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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O JARDIM DOS ESQUECIDOS / V. C. Andrews
O JARDIM DOS ESQUECIDOS / V. C. Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O JARDIM DOS ESQUECIDOS

Primeira Parte

 

É muito adequado colorir a esperança de amarelo, como o sol que tão pouco vemos. Quando começo a copiar as anotações dos diários que guardei por tão longo tempo, um título me vem à mente, como uma inspiração:

            “Abra a janela e fique ao sol”. Não obstante, hesito em dá-lo à nossa história, pois costumo pensar em nós como se fôssemos flores no sótão. Flores de papel, nascidas com um colorido tão brilhante e desbotando com o decorrer de todos aqueles longos dias sombrios, sinistros, de pesadelo, em que fomos prisioneiros da esperança, mantidos em cativeiro pela cobiça. Todavia, jamais colorimos de amarelo uma de nossas flores de papel.

            Charles Dickens freqüentemente iniciava seus romances com o nascimento do protagonista e, como era um de meus autores prediletos, assim como também de Chris, gostaria de imitá-lo, se pudesse. Todavia, Dickens era um gênio; nasceu para escrever com facilidade, enquanto para mim é penoso escrever cada palavra, porquanto as escrevo com lágrimas, sangue amargo, bile azeda, misturados com vergonha e remorso. Julguei que jamais me sentiria envergonhada ou culpada, que tais cargas só pesassem sobre ombros alheios. Passaram-se anos e hoje estou mais velha, mais sábia e resignada. A tempestade de raiva que outrora me rugia no íntimo amainou, de modo que posso escrever (ao menos assim espero) com mais verdade e menos ódio e preconceito do que seria o caso alguns anos atrás.

            Portanto, à semelhança de Dickens, ocultar-me-ei nessa obra de “ficção” sob um pseudônimo, viverei em lugares fictícios e pedirei a Deus que as pessoas que merecem sofram ao lerem o que tenho a dizer. Certamente Deus, em sua infinita misericórdia, fará com que algum editor compreensivo transforme minhas palavras num livro e me auxiliará a manipular o punhal que espero empunhar.

 

 

Adeus, papai

            Em verdade, na década de 50, quando ainda era muito jovem, eu acreditava que minha vida inteira seria um longo e perfeito dia ensolarado de verão. Afinal, foi assim que começou. Não existe muito que eu possa dizer a respeito de nossa infância, senão que foi muito boa e, por isso, deveria sentir-me eternamente grata. Não éramos ricos nem pobres. Se nos faltava algo necessário, jamais percebi; se tínhamos luxo, também não me dava conta disso sem comparar o que tínhamos com o que tinham os outros; e, no bairro residencial de classe média onde morávamos, ninguém tinha mais nem menos do que nós. Em outras palavras, simples e concisas, éramos apenas crianças comuns, como quaisquer outras.

            Nosso pai era o homem de relações públicas de uma grande fábrica de computadores localizada em Gladstone, na Pensilvânia, uma cidade com 12.602 habitantes.

            Era um homem muito bem-sucedido, pois seu patrão freqüentemente vinha jantar conosco e elogiava o trabalho que papai parecia desempenhar tão bem.

            — O que dobra todo mundo é essa cara tão tipicamente americana, sincera, bonita, somada às suas maneiras encantadoras. Por Deus, Chris, que pessoa sensata conseguiria resistir a um sujeito como você?

            Eu concordava entusiasticamente. Nosso pai era perfeito. Tinha um metro e oitenta e cinco de altura, pesava quase noventa quilos, com bastos cabelos louros e ondulados; seus olhos, de um azul cerúleo, cintilavam de riso, do seu grande entusiasmo pela vida e por divertir-se. Tinha um nariz reto, perfeito, nem comprido, nem estreito ou largo demais. Jogava tênis e golfe como um profissional; nadava tanto que se mantinha bronzeado o ano inteiro. Estava sempre viajando de avião, a negócios, para a Califórnia, Flórida, Arizona, Havaí ou mesmo para o exterior, enquanto permanecíamos em casa aos cuidados de nossa mãe.

            Quando ele entrava pela porta da frente no final das tardes de sexta-feira; todas as sextas-feiras (declarava-se incapaz de ficar longe de nós por mais de cinco dias seguidos) o sol brilhava quando sorria largamente para nós, cheio de felicidade, mesmo que estivesse chovendo ou nevando.

            Sua sonora saudação ecoava tão logo ele largava no chão a mala e a pasta:

            — Se vocês me amam, venham receber-me com beijos!

            Meu irmão e eu nos escondíamos em algum lugar perto da porta e, depois que papai pronunciava a saudação ritual, saíamos correndo detrás da poltrona ou do sofá, e nos atirávamos naqueles braços abertos que nos envolviam de imediato, apertando-nos, enquanto nos aquecia os lábios com seus beijos. Sextas-feiras eram os melhores dias da semana, pois traziam papai de volta para nós. Ele carregava nos bolsos pequenos presentes para nós; na mala, vinham os maiores, a serem distribuídos depois que ele saudasse nossa mãe, que se mantinha um pouco afastada e esperava pacientemente até que ele terminasse de nos abraçar.

            Depois de tirarmos os pequenos presentes dos bolsos de papai, Christopher e eu recuávamos, a fim de observarmos mamãe avançar lentamente, com os lábios abertos num sorriso de boas-vindas que provocava faíscas nos olhos de nosso pai. Este a tomava nos braços, fitando-lhe o rosto como se não a visse há pelo menos um ano.

            Às sextas-feiras, mamãe passava metade do dia no salão de beleza, lavando e penteando o cabelo, fazendo as unhas e, ao voltar para casa, tomava um demorado banho de imersão com sais perfumados. Eu me aninhava em seu quarto de vestir e aguardava que ela saísse do banheiro envolta num negligé transparente. Sentava-se à penteadeira e aplicava cuidadosamente a maquilagem. E eu, tão ansiosa por aprender, bebia avidamente com o olhar tudo o que ela fazia para transformar-se de uma mulher simplesmente bonita numa criatura de tão estonteante beleza que chegava a parecer irreal. O mais espantoso naquilo tudo era papai pensar que ela não usava maquilagem! Acreditava que a devastadora beleza de mamãe fosse natural.

            Amor era uma palavra usada e abusada em nossa casa:

           “Você me ama?... Porque eu amo você de verdade... Sentiu falta de mim?... Teve saudades?... Está feliz por ter-me de volta?... Pensou em mim enquanto estive fora? Todas as noites? Ficou rolando na cama, querendo que eu estivesse a seu lado para abraçá-la? Se não fosse assim, Corrine, eu preferiria morrer...”

            Mamãe sabia exatamente como responder a tais perguntas: com os olhos, com suaves murmúrios, com beijos.

            Um dia Christopher e eu chegamos da escola correndo, com o vento de inverno praticamente nos empurrando para dentro de casa.

           — Tirem as botas no vestíbulo — disse mamãe da sala de visitas, onde estava sentada diante da lareira, tricotando um pequeno suéter que caberia numa boneca.

            — Eu pensava que a suéter fosse presente de Natal para mim, a fim de vestir uma de minhas bonecas.

           — E tirem também os sapatos antes de entrarem aqui — acrescentou.

            Tiramos as botas e os pesados casacos com capuz no vestíbulo. Depois, calçando apenas meias, corremos para a sala forrada com um espesso tapete branco. Na maior parte do tempo, éramos proibidos de entrar naquela sala decorada em tons pastéis para realçar a beleza loura de nossa mãe. Era a nossa sala de cerimônia, a sala de mamãe, e nunca nos sentíamos realmente à vontade no sofá de brocado damasco ou nas poltronas de veludo cote lê. Preferíamos a sala de papai, com as paredes forradas de lambris escuros e o robusto sofá em grosso tecido escocês, onde podíamos brincar e lutar sem preocupação de estragar alguma coisa.

            — Lá fora está um gelo, mamãe! — exclamei sem fôlego, estirando-me aos pés dela e estendendo as pernas na direção do fogo. — Mas a volta para casa de bicicleta foi linda. Todas as árvores estão cobertas de cristais de gelo em forma de diamantes, e os arbustos, de prismas de gelo. Lá fora parece um país de fadas, mamãe. Por nada desse mundo eu moraria no sul, onde nunca neva!

            Christopher não falou no tempo nem na beleza do panorama gelado. Era dois anos e meio mais velho que eu e muito mais sábio; hoje, eu sei. Aqueceu os pés gelados, como eu, mas fitou o rosto de mamãe e juntou as sobrancelhas escuras, a testa franzida de preocupação.

            Também olhei para ela, imaginando o que ele vira para ficar tão preocupado. Mamãe tricotava com rapidez e habilidade, lançando olhares ocasionais às instruções do modelo.

            — Mamãe, você está passando bem? — indagou Chris.

            — Sim, é claro — respondeu ela com um sorriso suave e carinhoso.

           — Parece cansada.

           Ela deixou de lado o minúsculo suéter.

           — Hoje, fui ao médico — declarou, debruçando-se para acariciar o rosto rosado e frio de Christopher.

           — Mamãe! — exclamou ele, alarmado. — Está doente?

            Ela riu baixinho, passando os dedos compridos e esguios pelos cabelos louros e encaracolados de meu irmão.

           — Ora, não me venha com essa, Christopher Dollanganger. Tenho percebido você olhar para mim com a cabeça cheia de idéias desconfiadas!

           Em seguida, pegou a mão de meu irmão e a minha, colocando-as sobre seu ventre avolumado.

            — Sentem alguma coisa? — perguntou, com aquela expressão misteriosa e feliz voltando-lhe ao rosto.

            Christopher retirou bruscamente a mão, com o rosto muito vermelho, mas eu deixei a minha onde estava, esperando, tentando adivinhar.

           — O que você sente, Cathy?

            Sob minha mão, por debaixo das roupas de mamãe, algo estranho acontecia. Leves movimentos faziam-lhe estremecer a carne. Ergui a cabeça e olhei para o rosto dela; até hoje me lembro de como parecia tão bela, como uma madona de Rafael.

           — Mamãe, seu almoço está andando aí dentro, ou você está com gases.

           O riso provocou faíscas em seus olhos azuis e ela me pediu que tentasse outro palpite.

           Depois, num tom suave e cheio de preocupação, revelou-nos a novidade:

           — Meus queridos, vou ter um bebê no início de maio. Na verdade, quando fui ao médico hoje, ele declarou ter escutado dois corações baterem. Portanto, isso significa que terei gêmeos... ou, Deus me livre, trigêmeos. Nem mesmo seu pai sabe disso, de modo que não lhe digam nada até eu ter uma oportunidade de contar a ele.

            Perplexa, lancei um olhar a Christopher para ver como ele estava reagindo. Parecia divertido e ainda embaraçado. Fitei novamente o belo rosto de mamãe, iluminado pelo fogo da lareira. Então, levantei-me de um salto e corri para o meu quarto!

           Atirei-me de bruços na cama e chorei, de verdade! Bebês! Mais dois! Eu era o bebê! Não queria ver bebês chorões chegarem para roubar-me o lugar! Solucei e esmurrei o travesseiro, desejando machucar algo, senão alguém. Então, sentei-me na cama e pensei em fugir de casa.

           Alguém bateu de leve na porta fechada e trancada.

           — Cathy — disse minha mãe. — Posso entrar para conversar com você sobre o assunto?

           — Vá embora! — berrei. — Já odeio seus bebês!

           Sim, eu sabia o que me estava reservado: a filha do meio, para quem os pais não ligam. Eu seria esquecida. Não haveria mais presentes às sextas-feiras. Papai só pensaria em mamãe, em Christopher, e naqueles detestáveis bebês que me roubariam o lugar.

           Meu pai veio procurar-me naquela noite, logo após voltar para casa. Eu destrancara a porta, para a eventualidade de ele querer falar comigo. Lancei-lhe um olhar de esguelha, porquanto o amava muito, Papai parecia triste e trazia uma grande caixa embrulhada em papel de presente, com um enorme laço de fita de cetim cor-de-rosa.

            — Como vai a minha Cathy? — perguntou suavemente quando o espiei por debaixo do braço. — Não correu para me receber quando cheguei em casa. Não disse alô; nem mesmo olhou para mim. Cathy, eu sofro quando você não corre para me abraçar e me beijar.

           Não respondi, mas girei o corpo na cama e encarei ferozmente meu pai. Não sabia ele que eu deveria continuar sendo a filha predileta a vida inteira? Por que ele e mamãe tinham mandado buscar mais filhos? Dois já não eram suficientes?

           Ele suspirou, sentando-se na beirada da cama.

           — Sabe de uma coisa? É a primeira vez na vida que você me olhou assim, com tanta raiva. É a primeira sexta-feira em que não correu para me receber com abraços e beijos. Talvez você não acredite, mas só começo a viver quando volto para casa nos fins de semana.

           Petulante, recusei-me a ser conquistada. Ele já não precisava mais de mim. Já tinha o filho e agora um monte de bebês chorões por chegar a qualquer momento. Eu ficaria esquecida entre a multidão.

           — Sabe outra coisa — prosseguiu ele, observando-me com atenção. — Eu talvez fosse bastante tolo para imaginar que, se eu chegasse em casa às sextas-feiras e não trouxesse um presentinho para você e seu irmão... ainda assim vocês correriam como loucos para dar-me boas-vindas. Eu acreditava que vocês amavam a mim e não aos presentes. Julguei, erradamente, ser um bom pai que, de algum modo, conquistara o amor dos filhos e que vocês sabiam que sempre existirá no meu coração uma enorme fatia reservada para vocês, mesmo que eu e sua mãe tenhamos uma dúzia de filhos.

           Fez uma pausa, suspirou, e seus olhos azuis ficaram sombrios.

           — Pensei que a minha Cathy soubesse que continua sendo sempre a minha garota especial, porque foi a primeira.

           Lancei-lhe um olhar raivoso e magoado. Então, exclamei com um nó na garganta:

           — Mas se mamãe tiver outra menina você dirá o mesmo a ela!

           — Direi?

           — Sim! — solucei, com um ciúme dilacerante que me fazia capaz de gritar. — Poderá até gostar mais dela do que gosta de mim, porque será pequeninha e engraçadinha!

           — Posso amá-la tanto quanto amo você, mas não mais do que a amo — replicou ele, estendendo os braços fortes.

            Não consegui resistir por mais tempo. Joguei-me naqueles braços como se me agarrasse à própria vida.

            — Sshhh — acalmou-me ele enquanto eu chorava. — Não chore. Não sinta ciúmes. Além disso, Cathy, bebês de verdade são mais divertidos que bonecas. Sua mãe terá mais trabalho do que pode fazer sozinha, de modo que dependerá de você para ajudá-la. Quando eu estiver longe de casa, ficarei mais tranqüilo se souber que sua mãe pode contar com uma filha amorosa, que fará todo o possível para ajudar a melhorar a vida da família inteira.

            Com os lábios cálidos colados ao meu rosto molhado de lágrimas, concluiu:

            — Agora, vamos abrir sua caixa. Diga-me se gosta do que está lá dentro.

            Antes eu tive que cobrir o rosto dele com dúzias de beijos e abraçá-lo com força, para compensar a ansiedade que lhe provocara: no olhar. Na enorme caixa havia uma linda caixinha prateada de música, fabricada na Inglaterra. Enquanto a música tocava, uma bailarina vestida de cor-de-rosa fazia lentas piruetas em volta de um espelho.

           — Serve também como caixa de jóias — explicou papai, enfiando-me no dedo um minúsculo anel de ouro com uma pequena pedra vermelha que ele chamou de granada.

            — No instante em que avistei essa caixa, adivinhei para quem ela fora feita. E, com este anel, faço o juramento de amar eternamente a minha Cathy, um pouquinho mais do que amarei outra filha, desde que ela me prometa jamais falar com alguém sobre o assunto.

           Chegou uma ensolarada terça-feira de maio em que papai ficou em casa. Havia duas semanas que ele não se afastava muito de casa, esperando que os bebês aparecessem. Mamãe parecia irritada e nervosa. A Sra. Bertha Simpson estava na cozinha, preparando nossas refeições e olhando Christopher e eu com uma expressão zombeteira. Era a nossa baby-sitter mais confiável. Morava na casa ao lado e estava sempre comentando que mamãe e papai pareciam mais irmãos que marido e mulher. Era uma pessoa carrancuda e mal-humorada, que raramente tinha um comentário agradável sobre qualquer pessoa.

            Além disso, estava cozinhando nabos. E eu detestava nabos.

           Por volta da hora do jantar, papai entrou correndo na sala de jantar a fim de dizer a meu irmão e a mim que iria levar mamãe para o hospital.

            — Agora, não se preocupem. Tudo correrá bem. Obedeçam à Sra. Simpson, façam seus deveres de casa e talvez dentro de algumas horas fiquem sabendo se ganharam irmãos, irmãs, ou um de cada.

           Papai só voltou na manhã seguinte. Tinha a barba por fazer, um ar cansado, as roupas amarrotadas, mas exibiu-nos um sorriso feliz.

           — Adivinhem! Meninos ou meninas?

            — Meninos! — gritou Christopher, que desejava dois irmãos aos quais pudesse ensinar a jogar bola.

            Eu também queria meninos... nada de meninas para roubarem o afeto de papai pela filha mais velha.

            — Um menino e uma menina — anunciou papai, orgulhoso. — As coisinhas mais lindas que vocês já viram. Vamos. Vistam-se e eu os levarei para verificarem pessoalmente.

           Fui, rabugenta, ainda relutando em olhar quando papai me ergueu de modo que eu pudesse enxergar através do vidro do berçário os dois bebês que a enfermeira exibia para nós. Eram tão pequeninos! As cabeças não eram maiores que pequenas maçãs e os pequenos punhos avermelhados esmurravam o ar. Um deles chorava como se picado por alfinetes.

           — Ah! — suspirou papai, beijando-me o rosto e abraçando-me com força. — Deus foi bom para mim, enviando-me outro filho e outra filha tão perfeitos quanto os primeiros.

           Imaginei que detestaria ambos, em especial a chorona Carrie, que choramingava e berrava dez vezes mais alto que o mais tranqüilo, chamado Cory. Passou a ser quase impossível ter uma noite inteira de repouso com os dois no outro lado do corredor, no quarto em frente ao meu. Não obstante, quando começaram a crescer e sorrir, os olhos brilhando quando eu me aproximava para pegá-los no colo, algo cálido e maternal substituía a frieza de meus olhos verdes. Quando dei por mim, corria para casa a fim de vê-los; de brincar com eles; de trocar fraldas, segurar mamadeiras e deixá-los arrotar no meu ombro. Eram mais divertidos que bonecas.

           Logo aprendi que os pais têm lugar no coração para mais que dois filhos, e que eu também tinha lugar no coração para amá-los; até mesmo Carrie, que era tão bonita quanto eu, ou ainda mais. Cresceram depressa (como mato, dizia papai), embora mamãe costumasse olhá-los com ansiedade, pois dizia que eles não se desenvolviam tão depressa quanto Christopher e eu. Apresentou o problema ao médico, que se apressou em afirmar que é normal gêmeos serem menores que crianças que nascem sozinhas.

           — Está vendo? — comentou Christopher. — Os médicos sabem tudo.

            Papai ergueu os olhos do jornal e sorriu:

            — Eis meu filho médico falando... Mas ninguém sabe tudo, Chris.

           Papai era o único da família que chamava meu irmão mais velho de Chris.

           Possuíamos um sobrenome engraçado, muito difícil de aprender a soletrar. Só porque éramos todos louros, com cabelos lisos e pele branca, à exceção de papai, sempre bronzeado de sol, Jim Johnston, o melhor amigo de papai, dera-nos um apelido: “As Bonecas de Dresden”. Afirmava que parecíamos as exóticas criaturas de porcelana, tão usadas para enfeitar prateleiras e aparadores de lareiras. Em breve, toda a vizinhança passara a chamar-nos “Bonecas de Dresden”, pois, certamente, era mais fácil que pronunciar Dollanganger.

            No aniversário de papai, preparamos uma festa-surpresa para ele. Mamãe parecia uma princesa de contos de fadas, com os cabelos recém-lavados e penteados, as unhas brilhando de verniz, o longo vestido do mais tênue tom azul, o comprido colar de pérolas balançando de um lado para outro quando ela se movimentava para arrumar a mesa da sala de jantar, de modo a que tudo ficasse perfeito para a festa de aniversário de papai. Os inúmeros presentes estavam empilhados sobre o aparador do bufê. Seria uma festa pequena, íntima, apenas para a família e os amigos mais chegados.

           — Cathy — disse mamãe, lançando-me um rápido olhar. — Importa-se de dar banho nos gêmeos para mim? Eu lhes dei banho antes de dormirem à tarde, mas foram brincar no jardim e estão precisando lavar-se outra vez.

           Eu não me importava. Nossa mãe estava elegante demais para lavar duas crianças sujas e travessas com quatro anos de idade, que adoravam espadanar água por todos os lados e estragariam o penteado, as unhas e o lindo vestido de nossa mãe.

           — Quando terminar com eles, você e Christopher pulem também na banheira. Cathy, ondule os cabelos e coloque o vestido cor-de-rosa novo. Christopher, por favor, nada de blue jeans. Quero que vista uma camisa social branca, com gravata, usando o paletó esporte azul-claro e as calças cor-de-creme.

            — Bolas, mamãe! Detesto me arrumar todo — reclamou ele, arrastando os pés calçados de tênis e franzindo a testa.

           — Faça o que estou mandando, Christopher, por seu pai. Sabe que ele faz muito por você. O mínimo que você poderia fazer por ele é dar-lhe orgulho da família.

           Meu irmão se afastou com relutância, deixando a meu cargo correr ao quintal para pegar os gêmeos, que começaram a chorar no mesmo instante.

            — Já chega um banho por dia! — berrou Carrie. — Já estamos limpos! Pare com isso! Não gostamos de sabão! Detesto lavar a cabeça! Não faça isso conosco outra vez, Cathy, senão contamos à mamãe!

            — Aah! — repliquei. — Quem vocês acham que me mandou aqui para lavar esses monstrinhos imundos? Ora, ora! Como conseguem sujar-se tão depressa?

           Tão logo os corpinhos despidos mergulharam na água morna, os brinquedos de borracha começaram a flutuar e eles puderam jogar-me água, os gêmeos aquietaram-se o bastante para serem lavados, ensaboados, vestidos e penteados. Pois, afinal, iam a uma festa. E, sobretudo, era sexta-feira e papai voltaria para casa.

           Primeiro, vesti Cory num bonito terninho com calças curtas. Por estranho que pareça, ele sempre se mantinha mais limpo que à irmã gêmea. Por mais que tentasse, eu nunca arranjava uma maneira para dominar a teimosa ondulação do cabelo que lhe caía sobre a testa. E, inacreditavelmente, Carrie desejava que seu cabelo ficasse igual ao dele!

           Depois de vesti-los e arrumá-los como bonecas que ganhassem vida própria, entreguei os gêmeos aos cuidados de Christopher, com severas recomendações para vigiá-los com a mais constante e total atenção. Então, foi minha vez de embonecar-me.

            Os gêmeos reclamaram e choramingaram enquanto tomei um banho apressado, lavei os cabelos e os prendi com grossos rolinhos. Olhei para a porta do banheiro e avistei Christopher fazendo o possível para distraí-los, lendo para eles em voz alta a história da Vovó Gansa.

            — Oi — disse Christopher quando saí do banheiro usando meu vestido, cor-de-rosa e os rolinhos na cabeça. — Não está nada mal.

            — Nada mal? É o melhor que você pode dizer?

           — É mesmo, irmã — disse ele. — O melhor para uma irmã.

            Lançou um olhar ao relógio, fechou o livro, pegou os gêmeos pelos pulsos gorduchos e exclamou:

           — Papai chegará a qualquer momento. Ande depressa, Cathy!

           As cinco horas chegaram e passaram. Embora não parássemos de esperar, não vimos o Cadillac verde de papai entrar na alameda curva de acesso à casa. Os convidados sentaram-se pela sala, procurando conversar animadamente, enquanto mamãe levantou-se e começou a andar nervosamente de um lado para outro. Em geral papai abria a porta às quatro horas; às vezes até mesmo antes disso.

           O maravilhoso jantar que mamãe levara tanto tempo preparando já secava por permanecer demais no fogão. Os gêmeos costumavam ir para a cama às sete e começavam a sentir fome, sono, perguntando a cada minuto:

            — Quando papai vai chegar?

           Suas roupas brancas já não pareciam tão limpas. Os cabelos meticulosamente ondulados de Carrie começavam a encaracolar-se e parecer desfeitos pelo vento. O nariz de Cory começou a escorrer e ele o limpava com as costas da mão, até que corri para pegar um lenço de papel e enxugar-lhe o lábio superior.

           — Bem, Corrine — pilheriou Jim Johnston. — Acho que Chris conseguiu encontrar outra super-mulher.

           A esposa lançou-lhe um olhar irritado pela brincadeira de tão mau gosto.

            Meu estômago roncava e comecei a preocupar-me quando mamãe ergueu a cabeça. Ela estivera percorrendo ambos os sentidos da sala, até que parou junto ao amplo janelão olhando lá para fora.

           — Oh! — exclamou, avistando um carro que entrava em nossa alameda orlada de árvores. — Talvez papai esteja chegando agora!

           Todavia, o carro que parou diante de nossa porta principal era branco e não verde. Tinha na capota uma lâmpada giratória vermelha e trazia na porta um emblema com as palavras POLÍCIA ESTADUAL.

           Mamãe abafou um grito quando dois policiais uniformizados de azul se aproximaram de nossa porta e tocaram a campainha.

           Mamãe parecia congelada, com a mão pairando sobre a garganta; o que lhe ia no coração toldou-lhe o olhar. Algo selvagem e atemorizador martelava-me o coração só de observar as reações de mamãe.

           Jim Johnston foi abrir a porta e permitiu que os dois patrulheiros estaduais entrassem. Olharam em volta, percebendo, estou certa, que a reunião se tratava de uma festa de aniversário. Bastava-lhes olhar para a sala de jantar e ver a mesa festiva, os balões pendurados no lustre, os presentes empilhados no bufê.

           — Sra. Christopher Garland Dollanganger? — inquiriu o mais idoso dos policiais, correndo os olhos pelas senhoras presentes.

           Mamãe assentiu rigidamente. Aproximei-me, acompanhada por Christopher. Os gêmeos estavam no chão, brincando com minúsculos carrinhos, e demonstrando pouco interesse pela chegada dos policiais.

           O policial com aparência bondosa e rosto muito vermelho aproximou-se de mamãe.

           — Sra. Dollanganger — começou, num com neutro que me causou imediato pânico no coração. — Sentimos muito, mas ocorreu um acidente na Rodovia Greenfield.

            — Oh... — disse mamãe, estendendo os braços para puxar Christopher e eu para junto de si.

            Pude senti-la estremecer da cabeça aos pés, como eu. Meus olhos pareciam magnetizados pelos botões metálicos do uniforme do policial; conseguiam ver mais nada.

           — Seu marido estava envolvido, Sra. Dollanganger.

           Um longo suspiro escapou à garganta estrangulada de mamãe. Ela vacilou e teria caído se eu e Christopher não estivéssemos ali apara sustentá-la.

           — Já interrogamos os motoristas que testemunharam o acidente e não foi culpa de seu marido, Sra. Dollanganger — prosseguiu a voz despida de emoção. — Segundo os depoimentos, que tivemos o cuidado de registrar, um motorista ao volante de um Ford azul costurava pela faixa da esquerda, aparentemente alcoolizado, e chocou-se de frente com o carro de seu marido. Tudo indica que seu marido percebeu a iminência do acidente, pois desviou-se a fim de evitar uma colisão frontal, mas uma peça de máquina caiu de outro carro, ou caminhão, impedindo-o de completar a manobra evasiva correta que, lhe teria salvo a vida. Na verdade, porém, o carro de seu marido, sendo muito mais pesado que o outro capotou várias vezes. Talvez ele tivesse conseguido sobreviver, mas um caminhão que passava não pôde parar e bateu no carro; mais uma vez, o Cadillac capotou... e então... pegou fogo.

           Jamais uma sala cheia de pessoas silenciou tão depressa. Até mesmo os pequenos gêmeos ergueram os olhos de sua inocente brincadeira e fitaram os dois policiais.

           — Meu marido? — murmurou mamãe com voz tão fraca que mal se fazia ouvir. — Ele... não está... morto...?

           — Madame — disse, muito solene, o patrulheiro de rosto vermelho. — É muito doloroso para mim trazer-lhe a notícia em meio ao que parece uma ocasião especial.

           Interrompeu-se e olhou em volta, embaraçado.

           — Sinto muitíssimo, madame... Todos fizeram o possível para retirá-lo... mas, madame, bem... ele, bem, morreu instantaneamente, pelo que afirmou o médico.

           Alguém sentado no sofá gritou.

           Mamãe não gritou. Seus olhos ficaram vazios, escuros, assombrados. A despeito da cor radiante de seu belo rosto, dava a impressão de uma máscara mortuária. Fitei-a, tentando dizer-lhe com os olhos que nada daquilo era verdade. Não papai! Não o meu papai! Não podia estar morto... não podia! A morte era para pessoas velhas e doentes... não para um homem tão amado, tão querido, tão jovem!

           Não obstante, ali estava minha mãe, o rosto cinzento, os olhos esbugalhados, as mãos torcendo invisíveis roupas molhadas. A cada segundo que eu a encarava, seus olhos afundavam-se ainda mais nas órbitas.

           Comecei a chorar.

           — Madame, temos alguns pertences dele que foram atirados longe pelo impacto. Salvamos o que foi possível.

           — Vá embora! — gritei para o guarda. — Saia daqui! Não é meu papai! Não é ele, eu sei! Papai parou numa loja para comprar sorvetes. Chegará a qualquer momento. Saia daqui!

           Avancei correndo para esmurrar o peito do patrulheiro. Ele tentou esquivar-se e Christopher se aproximou, puxando-me para um lado.

           — Por favor — disse o policial. — Alguém quer fazer o favor de ajudar essa menina?

           Os braços de minha mãe envolveram-me os ombros, puxando-me de encontro a ela. Pessoas conversavam em murmúrios, num tom chocado. A comida no forno começava a cheirar a queimado.

           Esperei que alguém viesse tomar-me a mão e dizer que Deus jamais tirava a vida de um homem como meu pai; todavia, ninguém se aproximou de mim. Só Christopher veio abraçar-me pela cintura e ali ficamos os três, num grupo isolado: mamãe, Christopher e eu.

            Foi Christopher quem, afinal, conseguiu recobrar a voz e falar num estranho tom rouco:

           — Tem certeza de que foi nosso pai? Se o Cadillac verde pegou fogo, o motorista lá dentro deve ter ficado muito queimado. Portanto, poderia ser outra pessoa e não papai.

           Soluços profundos e ásperos saíam da garganta de mamãe, embora nem uma só lágrima lhe caísse dos olhos. Ela acreditava! Achava que os dois policiais diziam a verdade!

            Os convidados, que tinham colocado roupas tão elegantes para a festa de aniversário, reuniram-se à nossa volta, pronunciando as frases de consolo que as pessoas costumam usar quando não encontram palavras adequadas.

           — Sentimos tanto, Corrine... Foi um choque... É terrível...

           — Que tristeza, acontecer isso a Chris...

           — Nossos dias estão contados... É sempre assim, desde que nascemos: temos os dias contados.

           Aquilo prosseguiu, interminável; pouco a pouco, como água infiltrando-se em concreto, o fato impregnou-se no meu consciente. Papai estava realmente morto.

            Nunca mais voltaríamos a vê-lo vivo! Só voltaríamos a vê-lo num caixão; estendido num caixão que acabaria enterrado no chão, sob uma lápide com seu nome, a data de seu nascimento e a de sua morte. O mesmo dia e mês; apenas os anos seriam diferentes.

           Olhei em torno, a fim de verificar o que ocorria aos gêmeos, que não deviam estar sentindo o mesmo que eu. Uma pessoa bondosa os levara à cozinha, onde lhes preparava uma leve refeição antes de levá-los para a cama. Meu olhar se cruzou com o de Christopher, que parecia mergulhado no mesmo pesadelo que eu, a fisionomia jovem pálida e chocada. Uma vaga expressão de sofrimento ensombrecia-lhe os olhos, tornando-os mais escuros.

           Um dos patrulheiros estaduais fora ao carro da polícia e, agora, voltava com uma trouxa de objetos que ele espalhou cuidadosamente sobre a mesinha de centro.

            Fiquei petrificada, observando a exibição de tudo o que papai tinha nos bolsos: uma carteira de couro de crocodilo que mamãe lhe dera como presente de Natal; a caderneta de anotações e a agenda encapadas com couro; o relógio de pulso; a aliança de casamento. Tudo enegrecido e chamuscado de fumaça e fogo.

           Finalmente, os bichinhos destinados a Cory e Carrie, encontrados, segundo explicou o patrulheiro, espalhados pela estrada. Um gordo elefantinho com orelhas de veludo cor-de-rosa, um cavalinho escarlate, com sela vermelha e rédeas douradas... oh, aquilo tinha que ser para Carrie. Então, o mais triste de todos os objetos: as roupas de papai, que tinham saído das malas quando os fechos estouraram.

           Eu conhecia aqueles ternos, camisas, gravatas, meias. Ali estavam a mesma gravata que eu lhe dera como presente de aniversário.

            — Alguém terá que identificar o corpo — anunciou o patrulheiro.

           Agora, eu sabia com certeza. Era verdade: nosso pai nunca mais voltaria para casa com presentes para todos nós; nem mesmo no dia de seu aniversário.

           Saí correndo daquela sala, fugindo daqueles objetos espalhados, que me dilaceravam o coração e provocavam-me uma dor tão forte como eu jamais sentira. Corri da casa para o jardim, onde fiquei esmurrando um velho bordo. Bati até que os punhos começaram a doer e o sangue brotou de inúmeros cortes pequenos; então, joguei-me de bruços na grama e chorei. Chorei dez oceanos de lágrimas por papai, que deveria estar vivo. Chorei por nós, que precisaríamos continuar vivendo sem ele. E pelos gêmeos, que nem mesmo tiveram oportunidade de saber o quanto ele era ou fora maravilhoso. E quando as lágrimas terminaram, deixando-me os olhos inflamados e vermelhos de tanto esfregá-los, escutei passos macios que se aproximavam: minha mãe.

           Ela se sentou na grama ao meu lado e tomou-me a mão nas suas. A lua minguante surgira no céu e milhões de estrelas cintilavam; a brisa era gostosa, trazendo consigo os novos perfumes da primavera.

           — Cathy — disse mamãe eventualmente, quando o silêncio entre nós prolongou-se de forma a parecer interminável. — Seu pai está no céu, olhando para você. E você sabe que ele desejaria que você fosse valente.

           — Ele não está morto, mamãe! — neguei com veemência.

           — Faz muito tempo que você está aqui fora; talvez não tenha percebido, mas já são dez horas. Alguém precisava identificar o corpo de seu pai e, embora Jim Johnston tenha se oferecido para fazê-lo, tive que ir sozinha. Porque, assim como você, também achava difícil acreditar. Seu pai está morto, Cathy. Christopher está na cama, chorando; os gêmeos já dormiram; ainda não entendem direito o que significa a palavra “morto”.

           Envolveu-me com os braços, descansando-me a cabeça em seu ombro.

           — Vamos — disse ela, pondo-se de pé e puxando-me para cima, ao mesmo tempo em que mantinha o braço em torno de minha cintura. — Passou tempo demais aqui fora. Pensei que estivesse dentro de casa, como os outros. E eles pensavam que você estivesse em seu quarto, ou comigo. Não é bom ficarmos sozinhas quando nos sentimos desorientadas. É melhor procurar a companhia de outras pessoas e desabafarmos nossas angústias, em vez de mantê-las trancadas dentro de nós.

           Disse todas essas palavras com os olhos secos, sem derramar uma só lágrima, mas, em algum lugar de seu íntimo, ela chorava e gritava. Percebi o fato por seu tom de voz, pela absoluta falta de expressão que lhe velava os olhos fundos.

           Com a morte de nosso pai, nossos dias foram tornados sombrios por um pesadelo. Eu fitava mamãe com reprovação, pensando que ela nos devia ter preparado previamente para uma situação assim, porquanto jamais tivemos permissão para possuir mascotes que morressem de repente e nos ensinassem um pouco da perda causada pela morte. Alguém, algum adulto, devia prevenir-nos de que os jovens, os bonitos e os necessários também podem morrer.

           Como dizer tais coisas a uma mãe que dava a impressão de ser puxada pelo destino através de uma abertura estreita, esticando-se, ficando fina e chata? Como falar francamente com alguém que não deseja escutar, nem comer, nem escovar os cabelos, nem vestir as lindas roupas que lhe abarrotavam o armário? Ela nem mesmo queria cuidar de nossas necessidades. Foi bom que as caridosas senhoras da vizinhança viessem tomar conta de nós, trazendo-nos comida preparada em suas próprias cozinhas. Nossa casa transbordava de flores, de comida caseira, presuntos, pãezinhos quentes, bolos e tortas.

           Vinham aos bandos, aquelas pessoas que amavam, admiravam e respeitavam nosso pai; admirei-me ao perceber que ele era tão querido. Não obstante, detestava cada vez que alguém indagava como ele morrera e comentava ser uma pena que alguém tão jovem morresse, quando tanta gente inútil, desajustada, que só constituía um peso para a sociedade, continuava viva.

           Por tudo o que escutei e ouvi dizer, o destino era um ceifador implacável, desprovido de bondade, que não respeitava quem fosse amado ou necessário.

            Os dias de primavera se tornaram verão. E a tristeza, por mais que se procure cultivar-lhe o lamento, possui o dom de diminuir até que a pessoa tão real e tão querida se transforme num vago vulto ligeiramente fora de foco.

            Certo dia, mamãe sentou-se com o rosto tão triste que parecia incapaz de lembrar-se como sorrir.

            — Mamãe! — disse eu alegremente, esforçando-me por animá-la. — Vou fingir que papai está vivo, numa de suas viagens de negócios, e logo voltará para casa, entrará pela porta e gritará como costumava: “Se vocês me amam, venham receber-me com abraços e beijos!” E... você não entende?... todos nos sentiremos melhor, como se ele estivesse vivo em algum lugar, onde não podemos vê-lo, mas podemos esperá-lo de volta a qualquer momento.

            — Não, Cathy! — replicou mamãe, inflamando-se. — Você deve aceitar a verdade. Não deve procurar refúgio numa ilusão. Está ouvindo bem? Seu pai está morto e sua alma foi para o céu. Na sua idade, você deve compreender que ninguém jamais retorna do céu. Quanto a nós, faremos o melhor possível sem ele e isso não significa fugir à realidade, recusando-nos a encará-la.

            Observei-a levantar-se da cadeira e começar a tirar coisas de geladeira para preparar o café da manhã.

            — Mamãe... — recomecei, tateando cautelosamente o caminho, a fim de evitar que ela se zangasse outra vez. — Conseguiremos prosseguir, sem ele?

            — Farei o possível para providenciar nossa sobrevivência — replicou ela com indiferença, desanimada.

            — Agora terá que trabalhar, como a Sra. Johnston?

           — Talvez sim, talvez não. A vida nos reserva todas as espécies de surpresas, Cathy, e algumas delas são desagradáveis, como você está aprendendo a perceber. Contudo, lembre-se sempre que recebeu a bênção de possuir, durante doze anos, um pai que a considerava algo muito especial.

            — Porque me pareço com você — interpus, ainda sentindo aquela pontinha de inveja que sempre me fustigava por estar em segundo lugar em relação a ela.

           Mamãe lançou-me um olhar de esguelha ao mexer o conteúdo da geladeira.

           — Agora, Cathy, vou contar-lhe uma coisa que nunca lhe contei antes. Você se parece muito comigo quando eu tinha a sua idade, mas tem uma personalidade bem diferente. É muito mais agressiva e muito mais decidida. Seu pai costumava dizer que você era como a mãe dele e ele adorava a mãe.

           — Todo mundo não adora a mãe?

           — Não — replicou ela, com uma expressão esquisita. — Existem mães que simplesmente não podemos amar, pois não desejam o amor dos filhos.

           Tirou o toucinho e os ovos da geladeira. Depois, Virou-se para tomar-me nos braços.

           — Querida Cathy, seu pai e eu tínhamos um relacionamento íntimo muito especial e acredito que você deva sentir mais falta dele por causa disso. Mais que Christopher sente, ou os gêmeos.

           Solucei em seu ombro.

            — Detesto Deus por ter levado meu pai! Ele devia continuar vivo até envelhecer! Não estará presente quando eu dançar a valsa ou Christopher formar-se em medicina! Agora, que ele se foi, nada mais parece ter importância.

           — Às vezes, a morte não é tão horrível como você imagina — respondeu ela com voz tensa. — Seu pai jamais ficará velho ou enfermo. Permanecerá sempre jovem; é assim que você sempre se recordará dele: jovem, forte, bonito. Não chore mais, Cathy, pois, como seu pai costumava dizer, existe um motivo para tudo e uma solução para cada problema. E eu estou tentando, desesperadamente, fazer o que julgo ser melhor.

           Éramos quatro crianças andando a esmo, tropeçando nos cacos de nosso sofrimento e perda. Brincávamos no quintal, tentando encontrar consolo no sol, totalmente despercebidos de que nossas vidas em breve sofreriam alteração tão drástica, tão dramática, que palavras como “quintal” e “jardim” adquiririam para nós o significado de “paraíso” e estariam tão remotas quanto este.

           Uma tarde, pouco após os funerais de papai, Christopher e eu estávamos sentados, com os gêmeos, no quintal. Os gêmeos estavam na caixa de areia, brincando com minúsculas pás e baldes. Numa repetição infindável, transferiam a areia de um balde para outro, tagarelando naquele estranho idioma que só eles eram capazes de entender. Cory e Carrie, embora não fossem gêmeos idênticos, formavam uma unidade, mutuamente satisfeitos um com o outro. Erguiam em torno de si uma muralha, transformando-se em castelos bem protegidos, que guardavam ciosamente seus segredos ocultos. Cada um tinha o outro e isso lhes bastava.

            A hora do jantar chegou e passou. Agora, tínhamos medo de que até mesmo nossas refeições fossem canceladas, de modo que, mesmo sem a voz de nossa mãe a chamar-nos para dentro de casa, pegamos as mãos gorduchas e cheias de covinhas dos gêmeos, puxando-os na direção da casa. Encontramos nossa mãe sentada à grande mesa de trabalho de papai; redigia o que parecia ser uma carta muito difícil, se a evidência de vários rascunhos iniciados, interrompidos, amarrotados e deixados de lado servia de indicação. Franzia a testa ao escrever, parando freqüentemente para erguer a cabeça e fitar o espaço.

           — Mamãe — chamei. — Quase seis horas. Os gêmeos estão ficando com fome.

           — Um minuto, um minuto — respondeu ela, entre afobada e indiferente. — Estou escrevendo para seus avós, que moram na Virgínia. Os vizinhos trouxeram-nos comida bastante para uma semana. Você poderia colocar uma das caçarolas no forno; Cathy.

           Foi a primeira refeição que preparei praticamente sozinha. Arrumei a mesa, esquentei a caçarola, servi o leite e então mamãe chegou para ajudar.

           Parecia-me que todos os dias após a morte de papai nossa mãe tinha carta a escrever, lugares aonde ir, deixando-nos aos cuidados da vizinha mais próxima.

            À noite, mamãe sentava-se à mesa de trabalho de papai, com um grande livro de registros de capa verde aberto diante de si, conferindo pilhas de notas fiscais. Nada mais era bom; nada. Agora, muitas vezes meu irmão e eu dávamos banho nos gêmeos, vestindo seus pijamas, e os colocávamos na cama. Então Christopher retirava-se apressadamente para seu quarto, a fim de estudar, enquanto eu voltava rapidamente para perto de mamãe, a fim de buscar um modo de devolver-lhe a felicidade aos olhos azuis.

           Algumas semanas depois chegou uma carta em resposta às muitas que nossa mãe enviara a seus pais. Imediatamente, mamãe começou a chorar, antes mesmo de abrir o grosso envelope creme. Manipulou desajeitadamente uma espátula de abrir cartas e, com dedos trêmulos, segurou as três folhas de papel manuscrito, relendo-as várias vezes. Durante todo o tempo, lágrimas escorriam-lhe lentamente pelo rosto, manchando a maquilagem com longas e úmidas marcas pálidas.

           Chamara-nos do quintal tão logo pegara a correspondência na caixa postal próxima à porta de entrada e agora estávamos, os quatro, sentados no sofá da sala de visitas. Observei o rosto suave e claro de “Boneca de Dresden” transformar-se numa fisionomia fria, dura e resoluta. Um arrepio de frio percorreu-me a espinha.

            Talvez fosse por ela nos encarar demoradamente demais. Em seguida, baixou os olhos para as folhas de papel seguras por seus dedos trêmulos e logo os desviou para as janelas, como se lá conseguisse encontrar alguma solução para o problema da carta.

           Mamãe agia de modo muito estranho, que nos causava temor e nos deixava desusadamente quietos, pois já nos sentíamos bastante intimidados num lar sem pai e não precisávamos que uma carta de três páginas em papel creme viesse selar os lábios de nossa mãe e fazer surgir em seus olhos uma expressão tão dura. Por que olhava para nós de maneira tão esquisita?

           Afinal, ela limpou a garganta com um pigarro e começou a falar, mas numa voz fria, totalmente diversa de sua costumeira cadência suave e amorosa:

           — Afinal, sua avó respondeu minhas cartas — declarou naquele tom gelado. — Depois de todas as cartas que lhe escrevi... bem... ela concordou. Mostra-se disposta a permitir que moremos com ela.

           Boas novas! Exatamente o que aguardávamos escutar, e devíamos estar felizes. Todavia, mamãe tornou a mergulhar naquele silêncio pensativo, limitando-se a permanecer imóvel, olhando para nós. O que haveria com ela? Não saberia que nós lhe pertencíamos? Que não éramos filhos de uma estranha, enfileirados como passarinhos empoleirados na corda do varal?

           — Christopher e Cathy, com quatorze e doze anos vocês dois já devem ter idade suficiente para compreender e colaborar, ajudando sua mãe a escapar de uma situação desesperadora — disse ela, fazendo uma pausa para passar nervosamente os dedos no colar de pérolas e suspirar.

            Parecia à beira das lágrimas. E senti-me tão penalizada da pobre mamãe, sem um marido...

           — Está passando bem, mamãe? — perguntei.

           — Sim, é claro, minha querida — disse ela, tentando sorrir. — Seu pai, que Deus o tenha, esperava viver até uma idade avançada e, nesse ínterim, adquirir uma volumosa fortuna. Vinha de uma família de pessoas que sabiam ganhar dinheiro, de modo que não me resta a menor dúvida de que teria alcançado seu objetivo, se dispusesse de tempo bastante para isso. Todavia, trinta e seis anos é muito pouca idade para morrer. As pessoas costumam acreditar que nada de horrível lhes acontecerá, mas apenas aos outros. Não prevemos acidentes nem esperamos morrer cedo. Ora, seu pai e eu pensávamos em envelhecer juntos e esperávamos conhecer nossos netos antes de morrermos juntos, no mesmo dia. Assim, nenhum de nós ficaria para lamentar sozinho o que partisse primeiro.

           Suspirou outra vez.

           — É forçoso confessar que levamos uma vida muito além de nosso padrão atual. Gastamos dinheiro antes mesmo de recebê-lo. Não o culpem; a culpa foi minha. Ele conhecia tudo a respeito da pobreza; eu não conhecia nada. Vocês se lembram de como ele costumava ralhar comigo? Ora, quando compramos essa casa, ele disse que precisávamos de apenas três quartos, mas fiz questão de quatro. Até mesmo quatro não me pareciam suficientes. Olhem em volta; sobre essa casa pesa uma hipoteca de trinta anos. Nada aqui é realmente nosso: nem

os móveis, nem os carros, nem os aparelhos eletrodomésticos na cozinha e na lavanderia. Nem um único objeto está totalmente pago.

           Parecemos amedrontados? Assustados? Mamãe interrompeu-se, com o rosto muito vermelho, e seus olhos percorreram a linda sala que tão bem lhe realçava a beleza. Suas delicadas sobrancelhas se contraíram numa expressão de ansiedade.

            — Embora seu pai me reprovasse um pouco, ele também queria viver assim. Fazia-me a vontade porque me amava e creio que, afinal, consegui convencê-lo de que o luxo era absolutamente necessário. E ele cedeu, pois tínhamos ambos uma propensão para satisfazer demais nossos desejos. Era outra dentre as muitas coisas que possuíamos em comum.

