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8
Octobenus
O pesadelo de Alice me encontra durante meu sono...
Não estou sozinha desta vez. Jeb carrega a espada roubada, e corremos pelo caminho na direção
do covil da Lagarta. Os espinhos que já rasgaram meu avental de criança alongam-se e se
transformam em enguias folhosas. Os cordões serpenteantes se enrolam em nossas pernas e nos
levam de cabeça para baixo até o tabuleiro de xadrez. Nossos corpos se congelam e viram peças do
jogo. Uma mão aparece, usando uma luva preta, e nos move de quadrado em quadrado. Ela me pega
para dar um xeque-mate, mas Jeb ganha vida e decepa os dedos com a espada para me libertar. Os
pingos de sangue caem um a um e se metamorfoseiam em lagartas. Jeb e eu voltamos correndo para o
caminho. O cogumelo aguarda no centro, escondido em uma teia. As lagartas nos perseguem até lá.
Elas cavam túneis para entrar no casulo, enchendo-o até ele se contorcer — o casulo é uma coisa
viva que respira. Uma lâmina negra afiadíssima dilacera o casulo a partir de dentro. O que está lá
dentro, seja o que for, vai sair.
Acordo assustada, e pisco diante da claridade do sol. Minhas mãos estão fechadas e os punhos,
cerrados. O que me acordou? Eu estava tão próxima de desvelar o rosto dentro no casulo — algo que
venho esperando há anos.
Com um bocejo, concentro-me no aqui e agora. Em algum momento durante a noite, devo ter me
virado para Jeb no barco, e ele me puxou para si, aninhando-me debaixo do seu queixo. Agora só
vejo um close de sua barriga tanquinho. Ele ainda dorme. Sua respiração pesada esvoaça meu cabelo
num ritmo lento. Seus braços agarram minha cintura.
O dia anterior regressa ao meu pensamento aos pedaços: a toca do coelho, o jardim de flores
mutantes, o mar de lágrimas.
Aconchego-me sob o pescoço de Jeb com os dedos recolhidos dentro das mangas do casaco do
smoking, determinada a não acordá-lo só para poder fingir que as coisas são simples e perfeitas.
Apenas por mais alguns instantes.
O barco balança e percebo que foi isso que me acordou. Não é um movimento suave da correnteza.
Parece mais um movimento do tipo “alguma coisa pesada se moveu na borda e está nos observando.”
Congelo — fico dura como a madeira abaixo de nós.
Fungadas guturais enchem o ar, como as de buldogue asmático. O calor do sol sobre meus ombros
esfria quando uma sombra recai sobre nós. Meu coração tem um sobressalto. Antes que eu possa
emitir um grito, Jeb entra em ação, rolando-nos na direção da proa e puxando-nos para ficarmos de
pé. Ele estava acordado o tempo todo.
— Sem chance — diz ele.
Oscilo com o movimento do barco, segurando a cintura de Jeb com uma mão e o assento atrás de
mim com a outra. Olho em torno dele.
À primeira vista, nosso intruso parece um polvo. Ele tem duas presas gigantes com imagens de
serpentes e chamas furiosas entalhadas ao longo do marfim. Mas, por baixo de camadas de banha,
sua outra metade é um emaranhado de tentáculos pegajosos cobertos por ventosas. É como se alguém
tivesse misturado duas criaturas diferentes, criando um octopolvo. Ele deve pesar quase duzentos
quilos, e seu corpo ocupa a maior parte do barco.
Grande daquele jeito e com os tentáculos pendurados metade para dentro e metade para fora, o
barco deveria ter virado. Jeb e eu deveríamos ter sido arremessados feito pedras em um estilingue
assim que ele escorregou para dentro. Em vez disso, o casco está nivelado e desliza pela água
cristalina como se a criatura não pesasse mais do que nós. Me pergunto o que Isaac Newton teria a
dizer sobre esse furo nas leis da física por aqui.
Jeb me cutuca para eu me sentar atrás dele, mas ele continua de pé, cada músculo de seu corpo
tenso e pronto para reagir. — O que é você?
Nosso visitante não convidado limpa uma meleca que pinga de seus olhos com os dedos humanos
nas pontas de suas nadadeiras. — Boa pergunta, cavaleiro élfico. Sou um octobenus. Agora, deixe-
me adivinhar sua próxima pergunta. O que eu quero? Para esta, a resposta é simples. Quero parar
com o eterno sofrimento da minha barriga. — Suíças longas e loiras, em contraste com uma pele cor
de canela, pendem sob suas narinas. Seus tentáculos batem no mar, espirrando água sobre nós.
Da corrente em seu pescoço, ele abre um medalhão do tamanho de uma caixa de charutos e tira
algo de dentro. Ele coloca um marisco na palma da mão, segurando cuidadosamente sua casca para
mantê-la fechada. — Bom dia, pequenino repolho do mar — diz ele, provocando. — Ainda
preocupado com sua família?
O marisco tenta abrir a boca para responder. O octobenus volta a fechá-la para que ele fique
quieto. — Vamos fazer o seguinte: se você conseguir saciar minha fome, eu liberto os restantes. Quer
tentar?
Embora o marisco não possa abrir a boca o bastante para falar, um músculo rosado no formato
semelhante ao de um machado esgueira-se para fora da abertura — como um braço ou perna
defeituoso —, acariciando a bochecha da enorme criatura numa derradeira tentativa de salvar sua
vida.
Um murmúrio escapa de minha garganta. Jeb estende o braço para trás e me dá sua mão. Entrelaço
nossos dedos.
Em um acesso de banha e baba, o octobenus abre a concha com força, sela sua boca em volta dela
e suga o conteúdo, produzindo um ruído terrível de sorvo. O grito excruciante do marisco ecoa na
minha cabeça e depois cai em um silêncio mortal. Aperto mais forte o braço de Jeb, tentando não me
sufocar.
— Não. Ainda estou com fome. Suponho que irei comer as crianças em seguida. — Nosso
visitante indesejado solta um riso medonho e cortante, e depois joga a concha vazia ao mar. Com um
tentáculo, ele vai dando tapinhas até ela afundar, e esse movimento faz o barco balançar.
Os dedos de Jeb me apertam o punho conforme ele tenta manter o equilíbrio.
— É preciso ser ligeiro com presas escorregadias como esta — o octobenus diz. — São
traiçoeiras... Sempre tentando pegar você com sua Língua dos mortos. Pode imaginar virar escravo
do último desejo de um marisco? — Ele ri novamente.
Língua dos mortos... O termo que estava atrás da avaliação psiquiátrica de Alice. De trás de Jeb,
dou uma espiada e vejo a criatura com cara de morsa colocar um monóculo no aquoso olho esquerdo.
— Agora — lança ele —, se fizer a gentileza de ficar de lado, elfo, eu gostaria de ver melhor sua
protegida.
A postura de Jeb endurece. — Nem pensar.
A octoaberração larga o monóculo. — Aquelas flores desajeitadas acham que o seu sangue tem o
poder de comprar minha cota de bivalves! — Seu grito chocalha em nossos ouvidos, e nos atravessa,
com seu cheiro de peixe e morte. — Mas a questão nunca foi comprá-los. Sou um caçador. Tenho
que capturá-los. É a minha natureza. Mariscos são criaturas habilidosas, sempre usando os bracinhos
para se mover por aí e escapar para seu refúgio no leito do mar. Se não fosse tão escuro lá embaixo,
e com meus olhos já tão ruins... Tenho sorte se consigo capturar meia dúzia antes que todos se
escondam. — Ele limpa a boca com uma forte nadadeira. — Mas o Sábio possui uma flauta mágica
que atrai minhas presas para fora dos seus esconderijos. E agora eu tenho alguma coisa para trocar
por ela.
— Oferecendo meu sangue em troca. — Jeb adivinha.
Isso não pode estar acontecendo. Não importa em quantas brigas ele se envolveu em casa. Mesmo
com o canivete, ele não tem nenhuma chance contra um mostro marinho de trezentos quilos.
— Ele não é um elfo com pedras preciosas! — grito de trás de Jeb. — Ele é humano. Olhe as
orelhas.
Jeb aperta meus dedos — um pedido para eu ficar quieta.
— Não importa. Joias e riquezas não significam nada para o Sábio. Mas você, repolhinho, ele está
desesperado por sua ajuda. Se está! Há anos ele está esperando que você volte para cá.
Aquela afirmação fica se revirando em minha cabeça. As flores disseram que o Sábio é a Lagarta.
Então... Ela está esperando por mim? Talvez a lagarta tenha enviado a mariposa e o meu guia
sombrio para me encontrar e me trazer para cá.
Os tentáculos de nosso captor se contraem ao longo das bordas do barco feito pítons gigantes, e a
madeira range. — Com você como refém, posso trocá-la pela flauta. Ele a colocará aos meus pés se
a levar em segurança.
— Terá que me matar para chegar até ela — adverte Jeb.
Dou um puxão no pulso dele, mas ele me ignora.
O octobenus aperta as mãos-nadadeiras. — Ah, um amigo leal. Eu tive um desses, muitos anos
atrás. Ele era artesão. Foi ele que esculpiu minhas presas e fez um lindo baú para guardar minha
reserva de mariscos. Depois, descobri que ele estava saqueando meu estoque. Então, uma noite,
quando ele dormia, eu o capturei — os tentáculos se enroscam em volta do barco numa demonstração
— e o prendi no baú com as conchas vazias. Atirei tudo no mar para abafar seus gritos. Os ossos
dele são isca de peixe agora.
Mordo os lábios para não gritar.
Nosso captor ri. — Triste, não é? Veja, se eu fui tão insensível com um amigo, o que me impede
de matar você? Nada impede que eu satisfaça as necessidades da minha barriga. — Ele corre a
extremidade fina e pontuda de um tentáculo até a ponta de suas presas babadas. — Eu vou pegar a
garota!
Ele lança seus tentáculos e agarra Jeb pela cintura.
— Não! — Meus braços se levantam para segurá-lo. Os tentáculos o arrebatam, erguendo-o no ar.
— Há terra... à sua esquerda! — Jeb grita enquanto luta com a criatura, escapando por pouco da
ponta mortal de uma presa. A luta impele o barco.
Ao repelir mais gritos, agarro-me ao banco para manter o equilíbrio. Jeb tem razão. Há alguma
coisa no horizonte. E brilha feito lantejoulas pretas. Pode ser a ilha da qual as flores nos falaram.
— Vá! — Jeb grita. — Eu vou segurá-lo o quanto puder!
Ele passa a corrente em volta do pescoço do monstro. Com puxões rápidos, ele envolve alguns
tentáculos para que eu possa escapar. Uma das presas rasga a calça de Jeb na altura do joelho. O som
do tecido rasgando me lembra da horrível morte do marisco. Não posso deixar que isso aconteça
com Jeb.
Não conseguiremos escapar do octobenus na água. Como revidar? Ele não tem fraquezas óbvias...
Só um apetite insaciável.
— Espere! — Caio de joelhos diante dele, encenando uma ideia repentina, na esperança de que dê
certo. — Por favor, solte meu amigo e eu o ajudarei.
— Al! — Jeb grita.
— Dê-me sua palavra, menina intraterrena — diz nosso captor com um sorriso gordo e
desdenhoso. — Você conhece as regras... Um juramento da nossa espécie não pode ser quebrado, ou
você perderá seu poder.
Não sei por que ele está me chamando de menina intraterrena, mas estou disposta a usar isso a meu
favor. — Prometo que o ajudarei.
— Não é o bastante — rebate ele, apertando ainda mais Jeb em seus tentáculos até fazê-lo gemer.
— Faça do modo apropriado. Cubra seu coração... Jure pela magia da sua vida. E seja bem
específica.
Não tiro os olhos dos lábios de Jeb, que já estão azulados, e levo a palma da mão ao peito. — Eu
juro pela magia da minha vida que o ajudarei a saciar seu apetite.
Num movimento ruidoso que o faz virar seus bigodes, ele relaxa os tentáculos e solta Jeb, que cai
no casco do barco.
Abraço as roupas babadas de Jeb. Ele me mantém equilibrada no barco e ficamos de pé juntos. Ele
tosse tanto que quase não consigo ouvir sua voz. — Você devia ter... caído fora.
— Não — sussurro. — Vamos ficar juntos, lembra? — Em seguida, volto-me para nosso captor.
— Senhor Octobenus, eu sei como encher sua barriga. Podemos dar bolo aos seus mariscos.
Jeb franze a cara para mim, finalmente recuperando o fôlego.
A criatura relaxa no banco sobre um ninho de tentáculos, ofegante e fungando devido ao exercício
da luta. — Você está me oferecendo bolo de mariscos?
— Não. O bolo é para os mariscos — respondo. — Para aumentar seu estoque até chegarmos à
flauta. Nós temos uma coisa que fará seus mariscos crescerem e ficarem do tamanho de um prato de
comida. — Eu viro o rosto para Jeb e articulo com os lábios as palavras O comedor acaba comido.
A expressão dele se ilumina ao compreender o que digo. Ele arrasta a mochila em nossa direção.
É incrível como ele está composto depois de quase ser empalado, esmagado e devorado.
A morsa mutante observa, curiosa.
Jeb abre a bandana para exibir o bolo com as palavras Coma-me escritas com as passas.
O octobenus dá um pulo. — Um bolo de aumento! Onde vocês encontraram essa preciosidade?
Pessoalmente, nunca vi um. Eles foram proibidos depois do incidente com Alice. Não importa, não
importa... — Ele abre o medalhão da corrente uma vez mais. O novo marisco luta com ele
furiosamente.
— Me dê isto aqui — ordena o octobenus. — Se falhar, rasgo as entranhas do meu amigo mortal e
faço delas alimento para os peixes. — A baba lhe desce pelas presas e preenche as imagens
esculpidas com um visco brilhante.
— Ah, vai dar certo. — Jeb desliza o bolo pelo casco. — Aposto minha vida que vai.
— Acaba de apostar. — A morsa mutante grunhe ao curvar-se para pegar o bolo. Tirando uma
migalha, ele se prepara para enfiá-la na abertura da concha do marisco.
— Você precisa dar mais do que isso — diz Jeb, recuando lentamente para a borda do barco, com
a mochila nas mãos. — O máximo que puder enfiar na boca dele.
— Sim, sim. Imagine! Mariscos do tamanho de pratos... — Sem olhar para cima, ele ri e tira um
pedaço maior. Depois, abrindo a concha à força, ele enfia o bolo dentro e a fecha novamente.
Em segundos o marisco começa a tremer junto com o barco.
— Agora! — Jeb mergulha no mar segurando a minha mão. Um tapa dos tentáculos roça as minhas
pernas, mas em seguida a água cálida se fecha sobre nós, e afundamos. Jeb nada cachorrinho na
minha frente, seu cabelo formando redemoinhos semelhantes à flora marinha das profundezas azuis.
Ele me puxa pelo pulso. Bato as pernas para subir, minhas botas e roupas pesadas e desajeitadas na
água.
Chegamos à superfície e damos profundas talagadas de ar, parados em um ponto distante o
bastante para vermos o que acontece no barco. O marisco cresce, do tamanho de um estojo de
maquiagem para o tamanho de uma caçamba de lixo.
Em uma exibição estranhamente graciosa de banha, nadadeiras e tentáculos, o octobenus percebe
seu erro e tenta escorregar para fora do barco. Tarde demais. A concha gigante se abre e um
apêndice em forma de machadinha salta para fora — grande e poderoso como uma anaconda. O
músculo envolve o octobenus e o leva à boca, sugando os tentáculos feito fios de espaguete gigante, e
em seguida se fecha.
O barco se verga e racha. Em segundos, o marisco mergulha no mar, deixando somente espuma e
destroços flutuando atrás de si. A água forma ondulações em torno do naufrágio, um final
sinistramente sereno para uma cena tão violenta.
Jeb segura meu pulso e a mochila com uma mão, enquanto usa o outro braço em um nado de peito
lateral para nos impulsionar na direção da praia preta.
Algo me puxa para baixo.
Bato as pernas até ficar com cãibra, tentando manter a cabeça fora da água. Não adianta. Solto-me
de Jeb, com medo de puxá-lo para baixo comigo.
Debaixo da água, procuro o que está me ancorando, horrorizada com a possibilidade de que seja
uma criatura marinha, mas não vejo nada. O peso parece estar centralizado em minha cintura, mas
estou descendo muito depressa para encontrá-lo. Eu me debato, braços e pernas lutando contra o
ímpeto descendente. Meus pulmões clamam por oxigênio.
Jeb aparece acima de mim. A mochila desce atrás dele na direção das profundezas escuras.
Minhas mãos e pernas irrompem num movimento ainda mais forte, lutando contra a força da água. Jeb
tenta me puxar para cima pelos braços. Eu me afasto, resistindo. Ou talvez esteja resistindo a mim
mesma. Ao meu medo...
A expressão dele quando me agarra é resoluta. Ele se recusa a ceder, e isso me assusta ainda mais.
Balanço a cabeça.
Salve-se! É o que meus olhos lhe dizem, mas ele é teimoso demais para ouvir.
Quero dizer a ele que sinto muito por tê-lo arrastado até aqui. Em vez disso, bolhas vazias
rodopiam entre nós.
Uma dor impetuosa e pungente me aperta o peito. Debato-me na água, procurando alguma maneira
de me libertar, de fazer aquilo desaparecer. Minhas lágrimas se mesclam com as de Alice e o
pensamento fica obscurecido. Jeb ainda está me puxando, mas é inútil — continuamos afundando.
Quando estou prestes a ceder à inconsciência, começo a perceber que o peso vem do bolso da
minha saia. Entorpecida, tiro a esponja que peguei no fundo da toca do coelho.
O que antes possuía o tamanho de um pedacinho de queijo agora é grande como uma bola de golfe,
e continua crescendo. Ela desce, deslizando para o fundo do mar, arrastando a água junto, criando um
rodamoinho.
Estou livre.
Abraçados, Jeb e eu emergimos e temos tempo suficiente para encher nossos pulmões antes que a
sucção do funil nos arrebate. A esponja está do tamanho de uma laranja agora, e posso ver o fundo do
mar lá longe abaixo de nós.
Solto um grito, agarrando-me a Jeb.
Meus olhos se fecham ao batermos em alguma coisa sólida.
— Al — chama Jeb, e só então percebo que consigo respirar.
Busco sofregamente o ar, abro os olhos e pisco com força para secá-los. O mar sumiu. Vegetação
marinha achatada e pilhas de areia seca nos rodeiam. Poças de água brilham em alguns pontos,
refletindo a luz do sol. A distância, avisto nossa mochila. As areias pretas da ilha elevam-se à altura
de um desfiladeiro acima de nós — uma escalada que não conseguiremos fazer.
A alguns metros, entre os destroços, sentado ao lado de um baú musgoso em decomposição, o
marisco gigante lambe os lábios cheios de sangue. Suponho que o octobenus acabou reencontrando
seu amigo artesão, afinal.
Uma brisa agita o ar, trazendo cheiro de peixe e sal. Imagino que a esponja deva estar do tamanho
de uma montanha. Mas lá está ela, ao lado das minhas botas ensopadas, do tamanho de uma bola de
basquete. Eu a recolho. Difícil compreender que um mar inteiro esteja contido aqui dentro.
Jeb me ajuda a ficar de pé e eu largo a esponja. Ela pousa com um som de borrifo.
Mesmo estando fraca e exausta, sou tomada por um sentimento de realização. — Nós conseguimos
— murmuro, mal conseguindo compreender o significado dessas palavras. — Secamos o mar. Como
as flores queriam que fizéssemos.
— Você secou — enfatiza. Jeb afasta o cabelo de minha testa. — E você quase se afogou fazendo
isso. — Antes que eu possa responder, sua boca quente e macia toca a minha testa, minha têmpora e
em seguida meu queixo. Todas as vezes, seu piercing roça suavemente em minha pele. Ele se detém
na linha do maxilar e curva-se para me puxar mais para perto num abraço, com o nariz enfiado no
meu pescoço. — Nunca mais me assuste desse jeito.
Não importa que estejamos molhados; o calor irradia através de nossas roupas ensopadas. Passo a
mão em seu cabelo. — Você voltou para me salvar.
Ele aproxima o nariz da curva do meu queixo, e uma poderosa onda de emoção pulsa através do
corpo dele. — Eu sempre voltarei para você, Al.
Uma leve batida de alerta no meu peito me recorda de Taelor e da determinação de Jeb de ir para
Londres sem mim a fim de ficar sozinho com ela. Mas a adrenalina vem ainda mais forte. Eu toco sua
orelha com meus lábios, provando do resto das lágrimas de Alice. — Obrigada.
Ele tensiona os músculos dos braços. Seu nariz fuça o cabelo em minha nuca, como se quisesse se
perder naquele emaranhado. Nossos corações estrondeiam. Tremores de nervoso percorrem o meu
corpo e meus membros estremecem.
— Jeb — sussurro. Ele murmura algo indecifrável, e minhas mãos hesitantes agarram seu pescoço.
Um grunhido escapa de sua garganta. Fico sem ar quando ele aperta meu cabelo em seus dedos e o
puxa para trás, com olhar intenso. Ele já está se curvando para chegar mais perto quando uma
cacofonia de cliques e estalos nos interrompe.
Viramo-nos em círculos, observando ao nosso redor. Milhares e milhares de mariscos saem de
seus túneis na areia. Agarro a mão de Jeb, temendo que eles nos ataquem por termos destruído seu
lar. Em vez disso, irrompem gritos e aplausos.
Olhando para trás de Jeb, fico pasma. — Atrás de você.
Ao lado da parede de areia que parecia um desfiladeiro, toneladas de conchas se empilham uma na
outra — rolando para cima, para os lados — com o objetivo de formar uma escada-rolante viva.
— Nós derrotamos o inimigo deles — sussurro. — Eles querem ajudar.
Jeb não hesita. Pega minha mão e me conduz na direção dos degraus que sobem, arrebatando a
mochila no caminho. Juntos, seguimos em direção às brilhantes areias pretas da ilha.
Quando chegamos ao alto, aceno para os mariscos, que desaparecem no leito do oceano lá
embaixo.
Jeb abre a mochila para checar nossas coisas. — Acho que eu não devo ficar admirado que nada
esteja molhado. — Ele abre o estojo de lápis antes que eu possa detê-lo. E fica boquiaberto. — O
que é isso?
— São minhas... Economias. — Ótimo. Eu não só me atirei nos braços do namorado de Taelor
como também menti sobre o dinheiro que roubei dela.
Jeb conta o montante e olha para cima. Há algo insondável por trás daqueles grandes cílios.
— Você parece diferente — lança ele, colocando o dinheiro de volta no estojo e sacudindo gotas
de água do cabelo.
— Pareço? — Esfrego a pele em torno dos olhos. Será que todos os meus segredos estão piscando
na minha cara feito um letreiro de neon? — Minha maquiagem deve estar toda borrada.
— Você está cintilante — o corpo todo.
— Ah, deve ser resíduo de sal. — Eu tiro seu casaco do smoking, torço-o para tirar a água e o
devolvo.
— Ahn — murmura ele, ainda concentrado em mim. — Então... Vamos conversar sobre aquilo? —
Jeb enfia o casaco na mochila.
— Sobre o quê?
— O que aconteceu lá embaixo entre nós.
O calor me formiga as bochechas. Ele se arrependeu. Ou talvez esteja com medo de que eu conte a
Taelor. De qualquer maneira, acabo parecendo uma idiota. — Foi a adrenalina. Só isso. Nós só
estávamos felizes por estarmos vivos. Não se preocupe. O que acontece no País das Maravilhas fica
no País das Maravilhas, certo?
Ele nem sequer esboça um sorriso. Só fica me olhando e depois balança a cabeça. Lábios
esticados, ele se concentra em fechar o zíper da mochila.
Quero acreditar que ele sentiu o mesmo que eu... As coisas que eu não deveria estar sentindo. Mas
como pode ser? Não é comigo que ele vai mudar para outro país.
Tento me concentrar em outra coisa, como a água dentro de minhas botas que faz barulho entre
meus dedos ou nos rombos enormes no meu legging.
— E agora, para onde? — pergunta ele.
É possível que ele esteja se referindo a algo além do nosso destino físico, mas estou assustada
demais para me dar a chance de estar errada. Em vez disso, concentro-me no nosso paradeiro.
A costa se estende até onde a vista alcança... Um deserto infinito de fuligem tremeluzente. Não é
nada parecido com o que eu esperava encontrar no coração do País das Maravilhas, se é isso que
este lugar é. Não há fauna nem flora em lugar nenhum, exceto por uma solitária árvore, mais alta e
mais larga do que uma sequoia, a alguns metros de nós.
A familiaridade me atrai para perto dela. Cascas pretas de joias cobrem toda a árvore, do tronco
nodoso aos ramos que se retorcem a dezenas de metros no ar. Ela brilha ao sol como um milhão de
diamantes brancos. Na ponta de cada galho, rubis jorram feito líquido e pingam no solo, como se a
árvore estivesse sangrando pedras preciosas, assim como os elfos fazem quando sua pele é
perfurada. Com as areias pretas como pano de fundo, a cena lembra os mosaicos de grilos que tenho
em casa — uma beleza fascinante e ao mesmo tempo bizarra. Refreio um surto de pânico ao recordar
como os grilos pareciam estar vivos e esperneando da última vez que os vi em minha parede.
— A pulsação de inverno — diz Jeb ao meu lado.
Concordo. — Também vê a semelhança?
Ele fica perplexo. — Você esteve aqui antes.
Desvencilho-me de meu desconforto e subo na árvore, abrindo caminho aos chutes por entre os
rubis no chão. Um ponto na base do tronco lateja por trás da casca de diamantes, feito uma pulsação.
A cada tamborilar, ela se acende em linhas vermelhas com a mesma forma da marca de nascença em
meu tornozelo. A imagem reacende uma lembrança de mim e de um menino alado, indistinta, mas
inconfundível.
Jeb se aproxima e me viro para segurar no ombro dele e manter o equilíbrio, erguendo minha
perna direita para desamarrar minha bota.
— O que está fazendo?
— Seguindo instruções — respondo, tirando a bota e erguendo meu legging para exibir o
tornozelo. Jeb agarra meu cotovelo enquanto me agacho, pressionando o labirinto no meu tornozelo
contra as linhas da árvore.
Um choque de eletricidade estática salta de mim para o tronco; depois, um forte estalar quebra o
silêncio. Jeb me puxa para trás quando o tronco se abre, enquanto a casca brilhante se enrola feito um
pergaminho para expor uma passagem. Um brilho suave e avermelhado vibra e sinaliza lá de dentro.
— O coração pulsante do País das Maravilhas — sussurro, enfiando o pé na bota novamente.
A luz vermelha reflete no piercing de Jeb. — Muito bem, acredito que você veio aqui quando era
criança e está se lembrando de algumas memórias reprimidas. Mas como você pode ter uma marca
no corpo que abre tudo neste lugar?
Hesito, e depois conto a ele o que li sobre os intraterrenos falarem com insetos, e o que eu
desconfio acerca da maldição de minha família: que compartilhamos algumas características com as
criaturas daqui, incluindo esquisitas marcas mágicas em nossos corpos.
Jeb fica olhando para mim e me pergunto quanto mais ele pode aguentar sem ficar maluco.
— Você está bem? — indago, receosa.
Engolindo, ele passa os dedos pelos cabelos. — É com você que estou preocupado. Então, como
nós quebramos essa “maldição”?
Meu coração dá um pulo quando ele diz “nós”. Ele está nessa comigo até o fim. Não só porque
está preso aqui, mas porque ele é o Jeb com quem eu cresci. Meu Jeb. — Tenho que encontrar
alguém aí dentro. Alguém do meu passado... que costumava me trazer aqui.
Jeb franze a cara. — Muito bem. De acordo com as flores, este é o lugar onde os portais estão,
certo? Os portais que nos levarão para casa?
— É — respondo, meio na esperança de que ele tente me convencer a esperar aqui fora enquanto
ele verifica o terreno. Em vez disso, ele me detém somente o tempo suficiente para tirar a lanterna,
recolocar a mochila e tomar a dianteira. Descemos por uma escadaria sinuosa em meio a um túnel
escuro que parece descer espiralando para sempre.
— Não olhe para baixo — recomenda Jeb.
Por que as pessoas dizem isso? Só torna impossível não fazê-lo. Meu olhar mergulha nos degraus,
que produzem um som abafado sob nossas botas. Ossos, entrelaçados e amarrados com algum tipo de
cordão dourado cintilante, formam a escada. A maioria dos ossos tem deformações de tamanho ou
forma. Outros parecem humanoides. Aperto a mão contra a boca.
— De quem são esses ossos? — Jeb sussurra. — Ancestrais? Prisioneiros humanos?
Repasso minhas lembranças esparsas. — Não me lembro de ter conhecido isso...
Jeb acelera o passo. Pulamos do último degrau e nos esquivamos por uma cortina de trepadeiras.
Em vez de nos depararmos com um subterrâneo, uma vista se descortina à nossa frente sob um céu
roxo escuro. O sol e a lua estão entrançados em um, a lua com coloração azul ao lado do seu irmão
mais brilhante.
A luz combinada confere a tudo um tom ultravioleta. Plantas de todos os tipos — arbustos, flores,
árvores e grama — ficam fluorescentes sob os raios mistos: rosas, roxos, verdes, amarelos e laranja.
Os tons mais claros de nossas roupas brilham também. Não é de admirar que eu sempre me senti
tão em casa no centro de atividades Submundo. Em algum nível subconsciente, ele me lembrava deste
lugar.
Uma lufada de vento frio e carregado de aroma de calcário, folhagem e flores passa por nós.
Depois, sinto um aroma de algo mais — um perfume frutado vindo em nossa direção. Conheço aquele
cheiro. — Siga a fumaça — digo, abandonando o caminho.
Jeb pega minha mão e me ajuda a ultrapassar um canteiro de cravos-de-defunto. Aperto os dedos
dele em agradecimento. Meu corpo está começando a sentir os efeitos de nossa insana jornada
marítima. Tenho calos e feridas por todo lado.
Enquanto prosseguimos, não consigo parar de pensar em como ele voltou para me resgatar na água,
em como ele não desistiu, em como ele pulou no espelho em meu quarto sem nem pensar em sua
própria segurança. Talvez nós devêssemos conversar sobre o que está acontecendo entre nós, porque
algo certamente está mudando do meu lado. Corro a língua pelo céu da boca nervosamente. Venho
mantendo isso em tamanho segredo há tanto tempo.
— Escute, Jeb. — Engulo duas vezes. — Sobre o que aconteceu lá no fundo do mar. Eu...
— Mais tarde. — Olhando por cima de mim, ele pega em meus ombros. — Temos companhia.
Ele me força a agachar, e uma nuvem brilhante se aproxima sobre nós, cintilando feito vaga-lumes.
— É ela! — grita uma vozinha esgoelada mais alta do que o zunido de muitas asas. — É!
Um enxame de criaturas humanoides do tamanho de gafanhotos e da cor de feijão-de-lima paira
sobre nós. São todas fêmeas, nuas e com escamas reluzentes que se curvam sobre seus seios e
dorsos, formando desenhos sinuosos. Suas orelhas pontudas e os cabelos esvoaçantes cintilam, e seus
olhos são bulbosos e metálicos feito os de uma libélula, como se elas estivessem usando óculos
escuros de cobre. Asas revestidas com pelos na cor branco leitoso que lembram as pétalas de um
dente-de-leão farfalham perto da minha bochecha.
Uma delas chega perto o bastante para dar um tapinha na testa de Jeb, com as mãos do tamanho do
corpo de uma joaninha. — Eu o encontrei. Ele é o meu prêmio!
— É meu! — Três outras berram, enfiando-se no cabelo dele.
Jeb aperta as alças da mochila.
— Não, irmãs fadas — responde uma delas com a voz de sineta. Ela paira diante de Jeb, tão
fascinada quanto as outras. — Nosso mestre disse que eles devem ficar sob minha guarda.
As outras resmungam e se afastam.
Suspensa no ar, a pequenina vitoriosa faz uma reverência enquanto bate as asas. — Sou Gossamer.
Devo levá-los até aquele que procuram. — Seus olhos de libélula faíscam em minha direção e ficam
mais brilhantes, como se ela estivesse com raiva. — Àquele que procura você. — Meu estômago se
retorce com essa insinuação.
Em seguida, ela se volta para Jeb. — Cavaleiro élfico, você procura por prazer? Posso oferecê-lo,
se assim desejar.
Esfregando o dedo no piercing, Jeb olha para mim, totalmente perplexo. — Hum. Não, obrigado.
Estou bem.
Às gargalhadas, a fada se afasta, unindo-se às outras.
Seguimos nossas guias luminosas para dentro de uma floresta fechada, serpenteando através da
vegetação alta e fluorescente até chegarmos a uma clareira de musgo verde-limão, líquen amarelo
vivo e cogumelos reluzentes. Um círculo de árvores se fecha acima de nós, com os galhos esticados e
entrelaçados juntos de modo a formar um domo. Lascas do céu roxo aparecem aqui e ali, o suficiente
para lançar sombras.
Cada uma das fadas toma seu lugar dentro do teto suspenso, pontilhando os galhos feito velas
acesas. Sua luminância acrescenta uma névoa suave e brilhante ao cenário. Gossamer nos convida a
segui-la até o meio da clareira, onde um cogumelo gigante listrado de ultravioleta aguarda, envolto
em uma nuvem perfumada.
Uma sensação inconfundível de reconhecimento me possui. Reconheço este lugar de meus
pesadelos com Alice. Estamos no covil da Lagarta — o sábio guardião do País das Maravilhas.
— Ela não parece nada especial, meu senhor. — Gossamer paira sobre a espessa fumaça que
cobre o chapéu do cogumelo, escondendo o que quer que esteja sentado sobre ele. — Ela está
coberta de lama e fede a marisco.
— Só podia, porque ela acaba de secar o mar, queridinha. Tinha que ser um feito bem trabalhoso,
você não acha?
Todo o meu ser treme ao som daquele sotaque profundo. Fluido, masculino e sensual. É ele. Meu
guia intraterreno. Se eu pudesse ver além da fumaça...
— Sua vestimenta parece ser a de uma empregadinha — retruca Gossamer, crivando-me com um
olhar de desaprovação. — Talvez o senhor devesse mandá-la para casa e esperar por outra. Por
alguém mais aceitável.
— Quem está nu não deve julgar vestimentas — responde aquela voz familiar. — Você sabe muito
bem que não são as roupas que fazem uma mulher.
Humilhada, Gossamer vai juntar-se às outras fadas que pairam no ar. Finalmente, a fumaça se
dissipa e revela um narguilé e a mariposa do tamanho de um corvo — asas negras e corpo azul
luminescente — aninhada no alto do cogumelo, como uma borboleta repousada sobre uma pétala.
Ela inala fumaça da mangueira e solta plumas no ar. Algumas têm a forma de pássaros, outras, de
flores. Um dos desenhos vaporosos se afasta e vira uma cabeça de mulher — como o entalhe de um
camafeu. Conforme ela se dissipa lentamente, começa a parecer uma criança de cinco anos. Sou eu,
com cinco anos...
— É tão bom vê-la novamente, amorzinho. Quanta saudade eu senti.
Falta-me o ar e eu caio de joelhos. A Lagarta, a mariposa e o rapaz alado são todos a mesma
coisa, esse tempo todo...
— Eu já vi esse inseto — afirma Jeb. — No seu carro. No espelho. — Ele larga a mochila e
segura meus ombros, tentando fazer com que eu fique de pé. Minhas pernas não cooperam.
— Na-não. Você nunca precisa se curvar diante de mim, adorável Alyssa. — A voz sai da
probóscide da mariposa em baforadas de fumaça acinzentada. A atenção dele se volta para Jeb. —
Você, ao contrário, se curvará diante dela.
A fumaça voa na direção de Jeb e se transforma em uma rede em pleno ar, envolvendo-o. O peso o
faz cair de joelhos. Um graveto fere seu joelho no lugar onde a presa do octobenus havia rasgado sua
calça. Pinga sangue do ferimento.
— Ah-há! Ele não é elfo. É um mero mortal. — A mariposa bate as asas como se tivesse feito uma
grande descoberta.
— Um homem mortal! — As fadas guincham com vozes dúlcidas como sinos tilintando. Elas
mergulham das árvores como radiantes flocos de neve, enxameando em volta de Jeb enquanto ele
tenta se livrar da sua prisão de fumaça. As fadas tiram o canivete de suas mãos e depois entram
através da rede, cobrindo-o feito formigas em um torrão de açúcar.
Dou um pulo para espantá-las. — Vão embora!
— Ah, não estrague a brincadeira — sussurra a mariposa em minha direção. — Não vamos
quebrar seu soldadinho de brinquedo.
Pego o canivete e tento cortar a rede com a tesoura, mas as cordas desaparecem em minhas mãos.
Estou tão preocupada que quase perco a transformação que ocorre no alto do cogumelo. A mariposa
ri, e eu olho junto a tempo de ver suas asas se dobrarem sobre seu corpo. Os apêndices acetinados
aumentam até ficarem do tamanho das asas de um anjo, e depois se abrem para revelar o rapaz do
reflexo no meu espelho quebrado — e de minhas lembranças — já adulto.
O canivete me escapa das mãos. Estou mentalmente presa entre o passado e o presente.
Ele tem mais ou menos a mesma idade e altura de Jeb. Está usando um terno preto de couro com
botas utilitárias e se estica sobre o chapéu do cogumelo com a mangueira do narguilé aninhada
elegantemente entre dois dedos e com os tornozelos cruzados. Calças desgastadas cobrem suas
pernas musculosas. Ele é mais magro do que Jeb, mas está em ótima forma. Seu casaco, aberto até
quase o abdômen, revela um peito liso e alvo, como a pele de seu queixo recém-barbeado.
As fadas roubam nosso canivete e nos abandonam, correndo para o seu mestre. Elas enfeitam seu
cabelo e alisam suas roupas, arrulhando e rindo.
Não é surpresa que o pôster de Perséfone parecesse tão familiar. Meu companheiro intraterreno
cresceu e ficou parecido com o herói, só que seu cabelo na altura dos ombros é azul e brilhante, e ele
usa uma meia máscara de cetim vermelho. Exceto por isso, ele é seu sósia perfeito: pele de
porcelana, olhos tão pretos quanto a maquiagem em volta deles, lábios cheios e escuros.
Com a mistura de neblina e fumaça fluindo em volta de suas asas escuras, ele também me recorda
a vitrina de Jenara: um anjo negro.
Embora ele esteja mais para diabo.
Eu sei, porque minhas lembranças de infância retornam em uma onda avassaladora — me
atordoando com o nome que não pronuncio há onze anos.
9
Morfeu
“Morfeu.” Pronuncio, mais como uma acusação do que uma revelação.
O demônio alado mostra seus dentes brancos em um sorriso estonteante que me atrai e me coloca
em guarda. — Hum. — Ele move a mão ao longo do narguilé como se ele fosse um violino. — Sua
voz é uma canção. Diga novamente. — Ele dá uma tragada no cachimbo.
Fico tão extasiada por vê-lo vivo e real que nem tento resistir. — Morfeu.
— Fantástica. Sua mãe deveria saber que é preciso mais do que tesouras de poda para me cortar
de sua vida. Mas parece que ela conseguiu me cortar de suas memórias por algum tempo. — Ele
sopra anéis de fumaça. — Estou magoado, Alyssa. Não deveria ter levado todo esse tempo para você
me encontrar. — Recolhendo os anéis de fumaça em seu dedo, ele os atira ao ar, onde explodem em
estrelas vaporosas.
Jeb, ao meu lado, luta com a rede. — Este é o palhaço que você estava procurando? O do site? —
pergunta ele.
— Mais do que isso — respondo, sem estar segura que as palavras que formo são coerentes. —
Nós crescemos juntos, de alguma maneira. Era ele que frequentava meus sonhos quando pequena.
Não era? Você me visitava em meus sonhos... Me trazia até aqui. Me contava coisas.
— Ensinava coisas é melhor. Ah, mas nós reservávamos tempo para nos divertirmos também.
Tenho que dar um jeito de continuarmos com essa tradição. — Morfeu passa o narguilé para algumas
fadas com seus dedos pálidos e elegantes. Fecho os olhos, lembrando de passagens quando éramos
crianças, pulando nas pedras enquanto Morfeu alçava voo e me levantava por baixo dos meus braços
— uma sensação terna de segurança. Quando volto a abrir meus olhos, enrubesço, lembrando do
quanto seu toque pareceu diferente em meu quarto ontem à noite. Ele fica de pé sobre o cogumelo, as
asas enroladas num arco enquanto apoia as mãos unidas debaixo do queixo.
— O Chapéu da Hospitalidade! — Ele grita de repente, sem o menor sentido.
Várias de suas assistentes pairam sobre ele com um chapéu preto de cowboy e veludo e o colocam
em sua cabeça. Ele o vira meio de lado. O veludo é decorado por uma tira de mariposas brancas em
decomposição, fazendo-o parecer suave e ao mesmo tempo selvagem.
— Ela não tinha o direito de interferir. — Ele corre seu dedo longo pela aba do chapéu. Mechas
de seu comprido cabelo azul tocam seus ombros. — Não era o lugar dela.
Leva um minuto para eu perceber que ele voltou a falar de Alison. — Você a conheceu?
— Sim. De todas as outras candidatas, de todas as suas antecessoras, a mente dela foi a mais
receptiva a mim. Nos conectamos quando ela ouviu o chamado do mundo interior, aos treze anos de
idade. Mas ela deu as costas à sua responsabilidade no momento em que conheceu o Tomatinho. —
Ele sorri desdenhosamente quando fala o apelido de meu pai. Em seguida se recompõe, alisando o
casaco. — Não se importe com tudo isso. Vejo que está usando as luvas. Trouxe o leque também?
— Junto com tudo que ela escondeu.
— E ela achou que seus tesouros enterrados impediriam você de vir. Que pena que as palavras nas
margens estão indecifráveis, não? Ela deveria ter ficado de boca fechada brincando com os seus
cravos.
Cravos? Palavras indecifráveis? A compreensão me arrebata. — Foi você. Você manchou as
anotações para que eu não pudesse lê-las. E na clínica... foi você que quase a matou!
— Não admito nada. Só que ela estava fora de controle. Ela precisava se acalmar, para sua
própria segurança.
— É claro que ela estava fora de controle! Você brincou com a mente dela metade da vida! —
Ranjo os dentes. — É culpa sua ela estar naquele lugar.
Morfeu abre suas asas acetinadas — um movimento que impede que as fadas brilhantes me vejam
e que me lança na sombra. — Agradeça a você mesma por isso. Ela estava lidando bem com as
coisas até você aparecer. Pergunte ao seu pai. Ela nunca conversava com os insetos e plantas antes
de você nascer. Pelo menos, não na frente de ninguém.
— Não — sussurro.
— Não dê ouvidos a ele, Al. — Jeb tenta me confortar. — Sua mãe te ama.
Morfeu ergue as mãos sobre a cabeça e aplaude. — Bravo, gentil Cavalheiro. Todas vocês viram
isso? — As fadas entram na falsa celebração, dando voltas no cogumelo, todas exceto Gossamer, que
fica sentada no narguilé, observando num silêncio majestoso.
— Mas que gesto nobre! — continua Morfeu, andando pomposamente no alto do cogumelo. —
Preso e incapaz, mesmo assim seu único pensamento é defender a sensibilidade ferida da donzela. E
eu devo dizer que ele está certo. — As fadas silenciam seus cumprimentos zombeteiros, confusas.
Com um agitar de asas, Morfeu flutua e pousa graciosamente diante de mim — belo e sombrio. —
Sua mãe realmente a ama. Muito, muito mesmo.
Minhas pernas tremem, mas sustento o olhar sobre ele, com o desprezo queimando meus olhos por
trás.
— Fique longe dela. — Jeb atravessa um punho pela rede e roça a perna de nosso anfitrião.
Morfeu esquiva-se. — Ah, ah, ah. — Ele faz com que a fumaça desapareça e a rede também,
deixando os pulsos, os tornozelos e o pescoço de Jeb amarrados à base do cogumelo. — Se você se
comportar como um macaco adestrado, será tratado como um.
— Idiota! — Invisto com a mão aberta, mas Morfeu agarra meu pulso no ar. O impacto sacode
meus ossos e acirra a dor de minhas contusões.
— É esse o fogo. — Morfeu inclina a cabeça, e a expressão em seu rosto é ao mesmo tempo de
diversão e surpresa. — É bom ver que ele ainda queima.
— Tire as mãos, seu filho de inseto! — Jeb luta contra as algemas de fumaça, o rosto ficando
vermelho pelo esforço de tentar chegar até nós.
Rindo, nosso captor inclina-se sobre mim, ainda segurando meu pulso. — Ah, eu gosto mesmo
dele — murmura. — Um artífice das palavras. — Ele está tão perto que seu hálito com sabor de
fumaça penetra em mim, doce feito mel e forte como a seda da aranha, um conforto da minha infância.
— Quanto a você... Isso é maneira de tratar um velho amigo? Depois de tudo que vivemos? Tsc, tsc...
Fico tentada a me aproximar, buscar mais dessa sensação sedutora. Mas o desejo não é meu. De
alguma maneira, ele está me manipulando. Tem que estar.
Eu o ataco. Suas unhas se enterram em minha luva, fazendo meu punho vibrar.
Os olhos negros brilham, frígidos e duros por trás de sua máscara. — Pare de lutar e escute. Sua
mãe não tinha que virar as costas para mim. Ela não tinha que ir para a casa de loucos para proteger
você.
— Espere. — Um alarme dispara dentro de mim. — Está dizendo que ela escolheu ir para lá?
— Ela só precisava estar a alguns quilômetros de distância de você. Ela poderia ter pedido o
divórcio, se mudado para o outro lado da cidade, dado ao seu pai a custódia total. Mas ela amava
demais vocês dois para magoá-los tanto assim. Ela queria fazer parte de suas vidas... E ao mesmo
tempo mantê-los seguros. Então, sacrificou sua vida. É a mais pura forma de amor.
— Está mentindo. — Minha acusação emerge com uma lufada de ar.
— Estou? Você é a única que eu alcancei ainda bem jovem. Você e sua mamãe tinham uma
conexão mais forte do que qualquer coisa que eu já encontrara. Consegui usar os sonhos dela como
um condutor para os seus. Quando ela percebeu o que eu estava fazendo, ficou louca. Mas foi uma
loucura temporária. Que não haja dúvida — a fantasia de Alice, a obsessão pelo chá da tarde, os
estalos da língua, conversar em voz alta com insetos e flores —, todos esses tiques que ela
desenvolveu foram orquestrados por ela, para que ela fosse mantida longe de você. Por respeito ao
sacrifício dela, prometi eu mesmo não mais me aproximar de você.
— Então quebrou sua promessa — sussurro.
— Não. Havia uma brecha, sabe? — As articulações de sua mão livre roçam a minha têmpora. Seu
toque é caloroso e delicado. — Você encontrou a mim. Como foi você quem me procurou primeiro,
você me libertou dos vínculos da promessa. Menina esperta, muito esperta. Agora você está aqui
para arrumar as coisas, não está, minha joia? Para reparar o que Alice estragou. Para consertar o
País das Maravilhas, quebrando assim a maldição sobre o nome de sua família. As conversas com
insetos e flores... Os laços com esse reino. Você não estará mais enfeitiçada. Por fim, sua mamãe
poderá parar de fingir ser completamente maluca, porque não mais necessitarei de ninguém de sua
linhagem.
Meu peito dói, como se alguém usasse meu coração como um saco de pancadas. Foi por isso que
Alison disse aquelas coisas no pátio... Que, se eu prosseguisse com meu plano para encontrar a toca
do coelho, ela teria feito tudo por nada. Ela suportou tantos anos de humilhação, medicamentos e
horror porque esperava manter-me afastada daqui. E eu fui e arruinei tudo ao procurar por Morfeu.
O que torna o plano do meu pai e dos médicos ainda mais devastador.
— Minha culpa — sussurro, tentando não chorar. — Tudo que aconteceu com ela... É minha culpa.
— Al, não deixe que ele a culpe! — O ruído produzido por Jeb, lutando com as algemas, é quase
inaudível para mim.
Morfeu levanta meu queixo. — Sim, não se culpe. Porque você descobriu a toca do coelho e foi
corajosa o suficiente para mergulhar nela. Você é a única que teve tanta astúcia e coragem desde a
própria Alice. E você já conseguiu secar o mar que ela deixou para trás. Você vai reparar tudo para
a sua mamãe. Para todos nós. Você é muito especial, Alyssa. Muito especial mesmo. — Ele puxa o
meu punho, levantando-me até eu ficar na ponta dos pés e meu nariz tocar a borda inferior de sua
máscara. Ele está tão próximo que quase consigo sentir seus lábios com sabor de alcaçuz.
Um estalo forte irrompe no ar e Morfeu me liberta. Volto a pisar sobre meus calcanhares. As fadas
guincham quando as amarras de Jeb se soltam do cogumelo.
Jeb rola no chão e sacode as pernas com força. As algemas quebradas — ainda em seus
tornozelos, pescoço e pulsos — o seguem feito a cauda espiralada de um escorpião, e atingem
Morfeu, derrubando-o no chão. O impacto faz seu chapéu cair e evapora a fumaça, deixando os dois
homens a lutar em um emaranhado de asas e membros.
Jeb monta em Morfeu e aperta seu pescoço. — Eu disse para não tocá-la. — Sua voz profunda é
rouca, mas calma, fazendo os pelos de minha nuca eriçarem.
Morfeu comete o erro de rir, e Jeb surta. Com uma mão apertando o pescoço de Morfeu, ele o soca
com a outra, amassando a máscara de cetim. Morfeu vira a cabeça para desviar do golpe. Suas asas
estão tortas e são inúteis debaixo dele.
Contraio meus músculos. Estou em guerra comigo mesma. Uma parte de mim deseja defender
Morfeu — explicar seus motivos para Jeb; a outra parte torce para que Jeb faça picadinho dele. Eu
me dobro, minhas têmporas latejam enquanto me afogo em um mar de lembranças distorcidas e
emoções desmembradas. As fadas choramingam, reunidas nos galhos acima de nós. Elas obviamente
nunca viram seu mestre ser atacado por alguém.
Morfeu estica os joelhos para tirar Jeb de cima dele e eles giram pela grama fluorescente,
deixando um rastro. Desta vez, Morfeu termina por cima. Suas asas se desdobram feito uma tenda. O
contorno do rosto de Jeb aparece, pressionado contra a membrana preta do outro lado. Um
movimento de sugar o ar revela o contorno de sua boca.
Ele está se sentindo sufocado.
Atravesso meu labirinto mental e lanço-me na direção de Morfeu, derrubando-o. Ele rola no chão,
envolto dentro de suas asas como uma pupa.
Ao cair de joelhos, encosto o rosto no de Jeb. Sua respiração aquece meu nariz, lenta e estável,
mas ele não abre os olhos. — Jeb! Acorde, por favor... — Arrasto seus ombros para o meu colo e
aninho sua cabeça.
Morfeu está de pé, limpando-se.
— O que você fez? — grito.
Ele ajeita sua máscara amarrotada e depois estica cada uma das asas por sobre os ombros,
passando as mãos para verificar se ficaram danificadas. — Ele só está inconsciente. — Colocando
de volta o chapéu, Morfeu toca as marcas de dedos em seu pescoço, com os olhos sombrios. — Foi
uma gentileza. Eu poderia tê-lo matado. — Ele grunhe. — Na verdade, deveria. Estou certo de que
me arrependerei dessa decisão.
Ao olhar para seu harém, Morfeu convoca as fadas para descerem. — Levem o pseudoelfo para a
casa. Despertem-no de seu torpor. Façam-no sentir-se bem-vindo como só vocês podem fazer.
Gossamer é a primeira a descer das árvores. Parece haver ainda mais fadas agora. Seguindo sua
líder, elas descem em torrentes, formando uma chuva faiscante.
— Não! — Atiro-me na frente de Jeb. Afasto-as com meus punhos. Sob a ordem de Gossamer,
elas colidem com meus braços e costelas em velocidade total, atingindo-me feito granizo. Recuso-me
a me mexer até que Morfeu me agarra pelo colarinho e me força a levantar.
Minha resistência ao seu domínio só o torna ainda mais resoluto. Seu braço envolve minha cintura,
duro e forte como uma garra de metal. Ele aperta minhas costas contra sua lateral, e meus pés ficam
suspensos. Cinquenta fadas ou mais levantam Jeb pelas roupas. A cabeça dele pende, sua camisa e
calças franzem onde elas seguram, como se ele estivesse sendo içado por cordas.
— Jeb! — grito. Lágrimas borram minha visão quando ele não responde. — Tenham cuidado com
ele.
As pequeninas fêmeas só conseguem erguê-lo a poucos centímetros do solo, e a grama alta se
curva sob seu peso conforme ele é levado da clareira. Algumas das fadas restantes puxam a mochila
no final da procissão. Quando o último trecho de grama se ergue atrás delas, empurro Morfeu e me
liberto, mas só porque ele assim permite.
— Se nosso tempo juntos significa alguma coisa para você, não irá machucá-lo. — Lágrimas
cálidas me lavam a face.
Morfeu estende a mão para apanhar uma lágrima com a ponta de um dedo. Ele a eleva contra o
brilho suave que irradia das poucas fadas que ainda permanecem sobre nós. Em seguida, arqueia os
lábios de maneira inusitada. — Você chora por ele, mas sangra por mim. Deve-se perguntar qual é
mais poderoso. Mais comprometedor. Suponho que um dia saberemos.
Minha garganta fica seca. — Do que está falando? Sangro por você?
Ele esfrega a minha lágrima em sua pele como se fosse perfume. — Tudo a seu tempo. Quanto ao
seu soldadinho, não chore por ele. Ele vai receber atenção mais que suficiente. E, quando ele estiver
inconsciente em seu êxtase, esquecerá onde está e com quem veio. Embora eu imagine que terei de
enviá-lo para alguma outra parte do País das Maravilhas para mantê-lo longe de você.
O terror me invade. Já é muito ruim aquelas minininfetas seduzirem Jeb, mas, se elas vão fazê-lo
esquecer quem ele é, ele ficará perdido aqui para sempre. Jeb está aqui por minha causa. Ele não
merece um fim desses. — Por favor, mande-o de volta para o nosso mundo.
Morfeu dá de ombros. — Não é possível. Estamos tendo uns probleminhas de transporte aqui no
reino interior.
— Não pode ser.
Ele se aproxima. — Não pode?
Dou dois passos para trás. — Você me visitou em casa, no trabalho. Ficou me observando. Quase
sufocou Alison com o vento...
Ele joga a cabeça para trás e ri, levantando os braços como se fosse um grande ator. — Imagina
só. Eu, controlando o vento e o tempo. Ora, eu devo ser um deus.
Eu o encaro firmemente. — Sei muito bem o que vi.
Ele estica as mangas. — Eu usei os reflexos para visitá-la. O globo na clínica, os espelhos da
loja... Os espelhos de sua casa. Através deles, projetei uma ilusão, mas não podia me materializar
totalmente porque os portais estão obstruídos. Sua mente foi meu palco. Ninguém mais pôde me ver,
ouvir ou sentir. Só você. E você me sentiu mesmo, não é, amor?
Pensar no modo como sua respiração-fantasma me fez comichar o pescoço quando ele sussurrou
— quente e provocador — me deixa confusa até a medula. Ergo o queixo, uma pobre tentativa de
esconder seus efeitos em mim. — Havia magia... Na trança da minha mãe. Ela se movia, prendeu
meus dedos em volta da garganta dela. Foi você.
Ele esfrega as unhas na lapela. — Foi magia, admito. Magia mal orientada. E não foi minha.
— O que isso quer dizer?
— Você ainda não está pronta para essa resposta.
Cansada de suas manipulações, empurro-o e o desequilibro, correndo para a abertura nas árvores
por onde desapareceram as fadas, quase tropeçando em mim mesma na minha ânsia de encontrar Jeb.
Ouço um poderoso farfalhar de asas acima de mim; em seguida, Morfeu barra meu caminho. Eu paro,
derrapando.
Ele se agacha com as asas abertas paralelas ao chão e me encara atentamente, como uma ave de
rapina gigante — sombria e perigosa. Estou acostumada com este lado dele... Seu lado escuro e
temperamental. Não haverá discussão sensata com ele a menos que eu assuma o controle.
Ele fica parado e me pega pelos ombros antes que eu possa fugir novamente.
— Chega de brincadeiras — dispara ele. — É hora de você cumprir seu destino. Não passei o
primeiro terço de sua vida treinando-a em vão. Alice deixou perturbações em nosso mundo que só
você pode reparar. Esperei 27 anos para este dia chegar... Fiz sacrifícios demais para ver tudo cair
por terra. Você vai consertar o que ela quebrou, e isso abrirá o caminho para que você quebre a
maldição e volte para casa. Até lá, eu dito as regras.
Alice deixou perturbações em nosso mundo que só você pode reparar. As flores zumbis disseram
algo assim. Que somente um descendente de Alice poderia ajudar a consertar tudo. E o octobenus
insistiu que o Sábio — Morfeu — estava desesperado por minha ajuda. Desesperado.
Foi ele que me sugeriu trazer a esponja, era ele que vinha me ensinando sobre o País das
Maravilhas havia anos. Por quê? Ele deve ter algum tipo de interesse pessoal nisso tudo.
— Você precisa de mim. — Levanto a voz, arriscando minha suposição. — Não é que minhas
ancestrais não tenham conseguido encontrar o caminho para cá. Elas não quiseram vir. Temos que
querer. Você não pode forçar. Sou a primeira que quis chegar tão longe, e não tenho que fazer nada
que você me pede. Então, e se eu ficar presa aqui? Sempre fui o peixe fora d’água. Sempre aprendi a
conviver com isso. Alison... ela vai sobreviver, como sempre.
Morfeu não tem que saber a verdade: que a qualidade da vida de Alison depende do meu sucesso.
Prevejo que continuarei com este blefe até o fim.
— Essa é sua única chance. — Coloco as mãos na cintura. — Acabe comigo e poderá terminar
esperando mais 75 anos.
Uma expressão estranha paira sobre o rosto de meu companheiro de infância. Se não fosse pela
máscara, eu poderia interpretá-la melhor, mas parece haver um lampejo de orgulho.
Seus dedos em meus ombros relaxam um pouco. — Quais são as suas exigências?
— Jeb e eu voltaremos a nos unir hoje. Você vai cancelar suas fadas e deixar a memória dele
intacta. Ele será tratado como igual, não como seu peão. E eu quero clareza... Como pode alegar ser
amigo de Alison, se você e eu crescemos juntos? Como sabia sobre meus ancestrais se você tem a
minha idade? E qual é o seu interesse nisso tudo?
Ele me liberta. — É só isso que pede?
Repassando o que o octobenus disse sobre votos entre os intraterrenos — um fato confirmado pela
promessa que Morfeu fez a Alison de não me contatar —, acrescento mais uma coisa. — Quero sua
palavra... Um juramento.
— Arre! — Suspirando, ele leva uma mão ao peito, como se estivesse jurando lealdade. — Juro
sobre a magia de minha vida não mandar embora e nem prejudicar seu precioso amigo desde que ele
seja leal a você e à sua digna causa. Mas me reservo o direito de enfrentá-lo em qualquer
oportunidade que se apresente. Ah, e terei prazer em elucidar todas as suas dúvidas. — Ele faz uma
reverência — em cada detalhe, um cavalheiro.
Terno de couro e máscara amarrotada, aquele chapéu morbidamente sexy. Ele acha que é um astro
do rock. E talvez seja, neste lugar. Mas ele deu a palavra e tem que cumpri-la, ou suas asas irão
murchar e ele perderá seu encanto.
Endireitando-se, ele dá um passo para a frente de modo que sua bota toca na minha. — Pronto.
Agora que aquele desconforto se dissipou, vamos continuar? Como agora estamos ambos adultos,
temos que nos reapresentar.
Examino as árvores. Todas as fadas se foram. Meus nervos estão à flor da pele. — Onde estão
todos?
— Preparando um banquete de celebração para nós na mansão. Não temos damas de companhia.
Podemos aproveitar.
Em pânico, dou um passo para trás, mas as asas dele me envolvem e me mantêm no lugar,
obscurecendo tudo, exceto ele. É como se estivéssemos em uma caverna.
Sua pele é quase translúcida sob a luz tênue. — É hora de me deixar entrar, adorável Alyssa.
Antes que eu possa responder, ele tira a máscara e a joga na grama. O que eu pensava ser
maquiagem em volta dos olhos são, na verdade marcas permanentes — como tatuagens, mas internas.
São pretas feito cílios postiços, com safiras em formato de lágrima rematando as extremidades
pontudas. O efeito é lindo, mas um tanto macabro e circense. Não consigo resistir ao desejo de
levantar a mão e tocar as lágrimas faiscantes. As joias lampejam por meio de um espectro de cores
até não serem mais safiras azuis, mas topázios flamejantes — alaranjados e quentes. Seus cílios se
fecham como que em êxtase por dois segundos. Depois, seus olhos de tinta se abrem e me engolem
inteira.
— Não tenho idade. — A voz dele ecoa dentro de mim, mas seus lábios não se movem. — Posso
usar a magia para imitar a idade que quiser. Usar este poder afeta a mente, o físico e a emoção
dos intraterrenos. Nos tornamos a idade, de todos os modos. Então, em essência, a única infância
que tive foi com você em seus sonhos. Abra sua memória e verá.
A canção ganha vida mais uma vez — o acalanto de Morfeu.
Desta vez, não coloco resistência. Envolvo minhas lembranças nas notas fluidas, permitindo que
elas permeiem cada pensamento até...
Pedaços do meu passado são projetados feito filmes na tela negra de suas asas. Sou eu, recém-
nascida, chorando no berço. Um cobertor de cetim me envolve — vermelho com acabamento branco.
Minha janela está aberta e uma brisa de verão agita as cortinas de ilhoses, movendo o móbile acima
de minha cabeça. Cavalos balançam e bailarinas dançam sobre mim.
É a canção que me acordou. Não a música do móbile, mas a canção dele. A lua brilha e ele está
aqui, uma silhueta de mariposa pendurada na parte de fora da tela. Sua voz profunda penetra no
quarto, soa suave e gentil:
— Vermelha e branca, a florzinha, descansando a cabecinha; cresça e floresça, seja forte e
espertinha, pois um dia você vai...
Antes que eu possa finalizar o verso, sou jogada em outra memória. Esta é nebulosa, como se eu
estivesse olhando por um vidro manchado. Percebo que é porque estou sonhando. Sou uma criança
pequena, não mais de três anos, andando com um Morfeu de seis por uma praia escura e radiante.
Suas pequenas asas se dobram sobre nós para fazer sombra. Eu seguro sua mão, maravilhada pelo
espetáculo de brilho que se descortina diante de nós: uma árvore feita de joias. Morfeu se agacha
para apontar o labirinto na base da árvore e então enrola suas mangas de renda para revelar uma
marca igual em seu antebraço. Viro meu tornozelo, fazendo a conexão. Ele me ajuda a pressionar
minha marca de nascença contra o tronco. Quando o portão se abre, ele dá pulos e dança. — Temos
as chaves! Temos as chaves! — Sua pequena voz exclama em contentamento infantil. Dou risada,
pulando atrás dele.
Depois, volto à minha casa dois anos mais tarde. É manhã de sábado e sou atraída até a porta de
tela pela canção de Morfeu — agora tão familiar quanto os lençóis rosados da minha cama. O
perfume de uma tempestade de primavera atravessa a rede. Ele aguarda em forma de mariposa do
outro lado. É nossa rotina: eu brinco com ele, meu amigo de infância, em meus sonhos noturnos —
explorando nosso mundo encantado nos lampejos que ele me proporciona —, depois o vejo em
intervalos durante o dia, como inseto. Mas seus ensinamentos já estão entranhados em minha cabeça,
ganhando vida em uma sensação esvoaçante de confiança que me impele para encontrar uma saída.
Logo, estou dançando com a minha mariposa em nosso jardim. Mamãe me vê. Correndo para fora,
ela leva tesouras de podar longas e afiadas e corta pétalas de flores, gritando “Vou cortar sua
cabeça!” Quando percebo o que ela quer realmente, um estranho desconforto me agita por dentro. Eu
vi como as pétalas se esfrangalham perante as lâminas. Não quero que ela estrague as asas lindas da
minha mariposa. Levanto as mãos para deter a tesoura. A mariposa escapa ilesa. Mas eu não tenho
tanta sorte...
Saindo do transe, atiro-me ao chão e aperto as mãos doloridas contra o peito. As cicatrizes pulsam
como se fossem recentes. Morfeu inclina-se sobre mim, afagando meu cabelo. — Eu lhe disse que
você era especial, Alyssa — murmura ele, o peso de sua mão estranhamente confortando o algo de
minha cabeça. — Ninguém jamais sangrou por mim. A lealdade de uma criança por outra é
imensurável. Você acreditou em mim, compartilhou novas experiências comigo, cresceu comigo. Isso
conquistou minha sincera devoção.
Enfim, compreendo. A outra lembrança, a que presumi que fosse real durante todos esses anos, foi
colorida pelo que meu pai pensava ter acontecido. Pelo que ele testemunhou quando olhou pela
janela da cozinha, onde estava fazendo panquecas. Ele achou que eu estava dançando atrás de Alison,
quando o tempo todo eu estava tentando proteger meu amigo.
Alguém que eu pensava ser meu amigo. Um amigo sai voando e deixa você sangrando e de
coração partido?
Estou aos pedaços. Todas as revelações se misturam em minha mente, demais para assimilar. O
trauma que meu corpo enfrentou nas últimas horas cobra seu preço. Minhas contusões palpitam e
meus membros parecem pesados como pedras.
Ainda de joelhos, inclino-me sobre as coxas de Morfeu — um apoio sólido. O couro frio de suas
calças acomoda minha face. Fecho os olhos. Sim... já estive aqui antes, abraçando-o em segurança.
A princípio, penso estar imaginando quando ele se curva para me receber em seus braços. Mas,
quando o perfume de alcaçuz e a pele quente me envolvem, sei que é real.
— Você foi embora — acuso-o, me esforçando para ficar acordada. — Eu estava ferida... e você
me deixou.
— Um erro que eu juro pela magia de minha vida nunca cometer novamente. — Apesar de ele
estar me abraçando, sua resposta parece distante. Mas a distância não importa; ele deu sua palavra.
Eu o lembrarei disso.
Meus olhos estão entrecerrados e vejo sombras se formarem sobre nós. Ou serão asas?
Por um momento, a preocupação com Jeb me volta à mente; depois, mergulho num sono escuro e
sem sonhos.
10
Mais e mais
curioso
Sinto-me quente... quente demais. Uma névoa azulada brilha e depois escurece — como o sol
refratando ondas. O fluxo da água goteja perto de mim, e ainda mais perto escuto o farfalhar de
roupas.
— Jeb?
— Calma, amor. — Morfeu está sentado ao meu lado — a pele com aroma de alcaçuz, o cabelo
azul e selvagem, olhos tatuados com pontos de pedras preciosas. Agora me lembro. Ele me tirou do
covil do cogumelo e me trouxe para cá. Acordei no meio do voo e desmaiei por causa do meu medo
de altura, acordando novamente por um instante enquanto ele me arrumava em sua cama.
A névoa azulada é, na verdade, lençóis de água que caem da elegante cobertura ligada à estrutura
da cama. Cortinas líquidas.
As asas de Morfeu cortam a queda de água e a desviam, mantendo-o seco. Cada vez que ele muda
de posição, a cortina aquosa se move junto, como se fosse traçada uma espécie de barreira invisível
entre ele e a água que cai.
Tento sentar, mas a pilha de cobertores é muito pesada. A claustrofobia faz meu coração pular.
— Morfeu? — Minha voz estala, seca e áspera, como se eu tivesse comido bolachas salgadas.
Deve ser de todas as lágrimas que engoli no oceano.
Ele está deitado ao meu lado no colchão, apoiado no cotovelo. Seus dedos percorrem os fios de
cabelo platinado que se espalham sobre o travesseiro em torno de minha cabeça. — Você estava
chorando enquanto dormia. Está sofrendo?
Faço um sinal positivo com a cabeça, procurando tirar minha mão de debaixo dos cobertores para
tocar minha garganta. — Jeb — murmuro.
Morfeu franze a cara. — Seu amigo está a salvo e descansando no quarto de hóspedes. O que
significa que você é minha por enquanto. — Ele começa a afastar as cobertas.
O que parecia sufocante minutos atrás agora parece uma armadura sendo arrancada. Não sei ao
certo o que estou usando debaixo das cobertas, então me agarro ao último cobertor na altura da
clavícula.
Morfeu inclina-se mais. Seu cabelo roça meu ombro à mostra, comichando com suavidade. —
Florzinha tímida — sussurra ele, o hálito doce me envolvendo. — Nós simplesmente vamos misturar
sua dor e fazê-la sumir.
Misturar... Não soa como algo que meu pai aprovaria. Nem Jeb, por sinal. Começo a empurrar
Morfeu para trás, mas o cobertor escorrega pelo meu corpo a um sinal de seus dedos pálidos e
elegantes. Me resta uma longa camisola champanhe de cetim com alcinhas. Ela cobre todos os
lugares certos, mas sinto-me exposta. Morfeu teve que me ver nua para vesti-la em mim. Cruzo os
braços sobre o peito, com o rosto em flamas.
Ele sorri. — Não se preocupe. Minhas queridinhas a despiram. E levaram suas roupas para serem
queimadas.
— Queimadas? Mas... Eu não tenho mais nada...
— Agora fique em silêncio e não se mexa.
— Você mencionou um banquete. Não vou vestida assim de jeito nenhum. — Aperto os braços em
torno de mim mesma.
Ele balança a cabeça e depois empurra a bainha da minha camisola até ela chegar ao tornozelo,
deixando à mostra minha marca de nascença. Sento-me, prestes a puxar a perna, mas seus olhos
escuros e profundos se voltam para os meus. — Confie em mim.
A sensação palpitante em minha mente me incita a ouvir. Aqui neste lugar, onde não tenho mais o
ruído das vozes me distraindo, posso escutar meus pensamentos com mais clareza pela primeira vez
em anos. Posso compreender aquela palpitação em minha mente. Essa sensação pulsante — sou eu.
Tenho outro lado, além da boa moça e da filha obediente, que é instintivo e selvagem.
É esse lado que escolhe confiar nele, apesar do nosso passado bizarro... Ou talvez por causa dele.
Enrolando a camisa até o cotovelo, Morfeu exibe uma marca de nascença idêntica na parte interna
do antebraço — da qual me recordo nos meus sonhos. Intrigada por nossa semelhança, seguro o pulso
dele com uma mão, percorrendo as linhas com a outra. O labirinto brilha sob meu toque. Sua
expressão muda, e um ruído abafado lhe escapa da garganta — algo entre um ronronar e um rosnar. O
braço dele se retesa, como se fosse necessário muita concentração para não se mover enquanto sacio
minha curiosidade.
Ele é uma contradição: magia contida pronta para entrar em ação, gentileza em guerra com a
severidade, uma língua tão afiada quanto a ponta de um chicote, mas a pele tão macia que a sensação
é a de que ele está envolvido em nuvens.
Sustentando seu olhar, lembro o que misturar significa. Tomo a atitude de pressionar nossas
marcas de nascença uma contra a outra. A união produz calor, como quando Alison curou meu
tornozelo e joelho, embora esta seja uma reação mais volátil. A calidez me ferve o corpo inteiro,
deixando-me rubra da cabeça aos pés.
Morfeu me convida a deitar e abaixa a barra da camisola, e, em seguida, levanta o cobertor até o
meu queixo. Ele coloca o chapéu na cabeça em certo ângulo. Suas asas se erguem quando ele levanta,
e a cortina de água se eleva em um arco em torno dele.
— Não saia daqui até eu voltar com alguma coisa para sua garganta. — Sua voz tem um tom
rústico que deixa meu corpo ainda mais quente.
Quando ele recua, a cortina de água se fecha, deixando-me sem visão para o exterior. No minuto
em que ouço a porta da sala se fechar, apresso-me a sair das cobertas, pressiono minhas costas
contra a cabeceira e recolho os joelhos para perto do queixo, tremendo ao sentir uma corrente de ar
frio.
Fecho os olhos e penso naquela sensação — o pulsar de sua magia junto ao meu dedo, sua pele
junto à minha. Esfregando minha marca de nascença, livro-me da euforia.
Quanto mais me lembro de Morfeu e deste lugar, mais me esqueço de mim mesma... Ou de quem eu
achava que era.
Por que Alison não me contou? Se ela tivesse sido honesta, eu não estaria confusa deste jeito
enquanto o Jeb está trancado em outro lugar.
A culpa me golpeia o coração. Ela estava tentando me proteger. Ela irá receber um tratamento de
eletrochoque desnecessário se eu não quebrar a maldição e voltar depressa.
Instintivamente, estendo a mão na direção da cortina líquida e desejo que a água reaja a mim do
modo como reagiu a Morfeu. Ela se ergue feito uma coisa viva, deixando-me seca. Agarro um
cobertor, amarro-o nos ombros, improvisando um manto, e atravesso num pulo, aterrissando em um
tapete felpudo. Ainda sinto os músculos um pouco doloridos. Fora isso, nada mais me dói.
Giro o corpo sobre o calcanhar. A decoração da sala me parece ligeiramente familiar — selvagem
e deslumbrante, assim como seu habitante. Não existem janelas nem espelhos. Uma luz suave e âmbar
cai do gigantesco candelabro de cristal que ocupa grande parte do teto arredondado. Veludo dourado
e roxo cobre as paredes, intercalado com ramos de hera, conchas do mar e plumas de pavão.
Uma série de prateleiras de cristal ocupam a parede à esquerda. Metade delas contém chapéus de
todos os tipos e tamanhos decorados com mariposas mortas; a outra metade contém o que primeiro
aparentam ser casinhas de boneca de vidro transparente. Depois percebo que são terrários.
Dentro dos terrários, mariposas voam de um lado para o outro e se aninham em folhas e ramos.
Teias espessas revestem os painéis de vidro em alguns pontos, parecidas com as teias no meu
pesadelo de Alice. São casulos — lagartas se transformando em mariposas. Ao ouvir a queda
d’água, penso em como as asas de Morfeu cortaram o líquido e comparo a cena ao meu sonho no
barco a remo, quando uma lâmina negra estava prestes a cortar a teia.
Não era uma lâmina.
Com um ruído, a porta se abre e eu me volto, com o coração aos pulos.
Morfeu atravessa a soleira da porta e nos fecha lá dentro. — Já levantou? E sem uma gota de água
no corpo. — Ele traz uma bandeja com um bule de chá e xícaras de porcelana combinando. — Muito
bem.
— Você. — Aponto o dedo trêmulo para os casulos. — O pesadelo que eu tenho há anos. Foi você
que o colocou na minha mente, não foi?
Ele retesa a mandíbula enquanto coloca a bandeja sobre uma mesa de vidro. — Que pesadelos
seriam esses? Eu não me conecto mentalmente com você desde que sua mãe foi internada... Ontem foi
a primeira vez. — Ele serve chá em uma xícara. Ondas fumegantes preenchem a sala, espalhando
notas de mel e frutas cítricas pelo ambiente.
— Eu sou Alice — digo — em busca da Lagarta. Eles vão cortar minha cabeça. Ele é o meu único
aliado. — Esfrego o pescoço. — Espere, não. Tem também o Gato de Cheshire. Mas nenhum deles
pode me ajudar. O Gato perdeu o corpo, e a Lagarta... — Olho para os recipientes de vidro. — É
você, preso dentro do casulo.
Morfeu atrapalha-se com a tampa do bule, provocando um ruído alto. Quando ele se volta para
mim, seus olhos estão arregalados. — Você se lembra. Depois de todos esses anos, você ainda
reteve os detalhes.
— Detalhes do quê? — Minhas pernas ficam bambas, e aperto o cobertor mais forte em volta do
pescoço.
Morfeu aponta a cadeira ao lado dele. — Sente-se.
Como não me movo, ele pega minha mão e me conduz. Ele está usando luvas pretas, que lembram
as luvas com as quais sonhei no barco. Estou prestes a comentar sobre isso quando ele me dá uma
xícara.
— Tome um pouco de chá e vamos repassar a história.
Repassar?
Enquanto ele se serve de chá, tomo um gole do meu. O líquido quente e doce acalma minha
garganta. Passo um dedo na mesa embaixo do pires. A superfície é um tabuleiro de xadrez, preto e
prateado. Uma chapa de vidro o cobre para protegê-lo de gotas e arranhões. Peças em jade — peões,
torres, cavalos e outras — estão distribuídas em um padrão incomum. Frases flutuam sobre três
quadrados prateados, como por um passe de mágica, em letras pequenas e brilhantes. Inclino-me para
ler, pegando as palavras oceano e mão, e então Morfeu passa a luva sobre o vidro e as borra.
— O que era aquilo? — pergunto.
— É assim que fico a par de seu progresso.
— “Progresso.” Pode explicar melhor? — Tomo outro gole de chá.
Suas asas se estendem pelos dois lados de sua cadeira quando ele se senta diante de mim,
colocando seu chapéu sobre a mesa. — Eu preferiria mostrar.
Ele retira uma pequena caixa de cobre de uma gaveta do seu lado da mesa. A tampa se abre e
Morfeu a entorna. O conteúdo se espalha sobre o tabuleiro de xadrez, uma série de pequeninas peças
de jogo. Estas também são de jade: uma lagarta fumando um narguilé, um gato com um sorriso
arrojado, uma menininha de vestido e avental. Há outros personagens, também, todos familiares.
Morfeu e eu jogávamos com eles quando eu fazia minhas visitas durante o sono.
Estendo a mão para pegar o boneco de Alice e o levanto, correndo o dedo pelas linhas de seu
avental. Com a parte externa em tom marmoreado com traços de verde, ela parece diferente das fotos
— mais frágil. Preciosa e rara, como a pedra na qual ela foi esculpida.
Morfeu ergue sua xícara e me observa por sobre a borda enquanto bebe, e em seguida a repousa no
pires, tilintando. — Ela sempre foi a sua favorita.
Fico ao mesmo tempo lisonjeada e assustada com a expressão de adoração que percorre o rosto
dele. Uma confusão nostálgica invade meu peito. — Você me contava uma história com elas.
— Contava, sim. Ou melhor, nós a assistíamos.
— A assistíamos?
As joias sob seus olhos cintilam, mudando para um azul pacífico. — Como está se sentindo,
Alyssa?
Intrigada com a pergunta, franzo a cara. — Bem. Por que pergunta? — Assim que termino de falar,
a sala começa a girar, as peças de xadrez giram junto. Minha xícara de chá entorna e metade de seu
conteúdo é atirado ao ar. Levo as duas mãos à garganta. — Você colocou alguma coisa na bebida...
— Estou só lavando o palato de sua mente. Você precisa estar relaxada e leve como uma pluma
para canalizar sua magia nos estágios iniciais. Senão, ela virá em ataques e surtos e ficará
incontrolável, como ficou no asilo. — A voz desincorporada de Morfeu flutua em volta de mim, e o
candelabro pisca — do escuro para a luz, do escuro para a luz.
— Está dizendo que...? — Não, não é possível. — Eu estava controlando aquela magia? — Pensar
que tive algo a ver com o quase sufocamento de Alison faz minhas entranhas tremerem.
— Fora de controle é mais apropriado — corrige Morfeu, zombando. — Você estava consternada
demais para fazê-la funcionar de modo adequado.
Esforço-me para encontrá-lo em meio ao caos, sentindo a necessidade de ver seu rosto para saber
se ele está falando sério. — Mas como?
— No momento em que sua mente aceitou a possibilidade de que o País das Maravilhas fosse real,
ela liberou o vácuo de dúvida que a mantinha presa — explica ele, de algum lugar acima de mim. —
Agora, pare de pensar como humana. A lógica dos intraterrenos reside na nebulosa fronteira entre a
razão e a loucura. Mergulhe nessa lógica, visualize as peças de xadrez ganhando vida; veja, e tudo
será.
Cética, giro num círculo de antigravidade por tudo na sala: as prateleiras de vidro, os chapéus, a
mesa e o tabuleiro de xadrez. A cortina de água da cama forma um funil em torno de nós, balançando
e rodopiando, procurando não tocar em nada. A estátua de Alice escorrega de minhas mãos enquanto
tento manter o equilíbrio na sala que rodopia. Sem muita convicção, penso que ela pode me alcançar,
pegar minha mão, mas ela sai do meu ângulo de visão.
— Era uma vez uma menina chamada Alice — conta Morfeu, com voz líquida e calmante. Ainda
não consigo vê-lo. — Ela era inocência, doçura, felicidade e luz. Talvez seu único defeito fosse ser
muito...
— Curiosa — acrescento à fala dele, e, naquele instante, as peças de xadrez crescem até o
tamanho de seres humanos. Esforço-me mais ainda para imaginá-los vivos: visualizar sangue
correndo em seus corpos entalhados como riachos límpidos através das montanhas, imaginar seus
pulmões se expandindo e enviando oxigênio aos corações pulsantes de pedra.
Concentro-me tanto que me assusto quando a Lagarta, com o narguilé fumegando em uma das mãos,
agarra meu punho. — Você se parece com uma menina que eu conhecia. O nome dela começava com
A. Quem sabe o seu também começa? — A fumaça esverdeada se estende com um lençol espesso e
perfumado em torno de mim, combinando com o resplendor do jade.
O gato flutua ao nosso lado. Ele segura o lençol de fumaça e, usando suas garras feito tesouras,
corta oito letras vaporosas para compor a palavra: Alegoria. Ele dispõe as letras feito um cordão de
flocos de neve feitos de papel. O sorriso em sua face esverdeada se alarga.
— Ah — diz a Lagarta, com suas baforadas de tabaco formando nuvens em volta de nós —, ela é
uma personagem figurativa. Ela irá jogar do meu lado, então, pois sou o acadêmico.
O gato balança a cabeça, e seu sorriso desaparece. Eles dão início a um cabo de guerra, me
puxando de um lado para o outro. Eu grito ao sentir as articulações de meu braço estiradas ao limite.
— Me soltem!
— Não, não. As únicas coisas figurativas aqui são vocês dois, idiotas. — Morfeu liberta-me deles
e em seguida envolve minha cintura com um braço e rouba o narguilé da Lagarta com o outro. —
Agora, tomem seus lugares.
Ao ouvir isso, as peças animadas de xadrez descem com as outras pelo funil de água. Morfeu
flutua para cima, para cima, na direção do enorme candelabro na abóbada do teto — a única parte da
sala que ainda está estável. As lâmpadas são do nosso tamanho, e a altura estonteante me dá náuseas.
Passo os braços em volta do pescoço dele e enfio o rosto em seu peito macio enquanto ele nos
acomoda sobre a peça de metal. — Isso não está acontecendo — digo. Mas está, porque consigo
lembrar que aconteceu antes, anos atrás.
— Reúna sua coragem. Olhe para baixo. Seu show está prestes a começar.
Balanço a cabeça e cerro os olhos. — Estamos muito altos... Isso faz meu estômago dar um nó.
Ele ri e dá uma tragada no narguilé, jogando a fumaça sobre mim, saturando-me daquele cheiro
confortador. — É assim que você sabe que está viva, Alyssa. Os nós.
Antes que eu possa responder, uma batida alta me faz arriscar uma espiada.
O funil de água forma uma cortina, que se abre para revelar um palco. O quarto de Morfeu foi
transformado. As peças de xadrez vivas dominam a cena, seus corpos de um verde leitoso vívido
sobre um tabuleiro lustroso preto e prateado que se estende por todo o chão. Tudo está distribuído
em um grande círculo que lembra um picadeiro.
O marido da rainha, o rei da Corte Vermelha, está espreguiçado sobre um trono de veludo. Outra
mulher com vestimenta da realeza está de pé à sua direita, com laços carmim amarrados em cada um
dos dedos. Ela tem laços nos dedos dos pés também. A mulher fica tentando silenciar as fitas, como
se elas não parassem quietas. A Rainha Vermelha está na frente dos dois, presa com correntes. A
tribuna de jurados, que é na verdade uma jaula cheia de tigres com dentes pontiagudos e focas com
cabeça de bolha, está à direita. Guardas de cartas perfilam as paredes.
Sentada na cadeira de testemunhas está Alice, mexendo com a barra de seu vestido entalhado.
O Rábido Branco está atrás dela, com as antenas baixas e os ombros recolhidos, numa aparência
cansada e triste. Seu casaco e suas botas são do mesmo tom marmóreo de sua cabeça tosquiada e
brilhante. Uma estranha variedade de criaturas encontra-se sentada em arquibancadas de madeira e
petisca amendoim e pipoca. Até a Rainha Vermelha e seus cavaleiros élficos compareceram.
Uma criatura com cara de sapo está de pé atrás de um pódio, embora esteja vestida de modo mais
parecido com um domador do que com um juiz. Ela bate um martelo. — A Corte Vermelha está agora
em sessão! — Sua peruca emplumada se mexe. Só quando a criatura estica suas longas e finas pernas
é que percebo que é uma cegonha. Depois de alisar suas penas de jade, ela volta a se acomodar no
lugar e o juiz continua. — Rainha Vermelha, porque A Alice entrou em nosso mundo através da toca
do coelho, que fica na província Vermelha, e, porque a senhora falhou em capturá-la antes que ela
desencadeasse suas travessuras sobre todo o País das Maravilhas, a senhora foi acusada de séria
negligência e devastação por associação. Como se declara?
As asas da Rainha Vermelha pendem em suas costas. Ela olha para o rei e para a mulher com os
laços. — Eu declaro preocupação temporária causada por um coração partido. Meu marido me
largou para ficar com Grenadine... Eu estava muito aturdida com sua traição e não notei algo tão
insignificante como uma criança mortal entre nós.
Murmúrios explodem da tribuna do júri. Grenadine olha com remorso para os laços nos pés. O rei
fica inquieto no alto de suas almofadas de veludo.
— Quem deveria estar acorrentado é você — dispara a Rainha Vermelha para o marido. — Não
era suficiente que, antes de sua morte, meu pai tenha preferido ela a mim, uma pirralha amnésica que
nem carrega seu sangue? Mas sua traição é muito pior. Minha simplória meia-irmã não consegue se
lembrar em que dia estamos a menos que um de seus laços falantes lhe cochiche. Ela certamente não
consegue lembrar-se de quem ela deve amar. Você é responsável por cortejá-la e distrair-me de
meus deveres.
O juiz inclina-se sobre seu pódio, abraçando-o com suas mãos membranosas. — Talvez a senhora
devesse ser grata ao seu marido real por pedir que esta corte renuncie à sentença mais severa. Se
culpada a senhora for considerada, será exilada no deserto. É preferível a que perder a cabeça, eu
diria.
— E quanto àquela Alice? — A Rainha Vermelha lança um olhar corrosivo para a tribuna de
testemunhas. — E a sentença dela?
O juiz aponta o martelo para Alice. — Ela escolheu ler sua confissão escrita em troca de ser
enviada para casa com a promessa de nunca mais voltar e esquecer tudo o que viu aqui. — Ele faz
um sinal com a cabeça para a criança, pedindo que ela fique de pé.
Inclino-me para a frente para ver melhor, tão interessada no resultado que não mais me importo
com a altura em que estou, contando somente com o braço de Morfeu em torno de minha cintura para
manter-me ancorada ao candelabro.
Alice faz uma mesura e tira um pedaço de papel do peitilho do avental. Ela tosse duas vezes,
delicadamente, e lê em voz alta: — Talvez meu primeiro erro tenha sido quem escolhi para serem
meus amigos. Ou foram eles que me escolheram? O gato sorridente e a lagarta fumante... Ah, eles
urdiram planos tão bons!
Olho para Morfeu, que dá tragadas de fumaça e sorri com certo embaraço.
Abaixo de nós, o juiz agita o martelo, perturbando a cegonha que está sobre sua cabeça. Ela solta
um cacarejo e arrebata o martelo com seu bico. — Descrições dos planos, por favor! — pede o juiz,
num guincho, lutando com o pássaro.
Alice pigarreia e respira fundo. — Colocamos um ponto-final no chá da tarde, derramamos sopa
sobre a duquesa para fazê-la espirrar a fim de roubarmos suas luvas e leque, deflagramos um oceano
acidental e ajudamos um artesão faminto a enganar sua amiga morsa e roubar um bando de mariscos
muito faladores, obrigada.
Vários membros bivalves da plateia atiram pipocas na testemunha e berram a palavra “Infame!”
Alice se esquiva da chuva de grãos agachando-se atrás da cadeira. O juiz — que conseguiu salvar
seu martelo com a perda de sua peruca e de sua dignidade — acena para que ela fique de pé e ereta.
— Como você conseguiu se esconder no castelo da Rainha de Marfim?
— Eu não estava me escondendo, na verdade. O Gato de Cheshire e o Sr. Lagarta insistiram que eu
visitasse a Rainha de Marfim e pedisse que ela me enviasse para casa, pois ela é mais agradável do
que a Rainha Vermelha. — Alice volta um olhar penetrante na direção da Rainha Vermelha.
A rainha agrilhoada ri desdenhosamente, e suas correntes se mexem como se estivessem vivas,
quase agarrando o tornozelo de Alice antes de esta subir em sua cadeira.
Batendo o martelo, o juiz pede ordem. — O conselheiro real da Rainha Vermelha poderia dar um
passo para a frente e apertar suas correntes?
Rábido Branco adianta-se para pegar os elos de metal e mantê-los esticados.
— Continue — ordena o juiz.
Amassando suas mãos enluvadas, Alice desce da cadeira e recita o resto de sua confissão de
memória. — Marfim parecia alegre por ter convidados. Na verdade, ela gostava muito do Sr.
Lagarta, que é garboso, em sua maneira de contrair o corpo. Quando eu estava me preparando para
seguir os cavaleiros até o mais alto torreão do castelo, onde a porta para minha casa aguardava,
chegou um convite da corte da Rainha Vermelha, uma partida de croqué. Mas era uma armadilha para
que pudessem me aprisionar e me obrigar a fazer esta confissão no tribunal. — Ela faz mais uma
reverência. — Peço sinceras desculpas pelos problemas que causei. Posso ir para casa agora?
— Nunca voltará para casa, seu polipozinho canceroso! — grita a Rainha Vermelha.
Eu quase não entendo o que acontece a seguir. As mãos do Rábido movem-se mais depressa do
que um relâmpago, escorregando uma lâmina que, de modo mágico, corta os grilhões de metal da
Rainha Vermelha. Isso acontece tão depressa que ninguém mais nota até que a rainha abre suas asas e
agarra Alice pelos ombros, levantando-a no ar. A cegonha do juiz recolhe a lâmina do chão e segue a
Rainha Vermelha, que sai pela porta da corte levando Alice, junto com todos os outros.
No instante em que eles saem, pressiono Morfeu. — Siga-os! — ordeno.
— Siga-os você mesma — diz ele, que em seguida me solta. Eu grito, sobressaltada, em pleno ar,
meu estômago saindo pela garganta. Sinto uma comichão entre os ombros, como se alguma coisa
estivesse tentando sair; e desaparece logo depois. À distância de poucos centímetros do chão, dou
uma guinada e caio em minha cadeira, com a xícara de chá na mão. As peças de xadrez encontram-se
espalhadas sobre a mesa, como se aquela encenação nunca tivesse acontecido.
Não caio nessa.
Morfeu está sentado à minha frente, girando a peça de xadrez da Rainha Vermelha enquanto meu
estômago volta ao lugar.
— Como termina? — pergunto.
— Seu pesadelo sabe.
Coloco a figura de Alice sobre um quadrado preto. — A cegonha e a rainha lutaram suspensas no
ar. Alice escapou e veio procurar você.
— Mas eu não podia fazer absolutamente nada por ela porque minha metamorfose já havia
começado. Fiquei trancado naquele casulo por 75 anos.
— Então como é que Alice venceu?
Morfeu rola a estátua da Rainha Vermelha pelo tabuleiro, derrubando Alice. — Ela não venceu.
Como você sabe muito bem, sua linhagem foi amaldiçoada.
— E foi por isso que você me trouxe aqui.
Ele balança a cabeça, concordando. — Para libertar sua família e reabrir os portais que levam
para casa, você deve reparar todos os danos que fizeram com que a Rainha Vermelha fosse exilada e
perdesse a coroa: secar o mar, levar as luvas e o leque de volta para a duquesa, fazer as pazes com
os mariscos e com os convidados do chá da tarde. Só você pode quebrar os elos mágicos da
Vermelha.
Um silêncio pesado se segue, quebrado somente pelo som da cascata em torno da cama. Procuro a
figura da lagarta, mas a mão de Morfeu prende a minha. O calor atravessa sua luva e me penetra os
ossos.
Por um instante, vejo-o muito claramente como a criança provocadora que ele era quando
passávamos tempo juntos em meus sonhos. Eu o compreendo agora, por que ele recolhia corpos de
mariposas, por que suas asas representavam liberdade, algo que ele não tivera enquanto permaneceu
trancado dentro de seu casulo... Por que ele adorava voar, principalmente durante tempestades, por
que superar os relâmpagos lhe dava uma sensação de poder. Do mesmo modo, ele compreendia
minhas esquisitices: meu medo de altura, minha sede de segurança. Só que agora ele é atormentado,
sedutor e insondável. Um adulto completo com tanta bagagem quanto eu.
— É por isso que você está envolvido — murmuro, testando a hipótese. — Para aplacar sua
consciência da culpa de ter falhado com Alice.
Sibilando, ele levanta, numa comoção de asas e couro. Uma lufada de ar causada pelo movimento
faz esvoaçar meu cabelo. — Minha culpa pelo que aconteceu com Alice nunca será aplacada. — Ele
arrebata a figura do Gato de Cheshire e anda pelo tapete. Apesar de sua altura impressionante, ele
tem a graça de um cisne negro. — E não se iluda. Não sou assim tão altruísta.
— Conheço você muito bem para pensar o contrário. — Levanto uma sobrancelha, brindando com
minha xícara de chá.
Ele me lança um olhar rápido, quase sorrindo. — Na luta com a cegonha, a Vermelha conseguiu
pegar a lâmina. Eu estava inatingível em meu casulo, mas Chessie estava lá. Ele mergulhou para
salvar Alice antes que a Vermelha pudesse decapitá-la. Ele recebeu o golpe que era dirigido a ela.
— Morfeu equilibra a figura do gato na ponta de um dedo, colocando-a contra a luz. — Chessie
pertencia a uma estirpe rara: não parte espírito e parte carne, mas as duas ao mesmo tempo. Ele
podia sumir e reaparecer em pleno ar e assumir qualquer forma. Um ser assim é quase impossível de
matar. Quando a Vermelha o atingiu com a espada vorpal, a única lâmina que pode cortar qualquer
mágica no reino interior, ela fendeu sua mágica em duas. Cortado ao meio, mas ainda vivo.
— Então ele não morreu? — Coloco minha xícara de lado.
— Não exatamente. Sua cabeça rolou na direção dos arbustos onde Alice estava escondida. Ele
conseguiu pegar a espada vorpal na boca e cuspiu-a aos pés dela. A parte inferior de Chessie foi
capturada pela Rainha Vermelha e, num último ato de desafio, ela ofereceu-a ao seu animal de
estimação, o bandersnatch, antes de ser capturada e expulsa do reino.
Morfeu sacode a caixa que antes continha as peças de xadrez. Dela cai a maior figura de todas:
uma criatura grotesca com garras de dragão e cauda de ferrões. Sua boca aberta e dentes pontiagudos
fazem minha espinha se arrepiar. Quando eu era pequena, costumava esconder essa peça enquanto
brincávamos com as outras.
Morfeu joga o gato no ar e deixa que ele caia sonoramente na palma de sua mão, apertando-o entre
os dedos. — O que eu lhe ensinei sobre o bandersnatch? — pergunta ele, me testando.
