triste…, não. Ele a beijou. Lhe devolveu o beijo com ânsia. Lhe acariciou o cabelo, e depois os seios. Carla sabia que muitas garotas paravam ao chegar a esse ponto. Diziam que se uma ia mais à frente perdia o controle. Decidiu arriscar-se. Acariciou-lhe uma bochecha enquanto ele a beijava. Acariciou-lhe o pescoço com a gema dos dedos, desfrutando da calidez de sua pele. Introduziu uma mão sob seu jaqueta e explorou seu corpo: os omoplatas, as costelas, as costas. Ela suspirou ao notar sua mão em uma coxa, debaixo da saia. Quando a mão se deslizou ao interior de suas coxas, separou os joelhos. Todas seus amigas diziam que poderiam considerá-la uma garota fácil por fazer isso, mas foi incapaz de resistir. Ele a tocou no lugar preciso. Não tentou introduzir a mão pela roupa interior, mas sim a acariciou com delicadeza através do algodão. Ela se surpreendeu emitindo sons guturais, fracos ao princípio mas cada vez mais intensos. Acabou gritando de prazer, afundando a cara em seu pescoço para amortecer sua voz, e ao final teve que retirar a mão do Werner porque se sentia muito sensível. Ofegava. Quando começou a recuperar o fôlego, ele a beijou no pescoço e lhe acariciou a cara com ternura. —Posso te fazer eu algo? —perguntou-lhe ela um minuto depois. —Só se quiser. Carla se sentiu sobressaltada ao compreender quanto o desejava. —É que…, eu nunca… —Sei —disse ele—. Eu te ensinarei. IV O pastor Ochs era um clérigo corpulento e afável; vivia em uma casa grande e tinha uma agradável algema e cinco filhos, e Carla temia que se negasse a implicar-se naquilo. Mas o subestimava. O homem já tinha ouvido rumores que afligiam sua consciência e acessou a acompanhar ao Walter à Clínica Infantil Wannsee. O professor Willrich dificilmente poderia lhe negar uma visita a um clérigo. Decidiram levar a Carla com eles porque tinha presenciado a entrevista da Ada com o diretor, a quem lhe resultaria mais difícil trocar de versão em sua presença. No trem, Ochs propôs que fora ele quem falasse. —É provável que o diretor seja nazista —disse. A maioria de quem ocupava cargos de responsabilidade naquele momento eram membros da partida—. Naturalmente, considerará um inimigo a um antigo deputado socialdemócrata. Representarei o papel de árbitro imparcial. Acredito que assim averiguaremos mais. Carla não estava segura. Acreditava que seu pai tinha mais experiência interrogando, mas Walter aceitou a sugestão do pastor. Era primavera, e fazia mais calor que na anterior visita da Carla. No lago havia barcos. Carla pensou que proporia ao Werner ir ali de picnic. Queria desfrutar dele quanto pudesse antes de que se interessasse por outra garota. O professor Willrich tinha a chaminé acesa, embora uma das janelas de seu escritório estava aberta e deixava entrar a fresca brisa procedente do lago. O diretor estreitou a mão do pastor Ochs e do Walter. Dirigiu a Carla um fugaz olhar a modo de saudação e ato seguido deixou de lhe emprestar atenção. Convidou-os a sentar-se, mas Carla advertiu que sua cortesia superficial escondia uma furiosa hostilidade. Era óbvio que não gostava que o interrogassem. Agarrou uma de suas pipas e brincou nervoso com ela. Aquele dia parecia menos arrogante, confrontado a dois homens amadurecidos em lugar da duas mulheres jovens. Ochs iniciou a conversação. —Professor Willrich, herr Von Ulrich e outras pessoas de minha congregação estão consternadas pela morte em circunstâncias misteriosas de vários meninos discapacitados aos que conheciam. —Aqui não morreu nenhum menino em circunstâncias misteriosas —lhe espetou Willrich—. De fato, aqui não morreu nenhum menino nos últimos dois anos. Ochs se voltou para o Walter. —Um pouco muito tranqüilizador, não lhe parece? —Sim —respondeu Walter. A Carla não o parecia, mas no momento decidiu guardar silêncio. —Estou seguro de que aqui procuram os melhores cuidados a seus pacientes —prosseguiu Ochs com afetação. —Sim. —Willrich parecia algo menos nervoso. —Mas transladam a meninos a outros hospitais. —É obvio, se outra instituição pode lhes oferecer um tratamento do que aqui não dispomos. —E, quando se translada a um menino, suponho que depois não acostumam a mantê-lo informado do tratamento que lhe aplicam ou de seu estado. —Exato! —A menos que retorne. Willrich não disse nada. —retornou algum? —Não. Ochs se encolheu de ombros. —Então é impossível que você saiba o que foi deles. —Certo. Ochs se recostou na cadeira e abriu as mãos em um gesto de franqueza. —Então, você não tem nada que ocultar! —Nada absolutamente. —Alguns dos meninos transladados morreram. Willrich não disse nada. Ochs insistiu sutilmente. —Isso é verdade, não? —Não posso lhe responder com total segurança, herr pastor. —Ah! —exclamou Ochs—. Porque não lhe informariam sequer no caso de que algum desses meninos muriese. —Como já comentamos. —Desculpe-me se me repito, mas simplesmente queria deixar de tudo claro que você não pode arrojar luz sobre essas mortes. —Absolutamente. Ochs se voltou de novo para o Walter. —Acredito que estamos esclarecendo coisas muito depressa. Walter assentiu. Carla sentiu o impulso de dizer: Não esclarecemos nada!. Mas Ochs voltou a falar. —Aproximadamente, quantos meninos transladou em, digamos, os últimos doze meses? —Dez —respondeu Willrich—. Exatamente. —Sorriu com suficiência—. Os cientistas preferem evitar as aproximações. —Dez pacientes… de quantos? —Hoje temos cento e sete. —Uma proporção mínima! —disse Ochs. Carla se enfurecia por momentos. Era evidente que Ochs estava do lado do Willrich! por que consentia aquilo seu pai? —E esses meninos, padeciam a mesma enfermidade ou diferentes doenças? —Diferentes. —Willrich abriu uma pasta que tinha sobre o escritório e leu—: Idiocia, síndrome do Down, microcefalia, hidrocefalia, má formações das extremidades, a cabeça e o espinho dorsal, e paralisia. —Esses são os casos que tem ordem de enviar ao Akelberg. Ao fim um salto. Era a primeira menção que se fazia do Akelberg, e a primeira insinuação de que Willrich recebia ordens de uma autoridade superior. Talvez Ochs fora mais sutil do que parecia. Willrich abriu a boca para dizer algo, mas Ochs lhe adiantou com outra pergunta. —Todos os meninos que enviou ali foram receber o mesmo tratamento especial? Willrich sorriu. —Repito-lhe que não me informaram e que, por conseguinte, não posso lhe responder. —Você se limitou a cumprir… —Ordens, sim. Ochs sorriu. —É você um homem judicioso. Escolhe as palavras com cuidado. Tinham os meninos diferentes idades? —Em um princípio, o programa estava restringido a meninos menores de três anos, mas mais tarde se ampliou para que se beneficiassem outros, de diferentes idades, sim. Carla reparou na palavra programa, algo que não se admitiu até o momento. Começou a cair na conta de que Ochs era mais ardiloso do que dava a entender. O pastor pronunciou sua seguinte frase como confirmando algo que já se afirmou. —E todos os meninos discapacitados judeus também estavam incluídos, à margem da enfermidade que padecessem. —Houve um momento de silêncio. Willrich parecia surpreso. Carla se perguntou como saberia Ochs o dos meninos judeus. Talvez não soubesse, talvez solo estivesse especulando—. Os meninos judeus e os de raça mista, deveria haver dito —acrescentou Ochs depois de uma pausa. Por toda resposta, Willrich assentiu levemente. —Hoje em dia não é muito habitual que os meninos judeus tenham algum tipo preferivelmente, não lhe parece? Willrich apartou o olhar. O pastor ficou em pé e, quando voltou a falar, sua voz brotou transbordante de ira. —Há-me dito que dez meninos afligidos de diferentes enfermidades e que, portanto, era impossível que pudessem beneficiar do mesmo tratamento foram enviados a um hospital especial do que nunca retornaram, e que os judeus tinham prioridade. O que você crie que foi deles, herr professor doktor Willrich? Pelo amor de Deus!, o que você crie que foi deles? Willrich dava a impressão de estar a ponto de chorar. —Pode guardar silêncio, é obvio —disse Ochs algo mais acalmado—, mas algum dia uma autoridade superior lhe fará esta mesma pergunta, em realidade, a mais elevada de todas as autoridades. Alargou um braço e o assinalou com um dedo acusador. —E esse dia, meu filho, responderá. Dito isto, deu-se meia volta para sair do despacho. Carla e Walter o seguiram. V O inspetor Thomas Macke sorriu. Às vezes, os inimigos do Estado lhe faziam o trabalho. Em lugar de operar em segredo e ocultar-se em sítios onde fosse difícil encontrá-los, identificavam-se ante ele e lhe proporcionavam generosamente prova irrefutáveis de seus delitos. Eram como peixes com os que não era necessário utilizar ceva e anzol mas sim saltavam da água diretas à cesta do pescador e suplicavam que os fritassem. O pastor Ochs era um deles. Macke voltou a ler sua carta. Ia dirigida ao ministro da Justiça, Franz Gürtner. Apreciado ministro: Está o governo matando a meninos discapacitados? O pergunto de uma forma tão direta porque necessito uma resposta simples e concisa. Que insensato! Se a resposta era Não, aquilo era uma difamação; se era Sim, Ochs seria culpado de desvelar secretos de Estado. Acaso não era capaz de chegar ele sozinho a essa conclusão? Frente à impossibilidade de seguir passando por cima os rumores que circulavam em minha congregação, visitei a Clínica Infantil Wannsee e falei com seu diretor, o professor Willrich. Suas respostas foram tão pouco convincentes que cheguei à conclusão de que algo terrível está ocorrendo ali, algo que poderia ser um crime e que sem dúvida é um pecado. Aquele homem tinha a falta de vergonha de escrever sobre crímenes! Não lhe tinha passado pela cabeça que acusar às agências governamentais de atos ilegais era em si um ato ilegal? Imaginava que estava vivendo em uma democracia liberal degenerada? Macke tinha sabor do que se referia Ochs. O programa se chamava Aktion T4 pelo lugar onde se levava a cabo, o número 4 do Tiergartenstrasse. A agência era oficialmente a Fundação Geral para o Bem-estar e o Cuidado Institucional, embora estava fiscalizada pelo despacho pessoal do Hitler, a Chancelaria do Führer. Sua função consistia em planejar a morte sem dor de pessoas discapacitadas que não poderiam sobreviver sem uns custosos cuidados. Fazia um trabalho esplêndido em os dois anos anteriores, desfazendo-se de dezenas de milhares de pessoas inúteis. O problema era que a opinião pública alemã não era ainda o bastante evoluída para compreender a necessidade de tais mortes, pelo que era preciso manter o programa em segredo. Macke participava dele. Tinha sido subido a inspetor e finalmente admitido na élite paramilitar da Partida Nazista, as Schutzstaffel, as SS. Lhe havia informado sobre o Aktion T4 quando lhe atribuíram o caso Ochs. sentia-se orgulhoso; agora já se encontrava no coração do regime. Por desgraça, algumas pessoas tinham sido imprudentes e o segredo do Aktion T4 corria perigo de sair à luz. A responsabilidade do Macke era soldar a fuga. Graças a umas pesquisas preliminares, em seguida se soube que havia três homens a quem era preciso silenciar: o pastor Ochs, Walter von Ulrich e Werner Franck. Franck era o primogênito de um fabricante de rádios e um proeminente defensor dos nazistas nos inícios do movimento. O próprio fabricante, Ludwig Franck, havia exigido informação sobre a morte de seu filho menor, discapacitado, mas depois da ameaça de fechar suas fábricas tinha guardado silêncio. O jovem Werner, um oficial do Ministério do Ar com uma carreira fulgurante, tinha seguido fazendo incômodas perguntas com a intenção de implicar a seu influente chefe, o general Dorn. O Ministério do Ar tinha sua sede no edifício considerado o maior da Europa; ocupava toda uma maçã da Wilhelmstrasse e se encontrava à volta da esquina dos quartéis gerais da Gestapo, no Prinz-Albrecht-Strasse. Macke foi ali a pé. Embelezado com o uniforme das SS pôde entrar sem deter-se ante os guardas. —Quero ver a tenente Werner Franck imediatamente —bramou ao chegar ao mostrador de recepção. A recepcionista o acompanhou no elevador e depois por um corredor até uma porta aberta que dava a um pequeno despacho. O jovem sentado ao escritório não elevou o olhar dos documentos que tinha frente a sim. Observando-o, Macke supôs que teria uns vinte e dois anos. por que não se encontrava em primeira linha do frente, bombardeando a Inglaterra? Provavelmente, seu pai teria movido fios, pensou Macke, ressentido. Werner parecia o típico filho privilegiado: uniforme entalhado, anéis de ouro e cabelo muito comprido, algo contrário aos patrões militares. Macke sentiu um desprezo imediato para ele. Werner redigiu uma nota a lápis e o olhou. A expressão cordial de seu rosto desapareceu assim que viu o uniforme das SS, e Macke advertiu, agradado, um brilho de temor. O moço tratou de adotar um ar de afabilidade, ficando em pé com deferência e esboçando um sorriso de bem-vinda, mas Macke não se deixou enganar. —Boa tarde, inspetor —o saudou Werner—. Sinta-se, por favor. —Heil Hitler —disse Macke. —Heil Hitler. No que posso lhe ajudar? —Sente-se e fecha a boca, niñato estúpido —lhe espetou Macke. Werner tentou ocultar o medo que o atendeu imediatamente. —Céu santo, o que posso ter feito para despertar semelhante ira? —Não te atreva a me perguntar nada. Fala só quando te pedir que o faça. —Como desejo. —A partir deste momento não voltará a fazer perguntas sobre seu irmão Axel. Ao Macke surpreendeu apreciar um fugaz olhar de alívio no rosto do Werner. Pareceu-lhe desconcertante. Acaso temia alguma outra coisa, um pouco mais aterrador que a mera ordem de deixar de fazer perguntas sobre seu irmão? Podia estar Werner comprometido em outras atividades subversivas? Certamente não, pensou Macke detrás meditá-lo. O mais provável era que ao Werner aliviasse que não o detivessem e o levassem a porão do Prinz-Albrecht-Strasse. Werner ainda não estava de tudo intimidado e se armou de valor. —por que não deveria perguntar como morreu meu irmão? —inquiriu. —Já te hei dito que não me faça perguntas. Deve saber que solo te trata com amabilidade porque seu pai foi um prezado amigo da Partida Nazista. Desde não ser assim, seria você quem estaria em meu escritório. —Era uma ameaça que todo mundo entendia. —Agradeço-lhe sua paciência —disse Werner, esforçando-se por conservar um ápice de dignidade—, mas quero saber quem matou a meu irmão, e por que. —Não saberá nada mais, à margem do que faça, mas qualquer indagação por sua parte se considerará traição. —Não precisarei fazer muitas mais indagações, depois de sua visita. Agora já está claro que meus piores suspeita eram certas. —Exijo-te que ponha fim a sua atitude sediciosa imediatamente. Werner o olhava desafiante, mas guardou silêncio. —Se não o fizer, o general Dorn será informado que sua lealdade está em dúvida —o ameaçou Macke. Werner sabia perfeitamente a que se referia. Perderia seu plácido emprego no Berlim e seria enviado aos barracões de algum aeródromo no norte da França. Werner parecia menos desafiante, mais reflexivo. Macke ficou em pé. Já levava muito tempo ali. —Ao parecer, o general Dorn te considera um ajudante capaz e inteligente —disse—. Se fizer o correto, talvez conserve essa imagem. —Saiu do despacho. sentia-se crispado e algo insatisfeito. Não estava seguro de ter conseguido dobrar a vontade do Werner. Tinha percebido nele uma atitude desafiante que permanecia intacta. Centrou seus pensamentos no pastor Ochs. A ele teria que abordar o de um modo diferente. Macke retornou ao quartel geral da Gestapo e reuniu a um reduzido grupo: Reinhold Wagner, Klaus Richter e Günther Schneider. Os quatro subiram a um Mercedes 260D negro, o automóvel predileto da Gestapo que passava inadvertido com facilidade, pois muitos táxis do Berlim eram do mesmo modelo e cor. Em um princípio, a Gestapo tinha instruções de atuar à vista de todo o mundo para dar amostra da brutalidade com que repreendia qualquer classe de oposição. Entretanto, fazia tempo que o povo alemão vivia aterrorizado e já não era necessário que a violência fosse visível. Naquele momento a Gestapo atuava com discrição, sempre sob uma capa de legalidade. Foram a casa do Ochs, situada junto à grande igreja protestante do Mitte, no distrito central. Do mesmo modo que Werner podia acreditar que estava protegido por seu pai, Ochs provavelmente imaginava que sua igreja lhe brindava segurança. Estava a ponto de saber que não era assim. Macke chamou o timbre; tempo antes, teriam derrubado a porta a patadas, solo por efectismo. Uma criada abriu a porta, e Macke acessou a um saguão amplo e bem iluminado, com o estou acostumado a gentil e robustos tapetes. Os outros três o seguiram. —Onde está seu patrão? —perguntou-lhe Macke à criada com voz afável. Não a tinha ameaçado, mas mesmo assim a mulher estava assustada. —Em seu estudo, senhor —respondeu, e assinalou a porta. —Reúne às mulheres e aos homens na sala do lado —disse Macke ao Wagner. Ochs abriu a porta do estudo e olhou para o saguão com gesto de aborrecimento. —pode-se saber o que está passando? —perguntou, indignado. Macke se encaminhou para ele com decisão, o qual obrigou ao Ochs a retroceder, e entrou no estudo. Era um quarto pequeno e ordenado, com um escritório estofado em couro e estanterías repletas de ensaios bíblicos. —Fechamento a porta —disse Macke. Ochs lhe obedeceu, reticente. —Será melhor que tenha uma boa explicação a esta intrusão —disse. —Sinta-se e fechamento a boca —espetou Macke. Ochs estava atônito. Provavelmente não lhe tinham mandado calar desde que era menino. Os clérigos não estavam acostumados a receber insultos, nem sequer da polícia, mas os nazistas não faziam caso desses convencionalismos debilitadores. —Isto é um ultraje! —conseguiu proferir Ochs ao cabo, antes de sentar-se. Fora do despacho se ouviram os protestos de uma mulher; com toda probabilidade era sua esposa. Ochs empalideceu para ouvi-la e se levantou da cadeira. Macke o sentou de um empurrão. —Fique onde está. Ochs era um homem corpulento e mais alto que Macke, mas não opôs resistência. Ao Macke deleitava ver como o medo baixava as fumaças a tipos pedantes como aquele. —Quem é você? —perguntou Ochs. Macke não o disse. Sempre podiam supô-lo, claro está, mas a situação resultava mais aterradora se não estavam seguros de tudo. Depois, no improvável caso de que alguém fizesse perguntas, a equipe ao completo juraria que tinham começado identificando-se como agentes da polícia e mostrando seus distintivos. Saiu. Seus homens apressavam a vários meninos para o salão. Macke disse ao Reinhold Wagner que entrasse no estudo e retivesse ali ao Ochs. Logo seguiu aos meninos até o salão. A estadia estava decorada com cortinas de flores, fotografias da família sobre o suporte da chaminé e um jogo de cômodas cadeiras atapetadas com tecido de quadros. Era um lar agradável, e era uma família agradável. por que não podiam ser leais ao Reich e preocupar-se solo por seus assuntos? A criada estava junto à janela, tampando-a boca com uma mão para não gritar. Quatro meninos se apinhavam ao redor da esposa do Ochs, uma mulher simples de trinta e tantos anos e grandes seios. Sustentava a sua quinta filha em braços, uma menina de uns dois anos com saca-rolhas loiros. Macke lhe deu uns tapinhas na cabeça. —E como se chama esta? —perguntou. Frau Ochs estava aterrada. —Lieselotte —sussurrou—. O que quer de nós? —Vêem com o tio Thomas, pequena Lieselotte —disse Macke estendendo os braços. —Não! —gritou frau Ochs. Estreitou à menina contra si e se deu meia volta. Lieselotte rompeu a chorar. Macke fez um gesto afirmativo em direção ao Klaus Richter. Richter agarrou a frau Ochs por detrás e atirou de seus braços, obrigando a soltar à menina. Macke agarrou ao Lieselotte antes de que caísse ao chão. A menina se retorcia como um peixe, mas ele a sujeitou com força, como teria sujeito a um gato. A pequena gritou com maior desespero. Um menino de uns doze anos se equilibrou contra Macke e lhe golpeou com seus pequenos punhos. Macke decidiu que já era hora de que aprendesse a respeitar à autoridade. colocou-se ao Lieselotte sobre o quadril esquerda e com a mão direita agarrou ao menino pelo peitilho da camisa e o lançou ao outro lado do salão, assegurando-se de que cairia sobre uma cadeira atapetada. O pequeno soltou um chiado de medo, e frau Ochs também gritou. A cadeira se derrubou e o menino caiu ao chão. Não se havia feito mal, mas rompeu a chorar. Macke se levou ao Lieselotte ao saguão. A pequena reclamava a sua mãe com gritos dilaceradores. Macke a deixou no chão. A menina correu até a porta do salão e a esmurrou, chiando de terror. Macke observou que ainda não tinha aprendido a acionar os cabos das portas. Deixou à menina no saguão e entrou no estudo. Wagner se encontrava junto à porta, fazendo guarda; Ochs estava em pé no centro da sala, pálido de medo. —O que estão fazendo a meus filhos? —perguntou—. por que grita Lieselotte? —Vai você a escrever uma carta —disse Macke. —Sim, sim, o que seja —repôs Ochs dirigindo-se ao escritório. —Agora não, mais tarde. —De acordo. Macke estava desfrutando. Ochs se tinha derrubado por completo, a diferença do Werner. —Uma carta ao ministro da Justiça —prosseguiu. —De modo que se trata disso. —Dirá-lhe que averiguou que não há nada certo nas alegações que fez em sua primeira carta. Que uns comunistas clandestinos o tinham enganado. Desculpará-se ao ministro pelas moléstias que lhe causaram seus imprudentes atos e lhe assegurará que não voltará a falar do assunto com ninguém. —Sim, sim, farei-o. O que lhe estão fazendo a minha esposa? —Nada. Grita pelo que lhe ocorrerá se você não escreve essa carta. —Quero vê-la. —Será pior para ela se me chatear com petições estúpidas. —É obvio. Sinto muito. Rogo-lhe que me desculpe. Os oponentes ao nazismo eram tão débeis… —Escriba a carta esta noite e envie-a pela manhã. —Sim. Devo lhe enviar uma cópia a você? —Chegará para mim de todos os modos, idiota. Acredita que o ministro lê em pessoa seus ganchos de ferro? —Não, não, claro que não, entendo-o. Macke se encaminhou à porta. —E mantenha-se afastado de pessoas como Walter von Ulrich. —Farei-o, o prometo. Macke saiu e indicou com gestos ao Wagner que o seguisse. Lieselotte estava sentada no estou acostumado a gritando, presa da histeria. Macke abriu a porta do salão e chamou o Richter e ao Schneider. Os quatro saíram da casa. —Às vezes a violência é certamente desnecessária —disse Macke com ar reflexivo enquanto subiam ao carro. Wagner ficou ao volante e Macke lhe deu a direção dos Von Ulrich. —E, entretanto, às vezes é o método mais singelo —acrescentou. Von Ulrich vivia perto da igreja. Sua casa era uma edificação antiga e espaçosa cuja manutenção, saltava à vista, não podia costear. A pintura começava a descascar-se, os passamanes estavam oxidados e um cartão ocupava o lugar de um vidro quebrado em uma das janelas. Não era algo insólito; a austeridade da guerra suportava o descuido de muitas casas. Uma criada abriu a porta. Macke supôs que era a mãe do menino discapacitado que tinha provocado todo aquilo, mas não se incomodou em perguntar. Não tinha sentido deter mulheres. Walter von Ulrich saiu ao vestíbulo de uma das salas que davam a ele. Macke o recordava. Era primo do Robert von Ulrich, cujo restaurante tinham comprado Macke e seu irmão fazia oito anos. Naqueles tempos era um homem orgulhoso e arrogante. Agora levava um traje andrajoso, embora parecia conservar a audácia. —O que quer? —perguntou, tratando de dar a impressão de que ainda estava em condições de exigir explicações. Macke não tinha intenção de perder muito tempo ali. —Algemem —disse. Wagner se adiantou com as algemas. Uma mulher alta e atrativa apareceu e se colocou diante do Von Ulrich. —me digam os quais são e o que querem —perguntou. Obviamente, era sua esposa. Tinha um leve acento estrangeiro. Não era de surpreender. Wagner lhe atirou uma forte bofetada que a fez trastabillar. —Dese a volta e junte as bonecas —disse Wagner ao Von Ulrich—. Do contrário, farei que sua mulher se trague os dentes de um murro. Von Ulrich obedeceu. Uma formosa jovem embelezada com uniforme de enfermeira baixou as escadas a toda pressa. —Papai! —exclamou—. O que está passando? Macke se perguntou quantas pessoas haveria na casa. Sentiu uma pontada de inquietação. Uma família convencional nunca superaria a uns agentes de polícia treinados, mas uma numerosa poderia armar uma briga durante o qual Von Ulrich poderia escapar. Entretanto, nem sequer o homem parecia disposto a resistir. —Não enfrente a eles! —disse a sua filha com voz premente—. Fique aí! A enfermeira parecia aterrada e obedeceu. —Levem a carro —disse Macke. A esposa começou a soluçar. —Aonde o levam? —perguntou a enfermeira. Macke se aproximou da porta e olhou às três mulheres: a criada, a esposa e a filha. —Tantas moléstias —disse— por um atrasado mental de oito anos. Nunca entenderei a esta gente. Deu meia volta e se dirigiu ao carro. Percorreram a curta distância que os separava do Prinz-Albrecht-Strasse. Wagner estacionou na parte traseira do edifício que albergava os quartéis gerais da Gestapo, junto a uma dúzia de carros negros idênticos. Todos se apearam. Entraram por um acesso secundário e levaram ao Von Ulrich ao porão, onde lhe fizeram entrar em uma sala de azulejos brancos. Macke abriu uma gaveta e tirou três paus largos e robustos como bate de beisebol. Entregou um a cada um de seus ajudantes. —Moam a pauladas —disse, e partiu. VI O capitão Volodia Peshkov, responsável pela seção do Berlim dos serviços secretos do Exército Vermelho, reuniu-se com o Werner Franck no Cemitério dos Inválidos, junto ao canal de navegação que unia Berlim e Spandau. Era uma boa eleição. Depois de inspecionar meticulosamente o cemitério, Volodia confirmou que ninguém tinha seguido ao Werner. A única pessoa que havia ali era uma anciã com um lenço negro na cabeça, e que já se dirigia à saída. O ponto de encontro era a tumba do general Von Scharnhorst, formada por um grande pedestal sobre o que se erigia um leão sonolento fabricado com a fundição de canhões inimigos. Era um dia ensolarado da primavera, e os dois jovens espiões se tiraram a jaqueta enquanto passeavam entre os sepulcros de heróis alemães. depois de que Hitler e Stalin assinassem o tratado, fazia quase dois anos, a espionagem soviética tinha seguido ativo na Alemanha, e também a vigilância do pessoal da embaixada soviética. Todo mundo acreditava que era um pacto temporário, embora ninguém sabia quanto duraria. Por isso, os agentes da contra-espionagem ainda seguiam a Volodia a todas partes. Volodia suspeitava que deviam saber em que ocasiões saía para cumprir com uma missão secreta, pois era então quando lhes dava esquinazo. Se solo ia comprar uma salsicha para almoçar, deixava que lhe pisassem nos talões. perguntava-se se seriam o bastante ardilosos para cair na conta disso. —Viu ao Lili Markgraf ultimamente? —perguntou Werner. Era uma garota com a que ambos tinham saído no passado. Volodia a tinha recrutado depois, e ela havia a aceso a cifrar e decifrar mensagens com o código dos serviços secretos do Exército Vermelho. Obviamente, era algo que Volodia não ia dizer lhe ao Werner. —Levo tempo sem vê-la —mentiu—. E você? Werner negou com a cabeça. —Outra mulher conquistou meu coração. —Parecia tímido. Possivelmente lhe envergonhava refutar sua reputação de conquistador—. Bom, para que queria lombriga? —recebemos uma informação demolidora —respondeu Volodia—, uma notícia que trocará o curso da história… se for certa. —Werner o olhou cético. Volodia prosseguiu—: Uma fonte nos informou que a Alemanha invadirá a União Soviética em junho. —Voltou a estremecer-se ao dizê-lo. Era uma imensa vitória para os serviços secretos do Exército Vermelho, e uma terrível ameaça para a URSS. Werner se apartou uma mecha dos olhos com um gesto que sem dúvida acelerava o pulso das garotas. —Uma fonte fidedigna? tratava-se de um jornalista de Tóquio que gozava da confiança do embaixador alemão no Japão, embora em realidade era um comunista clandestino. Tudo que havia comunicado até o momento tinha sido veraz. Mas Volodia não podia dizer isso ao Werner. —Sim —respondeu. —Então, crie que ocorrerá? Volodia vacilou. Esse era o problema. Stalin não acreditava. Opinava que se tratava de desinformación dos Aliados com a intenção de dar amostras de desconfiança entre o Hitler e ele. O cepticismo do Stalin frente a aquele golpe professor dos serviços secretos tinha desolado aos superiores da Volodia e lhes tinha amargurado a aposentadoria. —Queremos confirmá-lo —respondeu. Werner percorreu com o olhar as árvores do cemitério, que começavam a verdear. —Deus, espero que seja verdade —disse com repentina Isso ferocidade acabaria com os malditos nazistas. —Sim —conveio Volodia—, se o Exército Vermelho está preparado. Werner se surpreendeu. —Não estão preparados? Uma vez mais, Volodia não podia lhe dizer ao Werner toda a verdade. Stalin acreditava que os alemães não atacariam antes de que tivessem derrotado aos britânicos, temerosos de uma guerra em duas frentes; acreditava que enquanto Grã-Bretanha seguisse desafiando a Alemanha, a União Soviética estava a salvo. Em conseqüência, o Exército Vermelho não estava nem de longe preparado para uma invasão alemã. —Estaremo-lo —respondeu Volodia—, se consegue corroborar os planos de invasão. Sentiu a seu pesar uma leve sensação de protagonismo. Seu espião podia ser a chave. —Por desgraça, não posso te ajudar —disse Werner. Volodia franziu o sobrecenho. —O que quer dizer? —Não posso corroborar nem desmentir essa informação, nem tampouco te proporcionar nada mais. Estão a ponto de me despedir do Ministério do Ar. É provável que me destinem a França…, ou, se sua informação for certa, que me enviem a invadir a União Soviética. Volodia estava horrorizado. Werner era seu melhor espião. A informação que lhe tinha facilitado era o que tinha favorecido sua ascensão a capitão. Custava-lhe respirar. —Que demônios ocorreu? —perguntou, não sem esforço. —Meu irmão morreu em uma clínica para discapacitados, igual ao afilhado de minha noiva, e estamos fazendo muitas perguntas. —por que foram degradar te por isso? —Os nazistas estão matando aos discapacitados, mas é um programa secreto. Volodia se distraiu um momento de sua missão. —O que? Matam-nos, sem mais? —Isso parece. Ainda não conhecemos os detalhes, mas se não tivessem nada que ocultar, não me teriam castigado , nem a outros, por fazer perguntas. —Quantos anos tinha seu irmão? —Quinze. —meu deus! Se ainda era um menino! —Não vão se sair com a sua. Nego-me a ocultar isto. detiveram-se frente à tumba do Manfred von Richthofen, um ás da aviação. Era uma lápide enorme, de quase dois metros de altura e quase o dobro de largura. Em ela se lia esculpida, com elegantes letras maiúsculas, uma única palavra: RICHTHOFEN. A Volodia resultou comovedora aquela simplicidade. Tentou recuperar a compostura. disse-se que, ao fim e ao cabo, a polícia secreta soviética assassinava a gente, em especial aos suspeitos de deslealdade. O chefe do NKVD, Lavrenti Beria, era um torturador cuja prática predileta consistia em seqüestrar a duas garotas bonitas na rua e as violar de noite como divertimento, segundo certos rumores. Mas pensar que os comunistas podiam ser tão brutais como os nazistas não o consolava absolutamente. Algum dia, recordou-se, os soviéticos desfariam-se da Beria e dos tipos de sua índole, e então poderiam construir o autêntico comunismo. Enquanto isso, a prioridade era derrotar aos nazistas. Chegaram ao muro do canal e ficaram ali, contemplando o lento avanço de uma barcaça que despedia uma fumaça negra e oleosa. Volodia meditou sobre a alarmante confissão do Werner. —O que ocorreria se deixasse de investigar essas mortes de meninos discapacitados? —perguntou. —Perderia a minha noiva —respondeu Werner—. Está tão furiosa como eu. A Volodia o assaltou o temor de que Werner pudesse lhe desvelar a verdade a sua noiva. —Obviamente não poderia lhe confessar o verdadeiro motivo de sua mudança de parecer —disse com tom categórico. Werner parecia surpreso, mas não discutiu. Volodia caiu na conta de que convencendo ao Werner para que abandonasse aquela campanha estaria ajudando aos nazistas a ocultar seus crímenes. Desprezou imediatamente aquele incômodo pensamento. —Mas lhe permitiriam conservar seu posto com o general Dorn se acessasse a te esquecer do assunto? —Sim. Isso é o que querem. Mas não vou permitir lhes que se saiam com a sua depois de ter matado a meu irmão. Enviarão-me à frente, mas não me calarei. —O que crie que lhe farão quando souberem quão decidido está? —Levarão-me a algum campo de prisioneiros. —E o que ganhará com isso? Volodia tinha que recuperar ao Werner, mas de momento não o estava conseguindo. Werner tinha resposta para tudo. Era um tipo inteligente. E isso era o que fazia dele um espião tão valioso. —E os outros? —perguntou Volodia. —O que outros? —Deve haver milhares de adultos e meninos discapacitados. Os nazistas vão matá-los a todos? —É provável. —É evidente que não poderá impedir-lhe se estiver em um campo de prisioneiros. Pela primeira vez, Werner ficou sem réplica. Volodia se voltou de costas para água e percorreu o cemitério com o olhar. Um jovem trajeado se ajoelhou frente a um pequeno sepulcro. Estaria-os seguindo? Volodia o observou atentamente. O homem soluçava e tremia. Sua aflição parecia autêntica; os agentes da contra-espionagem não eram bons atores. —Olha-o —disse Volodia ao Werner. —por que? —lamenta-se. É o que está fazendo você. —E o que? —Você olha-o. Um minuto depois, o homem ficou em pé, enxugou-se a cara com um lenço e se afastou. —Agora já se desafogou. Nisso consiste lamentar-se. Com o lamento não se consegue nada, solo faz que alguém se sinta melhor. —Crie que estou indagando sozinho para me sentir melhor? Volodia se voltou e o olhou aos olhos. —Não te julgo —disse—. Quer averiguar a verdade e gritá-la aos quatro ventos. Mas tenta pensar com lógica. A única forma de acabar com o que me contaste é derrocar ao regime. E a única forma de conseguir que isso ocorra é que o Exército Vermelho derrote aos nazistas. —É possível. Werner começava a fraquejar. Volodia viu um broto de esperança. —É possível? —disse—. Quem mais há? Os ingleses estão prostrados, tentando desesperadamente repelir a Luftwaffe. Aos americanos não interessam as lutas européias. Todos outros respaldam aos fascistas. —Posou as mãos nos ombros do Werner—. O Exército Vermelho é sua única esperança, meu amigo. Se perdemos, esses nazistas seguirão matando a meninos discapacitados, e a judeus, e a comunistas, e a homossexuais, durante outros mil sangrentos anos. —Mierda —espetou Werner—. Tem razão. VII no domingo, Carla e sua mãe foram à igreja. Maud estava angustiada pela detenção do Walter e desesperada por averiguar aonde o tinham levado. Obviamente, a Gestapo se negou a lhe dar nenhuma informação. Mas a igreja do pastor Ochs era muito popular, a seus ofícios religiosos assistia gente de bairros mais ricos, e entre a congregação se contavam alguns homens poderosos, um par deles em posição de fazer perguntas. Carla inclinou a cabeça e rezou por que seu pai não estivesse sendo maltratado nem torturado. Na verdade não acreditava nas orações, mas estava o bastante consternada para prová-lo tudo. alegrou-se ao ver a família Franck sentada várias filas por diante dela. Observou a nuca do Werner. O cabelo encaracolado lhe pendurava ligeiramente sobre o pescoço, em contraste com a maioria dos homens, que o levavam virtualmente ao corte de barba. Ela havia meio doido e beijado aquele pescoço. Era um homem adorável, provavelmente o mais agradável de quantos a tinham beijado. Todos os dias, antes de deitar-se, revivia a noite em que tinham ido ao Grunewald. Mas não estava apaixonada por ele, disse-se. Ainda não. Quando o pastor Ochs entrou, ela em seguida advertiu que o tinham dobrado. A mudança que se apreciava nele era aterrador. dirigiu-se lentamente ao facistol, com a cabeça encurvada e os ombros cansados, ante o qual vários paroquianos intercambiaram sussurros assombrados. Recitou inexpressivo as orações e depois leu o sermão. Fazia dois anos que Carla era enfermeira e reconheceu nele os sintomas da depressão. Supôs que também ele tinha recebido uma visita da Gestapo. Observou que frau Ochs e seus cinco filhos não ocupavam o lugar habitual, no primeiro banco. Enquanto cantavam o último hino, Carla jurou que não se renderia, face ao atemorizada que estava. Ainda tinha aliados: Frieda, Werner e Heinrich. Mas o que podiam fazer eles? Desejou dispor de alguma prova do que os nazistas estavam fazendo. Não albergava a menor duvida de que estavam exterminando aos discapacitados; aquela campanha da Gestapo o evidenciava. Mas não poderia convencer a outros sem uma prova irrefutável. Como podia consegui-la? Ao acabar o ofício religioso, saiu da igreja com a Frieda e Werner e os levou a um lado, longe de seus pais. —Acredito que temos que conseguir alguma prova do que está acontecendo —lhes disse. Frieda tinha sabor do que se referia. —Deveríamos ir ao Akelberg —propôs—, ao hospital. Ao princípio, Werner tinha sugerido isso mesmo, mas finalmente decidiram começar as pesquisas ali, no Berlim. Nesse momento, Carla reconsiderou a idéia. —Necessitaremos permissões para viajar. —Como vamos conseguir os? Carla estalou os dedos. —As duas somos sócias do Clube Ciclista Mercury. Eles administram permissões para fazer saídas em bicicleta. —Era a classe de atividades que fomentavam os nazistas: exercício saudável ao ar livre para os jovens. —Entraremos no hospital? —Poderíamos tentá-lo. —Acredito que deveriam abandonar —disse Werner. Carla estava perplexa. —O que quer dizer? —É evidente que ao pastor Ochs lhe deram um bom susto. Isto é muito perigoso. Poderiam acabar no cárcere, torturadas. E nada devolverá ao Axel e ao Kurt. Ela seguiu olhando-o, incrédula. —Quer que abandonemos? —Têm que abandonar. Falam como se a Alemanha fosse um país livre! Conseguirão que lhes matem às duas. —Temos que assumir riscos! —replicou Carla, irada. —Eu fico à margem —disse Werner—. Eu também recebi a visita da Gestapo. A Carla lhe gelou o sangue. —OH, Werner… O que passou? —Só ameaça, de momento. Se sigo fazendo perguntas, enviarão-me à frente. —Bom, graças a Deus que não é algo pior. —Mas já é bastante mau. As garotas guardaram silêncio um momento, e depois Frieda disse o que Carla estava pensando. —Tem que ver que isto é mais importante que seu trabalho. —Não me diga o que tenho que ver —respondeu Werner. Parecia zangado, mas Carla advertiu que o que em realidade sentia era vergonha—. Não é sua carreira o que está em jogo —prosseguiu—. E você ainda não sabe como se as gasta a Gestapo. Carla estava atônita. Acreditava que conhecia o Werner. Estava segura de que o veria do mesmo modo que ela. —Em realidade, sim —disse—. detiveram a meu pai. Frieda ficou geada. —OH, Carla! —exclamou, e a rodeou com um braço. —Não conseguimos saber onde está —acrescentou Carla. Werner não deu amostras de compaixão. —Pois então já saberá que não convém desafiá-los! —disse—. Também lhe teriam detido a ti se o inspetor Macke não acreditasse que as garotas são inofensivas. Carla sentiu vontades de chorar. Tinha estado a ponto de apaixonar-se pelo Werner, e agora resultava ser um covarde. —Está dizendo que não vais ajudar nos? —perguntou Frieda. —Sim. —Porque quer conservar seu emprego? —Não tem sentido… É impossível vencê-los! Carla estava furiosa com ele por sua covardia e seu derrotismo. —Não podemos permitir que isto ocorra! —É uma loucura enfrentar-se diretamente a eles. Há outras formas de combatê-los. —Como? Trabalhando devagar, como defendem esses panfletos? Isso não fará que deixem de matar a meninos discapacitados! —Desafiar ao governo é suicida! —E todo o resto, covardia! —Nego-me a que me julguem duas garotas! —Dito o qual, Werner partiu a grandes pernadas. Carla conteve as lágrimas. Não podia chorar em presença das duzentas pessoas congregadas ao sol frente à igreja. —Acreditava que ele era diferente —disse. Frieda estava desgostada, mas também desconcertada. —É diferente —repôs—. O conheço de toda a vida. Passa-lhe algo mais, algo que não nos diz. A mãe da Carla se aproximou delas. Não percebeu a aflição de sua filha, algo insólito nela. —Ninguém sabe nada! —disse, desconsolada—. Não consigo saber onde pode estar seu pai. —Seguiremos tentando-o —respondeu Carla—. Não tinha amigos na embaixada americana? —Conhecidos. Já lhes perguntei, mas não averiguaram nada. —Voltaremos a lhes perguntar amanhã. —OH, Deus, suponho que há milhões de mulheres alemãs em minha situação. Carla assentiu. —Vamos a casa, mamãe. Voltaram caminhando devagar, sem falar, sumidas em seus pensamentos. Carla estava furiosa com o Werner, mais ainda por ter acreditado que era tão diferente. Como podia haver-se prendado de alguém tão débil? Chegaram a sua rua. —Amanhã irei à embaixada americana —disse Maud enquanto se aproximavam de casa—. Esperarei na recepção todo o dia se fizer falta. Suplicarei-lhes que façam algo. Se de verdade quisessem, poderiam levar a cabo uma investigação semioficial sobre o cunhado de um ministro britânico. OH! por que está aberta a porta? O primeiro que pensou Carla era que a Gestapo havia tornado a lhes visitar, mas não havia nenhum carro negro estacionado na calçada. E da fechadura pendurava uma chave. Maud entrou no saguão e gritou. Carla correu atrás dela. Um homem jazia no estou acostumado a banhado em sangue. Carla conseguiu reprimir um grito. —Quem é? —perguntou. Maud se ajoelhou junto ao homem. —Walter —disse—. OH, Walter, o que lhe têm feito? Carla viu então que era seu pai. Estava tão ferido gravemente que logo que resultava reconhecível. Tinha um olho fechado; a boca, torcida e convertida em um grande machucado; o cabelo, talher de sangue coagulado, e um braço retorcido. O peitilho de sua jaqueta estava manchada de vômito. —Walter, me fale, me fale! —urgiu-lhe Maud. Ele abriu sua destroçada boca e grunhiu. Carla conteve a dor histérica que bulia em seu interior recorrendo a seu profesionalidad. Agarrou uma almofada e o colocou sob a cabeça. Foi à cozinha a por um copo de água e lhe verteu um pouco sobre os lábios. Walter tragou e abriu a boca pedindo mais. Quando pareceu satisfeito, Carla foi a seu estudo, agarrou uma garrafa de aguardente e lhe deu umas gotas. Seu pai as tragou e tossiu. —vou avisar ao doutor Rothmann —disse Carla—. lhe Lave a cara e lhe dê mais água. Não tente movê-lo. —Sim, sim. Date pressa! —disse Maud. Carla saiu de casa com a bicicleta e ficou em caminho a toda pressa. Ao doutor Rothmann já não lhe permitia exercer —os judeus não podiam ser médicos—, mas, extraoficialmente, seguia atendendo às pessoas. Carla pedalou com fúria. Como tinha chegado a casa seu pai? Supunha que o tinham levado de carro e que ele as tinha arrumado para chegar capengante desde a calçada, e que uma vez dentro se desabou. Chegou a casa do doutor. Ao igual que a sua, estava em péssimas condições. Os anti-semitas tinham quebrado a maioria dos vidros das janelas. Frau Rothmann abriu a porta. —deram uma surra a meu pai —disse Carla ofegante—. A Gestapo. —Meu marido irá em seguida —respondeu frau Rothmann. voltou-se e gritou em direção às escadas—: Isaac! —O médico baixou—. É herr Von Ulrich —lhe informou seu esposa. O médico agarrou um cesto da compra que havia junto à porta. Dado que tinha proibido praticar a medicina, Carla supôs que nunca levava nada que parecesse uma maleta com instrumental. Saíram da casa. —Irei diante com a bicicleta —disse Carla. Quando chegou, encontrou a sua mãe sentada no portal, chorando. —O médico está de caminho! —exclamou. —Chega tarde —respondeu Maud—. Seu pai morreu. VIII Volodia se encontrava às portas dos armazéns Wertheim, justo em frente do Alexanderplatz, às duas e meia da tarde. Tinha inspecionado a zona várias vezes, em busca de homens que pudessem ser policiais vestidos de civil. Estava seguro de que não o tinham seguido até ali, mas cabia a possibilidade de que algum agente da Gestapo de passagem o reconhecesse e deduje o que se trazia entre mãos. Um lugar concorrido era a melhor camuflagem, mas não infalível. Eram certos os planos de invasão? De sê-lo, Volodia não permaneceria no Berlim muito tempo mais. despediria-se com um beijo da Gerda e Sabine. E provavelmente voltaria para a sede dos serviços secretos do Exército Vermelho em Moscou. Desejava passar algum tempo com sua família. Sua irmã, Ania, tinha gêmeos aos que ele ainda não tinha visto. E acreditava que lhe sentaria bem descansar um pouco. O trabalho clandestino suportava uma tensão permanente: dar esquinazo aos agentes da Gestapo que o seguiam, organizar encontros secretos, recrutar espiões e preocupar-se com as possíveis traia. Agradeceria passar um ou dois anos nos quartéis generais, se é que a União Soviética sobrevivia tanto tempo. Outra possibilidade era que o enviassem a outro destino no estrangeiro. Gostava de Washington. Sempre tinha desejado conhecer os Estados Unidos. tirou-se do bolso um lenço de papel amassado e o atirou em um cesto de papéis. Um minuto antes das três, acendeu um cigarro, embora não fumava. Deixou cair cuidadosamente o fósforo entre as dobras do lenço e se afastou. Segundos depois, alguém gritou: Fogo!. Justo quando toda a vizinhança olhava para o cesto de papéis em chamas, um táxi se deteve a porta dos armazéns, um Mercedes 260D negro. Um arrumado jovem com uniforme de tenente das Forças Aéreas desembarcou dele. Enquanto o tenente pagava ao taxista, Volodia subiu ao carro e fechou de uma portada. No chão do táxi, onde o condutor não podia vê-lo, havia um exemplar do Neues Volk, a revista nazista de propaganda racista. Volodia o agarrou, mas não o leu. —Algum idiota gostou muito fogo a um cesto de papéis —disse o taxista. —Ao hotel Adlon —lhe indicou Volodia. Pelo caminho folheou a revista e verificou que entre suas folhas tinha escondido uma sobre de cor bege. Ansiava abri-lo, mas esperou. Ao chegar ao hotel desceu do carro, embora não entrou, mas sim franqueou a Porta do Brandenburgo e se internou no parque. As árvores luziam vívidos brotos. Era um dia quente da primavera e muita gente passeava. A revista parecia lhe queimar as mãos. Volodia encontrou um banco discreto e se sentou. Voltou a folhear a revista e, protegendo o da vista com ela, abriu a sobre de cor bege. Tirou dele um documento. Era uma cópia de carvão, datilografada e algo imprecisa, mas legível. Levava um cabeçalho. DIRETIVA N.