           Sua fisionomia espelhou tristonhas reminiscências antes que ela prosseguisse naquele tom estranho:

           — Agora, todas as nossas lindas coisas serão levadas. O termo legal é reintegração de posse. É o que fazem quando as pessoas não possuem dinheiro suficiente para pagar o que compraram a prazo. Tomem esse sofá como exemplo. Há três anos, custava oitocentos dólares. Já pagamos quase tudo; faltam apenas cem dólares. Mesmo assim, eles o tomarão de volta. Perderemos tudo o que já pagamos por cada objeto; não obstante, é legal. Não perderemos apenas a casa e os móveis, como também os automóveis; na verdade, perderemos tudo, exceto as roupas e os brinquedos de vocês. Permitirão que eu guarde minha aliança de casamento e escondi o anel de brilhante que seu pai me deu de noivado. Portanto, façam o favor de não mencionar um anel de noivado a qualquer pessoa que venha realizar uma inspeção.

            Nenhum de nós indagou quem eram “eles”. Não me ocorreu indagar, naquele momento. E mais tarde, não me pareceu fazer qualquer diferença. Os olhos de Christopher encontraram os meus. Senti-me afundar no desejo de compreender e lutei para não me afogar na compreensão. Já estava afundando, afogando-me no mundo adulto de mortes e dívidas. Meu irmão estendeu o braço e pegou-me a mão, apertando-me os dedos num raro gesto de conforto fraternal.

           Seria eu uma vidraça, tão transparente que até mesmo Christopher, o meu algoz de todas as horas, tentava confortar-me? Tentei sorrir, a fim de lhe provar o quanto eu era adulta e, dessa forma, zombar daquele ente trêmulo e frágil no qual me tornava porque “eles” iam levar tudo. Não queria que outra menina morasse em meu lindo quarto cor-de-rosa, dormisse em minha cama, brincasse com os brinquedos que eu adorava: minhas bonequinhas com biombos, minha caixa de música feita de prata de lei, com a bailarina cor-de-rosa... “Eles” as levariam, também?

            Mamãe observou com grande atenção a troca de gestos e expressões entre meu irmão e eu. Retomou a palavra, deixando transparecer um pouco de sua antiga personalidade:

           — Não fiquem tão acabrunhados. Na verdade, o quadro não é tão feio quanto o descrevi. Devem desculpar-me se não raciocinei direito e me esqueci do quanto vocês ainda são jovens. Dei as más notícias em primeiro lugar, guardando as melhores para o final. Agora, prendam a respiração! Não acreditarão no que vou lhes dizer... pois meus pais são ricos! Não ricos da classe média, ou ricos da classe alta, mas muito, muito ricos! Podres de ricos! Incrivelmente, pecadoramente ricos! Moram numa bela e enorme mansão na Virgínia; uma casa como vocês jamais viram antes. Eu sei, pois nasci e fui criada lá. Quando avistarem aquela casa, esta aqui parecerá um barraco, em comparação. E eu não disse que vamos morar com eles, minha mãe e meu pai?

           Ofereceu-nos aquela palha de ânimo com um sorriso nervoso e hesitante que não foi o bastante para dissipar-me as dúvidas causadas por sua fisionomia e pelas informações que acabava de fornecer. Não me agradava a maneira pela qual seus olhos desviavam-se com ar de culpa sempre que eu procurava encará-la. Julguei que ela ocultasse algo.

           Mas era minha mãe.

           E papai se fora.

           Peguei Carrie e a sentei no colo, comprimindo-lhe o corpo miúdo e quente contra o meu. Alisei para trás os úmidos cachos dourados que lhe caíam na testa arredondada. Os olhos de Carrie se fecharam e seus lábios carnudos se uniram para formar um botão de rosa. Olhei para Cory, recostado em Christopher.

           — Os gêmeos estão cansados, mamãe. Precisam jantar.

          — Haverá tempo bastante para isso, mais tarde — replicou ela, irritada e impaciente. — Temos planos a fazer, roupas a arrumar, pois precisamos pegar o trem esta noite. Os gêmeos podem comer enquanto arrumamos a bagagem. Tudo que vocês quatro usam deve ser enfiado em apenas duas malas. Quero que levem apenas suas roupas prediletas e os brinquedos pequenos que não desejam deixar para trás. Levem apenas um jogo. Comprarei uma porção de jogos quando vocês chegarem lá. Cathy, escolha as roupas e brinquedos que julga agradarem mais aos gêmeos... mas apenas alguns. Não poderemos levar mais que quatro malas e preciso de duas para as minhas coisas.

           Oh, meu Deus! Era verdade! Tínhamos que partir, abandonando tudo! Eu precisava enfiar tudo em apenas duas malas, que seriam compartilhadas também por meus irmãos. Só a minha boneca Ann ocuparia metade de uma mala! Não obstante, como poderia abandoná-la... minha boneca mais querida, que papai me dera de presente aos três anos? Solucei.

           Assim, permanecemos chocados, fitando mamãe. Ela se mostrou terrivelmente nervosa, pois se ergueu de um pulo e começou a andar de um lado para outro.

           — Como eu disse antes, meus pais são extremamente ricos — declarou, lançando para mim e para Chris um olhar de esguelha, antes de virar-se depressa para ocultar novamente o rosto.

           — Há algo errado, mamãe? — quis saber Christopher.

            Espantei-me de que ele pudesse fazer tal pergunta, quando era por demais óbvio que tudo estava errado.

           Mamãe continuou a andar de um lado para outro, as pernas bem torneadas aparecendo pela abertura na frente do negligé transparente. Mesmo em seu sofrimento, trajando luto, era linda, com rosto abatido, olhos fundos e tudo mais. Era tão bela e eu a amava; oh, como eu a amava!

           Como todos nós a amávamos!

           Bem em frente ao sofá, nossa mãe girou nos calcanhares e a gaze negra do negligé rodopiou como a saia de uma bailarina, revelando-lhe as belas pernas desde os tornozelos aos quadris.

           — Queridos — disse ela. — O que poderia haver de errado em morarmos numa ótima casa como a de meus pais? Nasci lá; lá cresci e fui criada, exceto durante os anos que passei interna na escola. É uma casa grande, bonita, à qual estão sempre acrescentando novos quartos, embora só Deus saiba quantos ela já possui.

           Sorriu, mas havia algo falso em sua expressão.

           — Contudo, preciso dizer-lhes uma coisinha antes de apresentá-los ao meu pai, que é seu avô.

           Mais uma vez, vacilou e exibiu aquele sorriso estranho e sombrio.

           — Há alguns anos, quando eu tinha dezoito anos de idade, fiz algo muito grave, que seu avô reprovou; minha mãe também não aprovou, mas como se recusou a ficar contra mim, de qualquer maneira, isso não conta. Todavia, por causa do que fiz, seu avô mandou retirar meu nome de sua herança e, portanto, estou deserdada. Seu pai, em termos galantes, dizia que eu “caíra em desgraça”. Seu pai sempre viu as coisas pelo lado bom e disse que não fazia diferença.

           “Caíra em desgraça”? O que significaria isso? Não consegui imaginar minha mãe cometendo um erro tão grave a ponto de fazer seu pai voltar-se contra ela e tomar-lhe o que lhe pertencia por direito.

           — Sim, mamãe, compreendo o que quer dizer — interpôs Christopher. — Você fez algo que seu pai desaprovou e, portanto, embora seu nome constasse do testamento, meu avô, em vez de pensar melhor, mandou que o advogado a eliminasse do documento. Agora, você não herdará nenhum de seus bens materiais quando ele passar desse mundo para o além.

           Sorriu, satisfeito por saber mais do que eu. Sempre tinha resposta para tudo. Em casa, andava sempre com o nariz enfiado num livro. Lá fora, a céu aberto, era tão levado quanto qualquer outro menino da vizinhança. Dentro de casa, porém, afastado da televisão, meu irmão mais velho era um rato de livros!

           Naturalmente, tinha razão.

           — Sim, Christopher. Nenhuma parte da fortuna de seu avô virá para mim quando ele morrer; ou para vocês, através de mim. Foi por isso que precisei escrever tantas cartas para casa, enquanto minha mãe não respondia — tornou a sorrir, desta feita com ironia. — Mas, como sou a única herdeira de ambos, tenho esperança de reconquistar a aprovação de meu pai. Entendam: outrora tive dois irmãos, mas ambos morreram em acidentes e agora sou a única que restou para herdar.

           Cessou de caminhar nervosamente. Ergueu a mão para cobrir os lábios; sacudiu a cabeça e, em seguida, continuou naquele novo tom, semelhante a um papagaio:

           — Acho melhor contar-lhes uma outra coisa. Seu verdadeiro sobrenome não é Dollanganger; é Foxworth. E Foxworth é uma família muito importante na Virgínia.

           — Mamãe! — exclamei, chocada. — É legal falsificar o próprio nome e colocar o nome falso num certificado?

           A voz de minha mãe se tornou impaciente:

           — Pelo amor de Deus, Cathy, é possível mudar-se legalmente de nome! E o nome Dollanganger foi mais ou menos escolhido por nós. Seu pai o tomou emprestado de algum ponto de sua árvore genealógica. Considerava-o divertido, uma espécie de pilhéria, que atingiu plenamente o objetivo.

           — Que objetivo? — indaguei. — Por que motivo papai mudaria um nome fácil de soletrar, como Foxworth, por outro comprido e difícil como Dollanganger?

           — Estou fatigada, Cathy — replicou mamãe, deixando-se cair na poltrona mais próxima. — Tenho tantas coisas a fazer, tantos detalhes legais a tratar. Em breve vocês saberão tudo. Explicarei. Juro ser totalmente franca. Agora, por favor, permitam-me recobrar o fôlego.

           Oh, que dia foi aquele! Primeiro ouvimos dizer que os misteriosos “eles” viriam tomar-nos tudo, até a casa. Depois descobrimos que nosso sobrenome não era realmente nosso.

           Os gêmeos, encolhidos em nossos colos, já estavam meio adormecidos e, de todo modo, ainda eram pequenos demais para entenderem. Até mesmo eu, agora com doze anos e já quase uma mulher, não compreendia por que motivo mamãe não parecia realmente feliz por voltar à casa dos pais, os quais ela não via há quinze anos. Pais secretos, que julgávamos mortos, até depois dos funerais de papai. Só naquele dia ouvíramos falar de dois tios que haviam morrido em acidentes. Então, percebi nitidamente que nossos pais tiveram vidas cheias antes mesmo de terem filhos e que, afinal, não éramos tão importantes.

           — Mamãe — disse Christopher devagar. — Sua linda e enorme mansão na Virgínia parece ótima, mas gostamos daqui. Nossos amigos moram aqui; todos nos conhecem, todos gostam de nós e eu não quero me mudar daqui. Não pode procurar o advogado de papai e lhe pedir para encontrar uma maneira de continuarmos morando aqui, com a nossa casa e os nossos móveis?

           — Sim, por favor, mamãe, deixe-nos ficar — acrescentei.

            Mamãe levantou-se rapidamente da poltrona e recomeçou a andar através da sala. Ajoelhou-se diante de nós, com os olhos no mesmo nível que os nossos.

           — Agora, ouçam-me bem — ordenou, tomando a mão de meu irmão e a minha, comprimindo-as contra o próprio peito. — Eu tenho pensado muito a fim de encontrar uma maneira de conseguirmos permanecer aqui, mas não existe meio. Não existe absolutamente nenhum meio, porque não temos dinheiro para pagar as contas mensais e não possuo qualificações para ganhar um salário adequado a sustentar quatro filhos e eu. Olhem bem para mim — disse, abrindo os braços, parecendo vulnerável, linda, indefesa. — Sabem o que sou? Um enfeite inútil e bonito, que sempre acreditou que teria a seu lado um homem para cuidá-lo. Não sei fazer nada. Nem mesmo escrever à máquina. Não sou boa em matemática. Sei bordar muito bem, mas isso não serve para ganhar dinheiro. E é impossível viver sem dinheiro. Não é o amor que faz o mundo girar: é o dinheiro. E meu pai nem sabe o que fazer com todo o dinheiro que possui. Tem apenas um herdeiro vivo, eu! Houve um tempo em que dava mais importância a mim que aos dois filhos homens, de modo que não seria difícil recuperar-lhe o afeto. Então, ele mandará o advogado incluir-me outra vez no testamento e eu herdarei tudo! Ele tem sessenta e seis anos de idade e está morrendo de uma moléstia cardíaca. Pelo que minha mãe escreveu numa folha separada, que não foi lida por meu pai, seu avô não poderá sobreviver mais que dois ou três meses. Isso me proporcionará bastante tempo para agradá-lo e fazê-lo amar-me como outrora. E, quando ele morrer, toda a sua fortuna será minha! Minha! Nossa! Ficaremos livres para sempre de todas as preocupações financeiras. Livres para irmos aonde quisermos. Livres para viajarmos, para comprarmos o que quisermos, qualquer coisa que desejarmos! Não estou falando apenas de um milhão ou dois, mas de muitos, muitos milhões, talvez até mesmo bilhões! Gente que possui tanto dinheiro nem chega a saber o quanto realmente possui, pois está investido aqui e acolá, neste ou naquele negócio, incluindo bancos, companhias aéreas, hotéis, grandes lojas de departamento, linhas de navegação. Ora, vocês nem podem imaginar o tipo de império que seu avô controla, até mesmo agora, quando já tem um pé na cova! Ele é um gênio para ganhar dinheiro. Tudo o que toca se transforma em ouro.

            Os olhos azuis brilhavam. O sol penetrava pelas janelas da frente, lançando faixas de luz cor de diamante em seus cabelos. Já parecia incalculavelmente rica.

            — Mamãe, mamãe, por que tudo isso veio à tona depois da morte de papai?

           — Christopher, Cathy, estão imaginando bem? Escutaram com atenção? O mundo, com tudo que nele existe, é de vocês! Entendem o que uma tremenda quantidade de dinheiro é capaz de fazer? Dá poder, influência, respeito. Confiem em mim. Em breve, recuperarei o amor de meu pai. Bastará um simples olhar para que ele compreenda de imediato que aqueles quinze anos de afastamento foram um desperdício. Está velho e doente; permanece num pequeno quarto ao lado da biblioteca, com enfermeiras para cuidá-lo dia e noite, empregados que lhe satisfazem todas as vontades. Todavia, só o próprio sangue e carne possuem algum significado. E sou a última que resta: só eu. Até mesmo as enfermeiras não precisam subir para tomar banho, porque possuem um banheiro particular. Uma noite, eu o prepararei para conhecer pessoalmente os quatro netos; descerei a escadaria com vocês, entraremos no quarto e ele ficará enfeitiçado, encantado com o que vir: quatro lindas crianças, perfeitas sob todos os aspectos. Ele terá que amá-los, cada um de vocês. Acreditem: dará certo, exatamente como estou dizendo. Prometo-lhes que farei qualquer coisa que meu pai exigir de mim. Pela minha vida, por tudo que considero sagrado e querido, e isso são os filhos que meu amor por seu pai gerou, prometo-lhes que em breve serei dona de uma fortuna inacreditável e que, por meu intermédio, todos os seus sonhos serão realizados!

            Fiquei boquiaberta, perplexa ante a paixão de nossa mãe. Olhei para Christopher e percebi que fitava mamãe com incredulidade. Ambos os gêmeos já se encontravam nos suaves estágios iniciais do sono e não escutaram coisa alguma do que ali fora dito.

           Íamos morar numa casa enorme e rica como um palácio. Naquele palácio tão grandioso, onde os criados serviam como escravos, seríamos apresentados ao Rei Midas, que morreria logo em seguida e, em breve, nós teríamos todo o dinheiro para colocar o mundo a nossos pés. Alcançaríamos uma riqueza incrível! Eu seria como uma princesa!

           Ainda assim, por que não me sentia feliz?

           — Cathy — disse-me Christopher com um amplo sorriso. — Você ainda poderá ser bailarina. Não acredito que o dinheiro possa comprar talento, nem transformar um playboy em médico. Mesmo assim, até chegar o momento de agirmos com seriedade, vamos farrear bastante, não é mesmo?

           Não pude levar a caixinha de música de prata com a bailarina cor-de-rosa. A caixinha de música era dispendiosa e fora relacionada como objeto de valor a ser levado por “eles”.

           Não pude retirar as molduras das paredes nem esconder as bonecas em miniatura. Na verdade, pouco pude levar do que papai me dera de presente, à exceção do anelzinho em meu dedo, com uma pedra semipreciosa lapidada em forma de coração.

           E, como dissera Christopher, depois que ficássemos podres de ricos, nossa vida resumir-se-ia num suntuoso baile, numa festa interminável. Era assim que viviam os ricos: felizes para sempre, contando dinheiro e fazendo planos para divertimentos.

           Divertimentos, festas, jogos, fortuna incalculável, uma casa enorme como um palácio, com criados que moravam em cima de uma imensa garagem com lugar para ao menos nove ou dez automóveis de luxo. Quem imaginaria que minha mãe vinha de uma família assim? Por que papai discutia com ela pela casa se pedisse, humildemente, algum dinheiro aos pais?

           Caminhei devagar pelo corredor até a porta de meu quarto, onde parei diante da caixinha de música prateada na qual a bailarina cor-de-rosa em posição de arabesque fitava-se no espelho da tampa. Escutei a melodia: “Gire, bailarina, gire...”

           Poderia roubá-la, se tivesse um lugar para escondê-la.

           Adeus outra vez para você, papai, pois, quando eu me for, não mais poderei imaginá-lo sentado ao lado da cama, segurando-me a mão, nem o verei chegar do banheiro trazendo um copo com água. Na verdade, não sinto muita vontade de ir, papai. Prefiro ficar e manter sua lembrança junto de mim.

           — Cathy! — Mamãe estava à porta. — Não fique aí chorando. Um quarto é apenas um quarto como qualquer outro. Você morará em muitos quartos antes de morrer. Portanto, trate de andar depressa. Arrume suas coisas e a bagagem dos gêmeos, enquanto eu arrumo as minhas.

           Antes de morrer, eu ainda moraria em mil quartos, ou talvez mais. Uma pequena voz me sussurrou isso ao ouvido... e acreditei.

 

A estrada da riqueza

           Enquanto mamãe arrumava suas coisas, Christopher e eu enfiamos nossas roupas em duas malas, junto com um jogo e alguns brinquedos. No início do crepúsculo vespertino, um táxi levou-nos à estação ferroviária. Havíamos saído furtivamente de casa, sem nos despedirmos de um só amigo, o que nos magoava. Eu não sabia por que razão devíamos agir assim, mas mamãe insistiu. Nossas bicicletas foram deixadas na garagem, com tudo o mais de tamanho exagerado para ser trazido conosco. O trem avançava por uma noite escura e estrelada, dirigindo-se a uma distante propriedade rural na Virgínia. Passamos por vilas e lugarejos adormecidos, bem como por fazendas isoladas nas quais retângulos dourados de luz eram o único indício de sua existência naquelas plagas. Meu irmão e eu não queríamos pegar no sono, a fim de não perdermos detalhe algum da viagem e tínhamos muito o que conversar!

            Na maior parte do tempo, tecemos especulações sobre a enorme e luxuosa mansão onde viveríamos em esplendor, comendo em pratos de ouro servidos por um mordomo de libré. E eu julgava que teria uma empregada só para cuidar de minhas roupas, preparar meu banho, e pular quando eu ordenasse. Mas não pretendia tratá-la com severidade. Seria o tipo delicado e compreensivo de boa patroa que todos os criados desejam, a menos que ela estragasse algo de que eu realmente gostasse! Então, seria um inferno: eu teria um ataque de nervos e, ao menos, atiraria longe algumas coisas que não me agradassem.

            Relembrando aquela viagem noturna de trem, dou-me conta de que foi exatamente naquela noite que comecei a crescer e filosofar. Com tudo o que se ganha, deve-se perder alguma coisa, de modo que era melhor eu me acostumar e tratar de aproveitar ao máximo.

            Enquanto meu irmão e eu especulávamos sobre a maneira de gastarmos o dinheiro quando o recebêssemos, o portentoso condutor calvo entrou em nosso minúsculo compartimento, olhou apreciativamente da cabeça aos pés de mamãe e disse num tom suave:

            — Sra. Patterson, dentro de quinze minutos chegaremos à sua parada.

            Ora, por que a chamava de “Sra. Patterson”? Fiquei intrigada. Lancei um rápido olhar a Christopher, que também parecia perplexo.

           Despertada repentinamente, parecendo assustada e desorientada, mamãe arregalou os olhos. Olhou do condutor, que permanecia perto dela, para, Christopher e eu; depois, com ar de desespero, fitou os gêmeos adormecidos. Logo começou a chorar, remexeu na bolsa e pegou lenços de papel, enxugando delicadamente os olhos.

            Depois soltou um suspiro tão fundo, tão cheio de sofrimento, que meu coração começou a bater num ritmo nervoso.

            — Sim, muito obrigada — disse ela ao condutor, que ainda a observava com grande aprovação e admiração. — Não tema. Estaremos prontos para desembarcar.

            — Madame — disse ele, muito preocupado, consultando o relógio de bolso. — São três horas da manhã. Alguém virá buscá-los na estação?

            Seu olhar de preocupação voltou-se para Christopher, para mim e, finalmente, para os gêmeos adormecidos.

            — Tudo bem — assegurou mamãe.

            — Está muito escuro lá fora, madame.

           — Sou capaz de encontrar o caminho de casa com os olhos fechados.

           O condutor não se satisfez com a resposta.

           — Ouça, senhora — insistiu ele. — É uma hora de viagem até Charlottesville. Aqui estaremos deixando a senhora e seus filhos num fim de mundo. Não existe uma só casa à vista.

            A fim de evitar outras perguntas, mamãe replicou em seu tom mais arrogante:

           — Alguém virá buscar-nos.

           Engraçado como ela parecia capaz de tirar aquelas maneiras petulantes de uma cartola, descartando-se delas logo em seguida.

           Chegamos à parada no fim do mundo e desembarcamos do trem. Ninguém à nossa espera.

           Estava totalmente escuro quando descemos do trem e, como prevenira o condutor, não existia uma só casa à vista. Sozinhos na noite, longe de quaisquer vestígios de civilização, fizemos acenos de despedida para o condutor, que permanecia nos degraus do vagão, segurando-se com uma das mãos e acenando com a outra. Sua expressão revelava não sentir-se muito feliz por abandonar a “Sra. Patterson” e sua prole de quatro crianças sonolentas à espera de alguém que traria um carro. Olhei em torno e nada vi, à exceção de um enferrujado telheiro de zinco sustentado por quatro colunas de madeira, e um desengonçado banco pintado de verde. Eis nossa estação ferroviária.

            Não nos sentamos no banco, preferindo ficar em pé, observando até o trem desaparecer na escuridão, escutando um único apito lamentoso que parecia desejar-nos boa-sorte.

           Estávamos rodeados por campos lavrados e pastos. Das profundezas do denso bosque existente nos fundos da “estação”, algo produziu um ruído. Sobressaltei-me, girando para ver o que era. Christopher riu.

           — Uma coruja! Pensou que fosse um fantasma?

           — Agora, vamos parar com essas conversas! — mamãe interpôs rispidamente — E não é preciso falarem aos sussurros. Ninguém por perto. Estamos numa fazenda, principalmente de gado leiteiro. Olhem ao redor. Vejam as plantações de trigo, aveia e, também, um pouco de cevada. Os fazendeiros mais próximos fornecem legumes frescos às pessoas ricas que moram no morro.

           Existiam morros em profusão, parecendo colchas de retalhos cobertas de calombos, com filas de árvores subindo e descendo as encostas, separando a terra em lotes distintos. Sentinelas da noite, passamos a chamá-las. Mamãe explicou que muitas árvores em linhas retas agiam como quebra-ventos, escorando as nevascas. Era o tipo exato de panorama capaz de deixar Christopher muito excitado. Ele adorava todos os tipos de esportes de inverno e nunca imaginara que um estado do Sul, como a Virgínia, tivesse nevascas.

           — Oh, sim, neva por aqui — confirmou mamãe. — Podem apostar que neva. Estamos no sopé das Montanhas Blue Ridge e faz muito, muito frio por aqui; o mesmo frio que fazia em Gladstone. No verão, porém, faz mais calor durante o dia. O frio da noite sempre exige, no mínimo, um cobertor. Agora, se o dia amanhecer ensolarado, vocês regalarão os olhos com um panorama muito lindo; tão lindo quanto qualquer outra parte do mundo. Contudo, precisamos apressar-nos. É um longo caminho a pé até minha casa antes do amanhecer, que é a hora dos criados acordarem.

           Que estranho...

            — Por quê? — indaguei. — E por que o condutor a chamou de Sra. Patterson?

            — Cathy, não tenho tempo para lhe explicar tudo agora. Temos que andar depressa.

          Abaixou-se para pegar as duas malas mais pesadas e ordenou com voz firme que a acompanhássemos aonde ela nos guiasse. Christopher e eu fomos obrigados a carregar os gêmeos, que estavam sonolentos demais para andarem ou mesmo tentarem fazê-lo.

            — Mamãe! — gritei após darmos poucos passos. — O condutor esqueceu de entregar-nos as suas malas!

           — Tudo bem, Cathy — respondeu ela, arquejante, como se as duas malas que carregava fossem suficientes para tirar-lhe as forças. — Pedi ao condutor que levasse minhas duas malas para Charlottesville e as guardasse no depósito de bagagens, onde irei buscá-las amanhã.

           — Por que fez isso? — quis saber Christopher, tenso.

           — Ora, em primeiro lugar, eu certamente não poderia carregar quatro malas, não acham? E, em segundo lugar, quero uma oportunidade para falar primeiro com meu pai, antes que ele tenha conhecimento dos meus filhos. E não ficaria bem se eu chegasse em casa de madrugada, após passar quinze anos longe de lá, não é mesmo?

           Creio que parecia razoável, pois já cuidávamos de tudo que nos era possível desde que os gêmeos se recusavam a andar. Seguimos caminho, andando à retaguarda de mamãe, percorrendo um terreno irregular, acompanhando leves trilhas entre rochas, árvores e arbustos que nos agarravam as roupas. Andamos um longo, longo caminho.

            Christopher e eu ficamos cansados, irritados, à medida que os gêmeos se tornavam cada vez mais pesados e nossos braços começavam a doer. A aventura já estava perdendo a graça. Reclamávamos, atrasávamos o passo, arrastávamos os pés, desejando sentar e descansar. Queríamos estar de volta a Gladstone, em nossas camas, com nossas coisas; seria melhor que ali; melhor que a grande mansão cheia de criados e avós que nem conhecíamos.

       — Acordem os gêmeos! — bradou mamãe, impaciente com nossas reclamações. — Coloquem-nos de pé, obriguem-nos a caminhar, queiram ou não!

           Então murmurou de encontro à lapela do casaco uma frase que mal me chegou aos ouvidos:

           — Só Deus sabe que é melhor eles andarem aqui fora enquanto podem.

           Um arrepio de apreensão percorreu-me a espinha. Olhei para meu irmão, a fim de verificar se também tinha escutado. Naquele instante, Christopher virou a cabeça para me olhar. Sorriu. Sorri em resposta.

           Amanhã, quando mamãe chegasse numa hora apropriada, de táxi, procuraria nosso avô doente e sorriria para ele, falaria e ele ficaria encantado, dominado por ela. Um olhar àquele rosto lindo, apenas uma palavra daquela voz suave e maviosa, e o velho abriria os braços, perdoando-a pelo que fizera para “cair em desgraça”.

           Pelo que ela já nos dissera, seu pai era um velho rabugento, pois sessenta e seis anos parecia-me, então, uma idade incrivelmente avançada. E um homem à beira da morte não se podia dar o luxo de alimentar ressentimentos contra sua única filha, uma moça a quem ele outrora muito amara. Seria obrigado a perdoá-la, a fim de conseguir morrer feliz e tranqüilo, sabendo ter agido corretamente. Então, uma vez tendo vencido o velho com seus encantos, nossa mãe iria buscar-nos no quarto, cada um de nós vestido com suas melhores roupas e portando-nos da melhor maneira possível, e o velho logo perceberia que não éramos feios ou malvados.

            Além disso, ninguém, absolutamente ninguém, que tivesse um pouco de coração seria capaz de resistir aos gêmeos. Ora, nos centros comerciais e supermercados as pessoas paravam para acariciar os gêmeos e cumprimentavam nossa mãe por ter filhos tão lindos. E quando vovô descobrisse a inteligência de Christopher! Um aluno Nota Dez! E o que era ainda mais notável: Christopher nem precisava estudar tanto quanto eu. Aprendia tudo com facilidade. Bastava-lhe correr os olhos uma ou duas vezes pela página e a informação permanecia indelevelmente gravada em seu cérebro, para nunca mais ser esquecida. Oh, como eu invejava aquele dom de meu irmão!

           Eu também possuía um dom; não era uma moeda brilhante e polida como Christopher. Era o meu modo de revirar tudo o que brilhava e procurar as manchas de azinhavre.

            Tínhamos coligido apenas algumas informações sobre nosso desconhecido avô, mas juntando as peças do quebra-cabeça, eu já fazia idéia de que ele não perdoava facilmente, partindo do fato de negar durante quinze anos uma filha que outrora amara tanto. Não obstante, seria tão duro a ponto de conseguir resistir aos insinuantes encantos de mamãe, que eram consideráveis? Eu duvidava. Vira e ouvira nossa mãe jogando tais encantos sobre papai quando discutiam a respeito de dinheiro e era sempre papai quem cedia, deixando-se convencer pelos encantos de mamãe. Bastava um beijo, um abraço, uma leve carícia e papai se animava, sorridente, concordando que, de algum modo, conseguiriam pagar todas as coisas caras que ela comprara.

            — Cathy, tire da cara essa expressão preocupada — disse Christopher. — Se Deus não pretendesse que as pessoas envelhecessem, adoecessem e, eventualmente, morressem, evitaria que continuassem a ter filhos.

            Senti o olhar de Christopher em mim, como se lesse meus pensamentos, e ruborizei-me. Ele sorriu alegremente. Era um otimista perpétuo e incorrigível, jamais sombrio, duvidoso ou pensativo como eu.

            Seguimos os conselhos da mamãe e acordamos os gêmeos. Colocamos ambos em pé, dizendo-lhes que teriam que fazer um esforço para andar, estivessem ou não cansados. Puxamos os dois conosco, enquanto choramingavam, reclamavam e, afinal, começavam a soluçar de revolta.

           — Não quero ir onde estamos indo — soluçou a chorosa Carrie.

           Cory limitava-se a chorar.

           — Não gosto de andar no mato quando está escuro! — berrou Carrie, tentando livrar a minúscula mão da minha. — Vou para casa! Solte-me, Cathy! Largue-me!

            Cory chorou mais alto.

           Tive vontade de tornar a pegar Carrie no colo e carregá-la, mas meus braços doíam demais para um novo esforço. Então, Christopher largou a mão de Cory e foi ajudar mamãe a carregar as duas malas pesadas. Assim, fui deixada a sós com dois gêmeos recalcitrantes, relutantes, sendo obrigada a puxá-los comigo na escuridão.

          O ar era frio, áspero e pungente. Embora mamãe a denominasse região de colinas, as silhuetas escuras que se elevavam a distância pareciam-me montanhas.

            Olhei para o céu, que me deu a impressão de uma profunda cúpula de veludo azul-marinho, salpicado de flocos de neve cristalizados que faziam as vezes de estrelas; ou seriam lágrimas de gelo que eu derramaria no futuro? Por que pareciam fitar-me com piedade, fazendo-me sentir uma formiguinha assustada, completamente insignificante? Aquele céu, tão perto de mim, era imenso demais, lindo demais, enchendo-me com uma estranha sensação de presságio. Não obstante, compreendi que em outras circunstâncias eu teria adorado um panorama como aquele.

           Chegamos, afinal, a um grupo de casas grandes e muito bonitas, aninhadas numa encosta íngreme. Furtivamente, aproximando-nos da maior e, evidentemente, mais grandiosa dentre as adormecidas mansões da montanha. Mamãe, num sussurro, explicou que o nome da propriedade era Foxworth Hall e a mansão devia ter mais de dois séculos.

           — Há um lago por perto, para nadarmos e patinarmos no gelo? — quis saber Christopher, observando com atenção a encosta. — A região não serve para esquiar: árvores e pedras demais.

            — Sim — respondeu mamãe. — Existe um pequeno lago, a cerca de quatrocentos metros.

           E apontou na direção onde se situava o lago.

           Quase nas pontas dos pés, circundamos a enorme casa. Quando chegamos à porta dos fundos, uma senhora idosa deixou-nos entrar. Devia estar à nossa espera, ou vira-nos chegar, pois abriu a porta tão prontamente que nem tivemos necessidade de bater. Como ladrões em plena noite, entramos furtivamente, sem fazer ruído. A velha não emitiu uma só palavra de boas-vindas. Seria uma das criadas? Fiquei imaginando.

            Tão logo chegamos ao interior da casa, a mulher guiou-nos apressadamente para uma estreita e íngreme escada dos fundos, não nos permitindo parar para espiar os grandiosos aposentos que avistávamos apenas de relance ao passarmos rápida e silenciosamente por eles. A velha nos guiou por muitos corredores, passando por inúmeras portas fechadas, até que, afinal, chegamos a um quarto na extremidade de um corredor, onde ela abriu uma porta e gesticulou para que entrássemos. Foi um alívio perceber que nossa longa viagem noturna terminara; estávamos num vasto quarto de dormir, onde havia apenas um lampião aceso. Pesadas cortinas de tapeçaria vedavam duas altas janelas. A velha vestida de cinzento virou-se para nós ao fechar a porta do corredor e encostar-se a ela.

           Quando falou, sofri um abalo:

           — Exatamente como você disse, Corrine. Seus filhos são lindos.

           Ali estava ela, fazendo-nos um elogio que deveria aquecer-nos o coração, mas congelava o meu. Sua voz era fria e indiferente, como se não existissem ouvidos para escutá-la ou mentes para compreender-lhe o desagrado, a despeito da lisonja que pronunciava. E acertei ao julgá-la assim. Suas palavras seguintes o provaram:

            — Mas tem certeza de que são inteligentes? Sofrem de moléstias invisíveis, não aparentes ao olhar?

            — Não! — bradou mamãe, tão ofendida quanto eu. — Como você bem pode ver, meus filhos são perfeitos, física e mentalmente!

            Mamãe encarou raivosamente a velha antes de agachar-se e começar a despir Carrie, que estava cochilando em pé. Ajoelhei-me diante de Cory, desabotoando-lhe o casaquinho azul, enquanto Christopher pegava uma das malas e a colocava em cima de uma das enormes camas. Abriu a mala e dela retirou dois pares de pequenos pijamas amarelos, tipo macacão.

           Furtivamente, enquanto ajudava Cory a despir-se e vestir os pijamas amarelos, observei aquela mulher alta e grandalhona que, segundo presumi, era nossa avó. Estudando-a à procura de rugas e pelancas, verifiquei que não era tão velha quanto eu julgara a princípio. Tinha cabelos fortes, cor de aço azulado, penteados para trás num estilo severo que lhe tornava os olhos um tanto alongados e felinos. Ora, pude até mesmo ver como cada mecha de cabelos repuxava-lhe o couro cabeludo e, enquanto eu observava, um dos fios esticados soltou-se pela raiz!

           O nariz era como um bico de águia, os ombros largos, a boca parecia a cicatriz fina e irregular de um corte de faca. O vestido de tafetá cinzento trazia um broche de brilhante na garganta, fechando a frente severa e sem vestígio de decote. Nada na mulher parecia macio ou flexível; até mesmo o peito parecia ser constituído de dois montes gêmeos de concreto. Com ela, não haveria as brincadeiras que costumávamos fazer com papai e mamãe.

           Não gostei dela. Tive vontade de voltar para casa. Meus lábios tremiam. Queria papai vivo outra vez. Como poderia uma mulher como aquela produzir algo tão doce e lindo como nossa mãe? De quem mamãe herdara a beleza, a alegria? Estremeci, procurando reprimir as lágrimas que me saltavam aos olhos. Mamãe nos preparara com antecedência para um avô desprovido de carinho, afeição ou condescendência, mas a avó que providenciara nossa recepção... constituía uma surpresa brutal, assustadora. Pisquei para afastar as lágrimas, temendo que Christopher as percebesse e viesse zombar de mim posteriormente. Todavia, para reconfortar-me, lá estava nossa mãe, sorrindo carinhosamente ao colocar Cory, já de pijamas, sobre uma das camas e repetir o gesto para deitar Carrie ao lado dele. Oh, como eram lindos, ali deitadinhos como duas bonecas de rostos rosados. Mamãe debruçou-se sobre os gêmeos, beijando-lhes os rostinhos corados, ajeitando ternamente os cachos que lhes caíam nas testas e, afinal, aconchegando-os nas cobertas.

           — Boa-noite, meus queridos — murmurou com a voz carinhosa que tão bem conhecíamos.

           Os gêmeos nem escutaram, já profundamente adormecidos.

           A avó, porém, mantendo-se ali plantada como uma árvore solidamente enraizada, mostrava-se obviamente contrariada ao olhar para os gêmeos numa das camas e, depois, para onde Christopher e eu nos encolhíamos, muito juntos. Estávamos cansados e nos apoiávamos mutuamente. Total desaprovação faiscou nos olhos cinzentos. Seu rosto mantinha uma expressão franzida e penetrante que mamãe pareceu entender, embora eu não conseguisse interpretar. O rosto de mamãe enrubesceu quando a avó declarou:

            — Suas duas crianças mais velhas não podem dormir na mesma cama!

           — São apenas crianças! — replicou mamãe com desusada veemência. — Você não mudou nem um pouco, não é, mamãe? Ainda tem a mente suja e desconfiada! Christopher e Cathy são inocentes!

           — Inocentes? — retrucou a velha, com uma expressão maldosa tão afiada que parecia capaz de ferir alguém. — Era exatamente isso que seu pai e eu presumíamos a respeito de você e de seu meio-tio!

           Com os olhos esbugalhados, olhei de uma para a outra. Lancei um olhar de esguelha a meu irmão, cuja idade parecera derreter-se em segundos; estava tão vulnerável e indefeso quanto eu, sem entender coisa alguma.

           Uma tempestade de raiva violenta roubou a cor do rosto de mamãe.

           — Se pensa assim, então dê-lhes quartos separados, com camas separadas! Deus sabe que isso existe de sobra nessa casa!

           — Impossível! — replicou a mãe dela, naquele tom que queimava como gelo. — Este é o único quarto que possui um banheiro privativo e onde meu marido não os escutará andando sobre as tábuas do teto ou acionando a válvula da privada. Se os separarmos, espalhando-os pelo andar superior, ele ouvirá as vozes e os barulhos. Ou os criados escutarão. Ora, pensei muito nesse arranjo. Este é o único quarto seguro.

           Quarto seguro? Dormiríamos, nós todos, num único quarto? Numa grandiosa e rica mansão, com vinte, trinta ou quarenta quartos, ficaríamos todos num mesmo quarto? Mesmo assim, agora que pude pensar bem no assunto, eu não desejaria ficar sozinha num quarto daquela casa imensa.

           — Ponha as duas meninas numa cama e os dois meninos na outra — ordenou nossa avó.

           Mamãe pegou Cory no colo e o depositou na outra cama de casal, estabelecendo assim, com naturalidade, a rotina que seguiríamos dali em diante. Os meninos na cama mais próxima à porta do banheiro, Carrie e eu na cama perto das janelas.

           A velha olhou duramente para mim e, depois, para Christopher.

           — Agora, ouçam o seguinte — começou, como um sargento-instrutor perante um bando de recrutas. — Caberá a vocês dois, os mais velhos, manter os menores quietos; os dois serão responsáveis se eles violarem qualquer uma das regras que estou estabelecendo agora e virei a estabelecer mais tarde. Mantenham sempre isso em mente: se o seu avô descobrir, antes do tempo, que vocês estão aqui em cima, expulsará todos sem um único tostão furado, após castigá-los severamente por estarem vivos! Vocês manterão esse quarto sempre limpo, varrido e bem arrumado e o banheiro também, como se ninguém morasse aqui. E ficarão quietos; não gritarão ou chorarão, nem correrão pelo quarto, para evitar barulho nas tábuas do teto do andar inferior. Quando sua mãe e eu sairmos esta noite, fecharei a porta e trancarei à chave por fora, pois não admitirei que fiquem vagando pela casa ou cheguem às outras alas. Permanecerão aqui até o dia da morte de seu avô, mas, para todos os efeitos, vocês não existem.

           Oh, Deus! Olhei para mamãe. Não podia ser verdade! Ela estava mentindo, não estava? Dizendo coisas malvadas apenas para assustar-nos. Aproximei-me de Christopher, comprimindo-me de encontro a ele, sentindo-me fria e trêmula. A avó ficou mais carrancuda e eu me afastei. Tentei olhar para mamãe, mas ela nos dera as costas e mantinha a cabeça baixa, os ombros caídos estremecendo, como se estivesse chorando.

            Dominada pelo pânico, estive prestes a berrar alguma coisa, mas mamãe virou-se no momento exato, sentando-se na beirada de uma cama e estendendo os braços para Christopher e eu. Corremos para ela, gratos pelos braços que nos envolveram, as mãos que nos acariciavam os cabelos e as costas, que alisavam-nos os cabelos em desalinho.

           — Tudo bem — sussurrou mamãe. — Confiem em mim. Só passarão uma noite aqui. Então, meu pai os receberá em seu lar e vocês poderão usá-lo como se lhes pertencesse, tudo, todos os quartos, os jardins também. — Então, olhou raivosamente para a mãe tão alta, severa, implacável. — Mamãe, tenha alguma piedade e compaixão por meus filhos! Eles também são a sua carne e o seu sangue, não se esqueça. São ótimas crianças, mas também são crianças normais e necessitam de espaço para brincar, correr e fazer barulho. Espera que falem em murmúrios? Não precisa trancar a porta desse quarto; pode trancar a porta na extremidade do corredor. Ora, por que eles não podem usar todos os quartos dessa ala norte? Sei que vocês nunca se importaram muito com essa parte mais antiga da casa.

           A velha sacudiu vigorosamente a cabeça.

           — Corrine, quem toma as decisões aqui sou eu, não você! Acha que pode apenas trancar a porta de acesso a essa ala da casa e os criados não perceberão? Tudo deve permanecer exatamente como estava antes. Os criados entendem por que motivo mantenho esse quarto trancado, pois a escada para o sótão é aqui e não gosto que eles metam o nariz onde não devem. Todas as manhãs, bem cedo, trarei comida e leite para as crianças, antes que a cozinheira e a copeira cheguem à cozinha. Ninguém entra nessa ala norte, exceto na última sexta-feira de cada mês, quando é totalmente limpa e arrumada. Nesses dias, as crianças terão que ficar escondidas no sótão até as empregadas terminarem o serviço. E antes que as empregadas cheguem, eu verificarei pessoalmente que não sejam deixados vestígios de ocupação do quarto.

           Mamãe apresentou outras objeções:

           — Impossível! É natural que eles se traiam, que deixem algum indício. Mamãe, tranque a porta na extremidade do corredor!

           A velha rilhou os dentes.

           — Dê-me tempo, Corrine; com o tempo, poderei inventar algum motivo pelo qual os criados fiquem impedidos de entrar nessa ala, até mesmo para limpá-la. Todavia, preciso agir com cautela e não levantar suspeitas. Eles não gostam de mim; correriam a seu pai, inventando histórias, esperando que ele os recompensasse. Não compreende? O fechamento dessa ala não pode coincidir com o seu retorno, Corrine.

           Nossa mãe meneou a cabeça, cedendo. Ela e a avó continuaram a fazer planos, enquanto Christopher e eu ficávamos cada vez mais sonolentos. O dia parecia interminável. Eu desejava desesperadamente deitar-me ao lado de Carrie, aninhar-me na cama e mergulhar no doce esquecimento do sono, onde não existem problemas.

            Eventualmente, quando eu julgava que ela jamais notaria, mamãe percebeu o quanto Christopher e eu estávamos fatigados. Tivemos permissão para trocarmos as roupas no banheiro e, afinal, deitarmo-nos nas camas.

            Mamãe, parecendo muito pálida e preocupada, com fundas olheiras, aproximou-se de mim e colou os lábios na minha testa. Vi lágrimas brilharem nos cantos de seus olhos, e a maquilagem estava manchada e úmida. Estaria chorando novamente?

           — Durma — disse em voz rouca. — Não se preocupe. Não dê atenção ao que acaba de escutar. Tão logo meu pai me perdoar e esquecer o que fiz para desagradá-lo, receberá os netos com os braços abertos, os únicos netos que ele poderá ver ainda vivo.

           — Mamãe — franzi a testa, cheia de angústia — por que você chora tanto?

           Com movimentos espasmódicos, ela enxugou as lágrimas e tentou sorrir.

           — Cathy, temo que seja necessário mais que um dia para recuperar a aprovação e afeto de meu pai. Pode levar dois dias, ou até mais.

           — Mais?

           — Talvez. Pode levar até uma semana, porém não mais que isso. Talvez leve menos tempo. Não sei exatamente... mas não demorará. Conte com isso — respondeu ela, alisando-me os cabelos. — Minha doce e querida Cathy, seu pai a amava muito e eu também amo.

           Foi até Christopher, beijou-lhe a testa e acariciou-lhe os cabelos, mas não consegui escutar o que sussurrou para ele. Perto da porta, virou-se para dizer:

           — Descansem bem essa noite e amanhã; virei vê-los o mais cedo possível. Conhecem meus planos: terei que andar até a parada do trem e pegar outra composição até Charlottesville, onde minhas malas estarão à espera. Amanhã de manhã, bem cedo, tomarei um táxi até aqui e virei visitá-los assim que puder.

           A avó empurrou impiedosamente mamãe pela porta aberta. Todavia, mamãe conseguiu torcer o corpo para olhar-nos por cima do ombro, seus olhos tristes implorando antes mesmo que ela começasse a falar:

           — Sejam bonzinhos, por favor. Comportem-se bem. Não façam barulho. Obedeçam as regras impostas por sua avó e nunca lhe ofereçam um motivo para castigá-los. Por favor, façam isso; por favor. Obriguem os gêmeos a obedecer e não os deixem chorar nem sentir muitas saudades de mim. Procurem transformar tudo num jogo; será bastante divertido. Façam o possível para distraí-los até que eu volte com mais brinquedos para todos. Voltarei amanhã e passarei cada minuto pensando em vocês, rezando por vocês, amando-os.

           Prometemos ser meninos de ouro, silenciosos como ratos, obedientes como anjos, seguindo à risca todas as regras que nos fossem impostas. Cuidaríamos dos gêmeos e eu faria qualquer coisa — literalmente qualquer coisa — para afastar a ansiedade dos olhos deles.

           — Boa-noite, mamãe — dissemos Christopher e eu, enquanto ela vacilava no corredor, com as mãos grandes e cruéis da avó segurando-lhe os ombros. — Não se preocupe conosco. Estaremos bem. Sabemos cuidar dos gêmeos e entreter-nos. Já não somos criancinhas pequenas.

           Essas palavras partiram de meu irmão.

           — Vocês me verão amanhã de manhã — declarou a avó antes de empurrar mamãe para o corredor e fechar a porta, trancando-a por fora.

           Crianças sozinhas, com medo de ficarem trancadas. E se começasse um incêndio? Fogo. Eu sempre pensaria em fogo e num modo de escaparmos. Se íamos ficar trancados ali, ninguém escutaria se gritássemos por socorro. Quem poderia escutar-nos, trancados naquele quarto remoto e proibido do segundo andar, onde só entravam nas últimas sextas-feiras dos meses?

           Graças a Deus, era uma providência apenas temporária; por uma noite. Então, no dia seguinte, mamãe convenceria o avô moribundo.

           E ficamos sozinhos. Trancados. Todas as luzes apagadas. Ao nosso redor e embaixo de nós, aquela casa imensa parecia um monstro que nos mantinha presos em seus dentes pontiagudos e afiados. Se nos movêssemos, murmurássemos, respirássemos fundo, seríamos engolidos e digeridos por ele.

           O que eu desejava, ali deitada, era dormir e não o profundo silêncio que se prolongava interminavelmente. Pela primeira vez em minha vida, não mergulhei em sonhos no mesmo instante em que minha cabeça encostou no travesseiro. Christopher quebrou o silêncio e começamos, aos sussurros, a discutir nossa situação.

           — Não pode ser tão ruim — disse ele baixinho, os olhos brilhando no escuro. — Aquela avó... ela não pode ser tão má como parece.

           — Quer dizer que você não a julgou uma velhinha bondosa e simpática?

           Ele soltou uma risadinha.

           — Sim, pode apostar que é bondosa... como uma sucuri.

           — Como ela é grande! Que altura acha que ela tem?

            — Bem, é difícil adivinhar. Talvez um metro e oitenta. E cem quilos.

           — Dois metros! E duzentos e cinqüenta quilos!