— Ele é maior do que um caminhão. Engole a comida inteira para que a vítima se decomponha
lentamente no vazio escuro de sua barriga — uma morte que pode levar mais de um século para se
efetivar.
Aquela centelha de orgulho brilha novamente em mim. — Correto. Para Chessie, que não pode
morrer, é como estar exilado em uma ilha deserta, sem qualquer sol, lua nem estrelas. Nem vento e
nem água. Só a morte a sua volta. Lá dentro, metade dele ainda reside, presa e ansiando reunir-se
com sua cabeça.
Um lampejo de compaixão me toca o coração. — Você quer que eu ajude a libertar Chessie do
bandersnatch para que ele possa encontrar sua cabeça.
Morfeu vira-se para olhar para mim, com as asas pensas. — Tudo o que preciso é da espada
vorpal. Somente sua lâmina pode cortar o couro do bandersnatch. Alice escondeu a espada em um
lugar que ela sabia ser seguro. Em algum lugar tão ridículo e mundano que ninguém a procuraria lá.
— O olhar dele cai sobre as figuras à minha frente e eu pego um personagem com um chapéu
esquisito, que parece uma gaiola.
— O chá da tarde. O Chapeleiro Maluco está com ela — arrisco.
— Você esqueceu. Isso é estritamente um Carrolicismo — o nome que Lewis usou em seu conto de
ficção. Seu verdadeiro nome é Herman Chapelão. E não há nada de maluco nele. Ele é bem alegre, na
verdade, quando está acordado.
Tamborilo com o dedo na cabeça da escultura, esperando uma explicação.
— Alice deixou os convidados do chá sob um feitiço de sono — continua Morfeu. — Acorde-os e
eles lhe dirão onde está a espada. Você já secou o mar e fez as pazes com os mariscos. Um
convidado do banquete desta noite receberá as luvas e o leque em nome da duquesa. Depois disso,
consertar a situação dos convidados do chá será a única coisa ainda a fazer.
Parada diante da figura de Alice e pensativa, coloco a lagarta ao lado dela.
Morfeu volta para perto da mesa, solta o gato dentro da caixa de metal, então varre todos os outros
personagens para dentro dela. Parado diante de mim, ele estende a mão. — O que me diz, Alyssa?
Está disposta a me ajudar enquanto ajuda a si mesma? Um favor para um amigo de infância?
Quando eu e Jeb voltarmos para casa, posso dizer a Alison que o pesadelo finalmente terminou,
que nunca mais estaremos ligadas ao País das Maravilhas. Imaginar o sorriso dela reacende uma
chama em meu coração.
Respiro fundo, entrelaço meus dedos nos de Morfeu e o encaro. — Farei isso.
Ele levanta minha mão e aperta os lábios macios contra meus dedos. — Sempre soube que o faria.
— Ele sorri, com suas joias cintilando em um tom prateado e luminoso.
11
Linguardarte
Aguardo em um corredor frio e espelhado com uma mesa de vidro e cadeiras como companhia. Jeb
deve me encontrar aqui. Estou louca para vê-lo novamente, mas ao mesmo tempo estou apreensiva
quanto à reação que ele terá ao saber de minha decisão de ajudar Morfeu sem discutir isso com ele
antes.
Fecho os olhos, desorientada pelo movimento à minha volta. Espelhos perfilam cada centímetro do
teto e das paredes, até o chão. Figuras sombrias deslizam nos reflexos.
Em nosso mundo, os espelhos são feitos colocando-se uma camada de alumínio sobre um vidro
plano. Uma pessoa não pode ver nada além de seu reflexo. Aqui, posso ver sombras dentro deles,
como se elas estivessem imprensadas entre as camadas. Morfeu me disse que são espíritos de
mariposas. Isso me faz pensar nos insetos que matei em casa.
Aparentemente, no País das Maravilhas, todos — ou todas as coisas — possuem alma. O
cemitério é um lugar sagrado reverenciado por todos os intraterrenos. Ninguém pode pisar lá a não
ser as guardiãs do lugar: as irmãs Twid.
Nas mãos das gêmeas, os mortos são cultivados: semeados, regados e mantidos livres de ervas
daninhas, como um jardim virtual de fantasmas. Uma irmã nutre as almas — cantando para os recém-
chegados e mantendo o contentamento da flora espiritual. A outra irmã arranca os espíritos decaídos
que definharam e se tornaram amargos ou revoltados — algo a ver com aprisioná-los dentro de
outras formas para a eternidade.
As Irmãs Twid não estão muito satisfeitas com Morfeu neste momento porque ele se recusa a
enviar suas mariposas mortas a elas. Ele prefere soltá-las para voarem livres em algum lugar entre a
vida e a morte do que amarrá-las em uma prisão de terra. Então, Morfeu as esconde dentro de seus
espelhos.
Alguns podem considerar morbidez. Eu vejo um certo grau de ternura em seu esforço para
oferecer-lhes dignidade. A mesma ternura que vislumbrei em nosso passado, e antes, quando ele
cuidou dos meus ferimentos.
A marca de nascença que tenho em meu tornozelo é universal para as criaturas do País das
Maravilhas — chaves para seu mundo e um modo de curar uns aos outros —, além de ser uma parte
da maldição dos Liddell. Eu ainda não sei por quê, quando mais velha, Alice perdeu a marca. Nem
por que ela esqueceu o período em que habitou o mundo real, jurando que vivia em uma gaiola de
pássaro em vez de ter casado e tido uma família. Mas pelo menos uma coisa está clara: faço parte
deste reino até que consiga quebrar a maldição.
Botas pesadas ecoam pelo chão espelhado e eu olho para cima.
— Jeb! — Corro na direção dele. O chão é escorregadio e as botas que as fadas me deram
possuem pouca tração. Escorrego. Jeb larga a mochila, dá um pulo para a frente e me pega.
Ele me puxa para cima até nossas testas se tocarem e meus pés ficarem pendurados no ar. Nunca
deixo de ficar extasiada com a facilidade com que ele me levanta, como se eu não tivesse peso
nenhum.
Afago seu rosto recém-barbeado e seu piercing — inspirando seu cheiro, me assegurando de que
ele está bem.
— Ele tocou em você? Machucou você? — sussurra Jeb no silêncio.
— Não. Ele foi um cavalheiro.
Jeb franze a cara. — Cavalheiro, sei.
Dou um sorriso debochado, o que derrete sua seriedade e o faz sorrir. Ele me roda no ar. — Senti
sua falta — diz ele.
Enfio o queixo em seu ombro largo e o abraço forte. Meu corpo está sedento e bebe seu calor
como uma esponja. — Nunca mais me deixe, está bem? — Em qualquer outro momento, isso poderia
soar um tanto piegas. Mas neste, é o pedido mais sincero que já fiz na vida.
— Não planejo — sussurra ele, com a boca tão próxima que seu hálito roça a ponta de minha
orelha.
Quando saio do abraço, ele está observando as silhuetas que correm em torno de nós.
— Gossamer me contou sobre elas — explica ele. — Não acreditei. O cara é fanático por
mariposas.
Apoio meus antebraços em seus ombros, com os pés ainda balançando na altura das canelas dele.
— Você devia ver o quarto dele. Ele tem casinhas de vidro cheias de mariposas vivas. Ele as
mantém lá dentro até elas saírem dos casulos. Quando estão fortes o bastante, ele as liberta.
— Ele levou você para o quarto dele? — Uma nuvem negra cobre o rosto de Jeb. — Jura que ele
não tentou nada?
— Palavra de escoteiro.
Ele aperta a minha cintura, me fazendo cócegas. — Só que você nunca foi escoteira.
Contraio o corpo e sorrio. — Não aconteceu nada. — É mentira. Morfeu me impressionou muito,
mostrando-me um lado de mim mesma que mal posso acreditar que existe — e que não estou certa se
Jeb será capaz de aceitar. Mas talvez ele não precise saber sobre os parafusos soltos em minha
cabeça nem sobre meus poderes esquisitos. Talvez eu consiga esconder minhas tendências
amaldiçoadas até sairmos daqui e eu me curar.
Dedos trançados em volta do pescoço de Jeb, puxo seu pequeno rabo de cavalo. Para ajudar a nos
encaixarmos no banquete, vamos ambos fantasiados. Ele será o cavaleiro élfico, então as fadas
puxaram seu cabelo por sobre as orelhas para esconder as pontas redondas. Eu gosto assim. Sua
mandíbula forte e traços expressivos ficam mais aparentes.
— Achei que elas iriam dar-lhe um chapéu — caçoo.
— Que nada. Eles são exclusivamente para vermes com asas.
Dou risada e empurro os ombros de Jeb, uma permissão implícita para ele me colocar no chão.
Ele me pousa de pé. — Você está linda.
— Obrigada. — Eu não revelo que minhas roupas foram criação de Morfeu: uma túnica pêssego
estilo baby-doll sem mangas com sobreposições de babados que começam abaixo dos seios e vão até
o meio da coxa. Os babados têm acabamento de renda vermelha, que complementa o cinto vermelho
estilo sadomasoquista incrustado de cintilantes rubis que cinge minha cintura. Cinco robustos anéis
de prata decoram o cinto, combinando com a blusa cinza sob minha túnica. As mangas bufantes da
blusa cobrem meus braços até os pulsos, onde surgem luvas de renda vermelha sem dedos. Um
legging listrado em cinza e pêssego cobre minhas pernas feito aquelas bengalas doces e desaparece
dentro das botas de cano alto de veludo vermelho.
Todo esse conjunto é um esforço calculado para me fazer parecer selvagem e indomável, para que
os excêntricos convidados do jantar sejam mais receptivos comigo. Para esse fim, as fadas teceram
frutas vermelhas e flores nos dreadlocks por toda a minha cabeça e depois enfiaram o grampo de
cabelo dos tesouros de Alison encontrados na poltrona bem acima de minha têmpora esquerda. Por
alguma razão, Morfeu insistiu que eu o usasse.
Aponto para o uniforme de cavaleiro élfico de Jeb. — Eu já vi isso antes. Essa cruz representa a
elite dos elfos joalheiros. — As calças pretas envolvem suas pernas como jeans bem talhados. Há
uma corrente prateada que entra e sai por duas presilhas do cinto, formando a ilusão de cinco
cordões diferentes, e uma cruz feita de diamantes faiscantes na coxa esquerda. Percorro as joias com
os dedos. — Você não é só um cavaleiro... É um dos acompanhantes reais.
Jeb detém minha mão sobre sua coxa musculosa. Seus olhos ficam mais intensos, como quando nos
abraçamos no fundo do oceano.
Recolho minha mão e ele retesa o queixo.
Constrangida, concentro-me no resto de seu uniforme. A camisa tem mangas compridas e é feita de
um material aderente. É prateada, com listras pretas verticais de tecido semitransparente. Procuro
suas queimaduras de cigarro, ansiosa para vê-las, e noto que os poucos pelos de seu peito sumiram.
— Você raspou o peito?
Ele olha para as listras pretas. — Na verdade, não havia um espelho no meu aposento. Gossamer
raspou depois que tomei banho, quando fez a minha barba. Ela disse que elfos não têm pelos em
nenhum outro lugar além da cabeça.
Em nenhum lugar? Eu o imagino nu — Gossamer tocando seus músculos abdominais, entre outros
lugares. — Aquela fada viu você nu?
Ele pigarreia. — Não foi só ela. Chegou uma hora que tinha umas trinta em cima de mim.
Um surto de ciúme me toma. Meus punhos se fecham. — Trinta fadas tocaram seu corpo nu?
— Fique fria com relação às fadas, tá bom? Feijões-de-lima que voam não são minha praia. Agora
vem cá. Quero te mostrar uma coisa. Ele vira meu rosto para a parede espelhada e fica atrás de mim,
com o queixo apoiado no alto de minha cabeça, e levanta as mãos para os dois lados do meu rosto.
— Repare nos seus olhos.
Minha imagem olha de volta, transposta sobre as sombras de mariposas. Notei a maquiagem assim
que entrei no corredor. As fadas fizeram um trabalho incrível para que parecesse real. Sombra preta
cai dos olhos como listras de tigre debaixo de meus cílios inferiores. As linhas lembram as tatuagens
de Morfeu, só que em uma versão mais feminina.
— Você esteve assim o tempo todo. Eu notei quando saímos da toca do coelho. Achei que sua
maquiagem tinha manchado. Mas, depois do mar, você ainda estava com ela. Eu não liguei as coisas
até ver Morfeu sem máscara há alguns minutos. — Jeb faz uma pausa, e parece aborrecido. Ele
esfrega os polegares nas bordas dos desenhos negros. — Eles não desaparecem. E o brilho em toda a
sua pele? Não são restos de sal. Você está começando a se parecer com os meus desenhos de fadas,
de verdade.
Sentindo-me aturdida, enrosco os babados da minha túnica nos dedos. Isso explica por que o
octobenus achou que eu era intraterrena. — Por que você não disse nada?
— Nós estávamos muito ocupados com tudo aquilo acontecendo.
Volto-me para o meu reflexo. — Então, a maldição está ficando pior.
— Pior do que você pensa. — Jeb fica atrás de mim e passa as mãos por trás de meus ombros. —
Sua roupa tem fendas... Para as asas que vêm por aí?
Seus polegares calejados afagam a pele nua ao longo de minhas escápulas. Não consigo responder.
Pelo que vimos até agora, só alguns intraterrenos têm asas. A ideia de alguma coisa surgir de minha
pele me deixa tonta. Na verdade, pensar nas mudanças que já sofri é o bastante para me fazer sentir
como se eu estivesse rodando em um carrossel descontrolado.
A expressão carrancuda de Jeb se fixa sobre mim no reflexo. — Por que essa maldição só afeta as
mulheres de sua família?
— Alice era do sexo feminino — respondo, ainda passando por um turbilhão por causa da questão
das asas. — Só alguém do sexo feminino pode arrumar a bagunça que ela fez.
— Bagunça — diz Jeb, franzindo a cara ainda mais. Agarrando meus braços com delicadeza, ele
me vira e olha dentro dos meus olhos. — Quando eu estava com as fadas, Gossamer mencionou o que
você fez com o mar. Ela não chamou aquilo de arrumar a bagunça. Ela disse que foi um teste. E sabe
o que é mais estranho ainda? Ela está ressentida que você tenha conseguido... Que você esteja aqui.
Alguma coisa não está batendo. Não vamos fazer mais nada para ajudar o mariposão até que ele abra
o jogo conosco.
— Ele já me disse a verdade. Ele me disse os passos que tenho que percorrer. — Conto a Jeb o
que vi no quarto de Morfeu, embora não tenha coragem suficiente para compartilhar detalhes sobre
nosso momento de “mistura” e nem o show de marionetes do xadrez.
— Então, você simplesmente vai acreditar na palavra dele?
— Ele tem uma motivação nobre. Um amigo está em perigo.
— Pare de humanizar o sujeito, Al! — Jeb bate a mão na parede de espelhos. As sombras das
mariposas afastam-se, assustadas. — Ele não é do nosso mundo, está bem? E ele tem esse poder de
entrar na sua cabeça. Fiquei olhando para você e para ele na clareira... Você não pensa direito com
ele por perto.
A acusação reaviva minha raiva com relação a Londres. — Então é isso que você quer dizer? Que
eu não sou forte o bastante para pensar por mim mesma?
— É diferente. Olhe o que está acontecendo com você!
— Mas eu posso parar isso se fizer mais uma coisa. Só isso.
— Ah, é? Pelo que estou vendo, quanto mais você faz por ele, mas se parece com ele.
— Não. Você está errado. — Puxo uma de minhas tranças, desejando poder convencer a mim
mesma tão facilmente quanto declamo essas palavras. Desejando poder negar que, quanto mais tempo
fico aqui, mais fundo este lugar entra em meu sangue, ou que Morfeu é o torniquete que aperta as
minha veias e retorce.
Jeb cerra os dentes com tanta força que sua mandíbula estala. — Não vamos discutir por causa
disso, Al. É tudo o que ele quer. Não vou deixar que ele faça isso.
— Faça o quê?
Ele enrola o cabelo com que estou brincando em volta de seu pulso e me puxa para perto,
inclinando a cabeça de modo que nossas testas se toquem. — Se colocar entre nós.
Meu corpo inteiro fica mole e quente com a brusca possessividade em sua voz, mas ele não tem
esse direito. — Você esqueceu? Já existe alguém entre nós. Você vai mudar para Londres com ela.
— Fui um idiota. E pensar, por um segundo, que estar do outro lado do oceano me daria algum
controle.
Um nó ardente me aperta o peito e dou um passo para trás. — Controle? Sobre o quê? A minha
vida? Cai na real, esquecidinho: não sou mais a sua “irmãzinha”. Já cansei de ser colocada na
prateleira junto com todas as suas outras responsabilidades; em algum lugar entre cortar as unhas dos
pés e trocar as meias sujas. — Eu o empurro para o lado e ando na direção da cadeira de vidro,
determinada a esperar por Morfeu lá.
De repente, Jeb pega uma das argolas de meu cinto e me rodopia. Em um movimento suave, ele me
coloca sobre a mesa estreita em forma de semicírculo. Minha pele treme sob seu toque quando ele
me empurra contra a parede e enfia os quadris entre minhas coxas. Estamos nivelados, cara a cara. A
sensação de agitação me toma a mente — e, na sombra de meu lado sombrio, uma descarga de
satisfação me sobe, uma excitação perversa de saber que posso atiçar as emoções dele até essa
reação visceral.
Firmo as mãos contra seus ombros para manter um espaço entre nós, mas é pura encenação. Meu
blefe perde força e torna-se morno entusiasmo no instante em que ele pega meus pulsos e os puxa
para baixo, aproximando-se ainda mais, de modo que nossos narizes quase se tocam.
— Cai na real você — rebate ele, com o hálito feito um jato quente na sala fria. — Eu sei que
você não é mais uma menina. Acha que sou cego? — Seus dedos se entrelaçam nos meus, prendendo
meus braços contra os espelhos frios e lisos, de modo que nossos corações batem um contra o outro.
— E a esquecida aqui é você. Porque não há nada fraternal no que você me faz sentir.
Minha mente se fecha. Eu devo ter engolido cada espírito de mariposa daqui até o fim do mundo.
Posso jurar que elas estão flanando no meu estômago.
Jeb solta meus dedos e pega meu rosto em suas mãos, quase sem me tocar, como se eu fosse
quebradiça. — Eu estou perdendo o controle sobre mim mesmo. Centenas de esboços e mesmo assim
não me canso do seu rosto. — Ele passa o polegar sobre a covinha em meu queixo. — Seu pescoço.
— A palma de sua mão se move pela minha garganta. — Sua... — As duas mãos encontram a minha
cintura e me arrastam para fora da mesa para que fiquemos de pé um diante do outro. — Não vou
perder mais um instante desenhando você — sussurra ele nos meus lábios — quando posso tocá-la.
— Ele pressiona sua boca contra a minha.
Uma fagulha, quente e elétrica, pula entre nós. Surpresa e excitação me transpassam, iluminada
pelo calor e pelo sabor dele. Seis anos de desejos secretos. Seis anos negando que ele é a órbita do
meu mundo.
E pensar que ele também viveu fugindo de mim.
Desorientada pela incredulidade e pelo prazer, me fecho. Meus braços pendem frouxos ao lado do
corpo, os punhos abrindo e fechando. A boca de Jeb vibra contra a minha em um gemido. Ele coloca
minhas mãos em volta de seu pescoço, aproximando-se mais.
O sabor dele é incrível — como chocolate com sal. Familiar, embora novo e excitante. Aperto os
dedos em seu pescoço. Os sentimentos que eu reprimia se desenrolam e batem dentro de mim como
enguias elétricas, me dando choques e trazendo-me à vida. Cada receptor sensorial vibra,
hiperligado. Eu o saboreio, o inalo, o sinto.
Só ele.
Meus lábios seguem os dele, pulsando lentos, macios e quentes. Seu piercing arranha meu queixo,
um contrapeso áspero e sensual.
Suas mãos guiam meu queixo, me mostrando como inclinar o rosto. Ele me incita a abrir os lábios
com os dele. Minha língua percorre seus dentes, encontrando aquele incisivo torto antes que sua
língua encontre a minha.
Talvez eu esteja respirando muito forte. Talvez eu esteja babando demais. Talvez eu não chegue
aos pés das outras garotas com quem ele esteve. Mas não importa, porque, de todas as coisas que já
vivi nesta jornada — encolher e crescer, fadas voadoras, peças de xadrez com vida —, nenhuma é
mais mágica do que este momento.
Seus beijos cedem e ele começa a esfregar o nariz pelo meu rosto e pescoço, carinhoso e pungente.
— Al — sussurra. — Seu sabor é tão doce... como madressilva.
— Não — murmuro, extasiada.
Ele se afasta com os olhos sérios e sombrios. — Quer que eu pare?
— Não. — Eu tantas vezes adormeci rezando para que você me olhasse desse jeito. Me tocasse
desse jeito. — Não parta meu coração.
Sombras de mariposas flutuam sobre ele no teto espelhado, me distraindo da seriedade de sua
expressão. — Eu arrancaria o meu primeiro.
Acredito nele. Ficando na ponta dos pés, aperto seu rabo de cavalo. Desta vez, eu o beijo. Ele
reage com um frêmito, os dedos me penetrando os quadris. Deslizo as mãos enluvadas para baixo a
fim de encontrar seu peito, em busca das cicatrizes. Parando nas correntes em sua cintura, eu as
seguro com força até o metal me ferir os dedos, depois nos coloco contra a parede. A friagem do
espelho me penetra as escápulas, mas seu corpo perfeito contra o meu faz o meu sangue fervilhar, me
consumindo.
Estamos os dois tão envolvidos que nenhum de nós ouve os passos até que um grunhido nos
separa. Viramos e encontramos Morfeu ali parado, com ódio suficiente em seus olhos escuros para
mandar o diabo para o céu.
Jeb recolhe os dedos dos anéis em meu cinto, mas mantém uma mão nas minhas costas. Eu toco
meus lábios; eles vibram e estão sedentos, ansiando por mais.
— Ora, ora. Mas que cena acolhedora! — A voz de Morfeu não está fluida desta vez. Ela arranha
feito pregos enferrujados me tocando os tímpanos. Ele arranca suas luvas e bate-as contra a palma da
mão, as asas caídas e arrastando no chão, como um manto. — Talvez você possa devolver o batom a
Alyssa. Não temos tempo de encontrar outro antes do jantar.
Jeb limpa meu brilho labial de sua boca. Eu lambo os lábios, atingida por uma inexplicável onda
de culpa.
O acalanto de Morfeu toca suavemente em meu pensamento, melancólico e seco. As palavras da
canção parecem ter sido alteradas para se adequar ao que ele sente:
Vermelha e pêssego, a florzinha,
Atraindo meninos com sua linda cabecinha;
Provoque, jogue, seja dengosa e esperta,
Pois um dia o magoará, fique certa.
O acalanto fica mais amargo e alcança notas estridentes em meus ouvidos, fazendo-me retrair.
Com um grunhido que vem do fundo do peito, Morfeu vira-se para um espelho e escova suas
roupas com as luvas. Ele está usando uma camisa branca com babados sob um casaco vermelho de
brocados que balança na altura das coxas. Ele é transpassado e tem botões de metal nas duas lapelas.
Suas calças lembram leggings — veludo amassado vermelho. Botas de cadarço pretas que vão até a
altura da canela. Ele poderia ser um Romeu saído diretamente da peça de Shakespeare, não fosse o
cabelo azul e as asas.
Morfeu abre toda a envergadura das asas em seu completo esplendor. As joias nas pontas dos
desenhos em seus olhos faíscam com sua irritação, de vermelho a verde. — Você não sabe, cavaleiro
élfico — ele se vira para nós — que é muito desfavorável para um guarda fazer uma proposta à sua
inocente protegida?
Eu franzo a cara. E por acaso eu tenho a palavra puritana estampada na testa? — Você não sabe
nada sobre mim.
Morfeu torce a boca num sorriso irônico. — Talvez você estivesse somente fingindo, então?
Ficando com as bochechas coradas feito um pêssego imaculado?
Jeb me arrasta para atrás de si. — Ela não vai falar sobre isso com você.
Morfeu bufa. — Um pouco tarde para cavalheirismos. Se alguém tivesse visto essa demonstração,
sua máscara de cavaleiro teria terminado antes mesmo de começar. Você se esqueceu de informar a
ele qual é a primeira ordem de um cavaleiro, queridinha? Manter as mãos e as emoções sob
controle? — A atenção de Morfeu cai sobre seu ombro direito. Gossamer está espiando por baixo de
seu cabelo. Ela e Jeb trocam olhares.
O olhar de Morfeu volta-se para mim, cortante feito lâminas de ônix. Tudo que eu quero é me
deleitar com a lembrança do meu primeiro beijo. Em vez disso, estou me culpando por ter traído um
sujeito do reino interior que eu não via há anos, e, por alguma razão, a ideia de magoá-lo é
insuportável.
Jeb retesa a postura. — Mudança de planos — afirma ele. — A Al não vai mais ajudar você com
esse joguinho, seja qual for. Você vai nos mandar de volta. Agora.
Morfeu levanta um lado da boca, desdenhando. Ele se dirige a Gossamer mais uma vez enquanto
ainda olha para mim. — Parece que você estava errada. Você me disse que o mortal não
representava uma ameaça. Talvez tenha subestimado o poder de sedução de nossa engenhosa Alyssa.
Gossamer observa seus próprios pés pequeninos. Suas asas batem devagar, como as de uma
borboleta em repouso. — Achei que ele preferisse alguém...
— Shhh! Não pode revelar esse segredo! — grita Morfeu. O volume de sua voz faz Gossamer cair
de seu poleiro. Ela flutua no ar com as mãos tampando as orelhas pontudas.
Morfeu leva um dedo à boca. — Leia meus lábios, fadinha tagarela. Pegue. A. Maldita. Caixa. Já
é hora de mostrar à nossa donzela e ao seu soldadinho de brinquedo que tipo de boas-vindas eles
receberão se derem as costas ao seu único aliado.
Gossamer chispa para o corredor.
— E traga-me meu Chapéu da Lisonja! — Morfeu grita para ela. Seu comando ainda ecoa no ar
quando ele dá uma volta sobre o calcanhar e se vira para nos observar. Pretensioso, ele veste as
luvas. — Há um problema com o seu pedido, pseudoelfo. Não posso simplesmente mandá-los de
volta. E Alyssa sabe disso.
Jeb vira a cabeça para trás com olhar inquisidor.
— Nossa! — Morfeu bate a palma da mão no rosto, como se estivesse perplexo. — Vocês
estavam ocupados demais para falar de algo pertinente? Ou talvez nossa inocente donzela estivesse
se sentindo culpada pelo dinheiro que ela “tomou emprestado” da bolsa da sua outra namorada, e
você, sendo um nobre cavaleiro, decidiu confortá-la.
Jeb vira para mim. — Espere... Aquele dinheiro no estojo de lápis. Tae realmente deixou a bolsa
na loja? Você roubou o dinheiro dela.
Morfeu inclina-se entre nós. — Bem, de que outra maneira Alyssa iria para Londres me procurar?
O olhar de Jeb fica imóvel, repleto de acusação. — Não acredito que você mentiu na minha cara.
Você roubou o dinheiro para comprar um passaporte falso e planejava ir para Londres.
— As duas coisas — diz Morfeu em tom provocativo, agora atrás de mim. — Mentirosa e ladra.
Aquele pedestal está escorregadio, não está, queridinha?
Dou-lhe uma cotovelada tão forte que suas asas farfalham. — Eu fiz o que tinha que ser feito para
ajudar Alison — grito para Jeb, ignorando o sorriso convencido de Morfeu, que passa por mim. —
Eu só tomei emprestado. Vou devolver.
Morfeu para ao lado de Jeb. — Nisso ela está certa. A motivação sempre justifica o crime. É a lei
de nossa terra.
— Ouviu isso? — dispara Jeb, me trespassando com o desdém em sua voz. — A baratinha local te
deu o selo de aprovação. E você ainda se pergunta por que não posso confiar que você ande por aí
sozinha.
Uma pequena fogueira queima na base da minha garganta, uma necessidade irritante de me
justificar que me invade feito ácido. — Eu tinha um plano.
— Ah, grande plano. — Jeb faz um gesto mostrando a sala à nossa volta.
— Eu não sabia que seria assim, Jeb!
Antes que Jeb possa responder, Morfeu se interpõe entre nós, agarrando cada um pelo ombro. —
Me desculpem, pombinhos — diz ele, recitando. — Mas, por mais que eu esteja adorando, essa
briguinha corre o risco de ofuscar minha grande revelação.
Ele aponta para a porta, onde Gossamer aguarda com outras trinta fadas. Cinco delas carregam
uma cartola vermelha com uma larga faixa preta ostentando uma pluma de pavão. Um cordão de
corpos iridescentes de mariposas azuis decora a aba, feito uma guirlanda.
As outras fadas trazem uma sacola preta pesada demais para ser erguida, então elas a arrastam
pelo chão.
— Todos os convidados já chegaram, mestre — avisa Gossamer, em um trinado. Ela e suas
companheiras depositam a cartola no alto da cabeça de Morfeu enquanto as outras deixam a sacola
ao lado de nossa mochila.
— Sirva os aperitivos e peça à harpa que toque alguma coisa. — Morfeu ajusta o ângulo do
chapéu. As mariposas mortas tremem com o movimento, como se lutassem para escapar. — Não
demoraremos.
Gossamer aquiesce e segue as outras, olhando para trás mais uma vez antes de adentrar o corredor
ao lado.
Morfeu pega a sacola. Ao caminhar na direção da mesa de vidro, suas asas acetinadas roçam
minha bota esquerda. Uma vibração penetra pela minha marca de nascença e sobe pela canela, indo
parar na minha coxa, quente e excitante. Fazendo uma careta, escorrego a perna para trás e dou um
tapa na bota para aliviar a sensação. Jeb me observa com olhar desaprovador.
Morfeu abre a sacola e vemos uma caixa de chapéu alta e prateada decorada com veludo branco.
Nunca vi nada assim, nem mesmo nos meus sonhos. A curiosidade me atrai até a mesa.
Morfeu indica a cadeira, desempenhando mais uma vez o papel de anfitrião cavalheiro.
— Vou ficar de pé — murmuro. Gostaria de deixar seus olhos negros ainda mais negros por ter
provocado minha briga com Jeb só para se vingar do beijo. Mas estou estranhamente intrigada que
ele se importe o suficiente para ter ciúmes, é verdade.
Jeb se acomoda atrás de mim e aperta meus ombros — ainda meu protetor, mesmo quando está
bravo. Recosto-me em seu corpo quente, em gratidão.
Morfeu lança um olhar desgostoso para nós e depois arrasta a caixa para o centro da mesa. Na
verdade, ela é feita de peltre. Rosas de veludo branco cobrem os lados, e entalhes se enrodilham no
alto da tampa, em alguma língua arcaica. Quanto mais eu olho para as palavras, mais legíveis elas se
tornam. Será mais uma manifestação da maldição dos Liddell, que esta língua me venha
naturalmente?
— Hora das apresentações — diz Morfeu, abrindo a tampa um segundo antes que eu possa
compreender a primeira sentença.
Um fluido escuro e oleoso se move dentro da caixa. Uma folha de vidro sobre o topo mantém o
líquido lá dentro. Morfeu dá uma sacudidela no conteúdo e um objeto esbranquiçado vem à tona.
Ele me lembra uma Bola 8 Mágica que vi uma vez em um bazar. A bola de plástico preta continha
uma janela. Um fluido azul preenchia o interior, e um dado branco emergia até a janela, marcado com
frases em cada um dos lados. Você só tinha que fazer uma pergunta para a bola, rodá-la nas mãos e
depois virá-la para cima. Sua resposta aparecia na janela escrita no dado... E ia de bem provável até
pergunte novamente depois.
Só que este objeto flutuante é quase do tamanho de um melão e tem formato oval. Fios grossos e
esbranquiçados rodopiam lá dentro. Morfeu agita novamente a caixa. O globo gira e revela um rosto.
É uma cabeça!
Com um ganido, controlo a bile que me sobe até a garganta.
Jeb solta um palavrão e tenta me virar para ele, mas não consigo deixar de olhar para ela. O
líquido deve ter algum tipo de formol. Por que Morfeu teria uma cabeça conservada em uma caixa de
peltre?
— Acorde, minha bela — sussurra Morfeu, com suavidade forçada. Eu observo, mortificada, ele
bater levemente no vidro, percorrendo os cílios fechados e cristalizados daquele rosto. Quando os
olhos se abrem, quase caio para trás.
A coisa está viva.
Percebo que conheço aquela imagem, da encenação com as peças de xadrez. É a Rainha de
Marfim, ainda mais linda do que sua cópia em jade, delicada e alva como a luz da lua. Marcas
parecidas com tatuagem perfilam as duas têmporas, em uma rede de veias, como se asas de libélulas
tivessem sido transferidas para um carimbo e depois para a pele. Seus olhos são de um azul tão claro
que quase não têm cor; longos cílios se curvam para cima a cada piscada. Eles são iguais a suas
sobrancelhas, prateados e cristalinos, como se fossem revestidos de gelo. Nos contornos externos,
duas linhas pretas mergulham até as maçãs do rosto e terminam em forma de lágrima; é como se ela
chorasse tinta. Lábios de um rosa pálido — curvos e belos como um coração — abrem-se num
sorriso adorador quando seu olhar cai sobre Morfeu. Ela tenta falar.
Morfeu se inclina, passando carinhosamente a mão enluvada sobre seu rosto encerrado. Ela tenta
falar mais uma vez, mas não pode ser ouvida através do líquido e do vidro.
Jeb e eu ficamos ali parados, presos em nosso próprio silêncio.
Morfeu quebra a quietude. — Esta é uma caixa linguardarte. Ela pode conter um ser inteiro em seu
interior, embora só o rosto apareça. Você já ouviu a frase “Cortem-lhe as cabeças”, do livro que
carrega?
Olho para as minhas mãos enluvadas, pensando em minhas cicatrizes. O livro não é o único lugar
em que vi essas palavras, e Morfeu sabe disso. Seria isso que Alison quis dizer quando mencionou
que não queria que eu perdesse a cabeça?
— Bem, esta é a origem dessa frase — termina Morfeu. — A pequena Alice a tomou muito
literalmente. Isso costumava ser uma punição comum aqui no País das Maravilhas. Mas agora é
considerada uma barbárie. É pior do que qualquer prisão, pois seu ocupante pode ser visto, mas não
ouvido. Sua fala fica trancada aqui.
A caixa treme sob as mãos de Morfeu. A expressão da rainha muda de adoradora a desesperada.
Ela se debate com força, e bolhas chegam à superfície. Seu cabelo enrodilha-se feito plantas
marinhas albinas. Morfeu envolve a caixa nos braços numa tentativa de impedir que caia da mesa.
Quando sua boca se estica em um grito mudo, ele fecha a tampa. O rosto de Morfeu fica lívido e ele
guarda a caixa na sacola antes que eu possa olhar a inscrição novamente.
Esticando as mangas por sobre as luvas com dedos trêmulos, ele suspira. — Eu não queria
perturbá-la. Ela fica em paz quando está sozinha. Mas, se não for libertada logo, todas as suas
lembranças se perderão para sempre.
— Você se importa com ela — digo com um inesperado quê de inveja. Nas minhas lembranças há
muito perdidas de quando éramos pequenos, só havia nós dois. Nós nos entendíamos em todos os
níveis. Morfeu me fazia sentir adorada, especial, importante. Nunca imaginei que ele pudesse fazer o
mesmo por outra pessoa quando crescesse e se tornasse um homem. — Morfeu, o que ela representa
para você?
Ele não responde. Não em voz alta, pelo menos. Sua expressão é nebulosa e perturbada, e as joias
em torno de seus olhos mudam de prateadas para pretas, como estrelas perscrutando o céu em uma
noite de tempestade. A confissão de Alice no tribunal me vem à mente. “Marfim, na verdade,
gostava muito do Sr. Lagarta.” Julgando pelo modo como Morfeu olhou para a rainha agora, por
como ela o olhou, ele voltou ao castelo depois de sua metamorfose.
Imagino seus dedos elegantes correndo pela pele dela, seus lábios macios junto aos dela. Aquela
pontada de inveja evolui para algo muito mais feio — uma cobiçosa mudança de emoção que não
consigo nem nomear. O que há de errado comigo? Por que eu me importaria com a vida amorosa de
Morfeu, quando finalmente beijei Jeb depois de tantos anos?
As asas de Morfeu se estendem e voltam a fechar. A obscuridade que permeia seus traços dá lugar
à raiva reprimida. — Neste reino, os espelhos são portas. Mas o corredor no qual estamos leva
somente a outras partes do País das Maravilhas. As portas que levam ao seu mundo estão dentro dos
castelos Branco e Vermelho e estão ligadas às rainhas. O portal da Rainha de Marfim está congelado
por causa do estado dela e permanecerá assim até que ela seja libertada pela pessoa que a colocou
nesta caixa. Isso nos deixa somente o portal da Rainha Vermelha. Creio que vocês já conheceram o
Rábido Branco.
Engulo seco e faço um sinal afirmativo com a cabeça.
— Então sabem como serão bem recebidos na província Vermelha. Pisem lá e poderão terminar
em uma caixa igual a esta.
Uma imagem minha e de Jeb trancados em meio a um líquido escuro me passa pela cabeça. Jeb
deve ter sentido o meu arrepio, porque apertou mais forte os meus ombros. — E quem colocou a
Rainha de Marfim aí dentro? — pergunta ele.
Morfeu tira o chapéu e o coloca ao lado da sacola, deixando seu cabelo um emaranhado azul
brilhante. — Depois que a Rainha Vermelha foi exilada para a floresta, nunca mais foi vista. Sua
meia-irmã, Grenadine, desposou o rei e tornou-se rainha. Uma mulher por demais negligente para
ostentar uma coroa. E agora o rei quer dar-lhe duas. — Morfeu fisga uma tiara de diamantes
fulgurantes na sacola. — Tenho um espião no castelo Vermelho. Quando a Corte Branca veio até mim
trazendo a notícia do destino de Marfim, há algumas semanas, enviei ordens para que meu contato
roubasse a caixa linguardarte. Estou abrigando Marfim aqui, junto com sua coroa, para mantê-las a
salvo de Grenadine e do Rei Vermelho. Se eles controlarem o portal Vermelho e o Branco, vocês
nunca voltarão para casa. — Ele volta a guardar a tiara. — Tudo será resolvido quando Alyssa
encontrar a espada vorpal. Ela é a arma mais poderosa do País das Maravilhas. Posso usá-la para
forçá-los a libertar a Marfim. O portal dela será então aberto a vocês.
Jeb olha diretamente para Morfeu. — Deixe-me ver se entendi direito. Você nos atraiu para cá
com a promessa de salvar a mãe de Ali, sabendo o tempo todo que não teríamos como voltar para
casa antes de libertarmos sua namorada esquisita.
Morfeu levanta um dedo. — Como estamos esclarecendo os fatos, não devemos esquecer que você
nunca foi convidado, para começo de conversa. Se isso for demais para sua delicada constituição,
escória mortal, poderá permanecer trancado em segurança no meu quarto de hóspedes até que tudo
termine.
— Eu vou aonde a Al vai, insetão. E só para seu conhecimento, se alguma coisa acontecer com
ela, vou espetar você pelas asas numa prancha de cortiça e usá-lo para treinar dardos.
O confronto entre Jeb e Morfeu é só um ruído de fundo. Estou aqui para quebrar a maldição por
Alison — só isso importa.
Só que eu nunca deveria ter metido Jeb nisso. Se eu pudesse voltar no tempo...
Algo que as flores zumbis disseram me cutuca a memória. Algo sobre o tempo andando para trás
no País das Maravilhas. O que elas queriam dizer com isso? Obviamente, não é uma verdade literal.
O tempo tem andado para a frente desde a visita de Alice, ou as coisas não estariam neste estado.
Um sentimento de urgência me arrebata. Alison irá para o eletrochoque na segunda-feira. —
Preciso chegar nesse chá da tarde e acordar os convidados.
Jeb olha para mim. — E como vai fazer isso? Dando um beijo mágico no seu chapeleiro de meia-
tigela?
Morfeu coloca o chapéu na cabeça e o inclina. — Meia-tigela? As habilidades de Herman
Chapelão são excepcionais. Ninguém faz chapéus como ele. E quanto a dar um beijo para acordá-lo?
Conto de fadas errado, Príncipe Encantado. Mas eu lhe asseguro — Morfeu roça o polegar na minha
têmpora —, nossa queridinha aqui vai nos brindar com um ”viveram felizes para sempre”.
Jeb agarra o pulso de Morfeu no ar. Seus olhares se encontram.
— Sem tocar — Jeb rosna.
Morfeu dá um puxão e liberta a mão. — Nossos convidados sabem por que Alyssa está aqui.
Como eles sentem falta de suas excursões ao reino humano, estão dispostos a recebê-la na esperança
de poderem voltar a ter acesso ao portal branco. Mas, se eles perceberem em você um estranho que
chegou sem ser convidado, não serão tão amáveis. Para a sua própria preservação, você deve ser
convincente como um cavaleiro élfico. Estes têm temperamento estável e imparcial. É hora de fingir
que possui essas virtudes.
Sinto a tensão no ar enquanto Jeb luta para conter sua irritação. Os dois se enfrentam, encarando-
se.
Meto um braço entre eles. — Não temos que ir ao banquete?
Franzindo a testa, Morfeu tira as luvas brancas de Alice de seu casaco. A grama e a sujeira foram
lavadas. — Vamos precisar do leque de renda. — Ele dirige o comando a Jeb, que se detém como se
fosse dar-lhe um soco. Agarro o seu cotovelo — um apelo silencioso.
Jeb segue pelo corredor a fim de pegar a mochila.
Morfeu e eu analisamos um ao outro num silêncio perturbador. Não consigo decidir o que me
perturba mais: meus traços intraterrenos cada vez mais evidentes... A urgência por causa do
tratamento de Alison... A caixa linguardarte... Por que Morfeu parece se importar que eu beije Jeb se
está envolvido com outra pessoa... Ou, pior ainda, por que me perturba saber de seu amor pela
Rainha de Marfim.
Os pensamentos se espalham à minha volta feito vidro quebrado quando Jeb retorna.
Morfeu enfia o leque em sua lapela junto com as luvas. — Deixem a bagagem aqui. Se algo sair
errado durante o jantar, venham imediatamente para este corredor. Ele é isolado... Praticamente
impossível de encontrar a menos que se conheça a entrada secreta. Gossamer providenciará que
vocês sejam enviados para o chá caso tenhamos convidados inesperados.
— Convidados inesperados? — pergunto.
— Convidados com intenção maliciosa ou assassina. Você é, afinal, uma fugitiva da Corte
Vermelha. — Morfeu esfrega as mãos como se apreciasse a ideia de confusão. — Estou faminto.
Vamos ao banquete.
12
O banquete
das bestas
Listras brancas e pretas cobrem as paredes da sala de jantar, que não possui janelas. Não consigo
definir com precisão onde terminam as paredes e começa o chão ou o teto.
É quase tão desorientador quanto os espíritos de mariposas que vi há pouco. Até a comprida mesa
de jantar e as cadeiras da sala são pintadas de modo a combinar e criar um efeito de camuflagem. Os
convidados parecem estar flutuando no lugar sobre um pano de fundo listrado. Sinto-me perdida, mas
estranhamente em casa, como uma pulga que decidiu residir em uma zebra.
Um candelabro gigante instalado no teto abobadado ilumina os arredores com faixas de luz
dançante. Atravesso a soleira com Morfeu ao meu lado direito, minha mão curvada sobre a sua. Jeb
está dois passos atrás, à minha esquerda. No código élfico, é indecoroso para um cavaleiro ter
qualquer interação com sua protegida, exceto para proteger sua vida, caso seja necessário. Não
podemos nos tocar, não podemos trocar olhares, não podemos nem nos dirigir a palavra, ou nosso
disfarce cairá por terra.
— Sua atenção, por favor. — Morfeu fala aos convidados. Gossamer espia por debaixo de seu
cabelo novamente, e a harpa que toca sozinha emudece, junto com o tagarelar dos convidados. — A
Senhorita Alyssa, do Outro Reino. — Ele se vira para mim e estende meu braço. — Estes são os
solitários de nossa espécie, nascidos na Corte Vermelha ou na Branca. Nós, os selvagens e rudes do
País das Maravilhas, lhe damos as boas-vindas ao Banquete das Bestas.
Minha mão aperta a dele enquanto os convidados olham fixamente para mim, com comida
pingando de seus focinhos.
Reunida em volta da longa mesa está uma mixórdia de criaturas, algumas vestidas, outras nuas.
Embora variem em tamanho e gênero, elas são todas mais bestiais do que humanoides. Uma parece
um ouriço, com espinhos e tudo, só que tem a cara de um pardal. Ela deve ser tímida, porque se
enrola em uma bola quando entramos, e depois quica para baixo da mesa. Uma mulher cor-de-rosa
com pescoço do comprimento de um flamingo abaixa-se e cutuca o ouriço com a cabeça, mandando a
bola de debaixo da mesa para o outro lado da sala.
Há mais criaturas: algumas com asas; algumas são parte sapo e parte planta, com trepadeiras
saindo de sua pele; outras são carecas como focas, com corpos de primatas e cabeças lanudas de
carneiros.
A única coisa que todos têm em comum é o interesse por mim. Sou o ponto focal de mais de
cinquenta pares de olhos.
Alguns murmúrios quebram o silêncio.
— É ela...
— É igualzinha, sim.
— Ouvi dizer que ela secou o mar com uma esponja. Uma esponja! Astuta e criativa.
Todos eles sabem sobre minha relação com Alice e o que vim fazer aqui. Potencial para um épico
fracasso.
Meu nervoso se junta ao fedor de comida, pelos de animais e almíscar. Tudo na sala gira. Jeb está
atrás de mim. Eu sei que, se eu desmaiar, ele irá me pegar. Também sei que, se desmaiar, estragarei
tudo. Tenho que ficar forte para Alison. Então, me recomponho e meu olhar passa de uma cara
estranha para outra, curiosa para saber qual criatura veio coletar o leque e as luvas em nome da
duquesa.
Morfeu me conduz até a mesa e puxa uma cadeira à direita da sua, à cabeceira. Há um enorme
malho apoiado ao lado da perna da mesa, e um debaixo de cada cadeira de nossa fileira. Ele me
acomoda ao lado de uma criaturinha crespa que parece um furão albino usando um capacete de
beisebol preto na cabeça, embora seus olhos serpentinos e língua bifurcada a privem de qualquer
graça.
Jeb assume seu lugar atrás de mim, fora de alcance. Morfeu fica de pé ao lado de sua cadeira e faz
uma reverência com o chapéu para os convidados, asas pretas arqueadas. — Me desculpem pelo
atraso. Mas, olhando o lado bom, nosso anjo vingador finalmente chegou. Então, que comece a
comemoração!
Depois de uma salva de palmas de nossos convidados, Morfeu passa seu chapéu para Gossamer e
várias outras fadas. Elas o penduram no braço da cadeira enquanto Morfeu se senta, dobrando as
asas sobre as costas feito um manto. Gossamer se aninha em seu ombro e todos os outros voltam a se
acomodar, com um ranger de madeira e o farfalhar de pelos e tecidos. O falatório recomeça, junto
com os ruídos de goladas, garfadas e sorvos.
— Prove um pouquinho, querida. — Morfeu aponta para o meu prato. Em seguida, vira-se para ter
uma conversa animada com um animal verde parecido com um porco que está sentado à sua
esquerda, na minha frente. O porco está vestindo um terno cinza com listras e punhos de pele. Suas
mangas são compridas, mas mal cobrem suas garras de lagosta. Ele sorri, e eu recuo ao ver seus
dentes — pretos e redondos como grãos de pimenta.
No meu prato, uma porção de peixinhos dourados no centro, arfando.
— Pisca? — o furão ao meu lado diz com voz de flauta. Ele aponta o dedo com garras para os
peixes.
— Temos que comer os peixes crus? — pergunto a ele. — Nunca fui muito fã de sushi.
— Sue-she? — pergunta ele.
— Deixa pra lá. — Meu olhar passa dos peixes para ele, agradecida pela distração. — Então seu
nome é Pisca?
Ele inclina a cabeça, o capacete brilhante cintilando conforme ele aponta para os esqueletos de
peixes em seu prato. — Pisca.
Nauseada, olho novamente para meu próprio jantar pululante.
Seus olhos de peixe saltam das órbitas, olhando diretamente para mim. Pena e repulsa viram meu
estômago. Não consigo nem imaginar minhas enguias de estimação fora da água e incapazes de
respirar. Será que as mariposas e insetos que uso nos mosaicos sofrem assim quando morrem? Por
que nunca me preocupei em perguntar?
— Pisca — repete a criatura ao meu lado. Ela levanta uma colher de prata quase do seu próprio
tamanho, fica de pé na cadeira e passa a golpear vários dos meus peixes na cabeça, matando-os. —
Pisca eles, entendeu? — Sua língua bifurcada lambe seus lábios.
— Ah, não! Por favor... — Num impulso, pego minha taça e jogo o líquido para que os outros
peixes que continuam vivos possam voltar a respirar. A mistura se esvai rapidamente, revestindo os
peixes com uma camada farinhenta que cheira a suco de maçã e canela. Desesperada, resgato os
peixes sufocados da sujeira, limpando a gosma com as unhas e sujando o tecido de minhas luvas.
Todos estão me olhando novamente, mas estou muito indignada para dar importância.
— O que é isso? — desabafo para Morfeu.
Os olhos dele faíscam. — De onde você vem não se coloca areia na sidra? — Ele sorri
afetadamente. Lembro-me de ver aquele mesmo sorriso nos sonhos quando criança, que costumava
significar que estávamos prestes a fazer algo ousado e divertido. Mas agora há um quê de malícia por
trás dele. O que poderia ter acontecido para transformá-lo de menino brincalhão no homem
perturbado que ele é hoje?
— Prefere experimentar o vinho? — pergunta ele.
Na outra ponta da mesa, os intraterrenos primatas recolhem garrafas de vinho que flutuam no ar, e
prendem tufos de lã de suas cabeças de carneiro nos gargalos para fazê-las descer. Depois, passam o
vinho aos outros para brindar.
Franzindo o nariz, recuso a oferta.
— Ah, pobre e delicada flor. — Morfeu pega um guardanapo e toma minha mão direita com
delicadeza. — Vamos limpá-la. — Gossamer aparece flutuando sobre a mesa ao lado da minha mão
direita e ajuda, com rispidez desnecessária, dando puxões nas minhas luvas e beliscando minhas
juntas enquanto ri de mim. Em contraste, Morfeu retira suavemente a mistura arenosa de meus dedos.
Faíscas de calor surgem do contato.
Há calor atrás de mim, também, e vem do olhar de Jeb. Não preciso ver, eu sinto. Ele alertou
Morfeu para que não me tocasse durante o banquete.
— Uma pena que estivéssemos tão ocupados no Corredor dos Espelhos e acabamos perdendo a
entrada — diz Morfeu, olhando para Jeb de soslaio. — Você teria adorado a sopa de aranhas, já que
é tão adepta a ferir insetos.
Eu me contraio.
— Pena maior ainda — ele se inclina e sussurra bem baixinho para que só eu possa ouvir — que
você desperdice seus beijos com um homem que fantasia com outras mulheres. A pequena Gossamer
pode ver a mente dos outros enquanto dormem. A linda jovem que povoa os sonhos de Jeb não é
você. O interessante é que ele agora escolhe agir em nome de “sentimentos ocultos”. Justo aqui,
longe de todos, quando ele quer tão desesperadamente dissuadi-la de sua missão.
Uma sombra penetrante me atravessa o peito, cortando-me como uma faca.
— Ah, mas é claro que ele é sincero — Morfeu continua a provocar. — Ele nunca escondeu nada
de você. Sempre foi sincero.
A mudança de Jeb para Londres com Taelor toma minha mente, deixando-me tão sombria quanto
as nuvens escuras por trás dos olhos do nosso anfitrião.
Observando minha reação, Morfeu sorri. — Sim. Um homem que nunca mente nunca partirá seu
coração. — Plantando um beijo no alto de minha luva, ele joga fora o guardanapo e me solta.
Gossamer me encara com fúria e voa de volta para o ombro dele.
Lágrimas me brotam nos olhos. Me controlo para que elas não caiam, mas não consigo comandar a
dor que me toma o estômago. Morfeu deve estar certo. Jeb nunca mencionou nutrir sentimentos por
mim na nossa vida real. Lá, ele ainda está com Taelor e ainda sonha com ela.
Morfeu fica de pé e recoloca o chapéu na cabeça, tratando de negócios. — Chega de brincarmos
com essas migalhas insossas. Garçons, tragam o prato principal!
Algum movimento ao longo das paredes propicia uma distração momentânea da dor em meu
coração. É como se pedaços do reboco ganhassem pernas. Só quando eles se desprendem de seus
lugares e se esgueiram para uma das salas adjacentes é que percebo que são um bando de camaleões
do tamanho de seres humanos, com ventosas nos dedos.
Quando os lagartos listrados retornam, com os olhos salientes girando em todas as direções,
trazem uma travessa decorada com frutas secas e algo que lembra um pato. Está depenado e assado,
mas ainda mantém a cabeça intacta. Um cheiro quente de ervas me pinica o nariz. Pelo menos está
cozido.
— Posso apresentar a todos o prato principal? — Morfeu estende um braço com um gesto
dramático. — Jantar, conheça seus dignos adversários: os convidados famintos.
Minha língua vira uma lixa quando os olhos do pássaro se abrem, e ele se esforça para ficar sobre
os pés palmados, trôpego, a carne marrom e brilhando cheia de temperos e óleo. Ele tem um sino
pendurado no pescoço que tilinta quando o pato se curva para cumprimentar a todos.
Isso não pode estar acontecendo.
Cada nervo do meu corpo se eriça, pedindo que eu me una a Jeb. Mas não posso.
Morfeu arrasta o pesado malho que está ao lado de sua cadeira e o bate na mesa, como o martelo
de um juiz. — Agora que todos se conhecem, que comece a pancadaria.
Gossamer decola do ombro de Morfeu e sai da sala com as outras fadas quando explode a
confusão em massa. Todos os convidados ficam de pé, com os malhos na mão, prontos para caçar o
pato que chocalha.
Ele é surpreendentemente ágil e se esquiva, fazendo manobras em meio às travessas, pratos e
prataria.
— O que você está fazendo? — pergunto a Morfeu. — Eu nunca vi nada tão selvagem!
— Selvagem? — O porco verde bufa em resposta. — Você age como se fôssemos um bando de
animais. — Seus dentes de pimenta formam um sorriso desdenhoso.
— Pare de pensar com a cabeça, Alyssa. — Morfeu inclina-se sobre a mesa, seu cabelo azul
balançando na altura dos ombros. — Pense com isto. — Ele coloca um dedo acima do meu umbigo.
É bom que Jeb não consiga ver desse ângulo, ou ele quebraria a mão de Morfeu.
— Com o estômago? — Eu mal consigo enunciar a pergunta.
— Com suas entranhas. Instinto. A parte mais profunda de você sabe que é assim — ele aponta o
caos à nossa volta — que deve ser. Aquela mesma parte de você que a fez me procurar e atravessar o
espelho. A mesma parte que lhe deu o poder de animar seu mosaico.
As palavras dele me remetem de volta àquele momento no meu corredor quando as patas dos
grilos mortos começaram a chutar e as contas de vidro brilharam. Ele está dizendo que a magia da
minha maldição fez aquilo também?
— Você compreende a lógica que está além do ilógico, Alyssa. É da sua natureza encontrar
tranquilidade em meio à loucura. E é isso o que estamos fazendo aqui. Estamos dando à nossa
comida uma chance de resistir. — Ele pisca para mim. — Agora, se nos desculpar, meu camarada e
eu temos algumas bordoadas a dar. — Ele e o porco deixam a mesa. Morfeu se inclina para que suas
cabeças fiquem na mesma altura enquanto eles se dirigem ao outro extremo da sala.
— Pisca! — grita o furão branco. Ele sobe na mesa com a colher nas mãos e acaba sendo
atropelado pelo pato assado. Aparo meu amigo peludo antes que ele caia de cabeça no chão. Sua
colher bate com força no piso, ao lado de seu capacete. Sem o capacete, seu escalpo pelado fica
exposto — a pele é tão fina que seu cérebro fica à mostra. Ele não tem crânio.
Ele se aninha no meu colo. — Datum. Muito datum, meu anjo! — Olhos cor-de-rosa em forma de
contas me estudam, suaves de mórbida adoração. Fico tão cativada com a estranheza da criatura que
não percebo a multidão que vem em nossa direção, brandindo seus malhos numa corrida caótica pelo
prêmio.
Jeb puxa minha cadeira da mesa para me salvar de ser martelada, enquanto o furão se agarra na
minha túnica com obstinação. Em seguida, Jeb se esquiva para o canto, ficando à minha frente, numa
diagonal, mantendo distância. A expressão dele é de esforço para não fazer contato visual.
— Conhecem as regrassss! — Um lobo sinuoso sibila ao dar uma tacada, quase acertando o pato
quando ele se choca com uma travessa. — O primeiro a acertar é o primeiro a trinchar!
Um uivo horripilante quebra o caos quando alguém arranca uma perna do pato. Ele consegue sair
se arrastando enquanto vários dos perseguidores roem a coxa arrancada.
O pato sobe em uma garrafa de vinho que flutua e ganha o ar, rindo em delírio. Arrancando e
atirando pedaços da própria carne, ele incita os outros a tentarem pegá-lo.
Ele quer ser comido.
Uma pontada doentia convulsiona minha barriga, provocada pela excitação da caça. Minhas pernas
se contraem no desejo de pular. Reprimo o impulso.
Todas as criaturas capazes de voar o seguem com os malhos em punho, flutuando sobre os outros.
Os presos ao solo se descolam apressadamente para cima da mesa ou correm pelo chão, tropeçando
em pratos e cadeiras na esperança de que alguém abata o prato principal e ele caia.
Tapo a minha boca para abafar um grito ou riso histérico. Poderia ser qualquer um dos dois a esta
altura. Estou começando a apreciar a loucura.
Isso não é bom. Não mesmo.
Meu novo amigo furão acaricia meus dedos, as almofadas de suas patinhas cor-de-rosa macias
contra a minha pele.
— Sã fique, anjinho — consola sua voz de flauta. — Sã e agradável. Escolha e cante. Seja
sorrisos reais para mim. — Ele ri, os dentes afiados brilhando à luz do candelabro. Seus caninos são
longos como as presas de uma serpente.
Sinto meu instinto aguçado e faço o que Morfeu sugeriu — sigo-o. Faço cócegas na orelha
esquerda da criatura, como faria com um bicho de estimação. Ele ronrona em resposta.
Me desligo de tudo — da perseguição ao jantar, da loucura no riso e nos gritos dos animados
convidados, da carinhosa e peluda criatura no meu colo — quando vejo Morfeu passar o leque e as
luvas para o porco.
Em troca, o porco passa para Morfeu um pequeno saco branco amarrado com uma fita preta.
Depois, o porco recolhe seu malho e vai correndo juntar-se à festa, que fora parar na cozinha. O
ruído de potes e panelas na outra sala ecoa com força no repentino silêncio da abandonada sala de
jantar.
Tenho um sobressalto quando o furão me agarra o rosto. — Seja doce, anjinho. — Ele lambe meu
queixo com sua língua bifurcada e fria e depois pula para o chão, arrebatando sua colher e seu
capacete. — Pisca. Pé-de-vento e fora! — Com isso, ele recoloca o capacete e ruma para a cozinha.
Assim que ele desaparece, somente Jeb, Morfeu e eu ficamos no recinto. Livres de olhos curiosos,
olho para Jeb da minha cadeira e ele me olha do outro lado, sem nenhum de nós se mexer.
Uma estranha pressão começa a penetrar no meu queixo onde a língua serpentina do furão deixou
uma marca molhada. Ela penetra na minha pele e serpenteia até a minha boca, quente e fria ao mesmo
tempo. Sinto seu gosto — amargo e doce, como um doce feito de lágrimas.
A sensação não para por aí. Ela flui para dentro da minha garganta, depois para meu peito,
beliscando com uma tristeza profunda. No princípio, fico triste por mim e Jeb, por como ainda temos
tantas coisas a acertar. Depois, fico triste por Alison e papai, e os anos juntos que perderam. Fico
triste pela Rainha Vermelha e seu coração partido, e pela Rainha de Marfim, que sempre sofreu em
silêncio, agora trancada sozinha na prisão daquela caixa. A tristeza vai aumentando, como se toda a
dor do mundo convergisse para um só ponto logo acima de meu coração. Quero chorar... Quero tanto
que chego a ficar sem ar.
Jeb corre até mim, agachando-se aos meu pés. — Al, está tudo bem. Já passou. — Ele sente minha
testa. — Você está tão fria. Diga algo, por favor.
Não consigo responder por medo de começar a chorar de modo incontrolável.
— Ela está ficando azul! — Jeb grita para Morfeu. — Aquele furão esquisito fez alguma coisa
com ela!
— Não, não. Não fique histérico, pseudoelfo. — Morfeu joga o chapéu sobre uma cadeira e junta-
se a nós. Ele se inclina sobre mim. Jeb, relutante, se afasta alguns centímetros para dar-lhe espaço.
Morfeu levanta meu queixo e inclina meu rosto para um lado e para o outro, como um médico
realizando um check-up. — Tem sorte de ele ter gostado de você, queridinha. Os intraterrenos
Mustela são conhecidos por seu temperamento, e têm o veneno de mil vespas em uma mordida de
seus caninos. Suas cabeças são frágeis e vulneráveis. Se você o tivesse tocado em outro lugar além
das orelhas, ele teria tomado isso como uma ameaça. Você estaria se contorcendo no chão neste
momento, sufocando em sua última e excruciante respiração.
Tento falar, mas não consigo. A tristeza vai ficando cada vez maior. Cada batida de meu coração
esgota meu peito feito uma sanguessuga. Quero escorregar para o chão, enrodilhar-me em mim
mesma e chorar para sempre. Mas estou congelada no lugar.
— Você a acomodou ao lado daquela coisa de propósito, não foi? — pergunta Jeb, ou melhor,
grita. — Para puni-la por ter me beijado! Seu miserável filho da... — Ele ataca Morfeu, girando-o e
envolvendo-o em suas asas, e pressionando-o contra o tampo da mesa. Pratos e utensílios tremem
com o impacto. Com o antebraço apertado contra a laringe de nosso anfitrião, Jeb o mantém preso.
— Conserte isso. Agora.
— Não há nada para consertar. Foi um presente dele. — Morfeu grunhe quando o braço de Jeb
aperta sua garganta. Ele tenta se libertar, mas Jeb o embrulhou tão fortemente em suas asas que ele
não consegue se mover. — Se você me deixar sair — balbucia ele por entre os dentes — eu
mostrarei.
Rosnando, Jeb se afasta e cai de joelhos ao meu lado novamente, tomando minha mão mole. Ele
entrelaça meus dedos nos dele. — Vamos, menina do skate. Fique comigo, está bem? Haja o que
houver dentro de você, não deixe que vença.
A preocupação que tensiona os traços de Jeb deixa o meu peito ainda mais pesado e me sufoca.
Ele precisa que eu responda. Mas se eu abrir a boca para responder, vou chorar sem parar até nada
mais restar de mim.
— Dê-me um pouco de espaço. — Morfeu agacha e Jeb se afasta, mantendo nossos dedos
entrelaçados. Morfeu coloca um guardanapo de pano perto do meu rosto. — Deixe que saia, querida.
Eu sei que parece um dique prestes a desmoronar, mas eu lhe asseguro que basta uma lágrima e você
se sentirá bem.
Não é possível. Uma lágrima nunca será suficiente. Eu me dobro. Um grito agudo irrompe de
minha garganta, tão profundo que fere minhas cordas vocais e esvazia meu abdômen. O grito termina
em um soluço. E, então, uma única lágrima me rola pelo lado esquerdo do rosto.
De repente, sou eu mesma novamente. Aperto a mão de Jeb.
Morfeu embrulha no guardanapo o que parece ser uma bola de gude de vidro transparente, embora
seja macia e maleável, como aquelas bolinhas de óleo para banho. — Isto é seu.
— Esta é a minha lágrima? — pergunto.
— É um desejo. Seu novo amiguinho tem o dom da invocação. Eles só concedem um na vida, e ele
escolheu você. Eu o manterei em segurança por enquanto. Você ainda não está pronta para lidar com
tanto poder. — Enfiando o guardanapo no casaco, nosso anfitrião começa a se levantar, mas Jeb
agarra seu ombro e o mantém ajoelhado.
— Nada disso. Você vai dar isso para ela agora. Dê a ela e ela poderá usá-lo para nos mandar
para casa.
Morfeu liberta-se. — E deixar a maldição continuar? Além disso, temo que não seja assim tão
simples. Porque isto aqui pode ser usado por ela, e só para ela. Ela deve ser o sujeito do desejo,
pois foi ela que o chorou. Ninguém mais pode se aproveitar deste poder. Então, ela não pode levá-lo
para casa. Se querem voltar, os portais são sua única chance.
Jeb e eu trocamos caretas.
— Terei outros desejos — sugiro.
Morfeu ri. — Ah, mas é claro que sim. Como fez Alice. Ela pediu uma infinita variedade de
desejos. Depois, as lágrimas não paravam de sair. Foi assim que o oceano nasceu, para começo de
conversa. Nós quase nunca conseguimos parar essa fonte. Se você tentar ser mais esperta do que a
magia, há sempre um preço a ser pago. — Morfeu coloca-se de pé.
Eu agarro o seu pulso. — Você me fez sentar ao lado dele por alguma razão. Você queria que eu
produzisse esse desejo. Por quê?
Em silêncio, ele afrouxa o nó da gravata em seu pescoço, num gesto de relaxamento, mas sustenta
meu olhar. O lado esquerdo de sua boca se curva num meio sorriso.
— Ei... — Jeb ergue nossas mãos unidas e aperta o polegar contra meu esterno para chamar minha
atenção. Meu coração começa a bater com a pressão, lembrando de suas carícias no corredor
espelhado. — Você estava ficando azul, Al. Aquela cobra-furão podia ter matado você fácil, fácil.
Esse miserável arriscou sua vida só para se divertir. Ele não tinha nenhum motivo nobre.
— Os intraterrenos Mustela são excepcionais juízes de caráter — explica Morfeu, entoando. — Eu
sabia que Alyssa estaria à altura. Tenho certeza absoluta de que ela pode defender a si mesma. Você,
por outro lado, não parece compreender esse conceito.
Jeb me ajuda a levantar da cadeira e me puxa para um abraço. É bom estar em seus braços, mesmo
estando incerta quanto aos seus motivos.
Nosso anfitrião coloca o chapéu no lugar. — Ainda bem que não comi nada, ou ficaria nauseado
com tal demonstração.
Jeb beija minha testa para provocar Morfeu. Eu me afasto, porque quero que ele me beije porque
deseja.
— O porco. — Provoco uma mudança de assunto na conversa; não estou a fim de bancar a juíza
para nenhuma de suas briguinhas.
— Sim — Morfeu responde sem quebrar sua carranca de enfrentamento para Jeb. — O porco é, na
verdade, um diabrete nascido da duquesa.
Alguns pedaços da história de Lewis Carroll se encaixam. Alguém estava fazendo uma sopa para a
duquesa com muitos temperos. Era por isso que o leque e as luvas cheiravam a pimenta. E ela teve
um bebê que se tornou um porco — Então, o que ele lhe deu em troca das luvas e do leque?
Morfeu levanta o saco branco. — A chave para acordar Herman Chapelão no chá da tarde;
gratuitamente. — Ele a entrega a mim, e Jeb começa a desatar a fita.
O dedo de Morfeu se põe sobre o laço. — É melhor não fazer isso. É a pimenta-do-reino mais
poderosa e cara neste lado do reino interior. E só há o bastante para uma dose.
Jeb franze a testa. — Pimenta-do-reino. Que tipo de mágica barata é essa?
Antes que Morfeu possa responder, uma horda de fadas invade a sala de jantar, voando pela porta
principal.
— Mestre, temos companhia — grita Gossamer. — Má companhia!
— Vão — diz Morfeu para Jeb, inclinando-se para pegar um malho.
Jeb enfia o saco de pimenta dentro do bolso e depois pega minha mão. Só demos dois passos na
direção da saída secreta quando um baralho de cartas — cada uma completa com seis perninhas e
bracinhos — marcha pela porta principal. Os guardas de cartas continuam chegando até cobrirem
todas as paredes.
Olhando mais de perto, estes guardas de cartas têm cara de insetos com antenas tremelicantes, e
seus dorsos finos como papel são, na verdade, conchas achatadas, salientes nas bordas e pintadas de
vermelho e preto para lembrar naipes de cartas. Com seus membros estranhamente unidos e bocas
perfurantes entrecruzadas nas mandíbulas, eles parecem mais insetos do que cartas.
Todos esses anos venho matando insetos e agora o carma está aqui para me fazer pagar, em naipes
espadas.
Os insetos se dividem em naipes: cinco copas e cinco paus de um lado e cinco espadas e cinco
ouros do outro, com o Rábido Branco no centro. As fadas, pequeninas e indefesas, olham a situação
de lá de cima, reunidas em volta do candelabro.
Um colete vermelho com luvas combinando pende da estrutura miúda e esquelética do Rábido. Em
uma mão ele segura uma corneta e na outra um pergaminho enrolado. Ele entorta a cabeça com
antenas para produzir três notas soprando o instrumento. Depois, com um estalido do pulso e um
chacoalhar de ossos, o Rábido abre o pergaminho.
— Alyssa Gardner, da corte humana, é chamada diante da Rainha Grenadine, da Corte Vermelha.
— Seus olhos cintilantes e cor-de-rosa se erguem, fixando-se em mim. Sou tomada por uma onda de
terror.
Jeb e Morfeu se colocam na minha frente. Dane-se aquela história de defender a mim mesma...
— Ela não vai a lugar algum com você, Rábido. — Morfeu levanta seu malho.
— Caso contrário, diz a Rainha Grenadine. — Espuma lambuza a boca de Rábido, e seus olhos
brilham como brasas acesas, vermelhos de fogo. — Caso contrário, seu exército assume o comando.
Diante do sinal dele, as cartas contra a parede se unem e dão um salto em nossa direção, como se
controladas por uma mão invisível.
As fadas mergulham de lá de cima, tentando interferir. Morfeu abre as asas ao máximo para
proteger a mim e a Jeb do ataque. Lanças atingem suas asas, esticando-as, mas sem trespassá-las.
Estico as mãos sobre as costas de Morfeu, absorvendo o choque quando seus músculos se retesam a
cada golpe do malho. Seus grunhidos se sobrepõem ao barulho dos guardas, caindo no chão.
— Saiam daqui! — grita ele por sobre os ombros, ao nos conduzir de costas até a saída secreta
para a sala espelhada, ainda usando as asas como barreira.
Jeb agarra meu cotovelo e me arrasta para a porta.
— Não! — Me debato. — Não podemos deixá-lo lutar sozinho. São muitos!
Cerrando os dentes, Jeb me arrebata para o seu ombro. — Ele está se saindo bem. E você é mais
importante. — Seu braço aperta minhas coxas, minha cabeça e meu torso ficam pendurados de
cabeça para baixo em suas costas. A escadaria sinuosa de mármore preto passa por baixo de mim, e
o sangue desce para a minha cabeça.
Fecho os olhos com força, ouvindo a batalha na sala de jantar ficar cada vez mais longínqua.
A lembrança de como Morfeu e eu brincávamos em nossa infância, do modo como ele curou meus
ferimentos hoje, o som de seu lindo acalanto — tudo isso ferve em mim, num caldo confuso de
emoção. Penso no desejo enfiado em seu casaco... O desejo que ele queria me dar, por alguma razão.
Se eu o tivesse agora, desejaria estar na sala de jantar ajudando Morfeu a lutar.
Estou prestes a tentar fugir quando ouço o som de potes e panelas.
— Pisca! Pisca todos eles!
Em seguida, ouço uma série de guinchos e rugidos — as mesmas vozes bestiais que ouvi na festa.
As bestas voltaram de sua caçada, e Morfeu não está mais lutando sozinho.
Jeb e eu nos esgueiramos pela passagem secreta que leva a outro lance de escadas. Em pouco
tempo estaremos tão distantes que o único som será o das suas botas pisando no chão espelhado.
— Pode me colocar no chão agora — resmungo.
— Eu não sei. É muito mais fácil salvar sua pele quando ela está pendurada no meu ombro.
— Você não precisa me salvar.
Jeb solta um riso sarcástico. — Não tenho muita escolha se você se joga em situações perigosas
nessa sua cruzada. Agora você vem e nos coloca no meio de uma guerra mágica.
Eu bato nele. Bem no meio das escápulas.
— Ei... — Ele coloca meus pés no chão, de modo que ficamos olhando um para o outro enquanto
ele esfrega as costas. Apesar de sua careta, Jeb parece impressionado.
Meus dedos estão latejando. O sujeito poderia colocar uma pedra nessa história de vergonha. —
Eu já me sinto mal o bastante por ter arrastado você para dentro disto, está bem? Se eu pudesse fazer
tudo de novo, você não estaria aqui. — Relaxo os dedos. Gossamer ainda não veio para abrir a porta
no espelho, e uma urgência em chegar ao chá da tarde se instaura em mim.
Jeb levanta meus dedos e aperta os lábios contra eles. — Eu ainda desejaria estar aqui com você,
mesmo se tivéssemos uma segunda oportunidade. Mas, se quisermos sair desta, você precisa parar de
acreditar no homem-mariposa como se ele fosse algum tipo de santo.
— O nome dele é Morfeu. — Sinto um nó na garganta quando penso no que está acontecendo três
andares abaixo. — Você acha que ele está perdendo? Acha que vão machucá-lo?
— Por que tanta preocupação com ele?
— Eu cresci com ele. Eu me importo.
— Não faz sentido. Isso foi nos seus sonhos. A amizade de vocês não era real.
— Parece real. Porque ele acredita em mim. Ele me deixa arriscar e aprender com isso. É algo
que um amigo faz. — Cerrando os dentes, olho para Jeb.
A expressão dele fica tristonha, como se uma sombra o encobrisse. — Então, só porque o
esquisitão alimenta seu ego, você está disposta a ignorar todas as mentiras dele? Ele não disse a
verdade sobre nada desde que nós chegamos.
— Então ele combina bem com você, visto que são dois mentirosos. — Odeio a acusação na
minha voz, mas não consigo contê-la. Separo nossas mãos, percebendo o saco sobre a mesa; o que
continha a caixa linguardarte. — Por que ela ainda está aqui?
Fazendo uma careta, Jeb aproxima-se de mim enquanto desembrulho a caixa. — Deve ser o lugar
mais seguro. Você não deveria mexer com isso.
— Quero dar mais uma olhada na inscrição. — Eu queria olhar para a rainha de novo. O que ela
tem que deixa Morfeu tão encantado?
Jeb cobre a tampa com a palma da mão. — Sabe, você não pode simplesmente chamar as pessoas
de mentirosas e deixar por isso mesmo. Talvez eu não tenha sido honesto em relação a Londres. Mas
você também mentiu.
Os espíritos de mariposas deslizam em minha visão periférica, como se acompanhassem minha
pulsação acelerada. — Não sobre os meus sentimentos. Você esperou até chegarmos aqui para
assumir sua suposta atração por mim. De volta ao mundo real, onde vale mesmo, você escolheu a
Taelor.
Ele me força a encará-lo, empurrando a caixa de chapéu para o fundo da mesa. — De onde veio
isso? Aquela baratona andou nadando dentro de sua mente novamente?
— Não. Mas Gossamer viu a sua quando você estava desmaiado. E ela viu que você sonhava com
outra moça. Quando você me beijou... Foi só para me convencer a desistir e ir para casa, para você
poder voltar para a Tae.
— O quê? — Os dedos dele são quentes e fortes, e eu os sinto através das mangas. — O sonho que
eu tive foi com Jen e mamãe. Estou preocupado com elas.
— Tá bom — digo, querendo ser convencida, mas ainda não completamente.
Ele se afasta e anda até o outro lado do corredor, mudo e estoico.
Meus braços sentem frio com a ausência de seu toque. A dor é excruciante, mas fico feliz por ter
dito alguma coisa. Eu ficaria com essa dúvida para sempre, pensando estar roubando beijos que eram
para outra garota. Puxo a caixa de peltre para perto de mim, concentrando-me na inscrição da tampa
para impedir que as lágrimas quentes em meus olhos caiam. Se eu focar e desfocar através do borrão,
as letras se movem, formando um texto legível. Eu o percorro com a ponta do dedo e sussurro as
palavras:
“Eis a caixa linguardarte; a mais bela em seu interior repousa. Para libertar a dama e sua dor
aliviar, há que em seu fluxo penetrar. Um mar vermelho de laços de amor, pinte as rosas da
mesma cor, em finas pinceladas pelas mãos de um artista guiados. Uma troca de almas a porta
fechará, e para todo o sempre o sangue a selará.”
— É a chave para libertar a rainha se não foi você a pessoa que a aprisionou. — A voz em trinado
de Gossamer me tira da minha meditação. — Individualizada para o habitante da caixa. — Ela pousa
em meu ombro, então consigo vê-la de perto: a forma perfeita de uma mulher, de um verde dourado e
nua, exceto pelas escamas cintilantes nas partes estratégicas. Ela apoia as mãos na cintura. — Um
mar vermelho de laços de amor. — Seus olhos de libélula se acendem. — As rosas devem ser
pintadas com o sangue de alguém disposto a trocar de lugar com ela pela mais nobre das razões. O
amor deflagra a transferência.
A famosa cena de Lewis Carroll me passa pela cabeça — os guardas de cartas pintando as rosas
de vermelho no jardim para não serem decapitados. Que ironia! Neste País das Maravilhas, alguém
poderia perder a cabeça para sempre pintando as rosas sobre esta caixa.
— Então Morfeu não foi completamente sincero — digo. — Existe outra maneira de libertá-la e
abrir o portal. Não depende somente da pessoa que a colocou lá. — Jeb está parado atrás do meu
reflexo, com expressão convencida. Quase posso ouvir um “eu disse” emanando de seus olhos.
— Não é uma decisão assim tão fácil — diz Gossamer, ralhando, e depois decola do meu ombro,
as asas zunindo. — Uma vez que a troca seja feita, ninguém jamais poderá libertar a alma substituta.
O sangue produz um selo permanente, eterno. “Uma troca de almas a porta fechará, e para todo o
sempre o sangue a selará.”
— Então, o que você está dizendo — Jeb dá um passo à frente — é que tem que ser um amor
desapegado. O que Morfeu é incapaz de dar. Falta a ele esse tipo de coragem.
Gossamer bate as asas no ar, os braços cruzados sobre o peito. — Meu mestre tem grande
capacidade de coragem. Ele salvou minha vida uma vez. — Ela olha para a entrada do corredor e
para nós novamente. — Ninguém sabe do que é capaz até as coisas chegarem ao limite. É por isso
que a chave para abrir a caixa é a essência do coração. Lá dentro se encontra o poder mais potente
do mundo. — Suas palavras crípticas ficam pairando no ar.
Ela se agacha debaixo da mesa e tira o canivete de papai, deixando-o aos pés de Jeb. Ele coloca a
arma no bolso. Quero perguntar o que a fada quis dizer sobre a essência do coração, sobre o limite.
Quero perguntar como Morfeu e os solitários intraterrenos estão se saindo lá embaixo. Mas minha
língua fica presa no poema da caixa linguardarte e na reação de Jeb às minhas perguntas.
Gossamer faz com que fiquemos de frente para um dos espelhos, e toca o vidro com a ponta do
dedo. Os espíritos de mariposas desaparecem do plano intermediário, voando para outros espelhos
ao longo das paredes.
Com a palma da mão estendida sobre a superfície reflexiva, a fada dá início àquele mesmo efeito
estilhaçado que vi no espelho giratório em meu quarto. Uma longa mesa cheia de doces e xícaras de
chá aparece no espelho, colocada sob uma árvore à frente de um chalé de campo que tem o formato
de uma cabeça de coelho — completo com chaminés como orelhas e teto de pelos. Parece que o sol
sobrepujou a lua desta vez, porque a luz do dia resplandece sobre tudo em volta. Com uma chave
quase do tamanho de seu antebraço, Gossamer abre o portal, alisando o vidro.
O ruído forte de passos ecoa no corredor adjacente. A luta chegou aqui.
— Vão! — Gossamer comanda.
Jeb nem olha para mim e leva a mochila ao ombro, a face quase tão verde quanto a de Gossamer.
Pulo através do espelho, mais desesperada para escapar à minha dor e confusão do que de qualquer
coisa que o Rábido Branco e o exército Vermelho possam causar.
13
Chapelão
Minhas botas acabam pisando em um prato cheio de doces. Quando a tontura passa, levanto o pé e
sacudo um pouco de glacê.
Antes que eu possa explorar a mesa na qual me encontro, alguma coisa cai em cima de mim, vinda
de trás. Tropeço e caio de cara em uma torta recheada de suculentas frutinhas roxas.
— Al... Me desculpe. — Jeb me ergue pelos cotovelos, puxando minhas escápulas na direção de
seu peito. — Você está bem?
Recuso-me a responder pelo simples motivo de ele não ter especificado se era física ou
emocionalmente. Com a ajuda dele, consigo ficar de pé entre uma travessa de pão com manteiga e
uma tigela de violetas cristalizadas. Um pouco do recheio da torta decora minha boca.
Lambo os lábios e depois sacudo os dedos, tentando me livrar daquela coisa pegajosa.
Da ponta da mesa onde estamos, a paisagem que vimos refratada no espelho se descortina por
completo. O chalé em forma de coelho fica em uma colina — um oásis verde e luxuriante em meio a
um deserto. A distância, dunas de areia parecem um tabuleiro de xadrez — quadrados pretos e
brancos como aqueles em que sempre tropeço no meu pesadelo. Queria ter uma tela, pincéis e tinta
para captar essa vista distorcida para sempre.
Uma brisa balança minhas tranças, pássaros gorjeiam em uma amoreira acima de nós, e a luz do
sol me aquece os ombros. Me faz lembrar tanto de Pleasance que uma onda de saudade me invade.
Eu queria poder falar com papai; mais ainda, queria poder abraçá-lo.
É sábado. Pelo menos eu acho que é. Se eu estivesse em casa, papai estaria grelhando bifes. Eu
faria uma salada de frutas, porque estou encarregada de fazer com que ele coma refeições
balanceadas.
E se eu fracassar e não voltar mais para casa? Alison se culparia para sempre e mergulharia nas
profundezas para valer. O tratamento com eletrochoques só vai conseguir piorá-la. E papai ficará só
na cozinha comendo cereais frios, tendo somente sua dor como companhia. E ainda tem a mãe de Jeb
e Jenara. O emprego dele no Submundo ajuda a pagar as contas mensais. Elas dependem dele. O que
fariam sem ele?
Se eu fracassar, arruinarei a vida de todos.
Jeb — ainda atrás de mim — me oferece um guardanapo. Limpo o rosto e resmungo: — Por que
não aterrissou na outra ponta da mesa?
— Estava ocupada. — Jeb me vira.
Eu quase engasgo ao ver os convidados do chá da tarde — Herman Chapelão, a Lebre Careca e o
Camundongo — todos sentados na outra ponta e congelados sob uma camada espessa de gelo
azulado.
— O mariposão tem uma noção deturpada de “dormindo” — lança Jeb.
Morfeu tem uma noção deturpada de tudo. Balançando a cabeça, caminho na direção deles. Ao
passar pelo bule de chá, o vapor me atinge a canela, umedecendo meu legging. Chapelão e sua turma
estão suspensos feito geleiras, mas a comida parece fresca e o chá ainda está quente.
— Cadê aquela pimenta? — Estendo a mão. É esquisito trabalhar em equipe. Minha família está
no modo transtorno desde que eu me conheço por gente, mas pelo menos nos últimos anos eu posso
contar com a amizade de Jeb. Agora ela está por um estranho fio emocional; não sei se acredito nele
ou em Morfeu. Era mais fácil ficar possessa no mundo real, quando eu tinha certeza de que ele havia
escolhido Taelor.
Jeb tira o saco do bolso. Eu desato o laço, respirando pela boca. Não quero arriscar inalar aquilo.
Só o cheiro leve de pimenta no leque e nas luvas já era suficiente para me fazer espirrar.
Espirrar...
Deve ser o que Morfeu pretendia com este saquinho de tempero.
— Você não vai desperdiçá-la tentando fazer o cara do chapéu espirrar, vai? — pergunta Jeb. —
Ele é uma escultura de gelo. Não tem nenhuma abertura onde deveriam estar as narinas. E só temos
pimenta para uma dose. É melhor ter certeza.
É estranho como ele às vezes pode me ler tão bem, embora em outras seja tão distraído.
Fecho o saco e o devolvo. Ele tem razão. Nunca conseguiremos acordar Chapelão com pimenta.
Ele nem tem nariz. Eu me aproximo. Ele está segurando uma xícara de chá fumegante numa posição
em que parecia estar enfatizando uma afirmação.
— Jeb, tem alguma coisa errada com a cara dele. É só um espaço vazio. — O vazio de um cinza
azulado brilhante reflete minha imagem, mais perturbadora do que seria a expressão congelada de um
estranho.
— Talvez o gelo seja tão espesso que cobriu os traços dele — arrisca Jeb.
— Não sei. Mas olhe só o chapéu. — Poderia ser um instrumento medieval de tortura, uma parte
cartola e outra parte gaiola, feito de pinos de metal com uma aba com dobradiças e que se abre feito
uma tampa. Olhando bem, o metal parece crescer da cabeça dele, feito ossos. A gaiola penetra em
buracos na carne, como as peças de xadrez do quarto de Morfeu.
— Um conformador — diz Jeb, com a voz tensa. — Ele tem um conformador brotando da cabeça.
A maioria das pessoas não saberia da existência desse instrumento do século XIX usado para
customizar os chapéus para se moldarem aos vários tipos de cabeças, mas Jenara tem um em seu
quarto. Perséfone o encontrou em um leilão, e, sabendo que Jen adora coisas relacionadas à moda,
deu um lance baixo e acabou arrematando-o, porque ninguém sabia o valor do artefato.
A estrutura de tiras de metal se molda à circunferência da cabeça do cliente onde ficaria a aba do
chapéu, e os pinos adaptam-se à conformação do crânio. Um papelão oval é inserido na tampa de aba
e pressionado no lugar da coroa, fazendo com que os pinos façam buracos na forma da cabeça. Ele
forma um molde que o chapeleiro pode usar para fazer um chapéu customizado para aquele
indivíduo.
Por que este aqui está fisicamente ligado ao crânio de Herman está além de minha compreensão, e
eu nem quero imaginar como ele o usa em seu trabalho.
Concentro minha atenção em seu rosto refletivo e volto-me para a “lebre”, que é demasiado
hedionda. Em boa parte porque parece ter sido virada do avesso — não tem pelo, só carne mortiça.
É como olhar para um coelho esfolado. Mas pelo menos ela tem uma cara. Sua expressão é demente,
com um lampejo selvagem nos olhos brancos. Uma xícara de chá está equilibrada em cima de um
doce em seu prato. Sua pata está enfiada na xícara de chá a partir do pulso, como se estivesse
embebendo algo.
Dos três convidados, o Camundongo é o único que parece normal. Se é que um camundongo
vestindo um casaco de porteiro pode ser considerado normal.
— Não sei como resolver isso — digo. — Eles estão todos congelados, então como vamos fazê-
los espirrar com uma pitada de pimenta?
Jeb balança a cabeça. — Vamos ver o livro. — Ele anda ao redor da mesa se esquivando e passa
para uma cadeira vazia. Empurrando para o lado um vacilante carrinho de chá de três andares, ele
pisa na grama. — Vem cá — diz ele, me chamando para pegar sua mão enquanto ele se senta à mesa
e acomoda a mochila ao seu lado.
Permito que ele me ajude a descer, mas me liberto no instante em que meus pés tocam o chão.
Secando o resto de suco de amora do meu rosto com um guardanapo de tecido, verifico minhas
roupas para ver se estão limpas. — Estou com fome. — Que nada. Estou morrendo de fome. Nem me
lembro da última vez que comi alguma coisa.
— Bem, não devíamos comer essas coisas. — Jeb aponta para a mesa posta. — Quem sabe o que
isso poderia fazer com a gente? — Ele encontra uma barra de cereais na mochila e me dá metade,
indicando uma cadeira vazia ao seu lado. Em vez dela, sento-me em outra dois lugares adiante. Ele
me olha com firmeza enquanto comemos; os únicos sons são o farfalhar da embalagem, os pássaros e
a brisa.
Evitando seu olhar, conto as listras pêssego e cinza do meu legging. Minhas pernas estão
começando a parecer pirulitos. Pirulitos doces e gostosos.
Fico com água na boca.
O que há de errado comigo? Preciso ajudar Jeb a descobrir uma saída, mas só consigo pensar em
comida.
Depois de engolir o último pedacinho da barra, a fome ainda não passou. Me lembro do gosto bom
que aquela coisa roxa tinha e desejo nunca ter caído nela, para começar.
Por outro lado, deve ter sido hilário de assistir. Eu me vejo tropeçando e caindo na torta e dou
uma risada bem alta.
— O que é tão engraçado? — pergunta Jeb. Ele está com o romance País das Maravilhas aberto no
colo e joga o resto da barra dentro da boca.
— Nada. — Outro ataque de riso me toma. Este é tão forte que mordo o interior de minhas
bochechas para não ceder.
Alheio, Jeb vira as páginas. — Aqui diz no capítulo sete que o Rato ficava pegando no sono
durante o chá e o Chapeleiro jogou chá quente no nariz dele para acordá-lo. A passagem está
sublinhada, então talvez seja uma dica. O que acha?
— Acho que o Camundongo deve ter bom faro para chá. — Bato a mão na boca, envergonhada
pelo comentário sem sentido.
— OK. Chega de fingir que está tudo bem. — Jeb coloca o livro dentro da mochila junto com a
embalagem. Ele chega perto de mim e pega meu queixo, levantando-o para que eu o encare. — Você
acha mesmo que eu estava fingindo quando te beijei?
Um estranho desejo de brincar brota dentro de mim, completamente inadequado para a seriedade
da situação. — Há-há-há, cavaleiro élfico. — Afasto o queixo e fico de pé, coquete, frívola, e
totalmente nada a ver comigo. — Você não deve tocar na minha preciosa bundinha, lembra? Afasta-te
de mim, Jebbeth. — E viro as costas para ele.
Ele me pega pelo cotovelo. — Quer olhar para mim, por favor?
Puxo o cotovelo e me liberto, pulando sobre o carrinho de chá para o outro lado da mesa, de modo
que os arranjos da mesa formam uma barricada entre nós. À minha esquerda está o Camundongo. Ele
é do tamanho de um hamster, mas sua cauda fina é peluda como a de um esquilo e coberta de gelo
branco. Há travesseiros empilhados em sua cadeira, para erguê-lo à altura da mesa. Sua cabeça
descansa ao lado de uma xícara de chá quente cheia até a metade. Ele deve ter congelado enquanto
cochilava.
Inclino-me para perto de suas orelhas — prateadas de gelo e alongadas. — Não o culpo por
dormir a vida toda — sussurro para ele. Jeb está boquiaberto, como se eu fosse de Marte. — Queria
ter dormido as últimas horas da minha.
A expressão de Jeb despenca, e sei que o magoei. Não foi minha intenção. Sinto-me tudo menos
rancorosa. Além de estar faminta, estou extravagante, insensata e desinibida. É muito libertador.
— Al, vamos lá. Não quero que as coisas fiquem desse jeito... Não entre a gente. — Jeb começa a
contornar a mesa e eu estou prestes a disparar numa corrida, pensando que um bom pega-pega seria
divertido, quando ouço alguém fungando. É tão suave que a princípio penso que é o rumorejo das
folhas acima de nós. Depois, vejo o nariz do Camundongo se retorcer. É brilhante, úmido e rosa,
como uma bolinha de glacê de morango. Estou quase o arrancando e comendo quando Jeb chega por
trás de mim.
O Camundongo funga novamente.
— O que você acha, Jeb? Uso a pimenta para acordá-lo? Ele pode ser nosso parceiro. Vamos
chamá-lo de Skittles, que nem a bala. — As coisas que saem da minha boca não têm sentido nenhum,
mas não consigo detê-las. Não mais do que consigo deter o ronco colossal de meu estômago que vem
a seguir.
Me olhando com uma careta incomodada, Jeb senta-se ao meu lado e retira o saquinho da mochila.
— O nariz dele deve ter descongelado por causa do chá.
Não consigo me concentrar em nada a não ser meu corpo. Minha pele coça, como se eu precisasse
fazer alguma coisa. Subo na cadeira, dela para a mesa, chutando alguns pratos para o lado.
— Al, que diabos...?
Uma música toca na minha cabeça... E não é o acalanto de Morfeu. Algo com uma batida sensual e
viciante. Sacudo os quadris para a frente e para trás. Os rubis em meu cinto cintilam, e os anéis
balançam — estilo dança do ventre. Eu nem sabia que podia me mexer assim. Deve ser por causa de
todos aqueles anos que brinquei de bambolê com a Jen.
Os olhos de Jeb parecem que vão saltar das órbitas... E também as veias em seu pescoço. Ele faz
um som — algo entre um pigarro e um gemido —, magnetizado pela ginga em meus quadris. Depois
se levanta. — Quer descer daí? Você ainda vai se machucar.
— Não. Sobe aqui comigo. — Levanto os braços sobre a cabeça e jogo a pelve de modo sedutor.
— É uma dança para acordar o Skittles. Sabe, que nem os índios americanos faziam para chamar
chuva.
Jeb está boquiaberto. — Duvido que os índios se mexessem desse jeito.
Sentindo o ritmo pulsar em cada pedacinho de meu corpo, visualizo as correntes do cinto de Jeb
dançando com a música, imagino espirais de energia correndo pelas argolas, induzindo movimento.
Com a ponta de um dedo, faço um sinal, chamando-as.
— Ei... Ei, espere! — A corrente de Jeb dá uma guinada, forçando-o a subir na cadeira. Ele tenta
agarrar as argolas com as mãos, mas elas se libertam, puxando-o até ele subir na mesa e ficar na
minha frente.
Agarro seus quadris, convidando seu corpo a gingar junto do meu. Agarrada a ele, fungo em seu
pescoço, distribuindo beijos sobre sua pele macia enquanto penteio seu cabelo com meus dedos. Seu
rabo de cavalo se solta. — Você tem um gosto tão bom que dá vontade de comer — eu sussurro.
As correntes se enrolam na perna dele, apertando. Retesando-se todo, ele as agarra. — Co... Como
você está fazendo isso?
Eu rio, correndo minhas mãos sobre seus bíceps e peito. — Morfeu me mostrou como eu poderia
animar objetos. Não é espetacular?
Estou me concentrando tanto em apreciar os músculos dele que isso quebra minha conexão com as
argolas de metal. Assim que Jeb se liberta, pula para o chão e me desce também. Me jogo na cadeira,
dando risada, enquanto ele segura minhas duas mãos cruzadas sobre o meu peito.
— Você está me assustando, Al. Pare com isso.
— Parar com o quê? — Liberto uma mão e, com um dedo, percorro sua camisa até embaixo,
seguindo o limite do tecido preto sobre seu umbigo gostoso e parando para agarrar sua cintura.
Um músculo no queixo dele salta.
Eu ronrono. — Você é viciado em controle, Jeb. Seu mundo vira de cabeça para baixo quando a
pequenina Alyssa não está tropeçando em seu cinto de castidade. Não é isso, garotão? — Dou um
tapinha no botão que fica no alto de sua barguilha.