º 21: OPERAÇÃO BARBARROJA Federico Barbarroja era o nome do imperador alemão que tinha encabeçado a terceira cruzada no ano 1189. O texto começava assim: A Wehrmacht alemã deve estar preparada, antes inclusive do fim da guerra contra Grã-Bretanha, para derrotar à União Soviética em uma rápida campanha. Volodia se surpreendeu resfolegando. Aquilo era dinamite. O espião de Tóquio tinha acertado, e Stalin se equivocou. E a União Soviética corria um perigo mortal. Com o coração desbocado, Volodia olhou o final do documento, onde viu uma rubrica: Adolf Hitler. Leu as páginas em diagonal, procurando uma data, e a encontrou. A invasão estava programada para em 15 de maio de 1941. junto a ela havia uma nota a lápis, com a letra do Werner Franck: A data trocou aos 22 de junho. —OH, Meu deus, tem-no feito —disse Volodia em voz alta—. confirmou a invasão. Devolveu o documento ao sobre e o escondeu entre as folhas da revista. Isso o trocava tudo. levantou-se e se encaminhou de volta à embaixada soviética para comunicar a notícia. IX No Akelberg não havia estação de trem, pelo que a Carla e Frieda se apearam na mais próxima, situada a uns quinze quilômetros, e percorreram essa distancia em bicicleta. Levavam calças curtas, sudaderas e sandálias cômodas, e se tinham recolhido o cabelo em tranças. Pareciam membros da Liga de Moças Alemãs, a Bund Deutscher Mädel ou BDM, muito aficionadas às saídas em bicicleta. especulava-se muito sobre se, além disso, faziam ou não algo mais, especialmente de noite nos austeros albergues nos que se alojavam. Os meninos diziam que as siglas BDM correspondiam ao Bubi Drück Mir, algo assim como Moço, te aproxime a mim. Carla e Frieda consultaram o mapa que levavam e saíram da cidade em direção ao Akelberg. Carla pensava em seu pai a todas as horas. Sabia que nunca se recuperaria da terrível experiência de havê-lo encontrado grosseiramente golpeado e moribundo. Havia chorado durante dias. Mas outra emoção convivia com sua dor: a raiva. Não ia se conformar sentindo-se triste. ia fazer algo com ela. Maud, também desfeita de dor, tinha tentado convencer a Carla de que não fosse ao Akelberg. —Meu marido está morto, meu filho está no exército, não quero que minha filha também ponha sua vida em perigo! —tinha soluçado. Depois do funeral, quando o horror e a histeria deram passo a um duelo mais sereno e profundo, Carla lhe perguntou o que era o qu e teria querido Walter. Maud meditou-o muito. Não lhe respondeu até o dia seguinte. —Teria querido que seguisse com a luta. Para o Maud foi duro dizer aquilo, mas as duas sabiam que era verdade. Frieda não manteve essa discussão com seus pais. Sua mãe, Monika, tinha estado apaixonada pelo Walter no passado e sua morte a deixou desolada; entretanto, haveria-lhe horrorizado saber o que Frieda estava fazendo. Seu pai, Ludi, a teria encerrado no porão. Entretanto, acreditavam que solo tinha saído de excursão em bicicleta. Em todo caso, teriam podido suspeitar que ia encontrar se com algum noivo não especialmente idôneo. O terreno era montanhoso e encontraram fortes pendentes, mas as duas estavam em forma, e uma hora depois descendiam já para a pequena cidade do Akelberg. Carla sentiu apreensão; estavam penetrando em território inimigo. Foram a uma cafeteria. Não havia Coca-cola. Isto não é Berlim!, espetou-lhes muito indignada a mulher que havia ao outro lado do mostrador, como se tivessem pedido que uma orquestra lhes tocasse uma serenata. Carla não entendia por que alguém com tanta aversão para os foráneos regentaba uma cafeteria. Tomaram sendos copos da Fanta, um produto alemão, e aproveitaram a ocasião para encher de água suas garrafinhas. Não sabiam onde estava exatamente o hospital. Teriam que perguntar, mas a Carla preocupava despertar suspeitas. Os nazistas do lugar poderiam interessar-se por duas estranhas que fossem por aí fazendo perguntas. —Temos que nos encontrar com o resto do grupo em um cruzamento de caminhos que há ao lado do hospital —disse Carla enquanto pagavam—. Por onde se vai? A mulher não a olhou aos olhos. —Aqui não há nenhum hospital. —A Instituição Médica Akelberg —insistiu Carla, citando o cabeçalho da carta. —Deve estar em outro Akelberg. A Carla pareceu que mentia. —Que estranho —disse, sem deixar de fingir—. Espero que não nos tenhamos equivocado de sítio. Enfiaram com as bicicletas pela rua principal. Não havia alternativa, pensou Carla: teriam que perguntar pela direção. Em um banco situado frente à porta de um bar havia um ancião de aspecto inofensivo, desfrutando de do sol vespertino. —Onde está o hospital? —perguntou-lhe Carla, tratando de ocultar seu nervosismo com uma atitude jovial. —Têm que cruzar a cidade e subir a colina que ficará à esquerda —respondeu—. Mas não entrem… Não são muitos os que saem! —riu a gargalhadas como se acabasse de fazer uma piada. Os gestos eram pouco precisos, mas Carla pensou que bastariam. Decidiu não chamar mais a atenção voltando a perguntar. Uma mulher com um lenço na cabeça tirou do braço ao ancião. —Não façam conta, não sabe o que diz —se desculpou, com ar consternado. Pô-lo em pé com brutalidade e o apressou pela calçada—. A ver se aprender a estar calado, velho idiota —resmungou. Dava a impressão de que aquela gente suspeitava o que estava ocorrendo em sua comunidade. Por sorte, quase todos reagiam igual: mostrando-se ásperos e desentendendo-se daquilo. Era pouco provável que tivessem muito interesse em informar à polícia ou ao Partido Nazista. Carla e Frieda seguiram avançando por aquela rua e encontraram o albergue juvenil. Havia milhares como aquele na Alemanha, ao serviço de pessoas idênticas a as que elas fingiam ser: jovens atléticas fazendo esporte uns dias ao ar livre. registraram-se. As instalações eram muito rudimentares, com beliches de três camas, mas era barato. Saíram da cidade em bicicleta já entrada a tarde. depois de percorrer aproximadamente um quilômetro e médio, encontraram um desvio a sua esquerda. Não estava sinalizado, mas a estrada subia pela colina e decidiram enfiar por ela. A apreensão da Carla se intensificou. quanto mais se aproximavam, mais difícil lhes resultaria parecer inocentes em caso de que alguém as interrogasse. Uns dois quilômetros mais adiante viram uma casa grande em metade de um parque. Não parecia ter muros nem cercas, e a estrada levava até sua porta. Tampouco ali havia pôsteres. Sem ser consciente disso, Carla tinha esperado encontrar no topo um castelo imponente de pedra cinza com barrotes nas janelas e portas de carvalho reforçadas com ferro. Mas aquela era uma típica casa de campo bávara, com cobertos salientes e muito pronunciados, balcões de madeira e um pequeno campanário. Não era possível que ali se estivesse levando a cabo um pouco tão espantoso como o assassinato de meninos… Também parecia pequena para ser um hospital. Então viu uma moderna edificação encostada a uma das fachadas laterais, com uma chaminé alta. Desmontaram e apoiaram as bicicletas contra uma das fachadas laterais do edifício. Carla tinha o coração na boca enquanto subiam os degraus da entrada. por que não havia guardas? Talvez porque ninguém seria tão insensato para tentar investigar aquele lugar? Não havia timbre nem aldaba, mas a porta cedeu quando Carla a empurrou. Entrou, seguida da Frieda. encontraram-se em um fresco vestíbulo com chão de pedra e paredes brancas e nuas. Várias portas davam a caminhos estadias, mas todas elas estavam fechadas. Uma mulher de média idade e com lentes desceu pelas amplas escadas. Levava um elegante vestido cinza. —Sim? —perguntou. —Olá —a saudou Frieda com ar informal. —O que estão fazendo? Não podem entrar aqui. Frieda e Carla se prepararam para aquela pergunta. —Só queria visitar o lugar onde morreu meu irmão —disse Frieda—. Tinha quinze anos… —Isto não é uma instituição pública! —replicou a mulher, indignada. —Sim, é. —Frieda tinha crescido no seio de uma família enriquecida e não se intimidava ante funcionários de médio pêlo. Uma enfermeira de uns dezenove anos saiu por uma das portas que davam ao vestíbulo e ficou olhando. A mulher do vestido cinza se dirigiu a ela. —Enfermeira König, vá procurar a her Römer imediatamente. A enfermeira se afastou a toda pressa. —Deveriam ter avisado com antecipação, por carta —disse a mulher. —Não receberam minha carta? —respondeu Frieda—. Escrevi ao diretor. —Não era verdade, Frieda estava improvisando. —Não recebemos essa carta! —Obviamente, a mulher acreditava que uma solicitude tão descabelada como a da Frieda não podia haver-se passado por cima. Carla escutava com atenção. Naquele lugar reinava um estranho silêncio. Ela tinha tratado com pessoas que sofriam discapacidades físicas e mentais, adultos e meninos, e sabia que eram ruidosos. Inclusive através daquelas portas fechadas deveria ter ouvido gritos, risadas, prantos, queixa a vozes, desvarios desatinados. Mas não se ouvia nada. Aquilo parecia mais um necrotério. Frieda provou com um novo roteiro. —Talvez possa me dizer onde está a tumba de meu irmão. Eu gostaria de visitá-la. —Aqui não há tumbas. Temos um incinerador. —corrigiu-se imediatamente—: Um crematório. —Vi a chaminé —disse Carla. —O que fizeram com as cinzas de meu irmão? —perguntou Frieda. —Lhe enviarão ao seu devido tempo. —Não as mescle com as de outros, por favor. À mulher lhe ruborizou o pescoço, e Carla deduziu que mesclavam as cinzas dos mortos, acreditando que ninguém se daria nunca conta. A enfermeira König retornou seguida de um homem fornido e vestido com o uniforme branco de enfermeiro. —Ah, Römer —disse a mulher—. Por favor, acompanha a estas garotas à saída. —Um momento —disse Frieda—. Está segura de que está fazendo o correto? Solo queria ver o lugar onde morreu meu irmão. —Completamente segura. —Então não lhe importará me dizer seu nome. Houve um instante de dúvida. —Frau Schmidt. E agora, por favor, parte. Römer avançou para elas com ar ameaçador. —Já vamos —disse Frieda com frieza—. Não temos intenção de proporcionar a herr Römer uma desculpa para nos incomodar. O homem se fez a um lado e lhes abriu a porta. Carla e Frieda saíram, montaram em suas bicicletas e descenderam pela estrada. —Crie que se tragou o boato? —Sim —respondeu Carla—. Nem sequer nos perguntou como nos chamamos. Se tivesse suspeitado a verdade, em seguida teria avisado à polícia. —Mas não averiguamos muito. Vimos a chaminé, mas não encontramos nada que possamos considerar uma prova. Carla se sentia um pouco abatida. Conseguir provas não era tão fácil como parecia. Voltaram para albergue. assearam-se, trocaram-se e saíram a comer algo. A única cafeteria que viram era a da proprietária resmungona. Comeram crepes de batata com salsichas. Depois foram ao bar da cidade. Pediram cerveja e tentaram conversar cordialmente com outros clientes, mas ninguém quis falar com elas. O mero feito de fazê-lo já era suspeito. Em todas partes, a gente receava dos estranhos, pois qualquer podia ser um mexeriqueiro nazista, mas mesmo assim Carla se perguntava quantas cidades haveria onde duas garotas jovens pudessem acontecer uma hora em um bar sem que ninguém tentasse flertar com elas. Retornaram ao albergue para deitar-se cedo. A Carla não lhe ocorria que outra coisa podiam fazer. Ao dia seguinte voltariam para casa com as mãos vazias. Parecia incrível que pudessem saber que se estavam cometendo aqueles atrozes assassinatos e não pudessem detê-los. sentia-se tão frustrada que tinha vontades de gritar. Lhe ocorreu que frau Schmidt —se na verdade se chamava assim— poderia ter suspeitado das duas visitantes. Naquele momento, tinha tomado a Carla e a Frieda por o que ambas fingiam ser, mas poderia ter começado a recear depois e ter chamado à polícia só por prudência. Se isso tinha ocorrido, não lhes custaria as encontrar. Aquela noite só havia cinco pessoas no albergue, e elas eram as únicas garotas. Aguçou o ouvido esperando ouvir a temível chamada à porta. Se as interrogavam, confessariam parte da verdade, dizendo que o irmão da Frieda e o afilhado da Carla tinham morrido no Akelberg e que queriam visitar seus tumbas, ou ao menos ver o lugar onde tinham morrido e dedicar uns minutos a sua memória. A polícia local poderia tragar-se aquela mentira. Mas se indagavam em Berlim, em seguida averiguariam sua relação com o Walter von Ulrich e Werner Franck, dois homens que tinham sido investigados pela Gestapo por fazer perguntas desleais sobre o Akelberg. Então, Carla e Frieda estariam em um grave apuro. preparavam-se para deitar-se naquelas camas de aspecto tão incômodo quando alguém bateu na porta. A Carla lhe parou o coração. Pensou no que a Gestapo lhe tinha feito a seu pai. Sabia que ela não poderia suportar a tortura. Em dois minutos largaria os nomes de todos os Jovens do Balanço que conhecia. Frieda era menos fantasiosa. —Não te assuste tanto! —disse, e abriu a porta. Não era a Gestapo, a não ser uma garota miúda, bonita e loira. Carla demorou um momento em reconhecer nela à enfermeira König, sem uniforme. —Tenho que falar com vocês —disse. Parecia angustiada, sufocada e chorosa. Frieda a convidou a entrar. A garota se sentou em uma cama e se enxugou os olhos com a manga do vestido. —Não posso seguir ocultando isto. Carla olhou a Frieda. Estavam pensando o mesmo. —Ocultar o que, enfermeira König? —perguntou-lhe Carla. —Meu nome é Ilse. —Sou Carla e ela é Frieda. A que te refere, Ilse? Ilse falou com um fio de voz. —Matamo-los —disse. Carla ficou sem fôlego. —No hospital? —conseguiu dizer. Ilse assentiu. —Aos pobres doentes que chegam em ônibus cinzas. Meninos, inclusive bebem, anciões, avós. Todos têm alguma discapacidad. Às vezes chegam em um estado espantoso, babando e fazendo-se suas necessidades em cima, mas não podem evitá-lo, e alguns são muito doces e inocentes. O mesmo dá…, matamo-los a todos. —Como o fazem? —Com uma injeção de morfina e escopolamina. Carla assentiu. Era um anestésico habitual, mortal em dose elevadas. —E os tratamentos especiais que se supõe que aplicam? Ilse negou com a cabeça. —Não há tratamentos especiais. —Ilse, a ver se o entendo bem. Matam a todos quão pacientes chegam? —A todos. —Assim que chegam? —Ao dia seguinte, ou como muito aos dois dias. Era o que Carla suspeitava, mas, mesmo assim, a crua realidade lhe pareceu horripilante e sentiu náuseas. —Há algum paciente agora no hospital? —perguntou ao cabo de um minuto. —Vivo, não. Esta tarde administramos injeções. Por isso se alterou tanto frau Schmidt ao lhes ver ali. —por que não há nenhuma medida de segurança para que a gente não possa acessar ao edifício? —Acreditam que se houvesse guardas ou uma cerca de arame de espinheiro seria evidente que ali está acontecendo algo sinistro. De todos os modos, ninguém tinha tentado nos visitar nunca. —Quantas pessoas morreram hoje? —Cinqüenta e dois. Carla sentiu um calafrio. —O hospital matou a cinqüenta e duas pessoas esta tarde, enquanto estávamos ali? —Sim. —Então, agora já estão todos mortos? Ilse assentiu. Uma idéia tinha ido forjando na cabeça da Carla, e nesse momento se materializou. —Quero vê-lo —disse. Ilse parecia assustada. —A que te refere? —Quero entrar no hospital e ver os cadáveres. —Já os estão incinerando. —Pois então quero ver como o fazem. Poderia nos ajudar a entrar no hospital? —Esta noite? —Agora mesmo. —OH, Deus. —Você não terá que fazer nada —disse Carla—. Já foste bastante valente devendo falar conosco. Não se preocupe se preferir não fazer nada mais. Mas se queremos deter isto, necessitamos provas. —Provas. —Sim. Olhe, o governo se envergonha deste projeto, por isso o mantém em segredo. Os nazistas sabem que os alemães da pé não consentiriam o assassinato de meninos. Mas a gente prefere acreditar que isto não está ocorrendo, e para eles é fácil desprezar um rumor, sobre tudo se proceder de uma garota. Assim temos que demonstrar-lhe com provas. —Entendo. —A formosa cara do Ilse adotou uma expressão de séria determinação—. Muito bem, pois. Levarei-lhes. Carla ficou em pé. —Como revista ir até ali? —Em bicicleta. Tenho-a fora. —Então iremos as três em bicicleta. Saíram. Já tinha anoitecido. O céu estava parcialmente nublado e a luz das estrelas era débil. Utilizaram os faróis das bicicletas para orientar-se enquanto saíam da cidade e subiam pela colina. Quando espionaram o hospital, apagaram-nos e seguiram a pé, empurrando as bicicletas. Ilse as guiou por um atalho do bosque que levava a parte traseira do edifício. Carla percebeu um aroma desagradável, similar ao das fumaças que despediam os carros. Farejou o ar. —A incineradora —sussurrou Ilse. —OH, não! Esconderam as bicicletas entre uns arbustos e se encaminharam sigilosamente até a porta traseira. Não estava fechada com chave, e entraram. Os corredores estavam iluminados. Nenhum rincão ficava às escuras; certamente parecia o hospital que fingia ser. Qualquer que andasse por ali poderia as ver sem dificuldade. Sua roupa as delataria como intrusas. O que fariam então? Provavelmente, correr. Ilse avançou pressurosa por um corredor, dobrou uma esquina e abriu uma porta. —É aqui —sussurrou. As três entraram. Frieda deixou escapar um chiado de horror e se tampou a boca. —OH, Deus santo —murmurou Carla. Em uma sala grande e fria jaziam sobre mesas os corpos sem vida de umas trinta pessoas, todos de barriga para cima e nus. Alguns eram corpulentos; outros, magros; alguns, velhos e estragados; outros, meninos, e também um bebê de aproximadamente um ano. Vários pareciam contorsionados, mas o aspecto físico da maioria era normal. Todos tinham um curativo no braço esquerdo, onde lhes tinham aplicado a injeção. Carla ouviu soluçar a Frieda. Tentou fazer de tripas coração. —Onde estão outros? —sussurrou. —Já os levaram a forno —respondeu Ilse. Ouviram vozes procedentes do outro lado de umas portas batentes situadas ao final da sala. —Vamos —disse Ilse. Saíram ao corredor. Carla ajustou a porta deixando uma ínfima fresta pela que olhar. Viu herr Römer e a outro homem empurrando uma maca através das portas. Nenhum dos dois olhou em sua direção. Discutiam sobre futebol. —Só faz nove anos que ganhamos o campeonato nacional —ouviu Carla que dizia Römer—. Ganhamos no Eintracht de Frankfurt por dois a zero. —Sim, mas a metade de nossos melhores jogadores eram judeus e se partiram todos. Carla compreendeu que falavam do Bayern do Múnich. —Os velhos tempos voltarão, solo temos que pôr em prática as táticas corretas. Sem deixar de discutir, os dois homens se aproximaram de uma mesa onde jazia o cadáver de uma mulher corpulenta. Tomaram pelos ombros e os joelhos e a transladaram sem olhares à maca, grunhindo pelo esforço. Levaram a maca até outra mesa e colocaram outro cadáver em cima do primeiro. Quando tiveram três empilhados, saíram com a maca. —vou seguir lhes —disse Carla. Cruzou o necrotério até a dobro porta, e Frieda e Ilse foram atrás dela. Acessaram a uma zona que parecia mais industrial que médica: paredes pintadas de marrom, chão de cimento, armários de armazenagem e réstias de ferramentas. Apareceram por uma esquina. Viram uma sala grande similar a uma garagem, com luzes muito intensas e sombras definidas. O ar estava esquentado e se percebia um ligeiro aroma de comida cozinhada. No centro daquele espaço havia uma gaveta de aço de tamanho suficiente para albergar um automóvel. uma espécie de dossel metálico conectava a parte superior da gaveta com o teto. Carla soube que estava vendo o forno. Os dois homens descarregaram um corpo da maca e o depositaram sobre uma cinta transportadora de aço. Römer pulsou um botão que havia na parede. A cinta ficou em movimento, uma portinhola se abriu e o cadáver se introduziu no forno. Colocaram o seguinte corpo na cinta. Carla já havia visto suficiente. deu-se meia volta e fez um gesto às outras para lhes indicar que retrocedessem. Frieda tropeçou com o Ilse, que deixou escapar um grito. As três ficaram petrificadas. —O que foi isso? —ouviram dizer ao Römer. —Um fantasma —respondeu o outro. —Não brinque com essas coisas! —Ao Römer tremia a voz. —Pensa agarrar dos pés a este frios ou o que? —Vale, vale. As três garotas voltaram a toda pressa para o necrotério. Ao ver o resto dos corpos, Carla sentiu uma intensa pontada de dor pelo filho da Ada, Kurt. Ele também tinha estado ali, com um curativo no braço, e depois o tinham arrojado à cinta transportadora e se desfeito dele como se fosse uma bolsa de lixo. Mas não se esquecemos, Kurt, pensou. Saíram ao corredor. Quando se dirigiam à porta traseira, ouviram passos e a voz de frau Schmidt. —por que demorarão tanto esses dois? Apertaram o passo e cruzaram a porta. A lua iluminava o parque. Carla alcançava a ver os arbustos onde tinham oculto as bicicletas, das que as separavam uns duzentos metros de grama. Frieda foi a última em sair e, com as pressas, deixou que a porta se fechasse de repente. Carla tentou pensar depressa. Era mais que provável que frau Schmidt queria saber o que tinha produzido esse ruído. Não conseguiriam chegar aos arbustos antes de que abrisse a porta. Tinham que esconder-se. —por aqui! —sussurrou Carla, e rodeou correndo a esquina do edifício. As outras a seguiram. apertaram-se de costas contra a parede. Carla ouviu como se abria a porta. Conteve o fôlego. Houve uma larga pausa. Logo frau Schmidt resmungou algo ininteligível e a porta voltou a fechar-se com um golpe. Carla apareceu pela esquina. Frau Schmidt já não estava. As garotas correram pela grama e recuperaram as bicicletas. Levaram-nas a pé pelo atalho do bosque e saíram à estrada. Ali acenderam os faróis, montaram e se afastaram a toda pressa. Carla se sentia eufórica. Tinham-no conseguido! Entretanto, enquanto se aproximavam da cidade, o entusiasmo cedeu ante considerações de caráter mais prático. Exatamente, o que tinham conseguido? O que foram a fazer? Tinham que lhe dizer a alguém o que tinham visto. Não tinha sabor de quem. Em qualquer caso, tinham que convencer a alguém. Acreditariam-nas? quanto mais pensava nisso, menos segura estava. —Graças a Deus que já terminou —disse Ilse quando chegaram ao albergue e desmontaram—. Nunca tinha passado tanto medo. —Não terminou —disse Carla. —O que quer dizer? —Que não terminará até que tenhamos fechado esse hospital, e outros pelo estilo. —Como vamos conseguir o? —Necessitamo-lhe —lhe disse Carla—. Você é a prova. —Temia que dissesse isso. —Virá conosco manhã ao Berlim? Houve uma larga pausa. —Sim, irei com vocês —disse Ilse ao fim. X Volodia Peshkov se alegrava de voltar a estar em casa. Moscou se encontrava no apogeu do verão, ensolarado e caloroso. na segunda-feira 30 de junho voltou para a sede de os serviços secretos do Exército Vermelho, situados ao lado do aeródromo da Jodinka. Tanto Werner Franck como o espião de Tóquio estavam no certo: Alemanha invadiu a União Soviética em 22 de junho. Volodia e todo o pessoal da embaixada soviética no Berlim tinham retornado a Moscou, em navio e em trem. A Volodia tinham dado prioridade e voltou antes que a maioria; alguns ainda estavam de caminho. Volodia compreendia agora quanto o deprimia Berlim. Os nazistas resultavam tediosos com seu fariseísmo e seu triunfalismo. Eram como uma equipe de futebol depois de ganhar uma partida, cada vez mais bêbados e lentos, negando-se a ir-se a casa. Estava farto deles. Havia quem podia dizer que a URSS era parecida, com sua polícia secreta, sua rígida ortodoxia e suas atitudes puritanas ante prazeres tão abstratos como a pintura e a moda. equivocavam-se. O comunismo era uma obra em construção, e era normal cometer enganos pelo caminho para uma sociedade justa. O NKVD, com suas câmaras de tortura, era uma aberração, um câncer no corpo do comunismo. Algum dia o extirpariam. Mas provavelmente não enquanto durasse a guerra. Em previsão do estalo da guerra, fazia muito tempo que Volodia tinha equipado a seus espiões do Berlim com rádios clandestinas e códigos. Agora era mais primitivo que nunca que aquele punhado de valorosos opositores dos nazistas seguissem acontecendo informação aos soviéticos. antes de partir tinha destruído todo registro de seus nomes e suas direções, que solo conservava já em sua memória. Tinha encontrado a seus pais sãs e bem, embora seu pai parecia arrasado: tinha em suas mãos a responsabilidade de preparar Moscou para os bombardeios aéreos. Volodia tinha ido ver sua irmã, Ania, ao marido desta, Ilia Dvorkin, e aos gêmeos, que já tinham dezoito meses, Dimitri, a quem chamavam Dimka, e Tatiana, a quem chamavam Tania. Desgraçadamente, a Volodia o pai de ambos lhe seguia parecendo igual de ratonil e friável que sempre. Depois de um prazenteiro dia em casa e uma noite de sonho reparador em sua antiga habitação, estava preparado para voltar para trabalho. Passou pelo detector de metais situado à entrada da sede dos serviços secretos. Conhecido-los corredores e escadas lhe provocaram certa nostalgia, apesar a seu estilo austero e pragmático. Caminhando por eles, quase esperava que seus companheiros saíssem a lhe felicitar; muitos deles deviam saber que tinha sido ele quem tinha confirmado a Operação Barbarroja. Mas ninguém o fez; possivelmente preferiam ser discretos. Acessou a um espaço amplo e aberto onde trabalhavam datilógrafos e arquivistas, e falou com a recepcionista, uma mulher de média idade. —Olá, Nika. Vejo que segue aqui. —bom dia, capitão Peshkov —respondeu ela, sem a calidez que ele teria esperado—. O coronel Lemítov quer vê-lo quanto antes. Ao igual que o pai da Volodia, Lemítov não tinha sido o bastante importante para que lhe afetasse a grande purga levada a cabo a finais dos anos trinta, tinham-no ascendido e ocupava o posto de seu antigo e desafortunado superior. Volodia não sabia muito da purgação, mas lhe custava acreditar que tantos veteranos houvessem sido o bastante desleais para merecer um castigo. Tampouco sabia no que tinha consistido o castigo. Podiam estar exilados na Siberia, ou encarcerados, ou mortos. Quão único sabia era que tinham desaparecido. —Agora ocupa o despacho grande, ao final do corredor principal —acrescentou Nika. Volodia cruzou aquele espaço, saudando com a cabeça e sonriendo a um par de conhecidos, mas de novo teve a sensação de que não era o herói que acreditava. Chamou à porta do Lemítov, com a esperança de que o chefe pudesse lhe esclarecer algo. —Passe. Volodia entrou, saudou e fechou a porta. —Bem-vindo, capitão. —Lemítov saiu de atrás do escritório—. Entre você e eu, devo lhe dizer que fez um grande trabalho no Berlim. Obrigado. —É uma honra, senhor —respondeu Volodia—. Mas por que entre você e eu? —Porque contradisse ao Stalin. —Elevou uma mão adiantando-se a um possível protesto—. Stalin não sabe que foi você, é obvio. Mas, mesmo assim, depois da purgação, por aqui às pessoas lhe inquieta que a relacione com qualquer que se saia do caminho. —O que deveria ter feito? —perguntou Volodia, incrédulo—. Mentir dizendo que a informação era falsa? Lemítov sacudiu a cabeça com ar pormenorizado. —Fez o correto, não me interprete mal. E eu o protegi. Mas não espere que aqui o tratem como a um paladín. —De acordo —disse Volodia. As coisas estavam pior do que tinha imaginado. —Ao menos agora dispõe de despacho próprio, três portas mais à frente. Necessitará um ou dois dias para ficar ao dia. Volodia deduziu que o estava despachando. —Sim, senhor —disse. Saudou e partiu. Seu escritório não era luxuoso —uma sala pequena sem tapetes—, mas não tinha que compartilhá-lo. Volodia não estava à corrente do progresso da invasão alemã, com o trajín de tentar chegar a casa o antes possível. Naquele momento estacionou a decepção e começou a ler os informe enviados pelos comandantes do campo de batalha, referentes à primeira semana de guerra. Enquanto o fazia, sua desolação foi em aumento. A invasão tinha encontrado despreparado ao Exército Vermelho. Parecia impossível, mas as provas atapetavam seu escritório. Em 22 de junho, quando os alemães atacaram, muitas unidades de avançada do Exército Vermelho careciam de munição real. Isso não era tudo. Os aviões soviéticos estavam pulcramente alinhados sem camuflagem nos aeródromos, e a Luftwaffe tinha destruído mil e duzentos aparelhos em as primeiras horas de combate. enviaram-se unidades para frear o avanço alemão sem armas apropriadas, sem suporte aéreo e sem informação secreta sobre as posicione inimizades, e, em conseqüência, todas tinham sido aniquiladas. E, o pior de tudo, a ordem irrevogável do Stalin ao Exército Vermelho era a proibição da retirada. Todas as unidades deviam lutar enquanto ficasse um sozinho soldado em pé, e os oficiais deviam tirá-la vida antes que cair prisioneiros. Aos soldados não lhes permitia reagrupar-se em uma posição defensiva nova e mais forte. Isso significava que cada derrota se convertia em uma matança. Em conseqüência, o Exército Vermelho estava sofrendo uma autêntica sangria de homens e equipamento. Stalin tinha passado por cima a advertência do espião de Tóquio, e também a confirmação do Werner Franck. Inclusive quando o ataque deu começo, Stalin insistiu em um princípio em que se tratava de uma provocação pontual levada a cabo por oficiais do exército alemão a costas do Hitler, que a resolveria assim que tivesse conhecimento dela. Para quando se fez indisputável que não era uma provocação a não ser a invasão de majores proporcione da história bélica, os alemães tinham enrolado já as posições de avanzadilla dos soviéticos. Uma semana depois haviam talher quase quinhentos quilômetros para o interior do território soviético. Era uma catástrofe, e Volodia sentiu vontades de gritar aos quatro ventos que poderia haver-se evitado. Não cabia dúvida de quem era o responsável. A União Soviética era uma autocracia. Uma só pessoa tomava as decisões: Iósif Stalin. E se tinha equivocado de uma forma contumaz, estúpida e desastrosa. E agora seu país corria um perigo mortal. Até esse momento Volodia tinha acreditado que o comunismo soviético era a única ideologia válida, solo manchada pelos excessos da polícia secreta, o NKVD. Agora via que o fracasso afetava à cúpula. Beria e o NKVD unicamente existiam porque Stalin o consentia. Era Stalin quem impedia o avanço para o verdadeiro comunismo. Ao final daquela tarde, enquanto contemplava pela janela a ensolarada pista de aterrissagem, refletindo sobre o que acabava de saber, Volodia recebeu a visita do Kamen. Ambos tinham sido tenentes quatro anos antes, quando acabavam de sair da Academia dos Serviços Secretos do Exército, e tinham compartilhado despacho com outros dois companheiros. Naqueles tempos Kamen tinha sido o palhaço que ria de todos, burlando-se osadamente da devota ortodoxia soviética. Tinha ganho peso e parecia mais sério. deixou-se um fino bigode negro como o do ministro dos Assuntos Exteriores, Mólotov, talvez para parecer mais amadurecido. Kamen fechou a porta e se sentou. tirou-se do bolso um brinquedo, um soldado em miniatura com uma chave nas costas. Deu-lhe corda e o deixou sobre o escritório da Volodia. O soldado começou a mover os braços como se estivesse partindo e o mecanismo produziu um som estridente, um estalo continuado. —Ninguém viu ao Stalin em dois dias. Volodia compreendeu que a função daquele soldado mecânico era a de saturar qualquer possível dispositivo de escuta que houvesse oculto em seu escritório. —O que quer dizer com que ninguém o viu? —perguntou. —Não foi ao Kremlin e não responde ao telefone. Volodia estava desconcertado. O governante de um país não podia desaparecer sem mais. —O que está fazendo? —Ninguém sabe. —O soldado ficou sem corda. Kamen voltou a pô-lo em marcha—. na sábado de noite, quando soube que os alemães tinham cercado ao Grupo Ocidental do Exército Soviético, disse: Tudo está perdido. Rendo-me. Lenin fundou nosso Estado e eu o estraguei. E se foi ao Kuntsevo. —Stalin tinha uma casa de campo perto da cidade do Kuntsevo, aos subúrbios de Moscou—. Ontem não se apresentou no Kremlin a meio-dia, a hora habitual. Quando chamaram o Kuntsevo, ninguém respondeu ao telefone. Hoje, o mesmo. Volodia se inclinou para diante. —Está sofrendo… —sua voz se reduziu a um sussurro— uma crise nervosa? Kamen fez um gesto de impotência. —Não seria de sentir saudades. Contra todas as provas de que dispunha, insistiu em que a Alemanha não nos atacaria em 1941, e olhe agora. Volodia assentiu. Aquilo tinha sentido. Stalin tinha permitido que lhe denominasse oficialmente Pai, Professor, Grande Líder, Transformador da Natureza, Grande Timoneiro, Gênio da Humanidade e o Maior Gênio de Todos os Tempos e os Povos. Mas tinha ficado demonstrado, inclusive para ele mesmo, que se tinha equivocado e que todos outros tinham estado no certo. Em tais circunstâncias, um homem se suicidaba. A crise era inclusive pior do que Volodia tinha acreditado. A União Soviética não só estava sendo atacada e vencida. Também carecia de um dirigente. O país devia encontrar-se no momento mais perigoso da revolução. Mas suporia aquela situação também uma oportunidade? Poderia ser uma oportunidade para livrar-se do Stalin? A última vez que Stalin tinha parecido vulnerável tinha sido em 1924, quando em seu testamento político Lenin afirmava que Stalin não era o homem adequado para ostentar o poder. Tendo sobrevivido a essa crise, parecia intocável, em que pese a ter tomado decisões —Volodia o via agora com claridade— vizinhas na loucura: as purgações, os terríveis enganos na Espanha, a designação do sádico Beria como chefe da polícia secreta, o pacto com o Hitler. Constituía aquela emergência a oportunidade de acabar com seu poder? Volodia ocultou sua exaltação ante o Kamen e ante todos outros. guardou-se para si aqueles pensamentos durante o trajeto em ônibus de volta a casa sob a tênue luz de uma tarde estival que já declinava. A viagem se viu ralentizado por um lento comboio de caminhões que rebocavam baterias anti-aéreas, provavelmente desdobradas por seu pai, que estava a cargo da defesa de Moscou contra os bombardeios aéreos. Era possível derrocar ao Stalin? perguntou-se quantos homens do Kremlin estariam fazendo-se essa mesma pergunta. Entrou no edifício de dez novelo onde viviam seus pais, a residência governamental, situado em frente do Kremlin, na ribeira oposta do rio Moscova. Quando chegou, eles não estavam, mas sim sua irmã com os gêmeos, Dimka e Tania. O menino, Dimka, tinha os olhos e o cabelo escuros, e rabiscava com um lápis de cor vermelho em um periódico velho. Os olhos azuis da menina tinham o olhar intenso do Grigori e, a dizer de muitos, da Volodia. A pequena em seguida lhe ensinou sua boneca. Também estava ali Zoya Vorotsintsev, a física de espetacular beleza a quem Volodia tinha visto por última vez quatro anos antes, quando estava a ponto de ir-se a Espanha. Ania e ela compartilhavam o interesse pela música folclórica russa; foram juntas a recitais, e Zoya tocava o gudok, um violino de três cordas. Nenhuma podia permitir um fonógrafo, mas Grigori tinha um, e nesse momento escutavam um disco de uma orquestra de balalaikas. Volodia não era muito aficionado à música, mas aquela lhe parecia alegre. Zoya levava um vestido veraniego de manga curta e cor azul clara, como seus olhos. Quando Volodia lhe perguntou como estava, ela respondeu com secura: —Muito zangada. Naqueles momentos havia infinidade de motivos pelos que os soviéticos podiam estar zangados. —por que? —perguntou Volodia. —cancelaram minha investigação sobre física nuclear. atribuíram outras funções a todos meus companheiros científicos. Agora estou trabalhando na melhora do desenho de visores de bombardeio. Algo que a Volodia pareceu muito razoável. —A fim de contas, estamos em guerra. —Não o entende —disse ela—. Escuta, quando se submete o urânio a um processo chamado fissão, liberam-se enormes quantidades de energia. E quando digo enormes não exagero. Nós sabemos, e os cientistas ocidentais também. Temos lido os artigos que publicaram em revistas científicas. —Mesmo assim, o assunto dos visores de bombardeio parece mais urgente. —Esse processo, a fissão —replicou Zoya, irada—, poderia utilizar-se para fabricar bombas que seriam cem vezes mais potentes que nenhuma das que agora existem. Uma explosão nuclear poderia arrasar Moscou. E se a fabricam os alemães e nós não a temos? Seria como se eles lutassem com fuzis e nós com espadas! —Mas há algum motivo para acreditar que cientistas de outros países estejam trabalhando em uma bomba de fissão? —perguntou Volodia com cepticismo. —Estamos seguros de que o estão fazendo. O conceito da fissão faz pensar automaticamente na possibilidade de uma bomba. Se nos ocorreu, por que não a eles? Mas há outro motivo. Sempre publicavam nessas revistas quão resultados foram obtendo, e de repente, faz um ano, deixaram de fazê-lo. Não tornaram a aparecer artigos científicos sobre fissão há justo um ano. —E crie que os políticos e os generais ocidentais advertiram o potencial militar da investigação e agora a levam em segredo. —Não me ocorre outra razão. E, mesmo assim, na União Soviética nem sequer começamos a procurar jazidas de urânio. —Hum… Volodia fingiu duvidar, mas em realidade todo aquilo lhe parecia perfeitamente verossímil. Nem sequer os maiores admiradores do Stalin —um grupo no qual se contava seu pai— asseguravam que entendesse de ciência. E para um autocrata era muito fácil fazer caso omisso de todo aquilo que o incomodasse. —O expliquei a seu pai —prosseguiu Zoya—. Me escuta, mas ninguém escuta a ele. —O que vais fazer? —O que posso fazer? vou desenhar um fantástico visor de bombardeio para nossos pilotos, e a confiar depois no melhor. Volodia assentiu. Gostava daquela atitude. Gostava daquela garota. Era inteligente e batalhadora, e uma grande conversadora. perguntou-se se quereria ir ao cinema com ele. Falar sobre física lhe fez pensar no Willi Frunze, que tinha sido seu amigo na Academia Juvenil Masculina do Berlim. Segundo Werner Franck, Willi se tinha convertido em um físico brilhante e estudava na Inglaterra. Talvez soubesse algo da bomba de fissão que tanto preocupava a Zoya. E se seguia sendo comunista, possivelmente estivesse disposto a dizer o que sabia. Volodia decidiu que lhe enviaria um cabo aos serviços secretos do Exército Vermelho na embaixada em Londres. Chegaram seus pais. Ele ia embelezado com o uniforme completo; ela, com casaco e chapéu. Tinham assistido a uma das muitas e intermináveis cerimônias que tanto gostavam ao exército; Stalin insistia em que se prosseguisse com os rituais face à invasão alemã porque eram bons para a moral. Dedicaram uns minutos a jogar com os gêmeos, mas Grigori parecia distraído. Murmurou algo sobre uma chamada Telefónica e se foi a seu estudo. Katerina se dispôs a preparar o jantar. Volodia conversou com as três mulheres na cozinha, mas estava ansioso por falar com seu pai. Acreditava adivinhar o motivo de sua chamada: naquele mesmo instante se estava planejando ou evitando a derrocada do Stalin, e possivelmente inclusive naquele mesmo edifício. Minutos depois decidiu arriscar-se a sofrer a cólera do velho e lhe interromper. desculpou-se e foi a seu estudo, do que seu pai saía justo então. —Tenho que ir ao Kuntsevo —disse. Volodia ansiava saber o que estava passando. —por que? —perguntou. Grigori não fez caso da pergunta. —pedi que me tragam o carro, mas minha chofer já se foi a casa. Poderia me levar você. Volodia se estremeceu da emoção. Nunca tinha estado na dacha do Stalin. E estava a ponto de ir em um momento de profunda crise. —Vamos —disse seu pai, impaciente. despediram-se de vozes do saguão e saíram. Grigori tinha um ZIS 101-A negro, uma cópia soviética do Packard norte-americano, com caixa de mudanças automática de três velocidades; alcançava os cento e trinta quilômetros por hora. Volodia se sentou ao volante e arrancou o motor. Cruzou Arbat, um bairro de artesãos e intelectuais, e se dirigiu à auto-estrada do Mozhaisk, em direção ao oeste. —Convocou-te o camarada Stalin? —perguntou a seu pai. —Não. Stalin leva dois dias incomunicado. —Isso ouvi. —Seriamente? supunha-se que era secreto. —É impossível manter em segredo algo assim. O que está ocorrendo agora? —uns quantos vamos reunir nos com ele. Volodia formulou a pergunta chave: —Para que? —Principalmente, para averiguar se estiver vivo ou morto. Podia na verdade estar morto já e que ninguém soubesse?, perguntou-se Volodia. Parecia pouco provável. —E se estiver vivo? —Não sei. Mas, aconteça o que acontecer, prefiro estar ali para vê-lo me inteirar mais tarde. Volodia sabia que os dispositivos de escuta não eram viáveis nos carros —o microfone só captava o ruído do motor—, pelo que estava seguro