          — Cathy, você precisa aprender uma coisa: pare de exagerar! Pare de aumentar tanto as pequenas coisas! Ora, examine nossa situação com cuidado e entenda que isso é apenas um quarto de uma casa grande: não há motivo para temores. Temos que passar uma noite aqui antes que mamãe venha buscar-nos.

          — Christopher, você escutou o que a avó disse a respeito de um meio-tio? Entendeu o que ela quis dizer?

           — Não. Mas suponho que mamãe explicará tudo. Agora, reze e trate de dormir. Não é tudo que podemos fazer?

           Saltei da cama, ajoelhei-me e cruzei as mãos sob o queixo. Fechei os olhos com força e rezei, pedindo a Deus que ajudasse mamãe a ser encantadora e convincente como nunca.

           — E, Deus, não permita, por favor, que nosso avô seja tão malvado e detestável quanto sua esposa.

           Então, fatigada e afogada por tantas emoções, subi para a cama, abracei Carrie de encontro ao peito e, como desejava, mergulhei nos sonhos.

 

A casa de vovó

           O dia raiou por detrás das grossas cortinas fechadas, que fôramos proibidos de abrir. Christopher foi o primeiro a sentar-se na cama, espreguiçando-se e sorrindo para mim.

           — Olá, descabelada — cumprimentou.

           Seu cabelo estava tão despenteado como o meu; muito mais. Não sei por que motivo Deus deu a Christopher e Cory cabelos tão encaracolados, enquanto os meus e os de Carrie são apenas ondulados. E quando ele, como menino que era, esforçava-se para esticá-los com a escova, eu rezava para que os cachos lhe saltassem da cabeça e viessem cair na minha.

            Sentei-me na cama e com o olhar pelo quarto, que devia ter cerca de cinco metros por cinco. Grande, mas com duas camas de casal, uma cômoda maciça, uma grande penteadeira entre as duas janelas da frente, ladeada por duas poltronas estofadas, um guarda-roupas e mais uma mesa de mogno com quatro cadeiras parecia um aposento acanhado. Abarrotado de móveis. Entre as duas grandes camas de casal, havia outra mesinha com um abajur. No total, existiam quatro abajures no quarto. Por baixo da portentosa mobília escura, um desbotado tapete oriental com franja dourada. Outrora devia ter sido uma linda peça, agora velha e desbotada. As paredes eram forradas com papel creme e flocos brancos. As colchas eram douradas e feitas de um tecido pesado, como cetim forrado. Havia três quadros nas paredes. Oh, meu Deus, eram de tirar o fôlego! Demônios grotescos perseguiam pessoas despidas em cavernas subterrâneas cujo tom predominante era o vermelho. Monstros sobrenaturais devoravam criaturas indefesas, cujas pernas ainda se debatiam pendentes de enormes bocas que babavam, deixando à mostra dentes longos, brilhantes e afilados.

           — Você está olhando para o inferno, do modo como alguns o imaginam — informou meu irmão sabe-tudo. — Aposto dez contra um como nossa angelical avó pendurou pessoalmente essas gravuras nas paredes, só para ficarmos sabendo o que nos espera caso desobedeçamos suas regras. Parece-me trabalho de Goya — concluiu.

           Meu irmão sabia tudo. Além de ser médico, desejava também ser pintor. Desenhava excepcionalmente bem, usando aquarelas, tintas a óleo e tudo o mais. Sabia fazer quase tudo com perfeição, exceto azucrinar-se ou prestar pequenos favores a si próprio.

           Quando fiz menção de levantar-me e ir ao banheiro, Christopher pulou da cama e foi mais rápido que eu. Por que Carrie e eu ficávamos tão longe do banheiro? Sentei-me, impaciente, na beira da cama, balançando as pernas à espera de que ele saísse.

           Com muitos movimentos inquietos, Carrie e Cory acordaram simultaneamente. Sentaram-se, bocejando, como duas imagens refletidas, esfregando os olhos e olhando sonolentamente em volta. Então, Carrie declarou em tom bem decidido:

           — Não gosto daqui!

           Não era de espantar, pois Carrie já nascera obstinada. Antes mesmo de aprender a falar (e falara com apenas nove meses) sabia do que gostava e o que detestava.

            Para Carrie, nunca havia um meio termo: era depressão ou euforia. Tinha uma voz engraçadinha quando estava satisfeita, muito semelhante ao gorjear feliz de um pássaro matinal. O problema era que gorjeava o dia inteiro, a menos que estivesse dormindo. Carrie conversava com bonecas, xícaras, ursinhos e outros animais de brinquedo. Tudo que ficasse sentado sem responder servia de alvo para suas conversas. Depois de algum tempo, eu nem mais escutava sua tagarelice incessante; limitava-me a desligar os ouvidos e deixá-la falar interminavelmente.

           Cory era totalmente diferente. Enquanto Carrie não parava de falar, ele permanecia sentado, escutando com atenção. Lembro-me da Sra. Simpson dizer que Cory era um “rio de águas calmas e profundas”. Ainda não entendo o que ela quis dizer com isso, exceto que as pessoas tranqüilas e caladas emanam certa ilusão de mistério que nos mantêm a imaginar como elas são realmente sob a superfície.

           — Cathy — gorjeou minha irmãzinha com cara de bebê. — Você não me ouviu dizer que não gosto daqui?

           Ao escutar essas palavras, Cory pulou da outra cama e correu para a nossa, abraçando-se à irmã gêmea com os olhos muito abertos e assustados. No seu jeito solene, indagou:

           — Como viemos para cá?

           — De trem, ontem à noite. Não se lembram?

           — Não. Não me lembro.

           — E caminhamos através do mato sob o luar. Foi lindo.

           — Onde está o sol? Ainda é noite?

           O sol se escondia por detrás das cortinas, mas se eu ousasse dizer isso a Cory ele certamente desejaria abrir as cortinas e olhar pela janela. E após ver o que havia lá fora, desejaria sair do quarto. Fiquei sem saber o que dizer.

           Alguém no corredor mexeu na fechadura da porta, poupando-me a obrigação de responder. Nossa avó carregou para o interior do quarto uma enorme bandeja cheia de comida, coberta com uma ampla toalha branca. Num tom muito ríspido e severo, explicou que não podia passar o dia inteiro subindo e descendo escadas para carregar bandejas pesadas. Só uma vez por dia, Se ela viesse muitas vezes, os criados desconfiariam.

           — Creio que, de agora em diante, usarei uma cesta de piquenique — declarou ao colocar a bandeja em cima da mesinha. Virou-se para encarar-me como se eu fosse a encarregada das refeições. — Tem que fazer esta comida durar o dia inteiro. Divida-a em três refeições. O toucinho, ovos, torradas e o mingau de cereais são para o café da manhã. Os sanduíches e a sopa quente na pequena garrafa térmica são para o seu almoço. A galinha frita, salada de batatas e ervilhas são para o jantar. E podem comer as frutas como sobremesa. No final do dia, se ficarem quietos e obedientes o tempo todo, talvez eu traga sorvete com doces, ou um bolo. Balas, nunca. Não podemos permitir que peguem cáries nos dentes. Não poderão ir ao dentista antes de seu avô morrer.

           Christopher saíra do banheiro, inteiramente vestido, e também ficou imóvel, escutando e fitando aquela avó que falava com tanta facilidade sobre a morte do marido, sem qualquer demonstração de tristeza. Era como se falasse de algum peixe chinês dourado que em breve morreria num aquário.

            — Escovem os dentes após cada refeição — prosseguiu ela. — Mantenham sempre os cabelos bem escovados, os corpos bem lavados e inteiramente vestidos. Detesto crianças sujas e com nariz escorrendo.

           No momento em que ela disse isso, o nariz de Cory começou a escorrer. Disfarçadamente, usei um lenço de papel para limpá-lo. Pobre Cory, sofria de coriza alérgica a maior parte do tempo; e ela detestava crianças com o nariz correndo!

           — Tenham pudor no banheiro — disse a avó, olhando com ar particularmente feroz para mim e, depois, para Christopher, que agora se recostara com ar insolente na esquadria da porta do banheiro. — Meninos e meninas nunca podem usar o banheiro juntos.

           Senti o rosto queimar de raiva! Que tipo de crianças ela achava que éramos?

           A seguir, ouvimos pela primeira vez algo que nos seria repetido como uma frase num disco quebrado:

           — Não se esqueçam, crianças: Deus vê tudo! Deus verá o mal que cometerem às minhas costas! E Deus lhes aplicará o castigo, quando eu não souber!

           Tirou uma folha de papel do bolso do vestido, prosseguindo:

           — Aqui, nesse papel, fiz uma lista das normas que vocês devem seguir enquanto estiverem em minha casa.

           Colocou o papel em cima da mesa e disse-nos que devíamos ler e decorar as regras. Então, virou-se para sair... mas, não! Encaminhou-se ao armário embutido, que ainda não tínhamos examinado.

           — Crianças, além dessa porta, nos fundos do armário, existe uma porta ocultando a escada que leva ao sótão. Lá em cima, no sótão, há amplo espaço para vocês brincarem, correrem e fazerem uma quantidade razoável de barulho. Todavia, nunca devem subir a escada antes das dez horas. Antes das dez, as arrumadeiras estarão cumprindo suas tarefas no segundo andar e poderão escutar vocês correndo. Portanto, tenham sempre em mente que poderão ser ouvidos no andar de baixo se fizerem barulho demais. Depois das dez, as empregadas estão proibidas de usar o segundo andar da casa. Uma delas começou a roubar. Até que eu pegue a ladra em flagrante, fico sempre presente quando elas arrumam os quartos. Nessa casa, estabelecemos nossas próprias normas e executamos os castigos merecidos. Como eu disse ontem à noite, na última sexta-feira de cada mês vocês irão bem cedo para o sótão e ficarão muito quietos, sem falar ou arrastar os pés, estão entendendo?

            Olhou fixamente para um de nós de cada vez, sublinhando as palavras com os olhos duros e maus. Christopher e eu meneamos afirmativamente a cabeça. Os gêmeos limitaram-se a olhá-la numa estranha espécie de fascínio que raiava o pavor. Explicações subseqüentes nos informaram de que ela examinaria pessoalmente o quarto e o banheiro, a fim de verificar se não deixáramos vestígios de nossa presença naquela sexta-feira.

           Terminando de falar, retirou-se. E tornou a trancar a porta por fora.

           Então, pudemos respirar.

           Imbuída de sinistra determinação, dispus-me a transformar aquilo num jogo.

           — Christopher Doll, nomeio-o pai.

            Ele riu e depois replicou com sarcasmo:

           — O que mais? Como o homem e chefe dessa família, faço saber que de agora em diante serei um rei que deverá ser servido de todas as maneiras e modos, como um rei. Mulher, como minha subordinada e escrava, arrume a mesa, sirva a comida, apronte-se para seu amo e senhor.

           — Repita o que disse, irmão.

           — De agora em diante, não sou mais seu irmão, mas seu amo e senhor; você deverá cumprir minhas ordens, quaisquer que elas sejam.

            — E se eu não as cumprir, o que fará o meu amo e senhor?

            — O tom de sua voz não me agrada. Fale respeitosamente quando se dirigir a mim.

           — Ó-la-lá! No dia em que me dirigir respeitosamente a você, Christopher, será por você merecer meu respeito, e, para merecê-lo, precisará ter três metros e meio de altura, a lua cheia terá que surgir no céu ao meio-dia e uma tempestade de granizo terá que trazer um galante príncipe com polida armadura branca, montado num unicórnio e trazendo na ponta da lança a cabeça verde de um dragão!

           Acabando de falar e emitindo um grunhido de satisfação ante tal expressão de desalento, peguei a mãozinha de Carrie e puxei-a majestosamente para o banheiro, onde poderíamos levar o tempo que quiséssemos lavando o rosto, vestindo-nos e escovando os cabelos, ignorando o pobre Cory, que não parava de reclamar o uso das instalações sanitárias.

           — Por favor, Cathy! Deixe-me entrar! Prometo não olhar vocês!

           Eventualmente, o banheiro tornou-se enfadonho e saímos. Acredite quem quiser: Christopher vestira Cory dos pés à cabeça! E, ainda mais chocante: agora Cory nem tinha necessidade de ir ao banheiro!

           — Por quê? — perguntei. — Não ouse dizer que voltou para a cama e fez nela!

            Sem dizer uma palavra, Cory apontou para uma grande jarra azul sem flores dentro.

           Christopher, indolentemente recostado na cômoda, cruzou os braços sobre o peito, muito satisfeito consigo mesmo.

            — Isso lhe ensinará a não ignorar uma pessoa do sexo masculino em necessidades. Nós, homens, não somos como vocês, mulheres, que precisam sentar-se. Qualquer coisa nos serve, numa emergência.

           Antes de permitir que alguém iniciasse a refeição matinal, tive que esvaziar a jarra azul e lavá-la meticulosamente. Na verdade, não seria má idéia deixá-la ao lado da cama de Cory, para um caso de emergência.

           Sentamo-nos perto das janelas, à mesinha fabricada para servir como mesa de jogos. Os gêmeos sentaram-se em travesseiros dobrados, a fim de poderem enxergar a comida. Todos os quatro abajures estavam acesos. Não obstante, era deprimente termos que fazer a refeição matinal num ambiente que parecia mergulhado na obscuridade do crepúsculo vespertino.

           — Anime-se, cara amarrada — disse meu imprevisível irmão mais velho. — Eu estava apenas brincando. Não precisará ser minha escrava. Eu apenas adoro as preciosidades que você pronuncia quando provocada. Sou forçado a admitir que, em questão de verbosidade, vocês mulheres são excepcionalmente dotadas, da mesma forma que nós homens temos o dom especial de um instrumento perfeito para fazer nossas necessidades ao ar livre.

           E para provar que não pretendia comportar-se como um brutamontes dominador, ajudou-me a servir o leite, verificando, como eu, que levantar a pesada garrafa térmica de quatro litros e servir o líquido sem derramá-lo por todo lado não era um feito desprezível.

           Carrie lançou um simples olhar ao toucinho com ovos e começou a berrar:

           — Nós não gostamos de toucinho com ovos! Mingau frio! Gostamos de mingau frio! Não queremos comida quente, encaroçada, cheia de gordura! GOSTAMOS DE MINGAU FRIO! — chorava. — MINGAU COM PASSAS!

           — Agora, escutem-me bem — disse o novo pai em tamanho menor. — Vão comer o que for colocado Do prato à sua frente, sem reclamar, sem gritar, sem chorar, sem berrar! Estão ouvindo? E não é comida quente; é comida fria. Podem raspar e separar a gordura. É alimento sólido, de todo modo.

           Christopher engoliu num piscar de olhos a comida fria e gordurosa, além da torrada fria e sem manteiga. Os gêmeos, por estranhos motivos que jamais entenderei, fizeram a refeição sem um murmúrio de protesto. Senti a inquietadora e desagradável premonição de que nossa sorte com os gêmeos não poderia durar muito. Talvez estivessem agora impressionados com a firmeza do irmão mais velho. Mais tarde, porém...

           Terminada a refeição, empilhei cuidadosamente a louça na bandeja. Só então me lembrei de que havíamos esquecido de dar graças a Deus pela comida. Reagrupamo-nos depressa em volta da mesa, sentando-nos e baixando a cabeça, com as mãos cruzadas ao peito.

           — Senhor, perdoa-nos por termos comido sem pedir tua permissão. Por favor, não permitas que a avó tome conhecimento disso. Prometermos agir corretamente na próxima vez. Amém.

           Terminando a oração, entreguei a Christopher a lista de obrigações e proibições, cuidadosamente datilografada em letras maiúsculas, como se fôssemos estúpidos a ponto de não sabermos ler caligrafia manuscrita.

            E só assim os gêmeos, que na noite anterior estavam por demais sonolentos para entenderem nossa situação, tomaram pleno conhecimento do que nos esperava. Meu irmão começou pelo topo da lista de regras que não podiam ser violadas, ou...

           Primeiro, Christopher franziu os lábios numa boa imitação da detestável boca da velha avó. Era impossível acreditar que lábios tão bonitos como os dele pudessem parecer tão sinistros, mas, de algum modo, Christopher conseguia imitar a austeridade da velha.

           — Um — leu em voz fria e desprovida de expressão. — Vocês sempre estarão completamente vestidos.

            Rapaz! Ele conseguia dar ao termo “sempre” a conotação de impossível!

           — Dois: vocês jamais tomarão o nome do Senhor em vão e sempre darão graças antes de cada refeição. Se eu não estiver presente para verificar, podem ter certeza de que Ele os estará observando e escutando.

           — Três: vocês jamais abrirão as cortinas, nem para espiar pelas janelas.

           — Quatro: vocês jamais me dirigirão a palavra, a menos que eu fale antes com vocês.

            — Cinco: vocês manterão este quarto arrumado e em ordem, sempre com as camas feitas.

            — Seis: vocês jamais ficarão à-toa. Devotarão cinco horas por dia ao estudo e empregarão o restante do tempo em desenvolver suas habilidades de uma forma proveitosa. Se possuírem capacidades, habilidades ou talentos, procurarão aperfeiçoá-los e, caso não os possuam, lerão a Bíblia; se não souberem ler, ficarão sentados, olhando para a Bíblia e procurando absorver, por intermédio da pureza de seus pensamentos, o significado do Senhor e Seus caminhos.

           — Sete: todos os dias, vocês escovarão os dentes após o café da manhã e antes de se deitarem à noite.

           — Oito: se alguma vez eu pegar meninos e meninas usando o banheiro ao mesmo tempo, arrancarei, de forma impiedosa e total, a pele de suas costas.

           Meu coração virou uma cambalhota. Oh, Deus! Que tipo de avó tínhamos nós?

           — Nove: vocês, todos os quatro, serão sempre recatados e discretos em qualquer ocasião, em termos de atitude, palavras e pensamentos.

           — Dez: vocês jamais manusearão ou brincarão com as partes íntimas de seus corpos; nem olharão para elas através de espelhos; nem pensarão nelas, mesmo quando as estiverem lavando.

           Imperturbável, com um leve brilho engraçado no olhar, Christopher prosseguiu a leitura, imitando a avó com certa habilidade:

           — Onze: vocês jamais permitirão que pensamentos maus, pecaminosos ou obscenos lhes ocupem a mente. Manterão sempre seus pensamentos limpos, puros e afastados de assuntos capazes de corrompê-los moralmente.

           — Doze: vocês evitarão sempre olhar para membros do sexo oposto, a menos que seja absolutamente necessário.

           — Treze: os que saibam ler (espero que ao menos dois de vocês sejam capazes disso), alternar-se-ão em ler a Bíblia em voz alta, pelo menos uma página por dia, a fim de que as duas crianças menores se beneficiem com os ensinamentos do Senhor.

           — Quatorze: vocês tomarão banho diariamente, limpando sempre a banheira e mantendo o banheiro tão impecável como estava quando o encontraram.

           — Quinze: cada um de vocês, inclusive os gêmeos, aprenderá ao menos uma citação da Bíblia por dia. Quando eu assim exigir, vocês repetirão em voz alta tais citações, enquanto eu estiver acompanhando as passagens que vocês leram.

           — Dezesseis: vocês comerão sempre toda a comida que eu lhes levar, sem desperdiçar, jogar fora ou esconder uma única migalha. É um pecado desperdiçar boa comida quando tantas pessoas nesse mundo estão morrendo de fome.

           — Dezessete: vocês jamais andarão pelo quarto usando apenas roupas de dormir, mesmo que seja apenas para ir da cama para o banheiro ou deste para a cama. Usarão sempre algum tipo de roupão sobre as roupas de dormir ou sobre as roupas de baixo, caso surja necessidade de saírem do banheiro sem estarem totalmente vestidos, a fim de que outra criança possa entrar numa situação de emergência. Exijo que todas as pessoas que vivem sob este teto sejam recatadas e discretas, em tudo e por todas as formas.

           — Dezoito: vocês assumirão posição de “sentido” sempre que eu entrar no quarto, com os braços colados ao longo do corpo; não cerrarão os punhos em silenciosa demonstração de desafio; não cruzarão seus olhares com o meu; não procurarão demonstrar sinais de afeição para comigo; nem esperarão angariar minha amizade, piedade, amor ou compaixão. Tudo isso é impossível. Nem seu avô nem eu podemos permitir-nos sentir qualquer coisa por aquilo que não seja puro.

           Ohhhh! Aquelas últimas palavras feriam de verdade! Até mesmo Christopher fez uma pausa na leitura e uma expressão de desespero lhe passou pelo rosto, logo substituída por um sorriso quando seu olhar encontrou o meu. Estendeu a mão para fazer cócegas em Carrie, provocando-lhe uma risadinha, e torceu o nariz de Cory, que também riu.

           — Christopher! — exclamei, alarmada. — Pelo que a velha escreve, nossa mãe não tem esperanças de reconquistar o pai! Ele muito menos desejará olhar para nós! Por quê? O que fizemos? Não estávamos aqui no dia em que nossa mãe caiu em desgraça por ter feito algo tão horrível que levou o pai a deserdá-la! Nem mesmo tínhamos nascido! Por que nos detestam?

            — Fique calma — respondeu Chris, percorrendo com os olhos a longa lista. — Não leve nada disso a sério. Ela é biruta, piradinha. Ninguém esperto como nosso avô pode admitir as idéias da sua esposa. Do contrário, como conseguiria ganhar milhões de dólares?

           — Talvez ele não tenha ganho dinheiro. Pode tê-lo herdado.

           — Sim, mamãe nos disse que ele herdou algum dinheiro, mas multiplicou-o por mais de cem. Portanto, deve ter um pouquinho de miolo na cabeça. Não entendo como foi escolher a Rainha das Abelhas Loucas numa árvore maluca e casar-se com ela.

           Sorriu para mim e depois retomou a leitura das normas:

            — Dezenove: vocês jamais olharão para mim quando eu entrar no quarto para levar leite; nunca pensarão desrespeitosamente de mim ou de seu avô, pois Deus está presente e lerá seus pensamentos. Meu marido é um homem muito decidido e raras vezes alguém conseguiu vencê-lo. Dispõe de um exército de médicos, enfermeiras e técnicos para atenderem a todas as suas necessidades, bem como de máquinas que funcionam como órgãos humanos caso estes venham a falhar. Portanto, não julguem que um motivo tão reles quanto o coração seja capaz de derrotar um homem feito de aço.

           Puxa! Um homem de aço para completar o par de aparadores de livros com a esposa biruta! Os olhos dele também devem ser cinzentos. Duros, implacáveis, cor de aço, pois, como provaram papai e mamãe, coisas semelhantes se atraem.

            Christopher continuou a ler:

            — Vinte: vocês jamais pularão, gritarão ou falarão em voz alta, para evitar que os empregados no andar de baixo os ouçam. E sempre usarão sapatos com solas de borracha; nunca solas de couro.

           — Vinte e um: vocês jamais desperdiçarão papel higiênico e sabonete. Limparão a sujeira se entupirem o vaso sanitário e este transbordar. Se enguiçarem o vaso sanitário, ele assim ficará até vocês irem embora dessa casa; passarão a utilizar os urinóis que encontrarão no sótão e sua mãe poderá limpá-los para vocês.

           — Vinte e dois: os meninos lavarão as roupas na banheira, assim como as meninas. Sua mãe cuidará das roupas de cama, mesa e banho que vocês utilizarem. As colchas serão trocadas uma vez por semana e se uma criança sujar a colcha, mandarei que sua mãe providencie lençóis de borracha para vocês. A criança que não aprender a utilizar as instalações sanitárias será severamente espancada.

           Suspirei e passei o braço pelos ombros de Cory, que choramingou e agarrou-se a mim quando ouviu aquilo.

            — Shhhh! Não tenha medo. Ela nunca saberá o que você fizer. Nós lhe daremos cobertura. Nós o protegeremos. Daremos um jeito de encobrir seus erros, se você cometer algum.

            Chris leu:

           — Conclusão: não se trata de permissões ou proibições; é apenas uma advertência. Ela escreve: Podem presumir, com razão, que eu adicionarei novos itens à presente lista, de acordo com as necessidades que venham a surgir, pois sou muito observadora e nada me escapa. Não julguem que conseguirão iludir-me, zombar de mim ou fazer piadas às minhas custas, pois se assim pensarem o castigo que receberão será tão severo que suas peles e seus egos carregarão cicatrizes pelo resto de suas vidas, e seu orgulho tombará por terra, definitiva e permanentemente derrotado. E fiquem desde já cientes de que jamais pronunciarão na minha presença o nome de seu pai ou farão a menor referência a ele. Pessoalmente, recusar-me-ei a olhar para a criança que mais se parece com ele.

           Terminara.

           Lancei a Christopher um olhar interrogativo. Se ele estava interpretando como eu aquele último parágrafo, nosso pai fora, por algum motivo, o culpado de nossa mãe ter sido deserdada e agora abominada por nossos avós.

         O mesmo raciocínio levava à conclusão de que passaríamos um longo, longo tempo trancafiados ali.

           — Oh, Deus, oh, Deus, oh, Deus! Eu não suportaria uma semana!

           Não éramos demônios, mas, certamente, também não éramos anjos! E necessitávamos uns dos outros, para ver-nos, tocar-nos mutuamente.

           — Cathy — disse meu irmão com muita calma, um sorriso irônico retorcendo-lhe os lábios, enquanto os gêmeos nos observavam atentamente, prontos a imitar-nos no pânico, na alegria ou no desespero. — Somos tão feios e desprovidos de encantos que uma velha, que obviamente detesta nossa mãe e também nosso pai, por motivos que ignoro, seja capaz de resistir-nos para sempre? Ela é uma falsa, uma fingida. Nada disso deve ser levado a sério — concluiu, apontando para a lista que dobrara e jogara sobre a mesa, onde ela caíra como um aeroplano mal-construído.

           — Devemos acreditar numa velha assim, que deve ser demente e merece ser trancada num manicômio, ou devemos acreditar na mulher que nos ama, na mulher que conhecemos e em quem confiamos? Nossa mãe cuidará de nós. Ela sabe o que está fazendo; podem ter certeza disso.

           Sim, naturalmente Christopher tinha razão. Devíamos confiar e acreditar em mamãe, não naquela velha louca e ríspida com suas idéias idiotas, seus olhos de tiros de espingarda, sua boca retorcida de carne cortada a faca.

           Em pouco tempo o avô sucumbiria à beleza e encanto de nossa mãe; então, nós desceríamos a escada, trajando nossas melhores roupas e exibindo nossos melhores sorrisos. Ele nos avistaria, perceberia que não éramos feios nem estúpidos, mas bastante normais para que alguém gostasse um pouco, senão muito, de nós. E talvez, quem sabe? Talvez algum dia ele ainda encontrasse um pouquinho de amor para dar aos netos.

 

O sótão

           As dez horas da manhã chegaram e se foram.

           Guardamos o que restou de nossa ração diária de comida no local mais fresco que conseguimos encontrar no quarto: embaixo da cômoda. Os criados que faziam as camas e arrumavam os quartos do andar superior das outras alas já deviam ter descido para o térreo e não voltariam àquele andar durante mais vinte e quatro horas.

           Naturalmente, já estávamos cansados de nosso quarto e ansiosos por explorar os limites exteriores de nossos acanhados domínios. Christopher e eu pegamos, cada um, a mão de um dos gêmeos e nos encaminhamos silenciosamente para o armário embutido onde estavam nossas duas malas, com todas as nossas roupas ainda dentro delas. Esperaríamos para desfazer as bagagens.

            Quando tivéssemos alojamentos mais espaçosos e agradáveis, os criados desfariam as malas, como sempre acontece nos filmes, enquanto nós iríamos brincar ao ar livre. Na verdade, nem mesmo estaríamos naquele quarto quando os criados viessem limpá-lo e arrumá-lo na última sexta-feira do mês. A essa altura, já estaríamos livres.

           Com meu irmão mais velho à frente, segurando a mão de nosso irmão mais moço, a fim de evitar que tropeçasse ou caísse, segui nos calcanhares de Cory, com Carrie agarrada à minha mão, subindo os degraus escuros, estreitos e íngremes. As paredes da passagem eram tão estreitas que nossos ombros quase roçavam nelas.

            E lá estava!

           Eu já vira sótãos anteriormente. Quem não os vira? Mas nunca um sótão como aquele!

           Permanecemos pregados ao chão, olhando em volta, incrédulos. Enorme, obscuro, sujo, empoeirado, aquele sótão se estendia por quilômetros! As paredes opostas estavam tão distantes que pareciam difusas, fora de foco. O ar não era limpo, mas denso; tinha um cheiro próprio, um desagradável odor de podridão, de velhos objetos carcomidos, de coisas mortas e desenterradas; uma vez que estava enevoado de poeira, tudo dava a impressão de se mexer e tremer, em especial, nos cantos mais escuros.

           Quatro conjuntos de janelas de água-furtada davam para a fachada principal e quatro para os fundos. As partes laterais, ou o que conseguíamos avistar delas, não tinham janelas, mas existiam alas que não poderíamos enxergar a menos que ousássemos avançar e tivéssemos coragem de enfrentar o calor abafado que ali reinava.

           Como uma só pessoa, avançamos passo a passo, afastando-nos da escada. O assoalho era de largas pranchas de madeira, macias e apodrecidas. À medida que avançávamos cautelosamente, temerosos, pequenas criaturas corriam pelo chão, fugindo em todas as direções. No sótão estavam armazenados móveis suficientes para mobiliar várias casas. Mobília maciça e escura, urinóis, jarras em grandes bacias, cerca de vinte ou trinta conjuntos desse tipo. E havia também uma coisa redonda que parecia uma banheira com reforços de aço. Imaginem guardar uma banheira como aquela!

           Tudo que parecia ter valor estava protegido por capas sobre as quais a poeira se acumulara, dando-lhes uma coloração suja, acinzentada. E os objetos protegidos por capas causavam-me arrepios na espinha, pois eu via neles esquisitos e sobrenaturais fantasmas de móveis, sussurrando incessantemente. E não queira escutar o que diziam.

            Dúzias de velhos baús reforçados com pesadas cantoneiras e trincos de bronze enfileiravam-se ao longo de toda uma parede, cada um deles coberto de variadas etiquetas de viagem. Deveriam ter dado volta ao mundo mais de uma vez. Baús enormes, que poderiam servir de caixões funerários.

           Armários gigantescos guarneciam, numa fila silenciosa, a parede oposta. Quando fomos verificar, vimos que cada um deles estava cheio de roupas antigas. Encontramos uniformes do tempo da Guerra Civil, tanto da União como da Confederação, dando a Christopher e eu muito sobre o que especular, enquanto os gêmeos se encolhiam a nós e observavam tudo com os olhos muito abertos e amedrontados.

           — Christopher, acha que nossos ancestrais foram tão indecisos durante a Guerra Civil que nem sabiam de que lado estavam?

           — A Guerra entre os Estados soa melhor — replicou ele.

           — Acha que eram espiões?

           — Como posso saber?

           Segredos, segredos, por toda parte! Imaginei irmão lutando contra irmão; oh, como seria divertido descobrir! Se ao menos encontrássemos diários!

           — Olhe aqui — disse Christopher, puxando um temo masculino de lã cor de creme, com lapelas de veludo marrom e elegantes divisas de cetim marrom mais escuro.

            Sacudiu a roupa. Repugnantes criaturas aladas esvoaçaram em todas as direções, a despeito do fedor de naftalina.

           Soltei um grito, imitado por Carrie.

           — Não sejam tão bobas — advertiu Christopher, sem se deixar perturbar pelos insetos. — O que vocês viram são cupins, cupins inofensivos. Os buracos são feitos pelo roer das larvas.

           Para mim, não fazia diferença! Insetos eram insetos, larvas ou adultos. De todo modo, eu não sabia por que motivo aquela maldita roupa o interessara tanto. Por que precisávamos examinar a braguilha, a fim de sabermos se os homens daquela época usavam zíperes ou botões?

            — Puxa! — exclamou Christopher, finalmente perturbado. — Que dificuldade abrir esses botões todas as vezes!

           Foi essa a opinião de meu irmão.

           Na minha opinião, as pessoas de antigamente sabiam realmente como vestir-se! Como eu adoraria rodopiar numa blusa de babados, com uma saia rodada sobre pantalonas e dúzias de anáguas com armação de arame, toda enfeitada com pregas, rendas, bordados, esvoaçantes fitas de veludo ou cetim; sapatos de cetim; e, completando o fino traje, uma sombrinha de renda para proteger-me os cachos louros e a pele lisa, clara e sem máculas. Traria também um leque, para refrescar-me com gestos elegantes, e bateria as pálpebras com olhares sedutores. Oh, que beleza eu seria!

           Carrie, até então impressionada com o imenso sótão, soltou um berro que me arrancou das doces especulações, trazendo-me de volta ao presente, que eu tanto detestava.

           — Está quente aqui, Cathy!

           — Está, sim.

           — Detesto isso aqui, Cathy!

           Lancei um olhar a Cory, cujo rosto miúdo denotava perplexidade ao observar o ambiente, agarrando-se a mim. Peguei uma das mãos de cada um deles e deixei para trás a fascinação das velhas roupas, partindo em busca das outras curiosidades que o sótão tinha a oferecer-nos. E não eram poucas. Milhares de livros arrumados em pilhas, velhos cadernos de registros contábeis, escrivaninhas, dois pianos tipo armário, rádios, fonógrafos, caixas de papelão cheias com os atavios indesejáveis de gerações desaparecidas. Moldes e manequins de todos os tamanhos e formatos, gaiolas de pássaros e seus respectivos suportes, pás e enxadas, retratos emoldurados de pessoas com peculiar aparência pálida e doentia, que presumi serem nossos parentes já falecidos. Alguns tinham cabelos claros, outros escuros; todos possuíam olhos penetrantes, cruéis, duros, amargos, tristes, sonhadores, ansiosos, desesperançados, vazios, mas não encontrei um só olhar feliz. Alguns sorriam. Outros não. A maior parte não sorria. Senti-me particularmente atraída por uma bela jovem com cerca de dezoito anos; exibia um leve sorriso enigmático que me lembrava Mona Lisa, só que era mais bonita. O colo se projetava de um corpete pregueado, de forma deveras impressionante, fazendo Christopher apontar para um dos manequins e declarar enfaticamente:

           — Dela!

           Olhei. Chris prosseguiu com evidente admiração:

           — Ora, aquilo é o que se chama de “formas de ampulheta”. Está vendo a cintura fina, os quadris cheios e arredondados, o busto volumoso? Herde um corpo como aquele, Cathy, e ficará milionária!

           — Francamente! — repliquei, — repugnada. — Você não entende dessas coisas. Aquelas não são as formas naturais da mulher. Está usando um espartilho, apertado na cintura de modo a empurrar a maior parte da carne para cima, no busto, e para baixo, nos quadris. E é exatamente o motivo pelo qual as mulheres desmaiavam com tanta freqüência e precisavam cheirar sais.

           — Como é possível desmaiar e, ao mesmo tempo, pedir sais para cheirar? — indagou ele, sarcástico. — Além disso, é impossível apertar para cima o que não existe.

           Lançou um olhar à voluptuosa jovem e comentou:

           — Sabe, ela se parece um pouco com mamãe... Se usasse o cabelo diferente e roupas mais modernas... seria mamãe.

           Ah! Nossa mãe era por demais sensata para enfiar-se numa gaiola enfeitada com fitinhas e sofrer.

       — Contudo, essa moça é apenas bonita — concluiu Christopher. — Nossa mãe é linda!

            O silêncio naquele espaço imenso era tão profundo que eu podia ouvir as batidas do meu coração. Não obstante, seria divertido explorar cada baú; examinar o conteúdo de cada caixa; experimentar todas aquelas roupas apodrecidas, fedorentas, mas elegantes; e fingir, fingir, fingir! Mas estava tão quente! Tão abafado! Tão irrespirável!

            Meus pulmões já pareciam entupidos de poeira, sujeira e ar contaminado. Não apenas isso: teias de aranha bloqueavam os cantos e pendiam das vigas; criaturas rastejantes ou furtivas percorriam o chão ou subiam pelas paredes. Muito embora não os visse, pensei em ratos e camundongos. Certa vez, assistíramos a um filme na TV em que um homem enlouqueceu e enforcou-se numa viga do sótão. E, noutro filme, um homem enfiou a esposa num baú reforçado com cantoneiras e trinco de bronze, fechou a tampa e deixou-a morrer lá dentro. Olhei mais uma vez para os baús, tentando adivinhar que segredos guardariam eles que os criados ignoravam.

            — Desconcertante, o modo como meu irmão observava minhas reações. Virei-me, a fim de ocultar meus sentimentos, mas ele percebeu. Aproximou-se, tomou-me a mão e disse de maneira muito semelhante à de papai:

           — Tudo vai dar certo, Cathy. Deve haver explicações muito simples para tudo que nos parece tão complexo e misterioso.

           Voltei-me vagarosamente para encará-lo, surpresa por ele ter vindo reconfortar-me e não me provocar.

           — Por que supõe que a avó também nos deteste? Por que o avô nos detesta? O que nós fizemos?

           Ele sacudiu os ombros, tão intrigado quanto eu, e ainda segurando minha mão, girou comigo para olhar mais uma vez o sótão. Mesmo nossos olhos destreinados podiam perceber onde novas seções tinham sido adicionadas à velha casa. Grossas colunas verticais de madeira de seção quadrada dividiam o sótão em setores distintos. Tive a impressão de que, se procurássemos metodicamente, chegaríamos a um local confortável, onde nos seria possível respirar ar fresco.

           Os gêmeos começavam a tossir e espirrar. Fixavam em nós olhares magoados por obrigá-los a permanecer num lugar que detestavam.

           — Agora, escutem — disse Christopher, quando eles começaram realmente a reclamar. — Podemos abrir as janelas uns poucos centímetros, o bastante para deixar entrar um pouco de ar fresco sem que ninguém repare nas aberturas.

           Então, soltou minha mão e correu à nossa frente, pulando por sobre caixas, baús e móveis, exibindo-se, enquanto eu permanecia pregada ao chão, segurando as mãos dos dois menores, que continuavam apavorados por se encontrarem naquele lugar.

           — Venham ver o que encontrei! — chamou Christopher, de algum ponto onde não conseguíamos vê-lo, com a voz vibrante de excitação. — Esperem até ver minha descoberta!

           Corremos, ansiosos por vermos algo excitante, maravilhoso, divertido, mas tudo que Christopher tinha para mostrar-nos era uma sala: uma sala de verdade, com paredes de alvenaria. Nunca fora pintada, mas tinha forro no teto, ao invés de apenas vigas. Parecia uma sala de aulas, com cinco carteiras de alunos de frente para uma grande mesa. Três das paredes eram forradas com quadros-negros acima de baixas estantes cheias de livros desbotados e empoeirados. O perpétuo caçador de qualquer tipo de conhecimento que era meu irmão mais velho teve que inspecioná-los imediatamente, engatinhando pelo chão e lendo em voz alta os títulos. Livros eram o suficiente para lançá-lo numa tangente, sabendo que encontrara um meio de fugir às palavras.

           Fui atraída pelas pequenas carteiras dos alunos, onde estavam gravados nomes e datas como “Jonathan, 11 anos, 1864”! E “Adelaide, 9 anos, 1879”! Oh, como era antiga aquela casa! A essa altura, já existiria poeira em seus túmulos, mas os nomes haviam permanecido para fazer-nos saber que, outrora, eles também tinham sido mandados para o sótão. Contudo, por que os pais obrigariam seus filhos a estudarem num sótão? Tratava-se, certamente, de filhos queridos, ao contrário de nós, que éramos detestados pelos avós. Talvez, para eles as janelas fossem escancaradas. E para eles os criados trouxessem ao sótão carvão ou lenha para queimar nos dois fogões que víamos nos cantos.

           Um velho cavalo de balanço, sem um dos olhos cor-de-âmbar, mal se agüentava em equilíbrio e a cauda amarela embaraçada era digna de pena. Mas o velho e desmantelado cavalinho branco de pintas negras foi o bastante para arrancar de Cory um brado de deleite. Subiu de imediato para a descascada sela vermelha, gritando:

           — Galopa, cavalinho!

           E o cavalinho, que não era montado há tantos anos, começou a galopar, rangendo, estalando, protestando com cada junta enferrujada.

           — Também quero andar a cavalo! — berrou Carrie. — Cadê meu cavalo?

           Corri para colocar Carrie na garupa de Cory, de modo que ela pudesse agarrar-se à cintura do irmão, rir e bater com os calcanhares a fim de obrigar o dilapidado animal a galopar mais depressa. Foi um milagre o pobre cavalo não se desmontar em questão de segundos.

            Agora, tive oportunidade de examinar os livros que haviam encantado Christopher. Estiquei a mão a esmo e peguei um deles, sem ler o título. Virei rapidamente as páginas e legiões de insetos achatados, com pernas de centopéia, fugiram em todas as direções! Larguei o livro e depois fitei as páginas soltas que se tinham espalhado. Eu detestava insetos: aranhas sobretudo, depois vermes. E os que brotaram daquelas páginas pareciam consistir de uma mescla de ambos.

           Tal comportamento infantil e feminino foi o bastante para deixar Christopher histérico de riso. Quando se acalmou, classificou-me de melindrosa exagerada.

            Os gêmeos sofrearam seu fogoso corcel e fitaram-me perplexos. Fui obrigada a recobrar depressa a pose e até mesmo fingir que as mães não soltam gritinhos ao depararem com alguns insetos.

           — Cathy, você tem doze anos; já é tempo de crescer. Ninguém grita só por ver algumas traças nos livros. Os insetos são parte integrante da vida. Nós, seres humanos, somos os senhores que reinam, supremos, sobre o resto da natureza. Essa sala até que não é má: bastante espaço, boa quantidade de janelas grandes, muitos livros e até mesmo alguns brinquedos para os gêmeos.

           Sim. Uma velha carroça enferrujada, com um varal quebrado e sem uma o roda; ótimo! Uma velha motocicleta verde, quebrada também; sensacional! Não obstante, lá estava Christopher, olhando ao redor e expressando sua satisfação por haver encontrado uma sala onde as pessoas ocultavam os filhos de modo a não vê-los, não ouvi-los e talvez mesmo nem pensar neles. E meu irmão a considerava uma sala cheia de possibilidades...

           Naturalmente, alguém poderia limpar todos os cantos escuros onde se abrigavam os horripilantes insetos, e espargir tudo com repelente de modo que nenhum deles sobrasse para ser esmagado com os pés. Mas como esmagar a avó, ou o avô? Como transformar uma sala de sótão num paraíso onde as plantas desabrochassem em flor e não apenas uma prisão como o quarto no segundo andar?

          Corri para as janelas de água-furtada e trepei numa caixa para alcançar o elevado parapeito. Desejava desesperadamente ver o solo, medir a altura em que nos encontrávamos acima dele, calcular quantos ossos quebraríamos se saltássemos dali. Ansiava por avistar as árvores, o capim onde cresciam as flores, onde o sol brilhava, onde os pássaros voavam, onde havia vida. Todavia, só consegui ver o inclinado telhado de ardósia escura, que se estendia até bem longe da janela, bloqueando a vista do solo. Além do telhado, estavam os topos das árvores; além das árvores, as montanhas nos cercavam, parecendo pairar acima da névoa azulada.

           Christopher subiu para o parapeito, ficando ao meu lado. Seu ombro, roçando no meu, tremia como sua voz ao dizer baixinho:

           — Ainda podemos ver o céu, o sol e, à noite, veremos a lua e as estrelas, E as aves e aviões que passem voando. Podemos observá-los, como diversão, até o dia em que não tornarmos a subir aqui.

           Parou, aparentemente recordando a noite em que havíamos chegado; seria mesmo a noite anterior?

           — Aposto que se deixarmos uma janela aberta por algum tempo, uma coruja será capaz de entrar. Sempre desejei ter uma coruja como mascote.

            — Pelo amor de Deus! Por que haveria de querer um animal como aquele?

            — As corujas conseguem dar uma volta inteira com a cabeça. Você consegue?

          — Nem quero conseguir.

           — Mesmo que quisesse, não conseguiria.

           — Ora, nem você! — explodi, querendo obrigá-lo a encarar a realidade, como ele insistia em fazer comigo. — Nenhuma ave esperta como a coruja haveria de querer ficar trancada conosco por um minuto que fosse.

           — Quero uma pipa — declarou Carrie, esticando os braços a fim de ser içada a um local de onde também pudesse enxergar lá fora.

           — Quero um cachorrinho — disse Cory, antes de olhar pela janela. Então, esqueceu imediatamente as mascotes, pois começou a cantarolar: — Lá fora, lá fora, Cory quer ir lá fora! Cory quer brincar no jardim! Cory quer um balanço!

           Carrie não se demorou a imitá-lo. Também queria ir lá fora, para o jardim, brincar nos balanços. E, com sua voz forte, era muito mais persistente em seus desejos que o pobre Cory.

           Agora, ambos estavam quase empurrando Christopher e eu pela parede acima, exigindo ir lá fora, lá fora, lá fora!

           — Por que não podemos ir lá fora? — berrou Carrie, cerrando os punhos e esmurrando-me o peito. — Nós não gostamos daqui! Cadê mamãe? Cadê o sol? Para onde foram as flores? Por que faz tanto calor?

           — Ouçam! — interrompeu Christopher, agarrando-lhe os pulsos e salvando-me de ficar coberta de equimoses. — Pensem nesse lugar como se fosse lá fora. Não há motivo para não balançarem aqui, como num jardim. Cathy, vamos procurar por aí e ver se achamos alguma corda.

           Procuramos. E encontramos corda num velho baú que continha todos os tipos de quinquilharias. Era bastante óbvio que os Foxworth não jogavam coisa alguma fora: armazenavam o lixo no sótão. Talvez temessem ficar pobres algum dia e necessitar de uma hora para outra do que guardavam com tanta avareza.

           Meu irmão mais velho trabalhou com muita diligência na fabricação de balanços para Cory e Carrie, pois quando temos gêmeos, nunca devemos lhes dar apenas um exemplar de coisa alguma, mas sempre um par. Como assentos para os balanços, utilizamos tábuas arrancadas da tampa de um baú. Christopher encontrou uma lixa e aparou as farpas das arestas. Enquanto ele fazia tal serviço, dei busca no sótão até encontrar uma velha escada com alguns degraus faltando, fato que não impediu Christopher de alcançar rapidamente as elevadas vigas que sustentavam o telhado. Observei-o trepar com agilidade e movimentar-se lá em cima, rastejando com a maior naturalidade sobre as vigas quando cada gesto que fazia colocava-lhe a vida em perigo! Ficou em pé sobre uma viga para exibir seus dons de equilibrista. Balançou repentinamente, perdendo o equilíbrio! Reequilibrou-se, depressa, abrindo os braços, mas meu coração deu um salto. Fiquei apavorada de vê-lo correr tanto perigo, arriscando a vida só para exibir-se! Nem mesmo um adulto conseguiria obrigá-lo a descer de lá. Ordenei-lhe que voltasse para o chão, mas ele riu e passou a fazer manobras ainda mais arriscadas.

            Portanto, calei-me e fechei os olhos, procurando apagar as visões em que ele tombava no espaço, chocando-se no chão para quebrar os braços, as pernas e, ainda pior, a espinha e o pescoço! E ele não precisava fazer aquilo. Eu sabia que era corajoso. Já dera nós firmes nas cordas dos balanços; portanto, por que não descia logo e dava-me ao coração uma oportunidade de voltar a bater em ritmo normal?

           Christopher levara horas para fabricar os balanços e, agora, arriscava o pescoço para pendurá-los. Então, ele desceu e os gêmeos foram sentados nos balanços, movimentando-se para frente e para trás, revolvendo o ar empoeirado. Deram-se por satisfeitos durante... talvez... três minutos.

           Então, tudo recomeçou.

           Carrie berrou:

           — Tirem-me daqui! Não gosto desses balanços! Não gosto daqui! Esse lugar é ruim!

           Mal seus berros cessaram, foi a vez de Cory:

           — Lá fora, lá fora, queremos ir lá fora! Vamos para fora! Lá fora!

            E Carne passou a imitá-lo. Paciência... Eu precisava ter paciência, grande autocontrole, agir como adulta, não berrar só porque desejava tanto quanto eles ir lá para fora.

           — Agora, parem com esse barulho! — ralhou Christopher com os gêmeos. — Estamos jogando e todos os jogos têm suas regras. A regra principal desse jogo é permanecermos aqui dentro e ficarmos o mais quietos possível. Berrar e gritar é proibido.

            Suavizou um pouco o tom de voz ao olhar para os rostinhos lacrimosos e sujos que o fitavam.

            — Façam de conta que isso é o jardim sob um lindo céu azul, com as folhagens das árvores lá em cima e o sol brilhando no alto. E quando descermos para o andar abaixo, aquele quarto será nossa grande casa, com muitos quartos.

            Lançou-nos a todos um sorriso espirituoso, que nos desarmou.

           — Quando formos ricos como Rockefeller, nunca mais precisaremos voltar a esse sótão ou àquele quarto no andar de baixo. Viveremos como príncipes e princesas.