— Uhhh...
— Por que você não acorda o Skittles e depois nós vamos para casa e fazemos uma festinha de
verdade? — Estou sorrindo tanto que meu rosto dói — um sorriso provocativo, gozador. Por alguma
razão, não consigo parar.
— Você precisa parar de me olhar desse jeito — diz Jeb com a voz áspera.
— E se eu não parar? — Sinto uma comichão tão forte nas entranhas por saber que ele está
confuso. Por saber que eu provoquei isso.
Engolindo em seco, ele tira novamente o saquinho de pimenta. — Casa. Muito bem. Pode ser que,
se a gente acordar o Camundongo, os outros também acordem.
— É! Que comece o chá! — Aí, finalmente, vou poder comer alguma coisa. Rufo um tambor na
borda da mesa usando meus indicadores.
Jeb lança mais um olhar perplexo na minha direção. Me delicio ao ver que sou capaz de tirá-lo do
sério. Como quando seu sangue ficou verde por causa de Morfeu antes. Nunca conheci nenhuma
garota que controlasse Jebediah Holt. Seria o máximo ser a primeira.
Uma vozinha dentro de mim tenta sair, tenta me lembrar de que aquela não sou eu... Que eu não
diria essas coisas, não para Jeb — a quem eu não gostaria de ver sofrer. Algo está errado, e eu
deveria contar para ele poder ajudar ou pelo menos se defender. Mas a fome dentro de mim esmaga
minha consciência. É mais do que o desejo por comida. Estou faminta de poder também. Poder para
fazer o cara que eu quero se ajoelhar. Fazê-lo pagar por não me querer de volta.
Com um olho em mim e outro no saco de pimenta, Jeb o coloca no nariz do Camundongo. A
pequenina criatura inala com força. Um espirro se forma, e irrompe como um soluço. Sua cobertura
gelada se espatifa. Nacos de gelo deslizam de sua pele marrom e casaco vermelho enquanto ele se
ergue para coçar o nariz.
No momento em que nos vê, ele se esconde atrás de sua xícara de chá. Arriscando uma olhadela,
ele pisca os olhinhos em nossa direção. Parecem gotas de chocolate. Aquela fome selvagem me
revolve novamente.
Babando, jogo-me em cima da mesa.
— Epa! — O Camundongo solta um guincho estridente ao escapulir de seu esconderijo.
— Al, pare. Precisamos da ajuda dele. — Jeb tenta me agarrar pelos tornozelos, mas eu sou mais
rápida.
Empurrando travessas e pratos para os lados, arrasto-me atrás do Camundongo enquanto ele foge
aos pulinhos para perto de seus amigos, com a cauda sacudindo. Ele derrapa e para quando percebe a
condição deles. Com os bigodes murchos, ele se vira para olhar para mim.
— Senhorita Alice, tem que acordá-los! — guincha ele. Hesitante, seus pezinhos andam para trás.
— Você não é a Senhorita Alice. — Ele leva as patinhas à cara e me encara. — Você é muito mais...
— Faminta. — Agora entendo a preocupação do octobenus com seu estômago; intimamente. Estalo
os lábios e dou uma guinada para a esquerda a fim de escapar da tentativa de Jeb de me pegar pela
cintura. Minha mão vai parar em uma torta, e sacudo o glacê grudado nela. Tenho os olhos cravados
na isca viva.
O Camundongo recua, guinchando nervosamente. Pequeninas mãos com garras procuram os
bigodes, colando-os debaixo do queixo. Ele está quase caindo dentro da torta na qual eu aterrissei, e
estou torcendo para que isso aconteça. Eu adoraria uma fatia de torta de rato neste momento.
Jeb pisa em uma cadeira e pula para a próxima, no meu encalço. — Escute, pequenino. — Ele fala
suavemente com o Camundongo. — Eu a impeço de comer você se você nos ajudar a acordar os
outros. Você se lembra como Alice fez com que adormecessem?
O Camundongo enrola a cauda em si mesmo, abraçando-a. — Ela deixou o relógio cair na xícara
de chá. — Ele me analisa com cautela do meio da mesa, dando um passo na direção da torta roxa.
Sento com os joelhos dobrados e cravo as unhas nas rótulas para me distrair do estômago. De
olhos fechados, concentro-me no livro. Os detalhes da história são obscuros, mas lembro-me de uma
discussão sobre o funcionamento interno do relógio de bolso do chapeleiro. Alguma coisa a ver com
a lebre passar manteiga... manteiga. Balas amanteigadas, creme de manteiga, biscoitos amanteigados.
Solto um grunhido e bato o punho na mesa, fazendo tremer a prataria e os pratos e provocando
grande dor no meu braço, que faz minha mente voltar a engrenar. Engrenar! É isso — a lebre
colocou manteiga no mecanismo com uma faca de pão e emporcalhou o seu interior com migalhas de
pão. Na versão que consta no livro País das Maravilhas, foi por isso que a Lebre de Março largou o
relógio dentro do chá — para lavá-lo. Mas talvez não tenha sido ela quem mergulhou o relógio. Ela
poderia estar tentando tirá-lo de lá. Ao submergi-lo, Alice suspendeu o mecanismo e congelou os
convidados no tempo. É isso que eu preciso consertar. O mecanismo. Eu só preciso secá-lo e colocá-
lo em movimento.
Abro os olhos e Jeb está bem distante de mim, com o livro nas mãos. Ele já está ao lado do lugar
da Lebre Careca. Jeb entorna a xícara de chá com cuidado para não quebrar a pata congelada do
coelho. Eu me arrasto até lá enquanto o chá respinga sobre os doces no prato. O relógio de bolso
emerge, arrastando sua corrente. Jeb abre a tampa. — Parou às seis horas.
— Hora do chá! — O Camundongo chilreia com excitação, batendo palmas. Seu entusiasmo o faz
cair para trás, dentro da torta amassada.
Meu foco dura somente o tempo suficiente para que eu pegue o relógio de Jeb, seque seu
mecanismo, mova os ponteiros para um minuto depois das seis e o rebobine. Me perco de todos os
pensamentos racionais depois disso, porque o rato trepa na borda da torta, comendo as frutinhas e
pingando calda roxa.
Uma deliciosa calda roxa.
A saliva goteja do canto da minha boca. A fome insaciável que eu vinha reprimindo explode. Não
sei mais onde estou. Na minha cabeça, o Camundongo é aquele pato assado do banquete e ele está no
papo.
Jogo o relógio, quase nem ouvindo o ruído do metal. Num pulo, fico de pé e começo a caçada.
Minha presa mergulha atrás dos doces e abre túneis através dos pães, conseguindo me despistar toda
vez que estou perto dela. Patino em pratos, escorrego em travessas e derrapo em bolos. Nem mesmo
percebo que Jeb está no meio da mesa até ele me pegar e me derrubar, seu peso sólido nas minhas
costas. — Al, pare! Você ficou louca?
Como um animal, rosno e arranho a toalha de mesa até ela rasgar com as minhas unhas.
— Al. — A respiração de Jeb no meu pescoço é quente. — Volte para mim. Seja minha menina do
skate de novo.
Minha menina do skate. A súplica carinhosa quase me traz de volta.
Quase.
Talvez seja a adrenalina, ou talvez seja um demônio que me possuiu quando eu caí naquela torta e
provei daquele troço roxo... Mas alguma coisa me dá força suficiente para empurrar Jeb de lado
como se ele fosse um graveto. Ele rola para fora da mesa com um grunhido e eu agarro aquela delícia
pegajosa de rato que se debate sem parar. Uma calda roxa me escorre dos dedos para minhas luvas.
Estou prestes a dar uma mordida em sua cabeça quando sou guinchada por trás, e ele escapa.
— Me coloque de pé! — rosno, com uma explosão momentânea de força sobre-humana
praticamente terminada.
Alguém me deita de costas e me gruda no lugar. Minha visão fica turva e quase não consigo
distinguir as duas formas que se inclinam sobre mim.
— Ela provou o suco do fruto da Árvore Tumtum — diz a silhueta usando o chapéu de gaiola numa
voz que varia entre o tenor e o alto. — Ela tem que comer as frutas inteiras, senão vai ficar maluca.
— A pessoa então explode em gargalhadas tão altas e absurdas que parece uma hiena num pula-pula.
— Ah, mas... Ser maluco não é tão ruim — entoa a sombra com longas orelhas, acrescentando sua
gargalhada à mistura. — Podemos deixar que ela coma a gente. Abra a boca dela que eu entro.
Sempre quis ver um estômago por dentro.
Uma pata entra na minha boca e a segura, quase me sufocando. Eu lhe dou uma mordida. O intruso
a puxa e eu cuspo o gosto de carne chamuscada.
— Ela morde!
Risos e uivos explodem em todo canto.
— Afastem-se dela! — A explosão de Jeb os deixa mudos. Ele afaga meu cabelo para me acalmar,
o que tem o efeito oposto. Estar perto dele faz com que a fome perfure meu estômago — como um
espinheiro plantado bem fundo.
Não há nada engraçado sobre a maneira como me sinto agora. — Jeb, por favor! Estou com muita
fome! Me alimente ou vou morrer!
— Está bem, está bem... — A voz dele titubeia e percebo que eu o coloquei de joelhos.
Meus intestinos queimam como se formigas de fogo o consumissem. Fecho os olhos, mas ainda
consigo sentir cheiro de comida — em todo lugar.
Depois de um intervalo que pareceu uma eternidade, algo acolchoado e frio roça meus lábios.
Abro a boca, gulosa, e engulo todas as frutinhas que cabem lá dentro. Elas explodem em minha
língua, suculentas e deliciosas. Engolindo, imploro por mais.
Cinco bocadas depois, consigo me concentrar e não tenho mais dor.
Sento-me, piscando para os convidados do chá que se acomodaram no outro canto da mesa. O
coelho está preocupado com o relógio de bolso, secando-o com um guardanapo e distribuindo
desculpas para o Pai Tempo. Seus olhos brancos cintilam como bolas de gude quando ele sorri, sua
boca sem lábios revelando três dentes amarelos e tortos. O Camundongo está tomando banho em uma
xícara de chá, seu uniforme manchado esparramado sobre o pires. E Chapelão — ele realmente não
tem rosto. Ora é parecido com o rato, ora com o coelho, como se alguém estivesse mudando de canal
entre eles.
Jeb se inclina sobre a mesa. — Você está bem? — Ele parece preocupado.
Sinto-me mortalmente culpada pela maneira como quis puni-lo. — Eu estava...
— Desinibida e impulsiva. E como!
Olho para os pratos quebrados e a comida esmagada à minha volta. — Eu tenho um outro lado,
Jeb. E não tenho certeza se ele tem a ver com a maldição. Acho que esse lado pode ter estado sempre
comigo.
Ele junta nossas mãos. — Tudo bem que você tenha um lado meio ruim. Eu também tenho. Assim,
nós formamos um grande par. — Ele me ajuda a sair da mesa, envolvendo os braços na minha
cintura. Quando ele beija a minha testa, seu piercing aperta o ponto entre minhas sobrancelhas, frio e
reconfortante.
Eu me afasto. — Então, você não estava fingindo quando disse que queria ficar comigo e não com
a Taelor. Isso... Nós... É real?
O polegar e o indicador dele me beliscam o lóbulo da orelha carinhosamente. Ele está tão quieto e
pensativo. Temo que ele não responda.
Respirando fundo, ele olha para baixo. — Eu namorei a Tae... Para tentar não pensar em você.
Esperando que ela tirasse você de dentro de mim. O mesmo aconteceu com o lápis e o caderno de
desenho: não funcionou. E depois eu não tinha certeza de que você sentia o mesmo. E, se você sentia,
eu tinha medo de... — Jeb estuda as queimaduras de cigarro nos braços através das listras
transparentes de suas mangas.
— Continue ... — pressiono.
— De despejar minha carga em alguém tão doce quanto você.
Não consigo controlar um sorriso. — Uau, nossa.
— O quê?
— Acho que nós dois não tínhamos consciência. Foi por essa razão que escondi meus sentimentos
de você.
— Porque eu sou doce? — Aquele sorriso de garoto, com a covinha, se abre para mim.
Correndo os dedos pelo seu cabelo desgrenhado, dou risada. — Eu não queria arrastar você para a
loucura da minha família.
Um chocalhar de pratos faz tremer o outro lado da mesa, onde o Camundongo e a lebre brigam por
uma colher, ambos tentando ver seu reflexo na prata.
Jeb pega no meu queixo, recobrando minha atenção. — Escute, eu nunca quis magoar a Tae. Ela já
passa o diabo com o pai. Mas, quando ela veio me buscar para o baile de formatura, nós terminamos.
Eu disse para ela que tinha acabado... Que nós devíamos terminar. Eu não ia dizer nada antes do
baile porque ela me pediu. Ela já tinha comprado o vestido e eu tinha alugado o smoking, entende?
Mas ela sabe da verdade. Que, para mim, só existe você, Al. Só você.
São as palavras mais lindas que já ouvi em toda a minha vida. Meu estômago está esquisito, como
quando eu era criança e o carrossel do playground parava de girar e eu ficava lá olhando o céu que
rodava — tonta, feliz e extasiada — até que o mundo voltasse a ficar perfeitamente claro. — Ah, Jeb.
Ele levanta a minha mão e beija meus dedos. O piercing em seu lábio brilha na luz, me lembrando
dos olhos com joias de Morfeu. Odeio ter permitido que ele metesse dúvidas na minha cabeça sobre
o cara mais leal que já conheci. Não posso deixar Morfeu me influenciar novamente — nunca mais.
— Para mim também só existe você. — Entrelaço meus dedos nos de Jeb. — Me desculpe pelas
coisas que eu disse no Corredor dos Espelhos. E por ter mentido para você sobre a bolsa da Taelor...
E ter roubado....
— Shhh. — Ele se inclina para me beijar, tão terno e doce que tudo mais desaparece ao seu toque.
— Vamos esquecer tudo isso. Exceto uma coisa — sussurra ele em meus lábios. — Quando
voltarmos para casa, você faz o truque da corrente? Aquela dança na mesa foi muito sexy. — Ele
grunhe.
Eu rio, estremecendo com a vibração ardente em seu peito. Ele também ri, e depois puxa meus
quadris para si e beija minhas orelhas, minhas têmporas, meus lábios — me mergulhando em mil
sensações diferentes, todas tão deliciosas que quase esqueço o que ainda tenho que fazer.
Desfaço nosso abraço. Os olhos semicerrados e questionadores de Jeb me olham. — Já volto —
digo. Tiro minhas luvas emporcalhadas, jogo-as de lado e pulo na mesa, parando ao lado de
Chapelão. — A espada vorpal. Alice a trouxe para você antes de ser congelado. Precisamos dela.
A tela plana do rosto dele pisca, mostrando o meu reflexo e em seguida o de Alice. O efeito é
horripilante, como uma tela de cinema alternando entre duas eras diferentes. Jeb aproxima-se, e
espera.
— Espada? — Chapelão olha para seus dois companheiros. — Algum de vocês lembra de algo
sobre uma espada? — Todos eles caem na gargalhada, um som que me deixa atordoada.
— Talvez você a tenha engolido, Herman — diz a lebre, resfolegando. — Abra a boca e vamos
olhar.
— É melhor acender uma tocha — o Camundongo guincha. — Lá dentro é escuro e vasto como um
desfiladeiro.
Mais risadas e gritos.
Jeb pega a lebre pelas orelhas e a segura acima da mesa, pondo um fim ao festival de risos. Ele
aponta para Herman e o Camundongo. — Um pouco de cooperação os ajudaria muito a ficarem com
suas peles.
O rosto de Chapelão lampeja à imagem de Jeb. — Está falando com a pessoa errada, sua marmota.
— Ele olha para a amoreira acima de nós. — Alguém mandou vocês para uma caçada ao pato
selvagem. Quer saber quem?
Um farfalhar de folhas e Morfeu aparece no alto da copa. — Seria eu? — intervém ele com um
riso forçado.
14
Gaiolas
Faço sombra nos olhos para olhar para Morfeu, com um nó de raiva se formando no peito. Jeb tinha
razão. Ele só faz nos enganar. — Você mentiu.
Seu sorriso se desfaz e Gossamer, debaixo do cabelo dele, estica a cabeça para olhar. — Eu
estava mal-informado — diz ele.
O corpo inteiro de Jeb fica visivelmente tenso. — Mal-informado? Você mandou a Al para cá, a
colocou em perigo porque estava mal-informado?
Desço da mesa, passando os dedos nos músculos trabalhados de suas costas para acalmá-lo.
Morfeu abre mais um sorriso forçado de seu poleiro no alto da árvore — régio e pomposo com as
asas abertas bem alto, um fundo de cetim macio protegendo seu rosto pálido do sol. — Foi besteira,
eu sei. Tomei boatos como verdade. Eu estava no meu casulo quando a pequena Alice escapou com a
espada. Eu mesmo não vi o que aconteceu. Eu ouvi por aí que ela chegou aqui com a espada. Mas
agora eu soube da verdade. A espada ficou escondida este tempo todo no próprio castelo Vermelho...
Guardada pelo bandersnatch.
— Certo. — A voz de Jeb sai sufocada pelo autocontrole forçado. — E nós temos que aceitar sua
palavra.
— Meu espião só soube disso hoje. Alyssa acredita em mim, não é? — Morfeu desvia seu olhar
de mim.
Eu não respondo. A verdade é que não confio nele.
— Tome o silêncio dela como um não, insetão. — Jeb está concentrado na copa.
— Nenhum de vocês está ao menos curioso sobre a batalha que travei para mantê-los a salvo?
Lamento a ingratidão. — Morfeu estica as luvas enquanto Gossamer voa em torno de seu casaco,
verificando os rasgos. As roupas dele estão amassadas e danificadas, até mesmo com fuligem em
alguns pontos. Ele perdeu seu chapéu, e seu cabelo está completamente emaranhado. — Tive que
incendiar a sala de jantar para colocá-los para fora. Mas eles logo se espalharão por todo o País das
Maravilhas atrás de você. A Rainha Grenadine planeja dar um jantar e está determinada a revelar um
novo animal de estimação que divertirá seus convidados.
Os ombros de Jeb se impacientam debaixo de minha mão. — Animal de estimação?
— Grenadine deseja um substituto para Alice há décadas. Um pássaro engaiolado, por assim
dizer. — Tendo jogado essa bomba, Morfeu dá um gracioso salto e pousa na mesa, perto de
Chapelão e companhia. — Que bom ver vocês novamente. Como foi a soneca?
Os três intraterrenos saúdam Morfeu com abraços e apertos de mão.
Tomo a mão de Jeb, com o pulso acelerado. — Você se lembra do relatório psiquiátrico? Alice
disse ao terapeuta que passou 75 anos em uma gaiola no País das Maravilhas. Mas ela deve ter
voltado. Ela se casou e teve uma família. Caso contrário, eu não existiria. Certo?
Ele me puxa para perto. — Não sei o que está acontecendo. Mas precisamos tirar você daqui
depressa.
— Agora a maldição já está quebrada — digo, embora não me sinta nem um pouco diferente.
Morfeu parece alheio à nossa urgência. Ele dá tapinhas no conformador do Chapelão. O
homenzinho de cara insossa chega somente à altura de sua coxa. — É ótimo tê-lo de volta entre os
vivos, Herman. Necessito desesperadamente um novo Chapéu da Lisonja.
— Posso fazer! — A tampa da engenhoca do chapeleiro se fecha. Sua estrutura óssea e crânio se
contorcem e entram no lugar enquanto os pinos de metal rangem e se moldam em volta de sua cabeça
até que ele e Morfeu pareçam um par de bonecas Matrioshka.
É por isso que ele é o melhor chapeleiro do reino. Ele se torna a cabeça e o rosto de seu cliente
até terminar um projeto, produzindo o ajuste perfeito. Como deve ser isso? Nunca ter uma identidade
própria. Não é de estranhar que eles o chamem de maluco.
— Quiçá goste de um chapéu coco? — arrisca Chapelão, tateando suas maçãs do rosto
temporárias. — Tenho um ótimo feltro vermelho em casa.
— Hum... — Morfeu limpa a fuligem de sua lapela. — Eu estava pensando em fazer de entretela.
— Ei! — Jeb bate o punho no nosso lado da mesa. O grupo se volta para nós. — A Al está
correndo o risco de se tornar o periquito humano de alguém. Ela já terminou o que veio fazer aqui.
Cumpriu as exigências para quebrar a maldição. Agora precisamos voltar para o nosso mundo. E isso
é para ontem.
— Ontem, você disse? — gorjeia o chapeleiro, em seu timbre vacilante. — Ontem é exequível.
Gargalhando, a lebre bate no joelho e acrescenta: — Mas dois ontens seria impossível.
O Camundongo dá um risinho maroto e veste seu uniforme. — Não, não! Você pode retroceder
quantos ontens quiser. Pode andar de volta até o começo da sua vida.
Todos eles se curvam, com as mãos nas costelas de tanto rir histericamente. A falta de sobriedade
deles me espanta, e Jeb parece que vai surtar a qualquer instante.
Com um bater de asas, Morfeu pousa na grama ao nosso lado. Gossamer está aninhada em seu
cabelo. — Tenho mais notícias ruins quanto a sua partida.
Jeb fecha a cara. — Como pode ficar pior?
— Quando o exército Vermelho atacou a minha casa, eles encontraram a caixa linguardarte e a
levaram. Ela já não está mais sob minha proteção, e, sem a Rainha de Marfim, seu portal
permanecerá fechado. Isso torna ainda mais imperativo que peguemos a espada e derrotemos
Grenadine e seu rei.
Jeb avança para perto de Morfeu. — E como você propõe que nós os derrotemos se a espada está
no castelo deles sob a guarda de algum cachorro mutante?
Agarro o ombro dele por trás, lembrando-o de se controlar. Morfeu é nosso único aliado, não
importa as táticas detestáveis que ele use.
— Nem tudo está perdido — diz Morfeu. — Chessie pode dominar o bandersnatch, posto que sua
outra metade habita dentro da fera. — Ele coça os pezinhos balouçantes da fada. — Vocês vão pegar
a cabeça de Chessie para mim. Ele terá controle total, e eu poderei roubar a espada, derrotar
Grenadine e depois mandar vocês dois para casa pelo portal que quiserem, Vermelho ou Branco.
— Não! — dispara Jeb, num movimento tão rápido que quase desloca meu braço. Ele pega Morfeu
pela camisa rendada e o ergue até ele ficar na ponta dos pés e as asas arrastarem no chão. Gossamer
se pendura em um cacho do cabelo azul. — Isso é uma manobra para dar mais uma “tarefa” para a
Al, não é? Mais um teste. O que eu quero saber é para que ela está sendo testada? O que acontece
quando ela passar em todos?
Arrogante, Morfeu bate de leve em cada um dos dedos de Jeb, como se tocasse uma flauta. — Ah,
Gossamer tem falado demais, não? Ninfa ciumenta. — A fada foge do ombro dele e chispa para a
árvore acima de nós. — Sabe, nunca se pode confiar em uma mulher com pele verde. Pergunte a
qualquer homem que teve uma ressaca de absinto. — Morfeu olha para mim. — Tudo o que eu
sempre quis foi libertar Alyssa e mandá-la de volta para o lugar dela.
— E onde seria isso? — Jeb coloca a cabeça na minha frente, de modo que Morfeu tem que olhar
para ele.
— A casa dela, é claro. — As joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficam claras e cintilam
feito líquido, traduzindo a sinceridade de lágrimas reais. — Nada me agradaria mais do que pegar a
cabeça de Chessie eu mesmo. Mas, em razão de nosso mal-entendido com relação aos espíritos de
mariposa que abrigo, as Irmãs Twid e eu não estamos nos dando muito bem. Elas não me deixam
pisar e nem voar perto do portão delas.
— Espere. — Dou um passo à frente. — O que isso tem a ver com o cemitério?
— É lá que reside a cabeça de Chessie — responde Morfeu. — Por estar tecnicamente
“parcialmente” morto, lhe foi possível buscar conforto lá. Então a solução é simples: salvar o gato
para dominar o bandersnatch, libertar a Rainha de Marfim com a espada e depois vocês vão para
casa.
— Que bobagem. — Jeb dá um empurrão em Morfeu. Suas asas intraterrenas se abrem por
completo, mantendo seu equilíbrio antes que ele caia sobre uma cadeira. Gossamer mergulha das
folhas, pairando sobre ele.
Jeb pega minha mão. — Deixe que outra pessoa vá atrás do gato. A Al corre perigo aqui.
Precisamos nos esconder até podermos chegar em casa. Ela fez tudo que você pediu. A maldição está
quebrada, certo?
Morfeu olha para mim, não para Jeb. — De que vale a maldição quebrada se não puderem voltar
para casa? Se Alison nunca mais puder ver sua filha, ficará pior do que está agora. A insanidade dela
não será mais uma encenação.
Estremeço. Morfeu está certo. Alison nunca se perdoaria se eu me perdesse por sua causa.
Morfeu olha para trás, onde a turma do chá discute para ver quem vai beber a água em que o rato
se banhou na bota da lebre. O canto de sua boca franze. — O jardim interno é sagrado para a nossa
espécie. Somos proibidos de andar sobre aquele chão. Só posso enviar vocês.
Aperto a mão de Jeb, odiando o que vou dizer em seguida. — Então não temos escolha. Nós
vamos.
Jeb aperta meus dedos contra seu peito. — Não. Eu vou. Você volta voando com o meleca de
inseto.
— Naturalmente — interrompe Morfeu, a voz variando entre o sarcasmo e a insinuação. — Terei
prazer em levar Alyssa de volta comigo. Podemos retomar de onde paramos em meu quarto, certo,
querida?
Faço cara feia.
Jeb me empurra para o lado, saca o canivete suíço e pressiona a lâmina contra o esterno de
Morfeu. — Uma ideia melhor. Devolva o desejo para a Al... Agora.
Meu estômago dá um nó. — Jeb, eu não vou embora sem você.
— Não se trata disso. — Ele leva a lâmina até a garganta de Morfeu. — Você pode desejar nunca
ter vindo. Você ainda seria o sujeito do desejo, e isso tirará nós dois daqui. Eu nunca teria vindo se
não tivesse visto você pular para dentro daquele espelho.
Ele tem razão. Funcionaria. O único problema é que eu terei feito isso por nada. Alison ainda faria
o tratamento com eletrochoques e minha família seria amaldiçoada novamente porque eu nunca terei
vindo aqui para consertar as coisas.
— Dê a ela — diz Jeb —, ou ela vai ter uma mariposa tamanho família para usar na próxima obra
de arte. Entendeu?
Gossamer voa sobre o rosto de Jeb, num frenesi de asas. Sua distração dá a Morfeu a chance de
pegar o pulso de Jeb e dominá-lo. — Eu não estou com o desejo — diz ele, fervendo de raiva. — O
desejo se esvaiu quando eu tentava salvar suas miseráveis vidinhas e agora está nas mãos do Rábido
Branco.
Jeb torce o braço e se liberta. — Mentiras.
— Não importa — responde Morfeu, observando Jeb com cautela. — Alyssa não o usaria de
modo tão prosaico. Do contrário, sua família sofrerá para sempre a maldição que ela arriscou a pele
para quebrar.
O calor do olhar cúmplice de Morfeu é mil vezes pior do que os holofotes dos mineiros de
Submundo, e não há como esconder minha alma desnuda. — Ele tem razão.
Jeb olhar para mim. — Você deve estar brincando. Sua mãe não iria querer que você corresse
perigo!
Olho para minhas botas. — Por que estamos falando nisso? Ele disse que não está com o desejo
mesmo.
O riso de Jeb tem uma pitada de veneno por trás. — É incrível. Você continua um joguete nas
mãos dele. — A expressão dele endurece. — Você sabe o que eu faria se tivesse um desejo? Eu
desejaria que você confiasse em mim como costumava confiar. Como você confia nele agora.
A insinuação me atinge lá no fundo. Ele não pode estar falando a verdade. Pode?
Jeb se vira para Morfeu, brandindo novamente a lâmina do canivete. — Se alguma coisa der
errado, se ela sofrer um arranhão, eu corto você dos pés à cabeça. — Fazendo um esforço enorme
para se afastar, ele dá meia-volta e pega nossa mochila.
— Pegue as indicações para chegar ao cemitério — explica ele, dirigindo-se a mim, e depois
segue para a colina, parando no limite do deserto de tabuleiro de xadrez. Ele fecha o canivete e olha
para a distância com toda a paciência e compostura de um animal selvagem engaiolado, enquanto
Gossamer flutua em torno dele.
— Seu namorado tem sérios problemas com confiança — provoca Morfeu.
— Cale a boca. Ele teve uma infância difícil.
— Ele devia ser grato por ter tido uma infância, afinal.
— Pare de se fazer se vítima. Você teve uma infância. Eu estava lá, lembra?
As marcas pretas em torno dos olhos de Morfeu enrugam-se num sorriso sarcástico. — Não,
Alyssa. Eu estava me referindo à pobre e pequena Alice.
— O que quer dizer com isso?
— Você vai precisar de uma arma. — Morfeu se esquiva da pergunta. Enfiando a mão enluvada no
casaco, ele vasculha um bolso interno e tira um pequeno e delgado cilindro de madeira. Ele o vira,
revelando buracos ao longo do objeto e um bocal em uma ponta.
— Uma flauta? Como isso vai nos proteger? — pergunto.
Morfeu aproxima-se e enfia o cilindro na minha blusa. Ele o desliza por minha pele nua até
encaixá-lo no meu decote. Gossamer deve estar distraindo Jeb, ou ele já teria jogado esse idiota do
alto da colina. Pessoalmente, estou pensando em esfregar o instrumento no nariz dele.
O olhar dele me coloca em cheque. Em algum lugar, por trás dessa imagem fantasmagórica, está a
sinceridade, talvez até preocupação. Meu coração bate junto à madeira fria e lisa da flauta.
— Esperemos que você se lembre daquelas aulas de música que foi obrigada a frequentar. —
Morfeu apoia o quadril na mesa. Suas asas relaxam. — Um violoncelo deve bastar para saber a
escala musical. Se você tocou um instrumento, tocou todos, certo?
Pela primeira vez, sou atingida à queima-roupa. — Você é a razão pela qual ela queria que eu
tocasse?
— Embora ela esperasse, de todo o coração, que você nunca viesse parar aqui, mesmo assim ela a
preparou. E, até agora, você se mostrou gloriosamente capaz. Como ela ficaria orgulhosa de seu
comportamento grotesco na mesa há pouco.
Um rubor sobe, quente, para minhas bochechas. Ele me viu dançar? Ou talvez esteja se referindo à
minha luta bárbara para comer o Camundongo. As possibilidades são igualmente perturbadoras. —
Você estava vendo?
— A propósito... — Ele olha para as costas de Jeb e aproxima-se, murmurando baixinho. — O
suco de Tuntum altera as inibições de uma pessoa, aumenta sua fome. Mas não é a fome de comida. É
das experiências que elas desejam. Se tivesse sido comigo e não com o seu soldadinho de brinquedo,
eu teria encontrado um meio de saciar tanta fome sem recorrer a frutinhas.
A arrogância dele me ferve o sangue. — Você não tem equipamento para satisfazer nada.
Mariposa. Lembra?
Ele ri silenciosamente, num gesto sombrio e suave. — Sou um homem em todos os sentidos. Assim
como você é uma mulher, mesmo que alguns acreditem que você não passa de uma menininha
assustada que está sempre necessitando de ajuda.
Ignoro a farpa. — Naturalmente. Você é um especialista em mulheres. — O olhar de cobiça na
expressão apaixonada da Rainha de Marfim por trás do vidro emerge em meu pensamento. Aquela
pontada estranha e possessiva vem em seguida, mas eu a refreio.
— Sinto um certo ciúme?
— Até parece.
Ele sorri, arrastando uma asa sobre o ombro para alisá-la. — Estou nesta forma há algum tempo.
Tive que praticar um pouco. Mas somente uma mulher é igual a mim em todos os aspectos.
Intelectual, física e magicamente.
— É ela, não é? — Minha inveja é quase palpável. — Você colocaria qualquer um em perigo para
tê-la em seus braços.
— Sem dúvida.
— Odeio você.
— Só por causa do que eu provoco em você.
Minhas unhas se cravam nas palmas das mãos. — Só porque você traz à tona o que há de pior em
mim.
— Ah, não, querida. Eu trago à tona a vida que há em você. — Seu olhar intenso me atrai. O
acalanto excita meu sangue, levando minha pulsação a seguir seu ritmo. “Pêssego e cinza, cresceu a
florzinha, forte ficou e seu caminho encontrou; duas coisas ainda há que fazer, até finalmente...”
O fim do verso — a última peça do quebra-cabeças — ainda me escapa. Aperto as têmporas para
tirá-lo de minha cabeça. A ponta de meu dedo roça meu grampo de cabelo, e ele me aperta. — Pare
com isso! — retruco. — Onde é o cemitério?
Gossamer aparece no ombro de Morfeu quando ele aponta. — Depois do abismo... Logo ali.
Ele indica uma gota entre as areias do tabuleiro de xadrez à beira da duna, não muito distante de
onde Jeb está. É difícil distinguir daqui, mas parece ser uma fissura na terra.
— Há um abismo? — pergunto, mais desconfiada a cada segundo.
— Ele separa o deserto do vale — um pouco largo para um mortal saltar. O cemitério é do outro
lado. Está encoberto por uma touceira de vinhas e hera que protege os espíritos da luz do sol.
Minha coragem dá meia-volta frente à ideia de arrastar-me através de um matagal escuro cheio de
fantasmas — intraterrenos ou não —, mas controlo meu medo. Jeb estará lá; não estarei sozinha.
— A menos que ache um modo de atravessar o abismo — acrescenta Morfeu —, terá que subir a
pé. Pegue a crista mais alta que o circunda.
As areias da crista parecem se estender ao infinito. Se a contornarmos, pode levar um dia. Não
temos esse tempo todo se quisermos impedir o tratamento de Alison. Estou quase me opondo quando
o Camundongo grita: — Pássaros Jubjub!
Gossamer faz um túnel no cabelo de Morfeu quando ele bate as asas e ganha o céu. O
deslocamento de ar passa por mim, numa lufada com perfume de alcaçuz. A turma do chá entra
apressada no chalé da lebre e bate a porta. Nuvens de poeira preta e branca assomam a distância.
As nuvens de poeira se dissolvem, revelando um exército de guardas de cartas montados em
pássaros. Enormes, com constituição de avestruz, cauda de pavão e cabeça e asas de gafanhotos
gigantes. Embora os pássaros pareçam não poder voar, suas longas pernas cobrem a distância entre
nós com facilidade. É um enxame de gafanhotos mutantes vindo nos devorar.
Nunca mais matarei um inseto que seja na vida...
Com o coração martelando as vértebras como um gongo, grito para Morfeu lá em cima: — Ajude-
nos!
— Cuidado com as areias movediças — grita ele em resposta. — Use a flauta se precisar ganhar
terreno. Presumindo que vocês cheguem ao vale, dirijam-se diretamente para o cemitério. O exército
não entrará para segui-los. — Numa investida, ele voa na direção oposta de nossos atacantes. E vai
embora. Sem mais nem menos.
Presumindo que nós cheguemos? Fico tão aviltada que meus olhos queimam. — Você jurou que
não me deixaria novamente! Suas asas vão encolher, seu covarde! — grito.
Mas você não está machucada... Ainda.
É a voz dele, mas não tenho certeza se ela vem da minha memória ou se ele ainda está dentro da
minha mente. Seja o que for, eu tinha esquecido da estipulação para seu voto da magia da vida. Ele é
o mestre dos detalhes.
Um martelar estilhaça o ar. Viro-me e vejo Jeb batendo o carrinho de chá contra o tronco da
árvore. Antes que eu compreenda o que ele está fazendo, ele já desmontou duas prateleiras da
estrutura. Ele afasta a franja do rosto e vira as tábuas para analisar o fundo. Elas são lisas e sem
emendas, ligeiramente curvadas para cima no final.
Ele estende uma para mim. — Vamos!
Pego o pedaço de madeira, confusa.
Jeb coloca a mochila no ombro, corre para a beira da duna alguns metros adiante e coloca a sua
prateleira no chão, na borda onde começa o declive. Com um sapato na madeira para mantê-la
abaixada, ele se vira para mim: — É agora, menina do skate!
Corro para ele, os braços tremendo ao acomodar minha prancha no lugar. Ele espera que a gente
desça nelas — como surfe de areia. Mas será que ele não vê o abismo entre o deserto e o vale?
O final do declive se curva para cima, como uma rampa de lançamento. Ele não pode estar
contando que nós...
— Hoje você vai aprender um ollie — diz ele, completando meu pensamento.
Minha pulsação martela no pescoço. — Sem chance.
— Sem escolha. — Ele estende a mão. — Se começarmos a cair, use seu truque mágico. Faça as
pranchas flutuarem sobre o abismo.
— E se eu não conseguir? Já quebrei a maldição, consertei os erros de Alice. Talvez eu tenha
voltado a ser eu mesma.
— Você ainda se parece com um deles. Aposto que não vai voltar a ser normal até que a gente
atravesse aquele portal. A esta altura, o que temos a perder? — A mão dele aguarda a minha.
Eu a agarro e olho para trás. Nuvens de poeira consomem a ladeira e o exército toma a colina.
Eles chegarão no platô a qualquer momento. Olho para os torvelinhos de areia.
De perto, a inclinação é umas três vezes mais íngreme do que a maior queda do Submundo, e eu
nunca cheguei a subir no alto dela. Estamos tão alto que minha visão flutua e meus joelhos ficam
moles.
— Uaaaa! — Jeb passa um braço em torno da minha cintura para me equilibrar.
— Jeb... — Agarro o seu pulso. — Vamos nos separar.
— Não vamos. — Ele solta uma ponta da corrente de metal pendurada nas presilhas de seu cinto.
Depois a desenrola, deixando a outra ponta ainda presa em sua calça. Prendendo a corrente a um dos
anéis do meu cinto, ele forma uma corda de segurança. Quando esticados, os anéis permitem que
fiquemos à distância de um metro, e nos deixam seguros.
— Pronta? — pergunta ele, olhando por sobre o ombro para nossos iminentes captores.
— Sim. — Mas meu estômago dá voltas e diz “não”.
Cada pedaço de mim pede para voltar... Para correr na direção oposta. Mas os pássaros Jubjub
guincham atrás de nós — um som que perfura os tímpanos, como os pterodáctilos gigantes de alguma
trilha de filme pré-histórico — e eriçam os pelos do meu pescoço.
Deslizo o pé para cima da prancha.
— Agora! — grita Jeb.
Meu estômago vai ao chão quando damos um empurrão juntos e mergulhamos nas profundezas de
xadrez.
CONTINUA
8
Octobenus
O pesadelo de Alice me encontra durante meu sono...
Não estou sozinha desta vez. Jeb carrega a espada roubada, e corremos pelo caminho na direção
do covil da Lagarta. Os espinhos que já rasgaram meu avental de criança alongam-se e se
transformam em enguias folhosas. Os cordões serpenteantes se enrolam em nossas pernas e nos
levam de cabeça para baixo até o tabuleiro de xadrez. Nossos corpos se congelam e viram peças do
jogo. Uma mão aparece, usando uma luva preta, e nos move de quadrado em quadrado. Ela me pega
para dar um xeque-mate, mas Jeb ganha vida e decepa os dedos com a espada para me libertar. Os
pingos de sangue caem um a um e se metamorfoseiam em lagartas. Jeb e eu voltamos correndo para o
caminho. O cogumelo aguarda no centro, escondido em uma teia. As lagartas nos perseguem até lá.
Elas cavam túneis para entrar no casulo, enchendo-o até ele se contorcer — o casulo é uma coisa
viva que respira. Uma lâmina negra afiadíssima dilacera o casulo a partir de dentro. O que está lá
dentro, seja o que for, vai sair.
Acordo assustada, e pisco diante da claridade do sol. Minhas mãos estão fechadas e os punhos,
cerrados. O que me acordou? Eu estava tão próxima de desvelar o rosto dentro no casulo — algo que
venho esperando há anos.
Com um bocejo, concentro-me no aqui e agora. Em algum momento durante a noite, devo ter me
virado para Jeb no barco, e ele me puxou para si, aninhando-me debaixo do seu queixo. Agora só
vejo um close de sua barriga tanquinho. Ele ainda dorme. Sua respiração pesada esvoaça meu cabelo
num ritmo lento. Seus braços agarram minha cintura.
O dia anterior regressa ao meu pensamento aos pedaços: a toca do coelho, o jardim de flores
mutantes, o mar de lágrimas.
Aconchego-me sob o pescoço de Jeb com os dedos recolhidos dentro das mangas do casaco do
smoking, determinada a não acordá-lo só para poder fingir que as coisas são simples e perfeitas.
Apenas por mais alguns instantes.
O barco balança e percebo que foi isso que me acordou. Não é um movimento suave da correnteza.
Parece mais um movimento do tipo “alguma coisa pesada se moveu na borda e está nos observando.”
Congelo — fico dura como a madeira abaixo de nós.
Fungadas guturais enchem o ar, como as de buldogue asmático. O calor do sol sobre meus ombros
esfria quando uma sombra recai sobre nós. Meu coração tem um sobressalto. Antes que eu possa
emitir um grito, Jeb entra em ação, rolando-nos na direção da proa e puxando-nos para ficarmos de
pé. Ele estava acordado o tempo todo.
— Sem chance — diz ele.
Oscilo com o movimento do barco, segurando a cintura de Jeb com uma mão e o assento atrás de
mim com a outra. Olho em torno dele.
À primeira vista, nosso intruso parece um polvo. Ele tem duas presas gigantes com imagens de
serpentes e chamas furiosas entalhadas ao longo do marfim. Mas, por baixo de camadas de banha,
sua outra metade é um emaranhado de tentáculos pegajosos cobertos por ventosas. É como se alguém
tivesse misturado duas criaturas diferentes, criando um octopolvo. Ele deve pesar quase duzentos
quilos, e seu corpo ocupa a maior parte do barco.
Grande daquele jeito e com os tentáculos pendurados metade para dentro e metade para fora, o
barco deveria ter virado. Jeb e eu deveríamos ter sido arremessados feito pedras em um estilingue
assim que ele escorregou para dentro. Em vez disso, o casco está nivelado e desliza pela água
cristalina como se a criatura não pesasse mais do que nós. Me pergunto o que Isaac Newton teria a
dizer sobre esse furo nas leis da física por aqui.
Jeb me cutuca para eu me sentar atrás dele, mas ele continua de pé, cada músculo de seu corpo
tenso e pronto para reagir. — O que é você?
Nosso visitante não convidado limpa uma meleca que pinga de seus olhos com os dedos humanos
nas pontas de suas nadadeiras. — Boa pergunta, cavaleiro élfico. Sou um octobenus. Agora, deixe-
me adivinhar sua próxima pergunta. O que eu quero? Para esta, a resposta é simples. Quero parar
com o eterno sofrimento da minha barriga. — Suíças longas e loiras, em contraste com uma pele cor
de canela, pendem sob suas narinas. Seus tentáculos batem no mar, espirrando água sobre nós.
Da corrente em seu pescoço, ele abre um medalhão do tamanho de uma caixa de charutos e tira
algo de dentro. Ele coloca um marisco na palma da mão, segurando cuidadosamente sua casca para
mantê-la fechada. — Bom dia, pequenino repolho do mar — diz ele, provocando. — Ainda
preocupado com sua família?
O marisco tenta abrir a boca para responder. O octobenus volta a fechá-la para que ele fique
quieto. — Vamos fazer o seguinte: se você conseguir saciar minha fome, eu liberto os restantes. Quer
tentar?
Embora o marisco não possa abrir a boca o bastante para falar, um músculo rosado no formato
semelhante ao de um machado esgueira-se para fora da abertura — como um braço ou perna
defeituoso —, acariciando a bochecha da enorme criatura numa derradeira tentativa de salvar sua
vida.
Um murmúrio escapa de minha garganta. Jeb estende o braço para trás e me dá sua mão. Entrelaço
nossos dedos.
Em um acesso de banha e baba, o octobenus abre a concha com força, sela sua boca em volta dela
e suga o conteúdo, produzindo um ruído terrível de sorvo. O grito excruciante do marisco ecoa na
minha cabeça e depois cai em um silêncio mortal. Aperto mais forte o braço de Jeb, tentando não me
sufocar.
— Não. Ainda estou com fome. Suponho que irei comer as crianças em seguida. — Nosso
visitante indesejado solta um riso medonho e cortante, e depois joga a concha vazia ao mar. Com um
tentáculo, ele vai dando tapinhas até ela afundar, e esse movimento faz o barco balançar.
Os dedos de Jeb me apertam o punho conforme ele tenta manter o equilíbrio.
— É preciso ser ligeiro com presas escorregadias como esta — o octobenus diz. — São
traiçoeiras... Sempre tentando pegar você com sua Língua dos mortos. Pode imaginar virar escravo
do último desejo de um marisco? — Ele ri novamente.
Língua dos mortos... O termo que estava atrás da avaliação psiquiátrica de Alice. De trás de Jeb,
dou uma espiada e vejo a criatura com cara de morsa colocar um monóculo no aquoso olho esquerdo.
— Agora — lança ele —, se fizer a gentileza de ficar de lado, elfo, eu gostaria de ver melhor sua
protegida.
A postura de Jeb endurece. — Nem pensar.
A octoaberração larga o monóculo. — Aquelas flores desajeitadas acham que o seu sangue tem o
poder de comprar minha cota de bivalves! — Seu grito chocalha em nossos ouvidos, e nos atravessa,
com seu cheiro de peixe e morte. — Mas a questão nunca foi comprá-los. Sou um caçador. Tenho
que capturá-los. É a minha natureza. Mariscos são criaturas habilidosas, sempre usando os bracinhos
para se mover por aí e escapar para seu refúgio no leito do mar. Se não fosse tão escuro lá embaixo,
e com meus olhos já tão ruins... Tenho sorte se consigo capturar meia dúzia antes que todos se
escondam. — Ele limpa a boca com uma forte nadadeira. — Mas o Sábio possui uma flauta mágica
que atrai minhas presas para fora dos seus esconderijos. E agora eu tenho alguma coisa para trocar
por ela.
— Oferecendo meu sangue em troca. — Jeb adivinha.
Isso não pode estar acontecendo. Não importa em quantas brigas ele se envolveu em casa. Mesmo
com o canivete, ele não tem nenhuma chance contra um mostro marinho de trezentos quilos.
— Ele não é um elfo com pedras preciosas! — grito de trás de Jeb. — Ele é humano. Olhe as
orelhas.
Jeb aperta meus dedos — um pedido para eu ficar quieta.
— Não importa. Joias e riquezas não significam nada para o Sábio. Mas você, repolhinho, ele está
desesperado por sua ajuda. Se está! Há anos ele está esperando que você volte para cá.
Aquela afirmação fica se revirando em minha cabeça. As flores disseram que o Sábio é a Lagarta.
Então... Ela está esperando por mim? Talvez a lagarta tenha enviado a mariposa e o meu guia
sombrio para me encontrar e me trazer para cá.
Os tentáculos de nosso captor se contraem ao longo das bordas do barco feito pítons gigantes, e a
madeira range. — Com você como refém, posso trocá-la pela flauta. Ele a colocará aos meus pés se
a levar em segurança.
— Terá que me matar para chegar até ela — adverte Jeb.
Dou um puxão no pulso dele, mas ele me ignora.
O octobenus aperta as mãos-nadadeiras. — Ah, um amigo leal. Eu tive um desses, muitos anos
atrás. Ele era artesão. Foi ele que esculpiu minhas presas e fez um lindo baú para guardar minha
reserva de mariscos. Depois, descobri que ele estava saqueando meu estoque. Então, uma noite,
quando ele dormia, eu o capturei — os tentáculos se enroscam em volta do barco numa demonstração
— e o prendi no baú com as conchas vazias. Atirei tudo no mar para abafar seus gritos. Os ossos
dele são isca de peixe agora.
Mordo os lábios para não gritar.
Nosso captor ri. — Triste, não é? Veja, se eu fui tão insensível com um amigo, o que me impede
de matar você? Nada impede que eu satisfaça as necessidades da minha barriga. — Ele corre a
extremidade fina e pontuda de um tentáculo até a ponta de suas presas babadas. — Eu vou pegar a
garota!
Ele lança seus tentáculos e agarra Jeb pela cintura.
— Não! — Meus braços se levantam para segurá-lo. Os tentáculos o arrebatam, erguendo-o no ar.
— Há terra... à sua esquerda! — Jeb grita enquanto luta com a criatura, escapando por pouco da
ponta mortal de uma presa. A luta impele o barco.
Ao repelir mais gritos, agarro-me ao banco para manter o equilíbrio. Jeb tem razão. Há alguma
coisa no horizonte. E brilha feito lantejoulas pretas. Pode ser a ilha da qual as flores nos falaram.
— Vá! — Jeb grita. — Eu vou segurá-lo o quanto puder!
Ele passa a corrente em volta do pescoço do monstro. Com puxões rápidos, ele envolve alguns
tentáculos para que eu possa escapar. Uma das presas rasga a calça de Jeb na altura do joelho. O som
do tecido rasgando me lembra da horrível morte do marisco. Não posso deixar que isso aconteça
com Jeb.
Não conseguiremos escapar do octobenus na água. Como revidar? Ele não tem fraquezas óbvias...
Só um apetite insaciável.
— Espere! — Caio de joelhos diante dele, encenando uma ideia repentina, na esperança de que dê
certo. — Por favor, solte meu amigo e eu o ajudarei.
— Al! — Jeb grita.
— Dê-me sua palavra, menina intraterrena — diz nosso captor com um sorriso gordo e
desdenhoso. — Você conhece as regras... Um juramento da nossa espécie não pode ser quebrado, ou
você perderá seu poder.
Não sei por que ele está me chamando de menina intraterrena, mas estou disposta a usar isso a meu
favor. — Prometo que o ajudarei.
— Não é o bastante — rebate ele, apertando ainda mais Jeb em seus tentáculos até fazê-lo gemer.
— Faça do modo apropriado. Cubra seu coração... Jure pela magia da sua vida. E seja bem
específica.
Não tiro os olhos dos lábios de Jeb, que já estão azulados, e levo a palma da mão ao peito. — Eu
juro pela magia da minha vida que o ajudarei a saciar seu apetite.
Num movimento ruidoso que o faz virar seus bigodes, ele relaxa os tentáculos e solta Jeb, que cai
no casco do barco.
Abraço as roupas babadas de Jeb. Ele me mantém equilibrada no barco e ficamos de pé juntos. Ele
tosse tanto que quase não consigo ouvir sua voz. — Você devia ter... caído fora.
— Não — sussurro. — Vamos ficar juntos, lembra? — Em seguida, volto-me para nosso captor.
— Senhor Octobenus, eu sei como encher sua barriga. Podemos dar bolo aos seus mariscos.
Jeb franze a cara para mim, finalmente recuperando o fôlego.
A criatura relaxa no banco sobre um ninho de tentáculos, ofegante e fungando devido ao exercício
da luta. — Você está me oferecendo bolo de mariscos?
— Não. O bolo é para os mariscos — respondo. — Para aumentar seu estoque até chegarmos à
flauta. Nós temos uma coisa que fará seus mariscos crescerem e ficarem do tamanho de um prato de
comida. — Eu viro o rosto para Jeb e articulo com os lábios as palavras O comedor acaba comido.
A expressão dele se ilumina ao compreender o que digo. Ele arrasta a mochila em nossa direção.
É incrível como ele está composto depois de quase ser empalado, esmagado e devorado.
A morsa mutante observa, curiosa.
Jeb abre a bandana para exibir o bolo com as palavras Coma-me escritas com as passas.
O octobenus dá um pulo. — Um bolo de aumento! Onde vocês encontraram essa preciosidade?
Pessoalmente, nunca vi um. Eles foram proibidos depois do incidente com Alice. Não importa, não
importa... — Ele abre o medalhão da corrente uma vez mais. O novo marisco luta com ele
furiosamente.
— Me dê isto aqui — ordena o octobenus. — Se falhar, rasgo as entranhas do meu amigo mortal e
faço delas alimento para os peixes. — A baba lhe desce pelas presas e preenche as imagens
esculpidas com um visco brilhante.
— Ah, vai dar certo. — Jeb desliza o bolo pelo casco. — Aposto minha vida que vai.
— Acaba de apostar. — A morsa mutante grunhe ao curvar-se para pegar o bolo. Tirando uma
migalha, ele se prepara para enfiá-la na abertura da concha do marisco.
— Você precisa dar mais do que isso — diz Jeb, recuando lentamente para a borda do barco, com
a mochila nas mãos. — O máximo que puder enfiar na boca dele.
— Sim, sim. Imagine! Mariscos do tamanho de pratos... — Sem olhar para cima, ele ri e tira um
pedaço maior. Depois, abrindo a concha à força, ele enfia o bolo dentro e a fecha novamente.
Em segundos o marisco começa a tremer junto com o barco.
— Agora! — Jeb mergulha no mar segurando a minha mão. Um tapa dos tentáculos roça as minhas
pernas, mas em seguida a água cálida se fecha sobre nós, e afundamos. Jeb nada cachorrinho na
minha frente, seu cabelo formando redemoinhos semelhantes à flora marinha das profundezas azuis.
Ele me puxa pelo pulso. Bato as pernas para subir, minhas botas e roupas pesadas e desajeitadas na
água.
Chegamos à superfície e damos profundas talagadas de ar, parados em um ponto distante o
bastante para vermos o que acontece no barco. O marisco cresce, do tamanho de um estojo de
maquiagem para o tamanho de uma caçamba de lixo.
Em uma exibição estranhamente graciosa de banha, nadadeiras e tentáculos, o octobenus percebe
seu erro e tenta escorregar para fora do barco. Tarde demais. A concha gigante se abre e um
apêndice em forma de machadinha salta para fora — grande e poderoso como uma anaconda. O
músculo envolve o octobenus e o leva à boca, sugando os tentáculos feito fios de espaguete gigante, e
em seguida se fecha.
O barco se verga e racha. Em segundos, o marisco mergulha no mar, deixando somente espuma e
destroços flutuando atrás de si. A água forma ondulações em torno do naufrágio, um final
sinistramente sereno para uma cena tão violenta.
Jeb segura meu pulso e a mochila com uma mão, enquanto usa o outro braço em um nado de peito
lateral para nos impulsionar na direção da praia preta.
Algo me puxa para baixo.
Bato as pernas até ficar com cãibra, tentando manter a cabeça fora da água. Não adianta. Solto-me
de Jeb, com medo de puxá-lo para baixo comigo.
Debaixo da água, procuro o que está me ancorando, horrorizada com a possibilidade de que seja
uma criatura marinha, mas não vejo nada. O peso parece estar centralizado em minha cintura, mas
estou descendo muito depressa para encontrá-lo. Eu me debato, braços e pernas lutando contra o
ímpeto descendente. Meus pulmões clamam por oxigênio.
Jeb aparece acima de mim. A mochila desce atrás dele na direção das profundezas escuras.
Minhas mãos e pernas irrompem num movimento ainda mais forte, lutando contra a força da água. Jeb
tenta me puxar para cima pelos braços. Eu me afasto, resistindo. Ou talvez esteja resistindo a mim
mesma. Ao meu medo...
A expressão dele quando me agarra é resoluta. Ele se recusa a ceder, e isso me assusta ainda mais.
Balanço a cabeça.
Salve-se! É o que meus olhos lhe dizem, mas ele é teimoso demais para ouvir.
Quero dizer a ele que sinto muito por tê-lo arrastado até aqui. Em vez disso, bolhas vazias
rodopiam entre nós.
Uma dor impetuosa e pungente me aperta o peito. Debato-me na água, procurando alguma maneira
de me libertar, de fazer aquilo desaparecer. Minhas lágrimas se mesclam com as de Alice e o
pensamento fica obscurecido. Jeb ainda está me puxando, mas é inútil — continuamos afundando.
Quando estou prestes a ceder à inconsciência, começo a perceber que o peso vem do bolso da
minha saia. Entorpecida, tiro a esponja que peguei no fundo da toca do coelho.
O que antes possuía o tamanho de um pedacinho de queijo agora é grande como uma bola de golfe,
e continua crescendo. Ela desce, deslizando para o fundo do mar, arrastando a água junto, criando um
rodamoinho.
Estou livre.
Abraçados, Jeb e eu emergimos e temos tempo suficiente para encher nossos pulmões antes que a
sucção do funil nos arrebate. A esponja está do tamanho de uma laranja agora, e posso ver o fundo do
mar lá longe abaixo de nós.
Solto um grito, agarrando-me a Jeb.
Meus olhos se fecham ao batermos em alguma coisa sólida.
— Al — chama Jeb, e só então percebo que consigo respirar.
Busco sofregamente o ar, abro os olhos e pisco com força para secá-los. O mar sumiu. Vegetação
marinha achatada e pilhas de areia seca nos rodeiam. Poças de água brilham em alguns pontos,
refletindo a luz do sol. A distância, avisto nossa mochila. As areias pretas da ilha elevam-se à altura
de um desfiladeiro acima de nós — uma escalada que não conseguiremos fazer.
A alguns metros, entre os destroços, sentado ao lado de um baú musgoso em decomposição, o
marisco gigante lambe os lábios cheios de sangue. Suponho que o octobenus acabou reencontrando
seu amigo artesão, afinal.
Uma brisa agita o ar, trazendo cheiro de peixe e sal. Imagino que a esponja deva estar do tamanho
de uma montanha. Mas lá está ela, ao lado das minhas botas ensopadas, do tamanho de uma bola de
basquete. Eu a recolho. Difícil compreender que um mar inteiro esteja contido aqui dentro.
Jeb me ajuda a ficar de pé e eu largo a esponja. Ela pousa com um som de borrifo.
Mesmo estando fraca e exausta, sou tomada por um sentimento de realização. — Nós conseguimos
— murmuro, mal conseguindo compreender o significado dessas palavras. — Secamos o mar. Como
as flores queriam que fizéssemos.
— Você secou — enfatiza. Jeb afasta o cabelo de minha testa. — E você quase se afogou fazendo
isso. — Antes que eu possa responder, sua boca quente e macia toca a minha testa, minha têmpora e
em seguida meu queixo. Todas as vezes, seu piercing roça suavemente em minha pele. Ele se detém
na linha do maxilar e curva-se para me puxar mais para perto num abraço, com o nariz enfiado no
meu pescoço. — Nunca mais me assuste desse jeito.
Não importa que estejamos molhados; o calor irradia através de nossas roupas ensopadas. Passo a
mão em seu cabelo. — Você voltou para me salvar.
Ele aproxima o nariz da curva do meu queixo, e uma poderosa onda de emoção pulsa através do
corpo dele. — Eu sempre voltarei para você, Al.
Uma leve batida de alerta no meu peito me recorda de Taelor e da determinação de Jeb de ir para
Londres sem mim a fim de ficar sozinho com ela. Mas a adrenalina vem ainda mais forte. Eu toco sua
orelha com meus lábios, provando do resto das lágrimas de Alice. — Obrigada.
Ele tensiona os músculos dos braços. Seu nariz fuça o cabelo em minha nuca, como se quisesse se
perder naquele emaranhado. Nossos corações estrondeiam. Tremores de nervoso percorrem o meu
corpo e meus membros estremecem.
— Jeb — sussurro. Ele murmura algo indecifrável, e minhas mãos hesitantes agarram seu pescoço.
Um grunhido escapa de sua garganta. Fico sem ar quando ele aperta meu cabelo em seus dedos e o
puxa para trás, com olhar intenso. Ele já está se curvando para chegar mais perto quando uma
cacofonia de cliques e estalos nos interrompe.
Viramo-nos em círculos, observando ao nosso redor. Milhares e milhares de mariscos saem de
seus túneis na areia. Agarro a mão de Jeb, temendo que eles nos ataquem por termos destruído seu
lar. Em vez disso, irrompem gritos e aplausos.
Olhando para trás de Jeb, fico pasma. — Atrás de você.
Ao lado da parede de areia que parecia um desfiladeiro, toneladas de conchas se empilham uma na
outra — rolando para cima, para os lados — com o objetivo de formar uma escada-rolante viva.
— Nós derrotamos o inimigo deles — sussurro. — Eles querem ajudar.
Jeb não hesita. Pega minha mão e me conduz na direção dos degraus que sobem, arrebatando a
mochila no caminho. Juntos, seguimos em direção às brilhantes areias pretas da ilha.
Quando chegamos ao alto, aceno para os mariscos, que desaparecem no leito do oceano lá
embaixo.
Jeb abre a mochila para checar nossas coisas. — Acho que eu não devo ficar admirado que nada
esteja molhado. — Ele abre o estojo de lápis antes que eu possa detê-lo. E fica boquiaberto. — O
que é isso?
— São minhas... Economias. — Ótimo. Eu não só me atirei nos braços do namorado de Taelor
como também menti sobre o dinheiro que roubei dela.
Jeb conta o montante e olha para cima. Há algo insondável por trás daqueles grandes cílios.
— Você parece diferente — lança ele, colocando o dinheiro de volta no estojo e sacudindo gotas
de água do cabelo.
— Pareço? — Esfrego a pele em torno dos olhos. Será que todos os meus segredos estão piscando
na minha cara feito um letreiro de neon? — Minha maquiagem deve estar toda borrada.
— Você está cintilante — o corpo todo.
— Ah, deve ser resíduo de sal. — Eu tiro seu casaco do smoking, torço-o para tirar a água e o
devolvo.
— Ahn — murmura ele, ainda concentrado em mim. — Então... Vamos conversar sobre aquilo? —
Jeb enfia o casaco na mochila.
— Sobre o quê?
— O que aconteceu lá embaixo entre nós.
O calor me formiga as bochechas. Ele se arrependeu. Ou talvez esteja com medo de que eu conte a
Taelor. De qualquer maneira, acabo parecendo uma idiota. — Foi a adrenalina. Só isso. Nós só
estávamos felizes por estarmos vivos. Não se preocupe. O que acontece no País das Maravilhas fica
no País das Maravilhas, certo?
Ele nem sequer esboça um sorriso. Só fica me olhando e depois balança a cabeça. Lábios
esticados, ele se concentra em fechar o zíper da mochila.
Quero acreditar que ele sentiu o mesmo que eu... As coisas que eu não deveria estar sentindo. Mas
como pode ser? Não é comigo que ele vai mudar para outro país.
Tento me concentrar em outra coisa, como a água dentro de minhas botas que faz barulho entre
meus dedos ou nos rombos enormes no meu legging.
— E agora, para onde? — pergunta ele.
É possível que ele esteja se referindo a algo além do nosso destino físico, mas estou assustada
demais para me dar a chance de estar errada. Em vez disso, concentro-me no nosso paradeiro.
A costa se estende até onde a vista alcança... Um deserto infinito de fuligem tremeluzente. Não é
nada parecido com o que eu esperava encontrar no coração do País das Maravilhas, se é isso que
este lugar é. Não há fauna nem flora em lugar nenhum, exceto por uma solitária árvore, mais alta e
mais larga do que uma sequoia, a alguns metros de nós.
A familiaridade me atrai para perto dela. Cascas pretas de joias cobrem toda a árvore, do tronco
nodoso aos ramos que se retorcem a dezenas de metros no ar. Ela brilha ao sol como um milhão de
diamantes brancos. Na ponta de cada galho, rubis jorram feito líquido e pingam no solo, como se a
árvore estivesse sangrando pedras preciosas, assim como os elfos fazem quando sua pele é
perfurada. Com as areias pretas como pano de fundo, a cena lembra os mosaicos de grilos que tenho
em casa — uma beleza fascinante e ao mesmo tempo bizarra. Refreio um surto de pânico ao recordar
como os grilos pareciam estar vivos e esperneando da última vez que os vi em minha parede.
— A pulsação de inverno — diz Jeb ao meu lado.
Concordo. — Também vê a semelhança?
Ele fica perplexo. — Você esteve aqui antes.
Desvencilho-me de meu desconforto e subo na árvore, abrindo caminho aos chutes por entre os
rubis no chão. Um ponto na base do tronco lateja por trás da casca de diamantes, feito uma pulsação.
A cada tamborilar, ela se acende em linhas vermelhas com a mesma forma da marca de nascença em
meu tornozelo. A imagem reacende uma lembrança de mim e de um menino alado, indistinta, mas
inconfundível.
Jeb se aproxima e me viro para segurar no ombro dele e manter o equilíbrio, erguendo minha
perna direita para desamarrar minha bota.
— O que está fazendo?
— Seguindo instruções — respondo, tirando a bota e erguendo meu legging para exibir o
tornozelo. Jeb agarra meu cotovelo enquanto me agacho, pressionando o labirinto no meu tornozelo
contra as linhas da árvore.
Um choque de eletricidade estática salta de mim para o tronco; depois, um forte estalar quebra o
silêncio. Jeb me puxa para trás quando o tronco se abre, enquanto a casca brilhante se enrola feito um
pergaminho para expor uma passagem. Um brilho suave e avermelhado vibra e sinaliza lá de dentro.
— O coração pulsante do País das Maravilhas — sussurro, enfiando o pé na bota novamente.
A luz vermelha reflete no piercing de Jeb. — Muito bem, acredito que você veio aqui quando era
criança e está se lembrando de algumas memórias reprimidas. Mas como você pode ter uma marca
no corpo que abre tudo neste lugar?
Hesito, e depois conto a ele o que li sobre os intraterrenos falarem com insetos, e o que eu
desconfio acerca da maldição de minha família: que compartilhamos algumas características com as
criaturas daqui, incluindo esquisitas marcas mágicas em nossos corpos.
Jeb fica olhando para mim e me pergunto quanto mais ele pode aguentar sem ficar maluco.
— Você está bem? — indago, receosa.
Engolindo, ele passa os dedos pelos cabelos. — É com você que estou preocupado. Então, como
nós quebramos essa “maldição”?
Meu coração dá um pulo quando ele diz “nós”. Ele está nessa comigo até o fim. Não só porque
está preso aqui, mas porque ele é o Jeb com quem eu cresci. Meu Jeb. — Tenho que encontrar
alguém aí dentro. Alguém do meu passado... que costumava me trazer aqui.
Jeb franze a cara. — Muito bem. De acordo com as flores, este é o lugar onde os portais estão,
certo? Os portais que nos levarão para casa?
— É — respondo, meio na esperança de que ele tente me convencer a esperar aqui fora enquanto
ele verifica o terreno. Em vez disso, ele me detém somente o tempo suficiente para tirar a lanterna,
recolocar a mochila e tomar a dianteira. Descemos por uma escadaria sinuosa em meio a um túnel
escuro que parece descer espiralando para sempre.
— Não olhe para baixo — recomenda Jeb.
Por que as pessoas dizem isso? Só torna impossível não fazê-lo. Meu olhar mergulha nos degraus,
que produzem um som abafado sob nossas botas. Ossos, entrelaçados e amarrados com algum tipo de
cordão dourado cintilante, formam a escada. A maioria dos ossos tem deformações de tamanho ou
forma. Outros parecem humanoides. Aperto a mão contra a boca.
— De quem são esses ossos? — Jeb sussurra. — Ancestrais? Prisioneiros humanos?
Repasso minhas lembranças esparsas. — Não me lembro de ter conhecido isso...
Jeb acelera o passo. Pulamos do último degrau e nos esquivamos por uma cortina de trepadeiras.
Em vez de nos depararmos com um subterrâneo, uma vista se descortina à nossa frente sob um céu
roxo escuro. O sol e a lua estão entrançados em um, a lua com coloração azul ao lado do seu irmão
mais brilhante.
A luz combinada confere a tudo um tom ultravioleta. Plantas de todos os tipos — arbustos, flores,
árvores e grama — ficam fluorescentes sob os raios mistos: rosas, roxos, verdes, amarelos e laranja.
Os tons mais claros de nossas roupas brilham também. Não é de admirar que eu sempre me senti
tão em casa no centro de atividades Submundo. Em algum nível subconsciente, ele me lembrava deste
lugar.
Uma lufada de vento frio e carregado de aroma de calcário, folhagem e flores passa por nós.
Depois, sinto um aroma de algo mais — um perfume frutado vindo em nossa direção. Conheço aquele
cheiro. — Siga a fumaça — digo, abandonando o caminho.
Jeb pega minha mão e me ajuda a ultrapassar um canteiro de cravos-de-defunto. Aperto os dedos
dele em agradecimento. Meu corpo está começando a sentir os efeitos de nossa insana jornada
marítima. Tenho calos e feridas por todo lado.
Enquanto prosseguimos, não consigo parar de pensar em como ele voltou para me resgatar na água,
em como ele não desistiu, em como ele pulou no espelho em meu quarto sem nem pensar em sua
própria segurança. Talvez nós devêssemos conversar sobre o que está acontecendo entre nós, porque
algo certamente está mudando do meu lado. Corro a língua pelo céu da boca nervosamente. Venho
mantendo isso em tamanho segredo há tanto tempo.
— Escute, Jeb. — Engulo duas vezes. — Sobre o que aconteceu lá no fundo do mar. Eu...
— Mais tarde. — Olhando por cima de mim, ele pega em meus ombros. — Temos companhia.
Ele me força a agachar, e uma nuvem brilhante se aproxima sobre nós, cintilando feito vaga-lumes.
— É ela! — grita uma vozinha esgoelada mais alta do que o zunido de muitas asas. — É!
Um enxame de criaturas humanoides do tamanho de gafanhotos e da cor de feijão-de-lima paira
sobre nós. São todas fêmeas, nuas e com escamas reluzentes que se curvam sobre seus seios e
dorsos, formando desenhos sinuosos. Suas orelhas pontudas e os cabelos esvoaçantes cintilam, e seus
olhos são bulbosos e metálicos feito os de uma libélula, como se elas estivessem usando óculos
escuros de cobre. Asas revestidas com pelos na cor branco leitoso que lembram as pétalas de um
dente-de-leão farfalham perto da minha bochecha.
Uma delas chega perto o bastante para dar um tapinha na testa de Jeb, com as mãos do tamanho do
corpo de uma joaninha. — Eu o encontrei. Ele é o meu prêmio!
— É meu! — Três outras berram, enfiando-se no cabelo dele.
Jeb aperta as alças da mochila.
— Não, irmãs fadas — responde uma delas com a voz de sineta. Ela paira diante de Jeb, tão
fascinada quanto as outras. — Nosso mestre disse que eles devem ficar sob minha guarda.
As outras resmungam e se afastam.
Suspensa no ar, a pequenina vitoriosa faz uma reverência enquanto bate as asas. — Sou Gossamer.
Devo levá-los até aquele que procuram. — Seus olhos de libélula faíscam em minha direção e ficam
mais brilhantes, como se ela estivesse com raiva. — Àquele que procura você. — Meu estômago se
retorce com essa insinuação.
Em seguida, ela se volta para Jeb. — Cavaleiro élfico, você procura por prazer? Posso oferecê-lo,
se assim desejar.
Esfregando o dedo no piercing, Jeb olha para mim, totalmente perplexo. — Hum. Não, obrigado.
Estou bem.
Às gargalhadas, a fada se afasta, unindo-se às outras.
Seguimos nossas guias luminosas para dentro de uma floresta fechada, serpenteando através da
vegetação alta e fluorescente até chegarmos a uma clareira de musgo verde-limão, líquen amarelo
vivo e cogumelos reluzentes. Um círculo de árvores se fecha acima de nós, com os galhos esticados e
entrelaçados juntos de modo a formar um domo. Lascas do céu roxo aparecem aqui e ali, o suficiente
para lançar sombras.
Cada uma das fadas toma seu lugar dentro do teto suspenso, pontilhando os galhos feito velas
acesas. Sua luminância acrescenta uma névoa suave e brilhante ao cenário. Gossamer nos convida a
segui-la até o meio da clareira, onde um cogumelo gigante listrado de ultravioleta aguarda, envolto
em uma nuvem perfumada.
Uma sensação inconfundível de reconhecimento me possui. Reconheço este lugar de meus
pesadelos com Alice. Estamos no covil da Lagarta — o sábio guardião do País das Maravilhas.
— Ela não parece nada especial, meu senhor. — Gossamer paira sobre a espessa fumaça que
cobre o chapéu do cogumelo, escondendo o que quer que esteja sentado sobre ele. — Ela está
coberta de lama e fede a marisco.
— Só podia, porque ela acaba de secar o mar, queridinha. Tinha que ser um feito bem trabalhoso,
você não acha?
Todo o meu ser treme ao som daquele sotaque profundo. Fluido, masculino e sensual. É ele. Meu
guia intraterreno. Se eu pudesse ver além da fumaça...
— Sua vestimenta parece ser a de uma empregadinha — retruca Gossamer, crivando-me com um
olhar de desaprovação. — Talvez o senhor devesse mandá-la para casa e esperar por outra. Por
alguém mais aceitável.
— Quem está nu não deve julgar vestimentas — responde aquela voz familiar. — Você sabe muito
bem que não são as roupas que fazem uma mulher.
Humilhada, Gossamer vai juntar-se às outras fadas que pairam no ar. Finalmente, a fumaça se
dissipa e revela um narguilé e a mariposa do tamanho de um corvo — asas negras e corpo azul
luminescente — aninhada no alto do cogumelo, como uma borboleta repousada sobre uma pétala.
Ela inala fumaça da mangueira e solta plumas no ar. Algumas têm a forma de pássaros, outras, de
flores. Um dos desenhos vaporosos se afasta e vira uma cabeça de mulher — como o entalhe de um
camafeu. Conforme ela se dissipa lentamente, começa a parecer uma criança de cinco anos. Sou eu,
com cinco anos...
— É tão bom vê-la novamente, amorzinho. Quanta saudade eu senti.
Falta-me o ar e eu caio de joelhos. A Lagarta, a mariposa e o rapaz alado são todos a mesma
coisa, esse tempo todo...
— Eu já vi esse inseto — afirma Jeb. — No seu carro. No espelho. — Ele larga a mochila e
segura meus ombros, tentando fazer com que eu fique de pé. Minhas pernas não cooperam.
— Na-não. Você nunca precisa se curvar diante de mim, adorável Alyssa. — A voz sai da
probóscide da mariposa em baforadas de fumaça acinzentada. A atenção dele se volta para Jeb. —
Você, ao contrário, se curvará diante dela.
A fumaça voa na direção de Jeb e se transforma em uma rede em pleno ar, envolvendo-o. O peso o
faz cair de joelhos. Um graveto fere seu joelho no lugar onde a presa do octobenus havia rasgado sua
calça. Pinga sangue do ferimento.
— Ah-há! Ele não é elfo. É um mero mortal. — A mariposa bate as asas como se tivesse feito uma
grande descoberta.
— Um homem mortal! — As fadas guincham com vozes dúlcidas como sinos tilintando. Elas
mergulham das árvores como radiantes flocos de neve, enxameando em volta de Jeb enquanto ele
tenta se livrar da sua prisão de fumaça. As fadas tiram o canivete de suas mãos e depois entram
através da rede, cobrindo-o feito formigas em um torrão de açúcar.
Dou um pulo para espantá-las. — Vão embora!
— Ah, não estrague a brincadeira — sussurra a mariposa em minha direção. — Não vamos
quebrar seu soldadinho de brinquedo.
Pego o canivete e tento cortar a rede com a tesoura, mas as cordas desaparecem em minhas mãos.
Estou tão preocupada que quase perco a transformação que ocorre no alto do cogumelo. A mariposa
ri, e eu olho junto a tempo de ver suas asas se dobrarem sobre seu corpo. Os apêndices acetinados
aumentam até ficarem do tamanho das asas de um anjo, e depois se abrem para revelar o rapaz do
reflexo no meu espelho quebrado — e de minhas lembranças — já adulto.
O canivete me escapa das mãos. Estou mentalmente presa entre o passado e o presente.
Ele tem mais ou menos a mesma idade e altura de Jeb. Está usando um terno preto de couro com
botas utilitárias e se estica sobre o chapéu do cogumelo com a mangueira do narguilé aninhada
elegantemente entre dois dedos e com os tornozelos cruzados. Calças desgastadas cobrem suas
pernas musculosas. Ele é mais magro do que Jeb, mas está em ótima forma. Seu casaco, aberto até
quase o abdômen, revela um peito liso e alvo, como a pele de seu queixo recém-barbeado.
As fadas roubam nosso canivete e nos abandonam, correndo para o seu mestre. Elas enfeitam seu
cabelo e alisam suas roupas, arrulhando e rindo.
Não é surpresa que o pôster de Perséfone parecesse tão familiar. Meu companheiro intraterreno
cresceu e ficou parecido com o herói, só que seu cabelo na altura dos ombros é azul e brilhante, e ele
usa uma meia máscara de cetim vermelho. Exceto por isso, ele é seu sósia perfeito: pele de
porcelana, olhos tão pretos quanto a maquiagem em volta deles, lábios cheios e escuros.
Com a mistura de neblina e fumaça fluindo em volta de suas asas escuras, ele também me recorda
a vitrina de Jenara: um anjo negro.
Embora ele esteja mais para diabo.
Eu sei, porque minhas lembranças de infância retornam em uma onda avassaladora — me
atordoando com o nome que não pronuncio há onze anos.
9
Morfeu
“Morfeu.” Pronuncio, mais como uma acusação do que uma revelação.
O demônio alado mostra seus dentes brancos em um sorriso estonteante que me atrai e me coloca
em guarda. — Hum. — Ele move a mão ao longo do narguilé como se ele fosse um violino. — Sua
voz é uma canção. Diga novamente. — Ele dá uma tragada no cachimbo.
Fico tão extasiada por vê-lo vivo e real que nem tento resistir. — Morfeu.
— Fantástica. Sua mãe deveria saber que é preciso mais do que tesouras de poda para me cortar
de sua vida. Mas parece que ela conseguiu me cortar de suas memórias por algum tempo. — Ele
sopra anéis de fumaça. — Estou magoado, Alyssa. Não deveria ter levado todo esse tempo para você
me encontrar. — Recolhendo os anéis de fumaça em seu dedo, ele os atira ao ar, onde explodem em
estrelas vaporosas.
Jeb, ao meu lado, luta com a rede. — Este é o palhaço que você estava procurando? O do site? —
pergunta ele.
— Mais do que isso — respondo, sem estar segura que as palavras que formo são coerentes. —
Nós crescemos juntos, de alguma maneira. Era ele que frequentava meus sonhos quando pequena.
Não era? Você me visitava em meus sonhos... Me trazia até aqui. Me contava coisas.
— Ensinava coisas é melhor. Ah, mas nós reservávamos tempo para nos divertirmos também.
Tenho que dar um jeito de continuarmos com essa tradição. — Morfeu passa o narguilé para algumas
fadas com seus dedos pálidos e elegantes. Fecho os olhos, lembrando de passagens quando éramos
crianças, pulando nas pedras enquanto Morfeu alçava voo e me levantava por baixo dos meus braços
— uma sensação terna de segurança. Quando volto a abrir meus olhos, enrubesço, lembrando do
quanto seu toque pareceu diferente em meu quarto ontem à noite. Ele fica de pé sobre o cogumelo, as
asas enroladas num arco enquanto apoia as mãos unidas debaixo do queixo.
— O Chapéu da Hospitalidade! — Ele grita de repente, sem o menor sentido.
Várias de suas assistentes pairam sobre ele com um chapéu preto de cowboy e veludo e o colocam
em sua cabeça. Ele o vira meio de lado. O veludo é decorado por uma tira de mariposas brancas em
decomposição, fazendo-o parecer suave e ao mesmo tempo selvagem.
— Ela não tinha o direito de interferir. — Ele corre seu dedo longo pela aba do chapéu. Mechas
de seu comprido cabelo azul tocam seus ombros. — Não era o lugar dela.
Leva um minuto para eu perceber que ele voltou a falar de Alison. — Você a conheceu?
— Sim. De todas as outras candidatas, de todas as suas antecessoras, a mente dela foi a mais
receptiva a mim. Nos conectamos quando ela ouviu o chamado do mundo interior, aos treze anos de
idade. Mas ela deu as costas à sua responsabilidade no momento em que conheceu o Tomatinho. —
Ele sorri desdenhosamente quando fala o apelido de meu pai. Em seguida se recompõe, alisando o
casaco. — Não se importe com tudo isso. Vejo que está usando as luvas. Trouxe o leque também?
— Junto com tudo que ela escondeu.
— E ela achou que seus tesouros enterrados impediriam você de vir. Que pena que as palavras nas
margens estão indecifráveis, não? Ela deveria ter ficado de boca fechada brincando com os seus
cravos.
Cravos? Palavras indecifráveis? A compreensão me arrebata. — Foi você. Você manchou as
anotações para que eu não pudesse lê-las. E na clínica... foi você que quase a matou!
— Não admito nada. Só que ela estava fora de controle. Ela precisava se acalmar, para sua
própria segurança.
— É claro que ela estava fora de controle! Você brincou com a mente dela metade da vida! —
Ranjo os dentes. — É culpa sua ela estar naquele lugar.
Morfeu abre suas asas acetinadas — um movimento que impede que as fadas brilhantes me vejam
e que me lança na sombra. — Agradeça a você mesma por isso. Ela estava lidando bem com as
coisas até você aparecer. Pergunte ao seu pai. Ela nunca conversava com os insetos e plantas antes
de você nascer. Pelo menos, não na frente de ninguém.
— Não — sussurro.
— Não dê ouvidos a ele, Al. — Jeb tenta me confortar. — Sua mãe te ama.
Morfeu ergue as mãos sobre a cabeça e aplaude. — Bravo, gentil Cavalheiro. Todas vocês viram
isso? — As fadas entram na falsa celebração, dando voltas no cogumelo, todas exceto Gossamer, que
fica sentada no narguilé, observando num silêncio majestoso.
— Mas que gesto nobre! — continua Morfeu, andando pomposamente no alto do cogumelo. —
Preso e incapaz, mesmo assim seu único pensamento é defender a sensibilidade ferida da donzela. E
eu devo dizer que ele está certo. — As fadas silenciam seus cumprimentos zombeteiros, confusas.
Com um agitar de asas, Morfeu flutua e pousa graciosamente diante de mim — belo e sombrio. —
Sua mãe realmente a ama. Muito, muito mesmo.
Minhas pernas tremem, mas sustento o olhar sobre ele, com o desprezo queimando meus olhos por
trás.
— Fique longe dela. — Jeb atravessa um punho pela rede e roça a perna de nosso anfitrião.
Morfeu esquiva-se. — Ah, ah, ah. — Ele faz com que a fumaça desapareça e a rede também,
deixando os pulsos, os tornozelos e o pescoço de Jeb amarrados à base do cogumelo. — Se você se
comportar como um macaco adestrado, será tratado como um.
— Idiota! — Invisto com a mão aberta, mas Morfeu agarra meu pulso no ar. O impacto sacode
meus ossos e acirra a dor de minhas contusões.
— É esse o fogo. — Morfeu inclina a cabeça, e a expressão em seu rosto é ao mesmo tempo de
diversão e surpresa. — É bom ver que ele ainda queima.
— Tire as mãos, seu filho de inseto! — Jeb luta contra as algemas de fumaça, o rosto ficando
vermelho pelo esforço de tentar chegar até nós.
Rindo, nosso captor inclina-se sobre mim, ainda segurando meu pulso. — Ah, eu gosto mesmo
dele — murmura. — Um artífice das palavras. — Ele está tão perto que seu hálito com sabor de
fumaça penetra em mim, doce feito mel e forte como a seda da aranha, um conforto da minha infância.
— Quanto a você... Isso é maneira de tratar um velho amigo? Depois de tudo que vivemos? Tsc, tsc...
Fico tentada a me aproximar, buscar mais dessa sensação sedutora. Mas o desejo não é meu. De
alguma maneira, ele está me manipulando. Tem que estar.
Eu o ataco. Suas unhas se enterram em minha luva, fazendo meu punho vibrar.
Os olhos negros brilham, frígidos e duros por trás de sua máscara. — Pare de lutar e escute. Sua
mãe não tinha que virar as costas para mim. Ela não tinha que ir para a casa de loucos para proteger
você.
— Espere. — Um alarme dispara dentro de mim. — Está dizendo que ela escolheu ir para lá?
— Ela só precisava estar a alguns quilômetros de distância de você. Ela poderia ter pedido o
divórcio, se mudado para o outro lado da cidade, dado ao seu pai a custódia total. Mas ela amava
demais vocês dois para magoá-los tanto assim. Ela queria fazer parte de suas vidas... E ao mesmo
tempo mantê-los seguros. Então, sacrificou sua vida. É a mais pura forma de amor.
— Está mentindo. — Minha acusação emerge com uma lufada de ar.
— Estou? Você é a única que eu alcancei ainda bem jovem. Você e sua mamãe tinham uma
conexão mais forte do que qualquer coisa que eu já encontrara. Consegui usar os sonhos dela como
um condutor para os seus. Quando ela percebeu o que eu estava fazendo, ficou louca. Mas foi uma
loucura temporária. Que não haja dúvida — a fantasia de Alice, a obsessão pelo chá da tarde, os
estalos da língua, conversar em voz alta com insetos e flores —, todos esses tiques que ela
desenvolveu foram orquestrados por ela, para que ela fosse mantida longe de você. Por respeito ao
sacrifício dela, prometi eu mesmo não mais me aproximar de você.
— Então quebrou sua promessa — sussurro.
— Não. Havia uma brecha, sabe? — As articulações de sua mão livre roçam a minha têmpora. Seu
toque é caloroso e delicado. — Você encontrou a mim. Como foi você quem me procurou primeiro,
você me libertou dos vínculos da promessa. Menina esperta, muito esperta. Agora você está aqui
para arrumar as coisas, não está, minha joia? Para reparar o que Alice estragou. Para consertar o
País das Maravilhas, quebrando assim a maldição sobre o nome de sua família. As conversas com
insetos e flores... Os laços com esse reino. Você não estará mais enfeitiçada. Por fim, sua mamãe
poderá parar de fingir ser completamente maluca, porque não mais necessitarei de ninguém de sua
linhagem.
Meu peito dói, como se alguém usasse meu coração como um saco de pancadas. Foi por isso que
Alison disse aquelas coisas no pátio... Que, se eu prosseguisse com meu plano para encontrar a toca
do coelho, ela teria feito tudo por nada. Ela suportou tantos anos de humilhação, medicamentos e
horror porque esperava manter-me afastada daqui. E eu fui e arruinei tudo ao procurar por Morfeu.
O que torna o plano do meu pai e dos médicos ainda mais devastador.
— Minha culpa — sussurro, tentando não chorar. — Tudo que aconteceu com ela... É minha culpa.
— Al, não deixe que ele a culpe! — O ruído produzido por Jeb, lutando com as algemas, é quase
inaudível para mim.
Morfeu levanta meu queixo. — Sim, não se culpe. Porque você descobriu a toca do coelho e foi
corajosa o suficiente para mergulhar nela. Você é a única que teve tanta astúcia e coragem desde a
própria Alice. E você já conseguiu secar o mar que ela deixou para trás. Você vai reparar tudo para
a sua mamãe. Para todos nós. Você é muito especial, Alyssa. Muito especial mesmo. — Ele puxa o
meu punho, levantando-me até eu ficar na ponta dos pés e meu nariz tocar a borda inferior de sua
máscara. Ele está tão próximo que quase consigo sentir seus lábios com sabor de alcaçuz.
Um estalo forte irrompe no ar e Morfeu me liberta. Volto a pisar sobre meus calcanhares. As fadas
guincham quando as amarras de Jeb se soltam do cogumelo.
Jeb rola no chão e sacode as pernas com força. As algemas quebradas — ainda em seus
tornozelos, pescoço e pulsos — o seguem feito a cauda espiralada de um escorpião, e atingem
Morfeu, derrubando-o no chão. O impacto faz seu chapéu cair e evapora a fumaça, deixando os dois
homens a lutar em um emaranhado de asas e membros.
Jeb monta em Morfeu e aperta seu pescoço. — Eu disse para não tocá-la. — Sua voz profunda é
rouca, mas calma, fazendo os pelos de minha nuca eriçarem.
Morfeu comete o erro de rir, e Jeb surta. Com uma mão apertando o pescoço de Morfeu, ele o soca
com a outra, amassando a máscara de cetim. Morfeu vira a cabeça para desviar do golpe. Suas asas
estão tortas e são inúteis debaixo dele.
Contraio meus músculos. Estou em guerra comigo mesma. Uma parte de mim deseja defender
Morfeu — explicar seus motivos para Jeb; a outra parte torce para que Jeb faça picadinho dele. Eu
me dobro, minhas têmporas latejam enquanto me afogo em um mar de lembranças distorcidas e
emoções desmembradas. As fadas choramingam, reunidas nos galhos acima de nós. Elas obviamente
nunca viram seu mestre ser atacado por alguém.
Morfeu estica os joelhos para tirar Jeb de cima dele e eles giram pela grama fluorescente,
deixando um rastro. Desta vez, Morfeu termina por cima. Suas asas se desdobram feito uma tenda. O
contorno do rosto de Jeb aparece, pressionado contra a membrana preta do outro lado. Um
movimento de sugar o ar revela o contorno de sua boca.
Ele está se sentindo sufocado.
Atravesso meu labirinto mental e lanço-me na direção de Morfeu, derrubando-o. Ele rola no chão,
envolto dentro de suas asas como uma pupa.
Ao cair de joelhos, encosto o rosto no de Jeb. Sua respiração aquece meu nariz, lenta e estável,
mas ele não abre os olhos. — Jeb! Acorde, por favor... — Arrasto seus ombros para o meu colo e
aninho sua cabeça.
Morfeu está de pé, limpando-se.
— O que você fez? — grito.
Ele ajeita sua máscara amarrotada e depois estica cada uma das asas por sobre os ombros,
passando as mãos para verificar se ficaram danificadas. — Ele só está inconsciente. — Colocando
de volta o chapéu, Morfeu toca as marcas de dedos em seu pescoço, com os olhos sombrios. — Foi
uma gentileza. Eu poderia tê-lo matado. — Ele grunhe. — Na verdade, deveria. Estou certo de que
me arrependerei dessa decisão.
Ao olhar para seu harém, Morfeu convoca as fadas para descerem. — Levem o pseudoelfo para a
casa. Despertem-no de seu torpor. Façam-no sentir-se bem-vindo como só vocês podem fazer.
Gossamer é a primeira a descer das árvores. Parece haver ainda mais fadas agora. Seguindo sua
líder, elas descem em torrentes, formando uma chuva faiscante.
— Não! — Atiro-me na frente de Jeb. Afasto-as com meus punhos. Sob a ordem de Gossamer,
elas colidem com meus braços e costelas em velocidade total, atingindo-me feito granizo. Recuso-me
a me mexer até que Morfeu me agarra pelo colarinho e me força a levantar.
Minha resistência ao seu domínio só o torna ainda mais resoluto. Seu braço envolve minha cintura,
duro e forte como uma garra de metal. Ele aperta minhas costas contra sua lateral, e meus pés ficam
suspensos. Cinquenta fadas ou mais levantam Jeb pelas roupas. A cabeça dele pende, sua camisa e
calças franzem onde elas seguram, como se ele estivesse sendo içado por cordas.
— Jeb! — grito. Lágrimas borram minha visão quando ele não responde. — Tenham cuidado com
ele.
As pequeninas fêmeas só conseguem erguê-lo a poucos centímetros do solo, e a grama alta se
curva sob seu peso conforme ele é levado da clareira. Algumas das fadas restantes puxam a mochila
no final da procissão. Quando o último trecho de grama se ergue atrás delas, empurro Morfeu e me
liberto, mas só porque ele assim permite.
— Se nosso tempo juntos significa alguma coisa para você, não irá machucá-lo. — Lágrimas
cálidas me lavam a face.
Morfeu estende a mão para apanhar uma lágrima com a ponta de um dedo. Ele a eleva contra o
brilho suave que irradia das poucas fadas que ainda permanecem sobre nós. Em seguida, arqueia os
lábios de maneira inusitada. — Você chora por ele, mas sangra por mim. Deve-se perguntar qual é
mais poderoso. Mais comprometedor. Suponho que um dia saberemos.
Minha garganta fica seca. — Do que está falando? Sangro por você?
Ele esfrega a minha lágrima em sua pele como se fosse perfume. — Tudo a seu tempo. Quanto ao
seu soldadinho, não chore por ele. Ele vai receber atenção mais que suficiente. E, quando ele estiver
inconsciente em seu êxtase, esquecerá onde está e com quem veio. Embora eu imagine que terei de
enviá-lo para alguma outra parte do País das Maravilhas para mantê-lo longe de você.
O terror me invade. Já é muito ruim aquelas minininfetas seduzirem Jeb, mas, se elas vão fazê-lo
esquecer quem ele é, ele ficará perdido aqui para sempre. Jeb está aqui por minha causa. Ele não
merece um fim desses. — Por favor, mande-o de volta para o nosso mundo.
Morfeu dá de ombros. — Não é possível. Estamos tendo uns probleminhas de transporte aqui no
reino interior.
— Não pode ser.
Ele se aproxima. — Não pode?
Dou dois passos para trás. — Você me visitou em casa, no trabalho. Ficou me observando. Quase
sufocou Alison com o vento...
Ele joga a cabeça para trás e ri, levantando os braços como se fosse um grande ator. — Imagina
só. Eu, controlando o vento e o tempo. Ora, eu devo ser um deus.
Eu o encaro firmemente. — Sei muito bem o que vi.
Ele estica as mangas. — Eu usei os reflexos para visitá-la. O globo na clínica, os espelhos da
loja... Os espelhos de sua casa. Através deles, projetei uma ilusão, mas não podia me materializar
totalmente porque os portais estão obstruídos. Sua mente foi meu palco. Ninguém mais pôde me ver,
ouvir ou sentir. Só você. E você me sentiu mesmo, não é, amor?
Pensar no modo como sua respiração-fantasma me fez comichar o pescoço quando ele sussurrou
— quente e provocador — me deixa confusa até a medula. Ergo o queixo, uma pobre tentativa de
esconder seus efeitos em mim. — Havia magia... Na trança da minha mãe. Ela se movia, prendeu
meus dedos em volta da garganta dela. Foi você.
Ele esfrega as unhas na lapela. — Foi magia, admito. Magia mal orientada. E não foi minha.
— O que isso quer dizer?
— Você ainda não está pronta para essa resposta.
Cansada de suas manipulações, empurro-o e o desequilibro, correndo para a abertura nas árvores
por onde desapareceram as fadas, quase tropeçando em mim mesma na minha ânsia de encontrar Jeb.
Ouço um poderoso farfalhar de asas acima de mim; em seguida, Morfeu barra meu caminho. Eu paro,
derrapando.
Ele se agacha com as asas abertas paralelas ao chão e me encara atentamente, como uma ave de
rapina gigante — sombria e perigosa. Estou acostumada com este lado dele... Seu lado escuro e
temperamental. Não haverá discussão sensata com ele a menos que eu assuma o controle.
Ele fica parado e me pega pelos ombros antes que eu possa fugir novamente.
— Chega de brincadeiras — dispara ele. — É hora de você cumprir seu destino. Não passei o
primeiro terço de sua vida treinando-a em vão. Alice deixou perturbações em nosso mundo que só
você pode reparar. Esperei 27 anos para este dia chegar... Fiz sacrifícios demais para ver tudo cair
por terra. Você vai consertar o que ela quebrou, e isso abrirá o caminho para que você quebre a
maldição e volte para casa. Até lá, eu dito as regras.
Alice deixou perturbações em nosso mundo que só você pode reparar. As flores zumbis disseram
algo assim. Que somente um descendente de Alice poderia ajudar a consertar tudo. E o octobenus
insistiu que o Sábio — Morfeu — estava desesperado por minha ajuda. Desesperado.
Foi ele que me sugeriu trazer a esponja, era ele que vinha me ensinando sobre o País das
Maravilhas havia anos. Por quê? Ele deve ter algum tipo de interesse pessoal nisso tudo.