de que ninguém podia ouvi-los. Entretanto, sentiu medo ao perguntar o inimaginável: —Poderia ser tombado Stalin? —Já te hei dito que não sei —respondeu seu pai, irritado. Volodia se estremeceu de pés a cabeça. Aquela pergunta exigia uma negativa absoluta. Todo o resto era um sim. Seu pai tinha admitido a possibilidade de que se pudesse acabar com o Stalin. Suas esperanças cresceram como a espuma. —Pensa no que isso suporia! —disse alegremente—. Não mais purga! enclausurariam-se os campos de trabalhos forçados. A polícia secreta já não seqüestraria a mais garotas em plena rua para as violar. —Em certo modo, esperava que seu pai o interrompesse, mas Grigori se limitou a escutá-lo com os olhos entreabridos. Volodia prosseguiu—: Se deixaria de dizer essa estupidez de que Trotski é um espião fascista. As unidades do exército que se estão vendo superadas em número e armamento poderiam retirar-se em lugar de sacrificar-se inutilmente. tomariam decisões de forma racional, e tomariam grupos de homens inteligentes que saberiam o que é melhor para todos. Seria o comunismo com o que sonhava faz trinta anos! —É jovem e estúpido —replicou seu pai com desdém—. Quão último queremos neste momento é perder a nosso dirigente. Estamos em guerra e perdendo! Nosso único objetivo deve ser defender a revolução, a qualquer preço. Agora necessitamos ao Stalin mais que nunca. Volodia se sentiu como se o tivessem esbofeteado. Tinham passado muitos anos da última vez que seu pai o tinha chamado estúpido. Tinha razão o velho? Necessitava a União Soviética ao Stalin? Tinha tomado tantas decisões desastrosas que Volodia não alcançava a ver como o país podia piorar com outra pessoa ao mando. Chegaram a seu destino. À moradia do Stalin a denominava tradicionalmente dacha, mas não era uma casa de campo. tratava-se de um edifício baixo e alargado, com cinco ventanales altos a cada lado de um imponente portal e pintado de verde claro para que se confundisse com os pinheiros que o rodeavam. Centenares de soldados armados custodiavam as cancelas e o cercado de arame de espinheiro. Grigori assinalou uma bateria anti-aérea parcialmente oculta sob redes de camuflagem. —Estacionarei ali —disse. O guarda apostado na cancela reconheceu ao Grigori, mas, mesmo assim, pediu-lhe seus documentos identificativos. Embora era geral e Volodia, capitão dos serviços secretos, revistaram-nos em busca de armas. Volodia conduziu até o portal. Não havia mais carros frente à casa. —Esperaremos a outros —disse seu pai. Momentos depois chegaram outras três limusines ZIS. Volodia recordou que o acrônimo ZIS correspondia ao Zavod Imeni Stalin, Fábrica Stalin. Chegavam os verdugos em carros que deviam seu nome a sua vítima? Oito homens de média idade, com traje e chapéu e com o futuro de seu país nas mãos, desembarcaram dos veículos. Entre eles, Volodia reconheceu ao ministro de Assuntos Exteriores, Mólotov, e ao chefe da polícia secreta, Beria. —Vamos —disse Grigori. Volodia estava perplexo. —vou entrar contigo? Grigori mediu debaixo de seu assento e entregou a Volodia uma pistola Tokarev TT-33. —te guarde isto no bolso —lhe disse—. Se o filho de puta da Beria tenta me prender, lhe dispare. Volodia a colheu com cautela: a TT-33 não tinha seguro. A meteu no bolso da jaqueta —media uns dezoito centímetros de comprimento— e desceu do carro. Recordou que a antecâmara desse modelo era de oito balas. Entraram com outros. Volodia temia que voltassem a revistá-lo e descobrissem a pistola, mas não houve uma segunda inspeção. A casa estava grafite de cores escuras e a iluminação era pobre. Um oficial conduziu ao grupo até o que parecia um pequeno comilão. Stalin se encontrava ali, sentado em uma poltrona. O homem mais capitalista do hemisfério oriental parecia gasto e abatido. Elevou o olhar para os que entravam no salão. —por que viestes? —perguntou. Volodia conteve o fôlego. Era evidente que acreditava que estavam ali para prendê-lo ou para executá-lo. Houve um comprido silencio, e Volodia compreendeu que o grupo não tinha previsto o que fazer. Como foram prever nada sem saber sequer se Stalin estava vivo? Mas o que fariam agora? lhe disparar? Era possível que não voltasse a dá-la ocasião. Finalmente, Mólotov avançou um passo. —Pedimo-lhe que volte para trabalho —disse. Volodia teve que reprimir o impulso de intervir. Mas Stalin negou com a cabeça. —Posso estar à altura das esperanças do povo? Posso levar o país à vitória? Volodia estava pasmado. Estava na verdade disposto a renunciar? —Poderia haver candidatos melhores —acrescentou. Estava-lhes dando uma segunda oportunidade para lhe disparar! Outro membro do grupo falou, e Volodia reconheceu nele ao marechal Voroshílov. —Nenhum mais digno —disse. Do que servia aquilo? Não era precisamente um momento para andar-se com lisonjas. Então seu pai se somou a ele. —É certo! —exclamou. Não foram deixar partir ao Stalin? Como podiam ser tão néscios? Mólotov foi o primeiro em dizer algo sensato. —Propomos uma forma de gabinete de guerra que se chame Comitê de Defesa do Estado, uma espécie de ultrapolitburó com muito poucos membros e poderes absolutos. —Quem o dirigirá? —apressou-se a perguntar Stalin. —Você, camarada Stalin! Volodia quis gritar: Não!. produziu-se outro comprido silencio. Ao final, Stalin retomou a palavra. —Bem —disse—. A quem mais devemos incluir no comitê? Beria avançou um passo e começou a propor nomes. Volodia caiu na conta de que tudo estava acabado e se sentiu aturdido pela frustração e a decepção. Tinham desperdiçado sua oportunidade. Poderiam haver tombado a um tirano, mas lhes tinha faltado valor. Como os filhos de um pai violento, temiam não ser capazes de sair adiante sem ele. De fato, era muito pior que isso, compreendeu Volodia com crescente desalento. Talvez Stalin tivesse sofrido um crise nervosa —parecia mais que possível—, mas também tinha efetuado um movimento político brilhante. Todos os homens que podiam substitui-lo-se encontravam naquele salão. No momento em que lhes havia demonstrado a seus rivais que seu critério era péssimo e catastrófico, tinha-os obrigado a sair e lhe suplicar que voltasse a ser seu dirigente. Tinha esboçado uma linha sob seu atroz engano e se concedeu uma nova oportunidade. Stalin não só havia tornado. Era mais forte que nunca. XI Quem ia ter a coragem de protestar publicamente pelo que estava acontecendo no Akelberg? Carla e Frieda o tinham presenciado, e contavam com o Ilse König como testemunha, mas agora necessitavam um advogado. Já não havia representantes escolhidos democraticamente, todos os deputados do Reichstag eram nazistas. Tampouco havia autênticos jornalistas, só aduladores servis. Todos os juizes tinham sido designados pelos nazistas e estavam ao serviço do governo. Carla nunca tinha sido consciente da medida em que tinha vivido protegida pelos políticos, os jornalistas e os advogados. Sem eles, compreendia agora, o governo podia fazer quanto agradasse-lhe, inclusive matar a pessoas. A quem podiam recorrer? O admirador da Frieda, Heinrich von Kessel, tinha um amigo que era sacerdote católico. Peter era o guri mais inteligente de minha classe —havia-lhes dito—, mas não o mais popular, possivelmente por sua retidão e sua teima. Mas acredito que lhes escutaria. Carla acreditava que valia a pena tentá-lo. Seu pastor protestante as tinha ajudado até que a Gestapo tinha conseguido aterrá-lo e silenciá-lo com suas ameaças. Era possível que voltasse a ocorrer isso. Mas não sabia que mais podia fazer. Heinrich acompanhou a Carla, Frieda e Ilse à igreja do Peter, no Schöneberg, a primeira hora da manhã de um domingo de julho. Heinrich se tinha posto um traje negro muito elegante; as três garotas levavam o uniforme de enfermeira pois parecia inspirar confiança e seriedade. Entraram por uma porta lateral e se dirigiram a uma sala pequena e poeirenta em que havia várias cadeiras velhas e um armário roupeiro grande. Ali encontraram ao pai Peter sozinho, rezando. Devia lhes haver ouvido entrar, mas seguiu ajoelhado um minuto antes de se levantar e dá-la volta para saudá-los. Peter era alto, magro e de facções discretas, e levava o cabelo pulcramente talhado. Carla calculou que teria vinte e sete anos, se era da geração de Heinrich. Ele os olhou com expressão carrancuda, sem incomodar-se em ocultar sua irritação por ter sido importunado. —Estou-me preparando para a missa —disse com voz severo—. Me agrada verte na igreja, Heinrich, mas agora devem partir. Verei-lhes depois. —trata-se de uma emergência espiritual, Peter —disse Heinrich—. Sente-se, temos que te contar alto importante. —Dificilmente pode ser mais importante que a missa. —é, Peter, me acredite. Em cinco minutos me dará a razão. —Muito bem. —Esta é minha noiva, Frieda Franck. Carla se surpreendeu. Frieda era agora sua noiva? —Meu irmão pequeno nasceu com espinho bífido —disse Frieda—. Faz uns meses o transladaram a um hospital do Akelberg, na Baviera, para submetê-lo a um tratamento especial. Pouco depois recebemos uma carta em que nos informavam que tinha morrido de apendicite. voltou-se para a Carla, quem prosseguiu com o relato. —Minha criada tinha um filho que tinha nascido com uma lesão cerebral ao que também transladaram ao Akelberg. Recebeu uma carta idêntica o mesmo dia. Peter abriu as mãos em um gesto que dava a entender que aquilo não lhe parecia nada extraordinário. —Já soube que casos similares. É propaganda antigovernamental. A Igreja não se mistura na política. Miúda patranha, pensou Carla. A Igreja estava colocada até o pescoço na política. Mas preferiu passar por cima aquele comentário. —O filho de minha criada não tinha apêndice —prosseguiu—. O tinham extirpado dois anos antes. —Por favor —disse Peter—. O que demonstra isso? Carla se sentiu descorazonada. Era óbvio que Peter se posicionava contra eles. —Espera, Peter. Não o ouviste tudo. Esta é Ilse. Trabalhava no hospital do Akelberg. Peter a olhou espectador. —Educaram-me no catolicismo, pai —disse Ilse; Carla o ignorava—, mas não sou uma boa católica —acrescentou. —Bom é Deus, não nós, minha filha —disse Peter, piedosamente. —Mas sabia que o que estava fazendo era pecado. E mesmo assim o fiz, porque me ordenavam isso, e eu estava assustada. —Rompeu a chorar. —O que fez? —Matar a gente. OH, pai, perdoará-me Deus? O sacerdote olhou fixamente a jovem enfermeira. Não podia considerar aquilo propaganda; tinha ante si uma alma atormentada. Empalideceu. Os outros guardaram silêncio. Carla conteve o fôlego. —Levam a pessoas discapacitadas ao hospital em ônibus cinzas —disse Ilse—. Não recebem um tratamento especial. Administramo-lhes uma injeção, e morrem. Depois incineramo-los. —Elevou o olhar por volta do Peter—. Serei perdoada algum dia pelo que tenho feito? Ele abriu a boca para falar. Lhe obstruíram as palavras na garganta e tossiu. —Quantos? —disse finalmente com voz tênue. —Pelo general, quatro. Ônibus, quero dizer. Revistam chegar uns vinte e cinco pacientes em cada ônibus. —Cem pessoas? —Sim. Por semana. A ufana compostura do Peter se desvaneceu. Tinha a tez pálida e plúmbea, e a boca aberta. —Cem pessoas discapacitadas por semana? —Sim, pai. —Que tipo de discapacidades? —De todo tipo, mentais e físicas. Anciões senis, bebem com má formações, homens e mulheres, paraplégicos e atrasados, ou simplesmente pessoas improdutivas. Peter teve que repeti-lo. —E o pessoal do hospital os mata a todos? Ilse soluçou. —Sinto muito, sinto muito, sabia que estava mau. Carla observou ao Peter. Não ficava nem rastro de seu ar altivo e desdenhoso. apreciava-se nele uma notável transformação. depois de escutar em confissão os pequenos pecados dos prósperos católicos daquele rico distrito, de repente se via enfrentado à maldade em estado puro. Estava conmocionado. Mas o que faria? Peter ficou em pé. Tomou ao Ilse de ambas as mãos e a ajudou a levantar-se da cadeira. —Volta para a Igreja —lhe disse—. te Confesse com seu sacerdote. Deus te perdoará. Disso estou seguro. —Obrigado —sussurrou ela. Soltou suas mãos e olhou ao Heinrich. —Não será tão singelo para outros —disse. voltou-se de costas para eles e se ajoelhou para rezar de novo. Carla olhou ao Heinrich, e este se encolheu de ombros. levantaram-se e saíram da sala. Carla rodeou com um braço ao Ilse, que seguia chorando. —Ficaremos à missa —disse Carla—. Possivelmente queira voltar a falar conosco depois. Entraram na nave da igreja. Ilse finalmente se acalmou. Frieda se agarrou por braço do Heinrich. sentaram-se entre a congregação, formada por homens prósperos, mulheres roliças e meninos revoltosos, todos eles embelezados com seus melhores ornamentos. Carla pensou que gente como aquela nunca mataria a pessoas discapacitadas. Embora seu governo sim, pelo bem de todos eles. Como tinha chegado a ocorrer algo assim? Não sabia o que esperar do pai Peter. Era evidente que tinha acabado acreditando-os. Em um princípio tinha querido despachá-los considerando que suas motivações eram políticas, mas a sinceridade do Ilse o tinha convencido. ficou-se horrorizado. Mas não tinha feito nenhuma promessa, salvo que Deus perdoaria ao Ilse. Carla olhou a seu redor. A decoração da igreja era mais vistosa e colorida do que ela estava habituada a ver nas Iglesias protestantes. Havia mais estátuas e frescos, mais mármore, mais doraduras, mais lendas e mais círios. Recordou que protestantes e católicos se enfrentaram por trivialidades como essas. Que estranho parecia que em um mundo onde era possível assassinar a meninos alguém se preocupasse com os círios. A missa começou. Os sacerdotes entraram com as batinas; o pai Peter era o mais alto. Carla não soube apreciar em seu semblante mais que uma séria devoção. Permaneceu indiferente aos hinos e as orações. Tinha rezado por seu pai, e duas horas depois o tinha encontrado cruelmente espancado e moribundo no chão de sua casa. O tinha saudades todos os dias, às vezes hora detrás hora. Suas rezas não o tinham salvado, nem protegeriam a aqueles a quem o governo considerava inúteis. requeria-se ação, não palavras. Pensar em seu pai lhe fez lembrar-se do Erik. Estava em algum lugar da União Soviética. Tinha escrito uma carta a casa, celebrando exultante o rápido progresso da invasão, e negando-se, furioso, a acreditar que ao Walter o tinha matado a Gestapo. Sustentava que, obviamente, a seu pai a Gestapo o tinha solto ileso e logo o tinham agredido na rua criminais, comunistas ou judeus. Vivia em uma fantasia, além da razão. Seria também o caso do pai Peter? Peter subiu ao púlpito. Carla não sabia que ia pronunciar um sermão. Sentiu curiosidade por saber o que diria. inspiraria-se no que tinha descoberto aquela amanhã? Falaria de algo irrelevante, a virtude da modéstia ou o pecado da inveja? Ou fecharia os olhos e daria as graças a Deus devotamente pelas constantes vitórias do exército alemão na União Soviética? apostou-se no púlpito e percorreu a igreja com um olhar que bem poderia ter sido arrogante, orgulhosa ou desafiante. —O quinto mandamento diz: Não matará. Carla olhou ao Heinrich. O que estavam a ponto de ouvir? A voz do sacerdote ressonou entre as reverberantes pedras da nave. —Há um lugar no Akelberg, Baviera, onde nosso governo está transgredindo esse mandamento cem vezes por semana! Carla ficou paralisada. Estava-o fazendo…, estava pronunciando um sermão contra o programa! Aquilo podia trocá-lo tudo. —Nada importa que as vítimas sejam discapacitados, ou doentes mentais, ou pessoas que não podem comer sozinhas, ou paraplégicos. —Peter dava rédea a sua cólera—. Tanto os bebês indefesos como os anciões senis são filhos de Deus, e suas vidas são tão sagradas como as suas ou a minha. —O volume de sua voz foi aumentando—. matá-los é pecado mortal! —Elevou o braço direito e fechou a mão em um punho, e sua voz tremeu de emoção—. Lhes digo que se não fazermos nada a respeito, seremos tão pecadores como os médicos e as enfermeiras que administram essas injeções letais. Se guardarmos silêncio… —Fez uma pausa—. Se guardarmos silêncio, também seremos assassinos! XII O inspetor Thomas Macke estava furioso. Tinham-lhe feito ficar como um idiota aos olhos do superintendente Kringelein e do resto de seus superiores. Ele os tinha assegurado que tinha soldado a fuga. O segredo do Akelberg —e de hospitais similares situados em diversos lugares do país— estava a salvo, havia dito. Tinha localizado aos três agitadores, Werner Franck, o pastor Ochs e Walter von Ulrich, e, de diferentes forma, tinha-os silenciado aos três. E, mesmo assim, o segredo se difundiu. O responsável era um sacerdote jovem e arrogante chamado Peter. O pai Peter se encontrava frente a Macke nesse momento, nu, pacote pelas bonecas e os tornozelos a uma cadeira fabricada a tal efeito. Sangrava pelos ouvidos, o nariz e a boca, e uma capa de vômito lhe cobria o peito. Tinha eletrodos aderidos aos lábios, os mamilos e o pênis. Uma cinta ao redor da frente impedia que se fraturasse o pescoço com as convulsões. Um médico sentado ao lado do sacerdote lhe auscultava o coração com um estetoscópio e parecia vacilante. —Não agüentará muito mais —disse com total naturalidade. O sedicioso sermão do pai Peter se propagou por toda parte. O bispo do Münster, um clérigo muito mais relevante, tinha pronunciado um sermão similar no qual tinha denunciado o programa T4 e apelado ao Hitler para que salvasse a aquelas pessoas de mãos da Gestapo, dando a entender astutamente que não era possível que o Führer tivesse conhecimento do programa, e oferecendo assim ao Hitler um pretexto. Aquele sermão se datilografou e copiado e passado de emano em emano por toda a Alemanha. A Gestapo tinha detido a todo aquele que tinha encontrado em posse de uma cópia, em vão. Era a primeira vez na história do Terceiro Reich em que se produzia um protesto público contra uma medida governamental. A repressão foi selvagem, mas infrutífera: as cópias do sermão seguiam proliferando, outros clérigos rezavam pelos discapacitados e inclusive se levou a cabo uma manifestação no Akelberg. O assunto estava fora de controle. E Macke era o culpado. inclinou-se sobre o Peter. O sacerdote tinha os olhos fechados e respirava com dificuldade, mas estava consciente. —Quem te falou do Akelberg? —gritou-lhe Macke ao ouvido. Não houve resposta. Peter era a única pista de que dispunha Macke. As indagações na cidade do Akelberg não tinham reportado nada significativo. Reinhold Wagner tinha falado de duas garotas que tinham visitado o hospital em bicicleta, mas ninguém sabia quem eram; e corria outro rumor sobre uma enfermeira que tinha renunciado de um dia para outro, depois de enviar uma carta em que dizia que ia casar se de forma precipitada embora sem especificar com quem. Nenhuma das duas pistas tinha conduzido a nada. Em qualquer caso, Macke estava seguro de que aquela calamidade não podia ser obra de duas crias. Fez um gesto afirmativo em direção ao técnico que operava a máquina, e este acionou um mando. Peter proferiu um grito agônico quando a corrente elétrica começou a percorrer seu corpo lhe destroçando os nervos. convulsionou-se como se estivesse sofrendo um ataque e lhe arrepiou o cabelo. O operador desconectou a corrente. —me diga como se chama esse homem! —gritou Macke. Finalmente, Peter abriu a boca. Macke se aproximou mais a ele. —Não é um homem —sussurrou Peter. —Pois a mulher! me diga como se chama! —É um anjo. —Maldito seja! —Macke agarrou o mando e o acionou—. Penso-se guir até que me diga isso! —bramou enquanto Peter se sacudia e gritava. A porta se abriu. Um jovem detetive apareceu por ela, empalideceu e fez gestos ao Macke para que se aproximasse. O técnico desconectou a corrente e os gritos cessaram. O médico se inclinou sobre o peito do Peter. —Desculpe-me, inspetor Macke —disse o detetive—, mas o superintendente Kringelein lhe requer. —Agora? —repôs Macke, irritado. —Isso há dito, senhor. Macke olhou ao médico, e este se encolheu de ombros. —É jovem —disse—. Seguirá vivo quando voltar. Macke abandonou a sala e subiu as escadas com o detetive. O despacho do Kringelein se encontrava no primeiro andar. Macke bateu na porta e entrou. —O maldito padre ainda não falou —disse sem preâmbulos—. Necessito mais tempo. Kringelein era um homem magro e com lentes, inteligente mas de vontade débil. Converso tardio ao nazismo, não pertencia a élite das SS. Carecia do ardor de entusiastas como Macke. —Não se incomode mais com esse padre —disse—. Já não nos interessam os clérigos. Envie-os a um campo e esqueça-os. Macke não dava crédito ao que acabava de ouvir. —Mas essa gente conspirou para debilitar ao Führer! —E o conseguiu —repôs Kringelein—. Enquanto que você fracassou. Macke suspeitava que Kringelein sentia prazer disso secretamente. —tomou-se uma decisão nas altas esferas —prosseguiu o superintendente—. O Aktion T4 foi cancelado. Macke estava atônito. Os nazistas nunca permitiam que suas decisões estivessem influídas pelos receios dos ignorantes. —Não chegamos até aqui agachando a cabeça ante a opinião pública! —disse. —Pois esta vez vamos fazer o. —por que? —O Führer não pôde me explicar sua decisão em pessoa —respondeu Kringelein com sarcasmo—, mas posso adivinhá-lo. O programa suscitou protestos furiosos em um público pelo general passivo. Se persistirmos nele, arriscamo-nos a que estale uma confrontação aberta com o Iglesias de todas as fés, algo que não nos convém. Não devemos debilitar a unidade e a determinação do povo alemão, em especial agora que estamos em guerra com a União Soviética, no momento nosso inimigo mais forte. De modo que o programa fica cancelado. —Muito bem, senhor —disse Macke, controlando sua cólera—. Algo mais? —Pode ir-se —disse Kringelein. Macke se dirigiu à porta. —Macke… voltou-se. —Sim, senhor? —Troque-se de camisa. —Como? —Tem-na manchada de sangue. —Sim, senhor. Lamento-o, senhor. Macke baixou as escadas iracundo e com passo firme. Voltou para a sala do porão. O pai Peter seguia vivo. —Quem te falou do Akelberg? —voltou a bramar, furioso. Não houve resposta. Ativou a corrente à máxima potencializa. O pai Peter gritou durante comprido momento; instantes depois, sumiu-se em um último silêncio. XIII A vila onde vivia a família Franck se encontrava em um parque. A duzentos metros, sobre um discreto montículo, havia um pequeno pagode aberto pelos quatro custados e com assentos. De meninas, Carla e Frieda tinham jogado nela durante horas fingindo que era sua casa de campo e que celebravam grandes festas nas que dezenas de serventes atendiam a seus glamurosos convidados. Tempo depois se converteu em seu lugar predileto para sentar-se a conversar sem que ninguém as ouvisse. —A primeira vez que me sentei neste banco não me chegavam os pés ao estou acostumado a —disse Carla. —eu adoraria voltar para aqueles tempos —comentou Frieda. Era uma tarde abafadiça, nublada e úmida, e as duas tinham vestidos sem mangas. sentiam-se afligidas. O pai Peter tinha morrido, havia-se suicidado estando detido detrás cair na depressão que lhe tinha provocado o conhecimento daqueles crímenes, segundo a polícia. Carla se perguntou se o teriam torturado, como a seu pai. Parecia espantosamente provável. Os detidos se contavam por dúzias nos calabouços da polícia por toda a Alemanha. Alguns tinham protestado publicamente contra aqueles assassinatos de discapacitados, outros não tinham feito mais que distribuir cópias do sermão do bispo Von Galen. Carla se perguntava se os torturariam a todos. perguntava-se quanto tempo evitaria ela aquele a não ser. Werner saiu de casa com uma bandeja e cruzou o jardim até o pagode. —um pouco de limonada, garotas? —perguntou alegremente. Carla apartou o olhar. —Não, obrigado —respondeu com frieza. Não entendia como podia pretender ser seu amigo depois da covardia de que tinha dado mostra. —Eu tampouco —disse Frieda. —Espero que não tenhamos deixado de ser amigos —disse Werner, olhando a Carla. Como podia duvidá-lo? É obvio que tinham deixado de ser amigos. —O pai Peter morreu, Werner —lhe informou Frieda. —Possivelmente torturado pela Gestapo —acrescentou Carla—, porque se negasse a aceitar o assassinato de pessoas como seu irmão. Meu pai morreu pelo mesmo motivo. Muitos outros estão no cárcere ou em campos de prisioneiros. Mas você conservaste seu cômodo posto de trabalho, assim não passa nada. Werner parecia ferido. E isso surpreendeu a Carla. Tinha esperado uma atitude desafiante, ou ao menos um gesto de indiferença. Mas parecia verdadeiramente aborrecido. —Não criem que cada um tem sua maneira de fazer o que pode? —disse. Era um argumento pouco convincente. —Você não tem feito nada! —replicou Carla. —Talvez —respondeu ele, abatido—. Então, não querem limonada? Nenhuma respondeu, e Werner voltou para a casa. Carla estava indignada e zangada, mas não pôde evitar sentir-se também algo pesarosa. antes de saber que Werner era um covarde, embarcou-se em uma relação sentimental com ele. Gostava de muito, dez vezes mais que qualquer outro menino ao que tivesse beijado. Não tinha o coração quebrado, mas sim sentia uma profunda decepção. Frieda tinha mais sorte. Sobreveio-lhe aquele pensamento ao ver o Heinrich sair da casa. Frieda era sofisticada e divertida, e Heinrich, reflexivo e intenso, mas de algum modo faziam bom casal. —Segue apaixonada por ele? —perguntou-lhe Carla enquanto Heinrich ainda não podia as ouvir. —Ainda não sei —respondeu Frieda—. Embora seja muito doce. Adoro-o. Pode que isso não fora amor, pensou Carla, mas ia caminho de sê-lo. Heinrich chegou carregado de notícias. —Tinha que vir em seguida a dizer lhes disse isso—. Meu pai me contou isso depois de almoçar. —O que? —perguntou Frieda. —O governo cancelou o projeto. chamava-se Aktion T4. O assassinato de discapacitados. Estão deixando de fazê-lo. —Quer dizer que ganhamos? —perguntou Carla. Heinrich assentiu vigorosamente. —Meu pai está muito surpreso. Diz que nunca tinha visto o Führer ceder ante a opinião pública. —E nós lhe obrigamos a fazê-lo! —disse Frieda. —Graças a Deus que ninguém sabe —repôs Heinrich com o mesmo ardor. —De verdade vão fechar os hospitais e a cancelar o programa sem mais? —Não exatamente. —A que te refere? —Meu pai diz que estão transladando a todos esses médicos e enfermeiras. —Aonde? —perguntou Carla com expressão carrancuda. —A Rússia —respondeu Heinrich. 9 1941 (II) I O telefone do escritório do Greg Peshkov soou uma calorosa manhã de julho. Acabava de terminar seu penúltimo ano no Harvard e, durante o verão, voltava a realizar práticas no Departamento de Estado, no escritório de imprensa. Lhe davam muito bem a física e as matemática, e superou os exames sem esforço, mas não tinha nenhum interesse em converter-se em cientista posto que sua verdadeira paixão era a política. Respondeu à chamada. —Greg Peshkov. —bom dia, senhor Peshkov. Sou Tom Cranmer. Ao Greg lhe acelerou um pouco o coração. —Obrigado por me devolver a chamada. É evidente que se lembra de mim. —Hotel Ritz-Carlton, 1935. É a única vez que publicaram minha foto no periódico. —Ainda é o detetive do hotel? —Troquei ao ramo do comércio. Agora sou detetive em uns grandes armazéns. —trabalhou alguma vez por conta própria? —É obvio. No que está pensando? —Estou em meu escritório. Eu gostaria que falássemos em privado. —Trabalha no Velho Edifício do Escritório Executivo, em frente da Casa Branca. —Como sabe isso? —Sou detetive. —Claro. —Estou a dois passos, no café Aroma, na esquina das ruas F e Dezenove. —Agora mesmo não posso ir. —Greg olhou o relógio—. De fato, tenho que pendurar imediatamente. —Esperarei. —Deme uma hora. Greg se precipitou escada abaixo, e chegou à entrada principal justo no momento em que na rua se apagava o ruído do motor de um Rolls-Royce. Um chofer com sobrepeso saiu do veículo e abriu a portinhola traseira. O passageiro que se apeou era alto, magro e de aparência agradável, com uma grande mata de cabelo prateado. Levava um traje cruzado de flanela cinza pérola e corte perfeito que o envolvia com um estilo que solo os alfaiates de Londres eram capazes de conseguir. Subiu os degraus de granito que davam acesso ao colossal edifício enquanto o grosso chofer corria atrás dele com sua maleta. tratava-se do Sumner Welles, subsecretário de Estado, número dois do Departamento de Estado e amigo pessoal do presidente Roosevelt. O chofer estava a ponto de entregar a maleta a um meirinho do Departamento de Estado quando Greg se adiantou. —bom dia, senhor —saudou, e, como quem não quer a coisa, tomou a maleta da mão do chofer enquanto mantinha a porta aberta. Logo seguiu ao Welles para o interior do edifício. Greg conseguiu entrar em trabalhar no escritório de imprensa graças aos artigos bem documentados e de redação fluída que tinha realizado para o Harvard Crimson, mas não tinha nenhuma vontades de acabar como agregado de imprensa. Suas ambições eram maiores. Admirava ao Sumner Welles, que recordava a seu pai. Sua boa aparência, seus objetos seletos e seu ar cativante escondiam uma personalidade implacável. Welles estava decidido a desbancar a seu chefe, o secretário de estado Cordell Hull, e nunca vacilava na hora de atuar a suas costas e falar diretamente com o presidente, o qual tirava de gonzo ao Hull. Ao Greg resultava muito estimulante estar tão perto de alguém que tinha poder e não temia utilizá-lo; era o que lhe gostaria ser. Welles se tinha fixado nele. A gente estava acostumada fixar-se no Greg, em especial quando ele o propiciava, mas no caso do Welles entrava em jogo outro fator. Embora estava casado (com uma herdeira e, ao parecer, felizmente), sentia debilidade pelos jovens atrativos. Greg era heterossexual até a medula. No Harvard tinha noiva formal, uma estudante do Radcliffe chamada Emily Hardcastle que lhe tinha prometido colocar um dispositivo intra-uterino antes de setembro; e em Washington saía com a Rita, a exuberante filha do congressista Lawrence do Texas. Com o Welles, dançava na corda frouxa. Evitava todo contato físico enquanto se mostrava o bastante afável para seguir gozando de seu favor. E sempre tratava de permanecer afastado dele depois da hora do coquetel porque então o homem entrado em anos baixava o guarda e começava a pôr as mãos onde não devia. Nesses momentos os altos cargos estavam indo ao escritório para a reunião das dez. —Pode ficar, jovencito. Isto contribuirá a sua formação. Greg estava emocionadísimo. perguntava-se se a reunião lhe brindaria a oportunidade de destacar, posto que desejava atrair a atenção dos pressente e impressioná-los. Ao cabo de poucos minutos, chegou o senador Dewar com seu filho Woody. Pai e filho eram desajeitados e tinham a cabeça grande, e levavam sendos trajes muito parecidos de corte reto confeccionados com uma veraniega tecido de linho azul marinho. Entretanto, Woody se distinguia de seu pai por sua veia artística: as fotografias que tinha realizado para o Harvard Crimson haviam lhe valido prêmios. Woody saudou com a cabeça ao primeiro ajudante do Welles, Bexforth Ross. Deviam conhecer-se de antemão. Bexforth era um tipo excessivamente pago de si mesmo que chamava o Greg Ruski por causa de seu sobrenome. Welles foi o primeiro em tomar a palavra. —Tenho que lhes revelar uma informação altamente confidencial que não deve comentar-se fora desta sala. O presidente se reunirá com o primeiro-ministro britânico a princípios do mês que vem. Greg esteve a ponto de soltar uma exclamação de assombro, mas se conteve a tempo. —Estupendo! —disse Gus Dewar—. Onde? —O plano é que se encontrem em um navio em algum ponto do Atlântico, por segurança e também para economizarparte do percurso ao Churchill. O presidente quer que eu o acompanhe, enquanto que o secretário de estado, Hull, ficará em Washington para ocupar do negócio. Também quer que atira você, Gus. —Será uma honra —disse Gus—. Qual é a ordem do dia? —Ao parecer, os britânicos repeliram a ameaça de invasão, mas são muito fracos para atacar aos alemães no continente europeu; a menos que nós ajudemo-lhes. Com esse fim, Churchill nos pedirá que declaremos a guerra a Alemanha. Nos negaremos, é obvio. Quando resolvermos isso, o presidente quer que se firme uma declaração de intenções conjunta. —Mas não de guerra —disse Gus. —Não, porque os Estados Unidos não está em guerra e não tem previsto participar dela. Entretanto, somos aliados não beligerantes dos britânicos, abastecemo-los de virtualmente tudo o que necessitam com crédito ilimitado, e, quando ao fim se obtenha a paz, esperamos ter voto na forma em que deve governar o mundo na era posterior à guerra. —Isso implica um fortalecimento da Sociedade das Nações? —perguntou Gus. Greg sabia que a idéia lhe atraía, e ao Welles também. —Por isso queria falar com você, Gus. Se quisermos que nosso plano se leve a cabo, temos que estar preparados. Temos que conseguir que Roosevelt e Churchill comprometam-se a isso como parte da declaração. —Os dois sabemos que, em teoria, o presidente está a favor, mas lhe inquieta a opinião pública. Entrou um funcionário e entregou uma nota ao Bexforth. Este a leu. —meu deus! —exclamou. —O que acontece? —disse Welles com irritação. —O Conselho Imperial Japonês se reuniu a semana passada, como já sabe —disse Bexforth—. recebemos informação secreta sobre as deliberações. Não precisava de onde procedia a informação, mas Greg já tinha sabor do que se referia. A unidade de sinais dos serviços secretos do exército americano era capaz de interceptar e decodificar mensagens que o Ministério de Assuntos Exteriores do Japão enviava desde Tóquio a suas embaixadas no estrangeiro. Os dados de essas decodificações se conheciam com o nome em chave do MAGIC. Greg sabia algumas costure sobre isso, apesar de que não deveria as saber; de fato, se o exército chegava a inteirar-se de que estava à corrente do segredo, armaria-se um escândalo de revide. —Os japoneses se expõem estender seu império —prosseguiu Bexforth. Greg sabia que já se anexaram a vasta região da Manchuria e que tinham enviado tropas a grande parte do resto da China—. Mas sua preferência não é avançar em direção oeste, para a Siberia, o que suporia entrar em guerra com a União Soviética. —Que bem! —exclamou Isso Welles significa que os russos podem concentrar-se em combater aos alemães. —Sim, senhor. Mas esses japoneses planejam ampliar seu território para o sul, fazendo-se primeiro com o controle absoluto de Indochinesa e ocupando depois as Índias Orientais Holandesas. Greg ficou aniquilado. Isso era um explosão, e ele estava entre os primeiros em inteirar-se. Welles estava indignado. —Mas bom! Isso não é nem mais nem menos que uma guerra imperialista! —Em rigor, Sumner, não se trata de nenhuma guerra —atravessou Gus—. Os japoneses já têm tropas em Indochinesa, com permissão formal da potência colonial correspondente, França, representada pelo governo do Vichy. —Bonecos dos nazistas! —Hei dito em rigor. E as Índias Orientais Holandesas, em teoria, dependem dos Países Baixos, agora ocupados pelos alemães, que estão mais que satisfeitos de que seus aliados japoneses ocupem uma colônia holandesa. —Isso são sutilezas. —Sim, sutilezas às que teremos que fazer frente; seguro que, sem ir mais longe, o embaixador japonês nos expõe a questão. —Tem razão, Gus, e obrigado por me pôr sobre aviso. Greg estava pendente da menor oportunidade de intervir na conversação. Desejava por cima de tudo impressionar às importantes figura que tinha ao redor. Não obstante, todos sabiam muitas mais costure que ele. —O que é o que querem os japoneses em última instância? —perguntou Welles. —Petróleo, borracha e estanho. Querem assegurar o acesso aos recursos naturais, o qual não é de sentir saudades posto que não paramos de interceptar seu abastecimento. —Estados Unidos tinha proibido a exportação de bens como o petróleo e a escória de ferro ao Japão, em um intento fracassado de dissuadir aos japoneses de anexar-se territórios ainda mais extensos da Ásia. Welles respondeu de mau humor. —A proibição nunca se aplicou de forma muito estrita. —Não, mas, obviamente, basta com a ameaça para que no Japão estenda o pânico, posto que logo que dispõem de recursos naturais próprios. —Está claro que temos que tomar medidas mais efetivas —soltou Welles—. Os japoneses têm muito dinheiro depositado em bancos americanos. Podemos congelar seu ativos? Os funcionários presentes na sala pareciam desaprovar a idéia, era muito radical. —Suponho que sim —disse Bexforth ao cabo de uns instantes—. Sortiria mais efeito que qualquer proibição. Dessa forma lhes será impossível comprar petróleo nem nenhuma outra matéria prima aqui, nos Estados Unidos, porque não poderão pagá-lo. —O secretário de estado, como sempre, tratará de evitar qualquer ação que possa originar uma guerra —observou Gus Dewar. Tinha razão. Cordell Hull era precavido até o ponto de resultar tímido, e muitas vezes me chocava com o subsecretário Welles, de maior impulso. —O senhor Hull sempre seguiu essa linha, e muito sabiamente —opinou Welles. O protocolo o exigia, embora todos sabiam que não falava com sinceridade—. Não obstante, Estados Unidos deve passear-se pelo cenário internacional com a cabeça bem alta. Somos prudentes, não covardes. Penso lhe expor a idéia do congelamento de ativos ao presidente. Greg estava impressionado. Isso era o que significava o poder. Em um abrir e fechar de olhos, Welles podia realizar uma proposta capaz de convulsionar a uma nação inteira. Gus Dewar franziu o sobrecenho. —Se o Japão não pode importar petróleo, sua economia ficará paralisada e seu exército carecerá de poder. —O qual é fantástico! —exclamou Welles. —Sério? O que imagina que fará o governo militar do Japão ante semelhante catástrofe? Ao Welles não gostava que o contradisseram. —por que não me diz isso você, senador? —Não sei. Mas acredito que deveríamos ter uma resposta antes de atuar. Os homens se desesperados são perigosos. E sei que os Estados Unidos não está preparado para entrar em guerra com o Japão. Nossa marinha não está preparada, e nossas forças aéreas tampouco. Greg viu sua oportunidade de intervir e a aproveitou. —Senhor subsecretário, talvez lhe seria de ajuda saber que um sessenta e seis por cento da opinião pública é mais partidária de entrar em guerra com o Japão que da contemporización. —Boa observação, Greg, obrigado. Os americanos não estão dispostos a consentir que o Japão se saia com a sua. —Mas tampouco querem a guerra —disse Gus—. Dá igual o que diga o sondagem. Welles fechou a pasta que tinha sobre o escritório. —Bom, senador, estamos de acordo no da Sociedade das Nações e discrepamos respeito ao do Japão. Gus ficou em pé. —E em ambos os casos a decisão tomará o presidente. —Me alegro de que tenha vindo para ver-me. A reunião finalizou. Quando Greg partiu, não cabia na pele de satisfação. Tinham-no convidado à reunião informativa, inteirou-se de notícias surpreendentes e tinha feito um comentário que Welles lhe agradeceu. Era uma maravilhosa maneira de começar o dia. Saiu disimuladamente do edifício e se dirigiu ao café Aroma. Até então, nunca tinha contratado os serviços de um detetive privado. Tinha uma vaga sensação de estar comportando-se de forma ilícita. Não obstante, Cranmer era um cidadão respeitável, e, além disso, não tinha nada de delitivo tratar de ficar em contato com uma antiga noiva. No café Aroma havia duas garotas com aspecto de secretárias tomando uma pausa, um casal de idade desfrutando de um dia de compras e Cranmer, um homem corpulento com um traje de enrugado cloqué, apurando um cigarro. Greg se sentou a sua mesa e pediu à garçonete que lhe servisse um café. —Estou tratando de recuperar o contato com o Jacky Jakes —explicou ao Cranmer. —A moça de cor? Então sim que era uma moça, pensou Greg com nostalgia; tinha a tenra idade de dezesseis anos, embora tentava parecer maior. —passaram seis anos —disse ao Cranmer—. Já não é nenhuma moça. —Foi seu pai quem a contratou para a pantomima, não eu. —Não quero lhe perguntar a ele. Você pode encontrá-la, verdade? —Espero que sim. —Cranmer tirou um pequeno caderno e um lápis—. Imagino que Jacky Jakes é um pseudônimo, não? —Em realidade se chama Mabel Jakes. —E é atriz, verdade? —Queria sê-lo. Não tenho notícia de que o tenha conseguido. —A garota esbanjava atrativo e encanto, mas não havia muitos papéis para atores de cor. —Está claro que não aparece na listas telefônica, se não, não me necessitaria. —Poderia tratar-se de um engano, mas o mais provável é que não possa permitir-se pagar o telefone. —tornou a vê-la desde 1935? —Duas vezes. A primeira, faz dois anos, não muito longe daqui, na rua E. A segunda vez foi faz duas semanas, a duas maçãs. —Bom, está muito claro que não vive neste bairro tão luxuoso, ou seja que deve trabalhar por aqui. Tem alguma foto dela? —Não. —Lembro-me um pouco dela. Uma garota bonita, de pele negra, com um amplo sorriso. Greg assentiu, recordando seu sorriso de mil vatios. —Só quero saber sua direção, para poder lhe enviar uma carta. —Não preciso saber para que quer a informação. —Estupendo. —De verdade a coisa era tão fácil?, perguntou-se Greg. —Pagamento dez dólares por dia, com um mínimo de dois dias, além dos gastos. Era menos do que Greg esperava. Tirou sua carteira e entregou ao Cranmer um bilhete de vinte dólares. —Obrigado —disse o detetive. —Boa sorte —disse Greg. II na sábado fazia muito calor, assim Woody foi à praia com seu irmão, Chuck. A família Dewar em pleno se encontrava em Washington. alojavam-se em um piso de nove habitações próximo ao hotel Ritz-Carlton. Chuck estava de licença da armada, o pai trabalhava doze horas ao dia no planejamento da cúpula a que chamava Conferência do Atlântico e a mãe estava escrevendo um novo libero sobre as esposas dos presidentes. Woody e Chuck ficaram as calças curtas e os pólos, agarraram as toalhas, os óculos de sol e uns quantos periódicos e tomaram um trem até o Rehoboth Beach, na costa de Delaware. demorava-se um par de horas em chegar, mas era o único lugar possível ao que acudir um sábado do verão. Havia uma grande extensão de areia e se respirava a refrescante brisa do oceano Atlântico. E também havia um milhar de garotas em traje de banho. Os dois irmãos eram distintos. Chuck era mais baixo, mas de compleição fibrosa e atlética. Tinha herdado o atrativo físico e o irresistível sorriso de sua mãe. Na escola era medíocre, embora também fazia ornamento da peculiar forma de pensar de sua mãe e sempre optava por uma visão da vida pouco convencional. Os esportes lhe davam melhor que ao Woody, à exceção de correr, porque as largas pernas do Woody o faziam mais veloz, e boxear, porque os largos braços do Woody convertiam-no em um adversário difícil de alcançar. Em casa, Chuck não falava muito da armada, sem dúvida porque seus pais seguiam zangados com ele por não ter querido estudar no Harvard. Entretanto, quando encontrava-se a sós com o Woody se justificava um pouco. —Hawai é fabuloso, mas me chateia ter que trabalhar em terra —disse—. Me alistei na armada para estar no mar. —O que faz exatamente? —Formo parte da unidade de sinais dos serviços secretos. Escutamos mensagens transmitidas por rádio, sobre tudo da Armada Imperial Japonesa. —Não estão em chave? —Sim, mas podem saber-se muitas coisas incluso sem decodificá-los. chama-se análise do tráfico. Um aumento repentino da quantidade de mensagens indica que vai a levar-se a cabo a alguma ação de forma iminente. E se aprende a reconhecer os patrões do tráfico de informação. Um desembarque anfíbio tem uma configuração de sinais específico, por exemplo. —É fascinante. E arrumado a que te dá bem. Chuck se encolheu