           — Acha que os Foxworth têm tanto dinheiro quanto os Rockefeller? — indaguei incrédula.

           Puxa vida! Poderíamos ter de tudo! Ainda assim... ainda assim, sentia-me terrivelmente perturbada... aquela avó, algo a respeito dela, o modo como nos tratava — como se não tivéssemos o direito de estar vivos. E as coisas horríveis que ela nos dissera: "Estão aqui, mas, na verdade, não existem".

           Vagamos pelo sótão, explorando indiferentemente isso e aquilo, até que o estômago de alguém roncou. Olhei meu relógio de pulso. Duas horas. Meu irmão mais velho lançou-me um olhar quando fitei os gêmeos. Devia ter sido o estômago de um deles, pois embora comessem tão pouco, seus aparelhos digestivos estavam automaticamente regulados para o café da manhã às sete horas, o almoço ao meio-dia, o jantar às cinco e um lanche às sete, antes de irem para a cama.

           — Hora do almoço — anunciei alegremente.

           Descemos a escada em fila indiana, voltando ao detestável quarto mal iluminado. Se ao menos pudéssemos abrir as cortinas para deixar entrar um pouco de luz e animação. Se ao menos...

           Eu poderia ter pensado em voz alta, pois Christopher teve percepção suficiente para dizer que mesmo que as cortinas fossem escancaradas o quarto era voltado para o norte e a luz do sol jamais penetraria nele.

           Oh, Deus! E aqueles limpadores de chaminés refletidos nos espelhos! Pareciam saídos das páginas de Mary Poppins; uma comparação que, feita em voz alta, trouxe sorrisos aos rostos sujos dos gêmeos. Adoravam ser comparados aos personagens encantados que viviam no seu tipo de livros ilustrados.

           Uma vez que, desde os primeiros dias de vida, tínhamos sido ensinados a jamais nos sentarmos à mesa para comer se não estivéssemos escrupulosa e imaculadamente limpos, e já que Deus mantinha pregado em nós Seu olhar penetrante, obedeceríamos todas as regras e procuraríamos agradá-lo. Ora, Deus não se sentiria realmente ofendido se puséssemos Carrie e Cory juntos na mesma banheira, pois tinham crescido juntos no mesmo útero, não é mesmo? Christopher encarregou-se de Cory e eu ensaboei e enxagüei Carrie. Em seguida, vesti-a, escovei-lhe os cabelos sedosos até brilharem e enrolei-os com os dedos até ficarem espiralados em belos cachos.

            Dando o toque final, atei-os com um laço de cetim verde. Por outro lado, também não faria mal a ninguém se Christopher conversasse comigo enquanto eu tomava banho. Não éramos adultos ainda. Portanto, não era o mesmo que “usarmos” juntos o banheiro. Papai e mamãe nada viam de errado na pele nua. Todavia, ao lavar o rosto, a lembrança da expressão severa e intransigente da avó surgiu-me aos olhos. Ela acharia errado.

            — Não podemos fazer isso novamente — disse eu a Christopher. — Aquela avó... ela poderia pegar-nos e, depois, pensar que foi maldade nossa.

           Ele meneou a cabeça, como se não fizesse muita diferença. Deve ter visto algo em minha expressão que o levou a avançar para a banheira, de modo a poder abraçar-me. Como adivinhou que eu estava necessitada de ombro no qual chorar? Foi o que fiz.

            — Cathy — sussurrou, enquanto eu soluçava com o rosto enterrado em seu ombro. — Pense sempre no futuro e em tudo que teremos quando ficarmos ricos. Sempre desejei ser podre de rico para viver como playboy durante algum tempo, pouco tempo, pois papai dizia que todos devem contribuir com algo útil e significativo para a humanidade, e eu gostaria de fazê-lo. Todavia, antes de ir pata a universidade e cursar a Faculdade de Medicina, eu podia divertir-me um pouco, até começar a levar as coisas realmente a sério.

           — Oh, percebo que você quer fazer tudo que um sujeito pobre não conseguiria. Bem, se é isso que deseja, vá em frente. Eu, porém, só quero um cavalo. Toda a minha vida sempre quis ter um pônei e nunca moramos numa casa com lugar suficiente para ter um cavalinho. Agora, estou crescida demais para um pônei, de modo que terá de ser um cavalo. E, naturalmente, durante todo o tempo eu estarei dando duro para ganhar fama e fortuna como a melhor bailarina, a grande prima bailarina do mundo inteiro. E você bem sabe que as bailarinas precisam comer muito, para não se transformarem num monte de pele e ossos, de modo que comerei cinco litros de sorvete por dia. E um dia comerei apenas queijo, todas as espécies existentes de queijo, espalhadas em bolachas. Depois, vou querer muitas, muitas roupas novas: um traje para cada dia do ano. Usarei cada um deles apenas uma vez e o darei de presente. Então, ficarei sentada, comendo queijo com bolachas, acompanhado de sorvete. E gastarei as banhas dançando.

           Ele me acariciava as costas molhadas. Quando virei o rosto para ver seu perfil, parecia sonhador, pensativo.

           — Ouça, Cathy: o curto período que seremos obrigados a passar trancados aqui não será tão ruim. Nem teremos tempo para nos sentirmos deprimidos, pois estaremos ocupados em imaginar maneiras de gastarmos todo o nosso dinheiro. Vamos pedir a mamãe que nos traga um jogo de xadrez. Sempre desejei aprender a jogar xadrez. E poderemos ler; ler é quase tão bom como fazer. Mamãe não permitirá que nos entediemos; trará novos jogos e inventará coisas para fazermos. Essa semana passará num piscar de olhos.

            Presenteou-me com um sorriso brilhante:

           — E, por favor, pare de me chamar de Christopher! Já não posso mais ser confundido com papai, de modo que daqui por diante serei apenas Chris. Está bem?

           — Está bem, Chris — respondi. — Mas a avó... o que você imagina que ela fará se nos pegar juntos no banheiro?

           — Um escândalo dos infernos... e só Deus sabe o que mais.

           Não obstante, quando saí da banheira e passei a enxugar-me, comecei a dizer a Chris que não espiasse. Contudo, ele não estava olhando para mim. Vendo-nos mutuamente despidos desde que nos lembrávamos, conhecíamos bem nossos corpos. E, na minha opinião, o meu era mais bonito: mais harmonioso.

           Todos usando roupas limpas e cheirando bem, sentamo-nos à mesa para comer nossos sanduíches de presunto e tomar a sopa de legumes morna que estava na garrafa térmica menor. E tínhamos mais leite para beber. Almoçar sem doces foi horrível.

           Chris não parava de consultar furtivamente o relógio. Poderia passar-se muito, muito tempo antes que nossa mãe aparecesse. Os gêmeos andavam inquietos de um lado para outro após terminarmos o almoço. Irritados, expressavam o descontentamento com as coisas desferindo-lhes pontapés e, a intervalos, lançando olhares carrancudos a Chris e eu. Chris encaminhou-se ao armário, tencionando subir para o sótão e ir à sala de aulas buscar livros. Fiz menção de acompanhá-lo.

           — Não! — gritou Carrie. — Não subam para o sótão! Não gosto de lá! Não gosto daqui! Não gosto de nada! Não gosto que você seja minha mamãe, Cathy! Cadê minha mamãe de verdade? Aonde ela foi? Diga a ela para voltar e nos deixar brincar na caixa de areia!

           Correu para a porta do corredor, girou a maçaneta e começou a guinchar como um animal aterrorizado quando a porta não se abriu. Bateu desvairadamente com os minúsculos punhos nas sólidas tábuas de carvalho, enquanto gritava por mamãe, pedindo-lhe que viesse buscá-la e levá-la para fora daquele quarto escuro!

           Corri para tomá-la nos braços, enquanto ela esperneava e continuava a gritar. Era como segurar uma gata do mato. Chris agarrou Cory, que correra em socorro da irmã gêmea. Tudo que pudemos fazer foi colocá-los numa das grandes camas, tirar da mala seus livros de estórias ilustradas e sugerir que cochilassem um pouco. Lacrimosos e revoltados, ambos nos fitavam raivosamente.

            — Já é de noite? — choramingou Carrie, rouca de tanto gritar inutilmente por liberdade e chamar uma mãe que não atendia. — Quero tanto a minha mamãe! Por que ela não vem?

           — Pedro Coelho — repliquei, pegando o livro de estórias preferido de Cory, com ilustrações coloridas em todas as páginas, fato que, por si, era suficiente para torná-lo um grande livro.

            Livros ruins não tinham ilustrações. Carrie gostava de Os Três Porquinhos, mas Chris era obrigado a lê-lo como papai, fazendo uma sonoplastia completa e imitando a voz grossa do lobo. E eu não sabia se ele conseguiria.

           — Por favor, deixem Chris ir ao sótão apanhar um livro para ele. Enquanto isso, eu lerei Pedro Coelho para vocês. Veremos se Pedro conseguirá entrar na horta da fazenda essa noite e comer uma porção de cenouras. Se vocês adormecerem enquanto eu estiver lendo, a estória terminará nos seus sonhos.

           Passaram-se talvez cinco minutos antes que os gêmeos adormecessem. Cory segurava o livro de encontro ao peito, a fim de facilitar o mais possível a passagem de Pedro Coelho para os seus sonhos. Uma sensação suave e cálida me dominou, fazendo-me o coração sangrar pelos pequeninos que realmente necessitavam de uma mãe adulta e não com apenas doze anos de idade. Eu não me sentia muito diferente do que quando tinha dez anos. Se a condição de mulher adulta estava logo além da esquina, ainda não aparecera para me fazer sentir madura e

capaz. Graças a Deus, nossa permanência ali seria curta, do contrário o que haveria eu de fazer se os gêmeos adoecessem? O que aconteceria se ocorresse um acidente, uma queda, um osso fraturado? Se eu batesse com força na porta trancada, a desprezível avó acorreria ao chamado? Não havia telefone no quarto. Se eu clamasse por socorro, quem ouviria minha voz daquela ala remota e proibida da casa?

           Enquanto eu tremia, ansiosa, Chris estava na sala de aulas do sótão, escolhendo uma pilha de livros empoeirados e cheios de traças para trazer ao quarto, a fim de termos o que ler. Trouxéramos um tabuleiro de damas e era isso que eu queria jogar, em vez de enfiar o nariz num livro velho.

           — Tome — disse ele, colocando-me nas mãos um velho livro e explicando que o limpara cuidadosamente de todas as traças que poderiam lançar-me novamente num estado de histeria. — Vamos deixar as damas para mais tarde, quando os gêmeos estiverem acordados. Você bem sabe como reclama quando perde.

           Sentou-se numa confortável poltrona, passando a perna por cima do braço estofado, e abriu Tom Sawyer. Deitei-me na única cama desocupada e comecei a ler a respeito do Rei Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. E, por incrível que pareça, naquele dia abriu-se para mim uma porta de cuja existência eu nem suspeitava; um mundo maravilhoso, onde florescia a cavalaria, existia amor romântico, e lindas donzelas eram colocadas em pedestais e adoradas a distância. Naquele dia, iniciou-se para mim um caso de amor com a Era Medieval; um amor que nunca mais teve fim. Afinal, não eram quase todos os balés baseados nos contos de fadas? E todos os contos de fadas não eram extraídos do folclore medieval?

           Eu era o tipo de criança que procurava fadas dançando nos gramados, que desejava acreditar em feiticeiras, magos, duendes, ogros, gigantes e encantamentos. Não queria ver toda a magia do mundo eliminada pela explicação científica. Naquela época, ainda não sabia que a mansão para onde nossa mãe nos trouxera era virtualmente uma fortaleza sombria, na qual imperavam uma bruxa e um ogro. Nem imaginava que os magos modernos eram capazes de tecer teias de dinheiro para criar feitiços...

           À medida que a luz do dia esmaecia por detrás das pesadas cortinas cerradas, sentamo-nos à nossa mesinha para fazer uma refeição de galinha frita (fria) e salada de batatas (morna) com ervilhas (frias e engorduradas). Pelo menos, Chris e eu comemos a maior parte de nossa comida, por fria e pouco apetitosa que fosse. Os gêmeos, porém, limitaram-se a beliscar, reclamando o tempo todo que a comida estava ruim. Tive a impressão de que se Carrie reclamasse menos Cory teria comido mais.

           Chris entregou-me uma laranja para descascar, dizendo:

           — Laranjas não são esquisitas, nem servidas quentes. Na verdade, as laranjas são sol liquefeito.

           Rapaz! Como ele sabia dizer as coisas certas na hora adequada! Agora, os gêmeos tinham algo que poderiam comer com prazer: sol liquefeito.

           Embora já fosse noite, não havia muita diferença em relação ao dia que passara. Acendemos os quatro abajures e mais uma pequenina lâmpada cor-de-rosa, de cabeceira, que mamãe trouxera porque os gêmeos não gostavam de dormir no escuro.

            Depois que os gêmeos tiraram o cochilo de costume, tornamos a vesti-los com as roupas limpas, escovamos-lhes os cabelos e lavamos-lhes os rostos, de modo que estavam lindos ao se sentarem no chão e começarem a montar as peças de um quebra-cabeças. Eram quebra-cabeças antigos e eles conheciam exatamente as peças que se encaixavam entre si; não se tratava propriamente de um jogo, mas de uma corrida para ver quem achava o maior número de peças no menor tempo possível. Logo a corrida para encaixar as peças cansou os gêmeos, de modo que fomos todos para uma das camas, onde Chris e eu contamos estórias que íamos inventando na hora. Isto também não demorou a cansar os gêmeos, embora meu irmão e eu fôssemos capazes de prosseguir, competindo para ver quem tinha mais imaginação. Em seguida, tiramos da mala os pequenos carros e caminhões, de modo que os gêmeos pudessem engatinhar pelo chão, empurrando veículos de Nova York a São Francisco por um itinerário que passava por debaixo das camas e por entre as pernas da mesa. Num piscar de olhos, estavam sujos outra vez. Quando cansamos daquilo, Chris sugeriu que jogássemos damas, enquanto os gêmeos podiam transportar cascas de laranja em seus caminhões e descarregá-las na Flórida, que era a cesta de lixo no canto da parede.

            — Pode jogar com as vermelhas — disse Chris em tom condescendente. — Não acredito, como você, que as pretas sejam peças perdedoras.

            Franzi a testa, amuando-me. Tinha a impressão de que se passara uma eternidade entre o amanhecer e o anoitecer; o bastante para mudar-me a ponto de jamais voltar a ser o que fora antes.

            — Não quero jogar damas! — declarei numa voz malcriada.

            Deixei-me cair numa das camas e desisti de lutar para impedir que minhas idéias vagassem por tortuosos becos de sombrios temores e suspeitas, de dúvidas insidiosas e incômodas, sempre a imaginar se mamãe nos contara toda a verdade. E, enquanto aguardávamos interminavelmente a chegada de mamãe, não houve calamidade que não me passasse pela mente. Principalmente incêndio. O sótão era povoado de fantasmas, monstros e outros espectros. Naquele quarto trancado, porém, a maior ameaça era o fogo. E o tempo custava a passar. Chris, sentado na poltrona com seu livro, não parava de consultar disfarçadamente o relógio. Os gêmeos engatinhavam até a Flórida, descarregavam as cascas de laranja e, de repente, ficaram sem saber para onde ir. Não havia oceanos a cruzar, pois não tínhamos trazido os barquinhos.

            Por que não trouxéramos os barcos?

           Lancei um olhar aos quadros que descreviam o inferno e todos os seus tormentos, admirando-me de quanto a avó era cruel e esperta. Por que tinha ela que pensar em tudo? Não era justo que Deus mantivesse o olhar vigilante pregado em quatro crianças, quando lá fora, no mundo, havia tanta gente fazendo pior. No lugar de Deus, com Sua perspectiva de visão total, eu não perderia tempo vigiando quatro crianças órfãs de pai trancafiadas num quarto; ocupar-me-ia em observar coisas muito mais interessantes. Além disso, papai estava no céu; ele faria Deus cuidar de nós e perdoar-nos alguns pequenos erros.

           Ignorando minha atitude de amuo e minhas objeções, Chris deixou o livro de lado e foi buscar a caixa de jogos, que continha apetrechos suficientes para quarenta jogos diversos.

           — O que há com você? — indagou ele, começando a arrumar as peças redondas, vermelhas e pretas, no tabuleiro de damas. — Por que está tão calada e temerosa? Tem medo de perder outra vez?

            Jogos! Eu não estava pensando em jogos. Relatei-lhe o que pensara sobre um incêndio e minha idéia de rasgar os lençóis em tiras para fazer uma espécie de escada de cordas que alcançasse o solo, como costumávamos ver nos filmes antigos. Então, se houvesse um incêndio (talvez naquela mesma noite, quem sabe?) teríamos um meio de chegar ao solo se quebrássemos uma janela e cada um atasse às costas um dos gêmeos.

           Eu nunca vira os olhos azuis de Chris demonstrarem tanto respeito e brilharem de admiração.

           — Ora, que idéia fantástica, Cathy! Sensacional! É exatamente o que faremos se houver um incêndio, o que não acontecerá. De qualquer maneira, é bom saber que você não se portará como uma menina chorona, afinal. O fato de pensar no futuro e fazer planos para contingências inesperadas demonstra que você está crescendo e isso me agrada.

           Puxa vida! Após doze anos de grande esforço, eu afinal conseguira captar seu respeito e aprovação, atingindo um objetivo que eu chegara a julgar impossível. Era gostoso saber que podíamos dar-nos bem trancados num local tão confinado. Os sorrisos que trocamos foram uma promessa de que, juntos, conseguiríamos sobreviver até o final da semana. Nossa recém-descoberta camaradagem trazia-nos alguma segurança, um pouco de felicidade à qual nos apegarmos, como se trocássemos um aperto de mãos.

           Então, o que encontramos foi destruído, arrasado. Nossa mãe entrou no quarto, andando de modo muito esquisito, com uma estranha expressão no rosto. Esperáramos tanto seu retorno e, de algum modo, estarmos novamente juntos dela não nos proporcionava a alegria prevista. Talvez fosse simplesmente a avó, que entrou logo atrás dela, quem matou nosso entusiasmo com seus olhos cinzentos, duros, implacáveis e maus...

           Ergui a mão aos lábios. Algo terrível acontecera. Eu sabia! Tinha certeza!

           Chris e eu estávamos sentados numa cama, jogando damas e, a intervalos, encarando-nos enquanto amarrotávamos distraidamente a colcha.

           Uma regra violada... Não, duas... Olharmo-nos era proibido, assim como amarrotarmos a colcha.

           E os gêmeos tinham peças de quebra-cabeças aqui e acolá, carrinhos e bolas de gude espalhados por toda parte. Portanto, o quarto não estava exatamente arrumado e em ordem.

           Três regras violadas.

           E meninos e meninas tinham usado juntos o banheiro.

           E talvez até mesmo tivéssemos violado outra regra, pois sempre pressentimos - não importa o que fizéssemos - que Deus e a avó mantinham entre si alguma comunicação secreta.

 

A ira divina

            Naquela primeira noite, mamãe entrou no nosso quarto com os lábios comprimidos e as juntas rígidas, como se o menor movimento lhe provocasse dores. O rosto bonito apresentava-se pálido e inchado; os olhos inflamados e vermelhos. Aos trinta e três anos de idade, fora humilhada por alguém a ponto de não poder encarar outras pessoas. Parecendo derrotada, desolada, humilhada, ficou em pé no centro do quarto, como uma criança brutalmente castigada. Impensadamente, os gêmeos correram para recebê-la, abraçando-lhe entusiasticamente as pernas, rindo e gritando, cheios de felicidade:

           — Mamãe! Mamãe! Onde você estava?

           Chris e eu nos aproximamos, abraçando-a com certa hesitação. Mamãe parecia ter permanecido ausente por mais de uma década e não apenas por um dia, mas representava nossa esperança, nossa realidade, nosso elo de ligação com o mundo lá fora.

           Será que a beijamos demais? Teriam nossos abraços ansiosos, ávidos, demorados, feito que ela franzisse a testa de dor, ou do peso das obrigações? Enquanto grossas lágrimas lhe escorriam vagarosamente pelo rosto pálido, julguei que ela chorasse apenas de piedade que sentia por nós. Quando nos sentamos, todos querendo ficar o mais perto dela possível, escolhemos uma das grandes camas de casal. Mamãe pegou os gêmeos no colo, de modo que Chris e eu pudéssemos ficar bem perto dela, um de cada lado. Examinou-nos, elogiou nossa higiene e sorriu ao ver a fita de cetim verde que eu colocara nos cabelos de Carrie, para combinar com as listras verdes de seu vestido. Quando falou, tinha a voz rouca, como se estivesse gripada ou tivesse engolido o famoso sapo da fábula:

           — Agora, falem com franqueza: como passaram o dia?

           Cheio de ressentimento, Cory franziu os lábios, demonstrando mudamente que seu dia não fora bom. Carrie traduziu em palavras o ressentimento que vinha reprimindo até então.

           — Cathy e Chris são malvados — berrou num tom que nada tinha de gorjeio. — Obrigaram-nos a ficar aqui dentro o dia inteiro. .Não gostamos daquele lugar grande e sujo que eles acham maravilhoso! Não é maravilhoso, mamãe!

           Perturbada, com aparência dolorida, mamãe tentou acalmar Carrie, dizendo aos gêmeos que as circunstâncias haviam mudado e agora eles teriam que obedecer os irmãos mais velhos, considerando-os como pais.

           — Não! Não! — protestou a menina ainda mais furiosa, com o rosto muito vermelho. — Detestamos isso aqui! Queremos o jardim; aqui é escuro! Mamãe, não queremos Chris e Cathy, queremos você! Leve-nos para casa!Tire-nos daqui!

           Carrie bateu em mamãe, em mim, em Chris, gritando que queria voltar para casa. Mamãe permaneceu imóvel, sem tentar defender-se, aparentemente surda e sem saber como controlar uma situação dominada por uma menina de cinco anos. Quanto mais mamãe ficava calada, mais Carrie berrava. Tapei os ouvidos com as mãos.

           — Corrine! — ordenou a avó. — Obrigue essa criança a calar-se imediatamente!

           Bastou-me olhar para o rosto da avó e compreendi, pela expressão fria como pedra, que ela sabia muito bem como obrigar Carrie a calar-se; e imediatamente. Todavia, sentado no outro joelho de mamãe estava um menino cujos olhos se arregalaram ao fitar a alta avó; alguém que lhe ameaçava a irmã gêmea. Esta pulara do colo de mamãe e se postara diante da avó, com os pequenos pés bem afastados e firmemente plantados no chão. Então, atirando a cabeça para trás, Carrie abriu a boquinha carnuda e deixou cair pra valer! Como uma estrela de ópera que reserva o melhor para o gran finale da ária, abriu o peito e seus berros anteriores pareceram simples miados de uma gatinha. Agora, Carrie era uma tigresa enfurecida! Oh, rapaz! Fiquei impressionada, estarrecida, apavorada com o que aconteceria em seguida.

           A avó agarrou Carrie pelos cabelos, levantando-a o suficiente para fazer Cory pular do colo de mamãe. Com a agilidade e rapidez de um gato, ele deu um bote contra a avó! Mais depressa que consegui piscar, mordeu-lhe a perna! Encolhi-me instintivamente, sabendo que agora estávamos numa enrascada. A avó lançou um rápido olhar a Cory e sacudiu-o longe como se fosse um cãozinho recém-nascido. Contudo, a dentada obrigou-a a largar os cabelos de Carrie. A menina caiu ao chão, levantou-se depressa e desferiu um pontapé, errando por pouco a perna da avó.

           Não querendo perder para a irmã gêmea, Cory levantou seu pequeno sapato branco, apontou com cuidado e chutou a canela da avó com toda a sua força.

           Nesse ínterim, Carrie correra para o canto, onde se encolheu e começou a gritar como um fanático com as roupas em chamas!

           Oh, foi mesmo uma cena digna de ser gravada e relembrada!

           Até o momento, Cory não dissera uma palavra nem produzira um som, agindo ao seu modo silencioso e decidido. Mas ninguém ia machucar ou ameaçar sua irmã gêmea, mesmo que esse “ninguém” tivesse quase um metro e oitenta de altura e pesasse aproximadamente cem quilos! E Cory era bem pequeno para a idade que tinha.

           Se, por um lado, Cory não gostava do que acontecia a Carrie nem da potencial ameaça contra ele próprio, por outro a avó também não gostava do que estava acontecendo a ela! Fitou enraivecida o rostinho desafiador e irado que a encarava. Esperou que Cory se encolhesse, mudasse a expressão do rosto, eliminasse o desafio dos olhos azuis; mas Cory permaneceu diante dela na mesma atitude decidida, ousada, provocando-a a fazer o pior. Os lábios finos e descoloridos da avó comprimiram-se numa tortuosa risca de lápis.  

          A mão dela se ergueu; uma mão enorme, pesada, faiscando de anéis de brilhante. Cory não se acovardou; sua única reação ante aquela ameaça tão óbvia foi tornar-se ainda mais carrancudo e cerrar os pequenos punhos, levantando-os na postura de um boxeador profissional pondo-se em guarda.

           Oh, meu Deus! Julgar-se-ia ele capaz de enfrentá-la e vencê-la?

            Ouvi mamãe chamar o nome de Cory. Tinha a voz tão estrangulada que não passava de um sussurro.

           Já decidida quanto à sua linha de ação, a avó desferiu contra o rostinho redondo, desafiador e infantil de Cory uma violenta bofetada, que o fez rodopiar!

            Cambaleando para trás, Cory caiu ao chão, mas levantou-se num átimo, girando à procura de um novo método de ataque contra aquela detestável e enorme montanha de carne. Sua indecisão foi digna de piedade. Ele vacilou, reconsiderou e, afinal, o bom senso prevaleceu sobre a raiva. Meio correndo, meio engatinhando, correu para o canto onde Carrie se encolhera e abraçou-a. Ficaram abraçados, de joelhos, os rostos unidos. Então Cory somou seus gritos aos da irmã gêmea!

           A meu lado, Chris resmungou algo que parecia uma prece.

           — Corrine, são seus filhos, faça-os calar a boca! Já!

           Todavia, era praticamente impossível conter os gêmeos depois que eles começavam. Argumentos jamais lhes chegavam aos ouvidos. Escutavam apenas o próprio terror e, como brinquedos mecânicos, berravam até a corda terminar, por pura exaustão física.

           Quando papai era vivo e sabia como lidar com tais situações, pegava-os como sacos de milho, um sob cada braço, e carregava-os para o quarto, repreendendo-os severamente e prometendo que, se não calassem a boca, ficariam trancados no quarto, sem televisão, sem brinquedos, sem coisa alguma. Sem uma platéia para presenciar-lhes o desafio e os berros impressionantes, os gritos raramente perduravam por mais que poucos minutos após a porta do quarto se fechar sobre os gêmeos. Então, eles saíam cabisbaixos, calados e obedientes, subiam ao colo de papai e murmuravam com grande humildade:

           — Desculpe.

           Mas papai estava morto. Não existia um quarto afastado onde eles pudessem gastar a corda. Aquele único quarto era nossa mansão e ali os gêmeos se encontravam cativos, diante de uma platéia dolorosamente eletrizada. Berraram até que os rostos mudaram do rosa para o vermelho, do vermelho para o magenta e, finalmente, para o púrpura. Em conseqüência de seus esforços conjuntos, os olhos azuis se vidraram, perdendo o foco. Oh, foi mesmo um grande espetáculo e uma grande tolice!

           Aparentemente, até o momento nossa avó ficara mesmerizada por tal demonstração. Então, o que a mantivera imóvel desfez o feitiço. Reviveu repentinamente.

            Com ar decidido, encaminhou-se ao canto onde estavam encolhidos os gêmeos. Curvou-se para levantar impiedosamente pelas golas as duas crianças que berravam. Mantendo-as afastadas de si com os braços esticados, enquanto elas esperneavam, gritavam, golpeavam com os braços e tentavam inutilmente atingir a velha que as atormentava, levou-as à nossa mamãe. Então, os gêmeos foram largados no chão como lixo indesejável. Numa voz firme e sonora, que dominava os berros das crianças, a avó declarou implacavelmente:

           — Se não pararem de gritar imediatamente, vou açoitá-los até arrancar-lhes sangue da carne!

           O tom desumano, somado ao frio poder daquela terrível ameaça, convenceu os gêmeos, e a mim, também, de que ela faria exatamente o que prometia. Perplexos e horrorizados, os gêmeos fitaram-na e, boquiabertos, engoliram os berros. Sabiam o que era sangue e conheciam a dor de um ferimento. Magoava-me vê-los tratados de forma tão brutal, como se a avó pouco se importasse de quebrar ossos frágeis ou ferir carnes tenras. De pé, ela nos dominava como uma torre. Então, girou e disse com aspereza à nossa mãe:

           — Corrine, não admitirei a repetição de uma cena tão revoltante! É óbvio que seus filhos foram mimados, estragados e necessitam desesperadamente de boas lições de disciplina e obediência. Nenhuma criança que morar nessa casa desobedecerá, gritará ou mostrará desafio. Ouça bem! Eles só falarão quando lhes dirigirem a palavra. Pularão para obedecer minhas ordens. Agora, filha, tire a blusa e mostre aos que desobedecem como o castigo é aplicado nessa casa!

           Enquanto ela falava, nossa mãe se pusera de pé. Empalideceu como cera, parecendo diminuir de tamanho em seus sapatos de salto alto.

           — Não! — balbuciou. — Isso não é necessário, agora... Veja, os gêmeos se calaram... estão obedecendo.

           O rosto da velha assumiu uma expressão muito dura.

           — Corrine, será bastante insensata para desobedecer? Quando eu lhe disser para fazer alguma coisa, obedeça sem discutir! E imediatamente! Veja os filhos que criou: crianças fracas, mimadas, desobedientes, todas quatro! Pensam que basta gritarem para conseguir o que desejam. Aqui, os gritos de nada lhes servirão. É melhor saberem que não existe piedade para os que violam as regras estabelecidas por mim. Você devia saber, Corrine. Alguma vez já lhe dei perdão? Mesmo antes de você nos trair, alguma vez permiti que sua carinha bonita e maneiras insinuantes detivessem o peso da minha mão? Oh, lembro-me de quando seu pai lhe queria bem e se voltava contra mim para defendê-la. Mas esses dias terminaram. Você provou a seu pai que é exatamente o que eu sempre declarei que você era: um monte de lixo, falsa e mentirosa!

           Voltou os olhos impiedosos para Chris e eu.

           — Sim, você e seu meio-tio fizeram filhos muito bonitos. Sou forçada a admitir isso, embora eles jamais devessem ter nascido. Por outro lado, parecem-me não passar de molengões inúteis e insignificantes!

           Seu olhar malvado examinou desdenhosamente nossa mãe, como se houvéssemos herdado dela todos esses defeitos imperdoáveis. Todavia, ela ainda não terminara.

           — Corrine, decididamente seus filhos precisam de uma lição objetiva. Quando observarem o que aconteceu à mãe deles, não mais terão dúvidas quanto ao que poderá acontecer-lhes.

          Vi minha mãe empertigar-se, enrijecendo a espinha, encarando bravamente a mulher grande e ossuda que era pelo menos dez centímetros mais alta que ela e muitos, muitos quilos mais pesada.

           Em voz trêmula, mamãe declarou:  

           — Se for cruel para meus filhos, eu os levarei dessa casa ainda hoje e você nunca mais tornará a vê-los! Nem a mim!

           Pronunciou as palavras em tom de desafio, erguendo o rosto lindo e encarando com alguma ferocidade a enorme mulher que era sua mãe!

           O desafio de mamãe foi recebido com um leve sorriso, tenso e frio, Não; não era um sorriso, mas uma expressão de zombaria.

           — Pois leve-os daqui agora! E vá com eles, Corrine! Pensa que me importo de nunca mais ver seus filhos ou de ouvir falar de você?

           Os olhos azuis de boneca de porcelana alemã de nossa mãe enfrentaram os olhos cinzentos de aço de nossa avó, enquanto nós, crianças, observávamos. Por dentro eu gritava de alegria. Mamãe nos levaria dali. Íamos embora! Adeus, quarto trancado! Adeus, sótão poeirento! Adeus, milhões de dólares que eu não quero!

           Todavia, enquanto eu aguardava, observando, que mamãe girasse nos calcanhares e fosse direto ao armário apanhar nossas malas, o que vi foi o desmoronar das coisas nobres e boas que existiam em nossa mãe. Esta baixou os olhos, derrotada, curvando lentamente a cabeça para ocultar a expressão de seu rosto.

           Abalada e trêmula, vi a zombaria da avó transformar-se num largo e cruel sorriso vitorioso. Mamãe! Mamãe! Mamãe! Minha alma clamava. Não permita que ela lhe faça isso!

           — Agora, Corrine, tire a blusa!

           Devagar, relutantemente, o rosto branco como a morte, mamãe virou-se e nos apresentou as costas. Um violento tremor percorreu-me a espinha. Ela ergueu rigidamente os braços. Com grande dificuldade, cada botão de sua blusa branca foi aberto. Cuidadosamente, ela baixou a blusa, expondo as costas.

           Não estava usando combinação ou soutien por baixo da blusa e foi fácil perceber o motivo. Escutei Chris prender repentinamente a respiração. Carrie e Cory também devem ter visto, pois seus choramingos chegaram-me aos ouvidos.

            Agora, compreendi por que mamãe, normalmente tão graciosa, entrara tão rígida no quarto, os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar.

           Suas costas estavam riscadas por compridas marcas vermelhas transversais, que desciam desde o pescoço e continuavam além do cós da saia azul. Algumas das marcas mais inchadas estavam cobertas de sangue coagulado. Praticamente não havia um centímetro quadrado de pele intacta entre as hediondas marcas de chibata.

           A avó, insensível, ignorando nossas sensibilidades e não dando importância à situação de nossa mãe, proclamou novas instruções:

           — Olhem bem e demoradamente, crianças. Saibam que essas marcas de chicote descem até os pés de sua mãe. Trinta e três chibatadas, uma por cada ano de sua vida. E quinze chibatadas extras por cada ano que ela viveu com seu pai, em pecado. Foi seu avô quem ordenou essa punição, mas fui eu quem manipulou o chicote. Os crimes de sua mãe são contra Deus e contra os princípios morais que regem a vida da sociedade. O casamento dela foi pecaminoso; um sacrilégio! Um casamento que constituiu uma abominação aos olhos do Senhor. E, como se isso não bastasse, eles tiveram que gerar filhos: quatro! Filhos gerados do Demônio! Filhos malditos desde o momento da concepção!

           Meus olhos esbugalhavam-se à vista daquelas marcas terríveis na carne tenra e pele sedosa que nosso pai manuseara com tanto amor e ternura. Naufraguei num rodamoinho de incerteza, sangrando por dentro, sem saber quem ou o que eu era, se tinha o direito de estar vivendo numa terra reservada pelo Senhor para os que nasceram com suas bênçãos e permissão. Perdêramos nosso pai, nossa casa, nossos amigos, nossas posses. Naquela noite, eu já não acreditava que Deus fosse o juiz perfeito. Portanto, sob certo aspecto, naquela noite eu também perdi Deus.

           Desejava ter nas mãos um chicote para açoitar aquela velha que arrancara impiedosamente tanto de nós. Olhei para os cortes nas costas de mamãe e jamais senti tanto ódio ou ira. Ódio não só pelo que ela fizera à nossa mãe, mas também pelas horríveis palavras que lhe brotavam da boca maldosa.

           Então a detestável velha me encarou, como se adivinhasse o que eu sentia. Devolvi-lhe desafiadoramente o olhar, esperando que ela pudesse ver como eu negava, daquele momento em diante, nossa relação de parentesco, não só com ela, mas também com aquele velho lá embaixo. Nunca mais eu me apiedaria dele.

           Talvez, naquele instante, meus olhos fossem apenas de vidro, revelando as engrenagens de vingança que me funcionavam no íntimo e que eu jurava um dia libertar. Talvez ela percebesse algo vingativo neles, pois suas palavras seguintes foram dirigidas exclusivamente a mim, embora ela usasse o termo “crianças”.

           — Como estão vendo, crianças, essa casa é capaz de ser inflexível e impiedosa ao lidar com aqueles que desobedecem e violam nossas normas. Daremos alimento, bebida e abrigo, mas nunca bondade, compreensão ou amor. É impossível sentir algo além de repulsa pelo que não é puro. Obedeçam minhas regras e não sentirão a mordida do meu chicote, nem serão privados de suas necessidades. Atrevam-se a desobedecer-me e logo aprenderão tudo o que sou capaz de lhes fazer e tudo de que lhes posso privar.

           Olhou sucessivamente para cada um de nós.

           Sim, ela quis destruir-nos naquela noite, quando éramos jovens, inocentes e confiantes, pois só havíamos conhecido o lado bom da vida. Queria secar-nos as almas, murchar-nos totalmente, talvez para nunca mais tornarmos a sentir orgulho.

           Mas não nos conhecia.

            Ninguém jamais conseguiria fazer-me odiar meu pai ou minha mãe! Ninguém jamais teria poder de vida ou morte sobre mim; não enquanto eu estivesse viva e pudesse lutar!

           Lancei um olhar de esguelha a Chris. Ele também fitava a velha. Seus olhos percorriam-na de alto a baixo, estudando os danos que ele poderia causar se a atacasse. Mas Chris tinha apenas quatorze anos. Precisaria tornar-se um homem adulto para derrotar uma mulher daquele tipo. Não obstante, suas mãos se cerraram em punhos, que ele se esforçava por manter colados ao corpo. A força que fazia para controlar-se comprimia-lhe os lábios numa linha tão fina e dura quanto os lábiosda avó. Só seus olhos permaneciam frios, duros como gelo azul.

           De todos nós, Chris era o que mais gostava de nossa mãe. Colocara-a no topo de um elevado pedestal de perfeição, considerando-a a mulher mais querida, mais carinhosa, mais compreensiva do mundo. Já me dissera que quando crescesse casar-se-ia com uma mulher como nossa mãe. Não obstante, agora só podia encarar ferozmente a velha, pois era jovem demais para fazer outra coisa.

           Nossa avó nos lançou um último olhar prolongado e desdenhoso. Então, num gesto violento, colocou a chave da porta na mão de mamãe e saiu do quarto.

           Uma indagação se elevava muito acima de todas as outras:

            Por quê? Por que fôramos levados àquela casa?

       Não era um porto seguro, não era um abrigo, não era um refúgio. Certamente, mamãe já deveria saber que seria assim e, não obstante, conduzira-nos até lá na calada da noite. Por quê?

 

A história de mamãe

            Depois que a avó saiu do quarto, ficamos sem saber o que fazer, dizer ou sentir, exceto deixar-nos dominar pelo sofrimento e amargura. Meu coração batia descompassadamente enquanto eu observava mamãe vestir a blusa, abotoá-la e enfiá-la pelo cós da saia antes de virar-se para exibir um sorriso trêmulo que tentava reconfortar-nos.

            É lastimável que eu visse naquele sorriso uma palha para agarrar no meio do oceano... Chris fitava o chão; seu tormento interior traduzia-se no movimento do pé que acompanhava diligentemente, com a ponta do sapato, os intrincados arabescos do tapete oriental.

           — Agora, escutem — disse mamãe com uma animação forçada. — Foi só uma vara de salgueiro e não doeu muito. Meu orgulho sofreu mais que a carne. É humilhante ser surrada como uma escrava, ou animal, pelos próprios pais. Mas não se preocupem com uma eventual repetição do fato, porque ela jamais ocorrerá. Foi só essa vez. Eu sofreria mais cem vezes essas marcas de espancamento para reviver os quinze anos de felicidade que tive com seu pai e com vocês. Embora me faça sangrar a alma, ela me obrigou a mostrar-lhes o que eles me fizeram...

           Sentou-se na cama e abriu os braços, de modo que pudéssemos todos aninharmo-nos ali e sermos reconfortados por ela. Tive o cuidado de não tornar a abraçá-la, a fim de evitar causar-lhe mais dor. Mamãe colocou os gêmeos no colo e bateu com as palmas das mãos na cama, para indicar que devíamos ficar bem perto dela. Então, começou a falar. Obviamente, o que ela relatou foi difícil dizer e igualmente difícil para nós escutar.

           — Quero que escutem com a máxima atenção e relembrem pelo resto da vida o que vou contar-lhes esta noite.

           Fez uma pausa, hesitando ao correr os olhos pelo quarto e fitar as paredes como se fossem transparentes e, através delas, conseguisse ver todos os cômodos da gigantesca casa.

           — Esta é uma casa estranha e as pessoas que nela moram são ainda mais estranhas; não os criados, mas meus pais. Eu deveria ter-lhes prevenido de que seus avós são fanáticos religiosos. Acreditar em Deus é uma boa coisa, é uma coisa certa. Mas, quando as pessoas reforçam essa crença com palavras meticulosamente rebuscadas no Velho Testamento e interpretadas do modo que lhes for mais conveniente, isso é hipocrisia. E é exatamente o que fazem meus pais. Meu pai está realmente moribundo, mas todos os domingos é levado à igreja; na cadeira de rodas, se estiver melhor, ou numa maca, se estiver pior. E paga o dizimo, um décimo de sua renda anual, que é considerável. Portanto, é natural que seja muito bem recebido. Ele pagou a construção da igreja, comprou os vitrais de todas as janelas, controla o pastor e os sermões, pois está pavimentando com ouro seu caminho para o céu e, caso São Pedro seja subornável, meu pai certamente já garantiu o direito de entrar. Naquela igreja, ele é tratado como um deus, ou como um santo vivo.

            — Depois — continuou — volta para casa, sentindo-se completamente justificado em fazer tudo o que deseje, pois já cumpriu seu dever, pagou a pavimentação do caminho e, portanto, está livre do inferno. Quando eu estava crescendo, com meus dois irmãos mais velhos, éramos literalmente forçados a ir à igreja. Mesmo se estivéssemos doentes a ponto de ficar de cama, tínhamos que ir. A religião era enfiada por nossas goelas abaixo. Seja bom, seja bom, seja bom, eis tudo o que ouvíamos, sem cessar. Prazeres cotidianos, normais, que eram bons para outras pessoas transformavam-se em pecados para nós. Meus irmãos e eu não tínhamos permissão para nadar, pois isso significaria usar roupas de banho e expor grande parte de nossos corpos. Éramos proibidos de jogar cartas ou quaisquer outros tipos de jogos que se prestassem a apostas. Não podíamos ir a bailes porque, para dançar, teríamos de aproximar o corpo de alguém pertencente ao sexo oposto. Recebíamos ordens para controlarmos nossos pensamentos, afastando-os da luxúria e assuntos pecaminosos, pois nossos pais afirmavam que os pensamentos são tão maus quanto os atos. Oh, eu poderia continuar durante horas relatando as proibições a que estávamos sujeitos, pois parece que tudo o que poderia ser divertido e excitante era pecado para eles. E há algo nos jovens que os leva a revoltar-se quando a vida é tornada estrita e controlada demais, fazendo-nos desejar acima de tudo as coisas que nos são proibidas. Nossos pais, ao procurarem obrigar seus três filhos a se portarem como anjos, ou santos, só conseguiram tornar-nos pior do que teríamos sido se criados de outra maneira.

           Arregalei os olhos, arrebatada pela narrativa. Todos nós estávamos assim. Até os gêmeos.

           — Então — prosseguiu mamãe — certo dia, em meio a essa situação, um belo jovem veio morar conosco. O pai dele era meu avô e morrera quando o rapaz tinha apenas três anos de idade. A mãe do rapaz chamava-se Alícia e tinha apenas dezesseis anos ao casar-se com meu avô, que, na época do casamento, tinha cinqüenta e cinco. Assim, quando deu à luz o menino, ela deveria ter vivido o bastante para vê-lo tornar-se um homem. Infelizmente, Alícia morreu muito jovem. O nome de meu avô era Garland Christopher Foxworth e, quando ele morreu, metade do espólio deveria caber a seu filho mais moço, então com três anos de idade. Mas Malcolm, meu pai, assumiu o controle do espólio do pai do menino, fazendo-se nomear curador, pois, naturalmente, uma criança de três anos não poderia ter voz ativa no assunto e Alícia não teve direito a voto que indicasse um curador para o filho. Meu pai, uma vez que ficou com a faca e o queijo nas mãos, deu um pontapé em Alícia e no menino. Estes fugiram para Richrmond, onde moravam os pais de Alícia. Esta residiu lá até casar-se pela segunda vez. Teve alguns anos de felicidade com um jovem que amava desde a infância e, então, este morreu também. Duas vezes casada, duas vezes viúva, com um filho pequeno e, agora, órfã de pai e mãe. Pouco depois, encontrou um caroço no seio e veio a falecer de câncer alguns anos mais tarde. Foi quando o filho dela, Garland Christopher Foxworth, o quarto do mesmo nome, veio morar aqui. Nunca o chamamos de outro nome senão Chris.

           Mamãe hesitou e apertou os braços em torno de Chris e eu.

           — Sabem de quem estou falando? Adivinharam quem era o tal jovem?

           Estremeci. O misterioso meio-tio. E sussurrei:

           — Papai... você está falando de papai.

           — Sim — confirmou ela, suspirando fundo.

           Debrucei-me para olhar meu irmão mais velho, que permanecia imóvel, uma expressão muito esquisita no rosto e olhos vidrados.

           Mamãe continuou:

           — Seu pai era meu meio-tio, mas apenas três anos e meio mais velho que eu. Lembro-me da primeira vez em que o vi. Eu sabia que ele viria, o meio-tio que eu jamais vira e de quem não ouvira falar muito, e desejava dar-lhe uma boa impressão, de modo que passei o dia inteiro me arrumando, fazendo permanente no cabelo, tomando banho e vestindo-me com as roupas que eu julgava serem as mais bonitas e elegantes que possuía. Eu tinha quatorze anos e essa é a idade em que as garotas começam a sentir o poder que exercem sobre os homens. Eu sabia ser o que a maioria dos rapazes considerava bonita e creio que, de certo modo, estava madura para me apaixonar. Seu pai tinha dezessete anos. Era final de primavera e ele estava de pé no centro do vestíbulo, com duas maletas perto dos sapatos surrados. Suas roupas pareciam muito usadas e apertadas para ele. Meus pais estavam com ele, mas o rapaz virava-se para todos os lados, olhando tudo, perplexo ante a demonstração de riqueza. Eu, por mim, jamais prestei muita atenção ao que me cercava. Estava ali e eu aceitava como parte de minha herança, até que casei e passei a levar uma vida de pobreza, mal me dei conta de que fora criada num lar excepcional. Compreendam: meu pai é um “colecionador”. Compra tudo que seja considerado uma obra de arte ímpar, não porque aprecie arte, mas porque gosta de possuir coisas. Gostaria de possuir tudo, se possível; especialmente coisas bonitas. Eu cheguei a pensar que fizesse parte de sua coleção de objets d'art... e ele pretendia guardar-me para si, não por prazer, mas a fim de evitar que os outros extraíssem prazer do que lhe pertencia.

           O rosto corado, os olhos fitando o espaço, aparentemente revivendo aquele dia excepcional em que um jovem meio-tio entrou em sua vida, minha mãe prosseguiu:

           — Seu pai veio até nós tão inocente, ingênuo, carinhoso e vulnerável, pois só conhecera afeição honesta, amor genuíno e uma grande pobreza material. Mudou-se de uma casa com quatro cômodos para essa mansão imensa e grandiosa, que lhe esbugalhou os olhos e lhe ofuscou as esperanças. Julgou ter tropeçado na boa sorte, num paraíso terrestre. Fitava meus pais com toda a gratidão a transbordar-lhe dos olhos. Ah! A pena que sinto pela sua gratidão ao ser recebido aqui dói-me no peito até hoje. Na verdade, metade do que ele estava vendo deveria pertencer-lhe, de pleno direito. Meus pais fizeram o possível para que ele se sentisse como um parente pobre. Avistei-o ali, parado à luz do sol e estaquei no meio da escada. Uma aura de luz prateada formava um halo em torno de seus cabelos dourados. Era lindo. Não apenas bonito, mas lindo. Existe uma diferença, vocês sabem. A verdadeira beleza se irradia de dentro para fora e ele a possuía.