— Você precisa de mim. — Levanto a voz, arriscando minha suposição. — Não é que minhas
ancestrais não tenham conseguido encontrar o caminho para cá. Elas não quiseram vir. Temos que
querer. Você não pode forçar. Sou a primeira que quis chegar tão longe, e não tenho que fazer nada
que você me pede. Então, e se eu ficar presa aqui? Sempre fui o peixe fora d’água. Sempre aprendi a
conviver com isso. Alison... ela vai sobreviver, como sempre.
Morfeu não tem que saber a verdade: que a qualidade da vida de Alison depende do meu sucesso.
Prevejo que continuarei com este blefe até o fim.
— Essa é sua única chance. — Coloco as mãos na cintura. — Acabe comigo e poderá terminar
esperando mais 75 anos.
Uma expressão estranha paira sobre o rosto de meu companheiro de infância. Se não fosse pela
máscara, eu poderia interpretá-la melhor, mas parece haver um lampejo de orgulho.
Seus dedos em meus ombros relaxam um pouco. — Quais são as suas exigências?
— Jeb e eu voltaremos a nos unir hoje. Você vai cancelar suas fadas e deixar a memória dele
intacta. Ele será tratado como igual, não como seu peão. E eu quero clareza... Como pode alegar ser
amigo de Alison, se você e eu crescemos juntos? Como sabia sobre meus ancestrais se você tem a
minha idade? E qual é o seu interesse nisso tudo?
Ele me liberta. — É só isso que pede?
Repassando o que o octobenus disse sobre votos entre os intraterrenos — um fato confirmado pela
promessa que Morfeu fez a Alison de não me contatar —, acrescento mais uma coisa. — Quero sua
palavra... Um juramento.
— Arre! — Suspirando, ele leva uma mão ao peito, como se estivesse jurando lealdade. — Juro
sobre a magia de minha vida não mandar embora e nem prejudicar seu precioso amigo desde que ele
seja leal a você e à sua digna causa. Mas me reservo o direito de enfrentá-lo em qualquer
oportunidade que se apresente. Ah, e terei prazer em elucidar todas as suas dúvidas. — Ele faz uma
reverência — em cada detalhe, um cavalheiro.
Terno de couro e máscara amarrotada, aquele chapéu morbidamente sexy. Ele acha que é um astro
do rock. E talvez seja, neste lugar. Mas ele deu a palavra e tem que cumpri-la, ou suas asas irão
murchar e ele perderá seu encanto.
Endireitando-se, ele dá um passo para a frente de modo que sua bota toca na minha. — Pronto.
Agora que aquele desconforto se dissipou, vamos continuar? Como agora estamos ambos adultos,
temos que nos reapresentar.
Examino as árvores. Todas as fadas se foram. Meus nervos estão à flor da pele. — Onde estão
todos?
— Preparando um banquete de celebração para nós na mansão. Não temos damas de companhia.
Podemos aproveitar.
Em pânico, dou um passo para trás, mas as asas dele me envolvem e me mantêm no lugar,
obscurecendo tudo, exceto ele. É como se estivéssemos em uma caverna.
Sua pele é quase translúcida sob a luz tênue. — É hora de me deixar entrar, adorável Alyssa.
Antes que eu possa responder, ele tira a máscara e a joga na grama. O que eu pensava ser
maquiagem em volta dos olhos são, na verdade marcas permanentes — como tatuagens, mas internas.
São pretas feito cílios postiços, com safiras em formato de lágrima rematando as extremidades
pontudas. O efeito é lindo, mas um tanto macabro e circense. Não consigo resistir ao desejo de
levantar a mão e tocar as lágrimas faiscantes. As joias lampejam por meio de um espectro de cores
até não serem mais safiras azuis, mas topázios flamejantes — alaranjados e quentes. Seus cílios se
fecham como que em êxtase por dois segundos. Depois, seus olhos de tinta se abrem e me engolem
inteira.
— Não tenho idade. — A voz dele ecoa dentro de mim, mas seus lábios não se movem. — Posso
usar a magia para imitar a idade que quiser. Usar este poder afeta a mente, o físico e a emoção
dos intraterrenos. Nos tornamos a idade, de todos os modos. Então, em essência, a única infância
que tive foi com você em seus sonhos. Abra sua memória e verá.
A canção ganha vida mais uma vez — o acalanto de Morfeu.
Desta vez, não coloco resistência. Envolvo minhas lembranças nas notas fluidas, permitindo que
elas permeiem cada pensamento até...
Pedaços do meu passado são projetados feito filmes na tela negra de suas asas. Sou eu, recém-
nascida, chorando no berço. Um cobertor de cetim me envolve — vermelho com acabamento branco.
Minha janela está aberta e uma brisa de verão agita as cortinas de ilhoses, movendo o móbile acima
de minha cabeça. Cavalos balançam e bailarinas dançam sobre mim.
É a canção que me acordou. Não a música do móbile, mas a canção dele. A lua brilha e ele está
aqui, uma silhueta de mariposa pendurada na parte de fora da tela. Sua voz profunda penetra no
quarto, soa suave e gentil:
— Vermelha e branca, a florzinha, descansando a cabecinha; cresça e floresça, seja forte e
espertinha, pois um dia você vai...
Antes que eu possa finalizar o verso, sou jogada em outra memória. Esta é nebulosa, como se eu
estivesse olhando por um vidro manchado. Percebo que é porque estou sonhando. Sou uma criança
pequena, não mais de três anos, andando com um Morfeu de seis por uma praia escura e radiante.
Suas pequenas asas se dobram sobre nós para fazer sombra. Eu seguro sua mão, maravilhada pelo
espetáculo de brilho que se descortina diante de nós: uma árvore feita de joias. Morfeu se agacha
para apontar o labirinto na base da árvore e então enrola suas mangas de renda para revelar uma
marca igual em seu antebraço. Viro meu tornozelo, fazendo a conexão. Ele me ajuda a pressionar
minha marca de nascença contra o tronco. Quando o portão se abre, ele dá pulos e dança. — Temos
as chaves! Temos as chaves! — Sua pequena voz exclama em contentamento infantil. Dou risada,
pulando atrás dele.
Depois, volto à minha casa dois anos mais tarde. É manhã de sábado e sou atraída até a porta de
tela pela canção de Morfeu — agora tão familiar quanto os lençóis rosados da minha cama. O
perfume de uma tempestade de primavera atravessa a rede. Ele aguarda em forma de mariposa do
outro lado. É nossa rotina: eu brinco com ele, meu amigo de infância, em meus sonhos noturnos —
explorando nosso mundo encantado nos lampejos que ele me proporciona —, depois o vejo em
intervalos durante o dia, como inseto. Mas seus ensinamentos já estão entranhados em minha cabeça,
ganhando vida em uma sensação esvoaçante de confiança que me impele para encontrar uma saída.
Logo, estou dançando com a minha mariposa em nosso jardim. Mamãe me vê. Correndo para fora,
ela leva tesouras de podar longas e afiadas e corta pétalas de flores, gritando “Vou cortar sua
cabeça!” Quando percebo o que ela quer realmente, um estranho desconforto me agita por dentro. Eu
vi como as pétalas se esfrangalham perante as lâminas. Não quero que ela estrague as asas lindas da
minha mariposa. Levanto as mãos para deter a tesoura. A mariposa escapa ilesa. Mas eu não tenho
tanta sorte...
Saindo do transe, atiro-me ao chão e aperto as mãos doloridas contra o peito. As cicatrizes pulsam
como se fossem recentes. Morfeu inclina-se sobre mim, afagando meu cabelo. — Eu lhe disse que
você era especial, Alyssa — murmura ele, o peso de sua mão estranhamente confortando o algo de
minha cabeça. — Ninguém jamais sangrou por mim. A lealdade de uma criança por outra é
imensurável. Você acreditou em mim, compartilhou novas experiências comigo, cresceu comigo. Isso
conquistou minha sincera devoção.
Enfim, compreendo. A outra lembrança, a que presumi que fosse real durante todos esses anos, foi
colorida pelo que meu pai pensava ter acontecido. Pelo que ele testemunhou quando olhou pela
janela da cozinha, onde estava fazendo panquecas. Ele achou que eu estava dançando atrás de Alison,
quando o tempo todo eu estava tentando proteger meu amigo.
Alguém que eu pensava ser meu amigo. Um amigo sai voando e deixa você sangrando e de
coração partido?
Estou aos pedaços. Todas as revelações se misturam em minha mente, demais para assimilar. O
trauma que meu corpo enfrentou nas últimas horas cobra seu preço. Minhas contusões palpitam e
meus membros parecem pesados como pedras.
Ainda de joelhos, inclino-me sobre as coxas de Morfeu — um apoio sólido. O couro frio de suas
calças acomoda minha face. Fecho os olhos. Sim... já estive aqui antes, abraçando-o em segurança.
A princípio, penso estar imaginando quando ele se curva para me receber em seus braços. Mas,
quando o perfume de alcaçuz e a pele quente me envolvem, sei que é real.
— Você foi embora — acuso-o, me esforçando para ficar acordada. — Eu estava ferida... e você
me deixou.
— Um erro que eu juro pela magia de minha vida nunca cometer novamente. — Apesar de ele
estar me abraçando, sua resposta parece distante. Mas a distância não importa; ele deu sua palavra.
Eu o lembrarei disso.
Meus olhos estão entrecerrados e vejo sombras se formarem sobre nós. Ou serão asas?
Por um momento, a preocupação com Jeb me volta à mente; depois, mergulho num sono escuro e
sem sonhos.
10
Mais e mais
curioso
Sinto-me quente... quente demais. Uma névoa azulada brilha e depois escurece — como o sol
refratando ondas. O fluxo da água goteja perto de mim, e ainda mais perto escuto o farfalhar de
roupas.
— Jeb?
— Calma, amor. — Morfeu está sentado ao meu lado — a pele com aroma de alcaçuz, o cabelo
azul e selvagem, olhos tatuados com pontos de pedras preciosas. Agora me lembro. Ele me tirou do
covil do cogumelo e me trouxe para cá. Acordei no meio do voo e desmaiei por causa do meu medo
de altura, acordando novamente por um instante enquanto ele me arrumava em sua cama.
A névoa azulada é, na verdade, lençóis de água que caem da elegante cobertura ligada à estrutura
da cama. Cortinas líquidas.
As asas de Morfeu cortam a queda de água e a desviam, mantendo-o seco. Cada vez que ele muda
de posição, a cortina aquosa se move junto, como se fosse traçada uma espécie de barreira invisível
entre ele e a água que cai.
Tento sentar, mas a pilha de cobertores é muito pesada. A claustrofobia faz meu coração pular.
— Morfeu? — Minha voz estala, seca e áspera, como se eu tivesse comido bolachas salgadas.
Deve ser de todas as lágrimas que engoli no oceano.
Ele está deitado ao meu lado no colchão, apoiado no cotovelo. Seus dedos percorrem os fios de
cabelo platinado que se espalham sobre o travesseiro em torno de minha cabeça. — Você estava
chorando enquanto dormia. Está sofrendo?
Faço um sinal positivo com a cabeça, procurando tirar minha mão de debaixo dos cobertores para
tocar minha garganta. — Jeb — murmuro.
Morfeu franze a cara. — Seu amigo está a salvo e descansando no quarto de hóspedes. O que
significa que você é minha por enquanto. — Ele começa a afastar as cobertas.
O que parecia sufocante minutos atrás agora parece uma armadura sendo arrancada. Não sei ao
certo o que estou usando debaixo das cobertas, então me agarro ao último cobertor na altura da
clavícula.
Morfeu inclina-se mais. Seu cabelo roça meu ombro à mostra, comichando com suavidade. —
Florzinha tímida — sussurra ele, o hálito doce me envolvendo. — Nós simplesmente vamos misturar
sua dor e fazê-la sumir.
Misturar... Não soa como algo que meu pai aprovaria. Nem Jeb, por sinal. Começo a empurrar
Morfeu para trás, mas o cobertor escorrega pelo meu corpo a um sinal de seus dedos pálidos e
elegantes. Me resta uma longa camisola champanhe de cetim com alcinhas. Ela cobre todos os
lugares certos, mas sinto-me exposta. Morfeu teve que me ver nua para vesti-la em mim. Cruzo os
braços sobre o peito, com o rosto em flamas.
Ele sorri. — Não se preocupe. Minhas queridinhas a despiram. E levaram suas roupas para serem
queimadas.
— Queimadas? Mas... Eu não tenho mais nada...
— Agora fique em silêncio e não se mexa.
— Você mencionou um banquete. Não vou vestida assim de jeito nenhum. — Aperto os braços em
torno de mim mesma.
Ele balança a cabeça e depois empurra a bainha da minha camisola até ela chegar ao tornozelo,
deixando à mostra minha marca de nascença. Sento-me, prestes a puxar a perna, mas seus olhos
escuros e profundos se voltam para os meus. — Confie em mim.
A sensação palpitante em minha mente me incita a ouvir. Aqui neste lugar, onde não tenho mais o
ruído das vozes me distraindo, posso escutar meus pensamentos com mais clareza pela primeira vez
em anos. Posso compreender aquela palpitação em minha mente. Essa sensação pulsante — sou eu.
Tenho outro lado, além da boa moça e da filha obediente, que é instintivo e selvagem.
É esse lado que escolhe confiar nele, apesar do nosso passado bizarro... Ou talvez por causa dele.
Enrolando a camisa até o cotovelo, Morfeu exibe uma marca de nascença idêntica na parte interna
do antebraço — da qual me recordo nos meus sonhos. Intrigada por nossa semelhança, seguro o pulso
dele com uma mão, percorrendo as linhas com a outra. O labirinto brilha sob meu toque. Sua
expressão muda, e um ruído abafado lhe escapa da garganta — algo entre um ronronar e um rosnar. O
braço dele se retesa, como se fosse necessário muita concentração para não se mover enquanto sacio
minha curiosidade.
Ele é uma contradição: magia contida pronta para entrar em ação, gentileza em guerra com a
severidade, uma língua tão afiada quanto a ponta de um chicote, mas a pele tão macia que a sensação
é a de que ele está envolvido em nuvens.
Sustentando seu olhar, lembro o que misturar significa. Tomo a atitude de pressionar nossas
marcas de nascença uma contra a outra. A união produz calor, como quando Alison curou meu
tornozelo e joelho, embora esta seja uma reação mais volátil. A calidez me ferve o corpo inteiro,
deixando-me rubra da cabeça aos pés.
Morfeu me convida a deitar e abaixa a barra da camisola, e, em seguida, levanta o cobertor até o
meu queixo. Ele coloca o chapéu na cabeça em certo ângulo. Suas asas se erguem quando ele levanta,
e a cortina de água se eleva em um arco em torno dele.
— Não saia daqui até eu voltar com alguma coisa para sua garganta. — Sua voz tem um tom
rústico que deixa meu corpo ainda mais quente.
Quando ele recua, a cortina de água se fecha, deixando-me sem visão para o exterior. No minuto
em que ouço a porta da sala se fechar, apresso-me a sair das cobertas, pressiono minhas costas
contra a cabeceira e recolho os joelhos para perto do queixo, tremendo ao sentir uma corrente de ar
frio.
Fecho os olhos e penso naquela sensação — o pulsar de sua magia junto ao meu dedo, sua pele
junto à minha. Esfregando minha marca de nascença, livro-me da euforia.
Quanto mais me lembro de Morfeu e deste lugar, mais me esqueço de mim mesma... Ou de quem eu
achava que era.
Por que Alison não me contou? Se ela tivesse sido honesta, eu não estaria confusa deste jeito
enquanto o Jeb está trancado em outro lugar.
A culpa me golpeia o coração. Ela estava tentando me proteger. Ela irá receber um tratamento de
eletrochoque desnecessário se eu não quebrar a maldição e voltar depressa.
Instintivamente, estendo a mão na direção da cortina líquida e desejo que a água reaja a mim do
modo como reagiu a Morfeu. Ela se ergue feito uma coisa viva, deixando-me seca. Agarro um
cobertor, amarro-o nos ombros, improvisando um manto, e atravesso num pulo, aterrissando em um
tapete felpudo. Ainda sinto os músculos um pouco doloridos. Fora isso, nada mais me dói.
Giro o corpo sobre o calcanhar. A decoração da sala me parece ligeiramente familiar — selvagem
e deslumbrante, assim como seu habitante. Não existem janelas nem espelhos. Uma luz suave e âmbar
cai do gigantesco candelabro de cristal que ocupa grande parte do teto arredondado. Veludo dourado
e roxo cobre as paredes, intercalado com ramos de hera, conchas do mar e plumas de pavão.
Uma série de prateleiras de cristal ocupam a parede à esquerda. Metade delas contém chapéus de
todos os tipos e tamanhos decorados com mariposas mortas; a outra metade contém o que primeiro
aparentam ser casinhas de boneca de vidro transparente. Depois percebo que são terrários.
Dentro dos terrários, mariposas voam de um lado para o outro e se aninham em folhas e ramos.
Teias espessas revestem os painéis de vidro em alguns pontos, parecidas com as teias no meu
pesadelo de Alice. São casulos — lagartas se transformando em mariposas. Ao ouvir a queda
d’água, penso em como as asas de Morfeu cortaram o líquido e comparo a cena ao meu sonho no
barco a remo, quando uma lâmina negra estava prestes a cortar a teia.
Não era uma lâmina.
Com um ruído, a porta se abre e eu me volto, com o coração aos pulos.
Morfeu atravessa a soleira da porta e nos fecha lá dentro. — Já levantou? E sem uma gota de água
no corpo. — Ele traz uma bandeja com um bule de chá e xícaras de porcelana combinando. — Muito
bem.
— Você. — Aponto o dedo trêmulo para os casulos. — O pesadelo que eu tenho há anos. Foi você
que o colocou na minha mente, não foi?
Ele retesa a mandíbula enquanto coloca a bandeja sobre uma mesa de vidro. — Que pesadelos
seriam esses? Eu não me conecto mentalmente com você desde que sua mãe foi internada... Ontem foi
a primeira vez. — Ele serve chá em uma xícara. Ondas fumegantes preenchem a sala, espalhando
notas de mel e frutas cítricas pelo ambiente.
— Eu sou Alice — digo — em busca da Lagarta. Eles vão cortar minha cabeça. Ele é o meu único
aliado. — Esfrego o pescoço. — Espere, não. Tem também o Gato de Cheshire. Mas nenhum deles
pode me ajudar. O Gato perdeu o corpo, e a Lagarta... — Olho para os recipientes de vidro. — É
você, preso dentro do casulo.
Morfeu atrapalha-se com a tampa do bule, provocando um ruído alto. Quando ele se volta para
mim, seus olhos estão arregalados. — Você se lembra. Depois de todos esses anos, você ainda
reteve os detalhes.
— Detalhes do quê? — Minhas pernas ficam bambas, e aperto o cobertor mais forte em volta do
pescoço.
Morfeu aponta a cadeira ao lado dele. — Sente-se.
Como não me movo, ele pega minha mão e me conduz. Ele está usando luvas pretas, que lembram
as luvas com as quais sonhei no barco. Estou prestes a comentar sobre isso quando ele me dá uma
xícara.
— Tome um pouco de chá e vamos repassar a história.
Repassar?
Enquanto ele se serve de chá, tomo um gole do meu. O líquido quente e doce acalma minha
garganta. Passo um dedo na mesa embaixo do pires. A superfície é um tabuleiro de xadrez, preto e
prateado. Uma chapa de vidro o cobre para protegê-lo de gotas e arranhões. Peças em jade — peões,
torres, cavalos e outras — estão distribuídas em um padrão incomum. Frases flutuam sobre três
quadrados prateados, como por um passe de mágica, em letras pequenas e brilhantes. Inclino-me para
ler, pegando as palavras oceano e mão, e então Morfeu passa a luva sobre o vidro e as borra.
— O que era aquilo? — pergunto.
— É assim que fico a par de seu progresso.
— “Progresso.” Pode explicar melhor? — Tomo outro gole de chá.
Suas asas se estendem pelos dois lados de sua cadeira quando ele se senta diante de mim,
colocando seu chapéu sobre a mesa. — Eu preferiria mostrar.
Ele retira uma pequena caixa de cobre de uma gaveta do seu lado da mesa. A tampa se abre e
Morfeu a entorna. O conteúdo se espalha sobre o tabuleiro de xadrez, uma série de pequeninas peças
de jogo. Estas também são de jade: uma lagarta fumando um narguilé, um gato com um sorriso
arrojado, uma menininha de vestido e avental. Há outros personagens, também, todos familiares.
Morfeu e eu jogávamos com eles quando eu fazia minhas visitas durante o sono.
Estendo a mão para pegar o boneco de Alice e o levanto, correndo o dedo pelas linhas de seu
avental. Com a parte externa em tom marmoreado com traços de verde, ela parece diferente das fotos
— mais frágil. Preciosa e rara, como a pedra na qual ela foi esculpida.
Morfeu ergue sua xícara e me observa por sobre a borda enquanto bebe, e em seguida a repousa no
pires, tilintando. — Ela sempre foi a sua favorita.
Fico ao mesmo tempo lisonjeada e assustada com a expressão de adoração que percorre o rosto
dele. Uma confusão nostálgica invade meu peito. — Você me contava uma história com elas.
— Contava, sim. Ou melhor, nós a assistíamos.
— A assistíamos?
As joias sob seus olhos cintilam, mudando para um azul pacífico. — Como está se sentindo,
Alyssa?
Intrigada com a pergunta, franzo a cara. — Bem. Por que pergunta? — Assim que termino de falar,
a sala começa a girar, as peças de xadrez giram junto. Minha xícara de chá entorna e metade de seu
conteúdo é atirado ao ar. Levo as duas mãos à garganta. — Você colocou alguma coisa na bebida...
— Estou só lavando o palato de sua mente. Você precisa estar relaxada e leve como uma pluma
para canalizar sua magia nos estágios iniciais. Senão, ela virá em ataques e surtos e ficará
incontrolável, como ficou no asilo. — A voz desincorporada de Morfeu flutua em volta de mim, e o
candelabro pisca — do escuro para a luz, do escuro para a luz.
— Está dizendo que...? — Não, não é possível. — Eu estava controlando aquela magia? — Pensar
que tive algo a ver com o quase sufocamento de Alison faz minhas entranhas tremerem.
— Fora de controle é mais apropriado — corrige Morfeu, zombando. — Você estava consternada
demais para fazê-la funcionar de modo adequado.
Esforço-me para encontrá-lo em meio ao caos, sentindo a necessidade de ver seu rosto para saber
se ele está falando sério. — Mas como?
— No momento em que sua mente aceitou a possibilidade de que o País das Maravilhas fosse real,
ela liberou o vácuo de dúvida que a mantinha presa — explica ele, de algum lugar acima de mim. —
Agora, pare de pensar como humana. A lógica dos intraterrenos reside na nebulosa fronteira entre a
razão e a loucura. Mergulhe nessa lógica, visualize as peças de xadrez ganhando vida; veja, e tudo
será.
Cética, giro num círculo de antigravidade por tudo na sala: as prateleiras de vidro, os chapéus, a
mesa e o tabuleiro de xadrez. A cortina de água da cama forma um funil em torno de nós, balançando
e rodopiando, procurando não tocar em nada. A estátua de Alice escorrega de minhas mãos enquanto
tento manter o equilíbrio na sala que rodopia. Sem muita convicção, penso que ela pode me alcançar,
pegar minha mão, mas ela sai do meu ângulo de visão.
— Era uma vez uma menina chamada Alice — conta Morfeu, com voz líquida e calmante. Ainda
não consigo vê-lo. — Ela era inocência, doçura, felicidade e luz. Talvez seu único defeito fosse ser
muito...
— Curiosa — acrescento à fala dele, e, naquele instante, as peças de xadrez crescem até o
tamanho de seres humanos. Esforço-me mais ainda para imaginá-los vivos: visualizar sangue
correndo em seus corpos entalhados como riachos límpidos através das montanhas, imaginar seus
pulmões se expandindo e enviando oxigênio aos corações pulsantes de pedra.
Concentro-me tanto que me assusto quando a Lagarta, com o narguilé fumegando em uma das mãos,
agarra meu punho. — Você se parece com uma menina que eu conhecia. O nome dela começava com
A. Quem sabe o seu também começa? — A fumaça esverdeada se estende com um lençol espesso e
perfumado em torno de mim, combinando com o resplendor do jade.
O gato flutua ao nosso lado. Ele segura o lençol de fumaça e, usando suas garras feito tesouras,
corta oito letras vaporosas para compor a palavra: Alegoria. Ele dispõe as letras feito um cordão de
flocos de neve feitos de papel. O sorriso em sua face esverdeada se alarga.
— Ah — diz a Lagarta, com suas baforadas de tabaco formando nuvens em volta de nós —, ela é
uma personagem figurativa. Ela irá jogar do meu lado, então, pois sou o acadêmico.
O gato balança a cabeça, e seu sorriso desaparece. Eles dão início a um cabo de guerra, me
puxando de um lado para o outro. Eu grito ao sentir as articulações de meu braço estiradas ao limite.
— Me soltem!
— Não, não. As únicas coisas figurativas aqui são vocês dois, idiotas. — Morfeu liberta-me deles
e em seguida envolve minha cintura com um braço e rouba o narguilé da Lagarta com o outro. —
Agora, tomem seus lugares.
Ao ouvir isso, as peças animadas de xadrez descem com as outras pelo funil de água. Morfeu
flutua para cima, para cima, na direção do enorme candelabro na abóbada do teto — a única parte da
sala que ainda está estável. As lâmpadas são do nosso tamanho, e a altura estonteante me dá náuseas.
Passo os braços em volta do pescoço dele e enfio o rosto em seu peito macio enquanto ele nos
acomoda sobre a peça de metal. — Isso não está acontecendo — digo. Mas está, porque consigo
lembrar que aconteceu antes, anos atrás.
— Reúna sua coragem. Olhe para baixo. Seu show está prestes a começar.
Balanço a cabeça e cerro os olhos. — Estamos muito altos... Isso faz meu estômago dar um nó.
Ele ri e dá uma tragada no narguilé, jogando a fumaça sobre mim, saturando-me daquele cheiro
confortador. — É assim que você sabe que está viva, Alyssa. Os nós.
Antes que eu possa responder, uma batida alta me faz arriscar uma espiada.
O funil de água forma uma cortina, que se abre para revelar um palco. O quarto de Morfeu foi
transformado. As peças de xadrez vivas dominam a cena, seus corpos de um verde leitoso vívido
sobre um tabuleiro lustroso preto e prateado que se estende por todo o chão. Tudo está distribuído
em um grande círculo que lembra um picadeiro.
O marido da rainha, o rei da Corte Vermelha, está espreguiçado sobre um trono de veludo. Outra
mulher com vestimenta da realeza está de pé à sua direita, com laços carmim amarrados em cada um
dos dedos. Ela tem laços nos dedos dos pés também. A mulher fica tentando silenciar as fitas, como
se elas não parassem quietas. A Rainha Vermelha está na frente dos dois, presa com correntes. A
tribuna de jurados, que é na verdade uma jaula cheia de tigres com dentes pontiagudos e focas com
cabeça de bolha, está à direita. Guardas de cartas perfilam as paredes.
Sentada na cadeira de testemunhas está Alice, mexendo com a barra de seu vestido entalhado.
O Rábido Branco está atrás dela, com as antenas baixas e os ombros recolhidos, numa aparência
cansada e triste. Seu casaco e suas botas são do mesmo tom marmóreo de sua cabeça tosquiada e
brilhante. Uma estranha variedade de criaturas encontra-se sentada em arquibancadas de madeira e
petisca amendoim e pipoca. Até a Rainha Vermelha e seus cavaleiros élficos compareceram.
Uma criatura com cara de sapo está de pé atrás de um pódio, embora esteja vestida de modo mais
parecido com um domador do que com um juiz. Ela bate um martelo. — A Corte Vermelha está agora
em sessão! — Sua peruca emplumada se mexe. Só quando a criatura estica suas longas e finas pernas
é que percebo que é uma cegonha. Depois de alisar suas penas de jade, ela volta a se acomodar no
lugar e o juiz continua. — Rainha Vermelha, porque A Alice entrou em nosso mundo através da toca
do coelho, que fica na província Vermelha, e, porque a senhora falhou em capturá-la antes que ela
desencadeasse suas travessuras sobre todo o País das Maravilhas, a senhora foi acusada de séria
negligência e devastação por associação. Como se declara?
As asas da Rainha Vermelha pendem em suas costas. Ela olha para o rei e para a mulher com os
laços. — Eu declaro preocupação temporária causada por um coração partido. Meu marido me
largou para ficar com Grenadine... Eu estava muito aturdida com sua traição e não notei algo tão
insignificante como uma criança mortal entre nós.
Murmúrios explodem da tribuna do júri. Grenadine olha com remorso para os laços nos pés. O rei
fica inquieto no alto de suas almofadas de veludo.
— Quem deveria estar acorrentado é você — dispara a Rainha Vermelha para o marido. — Não
era suficiente que, antes de sua morte, meu pai tenha preferido ela a mim, uma pirralha amnésica que
nem carrega seu sangue? Mas sua traição é muito pior. Minha simplória meia-irmã não consegue se
lembrar em que dia estamos a menos que um de seus laços falantes lhe cochiche. Ela certamente não
consegue lembrar-se de quem ela deve amar. Você é responsável por cortejá-la e distrair-me de
meus deveres.
O juiz inclina-se sobre seu pódio, abraçando-o com suas mãos membranosas. — Talvez a senhora
devesse ser grata ao seu marido real por pedir que esta corte renuncie à sentença mais severa. Se
culpada a senhora for considerada, será exilada no deserto. É preferível a que perder a cabeça, eu
diria.
— E quanto àquela Alice? — A Rainha Vermelha lança um olhar corrosivo para a tribuna de
testemunhas. — E a sentença dela?
O juiz aponta o martelo para Alice. — Ela escolheu ler sua confissão escrita em troca de ser
enviada para casa com a promessa de nunca mais voltar e esquecer tudo o que viu aqui. — Ele faz
um sinal com a cabeça para a criança, pedindo que ela fique de pé.
Inclino-me para a frente para ver melhor, tão interessada no resultado que não mais me importo
com a altura em que estou, contando somente com o braço de Morfeu em torno de minha cintura para
manter-me ancorada ao candelabro.
Alice faz uma mesura e tira um pedaço de papel do peitilho do avental. Ela tosse duas vezes,
delicadamente, e lê em voz alta: — Talvez meu primeiro erro tenha sido quem escolhi para serem
meus amigos. Ou foram eles que me escolheram? O gato sorridente e a lagarta fumante... Ah, eles
urdiram planos tão bons!
Olho para Morfeu, que dá tragadas de fumaça e sorri com certo embaraço.
Abaixo de nós, o juiz agita o martelo, perturbando a cegonha que está sobre sua cabeça. Ela solta
um cacarejo e arrebata o martelo com seu bico. — Descrições dos planos, por favor! — pede o juiz,
num guincho, lutando com o pássaro.
Alice pigarreia e respira fundo. — Colocamos um ponto-final no chá da tarde, derramamos sopa
sobre a duquesa para fazê-la espirrar a fim de roubarmos suas luvas e leque, deflagramos um oceano
acidental e ajudamos um artesão faminto a enganar sua amiga morsa e roubar um bando de mariscos
muito faladores, obrigada.
Vários membros bivalves da plateia atiram pipocas na testemunha e berram a palavra “Infame!”
Alice se esquiva da chuva de grãos agachando-se atrás da cadeira. O juiz — que conseguiu salvar
seu martelo com a perda de sua peruca e de sua dignidade — acena para que ela fique de pé e ereta.
— Como você conseguiu se esconder no castelo da Rainha de Marfim?
— Eu não estava me escondendo, na verdade. O Gato de Cheshire e o Sr. Lagarta insistiram que eu
visitasse a Rainha de Marfim e pedisse que ela me enviasse para casa, pois ela é mais agradável do
que a Rainha Vermelha. — Alice volta um olhar penetrante na direção da Rainha Vermelha.
A rainha agrilhoada ri desdenhosamente, e suas correntes se mexem como se estivessem vivas,
quase agarrando o tornozelo de Alice antes de esta subir em sua cadeira.
Batendo o martelo, o juiz pede ordem. — O conselheiro real da Rainha Vermelha poderia dar um
passo para a frente e apertar suas correntes?
Rábido Branco adianta-se para pegar os elos de metal e mantê-los esticados.
— Continue — ordena o juiz.
Amassando suas mãos enluvadas, Alice desce da cadeira e recita o resto de sua confissão de
memória. — Marfim parecia alegre por ter convidados. Na verdade, ela gostava muito do Sr.
Lagarta, que é garboso, em sua maneira de contrair o corpo. Quando eu estava me preparando para
seguir os cavaleiros até o mais alto torreão do castelo, onde a porta para minha casa aguardava,
chegou um convite da corte da Rainha Vermelha, uma partida de croqué. Mas era uma armadilha para
que pudessem me aprisionar e me obrigar a fazer esta confissão no tribunal. — Ela faz mais uma
reverência. — Peço sinceras desculpas pelos problemas que causei. Posso ir para casa agora?
— Nunca voltará para casa, seu polipozinho canceroso! — grita a Rainha Vermelha.
Eu quase não entendo o que acontece a seguir. As mãos do Rábido movem-se mais depressa do
que um relâmpago, escorregando uma lâmina que, de modo mágico, corta os grilhões de metal da
Rainha Vermelha. Isso acontece tão depressa que ninguém mais nota até que a rainha abre suas asas e
agarra Alice pelos ombros, levantando-a no ar. A cegonha do juiz recolhe a lâmina do chão e segue a
Rainha Vermelha, que sai pela porta da corte levando Alice, junto com todos os outros.
No instante em que eles saem, pressiono Morfeu. — Siga-os! — ordeno.
— Siga-os você mesma — diz ele, que em seguida me solta. Eu grito, sobressaltada, em pleno ar,
meu estômago saindo pela garganta. Sinto uma comichão entre os ombros, como se alguma coisa
estivesse tentando sair; e desaparece logo depois. À distância de poucos centímetros do chão, dou
uma guinada e caio em minha cadeira, com a xícara de chá na mão. As peças de xadrez encontram-se
espalhadas sobre a mesa, como se aquela encenação nunca tivesse acontecido.
Não caio nessa.
Morfeu está sentado à minha frente, girando a peça de xadrez da Rainha Vermelha enquanto meu
estômago volta ao lugar.
— Como termina? — pergunto.
— Seu pesadelo sabe.
Coloco a figura de Alice sobre um quadrado preto. — A cegonha e a rainha lutaram suspensas no
ar. Alice escapou e veio procurar você.
— Mas eu não podia fazer absolutamente nada por ela porque minha metamorfose já havia
começado. Fiquei trancado naquele casulo por 75 anos.
— Então como é que Alice venceu?
Morfeu rola a estátua da Rainha Vermelha pelo tabuleiro, derrubando Alice. — Ela não venceu.
Como você sabe muito bem, sua linhagem foi amaldiçoada.
— E foi por isso que você me trouxe aqui.
Ele balança a cabeça, concordando. — Para libertar sua família e reabrir os portais que levam
para casa, você deve reparar todos os danos que fizeram com que a Rainha Vermelha fosse exilada e
perdesse a coroa: secar o mar, levar as luvas e o leque de volta para a duquesa, fazer as pazes com
os mariscos e com os convidados do chá da tarde. Só você pode quebrar os elos mágicos da
Vermelha.
Um silêncio pesado se segue, quebrado somente pelo som da cascata em torno da cama. Procuro a
figura da lagarta, mas a mão de Morfeu prende a minha. O calor atravessa sua luva e me penetra os
ossos.
Por um instante, vejo-o muito claramente como a criança provocadora que ele era quando
passávamos tempo juntos em meus sonhos. Eu o compreendo agora, por que ele recolhia corpos de
mariposas, por que suas asas representavam liberdade, algo que ele não tivera enquanto permaneceu
trancado dentro de seu casulo... Por que ele adorava voar, principalmente durante tempestades, por
que superar os relâmpagos lhe dava uma sensação de poder. Do mesmo modo, ele compreendia
minhas esquisitices: meu medo de altura, minha sede de segurança. Só que agora ele é atormentado,
sedutor e insondável. Um adulto completo com tanta bagagem quanto eu.
— É por isso que você está envolvido — murmuro, testando a hipótese. — Para aplacar sua
consciência da culpa de ter falhado com Alice.
Sibilando, ele levanta, numa comoção de asas e couro. Uma lufada de ar causada pelo movimento
faz esvoaçar meu cabelo. — Minha culpa pelo que aconteceu com Alice nunca será aplacada. — Ele
arrebata a figura do Gato de Cheshire e anda pelo tapete. Apesar de sua altura impressionante, ele
tem a graça de um cisne negro. — E não se iluda. Não sou assim tão altruísta.
— Conheço você muito bem para pensar o contrário. — Levanto uma sobrancelha, brindando com
minha xícara de chá.
Ele me lança um olhar rápido, quase sorrindo. — Na luta com a cegonha, a Vermelha conseguiu
pegar a lâmina. Eu estava inatingível em meu casulo, mas Chessie estava lá. Ele mergulhou para
salvar Alice antes que a Vermelha pudesse decapitá-la. Ele recebeu o golpe que era dirigido a ela.
— Morfeu equilibra a figura do gato na ponta de um dedo, colocando-a contra a luz. — Chessie
pertencia a uma estirpe rara: não parte espírito e parte carne, mas as duas ao mesmo tempo. Ele
podia sumir e reaparecer em pleno ar e assumir qualquer forma. Um ser assim é quase impossível de
matar. Quando a Vermelha o atingiu com a espada vorpal, a única lâmina que pode cortar qualquer
mágica no reino interior, ela fendeu sua mágica em duas. Cortado ao meio, mas ainda vivo.
— Então ele não morreu? — Coloco minha xícara de lado.
— Não exatamente. Sua cabeça rolou na direção dos arbustos onde Alice estava escondida. Ele
conseguiu pegar a espada vorpal na boca e cuspiu-a aos pés dela. A parte inferior de Chessie foi
capturada pela Rainha Vermelha e, num último ato de desafio, ela ofereceu-a ao seu animal de
estimação, o bandersnatch, antes de ser capturada e expulsa do reino.
Morfeu sacode a caixa que antes continha as peças de xadrez. Dela cai a maior figura de todas:
uma criatura grotesca com garras de dragão e cauda de ferrões. Sua boca aberta e dentes pontiagudos
fazem minha espinha se arrepiar. Quando eu era pequena, costumava esconder essa peça enquanto
brincávamos com as outras.
Morfeu joga o gato no ar e deixa que ele caia sonoramente na palma de sua mão, apertando-o entre
os dedos. — O que eu lhe ensinei sobre o bandersnatch? — pergunta ele, me testando.
— Ele é maior do que um caminhão. Engole a comida inteira para que a vítima se decomponha
lentamente no vazio escuro de sua barriga — uma morte que pode levar mais de um século para se
efetivar.
Aquela centelha de orgulho brilha novamente em mim. — Correto. Para Chessie, que não pode
morrer, é como estar exilado em uma ilha deserta, sem qualquer sol, lua nem estrelas. Nem vento e
nem água. Só a morte a sua volta. Lá dentro, metade dele ainda reside, presa e ansiando reunir-se
com sua cabeça.
Um lampejo de compaixão me toca o coração. — Você quer que eu ajude a libertar Chessie do
bandersnatch para que ele possa encontrar sua cabeça.
Morfeu vira-se para olhar para mim, com as asas pensas. — Tudo o que preciso é da espada
vorpal. Somente sua lâmina pode cortar o couro do bandersnatch. Alice escondeu a espada em um
lugar que ela sabia ser seguro. Em algum lugar tão ridículo e mundano que ninguém a procuraria lá.
— O olhar dele cai sobre as figuras à minha frente e eu pego um personagem com um chapéu
esquisito, que parece uma gaiola.
— O chá da tarde. O Chapeleiro Maluco está com ela — arrisco.
— Você esqueceu. Isso é estritamente um Carrolicismo — o nome que Lewis usou em seu conto de
ficção. Seu verdadeiro nome é Herman Chapelão. E não há nada de maluco nele. Ele é bem alegre, na
verdade, quando está acordado.
Tamborilo com o dedo na cabeça da escultura, esperando uma explicação.
— Alice deixou os convidados do chá sob um feitiço de sono — continua Morfeu. — Acorde-os e
eles lhe dirão onde está a espada. Você já secou o mar e fez as pazes com os mariscos. Um
convidado do banquete desta noite receberá as luvas e o leque em nome da duquesa. Depois disso,
consertar a situação dos convidados do chá será a única coisa ainda a fazer.
Parada diante da figura de Alice e pensativa, coloco a lagarta ao lado dela.
Morfeu volta para perto da mesa, solta o gato dentro da caixa de metal, então varre todos os outros
personagens para dentro dela. Parado diante de mim, ele estende a mão. — O que me diz, Alyssa?
Está disposta a me ajudar enquanto ajuda a si mesma? Um favor para um amigo de infância?
Quando eu e Jeb voltarmos para casa, posso dizer a Alison que o pesadelo finalmente terminou,
que nunca mais estaremos ligadas ao País das Maravilhas. Imaginar o sorriso dela reacende uma
chama em meu coração.
Respiro fundo, entrelaço meus dedos nos de Morfeu e o encaro. — Farei isso.
Ele levanta minha mão e aperta os lábios macios contra meus dedos. — Sempre soube que o faria.
— Ele sorri, com suas joias cintilando em um tom prateado e luminoso.
11
Linguardarte
Aguardo em um corredor frio e espelhado com uma mesa de vidro e cadeiras como companhia. Jeb
deve me encontrar aqui. Estou louca para vê-lo novamente, mas ao mesmo tempo estou apreensiva
quanto à reação que ele terá ao saber de minha decisão de ajudar Morfeu sem discutir isso com ele
antes.
Fecho os olhos, desorientada pelo movimento à minha volta. Espelhos perfilam cada centímetro do
teto e das paredes, até o chão. Figuras sombrias deslizam nos reflexos.
Em nosso mundo, os espelhos são feitos colocando-se uma camada de alumínio sobre um vidro
plano. Uma pessoa não pode ver nada além de seu reflexo. Aqui, posso ver sombras dentro deles,
como se elas estivessem imprensadas entre as camadas. Morfeu me disse que são espíritos de
mariposas. Isso me faz pensar nos insetos que matei em casa.
Aparentemente, no País das Maravilhas, todos — ou todas as coisas — possuem alma. O
cemitério é um lugar sagrado reverenciado por todos os intraterrenos. Ninguém pode pisar lá a não
ser as guardiãs do lugar: as irmãs Twid.
Nas mãos das gêmeas, os mortos são cultivados: semeados, regados e mantidos livres de ervas
daninhas, como um jardim virtual de fantasmas. Uma irmã nutre as almas — cantando para os recém-
chegados e mantendo o contentamento da flora espiritual. A outra irmã arranca os espíritos decaídos
que definharam e se tornaram amargos ou revoltados — algo a ver com aprisioná-los dentro de
outras formas para a eternidade.
As Irmãs Twid não estão muito satisfeitas com Morfeu neste momento porque ele se recusa a
enviar suas mariposas mortas a elas. Ele prefere soltá-las para voarem livres em algum lugar entre a
vida e a morte do que amarrá-las em uma prisão de terra. Então, Morfeu as esconde dentro de seus
espelhos.
Alguns podem considerar morbidez. Eu vejo um certo grau de ternura em seu esforço para
oferecer-lhes dignidade. A mesma ternura que vislumbrei em nosso passado, e antes, quando ele
cuidou dos meus ferimentos.
A marca de nascença que tenho em meu tornozelo é universal para as criaturas do País das
Maravilhas — chaves para seu mundo e um modo de curar uns aos outros —, além de ser uma parte
da maldição dos Liddell. Eu ainda não sei por quê, quando mais velha, Alice perdeu a marca. Nem
por que ela esqueceu o período em que habitou o mundo real, jurando que vivia em uma gaiola de
pássaro em vez de ter casado e tido uma família. Mas pelo menos uma coisa está clara: faço parte
deste reino até que consiga quebrar a maldição.
Botas pesadas ecoam pelo chão espelhado e eu olho para cima.
— Jeb! — Corro na direção dele. O chão é escorregadio e as botas que as fadas me deram
possuem pouca tração. Escorrego. Jeb larga a mochila, dá um pulo para a frente e me pega.
Ele me puxa para cima até nossas testas se tocarem e meus pés ficarem pendurados no ar. Nunca
deixo de ficar extasiada com a facilidade com que ele me levanta, como se eu não tivesse peso
nenhum.
Afago seu rosto recém-barbeado e seu piercing — inspirando seu cheiro, me assegurando de que
ele está bem.
— Ele tocou em você? Machucou você? — sussurra Jeb no silêncio.
— Não. Ele foi um cavalheiro.
Jeb franze a cara. — Cavalheiro, sei.
Dou um sorriso debochado, o que derrete sua seriedade e o faz sorrir. Ele me roda no ar. — Senti
sua falta — diz ele.
Enfio o queixo em seu ombro largo e o abraço forte. Meu corpo está sedento e bebe seu calor
como uma esponja. — Nunca mais me deixe, está bem? — Em qualquer outro momento, isso poderia
soar um tanto piegas. Mas neste, é o pedido mais sincero que já fiz na vida.
— Não planejo — sussurra ele, com a boca tão próxima que seu hálito roça a ponta de minha
orelha.
Quando saio do abraço, ele está observando as silhuetas que correm em torno de nós.
— Gossamer me contou sobre elas — explica ele. — Não acreditei. O cara é fanático por
mariposas.
Apoio meus antebraços em seus ombros, com os pés ainda balançando na altura das canelas dele.
— Você devia ver o quarto dele. Ele tem casinhas de vidro cheias de mariposas vivas. Ele as
mantém lá dentro até elas saírem dos casulos. Quando estão fortes o bastante, ele as liberta.
— Ele levou você para o quarto dele? — Uma nuvem negra cobre o rosto de Jeb. — Jura que ele
não tentou nada?
— Palavra de escoteiro.
Ele aperta a minha cintura, me fazendo cócegas. — Só que você nunca foi escoteira.
Contraio o corpo e sorrio. — Não aconteceu nada. — É mentira. Morfeu me impressionou muito,
mostrando-me um lado de mim mesma que mal posso acreditar que existe — e que não estou certa se
Jeb será capaz de aceitar. Mas talvez ele não precise saber sobre os parafusos soltos em minha
cabeça nem sobre meus poderes esquisitos. Talvez eu consiga esconder minhas tendências
amaldiçoadas até sairmos daqui e eu me curar.
Dedos trançados em volta do pescoço de Jeb, puxo seu pequeno rabo de cavalo. Para ajudar a nos
encaixarmos no banquete, vamos ambos fantasiados. Ele será o cavaleiro élfico, então as fadas
puxaram seu cabelo por sobre as orelhas para esconder as pontas redondas. Eu gosto assim. Sua
mandíbula forte e traços expressivos ficam mais aparentes.
— Achei que elas iriam dar-lhe um chapéu — caçoo.
— Que nada. Eles são exclusivamente para vermes com asas.
Dou risada e empurro os ombros de Jeb, uma permissão implícita para ele me colocar no chão.
Ele me pousa de pé. — Você está linda.
— Obrigada. — Eu não revelo que minhas roupas foram criação de Morfeu: uma túnica pêssego
estilo baby-doll sem mangas com sobreposições de babados que começam abaixo dos seios e vão até
o meio da coxa. Os babados têm acabamento de renda vermelha, que complementa o cinto vermelho
estilo sadomasoquista incrustado de cintilantes rubis que cinge minha cintura. Cinco robustos anéis
de prata decoram o cinto, combinando com a blusa cinza sob minha túnica. As mangas bufantes da
blusa cobrem meus braços até os pulsos, onde surgem luvas de renda vermelha sem dedos. Um
legging listrado em cinza e pêssego cobre minhas pernas feito aquelas bengalas doces e desaparece
dentro das botas de cano alto de veludo vermelho.
Todo esse conjunto é um esforço calculado para me fazer parecer selvagem e indomável, para que
os excêntricos convidados do jantar sejam mais receptivos comigo. Para esse fim, as fadas teceram
frutas vermelhas e flores nos dreadlocks por toda a minha cabeça e depois enfiaram o grampo de
cabelo dos tesouros de Alison encontrados na poltrona bem acima de minha têmpora esquerda. Por
alguma razão, Morfeu insistiu que eu o usasse.
Aponto para o uniforme de cavaleiro élfico de Jeb. — Eu já vi isso antes. Essa cruz representa a
elite dos elfos joalheiros. — As calças pretas envolvem suas pernas como jeans bem talhados. Há
uma corrente prateada que entra e sai por duas presilhas do cinto, formando a ilusão de cinco
cordões diferentes, e uma cruz feita de diamantes faiscantes na coxa esquerda. Percorro as joias com
os dedos. — Você não é só um cavaleiro... É um dos acompanhantes reais.
Jeb detém minha mão sobre sua coxa musculosa. Seus olhos ficam mais intensos, como quando nos
abraçamos no fundo do oceano.
Recolho minha mão e ele retesa o queixo.
Constrangida, concentro-me no resto de seu uniforme. A camisa tem mangas compridas e é feita de
um material aderente. É prateada, com listras pretas verticais de tecido semitransparente. Procuro
suas queimaduras de cigarro, ansiosa para vê-las, e noto que os poucos pelos de seu peito sumiram.
— Você raspou o peito?
Ele olha para as listras pretas. — Na verdade, não havia um espelho no meu aposento. Gossamer
raspou depois que tomei banho, quando fez a minha barba. Ela disse que elfos não têm pelos em
nenhum outro lugar além da cabeça.
Em nenhum lugar? Eu o imagino nu — Gossamer tocando seus músculos abdominais, entre outros
lugares. — Aquela fada viu você nu?
Ele pigarreia. — Não foi só ela. Chegou uma hora que tinha umas trinta em cima de mim.
Um surto de ciúme me toma. Meus punhos se fecham. — Trinta fadas tocaram seu corpo nu?
— Fique fria com relação às fadas, tá bom? Feijões-de-lima que voam não são minha praia. Agora
vem cá. Quero te mostrar uma coisa. Ele vira meu rosto para a parede espelhada e fica atrás de mim,
com o queixo apoiado no alto de minha cabeça, e levanta as mãos para os dois lados do meu rosto.
— Repare nos seus olhos.
Minha imagem olha de volta, transposta sobre as sombras de mariposas. Notei a maquiagem assim
que entrei no corredor. As fadas fizeram um trabalho incrível para que parecesse real. Sombra preta
cai dos olhos como listras de tigre debaixo de meus cílios inferiores. As linhas lembram as tatuagens
de Morfeu, só que em uma versão mais feminina.
— Você esteve assim o tempo todo. Eu notei quando saímos da toca do coelho. Achei que sua
maquiagem tinha manchado. Mas, depois do mar, você ainda estava com ela. Eu não liguei as coisas
até ver Morfeu sem máscara há alguns minutos. — Jeb faz uma pausa, e parece aborrecido. Ele
esfrega os polegares nas bordas dos desenhos negros. — Eles não desaparecem. E o brilho em toda a
sua pele? Não são restos de sal. Você está começando a se parecer com os meus desenhos de fadas,
de verdade.
Sentindo-me aturdida, enrosco os babados da minha túnica nos dedos. Isso explica por que o
octobenus achou que eu era intraterrena. — Por que você não disse nada?
— Nós estávamos muito ocupados com tudo aquilo acontecendo.
Volto-me para o meu reflexo. — Então, a maldição está ficando pior.
— Pior do que você pensa. — Jeb fica atrás de mim e passa as mãos por trás de meus ombros. —
Sua roupa tem fendas... Para as asas que vêm por aí?
Seus polegares calejados afagam a pele nua ao longo de minhas escápulas. Não consigo responder.
Pelo que vimos até agora, só alguns intraterrenos têm asas. A ideia de alguma coisa surgir de minha
pele me deixa tonta. Na verdade, pensar nas mudanças que já sofri é o bastante para me fazer sentir
como se eu estivesse rodando em um carrossel descontrolado.
A expressão carrancuda de Jeb se fixa sobre mim no reflexo. — Por que essa maldição só afeta as
mulheres de sua família?
— Alice era do sexo feminino — respondo, ainda passando por um turbilhão por causa da questão
das asas. — Só alguém do sexo feminino pode arrumar a bagunça que ela fez.
— Bagunça — diz Jeb, franzindo a cara ainda mais. Agarrando meus braços com delicadeza, ele
me vira e olha dentro dos meus olhos. — Quando eu estava com as fadas, Gossamer mencionou o que
você fez com o mar. Ela não chamou aquilo de arrumar a bagunça. Ela disse que foi um teste. E sabe
o que é mais estranho ainda? Ela está ressentida que você tenha conseguido... Que você esteja aqui.
Alguma coisa não está batendo. Não vamos fazer mais nada para ajudar o mariposão até que ele abra
o jogo conosco.
— Ele já me disse a verdade. Ele me disse os passos que tenho que percorrer. — Conto a Jeb o
que vi no quarto de Morfeu, embora não tenha coragem suficiente para compartilhar detalhes sobre
nosso momento de “mistura” e nem o show de marionetes do xadrez.
— Então, você simplesmente vai acreditar na palavra dele?
— Ele tem uma motivação nobre. Um amigo está em perigo.
— Pare de humanizar o sujeito, Al! — Jeb bate a mão na parede de espelhos. As sombras das
mariposas afastam-se, assustadas. — Ele não é do nosso mundo, está bem? E ele tem esse poder de
entrar na sua cabeça. Fiquei olhando para você e para ele na clareira... Você não pensa direito com
ele por perto.
A acusação reaviva minha raiva com relação a Londres. — Então é isso que você quer dizer? Que
eu não sou forte o bastante para pensar por mim mesma?
— É diferente. Olhe o que está acontecendo com você!
— Mas eu posso parar isso se fizer mais uma coisa. Só isso.
— Ah, é? Pelo que estou vendo, quanto mais você faz por ele, mas se parece com ele.
— Não. Você está errado. — Puxo uma de minhas tranças, desejando poder convencer a mim
mesma tão facilmente quanto declamo essas palavras. Desejando poder negar que, quanto mais tempo
fico aqui, mais fundo este lugar entra em meu sangue, ou que Morfeu é o torniquete que aperta as
minha veias e retorce.
Jeb cerra os dentes com tanta força que sua mandíbula estala. — Não vamos discutir por causa
disso, Al. É tudo o que ele quer. Não vou deixar que ele faça isso.
— Faça o quê?
Ele enrola o cabelo com que estou brincando em volta de seu pulso e me puxa para perto,
inclinando a cabeça de modo que nossas testas se toquem. — Se colocar entre nós.
Meu corpo inteiro fica mole e quente com a brusca possessividade em sua voz, mas ele não tem
esse direito. — Você esqueceu? Já existe alguém entre nós. Você vai mudar para Londres com ela.
— Fui um idiota. E pensar, por um segundo, que estar do outro lado do oceano me daria algum
controle.
Um nó ardente me aperta o peito e dou um passo para trás. — Controle? Sobre o quê? A minha
vida? Cai na real, esquecidinho: não sou mais a sua “irmãzinha”. Já cansei de ser colocada na
prateleira junto com todas as suas outras responsabilidades; em algum lugar entre cortar as unhas dos
pés e trocar as meias sujas. — Eu o empurro para o lado e ando na direção da cadeira de vidro,
determinada a esperar por Morfeu lá.
De repente, Jeb pega uma das argolas de meu cinto e me rodopia. Em um movimento suave, ele me
coloca sobre a mesa estreita em forma de semicírculo. Minha pele treme sob seu toque quando ele
me empurra contra a parede e enfia os quadris entre minhas coxas. Estamos nivelados, cara a cara. A
sensação de agitação me toma a mente — e, na sombra de meu lado sombrio, uma descarga de
satisfação me sobe, uma excitação perversa de saber que posso atiçar as emoções dele até essa
reação visceral.
Firmo as mãos contra seus ombros para manter um espaço entre nós, mas é pura encenação. Meu
blefe perde força e torna-se morno entusiasmo no instante em que ele pega meus pulsos e os puxa
para baixo, aproximando-se ainda mais, de modo que nossos narizes quase se tocam.
— Cai na real você — rebate ele, com o hálito feito um jato quente na sala fria. — Eu sei que
você não é mais uma menina. Acha que sou cego? — Seus dedos se entrelaçam nos meus, prendendo
meus braços contra os espelhos frios e lisos, de modo que nossos corações batem um contra o outro.
— E a esquecida aqui é você. Porque não há nada fraternal no que você me faz sentir.
Minha mente se fecha. Eu devo ter engolido cada espírito de mariposa daqui até o fim do mundo.
Posso jurar que elas estão flanando no meu estômago.
Jeb solta meus dedos e pega meu rosto em suas mãos, quase sem me tocar, como se eu fosse
quebradiça. — Eu estou perdendo o controle sobre mim mesmo. Centenas de esboços e mesmo assim
não me canso do seu rosto. — Ele passa o polegar sobre a covinha em meu queixo. — Seu pescoço.
— A palma de sua mão se move pela minha garganta. — Sua... — As duas mãos encontram a minha
cintura e me arrastam para fora da mesa para que fiquemos de pé um diante do outro. — Não vou
perder mais um instante desenhando você — sussurra ele nos meus lábios — quando posso tocá-la.
— Ele pressiona sua boca contra a minha.
Uma fagulha, quente e elétrica, pula entre nós. Surpresa e excitação me transpassam, iluminada
pelo calor e pelo sabor dele. Seis anos de desejos secretos. Seis anos negando que ele é a órbita do
meu mundo.
E pensar que ele também viveu fugindo de mim.
Desorientada pela incredulidade e pelo prazer, me fecho. Meus braços pendem frouxos ao lado do
corpo, os punhos abrindo e fechando. A boca de Jeb vibra contra a minha em um gemido. Ele coloca
minhas mãos em volta de seu pescoço, aproximando-se mais.
O sabor dele é incrível — como chocolate com sal. Familiar, embora novo e excitante. Aperto os
dedos em seu pescoço. Os sentimentos que eu reprimia se desenrolam e batem dentro de mim como
enguias elétricas, me dando choques e trazendo-me à vida. Cada receptor sensorial vibra,
hiperligado. Eu o saboreio, o inalo, o sinto.
Só ele.
Meus lábios seguem os dele, pulsando lentos, macios e quentes. Seu piercing arranha meu queixo,
um contrapeso áspero e sensual.
Suas mãos guiam meu queixo, me mostrando como inclinar o rosto. Ele me incita a abrir os lábios
com os dele. Minha língua percorre seus dentes, encontrando aquele incisivo torto antes que sua
língua encontre a minha.
Talvez eu esteja respirando muito forte. Talvez eu esteja babando demais. Talvez eu não chegue
aos pés das outras garotas com quem ele esteve. Mas não importa, porque, de todas as coisas que já
vivi nesta jornada — encolher e crescer, fadas voadoras, peças de xadrez com vida —, nenhuma é
mais mágica do que este momento.
Seus beijos cedem e ele começa a esfregar o nariz pelo meu rosto e pescoço, carinhoso e pungente.
— Al — sussurra. — Seu sabor é tão doce... como madressilva.
— Não — murmuro, extasiada.
Ele se afasta com os olhos sérios e sombrios. — Quer que eu pare?
— Não. — Eu tantas vezes adormeci rezando para que você me olhasse desse jeito. Me tocasse
desse jeito. — Não parta meu coração.
Sombras de mariposas flutuam sobre ele no teto espelhado, me distraindo da seriedade de sua
expressão. — Eu arrancaria o meu primeiro.
Acredito nele. Ficando na ponta dos pés, aperto seu rabo de cavalo. Desta vez, eu o beijo. Ele
reage com um frêmito, os dedos me penetrando os quadris. Deslizo as mãos enluvadas para baixo a
fim de encontrar seu peito, em busca das cicatrizes. Parando nas correntes em sua cintura, eu as
seguro com força até o metal me ferir os dedos, depois nos coloco contra a parede. A friagem do
espelho me penetra as escápulas, mas seu corpo perfeito contra o meu faz o meu sangue fervilhar, me
consumindo.
Estamos os dois tão envolvidos que nenhum de nós ouve os passos até que um grunhido nos
separa. Viramos e encontramos Morfeu ali parado, com ódio suficiente em seus olhos escuros para
mandar o diabo para o céu.
Jeb recolhe os dedos dos anéis em meu cinto, mas mantém uma mão nas minhas costas. Eu toco
meus lábios; eles vibram e estão sedentos, ansiando por mais.
— Ora, ora. Mas que cena acolhedora! — A voz de Morfeu não está fluida desta vez. Ela arranha
feito pregos enferrujados me tocando os tímpanos. Ele arranca suas luvas e bate-as contra a palma da
mão, as asas caídas e arrastando no chão, como um manto. — Talvez você possa devolver o batom a
Alyssa. Não temos tempo de encontrar outro antes do jantar.
Jeb limpa meu brilho labial de sua boca. Eu lambo os lábios, atingida por uma inexplicável onda
de culpa.
O acalanto de Morfeu toca suavemente em meu pensamento, melancólico e seco. As palavras da
canção parecem ter sido alteradas para se adequar ao que ele sente:
Vermelha e pêssego, a florzinha,
Atraindo meninos com sua linda cabecinha;
Provoque, jogue, seja dengosa e esperta,
Pois um dia o magoará, fique certa.
O acalanto fica mais amargo e alcança notas estridentes em meus ouvidos, fazendo-me retrair.
Com um grunhido que vem do fundo do peito, Morfeu vira-se para um espelho e escova suas
roupas com as luvas. Ele está usando uma camisa branca com babados sob um casaco vermelho de
brocados que balança na altura das coxas. Ele é transpassado e tem botões de metal nas duas lapelas.
Suas calças lembram leggings — veludo amassado vermelho. Botas de cadarço pretas que vão até a
altura da canela. Ele poderia ser um Romeu saído diretamente da peça de Shakespeare, não fosse o
cabelo azul e as asas.
Morfeu abre toda a envergadura das asas em seu completo esplendor. As joias nas pontas dos
desenhos em seus olhos faíscam com sua irritação, de vermelho a verde. — Você não sabe, cavaleiro
élfico — ele se vira para nós — que é muito desfavorável para um guarda fazer uma proposta à sua
inocente protegida?
Eu franzo a cara. E por acaso eu tenho a palavra puritana estampada na testa? — Você não sabe
nada sobre mim.
Morfeu torce a boca num sorriso irônico. — Talvez você estivesse somente fingindo, então?
Ficando com as bochechas coradas feito um pêssego imaculado?
Jeb me arrasta para atrás de si. — Ela não vai falar sobre isso com você.
Morfeu bufa. — Um pouco tarde para cavalheirismos. Se alguém tivesse visto essa demonstração,
sua máscara de cavaleiro teria terminado antes mesmo de começar. Você se esqueceu de informar a
ele qual é a primeira ordem de um cavaleiro, queridinha? Manter as mãos e as emoções sob
controle? — A atenção de Morfeu cai sobre seu ombro direito. Gossamer está espiando por baixo de
seu cabelo. Ela e Jeb trocam olhares.
O olhar de Morfeu volta-se para mim, cortante feito lâminas de ônix. Tudo que eu quero é me
deleitar com a lembrança do meu primeiro beijo. Em vez disso, estou me culpando por ter traído um
sujeito do reino interior que eu não via há anos, e, por alguma razão, a ideia de magoá-lo é
insuportável.
Jeb retesa a postura. — Mudança de planos — afirma ele. — A Al não vai mais ajudar você com
esse joguinho, seja qual for. Você vai nos mandar de volta. Agora.
Morfeu levanta um lado da boca, desdenhando. Ele se dirige a Gossamer mais uma vez enquanto
ainda olha para mim. — Parece que você estava errada. Você me disse que o mortal não
representava uma ameaça. Talvez tenha subestimado o poder de sedução de nossa engenhosa Alyssa.
Gossamer observa seus próprios pés pequeninos. Suas asas batem devagar, como as de uma
borboleta em repouso. — Achei que ele preferisse alguém...
— Shhh! Não pode revelar esse segredo! — grita Morfeu. O volume de sua voz faz Gossamer cair
de seu poleiro. Ela flutua no ar com as mãos tampando as orelhas pontudas.
Morfeu leva um dedo à boca. — Leia meus lábios, fadinha tagarela. Pegue. A. Maldita. Caixa. Já
é hora de mostrar à nossa donzela e ao seu soldadinho de brinquedo que tipo de boas-vindas eles
receberão se derem as costas ao seu único aliado.
Gossamer chispa para o corredor.
— E traga-me meu Chapéu da Lisonja! — Morfeu grita para ela. Seu comando ainda ecoa no ar
quando ele dá uma volta sobre o calcanhar e se vira para nos observar. Pretensioso, ele veste as
luvas. — Há um problema com o seu pedido, pseudoelfo. Não posso simplesmente mandá-los de
volta. E Alyssa sabe disso.
Jeb vira a cabeça para trás com olhar inquisidor.
— Nossa! — Morfeu bate a palma da mão no rosto, como se estivesse perplexo. — Vocês
estavam ocupados demais para falar de algo pertinente? Ou talvez nossa inocente donzela estivesse
se sentindo culpada pelo dinheiro que ela “tomou emprestado” da bolsa da sua outra namorada, e
você, sendo um nobre cavaleiro, decidiu confortá-la.
Jeb vira para mim. — Espere... Aquele dinheiro no estojo de lápis. Tae realmente deixou a bolsa
na loja? Você roubou o dinheiro dela.
Morfeu inclina-se entre nós. — Bem, de que outra maneira Alyssa iria para Londres me procurar?
O olhar de Jeb fica imóvel, repleto de acusação. — Não acredito que você mentiu na minha cara.
Você roubou o dinheiro para comprar um passaporte falso e planejava ir para Londres.
— As duas coisas — diz Morfeu em tom provocativo, agora atrás de mim. — Mentirosa e ladra.
Aquele pedestal está escorregadio, não está, queridinha?
Dou-lhe uma cotovelada tão forte que suas asas farfalham. — Eu fiz o que tinha que ser feito para
ajudar Alison — grito para Jeb, ignorando o sorriso convencido de Morfeu, que passa por mim. —
Eu só tomei emprestado. Vou devolver.
Morfeu para ao lado de Jeb. — Nisso ela está certa. A motivação sempre justifica o crime. É a lei
de nossa terra.
— Ouviu isso? — dispara Jeb, me trespassando com o desdém em sua voz. — A baratinha local te
deu o selo de aprovação. E você ainda se pergunta por que não posso confiar que você ande por aí
sozinha.
Uma pequena fogueira queima na base da minha garganta, uma necessidade irritante de me
justificar que me invade feito ácido. — Eu tinha um plano.
— Ah, grande plano. — Jeb faz um gesto mostrando a sala à nossa volta.
— Eu não sabia que seria assim, Jeb!
Antes que Jeb possa responder, Morfeu se interpõe entre nós, agarrando cada um pelo ombro. —
Me desculpem, pombinhos — diz ele, recitando. — Mas, por mais que eu esteja adorando, essa
briguinha corre o risco de ofuscar minha grande revelação.
Ele aponta para a porta, onde Gossamer aguarda com outras trinta fadas. Cinco delas carregam
uma cartola vermelha com uma larga faixa preta ostentando uma pluma de pavão. Um cordão de
corpos iridescentes de mariposas azuis decora a aba, feito uma guirlanda.
As outras fadas trazem uma sacola preta pesada demais para ser erguida, então elas a arrastam
pelo chão.
— Todos os convidados já chegaram, mestre — avisa Gossamer, em um trinado. Ela e suas
companheiras depositam a cartola no alto da cabeça de Morfeu enquanto as outras deixam a sacola
ao lado de nossa mochila.
— Sirva os aperitivos e peça à harpa que toque alguma coisa. — Morfeu ajusta o ângulo do
chapéu. As mariposas mortas tremem com o movimento, como se lutassem para escapar. — Não
demoraremos.
Gossamer aquiesce e segue as outras, olhando para trás mais uma vez antes de adentrar o corredor
ao lado.
Morfeu pega a sacola. Ao caminhar na direção da mesa de vidro, suas asas acetinadas roçam
minha bota esquerda. Uma vibração penetra pela minha marca de nascença e sobe pela canela, indo
parar na minha coxa, quente e excitante. Fazendo uma careta, escorrego a perna para trás e dou um
tapa na bota para aliviar a sensação. Jeb me observa com olhar desaprovador.
Morfeu abre a sacola e vemos uma caixa de chapéu alta e prateada decorada com veludo branco.
Nunca vi nada assim, nem mesmo nos meus sonhos. A curiosidade me atrai até a mesa.
Morfeu indica a cadeira, desempenhando mais uma vez o papel de anfitrião cavalheiro.
— Vou ficar de pé — murmuro. Gostaria de deixar seus olhos negros ainda mais negros por ter
provocado minha briga com Jeb só para se vingar do beijo. Mas estou estranhamente intrigada que
ele se importe o suficiente para ter ciúmes, é verdade.
Jeb se acomoda atrás de mim e aperta meus ombros — ainda meu protetor, mesmo quando está
bravo. Recosto-me em seu corpo quente, em gratidão.
Morfeu lança um olhar desgostoso para nós e depois arrasta a caixa para o centro da mesa. Na
verdade, ela é feita de peltre. Rosas de veludo branco cobrem os lados, e entalhes se enrodilham no
alto da tampa, em alguma língua arcaica. Quanto mais eu olho para as palavras, mais legíveis elas se
tornam. Será mais uma manifestação da maldição dos Liddell, que esta língua me venha
naturalmente?
— Hora das apresentações — diz Morfeu, abrindo a tampa um segundo antes que eu possa
compreender a primeira sentença.
Um fluido escuro e oleoso se move dentro da caixa. Uma folha de vidro sobre o topo mantém o
líquido lá dentro. Morfeu dá uma sacudidela no conteúdo e um objeto esbranquiçado vem à tona.
Ele me lembra uma Bola 8 Mágica que vi uma vez em um bazar. A bola de plástico preta continha
uma janela. Um fluido azul preenchia o interior, e um dado branco emergia até a janela, marcado com
frases em cada um dos lados. Você só tinha que fazer uma pergunta para a bola, rodá-la nas mãos e
depois virá-la para cima. Sua resposta aparecia na janela escrita no dado... E ia de bem provável até
pergunte novamente depois.
Só que este objeto flutuante é quase do tamanho de um melão e tem formato oval. Fios grossos e
esbranquiçados rodopiam lá dentro. Morfeu agita novamente a caixa. O globo gira e revela um rosto.
É uma cabeça!
Com um ganido, controlo a bile que me sobe até a garganta.
Jeb solta um palavrão e tenta me virar para ele, mas não consigo deixar de olhar para ela. O
líquido deve ter algum tipo de formol. Por que Morfeu teria uma cabeça conservada em uma caixa de
peltre?
— Acorde, minha bela — sussurra Morfeu, com suavidade forçada. Eu observo, mortificada, ele
bater levemente no vidro, percorrendo os cílios fechados e cristalizados daquele rosto. Quando os
olhos se abrem, quase caio para trás.
A coisa está viva.
Percebo que conheço aquela imagem, da encenação com as peças de xadrez. É a Rainha de
Marfim, ainda mais linda do que sua cópia em jade, delicada e alva como a luz da lua. Marcas
parecidas com tatuagem perfilam as duas têmporas, em uma rede de veias, como se asas de libélulas
tivessem sido transferidas para um carimbo e depois para a pele. Seus olhos são de um azul tão claro
que quase não têm cor; longos cílios se curvam para cima a cada piscada. Eles são iguais a suas
sobrancelhas, prateados e cristalinos, como se fossem revestidos de gelo. Nos contornos externos,
duas linhas pretas mergulham até as maçãs do rosto e terminam em forma de lágrima; é como se ela
chorasse tinta. Lábios de um rosa pálido — curvos e belos como um coração — abrem-se num
sorriso adorador quando seu olhar cai sobre Morfeu. Ela tenta falar.
Morfeu se inclina, passando carinhosamente a mão enluvada sobre seu rosto encerrado. Ela tenta
falar mais uma vez, mas não pode ser ouvida através do líquido e do vidro.
Jeb e eu ficamos ali parados, presos em nosso próprio silêncio.
Morfeu quebra a quietude. — Esta é uma caixa linguardarte. Ela pode conter um ser inteiro em seu
interior, embora só o rosto apareça. Você já ouviu a frase “Cortem-lhe as cabeças”, do livro que
carrega?
Olho para as minhas mãos enluvadas, pensando em minhas cicatrizes. O livro não é o único lugar
em que vi essas palavras, e Morfeu sabe disso. Seria isso que Alison quis dizer quando mencionou
que não queria que eu perdesse a cabeça?
— Bem, esta é a origem dessa frase — termina Morfeu. — A pequena Alice a tomou muito
literalmente. Isso costumava ser uma punição comum aqui no País das Maravilhas. Mas agora é
considerada uma barbárie. É pior do que qualquer prisão, pois seu ocupante pode ser visto, mas não
ouvido. Sua fala fica trancada aqui.
A caixa treme sob as mãos de Morfeu. A expressão da rainha muda de adoradora a desesperada.
Ela se debate com força, e bolhas chegam à superfície. Seu cabelo enrodilha-se feito plantas
marinhas albinas. Morfeu envolve a caixa nos braços numa tentativa de impedir que caia da mesa.
Quando sua boca se estica em um grito mudo, ele fecha a tampa. O rosto de Morfeu fica lívido e ele
guarda a caixa na sacola antes que eu possa olhar a inscrição novamente.
Esticando as mangas por sobre as luvas com dedos trêmulos, ele suspira. — Eu não queria
perturbá-la. Ela fica em paz quando está sozinha. Mas, se não for libertada logo, todas as suas
lembranças se perderão para sempre.
— Você se importa com ela — digo com um inesperado quê de inveja. Nas minhas lembranças há
muito perdidas de quando éramos pequenos, só havia nós dois. Nós nos entendíamos em todos os
níveis. Morfeu me fazia sentir adorada, especial, importante. Nunca imaginei que ele pudesse fazer o
mesmo por outra pessoa quando crescesse e se tornasse um homem. — Morfeu, o que ela representa
para você?
Ele não responde. Não em voz alta, pelo menos. Sua expressão é nebulosa e perturbada, e as joias
em torno de seus olhos mudam de prateadas para pretas, como estrelas perscrutando o céu em uma
noite de tempestade. A confissão de Alice no tribunal me vem à mente. “Marfim, na verdade,
gostava muito do Sr. Lagarta.” Julgando pelo modo como Morfeu olhou para a rainha agora, por
como ela o olhou, ele voltou ao castelo depois de sua metamorfose.
Imagino seus dedos elegantes correndo pela pele dela, seus lábios macios junto aos dela. Aquela
pontada de inveja evolui para algo muito mais feio — uma cobiçosa mudança de emoção que não
consigo nem nomear. O que há de errado comigo? Por que eu me importaria com a vida amorosa de
Morfeu, quando finalmente beijei Jeb depois de tantos anos?
As asas de Morfeu se estendem e voltam a fechar. A obscuridade que permeia seus traços dá lugar
à raiva reprimida. — Neste reino, os espelhos são portas. Mas o corredor no qual estamos leva
somente a outras partes do País das Maravilhas. As portas que levam ao seu mundo estão dentro dos
castelos Branco e Vermelho e estão ligadas às rainhas. O portal da Rainha de Marfim está congelado
por causa do estado dela e permanecerá assim até que ela seja libertada pela pessoa que a colocou
nesta caixa. Isso nos deixa somente o portal da Rainha Vermelha. Creio que vocês já conheceram o
Rábido Branco.
Engulo seco e faço um sinal afirmativo com a cabeça.
— Então sabem como serão bem recebidos na província Vermelha. Pisem lá e poderão terminar
em uma caixa igual a esta.
Uma imagem minha e de Jeb trancados em meio a um líquido escuro me passa pela cabeça. Jeb
deve ter sentido o meu arrepio, porque apertou mais forte os meus ombros. — E quem colocou a
Rainha de Marfim aí dentro? — pergunta ele.
Morfeu tira o chapéu e o coloca ao lado da sacola, deixando seu cabelo um emaranhado azul
brilhante. — Depois que a Rainha Vermelha foi exilada para a floresta, nunca mais foi vista. Sua
meia-irmã, Grenadine, desposou o rei e tornou-se rainha. Uma mulher por demais negligente para
ostentar uma coroa. E agora o rei quer dar-lhe duas. — Morfeu fisga uma tiara de diamantes
fulgurantes na sacola. — Tenho um espião no castelo Vermelho. Quando a Corte Branca veio até mim
trazendo a notícia do destino de Marfim, há algumas semanas, enviei ordens para que meu contato
roubasse a caixa linguardarte. Estou abrigando Marfim aqui, junto com sua coroa, para mantê-las a
salvo de Grenadine e do Rei Vermelho. Se eles controlarem o portal Vermelho e o Branco, vocês
nunca voltarão para casa. — Ele volta a guardar a tiara. — Tudo será resolvido quando Alyssa
encontrar a espada vorpal. Ela é a arma mais poderosa do País das Maravilhas. Posso usá-la para
forçá-los a libertar a Marfim. O portal dela será então aberto a vocês.
Jeb olha diretamente para Morfeu. — Deixe-me ver se entendi direito. Você nos atraiu para cá
com a promessa de salvar a mãe de Ali, sabendo o tempo todo que não teríamos como voltar para
casa antes de libertarmos sua namorada esquisita.
Morfeu levanta um dedo. — Como estamos esclarecendo os fatos, não devemos esquecer que você
nunca foi convidado, para começo de conversa. Se isso for demais para sua delicada constituição,
escória mortal, poderá permanecer trancado em segurança no meu quarto de hóspedes até que tudo
termine.
— Eu vou aonde a Al vai, insetão. E só para seu conhecimento, se alguma coisa acontecer com
ela, vou espetar você pelas asas numa prancha de cortiça e usá-lo para treinar dardos.
O confronto entre Jeb e Morfeu é só um ruído de fundo. Estou aqui para quebrar a maldição por
Alison — só isso importa.
Só que eu nunca deveria ter metido Jeb nisso. Se eu pudesse voltar no tempo...
Algo que as flores zumbis disseram me cutuca a memória. Algo sobre o tempo andando para trás
no País das Maravilhas. O que elas queriam dizer com isso? Obviamente, não é uma verdade literal.
O tempo tem andado para a frente desde a visita de Alice, ou as coisas não estariam neste estado.
Um sentimento de urgência me arrebata. Alison irá para o eletrochoque na segunda-feira. —
Preciso chegar nesse chá da tarde e acordar os convidados.
Jeb olha para mim. — E como vai fazer isso? Dando um beijo mágico no seu chapeleiro de meia-
tigela?
Morfeu coloca o chapéu na cabeça e o inclina. — Meia-tigela? As habilidades de Herman
Chapelão são excepcionais. Ninguém faz chapéus como ele. E quanto a dar um beijo para acordá-lo?
Conto de fadas errado, Príncipe Encantado. Mas eu lhe asseguro — Morfeu roça o polegar na minha
têmpora —, nossa queridinha aqui vai nos brindar com um ”viveram felizes para sempre”.
Jeb agarra o pulso de Morfeu no ar. Seus olhares se encontram.
— Sem tocar — Jeb rosna.
Morfeu dá um puxão e liberta a mão. — Nossos convidados sabem por que Alyssa está aqui.
Como eles sentem falta de suas excursões ao reino humano, estão dispostos a recebê-la na esperança
de poderem voltar a ter acesso ao portal branco. Mas, se eles perceberem em você um estranho que
chegou sem ser convidado, não serão tão amáveis. Para a sua própria preservação, você deve ser
convincente como um cavaleiro élfico. Estes têm temperamento estável e imparcial. É hora de fingir
que possui essas virtudes.
Sinto a tensão no ar enquanto Jeb luta para conter sua irritação. Os dois se enfrentam, encarando-
se.
Meto um braço entre eles. — Não temos que ir ao banquete?
Franzindo a testa, Morfeu tira as luvas brancas de Alice de seu casaco. A grama e a sujeira foram
lavadas. — Vamos precisar do leque de renda. — Ele dirige o comando a Jeb, que se detém como se
fosse dar-lhe um soco. Agarro o seu cotovelo — um apelo silencioso.
Jeb segue pelo corredor a fim de pegar a mochila.
Morfeu e eu analisamos um ao outro num silêncio perturbador. Não consigo decidir o que me
perturba mais: meus traços intraterrenos cada vez mais evidentes... A urgência por causa do
tratamento de Alison... A caixa linguardarte... Por que Morfeu parece se importar que eu beije Jeb se
está envolvido com outra pessoa... Ou, pior ainda, por que me perturba saber de seu amor pela
Rainha de Marfim.
Os pensamentos se espalham à minha volta feito vidro quebrado quando Jeb retorna.
Morfeu enfia o leque em sua lapela junto com as luvas. — Deixem a bagagem aqui. Se algo sair
errado durante o jantar, venham imediatamente para este corredor. Ele é isolado... Praticamente
impossível de encontrar a menos que se conheça a entrada secreta. Gossamer providenciará que
vocês sejam enviados para o chá caso tenhamos convidados inesperados.
— Convidados inesperados? — pergunto.
— Convidados com intenção maliciosa ou assassina. Você é, afinal, uma fugitiva da Corte
Vermelha. — Morfeu esfrega as mãos como se apreciasse a ideia de confusão. — Estou faminto.
Vamos ao banquete.
12
O banquete
das bestas
Listras brancas e pretas cobrem as paredes da sala de jantar, que não possui janelas. Não consigo
definir com precisão onde terminam as paredes e começa o chão ou o teto.
É quase tão desorientador quanto os espíritos de mariposas que vi há pouco. Até a comprida mesa
de jantar e as cadeiras da sala são pintadas de modo a combinar e criar um efeito de camuflagem. Os
convidados parecem estar flutuando no lugar sobre um pano de fundo listrado. Sinto-me perdida, mas
estranhamente em casa, como uma pulga que decidiu residir em uma zebra.
Um candelabro gigante instalado no teto abobadado ilumina os arredores com faixas de luz
dançante. Atravesso a soleira com Morfeu ao meu lado direito, minha mão curvada sobre a sua. Jeb
está dois passos atrás, à minha esquerda. No código élfico, é indecoroso para um cavaleiro ter
qualquer interação com sua protegida, exceto para proteger sua vida, caso seja necessário. Não
podemos nos tocar, não podemos trocar olhares, não podemos nem nos dirigir a palavra, ou nosso
disfarce cairá por terra.
— Sua atenção, por favor. — Morfeu fala aos convidados. Gossamer espia por debaixo de seu
cabelo novamente, e a harpa que toca sozinha emudece, junto com o tagarelar dos convidados. — A
Senhorita Alyssa, do Outro Reino. — Ele se vira para mim e estende meu braço. — Estes são os
solitários de nossa espécie, nascidos na Corte Vermelha ou na Branca. Nós, os selvagens e rudes do
País das Maravilhas, lhe damos as boas-vindas ao Banquete das Bestas.
Minha mão aperta a dele enquanto os convidados olham fixamente para mim, com comida
pingando de seus focinhos.
Reunida em volta da longa mesa está uma mixórdia de criaturas, algumas vestidas, outras nuas.
Embora variem em tamanho e gênero, elas são todas mais bestiais do que humanoides. Uma parece
um ouriço, com espinhos e tudo, só que tem a cara de um pardal. Ela deve ser tímida, porque se
enrola em uma bola quando entramos, e depois quica para baixo da mesa. Uma mulher cor-de-rosa
com pescoço do comprimento de um flamingo abaixa-se e cutuca o ouriço com a cabeça, mandando a
bola de debaixo da mesa para o outro lado da sala.
Há mais criaturas: algumas com asas; algumas são parte sapo e parte planta, com trepadeiras
saindo de sua pele; outras são carecas como focas, com corpos de primatas e cabeças lanudas de
carneiros.
A única coisa que todos têm em comum é o interesse por mim. Sou o ponto focal de mais de
cinquenta pares de olhos.
Alguns murmúrios quebram o silêncio.
— É ela...
— É igualzinha, sim.
— Ouvi dizer que ela secou o mar com uma esponja. Uma esponja! Astuta e criativa.
Todos eles sabem sobre minha relação com Alice e o que vim fazer aqui. Potencial para um épico
fracasso.
Meu nervoso se junta ao fedor de comida, pelos de animais e almíscar. Tudo na sala gira. Jeb está
atrás de mim. Eu sei que, se eu desmaiar, ele irá me pegar. Também sei que, se desmaiar, estragarei
tudo. Tenho que ficar forte para Alison. Então, me recomponho e meu olhar passa de uma cara
estranha para outra, curiosa para saber qual criatura veio coletar o leque e as luvas em nome da
duquesa.
Morfeu me conduz até a mesa e puxa uma cadeira à direita da sua, à cabeceira. Há um enorme
malho apoiado ao lado da perna da mesa, e um debaixo de cada cadeira de nossa fileira. Ele me
acomoda ao lado de uma criaturinha crespa que parece um furão albino usando um capacete de
beisebol preto na cabeça, embora seus olhos serpentinos e língua bifurcada a privem de qualquer
graça.
Jeb assume seu lugar atrás de mim, fora de alcance. Morfeu fica de pé ao lado de sua cadeira e faz
uma reverência com o chapéu para os convidados, asas pretas arqueadas. — Me desculpem pelo
atraso. Mas, olhando o lado bom, nosso anjo vingador finalmente chegou. Então, que comece a
comemoração!
Depois de uma salva de palmas de nossos convidados, Morfeu passa seu chapéu para Gossamer e
várias outras fadas. Elas o penduram no braço da cadeira enquanto Morfeu se senta, dobrando as
asas sobre as costas feito um manto. Gossamer se aninha em seu ombro e todos os outros voltam a se
acomodar, com um ranger de madeira e o farfalhar de pelos e tecidos. O falatório recomeça, junto
com os ruídos de goladas, garfadas e sorvos.
— Prove um pouquinho, querida. — Morfeu aponta para o meu prato. Em seguida, vira-se para ter
uma conversa animada com um animal verde parecido com um porco que está sentado à sua
esquerda, na minha frente. O porco está vestindo um terno cinza com listras e punhos de pele. Suas
mangas são compridas, mas mal cobrem suas garras de lagosta. Ele sorri, e eu recuo ao ver seus
dentes — pretos e redondos como grãos de pimenta.
No meu prato, uma porção de peixinhos dourados no centro, arfando.
— Pisca? — o furão ao meu lado diz com voz de flauta. Ele aponta o dedo com garras para os
peixes.
— Temos que comer os peixes crus? — pergunto a ele. — Nunca fui muito fã de sushi.
— Sue-she? — pergunta ele.
— Deixa pra lá. — Meu olhar passa dos peixes para ele, agradecida pela distração. — Então seu
nome é Pisca?
Ele inclina a cabeça, o capacete brilhante cintilando conforme ele aponta para os esqueletos de
peixes em seu prato. — Pisca.
Nauseada, olho novamente para meu próprio jantar pululante.
Seus olhos de peixe saltam das órbitas, olhando diretamente para mim. Pena e repulsa viram meu
estômago. Não consigo nem imaginar minhas enguias de estimação fora da água e incapazes de
respirar. Será que as mariposas e insetos que uso nos mosaicos sofrem assim quando morrem? Por
que nunca me preocupei em perguntar?
— Pisca — repete a criatura ao meu lado. Ela levanta uma colher de prata quase do seu próprio
tamanho, fica de pé na cadeira e passa a golpear vários dos meus peixes na cabeça, matando-os. —
Pisca eles, entendeu? — Sua língua bifurcada lambe seus lábios.
— Ah, não! Por favor... — Num impulso, pego minha taça e jogo o líquido para que os outros
peixes que continuam vivos possam voltar a respirar. A mistura se esvai rapidamente, revestindo os
peixes com uma camada farinhenta que cheira a suco de maçã e canela. Desesperada, resgato os
peixes sufocados da sujeira, limpando a gosma com as unhas e sujando o tecido de minhas luvas.
Todos estão me olhando novamente, mas estou muito indignada para dar importância.
— O que é isso? — desabafo para Morfeu.
Os olhos dele faíscam. — De onde você vem não se coloca areia na sidra? — Ele sorri
afetadamente. Lembro-me de ver aquele mesmo sorriso nos sonhos quando criança, que costumava
significar que estávamos prestes a fazer algo ousado e divertido. Mas agora há um quê de malícia por
trás dele. O que poderia ter acontecido para transformá-lo de menino brincalhão no homem
perturbado que ele é hoje?
— Prefere experimentar o vinho? — pergunta ele.
Na outra ponta da mesa, os intraterrenos primatas recolhem garrafas de vinho que flutuam no ar, e
prendem tufos de lã de suas cabeças de carneiro nos gargalos para fazê-las descer. Depois, passam o
vinho aos outros para brindar.
Franzindo o nariz, recuso a oferta.
— Ah, pobre e delicada flor. — Morfeu pega um guardanapo e toma minha mão direita com
delicadeza. — Vamos limpá-la. — Gossamer aparece flutuando sobre a mesa ao lado da minha mão
direita e ajuda, com rispidez desnecessária, dando puxões nas minhas luvas e beliscando minhas
juntas enquanto ri de mim. Em contraste, Morfeu retira suavemente a mistura arenosa de meus dedos.
Faíscas de calor surgem do contato.
Há calor atrás de mim, também, e vem do olhar de Jeb. Não preciso ver, eu sinto. Ele alertou
Morfeu para que não me tocasse durante o banquete.
— Uma pena que estivéssemos tão ocupados no Corredor dos Espelhos e acabamos perdendo a
entrada — diz Morfeu, olhando para Jeb de soslaio. — Você teria adorado a sopa de aranhas, já que
é tão adepta a ferir insetos.
Eu me contraio.
— Pena maior ainda — ele se inclina e sussurra bem baixinho para que só eu possa ouvir — que
você desperdice seus beijos com um homem que fantasia com outras mulheres. A pequena Gossamer
pode ver a mente dos outros enquanto dormem. A linda jovem que povoa os sonhos de Jeb não é
você. O interessante é que ele agora escolhe agir em nome de “sentimentos ocultos”. Justo aqui,
longe de todos, quando ele quer tão desesperadamente dissuadi-la de sua missão.
Uma sombra penetrante me atravessa o peito, cortando-me como uma faca.
— Ah, mas é claro que ele é sincero — Morfeu continua a provocar. — Ele nunca escondeu nada
de você. Sempre foi sincero.
A mudança de Jeb para Londres com Taelor toma minha mente, deixando-me tão sombria quanto
as nuvens escuras por trás dos olhos do nosso anfitrião.
Observando minha reação, Morfeu sorri. — Sim. Um homem que nunca mente nunca partirá seu
coração. — Plantando um beijo no alto de minha luva, ele joga fora o guardanapo e me solta.
Gossamer me encara com fúria e voa de volta para o ombro dele.
Lágrimas me brotam nos olhos. Me controlo para que elas não caiam, mas não consigo comandar a
dor que me toma o estômago. Morfeu deve estar certo. Jeb nunca mencionou nutrir sentimentos por
mim na nossa vida real. Lá, ele ainda está com Taelor e ainda sonha com ela.
Morfeu fica de pé e recoloca o chapéu na cabeça, tratando de negócios. — Chega de brincarmos
com essas migalhas insossas. Garçons, tragam o prato principal!
Algum movimento ao longo das paredes propicia uma distração momentânea da dor em meu
coração. É como se pedaços do reboco ganhassem pernas. Só quando eles se desprendem de seus
lugares e se esgueiram para uma das salas adjacentes é que percebo que são um bando de camaleões
do tamanho de seres humanos, com ventosas nos dedos.
Quando os lagartos listrados retornam, com os olhos salientes girando em todas as direções,
trazem uma travessa decorada com frutas secas e algo que lembra um pato. Está depenado e assado,
mas ainda mantém a cabeça intacta. Um cheiro quente de ervas me pinica o nariz. Pelo menos está
cozido.
— Posso apresentar a todos o prato principal? — Morfeu estende um braço com um gesto
dramático. — Jantar, conheça seus dignos adversários: os convidados famintos.
Minha língua vira uma lixa quando os olhos do pássaro se abrem, e ele se esforça para ficar sobre
os pés palmados, trôpego, a carne marrom e brilhando cheia de temperos e óleo. Ele tem um sino
pendurado no pescoço que tilinta quando o pato se curva para cumprimentar a todos.
Isso não pode estar acontecendo.
Cada nervo do meu corpo se eriça, pedindo que eu me una a Jeb. Mas não posso.
Morfeu arrasta o pesado malho que está ao lado de sua cadeira e o bate na mesa, como o martelo
de um juiz. — Agora que todos se conhecem, que comece a pancadaria.
Gossamer decola do ombro de Morfeu e sai da sala com as outras fadas quando explode a
confusão em massa. Todos os convidados ficam de pé, com os malhos na mão, prontos para caçar o
pato que chocalha.
Ele é surpreendentemente ágil e se esquiva, fazendo manobras em meio às travessas, pratos e
prataria.
— O que você está fazendo? — pergunto a Morfeu. — Eu nunca vi nada tão selvagem!
— Selvagem? — O porco verde bufa em resposta. — Você age como se fôssemos um bando de
animais. — Seus dentes de pimenta formam um sorriso desdenhoso.
— Pare de pensar com a cabeça, Alyssa. — Morfeu inclina-se sobre a mesa, seu cabelo azul
balançando na altura dos ombros. — Pense com isto. — Ele coloca um dedo acima do meu umbigo.
É bom que Jeb não consiga ver desse ângulo, ou ele quebraria a mão de Morfeu.
— Com o estômago? — Eu mal consigo enunciar a pergunta.
— Com suas entranhas. Instinto. A parte mais profunda de você sabe que é assim — ele aponta o
caos à nossa volta — que deve ser. Aquela mesma parte de você que a fez me procurar e atravessar o
espelho. A mesma parte que lhe deu o poder de animar seu mosaico.
As palavras dele me remetem de volta àquele momento no meu corredor quando as patas dos
grilos mortos começaram a chutar e as contas de vidro brilharam. Ele está dizendo que a magia da
minha maldição fez aquilo também?
— Você compreende a lógica que está além do ilógico, Alyssa. É da sua natureza encontrar
tranquilidade em meio à loucura. E é isso o que estamos fazendo aqui. Estamos dando à nossa
comida uma chance de resistir. — Ele pisca para mim. — Agora, se nos desculpar, meu camarada e
eu temos algumas bordoadas a dar. — Ele e o porco deixam a mesa. Morfeu se inclina para que suas
cabeças fiquem na mesma altura enquanto eles se dirigem ao outro extremo da sala.
— Pisca! — grita o furão branco. Ele sobe na mesa com a colher nas mãos e acaba sendo
atropelado pelo pato assado. Aparo meu amigo peludo antes que ele caia de cabeça no chão. Sua
colher bate com força no piso, ao lado de seu capacete. Sem o capacete, seu escalpo pelado fica
exposto — a pele é tão fina que seu cérebro fica à mostra. Ele não tem crânio.
Ele se aninha no meu colo. — Datum. Muito datum, meu anjo! — Olhos cor-de-rosa em forma de
contas me estudam, suaves de mórbida adoração. Fico tão cativada com a estranheza da criatura que
não percebo a multidão que vem em nossa direção, brandindo seus malhos numa corrida caótica pelo
prêmio.
Jeb puxa minha cadeira da mesa para me salvar de ser martelada, enquanto o furão se agarra na
minha túnica com obstinação. Em seguida, Jeb se esquiva para o canto, ficando à minha frente, numa
diagonal, mantendo distância. A expressão dele é de esforço para não fazer contato visual.
— Conhecem as regrassss! — Um lobo sinuoso sibila ao dar uma tacada, quase acertando o pato
quando ele se choca com uma travessa. — O primeiro a acertar é o primeiro a trinchar!