de ombros. —Eu não sou mais que um ajudante, transcrevo as mensagens e logo os entrego. Mas não pode evitar captar o básico. —O que tem que vida social no Hawai? —Divertimo-nos muito. Nos bares da armada podem chegar a armar umas farras de medo. O melhor é o café Black Cat. Tenho um bom amigo, Eddie Parry, e sempre que podemos vamos juntos a fazer surfe na praia do Waikiki. passei momentos bons, mas preferiria estar a bordo de um navio. Nadaram nas frite águas do Atlântico, comeram perritos quentes, fizeram-se fotos com a câmara do Woody e contemplaram os trajes de banho até que o sol começou a ficar. Quando partiam, sorteando aos banhistas, Woody viu o Joanne Rouzrokh. Não teve que olhá-la duas vezes. Na praia não havia nenhuma garota como ela, nem sequer em todo Delaware. Seus maçãs do rosto proeminentes, seu nariz de cimitarra, seu formoso e abundante cabelo negro e sua pele, da cor e a textura do café com leite, não tinham comparação. Sem duvidá-lo, foi direto para ela. Tinha um aspecto absolutamente sensacional. Os finos suspensórios de seu traje de banho negro de uma peça revelavam os elegantes ossos dos ombros. O objeto riscava uma linha reta na parte alta das coxas e deixava ao descoberto a maior parte das pernas largas e moréias. Logo que podia acreditar que um dia tinha estreitado em seus braços a essa mulher fabulosa e que a tinha beijado como se não houvesse um manhã. Ela o olhou, fazendo viseira com a mão para proteger do sol. —Woody Dewar! Não sabia que estava em Washington. Era tudo que ele necessitava para animar-se. ajoelhou-se junto a ela na areia, e sua simples cercania lhe acelerou a respiração. —Olá, Joanne. —Jogou uma fugaz olhada à garota rellenita de olhos castanhos tendida ao lado—. Onde está seu marido? Ela soltou uma gargalhada. —O que te faz pensar que estou casada? Ele se confundiu. —Fui a uma festa que celebrou em seu piso, faz uns quantos verões. —Sério? A amiga do Joanne interveio na conversação. —Já me lembro. Perguntei-te como te chamava, mas não me respondeu. Woody não a recordava absolutamente. —Sinto ter sido tão descortês —disse—. Sou Woody Dewar, e este é meu irmão Chuck. A garota de olhos castanhos estreitou a mão a ambos e se apresentou. —Sou Diana Taverner. —Chuck se sentou a seu lado na areia, o qual pareceu agradá-la posto que o menino era atrativo, muito mais bonito que Woody. Woody prosseguiu. —A questão é que, te buscando, entrei na cozinha e um homem chamado Bexforth Ross se apresentou como seu prometido. Supunha que a estas alturas estaria casada. Ou é que o seu é um noivado dos compridos? —Não seja parvo —soltou ela com uma ameaça de irritação, e então ele recordou que não lhe sentavam bem as brincadeiras—. Bexforth contava que estávamos prometidos porque virtualmente vivia em casa. Woody ficou atônito. Queria isso dizer que Bexforth dormia ali? Com o Joanne? Não era algo tão incomum, certamente, mas poucas garotas o reconheciam abertamente. —Era ele quem falava de nos casar —prosseguiu ela—. Eu nunca estive de acordo. Ou seja que era solteira. Woody se sentia mais feliz que se lhe houvesse meio doido a loteria. Claro que igual tinha noivo, acautelou-se. Teria que averiguá-lo. De todos modos, não era o mesmo ter noivo que ter marido. —Faz uns dias coincidi em uma reunião com o Bexforth —disse Woody—. É um peixe gordo no Departamento de Estado. —Chegará longe, e encontrará a uma mulher que lhe convenha mais que eu a um peixe gordo do Departamento de Estado. Por seu tom, dava a impressão de que não sentia carinho algum por seu antigo amante, e Woody descobriu que tal coisa lhe agradava, embora não teria sabido dizer por que. recostou-se sobre o cotovelo. A areia estava quente. Se ela tivesse noivo formal, teria encontrado a forma de dizer-lhe sem deixar acontecer tanto tempo, disso estava seguro. —Falando do Departamento de Estado —disse Woody—, segue trabalhando ali? —Sim. Sou ajudante do subsecretário de Assuntos Europeus. —Que emocionante. —No momento sim. Woody se dedicava a contemplar a linha que o traje de banho formava sobre os quadris e pensava que por pouca roupa que levassem as garotas, os homens sempre imaginavam as partes de seu corpo que ficavam ocultas. Começou a ter uma ereção e se tendeu de barriga para baixo para ocultá-lo. Joanne captou a direção de seu olhar. —Você gosta de meu traje de banho? —perguntou. Sempre se mostrava assim de sincera, o qual era uma das muitas coisas de sua pessoa que atraíam ao Woody. Decidiu lhe falar com igual franqueza. —Eu gosto de você, Joanne. Sempre me gostaste. Ela se pôs-se a rir. —Não te ande pelos ramos, Woody. Fala clara! A seu redor, a gente começava a recolher seus pertences. —Será melhor que nos partamos —opinou Diana. —Meu irmão e eu nos partíamos já —disse Woody—. Querem vir conosco? Era a oportunidade para que Joanne o tirasse de cima amavelmente. Seria-lhe muito fácil dizer: Não, obrigado, lhes adiante vós. —Claro, por que não? —respondeu pelo contrário. As garotas ficaram um vestido em cima do traje de banho e arrojaram seus bens em caminhos bolsas. Logo partiram juntos da praia. O trem estava cheio de banhistas como eles, bronzeados e mortos de fome e de sede. Woody comprou quatro Coza-colas na estação e as repartiu quando o trem arrancava. —Um dia que fazia muito calor, no Buffalo, convidou a uma Coca-cola, lembra-te? —Naquela manifestação. Claro que me lembro. —Não fomos mais que uns meninos. —Utilizo muito o truque da Coca-cola com as garotas bonitas. Ela se pôs-se a rir. —Sorte efeito? —Não me ganhei um só empurrão dessa forma. Ela levantou a garrafa para brindar. —Pois segue tentando-o. Ele o interpretou como um convite. —Quando chegarmos à cidade, querem que vamos comer um hambúrguer ou algo assim e logo ao cinema? —propôs. Era a oportunidade para que ela o rechaçasse lhe dizendo: Não, obrigado, fiquei com meu noivo. —A mim sim que gosta de apressou a responder Diana—. E a ti, Joanne? —Perfeito. Ou seja que de noivo, nada. E tinham uma entrevista! Woody tratou de dissimular a euforia que sentia. —Poderíamos ir ver Uma noiva contra reembolso —propôs—. ouvi que é muito divertida. —Quem sai? —perguntou Joanne. —James Cagney e Bette Davis. —Eu gostaria de vê-la. —A mim também —disse Diana. —Pois parece —concluiu Woody. —E a ti, Chuck? Gosta? —brincou o próprio Chuck—. Claro, parece-me fenomenal, obrigado por me perguntar isso hermanito. A coisa não tinha nenhuma graça, mas Diana riu por cortesia. Ao pouco, Joanne ficou dormida com a cabeça apoiada no ombro do Woody. Seu cabelo escuro o fazia cócegas no pescoço e notava seu quente fôlego sobre a pele por debaixo da volta da camiseta de manga curta. Woody estava exultante de satisfação. separaram-se no Union Station para ir casa a trocar-se de roupa, e voltaram a encontrar-se em um central restaurante chinês. Enquanto tomavam chow mein com cerveja, falaram do Japão. Todo mundo falava do Japão. —Terá que parar os pés a essa gente —opinou Chuck—. São uns fascistas. —É possível —disse Woody. —São militaristas e agressivos, e a maneira como tratam aos chineses é racista. Que mais têm que fazer para que os considere fascistas? —Eu lhes explicarei —atravessou isso Joanne—. A diferença radica na visão do futuro. Os verdadeiros fascistas querem aniquilar a todos seus inimigos e logo criar uma sociedade radicalmente nova. Os japoneses fazem todo isso em defesa dos grupos de poder tradicionais, a classe militar e o imperador. Pelo mesmo motivo, Espanha não é fascista em realidade: Franco assassina a gente em benefício da Igreja católica e a velha aristocracia, mas não para criar um mundo novo. —Em qualquer caso, terá que frear aos japoneses —conveio Diana. —Eu o vejo de outra forma —repôs Woody. —Muito bem, Woody, como o vê você? —perguntou Joanne. Joanne estava muito implicada na política e Woody sabia que apreciaria uma resposta bem meditada. —Japão é um país dedicado ao comércio que não dispõe de recursos naturais; não têm petróleo nem ferro, solo alguns bosques. Sua única forma de sobrevivência são os transações. Por exemplo, importam algodão cru, tecem-no e o vendem à a Índia e a Filipinas. Mas durante a Depressão, os dois grandes impérios econômicos, Grã-Bretanha e Estados Unidos, implantamos barreiras tarifárias para proteger nossas próprias indústrias. Esse foi o fim do comércio do Japão com o Império britânico, incluída a Índia, e com o território norte-americano, incluído Filipinas. Foi um golpe muito duro. —E isso lhes dá direito a conquistar o mundo? —perguntou Diana. —Não, mas lhes faz pensar que quão único garante a segurança econômica é ter um império próprio, como os britânicos, ou, ao menos, ter uma posição dominante em seu hemisfério, como os Estados Unidos. Dessa forma ninguém pode fazer fracassar seus negócios. Por isso querem que Extremo Oriente seja seu feudo. Joanne se mostrou de acordo. —E o ponto débil de nossa política é que cada vez que impomos sanções econômicas para castigar aos japoneses por sua agressividade, solo servem para reforçar seu sentimento de que têm que autoabastecerse. —É possível —conveio Chuck—. Mesmo assim, terá que freá-los. Woody se encolheu de ombros. Não tinha resposta para isso. depois de jantar, foram ao cinema. O filme lhes pareceu sensacional. Logo Woody e Chuck acompanharam às garotas de volta a sua casa. Pelo caminho, Woody agarrou ao Joanne da mão e ela correspondeu com o mesmo gesto, algo que Woody interpretou como um convite para que seguisse adiante. Quando chegaram frente ao edifício onde viviam as garotas, abraçou-a. Com a extremidade do olho viu que Chuck fazia o próprio com Diana. Joanne beijou ao Woody nos lábios de forma fugaz, quase casta. —É o tradicional beijo de boa noite —disse. —O último beijo que te dava não tinha nada de tradicional —repôs ele, e agachou a cabeça para voltar a beijá-la, mas lhe posou um dedo no queixo e o apartou. Não era possível que tudo que obtivesse fora esse beijo tão breve, verdade?, pensou ele. —Aquela noite tinha bebido —repôs ela. —Já sei. —Ele se precaveu de qual era o problema; tinha medo de que tomasse por uma facilona—. Sóbria resulta mais atrativa inclusive. Ela pareceu meditar uns instantes. —Há dito a frase acertada —respondeu ao fim—. O prêmio é teu. —Voltou a beijá-lo, com suavidade, prolongando o beijo, não com a avidez própria da paixão a não ser com uma concentração que insinuava ternura. De repente, Woody ouviu que Chuck se despedia. —boa noite, Diana! Joanne interrompeu o beijo. —Meu irmão terminou rápido! —exclamou Woody com consternação. Ela riu com discrição. —boa noite, Woody —disse, logo se deu meia volta e caminhou até o edifício. Diana já estava na porta, e a via claramente decepcionada. —Podemos sair outro dia? —espetou-lhe Woody. Soava muito ansioso, inclusive a ele mesmo o pareceu, e amaldiçoou sua impaciência. Entretanto, ao Joanne não pareceu lhe importar. —me chame —disse, e entrou. Woody seguiu com o olhar às duas garotas até que desapareceram, logo a empreendeu contra seu irmão. —por que não te entretiveste mais beijando a Diana? —perguntou de mau humor—. Parece muito agradável. —Não é meu tipo —respondeu Chuck. —Sério? —Woody estava mais perplexo que zangado—. Tem os peitos redonditos, a cara bonita… O que é o que você não gosta? Eu a teria beijado, se não houvesse estado com o Joanne. —Temos gostos diferentes. Começaram a caminhar para casa de seus pais. —Bom, assim, qual é seu tipo? —perguntou Woody ao Chuck. —Acredito que há uma coisa que deveria te dizer antes de que siga consertando mais cita a dueto. —Muito bem. O que é? Chuck se deteve, obrigando ao Woody a fazer o próprio. —Tem que me prometer que não dirá nunca a papai nem a mamãe. —Prometo-lhe isso. —Woody escrutinou a seu irmão sob a luz amarelada das luzes—. Qual é esse grande secreto? —Eu não gosto das garotas. —São um aporrinho, admito-o, mas o que lhe vai fazer. —Refiro-me a que eu não gosto das abraçar nem as beijar. —O que diz? Não seja estúpido. —Todos somos diferentes, Woody. —Sim, mas então teria que ser maricas. —Sim. —Sim, o que? —Que sim, que sou maricas. —Miúdo brincalhão parece. —Não é nenhuma brincadeira, Woody. Falo muito a sério. —É investido? —Exato. Não o escolhi eu. Quando de jovencitos começamos a nos fazer palhas, você estava acostumado a pensar em tetas gordas e em coelhos peludos. Nunca lhe confessei isso, mas eu sempre pensava em frangas grandes e rígidas. —Chuck! Isso é uma asquerosidade! —Não, não é nenhuma asquerosidade, alguns meninos somos assim. Há mais dos que crie; sobre tudo na armada. —Na armada há maricas? Chuck assentiu com ímpeto. —Muitos. —Bom… como sabe? —Estamos acostumados a nos reconhecer, igual aos judeus sempre reconhecem aos outros judeus. Por exemplo, o garçom do restaurante chinês. —Ele também é? —Não o ouviste me dizer que gostava de minha jaqueta? —Sim, mas não me tinha ocorrido pensar isso. —Pois aí o tem. —Gostaste-lhe? —Acredito que sim. —por que? —Provavelmente, pelo mesmo motivo que gosto a Diana. Sou mais bonito que você, diabo. —Me faz muito estranho. —Venha, vamos a casa. Prosseguiram seu caminho. Woody seguia lhe dando voltas ao tema. —Quer dizer que há chineses maricas? Chuck se pôs-se a rir. —Pois claro! —Não sei, nunca me tinha ocorrido pensar isso de um chinês. —Recorda, nenhuma palavra a ninguém, e menos a nossos pais. Ou seja o que diria papai. Ao cabo de um momento, Woody rodeou ao Chuck pelos ombros. —Bom, pois ao porrete —disse—. Pelo menos, não é republicano. III Greg Peshkov se embarcou junto com o Sumner Welles e o presidente Roosevelt em um cruzeiro pesado, o Augusta, rumo à baía da Placentia, na costa da Terranova. Na frota também viajavam o couraçado Arkansas, o cruzeiro Tuscaloosa e dezessete destruidores. Ancoraram em duas largas linhas, com um largo corredor de mar entre ambas. Às nove em ponto da manhã do sábado 9 de agosto, sob um sol radiante, os integrantes da tripulação das vinte naves se reuniram em coberta embelezados com seus trajes brancos enquanto o couraçado britânico Prince of Wales chegava escoltado por três destruidores e entrava no espaço central jogando vapor majestuosamente, com o primeiro-ministro Churchill a bordo. Era o desdobramento de poder mais impressionante que Greg tinha visto jamais, e estava encantado de formar parte dele. Também estava preocupado. Esperava que os alemães não tivessem notícia da entrevista. Se chegavam a inteirar-se, um Ou-Boot poderia aniquilar aos dois últimos dirigentes da civilização ocidental. E ao Greg Peshkov. antes de sair de Washington, Greg havia tornado a reunir-se com o detetive, Tom Cranmer. Este lhe tinha comunicado uma direção correspondente a uma casa de um bairro humilde se localizado na parte mais afastada do Union Station. —Trabalha de garçonete no Clube Universitário de Mulheres, perto do Ritz-Carlton. Por isso a viu duas vezes no bairro —explicou enquanto se guardava no bolso os honorários pendentes—. Imagino que a carreira de atriz não deveu ir muito bem; mas segue fazendo-se chamar Jacky Jakes. Greg lhe tinha escrito uma carta: Querida Jacky: Só quero saber por que me abandonou faz seis anos. Eu acreditava que fomos muito felizes juntos, mas devia estar equivocado. Chateia-me, isso é tudo. Quando me vê, mostra-te assustada, mas não tem nada que temer. Não estou zangado, solo me pica a curiosidade. Nunca faria nada para te ferir, você foi a primeira mulher a quem amei. Podemos nos ver para tomar um café ou algo assim e conversar? Muito atentamente, GREG PESHKOV Tinha acrescentado seu número de telefone e tinha enviado a carta por correio o dia que partiu para a Terranova. O presidente tinha interesse em que a conferência acabasse com uma declaração conjunta. O chefe do Greg, Sumner Welles, redigiu um rascunho, mas Roosevelt se negou a utilizá-lo aduzindo que era melhor que o primeiro rascunho o escrevesse Churchill. Greg compreendeu imediatamente que Roosevelt era um negociador com vista. Quem redigisse o primeiro rascunho teria que incluir, para ser justo, algumas das petições da outra parte além das próprias. Assim, os pontos da outra parte incluídos na declaração passariam a ser um mínimo irredutível, enquanto que todas as petições próprias seguiriam estando pendentes de negociação, com o qual quem redigisse o primeiro rascunho começaria com desvantagem. Greg se prometeu a si mesmo que recordaria não redigir nunca um primeiro rascunho. na sábado, o presidente e o primeiro-ministro desfrutaram de uma agradável comida a bordo do Augusta. no domingo assistiram a um ofício religioso na coberta do Prince of Wales, com o altar coberto pelo vermelho, o branco e o azul das bandeiras dos Estados Unidos e do Reino Unido. na segunda-feira pela manhã, quando já tinham travado uma sólida amizade, entraram em tarefa. Churchill apresentou uma proposta de cinco pontos que fez as delícias do Sumner Welles e Gus Dewar ao solicitar a criação de uma organização internacional com poder efetivo que garantisse a segurança de todos os Estados membros; em outras palavras, uma Sociedade das Nações com major força. Entretanto, decepcionou-lhes descobrir que Roosevelt o considerava ir muito longe. Estava a favor da idéia, mas temia a reação dos aislacionistas, os cidadãos que seguiam pensando que os Estados Unidos não devia intervir nos problemas do resto do mundo. Era extraordinariamente sensível à opinião pública, e fazia incessantes esforços para não suscitar oposição. Welles e Dewar não se deram por vencidos, nem os britânicos tampouco. reuniram-se para achar uma solução que parecesse aceitável a ambos os dirigentes. Greg tomou notas para o Welles. O grupo redigiu uma cláusula que fazia uma chamada ao desarmamento com vistas ao possível estabelecimento de um sistema de segurança geral mais amplo e permanente. Apresentaram-no aos dois mestres, e estes o aceitaram. Welles e Dewar não cabiam em si de satisfação, mas Greg não o compreendia. —Parece-me muito pouca coisa, depois de tantos esforços —opinou—. Os dirigentes de duas importantes nações tiveram que percorrer milhares de quilômetros para reunir-se, fizeram falta dezenas de empregados, vinte e quatro navios e três dias de negociações; e tudo para redigir quatro palavras que nem sequer expressam o que de verdade queremos. —As coisas de palácio vão devagar —disse Gus Dewar com um sorriso—. A política é assim. IV Woody e Joanne levavam cinco semanas saindo juntos. Por ele se teriam visto todas as noites, mas ela se fazia a lenta. Mesmo assim, tinham saído quatro vezes nos últimos sete dias. no domingo tinham ido a a praia; na quarta-feira, para jantar; na sexta-feira tinham visto um filme, e hoje sábado tinham ficado para passar todo o dia juntos. Woody nunca se cansava de conversar com ela. Era divertida e inteligente, e de língua mordaz. adorava que tivesse idéias tão claras com respeito a tudo. Conversavam durante horas do que gostavam e o que detestavam. As notícias que chegavam da Europa eram desalentadoras. Os alemães seguiam causando estragos no Exército Vermelho. Ao leste do Smolensk, tinham destruído o XVI e o XX Exército russo, fazendo 300.000 prisioneiros e deixando poucas forças soviéticas entre os alemães e Moscou. Contudo, as más notícias procedentes de terras longínquas não podiam turvar a euforia do Woody. Provavelmente, Joanne não estava tão louca por ele como ele o estava por ela, mas Woody notava que lhe tinha carinho. Sempre se davam o beijo de boa noite, e ela parecia desfrutá-lo embora não demonstrava a paixão que ele sabia que era capaz de expressar. Talvez fora porque sempre tinham que beijar-se em lugares públicos, como o cinema ou a soleira de algum edifício da rua onde vivia Joanne. Quando subiam a sua casa, na sala de estar sempre havia pelo menos uma de seus dois companheiras, e ainda não o tinha convidado a entrar em seu dormitório. A permissão do Chuck tinha finalizado fazia semanas, e este tinha retornado ao Hawai. Woody seguia sem saber o que pensar de sua confissão. Às vezes se sentia tão desconcertado como se o mundo se tornou do reverso; outras vezes se perguntava se isso trocava em algo as coisas. Mesmo assim, manteve sua promessa de não contar-lhe a ninguém, nem sequer ao Joanne. O pai do Woody partiu de viaje com o presidente e sua mãe partiu ao Buffalo para passar uns quantos dias com seus pais, assim Woody ficou sozinho no piso de Washington, com seus nove dormitórios. Decidiu procurar o momento de convidar a subir ao Joanne Rouzrokh com a esperança de que lhe desse um beijo dos de verdade. Tinham comido juntos e tinham visitado uma exposição titulada Arte negra, que os críticos conservadores tinham deixado pelos chãos dizendo que a arte negra não existia, a pesar do indiscutível talento de figuras como o pintor Jacob Lawrence e a escultora Elizabeth Catlett. —Você gostaria de tomar um coquetel enquanto decidimos aonde vamos jantar? —propôs Woody quando saíram da exposição. —Não, obrigado —respondeu ela com seu habitual tom categórico—. O que de verdade gosta de é uma taça de chá. —Chá? —Woody não sabia muito bem em que lugar de Washington serviam bons chás. Então lhe acendeu a lâmpada—. Minha mãe tem chá inglês. Podemos ir a minha casa. —De acordo. O edifício se encontrava a umas quantas maçãs, na rua Vinte e dois Noroeste, perto da rua L. Respiraram ao abandonar o abafado do exterior e entrar no vestíbulo com ar condicionado. O porteiro os subiu no elevador. —A seu pai me encontro isso continuamente por Washington, mas faz anos que não falo com sua mãe —disse Joanne quando entraram no piso—. Tenho que felicitá-la por seu novo best seller. —Agora mesmo não está em casa —respondeu Woody—. Vêem a cozinha. —Encheu a bule com água do grifo e a pôs a esquentar. Logo abraçou ao Joanne—. Por fim sozinhos —disse. —Onde estão seus pais? —Fora da cidade, os dois. —E Chuck está no Hawai. —Sim. Ela se apartou. —Woody, como pudeste me fazer uma coisa assim? —O que? Quão único estou fazendo é te preparar chá! —Trouxeste-me aqui com desculpas! Acreditava que seus pais estavam em casa. —Eu não hei dito tal coisa. —por que não me explicaste que estavam de viagem? —Não me perguntaste isso! —exclamou ele indignado, embora ela tinha uma grande parte de razão em queixar-se. Realmente não queria lhe mentir, mas esperava não ter que lhe explicar de antemão que não havia ninguém em casa. —Trouxeste-me aqui para tentar te ultrapassar! Toma por uma qualquer. —Não é verdade! O que passa é que nunca estamos realmente a sós. Esperava poder te beijar, isso é tudo. —Não tire o sarro. Joanne estava sendo muito injusta. Claro que queria deitar-se com ela, mas não esperava fazê-lo esse dia. —Vamos —decidiu ele—. Tomaremos o chá em outra parte. O Ritz-Carlton está nesta mesma rua. Todos os britânicos se alojam ali, assim têm que ter chá. —Venha, não seja tolo, não faz falta que nos partamos. Não me dá medo, eu sou mais forte que você. Solo me zanguei porque não quero a um homem que sai comigo porque acredita que sou uma facilona. —Facilona? —exclamou ele elevando a voz—. Uns narizes! Tive que esperar seis semanas para que acessasse a sair comigo. E agora igual, solo te estou pedindo um beijo. Se isso é ser fácil, não suportaria me apaixonar por uma garota difícil! Para sua surpresa, ela se pôs-se a rir. —E agora, o que acontece? —perguntou ele de mau humor. —Sinto muito, tem razão. Se procurasse uma garota fácil, faz tempo que me teria deixado. —Exato! —Acreditava que tinha uma opinião muito pobre de mim, depois de que te beijasse daquela forma quando estava bebida. Supunha que o que procurava era passar um bom momento, e levo todas estas semanas preocupada por isso. Julguei-te mau, sinto muito. Ele estava desconcertado por suas rápidas mudanças de humor, mas interpretou a última frase como um avanço positivo. —Estava louco por ti inclusive antes de que me beijasse aquele dia —confessou—. Suponho que não te tinha fixado nisso. —Nem sequer me tinha fixado em ti! —Pois sou bastante alto. —Fisicamente, é o único atrativo que tem. Ele sorriu. —Certamente, não me vou voltar um presunçoso falando contigo, não. —Não, se posso evitá-lo. A bule começou a assobiar. Woody pôs chá em uma jarra de porcelana e verteu água em cima. Joanne tinha ar pensativo. —Faz um momento há dito outra coisa. —O que? —Que não suportaria te apaixonar por uma garota difícil. Há-o dito a sério? —O que? —o de te apaixonar. —Ah! Não o dizia por isso. —Decidiu abandonar toda precaução—. Mas bom, sim, narizes; se quer saber a verdade, estou apaixonado por ti. Acredito que levo anos apaixonado por ti. Adoro-te. Quero… Jogou os braços ao pescoço e o beijou. Esta vez o beijo foi dos de verdade, sua boca percorria a dele com obrigação, a ponta da língua lhe roçava os lábios e todo seu corpo se apertava contra ele. Era igual a em 1935, solo que não tinha provado o uísque. Essa era a garota a que amava, a autêntica Joanne, pensou extasiado: uma mulher de fortes paixões. Tinha-a em seus braços, e o beijava com toda sua alma. Penetrou as mãos por dentro de seu veraniega camisa de sport e lhe acariciou o peito, afundando os dedos em suas costelas, lhe roçando os mamilos com as Palmas, lhe aferrando os ombros, como se queria enterrar as mãos em sua carne. E ele se deu conta de que também ela tinha uma fonte de desejo contido que agora transbordava como uma presa rachada, transbordada. Lhe fez o mesmo, acariciou-lhe os flancos e aferrou seus peitos com um ditoso sentimento de liberação, como um menino a quem tivessem dado um dia de férias da escola sem esperá-lo. Quando introduziu a ávida mão entre suas coxas, ela se apartou. Não obstante, o que lhe disse o surpreendeu. —Tem preservativos? —Não! Sinto muito… —Não passa nada. De fato, é melhor assim. Isso demonstra que não tinha intenções de me seduzir. —Oxalá tivesse algum. —Não importa. Conheço uma doutora que na segunda-feira o arrumará. Enquanto isso, decidiremos sobre a marcha. me beije outra vez. Enquanto o fazia, notou que lhe desabotoava as calças. —Vá —exclamou ao cabo de um momento—. Que bem. —É o mesmo que estava pensando eu —sussurrou ele. —Mas necessitarei as duas mãos. —O que? —Suponho que vai em função da estatura. —Não sei do que me está falando. —Então melhor me calo e te beijo. me dê um lenço —lhe pediu ao cabo de uns minutos. Por sorte, levava um em cima. Ele abriu os olhos uns instantes antes do final, e viu que ela o estava olhando. Em sua expressão captou desejo, excitação e algo mais que inclusive podia ser amor. Quando teve terminado, sentiu uma plácida serenidade. A amo —pensou—, e sou feliz. Que bela é a vida. —foi maravilhoso —disse—. Eu gostaria de te fazer o mesmo. —Faria-o? —perguntou ela—. A sério? —É obvio. Seguiam estando em pé na cozinha, apoiados na porta da geladeira, mas nenhum dos dois queria mover-se. Tomou a mão e o guiou por debaixo de seu vestido do verão e do objeto interior de algodão. Ele notou a pele ardente, o cabelo crespo, e uma fenda úmida. Tratou de introduzir o dedo, mas ela o atalhou. —Não. Agarrou-lhe a ponta do dedo e o guiou por entre as suaves dobras. Notou algo pequeno e duro, do tamanho de uma ervilha. Ela começou a lhe mover o dedo em pequenos círculos. —Sim —disse, fechando os olhos—. Justo assim. Woody contemplou seu rosto com adoração enquanto ela se abandonava ao prazer. Ao cabo de um par de minutos, soltou um pequeno grito que repetiu duas ou três vezes. Logo lhe retirou a mão e se deixou cair contra ele. —Te esfriará o chá —disse Woody ao cabo de um momento. Ela se pôs-se a rir. —Amo-te, Woody. —Sério? —Espero que não te assuste que lhe diga isso. —Não. —Sorriu—. Me faz muito feliz. —Já sei que as garotas não deveriam dizê-lo assim de claro, mas eu não sei dissimular. Quando me dito, já não há volta atrás. —Sim —disse Woody—. Já o tinha notado. V Greg Peshkov vivia no apartamento do Ritz-Carlton que seu pai tinha permanentemente ao seu dispor. de vez em quando, Lev se alojava ali uns quantos dias em suas idas e vindas entre o Buffalo e Os Anjos. Agora Greg dispunha do piso para ele sozinho; bom, acompanhava-o Rita Lawrence. A escultural filha do congressista ficou-se passando a noite e apresentava um aspecto adorável, despenteada e vestida com um batín masculino de seda vermelha. Um garçom lhes levou o café da manhã, a imprensa e uma sobre com uma mensagem. A declaração conjunta do Roosevelt e Churchill tinha provocado maior revôo do que Greg esperava. Uma semana mais tarde, seguia sendo a notícia mais candente. A imprensa o chamava a Carta do Atlântico. Para o Greg não era mais que um conjunto de frases cautelosas e compromissos vagos, mas o mundo o via de outro modo. Acolhiam-no como o toque de corneta para a liberdade, a democracia e o comércio a escala mundial. Do Hitler se dizia que estava furioso, que o considerava equivalente a uma declaração de guerra contra Alemanha por parte dos Estados Unidos. Os países que não tinham formado parte da conferência queriam, de todos os modos, assinar a carta, e Bexforth Ross tinha proposto que os assinantes fossem batizados como as Nações Unidas. Enquanto isso, os alemães estavam invadindo a União Soviética. No norte, estavam-se aproximando do Leningrado. No sul, os russos que se batiam em retirada voaram a presa do Dniéper, a central hidrelétrica maior do mundo e seu maior orgulho, para privar de sua potência aos vitoriosos alemães; um sacrifício dilacerador. —O Exército Vermelho conteve um pouco a invasão —explicou Greg a Rita enquanto lia a notícia no The Washington Pós—. Mas os alemães seguem avançando oito quilômetros ao dia. E dizem ter matado a três milhões e meio de soldados soviéticos. É possível? —Tem família na Rússia? —Pois, de fato, sim. Um dia que meu pai estava um pouco bêbado me contou que tinha deixado grávida a uma garota. Rita pôs cara de recriminação. —Temo-me que não pode evitá-lo —prosseguiu ele—. É um grande homem, e os grandes homens não cumprem as normas. Ela não disse nada, embora por sua expressão Greg deduziu o que estava pensando. Não compartilhava seu ponto de vista, mas não estava disposta a discutir com ele sobre isso. —A questão é que tenho um meio-irmão russo, ilegítimo como eu —prosseguiu Greg—. Se chama Vladímir, mas não sei nada mais dele. Claro que a estas alturas, igual já não existe. Tem a idade para combater, assim é provável que se encontre entre os três milhões e meio de mortos. —Voltou a página. Quando teve terminado com o periódico, leu a mensagem que lhe tinha entregue o garçom. Era do Jacky Jakes. Havia um número de telefone e só punha: Não chamar de uma a três. De repente, Greg não via o momento de livrar-se da Rita. —A que hora lhe esperam em casa? —perguntou sem nenhum tato. Ela olhou o relógio. —Céus! Tenho que voltar antes de que minha mãe comece para me buscar. —Tinha contado a seus pais que passaria a noite em casa de uma amiga. vestiram-se de uma vez e partiram em dois táxis. Greg imaginou que o número de telefone era do trabalho do Jacky, e que entre a uma e as três estava ocupada. Chamaria-a no meio da amanhã. perguntava-se por que estava tão emocionado; depois de tudo, solo sentia curiosidade. Rita Lawrence era imponente e muito sensual, mas nem com ela nem com as muitas outras tinha conseguido reviver as emoções daquela primeira aventura com o Jacky. Sem dúvida, devia-se a que solo se tinham quinze anos uma vez na vida. Chegou ao Velho Edifício do Escritório Executivo e começou a principal tarefa atribuída para esse dia, que consistia em confeccionar o rascunho de um comunicado de imprensa para pôr sobre aviso a quão americanos viviam no norte da África, onde britânicos, italianos e alemães avançavam e retrocediam combatendo, sobre tudo, em uma franja costeira de três mil e duzentos quilômetros de comprimento e sessenta e quatro de largura. Às dez e meia marcou o número de telefone da mensagem. Respondeu uma voz feminina. —Clube Universitário de Mulheres. —Greg nunca tinha estado ali: solo podiam assistir homens se acompanhavam às sócias. —Está Jacky Jakes? —perguntou. —Sim, está esperando uma chamada. Não pendure, por favor. Provavelmente necessitava uma permissão especial para receber chamadas no trabalho, deduziu. —Sou Jacky, quem chama? —ouviu ao cabo de uns instantes. —Greg Peshkov. —Imaginava. Como conseguiste minha direção? —Contratei a um detetive privado. Podemos nos ver? —Suponho que não fica outro remédio. Mas com uma condição. —Qual? —Tem que me jurar por tudo o que mais queira que não o contará a seu pai. Jamais. —por que? —Explicarei-lhe isso logo. Ele se encolheu de ombros. —De acordo. —Jura-me isso? —Claro. Ela insistiu. —Pois diga-o. —Juro-lhe isso, de acordo? —Muito bem. me convide a comer. Greg enrugou a frente. —Há algum restaurante neste bairro onde um homem branco e uma mulher negra possam comer juntos? —Só conheço um; o Electric Diner. —Soa-me. —fixou-se no nome, mas nunca tinha entrado. Era um local econômico freqüentado por zeladores e mensageiros—. A que hora? —Às onze e meia. —Tão cedo? —A que hora crie que comemos as garçonetes? À uma, ou o que? Ele sorriu. —Vejo que segue tendo o mesmo desparpajo de sempre. Jacky pendurou. Greg terminou o comunicado de imprensa e levou as folhas datilografadas ao despacho do chefe. Depositou o rascunho na bandeja de entrada. —Há algum problema se sair a comer cedo, Mike? —perguntou—. Por volta das onze e meia. Mike estava lendo as páginas de opinião do The New York Times. —Não, nenhum problema —respondeu sem levantar a cabeça. Caminhando a pleno sol, Greg passou por diante da Casa Branca e chegou ao restaurante às onze e vinte. Estava quase vazio, solo havia umas quantas pessoas desfrutando de um recesso no meio da amanhã. sentou-se a uma mesa e pediu um café. perguntava-se o que lhe contaria Jacky. Estava impaciente por conhecer a chave do mistério que o levava de cabeça desde fazia seis anos. Ela chegou às onze e trinta e cinco, embelezada com um vestido negro e uns sapatos planos; Greg supôs que era o uniforme de garçonete sem o avental. O negro sentava-lhe muito bem, e ele rememorou vividamente o puro prazer de olhá-la, de contemplar sua boca em forma de coração e seus grandes olhos castanhos. sentou-se frente a ele e pediu uma salada e uma Coca-cola. Greg tomou outro café: estava muito tenso para comer. Seu rosto tinha perdido a redondez infantil que ele recordava. Quando se conheceram, ela tinha dezesseis anos, ou seja que agora tinha vinte e dois. Então não eram mais que meninos jogando a ser majores mas agora eram adultos de verdade. Captou em seu semblante umas vivencias que seis anos atrás não estavam pressentem; vivencias de desengano, sofrimento e penúria. —Faço o turno de dia —lhe explicou—. Entro nas nove, ponho as mesas e acerto o comilão. Espero a que termine a comida, recolho e às cinco saio. —Quase todas as garçonetes trabalham de noite. —Eu prefiro ter livres as noites e os fins de semana. —Segue vivendo de noite! —Não, quase sempre fico em casa e escuto a rádio. —Suponho que lhe saem montões de noivos. —Todos os que quero. Ele demorou uns instantes em dar-se conta de que isso podia significar algo. Serviram-lhes a comida. Ela se tomou a Coca-cola e picou um pouco de salada. —Assim, por que te partiu, em 1935? —perguntou ele. Ela suspirou. —Não lhe quero dizer isso porque você não gostará. —Preciso sabê-lo. —Recebi uma visita de seu pai. Greg assentiu. —Supunha que ele tinha algo que ver. —Acompanhava-o um indesejável; um tal Joe não sei o que. —Joe Brekhunov. É um valentão. —Greg estava começando a zangar—. Te fez mal? —Não foi necessário, Greg. Me puseram os cabelos de ponta só vendo. Faria algo que seu pai me tivesse pedido. Greg conteve a ira. —O que queria? —Pediu-me que me partisse, naquele mesmo momento. Poderia te haver deixado uma nota, mas ele a teria visto. Não ficou mais remedeio que voltar para Washington. Me pôs muito triste ter que te deixar. Greg recordou seu próprio padecimento. —Eu também o passei mal —disse. sentia-se tentado de estirar o braço e lhe agarrar a mão, mas não estava seguro de que ela o desejasse. —Disse que me pagaria uma quantidade semanal solo por que me mantivera afastada de ti. Ainda me paga. Não são mais que uns poucos dólares, mas me servem para cobrir o aluguel. Dava-lhe minha palavra; mesmo assim, não sei como, reuni forças para lhe pôr uma condição. —Qual? —Que nunca se tomaria liberdades comigo. Se não, contaria-lhe isso tudo. —E aceitou? —Sim. —Não há muita gente que consiga intimidá-lo. Ela apartou o prato. —Logo me disse que se faltava a minha palavra, ordenaria ao Joe que me rachasse a cara, e me ensinou a navalha. Tudo cobrava sentido. —Por isso segue assustada. Sua tez escura tinha a cor quebrada a causa do medo. —Jogo-me o pele. A voz do Greg se tornou em um sussurro. —Jacky, sinto muito. Ela esboçou um sorriso forçado. —Está seguro de que fez tão mal? Solo tinha quinze anos. Não é uma boa idade para casar-se. —Se me tivesse explicado isso, talvez seria distinto. Mas ele toma decisões por sua conta e risco e as leva a cabo como se ninguém mais tivesse direito a opinar. —De todas formas, passamos momentos bons. —É claro que sim. —Era seu presente. Ele se pôs-se a rir. —O melhor que me têm feito na vida. —Bom, e a que te dedica agora? —Trabalho no escritório de imprensa do Departamento de Estado durante o verão. Jacky fez uma careta. —Sonha aborrecido. —Ao contrário! É muito emocionante observar aos homens poderosos tomar decisões transcendentais sem ter que levantar-se da cadeira. São os donos do mundo! Ela parecia cética. —Bom, provavelmente é melhor que trabalhar de garçonete. Ele começou a dar-se conta dos caminhos tão distintos que tinham tomado suas vidas. —Em setembro voltarei para o Harvard para cursar o último ano de carreira. —Seguro que suas companheiras estão encantadas contigo. —Há muitos homens e muito poucas mulheres. —Mas vai bem, não? —Não posso te mentir. perguntava-se se Emily Hardcastle teria completo sua promessa de colocar um dispositivo intra-uterino. —Casará-te com uma delas e terão uns filhos preciosos e viverão em uma mansão à beira de um lago. —Eu gostaria de chegar a ser alguém em política, talvez secretário de estado, ou senador, como o pai do Woody Dewar. Ela apartou o olhar. Greg pensou na mansão à beira de um lago. Devia ser o sonho do Jacky. Sentia-o por ela. —Conseguirá-o —disse ela—. Sei. Tem um porte especial, já o tinha aos quinze anos. É igual a seu pai. —O que diz? Vamos! Ela se encolheu de ombros. —Pensa-o bem, Greg. Sabia que não queria verte, mas contrataste a um detetive privado para que me encontre. Toma decisões por sua conta e risco e as leva a cabo como se ninguém mais tivesse direito a opinar. É o que há dito dele faz um momento. Greg estava consternado. —Espero não ser igual a ele em tudo. Ela o olhou com ire escrutinador. —Isso ainda está por ver. A garçonete se levou o prato do Jacky. —Tomarão sobremesa? —perguntou—. O bolo de pêssego está muito rico. Nenhum dos dois quis sobremesa, assim que a garçonete entregou a conta ao Greg. —Espero ter satisfeito sua curiosidade. —Obrigado, foste muito amável. —A próxima vez que te cruze comigo pela rua, segue andando como se tal coisa. —Farei-o, se for o que quer. Ela ficou em pé. —Sairemos por separado. Sentirei-me mais cômoda. —Como quer. —Boa sorte, Greg. —Boa sorte para ti também. —lhe dê uma gorjeta à garçonete —disse ela, e partiu. 