           — Produzi algum leve ruído que o fez erguer a cabeça e seus olhos azuis se iluminaram; oh, eu bem me lembro de como se iluminaram! E, então, fomos apresentados e a luz de seus olhos se extinguiu. Eu era sua meia-sobrinha e, portanto, proibida. Ele ficou tão desapontado quanto eu. A partir daquele dia, eu na escada e ele no vestíbulo, acendeu-se entre nós uma centelha, uma minúscula brasa ardente que viria a crescer cada vez mais, até que nenhum de nós dois conseguiu continuar a negá-la. Não tenciono embaraçá-los com o relato de nosso romance — disse ela, meio sem jeito, quando mudei de posição e Chris virou a cabeça para esconder o rosto. — Basta dizer que, conosco, foi amor à primeira vista, pois isso às vezes acontece. Talvez ele estivesse no ponto para apaixonar-se, como eu estava, ou talvez fosse por estarmos ambos necessitados de alguém que nos desse carinho e afeto. A essa altura, ambos os meus irmãos mais velhos já tinham morrido em acidentes; eu tinha poucos amigos, pois ninguém “servia” para a filha de Malcolm Foxworth. Eu era a jóia, o deleite de meu pai; se algum dia um homem me tirasse dele, teria que ser por um preço muito elevado. Assim, seu pai e eu nos encontrávamos furtivamente nos jardins e ficávamos apenas sentados, conversando durante horas a fio; às vezes, ele me empurrava num balanço, ou eu o empurrava; às vezes, ficávamos em pé no balanço, impulsionando-o com as pernas, fitando-nos à medida que subíamos cada vez mais alto. Ele revelou todos os seus segredos e eu lhe revelei todos os meus. Em breve, tinha que acontecer: fomos obrigados a confessar que nos amávamos profundamente e, certo ou errado, precisávamos casar-nos. E tínhamos que fugir dessa casa e escapar ao domínio de meus pais antes que nos transformassem em duplicatas deles, pois era esse seu objetivo: tomar o pai de vocês e mudá-lo, fazendo-a pagar pelo mal que sua mãe cometera ao casar-se com um homem tão mais idoso que ela. Deram-lhe tudo; isso eu admito. Trataram-no como se fosse um filho, pois ele estava destinado a substituir os dois filhos homens que eles haviam perdido. Mandaram-no estudar na Universidade de Yale e ele foi um aluno brilhante. Sua inteligência foi herdada dele, Christopher. Formou-se em apenas três anos, mas nunca pôde utilizar o diploma conseguido, pois trazia o seu verdadeiro nome e tínhamos que ocultar do mundo nossa real identidade. A vida foi dura para nós durante os primeiros anos de casamento porque seu pai foi obrigado a negar sua formação universitária.

           Mamãe fez uma pausa. Olhou pensativamente para Chris e depois para mim. Abraçou os gêmeos e beijou-lhes as cabeças louras. Então, seu rosto vincou-se de preocupação e ela franziu a testa.

           — Cathy, Christopher, são vocês dois que eu espero que compreendam. Os gêmeos são pequenos demais para isso. Estão tentando entender o que houve entre seu pai e eu?

           Chris e eu anuímos com a cabeça.

           Mamãe agora falava minha língua: o idioma da música e do balé, do romance e do amor, de rostos belos em lugares bonitos. Os contos de fadas podem tornar-se realidade!

           Amor à primeira vista. Oh, isso aconteceria comigo e eu tinha certeza de que ele seria tão belo quanto papai, irradiando beleza, tocando-me o coração. A gente precisava amar, ou acabava murchando e morria.

           — Agora, ouçam com atenção — disse mamãe em voz baixa, que deu mais ênfase às suas palavras. — Estou aqui para fazer o possível a fim de que meu pai torne a gostar de mim; e que me perdoe por haver-me casado com seu meio-irmão. Entendam: tão logo completei dezoito anos, fugi com seu pai e, duas semanas mais tarde, voltamos casados e contamos a meus pais. Meu pai quase teve um ataque. Gritou, esbravejou, expulsou-nos dessa casa e disse-nos que nunca mais voltássemos! Por esse motivo, fui deserdada e seu pai também, pois acredito que meu pai tencionava deixar alguma coisa para ele; não muito, porém algum dinheiro. A parcela maior caberia a mim, porque minha mãe também possuía dinheiro de família. Ora, ouvindo-a falar, tem-se a impressão de que o motivo pelo qual meu pai se casou com ela foi o dinheiro que minha mãe herdou dos pais, embora na juventude ela fosse o que se chama de mulher vistosa; não uma grande beldade, mas possuía um porte régio, nobre e poderoso.

            Não, pensei amargamente com meus botões... aquela velha já nascera feia!

           — Portanto, estou aqui para fazer o possível para que meu pai goste novamente de mim e perdoe-me por haver-me casado Com meu meio-tio. A fim de atingir meu objetivo, serei obrigada a representar o papel de filha obediente, humilde, castigada e sinceramente arrependida. Às vezes, quando representamos um papel, assumimos o caráter do personagem. Portanto, desejo dizer agora, enquanto ainda sou completamente eu mesma, tudo o que vocês precisam ouvir. Por essa razão, estou relatando tudo e sendo tão franca quanto possível. Confesso que não possuo grande força de vontade e não sou do tipo que vence sozinha na vida. Só era forte quando tinha o apoio de seu pai e agora não conto mais com ele. E lá no térreo, num quartinho que se abre para uma gigantesca biblioteca, está um homem como vocês jamais conheceram. Já conhecem minha mãe e sabem um pouco como ela é; todavia, ainda não conhecem meu pai. E não quero que o conheçam antes que ele me perdoe e aceite o fato de que tenho quatro filhos gerados por seu meio-irmão. Será muito difícil convencê-lo a aceitar isso, mas não julgo que seja difícil demais, porque o pai de vocês morreu e não é fácil guardar ressentimentos contra quem já está morto e enterrado.

           Não sei por que sentia tanto medo.

           — Com a finalidade de induzir meu pai a incluir-me novamente em seu testamento, serei obrigada a fazer tudo que ele quiser.

           — O que poderia querer ele além de obediência e demonstração de respeito? — indagou Chris em tom muito sóbrio e adulto, como se compreendesse todos os detalhes da situação.

           Mamãe fitou-o demoradamente, cheia de carinhosa compaixão, erguendo a mão para acariciar-lhe o rosto juvenil. Chris parecia uma edição mais jovem e menor do marido que ela enterrara tão recentemente. Não é de espantar que ela tivesse os olhos cheios de lágrimas.

           — Não sei o que ele desejará, querido, mas farei tudo que for necessário. Ele tem que me incluir no testamento, de qualquer modo. Agora, porém, vamos esquecer tudo isso. Vi seus rostos enquanto eu falava. Não quero que acreditem nas palavras de minha mãe. O que seu pai e eu fizemos não foi imoral. Casamo-nos devidamente numa igreja, como tantos outros casais jovens que se amam. Nada houve de “pecaminoso” entre nós. E não são malvados, ou “gerados pelo Demônio”, seu pai diria que isso não passa de “baboseiras”.

 

            Minha mãe gostaria que vocês se julgassem indignos, como mais um meio de castigar-me, e a vocês também. Quem estabelece as normas da sociedade são as pessoas, não Deus. Em algumas partes do mundo, parentes mais próximos se casam entre si e têm filhos; o fato é considerado perfeitamente normal. Todavia, não tentarei justificar o que fizemos, pois somos obrigados a obedecer às normas da sociedade em que vivemos. Uma sociedade que acredita que homens e mulheres de parentesco próximo não se devem casar entre si, pois se o fizerem, podem gerar filhos mental ou fisicamente imperfeitos. Contudo, quem é perfeito?

           Então, mamãe riu, ao mesmo tempo em que chorava, abraçando-nos todos.

           — Seu avô profetizou que nossos filhos nasceriam com chifres, corcundas, rabos bifurcados e patas... Portou-se como um louco desvairado, tentando amaldiçoar-nos e deformar nossos filhos, porque desejava que fôssemos malditos! Alguma dessas profecias se realizou? — perguntou, parecendo um tanto descontrolada.

           — Não — prosseguiu, em resposta à própria pergunta. — Seu pai e eu nos preocupávamos um pouco quando eu estava grávida pela primeira vez. Ele andou a noite inteira pelos corredores da maternidade, quase até o amanhecer. Então, uma enfermeira anunciou-lhe que ele era pai de um menino perfeito sob todos os aspectos. Seu pai correu ao berçário, a fim de verificar pessoalmente. Vocês deveriam estar presentes para ver-lhe a felicidade estampada no rosto quando ele entrou em meu quarto sobraçando duas dúzias de rosas vermelhas; havia lágrimas em seus olhos quando ele me beijou. Seu pai tinha tanto orgulho de você, Christopher, tanto orgulho! Distribuiu entre os amigos seis caixas de charutos. Depois, saiu e foi comprar para você um bastão de beisebol feito de plástico, uma luva de jogador de beisebol e uma bola de futebol. Quando seus dentes começaram a nascer, você mordia o bastão e batia com ele no berço e na parede, a fim de avisar-nos que desejava sair do quarto.

           — Depois, veio Cathy. E você, querida, era linda e tão perfeita como seu irmão. E sabe como seu pai a amava. Para ele, você era a doce bailarina Cathy, que empolgaria as platéias do mundo inteiro ao pisar o palco. Lembra-se de sua primeira apresentação de balé, quando tinha apenas quatro anos? Usou sua primeira roupinha cor-de-rosa de bailarina e cometeu alguns erros, mas todos na platéia aplaudiram e você também bateu palmas, como se estivesse orgulhosa apesar dos enganos. E seu pai lhe enviou uma dúzia de rosas, lembra-se? Ele jamais via os erros cometidos por você. E sete anos depois que você chegou como uma bênção para nós, nasceram os gêmeos. Agora, tínhamos dois meninos e duas meninas, desafiamos o destino quatro vezes e vencemos! Portanto, se Deus quisesse castigar-nos, teve quatro oportunidades para dar-nos filhos deformados física ou mentalmente. Assim, jamais permitam que sua avó, ou qualquer outra pessoa, os convençam de que lhes falta alguma competência, de que são menos dignos, de que não são totalmente agradáveis aos olhos de Deus. Se houve algum pecado, foi cometido por seus pais, não por vocês. Na verdade, vocês são as quatro crianças que todos os nossos amigos em Gladstone invejavam e chamavam de “Bonecas de Dresden”. Bonecas de fina porcelana alemã. Lembrem-se sempre do que tinham em Gladstone, apeguem-se a isso. Continuem a acreditar em si mesmos, em mim e em seu pai. Apesar de ele ter morrido, continuem a amá-lo e respeitá-lo. Ele merece. Tentava tanto ser um bom pai para vocês. Não creio que existam muitos homens que se importem tanto com isso como ele se importava.

           Exibiu um sorriso brilhante através das lágrimas:

           — Agora, digam-me quem são vocês!

           — As “Bonecas de Dresden”! — bradamos Chris e eu.

            — Agora, vocês algum dia acreditarão no que sua avó diz a respeito de terem sido gerados pelo Demônio?

           — Não! Nunca, nunca!

            Apesar de tudo, eu precisaria ponderar cuidadosamente, mais tarde, metade do que as duas mulheres nos disseram; ponderar profundamente. Eu queria acreditar que Deus estava satisfeito conosco, acreditar em quem nós éramos e no que éramos. Meneei afirmativamente a cabeça, disse com meus botões, “diga que sim, como Chris disse; não seja como os gêmeos, que se limitam a fitar mamãe, sem entenderem nada. Não seja tão desconfiada; não!” Chris declarou na mais firme das vozes:

           — Sim, mamãe, acredito no que você diz porque se Deus desaprovasse seu casamento com nosso pai, certamente vocês seriam castigados através dos filhos. Não acredito que Deus tenha as vistas curtas e seja cheio de preconceitos, como são nossos avós. Como pode aquela velha dizer coisas tão horríveis, quando possui olhos e pode ver perfeitamente que não somos feios, deformados e, muito menos, retardados?

           O alívio, como um rio represado e repentinamente libertado, fez as lágrimas escorrerem pelo belo rosto de mamãe. Ela apertou Chris de encontro ao peito, beijando-lhe o topo da cabeça. Então, tomou o rosto dele entre as palmas das mãos, fitando-o no fundo dos olhos, ignorando o resto de nós.

           — Muito obrigada, meu filho, por compreender — disse num sussurro rouco. — Mais uma vez, muito obrigada por não condenar seus pais, não importa o que eles tenham feito.

           — Eu a amo, mamãe. Não importa o que fez, ou o que fizer, eu sempre compreenderei.

           — Sim, você compreenderá. Eu sei que você compreenderá — murmurou ela. Olhou, embaraçada, para mim. Eu me mantinha afastada, observando, pesando aquilo tudo, avaliando minha mãe. — O amor nem sempre chega quando queremos. Às vezes, ele simplesmente acontece, contrariando-nos a vontade.

           Baixou a cabeça, segurando as mãos de meu irmão, agarrando-se a elas.

           — Meu pai me adorava quando eu era jovem. Queria guardar-me eternamente para si mesmo. Desejava que eu jamais me casasse com alguém. Lembro-me de que, quando eu tinha apenas doze anos, ele me prometeu legar-me todo o seu espólio se eu permanecesse a seu lado até ele morrer de velhice.

           Repentinamente ergueu a cabeça e olhou para mim. Teria percebido alguma dúvida, alguma indagação de minha parte? Seus olhos se tornaram sombrios, profundos, escuros.

           — Juntem as mãos — ordenou com voz firme, empertigando os ombros e soltando uma das mãos de Chris.

           — Quero que repitam comigo: "Somos crianças perfeitas, mental, física e emocionalmente. Somos puras e obedientes a Deus em todos os aspectos. Temos tanto direito de viver, amar e desfrutar dos prazeres da vida quanto qualquer criança neste inundo".

           Sorriu para mim e estendeu o braço para segurar-me a mão livre. Então, chamou Carrie e Cory para que se juntassem à cadeia formada pela família.

           — Aqui em cima, vocês precisarão de alguns rituais que os sustentem no decorrer dos dias, algumas pedras onde possam firmar os pés. Deixem-me preparar alguns para usarem quando eu estiver afastada. Cathy, quando eu olhar para você, veja-me na sua idade. Ame-me, Cathy; confie em mim, por favor.

           Hesitantes, fizemos o que ela mandava e repetimos a litania que deveríamos recitar sempre que sentíssemos alguma dúvida. Quando terminamos, ela sorriu para nós, com aprovação e apoio.

            — Pronto! — exclamou, parecendo mais satisfeita. — Agora, não imaginem que passei o dia sem ter vocês quatro constantemente na cabeça. Pensei muito em nosso futuro e decidi que não podemos continuar a viver aqui, onde somos dominados por minha mãe e meu pai. Minha mãe é uma mulher cruel, sem coração, que por acaso me deu à luz, mas nunca me deu um pingo de amor, pois isto ela reservou aos dois filhos homens. Quando recebi a carta dela, fui o bastante tola para acreditar que ela me trataria de modo diferente de antes. Julguei que, a essa altura, ela tivesse se suavizado um pouco com a idade e que, depois de ver vocês e passar a conhecê-los, seria como todas as avós desse mundo e os acolheria de braços abertos, encantada e deleitada por ter novamente crianças a quem amar. Eu esperava tanto que bastasse sua avó ver vocês... — engasgou-se, quase chorando outra vez, como se nenhuma pessoa de bom senso pudesse deixar de amar seus filhos. — Posso entender que ela não goste de Christopher — prosseguiu, abraçando-o com força e beijando-lhe o rosto. — Ele é por demais parecido com o pai. E sei, Cathy, que ela é capaz de olhar para você e me ver. Nunca gostou de mim, não conheço exatamente o motivo, mas talvez papai gostasse demais de mim e ela sentisse ciúmes. Todavia, jamais me passou pela cabeça que ela poderia ser cruel para com qualquer de vocês e, muito menos, Com meus queridos gêmeos. Obriguei-me a acreditar que as pessoas mudam com a idade e começam a reconhecer seus erros, mas agora compreendo o quanto me enganei.

            Enxugou as lágrimas.

           — Por isso, amanhã de manhã, bem cedo, irei à cidade grande mais próxima para matricular-me numa escola que me ensine a trabalhar como secretária. Aprenderei datilografia, taquigrafia, contabilidade, serviço de arquivo, e tudo mais que uma boa secretária precisa saber. Eu aprenderei. Quando souber fazer tudo isso, vou arranjar um bom emprego, que pague um salário adequado. Então, terei dinheiro suficiente para tirar vocês todos daqui. Encontraremos um apartamento em algum lugar aqui perto, de modo que eu ainda possa visitar meu pai. Em breve, estaremos todos vivendo sob o mesmo teto, o nosso teto, e voltaremos a ser uma família de verdade.

           — Oh, mamãe! — exclamou Chris, cheio de alegria. — Eu tinha certeza de que você encontraria uma solução! Sabia que não nos deixaria trancados nesse quarto.

           Debruçou-se para lançar-me um olhar de confiante satisfação, como se soubesse desde o início que sua amada mãe resolveria todos os problemas, por mais complicados que fossem.

           — Confiem em mim — disse mamãe, agora sorridente e segura de si. Mais uma vez, teve beijos para Chris.

           Desejei poder, de algum modo, ser igual a meu irmão Chris e tomar tudo o que nossa mãe dizia como uma promessa sagrada. Contudo, meus pensamentos traiçoeiros voltaram-se demoradamente para as palavras que ela própria dissera a respeito de não ter força de vontade e ser incapaz de começar tudo sem a presença de papai para dar-lhe apoio. Desanimada, fiz minha pergunta:

           — Quanto tempo demora para se aprender a ser uma boa secretária?

           Depressa, depressa demais, na minha opinião, ela replicou:

           — Só um pouquinho, Cathy. Mais ou menos um mês. Contudo, se demorar um pouco mais que isso, vocês devem ter paciência e não esquecer que eu não sou muito esperta nesse tipo de coisas. Na realidade, não é por minha culpa — acrescentou apressadamente, como se pudesse perceber que eu a culpava por ser incapaz. — Quando uma pessoa nasce rica e é educada em escolas tipo internato, reservadas apenas às filhas de gente extremamente rica e poderosa, para depois ser enviada a uma escola feminina de aperfeiçoamento, aprende as regras de polidez da etiqueta social, assuntos acadêmicos, mas, sobretudo, é preparada para o carrossel de namoros, festas de debutantes e, também, para receber em casa e ser uma anfitrioa perfeita. Nunca me ensinaram nada de prático. Jamais julguei que iria necessitar de habilidades comerciais. Pensei que sempre teria um marido para cuidar de mim e, se não arranjasse marido, meu pai se encarregaria disso. Ademais, apaixonei-me por seu pai e sempre o amei. Sabia que nos casaríamos quando eu completasse dezoito anos de idade.

           Naquele minuto, ela me dava uma boa lição: eu jamais me tornaria tão dependente de um homem a ponto de não conseguir sobreviver sozinha no mundo, por mais cruel que fosse o golpe desferido contra mim pela vida! Mas, acima de tudo, sentia-me mesquinha, raivosa, envergonhada, culpada, por achar que ela era a culpada de tudo aquilo, quando, na verdade, como poderia prever o que o futuro lhe reservava?

           — Tenho que ir, agora — disse ela, levantando-se para sair, enquanto os gêmeos explodiam em lágrimas.

           — Mamãe, não vá embora! Não nos abandone! — gritavam, envolvendo as pernas dela com os bracinhos miúdos.

           — Voltarei amanhã de manhã, antes de sair para a tal escola. No duro, Cathy — disse, fitando-me nos olhos. — Prometo fazer o melhor possível. Quero tirar vocês desse lugar tanto quanto vocês desejam sair dele.

           Chegando à porta, comentou que fora bom nós termos visto as costas, pois agora ela sabia o quanto impiedosa era sua mãe.

           — Pelo amor de Deus, obedeçam as regras estabelecidas por ela! Sejam recatados no banheiro. Entendam o quanto ela é capaz de ser desumana não apenas comigo, mas com qualquer pessoa que me pertença.

           Abriu os braços para todos nós e corremos para abraçá-la, esquecendo-nos das costas chicoteadas.

           — Eu amo tanto vocês todos! — soluçou minha mãe. — Apeguem-se a isso. Juro que me aplicarei como nunca fiz em minha vida. Sinto-me tão prisioneira quanto vocês, tão encurralada pelas circunstâncias, sob certo aspecto. Deitem-se esta noite com pensamentos felizes, sabendo que por pior que as coisas possam parecer, nunca são tão ruins. Vocês sabem que é fácil gostar de mim e, em outros tempos, meu pai me amava muito. Portanto, isso facilitará que ele volte a gostar de mim, não é mesmo?

           Sim, era mesmo. Amar muito alguém num período da vida torna as pessoas vulneráveis a um novo ataque de amor. Eu sabia; já me apaixonara seis vezes.

           — E enquanto estiverem deitados no escuro desse quarto, lembrem-se de que amanhã, após matricular-me na escola, vou comprar novos brinquedos e jogos para tornar as horas de vocês mais ocupadas e agradáveis aqui dentro. E não demorará muito até que meu pai me ame outra vez e me perdoe tudo.

           — Mamãe — perguntei. — Tem dinheiro suficiente para comprar coisas para nós?

           — Tenho, sim — respondeu ela, apressada. — Tenho o bastante. Além disso, meus pais são orgulhosos. Não permitiriam que seus amigos e vizinhos me vissem mal vestida ou desarrumada. Cuidarão de mim e de vocês também. Vocês verão. E economizarei cada minuto de folga e cada dólar de sobra, guardando-os e fazendo planos para o dia em que pudermos ter a liberdade de vivemos em nosso próprio lar, como antes, e voltarmos a ser uma família.

           Foram suas últimas palavras antes de soprar-nos beijos e sair, trancando a porta por fora.

           Nossa segunda noite por detrás de uma porta trancada.

           Agora, sabíamos muitas coisas mais... talvez demais.

           Depois que mamãe saiu, Chris e eu acomodamos os gêmeos e nos deitamos. Ele sorriu para mim ao curvar o corpo de encontro às costas de Cory e seus olhos já estavam sonolentos. Fechando-os, murmurou:

           — Boa-noite, Cathy. Proteja-se das pulgas.

           Como Christopher fizera com Cory, ajustei o corpo às pequeninas costas cálidas de Carrie, que se ajeitou em meus braços numa posição côncava de colher, com meu rosto colado a seus cabelos gostosos, macios.

           Sentindo-me inquieta, pouco depois eu estava deitada de costas, olhando para cima e sentindo o grande silêncio da enorme casa que se acomodou e dormiu. Não escutei um sussurro de movimento na imensa mansão; nem os toques agudos do telefone; nem um aparelho doméstico sendo ligado e desligado na cozinha; nem mesmo um cão latindo lá fora, ou um carro passando para lançar um facho de luz capaz de penetrar as pesadas cortinas.

           Pensamentos falsos vinham-me à mente para dizer-me que não éramos desejados, estávamos trancados... gerados pelo demônio. Tais pensamentos insistiam em vagar-me pela cabeça, fazendo-me sofrer. Era preciso encontrar um meio de livrar-me deles. Mamãe nos amava, desejava-nos, esforçar-se-ia por ser uma ótima secretária para um homem de sorte. Faria isso. Eu tinha certeza. Ela resistiria aos meios que seus pais empregavam para afastá-la de nós. Ela venceria, sem dúvida.

           “Deus” — rezei — “ajude mamãe a aprender depressa, por favor!”

           Fazia um calor horrível naquele quarto abafado. Lá fora eu podia escutar o vento farfalhando as folhas, mas até nós não chegava um sopro de ar suficiente para refrescar-nos; apenas o bastante para insinuar que lá fora estava fresco e ali dentro também estaria se ao menos pudéssemos abrir as janelas. Suspirei, pensativa, ansiando por ar fresco. Mamãe não nos dissera que as noites nas montanhas eram sempre frias, mesmo no verão? Estávamos em pleno verão e, com as janelas fechadas, fazia calor.

           Na semi-obscuridade rosada, Chris murmurou meu nome.

           — Em que está pensando?

           — No vento. Parece o uivo de um lobo.

           — Eu sabia que você estaria pensando em algo bem alegre. Puxa! Parece até a encarregada das idéias deprimentes.

           — Pois tenho uma outra ótima para você: ventos sussurrantes, como almas penadas tentando dizer-nos alguma coisa.

           Ele soltou um gemido.

           — Agora, escute aqui, Catherine Boneca (o nome artístico que eu pretendia adotar algum dia), ordeno-lhe que não fique aí deitada a imaginar pensamentos tão sinistros. Encararemos cada hora como esta que se apresentar, jamais pensando na hora que virá depois e, empregando esse método, será muito mais fácil que pensar em termos de dias e semanas. Pense em música, em dançar, em cantar. Já não ouvi dizer que você nunca se sente triste quando a música lhe dança na cabeça?

           — Em que pensará você?

           — Se estivesse menos sonolento, seria capaz de produzir dez volumes de pensamentos, mas, agora, estou cansado demais para responder. E, de todo modo, você conhece meu objetivo. No momento, pensarei apenas nos jogos e brincadeiras que teremos para fazer — disse ele antes de bocejar, espreguiçar-se e sorrir novamente para mim. — Que achou de toda aquela conversa a respeito de meios-tios se casarem com meias-sobrinhas e terem filhos com chifres, rabos e patas?

           — Na qualidade de quem busca toda a espécie de conhecimento e como futuro médico, acha que seja médica ou cientificamente possível?

           — Não! — respondeu ele, como se fosse profundo conhecedor do assunto. — Se assim fosse, o mundo pulularia de monstros parecidos com o Demônio. E, falando com franqueza, eu gostaria de ver um demônio, ao menos uma vez.

           — Eu os vejo o tempo todo, em meus sonhos.

           — Ah! — zombou ele. — Você e seus sonhos loucos. A propósito, os gêmeos foram formidáveis, hem? Na verdade, senti-me bastante orgulhoso deles quando enfrentaram tão desafiadoramente aquela gigantesca avó. Puxa, eles são corajosos! Então tive medo de que ela fizesse alguma coisa realmente horrível.

           — E o que ela fez não foi horrível? Levantou Carrie pelos cabelos. Deve ter doído. E deu uma bofetada em Cory que o atirou longe. Deve ter doído, também. Que mais você queria?

           — Ela podia ter feito pior.

            — Acho que é maluca.

           — Talvez tenha razão, Cathy — murmurou ele, tonto de sono.

           — Os gêmeos não passam de bebês. Cory estava apenas protegendo Carrie, você sabe como eles são um para o outro — disse eu, hesitando antes de indagar: — Chris, nossos pais agiram corretamente apaixonando-se um pelo outro? Não poderiam ter feito algo para evitar?

           — Não sei. Prefiro que não falemos nisso; fico nervoso.

           — Eu também. Mas creio que isso explica por que motivo temos todos cabelos louros e olhos azuis.

            — Sim — replicou ele, bocejando. — As “Bonecas de Dresden”: eis o que somos.

           — Você tem razão. Passei o dia inteiro querendo jogar alguma coisa. E não se esqueça: quando mamãe nos trouxer o novo jogo de Monopólio de luxo teremos tempo de terminar ao menos uma partida.

           Nunca tínhamos acabado uma partida, porque o jogo era demorado.

           — E as sapatilhas prateadas de bailarina serão minhas.

           — Certo — murmurou ele. — Ficarei com a cartola ou o carro de corridas.

           — A cartola, por favor.

           — Está certo. Desculpe, mas esqueci. E poderemos ensinar os gêmeos a serem banqueiros e contar o dinheiro.

           — Antes, teremos que ensiná-los a contar.

            — Isso será fácil: os Foxworth conhecem tudo a respeito de dinheiro.

           — Não somos Foxworths!

           — O que somos, então?

           — Dollangangers! Eis o que somos!

           — Está bem. Como você preferir.

            E, mais uma vez, deu-me boa-noite.

            Uma vez mais, ajoelhei-me ao lado da cama e coloquei as mãos sob o queixo em posição de prece. Em silêncio, comecei: “Agora, que me deito, rogo ao Senhor que mantenha minha alma...” Todavia, sem saber por que motivo, eu simplesmente não podia chegar às palavras que pediam ao Senhor para ficar com minha alma se eu morresse antes de acordar. Tornei a pular aquele trecho e pedi bênçãos divinas para mamãe, para Chris, para os gêmeos e para papai também, onde ele estivesse no céu.

            Então, após voltar para a cama, tive que me lembrar do bolo, ou dos doces, e do sorvete que a avó praticamente prometera na noite anterior, se fôssemos bons.

            E tínhamos sido.

            Ao menos até Carrie começar a berrar e, ainda assim, a avó não chegara ao quarto trazendo as sobremesas.

            Como poderia ela adivinhar que, posteriormente, não mereceríamos os doces?

            — Em que está pensando agora? — indagou Chris num tom monótono e sonolento

            Julguei que já estivesse adormecido e não me observasse.

            — Nada demais. Apenas leves idéias relativas a sorvete e bolo, ou doces, que a avó disse que traria se fôssemos bem comportados.

            — Amanhã será outro dia, de modo que não desista das recompensas. E talvez amanhã os gêmeos se esqueçam de quererem brincar lá fora. Não lembram das coisas por muito tempo.

            De fato, não lembravam. Já tinham esquecido papai e este morrera apenas em abril. Com que facilidade Cory e Carrie abandonavam um pai que os amara tanto! Eu não conseguia abandoná-lo ou esquecê-lo; jamais o esqueceria e, embora não pudesse vê-lo com tanta nitidez, eu o... sentia.

 

Minutos que pareciam horas

            Todos os dias se arrastavam. Monótonos.

           O que fazer com o tempo que se tem em superabundância? Para onde olhar depois de já ter visto tudo? Em que direção orientar os pensamentos quando os devaneios podem causar tantas encrencas? Eu podia imaginar como seria correr livremente lá fora, através dos bosques, com as folhas secas estalando sob os pés. Podia imaginar-me nadando no lago ou vadeando num riacho da montanha. Contudo, os devaneios não passavam de teias de aranha, facilmente dilaceráveis, e eu logo seria trazida de volta à dura realidade. E onde estava a felicidade? No passado? No futuro? Não naquela hora, minuto e segundo. Possuíamos uma coisa, e só ela, para dar-nos uma centelha de alegria: a esperança.

           Chris afirmava que era um pecado mortal desperdiçamos o tempo. Tempo era muito valioso. Ninguém tinha tempo bastante, ou vivia por bastante tempo, para aprender o suficiente. A nossa volta, o mundo caminhava para o fogo, gritando: “Depressa, depressa, depressa!” E vejamos nossa situação: tínhamos tempo de sobra, horas por encher, um milhão de livros para ler, tempo para dar asas à imaginação. O gênio criativo nasce no momento de lazer, sonhando com o impossível e, posteriormente, tornando-o realidade.

           Mamãe veio visitar-nos, como prometera, trazendo novos jogos e brinquedos para ocuparmos nosso tempo. Chris e eu adorávamos Monopólio, dominó, xadrez chinês e damas; quando mamãe nos trouxe um par de baralhos de bridge e um livro que ensinava vários jogos de cartas, tornamo-nos verdadeiros profissionais do baralho!

           Era mais difícil brincarmos com os gêmeos, que ainda não tinham idade para jogar jogos obedecendo regras. Nada lhes prendia a atenção durante muito tempo: nem os baralhos em miniatura que mamãe trouxera para eles, nem os pequenos caminhões basculantes, nem o trem elétrico que Chris montou de modo que os trilhos passassem por baixo das camas e da penteadeira, subissem pelo banquinho e descessem por baixo da cômoda. Para onde quer que nos virássemos, pisávamos em alguma coisa. Uma coisa era indubitável: os gêmeos detestavam o sótão; tudo lá em cima lhes causava susto e temor.

           Todos os dias levantávamo-nos cedo. Não tínhamos despertador, apenas nossos relógios de pulso. Todavia, algum sistema automático de medir o tempo passou a controlar-me o corpo e não me permitia dormir até tarde, mesmo que eu quisesse.

           Tão logo nos levantávamos, usávamos o banheiro; em dias alternados, primeiro os meninos, depois Carrie e eu, e vice-versa. Precisávamos estar inteiramente vestidos e arrumados antes que a avó entrasse, senão...

           A avó entrava em nosso sinistro quarto escurecido. Postados em posição de sentido, esperávamos que ela deixasse no quarto a cesta de piquenique e fosse embora. Ela raramente nos dirigia a palavra e, quando o fazia, era apenas para indagar se dávamos graças antes das refeições, rezávamos antes de deitar e líamos uma página da Bíblia por dia.

           — Não — respondeu Chris certa manhã. — Ontem não lemos uma página, lemos vários capítulos. Se considera a Bíblia uma espécie de castigo para nós, pode mudar de idéia. Achamos que é uma leitura fascinante, mais sangrenta e sensual que qualquer filme que já vimos. E fala mais de pecados que qualquer outro livro que já encontramos.

            — Cale a boca, menino! — rosnou ela. — Perguntei à sua irmã, não a você.

           Em seguida, ela me ordenou que repetisse alguma citação que aprendera e, dessa forma, freqüentemente zombávamos dela em particular, pois bastava procurar com meticulosidade e paciência que a Bíblia fornecia frases aplicáveis a praticamente qualquer situação. Naquela manhã, eu respondi:

            — “Por que tornastes vós mal por bem? Gênesis, 44:4”.

           Ela fez uma carranca, girou nos calcanhares e saiu. Passaram-se alguns dias antes que ela dirigisse a palavra a Chris, com rispidez, sem olhá-lo, mantendo-se de costas para ele:

           — Repita para mim uma citação do Livro de Job. E não tente me enganar que lê a Bíblia quando isso é mentira!

           Chris parecia confiante e bem preparado.

            — “Job, 28:12 - Mas a sabedoria, onde se acha ela? E qual é o lugar da inteligência? Job, 28:28 - Eis aí o temor do Senhor, ele é a sabedoria. E apartar-se do mal, é a inteligência. Job, 31.35 - Quem me dera que o Onipotente me ouvisse, e que escrevesse o livro o mesmo que me julga. Job, 32:9 - Não são os sábios os que têm muita idade, nem os anciãos que julgam o que é justo.”

           E Chris parecia disposto a prosseguir indefinidamente, mas o rosto da avó ficou rubro de raiva. E nunca mais ela mandou que Chris fizesse citações da Bíblia. Eventualmente, também parou de me pedir a mesma coisa, pois eu sempre conseguia lembrar-me de alguma citação que a irritava.

           Todas as tardes, por volta de seis horas, mamãe vinha ao nosso quarto, sempre ofegante e com muita pressa. Vinha carregada de presentes para nós: roupas novas, novas coisas para fazermos, novos livros para lermos, novos jogos para nos divertirmos. Em seguida, corria para tomar banho e vestir-se em seu conjunto de aposentos para um jantar formal no andar térreo, onde um mordomo e uma criada serviam a mesa e, a julgar pelas apressadas explicações de mamãe, quase sempre havia visitas para jantar. Fomos informados de que “muitos negócios importantes são fechados à mesa”.

           As melhores ocasiões eram quando ela contrabandeava exóticos canapés e saborosos hors d'oeuvres, embora nunca trouxesse doces, a fim de não estragar nossos dentes.

           Só aos sábados e domingos ela podia passar mais que uns poucos momentos conosco e sentava-se à nossa pequena mesa para almoçar. Certa vez, deu uma palmada no estômago:

           — Vejam como estou engordando, pois almoço com meu pai e depois, com a desculpa de querer tirar um cochilo, subo para a1moçar com meus filhos.

           As refeições com mamãe eram maravilhosas, pois lembravam-me os velhos tempos em que morávamos com papai.

           Certo domingo mamãe entrou com o cheiro fresco do ar livre, trazendo um litro de sorvete de baunilha e uma torta de chocolate que comprara numa confeitaria. O sorvete derretera-se quase em uma sopa, mas nós o comemos assim mesmo. Imploramos-lhe que passasse a noite conosco, dormindo entre Carrie e eu, a fim de podermos vê-la conosco quando acordássemos de manhã. Mas ela olhou demoradamente para o quarto abarrotado de coisas e sacudiu a cabeça.

           — Sinto muito, mas não posso. Realmente não posso. Entendam: as criadas ficariam curiosas se minha cama não fosse usada. E três numa só cama ficam muito apertados.

           — Quanto tempo, ainda, mamãe? — indaguei. — Estamos aqui há duas semanas e parece que foram dois anos. O avô não a perdoou por ter-se casado com papai? Você já falou sobre nós?

           — Meu pai me deu, por empréstimo, um de seus automóveis — replicou ela com o que considerei uma evasiva. — E creio que me perdoará, do contrário não permitiria que eu usasse seu carro, dormisse sob seu teto ou comesse da sua comida. Mas o fato é que ainda não tomei coragem bastante para contar-lhe que mantenho quatro filhos escondidos nesta casa. Tenho que calcular a hora exata com muito cuidado e vocês precisam ter paciência.

           — O que faria ele se soubesse a respeito de nós? — perguntei, ignorando o olhar carrancudo que Chris me lançava.

           Ele já me advertira que se eu insistisse em fazer muitas perguntas, mamãe deixaria de vir visitar-nos todos os dias. Então, o que seria de nós?

            — Só Deus sabe o que ele faria — sussurrou mamãe, temerosa. — Cathy, prometa-me que não tentará fazer os criados escutarem. Ele é um homem cruel, desalmado, que possui muito poder. Deixe-me calcular cuidadosamente o momento em que acredito que ele estará pronto para ouvir.

           Mamãe se foi por volta das sete e, pouco depois, nós nos recolhemos. Íamos cedo para a cama porque acordávamos cedo. E quanto mais tempo passássemos dormindo, mais curtos seriam nossos dias. Arrastávamos os gêmeos para o sótão logo após as dez horas. Explorar o gigantesco sótão era uma das melhores maneiras de ocuparmos nosso tempo. Lá em cima existiam dois pianos, tipo armário. Cory trepava num dos bancos giratórios que subiam e desciam por meio de um eixo com rosca e ficava rodando de um lado para outro. Martelava as teclas amareladas e tombava a cabeça de lado para escutar com grande atenção. O piano estava desarmado e o barulho era tão dissonante que nos causava dor de cabeça.

           — Não toca direito — dizia ele. — Por que não toca direito?

           — Precisa de afinação — respondia Chris, que tentara afinar o instrumento, mas só conseguira partir algumas cordas.

           As cordas partidas foram o final da tentativa de tocar música nos dois velhos pianos. Havia cinco vitrolas marca RCA Victor, cada uma delas com um cãozinho branco que virava a cabeça de modo encantador, como se maravilhado pela música que escutava. Todavia, apenas um dos aparelhos funcionava bem. Dávamos-lhe corda, colocávamos no prato um velho disco empenado e escutávamos a música mais esquisita que já ouvíramos!

           Havia pilhas e pilhas de discos de Enrico Caruso, mas infelizmente muito mal-cuidados, simplesmente empilhados no chão, sem mesmo terem as velhas capas de papelão. Sentávamo-nos em semicírculo para escutar a voz de Caruso. Christopher e eu sabíamos que ele era o maior cantor de óperas do mundo e ali estava nossa oportunidade de escutá-lo. A voz que ouvíamos era tão aguda que soava falso e ficamos sem saber o que ele tinha para ser tão famoso. Por algum estranho motivo, porém, Cory o adorava.

           Então, bem devagar, a corda da vitrola ia terminando e transformava a voz de Caruso num simples gemido. Nesse momento, um de nós corria como louco para girar a manivela até o final, de modo que ele cantasse depressa e engraçado, como o Pato Donald estrilando raivoso, e os gêmeos caíam na gargalhada.

            É claro. Tratava-se do tipo de fala deles, de sua linguagem secreta.

           Cory passava seus dias inteiros no sótão tocando os discos. Carrie, porém, era inquieta, sempre buscando algo, sempre insatisfeita, procurando sem cessar alguma coisa melhor para fazer.

           — Não gosto desse enorme lugar horrível! — berrava pela bilionésima vez. — Tirem-me desse lugar mim! Levem-me para fora já! Imediatamente! Tirem-me daqui ou derrubo as paredes a pontapés! Derrubo! Sei que posso derrubar!

           Corria para as paredes, atacando-as com os minúsculos pés e punhos, conseguindo arranhar-se seriamente antes de desistir.

           Eu sentia pena dela e de Cory. Todos nós gostaríamos de arrombar as paredes e sair dali. No caso de Carrie, porém, era como se as paredes pudessem tombar ante a intensidade crescente de sua voz, como as paredes de Jericó ruindo ao som das trombetas de Josué.

           Na verdade, era um alívio quando Carrie tomava coragem para atravessar o sótão e descer a escada até o quarto, onde podia brincar com suas bonecas, o fogão e as panelas em miniatura, a tábua de passar roupa com o pequeno ferro que não esquentava.

           Pela primeira vez, Cory e Carrie eram capazes de passar algumas horas separados um do outro, e Chris afirmava que isso era bom. No sótão estava a música que encantava Cory; no quarto, Carrie podia conversar com as suas “coisas”.

           Tomar muitos banhos era outra maneira de gastarmos o excesso de tempo e ensaboarmos a cabeça prolongava o ritual. Oh, éramos as crianças mais limpas no mundo inteiro! Tirávamos um cochilo depois do almoço, que durava até quando conseguíamos prolongá-lo. Chris e eu fazíamos concursos de descascar maçãs de modo que a casca saísse inteira, numa comprida fita em espiral. Descascávamos laranjas e tirávamos todos os pedacinhos da pele branca que os gêmeos detestavam. Recebíamos pequenas caixas de bolachas de queijo, que contávamos e dividíamos em quatro porções escrupulosamente iguais.

           Nossa brincadeira mais perigosa e divertida era imitar a avó, sempre temerosos de que ela entrasse de repente no quarto e nos pegasse envoltos em sujos panos cinzentos apanhados no sótão, que utilizávamos para representar seus uniformes de tafetá cinzento. Chris e eu éramos os melhores imitadores. Os gêmeos tinham tanto medo da avó, a ponto de nem mesmo ousarem erguer os olhos quando ela estava no quarto.

           — Crianças! — dizia rispidamente Chris, parado junto à porta, com uma invisível cesta de piquenique na mão. — Comportaram-se de maneira decente, honrosa e adequada? Este quarto está uma balbúrdia! Menina, você aí! Alise direito aquele travesseiro antes que eu lhe esmague a cabeça com a simples fúria do meu olhar!

           — Perdão, avó! — exclamava eu, rastejando para Chris com as mãos postas sobre o peito. — Eu estava morta de cansada de tanto limpar as paredes do sótão. Precisava descansar.

           — Descansar! — rosnava a “avó” perto da porta, o vestido prestes a cair. — Não existe descanso para os maus, os corruptos, os pecadores e os impuros. Para vocês, só existirá trabalho, até morrerem e ficarem pendurados para sempre acima dos braseiros de churrasco do inferno eterno!

            Então Chris erguia os braços sob o pano em gestos horripilantes que faziam os gêmeos gritar de pavor e, como uma bruxaria, a avó desaparecia, restando apenas um Chris sorridente.

            As primeiras semanas foram como segundos transformados em horas, a despeito de tudo o que fazíamos para entreter-nos; e fazíamos muito. Eram as dúvidas e os temores, as esperanças e as expectativas, que nos mantinham sob constante tensão e suspense, esperando, esperando, e sabendo que não estávamos mais próximos de ser libertados e podermos descer.

           Agora, os gêmeos corriam para mim com seus pequenos cortes e ferimentos, além das farpas apanhadas na madeira apodrecida do sótão. Eu retirava cuidadosamente as farpas com pinça, Chris aplicava o anti-séptico e o esparadrapo que eles adoravam. Um dedinho ferido era motivo bastante para exigir carinhos especiais e canções de ninar quando eu os colocava na cama, beijava-lhes os rostos e fazia cócegas nos locais que provocavam risadinhas, os bracinhos finos envolvendo-me o pescoço.

            Eu era amada, muito amada... e necessária.

           Nossos gêmeos mais pareciam bebês de três anos que crianças de cinco. Não no modo de falar, mas na maneira como esfregavam os olhos com os pulsos minúsculos e faziam “beicinho” quando lhes negavam alguma coisa, bem como no jeito que davam de prender a respiração até ficarem roxos, obrigando-nos a darmos o que desejavam.

            Eu era muito mais susceptível a esse tipo de chantagem que Chris; este argumentava ser impossível alguém sufocar-se daquele modo. Não obstante, vê-los tão roxos era um espetáculo apavorante.

           Chris disse-me em particular:

           — Na próxima vez que se portarem assim, quero que você os ignore, mesmo que tenha que trancar-se no banheiro. E pode acreditar que eles não morrerão...

           Foi exatamente o que eles me forçaram a fazer; e não morreram. Foi a última vez que tentaram utilizar tal truque para evitar comer coisas de que não gostavam, e não gostavam de nada, ou de quase nada.

           Carrie possuía a postura de costas curvas de todas as meninas pequenas, com a barriga estufada para diante num arco acentuado, e adorava pular pelo quarto puxando a saia para os lados, de modo a exibir as calcinhas franzidas. (Ela só usava calcinhas de renda franzida.) E se as calcinhas tivessem pequenas rosas feitas com fitinhas, ou algum bordado na parte da frente, tínhamos que vê-las ao menos uma dúzia de vezes ao dia e comentar que ela ficava linda com aquelas calcinhas.

           Cory, naturalmente, usava cuecas como as de Chris e se orgulhava muito disso. A memória das fraldas que usara até pouco tempo atrás devia estar ainda muito viva em sua mente. Se, por um lado, Cory tinha uma bexiga temperamental, por outro Carrie sofria de diarréia sempre que comia um pedacinho de qualquer fruta que não fosse cítrica. Na verdade, eu detestava os dias em que a avó nos trazia pêssegos e uvas, pois a querida Carrie adorava uvas verdes descaroçadas, pêssegos e maçãs... e todas elas faziam o mesmo efeito desastroso.

            Podem crer: toda vez que apareciam frutas à porta eu ficava desanimada, pois sabia quem tinha que lavar as calcinhas franzidas, a menos que me movimentasse com a rapidez do raio, correndo com Carrie sob o braço e largando-a no vaso sanitário em cima da hora. Chris ria às gargalhadas quando eu não chegava a tempo, ou Carrie não agüentava. Aliás, Chris sempre mantinha ao alcance da mão a jarra azul, pois quando Cory sentia a bexiga funcionar tinha que aliviar-se imediatamente e era um desastre se alguma das meninas estivesse no banheiro, com a porta trancada. Mais de uma vez ele molhara as calças curtas e depois enterrara o rosto no meu colo, morto de vergonha. (Carrie jamais se envergonhava: a culpa era sempre minha por não agir bastante depressa.)

           — Cathy, quando iremos lá fora? — sussurrou Cory após um dos acidentes.

           — Tão logo mamãe nos dê autorização.

           — Por que mamãe não dá autorização?

           — Lá embaixo mora um velho que não sabe que estamos aqui. E precisamos que ele volte a gostar de mamãe o bastante para aceitar-nos.

           — Quem é o velho?

           — Nosso avô.

           — Ele é como a avó?

           — Sim, creio que seja.

           — Por que ele não gosta de nós?

           — Ele não gosta de nós porque... porque, bem, porque não é sensato. Acho que é doente da cabeça, como do coração.

       — Mamãe ainda gosta de nós?

           Ora, eis uma pergunta que me tirava o sono.

           Várias semanas já se haviam passado quando chegou um domingo em que mamãe não apareceu durante o dia. Doía-nos não a ter conosco, quando sabíamos que ela estava de folga na escola e se encontrava em algum lugar daquela mesma casa.

           Eu estava deitada de bruços no chão, onde era mais fresco, lendo Judas, o Obscuro. Chris se encontrava no sótão, à procura de novo material de leitura, e os gêmeos engatinhavam pelo quarto empurrando pequenos carros e caminhões.

           O dia arrastou-se até o cair da tarde antes que, afinal, a porta se abrisse e mamãe escorregasse para dentro do quarto, usando sapatos de tênis, shorts brancos e uma camisa branca com gola de marinheiro, debruada com uma lista azul e outra vermelha, trazendo uma âncora bordada. Tinha o rosto corado e bronzeado do ar livre. Parecia tão vibrante e saudável, tão incrivelmente feliz, enquanto nós murchávamos, doentios, no calor abafado daquele quarto escuro.

           Roupas de velejar (oh, eu as conhecia) e era isso que ela estivera fazendo. Ressentida, olhei para ela, desejando que minha pele estivesse bronzeada pelo sol, as pernas de cor tão saudável quanto as dela. Seus cabelos estavam desfeitos pelo vento e ficavam-lhe muito bem, tornando-a dez vezes mais bela, saudável, sensual. E ela era quase uma velha; tinha quase quarenta anos.

           Era bastante óbvio que aquela tarde lhe dera mais prazer que qualquer outra desde a morte de nosso pai. E eram quase cinco horas. Lá embaixo, o jantar era servido às sete, o que significava que ela teria muito pouco tempo para ficar conosco antes de precisar descer a seus aposentos, onde poderia tomar banho e vestir-se de modo mais adequado para a refeição.

         Deixei o livro de lado e virei-me para sentar-me. Sentia-me magoada e desejava magoá-la também.

           — Onde esteve? — perguntei num tom agressivo.

           Que direito tinha ela a divertir-se enquanto permanecíamos trancados e impedidos das atividades juvenis que eram um direito nosso? Eu jamais teria na vida outro verão com doze anos de idade, nem Chris aproveitaria o seu verão de quatorze anos. Nem os gêmeos o seu quinto verão.