Um uivo horripilante quebra o caos quando alguém arranca uma perna do pato. Ele consegue sair
se arrastando enquanto vários dos perseguidores roem a coxa arrancada.
O pato sobe em uma garrafa de vinho que flutua e ganha o ar, rindo em delírio. Arrancando e
atirando pedaços da própria carne, ele incita os outros a tentarem pegá-lo.
Ele quer ser comido.
Uma pontada doentia convulsiona minha barriga, provocada pela excitação da caça. Minhas pernas
se contraem no desejo de pular. Reprimo o impulso.
Todas as criaturas capazes de voar o seguem com os malhos em punho, flutuando sobre os outros.
Os presos ao solo se descolam apressadamente para cima da mesa ou correm pelo chão, tropeçando
em pratos e cadeiras na esperança de que alguém abata o prato principal e ele caia.
Tapo a minha boca para abafar um grito ou riso histérico. Poderia ser qualquer um dos dois a esta
altura. Estou começando a apreciar a loucura.
Isso não é bom. Não mesmo.
Meu novo amigo furão acaricia meus dedos, as almofadas de suas patinhas cor-de-rosa macias
contra a minha pele.
— Sã fique, anjinho — consola sua voz de flauta. — Sã e agradável. Escolha e cante. Seja
sorrisos reais para mim. — Ele ri, os dentes afiados brilhando à luz do candelabro. Seus caninos são
longos como as presas de uma serpente.
Sinto meu instinto aguçado e faço o que Morfeu sugeriu — sigo-o. Faço cócegas na orelha
esquerda da criatura, como faria com um bicho de estimação. Ele ronrona em resposta.
Me desligo de tudo — da perseguição ao jantar, da loucura no riso e nos gritos dos animados
convidados, da carinhosa e peluda criatura no meu colo — quando vejo Morfeu passar o leque e as
luvas para o porco.
Em troca, o porco passa para Morfeu um pequeno saco branco amarrado com uma fita preta.
Depois, o porco recolhe seu malho e vai correndo juntar-se à festa, que fora parar na cozinha. O
ruído de potes e panelas na outra sala ecoa com força no repentino silêncio da abandonada sala de
jantar.
Tenho um sobressalto quando o furão me agarra o rosto. — Seja doce, anjinho. — Ele lambe meu
queixo com sua língua bifurcada e fria e depois pula para o chão, arrebatando sua colher e seu
capacete. — Pisca. Pé-de-vento e fora! — Com isso, ele recoloca o capacete e ruma para a cozinha.
Assim que ele desaparece, somente Jeb, Morfeu e eu ficamos no recinto. Livres de olhos curiosos,
olho para Jeb da minha cadeira e ele me olha do outro lado, sem nenhum de nós se mexer.
Uma estranha pressão começa a penetrar no meu queixo onde a língua serpentina do furão deixou
uma marca molhada. Ela penetra na minha pele e serpenteia até a minha boca, quente e fria ao mesmo
tempo. Sinto seu gosto — amargo e doce, como um doce feito de lágrimas.
A sensação não para por aí. Ela flui para dentro da minha garganta, depois para meu peito,
beliscando com uma tristeza profunda. No princípio, fico triste por mim e Jeb, por como ainda temos
tantas coisas a acertar. Depois, fico triste por Alison e papai, e os anos juntos que perderam. Fico
triste pela Rainha Vermelha e seu coração partido, e pela Rainha de Marfim, que sempre sofreu em
silêncio, agora trancada sozinha na prisão daquela caixa. A tristeza vai aumentando, como se toda a
dor do mundo convergisse para um só ponto logo acima de meu coração. Quero chorar... Quero tanto
que chego a ficar sem ar.
Jeb corre até mim, agachando-se aos meu pés. — Al, está tudo bem. Já passou. — Ele sente minha
testa. — Você está tão fria. Diga algo, por favor.
Não consigo responder por medo de começar a chorar de modo incontrolável.
— Ela está ficando azul! — Jeb grita para Morfeu. — Aquele furão esquisito fez alguma coisa
com ela!
— Não, não. Não fique histérico, pseudoelfo. — Morfeu joga o chapéu sobre uma cadeira e junta-
se a nós. Ele se inclina sobre mim. Jeb, relutante, se afasta alguns centímetros para dar-lhe espaço.
Morfeu levanta meu queixo e inclina meu rosto para um lado e para o outro, como um médico
realizando um check-up. — Tem sorte de ele ter gostado de você, queridinha. Os intraterrenos
Mustela são conhecidos por seu temperamento, e têm o veneno de mil vespas em uma mordida de
seus caninos. Suas cabeças são frágeis e vulneráveis. Se você o tivesse tocado em outro lugar além
das orelhas, ele teria tomado isso como uma ameaça. Você estaria se contorcendo no chão neste
momento, sufocando em sua última e excruciante respiração.
Tento falar, mas não consigo. A tristeza vai ficando cada vez maior. Cada batida de meu coração
esgota meu peito feito uma sanguessuga. Quero escorregar para o chão, enrodilhar-me em mim
mesma e chorar para sempre. Mas estou congelada no lugar.
— Você a acomodou ao lado daquela coisa de propósito, não foi? — pergunta Jeb, ou melhor,
grita. — Para puni-la por ter me beijado! Seu miserável filho da... — Ele ataca Morfeu, girando-o e
envolvendo-o em suas asas, e pressionando-o contra o tampo da mesa. Pratos e utensílios tremem
com o impacto. Com o antebraço apertado contra a laringe de nosso anfitrião, Jeb o mantém preso.
— Conserte isso. Agora.
— Não há nada para consertar. Foi um presente dele. — Morfeu grunhe quando o braço de Jeb
aperta sua garganta. Ele tenta se libertar, mas Jeb o embrulhou tão fortemente em suas asas que ele
não consegue se mover. — Se você me deixar sair — balbucia ele por entre os dentes — eu
mostrarei.
Rosnando, Jeb se afasta e cai de joelhos ao meu lado novamente, tomando minha mão mole. Ele
entrelaça meus dedos nos dele. — Vamos, menina do skate. Fique comigo, está bem? Haja o que
houver dentro de você, não deixe que vença.
A preocupação que tensiona os traços de Jeb deixa o meu peito ainda mais pesado e me sufoca.
Ele precisa que eu responda. Mas se eu abrir a boca para responder, vou chorar sem parar até nada
mais restar de mim.
— Dê-me um pouco de espaço. — Morfeu agacha e Jeb se afasta, mantendo nossos dedos
entrelaçados. Morfeu coloca um guardanapo de pano perto do meu rosto. — Deixe que saia, querida.
Eu sei que parece um dique prestes a desmoronar, mas eu lhe asseguro que basta uma lágrima e você
se sentirá bem.
Não é possível. Uma lágrima nunca será suficiente. Eu me dobro. Um grito agudo irrompe de
minha garganta, tão profundo que fere minhas cordas vocais e esvazia meu abdômen. O grito termina
em um soluço. E, então, uma única lágrima me rola pelo lado esquerdo do rosto.
De repente, sou eu mesma novamente. Aperto a mão de Jeb.
Morfeu embrulha no guardanapo o que parece ser uma bola de gude de vidro transparente, embora
seja macia e maleável, como aquelas bolinhas de óleo para banho. — Isto é seu.
— Esta é a minha lágrima? — pergunto.
— É um desejo. Seu novo amiguinho tem o dom da invocação. Eles só concedem um na vida, e ele
escolheu você. Eu o manterei em segurança por enquanto. Você ainda não está pronta para lidar com
tanto poder. — Enfiando o guardanapo no casaco, nosso anfitrião começa a se levantar, mas Jeb
agarra seu ombro e o mantém ajoelhado.
— Nada disso. Você vai dar isso para ela agora. Dê a ela e ela poderá usá-lo para nos mandar
para casa.
Morfeu liberta-se. — E deixar a maldição continuar? Além disso, temo que não seja assim tão
simples. Porque isto aqui pode ser usado por ela, e só para ela. Ela deve ser o sujeito do desejo,
pois foi ela que o chorou. Ninguém mais pode se aproveitar deste poder. Então, ela não pode levá-lo
para casa. Se querem voltar, os portais são sua única chance.
Jeb e eu trocamos caretas.
— Terei outros desejos — sugiro.
Morfeu ri. — Ah, mas é claro que sim. Como fez Alice. Ela pediu uma infinita variedade de
desejos. Depois, as lágrimas não paravam de sair. Foi assim que o oceano nasceu, para começo de
conversa. Nós quase nunca conseguimos parar essa fonte. Se você tentar ser mais esperta do que a
magia, há sempre um preço a ser pago. — Morfeu coloca-se de pé.
Eu agarro o seu pulso. — Você me fez sentar ao lado dele por alguma razão. Você queria que eu
produzisse esse desejo. Por quê?
Em silêncio, ele afrouxa o nó da gravata em seu pescoço, num gesto de relaxamento, mas sustenta
meu olhar. O lado esquerdo de sua boca se curva num meio sorriso.
— Ei... — Jeb ergue nossas mãos unidas e aperta o polegar contra meu esterno para chamar minha
atenção. Meu coração começa a bater com a pressão, lembrando de suas carícias no corredor
espelhado. — Você estava ficando azul, Al. Aquela cobra-furão podia ter matado você fácil, fácil.
Esse miserável arriscou sua vida só para se divertir. Ele não tinha nenhum motivo nobre.
— Os intraterrenos Mustela são excepcionais juízes de caráter — explica Morfeu, entoando. — Eu
sabia que Alyssa estaria à altura. Tenho certeza absoluta de que ela pode defender a si mesma. Você,
por outro lado, não parece compreender esse conceito.
Jeb me ajuda a levantar da cadeira e me puxa para um abraço. É bom estar em seus braços, mesmo
estando incerta quanto aos seus motivos.
Nosso anfitrião coloca o chapéu no lugar. — Ainda bem que não comi nada, ou ficaria nauseado
com tal demonstração.
Jeb beija minha testa para provocar Morfeu. Eu me afasto, porque quero que ele me beije porque
deseja.
— O porco. — Provoco uma mudança de assunto na conversa; não estou a fim de bancar a juíza
para nenhuma de suas briguinhas.
— Sim — Morfeu responde sem quebrar sua carranca de enfrentamento para Jeb. — O porco é, na
verdade, um diabrete nascido da duquesa.
Alguns pedaços da história de Lewis Carroll se encaixam. Alguém estava fazendo uma sopa para a
duquesa com muitos temperos. Era por isso que o leque e as luvas cheiravam a pimenta. E ela teve
um bebê que se tornou um porco — Então, o que ele lhe deu em troca das luvas e do leque?
Morfeu levanta o saco branco. — A chave para acordar Herman Chapelão no chá da tarde;
gratuitamente. — Ele a entrega a mim, e Jeb começa a desatar a fita.
O dedo de Morfeu se põe sobre o laço. — É melhor não fazer isso. É a pimenta-do-reino mais
poderosa e cara neste lado do reino interior. E só há o bastante para uma dose.
Jeb franze a testa. — Pimenta-do-reino. Que tipo de mágica barata é essa?
Antes que Morfeu possa responder, uma horda de fadas invade a sala de jantar, voando pela porta
principal.
— Mestre, temos companhia — grita Gossamer. — Má companhia!
— Vão — diz Morfeu para Jeb, inclinando-se para pegar um malho.
Jeb enfia o saco de pimenta dentro do bolso e depois pega minha mão. Só demos dois passos na
direção da saída secreta quando um baralho de cartas — cada uma completa com seis perninhas e
bracinhos — marcha pela porta principal. Os guardas de cartas continuam chegando até cobrirem
todas as paredes.
Olhando mais de perto, estes guardas de cartas têm cara de insetos com antenas tremelicantes, e
seus dorsos finos como papel são, na verdade, conchas achatadas, salientes nas bordas e pintadas de
vermelho e preto para lembrar naipes de cartas. Com seus membros estranhamente unidos e bocas
perfurantes entrecruzadas nas mandíbulas, eles parecem mais insetos do que cartas.
Todos esses anos venho matando insetos e agora o carma está aqui para me fazer pagar, em naipes
espadas.
Os insetos se dividem em naipes: cinco copas e cinco paus de um lado e cinco espadas e cinco
ouros do outro, com o Rábido Branco no centro. As fadas, pequeninas e indefesas, olham a situação
de lá de cima, reunidas em volta do candelabro.
Um colete vermelho com luvas combinando pende da estrutura miúda e esquelética do Rábido. Em
uma mão ele segura uma corneta e na outra um pergaminho enrolado. Ele entorta a cabeça com
antenas para produzir três notas soprando o instrumento. Depois, com um estalido do pulso e um
chacoalhar de ossos, o Rábido abre o pergaminho.
— Alyssa Gardner, da corte humana, é chamada diante da Rainha Grenadine, da Corte Vermelha.
— Seus olhos cintilantes e cor-de-rosa se erguem, fixando-se em mim. Sou tomada por uma onda de
terror.
Jeb e Morfeu se colocam na minha frente. Dane-se aquela história de defender a mim mesma...
— Ela não vai a lugar algum com você, Rábido. — Morfeu levanta seu malho.
— Caso contrário, diz a Rainha Grenadine. — Espuma lambuza a boca de Rábido, e seus olhos
brilham como brasas acesas, vermelhos de fogo. — Caso contrário, seu exército assume o comando.
Diante do sinal dele, as cartas contra a parede se unem e dão um salto em nossa direção, como se
controladas por uma mão invisível.
As fadas mergulham de lá de cima, tentando interferir. Morfeu abre as asas ao máximo para
proteger a mim e a Jeb do ataque. Lanças atingem suas asas, esticando-as, mas sem trespassá-las.
Estico as mãos sobre as costas de Morfeu, absorvendo o choque quando seus músculos se retesam a
cada golpe do malho. Seus grunhidos se sobrepõem ao barulho dos guardas, caindo no chão.
— Saiam daqui! — grita ele por sobre os ombros, ao nos conduzir de costas até a saída secreta
para a sala espelhada, ainda usando as asas como barreira.
Jeb agarra meu cotovelo e me arrasta para a porta.
— Não! — Me debato. — Não podemos deixá-lo lutar sozinho. São muitos!
Cerrando os dentes, Jeb me arrebata para o seu ombro. — Ele está se saindo bem. E você é mais
importante. — Seu braço aperta minhas coxas, minha cabeça e meu torso ficam pendurados de
cabeça para baixo em suas costas. A escadaria sinuosa de mármore preto passa por baixo de mim, e
o sangue desce para a minha cabeça.
Fecho os olhos com força, ouvindo a batalha na sala de jantar ficar cada vez mais longínqua.
A lembrança de como Morfeu e eu brincávamos em nossa infância, do modo como ele curou meus
ferimentos hoje, o som de seu lindo acalanto — tudo isso ferve em mim, num caldo confuso de
emoção. Penso no desejo enfiado em seu casaco... O desejo que ele queria me dar, por alguma razão.
Se eu o tivesse agora, desejaria estar na sala de jantar ajudando Morfeu a lutar.
Estou prestes a tentar fugir quando ouço o som de potes e panelas.
— Pisca! Pisca todos eles!
Em seguida, ouço uma série de guinchos e rugidos — as mesmas vozes bestiais que ouvi na festa.
As bestas voltaram de sua caçada, e Morfeu não está mais lutando sozinho.
Jeb e eu nos esgueiramos pela passagem secreta que leva a outro lance de escadas. Em pouco
tempo estaremos tão distantes que o único som será o das suas botas pisando no chão espelhado.
— Pode me colocar no chão agora — resmungo.
— Eu não sei. É muito mais fácil salvar sua pele quando ela está pendurada no meu ombro.
— Você não precisa me salvar.
Jeb solta um riso sarcástico. — Não tenho muita escolha se você se joga em situações perigosas
nessa sua cruzada. Agora você vem e nos coloca no meio de uma guerra mágica.
Eu bato nele. Bem no meio das escápulas.
— Ei... — Ele coloca meus pés no chão, de modo que ficamos olhando um para o outro enquanto
ele esfrega as costas. Apesar de sua careta, Jeb parece impressionado.
Meus dedos estão latejando. O sujeito poderia colocar uma pedra nessa história de vergonha. —
Eu já me sinto mal o bastante por ter arrastado você para dentro disto, está bem? Se eu pudesse fazer
tudo de novo, você não estaria aqui. — Relaxo os dedos. Gossamer ainda não veio para abrir a porta
no espelho, e uma urgência em chegar ao chá da tarde se instaura em mim.
Jeb levanta meus dedos e aperta os lábios contra eles. — Eu ainda desejaria estar aqui com você,
mesmo se tivéssemos uma segunda oportunidade. Mas, se quisermos sair desta, você precisa parar de
acreditar no homem-mariposa como se ele fosse algum tipo de santo.
— O nome dele é Morfeu. — Sinto um nó na garganta quando penso no que está acontecendo três
andares abaixo. — Você acha que ele está perdendo? Acha que vão machucá-lo?
— Por que tanta preocupação com ele?
— Eu cresci com ele. Eu me importo.
— Não faz sentido. Isso foi nos seus sonhos. A amizade de vocês não era real.
— Parece real. Porque ele acredita em mim. Ele me deixa arriscar e aprender com isso. É algo
que um amigo faz. — Cerrando os dentes, olho para Jeb.
A expressão dele fica tristonha, como se uma sombra o encobrisse. — Então, só porque o
esquisitão alimenta seu ego, você está disposta a ignorar todas as mentiras dele? Ele não disse a
verdade sobre nada desde que nós chegamos.
— Então ele combina bem com você, visto que são dois mentirosos. — Odeio a acusação na
minha voz, mas não consigo contê-la. Separo nossas mãos, percebendo o saco sobre a mesa; o que
continha a caixa linguardarte. — Por que ela ainda está aqui?
Fazendo uma careta, Jeb aproxima-se de mim enquanto desembrulho a caixa. — Deve ser o lugar
mais seguro. Você não deveria mexer com isso.
— Quero dar mais uma olhada na inscrição. — Eu queria olhar para a rainha de novo. O que ela
tem que deixa Morfeu tão encantado?
Jeb cobre a tampa com a palma da mão. — Sabe, você não pode simplesmente chamar as pessoas
de mentirosas e deixar por isso mesmo. Talvez eu não tenha sido honesto em relação a Londres. Mas
você também mentiu.
Os espíritos de mariposas deslizam em minha visão periférica, como se acompanhassem minha
pulsação acelerada. — Não sobre os meus sentimentos. Você esperou até chegarmos aqui para
assumir sua suposta atração por mim. De volta ao mundo real, onde vale mesmo, você escolheu a
Taelor.
Ele me força a encará-lo, empurrando a caixa de chapéu para o fundo da mesa. — De onde veio
isso? Aquela baratona andou nadando dentro de sua mente novamente?
— Não. Mas Gossamer viu a sua quando você estava desmaiado. E ela viu que você sonhava com
outra moça. Quando você me beijou... Foi só para me convencer a desistir e ir para casa, para você
poder voltar para a Tae.
— O quê? — Os dedos dele são quentes e fortes, e eu os sinto através das mangas. — O sonho que
eu tive foi com Jen e mamãe. Estou preocupado com elas.
— Tá bom — digo, querendo ser convencida, mas ainda não completamente.
Ele se afasta e anda até o outro lado do corredor, mudo e estoico.
Meus braços sentem frio com a ausência de seu toque. A dor é excruciante, mas fico feliz por ter
dito alguma coisa. Eu ficaria com essa dúvida para sempre, pensando estar roubando beijos que eram
para outra garota. Puxo a caixa de peltre para perto de mim, concentrando-me na inscrição da tampa
para impedir que as lágrimas quentes em meus olhos caiam. Se eu focar e desfocar através do borrão,
as letras se movem, formando um texto legível. Eu o percorro com a ponta do dedo e sussurro as
palavras:
“Eis a caixa linguardarte; a mais bela em seu interior repousa. Para libertar a dama e sua dor
aliviar, há que em seu fluxo penetrar. Um mar vermelho de laços de amor, pinte as rosas da
mesma cor, em finas pinceladas pelas mãos de um artista guiados. Uma troca de almas a porta
fechará, e para todo o sempre o sangue a selará.”
— É a chave para libertar a rainha se não foi você a pessoa que a aprisionou. — A voz em trinado
de Gossamer me tira da minha meditação. — Individualizada para o habitante da caixa. — Ela pousa
em meu ombro, então consigo vê-la de perto: a forma perfeita de uma mulher, de um verde dourado e
nua, exceto pelas escamas cintilantes nas partes estratégicas. Ela apoia as mãos na cintura. — Um
mar vermelho de laços de amor. — Seus olhos de libélula se acendem. — As rosas devem ser
pintadas com o sangue de alguém disposto a trocar de lugar com ela pela mais nobre das razões. O
amor deflagra a transferência.
A famosa cena de Lewis Carroll me passa pela cabeça — os guardas de cartas pintando as rosas
de vermelho no jardim para não serem decapitados. Que ironia! Neste País das Maravilhas, alguém
poderia perder a cabeça para sempre pintando as rosas sobre esta caixa.
— Então Morfeu não foi completamente sincero — digo. — Existe outra maneira de libertá-la e
abrir o portal. Não depende somente da pessoa que a colocou lá. — Jeb está parado atrás do meu
reflexo, com expressão convencida. Quase posso ouvir um “eu disse” emanando de seus olhos.
— Não é uma decisão assim tão fácil — diz Gossamer, ralhando, e depois decola do meu ombro,
as asas zunindo. — Uma vez que a troca seja feita, ninguém jamais poderá libertar a alma substituta.
O sangue produz um selo permanente, eterno. “Uma troca de almas a porta fechará, e para todo o
sempre o sangue a selará.”
— Então, o que você está dizendo — Jeb dá um passo à frente — é que tem que ser um amor
desapegado. O que Morfeu é incapaz de dar. Falta a ele esse tipo de coragem.
Gossamer bate as asas no ar, os braços cruzados sobre o peito. — Meu mestre tem grande
capacidade de coragem. Ele salvou minha vida uma vez. — Ela olha para a entrada do corredor e
para nós novamente. — Ninguém sabe do que é capaz até as coisas chegarem ao limite. É por isso
que a chave para abrir a caixa é a essência do coração. Lá dentro se encontra o poder mais potente
do mundo. — Suas palavras crípticas ficam pairando no ar.
Ela se agacha debaixo da mesa e tira o canivete de papai, deixando-o aos pés de Jeb. Ele coloca a
arma no bolso. Quero perguntar o que a fada quis dizer sobre a essência do coração, sobre o limite.
Quero perguntar como Morfeu e os solitários intraterrenos estão se saindo lá embaixo. Mas minha
língua fica presa no poema da caixa linguardarte e na reação de Jeb às minhas perguntas.
Gossamer faz com que fiquemos de frente para um dos espelhos, e toca o vidro com a ponta do
dedo. Os espíritos de mariposas desaparecem do plano intermediário, voando para outros espelhos
ao longo das paredes.
Com a palma da mão estendida sobre a superfície reflexiva, a fada dá início àquele mesmo efeito
estilhaçado que vi no espelho giratório em meu quarto. Uma longa mesa cheia de doces e xícaras de
chá aparece no espelho, colocada sob uma árvore à frente de um chalé de campo que tem o formato
de uma cabeça de coelho — completo com chaminés como orelhas e teto de pelos. Parece que o sol
sobrepujou a lua desta vez, porque a luz do dia resplandece sobre tudo em volta. Com uma chave
quase do tamanho de seu antebraço, Gossamer abre o portal, alisando o vidro.
O ruído forte de passos ecoa no corredor adjacente. A luta chegou aqui.
— Vão! — Gossamer comanda.
Jeb nem olha para mim e leva a mochila ao ombro, a face quase tão verde quanto a de Gossamer.
Pulo através do espelho, mais desesperada para escapar à minha dor e confusão do que de qualquer
coisa que o Rábido Branco e o exército Vermelho possam causar.
13
Chapelão
Minhas botas acabam pisando em um prato cheio de doces. Quando a tontura passa, levanto o pé e
sacudo um pouco de glacê.
Antes que eu possa explorar a mesa na qual me encontro, alguma coisa cai em cima de mim, vinda
de trás. Tropeço e caio de cara em uma torta recheada de suculentas frutinhas roxas.
— Al... Me desculpe. — Jeb me ergue pelos cotovelos, puxando minhas escápulas na direção de
seu peito. — Você está bem?
Recuso-me a responder pelo simples motivo de ele não ter especificado se era física ou
emocionalmente. Com a ajuda dele, consigo ficar de pé entre uma travessa de pão com manteiga e
uma tigela de violetas cristalizadas. Um pouco do recheio da torta decora minha boca.
Lambo os lábios e depois sacudo os dedos, tentando me livrar daquela coisa pegajosa.
Da ponta da mesa onde estamos, a paisagem que vimos refratada no espelho se descortina por
completo. O chalé em forma de coelho fica em uma colina — um oásis verde e luxuriante em meio a
um deserto. A distância, dunas de areia parecem um tabuleiro de xadrez — quadrados pretos e
brancos como aqueles em que sempre tropeço no meu pesadelo. Queria ter uma tela, pincéis e tinta
para captar essa vista distorcida para sempre.
Uma brisa balança minhas tranças, pássaros gorjeiam em uma amoreira acima de nós, e a luz do
sol me aquece os ombros. Me faz lembrar tanto de Pleasance que uma onda de saudade me invade.
Eu queria poder falar com papai; mais ainda, queria poder abraçá-lo.
É sábado. Pelo menos eu acho que é. Se eu estivesse em casa, papai estaria grelhando bifes. Eu
faria uma salada de frutas, porque estou encarregada de fazer com que ele coma refeições
balanceadas.
E se eu fracassar e não voltar mais para casa? Alison se culparia para sempre e mergulharia nas
profundezas para valer. O tratamento com eletrochoques só vai conseguir piorá-la. E papai ficará só
na cozinha comendo cereais frios, tendo somente sua dor como companhia. E ainda tem a mãe de Jeb
e Jenara. O emprego dele no Submundo ajuda a pagar as contas mensais. Elas dependem dele. O que
fariam sem ele?
Se eu fracassar, arruinarei a vida de todos.
Jeb — ainda atrás de mim — me oferece um guardanapo. Limpo o rosto e resmungo: — Por que
não aterrissou na outra ponta da mesa?
— Estava ocupada. — Jeb me vira.
Eu quase engasgo ao ver os convidados do chá da tarde — Herman Chapelão, a Lebre Careca e o
Camundongo — todos sentados na outra ponta e congelados sob uma camada espessa de gelo
azulado.
— O mariposão tem uma noção deturpada de “dormindo” — lança Jeb.
Morfeu tem uma noção deturpada de tudo. Balançando a cabeça, caminho na direção deles. Ao
passar pelo bule de chá, o vapor me atinge a canela, umedecendo meu legging. Chapelão e sua turma
estão suspensos feito geleiras, mas a comida parece fresca e o chá ainda está quente.
— Cadê aquela pimenta? — Estendo a mão. É esquisito trabalhar em equipe. Minha família está
no modo transtorno desde que eu me conheço por gente, mas pelo menos nos últimos anos eu posso
contar com a amizade de Jeb. Agora ela está por um estranho fio emocional; não sei se acredito nele
ou em Morfeu. Era mais fácil ficar possessa no mundo real, quando eu tinha certeza de que ele havia
escolhido Taelor.
Jeb tira o saco do bolso. Eu desato o laço, respirando pela boca. Não quero arriscar inalar aquilo.
Só o cheiro leve de pimenta no leque e nas luvas já era suficiente para me fazer espirrar.
Espirrar...
Deve ser o que Morfeu pretendia com este saquinho de tempero.
— Você não vai desperdiçá-la tentando fazer o cara do chapéu espirrar, vai? — pergunta Jeb. —
Ele é uma escultura de gelo. Não tem nenhuma abertura onde deveriam estar as narinas. E só temos
pimenta para uma dose. É melhor ter certeza.
É estranho como ele às vezes pode me ler tão bem, embora em outras seja tão distraído.
Fecho o saco e o devolvo. Ele tem razão. Nunca conseguiremos acordar Chapelão com pimenta.
Ele nem tem nariz. Eu me aproximo. Ele está segurando uma xícara de chá fumegante numa posição
em que parecia estar enfatizando uma afirmação.
— Jeb, tem alguma coisa errada com a cara dele. É só um espaço vazio. — O vazio de um cinza
azulado brilhante reflete minha imagem, mais perturbadora do que seria a expressão congelada de um
estranho.
— Talvez o gelo seja tão espesso que cobriu os traços dele — arrisca Jeb.
— Não sei. Mas olhe só o chapéu. — Poderia ser um instrumento medieval de tortura, uma parte
cartola e outra parte gaiola, feito de pinos de metal com uma aba com dobradiças e que se abre feito
uma tampa. Olhando bem, o metal parece crescer da cabeça dele, feito ossos. A gaiola penetra em
buracos na carne, como as peças de xadrez do quarto de Morfeu.
— Um conformador — diz Jeb, com a voz tensa. — Ele tem um conformador brotando da cabeça.
A maioria das pessoas não saberia da existência desse instrumento do século XIX usado para
customizar os chapéus para se moldarem aos vários tipos de cabeças, mas Jenara tem um em seu
quarto. Perséfone o encontrou em um leilão, e, sabendo que Jen adora coisas relacionadas à moda,
deu um lance baixo e acabou arrematando-o, porque ninguém sabia o valor do artefato.
A estrutura de tiras de metal se molda à circunferência da cabeça do cliente onde ficaria a aba do
chapéu, e os pinos adaptam-se à conformação do crânio. Um papelão oval é inserido na tampa de aba
e pressionado no lugar da coroa, fazendo com que os pinos façam buracos na forma da cabeça. Ele
forma um molde que o chapeleiro pode usar para fazer um chapéu customizado para aquele
indivíduo.
Por que este aqui está fisicamente ligado ao crânio de Herman está além de minha compreensão, e
eu nem quero imaginar como ele o usa em seu trabalho.
Concentro minha atenção em seu rosto refletivo e volto-me para a “lebre”, que é demasiado
hedionda. Em boa parte porque parece ter sido virada do avesso — não tem pelo, só carne mortiça.
É como olhar para um coelho esfolado. Mas pelo menos ela tem uma cara. Sua expressão é demente,
com um lampejo selvagem nos olhos brancos. Uma xícara de chá está equilibrada em cima de um
doce em seu prato. Sua pata está enfiada na xícara de chá a partir do pulso, como se estivesse
embebendo algo.
Dos três convidados, o Camundongo é o único que parece normal. Se é que um camundongo
vestindo um casaco de porteiro pode ser considerado normal.
— Não sei como resolver isso — digo. — Eles estão todos congelados, então como vamos fazê-
los espirrar com uma pitada de pimenta?
Jeb balança a cabeça. — Vamos ver o livro. — Ele anda ao redor da mesa se esquivando e passa
para uma cadeira vazia. Empurrando para o lado um vacilante carrinho de chá de três andares, ele
pisa na grama. — Vem cá — diz ele, me chamando para pegar sua mão enquanto ele se senta à mesa
e acomoda a mochila ao seu lado.
Permito que ele me ajude a descer, mas me liberto no instante em que meus pés tocam o chão.
Secando o resto de suco de amora do meu rosto com um guardanapo de tecido, verifico minhas
roupas para ver se estão limpas. — Estou com fome. — Que nada. Estou morrendo de fome. Nem me
lembro da última vez que comi alguma coisa.
— Bem, não devíamos comer essas coisas. — Jeb aponta para a mesa posta. — Quem sabe o que
isso poderia fazer com a gente? — Ele encontra uma barra de cereais na mochila e me dá metade,
indicando uma cadeira vazia ao seu lado. Em vez dela, sento-me em outra dois lugares adiante. Ele
me olha com firmeza enquanto comemos; os únicos sons são o farfalhar da embalagem, os pássaros e
a brisa.
Evitando seu olhar, conto as listras pêssego e cinza do meu legging. Minhas pernas estão
começando a parecer pirulitos. Pirulitos doces e gostosos.
Fico com água na boca.
O que há de errado comigo? Preciso ajudar Jeb a descobrir uma saída, mas só consigo pensar em
comida.
Depois de engolir o último pedacinho da barra, a fome ainda não passou. Me lembro do gosto bom
que aquela coisa roxa tinha e desejo nunca ter caído nela, para começar.
Por outro lado, deve ter sido hilário de assistir. Eu me vejo tropeçando e caindo na torta e dou
uma risada bem alta.
— O que é tão engraçado? — pergunta Jeb. Ele está com o romance País das Maravilhas aberto no
colo e joga o resto da barra dentro da boca.
— Nada. — Outro ataque de riso me toma. Este é tão forte que mordo o interior de minhas
bochechas para não ceder.
Alheio, Jeb vira as páginas. — Aqui diz no capítulo sete que o Rato ficava pegando no sono
durante o chá e o Chapeleiro jogou chá quente no nariz dele para acordá-lo. A passagem está
sublinhada, então talvez seja uma dica. O que acha?
— Acho que o Camundongo deve ter bom faro para chá. — Bato a mão na boca, envergonhada
pelo comentário sem sentido.
— OK. Chega de fingir que está tudo bem. — Jeb coloca o livro dentro da mochila junto com a
embalagem. Ele chega perto de mim e pega meu queixo, levantando-o para que eu o encare. — Você
acha mesmo que eu estava fingindo quando te beijei?
Um estranho desejo de brincar brota dentro de mim, completamente inadequado para a seriedade
da situação. — Há-há-há, cavaleiro élfico. — Afasto o queixo e fico de pé, coquete, frívola, e
totalmente nada a ver comigo. — Você não deve tocar na minha preciosa bundinha, lembra? Afasta-te
de mim, Jebbeth. — E viro as costas para ele.
Ele me pega pelo cotovelo. — Quer olhar para mim, por favor?
Puxo o cotovelo e me liberto, pulando sobre o carrinho de chá para o outro lado da mesa, de modo
que os arranjos da mesa formam uma barricada entre nós. À minha esquerda está o Camundongo. Ele
é do tamanho de um hamster, mas sua cauda fina é peluda como a de um esquilo e coberta de gelo
branco. Há travesseiros empilhados em sua cadeira, para erguê-lo à altura da mesa. Sua cabeça
descansa ao lado de uma xícara de chá quente cheia até a metade. Ele deve ter congelado enquanto
cochilava.
Inclino-me para perto de suas orelhas — prateadas de gelo e alongadas. — Não o culpo por
dormir a vida toda — sussurro para ele. Jeb está boquiaberto, como se eu fosse de Marte. — Queria
ter dormido as últimas horas da minha.
A expressão de Jeb despenca, e sei que o magoei. Não foi minha intenção. Sinto-me tudo menos
rancorosa. Além de estar faminta, estou extravagante, insensata e desinibida. É muito libertador.
— Al, vamos lá. Não quero que as coisas fiquem desse jeito... Não entre a gente. — Jeb começa a
contornar a mesa e eu estou prestes a disparar numa corrida, pensando que um bom pega-pega seria
divertido, quando ouço alguém fungando. É tão suave que a princípio penso que é o rumorejo das
folhas acima de nós. Depois, vejo o nariz do Camundongo se retorcer. É brilhante, úmido e rosa,
como uma bolinha de glacê de morango. Estou quase o arrancando e comendo quando Jeb chega por
trás de mim.
O Camundongo funga novamente.
— O que você acha, Jeb? Uso a pimenta para acordá-lo? Ele pode ser nosso parceiro. Vamos
chamá-lo de Skittles, que nem a bala. — As coisas que saem da minha boca não têm sentido nenhum,
mas não consigo detê-las. Não mais do que consigo deter o ronco colossal de meu estômago que vem
a seguir.
Me olhando com uma careta incomodada, Jeb senta-se ao meu lado e retira o saquinho da mochila.
— O nariz dele deve ter descongelado por causa do chá.
Não consigo me concentrar em nada a não ser meu corpo. Minha pele coça, como se eu precisasse
fazer alguma coisa. Subo na cadeira, dela para a mesa, chutando alguns pratos para o lado.
— Al, que diabos...?
Uma música toca na minha cabeça... E não é o acalanto de Morfeu. Algo com uma batida sensual e
viciante. Sacudo os quadris para a frente e para trás. Os rubis em meu cinto cintilam, e os anéis
balançam — estilo dança do ventre. Eu nem sabia que podia me mexer assim. Deve ser por causa de
todos aqueles anos que brinquei de bambolê com a Jen.
Os olhos de Jeb parecem que vão saltar das órbitas... E também as veias em seu pescoço. Ele faz
um som — algo entre um pigarro e um gemido —, magnetizado pela ginga em meus quadris. Depois
se levanta. — Quer descer daí? Você ainda vai se machucar.
— Não. Sobe aqui comigo. — Levanto os braços sobre a cabeça e jogo a pelve de modo sedutor.
— É uma dança para acordar o Skittles. Sabe, que nem os índios americanos faziam para chamar
chuva.
Jeb está boquiaberto. — Duvido que os índios se mexessem desse jeito.
Sentindo o ritmo pulsar em cada pedacinho de meu corpo, visualizo as correntes do cinto de Jeb
dançando com a música, imagino espirais de energia correndo pelas argolas, induzindo movimento.
Com a ponta de um dedo, faço um sinal, chamando-as.
— Ei... Ei, espere! — A corrente de Jeb dá uma guinada, forçando-o a subir na cadeira. Ele tenta
agarrar as argolas com as mãos, mas elas se libertam, puxando-o até ele subir na mesa e ficar na
minha frente.
Agarro seus quadris, convidando seu corpo a gingar junto do meu. Agarrada a ele, fungo em seu
pescoço, distribuindo beijos sobre sua pele macia enquanto penteio seu cabelo com meus dedos. Seu
rabo de cavalo se solta. — Você tem um gosto tão bom que dá vontade de comer — eu sussurro.
As correntes se enrolam na perna dele, apertando. Retesando-se todo, ele as agarra. — Co... Como
você está fazendo isso?
Eu rio, correndo minhas mãos sobre seus bíceps e peito. — Morfeu me mostrou como eu poderia
animar objetos. Não é espetacular?
Estou me concentrando tanto em apreciar os músculos dele que isso quebra minha conexão com as
argolas de metal. Assim que Jeb se liberta, pula para o chão e me desce também. Me jogo na cadeira,
dando risada, enquanto ele segura minhas duas mãos cruzadas sobre o meu peito.
— Você está me assustando, Al. Pare com isso.
— Parar com o quê? — Liberto uma mão e, com um dedo, percorro sua camisa até embaixo,
seguindo o limite do tecido preto sobre seu umbigo gostoso e parando para agarrar sua cintura.
Um músculo no queixo dele salta.
Eu ronrono. — Você é viciado em controle, Jeb. Seu mundo vira de cabeça para baixo quando a
pequenina Alyssa não está tropeçando em seu cinto de castidade. Não é isso, garotão? — Dou um
tapinha no botão que fica no alto de sua barguilha.
— Uhhh...
— Por que você não acorda o Skittles e depois nós vamos para casa e fazemos uma festinha de
verdade? — Estou sorrindo tanto que meu rosto dói — um sorriso provocativo, gozador. Por alguma
razão, não consigo parar.
— Você precisa parar de me olhar desse jeito — diz Jeb com a voz áspera.
— E se eu não parar? — Sinto uma comichão tão forte nas entranhas por saber que ele está
confuso. Por saber que eu provoquei isso.
Engolindo em seco, ele tira novamente o saquinho de pimenta. — Casa. Muito bem. Pode ser que,
se a gente acordar o Camundongo, os outros também acordem.
— É! Que comece o chá! — Aí, finalmente, vou poder comer alguma coisa. Rufo um tambor na
borda da mesa usando meus indicadores.
Jeb lança mais um olhar perplexo na minha direção. Me delicio ao ver que sou capaz de tirá-lo do
sério. Como quando seu sangue ficou verde por causa de Morfeu antes. Nunca conheci nenhuma
garota que controlasse Jebediah Holt. Seria o máximo ser a primeira.
Uma vozinha dentro de mim tenta sair, tenta me lembrar de que aquela não sou eu... Que eu não
diria essas coisas, não para Jeb — a quem eu não gostaria de ver sofrer. Algo está errado, e eu
deveria contar para ele poder ajudar ou pelo menos se defender. Mas a fome dentro de mim esmaga
minha consciência. É mais do que o desejo por comida. Estou faminta de poder também. Poder para
fazer o cara que eu quero se ajoelhar. Fazê-lo pagar por não me querer de volta.
Com um olho em mim e outro no saco de pimenta, Jeb o coloca no nariz do Camundongo. A
pequenina criatura inala com força. Um espirro se forma, e irrompe como um soluço. Sua cobertura
gelada se espatifa. Nacos de gelo deslizam de sua pele marrom e casaco vermelho enquanto ele se
ergue para coçar o nariz.
No momento em que nos vê, ele se esconde atrás de sua xícara de chá. Arriscando uma olhadela,
ele pisca os olhinhos em nossa direção. Parecem gotas de chocolate. Aquela fome selvagem me
revolve novamente.
Babando, jogo-me em cima da mesa.
— Epa! — O Camundongo solta um guincho estridente ao escapulir de seu esconderijo.
— Al, pare. Precisamos da ajuda dele. — Jeb tenta me agarrar pelos tornozelos, mas eu sou mais
rápida.
Empurrando travessas e pratos para os lados, arrasto-me atrás do Camundongo enquanto ele foge
aos pulinhos para perto de seus amigos, com a cauda sacudindo. Ele derrapa e para quando percebe a
condição deles. Com os bigodes murchos, ele se vira para olhar para mim.
— Senhorita Alice, tem que acordá-los! — guincha ele. Hesitante, seus pezinhos andam para trás.
— Você não é a Senhorita Alice. — Ele leva as patinhas à cara e me encara. — Você é muito mais...
— Faminta. — Agora entendo a preocupação do octobenus com seu estômago; intimamente. Estalo
os lábios e dou uma guinada para a esquerda a fim de escapar da tentativa de Jeb de me pegar pela
cintura. Minha mão vai parar em uma torta, e sacudo o glacê grudado nela. Tenho os olhos cravados
na isca viva.
O Camundongo recua, guinchando nervosamente. Pequeninas mãos com garras procuram os
bigodes, colando-os debaixo do queixo. Ele está quase caindo dentro da torta na qual eu aterrissei, e
estou torcendo para que isso aconteça. Eu adoraria uma fatia de torta de rato neste momento.
Jeb pisa em uma cadeira e pula para a próxima, no meu encalço. — Escute, pequenino. — Ele fala
suavemente com o Camundongo. — Eu a impeço de comer você se você nos ajudar a acordar os
outros. Você se lembra como Alice fez com que adormecessem?
O Camundongo enrola a cauda em si mesmo, abraçando-a. — Ela deixou o relógio cair na xícara
de chá. — Ele me analisa com cautela do meio da mesa, dando um passo na direção da torta roxa.
Sento com os joelhos dobrados e cravo as unhas nas rótulas para me distrair do estômago. De
olhos fechados, concentro-me no livro. Os detalhes da história são obscuros, mas lembro-me de uma
discussão sobre o funcionamento interno do relógio de bolso do chapeleiro. Alguma coisa a ver com
a lebre passar manteiga... manteiga. Balas amanteigadas, creme de manteiga, biscoitos amanteigados.
Solto um grunhido e bato o punho na mesa, fazendo tremer a prataria e os pratos e provocando
grande dor no meu braço, que faz minha mente voltar a engrenar. Engrenar! É isso — a lebre
colocou manteiga no mecanismo com uma faca de pão e emporcalhou o seu interior com migalhas de
pão. Na versão que consta no livro País das Maravilhas, foi por isso que a Lebre de Março largou o
relógio dentro do chá — para lavá-lo. Mas talvez não tenha sido ela quem mergulhou o relógio. Ela
poderia estar tentando tirá-lo de lá. Ao submergi-lo, Alice suspendeu o mecanismo e congelou os
convidados no tempo. É isso que eu preciso consertar. O mecanismo. Eu só preciso secá-lo e colocá-
lo em movimento.
Abro os olhos e Jeb está bem distante de mim, com o livro nas mãos. Ele já está ao lado do lugar
da Lebre Careca. Jeb entorna a xícara de chá com cuidado para não quebrar a pata congelada do
coelho. Eu me arrasto até lá enquanto o chá respinga sobre os doces no prato. O relógio de bolso
emerge, arrastando sua corrente. Jeb abre a tampa. — Parou às seis horas.
— Hora do chá! — O Camundongo chilreia com excitação, batendo palmas. Seu entusiasmo o faz
cair para trás, dentro da torta amassada.
Meu foco dura somente o tempo suficiente para que eu pegue o relógio de Jeb, seque seu
mecanismo, mova os ponteiros para um minuto depois das seis e o rebobine. Me perco de todos os
pensamentos racionais depois disso, porque o rato trepa na borda da torta, comendo as frutinhas e
pingando calda roxa.
Uma deliciosa calda roxa.
A saliva goteja do canto da minha boca. A fome insaciável que eu vinha reprimindo explode. Não
sei mais onde estou. Na minha cabeça, o Camundongo é aquele pato assado do banquete e ele está no
papo.
Jogo o relógio, quase nem ouvindo o ruído do metal. Num pulo, fico de pé e começo a caçada.
Minha presa mergulha atrás dos doces e abre túneis através dos pães, conseguindo me despistar toda
vez que estou perto dela. Patino em pratos, escorrego em travessas e derrapo em bolos. Nem mesmo
percebo que Jeb está no meio da mesa até ele me pegar e me derrubar, seu peso sólido nas minhas
costas. — Al, pare! Você ficou louca?
Como um animal, rosno e arranho a toalha de mesa até ela rasgar com as minhas unhas.
— Al. — A respiração de Jeb no meu pescoço é quente. — Volte para mim. Seja minha menina do
skate de novo.
Minha menina do skate. A súplica carinhosa quase me traz de volta.
Quase.
Talvez seja a adrenalina, ou talvez seja um demônio que me possuiu quando eu caí naquela torta e
provei daquele troço roxo... Mas alguma coisa me dá força suficiente para empurrar Jeb de lado
como se ele fosse um graveto. Ele rola para fora da mesa com um grunhido e eu agarro aquela delícia
pegajosa de rato que se debate sem parar. Uma calda roxa me escorre dos dedos para minhas luvas.
Estou prestes a dar uma mordida em sua cabeça quando sou guinchada por trás, e ele escapa.
— Me coloque de pé! — rosno, com uma explosão momentânea de força sobre-humana
praticamente terminada.
Alguém me deita de costas e me gruda no lugar. Minha visão fica turva e quase não consigo
distinguir as duas formas que se inclinam sobre mim.
— Ela provou o suco do fruto da Árvore Tumtum — diz a silhueta usando o chapéu de gaiola numa
voz que varia entre o tenor e o alto. — Ela tem que comer as frutas inteiras, senão vai ficar maluca.
— A pessoa então explode em gargalhadas tão altas e absurdas que parece uma hiena num pula-pula.
— Ah, mas... Ser maluco não é tão ruim — entoa a sombra com longas orelhas, acrescentando sua
gargalhada à mistura. — Podemos deixar que ela coma a gente. Abra a boca dela que eu entro.
Sempre quis ver um estômago por dentro.
Uma pata entra na minha boca e a segura, quase me sufocando. Eu lhe dou uma mordida. O intruso
a puxa e eu cuspo o gosto de carne chamuscada.
— Ela morde!
Risos e uivos explodem em todo canto.
— Afastem-se dela! — A explosão de Jeb os deixa mudos. Ele afaga meu cabelo para me acalmar,
o que tem o efeito oposto. Estar perto dele faz com que a fome perfure meu estômago — como um
espinheiro plantado bem fundo.
Não há nada engraçado sobre a maneira como me sinto agora. — Jeb, por favor! Estou com muita
fome! Me alimente ou vou morrer!
— Está bem, está bem... — A voz dele titubeia e percebo que eu o coloquei de joelhos.
Meus intestinos queimam como se formigas de fogo o consumissem. Fecho os olhos, mas ainda
consigo sentir cheiro de comida — em todo lugar.
Depois de um intervalo que pareceu uma eternidade, algo acolchoado e frio roça meus lábios.
Abro a boca, gulosa, e engulo todas as frutinhas que cabem lá dentro. Elas explodem em minha
língua, suculentas e deliciosas. Engolindo, imploro por mais.
Cinco bocadas depois, consigo me concentrar e não tenho mais dor.
Sento-me, piscando para os convidados do chá que se acomodaram no outro canto da mesa. O
coelho está preocupado com o relógio de bolso, secando-o com um guardanapo e distribuindo
desculpas para o Pai Tempo. Seus olhos brancos cintilam como bolas de gude quando ele sorri, sua
boca sem lábios revelando três dentes amarelos e tortos. O Camundongo está tomando banho em uma
xícara de chá, seu uniforme manchado esparramado sobre o pires. E Chapelão — ele realmente não
tem rosto. Ora é parecido com o rato, ora com o coelho, como se alguém estivesse mudando de canal
entre eles.
Jeb se inclina sobre a mesa. — Você está bem? — Ele parece preocupado.
Sinto-me mortalmente culpada pela maneira como quis puni-lo. — Eu estava...
— Desinibida e impulsiva. E como!
Olho para os pratos quebrados e a comida esmagada à minha volta. — Eu tenho um outro lado,
Jeb. E não tenho certeza se ele tem a ver com a maldição. Acho que esse lado pode ter estado sempre
comigo.
Ele junta nossas mãos. — Tudo bem que você tenha um lado meio ruim. Eu também tenho. Assim,
nós formamos um grande par. — Ele me ajuda a sair da mesa, envolvendo os braços na minha
cintura. Quando ele beija a minha testa, seu piercing aperta o ponto entre minhas sobrancelhas, frio e
reconfortante.
Eu me afasto. — Então, você não estava fingindo quando disse que queria ficar comigo e não com
a Taelor. Isso... Nós... É real?
O polegar e o indicador dele me beliscam o lóbulo da orelha carinhosamente. Ele está tão quieto e
pensativo. Temo que ele não responda.
Respirando fundo, ele olha para baixo. — Eu namorei a Tae... Para tentar não pensar em você.
Esperando que ela tirasse você de dentro de mim. O mesmo aconteceu com o lápis e o caderno de
desenho: não funcionou. E depois eu não tinha certeza de que você sentia o mesmo. E, se você sentia,
eu tinha medo de... — Jeb estuda as queimaduras de cigarro nos braços através das listras
transparentes de suas mangas.
— Continue ... — pressiono.
— De despejar minha carga em alguém tão doce quanto você.
Não consigo controlar um sorriso. — Uau, nossa.
— O quê?
— Acho que nós dois não tínhamos consciência. Foi por essa razão que escondi meus sentimentos
de você.
— Porque eu sou doce? — Aquele sorriso de garoto, com a covinha, se abre para mim.
Correndo os dedos pelo seu cabelo desgrenhado, dou risada. — Eu não queria arrastar você para a
loucura da minha família.
Um chocalhar de pratos faz tremer o outro lado da mesa, onde o Camundongo e a lebre brigam por
uma colher, ambos tentando ver seu reflexo na prata.
Jeb pega no meu queixo, recobrando minha atenção. — Escute, eu nunca quis magoar a Tae. Ela já
passa o diabo com o pai. Mas, quando ela veio me buscar para o baile de formatura, nós terminamos.
Eu disse para ela que tinha acabado... Que nós devíamos terminar. Eu não ia dizer nada antes do
baile porque ela me pediu. Ela já tinha comprado o vestido e eu tinha alugado o smoking, entende?
Mas ela sabe da verdade. Que, para mim, só existe você, Al. Só você.
São as palavras mais lindas que já ouvi em toda a minha vida. Meu estômago está esquisito, como
quando eu era criança e o carrossel do playground parava de girar e eu ficava lá olhando o céu que
rodava — tonta, feliz e extasiada — até que o mundo voltasse a ficar perfeitamente claro. — Ah, Jeb.
Ele levanta a minha mão e beija meus dedos. O piercing em seu lábio brilha na luz, me lembrando
dos olhos com joias de Morfeu. Odeio ter permitido que ele metesse dúvidas na minha cabeça sobre
o cara mais leal que já conheci. Não posso deixar Morfeu me influenciar novamente — nunca mais.
— Para mim também só existe você. — Entrelaço meus dedos nos de Jeb. — Me desculpe pelas
coisas que eu disse no Corredor dos Espelhos. E por ter mentido para você sobre a bolsa da Taelor...
E ter roubado....
— Shhh. — Ele se inclina para me beijar, tão terno e doce que tudo mais desaparece ao seu toque.
— Vamos esquecer tudo isso. Exceto uma coisa — sussurra ele em meus lábios. — Quando
voltarmos para casa, você faz o truque da corrente? Aquela dança na mesa foi muito sexy. — Ele
grunhe.
Eu rio, estremecendo com a vibração ardente em seu peito. Ele também ri, e depois puxa meus
quadris para si e beija minhas orelhas, minhas têmporas, meus lábios — me mergulhando em mil
sensações diferentes, todas tão deliciosas que quase esqueço o que ainda tenho que fazer.
Desfaço nosso abraço. Os olhos semicerrados e questionadores de Jeb me olham. — Já volto —
digo. Tiro minhas luvas emporcalhadas, jogo-as de lado e pulo na mesa, parando ao lado de
Chapelão. — A espada vorpal. Alice a trouxe para você antes de ser congelado. Precisamos dela.
A tela plana do rosto dele pisca, mostrando o meu reflexo e em seguida o de Alice. O efeito é
horripilante, como uma tela de cinema alternando entre duas eras diferentes. Jeb aproxima-se, e
espera.
— Espada? — Chapelão olha para seus dois companheiros. — Algum de vocês lembra de algo
sobre uma espada? — Todos eles caem na gargalhada, um som que me deixa atordoada.
— Talvez você a tenha engolido, Herman — diz a lebre, resfolegando. — Abra a boca e vamos
olhar.
— É melhor acender uma tocha — o Camundongo guincha. — Lá dentro é escuro e vasto como um
desfiladeiro.
Mais risadas e gritos.
Jeb pega a lebre pelas orelhas e a segura acima da mesa, pondo um fim ao festival de risos. Ele
aponta para Herman e o Camundongo. — Um pouco de cooperação os ajudaria muito a ficarem com
suas peles.
O rosto de Chapelão lampeja à imagem de Jeb. — Está falando com a pessoa errada, sua marmota.
— Ele olha para a amoreira acima de nós. — Alguém mandou vocês para uma caçada ao pato
selvagem. Quer saber quem?
Um farfalhar de folhas e Morfeu aparece no alto da copa. — Seria eu? — intervém ele com um
riso forçado.
14
Gaiolas
Faço sombra nos olhos para olhar para Morfeu, com um nó de raiva se formando no peito. Jeb tinha
razão. Ele só faz nos enganar. — Você mentiu.
Seu sorriso se desfaz e Gossamer, debaixo do cabelo dele, estica a cabeça para olhar. — Eu
estava mal-informado — diz ele.
O corpo inteiro de Jeb fica visivelmente tenso. — Mal-informado? Você mandou a Al para cá, a
colocou em perigo porque estava mal-informado?
Desço da mesa, passando os dedos nos músculos trabalhados de suas costas para acalmá-lo.
Morfeu abre mais um sorriso forçado de seu poleiro no alto da árvore — régio e pomposo com as
asas abertas bem alto, um fundo de cetim macio protegendo seu rosto pálido do sol. — Foi besteira,
eu sei. Tomei boatos como verdade. Eu estava no meu casulo quando a pequena Alice escapou com a
espada. Eu mesmo não vi o que aconteceu. Eu ouvi por aí que ela chegou aqui com a espada. Mas
agora eu soube da verdade. A espada ficou escondida este tempo todo no próprio castelo Vermelho...
Guardada pelo bandersnatch.
— Certo. — A voz de Jeb sai sufocada pelo autocontrole forçado. — E nós temos que aceitar sua
palavra.
— Meu espião só soube disso hoje. Alyssa acredita em mim, não é? — Morfeu desvia seu olhar
de mim.
Eu não respondo. A verdade é que não confio nele.
— Tome o silêncio dela como um não, insetão. — Jeb está concentrado na copa.
— Nenhum de vocês está ao menos curioso sobre a batalha que travei para mantê-los a salvo?
Lamento a ingratidão. — Morfeu estica as luvas enquanto Gossamer voa em torno de seu casaco,
verificando os rasgos. As roupas dele estão amassadas e danificadas, até mesmo com fuligem em
alguns pontos. Ele perdeu seu chapéu, e seu cabelo está completamente emaranhado. — Tive que
incendiar a sala de jantar para colocá-los para fora. Mas eles logo se espalharão por todo o País das
Maravilhas atrás de você. A Rainha Grenadine planeja dar um jantar e está determinada a revelar um
novo animal de estimação que divertirá seus convidados.
Os ombros de Jeb se impacientam debaixo de minha mão. — Animal de estimação?
— Grenadine deseja um substituto para Alice há décadas. Um pássaro engaiolado, por assim
dizer. — Tendo jogado essa bomba, Morfeu dá um gracioso salto e pousa na mesa, perto de
Chapelão e companhia. — Que bom ver vocês novamente. Como foi a soneca?
Os três intraterrenos saúdam Morfeu com abraços e apertos de mão.
Tomo a mão de Jeb, com o pulso acelerado. — Você se lembra do relatório psiquiátrico? Alice
disse ao terapeuta que passou 75 anos em uma gaiola no País das Maravilhas. Mas ela deve ter
voltado. Ela se casou e teve uma família. Caso contrário, eu não existiria. Certo?
Ele me puxa para perto. — Não sei o que está acontecendo. Mas precisamos tirar você daqui
depressa.
— Agora a maldição já está quebrada — digo, embora não me sinta nem um pouco diferente.
Morfeu parece alheio à nossa urgência. Ele dá tapinhas no conformador do Chapelão. O
homenzinho de cara insossa chega somente à altura de sua coxa. — É ótimo tê-lo de volta entre os
vivos, Herman. Necessito desesperadamente um novo Chapéu da Lisonja.
— Posso fazer! — A tampa da engenhoca do chapeleiro se fecha. Sua estrutura óssea e crânio se
contorcem e entram no lugar enquanto os pinos de metal rangem e se moldam em volta de sua cabeça
até que ele e Morfeu pareçam um par de bonecas Matrioshka.
É por isso que ele é o melhor chapeleiro do reino. Ele se torna a cabeça e o rosto de seu cliente
até terminar um projeto, produzindo o ajuste perfeito. Como deve ser isso? Nunca ter uma identidade
própria. Não é de estranhar que eles o chamem de maluco.
— Quiçá goste de um chapéu coco? — arrisca Chapelão, tateando suas maçãs do rosto
temporárias. — Tenho um ótimo feltro vermelho em casa.
— Hum... — Morfeu limpa a fuligem de sua lapela. — Eu estava pensando em fazer de entretela.
— Ei! — Jeb bate o punho no nosso lado da mesa. O grupo se volta para nós. — A Al está
correndo o risco de se tornar o periquito humano de alguém. Ela já terminou o que veio fazer aqui.
Cumpriu as exigências para quebrar a maldição. Agora precisamos voltar para o nosso mundo. E isso
é para ontem.
— Ontem, você disse? — gorjeia o chapeleiro, em seu timbre vacilante. — Ontem é exequível.
Gargalhando, a lebre bate no joelho e acrescenta: — Mas dois ontens seria impossível.
O Camundongo dá um risinho maroto e veste seu uniforme. — Não, não! Você pode retroceder
quantos ontens quiser. Pode andar de volta até o começo da sua vida.
Todos eles se curvam, com as mãos nas costelas de tanto rir histericamente. A falta de sobriedade
deles me espanta, e Jeb parece que vai surtar a qualquer instante.
Com um bater de asas, Morfeu pousa na grama ao nosso lado. Gossamer está aninhada em seu
cabelo. — Tenho mais notícias ruins quanto a sua partida.
Jeb fecha a cara. — Como pode ficar pior?
— Quando o exército Vermelho atacou a minha casa, eles encontraram a caixa linguardarte e a
levaram. Ela já não está mais sob minha proteção, e, sem a Rainha de Marfim, seu portal
permanecerá fechado. Isso torna ainda mais imperativo que peguemos a espada e derrotemos
Grenadine e seu rei.
Jeb avança para perto de Morfeu. — E como você propõe que nós os derrotemos se a espada está
no castelo deles sob a guarda de algum cachorro mutante?
Agarro o ombro dele por trás, lembrando-o de se controlar. Morfeu é nosso único aliado, não
importa as táticas detestáveis que ele use.
— Nem tudo está perdido — diz Morfeu. — Chessie pode dominar o bandersnatch, posto que sua
outra metade habita dentro da fera. — Ele coça os pezinhos balouçantes da fada. — Vocês vão pegar
a cabeça de Chessie para mim. Ele terá controle total, e eu poderei roubar a espada, derrotar
Grenadine e depois mandar vocês dois para casa pelo portal que quiserem, Vermelho ou Branco.
— Não! — dispara Jeb, num movimento tão rápido que quase desloca meu braço. Ele pega Morfeu
pela camisa rendada e o ergue até ele ficar na ponta dos pés e as asas arrastarem no chão. Gossamer
se pendura em um cacho do cabelo azul. — Isso é uma manobra para dar mais uma “tarefa” para a
Al, não é? Mais um teste. O que eu quero saber é para que ela está sendo testada? O que acontece
quando ela passar em todos?
Arrogante, Morfeu bate de leve em cada um dos dedos de Jeb, como se tocasse uma flauta. — Ah,
Gossamer tem falado demais, não? Ninfa ciumenta. — A fada foge do ombro dele e chispa para a
árvore acima de nós. — Sabe, nunca se pode confiar em uma mulher com pele verde. Pergunte a
qualquer homem que teve uma ressaca de absinto. — Morfeu olha para mim. — Tudo o que eu
sempre quis foi libertar Alyssa e mandá-la de volta para o lugar dela.
— E onde seria isso? — Jeb coloca a cabeça na minha frente, de modo que Morfeu tem que olhar
para ele.
— A casa dela, é claro. — As joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficam claras e cintilam
feito líquido, traduzindo a sinceridade de lágrimas reais. — Nada me agradaria mais do que pegar a
cabeça de Chessie eu mesmo. Mas, em razão de nosso mal-entendido com relação aos espíritos de
mariposa que abrigo, as Irmãs Twid e eu não estamos nos dando muito bem. Elas não me deixam
pisar e nem voar perto do portão delas.
— Espere. — Dou um passo à frente. — O que isso tem a ver com o cemitério?
— É lá que reside a cabeça de Chessie — responde Morfeu. — Por estar tecnicamente
“parcialmente” morto, lhe foi possível buscar conforto lá. Então a solução é simples: salvar o gato
para dominar o bandersnatch, libertar a Rainha de Marfim com a espada e depois vocês vão para
casa.
— Que bobagem. — Jeb dá um empurrão em Morfeu. Suas asas intraterrenas se abrem por
completo, mantendo seu equilíbrio antes que ele caia sobre uma cadeira. Gossamer mergulha das
folhas, pairando sobre ele.
Jeb pega minha mão. — Deixe que outra pessoa vá atrás do gato. A Al corre perigo aqui.
Precisamos nos esconder até podermos chegar em casa. Ela fez tudo que você pediu. A maldição está
quebrada, certo?
Morfeu olha para mim, não para Jeb. — De que vale a maldição quebrada se não puderem voltar
para casa? Se Alison nunca mais puder ver sua filha, ficará pior do que está agora. A insanidade dela
não será mais uma encenação.
Estremeço. Morfeu está certo. Alison nunca se perdoaria se eu me perdesse por sua causa.
Morfeu olha para trás, onde a turma do chá discute para ver quem vai beber a água em que o rato
se banhou na bota da lebre. O canto de sua boca franze. — O jardim interno é sagrado para a nossa
espécie. Somos proibidos de andar sobre aquele chão. Só posso enviar vocês.
Aperto a mão de Jeb, odiando o que vou dizer em seguida. — Então não temos escolha. Nós
vamos.
Jeb aperta meus dedos contra seu peito. — Não. Eu vou. Você volta voando com o meleca de
inseto.
— Naturalmente — interrompe Morfeu, a voz variando entre o sarcasmo e a insinuação. — Terei
prazer em levar Alyssa de volta comigo. Podemos retomar de onde paramos em meu quarto, certo,
querida?
Faço cara feia.
Jeb me empurra para o lado, saca o canivete suíço e pressiona a lâmina contra o esterno de
Morfeu. — Uma ideia melhor. Devolva o desejo para a Al... Agora.
Meu estômago dá um nó. — Jeb, eu não vou embora sem você.
— Não se trata disso. — Ele leva a lâmina até a garganta de Morfeu. — Você pode desejar nunca
ter vindo. Você ainda seria o sujeito do desejo, e isso tirará nós dois daqui. Eu nunca teria vindo se
não tivesse visto você pular para dentro daquele espelho.
Ele tem razão. Funcionaria. O único problema é que eu terei feito isso por nada. Alison ainda faria
o tratamento com eletrochoques e minha família seria amaldiçoada novamente porque eu nunca terei
vindo aqui para consertar as coisas.
— Dê a ela — diz Jeb —, ou ela vai ter uma mariposa tamanho família para usar na próxima obra
de arte. Entendeu?
Gossamer voa sobre o rosto de Jeb, num frenesi de asas. Sua distração dá a Morfeu a chance de
pegar o pulso de Jeb e dominá-lo. — Eu não estou com o desejo — diz ele, fervendo de raiva. — O
desejo se esvaiu quando eu tentava salvar suas miseráveis vidinhas e agora está nas mãos do Rábido
Branco.
Jeb torce o braço e se liberta. — Mentiras.
— Não importa — responde Morfeu, observando Jeb com cautela. — Alyssa não o usaria de
modo tão prosaico. Do contrário, sua família sofrerá para sempre a maldição que ela arriscou a pele
para quebrar.
O calor do olhar cúmplice de Morfeu é mil vezes pior do que os holofotes dos mineiros de
Submundo, e não há como esconder minha alma desnuda. — Ele tem razão.
Jeb olhar para mim. — Você deve estar brincando. Sua mãe não iria querer que você corresse
perigo!
Olho para minhas botas. — Por que estamos falando nisso? Ele disse que não está com o desejo
mesmo.
O riso de Jeb tem uma pitada de veneno por trás. — É incrível. Você continua um joguete nas
mãos dele. — A expressão dele endurece. — Você sabe o que eu faria se tivesse um desejo? Eu
desejaria que você confiasse em mim como costumava confiar. Como você confia nele agora.
A insinuação me atinge lá no fundo. Ele não pode estar falando a verdade. Pode?
Jeb se vira para Morfeu, brandindo novamente a lâmina do canivete. — Se alguma coisa der
errado, se ela sofrer um arranhão, eu corto você dos pés à cabeça. — Fazendo um esforço enorme
para se afastar, ele dá meia-volta e pega nossa mochila.
— Pegue as indicações para chegar ao cemitério — explica ele, dirigindo-se a mim, e depois
segue para a colina, parando no limite do deserto de tabuleiro de xadrez. Ele fecha o canivete e olha
para a distância com toda a paciência e compostura de um animal selvagem engaiolado, enquanto
Gossamer flutua em torno dele.
— Seu namorado tem sérios problemas com confiança — provoca Morfeu.
— Cale a boca. Ele teve uma infância difícil.
— Ele devia ser grato por ter tido uma infância, afinal.
— Pare de se fazer se vítima. Você teve uma infância. Eu estava lá, lembra?
As marcas pretas em torno dos olhos de Morfeu enrugam-se num sorriso sarcástico. — Não,
Alyssa. Eu estava me referindo à pobre e pequena Alice.
— O que quer dizer com isso?
— Você vai precisar de uma arma. — Morfeu se esquiva da pergunta. Enfiando a mão enluvada no
casaco, ele vasculha um bolso interno e tira um pequeno e delgado cilindro de madeira. Ele o vira,
revelando buracos ao longo do objeto e um bocal em uma ponta.
— Uma flauta? Como isso vai nos proteger? — pergunto.
Morfeu aproxima-se e enfia o cilindro na minha blusa. Ele o desliza por minha pele nua até
encaixá-lo no meu decote. Gossamer deve estar distraindo Jeb, ou ele já teria jogado esse idiota do
alto da colina. Pessoalmente, estou pensando em esfregar o instrumento no nariz dele.
O olhar dele me coloca em cheque. Em algum lugar, por trás dessa imagem fantasmagórica, está a
sinceridade, talvez até preocupação. Meu coração bate junto à madeira fria e lisa da flauta.
— Esperemos que você se lembre daquelas aulas de música que foi obrigada a frequentar. —
Morfeu apoia o quadril na mesa. Suas asas relaxam. — Um violoncelo deve bastar para saber a
escala musical. Se você tocou um instrumento, tocou todos, certo?
Pela primeira vez, sou atingida à queima-roupa. — Você é a razão pela qual ela queria que eu
tocasse?
— Embora ela esperasse, de todo o coração, que você nunca viesse parar aqui, mesmo assim ela a
preparou. E, até agora, você se mostrou gloriosamente capaz. Como ela ficaria orgulhosa de seu
comportamento grotesco na mesa há pouco.
Um rubor sobe, quente, para minhas bochechas. Ele me viu dançar? Ou talvez esteja se referindo à
minha luta bárbara para comer o Camundongo. As possibilidades são igualmente perturbadoras. —
Você estava vendo?
— A propósito... — Ele olha para as costas de Jeb e aproxima-se, murmurando baixinho. — O
suco de Tuntum altera as inibições de uma pessoa, aumenta sua fome. Mas não é a fome de comida. É
das experiências que elas desejam. Se tivesse sido comigo e não com o seu soldadinho de brinquedo,
eu teria encontrado um meio de saciar tanta fome sem recorrer a frutinhas.
A arrogância dele me ferve o sangue. — Você não tem equipamento para satisfazer nada.
Mariposa. Lembra?
Ele ri silenciosamente, num gesto sombrio e suave. — Sou um homem em todos os sentidos. Assim
como você é uma mulher, mesmo que alguns acreditem que você não passa de uma menininha
assustada que está sempre necessitando de ajuda.
Ignoro a farpa. — Naturalmente. Você é um especialista em mulheres. — O olhar de cobiça na
expressão apaixonada da Rainha de Marfim por trás do vidro emerge em meu pensamento. Aquela
pontada estranha e possessiva vem em seguida, mas eu a refreio.
— Sinto um certo ciúme?
— Até parece.
Ele sorri, arrastando uma asa sobre o ombro para alisá-la. — Estou nesta forma há algum tempo.
Tive que praticar um pouco. Mas somente uma mulher é igual a mim em todos os aspectos.
Intelectual, física e magicamente.
— É ela, não é? — Minha inveja é quase palpável. — Você colocaria qualquer um em perigo para
tê-la em seus braços.
— Sem dúvida.
— Odeio você.
— Só por causa do que eu provoco em você.
Minhas unhas se cravam nas palmas das mãos. — Só porque você traz à tona o que há de pior em
mim.
— Ah, não, querida. Eu trago à tona a vida que há em você. — Seu olhar intenso me atrai. O
acalanto excita meu sangue, levando minha pulsação a seguir seu ritmo. “Pêssego e cinza, cresceu a
florzinha, forte ficou e seu caminho encontrou; duas coisas ainda há que fazer, até finalmente...”
O fim do verso — a última peça do quebra-cabeças — ainda me escapa. Aperto as têmporas para
tirá-lo de minha cabeça. A ponta de meu dedo roça meu grampo de cabelo, e ele me aperta. — Pare
com isso! — retruco. — Onde é o cemitério?
Gossamer aparece no ombro de Morfeu quando ele aponta. — Depois do abismo... Logo ali.
Ele indica uma gota entre as areias do tabuleiro de xadrez à beira da duna, não muito distante de
onde Jeb está. É difícil distinguir daqui, mas parece ser uma fissura na terra.
— Há um abismo? — pergunto, mais desconfiada a cada segundo.
— Ele separa o deserto do vale — um pouco largo para um mortal saltar. O cemitério é do outro
lado. Está encoberto por uma touceira de vinhas e hera que protege os espíritos da luz do sol.
Minha coragem dá meia-volta frente à ideia de arrastar-me através de um matagal escuro cheio de
fantasmas — intraterrenos ou não —, mas controlo meu medo. Jeb estará lá; não estarei sozinha.
— A menos que ache um modo de atravessar o abismo — acrescenta Morfeu —, terá que subir a
pé. Pegue a crista mais alta que o circunda.
As areias da crista parecem se estender ao infinito. Se a contornarmos, pode levar um dia. Não
temos esse tempo todo se quisermos impedir o tratamento de Alison. Estou quase me opondo quando
o Camundongo grita: — Pássaros Jubjub!
Gossamer faz um túnel no cabelo de Morfeu quando ele bate as asas e ganha o céu. O
deslocamento de ar passa por mim, numa lufada com perfume de alcaçuz. A turma do chá entra
apressada no chalé da lebre e bate a porta. Nuvens de poeira preta e branca assomam a distância.
As nuvens de poeira se dissolvem, revelando um exército de guardas de cartas montados em
pássaros. Enormes, com constituição de avestruz, cauda de pavão e cabeça e asas de gafanhotos
gigantes. Embora os pássaros pareçam não poder voar, suas longas pernas cobrem a distância entre
nós com facilidade. É um enxame de gafanhotos mutantes vindo nos devorar.
Nunca mais matarei um inseto que seja na vida...
Com o coração martelando as vértebras como um gongo, grito para Morfeu lá em cima: — Ajude-
nos!
— Cuidado com as areias movediças — grita ele em resposta. — Use a flauta se precisar ganhar
terreno. Presumindo que vocês cheguem ao vale, dirijam-se diretamente para o cemitério. O exército
não entrará para segui-los. — Numa investida, ele voa na direção oposta de nossos atacantes. E vai
embora. Sem mais nem menos.
Presumindo que nós cheguemos? Fico tão aviltada que meus olhos queimam. — Você jurou que
não me deixaria novamente! Suas asas vão encolher, seu covarde! — grito.
Mas você não está machucada... Ainda.
É a voz dele, mas não tenho certeza se ela vem da minha memória ou se ele ainda está dentro da
minha mente. Seja o que for, eu tinha esquecido da estipulação para seu voto da magia da vida. Ele é
o mestre dos detalhes.
Um martelar estilhaça o ar. Viro-me e vejo Jeb batendo o carrinho de chá contra o tronco da
árvore. Antes que eu compreenda o que ele está fazendo, ele já desmontou duas prateleiras da
estrutura. Ele afasta a franja do rosto e vira as tábuas para analisar o fundo. Elas são lisas e sem
emendas, ligeiramente curvadas para cima no final.
Ele estende uma para mim. — Vamos!
Pego o pedaço de madeira, confusa.
Jeb coloca a mochila no ombro, corre para a beira da duna alguns metros adiante e coloca a sua
prateleira no chão, na borda onde começa o declive. Com um sapato na madeira para mantê-la
abaixada, ele se vira para mim: — É agora, menina do skate!
Corro para ele, os braços tremendo ao acomodar minha prancha no lugar. Ele espera que a gente
desça nelas — como surfe de areia. Mas será que ele não vê o abismo entre o deserto e o vale?
O final do declive se curva para cima, como uma rampa de lançamento. Ele não pode estar
contando que nós...
— Hoje você vai aprender um ollie — diz ele, completando meu pensamento.
Minha pulsação martela no pescoço. — Sem chance.
— Sem escolha. — Ele estende a mão. — Se começarmos a cair, use seu truque mágico. Faça as
pranchas flutuarem sobre o abismo.
— E se eu não conseguir? Já quebrei a maldição, consertei os erros de Alice. Talvez eu tenha
voltado a ser eu mesma.
— Você ainda se parece com um deles. Aposto que não vai voltar a ser normal até que a gente
atravesse aquele portal. A esta altura, o que temos a perder? — A mão dele aguarda a minha.
Eu a agarro e olho para trás. Nuvens de poeira consomem a ladeira e o exército toma a colina.
Eles chegarão no platô a qualquer momento. Olho para os torvelinhos de areia.
De perto, a inclinação é umas três vezes mais íngreme do que a maior queda do Submundo, e eu
nunca cheguei a subir no alto dela. Estamos tão alto que minha visão flutua e meus joelhos ficam
moles.
— Uaaaa! — Jeb passa um braço em torno da minha cintura para me equilibrar.
— Jeb... — Agarro o seu pulso. — Vamos nos separar.
— Não vamos. — Ele solta uma ponta da corrente de metal pendurada nas presilhas de seu cinto.
Depois a desenrola, deixando a outra ponta ainda presa em sua calça. Prendendo a corrente a um dos
anéis do meu cinto, ele forma uma corda de segurança. Quando esticados, os anéis permitem que
fiquemos à distância de um metro, e nos deixam seguros.
— Pronta? — pergunta ele, olhando por sobre o ombro para nossos iminentes captores.
— Sim. — Mas meu estômago dá voltas e diz “não”.
Cada pedaço de mim pede para voltar... Para correr na direção oposta. Mas os pássaros Jubjub
guincham atrás de nós — um som que perfura os tímpanos, como os pterodáctilos gigantes de alguma
trilha de filme pré-histórico — e eriçam os pelos do meu pescoço.
Deslizo o pé para cima da prancha.
— Agora! — grita Jeb.
Meu estômago vai ao chão quando damos um empurrão juntos e mergulhamos nas profundezas de
xadrez.
CONTINUA
8
Octobenus
O pesadelo de Alice me encontra durante meu sono...
Não estou sozinha desta vez. Jeb carrega a espada roubada, e corremos pelo caminho na direção
do covil da Lagarta. Os espinhos que já rasgaram meu avental de criança alongam-se e se
transformam em enguias folhosas. Os cordões serpenteantes se enrolam em nossas pernas e nos
levam de cabeça para baixo até o tabuleiro de xadrez. Nossos corpos se congelam e viram peças do
jogo. Uma mão aparece, usando uma luva preta, e nos move de quadrado em quadrado. Ela me pega
para dar um xeque-mate, mas Jeb ganha vida e decepa os dedos com a espada para me libertar. Os
pingos de sangue caem um a um e se metamorfoseiam em lagartas. Jeb e eu voltamos correndo para o
caminho. O cogumelo aguarda no centro, escondido em uma teia. As lagartas nos perseguem até lá.
Elas cavam túneis para entrar no casulo, enchendo-o até ele se contorcer — o casulo é uma coisa
viva que respira. Uma lâmina negra afiadíssima dilacera o casulo a partir de dentro. O que está lá
dentro, seja o que for, vai sair.
Acordo assustada, e pisco diante da claridade do sol. Minhas mãos estão fechadas e os punhos,
cerrados. O que me acordou? Eu estava tão próxima de desvelar o rosto dentro no casulo — algo que
venho esperando há anos.
Com um bocejo, concentro-me no aqui e agora. Em algum momento durante a noite, devo ter me
virado para Jeb no barco, e ele me puxou para si, aninhando-me debaixo do seu queixo. Agora só
vejo um close de sua barriga tanquinho. Ele ainda dorme. Sua respiração pesada esvoaça meu cabelo
num ritmo lento. Seus braços agarram minha cintura.
O dia anterior regressa ao meu pensamento aos pedaços: a toca do coelho, o jardim de flores
mutantes, o mar de lágrimas.
Aconchego-me sob o pescoço de Jeb com os dedos recolhidos dentro das mangas do casaco do
smoking, determinada a não acordá-lo só para poder fingir que as coisas são simples e perfeitas.
Apenas por mais alguns instantes.
O barco balança e percebo que foi isso que me acordou. Não é um movimento suave da correnteza.
Parece mais um movimento do tipo “alguma coisa pesada se moveu na borda e está nos observando.”
Congelo — fico dura como a madeira abaixo de nós.
Fungadas guturais enchem o ar, como as de buldogue asmático. O calor do sol sobre meus ombros
esfria quando uma sombra recai sobre nós. Meu coração tem um sobressalto. Antes que eu possa
emitir um grito, Jeb entra em ação, rolando-nos na direção da proa e puxando-nos para ficarmos de
pé. Ele estava acordado o tempo todo.
— Sem chance — diz ele.
Oscilo com o movimento do barco, segurando a cintura de Jeb com uma mão e o assento atrás de
mim com a outra. Olho em torno dele.
À primeira vista, nosso intruso parece um polvo. Ele tem duas presas gigantes com imagens de
serpentes e chamas furiosas entalhadas ao longo do marfim. Mas, por baixo de camadas de banha,
sua outra metade é um emaranhado de tentáculos pegajosos cobertos por ventosas. É como se alguém
tivesse misturado duas criaturas diferentes, criando um octopolvo. Ele deve pesar quase duzentos
quilos, e seu corpo ocupa a maior parte do barco.
Grande daquele jeito e com os tentáculos pendurados metade para dentro e metade para fora, o
barco deveria ter virado. Jeb e eu deveríamos ter sido arremessados feito pedras em um estilingue
assim que ele escorregou para dentro. Em vez disso, o casco está nivelado e desliza pela água
cristalina como se a criatura não pesasse mais do que nós. Me pergunto o que Isaac Newton teria a
dizer sobre esse furo nas leis da física por aqui.
Jeb me cutuca para eu me sentar atrás dele, mas ele continua de pé, cada músculo de seu corpo
tenso e pronto para reagir. — O que é você?
Nosso visitante não convidado limpa uma meleca que pinga de seus olhos com os dedos humanos
nas pontas de suas nadadeiras. — Boa pergunta, cavaleiro élfico. Sou um octobenus. Agora, deixe-
me adivinhar sua próxima pergunta. O que eu quero? Para esta, a resposta é simples. Quero parar
com o eterno sofrimento da minha barriga. — Suíças longas e loiras, em contraste com uma pele cor
de canela, pendem sob suas narinas. Seus tentáculos batem no mar, espirrando água sobre nós.
Da corrente em seu pescoço, ele abre um medalhão do tamanho de uma caixa de charutos e tira
algo de dentro. Ele coloca um marisco na palma da mão, segurando cuidadosamente sua casca para
mantê-la fechada. — Bom dia, pequenino repolho do mar — diz ele, provocando. — Ainda
preocupado com sua família?
O marisco tenta abrir a boca para responder. O octobenus volta a fechá-la para que ele fique
quieto. — Vamos fazer o seguinte: se você conseguir saciar minha fome, eu liberto os restantes. Quer
tentar?
Embora o marisco não possa abrir a boca o bastante para falar, um músculo rosado no formato
semelhante ao de um machado esgueira-se para fora da abertura — como um braço ou perna
defeituoso —, acariciando a bochecha da enorme criatura numa derradeira tentativa de salvar sua
vida.
Um murmúrio escapa de minha garganta. Jeb estende o braço para trás e me dá sua mão. Entrelaço
nossos dedos.
Em um acesso de banha e baba, o octobenus abre a concha com força, sela sua boca em volta dela
e suga o conteúdo, produzindo um ruído terrível de sorvo. O grito excruciante do marisco ecoa na
minha cabeça e depois cai em um silêncio mortal. Aperto mais forte o braço de Jeb, tentando não me
sufocar.
— Não. Ainda estou com fome. Suponho que irei comer as crianças em seguida. — Nosso
visitante indesejado solta um riso medonho e cortante, e depois joga a concha vazia ao mar. Com um
tentáculo, ele vai dando tapinhas até ela afundar, e esse movimento faz o barco balançar.
Os dedos de Jeb me apertam o punho conforme ele tenta manter o equilíbrio.
— É preciso ser ligeiro com presas escorregadias como esta — o octobenus diz. — São
traiçoeiras... Sempre tentando pegar você com sua Língua dos mortos. Pode imaginar virar escravo
do último desejo de um marisco? — Ele ri novamente.
Língua dos mortos... O termo que estava atrás da avaliação psiquiátrica de Alice. De trás de Jeb,
dou uma espiada e vejo a criatura com cara de morsa colocar um monóculo no aquoso olho esquerdo.
— Agora — lança ele —, se fizer a gentileza de ficar de lado, elfo, eu gostaria de ver melhor sua
protegida.
A postura de Jeb endurece. — Nem pensar.
A octoaberração larga o monóculo. — Aquelas flores desajeitadas acham que o seu sangue tem o
poder de comprar minha cota de bivalves! — Seu grito chocalha em nossos ouvidos, e nos atravessa,
com seu cheiro de peixe e morte. — Mas a questão nunca foi comprá-los. Sou um caçador. Tenho
que capturá-los. É a minha natureza. Mariscos são criaturas habilidosas, sempre usando os bracinhos
para se mover por aí e escapar para seu refúgio no leito do mar. Se não fosse tão escuro lá embaixo,
e com meus olhos já tão ruins... Tenho sorte se consigo capturar meia dúzia antes que todos se
escondam. — Ele limpa a boca com uma forte nadadeira. — Mas o Sábio possui uma flauta mágica
que atrai minhas presas para fora dos seus esconderijos. E agora eu tenho alguma coisa para trocar
por ela.
— Oferecendo meu sangue em troca. — Jeb adivinha.
Isso não pode estar acontecendo. Não importa em quantas brigas ele se envolveu em casa. Mesmo
com o canivete, ele não tem nenhuma chance contra um mostro marinho de trezentos quilos.
— Ele não é um elfo com pedras preciosas! — grito de trás de Jeb. — Ele é humano. Olhe as
orelhas.
Jeb aperta meus dedos — um pedido para eu ficar quieta.
— Não importa. Joias e riquezas não significam nada para o Sábio. Mas você, repolhinho, ele está
desesperado por sua ajuda. Se está! Há anos ele está esperando que você volte para cá.
Aquela afirmação fica se revirando em minha cabeça. As flores disseram que o Sábio é a Lagarta.
Então... Ela está esperando por mim? Talvez a lagarta tenha enviado a mariposa e o meu guia
sombrio para me encontrar e me trazer para cá.
Os tentáculos de nosso captor se contraem ao longo das bordas do barco feito pítons gigantes, e a
madeira range. — Com você como refém, posso trocá-la pela flauta. Ele a colocará aos meus pés se
a levar em segurança.
— Terá que me matar para chegar até ela — adverte Jeb.
Dou um puxão no pulso dele, mas ele me ignora.
O octobenus aperta as mãos-nadadeiras. — Ah, um amigo leal. Eu tive um desses, muitos anos
atrás. Ele era artesão. Foi ele que esculpiu minhas presas e fez um lindo baú para guardar minha
reserva de mariscos. Depois, descobri que ele estava saqueando meu estoque. Então, uma noite,
quando ele dormia, eu o capturei — os tentáculos se enroscam em volta do barco numa demonstração
— e o prendi no baú com as conchas vazias. Atirei tudo no mar para abafar seus gritos. Os ossos
dele são isca de peixe agora.
Mordo os lábios para não gritar.
Nosso captor ri. — Triste, não é? Veja, se eu fui tão insensível com um amigo, o que me impede
de matar você? Nada impede que eu satisfaça as necessidades da minha barriga. — Ele corre a
extremidade fina e pontuda de um tentáculo até a ponta de suas presas babadas. — Eu vou pegar a
garota!
Ele lança seus tentáculos e agarra Jeb pela cintura.
— Não! — Meus braços se levantam para segurá-lo. Os tentáculos o arrebatam, erguendo-o no ar.
— Há terra... à sua esquerda! — Jeb grita enquanto luta com a criatura, escapando por pouco da
ponta mortal de uma presa. A luta impele o barco.
Ao repelir mais gritos, agarro-me ao banco para manter o equilíbrio. Jeb tem razão. Há alguma
coisa no horizonte. E brilha feito lantejoulas pretas. Pode ser a ilha da qual as flores nos falaram.
— Vá! — Jeb grita. — Eu vou segurá-lo o quanto puder!
Ele passa a corrente em volta do pescoço do monstro. Com puxões rápidos, ele envolve alguns
tentáculos para que eu possa escapar. Uma das presas rasga a calça de Jeb na altura do joelho. O som
do tecido rasgando me lembra da horrível morte do marisco. Não posso deixar que isso aconteça
com Jeb.
Não conseguiremos escapar do octobenus na água. Como revidar? Ele não tem fraquezas óbvias...
Só um apetite insaciável.
— Espere! — Caio de joelhos diante dele, encenando uma ideia repentina, na esperança de que dê
certo. — Por favor, solte meu amigo e eu o ajudarei.
— Al! — Jeb grita.
— Dê-me sua palavra, menina intraterrena — diz nosso captor com um sorriso gordo e
desdenhoso. — Você conhece as regras... Um juramento da nossa espécie não pode ser quebrado, ou
você perderá seu poder.
Não sei por que ele está me chamando de menina intraterrena, mas estou disposta a usar isso a meu
favor. — Prometo que o ajudarei.
— Não é o bastante — rebate ele, apertando ainda mais Jeb em seus tentáculos até fazê-lo gemer.
— Faça do modo apropriado. Cubra seu coração... Jure pela magia da sua vida. E seja bem
específica.
Não tiro os olhos dos lábios de Jeb, que já estão azulados, e levo a palma da mão ao peito. — Eu
juro pela magia da minha vida que o ajudarei a saciar seu apetite.
Num movimento ruidoso que o faz virar seus bigodes, ele relaxa os tentáculos e solta Jeb, que cai
no casco do barco.
Abraço as roupas babadas de Jeb. Ele me mantém equilibrada no barco e ficamos de pé juntos. Ele
tosse tanto que quase não consigo ouvir sua voz. — Você devia ter... caído fora.
— Não — sussurro. — Vamos ficar juntos, lembra? — Em seguida, volto-me para nosso captor.
— Senhor Octobenus, eu sei como encher sua barriga. Podemos dar bolo aos seus mariscos.
Jeb franze a cara para mim, finalmente recuperando o fôlego.
A criatura relaxa no banco sobre um ninho de tentáculos, ofegante e fungando devido ao exercício
da luta. — Você está me oferecendo bolo de mariscos?
— Não. O bolo é para os mariscos — respondo. — Para aumentar seu estoque até chegarmos à
flauta. Nós temos uma coisa que fará seus mariscos crescerem e ficarem do tamanho de um prato de
comida. — Eu viro o rosto para Jeb e articulo com os lábios as palavras O comedor acaba comido.
A expressão dele se ilumina ao compreender o que digo. Ele arrasta a mochila em nossa direção.
É incrível como ele está composto depois de quase ser empalado, esmagado e devorado.
A morsa mutante observa, curiosa.
Jeb abre a bandana para exibir o bolo com as palavras Coma-me escritas com as passas.
O octobenus dá um pulo. — Um bolo de aumento! Onde vocês encontraram essa preciosidade?
Pessoalmente, nunca vi um. Eles foram proibidos depois do incidente com Alice. Não importa, não
importa... — Ele abre o medalhão da corrente uma vez mais. O novo marisco luta com ele
furiosamente.
— Me dê isto aqui — ordena o octobenus. — Se falhar, rasgo as entranhas do meu amigo mortal e
faço delas alimento para os peixes. — A baba lhe desce pelas presas e preenche as imagens
esculpidas com um visco brilhante.
— Ah, vai dar certo. — Jeb desliza o bolo pelo casco. — Aposto minha vida que vai.
— Acaba de apostar. — A morsa mutante grunhe ao curvar-se para pegar o bolo. Tirando uma
migalha, ele se prepara para enfiá-la na abertura da concha do marisco.
— Você precisa dar mais do que isso — diz Jeb, recuando lentamente para a borda do barco, com
a mochila nas mãos. — O máximo que puder enfiar na boca dele.
— Sim, sim. Imagine! Mariscos do tamanho de pratos... — Sem olhar para cima, ele ri e tira um
pedaço maior. Depois, abrindo a concha à força, ele enfia o bolo dentro e a fecha novamente.
Em segundos o marisco começa a tremer junto com o barco.
— Agora! — Jeb mergulha no mar segurando a minha mão. Um tapa dos tentáculos roça as minhas
pernas, mas em seguida a água cálida se fecha sobre nós, e afundamos. Jeb nada cachorrinho na
minha frente, seu cabelo formando redemoinhos semelhantes à flora marinha das profundezas azuis.
Ele me puxa pelo pulso. Bato as pernas para subir, minhas botas e roupas pesadas e desajeitadas na
água.
Chegamos à superfície e damos profundas talagadas de ar, parados em um ponto distante o
bastante para vermos o que acontece no barco. O marisco cresce, do tamanho de um estojo de
maquiagem para o tamanho de uma caçamba de lixo.
Em uma exibição estranhamente graciosa de banha, nadadeiras e tentáculos, o octobenus percebe
seu erro e tenta escorregar para fora do barco. Tarde demais. A concha gigante se abre e um
apêndice em forma de machadinha salta para fora — grande e poderoso como uma anaconda. O
músculo envolve o octobenus e o leva à boca, sugando os tentáculos feito fios de espaguete gigante, e
em seguida se fecha.
O barco se verga e racha. Em segundos, o marisco mergulha no mar, deixando somente espuma e
destroços flutuando atrás de si. A água forma ondulações em torno do naufrágio, um final
sinistramente sereno para uma cena tão violenta.
Jeb segura meu pulso e a mochila com uma mão, enquanto usa o outro braço em um nado de peito
lateral para nos impulsionar na direção da praia preta.
Algo me puxa para baixo.
Bato as pernas até ficar com cãibra, tentando manter a cabeça fora da água. Não adianta. Solto-me
de Jeb, com medo de puxá-lo para baixo comigo.
Debaixo da água, procuro o que está me ancorando, horrorizada com a possibilidade de que seja
uma criatura marinha, mas não vejo nada. O peso parece estar centralizado em minha cintura, mas
estou descendo muito depressa para encontrá-lo. Eu me debato, braços e pernas lutando contra o
ímpeto descendente. Meus pulmões clamam por oxigênio.
Jeb aparece acima de mim. A mochila desce atrás dele na direção das profundezas escuras.
Minhas mãos e pernas irrompem num movimento ainda mais forte, lutando contra a força da água. Jeb
tenta me puxar para cima pelos braços. Eu me afasto, resistindo. Ou talvez esteja resistindo a mim
mesma. Ao meu medo...
A expressão dele quando me agarra é resoluta. Ele se recusa a ceder, e isso me assusta ainda mais.
Balanço a cabeça.
Salve-se! É o que meus olhos lhe dizem, mas ele é teimoso demais para ouvir.
Quero dizer a ele que sinto muito por tê-lo arrastado até aqui. Em vez disso, bolhas vazias
rodopiam entre nós.
Uma dor impetuosa e pungente me aperta o peito. Debato-me na água, procurando alguma maneira
de me libertar, de fazer aquilo desaparecer. Minhas lágrimas se mesclam com as de Alice e o
pensamento fica obscurecido. Jeb ainda está me puxando, mas é inútil — continuamos afundando.
Quando estou prestes a ceder à inconsciência, começo a perceber que o peso vem do bolso da
minha saia. Entorpecida, tiro a esponja que peguei no fundo da toca do coelho.
O que antes possuía o tamanho de um pedacinho de queijo agora é grande como uma bola de golfe,
e continua crescendo. Ela desce, deslizando para o fundo do mar, arrastando a água junto, criando um
rodamoinho.
Estou livre.
Abraçados, Jeb e eu emergimos e temos tempo suficiente para encher nossos pulmões antes que a
sucção do funil nos arrebate. A esponja está do tamanho de uma laranja agora, e posso ver o fundo do
mar lá longe abaixo de nós.
Solto um grito, agarrando-me a Jeb.
Meus olhos se fecham ao batermos em alguma coisa sólida.
— Al — chama Jeb, e só então percebo que consigo respirar.
Busco sofregamente o ar, abro os olhos e pisco com força para secá-los. O mar sumiu. Vegetação
marinha achatada e pilhas de areia seca nos rodeiam. Poças de água brilham em alguns pontos,
refletindo a luz do sol. A distância, avisto nossa mochila. As areias pretas da ilha elevam-se à altura
de um desfiladeiro acima de nós — uma escalada que não conseguiremos fazer.