10 1941 (III) I Em outubro a neve caiu e não coalhou, e as ruas de Moscou estavam geladas e úmidas. Volodia estava rebuscando na despensa seus valenki, as tradicionais expulsa de felpa que abrigavam os pés dos moscovitas no inverno, quando lhe surpreendeu encontrar as seis caixas de vodca. Seus pais não eram grandes bebedores. Estranha vez tomavam mais de um vasito. Muito de vez em quando, seu pai ia a um dos largos e alcoolizadas jantares do Stalin com os velhos camaradas, e entrava dando tombos pela porta ao despontar o alvorada, bêbado como uma Cuba. Entretanto, em sua casa, uma garrafa de vodca durava um mês ou inclusive mais. Volodia entrou na cozinha. Seus pais estavam tomando o café da manhã, sardinhas em pulse com pão negro e chá. —Papai —disse—, por que temos vodca para seis anos na despensa? Seu pai pareceu surpreso. Ambos os homens olharam a Katerina, que se ruborizou. Então acendeu a rádio e baixou o volume até um rumor lhe sussurrem. Volodia se perguntou se suspeitaria de a presença de aparelhos de escuta no piso. Ela falou em voz baixa mas com rotundidad. —O que usarão como moeda de mudança quando chegarem os alemães? —perguntou—. Deixaremos de pertencer a élite privilegiada. Morreremos de fome a menos que possamos comprar comida no mercado negro. Eu estou muito velha para fazer a rua. O vodca será mais valioso que o ouro. A Volodia impactou ouvir sua mãe falando desse modo. —Os alemães não vão chegar até aqui —afirmou seu pai. Seu filho não estava seguro. O exército alemão voltava a avançar, fechando as fauces de sua armadilha em torno de Moscou. Tinham chegado até o Kalinin pelo norte e até Kaluga pelo sul, ambas as cidades a tão só cento e sessenta quilômetros da capital. As baixas soviéticas eram incrivelmente numerosas. Fazia um mês, 800.000 soldados do Exército Vermelho tinham combatido em defesa da primeira linha, mas solo tinham sobrevivido 90.000, segundo os cálculos que tinham chegado ao despacho da Volodia. —Quem demônios vai deter os? —perguntou a seu pai. —Suas linhas de abastecimento não dão mais de si. Não estão preparados para passar nosso inverno. Contra-atacaremos quando suas forças estejam debilitadas. —Então, por que estão evacuando ao governo de Moscou? A burocracia estava em processo de ser transladada a um lugar situado a três mil quilômetros ao este, à cidade do Kuibishev. Os cidadãos da capital se sentiram turvados ante a visão dos funcionários governamentais saindo dos edifícios de escritórios, com suas caixas cheias de arquivos que carregavam em caminhões. —É sozinho por precaução —afirmou Grigori—. Stalin segue aqui. —Há uma solução —atravessou Volodia—. Temos centenas de milhares de homens na Siberia. Necessitamo-los como reforços. Grigori sacudiu a cabeça. —Não podemos deixar o este sem defesas. Japão segue constituindo uma ameaça. —Japão não nos atacará, isso já sabemos! —Volodia olhou a sua mãe. Sabia que não devia falar sobre secretos de Estado diante dela, mas o fez de todas formas—. Nosso homem em Tóquio, que nos advertiu, com razão, de que os alemães estavam a ponto de invadir, assegura-nos que os japoneses não o farão. Não vamos cometer o engano de não lhe acreditar pela segunda vez! —Valorar a veracidade da informação dos serviços secretos não foi jamais uma tarefa fácil. —Não temos outra alternativa! —exclamou Volodia, furioso—. Temos doze exércitos em reserva, um milhão de homens. Se os desdobrássemos, Moscou poderia resistir. Se não o fizermos, estamos acabados. Grigori parecia consternado. —Não fale assim, nem sequer em casa. —por que não? De todas formas, logo estarei morto. Sua mãe rompeu a chorar. —Olhe o que tem feito —lhe reprovou seu pai. Volodia saiu da sala. Enquanto se calçava as botas se perguntou por que lhe teria gritado a seu pai e teria feito chorar a sua mãe. deu-se conta de que tinha sido porque agora já estava convencido de que a Alemanha venceria à União Soviética. O contrabando de vodca de sua mãe para usá-lo como moeda de mudança durante a ocupação nazista o tinha obrigado a enfrentar-se à realidade. vamos perder —se disse—. Já se vislumbra o final da Revolução russa. ficou o casaco e o gorro. E então retornou à cozinha. Beijou a sua mãe e abraçou a seu pai. —A que vem isto? —perguntou Grigori—. Se solo for trabalhar. —É se por acaso não voltamos a nos ver —anunciou Volodia. E saiu. Quando cruzou a ponte se precaveu de que todos os transporte público estavam parados. O metro estava fechado e não havia nem ônibus de linha nem bondes. Pelo visto, tudo eram más notícias. O boletim daquela manhã da Escrivaninha Soviética de Informação, retransmitido por rádio e pelos alto-falantes pintados de negro instalados nos postes das esquinas, fazia ornamento de uma honestidade pouco freqüente. —Durante a noite do 14 aos 15 de outubro, a posição do frente ocidental piorou —afirmava—. Um grande número de tanques alemães penetrou em nossas defesas. —Todo mundo sabia que a Escrivaninha Soviética de Informação sempre mentia, assim supuseram que a situação real era muito mais adversa. O centro da cidade estava lotado de refugiados. Chegavam em feitas ondas contínuas do oeste, com seus pertences em carros, com rebanhos de vacas esquálidas, porcos imundos e ovelhas molhadas, com direção à zona rural situada ao leste de Moscou, desesperado-se por distanciá-lo máximo possível do avanço alemão. Volodia tentou que alguém o levasse de carro. Não havia muito tráfico civil em Moscou por aqueles dias. O combustível se economizava para os incontáveis comboios militares que circulavam pela Sadovaya, uma das avenidas circulares que rodeavam o centro da cidade. Recolheu-o um todoterreno GAZ-64 novo. Olhando do veículo sem capota, observou os graves destroços produzidos pelas bombas. Quão diplomáticos retornavam da Inglaterra afirmavam que aquilo não era nada em comparação com o Blitz de Londres, embora aos moscovitas parecia uma verdadeira catástrofe. Volodia passou junto a numerosos edifícios em ruínas e dezenas de casas de madeira calcinadas. Grigori, ao mando da defesa anti-aérea, tinha instalado canhões anti-aéreos nos terraços dos edifícios mais altos e se lançaram globos de barreira para que flutuassem por debaixo das nuvens de neve. Sua decisão mais extravagante tinha consistido em ordenar que se pintassem as cúpulas douradas em forma de cebola das Iglesias de verde e marrom de camuflagem. Tinha reconhecido ante a Volodia que essa medida não afetava absolutamente na precisão do ataque, mas que, conforme disse, conferia aos cidadãos a sensação de que os estavam protegendo. Se os alemães ganhavam, e os nazistas governavam Moscou, o sobrinho e a sobrinha da Volodia, os gêmeos de sua irmã, Ania, cresceriam não como comunistas patrióticos, mas sim como escravos dos nazistas, leais ao Hitler. Rússia seria como a França, um país servil, talvez governado em parte por um governo profascista que deportaria aos judeus para enviá-los a campos de concentração. A simples ideia lhe resultava insuportável. Volodia desejava um futuro no qual a União Soviética pudesse liberar do maligno jugo do Stalin e da brutalidade da polícia secreta, e começar a construir um verdadeiro comunismo. Quando Volodia chegou ao quartel geral no aeródromo da Jodinka, encontrou a atmosfera cheia de flocos cinzentos que não eram de neve, mas sim de cinza. O Serviço Secreto do Exército Vermelho estava queimando seus arquivos para evitar que caíssem em mãos inimizades. Pouco depois de ter chegado, o coronel Lemítov se apresentou em seu escritório. —Enviou você um relatório a Londres sobre um médico alemão chamado Wilhelm Frunze. Foi uma ocorrência muito inteligente. Ao final resultou ser um peixe gordo. Bem feito. E isso o que importa agora?, pensou Volodia. Os Panzer estavam a tão só cento e sessenta quilômetros. Era muito tarde para que os espiões pudessem ajudar. Sem embargo, obrigou-se a concentrar-se. —Frunze, sim. Fui ao colégio com ele no Berlim. —Os agentes de Londres contataram com ele e está disposto a falar. reuniram-se em uma moradia segura. —Enquanto Lemítov falava, brincava com seu relógio de bracelete. Não era muito típico dele mostrar-se tão inquieto. Saltava à vista que estava em tensão. Todo mundo estava em tensão. Volodia não disse nada. Era evidente que parte da informação da reunião se filtrou; de outro modo, Lemítov não haveria dito aquilo. —Londres diz que Frunze se mostrou receoso ao princípio e que suspeitava que nosso homem pertencia à polícia secreta britânica —comentou Lemítov com uma sorriso—. De fato, depois da entrevista inicial, acudiu ao Kensington Palace Gardens, bateu na porta de nossa embaixada e exigiu que lhe confirmassem que nosso homem era realmente dos nossos! Volodia sorriu. —Um autêntico aficionado. —Exato —confirmou Lemítov—. Um chamariz para a desinformación jamais teria cometido uma estupidez assim. A União Soviética ainda não estava acabada, não de tudo; assim Volodia devia continuar como se o assunto do Willi Frunze tivesse importância. —Que informação nos proporcionou, senhor? —Afirma que seus colegas científicos e ele estão colaborando com os americanos na criação de uma súper bomba. Volodia, atônito, recordou o que lhe havia dito Zoya Vorotsintsev. Aquilo confirmava seus mais funestos temores. —Há um problema com a informação —prosseguiu Lemítov. —Qual? —Traduzimo-la, mas seguimos sem entender uma palavra. —Lemítov passou a Volodia um maço de folhas datilografadas. Volodia leu um dos títulos em voz alta. —Separação do isótopo por difusão refrigerante. —Já vê o que quero dizer. —Eu estudei idiomas na universidade, não física. —Mas você tinha mencionado a uma física que conhecia. —Lemítov sorriu—. Uma loira estupenda que rechaçou seu convite para ir ao cinema, se não recordar mau. Volodia se ruborizou. Tinha falado ao Kamen sobre a Zoya, e Kamen devia ter estado mexericando sobre o tema. O problema de ter a um espião de chefe era que não lhe escapava nenhuma. —É uma amiga da família. Falou-me sobre um processo explosivo chamado fissão. Quer que a interrogue? —De forma extra-oficial e sem pressões. Não quero que se arme um alvoroço até que o tenha entendido. Pode que Frunze seja um louco, e não convém que nos faça ficar como idiotas. Averigúe do que tratam os informe, e se as afirmações do Frunze têm alguma base científica. Se disser a verdade, podem os ingleses e os americanos estar criando uma súper bomba? E também os alemães? —Faz dois ou três meses que não vejo a Zoya. Lemítov se encolheu de ombros. Em realidade não importava quão bem Volodia conhecesse a Zoya. Na União Soviética, responder a perguntas das autoridades jamais era algo opcional. —Localizarei-a. Lemítov assentiu em silêncio. —Faça-o hoje. —E saiu. Volodia franziu o sobrecenho, pensativo. Zoya tinha a certeza de que os americanos estavam trabalhando em uma súper bomba, e tinha sido o bastante persuasiva para convencer ao Grigori, quem, por sua vez, tinha-o falado com o Stalin, que, entretanto, não o tinha tomado a sério. Agora havia um espião na Inglaterra que afirmava o mesmo que Zoya. Dava a impressão de que ela tinha estado no certo. E de que Stalin se equivocou… outra vez. Os governantes da União Soviética tinham uma perigosa tendência a negar a autenticidade das más notícias. Fazia uma semana, sem ir mais longe, uma missão de reconhecimento aéreo tinha localizado veículos blindados alemães a tão só cento e trinta quilômetros de Moscou. O Estado Major se negou a acreditá-lo até que o avistamiento foi confirmado em duas ocasiões. Continuando, argumentando provocação, tinha ordenado ao NKVD a detenção e tortura do oficial de operações aéreas que tinha entregue o relatório. Resultava difícil pensar a longo prazo quando os alemães estavam tão perto, mas a possibilidade de que caísse uma bomba que arrasasse com Moscou não podia descartar-se, inclusive nesse momento de perigo extremo. Se os soviéticos venciam aos alemães, depois podiam sofrer o ataque da Inglaterra e Estados Unidos: um pouco parecido ao que tinha ocorrido depois da guerra de 1914-1918. encontraria-se a URSS indefesa ante uma súper bomba imperialista e capitalista? Volodia encarregou a seu ajudante, o tenente Belov, que averiguasse o paradeiro da Zoya. Enquanto esperava que lhe remetessem a direção, Volodia estudou os informe do Frunze, em sua versão original em inglês e na tradução, e memorizou o que pareciam as frases principais, pois não podia tirar os documentos do edifício. depois de uma hora entendeu o suficiente para fazer mais perguntas. Belov averiguou que Zoya não estava nem na universidade nem no edifício de apartamentos próximo ao campus e destinado aos cientistas. Entretanto, o administrador do edifício lhe contou que os residentes mais jovens tinham sido chamados a colaborar na construção de defesas internas para a cidade, e lhe indicou a direção onde podia estar trabalhando Zoya. Volodia ficou o casaco e saiu. sentia-se emocionado, embora não estava seguro se era pela Zoya ou pela súper bomba. Talvez fora por ambas as coisas. Pôde conseguir uma limusine ZIS militar com chofer. Ao passar pela estação do Kazán —de onde partiam os trens com direção o este—, viu o que parecia uma revolta em toda regra. Pelo visto, a gente não podia entrar na estação, nem muito menos subir aos trens. Uma grande massa de homens e mulheres lutava para chegar às portas de entrada com seus filhos, seus mascotes, suas malas e seus baús. Volodia se sentiu conmocionado ao ver que, a tal fim, se propinaban murros e patadas sem reparo. Uns poucos policiais contemplavam a cena, impotentes: faria falta um exército para impor a ordem. Os choferes do exército estavam acostumados a ser tipos taciturnos, mas este se sentiu impelido a fazer um comentário. —Putos covardes! —espetou—. Vão e escapam, e nos deixam aqui para lutar contra os nazistas. Olhe-os, com seus putos casacos de peles. Volodia estava surpreso. A crítica a élite governante era perigosa. Comentários dessa classe podiam provocar que recaísse uma denúncia sobre quem os fazia. Logo, o denunciado aconteceria uma semana ou dois no porão do quartel geral do NKVD, na praça da Lubianka. Era possível que saísse dali aleijado de por vida. Volodia tinha a desconcertante sensação de que o rígido sistema de hierarquia e deferência que sustentava ao comunismo soviético começava a debilitar-se e a desintegrar-se. Encontraram ao grupo das barricadas justo onde tinha suposto o administrador do edifício. Volodia desceu do carro, indicou ao condutor que esperasse e observou a obra. tratava-se de uma via central coberta de ouriços para a defesa antitanque. Um ouriço era uma estrutura construída com três lances de via de aço, de um metro de longitude cada um, unidos pelo centro em forma de asterisco, que se sustentava em pé sobre três pés e de que apareciam três braços para cima. Pelo visto, impediam a rodagem das larvas dos tanques. Atrás do campo de ouriços estavam cavando uma sarjeta com picaretas e pás, e detrás daquilo estavam levantando um muro, com ocos para os franco-atiradores. Tinham deixado um estreito caminho em ziguezague entre os obstáculos com o fim de que a rota seguisse sendo transitável para os moscovitas até que chegassem os alemães. Quase todas as pessoas que se trabalhavam em excesso na escavação e a construção de estruturas eram mulheres. Volodia encontrou a Zoya junto a um montículo de areia, enchendo sacos com ajuda de uma pá. ficou olhando-a de longe um minuto. Levava um casaco poeirento, manoplas de lã e botas de feltro. Levava o cabelo loiro penteado para trás e coberto com um lenço descolorido atado sob o queixo. Tinha o rosto manchado de barro, mas seguia parecendo atrativa. Movia a pá de forma rítmica e trabalhava com diligência. Então, o supervisor soprou um apito e o trabalho se deteve. Zoya se sentou sobre uma pilha de sacos de areia e se tirou do bolso de seu casaco um pequeno pacote envolto com papel de periódico. Volodia se sentou junto a ela. —Poderia conseguir uma excedencia de este trabalho —lhe disse. —É minha cidade —atravessou ela—. por que não quereria colaborar em sua defesa? —Assim não foge ao este. —Não penso fugir desses putos nazistas. Sua veemência o surpreendeu. —Há muita gente que sim o faz. —Já sei. Acreditava que você te teria ido fazia tempo. —Não me tem em muito alta estima. Crie que pertenço a uma élite egoísta. Ela se encolheu de ombros. —Os que têm a oportunidade de salvar-se, revistam fazê-lo. —Bom, pois te equivoca. Toda minha família segue aqui, em Moscou. —Pode que te tenha julgado mau. Quer uma tortita? —Abriu o pacote de papel de periódico e descobriu quatro pálidas tortas envoltas em folhas de couve—. Prova uma. Ele aceitou o convite e deu uma dentada. Não era muito saborosa. —O que é? —Mondaduras de batata. Dão-lhe um cubo grátis na porta traseira de qualquer cantina da partida ou do comilão dos oficiais. ralam-se bem com o ralador, fervem-se até as abrandar, mesclam-se com um pouco de farinha e leite, acrescenta-se sal, se tiver, e se fríen com manteiga. —Não sabia que estava tão precisada —comentou ele, morto de calor—. Em nossa casa sempre terá um prato de comida. —Obrigado. O que te traz por aqui? —Uma pergunta. O que é a separação do isótopo por difusão refrigerante? Ela ficou olhando-o. —OH, Meu deus!, o que ocorreu? —Não ocorreu nada. Só intento valorar certa informação de natureza duvidosa. —Ao final estamos construindo a bomba de fissão nuclear? A reação que teve Zoya lhe deu indícios de que a informação do Frunze era provavelmente real. Ela tinha entendido imediatamente a importância de suas palavras. —Por favor, responde a pergunta —exigiu Volodia com seriedade—. Embora sejamos amigos, este é um assunto oficial. —Está bem. Sabe o que é um isótopo? —Não. —Alguns elementos existem em formas ligeiramente diferentes. Os átomos de carbono, por exemplo, sempre têm seis prótones, mas alguns têm seis nêutrones e outros têm sete ou oito. Os distintos tipos são os isótopos, chamados carbono 12, carbono 13 e carbono 14. —É bastante simples, inclusive para um estudante de letras —disse Volodia—. por que é importante? —O urânio tem dois isótopos, o Ou-235 e o Ou-238. No urânio natural ambos estão mesclados. Mas solo o Ou-235 é explosivo. —Assim temos que separá-los. —Em teoria, a difusão refrigerante seria uma forma. Quando se difunde um gás através de uma membrana, as moléculas mais ligeiras a atravessam mais depressa, por isso o gás emergente é mais rico no isótopo mais baixo. É obvio, eu nunca o vi fazer. Frunze assegurava em seu relatório que os ingleses estavam construindo uma planta de difusão no Gales, ao oeste do Reino Unido. Os americanos estavam construindo outra. —Uma planta assim poderia destinar-se a alguma outra coisa? —Não conheço nenhum outro motivo para a separação de isótopos. —Zoya negou com a cabeça—. Imagina as possibilidades. Qualquer que dê prioridade a essa classe de processo em época de guerra, ou se há voltado socasse ou está construindo uma arma. Volodia viu um carro que se aproximava da barricada e começou a abrir-se passo pelo caminho em ziguezague. Era um Kim-10, um pequeno utilitário de duas portas desenhado para famílias acomodadas. Alcançava os cento e dez quilômetros por hora, mas esse ia tão sobrecarregado que certamente não chegava aos sessenta. Um homem sesentón ia ao volante, levava chapéu e casaco de pano de estilo ocidental. junto a ele viajava uma jovem com gorro de peles. O assento traseiro do carro estava lotado de caixas de cartão empilhadas. Havia um piano cuidadosamente pacote na baca do carro. Claramente se tratava de um alto cargo da élite governante tentando sair da cidade com sua esposa ou seu amante, como muitas das outras propriedades que levava-se; a classe de indivíduo que Zoya tinha suposto que era Volodia. Certamente esse tinha sido o motivo pelo que tinha rechaçado seu convite para ir ao cinema. Ele se perguntou se estaria replanteándose a opinião que tinha sobre sua pessoa. Uma das voluntárias da barricada situou um dos ouriços frente ao Kim-10, e Volodia intuiu que haveria problemas. O carro foi avançando milímetro a milímetro até que o pára-choque topou com a defesa antitanque. Possivelmente o condutor pensasse que poderia apartá-lo a empurrões. Outras muitas mulheres se aproximaram de olhar. O artefato estava desenhado para resistir ante uma força exercida para deslocá-lo. Suas patas se cravaram no chão, até o fundo, e resistiu com firmeza. ouviu-se o ruído do metal que se afundava quando o pára-choque do carro começou a deformar-se. O condutor colocou a marcha atrás e retrocedeu. Apareceu a cabeça pelo guichê. —Apartem isso daí agora mesmo! —gritou. Por seu tom, parecia que estava acostumado a que o obedecessem. A voluntária, uma mulher corpulenta de média idade com boina masculina a quadros, cruzou-se de braços. —Aparta você, desertor! —respondeu a gritos. O condutor saiu do carro com o semblante aceso pela raiva, e a Volodia surpreendeu ver que se tratava do coronel Bobrov, a quem tinha conhecido em Espanha. Bobrov se tinha feito famoso por pegar um tiro na nuca a seus próprios homens se se batiam em retirada. Não há piedade para os covardes era seu lema. No Belchite, Volodia o tinha visto matar a um brigadista internacional por bater-se em retirada quando ficaram sem munição. Nesse momento, Bobrov vestia de civil. Volodia se perguntou se dispararia à mulher que estava lhe impedindo o passo. Bobrov se situou diante do carro e agarrou o ouriço. Pesava mais do que esperava, mas, esforçando-se um pouco, foi capaz de apartá-lo do caminho. Enquanto se dirigia de retorno ao carro, a mulher da boina a quadros voltou a pôr a defesa frente ao automóvel. As demais voluntárias se aproximaram do lugar, observavam o enfrentamento, sorriam satisfeitas e começavam a fazer brincadeiras. Bobrov se dirigiu para a mulher e se tirou do bolso do casaco seu cartão de identidade. —Sou o general Bobrov! —exclamou. Deviam havê-lo subido desde sua volta da Espanha—. me Deixe passar! —E te considera um soldado? —perguntou a mulher com ironia—. por que não está lutando? Bobrov se ruborizou. Sabia que aquela recriminação estava justificada. Volodia se perguntou se o velho e sangrento militar teria sido induzido à fuga por aquela jovem algema. —Eu digo que é um traidor —sentenciou a voluntária da boina—, que tenta fugir com seu piano e seu putita. —Então tirou o chapéu ao Bobrov de um tapa. Volodia ficou pasmado. Jamais tinha presenciado tamanho desafio à autoridade na União Soviética. Estando no Berlim, antes de que os nazistas subissem ao poder, tinha-lhe surpreso ver alemães da pé discutindo sem medo com agentes de polícia; isso não ocorria em Moscou. A multidão de mulheres aclamou a seu camarada. Bobrov levava o cabelo talhado ao um. ficou olhando seu chapéu enquanto este saía rodando pelo úmido caminho. Deu um passo para ir atrás dele, mas o pensou melhor. Volodia não sentiu a tentação de intervir. Não havia nada que pudesse fazer para impedir a briga, e, em qualquer caso, não sentia simpatia alguma para o Bobrov. Parecia-lhe justo que tratassem ao general com a mesma brutalidade que ele tinha demonstrado sempre para com outros. Outra voluntária, uma mulher maior envolta em uma suja manta, abriu o porta-malas do carro. —Olhem tudo isto! —gritou. O porta-malas estava cheio de malas de pele. Atirou uma delas e arrebentou os fechamentos. A tampa se abriu de repente e caiu ao chão todo o conteúdo: roupa interior de encaixe, combinações e camisolas de linho, meias e regatas de seda, tudo evidentemente fabricado no Ocidente, mais delicado do que qualquer mulher russa pudesse ter visto jamais e, nem que dizer tem, comprado jamais. Os objetos transparentes caíram à suja neve lamacenta e ficaram ali, enterradas como pétalas em um estercolero. Algumas das mulheres começaram às recolher. Outras tiraram mais malas. Bobrov correu à parte traseira do carro e começou às apartar a empurrões. Volodia observou que a cena se voltava cada vez mais desagradável. Bobrov ia armado quase com total segurança e podia tirar a pistola em qualquer momento. Entretanto, a mulher da manta levantou uma pá e golpeou ao general na cabeça. Uma mulher capaz de cavar uma sarjeta com uma pá não era precisamente uma delicada florecilla, assim que o golpe produziu um repulsivo ruído surdo ao impactar contra o crânio. O general caiu ao chão e a mulher o chutou. A jovem amante saiu do carro. —vieste para nos ajudar a cavar? —gritou-lhe a voluntária da boina, e as demais começaram a rir. Querida-a do general, que devia ter uns trinta anos, agachou a cabeça e retornou pelo caminho que tinha percorrido o carro. A voluntária da boina a quadros a empurrou, mas a jovem a esquivou agachando-se entre os ouriços e apertou a correr. A voluntária lhe saiu atrás. A amante do general levava saltos de ante, escorregou no chão úmido e caiu. Seu chapéu de peles saiu disparado. levantou-se como pôde e voltou a correr. A voluntária foi a pelo gorro e deixou escapar à querida. Nesse momento, a totalidade das malas jaziam abertas ao redor do carro abandonado. As trabalhadoras tiraram as caixas do assento traseiro e as derrubaram na calçada, esvaziaram seu conteúdo na rua. esparramou-se um jogo de faqueiro, rompeu-se a porcelana e a cristalería se fez migalhas. Os lençóis bordados à mão e as brancas toalhas caíram na neve lamacenta. Uma dúzia de formosos pares de sapatos ficaram dispersados sobre o asfalto. Bobrov se ajoelhou e tentou ficar em pé. A mulher da manta voltou a lhe golpear com a pá. Bobrov se desabou sobre o chão. Ela desabotoou o fino casaco do general e tentou tirar-lhe Bobrov lutava, tentava resistir. A mulher ficou furiosa e voltou a lhe golpear até que ele ficou imóvel, com sua cabeça de cabelo grisalho talhado ao um coberta de sangue. Então a mulher lançou a manta e ficou o casaco do general. Volodia caminhou para o corpo inerte do Bobrov. Tinha o olhar fixo em uns olhos vítreos. Volodia se ajoelhou para comprovar se respirava, se lhe pulsava o coração ou se tinha pulso. Não detectou nenhum desses signos vitais. O homem estava morto. —Não há piedade para os covardes —disse Volodia, embora fechou os olhos ao Bobrov. Algumas das mulheres desembalaram o piano. O instrumento caiu deslizando-se da baca do carro e impactou contra o chão e se ouviu um estrondo discordante. Começaram a desfrutar-se com sua destruição à força de bicadas e paletazos. Outras brigavam pelos objetos de valor esparramados pela rua, recolhiam como podiam o faqueiro, metiam-se sob a roupa os lençóis, e rasgavam a lingerie íntima ao lutar por ficar a Estalaram rixas em qualquer parte. Uma bule de porcelana saiu disparada e não deu na cabeça a Zoya de puro milagre. Volodia retornou correndo a seu lado. —Isto está convertendo-se em uma revolta em toda regra —disse—. Conto com um veículo militar com chofer. Tirarei-te daqui. Ela duvidou tão solo um instante. —Obrigado —respondeu, e saíram correndo em direção ao veículo, subiram de um salto e se afastaram dali. II A fé do Erik von Ulrich no Führer se viu reforçada pela invasão da União Soviética. À medida que os exércitos alemães avançavam pela vasta a Rússia, varrendo ao Exército Vermelho como se fora palha, Erik se enchia de júbilo pela brilhantismo estratégica do líder ao que tinha jurado lealdade. E não se tratava de uma missão fácil. Durante o chuvoso mês de outubro, o campo se converteu em um lamaçal: chamavam-no rasputitsa, a época sem caminhos. A ambulância do Erik tinha avançado com grandes dificuldades por um lodaçal. Uma onda de barro se elevou ante o veículo, e foi ralentizando sua marcha de forma gradual, até que Hermann e ele tiveram que sair do carro para retirá-la com as pás antes de poder seguir conduzindo. A situação era a mesma para tudo o exército alemão, e o avanço para Moscou se converteu em uma carreira a passo de tartaruga. Além disso, as estradas inundadas provocavam que os caminhões de fornecimentos não pudessem seguir o ritmo dos combatentes. O exército andava escasso de munição, combustível e comida, e a unidade do Erik sofria a perigosa falta de medicamentos e outros recursos sanitários. Por esse motivo, o jovem regulamento se alegrou em um primeiro momento, quando caiu a geada a princípios de novembro. O gelo parecia uma bênção, pois fazia que o asfalto fora sólido e permitia à ambulância avançar a velocidade normal. Entretanto, Erik tremia com seu casaco do verão e sua roupa interior de algodão; uniformize-os de inverno ainda não tinham chegado da Alemanha. Tampouco tinham chegado os líquidos anticongelantes necessários para que seguisse funcionando o motor de sua ambulância, e os motores de todos os caminhões, tanques e artilharia lhe rodem do exército. Durante a viagem, Erik se levantava duas vezes cada noite para acender o motor e o ter em marcha durante cinco minutos, era a única forma de evitar que o azeite se congelasse e que o lhe refrigerem se solidificasse ao converter-se em gelo. Inclusive tomava a precaução de acender uma pequena fogueira sob o carro todas as manhãs uma hora antes de partir. Centenas de veículos se avariavam e ficavam abandonados. Os aviões da Luftwaffe, que ficavam à intempérie toda a noite em improvisados campos de aviação, congelavam-se e se negavam a acender-se, e o amparo aéreo simplesmente tinha desaparecido. Apesar de tudo, os russos se batiam em retirada. Lutaram com denodo, embora sempre se viam obrigados a retroceder. A unidade do Erik se detinha continuamente para retirar os cadáveres dos russos, e os mortos congelados empilhados na estrada compunham um horroroso aterro. Sem descanso, com determinação implacável, o exército alemão estava estreitando o cerco em torno de Moscou. Erik tinha a certeza de que não demoraria para ver os Panzer rodando com majestuosidad pelo Plaza Vermelho, enquanto as bandeiras com a suástica ondeariam alegremente nas torres do Kremlin. Enquanto isso, a temperatura era de dez graus abaixo de zero, e baixando. A unidade de hospital de campanha do Erik estava em um pequeno povo junto a um canal congelado, rodeado de um bosque de pinheiros. Erik não conhecia o nome do lugar. Os russos freqüentemente o destruíam tudo na retirada, mas essa população tinha sobrevivido mais ou menos intacta. Contava com um moderno hospital, que os alemães faziam dele. O doutor Weiss tinha dado enérgicas ordens aos médicos locais para que enviassem seus pacientes a casa, sem importar o estado em que se encontrassem. Nesse momento Erik analisava a condição de um paciente que sofria congelamento, um moço de uns dezoito anos. Tinha a pele amarela como a cera e dura ao tato pelo congelamento. Quando Erik e Hermann lhe tiraram o magro uniforme do verão detrás rasgá-lo, descobriram que estava coberto de moratones em braços e pernas. As botas puídas e furadas tinham sido preenchidas com papel de periódico em um patético intento de conservar o calor. Quando Erik se as tirou ao menino percebeu o característico fedor a podridão da gangrena. Entretanto, acreditou que podiam fazer algo para evitar a amputação. Sabiam o que fazer. Estavam tratando mais casos de congelamento que de feridas de guerra. Erik encheu uma banheira, continuando, com a ajuda do Hermann Braun, e inundaram ao paciente na água morna. Erik ficou olhando atentamente o corpo enquanto se descongelava. Viu a cor negra da gangrena em um pé e nos dedos do outro. Quando a água começou a esfriar-se, tiraram-no, secaram-no a golpecitos, meteram-no na cama e o tamparam com umas mantas. Logo o rodearam com pedras quentes e o envolveram em toalhas. O paciente estava consciente e alerta. —vou perder o pé? —Isso depende do médico —respondeu Erik de forma automática—. Nós sozinho somos regulamentos. —Mas vocês vêem muitos pacientes —insistiu—. O que opina você? —Acredito que vais pôr te bem —respondeu Erik. Desde não ser assim, sabia o que ocorreria. No pé menos afetado, Weiss amputaria os dedos, cercearia-os com umas enormes tenazes. A outra perna a amputariam por debaixo do joelho. Weiss chegou uns minutos mais tarde e examinou o pé do moço. —Preparem ao paciente para a amputação —ordenou com brutalidade. Erik estava desolado. Outro jovem forte e viçoso que ficaria aleijado de por vida. Que lamentável! Entretanto, o paciente o considerou desde outro ponto de vista. —Graças a Deus! —suspirou—. Já não terei que lutar mais. Quando tiveram ao moço preparado para operar, Erik pensou em que esse paciente era um mais dos que insistiam na atitude derrotista: sua própria família entre eles. Pensava muito em seu defunto pai e sentia uma profunda raiva mesclada com pena e sentimento de perda. Pensou com amargura que o velho não se teria alegrado como a maioria nem teria celebrado o triunfo do Terceiro Reich. teria se queixado por algo, teria questionado as decisões do Führer, teria escavado a moral das forças armadas. por que tinha sido tão rebelde? por que havia sentido tanto apego para a antiquada ideologia democrática? A liberdade não tinha feito nada pela Alemanha, enquanto que o fascismo tinha salvado o país! Apesar de que estava zangado com seu pai, lhe alagaram os olhos em lágrimas quando pensou na forma em que tinha morrido. Em um princípio, Erik tinha negado a responsabilidade direta da Gestapo, embora não demorou para dar-se conta de que, certamente, era certo. Seus agentes não davam classes de catecismo: davam surras aos que contavam mentiras flagrantes sobre o governo. Seu pai insistia em perguntar por que o governo matava a meninos aleijados. deixou-se sugestionar por sua esposa inglesa e sua filha em extremo sentimental. Erik os queria, o que fazia muito difícil e muito mais doloroso o fato de que estivessem tão desorientados e se obstinaran em manter essa atitude. Durante sua permissão no Berlim, Erik tinha ido visitar pai do Hermann, o homem que lhe tinha falado pela primeira vez da emocionante filosofia nazista quando Hermann e ele eram uns pirralhos. Herr Braun era membro das SS. Erik disse que tinha conhecido a um homem em um bar que assegurava que o governo matava aos aleijados em hospitais especiais. —É certo que os disformes som uma carga muito custosa para o avanço da nova a Alemanha —tinha reconhecido herr Braun ante o Erik—. A raça deve ser desencardida, eliminando aos judeus e a outras classes degradadas, e evitando os matrimônios mistos que possam produzir mestiços. Mas a eutanásia jamais foi a política nazista. Embora sejamos decididos, inclusive brutais em ocasiões, não assassinamos às pessoas. Isso é uma mentira comunista. As acusações lançadas por seu pai eram falsas. Mesmo assim, Erik chorava em ocasiões. Por sorte, estava ocupadísimo. Sempre havia um momento de muita afluência de pacientes pela manhã, sobre tudo, homens feridos no dia anterior. Logo desfrutaram de um momento de calma antes da chegada das primeiras baixas dessa jornada. Quando Weiss teve operado o menino afetado pela gangrena, Erik, Hermann e ele se tomaram um descanso de meia amanhã na lotada sala de reuniões. Hermann levantou a vista do periódico. —No Berlim começam a dizer que já ganhamos! —exclamou—. Teriam que vir e vê-lo com seus próprios olhos. O doutor Weiss falou com seu cinismo habitual. —O Führer pronunciou um discurso muito interessante no Sportpalast —comentou—. Falou da bestialidade dos russos. Pareceu-me alentador. Tinha a sensação de que os russos eram os combatentes mais duros com os que nos tínhamos topado. lutaram com mais firmeza e durante mais tempo que os poloneses, os belgas, os franceses ou os ingleses. Pode que não tenham o equipamento adequado, que suas líderes sejam uns brandos ou que estejam meio mortos de fome, mas se equilibram a tudo correr sobre nossas metralhadoras, blandiendo seus fuzis obsoletos, como se lhes trouxesse sem cuidado viver ou morrer. Alegra-me ouvir que não é mais que um signo de sua bestialidade. Começava a temer que pudessem ser valorosos e patrióticos. como sempre, Weiss fingia estar de acordo com o Führer, embora em realidade queria dizer o contrário. Hermann parecia confuso, mas Erik o entendeu e estava furioso. —Sejam o que sejam os russos, estão perdendo —sentenciou—. Estamos a sessenta e quatro quilômetros de Moscou. demonstrou-se que o Führer tinha razão. —E é muito mais brilhante que Napoleão —afirmou o doutor Weiss. —Na época do Napoleão não havia nada que se movesse mais rápido que um cavalo —disse Erik—. Hoje em dia temos os veículos motorizados e a telegrafia sem fia. As comunicações modernas nos permitiram sair graciosos nos casos nos que Napoleão fracassou. —Ou nos permitirão isso, quando tomarmos Moscou. —Coisa que acontecerá dentro de um par de dias, quando não, dentro de um par de horas. Não lhe caiba a menor duvida! —Ah, não? Acredito que alguns de nossos generais sugeriram que fiquemos onde estamos e construamos uma linha de defesa. Poderíamos assegurar nossas posições, nos reabastecer durante o inverno e retornar à ofensiva quando chegar a primavera. —Isso soa a asquerosa covardia! —exclamou Erik, acalorado. —Tem razão; deve tê-la, posto que é exatamente o que Berlim há dito aos generais, conforme tenho entendido. Evidentemente, o ponto de vista do quartel general é mais acertado que o dos homens que se encontram em primeira linha de batalha. —Quase acabamos com o Exército Vermelho! —Mas é como se Stalin se tirasse as armas de um nada, como se fora um mago. Ao princípio desta campanha acreditávamos que tinha duzentas divisões. Agora acreditam que tem mais de trezentas. Onde encontrará outras cem divisões? —Uma vez mais, demonstrará-se que o Führer tinha razão. —É obvio que sim, Erik. —Ainda não se equivocou! —Um homem acreditou que podia voar, assim saltou do terraço de um edifício de dez novelo, e quando passou voando pelo quinta andar, agitando os braços em vão, ouviram-no dizer: Até aqui vamos bem. Um soldado irrompeu a toda pressa na sala de reuniões. —houve um acidente —anunciou—. Na presa situada ao norte da cidade. Um choque, três veículos. Há alguns oficiais das SS feridos. As SS, ou Schutzstaffel, tinham sido, em sua origem, o guarda pessoal do Hitler, e agora compunham uma élite poderosa. Erik admirava sua excelsa disciplina, seus uniformize de tremenda elegância e sua relação tão estreita com o Hitler. —Enviaremos uma ambulância —anunciou Weiss. —trata-se do Einsatzgruppe, o Grupo Especial —detalhou o soldado. Erik tinha ouvido falar vagamente dos Grupos Especiais. Seguiam ao exército até o território conquistado e assinalavam aos bagunceiros ou possíveis rebeldes, como os comunistas. Era provável que estivessem montando um campo de prisioneiros aos subúrbios da cidade. —Quantos feridos? —perguntou Weiss. —Seis ou sete. Seguem tirando gente dos carros. —Está bem. Braun e Von Ulrich, vocês vão. Erik estava encantado. Alegrava-lhe poder trabalhar cotovelo com cotovelo com os mais leais colaboradores do Führer, alegraria-lhe mais inclusive poder lhes ser de utilidade. O soldado entregou uma nota com indicações para chegar ao lugar do sinistro. Erik e Hermann se beberam de repente o chá, apagaram os cigarros e saíram da sala de reuniões. Erik ficou um casaco de peles que tinha tirado a um oficial russo morto, mas o tinha deixado aberto para que se visse sua uniforme. apressaram-se a baixar até a garagem, e Hermann tirou a ambulância. Erik leu em voz alta as indicações enquanto tentava ver através de uma fina cortina de neve. A estrada saía da cidade e entrava serpenteando no bosque. Deixaram atrás a vários ônibus e caminhões que circulavam em sentido contrário. A neve queda no caminho se endureceu, e Hermann não podia ir muito rápido sobre a reluzente superfície geada. Ao Erik não custou imaginar como se teria produzido o acidente. Era a tarde de um dia breve. Nessa época do ano havia luz das dez da manhã até as cinco da tarde. Uma luz cinzenta penetrou entre as nuvens de neve. Os altos pinheiros que cresciam por montões a ambos os lados do caminho obscureciam definitivamente a via. Erik teve a sensação de estar em um dos contos dos irmãos Grimm, seguindo o caminho até o mais profundo do bosque, onde residia o mal. Procuravam um giro à esquerda, e o encontraram custodiado por um soldado que lhes assinalou o caminho. Avançaram dando tombos por um caminho cheia de buracos entre árvores até que chegaram a um segundo guarda. —Avancem como se fossem a pé, não mais depressa. Essa foi a causa do acidente —lhes advertiu. Passado um minuto, chegaram ao lugar indicado. Três veículos acidentados formavam uma massa de ferros: um ônibus, um todoterreno e uma limusine Mercedes com cadeias para a neve nas rodas. Erik e Hermann desceram de um salto da ambulância. O ônibus estava vazio. Havia três homens no chão, possivelmente fossem os ocupantes do todoterreno. Vários soldados estavam reunidos em torno do carro esmagado entre os outros dois veículos, pelo visto, tentando tirar seus ocupantes. Erik ouviu a detonação de um disparo de fuzil, e se perguntou, por um instante, quem teria disparado, embora deixou de lado esse pensamento e continuou concentrado em seu trabalho. Hermann e ele foram passando de um homem a outro, valorando a gravidade de suas feridas. Das três pessoas que havia no chão, alguém estava morta, havia outro homem com o braço quebrado e o terceiro tinha sozinho uns quantos cardeais. No interior do veículo, um homem se sangrou até a morte, outro estava inconsciente e um terceiro gritava. Erik injetou uma dose de morfina ao que gritava. Quando o potente calmante fez efeito, Hermann e ele tiraram o paciente do carro para subi-lo à ambulância. Uma vez que o tiveram tirado de no meio, os soldados puderam começar a liberar o homem inconsciente, que estava apanhado na carroceria deformada do Mercedes. O militar tinha uma ferida na cabeça que ao Erik pareceu mortal de necessidade, embora não o disse a ninguém. concentrou-se nos homens do todoterreno. Hermann entalou o braço quebrado, e Erik levou a homem arroxeado à ambulância e se sentou junto a ele. voltou-se para o Mercedes. —Teremo-lo tirado cinco ou dez minutos —disse um capitão—. Agüente. —Está bem —respondeu Erik. Voltou a ouvir disparos, e entrou algo mais no bosque, movido pela curiosidade do que poderia estar fazendo o Grupo Especial. A neve depositada no chão, entre as árvores, tinha numerosas pegadas e bitucas, corações de maçã, periódicos velhos e outra classe de lixo, como o rastro deixado por um grupo de trabalhadores ao sair da fábrica. entrou em um claro onde tinha estacionados caminhões e ônibus. Tinham levado a muitas pessoas a aquele lugar. Alguns ônibus partiam, rodeando o lugar do acidente; outro chegou justo quando Erik passava por ali. Deixou atrás o estacionamento e chegou até um grupo de um centenar ou mais de russos de todas as idades: eram prisioneiros, embora muitos levavam malas, caixas e sacos que agarravam com força como se estivessem custodiando preciosas posses. Havia um homem que sujeitava um violino. Uma garotinha com uma boneca captou a atenção do Erik, e um desagradável pressentimento lhe encolheu o coração. Os prisioneiros eram vigiados por polícia local armada com porretes. Estava claro que o Grupo Especial tinha colaboradores para o que quisesse que estivessem fazendo. Os policiais o olharam, precaveram-se do uniforme do exército alemão visível sob o casaco desabotoado, e não disseram nada. Quando passou por ali, um prisioneiro russo bem vestido se dirigiu a ele em alemão. —Senhor, sou o diretor da fábrica de pneumáticos desta cidade. Nunca acreditei no comunismo, mas trabalho de mexeriqueiro, como têm que fazer todos os chefes. Posso lhe ajudar, sei onde está tudo. Por favor, me tire daqui. Erik não lhe fez caso e seguiu caminhando em direção aos disparos. Chegou à presa. Era uma enorme socava irregular no chão, com o bordo rodeado por pinheiros como guardas de uniforme verde escuro talheres de neve. O final de um largo pendente levava a buraco. Enquanto olhava, uma dúzia de prisioneiros começaram a descender, de dois em dois, dirigidos por soldados, até o vale de sombras. Erik se precaveu da presença de três mulheres e um menino de uns onze anos que estava entre elas. Estava o campo de prisioneiros em algum lugar da presa? Mas já não levavam bagagem algum. A neve caía sobre suas cabeças descobertas como uma bênção. Erik falou com um sargento das SS que estava por aí perto. —Quais são os prisioneiros, sargento? —Comunistas —respondeu o homem—. Da cidade. Delegados políticos e gente dessa índole. —Como?, inclusive esse menino pequeno? —Judeus, também —esclareceu o sargento. —Bom, o que são, comunistas ou judeus? —Que diferença há? —Não é o mesmo. —Não sabe o que diz, imbecil. A maioria dos comunistas são judeus. E a maioria dos judeus são comunistas. É que não sabe nada? O diretor da fábrica de pneumáticos que tinha falado com o Erik não parecia ser uma coisa nem a outra, ou isso pareceu a ele. Os prisioneiros chegaram ao leito rochoso da presa. Até esse momento tinham avançado arrastando os pés como as ovelhas de um rebanho, sem falar nem olhar a seu redor, mas nesse instante se inquietaram e começaram a assinalar algo que havia no chão. Olhando através dos flocos de neve, Erik viu o que pareciam corpos dispersados entre as pedras, com a roupa embranquecida pela tempestade de neve. Pela primeira vez, Erik se precaveu da presença de doze homens armados com fuzis, apostados no bordo de um ravina, entre as árvores. Doze prisioneiros, doze atiradores: deu-se conta do que estava ocorrendo, e sentiu uma vazante biliosa de incredulidade mesclada com horror. Levantaram as armas e apontaram aos prisioneiros. —Não! —gritou Erik—. Não, não podem! —Ninguém o escutou. Uma prisioneira gritou. Erik a viu agarrar ao menino de onze anos e pegar-lhe ao corpo, como se rodeando-o com seus braços pudesse deter as balas. Parecia sua mãe. —Fogo —ordenou um oficial. Os fuzis detonaram. Os prisioneiros se cambalearam e se desabaram. O ruído provocou a queda de uns flocos de neve dos pinheiros, e choveu sobre os soldados, uma chuva de branco níveo. Erik viu cair ao pequeno e a sua mãe, ainda fundidos em um abraço. —Não! —gritou—. Não, por favor! O sargento ficou olhando-o. —Mas que mosca lhe picou? —perguntou, irado—. Quem é você, por certo? —Sou regulamento médico —disse Erik, sem poder apartar a vista da espantosa cena da fossa. —O que está fazendo aqui? —trouxe a ambulância para os oficiais feridos no acidente. —Erik viu outros doze prisioneiros aos que conduziam pela costa para a presa—. Por Deus santo, meu pai tinha razão —se lamentou—. Estamos assassinando gente. —Deixe de choramingar e volte para a puta ambulância. —A suas ordens, sargento —respondeu Erik. III No fim de novembro, Volodia solicitou o traslado a uma unidade de combate. Seu trabalho de espionagem já não parecia importante: o Exército Vermelho não necessitava espiões para descobrir as intenções de um exército alemão que já estava aos subúrbios de Moscou. E queria lutar por sua cidade. Seus receios sobre o governo chegaram a lhe parecer uma trivialidade. A estupidez do Stalin, a brutalidade da polícia secreta, a forma em que nada funcionava na União Soviética como se supunha que devia fazê-lo-a importância de todo isso se mitigou. Quão único sentia era a acesa urgência de repelir ao invasor, que ameaçava levando a violência, a violação, a fome e a morte a sua mãe, sua irmã, os gêmeos Dimka e Tania, e Zoya. Era muito consciente de que se todo mundo opinava o mesmo, ficariam sem espiões. Seus informadores alemães eram pessoas que tinham decidido que o patriotismo e a lealdade não eram tão importantes como a terrível maldade dos nazistas. Ele se sentia agradecido por seu valor e a férrea moralidade que os impulsionava a atuar assim. Entretanto, seu sentir era distinto. Também o faziam muitos dos membros mais jovens dos serviços secretos do Exército Vermelho, e um