            O tom agressivo e acusador de minha pergunta abateu-lhe a alegria. Ela empalideceu, seus lábios tremeram e talvez, naquele momento, nossa mãe se arrependesse de ter-nos trazido um grande calendário de parede no qual podíamos verificar se era sábado ou domingo. O calendário estava marcado com os grandes X vermelhos que fazíamos para contar nossos dias de aprisionamento; nossos dias quentes, solitários, cheios de expectativa e sofrimento.

            Deixou-se cair numa poltrona e pegou uma revista para abanar-se, cruzando as pernas bonitas.

            — Sinto tê-los deixado à minha espera — respondeu, enviando-me um sorriso carinhoso. — Eu queria fazer-lhes uma visita pela manhã, mas meu pai exigiu toda a minha atenção e eu já assumira compromisso para a tarde, embora o tenha interrompido antes da hora para poder passar algum tempo com meus filhos antes do jantar.

            Embora não parecesse suada, ergueu o braço sem mangas e abanou a axila, como se não conseguisse suportar aquele quarto.

            — Estive velejando, Cathy — continuou. — Meus irmãos me ensinaram a velejar quando eu tinha nove anos e depois, quando seu pai veio morar aqui, eu ensinei a ele. Costumávamos passar um bocado de tempo no lago. Velejar é quase como voar... uma diversão maravilhosa — concluiu desajeitadamente, percebendo que seu divertimento estragara o nosso.

           — Velejando? — repliquei, quase gritando. — Por que não estava lá embaixo, falando com seu pai a respeito de nós? Por quanto tempo ainda tenciona manter-nos trancados aqui? Para sempre?

           Seus olhos azuis vagaram inquietamente pelo quarto; parecia prestes a erguer-se da poltrona que raramente usávamos, pois sempre a reservávamos especialmente para ela; o seu trono. Talvez ela tivesse ido naquele instante, se Chris não tivesse voltado do sótão com os braços carregados de enciclopédias tão antigas que não incluíam televisão ou aviões a jato.

           — Cathy, não grite com nossa mãe! — repreendeu ele. — Olá, mãe. Puxa! Você está linda! Gosto dessa roupa de velejar.

           Largou a carga de livros sobre a penteadeira que usava como mesa de estudo e atravessou o quarto para abraçar nossa mãe. Senti-me traída não só por minha mãe, como por meu irmão. O verão estava quase terminando e não havíamos feito coisa alguma: nenhum piquenique, nem natação, nem passeios no bosque, nem mesmo avistado um barco ou vestido um maiô para vadiar num tanque de quintal.

           — Mamãe! — exclamei, erguendo-me de um salto, disposta a batalhar por nossa liberdade. — Creio que já é tempo de você falar com seu pai a nosso respeito! Estou cansada, enjoada de viver nesse quarto e brincar rio sótão! Quero nossos gêmeos ao ar livre e ao sol! E também quero sair daqui! Eu quero velejar! Se o avô a perdoou por ter-se casado com papai, então, por que não pode aceitar-nos? Somos tão feios, tão terríveis, tão estúpidos que ele se envergonhasse de sermos seus parentes consangüíneos?

           Mamãe empurrou Chris para longe de si e afundou-se fatigadamente na mesma poltrona da qual acabava de levantar-se. Escondeu o rosto nas mãos. Intuitivamente, adivinhei que ela estava prestes a revelar alguma verdade que omitira anteriormente de nós. Chamei Cory e Carrie, e mandei que se sentassem perto de mim, um de cada lado, de modo a poder abraçá-los simultaneamente. E Chris, embora eu imaginasse que fosse permanecer em pé junto à nossa mãe, veio sentar-se na cama, ao lado de Cory. Voltávamos a ser, como antes, filhotes de pássaros pousados numa corda de varal de roupas, à espera de que uma rajada de vento forte nos soprasse para longe.

           — Cathy, Christopher — começou nossa mãe, com a cabeça ainda baixa, embora colocasse as mãos no colo e passasse a movê-las nervosamente. — Não fui totalmente franca com vocês.

           Como se eu já não tivesse adivinhado...

            — Ficará para jantar conosco essa noite? — indaguei, desejando, sem saber por que motivo, adiar a verdade.

           — Obrigada pelo convite. Eu gostaria de aceitar, mas fiz outros planos para esta noite.

           E aquele era o nosso dia; nosso tempo com ela devia ir até o anoitecer.

           E, na véspera, ela passara apenas meia hora conosco.

           — A carta — murmurou, erguendo a cabeça, as sombras escurecendo os olhos azuis numa tonalidade verde. — A carta que minha mãe me escreveu quando ainda estávamos em Gladstone. Aquela carta nos convidava a morar aqui. Não lhes contei que meu pai escreveu um curto bilhete no pé da página?

           — Sim, mamãe, Prossiga — encorajei. — Somos capazes de aceitar tudo que você tiver a contar.

           Nossa mãe era uma mulher controlada, fria e composta, mas tinha uma coisa que jamais conseguira controlar: as mãos. Estas sempre lhe traíam as emoções. Uma mão sonhadora e caprichosa ergueu-se até pairar perto do pescoço, tateando, os dedos procurando um colar de pérolas para torcer e destorcer; como a jóia não estava ali, os dedos continuaram a movimentar-se no ar. Os dedos da outra mão, pousada no colo, esfregavam-se uns nos outros, como se tentassem limpar-se.

           — Sua avó escreveu a carta e assinou-a, mas, no final, meu pai acrescentou um bilhete.

           Hesitou, fechou os olhos, esperou alguns segundos e depois tornou a abri-los para lançar-nos um novo olhar.

           — Seu avô escreveu para dizer que estava muito satisfeito com a morte do pai de vocês. Escreveu que os maus e os corruptos sempre recebem o que merecem. Escreveu que a única vantagem de meu casamento foi não gerar filhos do Demônio.

           Outrora, eu teria perguntado o que significavam aquelas palavras. Agora, eu sabia. Filhos do Demônio ou gerados pelo Demônio eram a mesma coisa: algo ruim, podre, nascido para ser mau.

            Sentada na cama, abraçando os gêmeos, olhei para Chris, que devia ser muito parecido com nosso pai quando tinha a mesma idade; passou-me de relance diante dos olhos a imagem de papai em seus trajes brancos de jogar tênis: alto, orgulhoso, de cabelos dourados e pele cor-de-bronze. O mal era escuro, retorcido, corcunda, baixo; não assumia uma postura altaneira e sorria com límpidos olhos azuis, da cor do céu, que nunca mentiam.

           — Minha mãe fez os planos para ocultar vocês e escreveu-os numa página que meu pai não leu — concluiu ela, embaraçada, o rosto ruborizado.

           — Nosso pai era considerado mau e corrupto apenas por ter-se casado com sua meia-sobrinha? — indagou Chris, no mesmo tom frio e controlado usado por nossa mãe. — Foi o único erro que ele cometeu na vida?

           — Sim! — exclamou mamãe, feliz porque ele, o seu filho predileto, compreendia. — Em toda a sua vida, seu pai cometeu um único e imperdoável pecado: apaixonar-se por mim. A lei proíbe o casamento entre um tio e uma sobrinha, mesmo que o parentesco seja apenas pela metade. Por favor, não nos condenem. Eu já lhes expliquei o que aconteceu. Dentre todos nós, seu pai era o melhor...

            Interrompeu-se, prestes a chorar, e implorou-nos com os olhos. E eu adivinhei o que viria a seguir.

            — O mal e a corrupção estão no olhar de quem acusa — prosseguiu ela depressa, ansiosa por fazer-nos ver as coisas a seu modo. — Seu avô seria capaz de encontrar esses defeitos num anjo. É o tipo de homem que espera, exige perfeição de todos os membros da família, mas está muito longe de ser perfeito. Todavia, não tente lhe dizer isso, porque ele o esmagará como a um inseto.

            Engoliu nervosamente e depois, parecendo quase enojada pelo que era obrigada a dizer, acrescentou:

            — Christopher, julguei que após você estar aqui eu poderia falar com meu pai a seu respeito, contando-lhe que você era o aluno mais brilhante da classe, sempre tirou as notas máximas; julguei que quando ele visse Cathy e soubesse de seu grande talento para a dança... julguei que essas duas coisas, por si, seriam suficientes para convencê-lo sem mesmo haver necessidade de mostrar-lhe os gêmeos, tão lindos e encantadores, sem falar nos talentos que possuem à espera de desenvolvimento. Tola, esperançosa, julguei que ele cederia facilmente e admitiria seu erro ao considerar nosso casamento tão errado.

           — Mamãe — interpus, quase chorando. — Parece que você quer dizer que nunca falará com ele sobre nós; que ele jamais gostará de nós, por mais lindos que sejam os gêmeos, por mais inteligente que seja Chris, por melhor que eu seja capaz de dançar. Nada disso fará a menor diferença para ele. O avô continuará a detestar-nos e considerar-nos filhos do Demônio, não é mesmo?

            Ela se levantou e se aproximou da cama, deixando-se cair novamente de joelhos e tentando abraçar-nos todos de uma só vez.

            — Já não lhes disse antes que ele tem pouco tempo de vida? Fica sem fôlego ao menor esforço que faz. E se não morrer logo, encontrarei um meio de falar a respeito de vocês. Juro que arranjarei. Peço-lhes apenas que tenham paciência. Que sejam compreensivos. Eu os compensarei mil vezes pelos divertimentos de que vocês estão sendo privados agora!

            Seus olhos lacrimosos imploravam.

            — Por favor, por favor! Por mim, porque vocês me amam e eu os amo, continuem a ter paciência. Não demorará muito. Não pode demorar. E eu farei tudo para tornar-lhes a vida agradável, o mais agradável possível. E pensem na riqueza que herdaremos em breve!

            — Está bem, mamãe — disse Chris, tomando-a nos braços exatamente como nosso pai o faria. — Você não está pedindo muito e nós temos muito a ganhar.

            — Sim — disse mamãe, com entusiasmo. — Só mais um curto período de sacrifício e mais um pouco de paciência, e vocês terão tudo o que pode existir de bom e gostoso nessa vida.

            O que me restava dizer? Como podia eu protestar? Já tínhamos sacrificado mais de três semanas. O que seriam mais alguns dias, ou semanas, ou até mesmo mais um mês?

            Além do arco-íris o pote de ouro nos aguardava. Mas o arco-íris é feito da mais frágil filigrana e o ouro pesa uma tonelada. Desde o início do mundo, o ouro foi motivo para se fazer quase tudo.

 

Fazer um jardim crescer

           Agora, conhecíamos toda a verdade.

            Permaneceríamos naquele quarto até que nosso avô morresse. E ocorreu-me naquela noite, quando me sentia deprimida e desanimada, que talvez nossa mãe soubesse desde o início que seu pai não era do tipo que perdoa alguém de alguma coisa.

           — Mas ele pode morrer a qualquer hora — disse o meu alegre otimista Christopher. — As doenças cardíacas são assim. Um coágulo pode soltar-se e chegar ao coração ou ao pulmão e extinguir-lhe a vida como se sopra uma vela.

           Chris e eu trocamos comentários cruéis e irreverentes, mas nossos corações sangravam, sabendo que era, errado e estávamos faltando ao respeito como um meio de aplacar a dor de nosso amor-próprio ferido.

           — Agora, veja bem — disse ele. — Já que vamos ficar aqui em cima por mais algum tempo, devemos ter mais determinação para acalmar os gêmeos e nós mesmos, com coisas que nos entretenham melhor. E só Deus sabe que, se realmente nos aplicarmos, talvez possamos imaginar algumas coisas bem interessantes e fantásticas.

           Naturalmente, quando se dispõe de um sótão cheio de trastes velhos e grandes armários abarrotados de roupas apodrecidas e fedorentas, mas nem por isso menos elegantes e antigas, surge logo a inspiração de montar peças teatrais. Já que um dia eu me tornaria uma estrela do palco, desempenharia as funções de produtora, diretora, coreógrafa e, é claro, a grande estrela da companhia. Chris, por sua vez, desempenharia todos os principais papéis masculinos. E os gêmeos poderiam participar como figurantes, desempenhando pequenos papéis.

           Mas não queriam participar! Desejavam ser a platéia: sentar-se, assistir e aplaudir.

           Não era má idéia; afinal, o que seria de uma peça sem platéia? Era uma pena eles não terem dinheiro para comprar entradas.

           — Convocaremos um ensaio geral — disse Chris. — E já que você parece ser tudo na companhia e conhece todos os detalhes da produção teatral, escreva o roteiro.

           Ah! Como se eu precisasse escrever um roteiro! Era a minha oportunidade de representar Scarllet O'Hara. Tínhamos todas as roupas da época, inclusive espartilhos e belas sombrinhas, embora furadas aqui e ali. E roupas adequadas para Chris, também. Os baús e armários ofereciam-nos uma ampla variedade de escolha e eu, naturalmente, escolhi a melhor roupa, tirada de um armário, com as respectivas roupas de baixo encontradas num baú. Enrolei meu cabelo em trapos, de modo a fazê-lo cair em longos cachos espirais sob um velho chapéu de palha estilo Leghom, enfeitado com desbotadas flores de seda e uma larga fita de cetim verde, já pardacenta nas orlas. Meu vestido de babados, armado sobre aros metálicos, era de um tecido muito leve e transparente que parecia voile. Tenho a impressão de que outrora fora cor-de-rosa, mas agora era difícil definir a cor.

            Rhett Butler usava uma bela roupa com calças creme e um paletó de veludo marrom com botões de pérola sobre um colete de cetim onde ainda apareciam algumas rosas desbotadas.

           — Venha, Scarlett — disse-me ele. — Precisamos fugir de Atlanta antes que Sherman tome a cidade e a incendeie.

           Chris estendera cordas nas quais prendemos cobertores que faziam as vezes de cortinas do palco. Nossa platéia de dois espectadores batia impacientemente os pés no chão, ansiosa por ver Atlanta em chamas. Segui Rhett até o “palco” e estava pronta para tentá-lo, provocá-lo, flertar e encantar, colocando-o em chamas antes de fugir com um Ashley Wilkes de cabelos desbotados, quando uma de minhas anáguas rotas prendeu-se sob um de meus sapatos engraçados e grandes demais. Desmoronei de bruços numa posição pouco digna, que deixou à mostra meus calções encardidos enfeitados com rendas esfarrapadas. A platéia aplaudiu de pé, julgando que a queda era uma palhaçada que fazia parte do espetáculo.

            — A peça terminou! — anunciei, começando a rasgar as velhas roupas fedorentas.

           — Vamos comer! — gritou Carrie, que era capaz de dizer qualquer coisa para afastar-nos do sótão que ela tanto detestava.

           Cory esticou o beicinho e olhou em volta.

            — Eu queria que tivéssemos outra vez o nosso jardim — disse num tom tão tristonho e sonhador que chegou a causar-me dor — Não gosto de balançar quando as flores não balançam com o vento.

           Seus cabelos louros tinham crescido até tocarem o colarinho da camisa e formavam pequenos anéis, enquanto os cabelos de Carrie iam-lhe até o meio das costas e moviam-se como uma cascata ondulante. Naquele dia, usavam roupas azuis, pois era segunda-feira. Tínhamos cores para cada dia da semana. Amarelo era a nossa cor de domingo, e vermelho a de sábado.

           O desejo expresso por Cory trouxe idéias à cabeça de Chris, pois este girou lentamente sobre si mesmo, estudando o sótão com ar pensativo.

           — É forçoso admitirmos que este sótão é sinistro e desolado — comentou, pensando em voz alta. — Todavia, por que não podemos, empregando nossos talentos criativos de modo construtivo, realizar uma metamorfose e transformar esta feia lagarta numa linda e brilhante borboleta?

           Sorriu para mim e para os gêmeos de modo tão encantador e convincente que me deixei conquistar de imediato. Seria divertido tentar embelezar aquele local horrível, dando aos gêmeos um colorido jardim artificial onde poderiam balançar-se e ver coisas belas. Naturalmente, jamais terminaríamos de decorar o sótão inteiro, pois o espaço era imenso e o avô poderia morrer a qualquer momento, quando sairíamos dali para sempre.

           Mal conseguimos esperar a chegada de mamãe naquela noite e, quando ela veio, Chris e eu relatamos-lhe entusiasticamente nosso projeto de decorar o sótão e transformá-lo num alegre jardim artificial onde os gêmeos não sentiriam medo. A mais estranha das expressões brilhou nos olhos dela por um breve instante.

           — Muito bem, então — disse, animada. — Se pretendem embelezar o sótão, primeiro precisam limpá-lo. E farei o possível para ajudar.

           Às escondidas, mamãe nos trouxe panos de chão, baldes, vassouras, escovas e caixas de sabão em pó. Ajoelhou-se conosco para esfregar os cantos do sótão, as beiradas e embaixo dos móveis mais pesados. Maravilhei-me de mamãe saber como escovar e limpar as coisas. Quando morávamos em Gladstone, tínhamos uma faxineira que vinha fazer o trabalho pesado duas vezes por semana; trabalho que deixava as mãos de mamãe avermelhadas e quebrava-lhe as unhas. E ali estava ela, de quatro no chão, usando velhas blue jeans desbotadas e uma blusa velha, com o cabelo preso num coque sobre a nuca. Admirei-a de verdade. Fazia calor, o trabalho era duro e humilhante, mas ela não fez uma só reclamação; apenas ria e tagarelava, agindo como se aquilo fosse muito divertido.

           Após uma semana de trabalho duro, limpamos da melhor maneira possível a maior parte do sótão. Então, mamãe trouxe-nos inseticidas para matar os insetos que haviam se escondido durante a limpeza. Recolhemos baldes cheios de aranhas e outros bichinhos rastejantes, derramando-os por uma janela dos fundos, onde rolaram para uma parte mais baixa do telhado. Posteriormente, a chuva os empurrou para as calhas, onde foram encontrados pelos pássaros. As aves fizeram um festim macabro, enquanto nós quatro, sentados no peitoril de uma janela, observávamos. Nunca encontramos um rato ou camundongo, mas víamos suas fezes. Presumimos que estivessem à espera de que toda a movimentação terminasse antes de se aventurarem a sair de suas tocas escuras e secretas.

            Agora que o sótão estava limpo, mamãe trouxe-nos folhagens e até mesmo uma açucena que deveria florescer na época do Natal. Franzi a testa quando ela anunciou o fato, pois não ficaríamos trancados até lá.

           — Levaremos conosco — disse ela, acariciando-me o rosto. — Quando formos embora, levaremos todas as nossas plantas, de modo que não precisa franzir a testa e fazer essa cara infeliz. Não deixaríamos nesse sótão qualquer coisa que goste de luz e sol.

           Colocamos as plantas na sala de aulas do sótão, pois ali as janelas se abriam para o leste. Alegres e satisfeitos descemos todos a estreita escada para nosso quarto; mamãe lavou-se em nosso banheiro e depois deixou-se cair, exausta, em sua poltrona especial. Os gêmeos se acomodaram no seu colo enquanto eu arrumava a mesa para o almoço. Foi um ótimo dia, pois mamãe ficou conosco até a hora do jantar; então, suspirando, declarou que precisava ir-se. Seu pai exigia muito dela, querendo saber aonde ela ia todos os sábados e por que se demorava tanto.

            — Não pode dar uma fugidinha de volta até aqui antes de irmos para a cama? — indagou Carrie.

            — Hoje à noite irei ao cinema — replicou mamãe, muito calma. — Antes de sair, porém, darei um pulo até aqui para vê-los outra vez. Tenho algumas daquelas caixinhas de passas que vocês podem mastigar entre as refeições. Esqueci-me de trazê-las.

            Os gêmeos eram loucos por passas e senti-me alegre por eles.

           — Vai sozinha ao cinema? — perguntei.

            — Não. Existe uma garota que cresceu comigo; era minha melhor amiga e agora está casada. Vou ao cinema com eles. Moram a apenas algumas casas daqui.

           Levantou-se, foi à janela e, depois que Chris apagou as luzes, abriu as cortinas e apontou na direção da casa onde morava sua melhor, amiga.

           — Elena tem dois irmãos solteiros, um dos quais estuda advocacia. Cursa a Faculdade de Direito da Universidade de Harvard e o outro é jogador profissional de tênis.

            — Mamãe! — exclamei. — Está namorando um dos irmãos?

           Ela riu, tornando a fechar as cortinas.

           — Acenda as luzes, Chris. Não, Cathy; não estou namorando ninguém. Para dizer a verdade, estou tão cansada que preferia ir direto para a cama. De qualquer maneira, não gosto muito de filmes musicais. Gostaria de ficar com meus filhos, mas Elena sempre insiste para que eu saia e, quando recuso, ela fica perguntando qual o motivo. Não quero que as pessoas comecem a imaginar por que razão fico em casa todos os fins-de-semana; por isso, às vezes tenho que velejar ou ir ao cinema.

           Fazer que o sótão ficasse apenas bonito parecia altamente improvável; transformá-lo num belo jardim era algo muito acima do arco-íris. Exigiria uma enorme quantidade de trabalho penoso e capacidade criativa, mas o meu bendito irmão estava convencido de que podíamos fazê-lo num tempo insignificante! Em breve ele convenceu mamãe da idéia, a tal ponto que todos os dias, ao voltar do curso de secretariado, ela nos trazia livros de colorir, dos quais podíamos recortar flores previamente impressas. Mamãe nos trouxe caixas de aquarela, muitos pincéis, caixas de lápis de cor, enormes quantidades de cartolina colorida, bojudos vidros de cola branca e quatro pares de tesouras com pontas redondas.

           — Ensinem os gêmeos a colorir e recortar as flores — instruiu ela. — E deixem-nos participar de tudo o que vocês façam. Nomeio-os professores de jardim de infância de seus irmãos menores.

           Mamãe regressava da cidade, que ficava à uma hora de distância de trem, radiante de saúde, a pele fresca e rosada pelo ar livre, as roupas tão lindas que me deixavam sem fôlego. Tinha sapatos de todas as cores e acumulava pouco a pouco peças de joalheria que ela chamava “de fantasia”, embora as pedras de imitação parecessem, pelo brilho faiscante, brilhantes verdadeiros. Ela se deixava cair na “sua” poltrona, exausta mas feliz, e relatava os acontecimentos do dia.

           — Oh, como eu gostaria de que aquelas máquinas de escrever tivessem letras nas teclas! Parece que só consigo me lembrar de uma fileira. Tenho que olhar sempre para o quadro indicativo, na parede, e isso me atrasa. Também não consigo lembrar-me direito da fileira de baixo. Mas sei onde ficam todas as vogais. Como sabem, essas teclas são mais usadas que as outras. Até o momento, atingi a velocidade de vinte palavras por minuto, o que não é muito bom. Além disso, cometi quatro erros naquelas vinte palavras. E aqueles rabiscos de taquigrafia... — suspirou, como se eles também a deixassem perplexa. — Bem, creio que acabarei aprendendo. Afinal, outras mulheres aprendem; se elas conseguem eu também conseguirei.

           — Gosta de suas professoras, mamãe?

           Ela soltou uma risada juvenil antes de responder:

           — Primeiro, deixem-me contar a respeito de minha professora de datilografia. Chama-se Sra. Helena Brady. Tem um formato semelhante ao da avó de vocês: é enorme. Só que seus seios são muito maiores! Na realidade, tem os seios mais notáveis que já vi! E as alças do soutien não param de lhe escorregar dos ombros. E quando não são as alças do soutien, são as da combinação, de modo que ela está sempre enfiando a mão pelo decote do vestido a fim de puxá-las de volta ao lugar e os homens na classe sempre soltam risadinhas zombeteiras.

           — Homens tomam aulas de datilografia? — indaguei, surpresa.

           — Sim, temos alguns jovens na nossa classe. Alguns são jornalistas ou escritores, outros têm algum bom motivo para querer aprender a escrever à máquina. A Sra. Brady é divorciada e está de olho num desses rapazes. Flerta com ele que, por sua vez, procura ignorá-la. Ela é pelo menos dez anos mais velha que ele, que está sempre olhando para mim. Agora, Cathy, não fique imaginando coisas. Ele é baixo demais para mim. Eu jamais me casaria com um homem que não pudesse me pegar no colo para atravessar a porta do quarto nupcial. No caso, eu poderia carregá-lo no colo, pois tem apenas um metro e cinqüenta e cinco.

           Todos nós soltamos gostosas gargalhadas, pois papai tinha pelo menos mais trinta centímetros de altura e carregava mamãe com facilidade. Nós o víramos fazer isso muitas vezes, em especial nas noites de sexta-feira, quando regressava de viagem e os dois se fitavam de modo tão esquisito.

           — Mamãe, não está pensando em casar-se outra vez, está? — quis saber Chris, num tom muito tenso.

            Mamãe o abraçou depressa.

           — Não, querido; claro que não. Eu amava muito seu pai. Seria preciso um homem muito especial para calçar os sapatos dele e até agora não encontrei um que fosse capaz de calçar-lhe as meias.

           Brincar de professores de jardim de infância foi muito divertido, ou poderia ter sido, se nossos alunos demonstrassem um mínimo de disposição nesse sentido. Entretanto, tão logo terminávamos a refeição matinal, lavávamos e guardávamos a louça, colocávamos a comida restante no lugar mais fresco do quarto, esperávamos que as dez horas chegassem e se fossem com os criados do segundo andar, Chris e eu arrastávamos, cada um, um dos gêmeos que berravam, subindo a escada do sótão e levando-os à sala de aulas. Ali, podíamos sentar-nos nas carteiras dos alunos e fazer uma grande bagunça ao recortar flores de cartolina colorida, usando os lápis para ressaltar as cores com nervuras e pontinhos redondos. Chris e eu fazíamos as flores mais bonitas; as feitas pelos gêmeos pareciam mais manchas coloridas.

           — Arte moderna — comentou Chris, batizando o tipo de flores que eles produziam.

           Nas desoladas paredes cinzentas feitas de tábuas, colávamos nossas grandes flores coloridas. Chris voltou a subir na velha escada à qual faltavam alguns degraus, a fim de prender compridos barbantes nas vigas do sótão. Nesses barbantes estendidos, prendemos flores coloridas que se movimentavam incessantemente nas correntes de ar que cortavam o sótão.

            Mamãe subiu para verificar os resultados de nossos esforços e sorriu satisfeita.

            — Sim, estão conseguindo um resultado maravilhoso. Isto aqui está ficando bonito.

           Aproximou-se pensativamente das margaridas, como se imaginasse algo que poderia trazer para nós. No dia seguinte, voltou com uma enorme caixa chata contendo contas de vidro colorido e lantejoulas, de forma a podermos acrescentar brilho e encanto ao nosso jardim. Oh, trabalhamos como escravos para fazer aquelas flores, pois qualquer ocupação a que nos dedicássemos era alvo de um zelo fervoroso e diligente. Os gêmeos contraíram parte de nosso entusiasmo e pararam de berrar, morder e resistir sempre que mencionávamos a palavra sótão. Pois, afinal, o sótão se transformava lentamente, mas a passos firmes, num alegre jardim. E quanto mais ele mudava, mais decididos ficávamos a cobrir cada parede daquele espaço interminável.

           Todos os dias, naturalmente, mamãe, ao regressar das aulas de secretariado, era obrigada a inspecionar as realizações do dia.

           — Mamãe — reclamou Carrie, no seu peculiar gorjeio de pássaro sem fôlego. — Não fazemos outra coisa o dia inteiro: só flores. E às vezes Cathy nem quer que desçamos para almoçar!

           — Cathy não deve preocupar-se tanto com o sótão a ponto de esquecer as refeições.

           — Ora, mamãe, estamos fazendo isso para eles, de modo que não tenham medo de vir aqui.

           Mamãe riu, abraçando-me.

           — Ora, como você é persistente. E seu irmão também. Devem ter herdado isso de seu pai; certamente não foi de mim. Desisto com facilidade.

           — Mamãe! — exclamei, inquieta. — Ainda está freqüentando a escola? Já melhorou sua datilografia, não é?

           — Claro que sim.

           Tornou a sorrir e recostou-se na poltrona, erguendo a mão e, aparentemente, admirando a pulseira que usava. Comecei a perguntar por que ela precisava de tantas jóias para freqüentar o curso de secretariado, mas mamãe falou antes de mim:

           — O que vocês precisam agora é de animais para o seu jardim.

           — Mas, mamãe, se não conseguimos fazer rosas, como vamos até mesmo desenhar animais?

           Ela me lançou um sorriso misterioso, passando o dedo frio em meu nariz.

           — Oh, Cathy, você é mesmo como São Tomé. Questiona tudo, duvida de tudo, mesmo já sabendo, agora, que vocês são capazes de fazer qualquer coisa desde que realmente queiram fazê-la. Pois vou contar-lhe um segredo que já conheço há algum tempo: nesse mundo onde tudo é complicado, existe um livro que nos ensina como tudo pode ser muito simples.

           Isso eu viria a descobrir.

            Mamãe trouxe-nos dúzias de livros didáticos de arte. O primeiro deles ensinou-nos a reduzir todos os desenhos complicados a formas geométricas básicas: esferas, cilindros, cones, prismas, cubos. Uma cadeira não passava de um cubo, o que eu não sabia anteriormente. Uma árvore de Natal era apenas uma casquinha cônica de sorvete invertida. Eu também não sabia antes. As pessoas eram apenas combinações de todas aquelas formas básicas: as cabeças eram esferas; pescoços, braços, pernas, torsos superiores e inferiores eram simples prismas retangulares ou cilindros; os pés eram pirâmides triangulares. E, acreditem se quiserem, usando esse método básico, com uns poucos acréscimos bem simples, logo tivemos coelhos, esquilos e outras pequenas criaturas amistosas; todas elas feitas por nossas próprias mãos.

           Tinham um aspecto peculiar, é verdade, mas achei que suas esquisitices tornavam-nas ainda mais engraçadinhas. Chris coloria todos os seus animais de modo realista, enquanto eu decorava os meus com bolinhas, desenhos quadriculados, padrões escoceses e colocava bolsinhos debruados com renda nas galinhas chocas. Quando nossa mãe fez compras numa loja que oferecia noções de costura, tínhamos rendas, cordões de todas as cores, botões, lantejoulas, feltro, contas e outros materiais decorativos. As possibilidades eram infinitas. Quando ela depositou aquela caixa em minhas mãos, sei que meus olhos devem ter demonstrado todo o amor que eu sentia por ela naquela época, pois aquilo provava que ela pensava em nós quando estava no mundo lá fora. Não pensava apenas em roupas novas, jóias e cosméticos para si mesma. Tentava tornar nosso confinamento o mais agradável possível.

           Uma tarde chuvosa, Cory correu para mim com uma lesma de papel alaranjado na qual trabalhara laboriosamente a manhã inteira e metade da tarde. Comera apenas um pouco de seu almoço favorito, sanduíches de geléia e creme de amendoim, e estava ansioso por voltar ao “trabalho” e colocar “aquelas coisas que brotam da cabeça”.

           Numa atitude orgulhosa, estacou com as perninhas abertas, observando com atenção as menores alterações da expressão de meu rosto. O que ele fizera não se parecia senão com uma bola de praia entortada, com duas antenas tremulantes.  

          — Acha que a lesma está boa? — perguntou, com a testa franzida de preocupação, quando não encontrei o que dizer.

           — Sim — repliquei rapidamente. — É uma lesma linda, maravilhosa.

           — Você não acha que parece uma laranja?

           — Não; claro que não. Laranjas não possuem anéis, como essa lesma. Nem sensores curvos.

           Chris aproximou-se para examinar a pobre criatura que eu tinha nas mãos.

           — Não se dá a isso o nome de sensores — corrigiu ele. — Uma lesma faz parte da família dos moluscos, que possuem corpos moles, sem espinha dorsal. E essas coisinhas são chamadas de antenas e estão ligadas ao cérebro. A lesma tem um intestino tubular que termina na boca e movimenta-se por meio de um pé com orlas dentadas.

            — Christopher — interrompi friamente. — Quando Cory e eu desejarmos saber algo a respeito dos intestinos tubulares das lesmas, enviar-lhe-emos um telegrama. Por favor, vá sentar-se num prego e aguardar o telegrama.

           — Quer ser ignorante pelo resto da vida?

           — Sim! — retruquei irritada. — Quando se trata de lesmas, prefiro não saber nada!

           Cory foi comigo ver Carrie juntar pedaços de papel roxo e colá-los. Seu método de trabalho era atabalhoado, ao contrário do cauteloso labor de Cory. Carrie usou a ponta redonda de sua tesoura para abrir um buraco naquela... coisa roxa. Por detrás do buraco, colou um pedaço de papel vermelho. Quando terminou de montar a... coisa, batizou-a de minhoca. O objeto ondulava como uma gigantesca jibóia, faiscando o único e malévolo olho vermelho com cílios pretos semelhantes a pernas de aranhas.

           — Chama-se Charlie — declarou, entregando-me a “minhoca” de quase um metro e meio. (Quando nos chegavam às mãos coisas ainda sem nome, nós lhes dávamos um nome começado por C, para que pertencessem à “família”.)

           Numa parede do sótão, em meio ao nosso lindo jardim de flores de papel, colamos a lesma epiléptica ao lado da feroz e ameaçadora minhoca. Oh, formavam um belo par! Chris sentou-se e pintou um grande aviso vermelho: TODOS OS ANIMAIS: CUIDADO COM MINHOCAS!!!

           Pintei outro aviso, achando que a pequena lesma de Cory era quem corria perigo: HÁ UM MÉDICO NESTA CASA? (Cory batizou sua lesma de Cindy Lou.)

           Mamãe riu ao ver as realizações daquele dia. Estava satisfeita por verificar que nos divertíamos.

           — Sim, naturalmente há um médico nesta casa — declarou, curvando-se para beijar o rosto de Chris. — Este meu filho sempre soube como tratar um animal doente. E, Cory, adoro sua lesma, ela parece... tão... tão sensível.

           — Gosta do meu Charlie? — quis saber Carrie, ansiosa. — Foi feito com capricho. Usei todo o roxo para torná-lo maior. Agora, não temos mais roxo.

           — É uma linda minhoca; na realidade, uma minhoca maravilhosa — disse mamãe, pegando os gêmeos no colo e dando-lhes os beijos e abraços que às vezes esquecia de dar. — Especialmente aqueles cílios negros que você colocou em volta do olho vermelho, um grande efeito.

           Foi uma cena íntima; acolhedora: os três na poltrona e Chris sentado no braço desta, com o rosto próximo ao de mamãe. Então, tive que me meter para estragar tudo, como era meu detestável costume.

           — Quantas palavras por minuto você consegue bater agora, mamãe?

           — Estou melhorando.

           — O quanto?

           — Estou fazendo o melhor possível, no duro, Cathy. Já lhe disse que o teclado não tem letras.

           — E a taquigrafia? Com que velocidade consegue tomar um ditado?

           — Estou tentando. É preciso ter paciência. Coisas assim não se aprendem da noite para o dia.

           Paciência. Eu coloria a paciência de cinzento, com nuvens negras pairando acima. Coloria a esperança de amarelo, como o sol que só conseguíamos enxergar nas curtas horas matinais. Logo ele subia no céu e desaparecia de vista, deixando-nos desolados a fitar o céu azul.

           Quando as pessoas crescem e têm uma porção de coisas adultas a fazer, esquecem o quanto pode ser comprido o dia para uma criança. Parecia que tínhamos vivido quatro anos no decurso daquelas sete semanas. Então, chegou outra temida sexta-feira, em que precisávamos pular da cama ao alvorecer e correr como loucos para livrar o quarto e o banheiro de qualquer vestígio de nossa existência. Eu tirava os lençóis das camas e os embolava juntamente com as fronhas e os cobertores, estendendo as colchas diretamente sobre os colchões, da maneira como a avó ordenara que fizéssemos.

            Na noite anterior, Chris já desmontara os trilhos do trem. Trabalhamos como alucinados para deixar o quarto arrumado e imaculadamente limpo; depois, o banheiro. Em seguida, a avó chegava com a cesta de piquenique e mandava que subíssemos com ela para o sótão, onde fazíamos a refeição matinal. Eu limpara meticulosamente, todas as nossas impressões digitais e os móveis de mogno brilhavam.

            A avó fez uma carranca terrível ao perceber o fato e diabos me levem se ela não utilizou a poeira do aspirador de pó para deixar todos os móveis empoeirados novamente!

           Às sete horas estávamos no sótão, mais precisamente na sala de aulas, comendo nosso mingau frio de cereais, acompanhado de passas e leite. Escutávamos levemente o barulho que as empregadas faziam ao empurrarem os móveis de nosso quarto. Nas pontas dos pés, avançamos até o vão da escada e nos encolhemos no último degrau, ouvindo o que se passava lá embaixo, embora mortos de medo de sermos descobertos a qualquer momento.

           Escutar os movimentos, risadas e conversas das criadas, enquanto a avó permanecia junto à porta do armário mandando-as limpar os espelhos, polir os móveis e arejar os colchões, tudo aquilo me provocava a mais estranha sensação. Por que as criadas não percebiam algo diferente? Não tínhamos deixado ara trás algum odor que indicasse o fato de Cory fazer pipi na cama com freqüência? Era como se nós realmente não existíssemos, como se não estivéssemos vivos e nossos odores fossem imaginários. Abraçamo-nos com força, muita força.

            As criadas não entraram no armário embutido; não abriram a porta alta e estreita. Não nos viram ou escutaram, nem pareceram achar estranho que a avó não tenha abandonado o quarto por um segundo, mesmo quando elas estavam no banheiro esfregando a banheira, limpando o vaso sanitário, limpando o chão de ladrilhos.

           Aquela sexta-feira operou algo estranho em todos nós. Creio que murchamos as nossas avaliações de nós mesmos, pois mais tarde não encontramos o que dizer. Não tivemos prazer em nossas brincadeiras ou livros, permanecendo calados ao recortarmos nossas margaridas e tulipas de papel, à espera de que mamãe trouxesse de volta consigo a esperança.

           Não obstante, éramos jovens e, nessa idade, a esperança tem raízes profundas e fortes, que descem até a ponta dos pés. Quando entramos no sótão e vimos nosso jardim que crescia a cada dia, conseguimos rir e fingir. Afinal, estávamos deixando nossa marca no mundo. Fazíamos uma coisa bela do que antes fora sujo e feio.

           Os gêmeos decolaram como borboletas, voando por entre as flores pendentes das vigas. Chris e eu os empurramos bem alto nos balanços, criando correntes de ar que balançavam loucamente as flores. Escondíamo-nos atrás de árvores de papier-mâché da altura de Chris e sentávamo-nos em cogumelos do mesmo material, cobertos com almofadas de espuma de borracha colorida que eram, com toda a franqueza, melhores que o artigo genuíno; ao menos para quem não tinha um apetite especial para comer cogumelos...

           — É lindo! — exclamou Carrie, rodopiando sem parar, segurando a curta saia pregueada, de modo que éramos obrigados a ver as novas calcinhas franzidas de renda que mamãe lhe dera de presente na véspera. Todas as roupas e sapatos novos tinham que passar a primeira noite com Carrie e Cory em suas camas. (É horrível acordar à noite com o rosto colado a um sapatinho de tênis.)

           — Também serei bailarina! — exclamou alegremente, continuando a girar até que, eventualmente, caiu.

           Cory correu para verificar se ela se machucara. Carrie começou a berrar ao ver o sangue escorrer de um corte no joelho.

           — Oh... se machuca, não quero ser bailarina!

           Eu não ousava deixá-la saber que machucava; oh, Deus, como doía!

           Tempos atrás, eu passeara em jardins de verdade, em florestas reais e sempre sentira sua mágica aura, como se algo mágico e maravilhoso estivesse à espera logo após a primeira curva. Para tornar nosso jardim de sótão encantado, Chris e eu engatinhamos pelo chão desenhando margaridas com giz branco e traçando um círculo em volta delas. Do interior daquele círculo mágico com flores brancas todo o mal fora banido. Ali, podíamos sentar-nos no chão com as pernas cruzadas e, à luz de uma única vela, Chris e eu inventávamos compridas e complicadas estórias de fadas boas que cuidavam das crianças pequenas, bem como feiticeiras malvadas que sempre eram derrotadas.

           Então, Cory falou. Como sempre, era ele quem fazia as perguntas mais difíceis de responder.

           — Para onde foi toda a grama?

           — Deus levou a grama para o céu — disse Carrie, livrando-me da obrigação de inventar uma resposta.

           — Por quê?

           — Para papai. Ele gosta de aparar o gramado.

           Os olhos de Chris encontraram os meus. E julgávamos que eles tinham esquecido papai...

           Cory franziu a testa, olhando as pequenas árvores de papelão feitas por Chris.

           — Onde estão todas as árvores grandes?

           — No mesmo lugar — respondeu Carrie. — Papai gosta de árvores grandes.

           Dessa vez, desviei os olhos. Como eu detestava mentir para os gêmeos, falar com eles daquela maneira era apenas uma brincadeira infindável, que eles pareciam suportar com mais paciência que Chris e eu. E eles nunca nos perguntaram por que motivo precisávamos fazer aquela brincadeira.

           Nunca a avó subira ao sótão para perguntar o que estávamos fazendo, embora ela abrisse freqüentemente a porta do quarto da maneira mais silenciosa possível, esperando que não ouvíssemos o barulho da chave girando na fechadura. Espiava pela fresta, tentando pegar-nos fazendo algo “maldoso” ou “pecaminoso”.

           No sótão, ficávamos livres para fazer o que quiséssemos sem medo de represálias, a menos que Deus empunhasse um chicote. Nem uma só vez a avó se retirou de nosso quarto sem nos lembrar que Deus estava vendo tudo, embora ela estivesse ausente. De vez que ela nem sequer entrava no armário embutido para abrir a porta do vão da escada do sótão, minha curiosidade ficou espicaçada. Lembrei-me de perguntar a mamãe tão logo ela chegasse, a fim de não me esquecer mais uma vez.

            — Por que a avó nunca sobe ao sótão para ver o que estamos fazendo? Por que apenas pergunta e julga que respondemos a verdade?

           Mamãe, parecendo fatigada e desanimada, derreara-se em sua poltrona “especial”. Seu novo costume de lã verde parecia muito caro. Fora ao cabeleireiro e mudara o penteado. Respondeu-me de modo distraído, como se pensasse em coisas mais agradáveis:

           — Oh, não lhes contei antes? Sua avó sofre de claustrofobia, um distúrbio emocional que lhe causa falta de ar em qualquer ambiente confinado. Entendam: quando ela era criança, os pais costumavam trancá-la num armário como castigo.

            Puxa! Como era difícil imaginar que aquela mulher enorme algum dia tivesse sido bastante jovem e pequena para ser castigada. Quase senti pena da criança que ela fora, mas lembrei-me de que parecia muito feliz em manter-nos trancados. Aparecia em seus olhos, sempre que nos encarava: a petulante satisfação de ter-nos capturado de modo tão hábil. Ainda assim, era peculiar que o destino lhe tivesse imposto tal medo, que nos dava bons motivos para beijarmos as estreitas paredes daquele vão de escada.

            Chris e eu costumávamos especular sobre o modo como móveis tão grandes e pesados tinham sido levados até o sótão. Certamente, seria impossível manobrá-los através do estreito armário embutido e subir com eles pela escada, que mal tinha trinta centímetros de largura. E, embora déssemos uma busca cuidadosa para encontrar outra porta maior no sótão, não conseguimos. Talvez existisse alguma escondida atrás de um dos gigantescos armários pesados demais para que pudéssemos movê-los. Chris julgava que os móveis maiores poderiam ter sido içados até o telhado e, depois, passados através de uma das janelas maiores do sótão.

            Todos os dias a bruxa-avó entrava em nosso quarto para apunhalar-nos com aquele olhar duro e rosnar através dos lábios finos e retorcidos. Todos os dias, fazia-nos sempre as mesmas perguntas: “O que estiveram planejando? O que fizeram no sótão? Deram graças antes das refeições de hoje? Ajoelharam-se ontem à noite e pediram a Deus que perdoe seus pais pelo pecado que cometeram? Estão ensinando aos dois menores a palavra do Senhor? Usaram o banheiro juntos, meninos e meninas?” — nesse ponto, seus olhos faiscavam: “Têm sido sempre recatados? Ocultam as partes privadas de seus corpos dos olhares dos outros? Tocam seus corpos quando não é necessário por motivos de higiene?”

           Oh, Deus! Como ela fazia a pele parecer algo sujo! Depois que ela saía, Chris ria.

           — Acho que ela cola as roupas de baixo no corpo — pilheriava ele.

           — Não! Usa pregos! — replicava eu.

           — Já notou como ela gosta da cor cinza?

           Se eu notara? Quem não notaria? Sempre cinza. Algumas vezes o cinza tinha listras quase invisíveis de vermelho ou azul, por outras, um leve desenho em relevo quase imperceptível, ou jacquard, mas o tecido era invariavelmente o mesmo: tafetá, com o broche de brilhantes fechando a frente sem decote, suavizada apenas por debruns de crochê feito à mão. Mamãe sempre nos dissera que uma viúva da cidadezinha mais próxima confeccionava aqueles uniformes que pareciam armaduras blindadas.

           — Essa tal senhora é muito amiga de minha mãe. E usa cinza porque é muito mais barato comprar tecido por peça do que por metro. E pensar que seu avô possui uma tecelagem que fabrica tecidos finos, em algum lugar da Geórgia.

           Puxa vida! Até os ricos tinham que ser sovinas!

           Uma tarde de setembro, desci correndo a escada do sótão para ir ao banheiro e esbarrei na avó! Ela me agarrou pelos ombros, fitando-me furiosamente.

           — Olhe por onde anda, menina! — estrilou. — Por que tanta pressa?

            Seus dedos pareciam aço através do fino tecido de minha blusa. Como ela falara primeiro, eu podia responder.

           — Chris está pintando uma paisagem maravilhosa — expliquei, sem fôlego. — E preciso voltar logo com água fresca antes que a primeira demão seque. É importante manter as cores limpas e nítidas.

           — Por que ele não vem buscar a água? Por que você serve de criada para ele?

           — Porque ele está pintando e perguntou se eu me importava de vir buscar água fresca. Eu não estava fazendo nada, só observando. E os gêmeos derramariam a água.

           — Idiota! Nunca sirva de criada para um homem. Obrigue-o a cuidar-se sozinho. Agora, diga logo a verdade: o que estão realmente fazendo lá em cima?

           — Palavra de honra! Estou dizendo a verdade. Estamos dando duro para enfeitar o sótão, a fim de que os gêmeos não tenham medo de lá. E Chris é um artista maravilhoso.

           Ela franziu os lábios zombeteiramente e indagou, desdenhosa:

           — Como você poderia saber?

           — Ele tem talento artístico; todos os seus professores afirmavam isso.

           — Ele lhe pediu para posar... sem roupas?

           Fiquei chocada.

            — Não! Claro que não!

           — Então, por que está tremendo?

           — Estou... com medo... de você — gaguejei. — Todos os dias, vem perguntar-nos que coisas pecaminosas e más estamos fazendo. Na verdade, não sei o que pensa que estejamos fazendo. Se não nos explicar exatamente, como podemos evitar fazer algo ruim, não sabendo o que é ruim?

           Ela me olhou de cima a baixo e sorriu, sarcástica.

           — Pergunte a seu irmão mais velho; ele sabe o que quero dizer. O macho da espécie já nasce sabendo tudo que é ruim.

           Rapaz, cheguei a piscar! Chris não era ruim ou mau. Havia ocasiões em que me irritava, mas não era pecaminoso. Tentei explicar isso à avó, mas ela nem quis escutar.

           Mais tarde, naquele mesmo dia, ela entrou em nosso quarto trazendo um vaso de barro com crisântemos amarelos. Encaminhou-se diretamente a mim, colocou-me o vaso nas mãos.

           — Eis aqui algumas flores de verdade para seu jardim de mentira — disse com indiferença.

           Partindo dela, foi algo tão inesperado que me tirou o fôlego. Iria ela mudar; encarar-nos de modo diferente? Seria capaz de aprender a gostar de nós? Agradeci-lhe efusivamente as flores. Talvez tenha sido efusiva demais, pois ela girou nos calcanhares e saiu a passos rígidos, como se estivesse embaraçada.

           Carrie veio correndo afundar o rostinho na massa de pétalas amarelas.

           — Lindas — comentou. — Posso ficar com elas, Cathy?

           Claro que podia ficar com elas. Com grande reverência, o vaso de flores foi colocado no peitoril da parte leste do sótão para receber sol. Nada podíamos ver senão colinas e as montanhas distantes, com as árvores no intervalo; acima delas, uma névoa azulada. As flores de verdade passavam as noites conosco, de modo que os gêmeos pudessem acordar de manhã e ver perto de si algo belo e vivo, que crescia com eles.