A alguns metros, entre os destroços, sentado ao lado de um baú musgoso em decomposição, o
marisco gigante lambe os lábios cheios de sangue. Suponho que o octobenus acabou reencontrando
seu amigo artesão, afinal.
Uma brisa agita o ar, trazendo cheiro de peixe e sal. Imagino que a esponja deva estar do tamanho
de uma montanha. Mas lá está ela, ao lado das minhas botas ensopadas, do tamanho de uma bola de
basquete. Eu a recolho. Difícil compreender que um mar inteiro esteja contido aqui dentro.
Jeb me ajuda a ficar de pé e eu largo a esponja. Ela pousa com um som de borrifo.
Mesmo estando fraca e exausta, sou tomada por um sentimento de realização. — Nós conseguimos
— murmuro, mal conseguindo compreender o significado dessas palavras. — Secamos o mar. Como
as flores queriam que fizéssemos.
— Você secou — enfatiza. Jeb afasta o cabelo de minha testa. — E você quase se afogou fazendo
isso. — Antes que eu possa responder, sua boca quente e macia toca a minha testa, minha têmpora e
em seguida meu queixo. Todas as vezes, seu piercing roça suavemente em minha pele. Ele se detém
na linha do maxilar e curva-se para me puxar mais para perto num abraço, com o nariz enfiado no
meu pescoço. — Nunca mais me assuste desse jeito.
Não importa que estejamos molhados; o calor irradia através de nossas roupas ensopadas. Passo a
mão em seu cabelo. — Você voltou para me salvar.
Ele aproxima o nariz da curva do meu queixo, e uma poderosa onda de emoção pulsa através do
corpo dele. — Eu sempre voltarei para você, Al.
Uma leve batida de alerta no meu peito me recorda de Taelor e da determinação de Jeb de ir para
Londres sem mim a fim de ficar sozinho com ela. Mas a adrenalina vem ainda mais forte. Eu toco sua
orelha com meus lábios, provando do resto das lágrimas de Alice. — Obrigada.
Ele tensiona os músculos dos braços. Seu nariz fuça o cabelo em minha nuca, como se quisesse se
perder naquele emaranhado. Nossos corações estrondeiam. Tremores de nervoso percorrem o meu
corpo e meus membros estremecem.
— Jeb — sussurro. Ele murmura algo indecifrável, e minhas mãos hesitantes agarram seu pescoço.
Um grunhido escapa de sua garganta. Fico sem ar quando ele aperta meu cabelo em seus dedos e o
puxa para trás, com olhar intenso. Ele já está se curvando para chegar mais perto quando uma
cacofonia de cliques e estalos nos interrompe.
Viramo-nos em círculos, observando ao nosso redor. Milhares e milhares de mariscos saem de
seus túneis na areia. Agarro a mão de Jeb, temendo que eles nos ataquem por termos destruído seu
lar. Em vez disso, irrompem gritos e aplausos.
Olhando para trás de Jeb, fico pasma. — Atrás de você.
Ao lado da parede de areia que parecia um desfiladeiro, toneladas de conchas se empilham uma na
outra — rolando para cima, para os lados — com o objetivo de formar uma escada-rolante viva.
— Nós derrotamos o inimigo deles — sussurro. — Eles querem ajudar.
Jeb não hesita. Pega minha mão e me conduz na direção dos degraus que sobem, arrebatando a
mochila no caminho. Juntos, seguimos em direção às brilhantes areias pretas da ilha.
Quando chegamos ao alto, aceno para os mariscos, que desaparecem no leito do oceano lá
embaixo.
Jeb abre a mochila para checar nossas coisas. — Acho que eu não devo ficar admirado que nada
esteja molhado. — Ele abre o estojo de lápis antes que eu possa detê-lo. E fica boquiaberto. — O
que é isso?
— São minhas... Economias. — Ótimo. Eu não só me atirei nos braços do namorado de Taelor
como também menti sobre o dinheiro que roubei dela.
Jeb conta o montante e olha para cima. Há algo insondável por trás daqueles grandes cílios.
— Você parece diferente — lança ele, colocando o dinheiro de volta no estojo e sacudindo gotas
de água do cabelo.
— Pareço? — Esfrego a pele em torno dos olhos. Será que todos os meus segredos estão piscando
na minha cara feito um letreiro de neon? — Minha maquiagem deve estar toda borrada.
— Você está cintilante — o corpo todo.
— Ah, deve ser resíduo de sal. — Eu tiro seu casaco do smoking, torço-o para tirar a água e o
devolvo.
— Ahn — murmura ele, ainda concentrado em mim. — Então... Vamos conversar sobre aquilo? —
Jeb enfia o casaco na mochila.
— Sobre o quê?
— O que aconteceu lá embaixo entre nós.
O calor me formiga as bochechas. Ele se arrependeu. Ou talvez esteja com medo de que eu conte a
Taelor. De qualquer maneira, acabo parecendo uma idiota. — Foi a adrenalina. Só isso. Nós só
estávamos felizes por estarmos vivos. Não se preocupe. O que acontece no País das Maravilhas fica
no País das Maravilhas, certo?
Ele nem sequer esboça um sorriso. Só fica me olhando e depois balança a cabeça. Lábios
esticados, ele se concentra em fechar o zíper da mochila.
Quero acreditar que ele sentiu o mesmo que eu... As coisas que eu não deveria estar sentindo. Mas
como pode ser? Não é comigo que ele vai mudar para outro país.
Tento me concentrar em outra coisa, como a água dentro de minhas botas que faz barulho entre
meus dedos ou nos rombos enormes no meu legging.
— E agora, para onde? — pergunta ele.
É possível que ele esteja se referindo a algo além do nosso destino físico, mas estou assustada
demais para me dar a chance de estar errada. Em vez disso, concentro-me no nosso paradeiro.
A costa se estende até onde a vista alcança... Um deserto infinito de fuligem tremeluzente. Não é
nada parecido com o que eu esperava encontrar no coração do País das Maravilhas, se é isso que
este lugar é. Não há fauna nem flora em lugar nenhum, exceto por uma solitária árvore, mais alta e
mais larga do que uma sequoia, a alguns metros de nós.
A familiaridade me atrai para perto dela. Cascas pretas de joias cobrem toda a árvore, do tronco
nodoso aos ramos que se retorcem a dezenas de metros no ar. Ela brilha ao sol como um milhão de
diamantes brancos. Na ponta de cada galho, rubis jorram feito líquido e pingam no solo, como se a
árvore estivesse sangrando pedras preciosas, assim como os elfos fazem quando sua pele é
perfurada. Com as areias pretas como pano de fundo, a cena lembra os mosaicos de grilos que tenho
em casa — uma beleza fascinante e ao mesmo tempo bizarra. Refreio um surto de pânico ao recordar
como os grilos pareciam estar vivos e esperneando da última vez que os vi em minha parede.
— A pulsação de inverno — diz Jeb ao meu lado.
Concordo. — Também vê a semelhança?
Ele fica perplexo. — Você esteve aqui antes.
Desvencilho-me de meu desconforto e subo na árvore, abrindo caminho aos chutes por entre os
rubis no chão. Um ponto na base do tronco lateja por trás da casca de diamantes, feito uma pulsação.
A cada tamborilar, ela se acende em linhas vermelhas com a mesma forma da marca de nascença em
meu tornozelo. A imagem reacende uma lembrança de mim e de um menino alado, indistinta, mas
inconfundível.
Jeb se aproxima e me viro para segurar no ombro dele e manter o equilíbrio, erguendo minha
perna direita para desamarrar minha bota.
— O que está fazendo?
— Seguindo instruções — respondo, tirando a bota e erguendo meu legging para exibir o
tornozelo. Jeb agarra meu cotovelo enquanto me agacho, pressionando o labirinto no meu tornozelo
contra as linhas da árvore.
Um choque de eletricidade estática salta de mim para o tronco; depois, um forte estalar quebra o
silêncio. Jeb me puxa para trás quando o tronco se abre, enquanto a casca brilhante se enrola feito um
pergaminho para expor uma passagem. Um brilho suave e avermelhado vibra e sinaliza lá de dentro.
— O coração pulsante do País das Maravilhas — sussurro, enfiando o pé na bota novamente.
A luz vermelha reflete no piercing de Jeb. — Muito bem, acredito que você veio aqui quando era
criança e está se lembrando de algumas memórias reprimidas. Mas como você pode ter uma marca
no corpo que abre tudo neste lugar?
Hesito, e depois conto a ele o que li sobre os intraterrenos falarem com insetos, e o que eu
desconfio acerca da maldição de minha família: que compartilhamos algumas características com as
criaturas daqui, incluindo esquisitas marcas mágicas em nossos corpos.
Jeb fica olhando para mim e me pergunto quanto mais ele pode aguentar sem ficar maluco.
— Você está bem? — indago, receosa.
Engolindo, ele passa os dedos pelos cabelos. — É com você que estou preocupado. Então, como
nós quebramos essa “maldição”?
Meu coração dá um pulo quando ele diz “nós”. Ele está nessa comigo até o fim. Não só porque
está preso aqui, mas porque ele é o Jeb com quem eu cresci. Meu Jeb. — Tenho que encontrar
alguém aí dentro. Alguém do meu passado... que costumava me trazer aqui.
Jeb franze a cara. — Muito bem. De acordo com as flores, este é o lugar onde os portais estão,
certo? Os portais que nos levarão para casa?
— É — respondo, meio na esperança de que ele tente me convencer a esperar aqui fora enquanto
ele verifica o terreno. Em vez disso, ele me detém somente o tempo suficiente para tirar a lanterna,
recolocar a mochila e tomar a dianteira. Descemos por uma escadaria sinuosa em meio a um túnel
escuro que parece descer espiralando para sempre.
— Não olhe para baixo — recomenda Jeb.
Por que as pessoas dizem isso? Só torna impossível não fazê-lo. Meu olhar mergulha nos degraus,
que produzem um som abafado sob nossas botas. Ossos, entrelaçados e amarrados com algum tipo de
cordão dourado cintilante, formam a escada. A maioria dos ossos tem deformações de tamanho ou
forma. Outros parecem humanoides. Aperto a mão contra a boca.
— De quem são esses ossos? — Jeb sussurra. — Ancestrais? Prisioneiros humanos?
Repasso minhas lembranças esparsas. — Não me lembro de ter conhecido isso...
Jeb acelera o passo. Pulamos do último degrau e nos esquivamos por uma cortina de trepadeiras.
Em vez de nos depararmos com um subterrâneo, uma vista se descortina à nossa frente sob um céu
roxo escuro. O sol e a lua estão entrançados em um, a lua com coloração azul ao lado do seu irmão
mais brilhante.
A luz combinada confere a tudo um tom ultravioleta. Plantas de todos os tipos — arbustos, flores,
árvores e grama — ficam fluorescentes sob os raios mistos: rosas, roxos, verdes, amarelos e laranja.
Os tons mais claros de nossas roupas brilham também. Não é de admirar que eu sempre me senti
tão em casa no centro de atividades Submundo. Em algum nível subconsciente, ele me lembrava deste
lugar.
Uma lufada de vento frio e carregado de aroma de calcário, folhagem e flores passa por nós.
Depois, sinto um aroma de algo mais — um perfume frutado vindo em nossa direção. Conheço aquele
cheiro. — Siga a fumaça — digo, abandonando o caminho.
Jeb pega minha mão e me ajuda a ultrapassar um canteiro de cravos-de-defunto. Aperto os dedos
dele em agradecimento. Meu corpo está começando a sentir os efeitos de nossa insana jornada
marítima. Tenho calos e feridas por todo lado.
Enquanto prosseguimos, não consigo parar de pensar em como ele voltou para me resgatar na água,
em como ele não desistiu, em como ele pulou no espelho em meu quarto sem nem pensar em sua
própria segurança. Talvez nós devêssemos conversar sobre o que está acontecendo entre nós, porque
algo certamente está mudando do meu lado. Corro a língua pelo céu da boca nervosamente. Venho
mantendo isso em tamanho segredo há tanto tempo.
— Escute, Jeb. — Engulo duas vezes. — Sobre o que aconteceu lá no fundo do mar. Eu...
— Mais tarde. — Olhando por cima de mim, ele pega em meus ombros. — Temos companhia.
Ele me força a agachar, e uma nuvem brilhante se aproxima sobre nós, cintilando feito vaga-lumes.
— É ela! — grita uma vozinha esgoelada mais alta do que o zunido de muitas asas. — É!
Um enxame de criaturas humanoides do tamanho de gafanhotos e da cor de feijão-de-lima paira
sobre nós. São todas fêmeas, nuas e com escamas reluzentes que se curvam sobre seus seios e
dorsos, formando desenhos sinuosos. Suas orelhas pontudas e os cabelos esvoaçantes cintilam, e seus
olhos são bulbosos e metálicos feito os de uma libélula, como se elas estivessem usando óculos
escuros de cobre. Asas revestidas com pelos na cor branco leitoso que lembram as pétalas de um
dente-de-leão farfalham perto da minha bochecha.
Uma delas chega perto o bastante para dar um tapinha na testa de Jeb, com as mãos do tamanho do
corpo de uma joaninha. — Eu o encontrei. Ele é o meu prêmio!
— É meu! — Três outras berram, enfiando-se no cabelo dele.
Jeb aperta as alças da mochila.
— Não, irmãs fadas — responde uma delas com a voz de sineta. Ela paira diante de Jeb, tão
fascinada quanto as outras. — Nosso mestre disse que eles devem ficar sob minha guarda.
As outras resmungam e se afastam.
Suspensa no ar, a pequenina vitoriosa faz uma reverência enquanto bate as asas. — Sou Gossamer.
Devo levá-los até aquele que procuram. — Seus olhos de libélula faíscam em minha direção e ficam
mais brilhantes, como se ela estivesse com raiva. — Àquele que procura você. — Meu estômago se
retorce com essa insinuação.
Em seguida, ela se volta para Jeb. — Cavaleiro élfico, você procura por prazer? Posso oferecê-lo,
se assim desejar.
Esfregando o dedo no piercing, Jeb olha para mim, totalmente perplexo. — Hum. Não, obrigado.
Estou bem.
Às gargalhadas, a fada se afasta, unindo-se às outras.
Seguimos nossas guias luminosas para dentro de uma floresta fechada, serpenteando através da
vegetação alta e fluorescente até chegarmos a uma clareira de musgo verde-limão, líquen amarelo
vivo e cogumelos reluzentes. Um círculo de árvores se fecha acima de nós, com os galhos esticados e
entrelaçados juntos de modo a formar um domo. Lascas do céu roxo aparecem aqui e ali, o suficiente
para lançar sombras.
Cada uma das fadas toma seu lugar dentro do teto suspenso, pontilhando os galhos feito velas
acesas. Sua luminância acrescenta uma névoa suave e brilhante ao cenário. Gossamer nos convida a
segui-la até o meio da clareira, onde um cogumelo gigante listrado de ultravioleta aguarda, envolto
em uma nuvem perfumada.
Uma sensação inconfundível de reconhecimento me possui. Reconheço este lugar de meus
pesadelos com Alice. Estamos no covil da Lagarta — o sábio guardião do País das Maravilhas.
— Ela não parece nada especial, meu senhor. — Gossamer paira sobre a espessa fumaça que
cobre o chapéu do cogumelo, escondendo o que quer que esteja sentado sobre ele. — Ela está
coberta de lama e fede a marisco.
— Só podia, porque ela acaba de secar o mar, queridinha. Tinha que ser um feito bem trabalhoso,
você não acha?
Todo o meu ser treme ao som daquele sotaque profundo. Fluido, masculino e sensual. É ele. Meu
guia intraterreno. Se eu pudesse ver além da fumaça...
— Sua vestimenta parece ser a de uma empregadinha — retruca Gossamer, crivando-me com um
olhar de desaprovação. — Talvez o senhor devesse mandá-la para casa e esperar por outra. Por
alguém mais aceitável.
— Quem está nu não deve julgar vestimentas — responde aquela voz familiar. — Você sabe muito
bem que não são as roupas que fazem uma mulher.
Humilhada, Gossamer vai juntar-se às outras fadas que pairam no ar. Finalmente, a fumaça se
dissipa e revela um narguilé e a mariposa do tamanho de um corvo — asas negras e corpo azul
luminescente — aninhada no alto do cogumelo, como uma borboleta repousada sobre uma pétala.
Ela inala fumaça da mangueira e solta plumas no ar. Algumas têm a forma de pássaros, outras, de
flores. Um dos desenhos vaporosos se afasta e vira uma cabeça de mulher — como o entalhe de um
camafeu. Conforme ela se dissipa lentamente, começa a parecer uma criança de cinco anos. Sou eu,
com cinco anos...
— É tão bom vê-la novamente, amorzinho. Quanta saudade eu senti.
Falta-me o ar e eu caio de joelhos. A Lagarta, a mariposa e o rapaz alado são todos a mesma
coisa, esse tempo todo...
— Eu já vi esse inseto — afirma Jeb. — No seu carro. No espelho. — Ele larga a mochila e
segura meus ombros, tentando fazer com que eu fique de pé. Minhas pernas não cooperam.
— Na-não. Você nunca precisa se curvar diante de mim, adorável Alyssa. — A voz sai da
probóscide da mariposa em baforadas de fumaça acinzentada. A atenção dele se volta para Jeb. —
Você, ao contrário, se curvará diante dela.
A fumaça voa na direção de Jeb e se transforma em uma rede em pleno ar, envolvendo-o. O peso o
faz cair de joelhos. Um graveto fere seu joelho no lugar onde a presa do octobenus havia rasgado sua
calça. Pinga sangue do ferimento.
— Ah-há! Ele não é elfo. É um mero mortal. — A mariposa bate as asas como se tivesse feito uma
grande descoberta.
— Um homem mortal! — As fadas guincham com vozes dúlcidas como sinos tilintando. Elas
mergulham das árvores como radiantes flocos de neve, enxameando em volta de Jeb enquanto ele
tenta se livrar da sua prisão de fumaça. As fadas tiram o canivete de suas mãos e depois entram
através da rede, cobrindo-o feito formigas em um torrão de açúcar.
Dou um pulo para espantá-las. — Vão embora!
— Ah, não estrague a brincadeira — sussurra a mariposa em minha direção. — Não vamos
quebrar seu soldadinho de brinquedo.
Pego o canivete e tento cortar a rede com a tesoura, mas as cordas desaparecem em minhas mãos.
Estou tão preocupada que quase perco a transformação que ocorre no alto do cogumelo. A mariposa
ri, e eu olho junto a tempo de ver suas asas se dobrarem sobre seu corpo. Os apêndices acetinados
aumentam até ficarem do tamanho das asas de um anjo, e depois se abrem para revelar o rapaz do
reflexo no meu espelho quebrado — e de minhas lembranças — já adulto.
O canivete me escapa das mãos. Estou mentalmente presa entre o passado e o presente.
Ele tem mais ou menos a mesma idade e altura de Jeb. Está usando um terno preto de couro com
botas utilitárias e se estica sobre o chapéu do cogumelo com a mangueira do narguilé aninhada
elegantemente entre dois dedos e com os tornozelos cruzados. Calças desgastadas cobrem suas
pernas musculosas. Ele é mais magro do que Jeb, mas está em ótima forma. Seu casaco, aberto até
quase o abdômen, revela um peito liso e alvo, como a pele de seu queixo recém-barbeado.
As fadas roubam nosso canivete e nos abandonam, correndo para o seu mestre. Elas enfeitam seu
cabelo e alisam suas roupas, arrulhando e rindo.
Não é surpresa que o pôster de Perséfone parecesse tão familiar. Meu companheiro intraterreno
cresceu e ficou parecido com o herói, só que seu cabelo na altura dos ombros é azul e brilhante, e ele
usa uma meia máscara de cetim vermelho. Exceto por isso, ele é seu sósia perfeito: pele de
porcelana, olhos tão pretos quanto a maquiagem em volta deles, lábios cheios e escuros.
Com a mistura de neblina e fumaça fluindo em volta de suas asas escuras, ele também me recorda
a vitrina de Jenara: um anjo negro.
Embora ele esteja mais para diabo.
Eu sei, porque minhas lembranças de infância retornam em uma onda avassaladora — me
atordoando com o nome que não pronuncio há onze anos.
9
Morfeu
“Morfeu.” Pronuncio, mais como uma acusação do que uma revelação.
O demônio alado mostra seus dentes brancos em um sorriso estonteante que me atrai e me coloca
em guarda. — Hum. — Ele move a mão ao longo do narguilé como se ele fosse um violino. — Sua
voz é uma canção. Diga novamente. — Ele dá uma tragada no cachimbo.
Fico tão extasiada por vê-lo vivo e real que nem tento resistir. — Morfeu.
— Fantástica. Sua mãe deveria saber que é preciso mais do que tesouras de poda para me cortar
de sua vida. Mas parece que ela conseguiu me cortar de suas memórias por algum tempo. — Ele
sopra anéis de fumaça. — Estou magoado, Alyssa. Não deveria ter levado todo esse tempo para você
me encontrar. — Recolhendo os anéis de fumaça em seu dedo, ele os atira ao ar, onde explodem em
estrelas vaporosas.
Jeb, ao meu lado, luta com a rede. — Este é o palhaço que você estava procurando? O do site? —
pergunta ele.
— Mais do que isso — respondo, sem estar segura que as palavras que formo são coerentes. —
Nós crescemos juntos, de alguma maneira. Era ele que frequentava meus sonhos quando pequena.
Não era? Você me visitava em meus sonhos... Me trazia até aqui. Me contava coisas.
— Ensinava coisas é melhor. Ah, mas nós reservávamos tempo para nos divertirmos também.
Tenho que dar um jeito de continuarmos com essa tradição. — Morfeu passa o narguilé para algumas
fadas com seus dedos pálidos e elegantes. Fecho os olhos, lembrando de passagens quando éramos
crianças, pulando nas pedras enquanto Morfeu alçava voo e me levantava por baixo dos meus braços
— uma sensação terna de segurança. Quando volto a abrir meus olhos, enrubesço, lembrando do
quanto seu toque pareceu diferente em meu quarto ontem à noite. Ele fica de pé sobre o cogumelo, as
asas enroladas num arco enquanto apoia as mãos unidas debaixo do queixo.
— O Chapéu da Hospitalidade! — Ele grita de repente, sem o menor sentido.
Várias de suas assistentes pairam sobre ele com um chapéu preto de cowboy e veludo e o colocam
em sua cabeça. Ele o vira meio de lado. O veludo é decorado por uma tira de mariposas brancas em
decomposição, fazendo-o parecer suave e ao mesmo tempo selvagem.
— Ela não tinha o direito de interferir. — Ele corre seu dedo longo pela aba do chapéu. Mechas
de seu comprido cabelo azul tocam seus ombros. — Não era o lugar dela.
Leva um minuto para eu perceber que ele voltou a falar de Alison. — Você a conheceu?
— Sim. De todas as outras candidatas, de todas as suas antecessoras, a mente dela foi a mais
receptiva a mim. Nos conectamos quando ela ouviu o chamado do mundo interior, aos treze anos de
idade. Mas ela deu as costas à sua responsabilidade no momento em que conheceu o Tomatinho. —
Ele sorri desdenhosamente quando fala o apelido de meu pai. Em seguida se recompõe, alisando o
casaco. — Não se importe com tudo isso. Vejo que está usando as luvas. Trouxe o leque também?
— Junto com tudo que ela escondeu.
— E ela achou que seus tesouros enterrados impediriam você de vir. Que pena que as palavras nas
margens estão indecifráveis, não? Ela deveria ter ficado de boca fechada brincando com os seus
cravos.
Cravos? Palavras indecifráveis? A compreensão me arrebata. — Foi você. Você manchou as
anotações para que eu não pudesse lê-las. E na clínica... foi você que quase a matou!
— Não admito nada. Só que ela estava fora de controle. Ela precisava se acalmar, para sua
própria segurança.
— É claro que ela estava fora de controle! Você brincou com a mente dela metade da vida! —
Ranjo os dentes. — É culpa sua ela estar naquele lugar.
Morfeu abre suas asas acetinadas — um movimento que impede que as fadas brilhantes me vejam
e que me lança na sombra. — Agradeça a você mesma por isso. Ela estava lidando bem com as
coisas até você aparecer. Pergunte ao seu pai. Ela nunca conversava com os insetos e plantas antes
de você nascer. Pelo menos, não na frente de ninguém.
— Não — sussurro.
— Não dê ouvidos a ele, Al. — Jeb tenta me confortar. — Sua mãe te ama.
Morfeu ergue as mãos sobre a cabeça e aplaude. — Bravo, gentil Cavalheiro. Todas vocês viram
isso? — As fadas entram na falsa celebração, dando voltas no cogumelo, todas exceto Gossamer, que
fica sentada no narguilé, observando num silêncio majestoso.
— Mas que gesto nobre! — continua Morfeu, andando pomposamente no alto do cogumelo. —
Preso e incapaz, mesmo assim seu único pensamento é defender a sensibilidade ferida da donzela. E
eu devo dizer que ele está certo. — As fadas silenciam seus cumprimentos zombeteiros, confusas.
Com um agitar de asas, Morfeu flutua e pousa graciosamente diante de mim — belo e sombrio. —
Sua mãe realmente a ama. Muito, muito mesmo.
Minhas pernas tremem, mas sustento o olhar sobre ele, com o desprezo queimando meus olhos por
trás.
— Fique longe dela. — Jeb atravessa um punho pela rede e roça a perna de nosso anfitrião.
Morfeu esquiva-se. — Ah, ah, ah. — Ele faz com que a fumaça desapareça e a rede também,
deixando os pulsos, os tornozelos e o pescoço de Jeb amarrados à base do cogumelo. — Se você se
comportar como um macaco adestrado, será tratado como um.
— Idiota! — Invisto com a mão aberta, mas Morfeu agarra meu pulso no ar. O impacto sacode
meus ossos e acirra a dor de minhas contusões.
— É esse o fogo. — Morfeu inclina a cabeça, e a expressão em seu rosto é ao mesmo tempo de
diversão e surpresa. — É bom ver que ele ainda queima.
— Tire as mãos, seu filho de inseto! — Jeb luta contra as algemas de fumaça, o rosto ficando
vermelho pelo esforço de tentar chegar até nós.
Rindo, nosso captor inclina-se sobre mim, ainda segurando meu pulso. — Ah, eu gosto mesmo
dele — murmura. — Um artífice das palavras. — Ele está tão perto que seu hálito com sabor de
fumaça penetra em mim, doce feito mel e forte como a seda da aranha, um conforto da minha infância.
— Quanto a você... Isso é maneira de tratar um velho amigo? Depois de tudo que vivemos? Tsc, tsc...
Fico tentada a me aproximar, buscar mais dessa sensação sedutora. Mas o desejo não é meu. De
alguma maneira, ele está me manipulando. Tem que estar.
Eu o ataco. Suas unhas se enterram em minha luva, fazendo meu punho vibrar.
Os olhos negros brilham, frígidos e duros por trás de sua máscara. — Pare de lutar e escute. Sua
mãe não tinha que virar as costas para mim. Ela não tinha que ir para a casa de loucos para proteger
você.
— Espere. — Um alarme dispara dentro de mim. — Está dizendo que ela escolheu ir para lá?
— Ela só precisava estar a alguns quilômetros de distância de você. Ela poderia ter pedido o
divórcio, se mudado para o outro lado da cidade, dado ao seu pai a custódia total. Mas ela amava
demais vocês dois para magoá-los tanto assim. Ela queria fazer parte de suas vidas... E ao mesmo
tempo mantê-los seguros. Então, sacrificou sua vida. É a mais pura forma de amor.
— Está mentindo. — Minha acusação emerge com uma lufada de ar.
— Estou? Você é a única que eu alcancei ainda bem jovem. Você e sua mamãe tinham uma
conexão mais forte do que qualquer coisa que eu já encontrara. Consegui usar os sonhos dela como
um condutor para os seus. Quando ela percebeu o que eu estava fazendo, ficou louca. Mas foi uma
loucura temporária. Que não haja dúvida — a fantasia de Alice, a obsessão pelo chá da tarde, os
estalos da língua, conversar em voz alta com insetos e flores —, todos esses tiques que ela
desenvolveu foram orquestrados por ela, para que ela fosse mantida longe de você. Por respeito ao
sacrifício dela, prometi eu mesmo não mais me aproximar de você.
— Então quebrou sua promessa — sussurro.
— Não. Havia uma brecha, sabe? — As articulações de sua mão livre roçam a minha têmpora. Seu
toque é caloroso e delicado. — Você encontrou a mim. Como foi você quem me procurou primeiro,
você me libertou dos vínculos da promessa. Menina esperta, muito esperta. Agora você está aqui
para arrumar as coisas, não está, minha joia? Para reparar o que Alice estragou. Para consertar o
País das Maravilhas, quebrando assim a maldição sobre o nome de sua família. As conversas com
insetos e flores... Os laços com esse reino. Você não estará mais enfeitiçada. Por fim, sua mamãe
poderá parar de fingir ser completamente maluca, porque não mais necessitarei de ninguém de sua
linhagem.
Meu peito dói, como se alguém usasse meu coração como um saco de pancadas. Foi por isso que
Alison disse aquelas coisas no pátio... Que, se eu prosseguisse com meu plano para encontrar a toca
do coelho, ela teria feito tudo por nada. Ela suportou tantos anos de humilhação, medicamentos e
horror porque esperava manter-me afastada daqui. E eu fui e arruinei tudo ao procurar por Morfeu.
O que torna o plano do meu pai e dos médicos ainda mais devastador.
— Minha culpa — sussurro, tentando não chorar. — Tudo que aconteceu com ela... É minha culpa.
— Al, não deixe que ele a culpe! — O ruído produzido por Jeb, lutando com as algemas, é quase
inaudível para mim.
Morfeu levanta meu queixo. — Sim, não se culpe. Porque você descobriu a toca do coelho e foi
corajosa o suficiente para mergulhar nela. Você é a única que teve tanta astúcia e coragem desde a
própria Alice. E você já conseguiu secar o mar que ela deixou para trás. Você vai reparar tudo para
a sua mamãe. Para todos nós. Você é muito especial, Alyssa. Muito especial mesmo. — Ele puxa o
meu punho, levantando-me até eu ficar na ponta dos pés e meu nariz tocar a borda inferior de sua
máscara. Ele está tão próximo que quase consigo sentir seus lábios com sabor de alcaçuz.
Um estalo forte irrompe no ar e Morfeu me liberta. Volto a pisar sobre meus calcanhares. As fadas
guincham quando as amarras de Jeb se soltam do cogumelo.
Jeb rola no chão e sacode as pernas com força. As algemas quebradas — ainda em seus
tornozelos, pescoço e pulsos — o seguem feito a cauda espiralada de um escorpião, e atingem
Morfeu, derrubando-o no chão. O impacto faz seu chapéu cair e evapora a fumaça, deixando os dois
homens a lutar em um emaranhado de asas e membros.
Jeb monta em Morfeu e aperta seu pescoço. — Eu disse para não tocá-la. — Sua voz profunda é
rouca, mas calma, fazendo os pelos de minha nuca eriçarem.
Morfeu comete o erro de rir, e Jeb surta. Com uma mão apertando o pescoço de Morfeu, ele o soca
com a outra, amassando a máscara de cetim. Morfeu vira a cabeça para desviar do golpe. Suas asas
estão tortas e são inúteis debaixo dele.
Contraio meus músculos. Estou em guerra comigo mesma. Uma parte de mim deseja defender
Morfeu — explicar seus motivos para Jeb; a outra parte torce para que Jeb faça picadinho dele. Eu
me dobro, minhas têmporas latejam enquanto me afogo em um mar de lembranças distorcidas e
emoções desmembradas. As fadas choramingam, reunidas nos galhos acima de nós. Elas obviamente
nunca viram seu mestre ser atacado por alguém.
Morfeu estica os joelhos para tirar Jeb de cima dele e eles giram pela grama fluorescente,
deixando um rastro. Desta vez, Morfeu termina por cima. Suas asas se desdobram feito uma tenda. O
contorno do rosto de Jeb aparece, pressionado contra a membrana preta do outro lado. Um
movimento de sugar o ar revela o contorno de sua boca.
Ele está se sentindo sufocado.
Atravesso meu labirinto mental e lanço-me na direção de Morfeu, derrubando-o. Ele rola no chão,
envolto dentro de suas asas como uma pupa.
Ao cair de joelhos, encosto o rosto no de Jeb. Sua respiração aquece meu nariz, lenta e estável,
mas ele não abre os olhos. — Jeb! Acorde, por favor... — Arrasto seus ombros para o meu colo e
aninho sua cabeça.
Morfeu está de pé, limpando-se.
— O que você fez? — grito.
Ele ajeita sua máscara amarrotada e depois estica cada uma das asas por sobre os ombros,
passando as mãos para verificar se ficaram danificadas. — Ele só está inconsciente. — Colocando
de volta o chapéu, Morfeu toca as marcas de dedos em seu pescoço, com os olhos sombrios. — Foi
uma gentileza. Eu poderia tê-lo matado. — Ele grunhe. — Na verdade, deveria. Estou certo de que
me arrependerei dessa decisão.
Ao olhar para seu harém, Morfeu convoca as fadas para descerem. — Levem o pseudoelfo para a
casa. Despertem-no de seu torpor. Façam-no sentir-se bem-vindo como só vocês podem fazer.
Gossamer é a primeira a descer das árvores. Parece haver ainda mais fadas agora. Seguindo sua
líder, elas descem em torrentes, formando uma chuva faiscante.
— Não! — Atiro-me na frente de Jeb. Afasto-as com meus punhos. Sob a ordem de Gossamer,
elas colidem com meus braços e costelas em velocidade total, atingindo-me feito granizo. Recuso-me
a me mexer até que Morfeu me agarra pelo colarinho e me força a levantar.
Minha resistência ao seu domínio só o torna ainda mais resoluto. Seu braço envolve minha cintura,
duro e forte como uma garra de metal. Ele aperta minhas costas contra sua lateral, e meus pés ficam
suspensos. Cinquenta fadas ou mais levantam Jeb pelas roupas. A cabeça dele pende, sua camisa e
calças franzem onde elas seguram, como se ele estivesse sendo içado por cordas.
— Jeb! — grito. Lágrimas borram minha visão quando ele não responde. — Tenham cuidado com
ele.
As pequeninas fêmeas só conseguem erguê-lo a poucos centímetros do solo, e a grama alta se
curva sob seu peso conforme ele é levado da clareira. Algumas das fadas restantes puxam a mochila
no final da procissão. Quando o último trecho de grama se ergue atrás delas, empurro Morfeu e me
liberto, mas só porque ele assim permite.
— Se nosso tempo juntos significa alguma coisa para você, não irá machucá-lo. — Lágrimas
cálidas me lavam a face.
Morfeu estende a mão para apanhar uma lágrima com a ponta de um dedo. Ele a eleva contra o
brilho suave que irradia das poucas fadas que ainda permanecem sobre nós. Em seguida, arqueia os
lábios de maneira inusitada. — Você chora por ele, mas sangra por mim. Deve-se perguntar qual é
mais poderoso. Mais comprometedor. Suponho que um dia saberemos.
Minha garganta fica seca. — Do que está falando? Sangro por você?
Ele esfrega a minha lágrima em sua pele como se fosse perfume. — Tudo a seu tempo. Quanto ao
seu soldadinho, não chore por ele. Ele vai receber atenção mais que suficiente. E, quando ele estiver
inconsciente em seu êxtase, esquecerá onde está e com quem veio. Embora eu imagine que terei de
enviá-lo para alguma outra parte do País das Maravilhas para mantê-lo longe de você.
O terror me invade. Já é muito ruim aquelas minininfetas seduzirem Jeb, mas, se elas vão fazê-lo
esquecer quem ele é, ele ficará perdido aqui para sempre. Jeb está aqui por minha causa. Ele não
merece um fim desses. — Por favor, mande-o de volta para o nosso mundo.
Morfeu dá de ombros. — Não é possível. Estamos tendo uns probleminhas de transporte aqui no
reino interior.
— Não pode ser.
Ele se aproxima. — Não pode?
Dou dois passos para trás. — Você me visitou em casa, no trabalho. Ficou me observando. Quase
sufocou Alison com o vento...
Ele joga a cabeça para trás e ri, levantando os braços como se fosse um grande ator. — Imagina
só. Eu, controlando o vento e o tempo. Ora, eu devo ser um deus.
Eu o encaro firmemente. — Sei muito bem o que vi.
Ele estica as mangas. — Eu usei os reflexos para visitá-la. O globo na clínica, os espelhos da
loja... Os espelhos de sua casa. Através deles, projetei uma ilusão, mas não podia me materializar
totalmente porque os portais estão obstruídos. Sua mente foi meu palco. Ninguém mais pôde me ver,
ouvir ou sentir. Só você. E você me sentiu mesmo, não é, amor?
Pensar no modo como sua respiração-fantasma me fez comichar o pescoço quando ele sussurrou
— quente e provocador — me deixa confusa até a medula. Ergo o queixo, uma pobre tentativa de
esconder seus efeitos em mim. — Havia magia... Na trança da minha mãe. Ela se movia, prendeu
meus dedos em volta da garganta dela. Foi você.
Ele esfrega as unhas na lapela. — Foi magia, admito. Magia mal orientada. E não foi minha.
— O que isso quer dizer?
— Você ainda não está pronta para essa resposta.
Cansada de suas manipulações, empurro-o e o desequilibro, correndo para a abertura nas árvores
por onde desapareceram as fadas, quase tropeçando em mim mesma na minha ânsia de encontrar Jeb.
Ouço um poderoso farfalhar de asas acima de mim; em seguida, Morfeu barra meu caminho. Eu paro,
derrapando.
Ele se agacha com as asas abertas paralelas ao chão e me encara atentamente, como uma ave de
rapina gigante — sombria e perigosa. Estou acostumada com este lado dele... Seu lado escuro e
temperamental. Não haverá discussão sensata com ele a menos que eu assuma o controle.
Ele fica parado e me pega pelos ombros antes que eu possa fugir novamente.
— Chega de brincadeiras — dispara ele. — É hora de você cumprir seu destino. Não passei o
primeiro terço de sua vida treinando-a em vão. Alice deixou perturbações em nosso mundo que só
você pode reparar. Esperei 27 anos para este dia chegar... Fiz sacrifícios demais para ver tudo cair
por terra. Você vai consertar o que ela quebrou, e isso abrirá o caminho para que você quebre a
maldição e volte para casa. Até lá, eu dito as regras.
Alice deixou perturbações em nosso mundo que só você pode reparar. As flores zumbis disseram
algo assim. Que somente um descendente de Alice poderia ajudar a consertar tudo. E o octobenus
insistiu que o Sábio — Morfeu — estava desesperado por minha ajuda. Desesperado.
Foi ele que me sugeriu trazer a esponja, era ele que vinha me ensinando sobre o País das
Maravilhas havia anos. Por quê? Ele deve ter algum tipo de interesse pessoal nisso tudo.
— Você precisa de mim. — Levanto a voz, arriscando minha suposição. — Não é que minhas
ancestrais não tenham conseguido encontrar o caminho para cá. Elas não quiseram vir. Temos que
querer. Você não pode forçar. Sou a primeira que quis chegar tão longe, e não tenho que fazer nada
que você me pede. Então, e se eu ficar presa aqui? Sempre fui o peixe fora d’água. Sempre aprendi a
conviver com isso. Alison... ela vai sobreviver, como sempre.
Morfeu não tem que saber a verdade: que a qualidade da vida de Alison depende do meu sucesso.
Prevejo que continuarei com este blefe até o fim.
— Essa é sua única chance. — Coloco as mãos na cintura. — Acabe comigo e poderá terminar
esperando mais 75 anos.
Uma expressão estranha paira sobre o rosto de meu companheiro de infância. Se não fosse pela
máscara, eu poderia interpretá-la melhor, mas parece haver um lampejo de orgulho.
Seus dedos em meus ombros relaxam um pouco. — Quais são as suas exigências?
— Jeb e eu voltaremos a nos unir hoje. Você vai cancelar suas fadas e deixar a memória dele
intacta. Ele será tratado como igual, não como seu peão. E eu quero clareza... Como pode alegar ser
amigo de Alison, se você e eu crescemos juntos? Como sabia sobre meus ancestrais se você tem a
minha idade? E qual é o seu interesse nisso tudo?
Ele me liberta. — É só isso que pede?
Repassando o que o octobenus disse sobre votos entre os intraterrenos — um fato confirmado pela
promessa que Morfeu fez a Alison de não me contatar —, acrescento mais uma coisa. — Quero sua
palavra... Um juramento.
— Arre! — Suspirando, ele leva uma mão ao peito, como se estivesse jurando lealdade. — Juro
sobre a magia de minha vida não mandar embora e nem prejudicar seu precioso amigo desde que ele
seja leal a você e à sua digna causa. Mas me reservo o direito de enfrentá-lo em qualquer
oportunidade que se apresente. Ah, e terei prazer em elucidar todas as suas dúvidas. — Ele faz uma
reverência — em cada detalhe, um cavalheiro.
Terno de couro e máscara amarrotada, aquele chapéu morbidamente sexy. Ele acha que é um astro
do rock. E talvez seja, neste lugar. Mas ele deu a palavra e tem que cumpri-la, ou suas asas irão
murchar e ele perderá seu encanto.
Endireitando-se, ele dá um passo para a frente de modo que sua bota toca na minha. — Pronto.
Agora que aquele desconforto se dissipou, vamos continuar? Como agora estamos ambos adultos,
temos que nos reapresentar.
Examino as árvores. Todas as fadas se foram. Meus nervos estão à flor da pele. — Onde estão
todos?
— Preparando um banquete de celebração para nós na mansão. Não temos damas de companhia.
Podemos aproveitar.
Em pânico, dou um passo para trás, mas as asas dele me envolvem e me mantêm no lugar,
obscurecendo tudo, exceto ele. É como se estivéssemos em uma caverna.
Sua pele é quase translúcida sob a luz tênue. — É hora de me deixar entrar, adorável Alyssa.
Antes que eu possa responder, ele tira a máscara e a joga na grama. O que eu pensava ser
maquiagem em volta dos olhos são, na verdade marcas permanentes — como tatuagens, mas internas.
São pretas feito cílios postiços, com safiras em formato de lágrima rematando as extremidades
pontudas. O efeito é lindo, mas um tanto macabro e circense. Não consigo resistir ao desejo de
levantar a mão e tocar as lágrimas faiscantes. As joias lampejam por meio de um espectro de cores
até não serem mais safiras azuis, mas topázios flamejantes — alaranjados e quentes. Seus cílios se
fecham como que em êxtase por dois segundos. Depois, seus olhos de tinta se abrem e me engolem
inteira.
— Não tenho idade. — A voz dele ecoa dentro de mim, mas seus lábios não se movem. — Posso
usar a magia para imitar a idade que quiser. Usar este poder afeta a mente, o físico e a emoção
dos intraterrenos. Nos tornamos a idade, de todos os modos. Então, em essência, a única infância
que tive foi com você em seus sonhos. Abra sua memória e verá.
A canção ganha vida mais uma vez — o acalanto de Morfeu.
Desta vez, não coloco resistência. Envolvo minhas lembranças nas notas fluidas, permitindo que
elas permeiem cada pensamento até...
Pedaços do meu passado são projetados feito filmes na tela negra de suas asas. Sou eu, recém-
nascida, chorando no berço. Um cobertor de cetim me envolve — vermelho com acabamento branco.
Minha janela está aberta e uma brisa de verão agita as cortinas de ilhoses, movendo o móbile acima
de minha cabeça. Cavalos balançam e bailarinas dançam sobre mim.
É a canção que me acordou. Não a música do móbile, mas a canção dele. A lua brilha e ele está
aqui, uma silhueta de mariposa pendurada na parte de fora da tela. Sua voz profunda penetra no
quarto, soa suave e gentil:
— Vermelha e branca, a florzinha, descansando a cabecinha; cresça e floresça, seja forte e
espertinha, pois um dia você vai...
Antes que eu possa finalizar o verso, sou jogada em outra memória. Esta é nebulosa, como se eu
estivesse olhando por um vidro manchado. Percebo que é porque estou sonhando. Sou uma criança
pequena, não mais de três anos, andando com um Morfeu de seis por uma praia escura e radiante.
Suas pequenas asas se dobram sobre nós para fazer sombra. Eu seguro sua mão, maravilhada pelo
espetáculo de brilho que se descortina diante de nós: uma árvore feita de joias. Morfeu se agacha
para apontar o labirinto na base da árvore e então enrola suas mangas de renda para revelar uma
marca igual em seu antebraço. Viro meu tornozelo, fazendo a conexão. Ele me ajuda a pressionar
minha marca de nascença contra o tronco. Quando o portão se abre, ele dá pulos e dança. — Temos
as chaves! Temos as chaves! — Sua pequena voz exclama em contentamento infantil. Dou risada,
pulando atrás dele.
Depois, volto à minha casa dois anos mais tarde. É manhã de sábado e sou atraída até a porta de
tela pela canção de Morfeu — agora tão familiar quanto os lençóis rosados da minha cama. O
perfume de uma tempestade de primavera atravessa a rede. Ele aguarda em forma de mariposa do
outro lado. É nossa rotina: eu brinco com ele, meu amigo de infância, em meus sonhos noturnos —
explorando nosso mundo encantado nos lampejos que ele me proporciona —, depois o vejo em
intervalos durante o dia, como inseto. Mas seus ensinamentos já estão entranhados em minha cabeça,
ganhando vida em uma sensação esvoaçante de confiança que me impele para encontrar uma saída.
Logo, estou dançando com a minha mariposa em nosso jardim. Mamãe me vê. Correndo para fora,
ela leva tesouras de podar longas e afiadas e corta pétalas de flores, gritando “Vou cortar sua
cabeça!” Quando percebo o que ela quer realmente, um estranho desconforto me agita por dentro. Eu
vi como as pétalas se esfrangalham perante as lâminas. Não quero que ela estrague as asas lindas da
minha mariposa. Levanto as mãos para deter a tesoura. A mariposa escapa ilesa. Mas eu não tenho
tanta sorte...
Saindo do transe, atiro-me ao chão e aperto as mãos doloridas contra o peito. As cicatrizes pulsam
como se fossem recentes. Morfeu inclina-se sobre mim, afagando meu cabelo. — Eu lhe disse que
você era especial, Alyssa — murmura ele, o peso de sua mão estranhamente confortando o algo de
minha cabeça. — Ninguém jamais sangrou por mim. A lealdade de uma criança por outra é
imensurável. Você acreditou em mim, compartilhou novas experiências comigo, cresceu comigo. Isso
conquistou minha sincera devoção.
Enfim, compreendo. A outra lembrança, a que presumi que fosse real durante todos esses anos, foi
colorida pelo que meu pai pensava ter acontecido. Pelo que ele testemunhou quando olhou pela
janela da cozinha, onde estava fazendo panquecas. Ele achou que eu estava dançando atrás de Alison,
quando o tempo todo eu estava tentando proteger meu amigo.
Alguém que eu pensava ser meu amigo. Um amigo sai voando e deixa você sangrando e de
coração partido?
Estou aos pedaços. Todas as revelações se misturam em minha mente, demais para assimilar. O
trauma que meu corpo enfrentou nas últimas horas cobra seu preço. Minhas contusões palpitam e
meus membros parecem pesados como pedras.
Ainda de joelhos, inclino-me sobre as coxas de Morfeu — um apoio sólido. O couro frio de suas
calças acomoda minha face. Fecho os olhos. Sim... já estive aqui antes, abraçando-o em segurança.
A princípio, penso estar imaginando quando ele se curva para me receber em seus braços. Mas,
quando o perfume de alcaçuz e a pele quente me envolvem, sei que é real.
— Você foi embora — acuso-o, me esforçando para ficar acordada. — Eu estava ferida... e você
me deixou.
— Um erro que eu juro pela magia de minha vida nunca cometer novamente. — Apesar de ele
estar me abraçando, sua resposta parece distante. Mas a distância não importa; ele deu sua palavra.
Eu o lembrarei disso.
Meus olhos estão entrecerrados e vejo sombras se formarem sobre nós. Ou serão asas?
Por um momento, a preocupação com Jeb me volta à mente; depois, mergulho num sono escuro e
sem sonhos.
10
Mais e mais
curioso
Sinto-me quente... quente demais. Uma névoa azulada brilha e depois escurece — como o sol
refratando ondas. O fluxo da água goteja perto de mim, e ainda mais perto escuto o farfalhar de
roupas.
— Jeb?
— Calma, amor. — Morfeu está sentado ao meu lado — a pele com aroma de alcaçuz, o cabelo
azul e selvagem, olhos tatuados com pontos de pedras preciosas. Agora me lembro. Ele me tirou do
covil do cogumelo e me trouxe para cá. Acordei no meio do voo e desmaiei por causa do meu medo
de altura, acordando novamente por um instante enquanto ele me arrumava em sua cama.
A névoa azulada é, na verdade, lençóis de água que caem da elegante cobertura ligada à estrutura
da cama. Cortinas líquidas.
As asas de Morfeu cortam a queda de água e a desviam, mantendo-o seco. Cada vez que ele muda
de posição, a cortina aquosa se move junto, como se fosse traçada uma espécie de barreira invisível
entre ele e a água que cai.
Tento sentar, mas a pilha de cobertores é muito pesada. A claustrofobia faz meu coração pular.
— Morfeu? — Minha voz estala, seca e áspera, como se eu tivesse comido bolachas salgadas.
Deve ser de todas as lágrimas que engoli no oceano.
Ele está deitado ao meu lado no colchão, apoiado no cotovelo. Seus dedos percorrem os fios de
cabelo platinado que se espalham sobre o travesseiro em torno de minha cabeça. — Você estava
chorando enquanto dormia. Está sofrendo?
Faço um sinal positivo com a cabeça, procurando tirar minha mão de debaixo dos cobertores para
tocar minha garganta. — Jeb — murmuro.
Morfeu franze a cara. — Seu amigo está a salvo e descansando no quarto de hóspedes. O que
significa que você é minha por enquanto. — Ele começa a afastar as cobertas.
O que parecia sufocante minutos atrás agora parece uma armadura sendo arrancada. Não sei ao
certo o que estou usando debaixo das cobertas, então me agarro ao último cobertor na altura da
clavícula.
Morfeu inclina-se mais. Seu cabelo roça meu ombro à mostra, comichando com suavidade. —
Florzinha tímida — sussurra ele, o hálito doce me envolvendo. — Nós simplesmente vamos misturar
sua dor e fazê-la sumir.
Misturar... Não soa como algo que meu pai aprovaria. Nem Jeb, por sinal. Começo a empurrar
Morfeu para trás, mas o cobertor escorrega pelo meu corpo a um sinal de seus dedos pálidos e
elegantes. Me resta uma longa camisola champanhe de cetim com alcinhas. Ela cobre todos os
lugares certos, mas sinto-me exposta. Morfeu teve que me ver nua para vesti-la em mim. Cruzo os
braços sobre o peito, com o rosto em flamas.
Ele sorri. — Não se preocupe. Minhas queridinhas a despiram. E levaram suas roupas para serem
queimadas.
— Queimadas? Mas... Eu não tenho mais nada...
— Agora fique em silêncio e não se mexa.
— Você mencionou um banquete. Não vou vestida assim de jeito nenhum. — Aperto os braços em
torno de mim mesma.
Ele balança a cabeça e depois empurra a bainha da minha camisola até ela chegar ao tornozelo,
deixando à mostra minha marca de nascença. Sento-me, prestes a puxar a perna, mas seus olhos
escuros e profundos se voltam para os meus. — Confie em mim.
A sensação palpitante em minha mente me incita a ouvir. Aqui neste lugar, onde não tenho mais o
ruído das vozes me distraindo, posso escutar meus pensamentos com mais clareza pela primeira vez
em anos. Posso compreender aquela palpitação em minha mente. Essa sensação pulsante — sou eu.
Tenho outro lado, além da boa moça e da filha obediente, que é instintivo e selvagem.
É esse lado que escolhe confiar nele, apesar do nosso passado bizarro... Ou talvez por causa dele.
Enrolando a camisa até o cotovelo, Morfeu exibe uma marca de nascença idêntica na parte interna
do antebraço — da qual me recordo nos meus sonhos. Intrigada por nossa semelhança, seguro o pulso
dele com uma mão, percorrendo as linhas com a outra. O labirinto brilha sob meu toque. Sua
expressão muda, e um ruído abafado lhe escapa da garganta — algo entre um ronronar e um rosnar. O
braço dele se retesa, como se fosse necessário muita concentração para não se mover enquanto sacio
minha curiosidade.
Ele é uma contradição: magia contida pronta para entrar em ação, gentileza em guerra com a
severidade, uma língua tão afiada quanto a ponta de um chicote, mas a pele tão macia que a sensação
é a de que ele está envolvido em nuvens.
Sustentando seu olhar, lembro o que misturar significa. Tomo a atitude de pressionar nossas
marcas de nascença uma contra a outra. A união produz calor, como quando Alison curou meu
tornozelo e joelho, embora esta seja uma reação mais volátil. A calidez me ferve o corpo inteiro,
deixando-me rubra da cabeça aos pés.
Morfeu me convida a deitar e abaixa a barra da camisola, e, em seguida, levanta o cobertor até o
meu queixo. Ele coloca o chapéu na cabeça em certo ângulo. Suas asas se erguem quando ele levanta,
e a cortina de água se eleva em um arco em torno dele.
— Não saia daqui até eu voltar com alguma coisa para sua garganta. — Sua voz tem um tom
rústico que deixa meu corpo ainda mais quente.
Quando ele recua, a cortina de água se fecha, deixando-me sem visão para o exterior. No minuto
em que ouço a porta da sala se fechar, apresso-me a sair das cobertas, pressiono minhas costas
contra a cabeceira e recolho os joelhos para perto do queixo, tremendo ao sentir uma corrente de ar
frio.
Fecho os olhos e penso naquela sensação — o pulsar de sua magia junto ao meu dedo, sua pele
junto à minha. Esfregando minha marca de nascença, livro-me da euforia.
Quanto mais me lembro de Morfeu e deste lugar, mais me esqueço de mim mesma... Ou de quem eu
achava que era.
Por que Alison não me contou? Se ela tivesse sido honesta, eu não estaria confusa deste jeito
enquanto o Jeb está trancado em outro lugar.
A culpa me golpeia o coração. Ela estava tentando me proteger. Ela irá receber um tratamento de
eletrochoque desnecessário se eu não quebrar a maldição e voltar depressa.
Instintivamente, estendo a mão na direção da cortina líquida e desejo que a água reaja a mim do
modo como reagiu a Morfeu. Ela se ergue feito uma coisa viva, deixando-me seca. Agarro um
cobertor, amarro-o nos ombros, improvisando um manto, e atravesso num pulo, aterrissando em um
tapete felpudo. Ainda sinto os músculos um pouco doloridos. Fora isso, nada mais me dói.
Giro o corpo sobre o calcanhar. A decoração da sala me parece ligeiramente familiar — selvagem
e deslumbrante, assim como seu habitante. Não existem janelas nem espelhos. Uma luz suave e âmbar
cai do gigantesco candelabro de cristal que ocupa grande parte do teto arredondado. Veludo dourado
e roxo cobre as paredes, intercalado com ramos de hera, conchas do mar e plumas de pavão.
Uma série de prateleiras de cristal ocupam a parede à esquerda. Metade delas contém chapéus de
todos os tipos e tamanhos decorados com mariposas mortas; a outra metade contém o que primeiro
aparentam ser casinhas de boneca de vidro transparente. Depois percebo que são terrários.
Dentro dos terrários, mariposas voam de um lado para o outro e se aninham em folhas e ramos.
Teias espessas revestem os painéis de vidro em alguns pontos, parecidas com as teias no meu
pesadelo de Alice. São casulos — lagartas se transformando em mariposas. Ao ouvir a queda
d’água, penso em como as asas de Morfeu cortaram o líquido e comparo a cena ao meu sonho no
barco a remo, quando uma lâmina negra estava prestes a cortar a teia.
Não era uma lâmina.
Com um ruído, a porta se abre e eu me volto, com o coração aos pulos.
Morfeu atravessa a soleira da porta e nos fecha lá dentro. — Já levantou? E sem uma gota de água
no corpo. — Ele traz uma bandeja com um bule de chá e xícaras de porcelana combinando. — Muito
bem.
— Você. — Aponto o dedo trêmulo para os casulos. — O pesadelo que eu tenho há anos. Foi você
que o colocou na minha mente, não foi?
Ele retesa a mandíbula enquanto coloca a bandeja sobre uma mesa de vidro. — Que pesadelos
seriam esses? Eu não me conecto mentalmente com você desde que sua mãe foi internada... Ontem foi
a primeira vez. — Ele serve chá em uma xícara. Ondas fumegantes preenchem a sala, espalhando
notas de mel e frutas cítricas pelo ambiente.
— Eu sou Alice — digo — em busca da Lagarta. Eles vão cortar minha cabeça. Ele é o meu único
aliado. — Esfrego o pescoço. — Espere, não. Tem também o Gato de Cheshire. Mas nenhum deles
pode me ajudar. O Gato perdeu o corpo, e a Lagarta... — Olho para os recipientes de vidro. — É
você, preso dentro do casulo.
Morfeu atrapalha-se com a tampa do bule, provocando um ruído alto. Quando ele se volta para
mim, seus olhos estão arregalados. — Você se lembra. Depois de todos esses anos, você ainda
reteve os detalhes.
— Detalhes do quê? — Minhas pernas ficam bambas, e aperto o cobertor mais forte em volta do
pescoço.
Morfeu aponta a cadeira ao lado dele. — Sente-se.
Como não me movo, ele pega minha mão e me conduz. Ele está usando luvas pretas, que lembram
as luvas com as quais sonhei no barco. Estou prestes a comentar sobre isso quando ele me dá uma
xícara.
— Tome um pouco de chá e vamos repassar a história.
Repassar?
Enquanto ele se serve de chá, tomo um gole do meu. O líquido quente e doce acalma minha
garganta. Passo um dedo na mesa embaixo do pires. A superfície é um tabuleiro de xadrez, preto e
prateado. Uma chapa de vidro o cobre para protegê-lo de gotas e arranhões. Peças em jade — peões,
torres, cavalos e outras — estão distribuídas em um padrão incomum. Frases flutuam sobre três
quadrados prateados, como por um passe de mágica, em letras pequenas e brilhantes. Inclino-me para
ler, pegando as palavras oceano e mão, e então Morfeu passa a luva sobre o vidro e as borra.
— O que era aquilo? — pergunto.
— É assim que fico a par de seu progresso.
— “Progresso.” Pode explicar melhor? — Tomo outro gole de chá.
Suas asas se estendem pelos dois lados de sua cadeira quando ele se senta diante de mim,
colocando seu chapéu sobre a mesa. — Eu preferiria mostrar.
Ele retira uma pequena caixa de cobre de uma gaveta do seu lado da mesa. A tampa se abre e
Morfeu a entorna. O conteúdo se espalha sobre o tabuleiro de xadrez, uma série de pequeninas peças
de jogo. Estas também são de jade: uma lagarta fumando um narguilé, um gato com um sorriso
arrojado, uma menininha de vestido e avental. Há outros personagens, também, todos familiares.
Morfeu e eu jogávamos com eles quando eu fazia minhas visitas durante o sono.
Estendo a mão para pegar o boneco de Alice e o levanto, correndo o dedo pelas linhas de seu
avental. Com a parte externa em tom marmoreado com traços de verde, ela parece diferente das fotos
— mais frágil. Preciosa e rara, como a pedra na qual ela foi esculpida.
Morfeu ergue sua xícara e me observa por sobre a borda enquanto bebe, e em seguida a repousa no
pires, tilintando. — Ela sempre foi a sua favorita.
Fico ao mesmo tempo lisonjeada e assustada com a expressão de adoração que percorre o rosto
dele. Uma confusão nostálgica invade meu peito. — Você me contava uma história com elas.
— Contava, sim. Ou melhor, nós a assistíamos.
— A assistíamos?
As joias sob seus olhos cintilam, mudando para um azul pacífico. — Como está se sentindo,
Alyssa?
Intrigada com a pergunta, franzo a cara. — Bem. Por que pergunta? — Assim que termino de falar,
a sala começa a girar, as peças de xadrez giram junto. Minha xícara de chá entorna e metade de seu
conteúdo é atirado ao ar. Levo as duas mãos à garganta. — Você colocou alguma coisa na bebida...
— Estou só lavando o palato de sua mente. Você precisa estar relaxada e leve como uma pluma
para canalizar sua magia nos estágios iniciais. Senão, ela virá em ataques e surtos e ficará
incontrolável, como ficou no asilo. — A voz desincorporada de Morfeu flutua em volta de mim, e o
candelabro pisca — do escuro para a luz, do escuro para a luz.
— Está dizendo que...? — Não, não é possível. — Eu estava controlando aquela magia? — Pensar
que tive algo a ver com o quase sufocamento de Alison faz minhas entranhas tremerem.
— Fora de controle é mais apropriado — corrige Morfeu, zombando. — Você estava consternada
demais para fazê-la funcionar de modo adequado.
Esforço-me para encontrá-lo em meio ao caos, sentindo a necessidade de ver seu rosto para saber
se ele está falando sério. — Mas como?
— No momento em que sua mente aceitou a possibilidade de que o País das Maravilhas fosse real,
ela liberou o vácuo de dúvida que a mantinha presa — explica ele, de algum lugar acima de mim. —
Agora, pare de pensar como humana. A lógica dos intraterrenos reside na nebulosa fronteira entre a
razão e a loucura. Mergulhe nessa lógica, visualize as peças de xadrez ganhando vida; veja, e tudo
será.
Cética, giro num círculo de antigravidade por tudo na sala: as prateleiras de vidro, os chapéus, a
mesa e o tabuleiro de xadrez. A cortina de água da cama forma um funil em torno de nós, balançando
e rodopiando, procurando não tocar em nada. A estátua de Alice escorrega de minhas mãos enquanto
tento manter o equilíbrio na sala que rodopia. Sem muita convicção, penso que ela pode me alcançar,
pegar minha mão, mas ela sai do meu ângulo de visão.
— Era uma vez uma menina chamada Alice — conta Morfeu, com voz líquida e calmante. Ainda
não consigo vê-lo. — Ela era inocência, doçura, felicidade e luz. Talvez seu único defeito fosse ser
muito...
— Curiosa — acrescento à fala dele, e, naquele instante, as peças de xadrez crescem até o
tamanho de seres humanos. Esforço-me mais ainda para imaginá-los vivos: visualizar sangue
correndo em seus corpos entalhados como riachos límpidos através das montanhas, imaginar seus
pulmões se expandindo e enviando oxigênio aos corações pulsantes de pedra.
Concentro-me tanto que me assusto quando a Lagarta, com o narguilé fumegando em uma das mãos,
agarra meu punho. — Você se parece com uma menina que eu conhecia. O nome dela começava com
A. Quem sabe o seu também começa? — A fumaça esverdeada se estende com um lençol espesso e
perfumado em torno de mim, combinando com o resplendor do jade.
O gato flutua ao nosso lado. Ele segura o lençol de fumaça e, usando suas garras feito tesouras,
corta oito letras vaporosas para compor a palavra: Alegoria. Ele dispõe as letras feito um cordão de
flocos de neve feitos de papel. O sorriso em sua face esverdeada se alarga.
— Ah — diz a Lagarta, com suas baforadas de tabaco formando nuvens em volta de nós —, ela é
uma personagem figurativa. Ela irá jogar do meu lado, então, pois sou o acadêmico.
O gato balança a cabeça, e seu sorriso desaparece. Eles dão início a um cabo de guerra, me
puxando de um lado para o outro. Eu grito ao sentir as articulações de meu braço estiradas ao limite.
— Me soltem!
— Não, não. As únicas coisas figurativas aqui são vocês dois, idiotas. — Morfeu liberta-me deles
e em seguida envolve minha cintura com um braço e rouba o narguilé da Lagarta com o outro. —
Agora, tomem seus lugares.
Ao ouvir isso, as peças animadas de xadrez descem com as outras pelo funil de água. Morfeu
flutua para cima, para cima, na direção do enorme candelabro na abóbada do teto — a única parte da
sala que ainda está estável. As lâmpadas são do nosso tamanho, e a altura estonteante me dá náuseas.
Passo os braços em volta do pescoço dele e enfio o rosto em seu peito macio enquanto ele nos
acomoda sobre a peça de metal. — Isso não está acontecendo — digo. Mas está, porque consigo
lembrar que aconteceu antes, anos atrás.
— Reúna sua coragem. Olhe para baixo. Seu show está prestes a começar.
Balanço a cabeça e cerro os olhos. — Estamos muito altos... Isso faz meu estômago dar um nó.
Ele ri e dá uma tragada no narguilé, jogando a fumaça sobre mim, saturando-me daquele cheiro
confortador. — É assim que você sabe que está viva, Alyssa. Os nós.
Antes que eu possa responder, uma batida alta me faz arriscar uma espiada.
O funil de água forma uma cortina, que se abre para revelar um palco. O quarto de Morfeu foi
transformado. As peças de xadrez vivas dominam a cena, seus corpos de um verde leitoso vívido
sobre um tabuleiro lustroso preto e prateado que se estende por todo o chão. Tudo está distribuído
em um grande círculo que lembra um picadeiro.
O marido da rainha, o rei da Corte Vermelha, está espreguiçado sobre um trono de veludo. Outra
mulher com vestimenta da realeza está de pé à sua direita, com laços carmim amarrados em cada um
dos dedos. Ela tem laços nos dedos dos pés também. A mulher fica tentando silenciar as fitas, como
se elas não parassem quietas. A Rainha Vermelha está na frente dos dois, presa com correntes. A
tribuna de jurados, que é na verdade uma jaula cheia de tigres com dentes pontiagudos e focas com
cabeça de bolha, está à direita. Guardas de cartas perfilam as paredes.
Sentada na cadeira de testemunhas está Alice, mexendo com a barra de seu vestido entalhado.
O Rábido Branco está atrás dela, com as antenas baixas e os ombros recolhidos, numa aparência
cansada e triste. Seu casaco e suas botas são do mesmo tom marmóreo de sua cabeça tosquiada e
brilhante. Uma estranha variedade de criaturas encontra-se sentada em arquibancadas de madeira e
petisca amendoim e pipoca. Até a Rainha Vermelha e seus cavaleiros élficos compareceram.
Uma criatura com cara de sapo está de pé atrás de um pódio, embora esteja vestida de modo mais
parecido com um domador do que com um juiz. Ela bate um martelo. — A Corte Vermelha está agora
em sessão! — Sua peruca emplumada se mexe. Só quando a criatura estica suas longas e finas pernas
é que percebo que é uma cegonha. Depois de alisar suas penas de jade, ela volta a se acomodar no
lugar e o juiz continua. — Rainha Vermelha, porque A Alice entrou em nosso mundo através da toca
do coelho, que fica na província Vermelha, e, porque a senhora falhou em capturá-la antes que ela
desencadeasse suas travessuras sobre todo o País das Maravilhas, a senhora foi acusada de séria
negligência e devastação por associação. Como se declara?
As asas da Rainha Vermelha pendem em suas costas. Ela olha para o rei e para a mulher com os
laços. — Eu declaro preocupação temporária causada por um coração partido. Meu marido me
largou para ficar com Grenadine... Eu estava muito aturdida com sua traição e não notei algo tão
insignificante como uma criança mortal entre nós.
Murmúrios explodem da tribuna do júri. Grenadine olha com remorso para os laços nos pés. O rei
fica inquieto no alto de suas almofadas de veludo.
— Quem deveria estar acorrentado é você — dispara a Rainha Vermelha para o marido. — Não
era suficiente que, antes de sua morte, meu pai tenha preferido ela a mim, uma pirralha amnésica que
nem carrega seu sangue? Mas sua traição é muito pior. Minha simplória meia-irmã não consegue se
lembrar em que dia estamos a menos que um de seus laços falantes lhe cochiche. Ela certamente não
consegue lembrar-se de quem ela deve amar. Você é responsável por cortejá-la e distrair-me de
meus deveres.
O juiz inclina-se sobre seu pódio, abraçando-o com suas mãos membranosas. — Talvez a senhora
devesse ser grata ao seu marido real por pedir que esta corte renuncie à sentença mais severa. Se
culpada a senhora for considerada, será exilada no deserto. É preferível a que perder a cabeça, eu
diria.
— E quanto àquela Alice? — A Rainha Vermelha lança um olhar corrosivo para a tribuna de
testemunhas. — E a sentença dela?
O juiz aponta o martelo para Alice. — Ela escolheu ler sua confissão escrita em troca de ser
enviada para casa com a promessa de nunca mais voltar e esquecer tudo o que viu aqui. — Ele faz
um sinal com a cabeça para a criança, pedindo que ela fique de pé.
Inclino-me para a frente para ver melhor, tão interessada no resultado que não mais me importo
com a altura em que estou, contando somente com o braço de Morfeu em torno de minha cintura para
manter-me ancorada ao candelabro.
Alice faz uma mesura e tira um pedaço de papel do peitilho do avental. Ela tosse duas vezes,
delicadamente, e lê em voz alta: — Talvez meu primeiro erro tenha sido quem escolhi para serem
meus amigos. Ou foram eles que me escolheram? O gato sorridente e a lagarta fumante... Ah, eles
urdiram planos tão bons!
Olho para Morfeu, que dá tragadas de fumaça e sorri com certo embaraço.
Abaixo de nós, o juiz agita o martelo, perturbando a cegonha que está sobre sua cabeça. Ela solta
um cacarejo e arrebata o martelo com seu bico. — Descrições dos planos, por favor! — pede o juiz,
num guincho, lutando com o pássaro.
Alice pigarreia e respira fundo. — Colocamos um ponto-final no chá da tarde, derramamos sopa
sobre a duquesa para fazê-la espirrar a fim de roubarmos suas luvas e leque, deflagramos um oceano
acidental e ajudamos um artesão faminto a enganar sua amiga morsa e roubar um bando de mariscos
muito faladores, obrigada.
Vários membros bivalves da plateia atiram pipocas na testemunha e berram a palavra “Infame!”
Alice se esquiva da chuva de grãos agachando-se atrás da cadeira. O juiz — que conseguiu salvar
seu martelo com a perda de sua peruca e de sua dignidade — acena para que ela fique de pé e ereta.
— Como você conseguiu se esconder no castelo da Rainha de Marfim?
— Eu não estava me escondendo, na verdade. O Gato de Cheshire e o Sr. Lagarta insistiram que eu
visitasse a Rainha de Marfim e pedisse que ela me enviasse para casa, pois ela é mais agradável do
que a Rainha Vermelha. — Alice volta um olhar penetrante na direção da Rainha Vermelha.
A rainha agrilhoada ri desdenhosamente, e suas correntes se mexem como se estivessem vivas,
quase agarrando o tornozelo de Alice antes de esta subir em sua cadeira.
Batendo o martelo, o juiz pede ordem. — O conselheiro real da Rainha Vermelha poderia dar um
passo para a frente e apertar suas correntes?
Rábido Branco adianta-se para pegar os elos de metal e mantê-los esticados.
— Continue — ordena o juiz.
Amassando suas mãos enluvadas, Alice desce da cadeira e recita o resto de sua confissão de
memória. — Marfim parecia alegre por ter convidados. Na verdade, ela gostava muito do Sr.
Lagarta, que é garboso, em sua maneira de contrair o corpo. Quando eu estava me preparando para
seguir os cavaleiros até o mais alto torreão do castelo, onde a porta para minha casa aguardava,
chegou um convite da corte da Rainha Vermelha, uma partida de croqué. Mas era uma armadilha para
que pudessem me aprisionar e me obrigar a fazer esta confissão no tribunal. — Ela faz mais uma
reverência. — Peço sinceras desculpas pelos problemas que causei. Posso ir para casa agora?
— Nunca voltará para casa, seu polipozinho canceroso! — grita a Rainha Vermelha.
Eu quase não entendo o que acontece a seguir. As mãos do Rábido movem-se mais depressa do
que um relâmpago, escorregando uma lâmina que, de modo mágico, corta os grilhões de metal da
Rainha Vermelha. Isso acontece tão depressa que ninguém mais nota até que a rainha abre suas asas e
agarra Alice pelos ombros, levantando-a no ar. A cegonha do juiz recolhe a lâmina do chão e segue a
Rainha Vermelha, que sai pela porta da corte levando Alice, junto com todos os outros.
No instante em que eles saem, pressiono Morfeu. — Siga-os! — ordeno.
— Siga-os você mesma — diz ele, que em seguida me solta. Eu grito, sobressaltada, em pleno ar,
meu estômago saindo pela garganta. Sinto uma comichão entre os ombros, como se alguma coisa
estivesse tentando sair; e desaparece logo depois. À distância de poucos centímetros do chão, dou
uma guinada e caio em minha cadeira, com a xícara de chá na mão. As peças de xadrez encontram-se
espalhadas sobre a mesa, como se aquela encenação nunca tivesse acontecido.
Não caio nessa.
Morfeu está sentado à minha frente, girando a peça de xadrez da Rainha Vermelha enquanto meu
estômago volta ao lugar.
— Como termina? — pergunto.
— Seu pesadelo sabe.
Coloco a figura de Alice sobre um quadrado preto. — A cegonha e a rainha lutaram suspensas no
ar. Alice escapou e veio procurar você.
— Mas eu não podia fazer absolutamente nada por ela porque minha metamorfose já havia
começado. Fiquei trancado naquele casulo por 75 anos.
— Então como é que Alice venceu?
Morfeu rola a estátua da Rainha Vermelha pelo tabuleiro, derrubando Alice. — Ela não venceu.
Como você sabe muito bem, sua linhagem foi amaldiçoada.
— E foi por isso que você me trouxe aqui.
Ele balança a cabeça, concordando. — Para libertar sua família e reabrir os portais que levam
para casa, você deve reparar todos os danos que fizeram com que a Rainha Vermelha fosse exilada e
perdesse a coroa: secar o mar, levar as luvas e o leque de volta para a duquesa, fazer as pazes com
os mariscos e com os convidados do chá da tarde. Só você pode quebrar os elos mágicos da
Vermelha.
Um silêncio pesado se segue, quebrado somente pelo som da cascata em torno da cama. Procuro a
figura da lagarta, mas a mão de Morfeu prende a minha. O calor atravessa sua luva e me penetra os
ossos.
Por um instante, vejo-o muito claramente como a criança provocadora que ele era quando
passávamos tempo juntos em meus sonhos. Eu o compreendo agora, por que ele recolhia corpos de
mariposas, por que suas asas representavam liberdade, algo que ele não tivera enquanto permaneceu
trancado dentro de seu casulo... Por que ele adorava voar, principalmente durante tempestades, por
que superar os relâmpagos lhe dava uma sensação de poder. Do mesmo modo, ele compreendia
minhas esquisitices: meu medo de altura, minha sede de segurança. Só que agora ele é atormentado,
sedutor e insondável. Um adulto completo com tanta bagagem quanto eu.
— É por isso que você está envolvido — murmuro, testando a hipótese. — Para aplacar sua
consciência da culpa de ter falhado com Alice.
Sibilando, ele levanta, numa comoção de asas e couro. Uma lufada de ar causada pelo movimento
faz esvoaçar meu cabelo. — Minha culpa pelo que aconteceu com Alice nunca será aplacada. — Ele
arrebata a figura do Gato de Cheshire e anda pelo tapete. Apesar de sua altura impressionante, ele
tem a graça de um cisne negro. — E não se iluda. Não sou assim tão altruísta.
— Conheço você muito bem para pensar o contrário. — Levanto uma sobrancelha, brindando com
minha xícara de chá.
Ele me lança um olhar rápido, quase sorrindo. — Na luta com a cegonha, a Vermelha conseguiu
pegar a lâmina. Eu estava inatingível em meu casulo, mas Chessie estava lá. Ele mergulhou para
salvar Alice antes que a Vermelha pudesse decapitá-la. Ele recebeu o golpe que era dirigido a ela.
— Morfeu equilibra a figura do gato na ponta de um dedo, colocando-a contra a luz. — Chessie
pertencia a uma estirpe rara: não parte espírito e parte carne, mas as duas ao mesmo tempo. Ele
podia sumir e reaparecer em pleno ar e assumir qualquer forma. Um ser assim é quase impossível de
matar. Quando a Vermelha o atingiu com a espada vorpal, a única lâmina que pode cortar qualquer
mágica no reino interior, ela fendeu sua mágica em duas. Cortado ao meio, mas ainda vivo.
— Então ele não morreu? — Coloco minha xícara de lado.
— Não exatamente. Sua cabeça rolou na direção dos arbustos onde Alice estava escondida. Ele
conseguiu pegar a espada vorpal na boca e cuspiu-a aos pés dela. A parte inferior de Chessie foi
capturada pela Rainha Vermelha e, num último ato de desafio, ela ofereceu-a ao seu animal de
estimação, o bandersnatch, antes de ser capturada e expulsa do reino.
Morfeu sacode a caixa que antes continha as peças de xadrez. Dela cai a maior figura de todas:
uma criatura grotesca com garras de dragão e cauda de ferrões. Sua boca aberta e dentes pontiagudos
fazem minha espinha se arrepiar. Quando eu era pequena, costumava esconder essa peça enquanto
brincávamos com as outras.
Morfeu joga o gato no ar e deixa que ele caia sonoramente na palma de sua mão, apertando-o entre
os dedos. — O que eu lhe ensinei sobre o bandersnatch? — pergunta ele, me testando.
— Ele é maior do que um caminhão. Engole a comida inteira para que a vítima se decomponha
lentamente no vazio escuro de sua barriga — uma morte que pode levar mais de um século para se
efetivar.
Aquela centelha de orgulho brilha novamente em mim. — Correto. Para Chessie, que não pode
morrer, é como estar exilado em uma ilha deserta, sem qualquer sol, lua nem estrelas. Nem vento e
nem água. Só a morte a sua volta. Lá dentro, metade dele ainda reside, presa e ansiando reunir-se
com sua cabeça.
Um lampejo de compaixão me toca o coração. — Você quer que eu ajude a libertar Chessie do
bandersnatch para que ele possa encontrar sua cabeça.
Morfeu vira-se para olhar para mim, com as asas pensas. — Tudo o que preciso é da espada
vorpal. Somente sua lâmina pode cortar o couro do bandersnatch. Alice escondeu a espada em um
lugar que ela sabia ser seguro. Em algum lugar tão ridículo e mundano que ninguém a procuraria lá.
— O olhar dele cai sobre as figuras à minha frente e eu pego um personagem com um chapéu
esquisito, que parece uma gaiola.
— O chá da tarde. O Chapeleiro Maluco está com ela — arrisco.
— Você esqueceu. Isso é estritamente um Carrolicismo — o nome que Lewis usou em seu conto de
ficção. Seu verdadeiro nome é Herman Chapelão. E não há nada de maluco nele. Ele é bem alegre, na
verdade, quando está acordado.
Tamborilo com o dedo na cabeça da escultura, esperando uma explicação.
— Alice deixou os convidados do chá sob um feitiço de sono — continua Morfeu. — Acorde-os e
eles lhe dirão onde está a espada. Você já secou o mar e fez as pazes com os mariscos. Um
convidado do banquete desta noite receberá as luvas e o leque em nome da duquesa. Depois disso,
consertar a situação dos convidados do chá será a única coisa ainda a fazer.
Parada diante da figura de Alice e pensativa, coloco a lagarta ao lado dela.
Morfeu volta para perto da mesa, solta o gato dentro da caixa de metal, então varre todos os outros
personagens para dentro dela. Parado diante de mim, ele estende a mão. — O que me diz, Alyssa?
Está disposta a me ajudar enquanto ajuda a si mesma? Um favor para um amigo de infância?
Quando eu e Jeb voltarmos para casa, posso dizer a Alison que o pesadelo finalmente terminou,
que nunca mais estaremos ligadas ao País das Maravilhas. Imaginar o sorriso dela reacende uma
chama em meu coração.
Respiro fundo, entrelaço meus dedos nos de Morfeu e o encaro. — Farei isso.
Ele levanta minha mão e aperta os lábios macios contra meus dedos. — Sempre soube que o faria.
— Ele sorri, com suas joias cintilando em um tom prateado e luminoso.
11
Linguardarte
Aguardo em um corredor frio e espelhado com uma mesa de vidro e cadeiras como companhia. Jeb
deve me encontrar aqui. Estou louca para vê-lo novamente, mas ao mesmo tempo estou apreensiva
quanto à reação que ele terá ao saber de minha decisão de ajudar Morfeu sem discutir isso com ele
antes.
Fecho os olhos, desorientada pelo movimento à minha volta. Espelhos perfilam cada centímetro do
teto e das paredes, até o chão. Figuras sombrias deslizam nos reflexos.
Em nosso mundo, os espelhos são feitos colocando-se uma camada de alumínio sobre um vidro
plano. Uma pessoa não pode ver nada além de seu reflexo. Aqui, posso ver sombras dentro deles,
como se elas estivessem imprensadas entre as camadas. Morfeu me disse que são espíritos de
mariposas. Isso me faz pensar nos insetos que matei em casa.
Aparentemente, no País das Maravilhas, todos — ou todas as coisas — possuem alma. O
cemitério é um lugar sagrado reverenciado por todos os intraterrenos. Ninguém pode pisar lá a não
ser as guardiãs do lugar: as irmãs Twid.
Nas mãos das gêmeas, os mortos são cultivados: semeados, regados e mantidos livres de ervas
daninhas, como um jardim virtual de fantasmas. Uma irmã nutre as almas — cantando para os recém-
chegados e mantendo o contentamento da flora espiritual. A outra irmã arranca os espíritos decaídos
que definharam e se tornaram amargos ou revoltados — algo a ver com aprisioná-los dentro de
outras formas para a eternidade.
As Irmãs Twid não estão muito satisfeitas com Morfeu neste momento porque ele se recusa a
enviar suas mariposas mortas a elas. Ele prefere soltá-las para voarem livres em algum lugar entre a
vida e a morte do que amarrá-las em uma prisão de terra. Então, Morfeu as esconde dentro de seus
espelhos.
Alguns podem considerar morbidez. Eu vejo um certo grau de ternura em seu esforço para
oferecer-lhes dignidade. A mesma ternura que vislumbrei em nosso passado, e antes, quando ele
cuidou dos meus ferimentos.
A marca de nascença que tenho em meu tornozelo é universal para as criaturas do País das
Maravilhas — chaves para seu mundo e um modo de curar uns aos outros —, além de ser uma parte
da maldição dos Liddell. Eu ainda não sei por quê, quando mais velha, Alice perdeu a marca. Nem
por que ela esqueceu o período em que habitou o mundo real, jurando que vivia em uma gaiola de
pássaro em vez de ter casado e tido uma família. Mas pelo menos uma coisa está clara: faço parte
deste reino até que consiga quebrar a maldição.
Botas pesadas ecoam pelo chão espelhado e eu olho para cima.
— Jeb! — Corro na direção dele. O chão é escorregadio e as botas que as fadas me deram
possuem pouca tração. Escorrego. Jeb larga a mochila, dá um pulo para a frente e me pega.
Ele me puxa para cima até nossas testas se tocarem e meus pés ficarem pendurados no ar. Nunca
deixo de ficar extasiada com a facilidade com que ele me levanta, como se eu não tivesse peso
nenhum.
Afago seu rosto recém-barbeado e seu piercing — inspirando seu cheiro, me assegurando de que
ele está bem.
— Ele tocou em você? Machucou você? — sussurra Jeb no silêncio.
— Não. Ele foi um cavalheiro.
Jeb franze a cara. — Cavalheiro, sei.
Dou um sorriso debochado, o que derrete sua seriedade e o faz sorrir. Ele me roda no ar. — Senti
sua falta — diz ele.
Enfio o queixo em seu ombro largo e o abraço forte. Meu corpo está sedento e bebe seu calor
como uma esponja. — Nunca mais me deixe, está bem? — Em qualquer outro momento, isso poderia
soar um tanto piegas. Mas neste, é o pedido mais sincero que já fiz na vida.
— Não planejo — sussurra ele, com a boca tão próxima que seu hálito roça a ponta de minha
orelha.
Quando saio do abraço, ele está observando as silhuetas que correm em torno de nós.
— Gossamer me contou sobre elas — explica ele. — Não acreditei. O cara é fanático por
mariposas.
Apoio meus antebraços em seus ombros, com os pés ainda balançando na altura das canelas dele.
— Você devia ver o quarto dele. Ele tem casinhas de vidro cheias de mariposas vivas. Ele as
mantém lá dentro até elas saírem dos casulos. Quando estão fortes o bastante, ele as liberta.
— Ele levou você para o quarto dele? — Uma nuvem negra cobre o rosto de Jeb. — Jura que ele
não tentou nada?
— Palavra de escoteiro.
Ele aperta a minha cintura, me fazendo cócegas. — Só que você nunca foi escoteira.
Contraio o corpo e sorrio. — Não aconteceu nada. — É mentira. Morfeu me impressionou muito,
mostrando-me um lado de mim mesma que mal posso acreditar que existe — e que não estou certa se
Jeb será capaz de aceitar. Mas talvez ele não precise saber sobre os parafusos soltos em minha
cabeça nem sobre meus poderes esquisitos. Talvez eu consiga esconder minhas tendências
amaldiçoadas até sairmos daqui e eu me curar.
Dedos trançados em volta do pescoço de Jeb, puxo seu pequeno rabo de cavalo. Para ajudar a nos
encaixarmos no banquete, vamos ambos fantasiados. Ele será o cavaleiro élfico, então as fadas
puxaram seu cabelo por sobre as orelhas para esconder as pontas redondas. Eu gosto assim. Sua
mandíbula forte e traços expressivos ficam mais aparentes.
— Achei que elas iriam dar-lhe um chapéu — caçoo.
— Que nada. Eles são exclusivamente para vermes com asas.
Dou risada e empurro os ombros de Jeb, uma permissão implícita para ele me colocar no chão.
Ele me pousa de pé. — Você está linda.
— Obrigada. — Eu não revelo que minhas roupas foram criação de Morfeu: uma túnica pêssego
estilo baby-doll sem mangas com sobreposições de babados que começam abaixo dos seios e vão até
o meio da coxa. Os babados têm acabamento de renda vermelha, que complementa o cinto vermelho
estilo sadomasoquista incrustado de cintilantes rubis que cinge minha cintura. Cinco robustos anéis
de prata decoram o cinto, combinando com a blusa cinza sob minha túnica. As mangas bufantes da
blusa cobrem meus braços até os pulsos, onde surgem luvas de renda vermelha sem dedos. Um
legging listrado em cinza e pêssego cobre minhas pernas feito aquelas bengalas doces e desaparece
dentro das botas de cano alto de veludo vermelho.
Todo esse conjunto é um esforço calculado para me fazer parecer selvagem e indomável, para que
os excêntricos convidados do jantar sejam mais receptivos comigo. Para esse fim, as fadas teceram
frutas vermelhas e flores nos dreadlocks por toda a minha cabeça e depois enfiaram o grampo de
cabelo dos tesouros de Alison encontrados na poltrona bem acima de minha têmpora esquerda. Por
alguma razão, Morfeu insistiu que eu o usasse.
Aponto para o uniforme de cavaleiro élfico de Jeb. — Eu já vi isso antes. Essa cruz representa a
elite dos elfos joalheiros. — As calças pretas envolvem suas pernas como jeans bem talhados. Há
uma corrente prateada que entra e sai por duas presilhas do cinto, formando a ilusão de cinco
cordões diferentes, e uma cruz feita de diamantes faiscantes na coxa esquerda. Percorro as joias com
os dedos. — Você não é só um cavaleiro... É um dos acompanhantes reais.
Jeb detém minha mão sobre sua coxa musculosa. Seus olhos ficam mais intensos, como quando nos
abraçamos no fundo do oceano.
Recolho minha mão e ele retesa o queixo.
Constrangida, concentro-me no resto de seu uniforme. A camisa tem mangas compridas e é feita de
um material aderente. É prateada, com listras pretas verticais de tecido semitransparente. Procuro
suas queimaduras de cigarro, ansiosa para vê-las, e noto que os poucos pelos de seu peito sumiram.
— Você raspou o peito?
Ele olha para as listras pretas. — Na verdade, não havia um espelho no meu aposento. Gossamer
raspou depois que tomei banho, quando fez a minha barba. Ela disse que elfos não têm pelos em
nenhum outro lugar além da cabeça.
Em nenhum lugar? Eu o imagino nu — Gossamer tocando seus músculos abdominais, entre outros
lugares. — Aquela fada viu você nu?
Ele pigarreia. — Não foi só ela. Chegou uma hora que tinha umas trinta em cima de mim.
Um surto de ciúme me toma. Meus punhos se fecham. — Trinta fadas tocaram seu corpo nu?
— Fique fria com relação às fadas, tá bom? Feijões-de-lima que voam não são minha praia. Agora
vem cá. Quero te mostrar uma coisa. Ele vira meu rosto para a parede espelhada e fica atrás de mim,
com o queixo apoiado no alto de minha cabeça, e levanta as mãos para os dois lados do meu rosto.
— Repare nos seus olhos.
Minha imagem olha de volta, transposta sobre as sombras de mariposas. Notei a maquiagem assim
que entrei no corredor. As fadas fizeram um trabalho incrível para que parecesse real. Sombra preta
cai dos olhos como listras de tigre debaixo de meus cílios inferiores. As linhas lembram as tatuagens
de Morfeu, só que em uma versão mais feminina.
— Você esteve assim o tempo todo. Eu notei quando saímos da toca do coelho. Achei que sua
maquiagem tinha manchado. Mas, depois do mar, você ainda estava com ela. Eu não liguei as coisas
até ver Morfeu sem máscara há alguns minutos. — Jeb faz uma pausa, e parece aborrecido. Ele
esfrega os polegares nas bordas dos desenhos negros. — Eles não desaparecem. E o brilho em toda a
sua pele? Não são restos de sal. Você está começando a se parecer com os meus desenhos de fadas,
de verdade.
Sentindo-me aturdida, enrosco os babados da minha túnica nos dedos. Isso explica por que o
octobenus achou que eu era intraterrena. — Por que você não disse nada?
— Nós estávamos muito ocupados com tudo aquilo acontecendo.
Volto-me para o meu reflexo. — Então, a maldição está ficando pior.
— Pior do que você pensa. — Jeb fica atrás de mim e passa as mãos por trás de meus ombros. —
Sua roupa tem fendas... Para as asas que vêm por aí?
Seus polegares calejados afagam a pele nua ao longo de minhas escápulas. Não consigo responder.
Pelo que vimos até agora, só alguns intraterrenos têm asas. A ideia de alguma coisa surgir de minha
pele me deixa tonta. Na verdade, pensar nas mudanças que já sofri é o bastante para me fazer sentir
como se eu estivesse rodando em um carrossel descontrolado.
A expressão carrancuda de Jeb se fixa sobre mim no reflexo. — Por que essa maldição só afeta as
mulheres de sua família?
— Alice era do sexo feminino — respondo, ainda passando por um turbilhão por causa da questão
das asas. — Só alguém do sexo feminino pode arrumar a bagunça que ela fez.
— Bagunça — diz Jeb, franzindo a cara ainda mais. Agarrando meus braços com delicadeza, ele
me vira e olha dentro dos meus olhos. — Quando eu estava com as fadas, Gossamer mencionou o que
você fez com o mar. Ela não chamou aquilo de arrumar a bagunça. Ela disse que foi um teste. E sabe
o que é mais estranho ainda? Ela está ressentida que você tenha conseguido... Que você esteja aqui.
Alguma coisa não está batendo. Não vamos fazer mais nada para ajudar o mariposão até que ele abra
o jogo conosco.
— Ele já me disse a verdade. Ele me disse os passos que tenho que percorrer. — Conto a Jeb o
que vi no quarto de Morfeu, embora não tenha coragem suficiente para compartilhar detalhes sobre
nosso momento de “mistura” e nem o show de marionetes do xadrez.
— Então, você simplesmente vai acreditar na palavra dele?
— Ele tem uma motivação nobre. Um amigo está em perigo.
— Pare de humanizar o sujeito, Al! — Jeb bate a mão na parede de espelhos. As sombras das
mariposas afastam-se, assustadas. — Ele não é do nosso mundo, está bem? E ele tem esse poder de
entrar na sua cabeça. Fiquei olhando para você e para ele na clareira... Você não pensa direito com
ele por perto.
A acusação reaviva minha raiva com relação a Londres. — Então é isso que você quer dizer? Que
eu não sou forte o bastante para pensar por mim mesma?
— É diferente. Olhe o que está acontecendo com você!
— Mas eu posso parar isso se fizer mais uma coisa. Só isso.
— Ah, é? Pelo que estou vendo, quanto mais você faz por ele, mas se parece com ele.
— Não. Você está errado. — Puxo uma de minhas tranças, desejando poder convencer a mim
mesma tão facilmente quanto declamo essas palavras. Desejando poder negar que, quanto mais tempo
fico aqui, mais fundo este lugar entra em meu sangue, ou que Morfeu é o torniquete que aperta as
minha veias e retorce.
Jeb cerra os dentes com tanta força que sua mandíbula estala. — Não vamos discutir por causa
disso, Al. É tudo o que ele quer. Não vou deixar que ele faça isso.
— Faça o quê?
Ele enrola o cabelo com que estou brincando em volta de seu pulso e me puxa para perto,
inclinando a cabeça de modo que nossas testas se toquem. — Se colocar entre nós.
Meu corpo inteiro fica mole e quente com a brusca possessividade em sua voz, mas ele não tem
esse direito. — Você esqueceu? Já existe alguém entre nós. Você vai mudar para Londres com ela.
— Fui um idiota. E pensar, por um segundo, que estar do outro lado do oceano me daria algum
controle.
Um nó ardente me aperta o peito e dou um passo para trás. — Controle? Sobre o quê? A minha
vida? Cai na real, esquecidinho: não sou mais a sua “irmãzinha”. Já cansei de ser colocada na
prateleira junto com todas as suas outras responsabilidades; em algum lugar entre cortar as unhas dos
pés e trocar as meias sujas. — Eu o empurro para o lado e ando na direção da cadeira de vidro,
determinada a esperar por Morfeu lá.
De repente, Jeb pega uma das argolas de meu cinto e me rodopia. Em um movimento suave, ele me
coloca sobre a mesa estreita em forma de semicírculo. Minha pele treme sob seu toque quando ele
me empurra contra a parede e enfia os quadris entre minhas coxas. Estamos nivelados, cara a cara. A
sensação de agitação me toma a mente — e, na sombra de meu lado sombrio, uma descarga de
satisfação me sobe, uma excitação perversa de saber que posso atiçar as emoções dele até essa
reação visceral.
Firmo as mãos contra seus ombros para manter um espaço entre nós, mas é pura encenação. Meu
blefe perde força e torna-se morno entusiasmo no instante em que ele pega meus pulsos e os puxa
para baixo, aproximando-se ainda mais, de modo que nossos narizes quase se tocam.
— Cai na real você — rebate ele, com o hálito feito um jato quente na sala fria. — Eu sei que
você não é mais uma menina. Acha que sou cego? — Seus dedos se entrelaçam nos meus, prendendo
meus braços contra os espelhos frios e lisos, de modo que nossos corações batem um contra o outro.
— E a esquecida aqui é você. Porque não há nada fraternal no que você me faz sentir.
Minha mente se fecha. Eu devo ter engolido cada espírito de mariposa daqui até o fim do mundo.
Posso jurar que elas estão flanando no meu estômago.
Jeb solta meus dedos e pega meu rosto em suas mãos, quase sem me tocar, como se eu fosse
quebradiça. — Eu estou perdendo o controle sobre mim mesmo. Centenas de esboços e mesmo assim
não me canso do seu rosto. — Ele passa o polegar sobre a covinha em meu queixo. — Seu pescoço.