pequeno grupo deles se uniu ao batalhão de fuzileiros a princípios de dezembro. Volodia beijou a seus pais, escreveu uma nota a Zoya em que dizia que esperava sobreviver para voltar a vê-la, e se transladou aos barracões. depois de muito esperar, Stalin convocou aos reforços do leste de Moscou. Trinta divisões siberianas se desdobraram para combater aos alemães, que agora encontravam-se mais perto que nunca. De caminho à primeira linha, alguns deles realizaram uma breve parada em Moscou, e os moscovitas presentes nas ruas ficaram olhando-os com seus brancos casacos acolchoados e seus quentes expulsa de borreguito, com seus esquis e seus óculos protetores e robustos cavalos esteparios. Chegaram a tempo para o contra-ataque russo. Aquela era a última oportunidade do Exército Vermelho. Uma e outra vez, nos últimos cinco meses, a União Soviética tinha desdobrada centenas de milhares de homens contra o invasor. E em todas as ocasiões, os alemães tinham feito uma pausa, tinham repelido o ataque e tinham prosseguido com seu avanço imparable. Mas se este intento fracassava não haveria mais ocasiões de triunfo. Os alemães tomariam Moscou, e quando isso ocorresse, tomariam a URSS. E então sua mãe teria que vender vodca para conseguir leite no mercado negro para a Dimka e Tania. Em 4 de dezembro as forças soviéticas saíram em direção ao norte da cidade, ao oeste e ao sul, e tomaram posições para a última campanha. Viajavam com os faróis apagados para evitar pôr em guarda ao inimigo. Não lhes estava permitido acender fogueiras nem cigarros. Essa noite os soldados de primeira linha receberam a visita dos agentes do NKVD. Volodia não viu seu cunhado com cara de rato, Ilia Dvorkin, quem devia encontrar-se entre eles. Um casal que não reconheceu se aproximou do acampamento onde Volodia e uma dúzia de homens estavam limpando seus fuzis. —ouviste alguém que critique ao governo? —perguntaram—. O que dizem os companheiros sobre o camarada Stalin? Quem, de entre seus colegas, questiona a inteligência da estratégia e as táticas do exército? Volodia não dava crédito. O que importava isso a essas alturas? Nos dias seguintes, Moscou seria salvado ou estaria perdido para sempre. A quem lhe preocupava se os soldados jogavam pestes contra seus oficiais? Cortou o interrogatório de raiz, dizendo que ele e seus homens tinham ordem de permanecer em silêncio, e que devia pegar um tiro a qualquer que a incumpliese, mas que, acrescentou de modo temerário, não informaria à polícia secreta se partiam imediatamente. Isso funcionou, embora a Volodia não cabia dúvida de que o NKVD estava escavando a moral dos soldados de toda a primeira linha. Em 5 de dezembro pela tarde, a artilharia russa entrou em ação com força arrolladora. A manhã seguinte, à alvorada, Volodia e seu batalhão avançaram no meio de uma tempestade de neve. Tinham ordens de tomar uma cidade situada ao outro lado de um canal. Volodia não fez caso das ordens de realizar um ataque frontal às defesas alemãs; essa era uma tática russa antiquada, e não era momento de aferrar-se com obstinação a idéias mau expostas. Com sua companhia de cem homens se dirigiu rio acima e cruzaram o estou acostumado a gelado para o norte da cidade, logo se aproximaram ao flanco alemão. Ouvia as detonações e impactos da luta a sua esquerda, por isso soube que estavam justo detrás da primeira linha inimizade. Volodia estava virtualmente cegado pela tempestade de neve. Os canhonaços ocasionais dissipavam as nuvens uns instantes, mas a visibilidade ao nível do estou acostumado a era de uns poucos metros. Entretanto, pensou com otimismo, isso contribuiria a que os russos pudessem avançar com sigilo em direção aos alemães e pilhá-los por surpresa. Fazia um frio diabólico, até 35 ºC baixo zero em alguns lugares, e embora isso era terrível para ambos os bandos, passavam-no pior os alemães, que careciam de médios para suportar o frio. Em certa forma, para sua surpresa, Volodia descobriu que os nazistas, que sempre se mostraram diligentes, não tinham consolidado o fronte. Não tinham trincheiras, nem sarjetas antitanque, nem refúgios subterrâneos. O fronte alemão não era mais que uma série de fortines. Era fácil penetrar pelos ocos descuidados e chegar à cidade para procurar pontos débeis, barracões, cantinas e depósitos de munição. Seus homens dispararam a três sentinelas para tomar um campo de futebol onde tinha estacionados cinqüenta caminhões. De verdade vai ser tão fácil?, perguntou-se Volodia. O exército que tinha conquistado a Rússia estava agora debilitado e acabado? Os cadáveres dos soldados soviéticos, cansados em combates prévios e abandonados para que se congelassem onde tinham morrido, não tinham nem botas nem casacos, que certamente tinham roubado os transidos alemães. As ruas da cidade estavam infestadas de veículos abandonados, caminhões vazios com as portas abertas, tanques talheres de neve com os motores congelados, e jipes com o capô levantado, para demonstrar que os mecânicos tinham tentado repará-los, mas que o tinham deixado, desesperado-se. Ao cruzar uma rua principal, Volodia ouviu o motor de um carro e distinguiu, através da tempestade de neve, um par de faróis que se aproximavam por sua esquerda. Ao princípio, supôs que se tratava de um veículo soviético que avançava pelas linhas alemãs. Mas então dispararam a seus soldados e também a ele, e ordenou a gritos que ficassem a coberto. O carro resultou ser um Kubelwagen, um todoterreno da Volkswagen com a roda de reposto no pára-choque e coberta por uma capa. Tinha um motor de ventilação fria, que era a razão pela que não se congelou. Passou junto a eles estralando e a máxima velocidade, enquanto os ocupantes disparavam desde seus assentos. Volodia ficou tão atônito que se esqueceu inclusive de responder aos disparos. por que estava o veículo cheio de alemães armados que fugiam da batalha? Levou a sua companhia pelo caminho. Tinha imaginado que, a essas alturas, já estariam lutando por avançar, ficando a talher de casa em casa, mas se toparam com uma oposição débil. Os edifícios da cidade ocupada estavam fechados com chave, enclausurados, às escuras. Qualquer russo ali presente com um pouco de sentido comum devia estar escondido sob a cama. Apareceram mais carros pelo caminho, e Volodia decidiu que os oficiais deviam estar fugindo do campo de batalha. Enviou uma seção com uma metralhadora ligeira Degtyarev DP-28 a tomar posições em uma cafeteria para poder lhes disparar de ali. Não queria que esses alemães vivessem para matar russos ao dia seguinte. Justo à saída da estrada principal localizou um edifício desço de tijolo com potentes luz acesas depois de umas magras cortinas. depois de passar a rastros por diante de um sentinela que logo que via pela tempestade de neve de neve, pôde olhar no interior da moradia e distinguir uns oficiais que havia dentro. Supôs que se tratava do quartel geral do batalhão. Deu ordens entre sussurros a seus sargentos. Dispararam aos cristais e logo lançaram amadurecidas ao interior. Saíram uns quantos alemães com as mãos sobre a cabeça. Passado um minuto, Volodia tinha tomado o edifício. Ouviu um ruído novo. ficou escutando, e enrugou a frente, confundido. Mais que nenhuma outra coisa, parecia o estrondo de um jogo de futebol. Saiu do edifício do quartel geral. O som procedia da primeira linha, e cada vez se ouvia com mais força. Então se ouviu uma rajada de disparos de metralhadora e, a uns noventa metros da estrada principal, um caminhão começou a dar inclinações bruscas e se saiu da estrada para ir estampar se contra um muro de tijolo, logo se prendeu fogo; supostamente tinha recebido o impacto da DP-28 dos homens da Volodia. Outros dois veículos que foram justo detrás saíram fugindo. Volodia correu para a cafeteria. A metralhadora estava colocada sobre seu bípode em uma mesa do local. O apelido desse modelo era a Grabadora, por o carregador em forma de disco situado justo em cima do canhão. Os homens estavam divertindo-se. —É como o tiro ao pombinho, senhor! —exclamou um artilheiro—. Que fácil! —Um dos homens tinha registrado a cozinha e tinha encontrado um grande bote de sorvete que, milagrosamente, não estava caducado, e se estavam alternando para engoli-lo. Volodia olhou pela lua feita pedacinhos da cafeteria. Viu outro veículo que se aproximava, embora esta vez era um todoterreno e, detrás deste, uns homens correndo. Quando se aproximaram reconheceu os uniformize alemães. A estes seguiam mais homens, dúzias, talvez centenas. Eram os responsáveis pelo ruído como de partida de futebol. O artilheiro apontou a metralhadora para o carro que se aproximava, mas Volodia lhe pôs uma mão no ombro. —Espera —disse. Olhou para a tempestade de neve, o que lhe produziu picor nos olhos. Tudo que pôde ver foram mais veículos e mais homens avançando à carreira, além de uns quantos cavalos. Um soldado levantou seu fuzil. —Não díspares —ordenou Volodia. A multidão se aproximou mais—. Não podemos deter todos estes… nos derrotariam em um minuto —advertiu—. lhes Deixemos passar. lhes ponha a coberto. —Os homens se tombaram. O artilheiro retirou da mesa a DP-28. Volodia se sentou no chão e olhou pelo batente. O ruído se tornou estrondo. Os homens que foram em cabeça chegaram à altura da cafeteria e passaram por diante. Foram correndo, tropeçavam e avançavam capengantes. Alguns levavam fuzis, a maioria parecia ter perdido sua arma; alguns levavam gorro e casaco, outros não levavam mais que a jaqueta. Muitos estavam feridos. Volodia viu cair a um homem com a cabeça enfaixada, avançou engatinhando uns metros e se desabou. Ninguém se precaveu. Um soldado de cavalaria sobre suas arreios fez cair a um de infantaria e lhe aconteceu por cima, sem pensar-lhe duas vezes. Os jipes e os carros oficiais passavam de forma temerária através da multidão, patinando sobre o gelo, tocando a buzina de forma enlouquecida e obrigando aos homens a apartar-se para ambos os lados. Volodia se deu conta de que era uma retirada em disparada. Partiam por milhares. Era uma correria. Estavam fugindo. Ao final, os alemães se batiam em retirada. 11 1941 (IV) I Woody Dewar e Joanne Rouzrokh viajavam desde o Oakland, Califórnia, com destino a Honolulu em um Boeing B-314 de passageiros. O vôo de Pão Am durava quatorze horas. Justo antes de chegar, o casal teve uma grande discussão. Talvez fora efeito de ter acontecido tanto tempo em um espaço tão reduzido. O avião era uma das naves maiores do mundo, mas os passageiros foram acomodados em seis pequenas cabines individuais, e cada uma delas contava com duas filas de quatro assentos, uma frente a outra. —Prefiro o trem —comentou Woody ao tempo que cruzava suas largas pernas com desconforto, e Joanne teve o detalhe de não assinalar que não se podia viajar ao Hawai em trem. A viagem tinha sido idéia dos pais do Woody. Tinham decidido ir de férias ao Hawai para poder visitar irmão pequeno do Woody, Chuck, que estava destinado ali. Então convidaram a seu outro filho e ao Joanne a acompanhá-los durante sua segunda semana de visita. Woody e Joanne estavam prometidos. Lhe tinha pedido a mão a finais do verão, depois de quatro semanas de tempo caloroso e amor apaixonado em Washington. Joanne tinha respondido que era muito logo, mas Woody tinha famoso que levava seis anos apaixonado por ela, e lhe tinha perguntado quanto tempo mais acreditava ela que era suficiente. Joanne tinha acessado. casariam-se o mês de junho, assim que Woody se licenciasse no Harvard. Enquanto isso, sua condição de prometidos-lhes permitia desfrutar de juntos das férias familiares. Ela o chamava Woods e ele a chamava Jo. O avião começou a descender quando se aproximavam do Oahu, a ilha principal. Viram montanhas boscosas, aldeias dispersadas nas terras baixas e uma franja de areia contra a que rompia o fluxo. —Comprei-me um traje de banho novo —comentou Joanne. Estavam sentados um ao lado do outro, e o rugido dos motores dos quatorze cilindros Wright Twin Cyclone era muito ensurdecedor para que se ouvisse o que ela havia dito. Woody estava lendo As uvas da ira, mas deixou a leitura sem problema. —Morro por verte-o posto. —E dizia muito a sério. Ela era o sonho de qualquer desenhista de trajes de banho: tudo os objetos destacavam em sua figura. Ela o olhou com uma queda de pálpebras. —Eu gostaria de saber se seus pais nos reservaram uma habitação de matrimônio ou dois individuais. —Seus olhos castanho escuro pareceram derreter-se. Sua condição de prometidos não lhes permitia dormir juntos, ao menos, não de forma oficial; embora à mãe do Woody não lhe escapava uma e devia ter imaginado que eram amantes. —Encontrarei-te, esteja onde esteja. —Mais te vale. —Não me diga essas coisas. Já estou o bastante incômodo neste assento. Ela sorriu, satisfeita. A base naval americano apareceu no fundo. Uma lacuna em forma de folha de palmeira formava uma gigantesca baía natural. A metade da frota do Pacífico estava ali, um centenar de embarcações. As fileiras de tanques para o abastecimento de combustível pareciam os quadros de um tabuleiro de xadrez. No centro da lacuna havia uma franja de terra com uma pista de aterrissagem. No extremo oeste da ilha, Woody divisou mais de uma dúzia de hidroaviões amarrados. Pega à lacuna se encontrava a base aérea do Hickam. Várias centenas de aviões estavam estacionados com precisão militar na pista, com as asas tocando-se entre si. Para a manobra de aproximação, o avião sobrevoou uma praia de palmeiras e sombrinhas de raias de alegres cores —que Woody supôs que devia ser Waikiki—, logo passaram sobre uma pequena população que tinha que ser Honolulu, a capital. O Departamento de Estado devia uns dias de licença ao Joanne, mas Woody tinha tido que saltar uma semana de classes para poder desfrutar dessas férias. —Surpreende-me o que tem feito seu pai —comentou Joanne—. Está acostumado a estar contra algo que interrompa seus estudos. —Sei —confirmou Woody—. Mas sabe qual é o verdadeiro motivo desta viagem, Jo? Acredita que é a última vez que verá o Chuck com vida. —OH, Meu deus!, sério? —Acredita que vai haver uma guerra, e Chuck está na armada. —Acredito que tem razão. Haverá uma guerra. —por que o diz tão segura? —O mundo inteiro se mostra hostil ante a liberdade. —Assinalou o livro que tinha no regaço, um best seller titulado Jornal do Berlim, escrito pelo locutor radiofônico William Shirer—. Os nazistas têm a Europa. Os bolcheviques têm a Rússia. E, agora, os japoneses estão fazendo-se com o controle de Extremo Oriente. Não vejo como vai poder sobreviver os Estados Unidos em um mundo assim. Terá que pactuar com alguém! —É uma opinião muito parecida com a de meu pai. Acredita que entraremos em guerra com o Japão o ano que vem. —Woody franziu o sobrecenho com gesto pensativo—. O que está passando na Rússia? —Os alemães não parecem capazes de tomar Moscou. Justo antes de partir se rumoreaba a possibilidade de um contra-ataque russo a grande escala. —Essas são boas notícias! Woody olhou pelo guichê. Podia ver o aeroporto de Honolulu. Supôs que o avião amerizaría em uma enseada junto à pista. —Espero que não ocorra nada importante enquanto estou fora. —por que? —Quero uma ascensão, Woods, não quero que alguém brilhante e prometedor destaque em minha ausência. —Ascensão? Não me havia isso dito. —Ainda não me deram isso, mas aspiro ao posto de chefa de investigação. Ele sorriu. —Até onde quer chegar? —Eu gostaria de ser embaixatriz de algum lugar fascinante e complexo, Nankín ou Addis Abeba. —De verdade? —Não ponha essa cara de incredulidade. Frances Perkins é a primeira mulher secretária de Trabalho e é muito bom no que faz. Woody assentiu em silêncio. Perkins tinha sido secretária de Trabalho dos inícios da presidência do Roosevelt oito anos atrás, e tinha conseguido o respaldo sindical para o new deal. Uma mulher excepcional podia aspirar a quase algo nesses dias. E Joanne era realmente excepcional. Entretanto, em certa forma, lhe impactou que sua prometida fora tão ambiciosa. —Mas uma embaixatriz tem que viver no estrangeiro —replicou Woody. —Verdade que seria genial? Uma cultura estrangeira, clima estranho, costumes exóticos. —Mas… Como encaixa isso com o matrimônio? —Desculpa? —perguntou ela com aspereza. Ele se encolheu de ombros. —É uma pergunta normal, não crie? Ao Joanne não lhe alterou o semblante, salvo pelo fato de que lhe levantaram as aletas do nariz: era um claro sinal de que estava zangando-se, e ele o sabia. —Tenho-te feito eu essa pergunta? —espetou ela. —Não, mas… —E bem? —Nada, é que estava pensando, Jo… Espera que me vá viver ao lugar aonde te leve sua profissão? —Tentarei me adaptar a suas necessidades e espero que você tente te adaptar às minhas. —Mas não é o mesmo. —Ah, não? —Agora sim que estava zangada de verdade—. Miúda novidade. Woody se perguntou como era possível que a conversação se tornou tão violenta em tão pouco tempo. esforçou-se por falar com um tom de voz amigável e razoável. —Tínhamos falado de ter filhos, verdade? —Serão tão teus como meus. —Não da mesma forma exatamente. —Se o fato de ter filhos me converte em uma cidadã de segunda classe neste matrimônio, não penso os ter. —Não queria dizer isso! —E que narizes queria dizer? —Se lhe nomearem embaixatriz de algum país, esperas que o deixe tudo e vá contigo? —Espero que diga: Carinho, é uma maravilhosa oportunidade para ti, não penso me interpor. É que não é razoável? —Sim! —Woody estava perplexo e zangado—. Que sentido tem estar casados se não estarmos juntos? —Se estalar a guerra, apresentará voluntário a filas? —Caberia a possibilidade. —E o exército poderia te enviar lá onde fora necessário: Europa, Extremo Oriente. —Sim, claro. —Iria onde o dever te chamasse, e me deixaria em casa. —Sim, se fosse necessário. —Mas eu não posso fazê-lo. —Não é o mesmo! por que o expõe como se o fora? —Por estranho que possa te parecer, minha carreira e meu serviço ao país me parecem importantes, ao igual que lhe parecem isso com ti. —Está sendo má! —Bom, Woods, de verdade sinto que pense assim, porque falava muito a sério sobre nosso futuro juntos. Agora me pergunto se tivermos algum futuro. —É obvio que sim! —Woody poderia haver ficado a chorar de desespero—. Como ocorreu isto? Como chegamos até aqui? Sentiram uma sacudida, e o avião amerizó no Hawai. II Ao Chuck Dewar aterrorizava que seus pais descobrissem seu segredo. Estando em casa, no Buffalo, jamais tinha tido uma autêntica relação sentimental, solo um par de escarcéus em becos escuros com meninos que logo que conhecia. O principal motivo que o tinha impulsionado a arrolar-se na armada era, em grande parte, o fato de poder ser ele mesmo sem que seus pais soubessem. Desde que tinha chegado ao Hawai todo tinha sido distinto. Ali era parte de uma comunidade clandestina de pessoas similares a ele. Ia a bares, restaurantes e salões de baile onde não tinha que fingir ser heterossexual. Tinha tido algumas relacione e inclusive se apaixonou. Muitas pessoas conheciam seu segredo. E agora tinham chegado seus pais. Convidaram a seu pai a conhecer a unidade do Serviço de Inteligência de Sinais na base naval, conhecida como Estação HYPO. Como membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado, o senador Dewar era informado de segredos militares, e já lhe tinham ensinado o quartel geral de Inteligência de Sinais, ao que em Washington chamavam Op-20-G. Chuck o recolheu em seu hotel de Honolulu em um carro da armada, uma limusine Packard LeBaron. Seu pai levava um chapéu branco de palha. Quando viajavam por a borda do porto, soltou um assobio. —A frota do Pacífico! —exclamou—. Que visão tão maravilhosa! Chuck estava de acordo. —É bastante bonito, verdade? —comentou. Os navios eram preciosos, sobre tudo na armada americana, onde os pintavam, poliam-nos e lhes tiravam brilho. Chuck pensava que a marinha era genial. —Todos esses navios perfeitamente alinhados… —comentou Gus, maravilhado. —Chamamo-lo a Fila de Couraçados. Amarrados em alta mar estão o Maryland, o Tennessee, o Arizona, o Nevada, o Oklahoma e o West Virginia. —Os couraçados tinham nomes de estados norte-americanos—. Também temos o Califórnia e o Pennsylvania no porto, mas não se vêem daqui. Na entrada principal do Estaleiro Naval, o marinhe que estava de sentinela reconheceu o carro oficial e lhes fez um gesto com a mão para que entrassem. Foram com o veículo até a base submarina e se detiveram no estacionamento situado depois do quartel geral, o Velho Edifício da Administração. Chuck levou a seu pai à asa que acabavam de estrear. O capitão Vandermeier estava esperando-os. Vandermeier era a quem mais temia Chuck. Tinha-lhe pego mania ao jovem e tinha adivinhado seu segredo. Sempre estava chamando-o bicha ou paquerador. Se podia, faria saltar a lebre. Vandermeier era um homem baixinho e corpulento com a voz grave e halitosis. Saudou o Gus e lhe estreitou a mão. —Bem-vindo, senador. Será um privilégio lhe ensinar a Unidade de Inteligência para a Comunicação do 14.º Distrito da Armada. —Era o nome deliberadamente vácuo que lhe tinham posto ao grupo de rastreamento de sinais de radar da Armada Imperial japonesa. —Obrigado, capitão —respondeu Gus. —Devo lhe advertir algo de antemão, senhor. trata-se de um grupo informal. este tipo de trabalho o realizam pessoas muito excêntricas e não sempre vestem o uniforme da marinha. O oficial ao mando, o capitão de fragata Rochefort, leva uma americana de ante vermelha. —Vandermeier sorriu em um gesto de cumplicidade masculina—. Parece um puñetero joaninha. Chuck tentou não torcer o gesto. —Não voltarei a falar até que entremos em zona segura —advertiu Vandermeier. —Muito bem —respondeu Gus. Baixaram as escadas até o porão; para chegar até ali cruzaram duas portas blindadas. A Estação HYPO era uma instalação tipo cela, sem janelas e iluminada com fluorescentes. Além dos habituais escritórios e cadeiras, tinha mesas gigantescas com mapas, fileiras de exóticas impressoras, classificadoras e intercaladoras de cartões IBM, e duas camas de armar onde os criptoanalistas jogavam seus sueñecitos entre as maratonianas faça a sessão de decifração de códigos. Alguns dos homens vestiam pulcros uniformize, mas outros, como Vandermeier tinha advertido, foram com desalinhados trajes civis, sem barbear e, a julgar pelo fedor, sem assear. —Como em todas as armadas de guerra, os japoneses contam com muitos códigos distintos e utilizam o mais singelo para os sinais menos secretos, como os parte meteorológicos, e reservam os complexos para as mensagens de mais alto secreto —explicou Vandermeier—. Por exemplo, os sinais para identificar ao emissor de um mensagem e seu destinatário são em um código primitivo, inclusive quando o texto em si é em um código de alto nível. Recentemente que trocaram o código por sinais de chamada, mas deciframos as novas em uns poucos dias. —Muito impressionante —disse Gus. —Também podemos averiguar o lugar onde se originou o sinal, graças a triangulación. Com as localizações e os sinais de chamada, podemos nos fazer uma imagem bastante clara da localização da maioria das naves da armada japonesa, embora não possamos ler suas mensagens. —Assim sabemos onde estão e que rumo vão tomar, mas desconhecemos suas ordens —recapitulou Gus. —Pelo general, assim é. —Mas se queriam esconder-se, quão único teriam que fazer é impor o silêncio das radiofrecuencias. —Certo —reconheceu Vandermeier—. Se ficam calados, toda esta operação não vale para nada, e estaremos com a mierda até o pescoço. Um homem com jaqueta de smoking e sapatilhas de felpa se aproximou, e Vandermeier o apresentou como o chefe da unidade. —O capitão de fragata Rochefort fala japonês com fluidez, além de ser um gênio do criptoanálisis —informou Vandermeier. —Íamos muito bem decifrando o código principal dos japoneses justo até faz um par de dias —comentou Rochefort—. Logo, os muito bodes o trocaram e se carregaram todo nosso trabalho. —O capitão Vandermeier estava me contando que podem averiguar muitas coisas sem necessidade de ler as mensagens —disse Gus. —Sim. —Rochefort assinalou um mapa da parede—. Agora mesmo, grande parte da frota japonesa abandonou as águas nacionais e se dirige rumo ao sul. —Isso não pressagia nada bom. —Está claro que não. Mas me diga, senador, quais você crie que são as intenções dos japoneses? —Acredito que declararão a guerra aos Estados Unidos. Nosso embargo de petróleo está lhes fazendo muito dano. Os ingleses e os holandeses se negam a abastecê-los, e agora mesmo tentam transportá-lo por mar desde a Sudamérica. Não podem sobreviver assim eternamente. —Mas o que conseguiriam nos atacando? Um país pequeno como o Japão não pode invadir os Estados Unidos! —exclamou Vandermeier. —Inglaterra é um país pequeno mas conseguiu dominar o mundo graças ao governo dos mares. Os japoneses não têm que conquistar os Estados Unidos, solo necessitam nos vencer em uma batalha naval para poder controlar o Pacífico e que ninguém os detenha na hora de comercializar —atravessou Gus. —Assim, em sua opinião, o que acredita que poderiam estar fazendo ao dirigir-se para o sul? —Seu objetivo mais provável deve ser Filipinas. Rochefort assentiu mostrando seu acordo. —Já reforçamos a presença de homens nessa base. Mas há algo que me preocupa: o capitão do porta-aviões da frota japonesa leva vários dias sem receber sinais de rádio. —Silencio no sistema de comunicações. Já tinha ocorrido alguma vez? —perguntou Gus com o sobrecenho franzido. —Sim. Os porta-aviões permanecem em silêncio quando retornam a águas nacionais. Assim temos suposto que, esta vez, essa era a explicação. —Parece razoável —assentiu Gus. —Sim —respondeu Rochefort—. Oxalá pudesse estar seguro disso. III A paisagem resplandecia de luz e cor com os adornos natalinos do Fort Street, em Honolulu. Era sábado de noite, nos dia 6 de dezembro, e o exterior estava abarrotado de marinheiros com seu branco uniforme tropical, todos com sua branca boina arredondada e sua gravata-borboleta negro, dispostos a passar um bom momento. A família Dewar passeava desfrutando de do ambiente: Rosa, do braço do Chuck, e Gus e Woody a ambos os lados do Joanne. Woody fazia as pazes com sua prometida. desculpou-se por ter feito hipóteses errôneas sobre o que Joanne esperava de seu matrimônio. Joanne admitiu que lhe tinha ido um pouco a mão na discussão. Nada ficou esclarecido em realidade, mas lhes bastou como reconciliação para arrancá-la roupa e meter-se na cama. depois de fazer o amor, a rixa não parecia tão grave e nada importava salvo o fato de que ambos se amavam. Juraram então que, no futuro, discutiriam para chegar a um acordo de forma carinhosa e tolerante. Enquanto se vestiam, Woody sentiu que tinham superado um marco. Tinham tido uma amarga discussão sobre uma marcada diferencia em seus pontos de vista, mas o tinham superado. Podia ser inclusive um bom sinal. Nesse momento foram caminho do jantar, Woody levava sua câmara e ia tirando fotos de quanto lhes rodeava à medida que avançavam. antes de ter caminhado muito mais, Chuck se deteve e apresentou a outro marinho. —Este é meu colega, Eddie Parry. Eddie, apresento-te ao senador Dewar, à senhora Dewar, a meu irmão Woody e a sua prometida, a senhorita Joanne Rouzrokh. —Prazer em conhecê-lo, Eddie. Chuck te mencionou várias vezes nas cartas que nos escreve. Virá conosco para jantar? Solo vamos a um chinês —disse Rosa. Woody estava surpreso, não era muito típico de sua mãe convidar a um desconhecido a uma comida familiar. —Obrigado, senhora. Será uma honra —respondeu Eddie com acento do sul dos Estados Unidos. Entraram em restaurante Delícias Celestiales e ocuparam uma mesa para seis. Eddie tinha uns maneiras muito corretos, chamava senhor ao Gus e senhoras às mulheres, embora parecia depravado. Quando já tiveram pedido, interveio. —ouvi falar tanto sobre esta família, que tenho a sensação de conhecerjá a todos. —Tinha o rosto sardento e um amplo sorriso, e Woody se deu conta de que me agradava a todos. Eddie perguntou a Rosa se lhe tinha gostado de Hawai. —Para falar a verdade, Honolulu é como uma cidade americana em miniatura. Esperava que fora mais oriental. —Estou de acordo —corroborou Eddie—. São todo cafeterias pequenas, motéis de estrada e grupos de jazz. Perguntou ao Gus se ia estalar a guerra. Todo mundo o fazia a mesma pergunta. —tentamos por todos os meios encontrar um modus vivendi com o Japão —explicou Gus. Woody se perguntou se Eddie saberia o que significava modus vivendi—. O secretário de Estado Hull manteve uma série de conversações com o embaixador Nomura com o passar do verão. Mas não chegaram a nenhum acordo. —Que problema há? —perguntou Eddie. —A economia americana necessita uma zona de comércio livre em Extremo Oriente. Japão está de acordo: adoram o comércio livre, mas não só no pátio de nossa casa, mas sim por todo mundo. Estados Unidos não pode admiti-lo, embora quiséssemos. Assim o Japão responde que, como outros países têm sua própria zona econômica, eles também necessitam uma. —Sigo sem entender por que têm que invadir a China. Rosa, que sempre tentava ver a outra cara das coisas, interveio. —Os japoneses querem a suas tropas na China e Indochinesa e nas Índias Orientais Holandesas para proteger seus interesses, ao igual que nós, os americanos, temos soldados em Filipinas, os ingleses na Índia, os franceses em Argélia, etc.. —Dito assim, os japoneses parecem razoáveis! —São razoáveis —afirmou Joanne com rotundidad—, mas estão equivocados. Conquistar um império é a solução do século XIX. O mundo está trocando. Afastamo-nos dos impérios e das zonas econômicas fechadas. lhes dar o que querem suporia um retrocesso. Serviram-lhes a comida. —antes de que me esqueça —disse Gus—, amanhã tomaremos o café da manhã a bordo do Arizona. Às oito em ponto. —Eu não estou convidado —respondeu Chuck—, mas me deram ordens de que lhes acompanhe até ali. Recolherei-lhes às sete e meia e lhes levarei a Estaleiro Naval, logo lhes conduzirei até a nave em lancha. —Bem. Woody ficou a comer arroz frito. —Isto é genial —disse—. Deveríamos servir comida a China em nossas bodas. Gus soltou uma risada. —Parece-me que não. —por que não? É troca e está rica. —Umas bodas é algo mais que a comida, é uma ocasião especial. E falando do tema, Joanne, tenho que chamar a sua mãe. Joanne enrugou a frente. —Pelas bodas? —Pela lista de convidados. Joanne deixou os palitos no prato. —Há algum problema? —Woody observou como lhe abriam as aletas do nariz e soube que a coisa ia ficar feia. —Em realidade não é um problema —esclareceu Gus—. Tenho uma quantidade bastante numerosa de amigos e aliados em Washington que se sentiriam ofendidos se não fossem convidados à bodas de meu filho. vou sugerir a sua mãe que compartilhemos todos os gastos. Woody adivinhou que seu pai o tinha pensado muito. Como Dave tinha vendido sua empresa por uma soma ridícula antes de morrer, era possível que a mãe do Joanne não tivesse muito dinheiro para pagar umas bodas extravagante. Mas ao Joanne não gostou da idéia de dois progenitores encarregando-se dos preparativos das bodas a suas costas. —Quais são esses amigos e aliados nos que tinha pensado? —perguntou Joanne com frieza. —Senadores e congressistas, em sua maioria. Devemos convidar ao presidente, embora não virá. —Que senadores e congressistas? —insistiu Joanne. Woody se deu conta de que sua mãe dissimulava um sorriso. adorava a insistência do Joanne. Não havia muitas pessoas com o temperamento suficiente para pôr ao Gus contra as cordas. Gus começou a recitar uma lista de nomes. Joanne o interrompeu. —Há dito congressista Cobb? —Sim. —Se votou contra a proposta de lei para proibir os linchamentos! —Peter Cobb é um bom homem. Mas é político do Mississippi. Vivemos em uma democracia, Joanne: representamos a nossos votantes. Os sulistas não dariam seu apoio jamais a uma lei que proibisse os linchamentos. —Olhou ao amigo do Chuck—. Espero não ter metido a pata, Eddie. —Não meça suas palavras por mim, senhor —respondeu Eddie—. Sou do Texas, mas me envergonho ao pensar em nossos políticos sulinos. Ódio os prejuízos. Um homem é sem importar a cor de sua pele. Woody olhou ao Chuck. sentia-se tão cheio de orgulho pelo Eddie que poderia ter estalado aí mesmo. Nesse momento, Woody se deu conta de que Eddie era algo mais que o colega do Chuck. Que situação tão estranha! Havia três casais que se amavam na mesa: seu pai e sua mãe, Joanne e ele, e Chuck e Eddie. ficou olhando ao Eddie. E supôs que era o amante do Chuck. Era estranho de verdade. Eddie o pilhou olhando-o e lhe devolveu uma cálida sorriso. Woody apartou o olhar de repente. Graças a Deus que papai e mamãe não o imaginaram, pensou. A menos que essa fora a razão pela que sua mãe tinha convidado ao Eddie para jantar com a família. Sabia? Aprovava-o sequer? Não, isso ia além de todos os limites do possível. —De todas formas, Cobb não tem alternativa —dizia seu pai—. E, por todo o resto, é liberal. —Isso não tem nada de democrático —respondeu Joanne, acalorada—. Cobb não representa às pessoas do Sul. Solo aos brancos aos que permitem votar nessa parte do país. —Nada é perfeito nesta vida —atravessou Gus—. Cobb deu seu apoio ao new deal do Roosevelt. —Isso não significa que tenha que convidá-lo a minhas bodas. Woody interveio. —Papai, eu tampouco quero que venha. Tem as mãos manchadas de sangue. —Isso é injusto. —É o que sentimos. —Bom, pois não é você quem toma essas decisões; a mãe do Joanne é quem dá a festa e, se me deixar, compartilharemos os gastos. Suponho que isso nos dá ao menos o direito de poder fazer sugestões para a lista de convidados. Woody se tornou para atrás em seu assento. —Demônio, é nossas bodas! Joanne olhou ao Woody. —Talvez deveríamos celebrar umas bodas tranqüila na prefeitura, com um par de amigos e já está. Woody se encolheu de ombros. —Por mim, vale. —Isso incomodaria a muitas pessoas —sentenciou Gus com severidade. —Mas não a nós —disse Woody—. A pessoa mais importante esse dia é a noiva. Eu sozinho quero o que ela queira. Rosa falou. —me escutem todos —disse—. Não nos rasguemos as vestimentas. Gus, querido, terá que agarrar ao Peter Cobb à parte e lhe explicar, com amabilidade, que tem muita sorte de ter um filho idealista que vai casar se com uma maravilhosa garota igual de idealista, e que se negam em redondo a que o congressista Cobb atira à bodas. lhe diga que o sente, mas que não pode seguir seus impulsos ao igual que não os pôde seguir Peter ao votar a lei contra os linchamentos. Esboçará um sorriso e te dirá que o entende; sempre lhe gostaste porque vai com a verdade por diante. Gus duvidou durante comprido momento, logo decidiu acessar com amabilidade. —Suponho que tem razão, querida —admitiu. Sorriu ao Joanne—. Em qualquer caso, seria um idiota se brigasse com minha encantadora nora pelo Pete Cobb. —Obrigado… Posso começar já a te chamar papai? Woody esteve a ponto de lançar um grito afogado. Era o comentário perfeito. Joanne era tão preparada! —eu adoraria —respondeu Gus. Woody acreditou ver uma lágrima na comissura do olho de seu pai. —Pois então, obrigado, papai. O que te parece? —pensou Woody—. Se enfrentou a ele e ganhou. Miúda garota! IV no domingo pela manhã, Eddie quis acompanhar ao Chuck a recolher à família a seu hotel. —Não sei, carinho —respondeu Chuck—. Se supõe que você e eu somos amigos, não inseparáveis. Estavam na cama de um motel, ao amanhecer. Deviam voltar às escondidas para os barracões antes de que saísse o sol. —Envergonha-te de mim —disse Eddie. —Como pode dizer isso? Se te levei a jantar com minha família! —Foi idéia de sua mãe, não tua. Mas a seu pai gostou, verdade? —Todos lhe adoram. Quem não o faria? Mas não sabem que é um asqueroso maricas. —Não sou um asqueroso maricas. Sou um maricas muito limpo. —É verdade. —Por favor, me leve contigo. Quero conhecê-los melhor. De verdade que é muito importante para mim. Chuck suspirou. —Está bem. —Obrigado. —Eddie lhe beijou—. Temos tempo de…? Chuck sorriu de brinca a orelha. —Se o fizermos depressa. Duas horas mais tarde se encontravam na entrada do hotel, subidos no Packard da armada. Seus quatro ocupantes se apresentaram às sete e meia. Rosa e Joanne levavam chapéu e luvas; Gus e Woody, traje de linho branco. Woody levava a câmara. Woody e Joanne foram agarrados da mão. —Olhe a meu irmão —murmurou Chuck ao Eddie—. É tão feliz! —É uma garota preciosa. Abriram-lhes as portas e os Dewar se acomodaram na parte traseira da limusine. Woody e Joanne desdobraram os assentos auxiliares. Chuck pôs em marcha o carro e se dirigiu para a base naval. Era uma manhã ensolarada. A rádio, sintonizada na emissora KGMB, emitia hinos militares. O sol brilhava sobre a lacuna e se refletia nos olhos de boi e nas polidos corrimões de latão de centenas de navios. —Verdade que é uma vista preciosa? —perguntou Chuck. Entraram na base e conduziram até o Estaleiro Naval, onde se encontravam uma dúzia de navios nos moles e nos diques secos para sua reparação, manutenção e recarga de combustível. Chuck estacionou na Zona de Desembarque de Oficiais. Baixaram todos e olharam ao outro lado da lacuna, aos imponentes navios de guerra sob a luz da manhã. Woody tirou uma foto. Passavam escassos minutos das oito. Chuck ouviu o tangido dos sinos de uma igreja situada na próxima Pearl City. Nos navios, o turno de amanhã era chamado a tomar o café da manhã, e coloridos grupos se reuniam para içar as insígnias às oito em ponto. Uma banda de música situada na coberta do Nevada estava tocando The Star-Spangled Banner. dirigiram-se ao embarcadero, onde estava lhes esperando uma lancha amarrada. O bote tinha capacidade para doze pessoas e um motor dentro de amurada, sob uma trampilla de popa. Eddie acendeu o motor enquanto Chuck ajudava a subir aos passageiros. O pequeno motor iniciou um enérgico fervo na água. Chuck permaneceu na amurada enquanto Eddie empurrava a lancha para afastá-la do mole e orientá-la para os navios de guerra. A proa se ergueu quando a lancha tomou velocidade, e levantou duas ondas idênticas de espuma, como as asas de uma gaivota. Chuck ouviu um avião e levantou a vista. Procedia do oeste e parecia como se estivesse a ponto de chocar. Supôs que aterrissaria em uma pista aérea naval da Ford Island. Woody, sentado junto ao Chuck na amurada, franziu o sobrecenho. —Que classe de avião é esse? Chuck conhecia todos os aviões, tanto os do exército como os da armada, mas não conseguiu identificar esse. —Parece um Tipo 97 —disse. Era o avião torpedero de porta-aviões da Armada Imperial Japonesa. Woody apontou com sua câmara. Quando o avião se aproximou, Chuck divisou dois enormes sóis vermelhos pintados nas asas. —É um avião japonês! —exclamou. Eddie, que governava a lancha desde popa, ouviu-o. —Deve ser um falso avião japonês, para as práticas —comentou—. Uma manobra surpresa para danificar a manhã do domingo a todo mundo. —Suponho que sim —respondeu Chuck. E então viu um segundo avião atrás do primeiro. E outro mais. —Que demônios passa aqui? —ouviu perguntar a seu pai com impaciência. Os aviões se lançaram em picado sobre o Estaleiro Naval e fizeram um vôo rasante justo por cima da lancha; o rugido de seus motores se converteu em estrondo, como o das cataratas do Niágara. Chuck viu que eram uns dez; não, vinte; não, mais. Voavam diretamente para a Fila de Couraçados. Woody deixou por um instante de tirar fotos. —Não pode ser um ataque real, verdade? —Sua voz estava tinta de medo e dúvida. —Como vão ser japoneses? —perguntou Chuck com incredulidade—. o Japão está a quase seis mil quilômetros e médio! Nenhum avião pode percorrer tanta distância! Então recordou que os porta-aviões que transportavam os torpederos japoneses tinham mantido em silêncio as comunicações por rádio. A unidade de Inteligência de Sinais tinha suposto que estavam em águas nacionais, mas não tinham podido confirmá-lo. Viu o olhar de seu pai e supôs que estava recordando a mesma conversação. de repente, tudo esteve claro e a incredulidade se tornou terror. O avião situado em cabeça se aproximou ainda mais à Nevada, o porta-bandeira da Fila de Couraçados. ouviu-se a detonação de um canhão. Em coberta, os marinhos se dispersaram e a banda se escabulló entre um entrecortado diminuendo de notas abandonadas. No interior da lancha, Rosa gritou. —Por Deus santo! —chiou Eddie—, é um ataque! Ao Chuck lhe acelerou o pulso. Os japoneses estavam bombardeando Pearl Harbor, e ele estava em uma pequena embarcação em meio da lacuna. Olhou os rostos aterrorizados de outros: seus pais, seu irmão e Eddie, e se deu conta de que toda a gente a que queria estava nessa lancha com ele. Torpedos alargados começaram a cair dos ventres avultados dos aviões e a impactar contra as mansas águas da lacuna. —Dá meia volta, Eddie! —exclamou Chuck. Embora Eddie já estava fazendo-o, descrevendo uma curva fechada com a lancha. Quando se voltaram, Chuck viu, sobre a base aérea do Hickham, outro grupo de aviões com os discos vermelhos nas asas. Eram bombardeiros dos que se deixavam cair em picado, e se equilibravam como aves de presa sobre as fileiras de aviões americanos alinhados perfeitamente nas passarelas de aterrissagem. Mas quantos bodes desses havia? Parecia que a metade da força aérea japonesa estava no céu sobre o Pearl Harbor. Woody ainda estava tirando fotos. Chuck ouviu uma detonação grave, como uma explosão subterrânea, e logo outra, imediatamente depois. voltou-se. Viu o brilho de uma labareda na coberta do Arizona, e uma coluna de fumaça que começava a elevar-se. A popa da lancha se afundou mais na água quando Eddie pôs o motor a toda potência. —Depressa! Depressa! —ordenou Chuck sem necessidade. Desde um dos navios, Chuck ouviu o insistente grito de uma sereia do quartel geral, que convocava à tripulação a ocupar seus postos de combate; o jovem Dewar foi consciente de que, efetivamente, aquilo era uma batalha, e sua família estava justo no meio. Passado um instante, na Ford Island começou a soar a sereia de bombardeio aéreo com seu grave gemido que foi identificando-se até alcançar uma desesperada e aguda nota. produziu-se uma larga série de explosões procedentes da Fila de Couraçados à medida que os aviões torpederos davam em seus brancos. —Olhem o Wee Vee! —Era assim como chamavam o West Virginia—. Escora em direção ao porto! —gritou Eddie. Chuck se deu conta de que tinha razão. O casco do navio tinha ficado furado pelo lado mais próximo aos aviões atacantes. Milhões de toneladas de água deviam ter entrado em seu interior em poucos segundos para que uma nave tão gigantesca se inclinasse dessa forma. junto a esse couraçado, o Oklahoma sofria o mesmo destino, e, para seu horror, Chuck viu como os marinhos escorregavam sem poder evitá-lo, deslizando-se pela coberta inclinada até cair à água pela amurada. As ondas produzidas pela explosão sacudiram a lancha. Todos se aferraram aos borde. Chuck viu cair uma chuva de bombas sobre a base de hidroaviões situada no extremo da Ford Island mais próximo a eles. Os aviões estavam amarrados muito juntos, e a frágil flutua ficou feita pedacinhos, fragmentos de asas e fuselagem saíram voando pelos ares como folhas em meio de um furacão. Chuck, com sua mente treinada para os serviços secretos, tentava identificar os tipos de avião, e nesse momento distinguiu um terceiro modelo entre os atacantes japoneses: os letais Mitsubishi Zero, o melhor caça de porta-aviões do mundo. Contava unicamente com duas bombas de pequenas dimensões, mas estava armado com duas metralhadoras idênticas e um par de canhões de 20 mm. Sua missão nesse ataque devia ser escoltar aos bombardeiros, defender os dos aviões de combate americanos; embora todos os caça americanos seguiam em terra, onde muitos deles já tinham sido destruídos. Isso dava via livre aos Zero para bombardear os edifícios, o equipamento e às tropas. Ou, tal como pensou Chuck, bombardear a uma família que cruzava a lacuna e que tentava chegar à borda por todos os meios. Por fim os Estados Unidos começou a responder ao ataque. Na Ford Island, e nas cobertas dos navios aos que ainda não tinham bombardeado, os canhões anti-aéreos cobraram vida e somaram seu estrondo à gritaria do ruído letal. Os obuses anti-aéreos estalavam no céu como flores negras abrindo-se. De maneira quase imediata, um artilheiro de metralhadora da ilha fez impacto direto em um bombardeiro dos que se lançavam em picado. A cabine ficou envolta em chamas e o avião impactou contra a água com um potente mergulho de cabeça. Chuck se deu conta de que estava dando saltos de alegria, agitando um punho no ar. O West Virginia, que até o momento estava escorado, voltou a recuperar a posição vertical, mas seguiu afundando-se, e Chuck se precaveu de que o capitão devia de ter aberto as válvulas de fundo de estribor, para certificar-se de que a nave permanecia vertical enquanto se afundava. Dessa forma, a tripulação tinha mais oportunidades de sobreviver. Entretanto, o Oklahoma não teve tanta sorte, e todos contemplaram, aterrorizados, como uma embarcação tão capitalista começava a derrubar-se. —OH, Meu deus, olhem a tripulação! —gritou Joanne. Os marinhos tentavam escalar pela coberta cada vez mais levantada e saltar pela amurada em um desesperado tento de salvar a vida. Embora Chuck se deu conta de que esses primeiros homens tiveram sorte, porque, ao final, a nave ficou de barriga para baixo como uma tartaruga, ouviu-se um terrível rangido e começou a afundar-se, pelo que quantos centenares de marinhos ficariam apanhados sob as cobertas? —lhes agarre forte! —gritou Chuck. Uma imensa onda provocada pela volta de sino do Oklahoma se aproximava para eles. Seu pai agarrou a sua mãe e Woody tirou da mão ao Joanne. A onda chegou até eles e levantou a lancha até uma altura impossível. Chuck se cambaleou mas seguiu obstinado ao bordo. A lancha permaneceu a flutuação. Seguiram-lhe ondas mais pequenas, fez-os balançar-se, mas todo mundo estava a salvo. Chuck observou, consternado, que ainda estavam a mais do meio quilômetro da borda. Assombrosamente, o Nevada, que tinha sido bombardeado ao princípio, começou a deslocar-se. Alguém deveu ter a presença de ânimo de mandar uma mensagem por radar a todos os navios para que soltassem amarras. Se conseguiam sair do porto poderiam separar-se e converter-se em brancos menos fáceis. Continuando, da Fila de Couraçados chegou uma explosão dez vezes mais intensa que qualquer das que se ouviram até então. O estalo foi tão violento, que Chuck sentiu a detonação como um golpe no peito, embora já quase estava a um quilômetro de distância. Saiu uma labareda da torre do canhão n.