 

           Sempre que me lembro de ser jovem, torno a ver aquelas colinas e montanhas cobertas de névoa azulada, e as árvores rigidamente perfiladas nas encostas. E sinto outra vez o cheiro do ar seco e poeirento que respirávamos no sótão. Vejo de novo as sombras do sótão, que se mesclavam tão bem às sombras de minha mente. E volto a escutar as silenciosas indagações sem resposta: Por quê? Quando? Por quanto tempo?

           Amor... Eu depositava tanta fé nele.

           Verdade... Eu continuava a acreditar que ela sai dos lábios da pessoa que mais amamos e em quem mais confiamos.

           Confiança... Está intimamente ligada ao amor e à verdade. Onde termina um e começa outro? Como saber que o amor é o mais cego?

           Mais de dois meses se haviam passado e o avô continuava vivo.

           Ficávamos em pé, sentávamo-nos, deitávamo-nos nos largos parapeitos das janelas do sótão. Olhávamos, tristonhos e sonhadores, os topos das árvores que, do verde escuro de verão, assumiam da noite para o dia os brilhantes tons de vermelhos, dourados, alaranjados e marrons trazidos pelo início do outono. O espetáculo me comovia; creio que comovia a todos nós, inclusive os gêmeos, assistir à partida do verão e à chegada do outono. E só podíamos observar, mas nunca participar.

           Meus pensamentos voavam freneticamente, desejando fugir daquela prisão e encontrar o vento que me desfizesse os cabelos, me fustigasse o rosto, fizesse com que eu me sentisse viva outra vez. Ansiava pela companhia de todas as crianças que corriam em liberdade pelos gramados pardacentos, esfregando os pés nas folhas secas que estalavam, como eu fazia outrora.

           Por que eu nunca entendera, quando podia correr livremente, que estava experimentando a felicidade? Por que eu pensava, naquela época, que a felicidade estava sempre no futuro, quando eu fosse adulta, capaz de tomar minhas decisões, seguir meu caminho, ser dona de meu nariz? Por que me parecia que ser criança nunca era suficiente? Por que julgava que a felicidade estava reservada aos adultos?

           — Você parece triste — comentou Chris, que estava junto de mim, com Cory sentado ao lado dele e Carrie ao meu outro lado.

           Naqueles dias, Carrie era como minha pequena sombra, seguindo-me aonde eu fosse, fazendo tudo que eu fazia e imitando o modo como ela julgava que eu me sentia, exatamente como Chris também tinha sua pequena sombra em Cory. Para haver quatro irmãos mais unidos que nós, teriam que ser quádruplos siameses.

           — Não vai responder? — indagou Chris. — Por que está tão triste? As árvores estão lindas, não estão? Quando é verão, eu penso que gosto mais do verão; entretanto, quando chega o outono, acho que gosto mais do outono; e no inverno, esta é minha estação predileta, mas na primavera acho que esta é a melhor época.

            Sim, aquele era meu Boneco Christopher. Vivia o momento e sempre o achava bom, a despeito das circunstâncias.

           — Eu estava relembrando a velha Sra. Bertram e sua enfadonha conversa sobre o famoso Chá de Boston. Fazia a história tão chata e as pessoas tão irreais. Mesmo assim, eu gostaria de voltar a ficar enfadada daquele modo.

           — Sim — concordou ele. — Compreendo o que você quer dizer. Eu também achava a escola uma chateação e história uma matéria sem graça. Em especial a história dos Estados Unidos, com exceção dos índios e do velho Oeste. Mas, pelo menos, íamos à escola e fazíamos a mesma coisa que as outras crianças da nossa idade. Agora, estamos apenas perdendo tempo, sem fazer nada. Cathy, não desperdicemos um minuto! Preparemo-nos para o dia em que sairmos daqui. Se não estabelecermos com firmeza em nossas mentes os objetivos que desejamos alcançar e lutarmos sempre para atingi-los, jamais conseguiremos chegar lá. Eu me convencerei de que se não puder ser médico não desejarei ser qualquer outra coisa, nem vou querer qualquer coisa que o dinheiro possa comprar!

           Fez a declaração com profunda intensidade. Eu desejava ser uma grande bailarina, mas aceitaria alguma outra coisa. Chris franziu a testa, como se lesse meus pensamentos. Fitou-me com os olhos muito azuis e ralhou porque eu não fizera uma só vez meus exercícios de balé desde que tínhamos vindo para aquela casa.

           — Cathy, amanhã fixarei uma barra na parte do sótão que já terminamos de enfeitar. Você vai treinar cinco ou seis horas por dia, exatamente como na escola de balé!

           — Negativo! Ninguém me obrigará a fazer coisa nenhuma! Além disso, não se pode fazer posições de balé sem usar roupas adequadas a isso!

           — Que estupidez!

           — Sou estúpida! Você, Christopher, é um gênio!

           Comecei a chorar e fugi do sótão, correndo por entre a flora e a fauna de papel. Corri, corri, corri para a escada. Voei, voei, voei pelos degraus íngremes e estreitos, desafiando o destino a fazer-me cair. Quebrar-me uma perna ou o pescoço, deixando-me morta em um caixão. Então, todos ficariam tristes; chorariam pela grande bailarina que eu deveria ter sido.

           Joguei-me na cama e solucei no travesseiro. Nada havia ali senão sonhos, esperanças, nenhuma realidade. Eu ficaria velha e feia, jamais voltaria a ver uma porção de pessoas. Aquele velho lá embaixo era capaz de viver até cento e dez anos! Todos aqueles médicos conseguiriam mantê-lo vivo para sempre e eu perderia a Noite das Bruxas: nada de truques, brincadeiras, festas ou doces. Cheia de autocomiseração, jurei que alguém pagaria, e pagaria bem caro, por tudo aquilo; alguém pagaria!

           Usando seus sujos sapatos brancos de tênis, eles vieram a mim, meus dois irmãos e minha irmãzinha, cada qual tentando reconfortar-me com pequenos presentes de suas queridas posses: os lápis de cor de Carrie, o livro das estórias de Pedro Coelho de Cory; mas Chris limitou-se a ficar sentado, olhando para mim. Nunca me senti tão pequena.

           Uma noite, bem tarde, mamãe chegou com uma grande caixa e me entregou para abrir. Dentro dela, entre camadas de papel de seda, estavam roupas de balé: uma cor-de-rosa vivo, outra azul-turquesa, com malhas e sapatilhas combinando com os saiotes de tule. “De Christopher”, estava escrito no cartão dentro da caixa. E havia, também, discos de música de balé. Comecei a chorar ao abraçar minha mãe e, depois, meu irmão. Desta feita, não eram lágrimas de frustração ou desespero. Agora, eu tinha um objetivo pelo qual lutar.

           — Eu queria, acima de tudo, comprar uma roupa de balé branca para você — disse mamãe, ainda me abraçando. — Tinham uma linda, num tamanho maior que o seu, com uma touca de penas brancas que tapam as orelhas, especial para O Lago dos Cisnes. Encomendei uma do tamanho certo, Cathy. Três roupas devem ser o bastante para dar-lhe inspiração, não é mesmo?

           Oh, sim! Quando Chris prendeu solidamente a barra a uma parede do sótão, passei a treinar horas a fio, enquanto a música tocava. Não existia um enorme espelho por detrás da barra, como havia nas escolas de dança que eu freqüentara; mas eu tinha na cabeça um gigantesco espelho natural, no qual via-me como Pavlova dançando diante de dez mil espectadores encantados. Repetia os números e curvava-me para receber dúzias de buquês de rosas, todas elas vermelhas. Com o tempo, mamãe trouxe-me discos de todos os bailados de Tchaikovsky, que eram tocados num toca-discos elétrico que, por meio de uma dúzia de fios de extensão, fora ligado a uma tomada em nosso quarto.

            Dançar ao som da linda música transportava-me, fazendo-me esquecer momentaneamente que a vida passava depressa, deixando-nos para trás. O que importava, desde que eu dançasse? Era melhor fazer piruetas e simular que tinha um parceiro para amparar-me quando eu assumia as posições mais difíceis. Eu caía, levantava-me e recomeçava a dançar até perder o fôlego e sentir dores em todos os músculos. As malhas grudavam-se a meu corpo com o suor e meu cabelo ficava molhado. Eu permanecia estirada no chão para descansar. Ofegante; depois, levantava-me e voltava à barra para fazer os pliés. Às vezes, eu era a Princesa Aurora em A Bela Adormecida; outras, dançava também a parte do príncipe, pulando alto no ar e batendo os pés um contra o outro.

           Certa feita ergui os olhos em meus espasmos finais da morte do cisne e vi Chris nas sombras do sótão, observando-me com uma expressão muito estranha. Logo ele faria aniversário: o décimo quinto. Como se explicava que já parecesse um homem e não um menino? Seria apenas aquela vaga expressão em seu olhar que revelava a rápida mudança da infância para a maturidade?

           Nas pontas dos pés, em pointe, realizei uma seqüência de pequenos passos, rápidos e iguais, que supostamente dão a impressão de que a bailarina está deslizando sobre o palco e criando o que é conhecido poeticamente por “colar de pérolas" Dessa forma, cheguei até Chris e estendi os braços para ele.

           — Venha, Chris, seja meu danseur; deixe-me ensinar-lhe.

           Ele sorriu, aparentemente divertido, mas sacudiu a cabeça e declarou que era impossível.

           — O balé não é para mim. Mas eu gostaria de aprender a valsar, se a música for de Strauss.

           Aquilo me fez rir. Na ocasião, as únicas músicas de valsa que possuíamos (à exceção de bailados) eram velhos discos de Strauss. Corri ao toca-discos para tirar O Lago dos Cisnes e colocar Danúbio Azul.

           Chris era desajeitado. Segurava-me erradamente, como se embaraçado. Pisou em minhas sapatilhas cor-de-rosa. Mas era tocante o esforço que ele fazia para tentar corretamente os passos mais simples. E senti-me incapaz de dizer-lhe que todos os seus talentos deviam residir no cérebro e na habilidade de suas mãos de artista, pois certamente nenhuma parcela deles lhe escorrera para as pernas e os pés. Não obstante, a música de Strauss tinha algo doce e encantador, era romântica e fácil de dançar, tão diferente das atléticas valsas de bailados que deixavam a gente suada e sem fôlego.

           Quando mamãe finalmente entrou pela porta com a maravilhosa roupa branca especial para O Lago dos Cisnes, um lindo corpete justo coberto de penas, uma touca também de penas, sapatilhas brancas e uma malha branca tão fina que o rosado de minha pele aparecia através dela, mal consegui respirar!

            Oh! Parecia que o amor, a esperança e a felicidade podiam ser trazidos ao nosso confinamento numa gigantesca caixa de cetim branco com um laço violeta e entregues a mim por alguém que realmente se importara comigo quando outro alguém que gostava de mim lhe dera a idéia.

 

       Dança, bailarina, dança, e faz tuas piruetas

       Em ritmo com teu coração ferido.

       Dança, bailarina, dança, não deves esquecer

       Que precisas o bailado terminar.

       Uma vez, disseste que o amor tinha que esperar,

       Pois querias antes a fama, o teu grande objetivo.

       Vivemos e aprendemos... O amor se foi, bailarina; acabou.

 

            Eventualmente, Chris conseguiu dançar valsa e fox-trot. Quando tentei ensinar-lhe o charleston, ele recusou:

           — Não preciso aprender todos os tipos de dança, como você. Não trabalharei no palco; só quero aprender a entrar numa pista de danças com uma garota sem fazer papel de palhaço.

           Eu praticamente nascera dançando. Não havia tipo de dança que eu fosse incapaz ou não quisesse dançar.

           — Chris, você precisa saber uma coisa: não poderá passar o resto da vida dançando apenas valsa e fox-trot. Todo ano surge uma nova moda, como no caso das roupas. É preciso atualizar-se, adaptar-se. Venha, vamos dançar um pouco de jazz para desenferrujar suas juntas rígidas, que devem estar quase paralíticas de tanto você ficar sentado lendo.

           Parei de valsar e corri ao toca-discos para colocar um novo número: “Você não passa de um cão de caça”.

           Levantei os braços e comecei a girar os quadris.

           — Você precisa aprender a dançar o rock'n'roll, Chris. Escute o ritmo, solte o corpo e aprenda a movimentar os quadris, como Elvis Presley. Vamos... fique com os olhos semicerrados, parecendo sonolento, sexy... e faça beicinho, porque senão nenhuma pequena se apaixonará por você.

           — Então nenhuma pequena se apaixonará por mim.

           Foi assim que ele falou, uma declaração lacônica e muito séria. Chris jamais permitiria que alguém o forçasse a fazer algo que contrariasse a idéia que ele fazia de si mesmo e, sob certo aspecto, eu gostava dele por ser assim: forte, resoluto, decidido a ser ele mesmo, embora seu tipo já tivesse saído de moda há muito tempo. Meu Sir Christopher, o galante cavaleiro.

           À maneira de Deus, mudávamos as estações no sótão. Retiramos as flores e penduramos folhas de outono, coloridas em tons de marrom, ferrugem, vermelho e dourado. Se ainda estivéssemos lá quando o inverno chegasse, substituiríamos as cores de outono por desenhos brancos rendados, que já estávamos recortando para tal eventualidade. Fizemos gansos e patos selvagens com cartolina branca, cinzenta e preta, pendurando-os em bandos, de asas abertas, virados na direção do sul. Era fácil fazermos aves: bastavam ovais alongados, com esferas fazendo às vezes de cabeça. Pareciam lágrimas aladas.

           Quando Chris não estava sentado, com o nariz enfiado num livro, pintava à aquarela panoramas com colinas cobertas de neve e lagos congelados onde deslizavam patinadores. Inseria nas paisagens pequenas casas amarelas e cor-de-rosa, quase cobertas pela neve, com fumaça saindo das chaminés.

            E, ao longe, uma enevoada torre de igreja. Quando terminava a paisagem, pintava a moldura como se fosse uma esquadria de janela. Ao pendurarmos o quadro na parede, tínhamos uma sala com visão panorâmica!

           Outrora, Chris sempre implicara comigo e eu nunca conseguia agradá-lo. Um irmão mais velho... Ali, porém, mudamos, tanto ele como eu, da mesma forma que alteramos o nosso mundo no sótão. Deitados lado a lado num colchão velho, manchado e malcheiroso, conversávamos horas a fio, fazendo planos para o tipo de vida que levaríamos quando estivéssemos livres e ricos como Midas.

            Viajaríamos o mundo inteiro. Chris conheceria e se apaixonaria pela mulher mais bela e sexy, que também era brilhante, compreensiva, encantadora, espirituosa e ótima companhia; ela seria a dona-de-casa perfeita, a mais fiel e devotada das esposas, a melhor das mães jamais brigaria, reclamaria, choraria ou duvidaria das decisões de Chris, nem ficaria desapontada ou desencorajada se ele cometesse enganos estúpidos no mercado de capitais e perdesse até o último vintém. Compreenderia que ele fizera o melhor possível e em breve, com sua brilhante inteligência, tornaria a ganhar uma fortuna.

           Rapaz! Chris me deixava deprimida. Como, nesse mundo, eu conseguiria satisfazer as necessidades de um homem como ele? De um modo ou outro, compreendi que ele estava estabelecendo o padrão pelo qual eu julgaria todos os meus futuros pretendentes.

           — Chris, essa mulher inteligente, encantadora, espirituosa, linda, não poderá ter um só pequenino defeito?

           — Por que deveria ter?

            — Veja nossa mãe, por exemplo: você acha que ela é isso tudo, exceto, talvez, brilhante.

           — Mamãe não é estúpida! — defendeu ele, com veemência. — Ela apenas foi criada no meio ambiente errado! Foi reprimida quando criança; obrigaram-na a sentir-se inferior por ser do sexo feminino.

           Quanto a mim, após ser uma prima ballerina por vários anos e estar pronta para casar-me e lançar raízes, não sabia que tipo de homem desejar se ele não estivesse à altura de Chris ou de meu pai. Desejava um homem bonito, isso eu sabia, pois queria ter filhos bonitos. E brilhante, sob pena de não respeitá-lo. Antes de aceitar o anel de noivado, eu me sentaria para jogar muitos jogos contra ele; se eu ganhasse uma vez ou outra, sorriria, sacudiria a cabeça e o mandaria devolver o anel à joalheria.

           E enquanto fazíamos planos para o futuro, nossos vasos de filodendros murcharam; nossas folhas de trepadeira amarelaram antes de morrer. Trabalhávamos com ardor, dispensando às nossas plantas um tratamento carinhoso, conversando com elas, suplicando-lhes, implorando-lhes que fizessem o favor de parar de parecerem doentes, se animassem e erguessem a cabeça. Afinal, pegavam o sol mais saudável: o sol matinal do leste.

           Dentro de poucas semanas, Cory e Carrie pararam de implorar para sair. Carrie já não esmurrava a pesada porta de carvalho e Cory deixou de tentar arrombá-la a pontapés com seus pezinhos miúdos calçados de tênis macios, que não impediam a formação de equimoses nos artelhos.

           Passaram a aceitar com docilidade o que antes renegavam com veemência: o “jardim” do sótão era o único “lá fora” de que dispunham. E com o tempo, por mais pena que isso causasse, esqueceram a existência de outro mundo que não aquele onde estávamos aprisionados.

           Chris e eu arrastamos vários colchões velhos para perto das janelas do leste, de modo que podíamos escancarar as janelas e tomar banho de sol, absorvendo os raios benéficos que já não precisavam atravessar as vidraças sujas para chegarem até nós. Crianças necessitam de sol para o crescimento. Bastava-nos olhar para nossas plantas moribundas e verificar o que o ar do sótão estava causando às nossas folhagens.

           Sem o menor embaraço, despíamo-nos inteiramente e tomávamos banho de sol durante o curto tempo em que ele entrava pelas nossas janelas. Víamos as diferenças anatômicas existentes entre nós e pouca importância lhes dávamos. Com a maior franqueza, contamos à mamãe o que fazíamos para evitar que morrêssemos por falta de sol. Mamãe olhou de Chris para mim e deu um sorriso amarelo.

           — Está bem, desde que não deixem sua avó saber. Ela não aprovaria, como vocês bem sabem.

           Atualmente, compreendo que ela olhou para Chris, e depois para mim, à procura de sinais que indicassem nossa inocência ou o despertar de nossa sexualidade. E o que viu deve ter-lhe dado alguma confirmação de que ainda éramos apenas crianças, embora ela devesse saber melhor das coisas.

           Os gêmeos adoravam ficar despidos e brincar como bebês. Gargalhavam, soltavam risadinhas quando usavam termos incompreensíveis para nós e gostavam de olhar para os locais de onde vinha o “du-du”, bem como imaginavam por que motivo o fazedor de “di-di” de Cory era tão diferente do de Carrie.

           — Por que, Chris? — indagou Carrie, apontando para o que ele tinha. Cory também tinha, mas ela e eu não tínhamos.

           Continuei a ler O Morro dos Ventos Uivantes e tentei ignorar aquela conversa tola.

            Chris, porém, tentou dar uma resposta adequada e, também, verdadeira:

           — Todas as criaturas do sexo masculino possuem os órgãos sexuais no lado de fora do corpo, e todas as do sexo feminino no lado de dentro, guardados.

           — Guardados com bom gosto — comentei.

           — Sim, Cathy; sei que você aprova seu corpo de tanto bom gosto e eu aprovo o meu de tanto mau gosto, de modo que devemos estar felizes pelo fato de serem como são. Nossos pais aceitavam nossos corpos despidos como aceitavam nossos olhos e cabelos; assim faremos nós, também. E esqueci um detalhe: os pássaros machos possuem os órgãos arrumados no lado de dentro do corpo, com bom gosto, da mesma forma que as fêmeas.

           Intrigada, perguntei:

       — Como sabe?

       — Sabendo.

       — Leu em algum livro?

       — Que outra coisa poderia ser? Acha que apanhei uma ave e a examinei?

       — Partindo de você, eu não duvidaria.

       — Pelo menos, leio para aperfeiçoar o cérebro e não apenas para distraí-lo.

       — Vai ser um homem muito chato, eu o previno... E se um pássaro macho tem órgãos sexuais guardados dentro do corpo, não é uma fêmea?

            — Não!

           — Mas não compreendo, Chris. Por que as aves são diferentes?

           — Precisam de formas aerodinâmicas para voar.

            Mais uma vez, eu ficava perplexa e ele tinha todas as respostas. Eu deveria saber que o cérebro dos cérebros tinha as respostas...

           — Muito bem. Mas por que os pássaros machos são assim? E deixe de lado o detalhe da forma aerodinâmica.

           Ele vacilou, com o rosto muito vermelho, e procurou um meio de responder delicadamente.

           — Os pássaros machos ficam excitados e isso faz o que está dentro vir para fora.

           — Como ficam excitados?

           — Cale a boca e leia seu livro, e deixe-me ler o meu!

           Alguns dias fazia muito frio para tomarmos banho de sol. Depois, o clima ficou gelado, de modo que até mesmo usando nossas roupas mais quentes e pesadas ainda tremíamos de frio, a menos que corrêssemos. Logo o sol matinal se afastou do leste, deixando-nos desolados e desejosos de que o sótão tivesse janelas no lado sudeste. Mas as janelas estavam com os postigos fechados e pregados com tábuas.

           — Não importa — disse mamãe. — O sol da manhã é o mais saudável.

           Palavras que não nos animavam, pois nossas plantas estavam morrendo, uma a uma, no sol mais saudável.

           No início de novembro o sótão começou a ficar frio como o Pólo Ártico. Batíamos dentes, espirrávamos com freqüência, e reclamamos a mamãe que precisávamos de um fogão com uma chaminé, pois ambos os fogões da sala de aulas tinham sido desligados. Mamãe falou em trazer um aquecedor elétrico ou a gás, mas temia que um aquecedor elétrico pudesse provocar um incêndio caso fosse ligado a muitos fios de extensão, e um aquecedor a gás também precisaria de um chaminé.

           Trouxe-nos pesadas roupas de baixo e grossos casacos de esquiar, com capuzes, bem como calças de esquiar, em cores brilhantes e forradas com lã. Trajando essas roupas, íamos diariamente para o sótão, onde podíamos ficar à vontade, escapando ao olhar sempre vigilante da avó.

           Em nosso quarto abarrotado, mal tínhamos espaço para andar sem esbarrar em alguma coisa e ficar cheios de equimoses. No sótão, ficávamos frenéticos, gritando enquanto nos perseguíamos mutuamente, brincando de esconder; montávamos pequenas peças teatrais numa atividade desenfreada. Às vezes, brigávamos, discutíamos, chorávamos e, depois, voltávamos às brincadeiras frenéticas. Tínhamos paixão por brincar de esconder. Chris e eu fazíamos planos para a brincadeira terrivelmente ameaçadora, apavorando, mas não muito, os gêmeos, que já temiam suficientemente as “coisas ruins” que se ocultavam nas escuras sombras do sótão. Carrie relatava ansiosamente ter visto monstros escondidos sob os móveis protegidos por capas de pano.

            Um dia, percorríamos a zona polar do sótão à procura de Cory.

            — Vou descer — declarou Carrie, com o rostinho cheio de ressentimento, o beicinho esticado.

            Seria inútil tentar convencê-la a ficar para continuar a brincadeira, pois era teimosa demais. Afastou-se, petulante, em seu traje vermelho de esquiar, deixando-me com Chris para procurarmos Cory. Geralmente, ele era muito fácil de encontrar. O modo mais correto de procurá-lo era ir ao local onde Chris se escondera pela última vez; portanto, bastava-nos ir direto ao terceiro armário e lá estaria Cory, agachado no chão, escondido sob um monte de roupas velhas, sorrindo para nós. Dávamos-lhe um pouco de tempo para divertir-se, evitando o local durante um certo intervalo. Então, decidimos “encontrá-lo”. E quando olhamos... ele não estava lá!

           — Diabo! — exclamou Chris. — Afinal, resolveu ser criativo e escolheu um lugar original para esconder-se.

           Era o resultado de ler tantos livros: falar difícil. Limpei o nariz e dei mais uma olhada em volta. Para quem fosse realmente criativo, existiam milhões de esconderijos nas múltiplas alas do sótão.

            Podíamos levar muitas horas para encontrar Cory. Eu estava com frio, cansada, irritada, farta de brincar todos os dias da mesma maneira porque Chris insistia em manter-nos ativos.

           — Cory! — berrei. — Venha de onde estiver! Está na hora do almoço!

           Ora, aquilo deveria ser o bastante para fazê-lo aparecer. As refeições eram acolhedoras e dividiam os nossos longos dias em diversas partes.

           Ele continuou a não responder. Olhei para Chris, furiosa.

           — Sanduíches de creme de amendoim com geléia de uvas! — gritei.

           Era a comida predileta de Cory e deveria trazê-lo correndo. Mesmo assim, nenhum ruído nem resposta; nada!

           De repente senti medo. Não podia acreditar que Cory tivesse perdido o temor do imenso sótão sombrio e estivesse, afinal, levando a brincadeira a sério. Contudo, suponhamos que estivesse querendo imitar Chris ou eu? Oh, Deus!

           — Chris! — bradei. — Precisamos achar Cory, depressa!

           Chris deixou-se contagiar por meu pânico; girou nos calcanhares e correu, chamando pelo nome de Cory, ordenando-lhe que parasse com a brincadeira de esconder. Ambos corremos, procurando, chamando repetidamente o nome de Cory. A brincadeira terminara e estava na hora do almoço. Nenhuma resposta. E eu estava quase gelada a despeito de todas as roupas que usava. Até minhas mãos pareciam azuladas.

           — Oh, meu Deus! — murmurou Chris, estacando. — E se ele se escondeu num dos baús? A porta pode ter caído e o trinco fechado!

           Cory morreria sufocado!

           Corremos como loucos, procurando, abrindo as tampas de cada um dos velhos baús. Jogamos longe pantalonas, anáguas, camisolas, espartilhos, camisas, ternos, sempre impulsionados por crescente terror. E durante todo o tempo, eu rezava a Deus para que não deixasse Cory morrer.

           — Eu o encontrei, Cathy! — gritou Chris.

           Girei nos calcanhares e vi Chris tirando o pequeno corpo inerte de dentro de um baú cujo trinco caíra, fechando-o lá dentro. Com as pernas bambas de alívio, tropecei até eles e beijei o rosto pálido de Cory, que assumira uma coloração estranha por falta de oxigênio. Seus olhos entreabertos estavam fora de foco e ele praticamente perdera os sentidos.

           — Mamãe — sussurrava. — Quero minha mamãe...

           Mas mamãe estava a quilômetros de distância, aprendendo datilografia e taquigrafia. Só nos restava uma avó impiedosa, que não sabíamos como localizar numa emergência.

            — Vá depressa e encha a banheira, em primeiro lugar — disse-me Chris. — Com água quente, mas não demais. Não queremos escaldá-lo.

           Então tomou Cory nos braços e correu atrás de mim na direção da escada.

           Cheguei primeiro ao banheiro e corri à banheira. Olhei para trás e vi Chris depositar Cory na cama. Então, debruçou-se sobre o menino, tapou-lhe o nariz e abaixou-se até cobrir com a boca os lábios de Cory, que estavam abertos e azuis. Meu coração quase parou! Estaria morto? Deixara de respirar?

           Carrie olhou de relance o que estava acontecendo, viu o irmão gêmeo azul e imóvel e começou a berrar.

           No banheiro, abri totalmente ambas as torneiras; a água correu com força. Cory ia morrer! A água correu com força e depois as torneiras começaram a lançar um jato constante. Eu sempre pensava na morte... e a maioria de meus sonhos se tornavam realidade! Como sempre, exatamente quando julgava que Deus nos voltara às costas e não se importava mais conosco, eu me agarrava desesperadamente à minha fé, implorando a Ele que não deixasse Cory morrer... por favor, Deus, por favor, por favor, por favor...

           Talvez minhas desesperadas preces contribuíssem tanto para reviver Cory quanto a respiração artificial que Chris lhe aplicava.

            — Está respirando outra vez — disse Chris, pálido e trêmulo, ao carregar Cory para a banheira. — Agora, tudo o que precisamos fazer é aquecê-lo.

           Num piscar de olhos, despimos Cory e o mergulhamos na banheira de água quente.

           — Mamãe — balbuciou Cory ao recobrar os sentidos. — Quero mamãe.

           Repetia incessantemente aquelas palavras e tive vontade de esmurrar as paredes por causa de tal injustiça! Quem devia estar ali era a mãe dele, não uma mãe “faz-de-conta”, que nem sabia como agir. Eu queria sair dali, mesmo que precisasse mendigar pelas ruas!

           Todavia, repliquei num tom calmo, que levou Chris a erguer a cabeça para lançar-me um olhar de aprovação:

           — Por que não faz de conta que eu sou mamãe? Farei por você tudo que ela faria, como segurá-lo no colo e embalá-lo para dormir enquanto canto uma canção de ninar. Farei isso logo que você almoçar e tomar um pouco de leite.

           Chris e eu estávamos ajoelhados quando pronunciei essas palavras. Chris massageava os pezinhos de Cory, enquanto eu lhe esfregava as mãos frias para voltar a esquentá-las. Quando a pele de Cory voltou à cor normal, nós o enxugamos, vestimos-lhe seu pijama mais quente, depois o enrolamos num cobertor e o acomodamos na velha cadeira de balanço que Chris trouxera do sótão.

            Sentei-me com meu irmãozinho encolhido no colo, cobri-lhe o rosto de beijos e murmurei-lhe ao ouvido coisas que o fizeram soltar risadinhas.

           Se podia rir, também podia comer; dei-lhe pequenos pedaços de sanduíche e goles de sopa morna, entremeados com longos sorvos de leite. Enquanto fazia isso, amadurecia, ficava mais velha. Em dez minutos, envelheci dez anos. Lancei um olhar de esguelha a Chris quando este se sentou para almoçar, e percebi que ele também mudara. Agora, sabíamos que havia real perigo no sótão, além do vagaroso enfraquecimento por falta de sol. Todos nós enfrentávamos perigos muito piores que os camundongos e aranhas que persistiam em sobreviver, a despeito de todos os esforços que despendíamos para exterminá-los por completo.

            Sozinho, Chris subiu os estreitos degraus da íngreme escada que levava ao sótão, o rosto sombrio ao entrar no armário embutido. Eu continuava a balançar na cadeira, segurando Cory e Carrie no colo, cantando uma cantiga de ninar. De repente, ouvi um feroz martelar lá em cima, um barulho enorme, que os criados poderiam escutar.

           — Cathy — disse Cory bem baixinho, enquanto Carrie começava a cochilar. — Não gosto de não ter mais minha mãe.

           — Você tem uma mãe: eu.

           — Você é tão boa como uma mãe de verdade?

           — Sim, creio que sou. Eu o amo muito, Cory, e é isso que faz uma mãe de verdade.

           Cory me fitou com os olhos azuis muito abertos, para ver se eu era sincera ou apenas zombava de sua necessidade. Então, seus bracinhos me envolveram o pescoço e ele apoiou a cabeça no meu ombro.

            — Estou com tanto sono, mamãe... mas não pare de cantar.

           Eu ainda balançava a cadeira e cantava baixinho quando Chris retornou com uma expressão satisfeita.

           — Nunca mais um daqueles baús se fechará inadvertidamente — declarou. — Quebrei todos os trincos. E as fechaduras dos armários também!

           Assenti com a cabeça.

           Chris sentou-se na cama mais próxima e observou o ritmo da cadeira de balanço, escutando a canção que eu continuava a cantar. Seu rosto ruborizou-se vagarosamente e ele pareceu embaraçado.

           — Sinto-me tão isolado, Cathy. Importa-se de eu sentar primeiro e depois vocês três ficarem no meu colo?

           Papai costumava fazer isso: sentava-nos todos em seu colo, inclusive mamãe. Seus braços eram bastante compridos e fortes para envolver-nos todos de uma só vez e dar-nos a sensação mais gostosa e cálida de segurança e amor. Imaginei se Chris conseguiria fazer o mesmo.

           Sentados na cadeira de balanço, com Chris abraçando-nos no colo, vi de relance nossa imagem no espelho do lado oposto do quarto. Fui invadida por uma sensação estranha, que fazia a cena parecer irreal. Chris e eu dávamos a impressão de pais de bonecas, edições mais jovens de papai e mamãe.

           — A Bíblia diz que existe uma hora para tudo — disse ele num murmúrio, a fim de não despertar os gêmeos. — Hora de nascer, de plantar, de colher, de morrer, e assim por diante. E esta é a nossa hora de sacrifício. Mais tarde, chegará nossa hora de viver e aproveitar a vida.

           Virei a cabeça, apoiando-a em seu ombro juvenil, sentindo-me grata por ele ser sempre tão otimista e entusiasta. Era gostoso ter seus jovens braços fortes em torno de mim, quase tão protetores e gostosos como tinham sido os de papai.

           E Chris tinha razão. Nossa hora de felicidade havia de chegar, no dia em que saíssemos daquele quarto e descêssemos para assistir a um enterro.

 

Festas de Fim de Ano

           No comprido talo da açucena apareceu um único botão: um calendário vivo que nos fez lembrar que o Dia de Ação de Graças e o Natal se aproximavam. A açucena era a nossa única planta que ainda continuava viva e, de longe em comparação com tudo o mais, constituía nossa posse mais querida. No final de cada dia, era levada para baixo, a fim de passar as noites em nosso quarto aquecido. Cory, o primeiro a levantar-se todas as manhãs, corria para examinar o botão, ansioso por verificar se este sobrevivera à noite. Carrie em breve se juntava a ele, postando-se a seu lado para admirar a planta rústica, valente e vitoriosa, que permanecia viva quando todas as outras tinham morrido. Em seguida, os gêmeos estudavam o calendário de parede, para ver o dia que estava marcado com uma circunferência verde, indicando que a planta deveria receber fertilizante. Depois, apalpavam a terra do vaso, sentindo a umidade e sabendo se era preciso regá-la. Confiavam na própria capacidade de julgamento, mas sempre vinham perguntar:

           — Devemos regar Amaryllis? Acham que ela está com sede?

           Jamais havíamos possuído alguma coisa, viva ou inanimada, à qual não déssemos um nome. E Amaryllis estava decidida a sobreviver. Nem Cory nem Carrie confiavam em suas forças infantis para carregarem o pesado vaso até a janela do sótão, onde o sol ainda batia, embora por tempo muito curto. Eu tinha permissão para levar Amaryllis ao sótão, mas era Chris quem descia com ela no final do dia. E, todas as noites, revezávamo-nos na tarefa de marcar com um grande X vermelho o dia que passara. Já tínhamos riscado cem dias.

           As chuvas frias chegaram e os ventos fortes começaram a soprar; às vezes um denso nevoeiro escondia o sol matinal. Os galhos secos das árvores roçavam na casa à noite e me acordavam, fazendo-me prender o fôlego e esperar, esperar, esperar que algo horrível entrasse no quarto para devorar-me.

           Um dia em que chovia a cântaros e, mais tarde, nevaria, mamãe chegou ofegante ao nosso quarto, trazendo um caixa de belos artigos para decoração de festas para colocarmos em nossa mesa no Dia de Ação de Graças[1] e torná-la festiva. Incluíra entre os objetos uma toalha amarelo-brilhante e guardanapos cor de laranja, com franjas nas bordas.

           — Teremos convidados para o almoço de amanhã — explicou, largando a caixa sobre a cama mais perto da porta e fazendo menção de girar nos calcanhares para tornar a sair. — E vão assar dois perus: um para nós e outro para os criados. Mas não ficarão prontos a tempo de sua avó incluí-los na cesta de piquenique. Mas não se preocupem. Não permitirei que meus filhos passem um Dia de Ação de Graças sem uma festa digna da ocasião. Darei um jeito de trazer alguma comida quente: um pouco de cada coisa que nos servirem. Acho que farei uma grande encenação para servir pessoalmente meu pai e aproveitarei para preparar uma bandeja ao mesmo tempo em que a dele, a fim de trazê-la para vocês. Devo chegar aqui por volta da uma hora.

            E saiu da mesma forma como entrara, como o vento, deixando-nos na expectativa de uma lauta e quente refeição no Dia de Ação de Graças.

           Carrie quis saber:

           — O que é Dia de Ação de Graças?

           Cory respondeu:

           — O mesmo que dar graças a Deus antes das refeições.

           Sob certo aspecto, creio que ele tinha razão. E já que dissera algo voluntariamente, longe de mim reprimi-lo com alguma crítica.

           Enquanto Chris segurava os gêmeos no colo, sentado em uma das grandes poltronas, expliquei-lhes a respeito do primeiro Dia de Ação de Graças, muito tempo atrás, enquanto me ocupava como qualquer hausfrau[2] muito feliz para arrumar uma mesa festiva no dia santificado. Os cartões que marcavam nossos lugares à mesa eram quatro perus de roda aberta, a plumagem amarela e laranja feita de papel. Tínhamos duas grandes velas comemorativas para acender, dois casais de Peregrinos[3] e duas velas índias, mas eu jamais acenderia velas tão lindas para vê-las derretidas e transformadas em massas disformes de cera. Coloquei velas comuns para acendermos na mesa e guardei as velas caras e bonitas para outras refeições do Dia de Ação de Graças, quando estivéssemos fora daquele lugar. Escrevi nossos nomes, com caligrafia caprichada, nos quatro pequenos perus e coloquei um em frente de cada prato.

            Nossa mesinha tinha sob o tampo uma prateleira onde guardávamos nossa louça e talheres. Após cada refeição, eu os lavava no banheiro, numa pequena tina de plástico. Chris os enxugava e depois os guardava na prateleira sob a mesa, à espera da próxima refeição.

           Arrumei os talheres com extremo cuidado: garfos à esquerda, facas à direita, com as lâminas voltadas para os pratos, e as colheres. Nossa louça era porcelana Lenox, Com uma larga orla azul e friso de ouro de 24 quilates, tudo isso estava gravado no fundo das peças. Mamãe já me dissera que se tratava de louça velha, de que os criados não dariam por falta. Naquele dia, utilizamos copos de cristal, com pé. Não consegui resistir à tentação de recuar para admirar minha obra artística. A única coisa que faltava eram flores; mamãe deveria ter-se lembrado de trazer flores.

           A uma hora chegou e passou. Carrie reclamou em altos brados:

           — Vamos almoçar agora, Cathy!

           — Tenha paciência. Mamãe vai trazer para nós comida quente especial e peru assado, com todos os acompanhamentos.

           Com minhas tarefas de dona-de-casa terminadas temporariamente, deitei-me na cama, feliz, para ler mais um trecho de Lorna Doone.

           — Cathy, meu estômago não tem paciência! — disse Cory, trazendo-me de volta de meados do século XVII.

            Chris estava mergulhado num mistério de Sherlock Holmes, que seria rapidamente solucionado na última página. Não seria maravilhoso se os gêmeos acalmassem os estômagos, cuja capacidade era de apenas alguns gramas, e lessem como Chris e eu?

           — Coma algumas passas, Cory.

           — Não tem mais nada.

           — O modo correto de falar é: “não tem mais” ou “as passas acabaram”.

           — Não tem mais nada, palavra de honra!

           — Coma amendoim

           — Os amendoins terminaram. Falei certo?

           — Sim — suspirei. — Coma uma bolacha.

           — Carrie comeu a última bolacha.

           Naquela hora ele não queria mais bolachas.

           Duas horas. Agora estávamos todos mortos de fome. Nossos estômagos tinham sido acostumados a comer ao meio-dia em ponto. O que estaria detendo mamãe? Ia comer antes para depois trazer nossa comida? Não fora isso que ela dissera.

           Pouco depois das três horas, mamãe entrou correndo, com uma bandeja de prata enorme, cheia de travessas. Trajava um vestido de jérsei azul e trazia o cabelo penteado para trás, preso na altura da nuca por uma travessa de prata. Rapaz! Como estava linda!

            — Sei que estão mortos de fome — começou, desculpando-se logo de saída. — Mas meu pai mudou de idéia e resolveu, em cima da hora, usar a cadeira de rodas e comer à mesa com todo mundo.

           Exibiu um sorriso contrariado.

           — Sua mesa está linda, Cathy. Você fez tudo exatamente como devia. Desculpe-me por ter esquecido as flores; eu não devia. Mas temos nove convidados, todos conversando comigo e fazendo um milhão de perguntas a respeito de onde estive durante tanto tempo, que vocês nem podem imaginar como foi difícil esgueirar-me até a copa quando o mordomo não estava olhando. Puxa! John parece ter olhos até nas costas. E vocês nunca viram alguém tão impaciente como eu; os convidados devem estar pensando que fui indelicada, ou simplesmente fiquei louca. Mas consegui fazer os pratos de vocês e escondê-los. Depois, voltei à mesa, muito sorridente, e comi uma garfada antes de pedir licença para assoar o nariz em outra sala. Atendi a três telefonemas dados por mim mesma da linha particular que tenho no quarto. Fui obrigada a disfarçar a voz para ninguém perceber e desejava realmente trazer fatias de torta de abóboras para vocês, mas John já tinha cortado a torta e colocado as fatias em pratos de sobremesa, de modo que nada pude fazer. Ele notaria se faltassem quatro pedaços.

           Soprou-nos um beijo, regalou-nos com um sorriso brilhante, mas contrafeito, e desapareceu pela porta.

           Puxa! Nós realmente lhe complicávamos a vida!

           Corremos à mesa para comer.

           Chris baixou a cabeça para dar graças com tanta pressa que Deus não deve ter ficado muito impressionado conosco naquele dia em que seus ouvidos deveriam vibrar com palavras mais eloqüentes.

           — Obrigado, Senhor, por esta tardia refeição de Ação de Graças. Amém.

           Sorri interiormente, pois era muito característico de Chris ir direto ao assunto; naquele momento, o assunto era fazer as vezes de anfitrião e colocar a comida nos pratos que lhe estendíamos, cada um por sua vez. Nos pratos de “Exigente” e “Melindrosa”, colocou uma fatia de peito de peru, um pouco de legumes e uma quantidade mínima de salada. As porções médias cabiam a mim; naturalmente, serviu-se por último: grandes quantidades para aquele que precisava alimentar-se melhor, o cérebro da família.

           Chris dava a impressão de estar morrendo de fome. Levava à boca enormes garfadas de um purê de batatas que já estava quase frio. Tudo estava quase frio; a salada de gelatina começava a derreter-se e a alface estava murcha.

           — Não gostamos de comida fria! — berrou Carrie, fitando o belo prato servido por Chris, com pequenas porções arrumadas num círculo perfeito.

            Uma coisa não se podia negar a respeito de Chris: era meticuloso.

           A julgar pelo modo como ela olhava para o prato, a Srta. Melindrosa parecia estar vendo cobras e lagartos e o Sr. Exigente imitava a expressão enojada de sua irmã gêmea.

           — Falando com franqueza, cheguei a ter um pouco de pena de mamãe, que tanto se esforçara para trazer-nos uma gostosa refeição quente e, com isso, estragara seu almoço, além de fazer papel de tola perante os convidados. E, agora, aqueles dois não iam comer coisa alguma! Depois de passarem três horas reclamando e insistindo que estavam famintos! Crianças!

           O gênio à minha frente fechou os olhos para deliciar-se com o prazer de ter algo diferente: comida deliciosa, preparada com esmero, em lugar daquela porcaria jogada apressadamente numa cesta de piquenique antes das seis da manhã. Todavia, para fazer-se justiça à avó, é preciso ressaltar que ela nunca nos esquecia; devia acordar ainda no escuro para chegar à cozinha antes do cozinheiro e das empregadas.

           Então, Chris fez algo que realmente me chocou. Sabia muito bem que não devia espetar com o garfo um enorme pedaço de peito de peru e enfiá-lo inteiro na boca! O que havia com ele?

           — Não coma assim, Chris. Dá mau exemplo você sabe a quem.

           — Não estão olhando para mim — replicou ele com a boca cheia de comida. — E estou morto de fome. Nunca me senti tão faminto na vida e tudo está delicioso.

           Delicadamente, cortei meu pedaço de peru em pedacinhos menores e coloquei alguns na boca, para mostrar àquele suíno em frente a mim a maneira correta de portar-se à mesa. Engoli primeiro e depois disse:

           — Tenho pena de sua futura esposa! Ele se divorciará de você com menos de um ano de casamento. Ele continuou a comer, surdo e mudo a qualquer coisa senão o prazer de sentir o gosto da comida.

           — Cathy — disse Carrie. — Não seja malvada com Chris, porque não gostamos de comida fria e, de qualquer maneira, não vamos mesmo comer. Não queremos.

            — Minha mulher me adorará tanto que ficará encantada ao pegar minhas meias sujas. E, Carrie, você e Cory gostam de mingau frio com passas; portanto, comam!

           — Não gostamos de peru frio... e essa coisa marrom em cima das batatas parece esquisita.

           — Essa coisa escura se chama molho e está delicioso. E os esquimós adoram comida fria.

           — Cathy, os esquimós gostam de comida fria?

           — Não sei, Carrie. Acho melhor gostarem, senão morrerão de fome.

           Pelo que me é mais sagrado, não consegui ver qualquer ligação entre a comida dos esquimós e nossa refeição do Dia de Ação de Graças.

            — Chris, não tinha algo melhor para dizer? Por que falar em esquimós?

           — Esquimós são índios. E os índios fazem parte da tradição do Dia de Ação de Graças.

           — Oh...

           — Você sabe, é claro, que o continente norte-americano era ligado à Ásia — disse ele entre garfadas. — Os índios vieram da Ásia a pé e alguns deles gostaram tanto do gelo e da neve que simplesmente ficaram no círculo ártico, enquanto outros foram mais ajuizados e seguiram para o sul.

            — Cathy, o que é essa coisa molenga que parece gelatina? Com caroços?

           — É salada de uva-do-monte. Os caroços menores são uvas-do-monte e os maiores são nozes. A massa branca é creme de leite.

           E estava uma delícia; tinha também abacaxi picado.

           — Não gosto dessa coisa molenga.

           — Carrie — interveio Chris. — Já estou cansado do que você gosta e não gosta. Coma!

           — Seu irmão tem razão, Carrie. Está uma delícia. Os passarinhos adoram essas frutas e vocês são passarinhos, não são?

           — Passarinhos não comem frutas. Ele comem aranhas e outros insetos. Nós vimos quando eles comeram as aranhas. Pegavam direto da calha e engoliam sem mastigar! Não podemos comer o que os passarinhos comem.

           — Cale a boca e coma! — ordenou Chris, com a boca cheia.

           Ali estávamos nós, com a melhor comida (embora quase fria) que víamos desde que morávamos naquela casa detestável, e os gêmeos limitavam-se a olhar para os pratos, sem provar um só pedaço!

           E Chris devorava tudo que estava à vista, como um porco premiado na exposição!

            Os gêmeos provaram o purê de batatas com molho. O purê estava “encaroçado” e o molho “esquisito” provaram o recheio absolutamente divino e o declararam “encaroçado e esquisito”.

           — Então, comam as batatas-doces! — quase gritei. — Vejam como estão bonitas. São macias porque foram passadas no liquidificador e temperadas com marshmellow. Vocês adoram marshmellow; tem sabor de laranja e suco de limão.

           E pedi a Deus para que eles não notassem as “encaroçadas” nozes.

           Creio que somando os dois, sentados um em frente ao outro, remexendo a comida até transformá-la numa pasta, comeram o equivalente a três garfadas.

            Enquanto Chris sonhava com uma sobremesa que não viera, comecei a tirar a mesa. Então, por algum motivo extraordinário, Chris passou a ajudar-me! Não consegui acreditar. Ele sorriu de um modo que me desarmou e até mesmo beijou-me o rosto. E se boa comida era capaz de causar tal transformação num homem, eu estava disposta a aprender a cozinhar para gourmets. Chris até mesmo apanhou suas meias usadas antes de vir ajudar-me a lavar e secar a louça, os cristais e os talheres.

            Dez minutos depois que Chris e eu terminamos de arrumar tudo sob a mesa e cobri-la com uma toalha limpa, os gêmeos anunciaram simultaneamente:

           — Nossos estômagos estão doendo! Estamos com fome!

           Chris estava lendo na sua “escrivaninha”. Deixei Lorna Doone de lado, levantei-me da cama e dei a cada um dos gêmeos um sanduíche de creme de amendoim e geléia, tirados da cesta de piquenique.

           Enquanto eles comiam, dando pequenas dentadas nos sanduíches, atirei-me na cama e observei-os realmente perplexa. Como podiam gostar daquela porcaria? Ser pai ou mãe não era tão fácil ou delicioso como eu presumira anteriormente.

            — Não se sente no chão, Cory. Aí faz mais frio que numa cadeira.

           — Não gosto de cadeiras — replicou Cory.

           E espirrou.

          No dia seguinte, Cory adoeceu com uma forte gripe. Tinha o rostinho vermelho e febril. Reclamava de dores no corpo todo e nos ossos.

           — Cathy, onde está minha mamãe? Minha mamãe de verdade?