— A palma de sua mão se move pela minha garganta. — Sua... — As duas mãos encontram a minha
cintura e me arrastam para fora da mesa para que fiquemos de pé um diante do outro. — Não vou
perder mais um instante desenhando você — sussurra ele nos meus lábios — quando posso tocá-la.
— Ele pressiona sua boca contra a minha.
Uma fagulha, quente e elétrica, pula entre nós. Surpresa e excitação me transpassam, iluminada
pelo calor e pelo sabor dele. Seis anos de desejos secretos. Seis anos negando que ele é a órbita do
meu mundo.
E pensar que ele também viveu fugindo de mim.
Desorientada pela incredulidade e pelo prazer, me fecho. Meus braços pendem frouxos ao lado do
corpo, os punhos abrindo e fechando. A boca de Jeb vibra contra a minha em um gemido. Ele coloca
minhas mãos em volta de seu pescoço, aproximando-se mais.
O sabor dele é incrível — como chocolate com sal. Familiar, embora novo e excitante. Aperto os
dedos em seu pescoço. Os sentimentos que eu reprimia se desenrolam e batem dentro de mim como
enguias elétricas, me dando choques e trazendo-me à vida. Cada receptor sensorial vibra,
hiperligado. Eu o saboreio, o inalo, o sinto.
Só ele.
Meus lábios seguem os dele, pulsando lentos, macios e quentes. Seu piercing arranha meu queixo,
um contrapeso áspero e sensual.
Suas mãos guiam meu queixo, me mostrando como inclinar o rosto. Ele me incita a abrir os lábios
com os dele. Minha língua percorre seus dentes, encontrando aquele incisivo torto antes que sua
língua encontre a minha.
Talvez eu esteja respirando muito forte. Talvez eu esteja babando demais. Talvez eu não chegue
aos pés das outras garotas com quem ele esteve. Mas não importa, porque, de todas as coisas que já
vivi nesta jornada — encolher e crescer, fadas voadoras, peças de xadrez com vida —, nenhuma é
mais mágica do que este momento.
Seus beijos cedem e ele começa a esfregar o nariz pelo meu rosto e pescoço, carinhoso e pungente.
— Al — sussurra. — Seu sabor é tão doce... como madressilva.
— Não — murmuro, extasiada.
Ele se afasta com os olhos sérios e sombrios. — Quer que eu pare?
— Não. — Eu tantas vezes adormeci rezando para que você me olhasse desse jeito. Me tocasse
desse jeito. — Não parta meu coração.
Sombras de mariposas flutuam sobre ele no teto espelhado, me distraindo da seriedade de sua
expressão. — Eu arrancaria o meu primeiro.
Acredito nele. Ficando na ponta dos pés, aperto seu rabo de cavalo. Desta vez, eu o beijo. Ele
reage com um frêmito, os dedos me penetrando os quadris. Deslizo as mãos enluvadas para baixo a
fim de encontrar seu peito, em busca das cicatrizes. Parando nas correntes em sua cintura, eu as
seguro com força até o metal me ferir os dedos, depois nos coloco contra a parede. A friagem do
espelho me penetra as escápulas, mas seu corpo perfeito contra o meu faz o meu sangue fervilhar, me
consumindo.
Estamos os dois tão envolvidos que nenhum de nós ouve os passos até que um grunhido nos
separa. Viramos e encontramos Morfeu ali parado, com ódio suficiente em seus olhos escuros para
mandar o diabo para o céu.
Jeb recolhe os dedos dos anéis em meu cinto, mas mantém uma mão nas minhas costas. Eu toco
meus lábios; eles vibram e estão sedentos, ansiando por mais.
— Ora, ora. Mas que cena acolhedora! — A voz de Morfeu não está fluida desta vez. Ela arranha
feito pregos enferrujados me tocando os tímpanos. Ele arranca suas luvas e bate-as contra a palma da
mão, as asas caídas e arrastando no chão, como um manto. — Talvez você possa devolver o batom a
Alyssa. Não temos tempo de encontrar outro antes do jantar.
Jeb limpa meu brilho labial de sua boca. Eu lambo os lábios, atingida por uma inexplicável onda
de culpa.
O acalanto de Morfeu toca suavemente em meu pensamento, melancólico e seco. As palavras da
canção parecem ter sido alteradas para se adequar ao que ele sente:
Vermelha e pêssego, a florzinha,
Atraindo meninos com sua linda cabecinha;
Provoque, jogue, seja dengosa e esperta,
Pois um dia o magoará, fique certa.
O acalanto fica mais amargo e alcança notas estridentes em meus ouvidos, fazendo-me retrair.
Com um grunhido que vem do fundo do peito, Morfeu vira-se para um espelho e escova suas
roupas com as luvas. Ele está usando uma camisa branca com babados sob um casaco vermelho de
brocados que balança na altura das coxas. Ele é transpassado e tem botões de metal nas duas lapelas.
Suas calças lembram leggings — veludo amassado vermelho. Botas de cadarço pretas que vão até a
altura da canela. Ele poderia ser um Romeu saído diretamente da peça de Shakespeare, não fosse o
cabelo azul e as asas.
Morfeu abre toda a envergadura das asas em seu completo esplendor. As joias nas pontas dos
desenhos em seus olhos faíscam com sua irritação, de vermelho a verde. — Você não sabe, cavaleiro
élfico — ele se vira para nós — que é muito desfavorável para um guarda fazer uma proposta à sua
inocente protegida?
Eu franzo a cara. E por acaso eu tenho a palavra puritana estampada na testa? — Você não sabe
nada sobre mim.
Morfeu torce a boca num sorriso irônico. — Talvez você estivesse somente fingindo, então?
Ficando com as bochechas coradas feito um pêssego imaculado?
Jeb me arrasta para atrás de si. — Ela não vai falar sobre isso com você.
Morfeu bufa. — Um pouco tarde para cavalheirismos. Se alguém tivesse visto essa demonstração,
sua máscara de cavaleiro teria terminado antes mesmo de começar. Você se esqueceu de informar a
ele qual é a primeira ordem de um cavaleiro, queridinha? Manter as mãos e as emoções sob
controle? — A atenção de Morfeu cai sobre seu ombro direito. Gossamer está espiando por baixo de
seu cabelo. Ela e Jeb trocam olhares.
O olhar de Morfeu volta-se para mim, cortante feito lâminas de ônix. Tudo que eu quero é me
deleitar com a lembrança do meu primeiro beijo. Em vez disso, estou me culpando por ter traído um
sujeito do reino interior que eu não via há anos, e, por alguma razão, a ideia de magoá-lo é
insuportável.
Jeb retesa a postura. — Mudança de planos — afirma ele. — A Al não vai mais ajudar você com
esse joguinho, seja qual for. Você vai nos mandar de volta. Agora.
Morfeu levanta um lado da boca, desdenhando. Ele se dirige a Gossamer mais uma vez enquanto
ainda olha para mim. — Parece que você estava errada. Você me disse que o mortal não
representava uma ameaça. Talvez tenha subestimado o poder de sedução de nossa engenhosa Alyssa.
Gossamer observa seus próprios pés pequeninos. Suas asas batem devagar, como as de uma
borboleta em repouso. — Achei que ele preferisse alguém...
— Shhh! Não pode revelar esse segredo! — grita Morfeu. O volume de sua voz faz Gossamer cair
de seu poleiro. Ela flutua no ar com as mãos tampando as orelhas pontudas.
Morfeu leva um dedo à boca. — Leia meus lábios, fadinha tagarela. Pegue. A. Maldita. Caixa. Já
é hora de mostrar à nossa donzela e ao seu soldadinho de brinquedo que tipo de boas-vindas eles
receberão se derem as costas ao seu único aliado.
Gossamer chispa para o corredor.
— E traga-me meu Chapéu da Lisonja! — Morfeu grita para ela. Seu comando ainda ecoa no ar
quando ele dá uma volta sobre o calcanhar e se vira para nos observar. Pretensioso, ele veste as
luvas. — Há um problema com o seu pedido, pseudoelfo. Não posso simplesmente mandá-los de
volta. E Alyssa sabe disso.
Jeb vira a cabeça para trás com olhar inquisidor.
— Nossa! — Morfeu bate a palma da mão no rosto, como se estivesse perplexo. — Vocês
estavam ocupados demais para falar de algo pertinente? Ou talvez nossa inocente donzela estivesse
se sentindo culpada pelo dinheiro que ela “tomou emprestado” da bolsa da sua outra namorada, e
você, sendo um nobre cavaleiro, decidiu confortá-la.
Jeb vira para mim. — Espere... Aquele dinheiro no estojo de lápis. Tae realmente deixou a bolsa
na loja? Você roubou o dinheiro dela.
Morfeu inclina-se entre nós. — Bem, de que outra maneira Alyssa iria para Londres me procurar?
O olhar de Jeb fica imóvel, repleto de acusação. — Não acredito que você mentiu na minha cara.
Você roubou o dinheiro para comprar um passaporte falso e planejava ir para Londres.
— As duas coisas — diz Morfeu em tom provocativo, agora atrás de mim. — Mentirosa e ladra.
Aquele pedestal está escorregadio, não está, queridinha?
Dou-lhe uma cotovelada tão forte que suas asas farfalham. — Eu fiz o que tinha que ser feito para
ajudar Alison — grito para Jeb, ignorando o sorriso convencido de Morfeu, que passa por mim. —
Eu só tomei emprestado. Vou devolver.
Morfeu para ao lado de Jeb. — Nisso ela está certa. A motivação sempre justifica o crime. É a lei
de nossa terra.
— Ouviu isso? — dispara Jeb, me trespassando com o desdém em sua voz. — A baratinha local te
deu o selo de aprovação. E você ainda se pergunta por que não posso confiar que você ande por aí
sozinha.
Uma pequena fogueira queima na base da minha garganta, uma necessidade irritante de me
justificar que me invade feito ácido. — Eu tinha um plano.
— Ah, grande plano. — Jeb faz um gesto mostrando a sala à nossa volta.
— Eu não sabia que seria assim, Jeb!
Antes que Jeb possa responder, Morfeu se interpõe entre nós, agarrando cada um pelo ombro. —
Me desculpem, pombinhos — diz ele, recitando. — Mas, por mais que eu esteja adorando, essa
briguinha corre o risco de ofuscar minha grande revelação.
Ele aponta para a porta, onde Gossamer aguarda com outras trinta fadas. Cinco delas carregam
uma cartola vermelha com uma larga faixa preta ostentando uma pluma de pavão. Um cordão de
corpos iridescentes de mariposas azuis decora a aba, feito uma guirlanda.
As outras fadas trazem uma sacola preta pesada demais para ser erguida, então elas a arrastam
pelo chão.
— Todos os convidados já chegaram, mestre — avisa Gossamer, em um trinado. Ela e suas
companheiras depositam a cartola no alto da cabeça de Morfeu enquanto as outras deixam a sacola
ao lado de nossa mochila.
— Sirva os aperitivos e peça à harpa que toque alguma coisa. — Morfeu ajusta o ângulo do
chapéu. As mariposas mortas tremem com o movimento, como se lutassem para escapar. — Não
demoraremos.
Gossamer aquiesce e segue as outras, olhando para trás mais uma vez antes de adentrar o corredor
ao lado.
Morfeu pega a sacola. Ao caminhar na direção da mesa de vidro, suas asas acetinadas roçam
minha bota esquerda. Uma vibração penetra pela minha marca de nascença e sobe pela canela, indo
parar na minha coxa, quente e excitante. Fazendo uma careta, escorrego a perna para trás e dou um
tapa na bota para aliviar a sensação. Jeb me observa com olhar desaprovador.
Morfeu abre a sacola e vemos uma caixa de chapéu alta e prateada decorada com veludo branco.
Nunca vi nada assim, nem mesmo nos meus sonhos. A curiosidade me atrai até a mesa.
Morfeu indica a cadeira, desempenhando mais uma vez o papel de anfitrião cavalheiro.
— Vou ficar de pé — murmuro. Gostaria de deixar seus olhos negros ainda mais negros por ter
provocado minha briga com Jeb só para se vingar do beijo. Mas estou estranhamente intrigada que
ele se importe o suficiente para ter ciúmes, é verdade.
Jeb se acomoda atrás de mim e aperta meus ombros — ainda meu protetor, mesmo quando está
bravo. Recosto-me em seu corpo quente, em gratidão.
Morfeu lança um olhar desgostoso para nós e depois arrasta a caixa para o centro da mesa. Na
verdade, ela é feita de peltre. Rosas de veludo branco cobrem os lados, e entalhes se enrodilham no
alto da tampa, em alguma língua arcaica. Quanto mais eu olho para as palavras, mais legíveis elas se
tornam. Será mais uma manifestação da maldição dos Liddell, que esta língua me venha
naturalmente?
— Hora das apresentações — diz Morfeu, abrindo a tampa um segundo antes que eu possa
compreender a primeira sentença.
Um fluido escuro e oleoso se move dentro da caixa. Uma folha de vidro sobre o topo mantém o
líquido lá dentro. Morfeu dá uma sacudidela no conteúdo e um objeto esbranquiçado vem à tona.
Ele me lembra uma Bola 8 Mágica que vi uma vez em um bazar. A bola de plástico preta continha
uma janela. Um fluido azul preenchia o interior, e um dado branco emergia até a janela, marcado com
frases em cada um dos lados. Você só tinha que fazer uma pergunta para a bola, rodá-la nas mãos e
depois virá-la para cima. Sua resposta aparecia na janela escrita no dado... E ia de bem provável até
pergunte novamente depois.
Só que este objeto flutuante é quase do tamanho de um melão e tem formato oval. Fios grossos e
esbranquiçados rodopiam lá dentro. Morfeu agita novamente a caixa. O globo gira e revela um rosto.
É uma cabeça!
Com um ganido, controlo a bile que me sobe até a garganta.
Jeb solta um palavrão e tenta me virar para ele, mas não consigo deixar de olhar para ela. O
líquido deve ter algum tipo de formol. Por que Morfeu teria uma cabeça conservada em uma caixa de
peltre?
— Acorde, minha bela — sussurra Morfeu, com suavidade forçada. Eu observo, mortificada, ele
bater levemente no vidro, percorrendo os cílios fechados e cristalizados daquele rosto. Quando os
olhos se abrem, quase caio para trás.
A coisa está viva.
Percebo que conheço aquela imagem, da encenação com as peças de xadrez. É a Rainha de
Marfim, ainda mais linda do que sua cópia em jade, delicada e alva como a luz da lua. Marcas
parecidas com tatuagem perfilam as duas têmporas, em uma rede de veias, como se asas de libélulas
tivessem sido transferidas para um carimbo e depois para a pele. Seus olhos são de um azul tão claro
que quase não têm cor; longos cílios se curvam para cima a cada piscada. Eles são iguais a suas
sobrancelhas, prateados e cristalinos, como se fossem revestidos de gelo. Nos contornos externos,
duas linhas pretas mergulham até as maçãs do rosto e terminam em forma de lágrima; é como se ela
chorasse tinta. Lábios de um rosa pálido — curvos e belos como um coração — abrem-se num
sorriso adorador quando seu olhar cai sobre Morfeu. Ela tenta falar.
Morfeu se inclina, passando carinhosamente a mão enluvada sobre seu rosto encerrado. Ela tenta
falar mais uma vez, mas não pode ser ouvida através do líquido e do vidro.
Jeb e eu ficamos ali parados, presos em nosso próprio silêncio.
Morfeu quebra a quietude. — Esta é uma caixa linguardarte. Ela pode conter um ser inteiro em seu
interior, embora só o rosto apareça. Você já ouviu a frase “Cortem-lhe as cabeças”, do livro que
carrega?
Olho para as minhas mãos enluvadas, pensando em minhas cicatrizes. O livro não é o único lugar
em que vi essas palavras, e Morfeu sabe disso. Seria isso que Alison quis dizer quando mencionou
que não queria que eu perdesse a cabeça?
— Bem, esta é a origem dessa frase — termina Morfeu. — A pequena Alice a tomou muito
literalmente. Isso costumava ser uma punição comum aqui no País das Maravilhas. Mas agora é
considerada uma barbárie. É pior do que qualquer prisão, pois seu ocupante pode ser visto, mas não
ouvido. Sua fala fica trancada aqui.
A caixa treme sob as mãos de Morfeu. A expressão da rainha muda de adoradora a desesperada.
Ela se debate com força, e bolhas chegam à superfície. Seu cabelo enrodilha-se feito plantas
marinhas albinas. Morfeu envolve a caixa nos braços numa tentativa de impedir que caia da mesa.
Quando sua boca se estica em um grito mudo, ele fecha a tampa. O rosto de Morfeu fica lívido e ele
guarda a caixa na sacola antes que eu possa olhar a inscrição novamente.
Esticando as mangas por sobre as luvas com dedos trêmulos, ele suspira. — Eu não queria
perturbá-la. Ela fica em paz quando está sozinha. Mas, se não for libertada logo, todas as suas
lembranças se perderão para sempre.
— Você se importa com ela — digo com um inesperado quê de inveja. Nas minhas lembranças há
muito perdidas de quando éramos pequenos, só havia nós dois. Nós nos entendíamos em todos os
níveis. Morfeu me fazia sentir adorada, especial, importante. Nunca imaginei que ele pudesse fazer o
mesmo por outra pessoa quando crescesse e se tornasse um homem. — Morfeu, o que ela representa
para você?
Ele não responde. Não em voz alta, pelo menos. Sua expressão é nebulosa e perturbada, e as joias
em torno de seus olhos mudam de prateadas para pretas, como estrelas perscrutando o céu em uma
noite de tempestade. A confissão de Alice no tribunal me vem à mente. “Marfim, na verdade,
gostava muito do Sr. Lagarta.” Julgando pelo modo como Morfeu olhou para a rainha agora, por
como ela o olhou, ele voltou ao castelo depois de sua metamorfose.
Imagino seus dedos elegantes correndo pela pele dela, seus lábios macios junto aos dela. Aquela
pontada de inveja evolui para algo muito mais feio — uma cobiçosa mudança de emoção que não
consigo nem nomear. O que há de errado comigo? Por que eu me importaria com a vida amorosa de
Morfeu, quando finalmente beijei Jeb depois de tantos anos?
As asas de Morfeu se estendem e voltam a fechar. A obscuridade que permeia seus traços dá lugar
à raiva reprimida. — Neste reino, os espelhos são portas. Mas o corredor no qual estamos leva
somente a outras partes do País das Maravilhas. As portas que levam ao seu mundo estão dentro dos
castelos Branco e Vermelho e estão ligadas às rainhas. O portal da Rainha de Marfim está congelado
por causa do estado dela e permanecerá assim até que ela seja libertada pela pessoa que a colocou
nesta caixa. Isso nos deixa somente o portal da Rainha Vermelha. Creio que vocês já conheceram o
Rábido Branco.
Engulo seco e faço um sinal afirmativo com a cabeça.
— Então sabem como serão bem recebidos na província Vermelha. Pisem lá e poderão terminar
em uma caixa igual a esta.
Uma imagem minha e de Jeb trancados em meio a um líquido escuro me passa pela cabeça. Jeb
deve ter sentido o meu arrepio, porque apertou mais forte os meus ombros. — E quem colocou a
Rainha de Marfim aí dentro? — pergunta ele.
Morfeu tira o chapéu e o coloca ao lado da sacola, deixando seu cabelo um emaranhado azul
brilhante. — Depois que a Rainha Vermelha foi exilada para a floresta, nunca mais foi vista. Sua
meia-irmã, Grenadine, desposou o rei e tornou-se rainha. Uma mulher por demais negligente para
ostentar uma coroa. E agora o rei quer dar-lhe duas. — Morfeu fisga uma tiara de diamantes
fulgurantes na sacola. — Tenho um espião no castelo Vermelho. Quando a Corte Branca veio até mim
trazendo a notícia do destino de Marfim, há algumas semanas, enviei ordens para que meu contato
roubasse a caixa linguardarte. Estou abrigando Marfim aqui, junto com sua coroa, para mantê-las a
salvo de Grenadine e do Rei Vermelho. Se eles controlarem o portal Vermelho e o Branco, vocês
nunca voltarão para casa. — Ele volta a guardar a tiara. — Tudo será resolvido quando Alyssa
encontrar a espada vorpal. Ela é a arma mais poderosa do País das Maravilhas. Posso usá-la para
forçá-los a libertar a Marfim. O portal dela será então aberto a vocês.
Jeb olha diretamente para Morfeu. — Deixe-me ver se entendi direito. Você nos atraiu para cá
com a promessa de salvar a mãe de Ali, sabendo o tempo todo que não teríamos como voltar para
casa antes de libertarmos sua namorada esquisita.
Morfeu levanta um dedo. — Como estamos esclarecendo os fatos, não devemos esquecer que você
nunca foi convidado, para começo de conversa. Se isso for demais para sua delicada constituição,
escória mortal, poderá permanecer trancado em segurança no meu quarto de hóspedes até que tudo
termine.
— Eu vou aonde a Al vai, insetão. E só para seu conhecimento, se alguma coisa acontecer com
ela, vou espetar você pelas asas numa prancha de cortiça e usá-lo para treinar dardos.
O confronto entre Jeb e Morfeu é só um ruído de fundo. Estou aqui para quebrar a maldição por
Alison — só isso importa.
Só que eu nunca deveria ter metido Jeb nisso. Se eu pudesse voltar no tempo...
Algo que as flores zumbis disseram me cutuca a memória. Algo sobre o tempo andando para trás
no País das Maravilhas. O que elas queriam dizer com isso? Obviamente, não é uma verdade literal.
O tempo tem andado para a frente desde a visita de Alice, ou as coisas não estariam neste estado.
Um sentimento de urgência me arrebata. Alison irá para o eletrochoque na segunda-feira. —
Preciso chegar nesse chá da tarde e acordar os convidados.
Jeb olha para mim. — E como vai fazer isso? Dando um beijo mágico no seu chapeleiro de meia-
tigela?
Morfeu coloca o chapéu na cabeça e o inclina. — Meia-tigela? As habilidades de Herman
Chapelão são excepcionais. Ninguém faz chapéus como ele. E quanto a dar um beijo para acordá-lo?
Conto de fadas errado, Príncipe Encantado. Mas eu lhe asseguro — Morfeu roça o polegar na minha
têmpora —, nossa queridinha aqui vai nos brindar com um ”viveram felizes para sempre”.
Jeb agarra o pulso de Morfeu no ar. Seus olhares se encontram.
— Sem tocar — Jeb rosna.
Morfeu dá um puxão e liberta a mão. — Nossos convidados sabem por que Alyssa está aqui.
Como eles sentem falta de suas excursões ao reino humano, estão dispostos a recebê-la na esperança
de poderem voltar a ter acesso ao portal branco. Mas, se eles perceberem em você um estranho que
chegou sem ser convidado, não serão tão amáveis. Para a sua própria preservação, você deve ser
convincente como um cavaleiro élfico. Estes têm temperamento estável e imparcial. É hora de fingir
que possui essas virtudes.
Sinto a tensão no ar enquanto Jeb luta para conter sua irritação. Os dois se enfrentam, encarando-
se.
Meto um braço entre eles. — Não temos que ir ao banquete?
Franzindo a testa, Morfeu tira as luvas brancas de Alice de seu casaco. A grama e a sujeira foram
lavadas. — Vamos precisar do leque de renda. — Ele dirige o comando a Jeb, que se detém como se
fosse dar-lhe um soco. Agarro o seu cotovelo — um apelo silencioso.
Jeb segue pelo corredor a fim de pegar a mochila.
Morfeu e eu analisamos um ao outro num silêncio perturbador. Não consigo decidir o que me
perturba mais: meus traços intraterrenos cada vez mais evidentes... A urgência por causa do
tratamento de Alison... A caixa linguardarte... Por que Morfeu parece se importar que eu beije Jeb se
está envolvido com outra pessoa... Ou, pior ainda, por que me perturba saber de seu amor pela
Rainha de Marfim.
Os pensamentos se espalham à minha volta feito vidro quebrado quando Jeb retorna.
Morfeu enfia o leque em sua lapela junto com as luvas. — Deixem a bagagem aqui. Se algo sair
errado durante o jantar, venham imediatamente para este corredor. Ele é isolado... Praticamente
impossível de encontrar a menos que se conheça a entrada secreta. Gossamer providenciará que
vocês sejam enviados para o chá caso tenhamos convidados inesperados.
— Convidados inesperados? — pergunto.
— Convidados com intenção maliciosa ou assassina. Você é, afinal, uma fugitiva da Corte
Vermelha. — Morfeu esfrega as mãos como se apreciasse a ideia de confusão. — Estou faminto.
Vamos ao banquete.
12
O banquete
das bestas
Listras brancas e pretas cobrem as paredes da sala de jantar, que não possui janelas. Não consigo
definir com precisão onde terminam as paredes e começa o chão ou o teto.
É quase tão desorientador quanto os espíritos de mariposas que vi há pouco. Até a comprida mesa
de jantar e as cadeiras da sala são pintadas de modo a combinar e criar um efeito de camuflagem. Os
convidados parecem estar flutuando no lugar sobre um pano de fundo listrado. Sinto-me perdida, mas
estranhamente em casa, como uma pulga que decidiu residir em uma zebra.
Um candelabro gigante instalado no teto abobadado ilumina os arredores com faixas de luz
dançante. Atravesso a soleira com Morfeu ao meu lado direito, minha mão curvada sobre a sua. Jeb
está dois passos atrás, à minha esquerda. No código élfico, é indecoroso para um cavaleiro ter
qualquer interação com sua protegida, exceto para proteger sua vida, caso seja necessário. Não
podemos nos tocar, não podemos trocar olhares, não podemos nem nos dirigir a palavra, ou nosso
disfarce cairá por terra.
— Sua atenção, por favor. — Morfeu fala aos convidados. Gossamer espia por debaixo de seu
cabelo novamente, e a harpa que toca sozinha emudece, junto com o tagarelar dos convidados. — A
Senhorita Alyssa, do Outro Reino. — Ele se vira para mim e estende meu braço. — Estes são os
solitários de nossa espécie, nascidos na Corte Vermelha ou na Branca. Nós, os selvagens e rudes do
País das Maravilhas, lhe damos as boas-vindas ao Banquete das Bestas.
Minha mão aperta a dele enquanto os convidados olham fixamente para mim, com comida
pingando de seus focinhos.
Reunida em volta da longa mesa está uma mixórdia de criaturas, algumas vestidas, outras nuas.
Embora variem em tamanho e gênero, elas são todas mais bestiais do que humanoides. Uma parece
um ouriço, com espinhos e tudo, só que tem a cara de um pardal. Ela deve ser tímida, porque se
enrola em uma bola quando entramos, e depois quica para baixo da mesa. Uma mulher cor-de-rosa
com pescoço do comprimento de um flamingo abaixa-se e cutuca o ouriço com a cabeça, mandando a
bola de debaixo da mesa para o outro lado da sala.
Há mais criaturas: algumas com asas; algumas são parte sapo e parte planta, com trepadeiras
saindo de sua pele; outras são carecas como focas, com corpos de primatas e cabeças lanudas de
carneiros.
A única coisa que todos têm em comum é o interesse por mim. Sou o ponto focal de mais de
cinquenta pares de olhos.
Alguns murmúrios quebram o silêncio.
— É ela...
— É igualzinha, sim.
— Ouvi dizer que ela secou o mar com uma esponja. Uma esponja! Astuta e criativa.
Todos eles sabem sobre minha relação com Alice e o que vim fazer aqui. Potencial para um épico
fracasso.
Meu nervoso se junta ao fedor de comida, pelos de animais e almíscar. Tudo na sala gira. Jeb está
atrás de mim. Eu sei que, se eu desmaiar, ele irá me pegar. Também sei que, se desmaiar, estragarei
tudo. Tenho que ficar forte para Alison. Então, me recomponho e meu olhar passa de uma cara
estranha para outra, curiosa para saber qual criatura veio coletar o leque e as luvas em nome da
duquesa.
Morfeu me conduz até a mesa e puxa uma cadeira à direita da sua, à cabeceira. Há um enorme
malho apoiado ao lado da perna da mesa, e um debaixo de cada cadeira de nossa fileira. Ele me
acomoda ao lado de uma criaturinha crespa que parece um furão albino usando um capacete de
beisebol preto na cabeça, embora seus olhos serpentinos e língua bifurcada a privem de qualquer
graça.
Jeb assume seu lugar atrás de mim, fora de alcance. Morfeu fica de pé ao lado de sua cadeira e faz
uma reverência com o chapéu para os convidados, asas pretas arqueadas. — Me desculpem pelo
atraso. Mas, olhando o lado bom, nosso anjo vingador finalmente chegou. Então, que comece a
comemoração!
Depois de uma salva de palmas de nossos convidados, Morfeu passa seu chapéu para Gossamer e
várias outras fadas. Elas o penduram no braço da cadeira enquanto Morfeu se senta, dobrando as
asas sobre as costas feito um manto. Gossamer se aninha em seu ombro e todos os outros voltam a se
acomodar, com um ranger de madeira e o farfalhar de pelos e tecidos. O falatório recomeça, junto
com os ruídos de goladas, garfadas e sorvos.
— Prove um pouquinho, querida. — Morfeu aponta para o meu prato. Em seguida, vira-se para ter
uma conversa animada com um animal verde parecido com um porco que está sentado à sua
esquerda, na minha frente. O porco está vestindo um terno cinza com listras e punhos de pele. Suas
mangas são compridas, mas mal cobrem suas garras de lagosta. Ele sorri, e eu recuo ao ver seus
dentes — pretos e redondos como grãos de pimenta.
No meu prato, uma porção de peixinhos dourados no centro, arfando.
— Pisca? — o furão ao meu lado diz com voz de flauta. Ele aponta o dedo com garras para os
peixes.
— Temos que comer os peixes crus? — pergunto a ele. — Nunca fui muito fã de sushi.
— Sue-she? — pergunta ele.
— Deixa pra lá. — Meu olhar passa dos peixes para ele, agradecida pela distração. — Então seu
nome é Pisca?
Ele inclina a cabeça, o capacete brilhante cintilando conforme ele aponta para os esqueletos de
peixes em seu prato. — Pisca.
Nauseada, olho novamente para meu próprio jantar pululante.
Seus olhos de peixe saltam das órbitas, olhando diretamente para mim. Pena e repulsa viram meu
estômago. Não consigo nem imaginar minhas enguias de estimação fora da água e incapazes de
respirar. Será que as mariposas e insetos que uso nos mosaicos sofrem assim quando morrem? Por
que nunca me preocupei em perguntar?
— Pisca — repete a criatura ao meu lado. Ela levanta uma colher de prata quase do seu próprio
tamanho, fica de pé na cadeira e passa a golpear vários dos meus peixes na cabeça, matando-os. —
Pisca eles, entendeu? — Sua língua bifurcada lambe seus lábios.
— Ah, não! Por favor... — Num impulso, pego minha taça e jogo o líquido para que os outros
peixes que continuam vivos possam voltar a respirar. A mistura se esvai rapidamente, revestindo os
peixes com uma camada farinhenta que cheira a suco de maçã e canela. Desesperada, resgato os
peixes sufocados da sujeira, limpando a gosma com as unhas e sujando o tecido de minhas luvas.
Todos estão me olhando novamente, mas estou muito indignada para dar importância.
— O que é isso? — desabafo para Morfeu.
Os olhos dele faíscam. — De onde você vem não se coloca areia na sidra? — Ele sorri
afetadamente. Lembro-me de ver aquele mesmo sorriso nos sonhos quando criança, que costumava
significar que estávamos prestes a fazer algo ousado e divertido. Mas agora há um quê de malícia por
trás dele. O que poderia ter acontecido para transformá-lo de menino brincalhão no homem
perturbado que ele é hoje?
— Prefere experimentar o vinho? — pergunta ele.
Na outra ponta da mesa, os intraterrenos primatas recolhem garrafas de vinho que flutuam no ar, e
prendem tufos de lã de suas cabeças de carneiro nos gargalos para fazê-las descer. Depois, passam o
vinho aos outros para brindar.
Franzindo o nariz, recuso a oferta.
— Ah, pobre e delicada flor. — Morfeu pega um guardanapo e toma minha mão direita com
delicadeza. — Vamos limpá-la. — Gossamer aparece flutuando sobre a mesa ao lado da minha mão
direita e ajuda, com rispidez desnecessária, dando puxões nas minhas luvas e beliscando minhas
juntas enquanto ri de mim. Em contraste, Morfeu retira suavemente a mistura arenosa de meus dedos.
Faíscas de calor surgem do contato.
Há calor atrás de mim, também, e vem do olhar de Jeb. Não preciso ver, eu sinto. Ele alertou
Morfeu para que não me tocasse durante o banquete.
— Uma pena que estivéssemos tão ocupados no Corredor dos Espelhos e acabamos perdendo a
entrada — diz Morfeu, olhando para Jeb de soslaio. — Você teria adorado a sopa de aranhas, já que
é tão adepta a ferir insetos.
Eu me contraio.
— Pena maior ainda — ele se inclina e sussurra bem baixinho para que só eu possa ouvir — que
você desperdice seus beijos com um homem que fantasia com outras mulheres. A pequena Gossamer
pode ver a mente dos outros enquanto dormem. A linda jovem que povoa os sonhos de Jeb não é
você. O interessante é que ele agora escolhe agir em nome de “sentimentos ocultos”. Justo aqui,
longe de todos, quando ele quer tão desesperadamente dissuadi-la de sua missão.
Uma sombra penetrante me atravessa o peito, cortando-me como uma faca.
— Ah, mas é claro que ele é sincero — Morfeu continua a provocar. — Ele nunca escondeu nada
de você. Sempre foi sincero.
A mudança de Jeb para Londres com Taelor toma minha mente, deixando-me tão sombria quanto
as nuvens escuras por trás dos olhos do nosso anfitrião.
Observando minha reação, Morfeu sorri. — Sim. Um homem que nunca mente nunca partirá seu
coração. — Plantando um beijo no alto de minha luva, ele joga fora o guardanapo e me solta.
Gossamer me encara com fúria e voa de volta para o ombro dele.
Lágrimas me brotam nos olhos. Me controlo para que elas não caiam, mas não consigo comandar a
dor que me toma o estômago. Morfeu deve estar certo. Jeb nunca mencionou nutrir sentimentos por
mim na nossa vida real. Lá, ele ainda está com Taelor e ainda sonha com ela.
Morfeu fica de pé e recoloca o chapéu na cabeça, tratando de negócios. — Chega de brincarmos
com essas migalhas insossas. Garçons, tragam o prato principal!
Algum movimento ao longo das paredes propicia uma distração momentânea da dor em meu
coração. É como se pedaços do reboco ganhassem pernas. Só quando eles se desprendem de seus
lugares e se esgueiram para uma das salas adjacentes é que percebo que são um bando de camaleões
do tamanho de seres humanos, com ventosas nos dedos.
Quando os lagartos listrados retornam, com os olhos salientes girando em todas as direções,
trazem uma travessa decorada com frutas secas e algo que lembra um pato. Está depenado e assado,
mas ainda mantém a cabeça intacta. Um cheiro quente de ervas me pinica o nariz. Pelo menos está
cozido.
— Posso apresentar a todos o prato principal? — Morfeu estende um braço com um gesto
dramático. — Jantar, conheça seus dignos adversários: os convidados famintos.
Minha língua vira uma lixa quando os olhos do pássaro se abrem, e ele se esforça para ficar sobre
os pés palmados, trôpego, a carne marrom e brilhando cheia de temperos e óleo. Ele tem um sino
pendurado no pescoço que tilinta quando o pato se curva para cumprimentar a todos.
Isso não pode estar acontecendo.
Cada nervo do meu corpo se eriça, pedindo que eu me una a Jeb. Mas não posso.
Morfeu arrasta o pesado malho que está ao lado de sua cadeira e o bate na mesa, como o martelo
de um juiz. — Agora que todos se conhecem, que comece a pancadaria.
Gossamer decola do ombro de Morfeu e sai da sala com as outras fadas quando explode a
confusão em massa. Todos os convidados ficam de pé, com os malhos na mão, prontos para caçar o
pato que chocalha.
Ele é surpreendentemente ágil e se esquiva, fazendo manobras em meio às travessas, pratos e
prataria.
— O que você está fazendo? — pergunto a Morfeu. — Eu nunca vi nada tão selvagem!
— Selvagem? — O porco verde bufa em resposta. — Você age como se fôssemos um bando de
animais. — Seus dentes de pimenta formam um sorriso desdenhoso.
— Pare de pensar com a cabeça, Alyssa. — Morfeu inclina-se sobre a mesa, seu cabelo azul
balançando na altura dos ombros. — Pense com isto. — Ele coloca um dedo acima do meu umbigo.
É bom que Jeb não consiga ver desse ângulo, ou ele quebraria a mão de Morfeu.
— Com o estômago? — Eu mal consigo enunciar a pergunta.
— Com suas entranhas. Instinto. A parte mais profunda de você sabe que é assim — ele aponta o
caos à nossa volta — que deve ser. Aquela mesma parte de você que a fez me procurar e atravessar o
espelho. A mesma parte que lhe deu o poder de animar seu mosaico.
As palavras dele me remetem de volta àquele momento no meu corredor quando as patas dos
grilos mortos começaram a chutar e as contas de vidro brilharam. Ele está dizendo que a magia da
minha maldição fez aquilo também?
— Você compreende a lógica que está além do ilógico, Alyssa. É da sua natureza encontrar
tranquilidade em meio à loucura. E é isso o que estamos fazendo aqui. Estamos dando à nossa
comida uma chance de resistir. — Ele pisca para mim. — Agora, se nos desculpar, meu camarada e
eu temos algumas bordoadas a dar. — Ele e o porco deixam a mesa. Morfeu se inclina para que suas
cabeças fiquem na mesma altura enquanto eles se dirigem ao outro extremo da sala.
— Pisca! — grita o furão branco. Ele sobe na mesa com a colher nas mãos e acaba sendo
atropelado pelo pato assado. Aparo meu amigo peludo antes que ele caia de cabeça no chão. Sua
colher bate com força no piso, ao lado de seu capacete. Sem o capacete, seu escalpo pelado fica
exposto — a pele é tão fina que seu cérebro fica à mostra. Ele não tem crânio.
Ele se aninha no meu colo. — Datum. Muito datum, meu anjo! — Olhos cor-de-rosa em forma de
contas me estudam, suaves de mórbida adoração. Fico tão cativada com a estranheza da criatura que
não percebo a multidão que vem em nossa direção, brandindo seus malhos numa corrida caótica pelo
prêmio.
Jeb puxa minha cadeira da mesa para me salvar de ser martelada, enquanto o furão se agarra na
minha túnica com obstinação. Em seguida, Jeb se esquiva para o canto, ficando à minha frente, numa
diagonal, mantendo distância. A expressão dele é de esforço para não fazer contato visual.
— Conhecem as regrassss! — Um lobo sinuoso sibila ao dar uma tacada, quase acertando o pato
quando ele se choca com uma travessa. — O primeiro a acertar é o primeiro a trinchar!
Um uivo horripilante quebra o caos quando alguém arranca uma perna do pato. Ele consegue sair
se arrastando enquanto vários dos perseguidores roem a coxa arrancada.
O pato sobe em uma garrafa de vinho que flutua e ganha o ar, rindo em delírio. Arrancando e
atirando pedaços da própria carne, ele incita os outros a tentarem pegá-lo.
Ele quer ser comido.
Uma pontada doentia convulsiona minha barriga, provocada pela excitação da caça. Minhas pernas
se contraem no desejo de pular. Reprimo o impulso.
Todas as criaturas capazes de voar o seguem com os malhos em punho, flutuando sobre os outros.
Os presos ao solo se descolam apressadamente para cima da mesa ou correm pelo chão, tropeçando
em pratos e cadeiras na esperança de que alguém abata o prato principal e ele caia.
Tapo a minha boca para abafar um grito ou riso histérico. Poderia ser qualquer um dos dois a esta
altura. Estou começando a apreciar a loucura.
Isso não é bom. Não mesmo.
Meu novo amigo furão acaricia meus dedos, as almofadas de suas patinhas cor-de-rosa macias
contra a minha pele.
— Sã fique, anjinho — consola sua voz de flauta. — Sã e agradável. Escolha e cante. Seja
sorrisos reais para mim. — Ele ri, os dentes afiados brilhando à luz do candelabro. Seus caninos são
longos como as presas de uma serpente.
Sinto meu instinto aguçado e faço o que Morfeu sugeriu — sigo-o. Faço cócegas na orelha
esquerda da criatura, como faria com um bicho de estimação. Ele ronrona em resposta.
Me desligo de tudo — da perseguição ao jantar, da loucura no riso e nos gritos dos animados
convidados, da carinhosa e peluda criatura no meu colo — quando vejo Morfeu passar o leque e as
luvas para o porco.
Em troca, o porco passa para Morfeu um pequeno saco branco amarrado com uma fita preta.
Depois, o porco recolhe seu malho e vai correndo juntar-se à festa, que fora parar na cozinha. O
ruído de potes e panelas na outra sala ecoa com força no repentino silêncio da abandonada sala de
jantar.
Tenho um sobressalto quando o furão me agarra o rosto. — Seja doce, anjinho. — Ele lambe meu
queixo com sua língua bifurcada e fria e depois pula para o chão, arrebatando sua colher e seu
capacete. — Pisca. Pé-de-vento e fora! — Com isso, ele recoloca o capacete e ruma para a cozinha.
Assim que ele desaparece, somente Jeb, Morfeu e eu ficamos no recinto. Livres de olhos curiosos,
olho para Jeb da minha cadeira e ele me olha do outro lado, sem nenhum de nós se mexer.
Uma estranha pressão começa a penetrar no meu queixo onde a língua serpentina do furão deixou
uma marca molhada. Ela penetra na minha pele e serpenteia até a minha boca, quente e fria ao mesmo
tempo. Sinto seu gosto — amargo e doce, como um doce feito de lágrimas.
A sensação não para por aí. Ela flui para dentro da minha garganta, depois para meu peito,
beliscando com uma tristeza profunda. No princípio, fico triste por mim e Jeb, por como ainda temos
tantas coisas a acertar. Depois, fico triste por Alison e papai, e os anos juntos que perderam. Fico
triste pela Rainha Vermelha e seu coração partido, e pela Rainha de Marfim, que sempre sofreu em
silêncio, agora trancada sozinha na prisão daquela caixa. A tristeza vai aumentando, como se toda a
dor do mundo convergisse para um só ponto logo acima de meu coração. Quero chorar... Quero tanto
que chego a ficar sem ar.
Jeb corre até mim, agachando-se aos meu pés. — Al, está tudo bem. Já passou. — Ele sente minha
testa. — Você está tão fria. Diga algo, por favor.
Não consigo responder por medo de começar a chorar de modo incontrolável.
— Ela está ficando azul! — Jeb grita para Morfeu. — Aquele furão esquisito fez alguma coisa
com ela!
— Não, não. Não fique histérico, pseudoelfo. — Morfeu joga o chapéu sobre uma cadeira e junta-
se a nós. Ele se inclina sobre mim. Jeb, relutante, se afasta alguns centímetros para dar-lhe espaço.
Morfeu levanta meu queixo e inclina meu rosto para um lado e para o outro, como um médico
realizando um check-up. — Tem sorte de ele ter gostado de você, queridinha. Os intraterrenos
Mustela são conhecidos por seu temperamento, e têm o veneno de mil vespas em uma mordida de
seus caninos. Suas cabeças são frágeis e vulneráveis. Se você o tivesse tocado em outro lugar além
das orelhas, ele teria tomado isso como uma ameaça. Você estaria se contorcendo no chão neste
momento, sufocando em sua última e excruciante respiração.
Tento falar, mas não consigo. A tristeza vai ficando cada vez maior. Cada batida de meu coração
esgota meu peito feito uma sanguessuga. Quero escorregar para o chão, enrodilhar-me em mim
mesma e chorar para sempre. Mas estou congelada no lugar.
— Você a acomodou ao lado daquela coisa de propósito, não foi? — pergunta Jeb, ou melhor,
grita. — Para puni-la por ter me beijado! Seu miserável filho da... — Ele ataca Morfeu, girando-o e
envolvendo-o em suas asas, e pressionando-o contra o tampo da mesa. Pratos e utensílios tremem
com o impacto. Com o antebraço apertado contra a laringe de nosso anfitrião, Jeb o mantém preso.
— Conserte isso. Agora.
— Não há nada para consertar. Foi um presente dele. — Morfeu grunhe quando o braço de Jeb
aperta sua garganta. Ele tenta se libertar, mas Jeb o embrulhou tão fortemente em suas asas que ele
não consegue se mover. — Se você me deixar sair — balbucia ele por entre os dentes — eu
mostrarei.
Rosnando, Jeb se afasta e cai de joelhos ao meu lado novamente, tomando minha mão mole. Ele
entrelaça meus dedos nos dele. — Vamos, menina do skate. Fique comigo, está bem? Haja o que
houver dentro de você, não deixe que vença.
A preocupação que tensiona os traços de Jeb deixa o meu peito ainda mais pesado e me sufoca.
Ele precisa que eu responda. Mas se eu abrir a boca para responder, vou chorar sem parar até nada
mais restar de mim.
— Dê-me um pouco de espaço. — Morfeu agacha e Jeb se afasta, mantendo nossos dedos
entrelaçados. Morfeu coloca um guardanapo de pano perto do meu rosto. — Deixe que saia, querida.
Eu sei que parece um dique prestes a desmoronar, mas eu lhe asseguro que basta uma lágrima e você
se sentirá bem.
Não é possível. Uma lágrima nunca será suficiente. Eu me dobro. Um grito agudo irrompe de
minha garganta, tão profundo que fere minhas cordas vocais e esvazia meu abdômen. O grito termina
em um soluço. E, então, uma única lágrima me rola pelo lado esquerdo do rosto.
De repente, sou eu mesma novamente. Aperto a mão de Jeb.
Morfeu embrulha no guardanapo o que parece ser uma bola de gude de vidro transparente, embora
seja macia e maleável, como aquelas bolinhas de óleo para banho. — Isto é seu.
— Esta é a minha lágrima? — pergunto.
— É um desejo. Seu novo amiguinho tem o dom da invocação. Eles só concedem um na vida, e ele
escolheu você. Eu o manterei em segurança por enquanto. Você ainda não está pronta para lidar com
tanto poder. — Enfiando o guardanapo no casaco, nosso anfitrião começa a se levantar, mas Jeb
agarra seu ombro e o mantém ajoelhado.
— Nada disso. Você vai dar isso para ela agora. Dê a ela e ela poderá usá-lo para nos mandar
para casa.
Morfeu liberta-se. — E deixar a maldição continuar? Além disso, temo que não seja assim tão
simples. Porque isto aqui pode ser usado por ela, e só para ela. Ela deve ser o sujeito do desejo,
pois foi ela que o chorou. Ninguém mais pode se aproveitar deste poder. Então, ela não pode levá-lo
para casa. Se querem voltar, os portais são sua única chance.
Jeb e eu trocamos caretas.
— Terei outros desejos — sugiro.
Morfeu ri. — Ah, mas é claro que sim. Como fez Alice. Ela pediu uma infinita variedade de
desejos. Depois, as lágrimas não paravam de sair. Foi assim que o oceano nasceu, para começo de
conversa. Nós quase nunca conseguimos parar essa fonte. Se você tentar ser mais esperta do que a
magia, há sempre um preço a ser pago. — Morfeu coloca-se de pé.
Eu agarro o seu pulso. — Você me fez sentar ao lado dele por alguma razão. Você queria que eu
produzisse esse desejo. Por quê?
Em silêncio, ele afrouxa o nó da gravata em seu pescoço, num gesto de relaxamento, mas sustenta
meu olhar. O lado esquerdo de sua boca se curva num meio sorriso.
— Ei... — Jeb ergue nossas mãos unidas e aperta o polegar contra meu esterno para chamar minha
atenção. Meu coração começa a bater com a pressão, lembrando de suas carícias no corredor
espelhado. — Você estava ficando azul, Al. Aquela cobra-furão podia ter matado você fácil, fácil.
Esse miserável arriscou sua vida só para se divertir. Ele não tinha nenhum motivo nobre.
— Os intraterrenos Mustela são excepcionais juízes de caráter — explica Morfeu, entoando. — Eu
sabia que Alyssa estaria à altura. Tenho certeza absoluta de que ela pode defender a si mesma. Você,
por outro lado, não parece compreender esse conceito.
Jeb me ajuda a levantar da cadeira e me puxa para um abraço. É bom estar em seus braços, mesmo
estando incerta quanto aos seus motivos.
Nosso anfitrião coloca o chapéu no lugar. — Ainda bem que não comi nada, ou ficaria nauseado
com tal demonstração.
Jeb beija minha testa para provocar Morfeu. Eu me afasto, porque quero que ele me beije porque
deseja.
— O porco. — Provoco uma mudança de assunto na conversa; não estou a fim de bancar a juíza
para nenhuma de suas briguinhas.
— Sim — Morfeu responde sem quebrar sua carranca de enfrentamento para Jeb. — O porco é, na
verdade, um diabrete nascido da duquesa.
Alguns pedaços da história de Lewis Carroll se encaixam. Alguém estava fazendo uma sopa para a
duquesa com muitos temperos. Era por isso que o leque e as luvas cheiravam a pimenta. E ela teve
um bebê que se tornou um porco — Então, o que ele lhe deu em troca das luvas e do leque?
Morfeu levanta o saco branco. — A chave para acordar Herman Chapelão no chá da tarde;
gratuitamente. — Ele a entrega a mim, e Jeb começa a desatar a fita.
O dedo de Morfeu se põe sobre o laço. — É melhor não fazer isso. É a pimenta-do-reino mais
poderosa e cara neste lado do reino interior. E só há o bastante para uma dose.
Jeb franze a testa. — Pimenta-do-reino. Que tipo de mágica barata é essa?
Antes que Morfeu possa responder, uma horda de fadas invade a sala de jantar, voando pela porta
principal.
— Mestre, temos companhia — grita Gossamer. — Má companhia!
— Vão — diz Morfeu para Jeb, inclinando-se para pegar um malho.
Jeb enfia o saco de pimenta dentro do bolso e depois pega minha mão. Só demos dois passos na
direção da saída secreta quando um baralho de cartas — cada uma completa com seis perninhas e
bracinhos — marcha pela porta principal. Os guardas de cartas continuam chegando até cobrirem
todas as paredes.
Olhando mais de perto, estes guardas de cartas têm cara de insetos com antenas tremelicantes, e
seus dorsos finos como papel são, na verdade, conchas achatadas, salientes nas bordas e pintadas de
vermelho e preto para lembrar naipes de cartas. Com seus membros estranhamente unidos e bocas
perfurantes entrecruzadas nas mandíbulas, eles parecem mais insetos do que cartas.
Todos esses anos venho matando insetos e agora o carma está aqui para me fazer pagar, em naipes
espadas.
Os insetos se dividem em naipes: cinco copas e cinco paus de um lado e cinco espadas e cinco
ouros do outro, com o Rábido Branco no centro. As fadas, pequeninas e indefesas, olham a situação
de lá de cima, reunidas em volta do candelabro.
Um colete vermelho com luvas combinando pende da estrutura miúda e esquelética do Rábido. Em
uma mão ele segura uma corneta e na outra um pergaminho enrolado. Ele entorta a cabeça com
antenas para produzir três notas soprando o instrumento. Depois, com um estalido do pulso e um
chacoalhar de ossos, o Rábido abre o pergaminho.
— Alyssa Gardner, da corte humana, é chamada diante da Rainha Grenadine, da Corte Vermelha.
— Seus olhos cintilantes e cor-de-rosa se erguem, fixando-se em mim. Sou tomada por uma onda de
terror.
Jeb e Morfeu se colocam na minha frente. Dane-se aquela história de defender a mim mesma...
— Ela não vai a lugar algum com você, Rábido. — Morfeu levanta seu malho.
— Caso contrário, diz a Rainha Grenadine. — Espuma lambuza a boca de Rábido, e seus olhos
brilham como brasas acesas, vermelhos de fogo. — Caso contrário, seu exército assume o comando.
Diante do sinal dele, as cartas contra a parede se unem e dão um salto em nossa direção, como se
controladas por uma mão invisível.
As fadas mergulham de lá de cima, tentando interferir. Morfeu abre as asas ao máximo para
proteger a mim e a Jeb do ataque. Lanças atingem suas asas, esticando-as, mas sem trespassá-las.
Estico as mãos sobre as costas de Morfeu, absorvendo o choque quando seus músculos se retesam a
cada golpe do malho. Seus grunhidos se sobrepõem ao barulho dos guardas, caindo no chão.
— Saiam daqui! — grita ele por sobre os ombros, ao nos conduzir de costas até a saída secreta
para a sala espelhada, ainda usando as asas como barreira.
Jeb agarra meu cotovelo e me arrasta para a porta.
— Não! — Me debato. — Não podemos deixá-lo lutar sozinho. São muitos!
Cerrando os dentes, Jeb me arrebata para o seu ombro. — Ele está se saindo bem. E você é mais
importante. — Seu braço aperta minhas coxas, minha cabeça e meu torso ficam pendurados de
cabeça para baixo em suas costas. A escadaria sinuosa de mármore preto passa por baixo de mim, e
o sangue desce para a minha cabeça.
Fecho os olhos com força, ouvindo a batalha na sala de jantar ficar cada vez mais longínqua.
A lembrança de como Morfeu e eu brincávamos em nossa infância, do modo como ele curou meus
ferimentos hoje, o som de seu lindo acalanto — tudo isso ferve em mim, num caldo confuso de
emoção. Penso no desejo enfiado em seu casaco... O desejo que ele queria me dar, por alguma razão.
Se eu o tivesse agora, desejaria estar na sala de jantar ajudando Morfeu a lutar.
Estou prestes a tentar fugir quando ouço o som de potes e panelas.
— Pisca! Pisca todos eles!
Em seguida, ouço uma série de guinchos e rugidos — as mesmas vozes bestiais que ouvi na festa.
As bestas voltaram de sua caçada, e Morfeu não está mais lutando sozinho.
Jeb e eu nos esgueiramos pela passagem secreta que leva a outro lance de escadas. Em pouco
tempo estaremos tão distantes que o único som será o das suas botas pisando no chão espelhado.
— Pode me colocar no chão agora — resmungo.
— Eu não sei. É muito mais fácil salvar sua pele quando ela está pendurada no meu ombro.
— Você não precisa me salvar.
Jeb solta um riso sarcástico. — Não tenho muita escolha se você se joga em situações perigosas
nessa sua cruzada. Agora você vem e nos coloca no meio de uma guerra mágica.
Eu bato nele. Bem no meio das escápulas.
— Ei... — Ele coloca meus pés no chão, de modo que ficamos olhando um para o outro enquanto
ele esfrega as costas. Apesar de sua careta, Jeb parece impressionado.
Meus dedos estão latejando. O sujeito poderia colocar uma pedra nessa história de vergonha. —
Eu já me sinto mal o bastante por ter arrastado você para dentro disto, está bem? Se eu pudesse fazer
tudo de novo, você não estaria aqui. — Relaxo os dedos. Gossamer ainda não veio para abrir a porta
no espelho, e uma urgência em chegar ao chá da tarde se instaura em mim.
Jeb levanta meus dedos e aperta os lábios contra eles. — Eu ainda desejaria estar aqui com você,
mesmo se tivéssemos uma segunda oportunidade. Mas, se quisermos sair desta, você precisa parar de
acreditar no homem-mariposa como se ele fosse algum tipo de santo.
— O nome dele é Morfeu. — Sinto um nó na garganta quando penso no que está acontecendo três
andares abaixo. — Você acha que ele está perdendo? Acha que vão machucá-lo?
— Por que tanta preocupação com ele?
— Eu cresci com ele. Eu me importo.
— Não faz sentido. Isso foi nos seus sonhos. A amizade de vocês não era real.
— Parece real. Porque ele acredita em mim. Ele me deixa arriscar e aprender com isso. É algo
que um amigo faz. — Cerrando os dentes, olho para Jeb.
A expressão dele fica tristonha, como se uma sombra o encobrisse. — Então, só porque o
esquisitão alimenta seu ego, você está disposta a ignorar todas as mentiras dele? Ele não disse a
verdade sobre nada desde que nós chegamos.
— Então ele combina bem com você, visto que são dois mentirosos. — Odeio a acusação na
minha voz, mas não consigo contê-la. Separo nossas mãos, percebendo o saco sobre a mesa; o que
continha a caixa linguardarte. — Por que ela ainda está aqui?
Fazendo uma careta, Jeb aproxima-se de mim enquanto desembrulho a caixa. — Deve ser o lugar
mais seguro. Você não deveria mexer com isso.
— Quero dar mais uma olhada na inscrição. — Eu queria olhar para a rainha de novo. O que ela
tem que deixa Morfeu tão encantado?
Jeb cobre a tampa com a palma da mão. — Sabe, você não pode simplesmente chamar as pessoas
de mentirosas e deixar por isso mesmo. Talvez eu não tenha sido honesto em relação a Londres. Mas
você também mentiu.
Os espíritos de mariposas deslizam em minha visão periférica, como se acompanhassem minha
pulsação acelerada. — Não sobre os meus sentimentos. Você esperou até chegarmos aqui para
assumir sua suposta atração por mim. De volta ao mundo real, onde vale mesmo, você escolheu a
Taelor.
Ele me força a encará-lo, empurrando a caixa de chapéu para o fundo da mesa. — De onde veio
isso? Aquela baratona andou nadando dentro de sua mente novamente?
— Não. Mas Gossamer viu a sua quando você estava desmaiado. E ela viu que você sonhava com
outra moça. Quando você me beijou... Foi só para me convencer a desistir e ir para casa, para você
poder voltar para a Tae.
— O quê? — Os dedos dele são quentes e fortes, e eu os sinto através das mangas. — O sonho que
eu tive foi com Jen e mamãe. Estou preocupado com elas.
— Tá bom — digo, querendo ser convencida, mas ainda não completamente.
Ele se afasta e anda até o outro lado do corredor, mudo e estoico.
Meus braços sentem frio com a ausência de seu toque. A dor é excruciante, mas fico feliz por ter
dito alguma coisa. Eu ficaria com essa dúvida para sempre, pensando estar roubando beijos que eram
para outra garota. Puxo a caixa de peltre para perto de mim, concentrando-me na inscrição da tampa
para impedir que as lágrimas quentes em meus olhos caiam. Se eu focar e desfocar através do borrão,
as letras se movem, formando um texto legível. Eu o percorro com a ponta do dedo e sussurro as
palavras:
“Eis a caixa linguardarte; a mais bela em seu interior repousa. Para libertar a dama e sua dor
aliviar, há que em seu fluxo penetrar. Um mar vermelho de laços de amor, pinte as rosas da
mesma cor, em finas pinceladas pelas mãos de um artista guiados. Uma troca de almas a porta
fechará, e para todo o sempre o sangue a selará.”
— É a chave para libertar a rainha se não foi você a pessoa que a aprisionou. — A voz em trinado
de Gossamer me tira da minha meditação. — Individualizada para o habitante da caixa. — Ela pousa
em meu ombro, então consigo vê-la de perto: a forma perfeita de uma mulher, de um verde dourado e
nua, exceto pelas escamas cintilantes nas partes estratégicas. Ela apoia as mãos na cintura. — Um
mar vermelho de laços de amor. — Seus olhos de libélula se acendem. — As rosas devem ser
pintadas com o sangue de alguém disposto a trocar de lugar com ela pela mais nobre das razões. O
amor deflagra a transferência.
A famosa cena de Lewis Carroll me passa pela cabeça — os guardas de cartas pintando as rosas
de vermelho no jardim para não serem decapitados. Que ironia! Neste País das Maravilhas, alguém
poderia perder a cabeça para sempre pintando as rosas sobre esta caixa.
— Então Morfeu não foi completamente sincero — digo. — Existe outra maneira de libertá-la e
abrir o portal. Não depende somente da pessoa que a colocou lá. — Jeb está parado atrás do meu
reflexo, com expressão convencida. Quase posso ouvir um “eu disse” emanando de seus olhos.
— Não é uma decisão assim tão fácil — diz Gossamer, ralhando, e depois decola do meu ombro,
as asas zunindo. — Uma vez que a troca seja feita, ninguém jamais poderá libertar a alma substituta.
O sangue produz um selo permanente, eterno. “Uma troca de almas a porta fechará, e para todo o
sempre o sangue a selará.”
— Então, o que você está dizendo — Jeb dá um passo à frente — é que tem que ser um amor
desapegado. O que Morfeu é incapaz de dar. Falta a ele esse tipo de coragem.
Gossamer bate as asas no ar, os braços cruzados sobre o peito. — Meu mestre tem grande
capacidade de coragem. Ele salvou minha vida uma vez. — Ela olha para a entrada do corredor e
para nós novamente. — Ninguém sabe do que é capaz até as coisas chegarem ao limite. É por isso
que a chave para abrir a caixa é a essência do coração. Lá dentro se encontra o poder mais potente
do mundo. — Suas palavras crípticas ficam pairando no ar.
Ela se agacha debaixo da mesa e tira o canivete de papai, deixando-o aos pés de Jeb. Ele coloca a
arma no bolso. Quero perguntar o que a fada quis dizer sobre a essência do coração, sobre o limite.
Quero perguntar como Morfeu e os solitários intraterrenos estão se saindo lá embaixo. Mas minha
língua fica presa no poema da caixa linguardarte e na reação de Jeb às minhas perguntas.
Gossamer faz com que fiquemos de frente para um dos espelhos, e toca o vidro com a ponta do
dedo. Os espíritos de mariposas desaparecem do plano intermediário, voando para outros espelhos
ao longo das paredes.
Com a palma da mão estendida sobre a superfície reflexiva, a fada dá início àquele mesmo efeito
estilhaçado que vi no espelho giratório em meu quarto. Uma longa mesa cheia de doces e xícaras de
chá aparece no espelho, colocada sob uma árvore à frente de um chalé de campo que tem o formato
de uma cabeça de coelho — completo com chaminés como orelhas e teto de pelos. Parece que o sol
sobrepujou a lua desta vez, porque a luz do dia resplandece sobre tudo em volta. Com uma chave
quase do tamanho de seu antebraço, Gossamer abre o portal, alisando o vidro.
O ruído forte de passos ecoa no corredor adjacente. A luta chegou aqui.
— Vão! — Gossamer comanda.
Jeb nem olha para mim e leva a mochila ao ombro, a face quase tão verde quanto a de Gossamer.
Pulo através do espelho, mais desesperada para escapar à minha dor e confusão do que de qualquer
coisa que o Rábido Branco e o exército Vermelho possam causar.
13
Chapelão
Minhas botas acabam pisando em um prato cheio de doces. Quando a tontura passa, levanto o pé e
sacudo um pouco de glacê.
Antes que eu possa explorar a mesa na qual me encontro, alguma coisa cai em cima de mim, vinda
de trás. Tropeço e caio de cara em uma torta recheada de suculentas frutinhas roxas.
— Al... Me desculpe. — Jeb me ergue pelos cotovelos, puxando minhas escápulas na direção de
seu peito. — Você está bem?
Recuso-me a responder pelo simples motivo de ele não ter especificado se era física ou
emocionalmente. Com a ajuda dele, consigo ficar de pé entre uma travessa de pão com manteiga e
uma tigela de violetas cristalizadas. Um pouco do recheio da torta decora minha boca.
Lambo os lábios e depois sacudo os dedos, tentando me livrar daquela coisa pegajosa.
Da ponta da mesa onde estamos, a paisagem que vimos refratada no espelho se descortina por
completo. O chalé em forma de coelho fica em uma colina — um oásis verde e luxuriante em meio a
um deserto. A distância, dunas de areia parecem um tabuleiro de xadrez — quadrados pretos e
brancos como aqueles em que sempre tropeço no meu pesadelo. Queria ter uma tela, pincéis e tinta
para captar essa vista distorcida para sempre.
Uma brisa balança minhas tranças, pássaros gorjeiam em uma amoreira acima de nós, e a luz do
sol me aquece os ombros. Me faz lembrar tanto de Pleasance que uma onda de saudade me invade.
Eu queria poder falar com papai; mais ainda, queria poder abraçá-lo.
É sábado. Pelo menos eu acho que é. Se eu estivesse em casa, papai estaria grelhando bifes. Eu
faria uma salada de frutas, porque estou encarregada de fazer com que ele coma refeições
balanceadas.
E se eu fracassar e não voltar mais para casa? Alison se culparia para sempre e mergulharia nas
profundezas para valer. O tratamento com eletrochoques só vai conseguir piorá-la. E papai ficará só
na cozinha comendo cereais frios, tendo somente sua dor como companhia. E ainda tem a mãe de Jeb
e Jenara. O emprego dele no Submundo ajuda a pagar as contas mensais. Elas dependem dele. O que
fariam sem ele?
Se eu fracassar, arruinarei a vida de todos.
Jeb — ainda atrás de mim — me oferece um guardanapo. Limpo o rosto e resmungo: — Por que
não aterrissou na outra ponta da mesa?
— Estava ocupada. — Jeb me vira.
Eu quase engasgo ao ver os convidados do chá da tarde — Herman Chapelão, a Lebre Careca e o
Camundongo — todos sentados na outra ponta e congelados sob uma camada espessa de gelo
azulado.
— O mariposão tem uma noção deturpada de “dormindo” — lança Jeb.
Morfeu tem uma noção deturpada de tudo. Balançando a cabeça, caminho na direção deles. Ao
passar pelo bule de chá, o vapor me atinge a canela, umedecendo meu legging. Chapelão e sua turma
estão suspensos feito geleiras, mas a comida parece fresca e o chá ainda está quente.
— Cadê aquela pimenta? — Estendo a mão. É esquisito trabalhar em equipe. Minha família está
no modo transtorno desde que eu me conheço por gente, mas pelo menos nos últimos anos eu posso
contar com a amizade de Jeb. Agora ela está por um estranho fio emocional; não sei se acredito nele
ou em Morfeu. Era mais fácil ficar possessa no mundo real, quando eu tinha certeza de que ele havia
escolhido Taelor.
Jeb tira o saco do bolso. Eu desato o laço, respirando pela boca. Não quero arriscar inalar aquilo.
Só o cheiro leve de pimenta no leque e nas luvas já era suficiente para me fazer espirrar.
Espirrar...
Deve ser o que Morfeu pretendia com este saquinho de tempero.
— Você não vai desperdiçá-la tentando fazer o cara do chapéu espirrar, vai? — pergunta Jeb. —
Ele é uma escultura de gelo. Não tem nenhuma abertura onde deveriam estar as narinas. E só temos
pimenta para uma dose. É melhor ter certeza.
É estranho como ele às vezes pode me ler tão bem, embora em outras seja tão distraído.
Fecho o saco e o devolvo. Ele tem razão. Nunca conseguiremos acordar Chapelão com pimenta.
Ele nem tem nariz. Eu me aproximo. Ele está segurando uma xícara de chá fumegante numa posição
em que parecia estar enfatizando uma afirmação.
— Jeb, tem alguma coisa errada com a cara dele. É só um espaço vazio. — O vazio de um cinza
azulado brilhante reflete minha imagem, mais perturbadora do que seria a expressão congelada de um
estranho.
— Talvez o gelo seja tão espesso que cobriu os traços dele — arrisca Jeb.
— Não sei. Mas olhe só o chapéu. — Poderia ser um instrumento medieval de tortura, uma parte
cartola e outra parte gaiola, feito de pinos de metal com uma aba com dobradiças e que se abre feito
uma tampa. Olhando bem, o metal parece crescer da cabeça dele, feito ossos. A gaiola penetra em
buracos na carne, como as peças de xadrez do quarto de Morfeu.
— Um conformador — diz Jeb, com a voz tensa. — Ele tem um conformador brotando da cabeça.
A maioria das pessoas não saberia da existência desse instrumento do século XIX usado para
customizar os chapéus para se moldarem aos vários tipos de cabeças, mas Jenara tem um em seu
quarto. Perséfone o encontrou em um leilão, e, sabendo que Jen adora coisas relacionadas à moda,
deu um lance baixo e acabou arrematando-o, porque ninguém sabia o valor do artefato.
A estrutura de tiras de metal se molda à circunferência da cabeça do cliente onde ficaria a aba do
chapéu, e os pinos adaptam-se à conformação do crânio. Um papelão oval é inserido na tampa de aba
e pressionado no lugar da coroa, fazendo com que os pinos façam buracos na forma da cabeça. Ele
forma um molde que o chapeleiro pode usar para fazer um chapéu customizado para aquele
indivíduo.
Por que este aqui está fisicamente ligado ao crânio de Herman está além de minha compreensão, e
eu nem quero imaginar como ele o usa em seu trabalho.
Concentro minha atenção em seu rosto refletivo e volto-me para a “lebre”, que é demasiado
hedionda. Em boa parte porque parece ter sido virada do avesso — não tem pelo, só carne mortiça.
É como olhar para um coelho esfolado. Mas pelo menos ela tem uma cara. Sua expressão é demente,
com um lampejo selvagem nos olhos brancos. Uma xícara de chá está equilibrada em cima de um
doce em seu prato. Sua pata está enfiada na xícara de chá a partir do pulso, como se estivesse
embebendo algo.
Dos três convidados, o Camundongo é o único que parece normal. Se é que um camundongo
vestindo um casaco de porteiro pode ser considerado normal.
— Não sei como resolver isso — digo. — Eles estão todos congelados, então como vamos fazê-
los espirrar com uma pitada de pimenta?
Jeb balança a cabeça. — Vamos ver o livro. — Ele anda ao redor da mesa se esquivando e passa
para uma cadeira vazia. Empurrando para o lado um vacilante carrinho de chá de três andares, ele
pisa na grama. — Vem cá — diz ele, me chamando para pegar sua mão enquanto ele se senta à mesa
e acomoda a mochila ao seu lado.
Permito que ele me ajude a descer, mas me liberto no instante em que meus pés tocam o chão.
Secando o resto de suco de amora do meu rosto com um guardanapo de tecido, verifico minhas
roupas para ver se estão limpas. — Estou com fome. — Que nada. Estou morrendo de fome. Nem me
lembro da última vez que comi alguma coisa.
— Bem, não devíamos comer essas coisas. — Jeb aponta para a mesa posta. — Quem sabe o que
isso poderia fazer com a gente? — Ele encontra uma barra de cereais na mochila e me dá metade,
indicando uma cadeira vazia ao seu lado. Em vez dela, sento-me em outra dois lugares adiante. Ele
me olha com firmeza enquanto comemos; os únicos sons são o farfalhar da embalagem, os pássaros e
a brisa.
Evitando seu olhar, conto as listras pêssego e cinza do meu legging. Minhas pernas estão
começando a parecer pirulitos. Pirulitos doces e gostosos.
Fico com água na boca.
O que há de errado comigo? Preciso ajudar Jeb a descobrir uma saída, mas só consigo pensar em
comida.
Depois de engolir o último pedacinho da barra, a fome ainda não passou. Me lembro do gosto bom
que aquela coisa roxa tinha e desejo nunca ter caído nela, para começar.
Por outro lado, deve ter sido hilário de assistir. Eu me vejo tropeçando e caindo na torta e dou
uma risada bem alta.
— O que é tão engraçado? — pergunta Jeb. Ele está com o romance País das Maravilhas aberto no
colo e joga o resto da barra dentro da boca.
— Nada. — Outro ataque de riso me toma. Este é tão forte que mordo o interior de minhas
bochechas para não ceder.
Alheio, Jeb vira as páginas. — Aqui diz no capítulo sete que o Rato ficava pegando no sono
durante o chá e o Chapeleiro jogou chá quente no nariz dele para acordá-lo. A passagem está
sublinhada, então talvez seja uma dica. O que acha?
— Acho que o Camundongo deve ter bom faro para chá. — Bato a mão na boca, envergonhada
pelo comentário sem sentido.
— OK. Chega de fingir que está tudo bem. — Jeb coloca o livro dentro da mochila junto com a
embalagem. Ele chega perto de mim e pega meu queixo, levantando-o para que eu o encare. — Você
acha mesmo que eu estava fingindo quando te beijei?
Um estranho desejo de brincar brota dentro de mim, completamente inadequado para a seriedade
da situação. — Há-há-há, cavaleiro élfico. — Afasto o queixo e fico de pé, coquete, frívola, e
totalmente nada a ver comigo. — Você não deve tocar na minha preciosa bundinha, lembra? Afasta-te
de mim, Jebbeth. — E viro as costas para ele.
Ele me pega pelo cotovelo. — Quer olhar para mim, por favor?
Puxo o cotovelo e me liberto, pulando sobre o carrinho de chá para o outro lado da mesa, de modo
que os arranjos da mesa formam uma barricada entre nós. À minha esquerda está o Camundongo. Ele
é do tamanho de um hamster, mas sua cauda fina é peluda como a de um esquilo e coberta de gelo
branco. Há travesseiros empilhados em sua cadeira, para erguê-lo à altura da mesa. Sua cabeça
descansa ao lado de uma xícara de chá quente cheia até a metade. Ele deve ter congelado enquanto
cochilava.
Inclino-me para perto de suas orelhas — prateadas de gelo e alongadas. — Não o culpo por
dormir a vida toda — sussurro para ele. Jeb está boquiaberto, como se eu fosse de Marte. — Queria
ter dormido as últimas horas da minha.
A expressão de Jeb despenca, e sei que o magoei. Não foi minha intenção. Sinto-me tudo menos
rancorosa. Além de estar faminta, estou extravagante, insensata e desinibida. É muito libertador.
— Al, vamos lá. Não quero que as coisas fiquem desse jeito... Não entre a gente. — Jeb começa a
contornar a mesa e eu estou prestes a disparar numa corrida, pensando que um bom pega-pega seria
divertido, quando ouço alguém fungando. É tão suave que a princípio penso que é o rumorejo das
folhas acima de nós. Depois, vejo o nariz do Camundongo se retorcer. É brilhante, úmido e rosa,
como uma bolinha de glacê de morango. Estou quase o arrancando e comendo quando Jeb chega por
trás de mim.
O Camundongo funga novamente.
— O que você acha, Jeb? Uso a pimenta para acordá-lo? Ele pode ser nosso parceiro. Vamos
chamá-lo de Skittles, que nem a bala. — As coisas que saem da minha boca não têm sentido nenhum,
mas não consigo detê-las. Não mais do que consigo deter o ronco colossal de meu estômago que vem
a seguir.
Me olhando com uma careta incomodada, Jeb senta-se ao meu lado e retira o saquinho da mochila.
— O nariz dele deve ter descongelado por causa do chá.
Não consigo me concentrar em nada a não ser meu corpo. Minha pele coça, como se eu precisasse
fazer alguma coisa. Subo na cadeira, dela para a mesa, chutando alguns pratos para o lado.
— Al, que diabos...?
Uma música toca na minha cabeça... E não é o acalanto de Morfeu. Algo com uma batida sensual e
viciante. Sacudo os quadris para a frente e para trás. Os rubis em meu cinto cintilam, e os anéis
balançam — estilo dança do ventre. Eu nem sabia que podia me mexer assim. Deve ser por causa de
todos aqueles anos que brinquei de bambolê com a Jen.
Os olhos de Jeb parecem que vão saltar das órbitas... E também as veias em seu pescoço. Ele faz
um som — algo entre um pigarro e um gemido —, magnetizado pela ginga em meus quadris. Depois
se levanta. — Quer descer daí? Você ainda vai se machucar.
— Não. Sobe aqui comigo. — Levanto os braços sobre a cabeça e jogo a pelve de modo sedutor.
— É uma dança para acordar o Skittles. Sabe, que nem os índios americanos faziam para chamar
chuva.
Jeb está boquiaberto. — Duvido que os índios se mexessem desse jeito.
Sentindo o ritmo pulsar em cada pedacinho de meu corpo, visualizo as correntes do cinto de Jeb
dançando com a música, imagino espirais de energia correndo pelas argolas, induzindo movimento.
Com a ponta de um dedo, faço um sinal, chamando-as.
— Ei... Ei, espere! — A corrente de Jeb dá uma guinada, forçando-o a subir na cadeira. Ele tenta
agarrar as argolas com as mãos, mas elas se libertam, puxando-o até ele subir na mesa e ficar na
minha frente.
Agarro seus quadris, convidando seu corpo a gingar junto do meu. Agarrada a ele, fungo em seu
pescoço, distribuindo beijos sobre sua pele macia enquanto penteio seu cabelo com meus dedos. Seu
rabo de cavalo se solta. — Você tem um gosto tão bom que dá vontade de comer — eu sussurro.
As correntes se enrolam na perna dele, apertando. Retesando-se todo, ele as agarra. — Co... Como
você está fazendo isso?
Eu rio, correndo minhas mãos sobre seus bíceps e peito. — Morfeu me mostrou como eu poderia
animar objetos. Não é espetacular?
Estou me concentrando tanto em apreciar os músculos dele que isso quebra minha conexão com as
argolas de metal. Assim que Jeb se liberta, pula para o chão e me desce também. Me jogo na cadeira,
dando risada, enquanto ele segura minhas duas mãos cruzadas sobre o meu peito.
— Você está me assustando, Al. Pare com isso.
— Parar com o quê? — Liberto uma mão e, com um dedo, percorro sua camisa até embaixo,
seguindo o limite do tecido preto sobre seu umbigo gostoso e parando para agarrar sua cintura.
Um músculo no queixo dele salta.
Eu ronrono. — Você é viciado em controle, Jeb. Seu mundo vira de cabeça para baixo quando a
pequenina Alyssa não está tropeçando em seu cinto de castidade. Não é isso, garotão? — Dou um
tapinha no botão que fica no alto de sua barguilha.
— Uhhh...
— Por que você não acorda o Skittles e depois nós vamos para casa e fazemos uma festinha de
verdade? — Estou sorrindo tanto que meu rosto dói — um sorriso provocativo, gozador. Por alguma
razão, não consigo parar.
— Você precisa parar de me olhar desse jeito — diz Jeb com a voz áspera.
— E se eu não parar? — Sinto uma comichão tão forte nas entranhas por saber que ele está
confuso. Por saber que eu provoquei isso.
Engolindo em seco, ele tira novamente o saquinho de pimenta. — Casa. Muito bem. Pode ser que,
se a gente acordar o Camundongo, os outros também acordem.
— É! Que comece o chá! — Aí, finalmente, vou poder comer alguma coisa. Rufo um tambor na
borda da mesa usando meus indicadores.
Jeb lança mais um olhar perplexo na minha direção. Me delicio ao ver que sou capaz de tirá-lo do
sério. Como quando seu sangue ficou verde por causa de Morfeu antes. Nunca conheci nenhuma
garota que controlasse Jebediah Holt. Seria o máximo ser a primeira.
Uma vozinha dentro de mim tenta sair, tenta me lembrar de que aquela não sou eu... Que eu não
diria essas coisas, não para Jeb — a quem eu não gostaria de ver sofrer. Algo está errado, e eu
deveria contar para ele poder ajudar ou pelo menos se defender. Mas a fome dentro de mim esmaga
minha consciência. É mais do que o desejo por comida. Estou faminta de poder também. Poder para
fazer o cara que eu quero se ajoelhar. Fazê-lo pagar por não me querer de volta.
Com um olho em mim e outro no saco de pimenta, Jeb o coloca no nariz do Camundongo. A
pequenina criatura inala com força. Um espirro se forma, e irrompe como um soluço. Sua cobertura
gelada se espatifa. Nacos de gelo deslizam de sua pele marrom e casaco vermelho enquanto ele se
ergue para coçar o nariz.
No momento em que nos vê, ele se esconde atrás de sua xícara de chá. Arriscando uma olhadela,
ele pisca os olhinhos em nossa direção. Parecem gotas de chocolate. Aquela fome selvagem me
revolve novamente.
Babando, jogo-me em cima da mesa.
— Epa! — O Camundongo solta um guincho estridente ao escapulir de seu esconderijo.
— Al, pare. Precisamos da ajuda dele. — Jeb tenta me agarrar pelos tornozelos, mas eu sou mais
rápida.
Empurrando travessas e pratos para os lados, arrasto-me atrás do Camundongo enquanto ele foge
aos pulinhos para perto de seus amigos, com a cauda sacudindo. Ele derrapa e para quando percebe a
condição deles. Com os bigodes murchos, ele se vira para olhar para mim.
— Senhorita Alice, tem que acordá-los! — guincha ele. Hesitante, seus pezinhos andam para trás.
— Você não é a Senhorita Alice. — Ele leva as patinhas à cara e me encara. — Você é muito mais...
— Faminta. — Agora entendo a preocupação do octobenus com seu estômago; intimamente. Estalo
os lábios e dou uma guinada para a esquerda a fim de escapar da tentativa de Jeb de me pegar pela
cintura. Minha mão vai parar em uma torta, e sacudo o glacê grudado nela. Tenho os olhos cravados
na isca viva.
O Camundongo recua, guinchando nervosamente. Pequeninas mãos com garras procuram os
bigodes, colando-os debaixo do queixo. Ele está quase caindo dentro da torta na qual eu aterrissei, e
estou torcendo para que isso aconteça. Eu adoraria uma fatia de torta de rato neste momento.
Jeb pisa em uma cadeira e pula para a próxima, no meu encalço. — Escute, pequenino. — Ele fala
suavemente com o Camundongo. — Eu a impeço de comer você se você nos ajudar a acordar os
outros. Você se lembra como Alice fez com que adormecessem?
O Camundongo enrola a cauda em si mesmo, abraçando-a. — Ela deixou o relógio cair na xícara
de chá. — Ele me analisa com cautela do meio da mesa, dando um passo na direção da torta roxa.
Sento com os joelhos dobrados e cravo as unhas nas rótulas para me distrair do estômago. De
olhos fechados, concentro-me no livro. Os detalhes da história são obscuros, mas lembro-me de uma
discussão sobre o funcionamento interno do relógio de bolso do chapeleiro. Alguma coisa a ver com
a lebre passar manteiga... manteiga. Balas amanteigadas, creme de manteiga, biscoitos amanteigados.
Solto um grunhido e bato o punho na mesa, fazendo tremer a prataria e os pratos e provocando
grande dor no meu braço, que faz minha mente voltar a engrenar. Engrenar! É isso — a lebre
colocou manteiga no mecanismo com uma faca de pão e emporcalhou o seu interior com migalhas de
pão. Na versão que consta no livro País das Maravilhas, foi por isso que a Lebre de Março largou o
relógio dentro do chá — para lavá-lo. Mas talvez não tenha sido ela quem mergulhou o relógio. Ela
poderia estar tentando tirá-lo de lá. Ao submergi-lo, Alice suspendeu o mecanismo e congelou os
convidados no tempo. É isso que eu preciso consertar. O mecanismo. Eu só preciso secá-lo e colocá-
lo em movimento.
Abro os olhos e Jeb está bem distante de mim, com o livro nas mãos. Ele já está ao lado do lugar
da Lebre Careca. Jeb entorna a xícara de chá com cuidado para não quebrar a pata congelada do
coelho. Eu me arrasto até lá enquanto o chá respinga sobre os doces no prato. O relógio de bolso
emerge, arrastando sua corrente. Jeb abre a tampa. — Parou às seis horas.
— Hora do chá! — O Camundongo chilreia com excitação, batendo palmas. Seu entusiasmo o faz
cair para trás, dentro da torta amassada.
Meu foco dura somente o tempo suficiente para que eu pegue o relógio de Jeb, seque seu
mecanismo, mova os ponteiros para um minuto depois das seis e o rebobine. Me perco de todos os
pensamentos racionais depois disso, porque o rato trepa na borda da torta, comendo as frutinhas e
pingando calda roxa.
Uma deliciosa calda roxa.
A saliva goteja do canto da minha boca. A fome insaciável que eu vinha reprimindo explode. Não
sei mais onde estou. Na minha cabeça, o Camundongo é aquele pato assado do banquete e ele está no
papo.
Jogo o relógio, quase nem ouvindo o ruído do metal. Num pulo, fico de pé e começo a caçada.
Minha presa mergulha atrás dos doces e abre túneis através dos pães, conseguindo me despistar toda
vez que estou perto dela. Patino em pratos, escorrego em travessas e derrapo em bolos. Nem mesmo
percebo que Jeb está no meio da mesa até ele me pegar e me derrubar, seu peso sólido nas minhas
costas. — Al, pare! Você ficou louca?
Como um animal, rosno e arranho a toalha de mesa até ela rasgar com as minhas unhas.
— Al. — A respiração de Jeb no meu pescoço é quente. — Volte para mim. Seja minha menina do
skate de novo.
Minha menina do skate. A súplica carinhosa quase me traz de volta.
Quase.
Talvez seja a adrenalina, ou talvez seja um demônio que me possuiu quando eu caí naquela torta e
provei daquele troço roxo... Mas alguma coisa me dá força suficiente para empurrar Jeb de lado
como se ele fosse um graveto. Ele rola para fora da mesa com um grunhido e eu agarro aquela delícia
pegajosa de rato que se debate sem parar. Uma calda roxa me escorre dos dedos para minhas luvas.
Estou prestes a dar uma mordida em sua cabeça quando sou guinchada por trás, e ele escapa.
— Me coloque de pé! — rosno, com uma explosão momentânea de força sobre-humana
praticamente terminada.
Alguém me deita de costas e me gruda no lugar. Minha visão fica turva e quase não consigo
distinguir as duas formas que se inclinam sobre mim.
— Ela provou o suco do fruto da Árvore Tumtum — diz a silhueta usando o chapéu de gaiola numa
voz que varia entre o tenor e o alto. — Ela tem que comer as frutas inteiras, senão vai ficar maluca.
— A pessoa então explode em gargalhadas tão altas e absurdas que parece uma hiena num pula-pula.
— Ah, mas... Ser maluco não é tão ruim — entoa a sombra com longas orelhas, acrescentando sua
gargalhada à mistura. — Podemos deixar que ela coma a gente. Abra a boca dela que eu entro.
Sempre quis ver um estômago por dentro.
Uma pata entra na minha boca e a segura, quase me sufocando. Eu lhe dou uma mordida. O intruso
a puxa e eu cuspo o gosto de carne chamuscada.
— Ela morde!
Risos e uivos explodem em todo canto.
— Afastem-se dela! — A explosão de Jeb os deixa mudos. Ele afaga meu cabelo para me acalmar,
o que tem o efeito oposto. Estar perto dele faz com que a fome perfure meu estômago — como um
espinheiro plantado bem fundo.
Não há nada engraçado sobre a maneira como me sinto agora. — Jeb, por favor! Estou com muita
fome! Me alimente ou vou morrer!
— Está bem, está bem... — A voz dele titubeia e percebo que eu o coloquei de joelhos.
Meus intestinos queimam como se formigas de fogo o consumissem. Fecho os olhos, mas ainda
consigo sentir cheiro de comida — em todo lugar.
Depois de um intervalo que pareceu uma eternidade, algo acolchoado e frio roça meus lábios.
Abro a boca, gulosa, e engulo todas as frutinhas que cabem lá dentro. Elas explodem em minha
língua, suculentas e deliciosas. Engolindo, imploro por mais.
Cinco bocadas depois, consigo me concentrar e não tenho mais dor.
Sento-me, piscando para os convidados do chá que se acomodaram no outro canto da mesa. O
coelho está preocupado com o relógio de bolso, secando-o com um guardanapo e distribuindo
desculpas para o Pai Tempo. Seus olhos brancos cintilam como bolas de gude quando ele sorri, sua
boca sem lábios revelando três dentes amarelos e tortos. O Camundongo está tomando banho em uma
xícara de chá, seu uniforme manchado esparramado sobre o pires. E Chapelão — ele realmente não
tem rosto. Ora é parecido com o rato, ora com o coelho, como se alguém estivesse mudando de canal
entre eles.
Jeb se inclina sobre a mesa. — Você está bem? — Ele parece preocupado.
Sinto-me mortalmente culpada pela maneira como quis puni-lo. — Eu estava...
— Desinibida e impulsiva. E como!
Olho para os pratos quebrados e a comida esmagada à minha volta. — Eu tenho um outro lado,
Jeb. E não tenho certeza se ele tem a ver com a maldição. Acho que esse lado pode ter estado sempre
comigo.
Ele junta nossas mãos. — Tudo bem que você tenha um lado meio ruim. Eu também tenho. Assim,
nós formamos um grande par. — Ele me ajuda a sair da mesa, envolvendo os braços na minha
cintura. Quando ele beija a minha testa, seu piercing aperta o ponto entre minhas sobrancelhas, frio e
reconfortante.
Eu me afasto. — Então, você não estava fingindo quando disse que queria ficar comigo e não com
a Taelor. Isso... Nós... É real?
O polegar e o indicador dele me beliscam o lóbulo da orelha carinhosamente. Ele está tão quieto e
pensativo. Temo que ele não responda.
Respirando fundo, ele olha para baixo. — Eu namorei a Tae... Para tentar não pensar em você.
Esperando que ela tirasse você de dentro de mim. O mesmo aconteceu com o lápis e o caderno de
desenho: não funcionou. E depois eu não tinha certeza de que você sentia o mesmo. E, se você sentia,
eu tinha medo de... — Jeb estuda as queimaduras de cigarro nos braços através das listras
transparentes de suas mangas.
— Continue ... — pressiono.
— De despejar minha carga em alguém tão doce quanto você.
Não consigo controlar um sorriso. — Uau, nossa.
— O quê?
— Acho que nós dois não tínhamos consciência. Foi por essa razão que escondi meus sentimentos
de você.
— Porque eu sou doce? — Aquele sorriso de garoto, com a covinha, se abre para mim.
Correndo os dedos pelo seu cabelo desgrenhado, dou risada. — Eu não queria arrastar você para a
loucura da minha família.
Um chocalhar de pratos faz tremer o outro lado da mesa, onde o Camundongo e a lebre brigam por
uma colher, ambos tentando ver seu reflexo na prata.
Jeb pega no meu queixo, recobrando minha atenção. — Escute, eu nunca quis magoar a Tae. Ela já
passa o diabo com o pai. Mas, quando ela veio me buscar para o baile de formatura, nós terminamos.
Eu disse para ela que tinha acabado... Que nós devíamos terminar. Eu não ia dizer nada antes do
baile porque ela me pediu. Ela já tinha comprado o vestido e eu tinha alugado o smoking, entende?
Mas ela sabe da verdade. Que, para mim, só existe você, Al. Só você.
São as palavras mais lindas que já ouvi em toda a minha vida. Meu estômago está esquisito, como
quando eu era criança e o carrossel do playground parava de girar e eu ficava lá olhando o céu que
rodava — tonta, feliz e extasiada — até que o mundo voltasse a ficar perfeitamente claro. — Ah, Jeb.
Ele levanta a minha mão e beija meus dedos. O piercing em seu lábio brilha na luz, me lembrando
dos olhos com joias de Morfeu. Odeio ter permitido que ele metesse dúvidas na minha cabeça sobre
o cara mais leal que já conheci. Não posso deixar Morfeu me influenciar novamente — nunca mais.
— Para mim também só existe você. — Entrelaço meus dedos nos de Jeb. — Me desculpe pelas
coisas que eu disse no Corredor dos Espelhos. E por ter mentido para você sobre a bolsa da Taelor...
E ter roubado....
— Shhh. — Ele se inclina para me beijar, tão terno e doce que tudo mais desaparece ao seu toque.
— Vamos esquecer tudo isso. Exceto uma coisa — sussurra ele em meus lábios. — Quando
voltarmos para casa, você faz o truque da corrente? Aquela dança na mesa foi muito sexy. — Ele
grunhe.
Eu rio, estremecendo com a vibração ardente em seu peito. Ele também ri, e depois puxa meus
quadris para si e beija minhas orelhas, minhas têmporas, meus lábios — me mergulhando em mil
sensações diferentes, todas tão deliciosas que quase esqueço o que ainda tenho que fazer.
Desfaço nosso abraço. Os olhos semicerrados e questionadores de Jeb me olham. — Já volto —
digo. Tiro minhas luvas emporcalhadas, jogo-as de lado e pulo na mesa, parando ao lado de
Chapelão. — A espada vorpal. Alice a trouxe para você antes de ser congelado. Precisamos dela.
A tela plana do rosto dele pisca, mostrando o meu reflexo e em seguida o de Alice. O efeito é
horripilante, como uma tela de cinema alternando entre duas eras diferentes. Jeb aproxima-se, e
espera.
— Espada? — Chapelão olha para seus dois companheiros. — Algum de vocês lembra de algo
sobre uma espada? — Todos eles caem na gargalhada, um som que me deixa atordoada.
— Talvez você a tenha engolido, Herman — diz a lebre, resfolegando. — Abra a boca e vamos
olhar.
— É melhor acender uma tocha — o Camundongo guincha. — Lá dentro é escuro e vasto como um
desfiladeiro.
Mais risadas e gritos.
Jeb pega a lebre pelas orelhas e a segura acima da mesa, pondo um fim ao festival de risos. Ele
aponta para Herman e o Camundongo. — Um pouco de cooperação os ajudaria muito a ficarem com
suas peles.
O rosto de Chapelão lampeja à imagem de Jeb. — Está falando com a pessoa errada, sua marmota.
— Ele olha para a amoreira acima de nós. — Alguém mandou vocês para uma caçada ao pato
selvagem. Quer saber quem?
Um farfalhar de folhas e Morfeu aparece no alto da copa. — Seria eu? — intervém ele com um
riso forçado.
14
Gaiolas
Faço sombra nos olhos para olhar para Morfeu, com um nó de raiva se formando no peito. Jeb tinha
razão. Ele só faz nos enganar. — Você mentiu.
Seu sorriso se desfaz e Gossamer, debaixo do cabelo dele, estica a cabeça para olhar. — Eu
estava mal-informado — diz ele.
O corpo inteiro de Jeb fica visivelmente tenso. — Mal-informado? Você mandou a Al para cá, a
colocou em perigo porque estava mal-informado?
Desço da mesa, passando os dedos nos músculos trabalhados de suas costas para acalmá-lo.
Morfeu abre mais um sorriso forçado de seu poleiro no alto da árvore — régio e pomposo com as
asas abertas bem alto, um fundo de cetim macio protegendo seu rosto pálido do sol. — Foi besteira,
eu sei. Tomei boatos como verdade. Eu estava no meu casulo quando a pequena Alice escapou com a
espada. Eu mesmo não vi o que aconteceu. Eu ouvi por aí que ela chegou aqui com a espada. Mas
agora eu soube da verdade. A espada ficou escondida este tempo todo no próprio castelo Vermelho...
Guardada pelo bandersnatch.
— Certo. — A voz de Jeb sai sufocada pelo autocontrole forçado. — E nós temos que aceitar sua
palavra.
— Meu espião só soube disso hoje. Alyssa acredita em mim, não é? — Morfeu desvia seu olhar
de mim.
Eu não respondo. A verdade é que não confio nele.
— Tome o silêncio dela como um não, insetão. — Jeb está concentrado na copa.
— Nenhum de vocês está ao menos curioso sobre a batalha que travei para mantê-los a salvo?
Lamento a ingratidão. — Morfeu estica as luvas enquanto Gossamer voa em torno de seu casaco,
verificando os rasgos. As roupas dele estão amassadas e danificadas, até mesmo com fuligem em
alguns pontos. Ele perdeu seu chapéu, e seu cabelo está completamente emaranhado. — Tive que
incendiar a sala de jantar para colocá-los para fora. Mas eles logo se espalharão por todo o País das
Maravilhas atrás de você. A Rainha Grenadine planeja dar um jantar e está determinada a revelar um
novo animal de estimação que divertirá seus convidados.
Os ombros de Jeb se impacientam debaixo de minha mão. — Animal de estimação?
— Grenadine deseja um substituto para Alice há décadas. Um pássaro engaiolado, por assim
dizer. — Tendo jogado essa bomba, Morfeu dá um gracioso salto e pousa na mesa, perto de
Chapelão e companhia. — Que bom ver vocês novamente. Como foi a soneca?
Os três intraterrenos saúdam Morfeu com abraços e apertos de mão.