º 2 do Arizona. Uma décima de segundo depois, a metade frontal do navio estalou. Os restos da nave saíram voando pelos ares, lascas de aço retorcido e chapas deformadas se elevavam entre a fumaça com uma lentidão de pesadelo, como tiras de papel calcinado por uma fogueira. As chamas e a fumaça envolviam a proa do navio. O poderoso mastro se inclinou para diante como um tipo bêbado. —O que foi isso? —perguntou Woody. —A reserva de munição do navio explorou —esclareceu Chuck, e sentiu um doloroso tombo no coração ao dar-se conta de que centenas de seus companheiros da marinha teriam morrido nessa gigantesca explosão. Uma coluna de fumaça vermelha escura se elevou para o céu, como surta de uma pira funerária. ouviu-se um impacto e a lancha deu uns inclinações bruscas porque algo tinha se chocado com ela. Todos se agacharam. Caíram de joelhos ao chão; Chuck pensou que devia ser uma bomba, mas logo se deu conta de que isso era impossível, porque seguia vivo. Quando se recuperou, viu que um enorme fragmento de metal tinha furado a coberta justo em cima do motor. Era um milagre que não lhe tivesse dado a ninguém. Entretanto, o motor se parou. A lancha reduziu a marcha até ficar quieta. bamboleava-se no fluxo picado enquanto os aviões japoneses semeavam de fogo a lacuna. —Chuck, temos que sair daqui agora mesmo —ordenou Gus com rotundidad. —Já sei. —Chuck e Eddie examinaram os danos. Agarraram o fragmento de metal e tentaram desencravar o da coberta de teca, mas estava muito encaixado na madeira. —Não temos tempo para isso! —advertiu Gus. —De todas formas, o motor já não serve para nada, Chuck —atravessou Woody. Estavam ainda ao meio quilômetro da costa. Entretanto, a lancha estava equipada para emergências como essa. Chuck desembrulhou um par de remos. Agarrou um e Eddie tomou o outro. A embarcação era muito grande para fazê-la avançar remando e se moviam com lentidão. Por sorte para eles, produziu-se uma pausa no ataque. O céu já não estava infestado de aviões. Gigantescas volutas de fumaça se elevavam dos navios destruídos pelas bombas, incluindo uma coluna de trezentos metros de alto pertencente ao aniquilado o Arizona, embora não se produziram novas explosões. O Nevada, cuja tripulação demonstrou um valor incrível, dirigia-se para a entrada do porto. A água que rodeava aos navios estava cheia de botes salva-vidas, lanchas barcos a motor e homens nadando ou agarrados a restos flutuantes dos couraçados afundados. Afogar-se não era seu único temor: o combustível dos navios perfurados se derramou pela superfície e estava ardendo. Os gritos de auxílio de quem não podiam nadar se mesclavam de forma horrível com os chiados dos queimados. Chuck jogou um olhar furtivo a seu relógio de pulso. Tinha a sensação de que tivessem acontecido várias horas, mas, por incrível que parecesse, tinham sido sozinho trinta minutos. Justo quando estava pensando nisso, começou a segunda fase do ataque. Nesta ocasião, os aviões provinham do este. Alguns perseguiam o Nevada, que tentava fugir; outros apontavam ao Estaleiro Naval onde os Dewar tinham embarcado. De forma quase imediata, o destruidor Shaw, em um mole flutuante, estalou e ficou envolto por enormes línguas de fogo e colunas de fumaça. O combustível se verteu na água e começou a arder. Logo, no dique seco maior, o couraçado Pennsylvania recebeu um impacto. Dois destruidores no mesmo dique seco saltaram pelos ares quando a carga de munição que levavam fez ignição. Chuck e Eddie foram lhe dando aos remos, suando como cavalos de carreiras. Apareceram os marinhe no Estaleiro Naval, supostamente, dos barracões próximos, e tiraram a equipe contra incêndios. Ao final a lancha chegou à Zona de Desembarque de Oficiais. Chuck desceu de um salto e rapidamente amarrou a embarcação enquanto Eddie ajudava a baixar aos ocupantes. Todos correram para o carro. Chuck saltou ao assento do condutor e lhe deu ao contato. A rádio do carro se acendeu de forma automática e ouviram o locutor da KGMB dizer: Chamada geral às armas a todos os soldados do exército, a armada e os marinhe. Chuck não tinha tido a oportunidade de informar a ninguém, mas estava seguro de que haveria recebido ordens de garantir a segurança de quatro civis a seu cuidado, sobre tudo, porque duas eram mulheres e um, senador. Assim que todos estiveram no carro, saiu disparado. A segunda fase do ataque parecia estar tocando a seu fim. Quase todos os aviões japoneses estavam afastando do porto. De todas formas, Chuck pisou a fundo o acelerador: podia haver uma terceira fase. A grade principal estava aberta. De ter estado fechada, haveria sentido o impulso de derrubá-la. Não havia mais veículos no caminho. afastou-se a toda velocidade do porto pela estrada da Kamehameha. Supôs que, quanto mais se afastassem do Pearl Harbor, mais segura estaria sua família. Então viu um Zero solitário dirigindo-se para o carro. Voava baixo e seguia a estrada, e, passados uns minutos, Chuck se deu conta de que seu carro era o objetivo. O canhão estava nas asas, e havia muitas possibilidades de que não desse a um branco tão estreito como o carro; mas as metralhadoras estavam juntas, a ambos lados do consertado do motor. Essa era a arma que usaria o piloto se era preparado. Chuck olhou desesperado a ambos os lados da estrada. Não havia lugar onde esconder-se, só canaviais. Começou a ziguezaguear. O piloto teve o bom julgamento de não lhe imitar. A estrada era larga e, se Chuck colocava o carro no canavial, teria que reduzir a marcha até quase deter-se. Pisou a fundo o acelerador, e se deu conta de que, quanto mais rápido fora, mais oportunidades tinha de que não lhe dessem. Mas então foi muito tarde para refletir sobre a melhor opção. O avião estava tão perto que Chuck via os buracos negros do canhão das asas. Sem embargo, tal como tinha suposto, o piloto começou a disparar as metralhadoras, e as balas impactaram no asfalto, justo por diante do carro. Chuck deu um volantazo à esquerda, para o centro do meio-fio; logo, em lugar de seguir pela esquerda, situou-se à direita. O piloto retificou. As balas deram na capota. O pára-brisa se fez pedacinhos. Eddie rugiu de dor e, na parte traseira, uma das mulheres gritou. E o Zero desapareceu. O carro começou a dar inclinações bruscas, fora de controle. Devia haver-se cravado uma das rodas dianteiras. Chuck lutou com o volante, tentando não sair-se da estrada. O carro ia de um lado para o outro, deslizando-se pelo asfalto até que foi dar contra o cultivo ao bordo da estrada e se deteve pelo impacto. Começaram a sair chamas do motor, e Chuck cheirou a gasolina. —Todo mundo fora! —gritou—. antes de que explore o depósito! Abriu sua porta e saltou ao chão. Atirou da portinhola traseira e seu pai saiu disparado, levando a sua mãe da mão. Chuck viu que outros saíam pelo outro lado. —Corram! —gritou, mas foi desnecessário. Eddie já se dirigia para o canavial coxeando como se estivesse ferido. Woody atirava do Joanne e ao mesmo tempo a levava em volandas; ela também parecia ferida. Seus pais foram correndo pelo semeado, em princípio, ilesos. Chuck se uniu a eles. Correram centenas de metros até que se atiraram em engoma ao chão. Houve um momento de silêncio. O ruído dos aviões se converteu em um rumor longínquo. Chuck levantou a vista e viu a fumaça do combustível que se elevava desde o porto a vários milhares de metros do chão. por cima daquilo, os últimos bombardeiros de alto nível se dirigiram para o norte. Então se produziu uma explosão que lhes retumbou nos tímpanos. Inclusive com os olhos fechados, Chuck viu a chama do combustível que tinha provocado a detonação. Uma onda de calor lhe aconteceu por cima. Levantou a cabeça e olhou para trás. O carro estava em chamas. levantou-se de repente. —Mamãe! Está bem? —É um milagre, mas não estou ferida —respondeu com seriedade enquanto seu marido a ajudava a levantar-se. Percorreu o campo com o olhar para localizar a outros. Correu para o Eddie, que estava sentado, apertando a coxa. —Deram-lhe? —Dói-me a rabiar —respondeu Eddie—. Mas não há muito sangue. —Conseguiu esboçar um sorriso—. É na parte superior da coxa, acredito, mas não está afetado nenhum órgão vital. —Levaremo-lhe a hospital. Nesse instante, Chuck ouviu um ruído terrível. Seu irmão estava chorando. Woody estava chorando não como um bebê, mas sim como um menino perdido: era um pranto intenso, de muito profundo desdita. Chuck soube imediatamente que era o lamento de um coração quebrado. Correu para seu irmão. Woody estava de joelhos, tremia-lhe o peito, tinha a boca aberta e lhe caíam lágrimas dos olhos. Tinha todo o traje de linho branco talher de sangue, mas não estava ferido. —Não, não! —gritava entre soluços. Joanne estava tendida no chão frente a ele, de barriga para cima. Chuck se deu conta em seguida de que estava morta. Não se movia e tinha os olhos abertos, olhando ao vazio. O peitilho de seu alegre vestido de raias estava empapado de sangue arterial, vermelha e brilhante, que já começava a obscurecer-se em algumas parte. Chuck não conseguiu ver a ferida, mas supôs que a bala teria impactado em o ombro e lhe teria perfurado a artéria axilar. Devia ter morrido sangrada em questão de minutos. Não sabia o que dizer. Outros se aproximaram e permaneceram a seu lado: sua mãe, seu pai e Eddie. Sua mãe se ajoelhou junto ao Woody e o rodeou com os braços. —Meu pobre menino —disse, como se fora muito pequeno. Eddie rodeou com um braço ao Chuck pelos ombros e lhe deu um discreto apertão. O senador se ajoelhou junto ao corpo. Alargou um braço e tomou ao Woody da mão. Este deixou de chorar por um instante. —lhe feche os olhos, Woody —disse seu pai. Ao Woody tremia a mão. Com um grande esforço, conseguiu controlar o tremor. Alargou os dedos para as pálpebras de sua amada. E, continuando, com gesto de infinita ternura, fechou-lhe os olhos. 12 1942 (I) I O primeiro dia de 1942, Daisy recebeu uma carta de seu antigo prometido, Charlie Farquharson. Abriu-a sentada à mesa do café da manhã na casa do Mayfair, só salvo pelo ancião mordomo que lhe serve o café e a criada de quinze anos que lhe levou a torrada quente da cozinha. Charlie não escrevia desde o Buffalo, a não ser desde o Duxford, uma base aérea da RAF que ficava no leste da Inglaterra. Daisy tinha ouvido falar daquele lugar: estava perto de Cambridge, onde tinha conhecido tanto a seu marido, Boy Fitzherbert, como ao homem ao que amava, Lloyd Williams. Alegrou-lhe ter notícias do Charlie. Tinha-a deixado plantada, não cabia dúvida, e nnaquele tempo naquele tempo o tinha odiado por isso, mas já tinha passado muito tempo. Daisy sentia que era uma pessoa diferente. Em 1935 tinha sido uma herdeira norte-americana, a senhorita Peshkov; em 1942 era a viscondessa do Aberowen, uma aristocrata inglesa. Fora como fosse, gostou de saber que Charlie se lembrava dela. Uma mulher sempre preferia ser recordada a cair no esquecimento. Charlie escrevia com uma pesada pluma negra. Sua caligrafia resultava desalinhada, as letras eram grandes e irregulares. Daisy leu: Antes que nada, claro está, preciso me desculpar pela forma em que te tratei quando ainda vivia no Buffalo. Estremeço-me de vergonha cada vez que o recordo. minha mãe —pensou Daisy—, parece que maturou. Que esnobes fomos todos, e que fraco fui eu ao permitir que meu difunta mãe me pressionasse para que me levasse tão mal contigo. Ah —pensou—, seu “difunta” mãe. Ou seja que a velha arpía morreu. Isso poderia explicar a mudança. Uni-me aos 133.º Esquadrão Eagle. Voamos com aviões Hurricane, mas qualquer dia destes nos trarão os Spitfire. Havia três esquadrões Eagle, unidades da Royal Air Force tripuladas por voluntários norte-americanos. Daisy se surpreendeu: não tinha pensado que Charlie pudesse apresentar-se voluntário para ir lutar. Quando ela freqüentava sua companhia, o único que lhe interessava eram os cães e os cavalos. Sim que tinha maturado. Se encontrar em seu coração a força para me perdoar, ou ao menos para deixar atrás o passado, eu adorarei verte e conhecer seu marido. Supôs que a menção a um marido era uma forma educada de dizer que não tinha intenções românticas. A semana que vem estarei em Londres, de licença. Deixaria que lhes convidasse aos dois para jantar? Aceita, por favor. Com meus melhores desejos, Charles H. B. FARQUHARSON Boy não estava em casa esse fim de semana, mas Daisy aceitou embora tivesse que acudir ela sozinha. Sentia falta a companhia de um homem, igual a muitas mulheres no Londres da guerra. Lloyd se tinha ido a Espanha e tinha desaparecido. antes de partir havia dito que ocuparia um posto de agregado militar na embaixada britânica de Madrid, e Daisy desejou que fora certo que tivesse um trabalho tão seguro, embora não lhe acreditou. Quando lhe perguntou por que enviava o governo a um jovem oficial tão capaz a fazer um trabalho de despacho em um país neutro, lhe tinha explicado quão importante era conseguir que a Espanha não entrasse na luta para ficar do lado dos fascistas. Mas o disse com um sorriso compungido que lhe confirmou claramente que não podia enganá-la. Daisy temia que em realidade tivesse cruzado a fronteira em segredo para unir-se à Resistência francesa, e tinha pesadelos nas que o capturavam e o torturavam. Fazia mais de um ano que não o via. Sua ausência era como uma amputação: sentia-a todas as horas do dia. Entretanto, alegrou-se de ter a oportunidade de sair fora uma noite acompanhada por um homem, embora esse homem fora Charlie Farquharson, com sua estupidez, sua absoluta falta de glamour e seu sobrepeso. Charlie tinha reservado uma mesa no restaurante assador do hotel Savoy. No vestíbulo, enquanto um garçom a ajudava a tirar o casaco de visom, lhe aproximou um homem alto com um smoking de boa feitura que lhe resultou vagamente conhecido. —Olá, Daisy —disse com acanhamento detrás lhe tender uma mão—. É um prazer verte depois de tantos anos. Para ouvir sua voz se deu conta de que era Charlie. —Santo céu! —exclamou—. Como trocaste! —perdi um pouco de peso —admitiu ele. —Certamente. —Uns vinte ou vinte e dois quilogramas, calculou ela. Estava mais bonito. Parecia um homem de rasgos duros, em lugar de pouco bonito. —Mas você não trocaste nada de nada —comentou ele, olhando-a de cima abaixo. Daisy se tinha esforçado por estar radiante. A sobriedade da guerra lhe tinha impedido de comprar nada novo desde fazia anos, mas para essa noite tinha resgatado um vestido de seda, de cor azul safira e com os ombros descobertos, que tinha adquirido em sua última viagem a Paris, antes de que estalasse o conflito. —dentro de um par de meses farei vinte e seis anos —disse—. Não posso acreditar que esteja igual a quando tinha dezoito. —me acredite que sim —repôs ele detrás lhe olhar o decote e ruborizar-se. Entraram no restaurante e tomaram assento. —Tinha medo de que não viesse —confessou Charlie. —Me tinha parado o relógio. Sinto ter chegado tarde. —Só foram vinte minutos. Teria esperado uma hora inteira. Um garçom lhes perguntou se queriam tomar uma taça. —Este é um dos poucos sítios da Inglaterra onde servem um Martini decente. —Dois martinis, por favor —pediu Charlie. —eu gosto sem gelo e com azeitona. —Igual à mim. Ficou olhando, intrigada pelo muito que se transformou. Sua antiga estupidez se suavizou e se converteu em um acanhamento encantador, embora ainda era difícil imaginá-lo pilotando um caça e derrubando aviões alemães. Bom, de todas formas o Blitz sobre Londres tinha terminado fazia meio ano e já não se livravam batalhas aéreas nos céus do sul da Inglaterra. —Que classe de vôos realiza? —perguntou. —Sobre tudo operações circus diurnas no norte da França. —O que é uma operação circus? —Um ataque de bombardeiros com uma abundante escolta de caças. Seu objetivo principal consiste em atrair ao inimigo para provocar uma batalha aérea em que estão em inferioridade numérica. —Detesto os bombardeiros —comentou Daisy—. Tive que viver o Blitz. Ele pareceu surpreender-se. —Haveria dito que você gostaria de ver os alemães tragando um pouco de sua própria medicina. —Nem muito menos. —Daisy o tinha pensado em numerosas ocasiões—. Poderia me jogar a chorar sozinho pensando em todas as mulheres e os meninos inocentes que morreram queimados ou ficaram mutilados em Londres… E saber que há mulheres e meninos alemães sofrendo o mesmo não ajuda em nada. —Nunca o tinha considerado assim. Pediram o jantar. As disposições especiais para tempos de guerra a restringiam a três pratos, e a comida não podia lhes custar mais de cinco xelins. Na carta havia pratos novos por motivos de austeridade, como o Sucedâneo de pato (feito de salsichas de porco) ou o Bolo de carne Woolton, que não continha nenhuma pingo de carne. —Sou incapaz de expressar o muito que me alegra ouvir uma garota falar americano de verdade —disse Charlie—. Eu gosto das inglesas, e inclusive saí com uma, mas sinto falta das vozes dos Estados Unidos. —me passa o mesmo —repôs ela—. Isto se converteu em meu lar e não acredito que retorne nunca a América do Norte, mas sei como se sente. —Lamento não ter podido conhecer visconde do Aberowen. —Está na força aérea, como você. É instrutor de pilotos. Vem a casa de vez em quando… mas este fim de semana não está. Daisy havia tornado a dormir com o Boy em seus ocasionais visita. depois de surpreendê-lo com essas espantosas mulheres do Aldgate, tinha jurado que jamais voltaria a deitar-se com ele, mas Boy a tinha pressionado lhe dizendo que os homens que lutavam na guerra necessitavam consolo ao retornar a casa. Além disso, havia-lhe prometido que nunca voltaria a relacionar-se com prostitutas. Não é que Daisy acreditasse em suas promessas, mas cedeu de todas formas, até contra seus próprios desejos. A fim de contas —se disse—, casei-me com ele para o bom e para o mau. Entretanto, por desgraça já nem sequer desfrutava de do sexo quando estava com seu marido. Podia ir-se à cama com o Boy, mas não podia voltar a apaixonar-se por ele. Tinha que utilizar nata para lubrificar-se. Tinha tentado reviver aqueles sentimentos de carinho que uma vez sentisse por ele, quando o via como um aristocrata jovem e lhe apaixonem, com o mundo a seus pés, todo diversão, capaz de desfrutar da vida ao máximo. Mas em realidade se deu conta de que não era lhe apaixone nem muito menos: Boy não era mais que um homem egoísta e bastante limitado com um título nobiliário. Quando estava em cima dela, o único no que podia pensar Daisy era que ao melhor contagiava uma infecção repugnante. —Seguro que não gostará de muito falar sobre a família Rouzrokh… —comentou Charlie com cautela. —Não. —… mas se inteirou de que Joanne morreu? —Não! —Daisy ficou sobressaltada—. Como? —No Pearl Harbor. Estava prometida com o Woody Dewar, e tinha ido com ele a visitar seu irmão, Chuck, que está destinado ali. Foram em um carro que foi alcançado por um Zero, um cazabombardero japonês, e morreu. —Sinto-o muitíssimo. Pobre Joanne. Pobre Woody. Chegou então o jantar, junto com uma garrafa de vinho. Comeram em silencio durante um momento, e Daisy descobriu que o sucedâneo de pato não sabia muito a pato. —Joanne foi uma das duas mil e quatrocentas pessoas que morreram no Pearl Harbor —disse Charlie—. Perdemos oito navios couraçados e outras dez embarcações. Malditos japoneses canalhas. —Embora ninguém o diga, aqui a gente está contente porque agora os Estados Unidos entrou na luta. Só Deus saberá por que foi Hitler tão parvo como para declarar a guerra aos Estados Unidos, mas os britânicos acreditam que agora, com os russos e nós de seu lado, por fim têm possibilidades de ganhar. —O povo norte-americano está furioso pelo do Pearl Harbor. —Aqui a gente não o entende. —Os japoneses seguiram negociando até o último minuto… até muito depois de ter a decisão tomada. Isso é enganar! Daisy enrugou a frente. —me parece que é normal. Se se tivesse chegado a um acordo no último momento, teriam podido abortar o ataque. —Mas não declararam a guerra! —O que teria trocado isso? O que esperávamos era que atacassem as Filipinas. Pearl Harbor nos teria pilhado por surpresa até com uma declaração de guerra. Charlie estendeu as mãos em um gesto de desconcerto. —Mas por que tinham que atacar a nós? —Roubamo-lhes seu dinheiro. —Paralisamos seu ativos. —Eles não vêem nenhuma diferença. Além disso, também lhes cortamos o fornecimento de petróleo. Tínhamo-los entre a espada e a parede. Estavam ao bordo da ruína. O que foram fazer? —Teriam que haver-se rendido e acessado a retirar-se da China. —Sim, é certo. Mas se fosse os Estados Unidos quem se visse acossado e outro país lhe ordenasse o que fazer, quereria você que nos rendêssemos? —Pode que não. —Um amplo sorriso iluminou o rosto do Charlie—. Antes hei dito que não tinha trocado nada. Agora eu gostaria de retirá-lo. —por que? —Antes nunca falava assim. Nos velhos tempos nunca tinha conversações sobre política. —Se um não se implicar, o que aconteça é culpa dela. —Suponho que isso é o que aprendemos todos. Pediram as sobremesas. —O que vai acontecer com o mundo, Charlie? —perguntou Daisy—. a Europa inteira se rendeu ao fascismo. Os alemães conquistaram grande parte da Rússia. Estados Unidos é uma águia com uma asa rota. Às vezes me alegro de não ter tido filhos. —Não subestime aos Estados Unidos. Estamos feridos, não derrotados. Japão se crie agora o amo do mundo, mas chegará o dia em que o povo nipônico derrame amargas lágrimas de arrependimento pelo Pearl Harbor. —Espero que tenha razão. —Tampouco aos alemães sai tudo como eles quereriam. Não conseguiram tomar Moscou e agora se batem em retirada. Dá-te conta de que a batalha de Moscou foi a primeira derrota real do Hitler? —É uma derrota, ou só um reverso? —Seja o um ou o outro, trata-se do pior resultado militar que teve jamais. Os bolcheviques lhes deram uma boa surra a esses nazistas. Charlie tinha descoberto o oporto de reserva, um gosto muito britânico. Em Londres, os homens o bebiam depois de que as damas se retirassem da mesa, uma prática tediosa que Daisy tentava abolir em sua própria casa sem muito êxito. Beberam uma taça cada um. Depois do Martini e do vinho, o oporto conseguiu que Daisy se sentisse algo achispada e contente. Os dois recordaram sua adolescência no Buffalo e riram das tolices que tinham feito eles e outros. —Disse a todos que foi a Londres a dançar com o rei —rememorou Charlie—. E isso fez! —Espero que morreram de inveja. —E de que maneira! Ao Dot Renshaw deu um desmaio. Daisy se pôs-se a rir com alegria. —Que contente estou de que nos tenhamos visto —disse Charlie—. Eu gosto de muito sua companhia. —Eu também me alegro. Saíram do restaurante e ficaram os casacos. O porteiro lhes pediu um táxi. —Acompanho a casa —se ofereceu Charlie. Enquanto avançavam pelo Strand, ele a rodeou com um braço. Daisy esteve a ponto de protestar, mas pensou: Que demônios!, e se acurrucó junto a ele. —Sou um parvo —comentou Charlie—. Oxalá me tivesse casado contigo quando tive a oportunidade. —Teria sido melhor marido que Boy Fitzherbert —repôs ela, mas então nunca teria conhecido ao Lloyd. deu-se conta de que não lhe tinha falado ao Charlie dele. Quando torceram por sua rua, Charlie a beijou. Resultava agradável sentir-se protegida pelo abraço de um homem e beijar seus lábios, mas Daisy sabia que era o álcool o que a fazia sentir-se assim, e que em realidade o único homem ao que queria beijar era ao Lloyd. Mesmo assim, não apartou ao Charlie até que o táxi se deteve. —Quer que tomemos a última? —propôs ele. Por um momento, Daisy se sentiu tentada. Fazia muito que não tocava o firme corpo de um homem, mas em realidade não era ao Charlie a quem desejava. —Não —disse—. O sinto, Charlie, mas estou apaixonada por outro. —Não temos que nos deitar juntos —lhe sussurrou ele—. Mas se pudéssemos, não sei, estar um momento caramelados… Daisy abriu a porta e desceu do carro. sentia-se como um descarado. Ele arriscava sua vida por ela cada dia, e ela não era capaz de lhe dar nem um mínimo gosto. —boa noite, Charlie, e boa sorte —disse. antes de poder trocar de opinião, fechou a portinhola do carro e entrou em sua casa. Subiu direta acima. Uns minutos depois, só na cama, sentiu-se profundamente desventurada. Tinha traído a dois homens: ao Lloyd, porque tinha beijado a Charlie, e ao Charlie, porque o tinha deixado insatisfeito. Passou quase todo no domingo na cama com ressaca. na segunda-feira de noite recebeu uma chamada Telefónica. —Sou Hank Bartlett —disse uma jovem voz norte-americana—. Amigo do Charlie Farquharson, do Duxford. Tinha-me falado de você e encontrei o número em sua agenda. Ao Daisy lhe parou o coração. —por que chama? —Temo-me que são más notícias —respondeu ele—. Charlie morreu hoje, derrubaram-no quando sobrevoava Abbeville. —Não! —Era sua primeira missão com o novo Spitfire. —Falou-me disso —repôs Daisy, aturdida. —Pensei que gostaria de sabê-lo. —Obrigado, sim —sussurrou ela. —Ele acreditava que era você o não vai mais. —Ah, sim? —Teria que havê-lo ouvido falar sem parar de quão estupenda é. —Sinto-o —disse—. O sinto muito. —Então já não pôde seguir falando e pendurou o auricular. II Chuck Dewar olhou por cima do ombro do tenente Bob Strong, um dos criptoanalistas. Alguns eram caóticos e desordenados, mas Strong era dos prolixos, e em seu escritório não havia nada mais que uma folha de papel em que tinha escrito umas sílabas: EU–O–KU–LHA–WA–NA —Não o entendo —disse Strong, frustrado—. Se o deciframos bem, diz que atacaram yolokutawana. Mas isso não quer dizer nada. Essa palavra não existe. Chuck olhou fixamente aquelas seis sílabas japonesas. Estava seguro de que tinham que significar algo para ele, embora tão solo contava com umas noções do idioma. Entretanto, ao ver que não tirava nada em claro, seguiu com seu trabalho. O ambiente no Velho Edifício da Administração era lúgubre. Durante semanas depois do bombardeio, Chuck e Eddie tinham visto emergir dos navios afundados corpos inchados que logo flutuavam na oleosa superfície da água do Pearl Harbor. Ao mesmo tempo, a informação que lhes chegava falava de mais ataque devastadores por parte dos japoneses. Só três dias depois do Pearl Harbor, os aviões inimigos se lançaram contra a base americana do Luzón, nas Filipinas, e tinham destruído todo o arsenal de torpedos da frota do Pacífico. Esse mesmo dia, no mar da China Meridional, afundaram dois couraçados britânicos, o Repulse e o Prince of Wales, com o que haviam deixado aos britânicos indefesos no Extremo Oriente. Parecia que nada podia pará-los. Não faziam mais que chegar más notícias. Durante os primeiros meses do novo ano, Japão tinha derrotado aos americanos nas Filipinas e tinha vencido aos britânicos em Hong Kong, Singapura e Rangún, a capital da Birmania. Muitos dos nomes daqueles lugares resultavam estranhos inclusive para marinhos como Chuck e Eddie. Ao público norte-americano lhe soavam igual a longínquos planetas de uma novela de ficção científica: Guam, Wake, Bataán. O que sim conhecia todo mundo era o significado de retirada, submissão e rendição. Chuck estava perplexo. De verdade conseguiria o Japão derrotar aos Estados Unidos? Não podia acreditar. Lá pelo mês de maio, os japoneses já tinham conseguido o que queriam: um império que lhes proporcionava borracha, estanho e —o mais importante— petróleo. As filtrações de informação indicavam que governavam seus domínios com uma brutalidade tal que teria feito ruborizar ao Stalin. Só uma coisa lhes aguava a festa: a armada dos Estados Unidos. Saber isso enchia ao Chuck de orgulho. Os japoneses tinham esperado destruir Pearl Harbor por completo e fazer-se com o controle total do oceano Pacífico, mas não o tinham obtido. Os porta-aviões e os cruzeiros pesados americanos seguiam a flutuação. Todas as informações conseguidas faziam pensar que aos comandantes japoneses enfurecia que os norte-americanos não se deixassem aniquilar. depois das baixas sofridas no Pearl Harbor, as forças dos Estados Unidos estavam em inferioridade numérica e armamentística, mas não tinham fugido correndo a esconder-se. Ao contrário, haviam contra-atacado lançando bombardeios relâmpago contra navios japoneses. Com isso não tinham produzido danos graves, mas sim tinham conseguido levantar a moral de seus homens e fazer chegar aos japoneses a contundente mensagem de que ainda não tinham vencido. Mais adiante, em 25 de abril, uns bombardeiros que tinham separado de um porta-aviões atacaram o centro de Tóquio e abriram uma ferida terrível no orgulho do exército japonês. No Hawai, as celebrações foram eufóricas. Chuck e Eddie se embebedaram essa noite. Entretanto, o seguinte enfrentamento era iminente. Todos os homens com os que falava Chuck no Velho Edifício da Administração diziam que os japoneses lançariam um ataque de primeira magnitude a princípios do verão para conseguir que a frota americana realizasse um grande desdobramento, preparando-se para a batalha definitiva. Os japoneses tinham a esperança de que a superioridade de forças de sua armada resultasse decisiva e, assim, aniquilar por completo a frota do Pacífico dos norte-americanos. Se os Estados Unidos queria vencer, a única forma de fazê-lo era estar melhor preparado e melhor informado, mover-se mais depressa e ser mais preparado. Durante esses meses, a Estação HYPO tinha trabalhado dia e noite para decifrar o JN-25b, o novo código da Armada Imperial Japonesa. Chegado maio, haviam feito já algum progresso. A armada dos Estados Unidos tinha estações de interceptação de sinais de rádio por toda a costa do Pacífico, de Seattle até a Austrália. Ali, uns homens conhecidos como a Equipe do Telhado se sentavam com seus receptores de rádio e os auriculares postos a escutar o tráfico radiofônico japonês. Rastreavam as ondas e anotavam tudo o que ouviam em blocos de papel de notas. As mensagens se transmitiam em código morse, mas os pontos e as raias dos sinais navais se traduziam em grupos numéricos de cinco dígitos, e cada um de eles representava uma letra, uma palavra ou uma frase de um livro de códigos. Os números aparentemente aleatórios eram redirigidos mediante assinale de radio seguras a uns teletipos que estavam no porão do Velho Edifício da Administração. Então começava o difícil: decifrar o código. Sempre se começava pelas coisas pequenas. A última palavra de qualquer mensagem estava acostumada ser OWARI, que significava fim. O criptoanalista procurava outras incidências desse grupo numérico na mesma mensagem, e escrevia FIM? em cima de todas as que encontrava. Os japoneses ajudaram cometendo um engano por descuido, algo inusitado neles. Entrega-a dos novos livros de códigos para o JN-25b se atrasou em algumas unidades que estavam muito afastadas, assim durante umas semanas fatídicas o alto mando japonês enviou algumas mensagens cifradas não em um, a não ser em ambos os códigos. Posto que os norte-americanos já tinham decifrado grande parte do JN-25 original, foram capazes de traduzir a mensagem em código antigo, alinhar o texto decifrado com o novo código e, assim, descobrir o significado dos grupos de cinco dígitos do novo. Durante um tempo progrediram a passos aumentados. Aos oito criptoanalistas que havia em um princípio se uniram, depois do Pearl Harbor, alguns dos músicos da banda do couraçado Califórnia, que havia sido fundo. Por motivos que ninguém alcançava a compreender, aos músicos lhes dava bem decifrar códigos. Tudo os sinais interceptados se guardavam e tudas as mensagens decifradas se arquivavam. Comparar uns com outros era fundamental para o trabalho. Um analista podia pedir tudo os sinais de um dia em concreto, ou tudo os sinais dirigidos a um mesmo navio, ou tudo os sinais nas que se mencionasse Hawai. Chuck e o resto de pessoal administrativo tinham desenvolvido sistemas cada vez mais complexos de indexação com referências cruzadas para ajudar aos analistas a encontrar algo que necessitassem. A unidade predisse que durante a primeira semana de maio os japoneses atacariam Port Moresby, a base que os Aliados tinham na Papúa. Acertaram, e a armada de Estados Unidos interceptou a frota de invasão no mar do Coral. Ambos os bandos se declararam vitoriosos, mas os japoneses não tomaram Port Moresby. Depois disso, o almirante Nimitz, comandante em chefe do Pacífico, começou a confiar em seus descifradores. Os japoneses não utilizavam nomes comuns para as diferentes localizações do oceano Pacífico. Cada lugar importante tinha uma denominação que consistia em dois letras: de fato, dois caracteres ou kanas do alfabeto japonês, embora os descifradores estavam acostumados a utilizar o alfabeto latino, da a Z. Os homens do porão esforçavam-se ao máximo para descobrir o significado de cada uma dessas denominações de dois kanas, mas progrediam de forma muito lenta. MO era Port Moresby, AH era Oahu, mas seguiam sem ter muitas outras. Ao longo de maio começaram a acumular-se provas de que se estava preparando um importante ataque japonês em uma localização a que chamavam AF. A hipótese mais fundamentada da unidade era que esse AF significava Midway, o atol que ficava no extremo ocidental da cadeia de ilhas que começava no Hawai e se estendia ao longo de 2.500 quilômetros. Midway ficava a meio caminho entre Os Anjos e Tóquio. Com uma hipótese não bastava, certamente. Dada a superioridade numérica da marinha de guerra japonesa, o almirante Nimitz tinha que sabê-lo a ciência certa. Dia a dia, os homens com quem trabalhava Chuck foram desenhando um agoureiro retrato da ordem de batalha japonês. Seu porta-aviões recebiam novos aviões de combate, faziam embarcar a uma força de ocupação… Os japoneses tinham pensado aferrar-se a todo território que conquistassem. Parecia que aquela vez ia a sério, mas onde se produziria o ataque? Os homens do porão estavam especialmente orgulhosos de ter decodificado uma mensagem da frota japonesa que apelava a Tóquio: Acelerar envio surripia repostaje. Estavam encantados, em parte pela linguagem especializada, mas sobre tudo porque esse sinal demonstrava a existência de uma manobra oceânica de comprimento alcance iminente. Entretanto, o alto mando norte-americano pensava que o ataque podia produzir-se no Hawai, e o exército temia uma invasão da costa Oeste dos Estados Unidos. Inclusive a equipe do Pearl Harbor tinha a inquietante suspeita de que podia tratar-se da ilha do Johnston, uma pista de aterrissagem que ficava a 1.700 quilômetros ao sul do Midway. Tinham que estar seguros aos cem por cem. Ao Chuck lhe tinha ocorrido uma idéia para corroborá-lo, mas duvidava de se dizer algo. Os criptoanalistas eram muito inteligentes; ele, pelo contrário, não. Nunca havia tirado boas notas no colégio. Quando ia a terceiro, um companheiro de classe o chamou Chucky o Gracioso e ele se pôs-se a chorar, com o que solo tinha conseguido que ficasse o mote. Ainda pensava em si mesmo como Chucky o Gracioso. Na hora de comer, Eddie e ele foram à cantina a por uns sándwiches e uns cafés, e logo se sentaram junto aos moles, olhando às águas do porto. A paisagem ia recuperando a normalidade. Grande parte da gasolina tinha desaparecido, e também tinham retirado muitos dos restos dos navios. Enquanto comiam, um porta-aviões meio doido apareceu por Hospital Point e se dispôs a entrar lentamente no porto deixando detrás de si uma mancha de petróleo que estendia-se até mar aberto. Chuck reconheceu a nave: era o Yorktown. Tinha o casco enegrecido a causa da fuligem e apresentava uma enorme brecha na coberta de vôo, era de supor que aberto por uma bomba japonesa na batalha do mar do Coral. Sereias e buzinas começaram a soar como uma fanfarra de bem-vinda à medida que a embarcação se aproximava do Estaleiro Naval, e os rebocadores se reuniram para fazê-la entrar pelas comportas abertas do Dique Seco N.