           Oh, como ele desejava a presença da mãe! Afinal, ela apareceu.

           Ficou imediatamente ansiosa ao examinar o rosto de Cory e foi correndo buscar um termômetro. Voltou com ar infeliz, acompanhada pela detestada avó.

           Com o fino tubo de vidro na boca, Cory olhava para a mãe como se um anjo dourado viesse socorrê-lo naquela hora de sofrimento. E eu, sua pretensa mãe, fiquei esquecida.

           — Querido, meu amado filhinho — ninava ela, após pegá-lo na cama e levá-lo no colo para a cadeira de balanço, onde não parava de beijar-lhe a testa. — Estou aqui, meu amor. Eu o amo. Tomarei conta de você e mandarei as dores embora. Coma direito, tome seu suco de laranjas como um bom menino e logo ficará bom.

           Recolocou-o na cama e ficou por perto até enfiar-lhe uma aspirina na boca e dar-lhe água para engolir o comprimido. Tinha os olhos azuis toldados de lágrimas de preocupação, e suas esguias mãos brancas mexiam-se nervosamente.

           Dois dias mais tarde, Carrie estava acamada ao lado de Cory, tossindo e espirrando como ele; sua temperatura subiu tão depressa que fiquei em pânico. Chris também parecia assustado. Desanimados e pálidos, os dois gêmeos jaziam lado a lado na enorme cama, com os dedinhos segurando as cobertas logo abaixo dos queixos arredondados.

           Estavam tão brancos que pareciam feitos de porcelana, e seus olhos azuis ficavam cada vez maiores à medida que se afundavam nos rostos: abatidos. Olheiras cada vez mais profundas faziam-nos parecer crianças assombradas. Quando nossa mãe não estava lá, aqueles dois pares de olhos imploravam mudamente a Chris e a mim que os livrássemos do sofrimento.

           Mamãe tirou uma semana de folga no curso de secretariado a fim de ficar com os dois gêmeos o máximo de tempo possível. Eu detestava que nossa avó julgasse necessário acompanhar mamãe toda vez que esta vinha ao nosso quarto. Estava sempre metendo o nariz onde não era chamada e dando palpites nos quais, não estávamos interessados. Já nos dissera que não existíamos e não tínhamos o direito de viver num mundo que Deus criara para os puros e santos como ela. Vinha apenas com intuito de torturar-nos ainda mais e privar-nos do conforto de termos nossa mãe a sós?

           O farfalhar de seus ameaçadores vestidos cinzentos, o som de sua voz, as batidas de seus passos pesados, a visão de suas enormes mãos pálidas, moles e carnudas, faiscando com anéis de brilhante e manchadas de marrom pela aproximação da morte... oh, sim, bastava vê-la para abominá-la.

           Por outro lado, lá estava mamãe, visitando-nos com freqüência, fazendo o possível para restituir a saúde aos gêmeos. Também exibia olheiras ao dar-lhes aspirina e água, e mais tarde suco de laranja e canja de galinha bem quente.

           Certa manhã, mamãe entrou apressadamente com uma grande garrafa térmica de suco de laranjas que ela acabava de espremer.

           — É melhor que os sucos congelados ou enlatados — explicou. — Tem uma grande quantidade de vitaminas A e C, que são ótimas para curar gripes.

           Em seguida, preparou uma lista das coisas que desejava que eu e Chris fizéssemos, acrescentando que devíamos dar suco aos gêmeos a intervalos freqüentes.

            Guardamos a garrafa no sótão, que, no inverno, era tão bom quanto qualquer geladeira.

           Bastou um olhar ao termômetro retirado da boca de Carrie para deixar de lado a pose controlada e entrar em pânico.

           — Trinta e nove graus e sete décimos! — exclamou ela. — Oh, Deus! Preciso levá-los a um médico, a um hospital!

           Eu estava distante do grande guarda-roupas, apoiando-me de leve nele com uma das mãos, exercitando as pernas como vinha fazendo diariamente desde que o sótão se tornara frio demais. Lancei um rápido olhar de esguelha a minha avó, tentando ler sua reação.

           A avó não tinha paciência com quem se descontrolava e fazia cenas.

           — Não seja ridícula, Corrine! Qualquer criança tem febre alta quando adoece. Não quer dizer coisa alguma. Você já devia saber disso. Um resfriado é apenas um resfriado.

           Chris ergueu bruscamente a cabeça do livro que estava lendo; achava que os gêmeos estavam seriamente gripados, ainda que não conseguisse imaginar como tinham contraído o vírus.

           A avó prosseguiu:

           — Sabe o que fazem os médicos para curar resfriados? Qualquer um sabe. Existem apenas três providências a tomar: ficar na cama, beber muito líquido e tomar aspirina. O que mais? E já não tomamos essas providências?

           Olhou-me com ar malévolo:

           — Pare de balançar as pernas, menina. Deixa-me nervosa.

           Voltou a dirigir os olhos e a voz a mamãe:

           — Ora, minha mãe tinha um ditado: os resfriados levam três dias chegando, três dias ficando e três dias indo embora.

            — E se estiverem gripados? — indagou Chris.

           A avó virou-lhe as costas, ignorando a pergunta. Não gostava do rosto de Chris; ele era parecido demais com papai.

           — Detesto quando pessoas que deviam saber o que estão fazendo questionam a opinião de gente muito mais velha, experiente e sábia. Todo mundo conhece as regras dos resfriados: seis dias para começar e ficar, três dias para ir embora. É o que sempre acontece. Eles ficarão bons.

           Como a avó previu, os gêmeos ficaram bons. Mas não em nove e sim em... dezenove dias. Bastaram repouso absoluto, líquidos e aspirina; nenhuma receita médica para ajudá-los a recuperar a saúde mais depressa. Durante o dia, os gêmeos ficavam na mesma cama; à noite, Carrie dormia comigo e Cory com Chris. Não sei por que Chris e eu não adoecemos também.

           Passávamos a noite inteira levantando e tornando a deitar; corríamos para buscar água e o suco de laranja mantido gelado na escada do sótão. Os gêmeos choravam para pedir doces, a presença de mamãe ou algo que lhes desentupisse o nariz. Se agitavam e tremiam, fracos e nervosos, preocupados por coisas incômodas que não sabiam expressar senão por meio daqueles olhos grandes e assustados que me partiam o coração. Enquanto estavam doentes, faziam perguntas que não costumavam fazer quando sãos... Não era esquisito?

            — Por que ficamos aqui em cima o tempo todo?

           — O andar de baixo foi embora?

           — Foi para onde o sol se esconde?

           — Mamãe nunca gosta mais de nós?

           — Não gosta mais de nós — corrigia eu.

           — Por que as paredes estão esquisitas?

           — Elas estão esquisitas? — replicava eu.

           — Chris também parece esquisito.

           — Chris está cansado.

           — Você está cansado, Chris?

           — Um pouco. Eu gostaria que vocês dormissem e parassem de fazer tantas perguntas. E Cathy também está cansada. Nós gostaríamos de dormir sabendo que vocês também estão dormindo profundamente.

           — Não ficamos profundos quando dormimos.

           Chris suspirou, pegou Cory e carregou-o para a cadeira de balanço. Logo depois, Carrie e eu também estávamos sentadas em seu colo. Ficamos balançando e contando estórias até as três da manhã. Noutras noites, líamos estórias até quatro horas ou mais. Se os gêmeos choravam e queriam mamãe, como faziam quase sem cessar, Chris e eu fazíamos às vezes de pai e de mãe, fazendo o possível para aquietá-los com cantigas de ninar. Balançávamos tanto a cadeira que as tábuas do assoalho começavam a ranger e, certamente, alguém lá embaixo poderia ter escutado.

           E durante todo o tempo escutávamos o vento soprando nas montanhas e colinas, raspando os galhos das árvores desfolhadas e fazendo a casa ranger, murmurando ameaçadoramente e, penetrando em frestas, uivava, gemia, soluçava e procurava, por todos os meios, fazer-nos compreender que não estávamos seguros.

           Falamos e lemos tanto em voz alta que Chris e eu ficamos roucos e quase doentes de fadiga. Rezávamos todas as noites, ajoelhados, pedindo a Deus que curasse os gêmeos.

           — Por favor, Senhor, faça-os voltar ao que eram.

            Chegou o dia em que a tosse diminuiu e as pálpebras insones começaram a pesar até se fecharem num sono tranqüilo. As mãos frias e esqueléticas da morte haviam-se estendido para pegar nossos pequeninos irmãos e relutavam em largá-los, pois os gêmeos só recuperaram a saúde muito devagar. Quando ficaram “bons”, já não eram o mesmo par robusto e cheio de vitalidade. Cory, que antes era calado, agora falava ainda menos. Carrie, que adorava o som da própria voz e tagarelava constantemente, tornou-se quase tão taciturna quanto Cory. E agora eu, que tinha o silêncio pelo qual tanto ansiara, queria de volta os gorjeios que antes se dirigiam sem parar a bonecas, carrinhos, trens, barquinhos, travesseiros, plantas, sapatos, vestidos, calcinhas, brinquedos, quebra-cabeças e jogos.

           Verifiquei a língua de Carrie, achando-a pálida, esbranquiçada. Assustada, fitei os dois rostinhos lado a lado num travesseiro. Por que eu tanto desejara que crescessem e se comportassem como se fossem mais velhos? A longa doença trouxera-lhes um amadurecimento repentino, colocando-lhes olheiras escuras sob os grandes olhos azuis e roubando-lhes a cor saudável. A febre e a tosse haviam deixado atrás de si uma expressão de sabedoria, às vezes irônica, de pessoas velhas e cansadas que se contentam com permanecer na cama sem se importarem em saber se o sol nasceu, ou deitou-se, ou nunca mais nascerá. Os gêmeos me causavam medo; seus rostos abatidos faziam-me sonhar com a morte.

            E durante todo o tempo o vento continuava a soprar.

           Eventualmente eles deixaram a cama e passaram a caminhar devagar pelo quarto. Pernas outrora tão gordas e rosadas, capazes de saltar e correr, estavam agora fracas e finas como talos de capim. Após a doença, os dois pareciam mais inclinados a apenas rastejar em vez de voar, a apenas sorrir em vez de gargalhar.      

            Fatigada, deixei-me cair de bruços na cama e pensei, pensei, pensei... Que podíamos Chris e eu fazer para restaurar o encanto infantil dos gêmeos?

           — Vitaminas! — proclamou mamãe quando Chris e eu fizemos questão de apontar-lhe as diferenças em nossos irmãos menores. — Vitaminas são exatamente do que eles necessitam. E vocês dois também. De agora em diante todos passarão a tomar uma cápsula de vitaminas por dia.

           Enquanto fazia tal declaração, ela ergueu a mão esguia e elegante para ajeitar os lindos cabelos caprichosamente penteados.

           — Ar fresco e sol vêm em cápsulas de vitaminas? — indaguei, sentada na cama e encarando uma mãe que se recusava a reconhecer o que havia de errado. — Depois que cada um de nós tomar uma cápsula diária de vitaminas, teremos de volta a saúde radiante de que gozávamos ao levarmos uma vida normal e passávamos a maior parte dos dias ao ar livre?

           Mamãe estava usando um vestido cor-de-rosa; o rosa lhe caía maravilhosamente, realçando-lhe a cor saudável e emprestando um cálido tom róseo aos cabelos brilhantes.

           — Cathy — replicou ela, lançando-me um olhar condescendente e movendo-se para ocultar as mãos. — Por que insiste invariavelmente em dificultar tanto as coisas para mim? Faço o possível. No duro! E a resposta é afirmativa: a pessoa pode ingerir, nas vitaminas, a saúde proporcionada pelo ar livre, é exatamente esse o motivo pelo qual se fazem vitaminas. Ou muitas delas, pelo menos.

            Sua indiferença fez-me doer ainda mais o coração. Olhei para Chris, que se mantinha de cabeça baixa, escutando tudo sem fazer comentários. Afinal, indaguei:

            — Mamãe, quanto tempo ainda vai durar nossa prisão?

           — Pouco tempo, Cathy; só mais um pouco de tempo... pode crer.

           — Mais um mês?

           — Possivelmente.

           — Você não podia arranjar um jeito de levar sorrateiramente os gêmeos para um passeio em seu carro? Tomaria providências para que os criados não vissem. Acho que isso faria uma diferença enorme para a saúde deles. Chris e eu não precisamos ir.

           Ela girou para encarar meu irmão mais velho e verificar se ele era meu cúmplice naquele complô, mas o rosto de Chris expressava inequívoca surpresa.

           — Não! Claro que não! Não posso correr tal risco! Nessa casa trabalham oito criados e, embora seus alojamentos sejam bastante isolados da casa principal, sempre existe alguém espiando por uma janela e ouviriam o motor do carro. Como são curiosos, olhariam para ver que direção eu tomaria.

           Repliquei num tom frio:

           — Então quer fazer o favor de arranjar um modo de trazer frutas frescas? Bananas, em especial? Sabe que os gêmeos adoram bananas e não comeram uma só desde que estamos aqui.

            — Trarei bananas amanhã. Seu avô não gosta delas.

           — O que tem ele a ver com isso?

            — Não compram bananas porque ele não gosta.

           — Todos os dias úteis, você vai e volta de automóvel do curso de secretariado. Pare para comprar bananas. E mais passas e amendoins. E por que não pode trazer, de vez em quando, um bocado de pipocas? Certamente isso não estragará os dentes das crianças!

           Ela meneou simpaticamente a cabeça, concordando verbalmente.

           — E de que você gostaria? — indagou a seguir.

           — Liberdade! Quero sair daqui. Estou farta de permanecer trancada num quarto. Quero que Chris saia; quero ver os gêmeos fora daqui. Quero que você alugue uma casa, ou compre uma casa... ou roube uma casa. Mas tire-nos aqui!

           — Cathy — começou ela, implorando. — Estou fazendo o melhor possível. Não lhes trago presentes cada vez que passo por aquela porta? O que mais precisam, além de bananas? Diga!

           — Você prometeu que ficaríamos aqui pouco tempo, e já se passaram meses.

           Ela estendeu as mãos num gesto de súplica:

           — Quer que eu mate meu pai?

           Atordoada, sacudi a cabeça.

           — Deixe-a em paz! — explodiu Chris no momento em que sua deusa fechou a porta atrás de si. — Ela faz por nós tudo o que pode! Pare de implicar com ela! É um milagre que ela ainda venha aqui, com você sempre a incomodá-la, não parando de fazer perguntas, como se não confiasse nela. Como sabe o quanto ela sofre? Acredita que esteja feliz sabendo que seus quatro filhos ficam trancados num quarto e só podem brincar num sótão?

           Era difícil, no caso de uma pessoa como nossa mãe, perceber o que ela pensava ou o que sentia. Sua expressão era sempre calma, imperturbável, embora muitas vezes aparentasse fadiga. Se, por um lado, suas roupas eram novas, caras e ela raramente usasse o mesmo traje duas vezes, por outro também recebíamos muitas roupas novas e caras. Não que isso fizesse alguma diferença para nós. Ninguém nos via, exceto a avó, e esta pouco se importaria se vestíssemos trapos, o que, na verdade, talvez até lhe arrancasse um sorriso de satisfação.

           Não subíamos ao sótão quando chovia ou nevava. Mesmo nos dias claros, o vento rosnava lá fora, gritando ao penetrar pelas frestas da casa.

            Uma noite, Cory acordou e me pediu:

           — Mande o vento embora, Cathy.

           Saí da cama, onde Carrie dormia encolhida, e me enfiei sob as cobertas com Cory, abraçando-o. Pobre menino magro, desejando tanto ser amado por sua verdadeira mãe... e só tinha a mim. Parecia muito miúdo e frágil, com se aquele vento indomável conseguisse soprá-lo para longe. Encostei o rosto em seus louros cabelos encaracolados e cheirosos, beijando-o como costumava fazer quando ele era um bebê e substituí minhas bonecas por dois bebês de verdade.

           — Não posso mandar o vento embora, Cory. Só Deus é capaz disso.

           — Então, diga a ele que não gosto do vento — replicou Cory, sonolento. — Diga a Deus que o vento quer entrar e me pegar.

           Abracei-o com mais força... nunca permitindo que o vento levasse Cory; nunca! Mas compreendi o que ele queria dizer.

           — Conte-me uma estória, Cathy, para eu poder esquecer o vento.

           Cory tinha uma estória predileta, que eu inventara para agradá-lo, à respeito de um mundo de fantasia em que criancinhas moravam numa casinha acolhedora, com o pai e a mãe que eram muito grandes e tinham força suficiente para colocar em fuga as coisas que causavam medo. Uma família de seis pessoas, com um jardim nos fundos da casa onde havia balanços pendurados em árvores gigantescas e plantas vivas floresciam; o tipo de plantas que sabiam como morrer no outono e renascer na primavera. Tinham um cão chamado Clover e um gato chamado Calico; um pássaro amarelo cantava o dia inteiro numa gaiola dourada e ninguém recebia gritos e surras; também não existiam portas trancadas e cortinas fechadas.

           — Cante uma cantiga, Cathy. Gosto quando você canta para me fazer dormir.

           Ajeitei-o bem nos meus braços e comecei a cantar a letra que eu escrevera para uma melodia que Cory costumava cantarolar... música saída de sua cabeça. Era uma canção destinada a afastar seu medo do vento e, talvez, também os meus temores. Foi minha primeira tentativa de fazer poesia.

       Escuto o vento descer da colina,

       Falando comigo na noite calada,

       Murmurando ao meu ouvido

       Palavras que não entendo

       Mesmo quando ele está perto.

 

       Sinto a brisa soprar do mar,

       Desfazer-me o cabelo e me acariciar,

       Mas nunca me pega pela mão

       Para mostrar compreensão;

       Nunca me afaga com ternura.

 

       Sei que um dia subirei a colina

       E encontrarei um novo dia,

       E uma voz p'ra dizer o que preciso ouvir:

       Se viverei mais um ano...

 

           E o meu pequenino adormeceu em meus braços, respirando regularmente, sentindo-se seguro. Por cima de sua cabeça vi Chris, com os olhos abertos fixos no teto. Quando terminei a canção, voltou-se para encarar-me. Seu décimo-quinto aniversário já passara, comemorado com um bolo de padaria e sorvete. Presentes, nós os recebíamos quase todos os dias. Agora, Chris possuía uma máquina fotográfica Polaroid e um relógio mais caro. Ótimo. Maravilhoso. Como podia satisfazer-se com tão pouco?

            Não percebia que nossa mãe já não era a mesma? Não notava que ela já não vinha visitar-nos todo dia? Seria tão ingênuo a ponto de acreditar em tudo que ela dizia, em todas as desculpas que apresentava?

           Véspera de Natal. Havia cinco meses que estávamos em Foxworth Hall. Nem uma única vez estivéramos nos pavimentos inferiores daquela mansão enorme e, muito menos, lá fora. Cumpríamos as regras: dávamos graças antes de todas as refeições; ajoelhados junto a nossas camas, rezávamos todas as noites; éramos recatados no banheiro; mantínhamos nossos pensamentos limpos, puros, inocentes... e, não obstante, parecia-me que a cada dia nossa comida piorava de qualidade.

           Convenci-me de que realmente não faria diferença perdermos uma vez as compras de Natal. Haveria outros Natais em que seríamos muito, muito ricos e poderíamos entrar nas lojas para comprar tudo o que quiséssemos. Como ficaríamos lindos em nossos trajes elegantes, boas maneiras, vozes suaves mas eloqüentes, que proclamariam ao mundo sermos alguém... alguém especial... amados, queridos, necessários!

           Naturalmente, Chris e eu sabíamos que Papai Noel não existia. Contudo, desejávamos que os gêmeos acreditassem em Papai Noel e não perdessem todo o glorioso encantamento de um homem gordo e jovial que percorria o mundo para entregar a todas as crianças exatamente o que elas queriam, mesmo quando não sabiam o que queriam até receberem o presente.

           Como seria a infância sem acreditar em Papai Noel? Não o tipo de infância que eu desejava para os nossos gêmeos!

           O Natal era uma época de grande ocupação, mesmo para quem vivia trancafiado, mesmo para quem começava a desesperar, duvidar, desconfiar, Em segredo, Chris e eu fizemos presentes para mamãe (que, na verdade, não necessitava de coisa alguma). E também para os gêmeos: gordos animais estofados, que costurávamos laboriosamente à mão e depois recheávamos com algodão. Eu fazia todo o trabalho de bordado nas caras, antes de os rechearmos. Em particular, trancada no banheiro, eu tricotava para Chris uma touca de lã vermelha; ela aumentava paulatinamente de tamanho, mas não parava de crescer; creio que mamãe se esquecera de ensinar-me algo a respeito de dimensões e arremates.

            Então, Chris apresentou uma sugestão absolutamente idiota e horrível:

       — Vamos fazer também um presente para a avó. Não é correto nós a deixarmos de fora. É ela quem traz nossa comida e leite; talvez um presente de Natal, prova de nossa consideração, seja exatamente o que falta para ganharmos sua afeição. E imagine como nossa vida seria muito mais agradável se ela ao menos nos tolerasse.

           Era estupidez bastante pensar que aquilo daria resultado, mas acabei acreditando na idéia e trabalhamos como escravos, horas a fio, preparando um presente para a velha bruxa que nos detestava. Em todo o período desde que chegáramos à mansão, ela nunca, nem uma única vez, pronunciara nossos nomes.

           Colamos linho numa moldura, a fim de esticá-lo bem, colamos nele pedras coloridas e depois aplicamos meticulosamente cordões dourados e marrons. Quando cometíamos um erro, tratávamos de refazer tudo com o máximo capricho, para que ela não notasse. A avó era perfeccionista e perceberia a mínima falha. E, na verdade, nós jamais daríamos a ela algo aquém do que nossos melhores esforços poderiam produzir.

           — Escutem — disse Chris novamente. — Eu acredito, de verdade, que temos uma possibilidade de captar a simpatia da avó. Afinal, ela é nossa avó e as pessoas mudam. Ninguém permanece estacionário. Enquanto mamãe se esforça para encantar seu pai, devemos trabalhar no sentido de encantar sua mãe. Embora ela se recuse a olhar para mim, não faz o mesmo em relação a você.

           Na realidade ela não olhava para mim; via apenas meus cabelos, por algum motivo fascinava-se com meus cabelos.

           — Não se esqueça, Cathy: ela nos deu crisântemos amarelos.

           Chris tinha razão: o fato já era uma palha à qual nos agarrarmos.

           No final da tarde, quase ao anoitecer, mamãe chegou ao nosso quarto com uma árvore de Natal viva, plantada numa pequena tina de madeira. Um pé de bálsamo, o que poderia ter mais perfume de Natal? O vestido de mamãe era de jérsei vermelho e brilhante; colava-se ao corpo, realçando todas as curvas que eu esperava ter algum dia. Mamãe estava risonha e alegre, transmitindo-nos sua alegria ao ficar conosco para ajudar-nos a enfeitar a árvore com os ornamentos e pequenas lâmpadas que ela também trouxera. Deu-nos quatro pés de meia para pendurarmos nos pés das camas, a fim de que Papai Noel os encontrasse e enchesse de presentes.

            — No próximo ano, passaremos o Natal morando em nossa própria casa — declarou sorridente. E eu acreditei.

       — Sim — acrescentou, ainda sorrindo e enchendo-nos de alegria. — No ano que vem, nessa época a vida será maravilhosa para todos nós. Teremos muito dinheiro para comprar uma casa como essa para nós e vocês ganharão tudo o que desejarem. Logo esquecerão esse quarto e o sótão, E todos esses dias ruins que vocês enfrentaram com tanta coragem ficarão no esquecimento, como se nunca tivessem acontecido.

           Beijou-nos, disse que nos amava e, quando a vimos sair, não nos sentimos abandonados, como antes. Mamãe encheu-nos os olhos, as esperanças, os sonhos.

           Mamãe veio à noite, enquanto dormíamos. Pela manhã, acordei e encontrei os pés de meia cheios até a boca. E havia inúmeros presentes empilhados junto à mesinha onde estava a árvore de Natal; em cada espaço disponível no quarto, brinquedos grandes, difíceis de embrulhar, para os gêmeos.

           Meu olhar encontrou o de Chris. Ele piscou um olho, sorriu e pulou da cama. Pegou os sinos prateados presos às rédeas de plástico das renas e sacudiu-os vigorosamente acima da cabeça.

           — Feliz Natal! — exclamou. — Acordem todos! Cory, Carrie, seus dorminhocos, abram os olhos, levantem-se e vejam! Venham ver o que Papai Noel nos trouxe!

           Eles emergiram lentamente dos sonhos, esfregando os olhos sonolentos, fitando com incredulidade os muitos brinquedos, os lindos embrulhos com pequenos cartões identificando os destinatários, os pés de meia listrados estufados de doces, balas, nozes, frutas, chicles, pirulitos de menta e Papais Noel de chocolate.

            Balas de verdade, afinal! Balas duras, do tipo colorido que as igrejas e escolas distribuem nas festas, a melhor espécie de balas para provocar cáries pretas nos dentes. Mas tudo tinha aparência e sabor tão natalinos!

           Cory ficou sentado na cama, perplexo, e tornou a esfregar os olhos, parecendo por demais maravilhado para falar.

           Carrie, porém, sempre conseguia encontrar o que dizer:

           — Como Papai Noel nos encontrou?

           — Oh, Papai Noel possui olhos mágicos — explicou Chris, pegando Carrie e colocando-a no ombro.

            Depois, estendeu a mão para pegar Cory também. Agia exatamente como papai teria agido, o que me trouxe lágrimas aos olhos.

           — Papai Noel jamais esqueceria propositalmente uma criança — acrescentou. — Além disso, sabia que vocês estavam aqui. Certifiquei-me disso, escrevendo-lhe uma longa carta fornecendo nosso endereço e acrescentando uma lista do que desejávamos. A lista tinha mais de um metro de comprimento.

           Engraçado, refleti, pois nossa lista do que todos os quatro queriam era bem curta e simples: queríamos sair dali, queríamos liberdade.

           Sentei-me na cama e olhei em volta, sentindo um nó agridoce na garganta. Mamãe realmente tentara, disso não havia dúvida. Tentara e, a julgar pela aparência, fizera o melhor possível. Amava-nos, importava-se conosco. Ora, devia ter levado meses para comprar tudo aquilo.

           Sentia-me envergonhada e contrita por tudo de mal que pensara dela. Eis o resultado de querer tudo e, ao mesmo tempo, não ter paciência nem confiança.

           Chris virou-se para mim com um olhar indagador.

           — Não vai sair da cama? Pretende ficar aí o dia inteiro? Não gosta mais de receber presentes?

           Enquanto Cory e Carrie rasgavam os papéis dos embrulhos, Chris se aproximou de mim, estendendo-me a mão.

           — Venha, Cathy. Aproveite o único Natal que terá em seu décimo-segundo ano de vida. Transforme-o num Natal ímpar, diferente de todos os outros que teremos no futuro.

           Seus olhos azuis suplicavam.

           Usava um amarrotado pijama de flanela vermelha com pintas brancas e tinha os cabelos dourados em total desalinho. Eu usava uma camisola vermelha de lã e meus cabelos compridos estavam muito mais desgrenhados que os dele. Peguei-lhe a mão cálida e ri. Natal era Natal, não importava onde estivéssemos; quaisquer que fossem as circunstâncias, era um dia que devia ser aproveitado. Abrimos todos os embrulhos, experimentamos nossas roupas novas, o tempo todo enfiando balas e doces na boca, antes da refeição matinal. E “Papai Noel” deixara-nos um bilhete recomendando que escondêssemos as balas e doces “de vocês sabem quem”. Afinal, coisas açucaradas ainda provocavam cáries dentárias. Até mesmo no dia de Natal.

           Sentei-me no chão, usando um novo roupão verde lindo de morrer. Chris trajava um novo roupão vermelho que combinava com o pijama. Eu vestira os gêmeos, com seus novos roupões azul-brilhante. Não creio que pudessem existir quatro crianças mais felizes que nós naquele início de manhã. As barras de chocolate estavam diabolicamente divinas e ainda mais doces por serem proibidas, Era um verdadeiro paraíso meter o chocolate na boca e devagar, muito devagar, deixá-lo derreter-se enquanto eu cerrava as pálpebras para melhor sentir o sabor. E, quando olhei, Chris também tinha os olhos fechados. Engraçado como os gêmeos comiam o chocolate, com os olhos arregalados, cheios de surpresa. Teriam esquecido as balas? Parece que sim, pois davam a impressão de estarem saboreando o paraíso. Quando escutamos o barulho da maçaneta, ocultamos rapidamente as balas e doces sob a cama mais próxima.

           Era a avó. Entrou calada, carregando a cesta de piquenique. Colocou a cesta sobre a mesinha de jogos. Não nos desejou “Feliz Natal”, nem disse “Bom-dia”, nem mesmo sorriu ou demonstrou por qualquer outro modo que se tratava de um dia especial. E não devíamos falar com ela a menos que nos dirigisse antes a palavra.

           Foi com relutância e receio, mas também com grande esperança, que peguei o comprido pacote embrulhado em papel de alumínio vermelho tirado de um dos presentes que mamãe nos trouxera. Por baixo do lindo papel estava nosso trabalho de colagem, no qual nós quatro havíamos colaborado para criar uma versão infantil do jardim perfeito. Os velhos baús do sótão haviam-nos fornecido ótimos materiais, como filigrana de seda para fazer as borboletas que esvoaçavam sobre flores bordadas em cores brilhantes. Como Carrie insistira em fazermos borboletas cor-de-púrpura, com pintas vermelhas (ela adorava a combinação dessas duas cores!) tínhamos feito as outras borboletas em tons pastéis. Se existia alguma borboleta de cores mais estranhas que as de Carrie, uma borboleta artificial, é claro, certamente seria a imaginada por Cory: amarela, com manchas verdes e pretas, e olhos feitos com minúsculas contas vermelhas. Nossas árvores eram feitas de cordões castanhos, combinados com pequenos seixos pardos para imitar casca, e tinham os galhos graciosamente entrelaçados, de modo que pássaros de cores vivas podiam pousar ou voar por entre as folhas. Chris e eu tínhamos retirado penas de galinha de travesseiros velhos, mergulhando-as em tinta de aquarela e deixando-as secar, utilizando depois uma escova de dentes velha para alisá-las e devolver-lhes a beleza.

           Talvez seja convencimento afirmar que nosso trabalho mostrava sinais de verdadeira arte e muito engenho criativo. Era uma composição equilibrada e, não obstante, possuía ritmo, estilo... e um encanto que trouxe lágrimas aos olhos de mamãe quando lhe mostramos o resultado final. Ela foi obrigada a nos dar às costas para que nós, também, não chorássemos. Oh, sim: aquela obra era, de longe, a melhor peça de trabalho artístico que já havíamos produzido.

            Trêmula e apreensiva, aguardei o momento em que ela estivesse com as mãos vazias para aproximar-me. Desde que a avó jamais olhava para Chris e os gêmeos tinham tanto medo dela que chegavam a encolher-se em sua presença, cabia-me fazer a entrega do presente... e eu simplesmente não conseguia obrigar meus próprios pés a avançarem. Chris empurrou-me com o cotovelo.

           — Ande logo — sussurrou ele. — Ela irá embora a qualquer momento.

           Meus pés pareciam pregados ao chão. Abracei o comprido embrulho vermelho com ambos os braços. Pela própria posição que assumi, dava a impressão de estar oferecendo algo em sacrifício, pois não era fácil dar alguma coisa a avó quando ela nada nos dera senão hostilidade e estava à espera de uma oportunidade para causar-nos dor.

           Naquela manhã de Natal, conseguiu muito bem causar-nos sofrimento, mesmo sem empregar um açoite ou uma palavra.

           Minha intenção era aproximar-me dela adequadamente e dizer: “Feliz Natal: vovó; desejamos dar-lhe um pequeno presente. Não precisa agradecer, pois não nos deu trabalho algum. É apenas uma coisinha para demonstrar o quanto somos gratos pela comida e abrigo que a senhora nos dá”. Não, não; ela julgaria que estava sendo sarcástica se falasse dessa forma. Seria muito melhor dizer algo como: “Feliz Natal; esperamos que goste deste presente. Todos nós trabalhamos nele, inclusive Cory e Carrie, para que a senhora saiba, quando formos embora, que realmente tentamos ser bons meninos”.

           O simples fato de avistar-me perto dela, segurando o presente, apanhou-a de surpresa.

           Lentamente, após erguer os olhos com valentia a fim de encará-la, estendi-lhe a oferenda natalina. Não tencionava implorar-lhe com o olhar. Queria que ela aceitasse o presente, gostasse dele e agradecesse, mesmo que o fizesse com frieza. Desejava que ela fosse para a cama naquela noite pensando em nós e vendo que, afinal, não éramos tão ruins. Queria que ela saboreasse e digerisse o árduo trabalho que empregáramos na confecção do presente e refletisse sobre a correção ou erro da maneira pela qual nos tratava.

            Do modo mais cáustico, seu olhar frio e desdenhoso fixou-se na comprida caixa que embrulháramos em vermelha. Na parte superior, havia um ramo artificial de pinheiro e um grande laço de fita prateada. Ao laço estava preso um cartão que dizia: “À avó, de Chris, Cathy, Cory e Carrie”.

           Os olhos cinzentos como pedra demoraram-se no cartão o tempo suficiente para ler os dizeres. Então, ela ergueu o olhar para encarar-me. Meus olhos, esperançosos, suplicavam-lhe, imploravam-lhe que compreendesse, e nos assegurasse que não éramos maus, como às vezes eu chegava a temer. Ela tornou a lançar um olhar à caixa e depois, deliberadamente, deu-me as costas. Encaminhou-se rigidamente a porta, bateu-a com força e trancou-a por fora. Fui deixada no centro do quarto, segurando o produto final de muitas e longas horas de esforço para conseguirmos perfeição e beleza.

            Idiotas! Eis o que éramos: malditos idiotas!

            Jamais conseguiríamos conquistá-la, cativá-la! Ela sempre nos consideraria filhos do Demônio! No que lhe dizia respeito, nós realmente não existíamos.

           E isso nos magoava. Podem apostar que magoava muito. Eu sentia dor da cabeça até as solas dos pés descalços. Meu coração parecia uma bola oca que latejava dolorosamente no peito. Escutei, atrás de mim, a respiração forçada de Chris. E os gêmeos começaram a choramingar.

           Era a minha vez de ser adulta, de manter a pose que mamãe utilizava tão bem e com tanta eficiência. Procurei padronizar meus movimentos e expressões pelos de mamãe. Usei as mãos como ela usava as suas. Sorri como ela, lenta e cativamente.

           E o que fiz para demonstrar minha maturidade?

           Joguei o embrulho no chão! Praguejei, pronunciando palavras que nunca empregara antes. Levantei o pé e pisei o presente, escutando o papelão estalar ao ser esmagado. Gritei! Desvairada de raiva, pulei com ambos os pés sobre o presente, sapateando e pisando, até ouvir os estalos da bela moldura antiga que havíamos encontrado no sótão, restaurando-a e dando-lhe um esmerado acabamento que a fazia parecer nova. Odiei Chris por convencer-me de que poderíamos cativar uma mulher feita de pedra! Odiei mamãe por colocar-nos naquela situação! Ela deveria conhecer melhor sua própria mãe; devia trabalhar como balconista numa loja; certamente havia alguma coisa que ela pudesse fazer sem nos submeter a tais circunstâncias.

           A velha moldura foi pulverizada sob o impiedoso ataque de uma menina desvairada e frenética; todo o nosso trabalho foi estragado.

           — Pare! — exclamou Chris. — Podemos ficar com o quadro!

           Embora ele corresse para evitar a destruição total, a frágil colagem estava em ruínas. Irremediavelmente perdida. Comecei a chorar.

           Então, banhada em lágrimas e sacudida por soluços, abaixei-me para apanhar as borboletas de seda que Cory e Carrie haviam produzido tão laboriosamente, gastando tanto esforço para dar-lhe um colorido glorioso. Borboletas que eu guardaria pelo resto da vida.

           Chris abraçou-me com força enquanto eu soluçava. Tentou reconfortar-me com palavras paternais:

       — Está tudo bem. Não importa o que ela faça. Estamos certos e ela está errada. Nós tentamos. Ela jamais tenta.

            Sentamo-nos no chão, calados, em meio a nossos presentes. Os gêmeos estavam quietos, os grandes olhos cheios de dúvidas, querendo brincar com seus presentes e, ao mesmo tempo, indecisos porque eram nossos espelhos e refletiam as nossas emoções, quaisquer que elas fossem. Oh, a pena que senti ao olhá-los feriu-me profundamente.

            Eu tinha doze anos. Em alguma ocasião de minha vida, devia aprender a comportar-me de modo educado e manter a compostura, deixando de ser uma banana de dinamite sempre pronta a explodir.

           Mamãe entrou em nosso quarto, sorridente e saudando-nos pelo Natal. Trouxe mais presentes, inclusive uma enorme casa de bonecas que outrora fora dela... e de sua detestável mãe.

           — Este presente não é de Papai Noel — anunciou, colocando com muito cuidado a casa de bonecas no chão e, hoje eu juro, não deixando um só centímetro quadrado de espaço livre. — É o meu presente para Cory e Carrie.

           Abraçou os gêmeos, beijou-os e disse-lhes que agora poderiam fazer de conta que tinham uma casa, eram pais e anfitriões, como ela fazia quando criança.

           Se percebeu que nenhum de nós demonstrou entusiasmo especial pelo presente, não fez comentários. Rindo muito, alegre e encantadora, ajoelhou-se no chão, sentando-se nos calcanhares para nos contar o quanto adorava aquela casa quando tinha cinco anos de idade.

           — Além disso, é muito valiosa — disse aos borbotões. — No mercado certo, uma casa de bonecas como esta valeria uma fortuna fabulosa. Só as bonecas em miniatura, com juntas móveis, não têm preço. Os rostos são pintados à mão. As bonecas são feitas na mesma escala da casa, assim como a mobília, os quadros, tudo, enfim. A casa foi fabricada por um artista que residia na Inglaterra. Cada cadeira, mesa, cama, abajur, candelabro, e tudo o mais, é reprodução exata de antigüidades genuínas. Ao que sei, o artesão levou doze anos para completar o trabalho.

            — Vejam como as pequenas portas abrem e fecham, perfeitamente encaixadas, o que é muito mais do que se pode dizer desta casa em que estamos morando — prosseguiu ela. — Todas as gavetas da mobília funcionam, abrindo e fechando. E existe uma chavinha para trancar a escrivaninha. Reparem como algumas das portas são de correr e se embutem nas paredes. Eu gostaria que essa mansão tivesse portas assim; não sei por que motivo saíram de moda. E vejam as sancas esculpidas à mão, perto do teto, e os lambris na biblioteca e na sala de jantar... e os livrinhos nas estantes! Acreditem ou não, se usarmos um microscópio poderemos ler os textos!

           Com dedos cuidadosos e conhecedores, demonstrou todos os fascínios de uma casa de bonecas que só os filhos de gente extremamente rica podem ter.

           Chris, é claro, teve que retirar um dos minúsculos livros da estante, a fim de examiná-lo meticulosamente para ver o texto tão pequeno que só podia ser lido com um microscópio. (Existia um tipo muito especial de microscópio que ele esperava possuir algum dia... e eu esperava poder presenteá-lo com o aparelho.)

           Era impossível deixar de admirar a habilidade e paciência exigidas para fazer móveis tão pequenos. Na sala de estar da frente da casa de estilo elizabetano, havia um piano de cauda coberto com uma toalha de seda rendada com franjas de ouro. Uma jarra com pequeníssimas flores estava colocada no centro da mesa de jantar. Pequenas frutas feitas de cera enchiam a bandeja de prata sobre o aparador do bufê.

           Dois candelabros de cristal pendiam do teto, e velas de verdade estavam enfiadas nos castiçais. Na cozinha, criados usando aventais preparavam o jantar.

            Um mordomo de libré branca postava-se junto à porta da frente para receber os convidados que chegavam, enquanto na sala de visitas principal damas com vestidos lindos estavam de pé junto a homens com expressões impenetráveis.

           No andar superior, no quarto das crianças, estavam três meninos e, no berço, um bebê estendia os braços para ser levantado ao colo de quem aparecesse para pegá-lo. Na fachada lateral, quase nos fundos da casa, fora construído um anexo para guardar uma carruagem maravilhosa! E havia dois cavalos na cocheira! Puxa vida! Quem poderia imaginar que alguém fosse capaz de fazer objetos tão minúsculos e detalhados? Olhei para as janelas, embevecida com as elegantes cortinas e forros brancos, com os pratos e talheres na mesa de jantar, Com os potes e panelas nas prateleiras dos armários da cozinha, tão minúsculos que não ultrapassavam o tamanho de ervilhas verdes do tipo maior.

            — Cathy — disse mamãe, passando o braço por minha cintura. — Veja esse pequeno tapete. É um persa genuíno, feito de pura seda. O tapete na sala de jantar é oriental.

           E prosseguiu por longo tempo, exaltando as virtudes do notável brinquedo.

           — Como pode ser tão velha e, apesar de tudo, parecer tão nova? — indaguei.

           Uma nuvem escura passou sobre mamãe, sombreando-lhe o rosto.

           — Quando ela pertencia à minha mãe, era mantida trancada numa enorme caixa de vidro. Minha mãe podia olhar à vontade, mas não tocava nela. Quando foi dada a mim, meu pai pegou um martelo e quebrou a caixa de vidro, permitindo-me brincar com tudo, sob a condição de eu jurar sobre a Bíblia que não quebraria um só objeto.

           — Você jurou e depois quebrou alguma coisa? — perguntou Chris.

           — Sim, eu jurei e depois quebrei alguma coisa — respondeu mamãe, com a cabeça tão baixa que não lhe podíamos ver os olhos. — Havia mais um boneco, um jovem muito bonito, cujo braço caiu quando tentei tirar-lhe o casaco. Levei uma surra de chibata, não só por quebrar o boneco, como por querer ver o que existia por baixo das roupas.

           Chris e eu permanecemos sentados e silenciosos, mas Carrie animou-se e demonstrou grande interesse pelos lindos bonequinhos com roupas tão elegantes e coloridas. Gostou especialmente do bebê no berço. Vendo a irmã tão interessada, Cory também se aproximou, a fim de investigar pessoalmente os inúmeros tesouros da casa de bonecas.

           Foi então que mamãe voltou a atenção para mim:

            — Cathy, por que estava com expressão tão solene quando entrei? Não gostou dos presentes que recebeu?

           Não consegui responder e Chris falou por mim:

           — Cathy está triste porque a avó recusou o presente que fizemos para ela.

            Mamãe deu-me uma palmadinha no ombro, mas evitou meu olhar, Chris continuou:

           — E muito obrigado por tudo; não há nada que você tenha esquecido de pedir a Papai Noel. Muito obrigado, acima de tudo, pela casa de bonecas. Creio que os gêmeos se divertirão mais com ela que com qualquer outra coisa.

           Fitei os dois triciclos para os gêmeos pedalarem no sótão e fortalecerem as pernas finas e débeis. Chris e eu recebemos patins que só deveriam ser usados na sala de aulas do sótão, pois o local era isolado com paredes de alvenaria e assoalho de tábuas de madeira de lei, sendo mais à prova de som que o resto do sótão.

           Mamãe se ergueu do chão, sorrindo misteriosamente antes de sair. Antes de fechar a porta, prometeu voltar num segundo, e foi então que nos deu o melhor de todos os presentes: um pequeno aparelho portátil de TV!

           — Meu pai deu-me esse aparelho para usar em meu quarto. E adivinhei imediatamente quem o aproveitaria melhor que eu. Agora, vocês possuem uma janela de verdade, através da qual podem olhar para o resto do mundo.

           Exatamente as palavras necessárias para que minhas esperanças subissem como um foguete.

           — Mamãe! — exclamei. — Seu pai lhe deu um presente tão caro? Isso quer dizer que ele agora gosta de você? Perdoou-a por ter-se casado com papai? Podemos descer, agora?

           Os olhos azuis de mamãe tornaram a turvar-se de preocupação e não havia sinal de alegria em sua voz ao responder que sim, seu pai se mostrava mais amistoso; perdoara a filha pelo pecado que cometera contra Deus e a sociedade. Então, ela disse algo que me fez o coração bater na garganta:

            — Na próxima semana, meu pai mandará seu advogado redigir um novo testamento, incluindo-me nele. Vai deixar tudo para mim; até essa casa será minha depois que minha mãe morrer. Meu pai não tenciona deixar dinheiro para minha mãe porque ela possui a riqueza que herdou dos pais dela.

           Dinheiro! O dinheiro pouco me importava. Tudo o que eu queria era sair dali! E, de repente, fiquei muito feliz, tão feliz que abracei mamãe, beijando-a e estreitando-a contra mim Puxa vida! Aquele era o nosso melhor dia desde que chegáramos àquela casa... Então, lembrei-me: mamãe não dissera que podíamos descer. Não obstante, tínhamos avançado um passo em nosso caminho para a liberdade.

           Mamãe sentou-se na cama e sorriu, mas apenas com os lábios e não com os olhos. Riu de algumas tolices que Chris e eu dissemos, mas era um riso áspero e duro, muito diferente do seu normal.

           — Sim, Cathy; transformei-me na filha obediente que seu avô sempre desejou. Ele fala, eu obedeço, Ele ordena, eu corro para cumprir a ordem. Afinal, consegui agradá-lo.

           Parou bruscamente de falar e olhou na direção das janelas e da luz desbotada que vinha lá de fora.

           — Na verdade, consegui agradá-lo de tal maneira que ele me oferecerá esta noite uma festa destinada a reapresentar-me a meus velhos amigos e à sociedade local. Será uma festa grandiosa, pois meus pais não poupam esmero e despesas quando recebem convidados. Embora não tomem bebidas alcoólicas, não se incomodam de servi-las aos que não temem o inferno. Portanto, é evidente que contrataram um bufê e, também, uma pequena orquestra de danças.

           Uma festa! Uma festa de Natal! Com bufê! E uma orquestra de danças! E mamãe seria incluída no novo testamento de seu pai. Já tivéramos algum dia tão maravilhoso e feliz?

            — Podemos espiar? — perguntamos Chris e eu, quase ao mesmo tempo.

           — Ficaremos bem calados.

           — E escondidos onde ninguém possa nos ver.

           — Por favor, mamãe. Por favor! Faz tempo que não vemos outras pessoas. E nunca fomos a uma festa no dia de Natal.

           Suplicamos, imploramos, rogamos, até que ela não pôde mais resistir. Chamou-nos de lado, levando-nos a um canto afastado onde os gêmeos não conseguiriam escutar o que fosse dito, e sussurrou:

           — Existe um local onde vocês dois poderão esconder-se e, ainda assim, espiar a festa, mas não posso arriscar com os gêmeos. São pequenos demais para merecerem confiança. Vocês sabem que eles são incapazes de ficar quietos por mais de dois segundos e Carrie provavelmente gritaria de deleite, atraindo a atenção de todo mundo. Portanto, quero sua palavra de honra de que nada contarão aos gêmeos.

           Prometemos. É claro que nada contaríamos a eles, mesmo sem uma promessa de guardarmos segredo. Amávamos nossos pequenos gêmeos e seríamos incapazes de magoá-los

permitindo que soubessem o que perdiam.

           Depois que mamãe saiu, cantamos canções de Natal e o dia passou de modo bastante alegre, embora a cesta de piquenique nada contivesse de especial para nós: sanduíches de presunto, de que os gêmeos não gostavam, e fatias de peru que ainda estavam geladas, como se retiradas do congelador. Restos do Dia de Ação de Graças.

           Como a noite chegou muito cedo, passei longo tempo olhando para a casa de bonecas, onde Carrie e Cory brincavam alegremente com os pequenos bonecos de porcelana e as miniaturas de valor inestimável.

           Engraçado o quanto se pode aprender a partir de objetos inanimados que uma menininha possuíra e podia olhar, mas nunca tocar. Então, viera outra menininha e a casa lhe fora dada, sem a caixa de vidro, de modo que ela pudesse mexer nos objetos e ser punida quando quebrasse alguma coisa.

           Uma idéia aterradora veio-me à mente: imaginei o que Cory ou Carrie quebrariam e qual seria o seu castigo.

           Enfiei um pedaço de chocolate na boca, a fim de adoçar meus pensamentos errantes e traiçoeiros.

 

 

[1] - Nos Estados Unidos, a última quinta-feira de novembro. ( N. do T.)

[2] - Dona de casa. (N. do T.)

[3] - Nos Estados Unidos, com iniciais maiúsculas, designa os Pais Peregrinos, 102 puritanos ingleses emigrados, que se estabeleceram em 1620, na região então denominada Nova Inglaterra, fundando a colônia de Plymouth (atualmente no Estado de Massachusetts.) (N. do T.)

 

                                                                                 CONTINUA  

 

                      

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