º 1. —ouvi dizer que tem trabalho para três meses —comentou Eddie. Estava destinado no mesmo edifício que Chuck, mas no escritório dos serviços segredos navais, no piso de acima, assim que se inteirava de mais intrigas—. Mas se fará outra vez ao mar dentro de três dias. —Como vão conseguir o? —Já começaram. O chefe de mecânicos se transladou em avião até o porta-aviões… já está a bordo, com uma equipe. E olhe o dique seco. Chuck viu que no dique vazio se estavam reunindo homens e maquinaria a toda velocidade: não era capaz de contar a quantidade de maçaricos que esperavam já no mole. —De todas formas só lhe farão um concerto —explicou Eddie—. Repararão a coberta e se assegurarão de que possa navegar, todo o resto terá que esperar. O nome daquele navio tinha algo que inquietava ao Chuck. Não se tirava de cima essa sensação de comichão. O que significava Yorktown? O sítio do Yorktown havia sido a última grande batalha da guerra da Independência dos Estados Unidos. Era isso significativo por alguma razão? —Vós dois, paqueradores, voltem para trabalho —soltou o capitão Vandermeier, que passava por ali. —Um dia destes vou dar uma surra —disse Eddie a meia voz. —Quando acabar a guerra, Eddie —repôs Chuck. Ao retornar ao porão e ver o Bob Strong em seu escritório, Chuck se deu conta de que tinha solucionado o problema do tenente. Voltou a olhar por cima do ombro do criptoanalista e viu a mesma folha de papel com as mesmas seis sílabas japonesas: EU–O–KU–LHA–WA–NA Teve a delicadeza de fazer que parecesse que havia resolvido o próprio Strong. —Mas se já o tem, tenente! —exclamou. Strong reagiu com desconcerto. —Ah, sim? —É um nome inglês, assim que os japoneses o soletraram foneticamente. —Yolokutawana é um nome inglês? —Sim, senhor. Assim é como pronunciam Yorktown os japoneses. —O que? —Strong parecia perplexo. Durante um angustiante momento, Chucky o Gracioso se perguntou se não se teria equivocado por completo. —meu deus, tem você razão! —exclamou Strong então—. Yolokutawana… Yorktown, com acento japonês! —pôs-se a rir, encantado—. Obrigado! —disse-lhe, entusiasmado—. Bom trabalho! Chuck duvidou um instante. Tinha outra idéia. Devia comentar o que lhe rondava pela cabeça? Decifrar códigos não era trabalho dele, mas os Estados Unidos estava ao bordo da derrota. Possivelmente sim devesse arriscar-se. —Posso fazer outra sugestão? —Dispare. —É sobre essa denominação do AF. Necessitamos a confirmação definitiva de que se trata do Midway, verdade? —Pois sim. —Não poderíamos escrever uma mensagem sobre o Midway que os japoneses queriam retransmitir em seu próprio código? Assim, quando interceptássemos essa retransmissão, poderíamos descobrir como cifraram o nome. Strong ficou pensativo. —Talvez —disse—. Possivelmente devêssemos enviar nossa mensagem em aberto, para nos assegurar de que o entendem. —Poderíamos fazê-lo assim, mas então teria que ser algo não muito confidencial… Possivelmente: Broto de enfermidades venéreas no Midway, enviem medicamentos, por favor, ou algo pelo estilo. —Mas por que quereriam retransmitir algo assim os japoneses? —Certo, de modo que tem que ser algo com relevância militar, mas não alto secreto. Como as condições climatológicas. —Até os parte meteorológicos são secretos, na atualidade. —E algo sobre a escassez de água? —sugeriu o criptoanalista do escritório contigüo—. Se estão pensando em uma ocupação, essa informação será importante para eles. —Maldita seja, sim que poderia funcionar. —Strong se ia entusiasmando por momentos—. Suponhamos que Midway envia uma mensagem em aberto ao Hawai, dizendo que se os avariou a planta de desalinización. —E Hawai responde, dizendo que enviam um carregamento de água —acrescentou Chuck. —Seguro que os japoneses retransmitirão a mensagem, se estão planejando atacar o atol. Terão que fazer planos para enviar água potável. —E cifrarão a mensagem para evitar nos alertar de seu interesse pelo Midway. Strong ficou em pé. —Venha comigo —disse ao Chuck—. vamos expor se o ao chefe, a ver o que lhe parece a idéia. As mensagens se enviaram esse mesmo dia. Ao dia seguinte, uma mensagem de rádio japonês informava da escassez de água potável no AF. O objetivo era Midway. O almirante Nimitz se dispôs a tender uma armadilha. III Essa noite, enquanto mais de mil trabalhadores se trabalhavam em excesso por arrumar o porta-aviões Yorktown, inutilizado do ataque ao Pearl Harbor, e reparar os danos a a luz de arcos voltaicos, Chuck e Eddie saíram ao The Band Round The Hat, um bar que havia em uma ruela escura de Honolulu. O local estava abarrotado, como sempre, cheio de marinheiros e de aldeãos. Quase todos os clientes eram homens, embora também havia umas quantas enfermeiras, em casais. Ao Chuck e ao Eddie os gostava daquele sítio porque outros homens eram como eles. Às lésbicas gostava porque os homens não tentavam ligar com elas. Nada acontecia abertamente, claro está. A um homem podiam expulsar o da armada e encarcerá-lo por cometer atos de homossexualidade. Mesmo assim, naquele estabelecimento sentiam-se cômodos. O líder da banda levava maquiagem. O cantante hawaiano ia travestido, embora o resultado era tão convincente que havia quem não se tinha dado conta de que era um homem. O proprietário tinha mais pluma que um pavão. Os homens podiam dançar juntos e a ninguém chamavam finório por pedir vermut. Da morte do Joanne, Chuck sentia que queria ao Eddie mais ainda. Evidentemente, sempre tinha sabido que ao Eddie podiam matá-lo, em teoria; mas o perigo nunca tinha-lhe parecido real. de repente, depois do ataque ao Pearl Harbor, não passava um dia sem que visualizasse a aquela garota tão bonita tiragem no chão e coberta de sangue, e a seu irmão soluçando a seu lado com o coração quebrado. Bem poderia ter sido o próprio Chuck, ajoelhado junto ao Eddie, sentindo essa mesma dor insuportável. Chuck e Eddie tinham escapado da morte em 7 de dezembro, mas seguiam estando em guerra e a vida era algo fugaz. Cada dia que passavam juntos era muito valioso porque podia ser o último. Chuck estava apoiado na barra com uma cerveja na mão, e Eddie se sentou em um tamborete. estavam-se rendo de um piloto da armada que se chamava Trevor Paxman —a quem todos conheciam como Trixie—, que lhes estava relatando a única ocasião em que tinha tentado deitar-se com uma garota. —Estava horrorizado! —exclamou Trixie—. Acreditava que aí abaixo tudo seria pulcro, não sei, suave, como as garotas dos quadros… mas tinha mais corto que eu! —Todos estalaram em gargalhadas—. Era como um gorila! —Nesse momento, Chuck viu pela extremidade do olho a fornida figura do capitão Vandermeier entrando no local. Poucos oficiais freqüentavam os bares dos soldados rasos. Não é que estivesse proibido, simplesmente se percebia como uma falta de consideração, uma descortesia, era como entrar com as botas cheias de barro no restaurante do Ritz-Carlton. Eddie se voltou de costas com a esperança de que Vandermeier não o visse. Não teve sorte. Vandermeier foi direto para eles. —Vá, vá, todas as garotas vão parar ao mesmo sítio, verdade? —disse. Trixie deu meia volta e se fundiu com a gente. —Aonde vai esse? —perguntou Vandermeier. Estava já tão bêbado que arrastava as palavras. Chuck viu que o rosto do Eddie se escurecia. —boa noite, capitão —disse Chuck com formalidade—. Me deixa que convide a uma cerveja? —Uísque com gelo. Chuck lhe pediu a bebida. Vandermeier deu um bom gole. —Bom —disse depois—, ouvi dizer que neste sítio a ação está fora, na parte de atrás… é isso certo? —Olhou ao Eddie. —Nem idéia —repôs este com frieza. —Anda, venha —insistiu Vandermeier—. Extraoficialmente. Deu-lhe uns tapinhas no joelho ao Eddie, que se levantou com tal brutalidade que empurrou o tamborete para trás. —Não me toque —disse. —Tranqüilo, Eddie —advertiu Chuck. —Nenhum regulamento da armada diz que tenha que me deixar manusear por esta reinona! —O que me chamaste? —perguntou Vandermeier com voz etílica. —Se me voltar a tocar, juro que lhe arranco essa cabeça repugnante que tem. —Capitão Vandermeier, senhor, conheço outro sítio muito melhor que este. Gosta que vamos ali? —propôs Chuck. —O que? —O capitão parecia confuso. —Um sítio mais pequeno, mais tranqüilo… —improvisou Chuck—. Como este, mas mais íntimo. Tem sabor do que me refiro? —Sonha bem! —Apurou seu copo. Chuck tomou ao Vandermeier do braço direito e fez um sinal ao Eddie para que se ocupasse do esquerdo. Entre os dois tiraram o capitão bêbado do local. Por sorte, havia um táxi esperando na penumbra do beco. Chuck abriu a portinhola do carro. Nesse momento, Vandermeier beijou ao Eddie. Rodeou-o com seus braços e apertou os lábios contra os do menino. —Quero-te —disse. Chuck sentiu que o medo se apoderava dele. Já não havia forma de acabar bem com aquilo. Eddie atiçou um murro ao Vandermeier no estômago com todas suas forças. O capitão soltou um grunhido e soprou. Eddie voltou a lhe golpear, esta vez na cara. Chuck se interpôs entre ambos. antes de que Vandermeier pudesse cair ao chão, empurrou-o com destreza para o assento de atrás do táxi. inclinou-se pelo guichê do acompanhante e lhe deu ao condutor um bilhete de dez dólares. —Leve-o a casa e fique com a mudança. O táxi se afastou. Chuck olhou ao Eddie. —Vá, homem —disse—, colocaste-nos em uma boa confusão. IV Entretanto, ninguém acusou ao Eddie Parry de agredir a um oficial. O capitão Vandermeier apareceu a manhã seguinte no Velho Edifício da Administração com um olho arroxeado, mas não apresentou cargos. Chuck supôs que a carreira do homem terminaria assim que admitisse que se viu envolto em uma briga no The Band Round The Hat. Entretanto, isso não impediu que ali todos comentassem seu moratón. —Vandermeier diz que escorregou por culpa de uma mancha de gasolina que havia em sua garagem e que se deu um golpe na cara contra o cortacésped, mas eu acredito que esse olho arroxeado o pôs sua mulher. Viram-na? parece-se com o Jack Dempsey, o boxeador. Esse dia, os criptoanalistas do porão lhe disseram ao almirante Nimitz que os japoneses atacariam Midway em 4 de junho. Em concreto, informaram que a força japonesa se situaria a 280 quilômetros ao norte do atol às sete da manhã. Estavam quase tão seguros como faziam pensar suas palavras. Eddie tinha um ânimo sombrio. —Que possibilidades temos? —perguntou quando Chuck e ele se reuniram para comer. Como também ele trabalhava nos serviços secretos da armada, conhecia o potencial das forças japonesas, segundo as estimativas dos descifradores. —Os japoneses mobilizaram duzentos navios, virtualmente a totalidade de sua marinha de guerra, e quantos temos nós? Trinta e cinco! Chuck não era tão pessimista. —Mas suas forças de ataque só sobem a uma quarta parte desses efetivos. O resto o compõem as forças de ocupação e de distração estratégica, e as reservas. —E o que? Uma quarta parte de seus efetivos segue sendo mais que toda nossa frota do Pacífico! —As forças de ataque japonesas contam unicamente com quatro porta-aviões. —Mas nós sozinho temos três. —Eddie assinalou com seu sándwich de presunto para o porta-aviões enegrecido pela fumaça que seguia no dique seco, repleto de operários lhe fazendo reparações—. E isso contando o Yorktown, que segue inutilizado. —Bom, mas nós sabemos que vêm e eles não sabem que os estamos esperando. —Espero que isso nos dê tanta vantagem como pensa Nimitz. —Sim, eu também. Quando Chuck retornou ao porão, disseram-lhe que já não trabalhava ali. Tinham-no transladado. Ao Yorktown. —É a forma que tem Vandermeier de me castigar —disse Eddie essa noite com lágrimas nos olhos—. Acredita que morrerá. —Não seja tão pessimista —repôs Chuck—. Talvez ganhamos a guerra. Uns dias antes do ataque, os japoneses trocaram seus livros de códigos. Os homens do porão suspiraram e começaram outra vez desde zero, mas obtiveram muito pouca informação nova antes da batalha. Nimitz teria que conformar-se com o que tinham e esperar que o inimigo não revisasse todo o plano no último minuto. Os japoneses esperavam tomar Midway por surpresa e esmagá-lo com facilidade. Tinham a esperança de que os norte-americanos contra-atacassem com todas suas forças, em um intento de recuperar o atol. Nesse momento, a frota de reserva japonesa entraria em ação e arrasaria com toda a frota americana. Japão dominaria o Pacífico. E Estados Unidos solicitaria conversações de paz. Nimitz tinha pensado cortar esse plano de raiz tendendo uma emboscada às forças de ataque antes de que pudessem tomar Midway. Chuck tinha passado a formar parte dessa emboscada. jogou-se o esteira ao ombro e se despediu do Eddie com um beijo, depois saíram juntos para o mole. Ali se toparam com o Vandermeier. —Não houve tempo para reparar os compartimentos estanques —lhes disse—. Se lhe abrem um buraco, afundará-se como um ataúde de chumbo. Chuck lhe pôs uma mão no ombro ao Eddie para contê-lo. —Que tal esse olho, capitão? —perguntou. A boca do Vandermeier se torceu em uma careta de maldade. —Boa sorte, maricas. —E os deixou ali plantados. Chuck lhe deu um apertão de mãos ao Eddie e subiu a bordo. Imediatamente se esqueceu do Vandermeier, porque por fim ia fazer se ao mar… e em um dos maiores navios jamais construídos. O Yorktown era o primeiro entre os porta-aviões de sua classe. Media mais de dois campos de futebol americano e contava com uma tripulação de mais de dois mil homens. Transportava noventa aviões: velhos torpederos Douglas Devastator com asas dobradiças; bombardeiros de picado Douglas Dauntless, mais novos; e caças Grumman Wildcat para escoltar aos bombardeiros. Quase tudo ficava sob coberta, salvo pela estrutura da ponte, que se elevava até nove metros por cima da coberta de vôo. Este continha o centro de mando e comunicações do navio, a ponte em si, a sala de rádio justo debaixo, a sala de mapas e a sala de guarda de pilotos. detrás de todo isso se levantava uma enorme chaminé que tinha três tiros dispostos em fila. Alguns dos mecânicos seguiam a bordo, terminando ainda seu trabalho, quando a embarcação deixou o dique seco e saiu lentamente do Pearl Harbor. Chuck se emocionou ao sentir a vibração de seus descomunais motores enquanto se fazia ao mar. Quando chegaram a águas profundas e a embarcação começou a ascender e descender ao ritmo do fluxo do oceano Pacífico, sentiu-se como se estivesse dançando. Tinham destinado ao Chuck à sala de rádio, uma decisão muito sensata, pois ali tirariam partido de sua experiência em sinais. O porta-aviões avançava a toda máquina para sua entrevista ao nordeste do Midway; seus emplastros recém soldados chiavam como sapatos novos. No navio havia uma sorveteria, conhecida como o Gedunk, onde serviam gelados recém feitos. Ali, a primeira tarde, Chuck se encontrou com o Trixie Paxman, ao que não tinha visto desde aquela noite no The Band Round The Hat. alegrou-se de contar com um amigo a bordo. na quarta-feira 3 de junho, o dia antes da suposta data do ataque, um hidroavião da armada em missão de reconhecimento ao oeste do Midway avistou um comboio de navios de transporte japoneses: concluiu-se que deviam transportar as forças de ocupação que se fariam com o controle do atol depois da batalha. A notícia foi transmitida a todos os navios americanos, e Chuck, na sala de rádio do Yorktown, foi dos primeiros em sabê-lo. tratava-se de uma confirmação sólida de que seus companheiros do porão tinham acertado e sentiu certo alívio ao ver que sua hipótese ficava corroborada. Então se deu conta do irônico da situação: se seus companheiros se equivocaram e os japoneses estivessem em outra parte, ele não se encontraria em perigo. Levava na armada um ano e meio, mas até esse momento nunca tinha entrado em combate. O Yorktown, reparado com tantas pressas, seria o branco das bombas e os torpedos japoneses; avançava a toda máquina para uns homens que fariam tudo que estivesse em suas mãos por afundá-lo, e afundar ao Chuck com ele. Era uma sensação peculiar. Quase todo o momento sentia uma estranha calma, mas de vez em quando o invadia o impulso de saltar pela amurada e começar a nadar de volta a Hawai. Essa noite escreveu a seus pais. Se morria ao dia seguinte, certamente tanto a carta como ele se afundariam com o navio, mas a escreveu de todas formas. Nela não disse nada sobre os motivos de seu traslado. Lhe passou pela cabeça lhes confessar que era investido, mas em seguida trocou de opinião. Disse-lhes que os queria e que lhes dava as obrigado por tudo o que tinham feito por ele. Se morro lutando por um país democrático contra uma cruel ditadura militar, não terei perdido a vida em vão, escreveu. Ao lhe relê-lo pareceu um pouco presunçoso, mas o deixou tal qual. A noite foi curta. A tripulação aérea ouviu o toque de aviso para o café da manhã à uma e meia da madrugada. Chuck se aproximou de desejar boa sorte ao Trixie Paxman. Como recompensa por haver-se levantado tão cedo, aos pilotos serviram filete e ovos. Tiraram os aviões dos hangares que havia em uma coberta inferior e os subiram nos enormes elevador de carga do navio, depois os conduziram a emano até as praças que deviam ocupar na coberta de vôo, onde repunham e carregavam munições. uns quantos pilotos separaram e partiram em busca do inimigo. O resto aguardava na sala de instruções, embelezados já com a equipe de vôo à espera de qualquer notícia. Chuck entrou de guarda na sala de rádio. Pouco antes das seis da manhã recebeu uma comunicação de um hidroavião de reconhecimento: NUMEROSOS AVIÕES INIMIGOS PARA o MIDWAY Uns minutos depois recebeu um sinal parcial: PORTA-AVIÕES INIMIGOS Tinha começado. Quando chegou o relatório completo, um minuto depois, souberam que as forças de ataque japonesas se situavam quase exatamente onde haviam predito os criptoanalistas. Chuck estava orgulhoso… e assustado. Os três porta-aviões norte-americanos —o Yorktown, o Enterprise e o Hornet— seguiam um rumo que deixaria a seus aviões a uma distância da que poderiam alcançar aos navios japoneses. Na ponte estava o almirante Frank Fletcher, um homem de cinqüenta e sete anos e com o nariz alargado que tinha recebido a Cruz da Armada na Primeira Guerra Mundial. Enquanto levava uma mensagem à ponte, Chuck o ouviu dizer: —Ainda não vimos nem um avião japonês. Isso quer dizer que ainda não sabem que estamos aqui. Chuck era consciente de que quão único tinham os americanos a seu favor era isso: a vantagem de estar melhor informados. Sem dúvida, os japoneses esperavam surpreender ao Midway em plena sesta e assim repetir a cena do Pearl Harbor, mas isso, graças aos criptoanalistas, não aconteceria. Os aviões norte-americanos do Midway não seriam brancos fáceis estacionados nas pistas. Quando os bombardeiros japoneses chegassem, todos eles estariam no ar procurando briga. Enquanto escutavam em tensão o crepitar dos sinais de rádio que chegavam desde o Midway e os navios japoneses, os oficiais e os homens da sala de rádio do Yorktown não tinham dúvida alguma de que sobre o diminuto atol já estava tendo lugar um terrível combate aéreo; o que não sabiam era quem ia ganhando. Pouco depois, os aviões norte-americanos destinados no Midway se lançaram ao ataque e arremeteram contra os porta-aviões japoneses. Em ambas as batalhas, pelo que pôde coligir Chuck, os canhões anti-aéreos tinham sido os protagonistas. A base do Midway tão solo tinha sofrido danos moderados, e quase todas as bombas e os torpedos dirigidos contra a frota japonesa tinham errado o tiro; mas em ambos os combates se derrubaram muitos aviões. Parecia que de momento estavam muito igualados… mas isso tinha ao Chuck preocupado, porque os japoneses contavam com mais reserva. Justo antes das sete, o Yorktown, o Enterprise e o Hornet viraram para o sudeste. Era um rumo que, por desgraça, separava-os do inimigo, mas seus aviões tinham que separar contra o vento, que soprava desde essa direção. Até o último rincão do capitalista Yorktown tremia sob o estrondo dos motores dos aviões, que aceleravam ao máximo pela coberta para, um após o outro, elevar o vôo. Chuck se fixou em que o Wildcat tinha tendência a levantar a asa direita e desviar-se um pouco à esquerda quando acelerava pela pista, uma característica da que os pilotos não faziam mais que queixar-se. Por volta das oito e meia, os três porta-aviões tinham arrojado 155 naves americanas contra as forças de ataque do inimigo. Os primeiros aviões chegaram à zona do objetivo com uma precisão milimétrica, justo quando os japoneses estavam ocupados repondo e recarregando de munição os aviões que retornavam do Midway. Nas cobertas de vôo não havia mais que caixas de munição pulverizadas entre o ninho de serpentes das mangas de repostaje, todo isso quase disposto para estalar em questão de segundos. Aquilo deveria ter acabado em um açougue. Mas não aconteceu. Quase todos os aviões americanos da primeira partida tinham sido destruídos. Os Devastator estavam obsoletos. Os Wildcat que os escoltavam eram melhores, mas mesmo assim não eram rival para os Zero japoneses, rápidos e maniobrables. Os aviões que tinham sobrevivido para descarregar sua artilharia ficaram dizimados pelo devastador fogo anti-aéreo dos porta-aviões inimigos. Lançar uma bomba de um avião em movimento e obter que impactasse contra um navio em movimento, ou deixar cair um torpedo de maneira que alcançasse um casco de navio, revestia uma dificuldade incrível, sobre tudo para um piloto ao que estavam disparando de acima e de abaixo. A maioria dos aviadores se deixaram a vida no intento. E nenhum deles deu no branco. Nenhuma bomba e nenhum torpedo americano alcançou seu objetivo. As três primeiras partidas de aviões atacantes, cada uma delas separada dos três porta-aviões norte-americanos, não fizeram nenhum machuco às forças de ataque japonesas. A munição das cobertas não estalou e as linhas de combustível não se incendiaram. O inimigo tinha resultado intacto. Chuck, que estava escutando as comunicações por rádio, sentiu-se fraquejar. De novo via ante si a genialidade do ataque ao Pearl Harbor de sete meses atrás. Os navios norte-americanos ali ancorados, um punhado de brancos estáticos, apinhados, relativamente fáceis de alcançar. Os aviões de combate que poderiam havê-los protegido ficaram destruídos nas pistas de decole. Para quando os americanos carregaram e desdobraram os canhões anti-aéreos, o ataque quase tinha terminado. Entretanto, a batalha do Midway ainda se estava liberando, e não todos os aviões norte-americanos tinham chegado ainda à zona do objetivo. Ouviu um oficial de aviação do Enterprise gritar pela rádio: Ataquem! Ataquem!, e logo a lacônica resposta de um piloto: Procedo, assim que encontre a esses malnacidos!. A boa notícia era que o comandante japonês ainda não tinha enviado a seus aviões a atacar os porta-aviões americanos. Seguia seu plano ao pé da letra e não se separava do Midway. A essas alturas já poderia ter suposto que os estavam atacando com aviões decolados desde porta-aviões, mas pode que não estivesse seguro de onde se encontravam as embarcações americanas. Apesar dessa vantagem, os norte-americanos não foram ganhando. Então o panorama trocou. Uma partida de trinta e sete bombardeiros de picado Dauntless do Enterprise avistou aos japoneses. Os Zero que protegiam os navios tinham descendido quase até o nível do mar durante seu combate aéreo com os atacantes anteriores, assim que os bombardeiros tiveram a sorte de encontrar-se por em cima dos caça e puderam lançar-se sobre eles como saídos diretamente do sol. Apenas uns minutos depois, outros dezoito Dauntless do Yorktown alcançaram a zona do objetivo. Um dos pilotos era Trixie. A rádio se converteu em uma gritaria de vozes exaltadas. Chuck fechou os olhos e se concentrou para tentar compreender os sons distorcidos. Não conseguia identificar a voz do Trixie. Então, por detrás das palavras, começou para ouvir o uivo característico dos bombardeiros lançando-se em picado. O ataque tinha começado. de repente, pela primeira vez, ouviram-se gritos triunfais por parte dos pilotos. —Já te tenho, bode! —Joder, como notei essa explosão! —lhes chupe essa, filhos de cadela! —Dei-lhe! —Olhe como arde! Os homens da sala de rádio estalaram em gritos de júbilo, embora não podiam saber com exatidão o que estava ocorrendo. Tudo terminou em questão de minutos, mas demoraram muitíssimo em conseguir um relatório claro da situação. Com a euforia da vitória, os pilotos não resultavam muito coerentes. Pouco a pouco, à medida que se acalmavam e retornavam a seu porta-aviões, foi sabendo o que tinha acontecido. Trixie Paxman se contava entre os superviventes. A maioria de suas bombas tinham errado o branco, igual a antes, mas umas dez tinham alcançado o objetivo e, embora eram poucas, tinham causado uns danos tremendos. Três imponentes porta-aviões japoneses estavam ardendo inverificado: o Kaga, o Soryu e o casco de navio insígnia, o Akagi. Ao inimigo solo ficava um, o Hiryu. —Três dos quatro! —exclamou Chuck, eufórico—. E eles nem se aproximaram ainda a nossos navios! Isso não demorou para trocar. O almirante Fletcher enviou dez Dauntless a reconhecer o terreno e ver no que estado tinha ficado o porta-aviões japonês supervivente. Entretanto, foi o radar do Yorktown o que detectou uma esquadrilha de aviões, que em teoria tinham separado do Hiryu, a cinqüenta milhas e aproximando-se. A meio-dia, Fletcher enviou doze Wildcat ao encontro dos atacantes. O resto dos aviões também receberam ordens de decolar para que não estivessem em coberta, em situação vulnerável, quando se produzira o ataque. Enquanto isso, as linhas de combustível do Yorktown se alagaram com dióxido de carbono como prevenção contra incêndios. A esquadrilha atacante estava composta por quatorze Valha, bombardeiros de picado Aichi D3A, além dos Zero que os acompanhavam. Aqui está —pensou Chuck—, minha primeira ação bélica. Sentiu vontades de vomitar e tragou saliva com força. antes de que os atacantes estivessem à vista, os artilheiros do Yorktown abriram fogo. O navio tinha quatro pares de grandes canhões anti-aéreos de um calibre de 128 mm que podiam lançar seus projéteis a vários quilômetros de distância. Depois de determinar a posição do inimigo com a ajuda do radar, os oficiais de artilharia lançaram uma salva de gigantescos projéteis de vinte e cinco quilogramas em direção aos aviões que se aproximavam, com os temporizadores preparados para que fizessem explosão ao alcançar o objetivo. Os Wildcat se colocaram em cima dos atacantes e, segundo as informações que transmitiam por rádio os pilotos, abateram seis bombardeiros e três caças. Chuck correu à ponte do almirante com uma mensagem que dizia que o resto da esquadrilha estava lançando-se ao ataque. —Bom, já me pus o casco de aço… não posso fazer nada mais —comentou o almirante Fletcher com frieza. Chuck olhou pelo guichê e viu os bombardeiros de picado lançando seu uivo no céu, avançando para ele em um ângulo tão vertiginoso que pareciam estar caindo a chumbo. Resistiu o impulso de lançar-se ao chão. A embarcação realizou um repentino viraje de leme todo a bombordo. Merecia a pena tentar qualquer manobra que pudesse desviar ao avião atacante de seu curso. A coberta do Yorktown também tinha quatro pianos de Chicago: umas baterias anti-aéreas mais pequenas e de menor alcance, com quatro canhões. Estes abriram fogo nesse momento, igual aos canhões dos cruzeiros que escoltavam ao Yorktown. Quando Chuck olhou para diante da ponte, aterrorizado e incapaz de fazer nada por defender-se, um artilheiro de coberta encontrou um Valha a tiro e lhe deu. O avião pareceu partir-se em três pedaços. Dois deles caíram ao mar e outro se estrelou contra o flanco do porta-aviões. Outro Valha voou então em pedaços. Chuck soltou um grito de alegria. Mas ainda ficavam seis. O Yorktown virou bruscamente a estribor. Valha-os fizeram frente ao granizo mortal que tinham desatado os canhões de coberta e foram depois do porta-aviões. À medida que se aproximavam, as metralhadoras das passarelas que havia a lado e lado da coberta de vôo também começaram a abrir fogo. A artilharia do Yorktown estava interpretando uma sinfonia letal: o grave estrondo dos canhões de 128 mm, os sons do meio alcance dos pianos de Chicago e o imperioso martilleo das metralhadoras. Chuck viu a primeira bomba. Muitos projéteis japoneses tinham mecanismos de ação retardada. Em lugar de explorar ao fazer impacto, estalavam um segundo ou dois depois; a idéia era que atravessassem a coberta e não explorassem até encontrar-se no interior do navio, onde causavam uma devastação maior. Essa bomba, não obstante, rodou sobre a coberta do Yorktown. Chuck a contemplou, paralisado pelo horror. Durante uns instantes pareceu que não ia provocar nenhum dano, mas depois fez explosão com um estrondo e um chama. Os dois pianos de Chicago de popa ficaram destruídos imediatamente. Apareceram pequenos incêndios em coberta e nas torres. Para assombro do Chuck, os homens que tinha a seu redor não perderam a calma, como se estivessem presenciando um simulacro de combate em uma sala de reuniões. O almirante Fletcher seguia dando ordens até cambaleando-se pela coberta da ponte, que não deixava de dar inclinações bruscas. Uns momentos depois, as equipes de controle de danos corriam já pela coberta de vôo com mangueiras de incêndios, e os carregadores de maca recolhiam aos feridos e os levavam abaixo, por levantadas escalerillas, para as unidades de padres. Não se produziram incêndios importantes: o dióxido de carbono das linhas de combustível o tinha impedido. Tampouco havia aviões carregados com bombas que pudessem explorar em coberta. Um momento depois, outro Valha se precipitou uivando para o Yorktown e uma bomba alcançou a chaminé. A explosão sacudiu à poderosa embarcação. Uma enorme cortina de uma fumaça negra e oleaginosa começou a sair dos tiros. Chuck compreendeu que a bomba devia ter prejudicado os motores, porque o navio perdeu velocidade imediatamente. Houve mais bombas que erraram o branco e acabaram no mar, onde provocaram gêiseres que salpicaram a coberta, e ali a água salgada se mesclou com o sangue dos feridos. O Yorktown acabou por deter-se. Quando o navio inutilizado ficou à deriva, os japoneses o alcançaram uma terceira vez: uma bomba impactou contra o elevador de carga de proa e explorou em algum ponto das cobertas inferiores. Então, de repente, tudo terminou e os Valha superviventes subiram para o limpo céu azul do Pacífico. Sigo vivo, pensou Chuck. Não tinham perdido o navio. As equipes de controle de incêndios tinham começado a trabalhar antes até de que os japoneses desaparecessem. Nas profundidades de a embarcação, os engenheiros disseram que demorariam uma hora em pôr as caldeiras em marcha. As equipes de reparação remendaram a brecha da coberta de vôo com pranchas de pinheiro do Oregón de um metro por dois. Entretanto, a equipe de rádio sim tinha ficado destruído. O almirante Fletcher estava surdo e cego, assim que se transladou com seus assistentes pessoais ao cruzeiro Astoria, e de ali entregou o mando tático ao Spruance, do Enterprise. —Que lhe jodan, Vandermeier… sobrevivi —disse Chuck a meia voz. Muito logo tinha falado. Os motores ressuscitaram vibrando com força. Esta vez sob o mando do capitão Buckmaster, o Yorktown começou a sulcar de novo as ondas do Pacífico. Alguns de seus aviões já se refugiaram no Enterprise, mas outros seguiam no ar, assim que o porta-aviões virou contra o vento e os aparelhos foram aterrissando para repor. Posto que a rádio não estava operativa, Chuck e seus companheiros se reconverteram em uma equipe de código de sinais para comunicar-se com outros navios utilizando as antiquadas bandeiras. Às duas e meia, o radar de um cruzeiro que escoltava ao Yorktown revelou que uns aviões se aproximavam em vôo rasante do oeste: uma esquadrilha de ataque do Hiryu, parecia ser. O cruzeiro enviou uma mensagem para comunicar-lhe ao porta-aviões. Buckmaster mandou doze Wildcat para interceptar aos japoneses. Os Wildcat deveram ver-se incapazes de deter o ataque, porque dez aviões torpederos apareceram quase roçando as ondas, diretos a pelo Yorktown. Chuck os viu com toda claridade. Eram Nakajima B5N, e os norte-americanos os chamavam Kate. Cada um deles levava sujeito sob a fuselagem um torpedo que abrangia quase a metade da longitude do avião. Os quatro cruzeiros pesados que escoltavam ao porta-aviões bombardearam o mar a seu redor para levantar uma tela de água revolta, mas os pilotos japoneses não se deixaram dissuadir tão facilmente e atravessaram a cortina de espuma. Chuck viu como o primeiro avião deixava cair o torpedo. A bomba alargada se mergulhou na água, apontando para o Yorktown. O avião passou voando tão perto do navio que Chuck viu inclusive a cara do piloto. Levava uma cinta branca e vermelha na frente, além do quebro. Agitou um punho triunfal por volta da tripulação de coberta e em seguida desapareceu. Outros aviões se aproximaram rugindo. Os torpedos eram lentos e às vezes as embarcações conseguiam esquivá-los, mas o Yorktown estava inutilizado e era muito pesado para mover-se em ziguezague. produziu-se então uma tremenda sacudida que fez tremer todo o navio: os torpedos eram várias vezes mais capitalistas que as bombas normais. Chuck teve a sensação de que os tinham alcançado na popa, a bombordo. Pouco depois se produziu outra explosão, e esta chegou a levantar o navio e a atirar ao chão na metade da tripulação que estava em coberta. Ato seguido, os potentes motores falharam. Uma vez mais, as equipes de reparação de danos ficaram a trabalhar antes de que os aviões atacantes tivessem desaparecido. Chuck se uniu aos homens que se ocupavam das bombas de água e viu que o casco de aço do grande navio tinha ficado aberto como uma lata. Uma cascata de água marinha entrava pela grande brecha. Ao cabo de poucos minutos, Chuck notou que a coberta se inclinou. O Yorktown se escorava para bombordo. As bombas não davam provisão para desalojar toda a água que entrava, sobre tudo porque os compartimentos estanques da nave tinham ficado machucados no mar do Coral e não os tinham arrumado na reparação de urgência. Quanto demorariam para derrubar? Às três em ponto, Chuck ouviu uma ordem: —Abandonem o navio! Os marinhos lançaram cabos pelo bordo mais elevado da coberta inclinada. Na coberta de hangares, os tripulantes atiraram de umas cordas para liberar milhares de coletes salva-vidas de um compartimento superior que caíram em cascata. As embarcações que formavam a escolta se aproximaram do porta-aviões e enviaram seus botes. A tripulação do Yorktown se tirou os sapatos e se reuniu a um lado. Por algum motivo, deixaram os sapatos em ordenadas fileiras em coberta, centenas de pares, como se fora um sacrifício ritual. Aos homens feridos os desceram em macas até os botes que os estavam esperando. Chuck se encontrou de repente na água, nadando tudo quão depressa podia para afastar do Yorktown antes de que derrubasse. Uma onda o pilhou despreparado e se levou sua boina. alegrou-se de estar no quente Pacífico; o Atlântico poderia havê-lo matado com frio enquanto esperava a que o resgatassem. Recolheu-o um bote salva-vidas que logo seguiu ajudando a mais homens. Dezenas de botes faziam o mesmo. Muitos tripulantes se deixavam cair da coberta principal, que estava mais abaixo que a coberta de vôo. O Yorktown ainda conseguia manter-se a flutuação. Quando todos os homens estiveram a salvo, transportaram-nos até as embarcações de escolta. Chuck ficou em pé em coberta, contemplando a superfície da água enquanto o sol ficava por detrás do Yorktown, que naufragava lentamente. Lhe ocorreu pensar que em todo o dia não tinha visto um só navio japonês. A totalidade da batalha se livrou no ar. perguntou-se se seria primeira de um novo tipo de batalhas navais. Em tal caso, os porta-aviões seriam as embarcações fundamentais no futuro. Nenhuma outra coisa servia de muito. Trixie Paxman apareceu junto a ele. Chuck se alegrou tanto de vê-lo vivo que lhe deu um abraço. Trixie lhe contou que a última esquadrilha de bombardeiros de picado Dauntless, separados do Enterprise e o Yorktown, fazia arder o Hiryu, o único porta-aviões japonês que seguia operativo, e o tinha destruído. —Ou seja que acabamos com os quatro porta-aviões japoneses —comentou Chuck. —Isso. Demos a todos, e nós sozinho perdemos um dos nossos. —Ou seja —acrescentou Chuck— que ganhamos? —Sim —confirmou Isso Trixie parece. V depois da batalha do Midway ficou claro que a guerra do Pacífico ganharia lançando aviões dos navios. Tanto o Japão como os Estados Unidos puseram em parte programas intensivos para construir porta-aviões o mais depressa possível. Durante 1943 e 1944, Japão fabricou sete dessas enormes e custosas embarcações. Nesse mesmo período, Estados Unidos produziu noventa. 13 1942 (II) I A enfermeira Carla von Ulrich entrou com um carrinho ao quarto onde guardavam o material médico e fechou a porta detrás de si. Tinha que dar-se pressa. Se a pilhavam, enviariam-na a um campo de concentração pelo que estava a ponto de fazer. Agarrou de um armário uns quantos curativos de diferentes classes, um cilindro de atadura e um pote de pomada anti-séptica. Logo abriu o armário dos medicamentos, guardados sob chave. Agarrou morfina para aliviar a dor, sulfamida para as infecções e aspirina para a febre. Também agarrou uma seringa de injeção hipodérmica nova, ainda em seu estojo. Durante várias semanas tinha falseado o registro para que parecesse que se feito um uso legítimo do que estava roubando. Tinha preferido alterá-lo de antemão, de forma que se se levava a cabo alguma comprovação sobrasse material, o que indicaria um mero descuido, em lugar de que faltasse, o que revelaria que o haviam roubado. Fazia isso mesmo duas vezes com antecedência mas não por isso estava menos assustada. Saiu com o carrinho do quarto do material esperando apresentar um aspecto inocente: o de uma enfermeira que levava fornecimentos de primeira necessidade a um doente em cama. Entrou na sala de pacientes e, consternada, viu que o doutor Ernst estava sentado junto a um deles, tomando o pulso. supunha-se que todos os médicos estavam comendo. Entretanto, era muito tarde para trocar de opinião. Tratou de adotar uma atitude confiada, justo ao contrário de como se sentia, e para isso manteve a cabeça bem alta enquanto cruzava a sala empurrando o carrinho. O doutor Ernst a olhou e lhe sorriu. Berthold Ernst era o homem com quem sonhavam todas as enfermeiras. Era um hábil cirurgião com um aspecto afável para tratar aos pacientes, alto, bonito e solteiro. Tinha tido escarcéus amorosos com a maioria das enfermeiras atrativas, e com muitas tinha chegado a deitar-se, se se dava crédito aos rumores que corriam pelo hospital. Ela o saudou com a cabeça e passou de comprimento sem entreter-se. Saiu com o carrinho da sala e torceu imediatamente para entrar no vestuário das enfermeiras. Tinha o impermeável no perchero. junto a este havia uma cesta da compra de vime que continha um velho lenço de seda de seda, uma couve e um pacote de compressas higiênicas dentro de uma bolsa de papel marrom. Carla esvaziou a cesta e, rapidamente, tirou o material médico do carrinho e o transladou ali. Logo o tampou com o lenço de seda, um modelo com desenhos geométricos azuis e dourados que sua mãe devia ter comprado nos anos vinte. Depositou em cima a couve e as compressas higiênicas, pendurou a cesta no perchero e dispôs seu casaco de modo que a cobrisse. Obtive-o, disse-se. Reparou em que estava tremendo um pouco. Respirou fundo, recuperou o controle, abriu a porta… e viu o doutor Ernst plantado diante. Tinha-a seguido? ia acusar a de roubo? Não tinha aspecto de zangado; de fato, sua expressão era amigável. Talvez o tivesse obtido, depois de tudo. —Boa tarde, doutor —saudou—. No que posso ajudá-lo? Lhe sorriu. —Como vai, enfermeira? Vai tudo bem? —Estupendamente, acredito. —O sentimento de culpa fez que prosseguisse em tom obsequioso—. Claro que é você, doutor, quem deve dizer se as coisas vão bem ou não. —Ah, não tenho nenhuma queixa —disse ele com indiferença. Do que vai tudo isto? —pensou Carla—. Está jogando comigo, demorando com sadismo o momento de me acusar? Não disse nada, mas se manteve à espera, tratando de que o nervosismo não a fizesse tremer. Ele olhou o carrinho. —por que entrou com isso no vestuário? —Necessitava uma coisa —respondeu, improvisando de forma se desesperada—. Uma coisa do impermeável. —A voz lhe tremia de medo e tratou de dissimulá-lo—. Um lenço que levava no bolso. Deixa de lhe atropelar —se disse—. É médico, não um agente da Gestapo. Mesmo assim, impunha-lhe o mesmo respeito. Ele parecia divertido, como se se regozijasse com seu nervosismo. —E o carrinho? —vou devolver o a seu sítio. —A ordem é essencial. É uma enfermeira muito boa… fräulein Von Ulrich… Ou devo chamá-la frau? —Fräulein. —Deveríamos falar mais. A forma em que a olhava lhe dizia que aquela situação não tinha nada que ver com o material roubado. Estava a ponto de lhe pedir que saísse com ele. Se aceitava, converteria-se na inveja de dezenas de enfermeiras. Entretanto, não sentia nenhum interesse por ele. Talvez fora porque já tinha amado a um arrumado dom Juan, Werner Franck, e este tinha resultado ser um covarde egocêntrico. Supôs que Berthold Ernst também o era. Contudo, não queria arriscar-se a lhe levar a contrária, assim que se limitou a sorrir sem dizer nada. —Gosta de Wagner? —perguntou. Ela já via por onde ia a coisa. —Não tenho tempo de escutar música —respondeu com determinação—. Minha mãe é anciã, e devo cuidá-la. —Em realidade, Maud tinha cinqüenta e um anos e desfrutava de uma saúde de ferro. —Tenho duas entradas para assistir a um concerto amanhã de noite. Interpretam o Idílio do Sigfrido. —Uma peça de câmara! —exclamou ela—. É pouco habitual. —A maioria das obras do Wagner eram de grande formato. Ele parecia agradado. —Vejo que entende de música. Carla desejou não havê-lo dito; solo tinha servido para animá-lo. —Minha família sabe música; minha mãe dá classes de piano. —Então tem que me acompanhar. Estou seguro de que encontrará a alguém que se ocupe de sua mãe por uma noite. —É impossível, seriamente —replicou Carla—. Mas muito obrigado pelo convite. —Observou a irada expressão de seus olhos: não estava acostumado a que o rechaçassem. Não obstante, deu meia volta e se dispôs a seguir empurrando o carrinho. —Talvez em outra ocasião? —gritou ele a suas costas. —É muito amável —respondeu ela sem diminuir a marcha. Tinha medo de que a seguisse, mas a ambígua resposta a sua última pergunta parecia havê-lo aplacado. Quando voltou a cabeça, ele já não estava. Devolveu o carrinho a seu sítio e respirou mais tranqüila. Logo retomou suas tarefas. Comprovou o estado de todos os pacientes de sua sala e redigiu os relatórios pertinentes. Era hora de dar passo ao turno de noite. ficou o impermeável e se pendurou a cesta do braço. Tinha chegado o momento de sair do edifício com o material roubado, e o medo voltou a invadi-la. Frieda Franck também partia e saíram juntas. Frieda não tinha nem idéia de que Carla ocultasse material roubado. Caminharam sob o sol de junho até a parada do bonde. Carla tinha posto o impermeável, mais que nada para que não lhe manchasse o uniforme. Acreditava que apresentava um aspecto de absoluta normalidade até que Frieda perguntou: —se preocupa algo? —Não, por que? —Te vê nervosa. —Estou bem. —Para trocar de tema, assinalou um pôster—. Olhe isso. O governo tinha inaugurado uma exposição no Lustgarten do Berlim, o parque que ficava frente à catedral. O paraíso soviético era o irônico nome de uma amostra sobre a vida sob o regime comunista que apresentava o bolchevismo como uma falácia dos judeus e aos soviéticos como eslavos infrahumanos. Entretanto, nem sequer nos tempos que corriam os nazistas o tinham tudo a seu favor, e alguém se dedicou a percorrer Berlim fixando pôsteres que parodiavam os da amostra e rezavam: Exposição permanente O PARAÍSO NAZISTA Guerra, fome, mentiras, Gestapo Quanto durará? Na marquise da parada do bonde havia um desses pôsteres, e Carla se animou. —Quem se dedica a pôr essas coisas? —comentou. Frieda se encolheu de ombros. —Quem quer que seja que seja, tem muito valor. Se o pilharem, matarão-o. —Então recordou o que levava na cesta. A ela também a matariam se a pilhavam. —Isso seguro —se limitou a responder Frieda. Agora era Frieda quem parecia um pouco nervosa. Seria uma das encarregadas de pendurar os pôsteres? Provavelmente não. Talvez fora coisa de seu noivo, Heinrich, um tipo veemente e moralizador capaz de fazer uma coisa assim. —Como está Heinrich? —perguntou Carla. —Quer que nos casemos. —E você não? Frieda baixou a voz. —Não quero ter filhos. —Era um comentário subversivo: as mulheres jovens deviam mostrar se adorado de ter filhos para o Führer. Frieda assinalou com a cabeça o pôster ilegal—. Não quero trazer filhos a este paraíso. —Suponho que eu tampouco —disse Carla. Talvez fora por isso pelo que tinha rechaçado ao doutor Ernst.
Chegou um bonde e subiram. Carla depositou a cesta no regaço com ar despreocupado, como se não contivera nada mais importante que a couve. Observou aos demais passageiros e a aliviou não ver nenhum uniforme. —Vêem minha casa esta noite —a convidou Frieda—. Escutaremos jazz. Podemos pôr os discos do Werner. —eu adoraria, mas não posso —se desculpou Carla—. Tenho que fazer uma chamada. Lembra-te da família Rothmann? Frieda olhou ao redor com cautela. Não era seguro que Rothmann fora um nome judeu, mas poderia sê-lo. Por sorte, não havia ninguém o bastante perto para as ouvir. —Claro, o pai era nosso médico de cabeceira. —Em teoria já não exerce. Eva Rothmann partiu a Londres antes da guerra e se casou com um soldado escocês. Mas os pais não podem sair da Alemanha, claro. Seu filho, Rudi, fabricava violinos e ao parecer lhe dava muito bem. Mas perdeu o trabalho e agora se dedica a reparar instrumentos e a afinar pianos. —Quatro vezes ao ano ia a casa dos Von Ulrich para afinar o piano de cauda Steinway—. A questão é que esta noite me tinha comprometido a passar a vê-los. —OH —exclamou Frieda. Foi prolongada exclamação própria de quem acaba de reparar em algo. —O que ocorre? —perguntou Carla. —Agora entendo por que aferra esse capazo como se contivera o Santo Grial. Carla ficou sem fala.
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Frieda tinha descoberto o segredo! —Como o adivinhaste? —Há dito que em teoria já não exerce, o qual indica que na prática sim que o faz. Carla se deu conta de que acabava de trair ao doutor Rothmann. Deveria haver dito que não exercia porque o tinha proibido. Por sorte, solo o tinha delatado ante a Frieda. —Que outra coisa pode fazer? Os doentes se apresentam em sua casa e lhe pedem de joelhos que os cure. Não pode jogá-los! Nem sequer ganha dinheiro; todos seus pacientes são judeus e outras pobres gente que lhe pagam com quatro batatas ou um ovo. —Por mim não faz falta que o justifique —disse Frieda—. Me parece muito valente. E você é toda uma heroína por roubar material do hospital e levar-lhe É a primeira vez? Carla negou com a cabeça. —A terceira. Mas me sinto muito estúpida por ter permitido que o descubra. —Não é nenhuma estúpida. O que ocorre é que te conheço muito bem. O bonde estava chegando à parada da Carla. —me deseje sorte —disse, e se apeou. Quando entrou em casa, ouviu as vacilantes nota do piano procedentes do piso de acima. Maud estava com um aluno, e Carla se alegrou disso, pois assim sua mãe animaria-se e, de passagem, ganharia um pouco de dinheiro. despojou-se do impermeável, entrou na cozinha e saudou a Ada. Quando Maud tinha anunciado a Ada que não podia seguir lhe pagando, esta lhe perguntou se podia ficar a viver ali de todas formas. Agora trabalhava de noite limpando um escritório, e de dia limpava a casa dos Von Ulrich em troca da comida e o alojamento. Carla arrojou os sapatos debaixo da mesa e se esfregou um pé com o outro para aliviar a dor. Ada lhe preparou uma taça de sucedâneo de café. Maud entrou na cozinha com olhos cintilantes. —Tenho um aluno novo! —disse, e mostrou a Carla um maço de bilhetes—. E quer que lhe dê classes todos os dias! —Tinha-o deixado praticando escalas, e o som de fundo de sua inexperiente pulsação recordava ao de um gato passeando...
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