Tomo a mão de Jeb, com o pulso acelerado. — Você se lembra do relatório psiquiátrico? Alice
disse ao terapeuta que passou 75 anos em uma gaiola no País das Maravilhas. Mas ela deve ter
voltado. Ela se casou e teve uma família. Caso contrário, eu não existiria. Certo?
Ele me puxa para perto. — Não sei o que está acontecendo. Mas precisamos tirar você daqui
depressa.
— Agora a maldição já está quebrada — digo, embora não me sinta nem um pouco diferente.
Morfeu parece alheio à nossa urgência. Ele dá tapinhas no conformador do Chapelão. O
homenzinho de cara insossa chega somente à altura de sua coxa. — É ótimo tê-lo de volta entre os
vivos, Herman. Necessito desesperadamente um novo Chapéu da Lisonja.
— Posso fazer! — A tampa da engenhoca do chapeleiro se fecha. Sua estrutura óssea e crânio se
contorcem e entram no lugar enquanto os pinos de metal rangem e se moldam em volta de sua cabeça
até que ele e Morfeu pareçam um par de bonecas Matrioshka.
É por isso que ele é o melhor chapeleiro do reino. Ele se torna a cabeça e o rosto de seu cliente
até terminar um projeto, produzindo o ajuste perfeito. Como deve ser isso? Nunca ter uma identidade
própria. Não é de estranhar que eles o chamem de maluco.
— Quiçá goste de um chapéu coco? — arrisca Chapelão, tateando suas maçãs do rosto
temporárias. — Tenho um ótimo feltro vermelho em casa.
— Hum... — Morfeu limpa a fuligem de sua lapela. — Eu estava pensando em fazer de entretela.
— Ei! — Jeb bate o punho no nosso lado da mesa. O grupo se volta para nós. — A Al está
correndo o risco de se tornar o periquito humano de alguém. Ela já terminou o que veio fazer aqui.
Cumpriu as exigências para quebrar a maldição. Agora precisamos voltar para o nosso mundo. E isso
é para ontem.
— Ontem, você disse? — gorjeia o chapeleiro, em seu timbre vacilante. — Ontem é exequível.
Gargalhando, a lebre bate no joelho e acrescenta: — Mas dois ontens seria impossível.
O Camundongo dá um risinho maroto e veste seu uniforme. — Não, não! Você pode retroceder
quantos ontens quiser. Pode andar de volta até o começo da sua vida.
Todos eles se curvam, com as mãos nas costelas de tanto rir histericamente. A falta de sobriedade
deles me espanta, e Jeb parece que vai surtar a qualquer instante.
Com um bater de asas, Morfeu pousa na grama ao nosso lado. Gossamer está aninhada em seu
cabelo. — Tenho mais notícias ruins quanto a sua partida.
Jeb fecha a cara. — Como pode ficar pior?
— Quando o exército Vermelho atacou a minha casa, eles encontraram a caixa linguardarte e a
levaram. Ela já não está mais sob minha proteção, e, sem a Rainha de Marfim, seu portal
permanecerá fechado. Isso torna ainda mais imperativo que peguemos a espada e derrotemos
Grenadine e seu rei.
Jeb avança para perto de Morfeu. — E como você propõe que nós os derrotemos se a espada está
no castelo deles sob a guarda de algum cachorro mutante?
Agarro o ombro dele por trás, lembrando-o de se controlar. Morfeu é nosso único aliado, não
importa as táticas detestáveis que ele use.
— Nem tudo está perdido — diz Morfeu. — Chessie pode dominar o bandersnatch, posto que sua
outra metade habita dentro da fera. — Ele coça os pezinhos balouçantes da fada. — Vocês vão pegar
a cabeça de Chessie para mim. Ele terá controle total, e eu poderei roubar a espada, derrotar
Grenadine e depois mandar vocês dois para casa pelo portal que quiserem, Vermelho ou Branco.
— Não! — dispara Jeb, num movimento tão rápido que quase desloca meu braço. Ele pega Morfeu
pela camisa rendada e o ergue até ele ficar na ponta dos pés e as asas arrastarem no chão. Gossamer
se pendura em um cacho do cabelo azul. — Isso é uma manobra para dar mais uma “tarefa” para a
Al, não é? Mais um teste. O que eu quero saber é para que ela está sendo testada? O que acontece
quando ela passar em todos?
Arrogante, Morfeu bate de leve em cada um dos dedos de Jeb, como se tocasse uma flauta. — Ah,
Gossamer tem falado demais, não? Ninfa ciumenta. — A fada foge do ombro dele e chispa para a
árvore acima de nós. — Sabe, nunca se pode confiar em uma mulher com pele verde. Pergunte a
qualquer homem que teve uma ressaca de absinto. — Morfeu olha para mim. — Tudo o que eu
sempre quis foi libertar Alyssa e mandá-la de volta para o lugar dela.
— E onde seria isso? — Jeb coloca a cabeça na minha frente, de modo que Morfeu tem que olhar
para ele.
— A casa dela, é claro. — As joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficam claras e cintilam
feito líquido, traduzindo a sinceridade de lágrimas reais. — Nada me agradaria mais do que pegar a
cabeça de Chessie eu mesmo. Mas, em razão de nosso mal-entendido com relação aos espíritos de
mariposa que abrigo, as Irmãs Twid e eu não estamos nos dando muito bem. Elas não me deixam
pisar e nem voar perto do portão delas.
— Espere. — Dou um passo à frente. — O que isso tem a ver com o cemitério?
— É lá que reside a cabeça de Chessie — responde Morfeu. — Por estar tecnicamente
“parcialmente” morto, lhe foi possível buscar conforto lá. Então a solução é simples: salvar o gato
para dominar o bandersnatch, libertar a Rainha de Marfim com a espada e depois vocês vão para
casa.
— Que bobagem. — Jeb dá um empurrão em Morfeu. Suas asas intraterrenas se abrem por
completo, mantendo seu equilíbrio antes que ele caia sobre uma cadeira. Gossamer mergulha das
folhas, pairando sobre ele.
Jeb pega minha mão. — Deixe que outra pessoa vá atrás do gato. A Al corre perigo aqui.
Precisamos nos esconder até podermos chegar em casa. Ela fez tudo que você pediu. A maldição está
quebrada, certo?
Morfeu olha para mim, não para Jeb. — De que vale a maldição quebrada se não puderem voltar
para casa? Se Alison nunca mais puder ver sua filha, ficará pior do que está agora. A insanidade dela
não será mais uma encenação.
Estremeço. Morfeu está certo. Alison nunca se perdoaria se eu me perdesse por sua causa.
Morfeu olha para trás, onde a turma do chá discute para ver quem vai beber a água em que o rato
se banhou na bota da lebre. O canto de sua boca franze. — O jardim interno é sagrado para a nossa
espécie. Somos proibidos de andar sobre aquele chão. Só posso enviar vocês.
Aperto a mão de Jeb, odiando o que vou dizer em seguida. — Então não temos escolha. Nós
vamos.
Jeb aperta meus dedos contra seu peito. — Não. Eu vou. Você volta voando com o meleca de
inseto.
— Naturalmente — interrompe Morfeu, a voz variando entre o sarcasmo e a insinuação. — Terei
prazer em levar Alyssa de volta comigo. Podemos retomar de onde paramos em meu quarto, certo,
querida?
Faço cara feia.
Jeb me empurra para o lado, saca o canivete suíço e pressiona a lâmina contra o esterno de
Morfeu. — Uma ideia melhor. Devolva o desejo para a Al... Agora.
Meu estômago dá um nó. — Jeb, eu não vou embora sem você.
— Não se trata disso. — Ele leva a lâmina até a garganta de Morfeu. — Você pode desejar nunca
ter vindo. Você ainda seria o sujeito do desejo, e isso tirará nós dois daqui. Eu nunca teria vindo se
não tivesse visto você pular para dentro daquele espelho.
Ele tem razão. Funcionaria. O único problema é que eu terei feito isso por nada. Alison ainda faria
o tratamento com eletrochoques e minha família seria amaldiçoada novamente porque eu nunca terei
vindo aqui para consertar as coisas.
— Dê a ela — diz Jeb —, ou ela vai ter uma mariposa tamanho família para usar na próxima obra
de arte. Entendeu?
Gossamer voa sobre o rosto de Jeb, num frenesi de asas. Sua distração dá a Morfeu a chance de
pegar o pulso de Jeb e dominá-lo. — Eu não estou com o desejo — diz ele, fervendo de raiva. — O
desejo se esvaiu quando eu tentava salvar suas miseráveis vidinhas e agora está nas mãos do Rábido
Branco.
Jeb torce o braço e se liberta. — Mentiras.
— Não importa — responde Morfeu, observando Jeb com cautela. — Alyssa não o usaria de
modo tão prosaico. Do contrário, sua família sofrerá para sempre a maldição que ela arriscou a pele
para quebrar.
O calor do olhar cúmplice de Morfeu é mil vezes pior do que os holofotes dos mineiros de
Submundo, e não há como esconder minha alma desnuda. — Ele tem razão.
Jeb olhar para mim. — Você deve estar brincando. Sua mãe não iria querer que você corresse
perigo!
Olho para minhas botas. — Por que estamos falando nisso? Ele disse que não está com o desejo
mesmo.
O riso de Jeb tem uma pitada de veneno por trás. — É incrível. Você continua um joguete nas
mãos dele. — A expressão dele endurece. — Você sabe o que eu faria se tivesse um desejo? Eu
desejaria que você confiasse em mim como costumava confiar. Como você confia nele agora.
A insinuação me atinge lá no fundo. Ele não pode estar falando a verdade. Pode?
Jeb se vira para Morfeu, brandindo novamente a lâmina do canivete. — Se alguma coisa der
errado, se ela sofrer um arranhão, eu corto você dos pés à cabeça. — Fazendo um esforço enorme
para se afastar, ele dá meia-volta e pega nossa mochila.
— Pegue as indicações para chegar ao cemitério — explica ele, dirigindo-se a mim, e depois
segue para a colina, parando no limite do deserto de tabuleiro de xadrez. Ele fecha o canivete e olha
para a distância com toda a paciência e compostura de um animal selvagem engaiolado, enquanto
Gossamer flutua em torno dele.
— Seu namorado tem sérios problemas com confiança — provoca Morfeu.
— Cale a boca. Ele teve uma infância difícil.
— Ele devia ser grato por ter tido uma infância, afinal.
— Pare de se fazer se vítima. Você teve uma infância. Eu estava lá, lembra?
As marcas pretas em torno dos olhos de Morfeu enrugam-se num sorriso sarcástico. — Não,
Alyssa. Eu estava me referindo à pobre e pequena Alice.
— O que quer dizer com isso?
— Você vai precisar de uma arma. — Morfeu se esquiva da pergunta. Enfiando a mão enluvada no
casaco, ele vasculha um bolso interno e tira um pequeno e delgado cilindro de madeira. Ele o vira,
revelando buracos ao longo do objeto e um bocal em uma ponta.
— Uma flauta? Como isso vai nos proteger? — pergunto.
Morfeu aproxima-se e enfia o cilindro na minha blusa. Ele o desliza por minha pele nua até
encaixá-lo no meu decote. Gossamer deve estar distraindo Jeb, ou ele já teria jogado esse idiota do
alto da colina. Pessoalmente, estou pensando em esfregar o instrumento no nariz dele.
O olhar dele me coloca em cheque. Em algum lugar, por trás dessa imagem fantasmagórica, está a
sinceridade, talvez até preocupação. Meu coração bate junto à madeira fria e lisa da flauta.
— Esperemos que você se lembre daquelas aulas de música que foi obrigada a frequentar. —
Morfeu apoia o quadril na mesa. Suas asas relaxam. — Um violoncelo deve bastar para saber a
escala musical. Se você tocou um instrumento, tocou todos, certo?
Pela primeira vez, sou atingida à queima-roupa. — Você é a razão pela qual ela queria que eu
tocasse?
— Embora ela esperasse, de todo o coração, que você nunca viesse parar aqui, mesmo assim ela a
preparou. E, até agora, você se mostrou gloriosamente capaz. Como ela ficaria orgulhosa de seu
comportamento grotesco na mesa há pouco.
Um rubor sobe, quente, para minhas bochechas. Ele me viu dançar? Ou talvez esteja se referindo à
minha luta bárbara para comer o Camundongo. As possibilidades são igualmente perturbadoras. —
Você estava vendo?
— A propósito... — Ele olha para as costas de Jeb e aproxima-se, murmurando baixinho. — O
suco de Tuntum altera as inibições de uma pessoa, aumenta sua fome. Mas não é a fome de comida. É
das experiências que elas desejam. Se tivesse sido comigo e não com o seu soldadinho de brinquedo,
eu teria encontrado um meio de saciar tanta fome sem recorrer a frutinhas.
A arrogância dele me ferve o sangue. — Você não tem equipamento para satisfazer nada.
Mariposa. Lembra?
Ele ri silenciosamente, num gesto sombrio e suave. — Sou um homem em todos os sentidos. Assim
como você é uma mulher, mesmo que alguns acreditem que você não passa de uma menininha
assustada que está sempre necessitando de ajuda.
Ignoro a farpa. — Naturalmente. Você é um especialista em mulheres. — O olhar de cobiça na
expressão apaixonada da Rainha de Marfim por trás do vidro emerge em meu pensamento. Aquela
pontada estranha e possessiva vem em seguida, mas eu a refreio.
— Sinto um certo ciúme?
— Até parece.
Ele sorri, arrastando uma asa sobre o ombro para alisá-la. — Estou nesta forma há algum tempo.
Tive que praticar um pouco. Mas somente uma mulher é igual a mim em todos os aspectos.
Intelectual, física e magicamente.
— É ela, não é? — Minha inveja é quase palpável. — Você colocaria qualquer um em perigo para
tê-la em seus braços.
— Sem dúvida.
— Odeio você.
— Só por causa do que eu provoco em você.
Minhas unhas se cravam nas palmas das mãos. — Só porque você traz à tona o que há de pior em
mim.
— Ah, não, querida. Eu trago à tona a vida que há em você. — Seu olhar intenso me atrai. O
acalanto excita meu sangue, levando minha pulsação a seguir seu ritmo. “Pêssego e cinza, cresceu a
florzinha, forte ficou e seu caminho encontrou; duas coisas ainda há que fazer, até finalmente...”
O fim do verso — a última peça do quebra-cabeças — ainda me escapa. Aperto as têmporas para
tirá-lo de minha cabeça. A ponta de meu dedo roça meu grampo de cabelo, e ele me aperta. — Pare
com isso! — retruco. — Onde é o cemitério?
Gossamer aparece no ombro de Morfeu quando ele aponta. — Depois do abismo... Logo ali.
Ele indica uma gota entre as areias do tabuleiro de xadrez à beira da duna, não muito distante de
onde Jeb está. É difícil distinguir daqui, mas parece ser uma fissura na terra.
— Há um abismo? — pergunto, mais desconfiada a cada segundo.
— Ele separa o deserto do vale — um pouco largo para um mortal saltar. O cemitério é do outro
lado. Está encoberto por uma touceira de vinhas e hera que protege os espíritos da luz do sol.
Minha coragem dá meia-volta frente à ideia de arrastar-me através de um matagal escuro cheio de
fantasmas — intraterrenos ou não —, mas controlo meu medo. Jeb estará lá; não estarei sozinha.
— A menos que ache um modo de atravessar o abismo — acrescenta Morfeu —, terá que subir a
pé. Pegue a crista mais alta que o circunda.
As areias da crista parecem se estender ao infinito. Se a contornarmos, pode levar um dia. Não
temos esse tempo todo se quisermos impedir o tratamento de Alison. Estou quase me opondo quando
o Camundongo grita: — Pássaros Jubjub!
Gossamer faz um túnel no cabelo de Morfeu quando ele bate as asas e ganha o céu. O
deslocamento de ar passa por mim, numa lufada com perfume de alcaçuz. A turma do chá entra
apressada no chalé da lebre e bate a porta. Nuvens de poeira preta e branca assomam a distância.
As nuvens de poeira se dissolvem, revelando um exército de guardas de cartas montados em
pássaros. Enormes, com constituição de avestruz, cauda de pavão e cabeça e asas de gafanhotos
gigantes. Embora os pássaros pareçam não poder voar, suas longas pernas cobrem a distância entre
nós com facilidade. É um enxame de gafanhotos mutantes vindo nos devorar.
Nunca mais matarei um inseto que seja na vida...
Com o coração martelando as vértebras como um gongo, grito para Morfeu lá em cima: — Ajude-
nos!
— Cuidado com as areias movediças — grita ele em resposta. — Use a flauta se precisar ganhar
terreno. Presumindo que vocês cheguem ao vale, dirijam-se diretamente para o cemitério. O exército
não entrará para segui-los. — Numa investida, ele voa na direção oposta de nossos atacantes. E vai
embora. Sem mais nem menos.
Presumindo que nós cheguemos? Fico tão aviltada que meus olhos queimam. — Você jurou que
não me deixaria novamente! Suas asas vão encolher, seu covarde! — grito.
Mas você não está machucada... Ainda.
É a voz dele, mas não tenho certeza se ela vem da minha memória ou se ele ainda está dentro da
minha mente. Seja o que for, eu tinha esquecido da estipulação para seu voto da magia da vida. Ele é
o mestre dos detalhes.
Um martelar estilhaça o ar. Viro-me e vejo Jeb batendo o carrinho de chá contra o tronco da
árvore. Antes que eu compreenda o que ele está fazendo, ele já desmontou duas prateleiras da
estrutura. Ele afasta a franja do rosto e vira as tábuas para analisar o fundo. Elas são lisas e sem
emendas, ligeiramente curvadas para cima no final.
Ele estende uma para mim. — Vamos!
Pego o pedaço de madeira, confusa.
Jeb coloca a mochila no ombro, corre para a beira da duna alguns metros adiante e coloca a sua
prateleira no chão, na borda onde começa o declive. Com um sapato na madeira para mantê-la
abaixada, ele se vira para mim: — É agora, menina do skate!
Corro para ele, os braços tremendo ao acomodar minha prancha no lugar. Ele espera que a gente
desça nelas — como surfe de areia. Mas será que ele não vê o abismo entre o deserto e o vale?
O final do declive se curva para cima, como uma rampa de lançamento. Ele não pode estar
contando que nós...
— Hoje você vai aprender um ollie — diz ele, completando meu pensamento.
Minha pulsação martela no pescoço. — Sem chance.
— Sem escolha. — Ele estende a mão. — Se começarmos a cair, use seu truque mágico. Faça as
pranchas flutuarem sobre o abismo.
— E se eu não conseguir? Já quebrei a maldição, consertei os erros de Alice. Talvez eu tenha
voltado a ser eu mesma.
— Você ainda se parece com um deles. Aposto que não vai voltar a ser normal até que a gente
atravesse aquele portal. A esta altura, o que temos a perder? — A mão dele aguarda a minha.
Eu a agarro e olho para trás. Nuvens de poeira consomem a ladeira e o exército toma a colina.
Eles chegarão no platô a qualquer momento. Olho para os torvelinhos de areia.
De perto, a inclinação é umas três vezes mais íngreme do que a maior queda do Submundo, e eu
nunca cheguei a subir no alto dela. Estamos tão alto que minha visão flutua e meus joelhos ficam
moles.
— Uaaaa! — Jeb passa um braço em torno da minha cintura para me equilibrar.
— Jeb... — Agarro o seu pulso. — Vamos nos separar.
— Não vamos. — Ele solta uma ponta da corrente de metal pendurada nas presilhas de seu cinto.
Depois a desenrola, deixando a outra ponta ainda presa em sua calça. Prendendo a corrente a um dos
anéis do meu cinto, ele forma uma corda de segurança. Quando esticados, os anéis permitem que
fiquemos à distância de um metro, e nos deixam seguros.
— Pronta? — pergunta ele, olhando por sobre o ombro para nossos iminentes captores.
— Sim. — Mas meu estômago dá voltas e diz “não”.
Cada pedaço de mim pede para voltar... Para correr na direção oposta. Mas os pássaros Jubjub
guincham atrás de nós — um som que perfura os tímpanos, como os pterodáctilos gigantes de alguma
trilha de filme pré-histórico — e eriçam os pelos do meu pescoço.
Deslizo o pé para cima da prancha.
— Agora! — grita Jeb.
Meu estômago vai ao chão quando damos um empurrão juntos e mergulhamos nas profundezas de
xadrez.
CONTINUA
8
Octobenus
O pesadelo de Alice me encontra durante meu sono...
Não estou sozinha desta vez. Jeb carrega a espada roubada, e corremos pelo caminho na direção
do covil da Lagarta. Os espinhos que já rasgaram meu avental de criança alongam-se e se
transformam em enguias folhosas. Os cordões serpenteantes se enrolam em nossas pernas e nos
levam de cabeça para baixo até o tabuleiro de xadrez. Nossos corpos se congelam e viram peças do
jogo. Uma mão aparece, usando uma luva preta, e nos move de quadrado em quadrado. Ela me pega
para dar um xeque-mate, mas Jeb ganha vida e decepa os dedos com a espada para me libertar. Os
pingos de sangue caem um a um e se metamorfoseiam em lagartas. Jeb e eu voltamos correndo para o
caminho. O cogumelo aguarda no centro, escondido em uma teia. As lagartas nos perseguem até lá.
Elas cavam túneis para entrar no casulo, enchendo-o até ele se contorcer — o casulo é uma coisa
viva que respira. Uma lâmina negra afiadíssima dilacera o casulo a partir de dentro. O que está lá
dentro, seja o que for, vai sair.
Acordo assustada, e pisco diante da claridade do sol. Minhas mãos estão fechadas e os punhos,
cerrados. O que me acordou? Eu estava tão próxima de desvelar o rosto dentro no casulo — algo que
venho esperando há anos.
Com um bocejo, concentro-me no aqui e agora. Em algum momento durante a noite, devo ter me
virado para Jeb no barco, e ele me puxou para si, aninhando-me debaixo do seu queixo. Agora só
vejo um close de sua barriga tanquinho. Ele ainda dorme. Sua respiração pesada esvoaça meu cabelo
num ritmo lento. Seus braços agarram minha cintura.
O dia anterior regressa ao meu pensamento aos pedaços: a toca do coelho, o jardim de flores
mutantes, o mar de lágrimas.
Aconchego-me sob o pescoço de Jeb com os dedos recolhidos dentro das mangas do casaco do
smoking, determinada a não acordá-lo só para poder fingir que as coisas são simples e perfeitas.
Apenas por mais alguns instantes.
O barco balança e percebo que foi isso que me acordou. Não é um movimento suave da correnteza.
Parece mais um movimento do tipo “alguma coisa pesada se moveu na borda e está nos observando.”
Congelo — fico dura como a madeira abaixo de nós.
Fungadas guturais enchem o ar, como as de buldogue asmático. O calor do sol sobre meus ombros
esfria quando uma sombra recai sobre nós. Meu coração tem um sobressalto. Antes que eu possa
emitir um grito, Jeb entra em ação, rolando-nos na direção da proa e puxando-nos para ficarmos de
pé. Ele estava acordado o tempo todo.
— Sem chance — diz ele.
Oscilo com o movimento do barco, segurando a cintura de Jeb com uma mão e o assento atrás de
mim com a outra. Olho em torno dele.
À primeira vista, nosso intruso parece um polvo. Ele tem duas presas gigantes com imagens de
serpentes e chamas furiosas entalhadas ao longo do marfim. Mas, por baixo de camadas de banha,
sua outra metade é um emaranhado de tentáculos pegajosos cobertos por ventosas. É como se alguém
tivesse misturado duas criaturas diferentes, criando um octopolvo. Ele deve pesar quase duzentos
quilos, e seu corpo ocupa a maior parte do barco.
Grande daquele jeito e com os tentáculos pendurados metade para dentro e metade para fora, o
barco deveria ter virado. Jeb e eu deveríamos ter sido arremessados feito pedras em um estilingue
assim que ele escorregou para dentro. Em vez disso, o casco está nivelado e desliza pela água
cristalina como se a criatura não pesasse mais do que nós. Me pergunto o que Isaac Newton teria a
dizer sobre esse furo nas leis da física por aqui.
Jeb me cutuca para eu me sentar atrás dele, mas ele continua de pé, cada músculo de seu corpo
tenso e pronto para reagir. — O que é você?
Nosso visitante não convidado limpa uma meleca que pinga de seus olhos com os dedos humanos
nas pontas de suas nadadeiras. — Boa pergunta, cavaleiro élfico. Sou um octobenus. Agora, deixe-
me adivinhar sua próxima pergunta. O que eu quero? Para esta, a resposta é simples. Quero parar
com o eterno sofrimento da minha barriga. — Suíças longas e loiras, em contraste com uma pele cor
de canela, pendem sob suas narinas. Seus tentáculos batem no mar, espirrando água sobre nós.
Da corrente em seu pescoço, ele abre um medalhão do tamanho de uma caixa de charutos e tira
algo de dentro. Ele coloca um marisco na palma da mão, segurando cuidadosamente sua casca para
mantê-la fechada. — Bom dia, pequenino repolho do mar — diz ele, provocando. — Ainda
preocupado com sua família?
O marisco tenta abrir a boca para responder. O octobenus volta a fechá-la para que ele fique
quieto. — Vamos fazer o seguinte: se você conseguir saciar minha fome, eu liberto os restantes. Quer
tentar?
Embora o marisco não possa abrir a boca o bastante para falar, um músculo rosado no formato
semelhante ao de um machado esgueira-se para fora da abertura — como um braço ou perna
defeituoso —, acariciando a bochecha da enorme criatura numa derradeira tentativa de salvar sua
vida.
Um murmúrio escapa de minha garganta. Jeb estende o braço para trás e me dá sua mão. Entrelaço
nossos dedos.
Em um acesso de banha e baba, o octobenus abre a concha com força, sela sua boca em volta dela
e suga o conteúdo, produzindo um ruído terrível de sorvo. O grito excruciante do marisco ecoa na
minha cabeça e depois cai em um silêncio mortal. Aperto mais forte o braço de Jeb, tentando não me
sufocar.
— Não. Ainda estou com fome. Suponho que irei comer as crianças em seguida. — Nosso
visitante indesejado solta um riso medonho e cortante, e depois joga a concha vazia ao mar. Com um
tentáculo, ele vai dando tapinhas até ela afundar, e esse movimento faz o barco balançar.
Os dedos de Jeb me apertam o punho conforme ele tenta manter o equilíbrio.
— É preciso ser ligeiro com presas escorregadias como esta — o octobenus diz. — São
traiçoeiras... Sempre tentando pegar você com sua Língua dos mortos. Pode imaginar virar escravo
do último desejo de um marisco? — Ele ri novamente.
Língua dos mortos... O termo que estava atrás da avaliação psiquiátrica de Alice. De trás de Jeb,
dou uma espiada e vejo a criatura com cara de morsa colocar um monóculo no aquoso olho esquerdo.
— Agora — lança ele —, se fizer a gentileza de ficar de lado, elfo, eu gostaria de ver melhor sua
protegida.
A postura de Jeb endurece. — Nem pensar.
A octoaberração larga o monóculo. — Aquelas flores desajeitadas acham que o seu sangue tem o
poder de comprar minha cota de bivalves! — Seu grito chocalha em nossos ouvidos, e nos atravessa,
com seu cheiro de peixe e morte. — Mas a questão nunca foi comprá-los. Sou um caçador. Tenho
que capturá-los. É a minha natureza. Mariscos são criaturas habilidosas, sempre usando os bracinhos
para se mover por aí e escapar para seu refúgio no leito do mar. Se não fosse tão escuro lá embaixo,
e com meus olhos já tão ruins... Tenho sorte se consigo capturar meia dúzia antes que todos se
escondam. — Ele limpa a boca com uma forte nadadeira. — Mas o Sábio possui uma flauta mágica
que atrai minhas presas para fora dos seus esconderijos. E agora eu tenho alguma coisa para trocar
por ela.
— Oferecendo meu sangue em troca. — Jeb adivinha.
Isso não pode estar acontecendo. Não importa em quantas brigas ele se envolveu em casa. Mesmo
com o canivete, ele não tem nenhuma chance contra um mostro marinho de trezentos quilos.
— Ele não é um elfo com pedras preciosas! — grito de trás de Jeb. — Ele é humano. Olhe as
orelhas.
Jeb aperta meus dedos — um pedido para eu ficar quieta.
— Não importa. Joias e riquezas não significam nada para o Sábio. Mas você, repolhinho, ele está
desesperado por sua ajuda. Se está! Há anos ele está esperando que você volte para cá.
Aquela afirmação fica se revirando em minha cabeça. As flores disseram que o Sábio é a Lagarta.
Então... Ela está esperando por mim? Talvez a lagarta tenha enviado a mariposa e o meu guia
sombrio para me encontrar e me trazer para cá.
Os tentáculos de nosso captor se contraem ao longo das bordas do barco feito pítons gigantes, e a
madeira range. — Com você como refém, posso trocá-la pela flauta. Ele a colocará aos meus pés se
a levar em segurança.
— Terá que me matar para chegar até ela — adverte Jeb.
Dou um puxão no pulso dele, mas ele me ignora.
O octobenus aperta as mãos-nadadeiras. — Ah, um amigo leal. Eu tive um desses, muitos anos
atrás. Ele era artesão. Foi ele que esculpiu minhas presas e fez um lindo baú para guardar minha
reserva de mariscos. Depois, descobri que ele estava saqueando meu estoque. Então, uma noite,
quando ele dormia, eu o capturei — os tentáculos se enroscam em volta do barco numa demonstração
— e o prendi no baú com as conchas vazias. Atirei tudo no mar para abafar seus gritos. Os ossos
dele são isca de peixe agora.
Mordo os lábios para não gritar.
Nosso captor ri. — Triste, não é? Veja, se eu fui tão insensível com um amigo, o que me impede
de matar você? Nada impede que eu satisfaça as necessidades da minha barriga. — Ele corre a
extremidade fina e pontuda de um tentáculo até a ponta de suas presas babadas. — Eu vou pegar a
garota!
Ele lança seus tentáculos e agarra Jeb pela cintura.
— Não! — Meus braços se levantam para segurá-lo. Os tentáculos o arrebatam, erguendo-o no ar.
— Há terra... à sua esquerda! — Jeb grita enquanto luta com a criatura, escapando por pouco da
ponta mortal de uma presa. A luta impele o barco.
Ao repelir mais gritos, agarro-me ao banco para manter o equilíbrio. Jeb tem razão. Há alguma
coisa no horizonte. E brilha feito lantejoulas pretas. Pode ser a ilha da qual as flores nos falaram.
— Vá! — Jeb grita. — Eu vou segurá-lo o quanto puder!
Ele passa a corrente em volta do pescoço do monstro. Com puxões rápidos, ele envolve alguns
tentáculos para que eu possa escapar. Uma das presas rasga a calça de Jeb na altura do joelho. O som
do tecido rasgando me lembra da horrível morte do marisco. Não posso deixar que isso aconteça
com Jeb.
Não conseguiremos escapar do octobenus na água. Como revidar? Ele não tem fraquezas óbvias...
Só um apetite insaciável.
— Espere! — Caio de joelhos diante dele, encenando uma ideia repentina, na esperança de que dê
certo. — Por favor, solte meu amigo e eu o ajudarei.
— Al! — Jeb grita.
— Dê-me sua palavra, menina intraterrena — diz nosso captor com um sorriso gordo e
desdenhoso. — Você conhece as regras... Um juramento da nossa espécie não pode ser quebrado, ou
você perderá seu poder.
Não sei por que ele está me chamando de menina intraterrena, mas estou disposta a usar isso a meu
favor. — Prometo que o ajudarei.
— Não é o bastante — rebate ele, apertando ainda mais Jeb em seus tentáculos até fazê-lo gemer.
— Faça do modo apropriado. Cubra seu coração... Jure pela magia da sua vida. E seja bem
específica.
Não tiro os olhos dos lábios de Jeb, que já estão azulados, e levo a palma da mão ao peito. — Eu
juro pela magia da minha vida que o ajudarei a saciar seu apetite.
Num movimento ruidoso que o faz virar seus bigodes, ele relaxa os tentáculos e solta Jeb, que cai
no casco do barco.
Abraço as roupas babadas de Jeb. Ele me mantém equilibrada no barco e ficamos de pé juntos. Ele
tosse tanto que quase não consigo ouvir sua voz. — Você devia ter... caído fora.
— Não — sussurro. — Vamos ficar juntos, lembra? — Em seguida, volto-me para nosso captor.
— Senhor Octobenus, eu sei como encher sua barriga. Podemos dar bolo aos seus mariscos.
Jeb franze a cara para mim, finalmente recuperando o fôlego.
A criatura relaxa no banco sobre um ninho de tentáculos, ofegante e fungando devido ao exercício
da luta. — Você está me oferecendo bolo de mariscos?
— Não. O bolo é para os mariscos — respondo. — Para aumentar seu estoque até chegarmos à
flauta. Nós temos uma coisa que fará seus mariscos crescerem e ficarem do tamanho de um prato de
comida. — Eu viro o rosto para Jeb e articulo com os lábios as palavras O comedor acaba comido.
A expressão dele se ilumina ao compreender o que digo. Ele arrasta a mochila em nossa direção.
É incrível como ele está composto depois de quase ser empalado, esmagado e devorado.
A morsa mutante observa, curiosa.
Jeb abre a bandana para exibir o bolo com as palavras Coma-me escritas com as passas.
O octobenus dá um pulo. — Um bolo de aumento! Onde vocês encontraram essa preciosidade?
Pessoalmente, nunca vi um. Eles foram proibidos depois do incidente com Alice. Não importa, não
importa... — Ele abre o medalhão da corrente uma vez mais. O novo marisco luta com ele
furiosamente.
— Me dê isto aqui — ordena o octobenus. — Se falhar, rasgo as entranhas do meu amigo mortal e
faço delas alimento para os peixes. — A baba lhe desce pelas presas e preenche as imagens
esculpidas com um visco brilhante.
— Ah, vai dar certo. — Jeb desliza o bolo pelo casco. — Aposto minha vida que vai.
— Acaba de apostar. — A morsa mutante grunhe ao curvar-se para pegar o bolo. Tirando uma
migalha, ele se prepara para enfiá-la na abertura da concha do marisco.
— Você precisa dar mais do que isso — diz Jeb, recuando lentamente para a borda do barco, com
a mochila nas mãos. — O máximo que puder enfiar na boca dele.
— Sim, sim. Imagine! Mariscos do tamanho de pratos... — Sem olhar para cima, ele ri e tira um
pedaço maior. Depois, abrindo a concha à força, ele enfia o bolo dentro e a fecha novamente.
Em segundos o marisco começa a tremer junto com o barco.
— Agora! — Jeb mergulha no mar segurando a minha mão. Um tapa dos tentáculos roça as minhas
pernas, mas em seguida a água cálida se fecha sobre nós, e afundamos. Jeb nada cachorrinho na
minha frente, seu cabelo formando redemoinhos semelhantes à flora marinha das profundezas azuis.
Ele me puxa pelo pulso. Bato as pernas para subir, minhas botas e roupas pesadas e desajeitadas na
água.
Chegamos à superfície e damos profundas talagadas de ar, parados em um ponto distante o
bastante para vermos o que acontece no barco. O marisco cresce, do tamanho de um estojo de
maquiagem para o tamanho de uma caçamba de lixo.
Em uma exibição estranhamente graciosa de banha, nadadeiras e tentáculos, o octobenus percebe
seu erro e tenta escorregar para fora do barco. Tarde demais. A concha gigante se abre e um
apêndice em forma de machadinha salta para fora — grande e poderoso como uma anaconda. O
músculo envolve o octobenus e o leva à boca, sugando os tentáculos feito fios de espaguete gigante, e
em seguida se fecha.
O barco se verga e racha. Em segundos, o marisco mergulha no mar, deixando somente espuma e
destroços flutuando atrás de si. A água forma ondulações em torno do naufrágio, um final
sinistramente sereno para uma cena tão violenta.
Jeb segura meu pulso e a mochila com uma mão, enquanto usa o outro braço em um nado de peito
lateral para nos impulsionar na direção da praia preta.
Algo me puxa para baixo.
Bato as pernas até ficar com cãibra, tentando manter a cabeça fora da água. Não adianta. Solto-me
de Jeb, com medo de puxá-lo para baixo comigo.
Debaixo da água, procuro o que está me ancorando, horrorizada com a possibilidade de que seja
uma criatura marinha, mas não vejo nada. O peso parece estar centralizado em minha cintura, mas
estou descendo muito depressa para encontrá-lo. Eu me debato, braços e pernas lutando contra o
ímpeto descendente. Meus pulmões clamam por oxigênio.
Jeb aparece acima de mim. A mochila desce atrás dele na direção das profundezas escuras.
Minhas mãos e pernas irrompem num movimento ainda mais forte, lutando contra a força da água. Jeb
tenta me puxar para cima pelos braços. Eu me afasto, resistindo. Ou talvez esteja resistindo a mim
mesma. Ao meu medo...
A expressão dele quando me agarra é resoluta. Ele se recusa a ceder, e isso me assusta ainda mais.
Balanço a cabeça.
Salve-se! É o que meus olhos lhe dizem, mas ele é teimoso demais para ouvir.
Quero dizer a ele que sinto muito por tê-lo arrastado até aqui. Em vez disso, bolhas vazias
rodopiam entre nós.
Uma dor impetuosa e pungente me aperta o peito. Debato-me na água, procurando alguma maneira
de me libertar, de fazer aquilo desaparecer. Minhas lágrimas se mesclam com as de Alice e o
pensamento fica obscurecido. Jeb ainda está me puxando, mas é inútil — continuamos afundando.
Quando estou prestes a ceder à inconsciência, começo a perceber que o peso vem do bolso da
minha saia. Entorpecida, tiro a esponja que peguei no fundo da toca do coelho.
O que antes possuía o tamanho de um pedacinho de queijo agora é grande como uma bola de golfe,
e continua crescendo. Ela desce, deslizando para o fundo do mar, arrastando a água junto, criando um
rodamoinho.
Estou livre.
Abraçados, Jeb e eu emergimos e temos tempo suficiente para encher nossos pulmões antes que a
sucção do funil nos arrebate. A esponja está do tamanho de uma laranja agora, e posso ver o fundo do
mar lá longe abaixo de nós.
Solto um grito, agarrando-me a Jeb.
Meus olhos se fecham ao batermos em alguma coisa sólida.
— Al — chama Jeb, e só então percebo que consigo respirar.
Busco sofregamente o ar, abro os olhos e pisco com força para secá-los. O mar sumiu. Vegetação
marinha achatada e pilhas de areia seca nos rodeiam. Poças de água brilham em alguns pontos,
refletindo a luz do sol. A distância, avisto nossa mochila. As areias pretas da ilha elevam-se à altura
de um desfiladeiro acima de nós — uma escalada que não conseguiremos fazer.
A alguns metros, entre os destroços, sentado ao lado de um baú musgoso em decomposição, o
marisco gigante lambe os lábios cheios de sangue. Suponho que o octobenus acabou reencontrando
seu amigo artesão, afinal.
Uma brisa agita o ar, trazendo cheiro de peixe e sal. Imagino que a esponja deva estar do tamanho
de uma montanha. Mas lá está ela, ao lado das minhas botas ensopadas, do tamanho de uma bola de
basquete. Eu a recolho. Difícil compreender que um mar inteiro esteja contido aqui dentro.
Jeb me ajuda a ficar de pé e eu largo a esponja. Ela pousa com um som de borrifo.
Mesmo estando fraca e exausta, sou tomada por um sentimento de realização. — Nós conseguimos
— murmuro, mal conseguindo compreender o significado dessas palavras. — Secamos o mar. Como
as flores queriam que fizéssemos.
— Você secou — enfatiza. Jeb afasta o cabelo de minha testa. — E você quase se afogou fazendo
isso. — Antes que eu possa responder, sua boca quente e macia toca a minha testa, minha têmpora e
em seguida meu queixo. Todas as vezes, seu piercing roça suavemente em minha pele. Ele se detém
na linha do maxilar e curva-se para me puxar mais para perto num abraço, com o nariz enfiado no
meu pescoço. — Nunca mais me assuste desse jeito.
Não importa que estejamos molhados; o calor irradia através de nossas roupas ensopadas. Passo a
mão em seu cabelo. — Você voltou para me salvar.
Ele aproxima o nariz da curva do meu queixo, e uma poderosa onda de emoção pulsa através do
corpo dele. — Eu sempre voltarei para você, Al.
Uma leve batida de alerta no meu peito me recorda de Taelor e da determinação de Jeb de ir para
Londres sem mim a fim de ficar sozinho com ela. Mas a adrenalina vem ainda mais forte. Eu toco sua
orelha com meus lábios, provando do resto das lágrimas de Alice. — Obrigada.
Ele tensiona os músculos dos braços. Seu nariz fuça o cabelo em minha nuca, como se quisesse se
perder naquele emaranhado. Nossos corações estrondeiam. Tremores de nervoso percorrem o meu
corpo e meus membros estremecem.
— Jeb — sussurro. Ele murmura algo indecifrável, e minhas mãos hesitantes agarram seu pescoço.
Um grunhido escapa de sua garganta. Fico sem ar quando ele aperta meu cabelo em seus dedos e o
puxa para trás, com olhar intenso. Ele já está se curvando para chegar mais perto quando uma
cacofonia de cliques e estalos nos interrompe.
Viramo-nos em círculos, observando ao nosso redor. Milhares e milhares de mariscos saem de
seus túneis na areia. Agarro a mão de Jeb, temendo que eles nos ataquem por termos destruído seu
lar. Em vez disso, irrompem gritos e aplausos.
Olhando para trás de Jeb, fico pasma. — Atrás de você.
Ao lado da parede de areia que parecia um desfiladeiro, toneladas de conchas se empilham uma na
outra — rolando para cima, para os lados — com o objetivo de formar uma escada-rolante viva.
— Nós derrotamos o inimigo deles — sussurro. — Eles querem ajudar.
Jeb não hesita. Pega minha mão e me conduz na direção dos degraus que sobem, arrebatando a
mochila no caminho. Juntos, seguimos em direção às brilhantes areias pretas da ilha.
Quando chegamos ao alto, aceno para os mariscos, que desaparecem no leito do oceano lá
embaixo.
Jeb abre a mochila para checar nossas coisas. — Acho que eu não devo ficar admirado que nada
esteja molhado. — Ele abre o estojo de lápis antes que eu possa detê-lo. E fica boquiaberto. — O
que é isso?
— São minhas... Economias. — Ótimo. Eu não só me atirei nos braços do namorado de Taelor
como também menti sobre o dinheiro que roubei dela.
Jeb conta o montante e olha para cima. Há algo insondável por trás daqueles grandes cílios.
— Você parece diferente — lança ele, colocando o dinheiro de volta no estojo e sacudindo gotas
de água do cabelo.
— Pareço? — Esfrego a pele em torno dos olhos. Será que todos os meus segredos estão piscando
na minha cara feito um letreiro de neon? — Minha maquiagem deve estar toda borrada.
— Você está cintilante — o corpo todo.
— Ah, deve ser resíduo de sal. — Eu tiro seu casaco do smoking, torço-o para tirar a água e o
devolvo.
— Ahn — murmura ele, ainda concentrado em mim. — Então... Vamos conversar sobre aquilo? —
Jeb enfia o casaco na mochila.
— Sobre o quê?
— O que aconteceu lá embaixo entre nós.
O calor me formiga as bochechas. Ele se arrependeu. Ou talvez esteja com medo de que eu conte a
Taelor. De qualquer maneira, acabo parecendo uma idiota. — Foi a adrenalina. Só isso. Nós só
estávamos felizes por estarmos vivos. Não se preocupe. O que acontece no País das Maravilhas fica
no País das Maravilhas, certo?
Ele nem sequer esboça um sorriso. Só fica me olhando e depois balança a cabeça. Lábios
esticados, ele se concentra em fechar o zíper da mochila.
Quero acreditar que ele sentiu o mesmo que eu... As coisas que eu não deveria estar sentindo. Mas
como pode ser? Não é comigo que ele vai mudar para outro país.
Tento me concentrar em outra coisa, como a água dentro de minhas botas que faz barulho entre
meus dedos ou nos rombos enormes no meu legging.
— E agora, para onde? — pergunta ele.
É possível que ele esteja se referindo a algo além do nosso destino físico, mas estou assustada
demais para me dar a chance de estar errada. Em vez disso, concentro-me no nosso paradeiro.
A costa se estende até onde a vista alcança... Um deserto infinito de fuligem tremeluzente. Não é
nada parecido com o que eu esperava encontrar no coração do País das Maravilhas, se é isso que
este lugar é. Não há fauna nem flora em lugar nenhum, exceto por uma solitária árvore, mais alta e
mais larga do que uma sequoia, a alguns metros de nós.
A familiaridade me atrai para perto dela. Cascas pretas de joias cobrem toda a árvore, do tronco
nodoso aos ramos que se retorcem a dezenas de metros no ar. Ela brilha ao sol como um milhão de
diamantes brancos. Na ponta de cada galho, rubis jorram feito líquido e pingam no solo, como se a
árvore estivesse sangrando pedras preciosas, assim como os elfos fazem quando sua pele é
perfurada. Com as areias pretas como pano de fundo, a cena lembra os mosaicos de grilos que tenho
em casa — uma beleza fascinante e ao mesmo tempo bizarra. Refreio um surto de pânico ao recordar
como os grilos pareciam estar vivos e esperneando da última vez que os vi em minha parede.
— A pulsação de inverno — diz Jeb ao meu lado.
Concordo. — Também vê a semelhança?
Ele fica perplexo. — Você esteve aqui antes.
Desvencilho-me de meu desconforto e subo na árvore, abrindo caminho aos chutes por entre os
rubis no chão. Um ponto na base do tronco lateja por trás da casca de diamantes, feito uma pulsação.
A cada tamborilar, ela se acende em linhas vermelhas com a mesma forma da marca de nascença em
meu tornozelo. A imagem reacende uma lembrança de mim e de um menino alado, indistinta, mas
inconfundível.
Jeb se aproxima e me viro para segurar no ombro dele e manter o equilíbrio, erguendo minha
perna direita para desamarrar minha bota.
— O que está fazendo?
— Seguindo instruções — respondo, tirando a bota e erguendo meu legging para exibir o
tornozelo. Jeb agarra meu cotovelo enquanto me agacho, pressionando o labirinto no meu tornozelo
contra as linhas da árvore.
Um choque de eletricidade estática salta de mim para o tronco; depois, um forte estalar quebra o
silêncio. Jeb me puxa para trás quando o tronco se abre, enquanto a casca brilhante se enrola feito um
pergaminho para expor uma passagem. Um brilho suave e avermelhado vibra e sinaliza lá de dentro.
— O coração pulsante do País das Maravilhas — sussurro, enfiando o pé na bota novamente.
A luz vermelha reflete no piercing de Jeb. — Muito bem, acredito que você veio aqui quando era
criança e está se lembrando de algumas memórias reprimidas. Mas como você pode ter uma marca
no corpo que abre tudo neste lugar?
Hesito, e depois conto a ele o que li sobre os intraterrenos falarem com insetos, e o que eu
desconfio acerca da maldição de minha família: que compartilhamos algumas características com as
criaturas daqui, incluindo esquisitas marcas mágicas em nossos corpos.
Jeb fica olhando para mim e me pergunto quanto mais ele pode aguentar sem ficar maluco.
— Você está bem? — indago, receosa.
Engolindo, ele passa os dedos pelos cabelos. — É com você que estou preocupado. Então, como
nós quebramos essa “maldição”?
Meu coração dá um pulo quando ele diz “nós”. Ele está nessa comigo até o fim. Não só porque
está preso aqui, mas porque ele é o Jeb com quem eu cresci. Meu Jeb. — Tenho que encontrar
alguém aí dentro. Alguém do meu passado... que costumava me trazer aqui.
Jeb franze a cara. — Muito bem. De acordo com as flores, este é o lugar onde os portais estão,
certo? Os portais que nos levarão para casa?
— É — respondo, meio na esperança de que ele tente me convencer a esperar aqui fora enquanto
ele verifica o terreno. Em vez disso, ele me detém somente o tempo suficiente para tirar a lanterna,
recolocar a mochila e tomar a dianteira. Descemos por uma escadaria sinuosa em meio a um túnel
escuro que parece descer espiralando para sempre.
— Não olhe para baixo — recomenda Jeb.
Por que as pessoas dizem isso? Só torna impossível não fazê-lo. Meu olhar mergulha nos degraus,
que produzem um som abafado sob nossas botas. Ossos, entrelaçados e amarrados com algum tipo de
cordão dourado cintilante, formam a escada. A maioria dos ossos tem deformações de tamanho ou
forma. Outros parecem humanoides. Aperto a mão contra a boca.
— De quem são esses ossos? — Jeb sussurra. — Ancestrais? Prisioneiros humanos?
Repasso minhas lembranças esparsas. — Não me lembro de ter conhecido isso...
Jeb acelera o passo. Pulamos do último degrau e nos esquivamos por uma cortina de trepadeiras.
Em vez de nos depararmos com um subterrâneo, uma vista se descortina à nossa frente sob um céu
roxo escuro. O sol e a lua estão entrançados em um, a lua com coloração azul ao lado do seu irmão
mais brilhante.
A luz combinada confere a tudo um tom ultravioleta. Plantas de todos os tipos — arbustos, flores,
árvores e grama — ficam fluorescentes sob os raios mistos: rosas, roxos, verdes, amarelos e laranja.
Os tons mais claros de nossas roupas brilham também. Não é de admirar que eu sempre me senti
tão em casa no centro de atividades Submundo. Em algum nível subconsciente, ele me lembrava deste
lugar.
Uma lufada de vento frio e carregado de aroma de calcário, folhagem e flores passa por nós.
Depois, sinto um aroma de algo mais — um perfume frutado vindo em nossa direção. Conheço aquele
cheiro. — Siga a fumaça — digo, abandonando o caminho.
Jeb pega minha mão e me ajuda a ultrapassar um canteiro de cravos-de-defunto. Aperto os dedos
dele em agradecimento. Meu corpo está começando a sentir os efeitos de nossa insana jornada
marítima. Tenho calos e feridas por todo lado.
Enquanto prosseguimos, não consigo parar de pensar em como ele voltou para me resgatar na água,
em como ele não desistiu, em como ele pulou no espelho em meu quarto sem nem pensar em sua
própria segurança. Talvez nós devêssemos conversar sobre o que está acontecendo entre nós, porque
algo certamente está mudando do meu lado. Corro a língua pelo céu da boca nervosamente. Venho
mantendo isso em tamanho segredo há tanto tempo.
— Escute, Jeb. — Engulo duas vezes. — Sobre o que aconteceu lá no fundo do mar. Eu...
— Mais tarde. — Olhando por cima de mim, ele pega em meus ombros. — Temos companhia.
Ele me força a agachar, e uma nuvem brilhante se aproxima sobre nós, cintilando feito vaga-lumes.
— É ela! — grita uma vozinha esgoelada mais alta do que o zunido de muitas asas. — É!
Um enxame de criaturas humanoides do tamanho de gafanhotos e da cor de feijão-de-lima paira
sobre nós. São todas fêmeas, nuas e com escamas reluzentes que se curvam sobre seus seios e
dorsos, formando desenhos sinuosos. Suas orelhas pontudas e os cabelos esvoaçantes cintilam, e seus
olhos são bulbosos e metálicos feito os de uma libélula, como se elas estivessem usando óculos
escuros de cobre. Asas revestidas com pelos na cor branco leitoso que lembram as pétalas de um
dente-de-leão farfalham perto da minha bochecha.
Uma delas chega perto o bastante para dar um tapinha na testa de Jeb, com as mãos do tamanho do
corpo de uma joaninha. — Eu o encontrei. Ele é o meu prêmio!
— É meu! — Três outras berram, enfiando-se no cabelo dele.
Jeb aperta as alças da mochila.
— Não, irmãs fadas — responde uma delas com a voz de sineta. Ela paira diante de Jeb, tão
fascinada quanto as outras. — Nosso mestre disse que eles devem ficar sob minha guarda.
As outras resmungam e se afastam.
Suspensa no ar, a pequenina vitoriosa faz uma reverência enquanto bate as asas. — Sou Gossamer.
Devo levá-los até aquele que procuram. — Seus olhos de libélula faíscam em minha direção e ficam
mais brilhantes, como se ela estivesse com raiva. — Àquele que procura você. — Meu estômago se
retorce com essa insinuação.
Em seguida, ela se volta para Jeb. — Cavaleiro élfico, você procura por prazer? Posso oferecê-lo,
se assim desejar.
Esfregando o dedo no piercing, Jeb olha para mim, totalmente perplexo. — Hum. Não, obrigado.
Estou bem.
Às gargalhadas, a fada se afasta, unindo-se às outras.
Seguimos nossas guias luminosas para dentro de uma floresta fechada, serpenteando através da
vegetação alta e fluorescente até chegarmos a uma clareira de musgo verde-limão, líquen amarelo
vivo e cogumelos reluzentes. Um círculo de árvores se fecha acima de nós, com os galhos esticados e
entrelaçados juntos de modo a formar um domo. Lascas do céu roxo aparecem aqui e ali, o suficiente
para lançar sombras.
Cada uma das fadas toma seu lugar dentro do teto suspenso, pontilhando os galhos feito velas
acesas. Sua luminância acrescenta uma névoa suave e brilhante ao cenário. Gossamer nos convida a
segui-la até o meio da clareira, onde um cogumelo gigante listrado de ultravioleta aguarda, envolto
em uma nuvem perfumada.
Uma sensação inconfundível de reconhecimento me possui. Reconheço este lugar de meus
pesadelos com Alice. Estamos no covil da Lagarta — o sábio guardião do País das Maravilhas.
— Ela não parece nada especial, meu senhor. — Gossamer paira sobre a espessa fumaça que
cobre o chapéu do cogumelo, escondendo o que quer que esteja sentado sobre ele. — Ela está
coberta de lama e fede a marisco.
— Só podia, porque ela acaba de secar o mar, queridinha. Tinha que ser um feito bem trabalhoso,
você não acha?
Todo o meu ser treme ao som daquele sotaque profundo. Fluido, masculino e sensual. É ele. Meu
guia intraterreno. Se eu pudesse ver além da fumaça...
— Sua vestimenta parece ser a de uma empregadinha — retruca Gossamer, crivando-me com um
olhar de desaprovação. — Talvez o senhor devesse mandá-la para casa e esperar por outra. Por
alguém mais aceitável.
— Quem está nu não deve julgar vestimentas — responde aquela voz familiar. — Você sabe muito
bem que não são as roupas que fazem uma mulher.
Humilhada, Gossamer vai juntar-se às outras fadas que pairam no ar. Finalmente, a fumaça se
dissipa e revela um narguilé e a mariposa do tamanho de um corvo — asas negras e corpo azul
luminescente — aninhada no alto do cogumelo, como uma borboleta repousada sobre uma pétala.
Ela inala fumaça da mangueira e solta plumas no ar. Algumas têm a forma de pássaros, outras, de
flores. Um dos desenhos vaporosos se afasta e vira uma cabeça de mulher — como o entalhe de um
camafeu. Conforme ela se dissipa lentamente, começa a parecer uma criança de cinco anos. Sou eu,
com cinco anos...
— É tão bom vê-la novamente, amorzinho. Quanta saudade eu senti.
Falta-me o ar e eu caio de joelhos. A Lagarta, a mariposa e o rapaz alado são todos a mesma
coisa, esse tempo todo...
— Eu já vi esse inseto — afirma Jeb. — No seu carro. No espelho. — Ele larga a mochila e
segura meus ombros, tentando fazer com que eu fique de pé. Minhas pernas não cooperam.
— Na-não. Você nunca precisa se curvar diante de mim, adorável Alyssa. — A voz sai da
probóscide da mariposa em baforadas de fumaça acinzentada. A atenção dele se volta para Jeb. —
Você, ao contrário, se curvará diante dela.
A fumaça voa na direção de Jeb e se transforma em uma rede em pleno ar, envolvendo-o. O peso o
faz cair de joelhos. Um graveto fere seu joelho no lugar onde a presa do octobenus havia rasgado sua
calça. Pinga sangue do ferimento.
— Ah-há! Ele não é elfo. É um mero mortal. — A mariposa bate as asas como se tivesse feito uma
grande descoberta.
— Um homem mortal! — As fadas guincham com vozes dúlcidas como sinos tilintando. Elas
mergulham das árvores como radiantes flocos de neve, enxameando em volta de Jeb enquanto ele
tenta se livrar da sua prisão de fumaça. As fadas tiram o canivete de suas mãos e depois entram
através da rede, cobrindo-o feito formigas em um torrão de açúcar.
Dou um pulo para espantá-las. — Vão embora!
— Ah, não estrague a brincadeira — sussurra a mariposa em minha direção. — Não vamos
quebrar seu soldadinho de brinquedo.
Pego o canivete e tento cortar a rede com a tesoura, mas as cordas desaparecem em minhas mãos.
Estou tão preocupada que quase perco a transformação que ocorre no alto do cogumelo. A mariposa
ri, e eu olho junto a tempo de ver suas asas se dobrarem sobre seu corpo. Os apêndices acetinados
aumentam até ficarem do tamanho das asas de um anjo, e depois se abrem para revelar o rapaz do
reflexo no meu espelho quebrado — e de minhas lembranças — já adulto.
O canivete me escapa das mãos. Estou mentalmente presa entre o passado e o presente.
Ele tem mais ou menos a mesma idade e altura de Jeb. Está usando um terno preto de couro com
botas utilitárias e se estica sobre o chapéu do cogumelo com a mangueira do narguilé aninhada
elegantemente entre dois dedos e com os tornozelos cruzados. Calças desgastadas cobrem suas
pernas musculosas. Ele é mais magro do que Jeb, mas está em ótima forma. Seu casaco, aberto até
quase o abdômen, revela um peito liso e alvo, como a pele de seu queixo recém-barbeado.
As fadas roubam nosso canivete e nos abandonam, correndo para o seu mestre. Elas enfeitam seu
cabelo e alisam suas roupas, arrulhando e rindo.
Não é surpresa que o pôster de Perséfone parecesse tão familiar. Meu companheiro intraterreno
cresceu e ficou parecido com o herói, só que seu cabelo na altura dos ombros é azul e brilhante, e ele
usa uma meia máscara de cetim vermelho. Exceto por isso, ele é seu sósia perfeito: pele de
porcelana, olhos tão pretos quanto a maquiagem em volta deles, lábios cheios e escuros.
Com a mistura de neblina e fumaça fluindo em volta de suas asas escuras, ele também me recorda
a vitrina de Jenara: um anjo negro.
Embora ele esteja mais para diabo.
Eu sei, porque minhas lembranças de infância retornam em uma onda avassaladora — me
atordoando com o nome que não pronuncio há onze anos.
9
Morfeu
“Morfeu.” Pronuncio, mais como uma acusação do que uma revelação.
O demônio alado mostra seus dentes brancos em um sorriso estonteante que me atrai e me coloca
em guarda. — Hum. — Ele move a mão ao longo do narguilé como se ele fosse um violino. — Sua
voz é uma canção. Diga novamente. — Ele dá uma tragada no cachimbo.
Fico tão extasiada por vê-lo vivo e real que nem tento resistir. — Morfeu.
— Fantástica. Sua mãe deveria saber que é preciso mais do que tesouras de poda para me cortar
de sua vida. Mas parece que ela conseguiu me cortar de suas memórias por algum tempo. — Ele
sopra anéis de fumaça. — Estou magoado, Alyssa. Não deveria ter levado todo esse tempo para você
me encontrar. — Recolhendo os anéis de fumaça em seu dedo, ele os atira ao ar, onde explodem em
estrelas vaporosas.
Jeb, ao meu lado, luta com a rede. — Este é o palhaço que você estava procurando? O do site? —
pergunta ele.
— Mais do que isso — respondo, sem estar segura que as palavras que formo são coerentes. —
Nós crescemos juntos, de alguma maneira. Era ele que frequentava meus sonhos quando pequena.
Não era? Você me visitava em meus sonhos... Me trazia até aqui. Me contava coisas.
— Ensinava coisas é melhor. Ah, mas nós reservávamos tempo para nos divertirmos também.
Tenho que dar um jeito de continuarmos com essa tradição. — Morfeu passa o narguilé para algumas
fadas com seus dedos pálidos e elegantes. Fecho os olhos, lembrando de passagens quando éramos
crianças, pulando nas pedras enquanto Morfeu alçava voo e me levantava por baixo dos meus braços
— uma sensação terna de segurança. Quando volto a abrir meus olhos, enrubesço, lembrando do
quanto seu toque pareceu diferente em meu quarto ontem à noite. Ele fica de pé sobre o cogumelo, as
asas enroladas num arco enquanto apoia as mãos unidas debaixo do queixo.
— O Chapéu da Hospitalidade! — Ele grita de repente, sem o menor sentido.
Várias de suas assistentes pairam sobre ele com um chapéu preto de cowboy e veludo e o colocam
em sua cabeça. Ele o vira meio de lado. O veludo é decorado por uma tira de mariposas brancas em
decomposição, fazendo-o parecer suave e ao mesmo tempo selvagem.
— Ela não tinha o direito de interferir. — Ele corre seu dedo longo pela aba do chapéu. Mechas
de seu comprido cabelo azul tocam seus ombros. — Não era o lugar dela.
Leva um minuto para eu perceber que ele voltou a falar de Alison. — Você a conheceu?
— Sim. De todas as outras candidatas, de todas as suas antecessoras, a mente dela foi a mais
receptiva a mim. Nos conectamos quando ela ouviu o chamado do mundo interior, aos treze anos de
idade. Mas ela deu as costas à sua responsabilidade no momento em que conheceu o Tomatinho. —
Ele sorri desdenhosamente quando fala o apelido de meu pai. Em seguida se recompõe, alisando o
casaco. — Não se importe com tudo isso. Vejo que está usando as luvas. Trouxe o leque também?
— Junto com tudo que ela escondeu.
— E ela achou que seus tesouros enterrados impediriam você de vir. Que pena que as palavras nas
margens estão indecifráveis, não? Ela deveria ter ficado de boca fechada brincando com os seus
cravos.
Cravos? Palavras indecifráveis? A compreensão me arrebata. — Foi você. Você manchou as
anotações para que eu não pudesse lê-las. E na clínica... foi você que quase a matou!
— Não admito nada. Só que ela estava fora de controle. Ela precisava se acalmar, para sua
própria segurança.
— É claro que ela estava fora de controle! Você brincou com a mente dela metade da vida! —
Ranjo os dentes. — É culpa sua ela estar naquele lugar.
Morfeu abre suas asas acetinadas — um movimento que impede que as fadas brilhantes me vejam
e que me lança na sombra. — Agradeça a você mesma por isso. Ela estava lidando bem com as
coisas até você aparecer. Pergunte ao seu pai. Ela nunca conversava com os insetos e plantas antes
de você nascer. Pelo menos, não na frente de ninguém.
— Não — sussurro.
— Não dê ouvidos a ele, Al. — Jeb tenta me confortar. — Sua mãe te ama.
Morfeu ergue as mãos sobre a cabeça e aplaude. — Bravo, gentil Cavalheiro. Todas vocês viram
isso? — As fadas entram na falsa celebração, dando voltas no cogumelo, todas exceto Gossamer, que
fica sentada no narguilé, observando num silêncio majestoso.
— Mas que gesto nobre! — continua Morfeu, andando pomposamente no alto do cogumelo. —
Preso e incapaz, mesmo assim seu único pensamento é defender a sensibilidade ferida da donzela. E
eu devo dizer que ele está certo. — As fadas silenciam seus cumprimentos zombeteiros, confusas.
Com um agitar de asas, Morfeu flutua e pousa graciosamente diante de mim — belo e sombrio. —
Sua mãe realmente a ama. Muito, muito mesmo.
Minhas pernas tremem, mas sustento o olhar sobre ele, com o desprezo queimando meus olhos por
trás.
— Fique longe dela. — Jeb atravessa um punho pela rede e roça a perna de nosso anfitrião.
Morfeu esquiva-se. — Ah, ah, ah. — Ele faz com que a fumaça desapareça e a rede também,
deixando os pulsos, os tornozelos e o pescoço de Jeb amarrados à base do cogumelo. — Se você se
comportar como um macaco adestrado, será tratado como um.
— Idiota! — Invisto com a mão aberta, mas Morfeu agarra meu pulso no ar. O impacto sacode
meus ossos e acirra a dor de minhas contusões.
— É esse o fogo. — Morfeu inclina a cabeça, e a expressão em seu rosto é ao mesmo tempo de
diversão e surpresa. — É bom ver que ele ainda queima.
— Tire as mãos, seu filho de inseto! — Jeb luta contra as algemas de fumaça, o rosto ficando
vermelho pelo esforço de tentar chegar até nós.
Rindo, nosso captor inclina-se sobre mim, ainda segurando meu pulso. — Ah, eu gosto mesmo
dele — murmura. — Um artífice das palavras. — Ele está tão perto que seu hálito com sabor de
fumaça penetra em mim, doce feito mel e forte como a seda da aranha, um conforto da minha infância.
— Quanto a você... Isso é maneira de tratar um velho amigo? Depois de tudo que vivemos? Tsc, tsc...
Fico tentada a me aproximar, buscar mais dessa sensação sedutora. Mas o desejo não é meu. De
alguma maneira, ele está me manipulando. Tem que estar.
Eu o ataco. Suas unhas se enterram em minha luva, fazendo meu punho vibrar.
Os olhos negros brilham, frígidos e duros por trás de sua máscara. — Pare de lutar e escute. Sua
mãe não tinha que virar as costas para mim. Ela não tinha que ir para a casa de loucos para proteger
você.
— Espere. — Um alarme dispara dentro de mim. — Está dizendo que ela escolheu ir para lá?
— Ela só precisava estar a alguns quilômetros de distância de você. Ela poderia ter pedido o
divórcio, se mudado para o outro lado da cidade, dado ao seu pai a custódia total. Mas ela amava
demais vocês dois para magoá-los tanto assim. Ela queria fazer parte de suas vidas... E ao mesmo
tempo mantê-los seguros. Então, sacrificou sua vida. É a mais pura forma de amor.
— Está mentindo. — Minha acusação emerge com uma lufada de ar.
— Estou? Você é a única que eu alcancei ainda bem jovem. Você e sua mamãe tinham uma
conexão mais forte do que qualquer coisa que eu já encontrara. Consegui usar os sonhos dela como
um condutor para os seus. Quando ela percebeu o que eu estava fazendo, ficou louca. Mas foi uma
loucura temporária. Que não haja dúvida — a fantasia de Alice, a obsessão pelo chá da tarde, os
estalos da língua, conversar em voz alta com insetos e flores —, todos esses tiques que ela
desenvolveu foram orquestrados por ela, para que ela fosse mantida longe de você. Por respeito ao
sacrifício dela, prometi eu mesmo não mais me aproximar de você.
— Então quebrou sua promessa — sussurro.
— Não. Havia uma brecha, sabe? — As articulações de sua mão livre roçam a minha têmpora. Seu
toque é caloroso e delicado. — Você encontrou a mim. Como foi você quem me procurou primeiro,
você me libertou dos vínculos da promessa. Menina esperta, muito esperta. Agora você está aqui
para arrumar as coisas, não está, minha joia? Para reparar o que Alice estragou. Para consertar o
País das Maravilhas, quebrando assim a maldição sobre o nome de sua família. As conversas com
insetos e flores... Os laços com esse reino. Você não estará mais enfeitiçada. Por fim, sua mamãe
poderá parar de fingir ser completamente maluca, porque não mais necessitarei de ninguém de sua
linhagem.
Meu peito dói, como se alguém usasse meu coração como um saco de pancadas. Foi por isso que
Alison disse aquelas coisas no pátio... Que, se eu prosseguisse com meu plano para encontrar a toca
do coelho, ela teria feito tudo por nada. Ela suportou tantos anos de humilhação, medicamentos e
horror porque esperava manter-me afastada daqui. E eu fui e arruinei tudo ao procurar por Morfeu.
O que torna o plano do meu pai e dos médicos ainda mais devastador.
— Minha culpa — sussurro, tentando não chorar. — Tudo que aconteceu com ela... É minha culpa.
— Al, não deixe que ele a culpe! — O ruído produzido por Jeb, lutando com as algemas, é quase
inaudível para mim.
Morfeu levanta meu queixo. — Sim, não se culpe. Porque você descobriu a toca do coelho e foi
corajosa o suficiente para mergulhar nela. Você é a única que teve tanta astúcia e coragem desde a
própria Alice. E você já conseguiu secar o mar que ela deixou para trás. Você vai reparar tudo para
a sua mamãe. Para todos nós. Você é muito especial, Alyssa. Muito especial mesmo. — Ele puxa o
meu punho, levantando-me até eu ficar na ponta dos pés e meu nariz tocar a borda inferior de sua
máscara. Ele está tão próximo que quase consigo sentir seus lábios com sabor de alcaçuz.
Um estalo forte irrompe no ar e Morfeu me liberta. Volto a pisar sobre meus calcanhares. As fadas
guincham quando as amarras de Jeb se soltam do cogumelo.
Jeb rola no chão e sacode as pernas com força. As algemas quebradas — ainda em seus
tornozelos, pescoço e pulsos — o seguem feito a cauda espiralada de um escorpião, e atingem
Morfeu, derrubando-o no chão. O impacto faz seu chapéu cair e evapora a fumaça, deixando os dois
homens a lutar em um emaranhado de asas e membros.
Jeb monta em Morfeu e aperta seu pescoço. — Eu disse para não tocá-la. — Sua voz profunda é
rouca, mas calma, fazendo os pelos de minha nuca eriçarem.
Morfeu comete o erro de rir, e Jeb surta. Com uma mão apertando o pescoço de Morfeu, ele o soca
com a outra, amassando a máscara de cetim. Morfeu vira a cabeça para desviar do golpe. Suas asas
estão tortas e são inúteis debaixo dele.
Contraio meus músculos. Estou em guerra comigo mesma. Uma parte de mim deseja defender
Morfeu — explicar seus motivos para Jeb; a outra parte torce para que Jeb faça picadinho dele. Eu
me dobro, minhas têmporas latejam enquanto me afogo em um mar de lembranças distorcidas e
emoções desmembradas. As fadas choramingam, reunidas nos galhos acima de nós. Elas obviamente
nunca viram seu mestre ser atacado por alguém.
Morfeu estica os joelhos para tirar Jeb de cima dele e eles giram pela grama fluorescente,
deixando um rastro. Desta vez, Morfeu termina por cima. Suas asas se desdobram feito uma tenda. O
contorno do rosto de Jeb aparece, pressionado contra a membrana preta do outro lado. Um
movimento de sugar o ar revela o contorno de sua boca.
Ele está se sentindo sufocado.
Atravesso meu labirinto mental e lanço-me na direção de Morfeu, derrubando-o. Ele rola no chão,
envolto dentro de suas asas como uma pupa.
Ao cair de joelhos, encosto o rosto no de Jeb. Sua respiração aquece meu nariz, lenta e estável,
mas ele não abre os olhos. — Jeb! Acorde, por favor... — Arrasto seus ombros para o meu colo e
aninho sua cabeça.
Morfeu está de pé, limpando-se.
— O que você fez? — grito.
Ele ajeita sua máscara amarrotada e depois estica cada uma das asas por sobre os ombros,
passando as mãos para verificar se ficaram danificadas. — Ele só está inconsciente. — Colocando
de volta o chapéu, Morfeu toca as marcas de dedos em seu pescoço, com os olhos sombrios. — Foi
uma gentileza. Eu poderia tê-lo matado. — Ele grunhe. — Na verdade, deveria. Estou certo de que
me arrependerei dessa decisão.
Ao olhar para seu harém, Morfeu convoca as fadas para descerem. — Levem o pseudoelfo para a
casa. Despertem-no de seu torpor. Façam-no sentir-se bem-vindo como só vocês podem fazer.
Gossamer é a primeira a descer das árvores. Parece haver ainda mais fadas agora. Seguindo sua
líder, elas descem em torrentes, formando uma chuva faiscante.
— Não! — Atiro-me na frente de Jeb. Afasto-as com meus punhos. Sob a ordem de Gossamer,
elas colidem com meus braços e costelas em velocidade total, atingindo-me feito granizo. Recuso-me
a me mexer até que Morfeu me agarra pelo colarinho e me força a levantar.
Minha resistência ao seu domínio só o torna ainda mais resoluto. Seu braço envolve minha cintura,
duro e forte como uma garra de metal. Ele aperta minhas costas contra sua lateral, e meus pés ficam
suspensos. Cinquenta fadas ou mais levantam Jeb pelas roupas. A cabeça dele pende, sua camisa e
calças franzem onde elas seguram, como se ele estivesse sendo içado por cordas.
— Jeb! — grito. Lágrimas borram minha visão quando ele não responde. — Tenham cuidado com
ele.
As pequeninas fêmeas só conseguem erguê-lo a poucos centímetros do solo, e a grama alta se
curva sob seu peso conforme ele é levado da clareira. Algumas das fadas restantes puxam a mochila
no final da procissão. Quando o último trecho de grama se ergue atrás delas, empurro Morfeu e me
liberto, mas só porque ele assim permite.
— Se nosso tempo juntos significa alguma coisa para você, não irá machucá-lo. — Lágrimas
cálidas me lavam a face.
Morfeu estende a mão para apanhar uma lágrima com a ponta de um dedo. Ele a eleva contra o
brilho suave que irradia das poucas fadas que ainda permanecem sobre nós. Em seguida, arqueia os
lábios de maneira inusitada. — Você chora por ele, mas sangra por mim. Deve-se perguntar qual é
mais poderoso. Mais comprometedor. Suponho que um dia saberemos.
Minha garganta fica seca. — Do que está falando? Sangro por você?
Ele esfrega a minha lágrima em sua pele como se fosse perfume. — Tudo a seu tempo. Quanto ao
seu soldadinho, não chore por ele. Ele vai receber atenção mais que suficiente. E, quando ele estiver
inconsciente em seu êxtase, esquecerá onde está e com quem veio. Embora eu imagine que terei de
enviá-lo para alguma outra parte do País das Maravilhas para mantê-lo longe de você.
O terror me invade. Já é muito ruim aquelas minininfetas seduzirem Jeb, mas, se elas vão fazê-lo
esquecer quem ele é, ele ficará perdido aqui para sempre. Jeb está aqui por minha causa. Ele não
merece um fim desses. — Por favor, mande-o de volta para o nosso mundo.
Morfeu dá de ombros. — Não é possível. Estamos tendo uns probleminhas de transporte aqui no
reino interior.
— Não pode ser.
Ele se aproxima. — Não pode?
Dou dois passos para trás. — Você me visitou em casa, no trabalho. Ficou me observando. Quase
sufocou Alison com o vento...
Ele joga a cabeça para trás e ri, levantando os braços como se fosse um grande ator. — Imagina
só. Eu, controlando o vento e o tempo. Ora, eu devo ser um deus.
Eu o encaro firmemente. — Sei muito bem o que vi.
Ele estica as mangas. — Eu usei os reflexos para visitá-la. O globo na clínica, os espelhos da
loja... Os espelhos de sua casa. Através deles, projetei uma ilusão, mas não podia me materializar
totalmente porque os portais estão obstruídos. Sua mente foi meu palco. Ninguém mais pôde me ver,
ouvir ou sentir. Só você. E você me sentiu mesmo, não é, amor?
Pensar no modo como sua respiração-fantasma me fez comichar o pescoço quando ele sussurrou
— quente e provocador — me deixa confusa até a medula. Ergo o queixo, uma pobre tentativa de
esconder seus efeitos em mim. — Havia magia... Na trança da minha mãe. Ela se movia, prendeu
meus dedos em volta da garganta dela. Foi você.
Ele esfrega as unhas na lapela. — Foi magia, admito. Magia mal orientada. E não foi minha.
— O que isso quer dizer?
— Você ainda não está pronta para essa resposta.
Cansada de suas manipulações, empurro-o e o desequilibro, correndo para a abertura nas árvores
por onde desapareceram as fadas, quase tropeçando em mim mesma na minha ânsia de encontrar Jeb.
Ouço um poderoso farfalhar de asas acima de mim; em seguida, Morfeu barra meu caminho. Eu paro,
derrapando.
Ele se agacha com as asas abertas paralelas ao chão e me encara atentamente, como uma ave de
rapina gigante — sombria e perigosa. Estou acostumada com este lado dele... Seu lado escuro e
temperamental. Não haverá discussão sensata com ele a menos que eu assuma o controle.
Ele fica parado e me pega pelos ombros antes que eu possa fugir novamente.
— Chega de brincadeiras — dispara ele. — É hora de você cumprir seu destino. Não passei o
primeiro terço de sua vida treinando-a em vão. Alice deixou perturbações em nosso mundo que só
você pode reparar. Esperei 27 anos para este dia chegar... Fiz sacrifícios demais para ver tudo cair
por terra. Você vai consertar o que ela quebrou, e isso abrirá o caminho para que você quebre a
maldição e volte para casa. Até lá, eu dito as regras.
Alice deixou perturbações em nosso mundo que só você pode reparar. As flores zumbis disseram
algo assim. Que somente um descendente de Alice poderia ajudar a consertar tudo. E o octobenus
insistiu que o Sábio — Morfeu — estava desesperado por minha ajuda. Desesperado.
Foi ele que me sugeriu trazer a esponja, era ele que vinha me ensinando sobre o País das
Maravilhas havia anos. Por quê? Ele deve ter algum tipo de interesse pessoal nisso tudo.
— Você precisa de mim. — Levanto a voz, arriscando minha suposição. — Não é que minhas
ancestrais não tenham conseguido encontrar o caminho para cá. Elas não quiseram vir. Temos que
querer. Você não pode forçar. Sou a primeira que quis chegar tão longe, e não tenho que fazer nada
que você me pede. Então, e se eu ficar presa aqui? Sempre fui o peixe fora d’água. Sempre aprendi a
conviver com isso. Alison... ela vai sobreviver, como sempre.
Morfeu não tem que saber a verdade: que a qualidade da vida de Alison depende do meu sucesso.
Prevejo que continuarei com este blefe até o fim.
— Essa é sua única chance. — Coloco as mãos na cintura. — Acabe comigo e poderá terminar
esperando mais 75 anos.
Uma expressão estranha paira sobre o rosto de meu companheiro de infância. Se não fosse pela
máscara, eu poderia interpretá-la melhor, mas parece haver um lampejo de orgulho.
Seus dedos em meus ombros relaxam um pouco. — Quais são as suas exigências?
— Jeb e eu voltaremos a nos unir hoje. Você vai cancelar suas fadas e deixar a memória dele
intacta. Ele será tratado como igual, não como seu peão. E eu quero clareza... Como pode alegar ser
amigo de Alison, se você e eu crescemos juntos? Como sabia sobre meus ancestrais se você tem a
minha idade? E qual é o seu interesse nisso tudo?
Ele me liberta. — É só isso que pede?
Repassando o que o octobenus disse sobre votos entre os intraterrenos — um fato confirmado pela
promessa que Morfeu fez a Alison de não me contatar —, acrescento mais uma coisa. — Quero sua
palavra... Um juramento.
— Arre! — Suspirando, ele leva uma mão ao peito, como se estivesse jurando lealdade. — Juro
sobre a magia de minha vida não mandar embora e nem prejudicar seu precioso amigo desde que ele
seja leal a você e à sua digna causa. Mas me reservo o direito de enfrentá-lo em qualquer
oportunidade que se apresente. Ah, e terei prazer em elucidar todas as suas dúvidas. — Ele faz uma
reverência — em cada detalhe, um cavalheiro.
Terno de couro e máscara amarrotada, aquele chapéu morbidamente sexy. Ele acha que é um astro
do rock. E talvez seja, neste lugar. Mas ele deu a palavra e tem que cumpri-la, ou suas asas irão
murchar e ele perderá seu encanto.
Endireitando-se, ele dá um passo para a frente de modo que sua bota toca na minha. — Pronto.
Agora que aquele desconforto se dissipou, vamos continuar? Como agora estamos ambos adultos,
temos que nos reapresentar.
Examino as árvores. Todas as fadas se foram. Meus nervos estão à flor da pele. — Onde estão
todos?
— Preparando um banquete de celebração para nós na mansão. Não temos damas de companhia.
Podemos aproveitar.
Em pânico, dou um passo para trás, mas as asas dele me envolvem e me mantêm no lugar,
obscurecendo tudo, exceto ele. É como se estivéssemos em uma caverna.
Sua pele é quase translúcida sob a luz tênue. — É hora de me deixar entrar, adorável Alyssa.
Antes que eu possa responder, ele tira a máscara e a joga na grama. O que eu pensava ser
maquiagem em volta dos olhos são, na verdade marcas permanentes — como tatuagens, mas internas.
São pretas feito cílios postiços, com safiras em formato de lágrima rematando as extremidades
pontudas. O efeito é lindo, mas um tanto macabro e circense. Não consigo resistir ao desejo de
levantar a mão e tocar as lágrimas faiscantes. As joias lampejam por meio de um espectro de cores
até não serem mais safiras azuis, mas topázios flamejantes — alaranjados e quentes. Seus cílios se
fecham como que em êxtase por dois segundos. Depois, seus olhos de tinta se abrem e me engolem
inteira.
— Não tenho idade. — A voz dele ecoa dentro de mim, mas seus lábios não se movem. — Posso
usar a magia para imitar a idade que quiser. Usar este poder afeta a mente, o físico e a emoção
dos intraterrenos. Nos tornamos a idade, de todos os modos. Então, em essência, a única infância
que tive foi com você em seus sonhos. Abra sua memória e verá.
A canção ganha vida mais uma vez — o acalanto de Morfeu.
Desta vez, não coloco resistência. Envolvo minhas lembranças nas notas fluidas, permitindo que
elas permeiem cada pensamento até...
Pedaços do meu passado são projetados feito filmes na tela negra de suas asas. Sou eu, recém-
nascida, chorando no berço. Um cobertor de cetim me envolve — vermelho com acabamento branco.
Minha janela está aberta e uma brisa de verão agita as cortinas de ilhoses, movendo o móbile acima
de minha cabeça. Cavalos balançam e bailarinas dançam sobre mim.
É a canção que me acordou. Não a música do móbile, mas a canção dele. A lua brilha e ele está
aqui, uma silhueta de mariposa pendurada na parte de fora da tela. Sua voz profunda penetra no
quarto, soa suave e gentil:
— Vermelha e branca, a florzinha, descansando a cabecinha; cresça e floresça, seja forte e
espertinha, pois um dia você vai...
Antes que eu possa finalizar o verso, sou jogada em outra memória. Esta é nebulosa, como se eu
estivesse olhando por um vidro manchado. Percebo que é porque estou sonhando. Sou uma criança
pequena, não mais de três anos, andando com um Morfeu de seis por uma praia escura e radiante.
Suas pequenas asas se dobram sobre nós para fazer sombra. Eu seguro sua mão, maravilhada pelo
espetáculo de brilho que se descortina diante de nós: uma árvore feita de joias. Morfeu se agacha
para apontar o labirinto na base da árvore e então enrola suas mangas de renda para revelar uma
marca igual em seu antebraço. Viro meu tornozelo, fazendo a conexão. Ele me ajuda a pressionar
minha marca de nascença contra o tronco. Quando o portão se abre, ele dá pulos e dança. — Temos
as chaves! Temos as chaves! — Sua pequena voz exclama em contentamento infantil. Dou risada,
pulando atrás dele.
Depois, volto à minha casa dois anos mais tarde. É manhã de sábado e sou atraída até a porta de
tela pela canção de Morfeu — agora tão familiar quanto os lençóis rosados da minha cama. O
perfume de uma tempestade de primavera atravessa a rede. Ele aguarda em forma de mariposa do
outro lado. É nossa rotina: eu brinco com ele, meu amigo de infância, em meus sonhos noturnos —
explorando nosso mundo encantado nos lampejos que ele me proporciona —, depois o vejo em
intervalos durante o dia, como inseto. Mas seus ensinamentos já estão entranhados em minha cabeça,
ganhando vida em uma sensação esvoaçante de confiança que me impele para encontrar uma saída.
Logo, estou dançando com a minha mariposa em nosso jardim. Mamãe me vê. Correndo para fora,
ela leva tesouras de podar longas e afiadas e corta pétalas de flores, gritando “Vou cortar sua
cabeça!” Quando percebo o que ela quer realmente, um estranho desconforto me agita por dentro. Eu
vi como as pétalas se esfrangalham perante as lâminas. Não quero que ela estrague as asas lindas da
minha mariposa. Levanto as mãos para deter a tesoura. A mariposa escapa ilesa. Mas eu não tenho
tanta sorte...
Saindo do transe, atiro-me ao chão e aperto as mãos doloridas contra o peito. As cicatrizes pulsam
como se fossem recentes. Morfeu inclina-se sobre mim, afagando meu cabelo. — Eu lhe disse que
você era especial, Alyssa — murmura ele, o peso de sua mão estranhamente confortando o algo de
minha cabeça. — Ninguém jamais sangrou por mim. A lealdade de uma criança por outra é
imensurável. Você acreditou em mim, compartilhou novas experiências comigo, cresceu comigo. Isso
conquistou minha sincera devoção.
Enfim, compreendo. A outra lembrança, a que presumi que fosse real durante todos esses anos, foi
colorida pelo que meu pai pensava ter acontecido. Pelo que ele testemunhou quando olhou pela
janela da cozinha, onde estava fazendo panquecas. Ele achou que eu estava dançando atrás de Alison,
quando o tempo todo eu estava tentando proteger meu amigo.
Alguém que eu pensava ser meu amigo. Um amigo sai voando e deixa você sangrando e de
coração partido?
Estou aos pedaços. Todas as revelações se misturam em minha mente, demais para assimilar. O
trauma que meu corpo enfrentou nas últimas horas cobra seu preço. Minhas contusões palpitam e
meus membros parecem pesados como pedras.
Ainda de joelhos, inclino-me sobre as coxas de Morfeu — um apoio sólido. O couro frio de suas
calças acomoda minha face. Fecho os olhos. Sim... já estive aqui antes, abraçando-o em segurança.
A princípio, penso estar imaginando quando ele se curva para me receber em seus braços. Mas,
quando o perfume de alcaçuz e a pele quente me envolvem, sei que é real.
— Você foi embora — acuso-o, me esforçando para ficar acordada. — Eu estava ferida... e você
me deixou.
— Um erro que eu juro pela magia de minha vida nunca cometer novamente. — Apesar de ele
estar me abraçando, sua resposta parece distante. Mas a distância não importa; ele deu sua palavra.
Eu o lembrarei disso.
Meus olhos estão entrecerrados e vejo sombras se formarem sobre nós. Ou serão asas?
Por um momento, a preocupação com Jeb me volta à mente; depois, mergulho num sono escuro e
sem sonhos.
10
Mais e mais
curioso
Sinto-me quente... quente demais. Uma névoa azulada brilha e depois escurece — como o sol
refratando ondas. O fluxo da água goteja perto de mim, e ainda mais perto escuto o farfalhar de
roupas.
— Jeb?
— Calma, amor. — Morfeu está sentado ao meu lado — a pele com aroma de alcaçuz, o cabelo
azul e selvagem, olhos tatuados com pontos de pedras preciosas. Agora me lembro. Ele me tirou do
covil do cogumelo e me trouxe para cá. Acordei no meio do voo e desmaiei por causa do meu medo
de altura, acordando novamente por um instante enquanto ele me arrumava em sua cama.
A névoa azulada é, na verdade, lençóis de água que caem da elegante cobertura ligada à estrutura
da cama. Cortinas líquidas.
As asas de Morfeu cortam a queda de água e a desviam, mantendo-o seco. Cada vez que ele muda
de posição, a cortina aquosa se move junto, como se fosse traçada uma espécie de barreira invisível
entre ele e a água que cai.
Tento sentar, mas a pilha de cobertores é muito pesada. A claustrofobia faz meu coração pular.
— Morfeu? — Minha voz estala, seca e áspera, como se eu tivesse comido bolachas salgadas.
Deve ser de todas as lágrimas que engoli no oceano.
Ele está deitado ao meu lado no colchão, apoiado no cotovelo. Seus dedos percorrem os fios de
cabelo platinado que se espalham sobre o travesseiro em torno de minha cabeça. — Você estava
chorando enquanto dormia. Está sofrendo?
Faço um sinal positivo com a cabeça, procurando tirar minha mão de debaixo dos cobertores para
tocar minha garganta. — Jeb — murmuro.
Morfeu franze a cara. — Seu amigo está a salvo e descansando no quarto de hóspedes. O que
significa que você é minha por enquanto. — Ele começa a afastar as cobertas.
O que parecia sufocante minutos atrás agora parece uma armadura sendo arrancada. Não sei ao
certo o que estou usando debaixo das cobertas, então me agarro ao último cobertor na altura da
clavícula.
Morfeu inclina-se mais. Seu cabelo roça meu ombro à mostra, comichando com suavidade. —
Florzinha tímida — sussurra ele, o hálito doce me envolvendo. — Nós simplesmente vamos misturar
sua dor e fazê-la sumir.
Misturar... Não soa como algo que meu pai aprovaria. Nem Jeb, por sinal. Começo a empurrar
Morfeu para trás, mas o cobertor escorrega pelo meu corpo a um sinal de seus dedos pálidos e
elegantes. Me resta uma longa camisola champanhe de cetim com alcinhas. Ela cobre todos os
lugares certos, mas sinto-me exposta. Morfeu teve que me ver nua para vesti-la em mim. Cruzo os
braços sobre o peito, com o rosto em flamas.
Ele sorri. — Não se preocupe. Minhas queridinhas a despiram. E levaram suas roupas para serem
queimadas.
— Queimadas? Mas... Eu não tenho mais nada...
— Agora fique em silêncio e não se mexa.
— Você mencionou um banquete. Não vou vestida assim de jeito nenhum. — Aperto os braços em
torno de mim mesma.
Ele balança a cabeça e depois empurra a bainha da minha camisola até ela chegar ao tornozelo,
deixando à mostra minha marca de nascença. Sento-me, prestes a puxar a perna, mas seus olhos
escuros e profundos se voltam para os meus. — Confie em mim.
A sensação palpitante em minha mente me incita a ouvir. Aqui neste lugar, onde não tenho mais o
ruído das vozes me distraindo, posso escutar meus pensamentos com mais clareza pela primeira vez
em anos. Posso compreender aquela palpitação em minha mente. Essa sensação pulsante — sou eu.
Tenho outro lado, além da boa moça e da filha obediente, que é instintivo e selvagem.
É esse lado que escolhe confiar nele, apesar do nosso passado bizarro... Ou talvez por causa dele.
Enrolando a camisa até o cotovelo, Morfeu exibe uma marca de nascença idêntica na parte interna
do antebraço — da qual me recordo nos meus sonhos. Intrigada por nossa semelhança, seguro o pulso
dele com uma mão, percorrendo as linhas com a outra. O labirinto brilha sob meu toque. Sua
expressão muda, e um ruído abafado lhe escapa da garganta — algo entre um ronronar e um rosnar. O
braço dele se retesa, como se fosse necessário muita concentração para não se mover enquanto sacio
minha curiosidade.
Ele é uma contradição: magia contida pronta para entrar em ação, gentileza em guerra com a
severidade, uma língua tão afiada quanto a ponta de um chicote, mas a pele tão macia que a sensação
é a de que ele está envolvido em nuvens.
Sustentando seu olhar, lembro o que misturar significa. Tomo a atitude de pressionar nossas
marcas de nascença uma contra a outra. A união produz calor, como quando Alison curou meu
tornozelo e joelho, embora esta seja uma reação mais volátil. A calidez me ferve o corpo inteiro,
deixando-me rubra da cabeça aos pés.
Morfeu me convida a deitar e abaixa a barra da camisola, e, em seguida, levanta o cobertor até o
meu queixo. Ele coloca o chapéu na cabeça em certo ângulo. Suas asas se erguem quando ele levanta,
e a cortina de água se eleva em um arco em torno dele.
— Não saia daqui até eu voltar com alguma coisa para sua garganta. — Sua voz tem um tom
rústico que deixa meu corpo ainda mais quente.
Quando ele recua, a cortina de água se fecha, deixando-me sem visão para o exterior. No minuto
em que ouço a porta da sala se fechar, apresso-me a sair das cobertas, pressiono minhas costas
contra a cabeceira e recolho os joelhos para perto do queixo, tremendo ao sentir uma corrente de ar
frio.
Fecho os olhos e penso naquela sensação — o pulsar de sua magia junto ao meu dedo, sua pele
junto à minha. Esfregando minha marca de nascença, livro-me da euforia.
Quanto mais me lembro de Morfeu e deste lugar, mais me esqueço de mim mesma... Ou de quem eu
achava que era.
Por que Alison não me contou? Se ela tivesse sido honesta, eu não estaria confusa deste jeito
enquanto o Jeb está trancado em outro lugar.
A culpa me golpeia o coração. Ela estava tentando me proteger. Ela irá receber um tratamento de
eletrochoque desnecessário se eu não quebrar a maldição e voltar depressa.
Instintivamente, estendo a mão na direção da cortina líquida e desejo que a água reaja a mim do
modo como reagiu a Morfeu. Ela se ergue feito uma coisa viva, deixando-me seca. Agarro um
cobertor, amarro-o nos ombros, improvisando um manto, e atravesso num pulo, aterrissando em um
tapete felpudo. Ainda sinto os músculos um pouco doloridos. Fora isso, nada mais me dói.
Giro o corpo sobre o calcanhar. A decoração da sala me parece ligeiramente familiar — selvagem
e deslumbrante, assim como seu habitante. Não existem janelas nem espelhos. Uma luz suave e âmbar
cai do gigantesco candelabro de cristal que ocupa grande parte do teto arredondado. Veludo dourado
e roxo cobre as paredes, intercalado com ramos de hera, conchas do mar e plumas de pavão.
Uma série de prateleiras de cristal ocupam a parede à esquerda. Metade delas contém chapéus de
todos os tipos e tamanhos decorados com mariposas mortas; a outra metade contém o que primeiro
aparentam ser casinhas de boneca de vidro transparente. Depois percebo que são terrários.
Dentro dos terrários, mariposas voam de um lado para o outro e se aninham em folhas e ramos.
Teias espessas revestem os painéis de vidro em alguns pontos, parecidas com as teias no meu
pesadelo de Alice. São casulos — lagartas se transformando em mariposas. Ao ouvir a queda
d’água, penso em como as asas de Morfeu cortaram o líquido e comparo a cena ao meu sonho no
barco a remo, quando uma lâmina negra estava prestes a cortar a teia.
Não era uma lâmina.
Com um ruído, a porta se abre e eu me volto, com o coração aos pulos.
Morfeu atravessa a soleira da porta e nos fecha lá dentro. — Já levantou? E sem uma gota de água
no corpo. — Ele traz uma bandeja com um bule de chá e xícaras de porcelana combinando. — Muito
bem.
— Você. — Aponto o dedo trêmulo para os casulos. — O pesadelo que eu tenho há anos. Foi você
que o colocou na minha mente, não foi?
Ele retesa a mandíbula enquanto coloca a bandeja sobre uma mesa de vidro. — Que pesadelos
seriam esses? Eu não me conecto mentalmente com você desde que sua mãe foi internada... Ontem foi
a primeira vez. — Ele serve chá em uma xícara. Ondas fumegantes preenchem a sala, espalhando
notas de mel e frutas cítricas pelo ambiente.
— Eu sou Alice — digo — em busca da Lagarta. Eles vão cortar minha cabeça. Ele é o meu único
aliado. — Esfrego o pescoço. — Espere, não. Tem também o Gato de Cheshire. Mas nenhum deles
pode me ajudar. O Gato perdeu o corpo, e a Lagarta... — Olho para os recipientes de vidro. — É
você, preso dentro do casulo.
Morfeu atrapalha-se com a tampa do bule, provocando um ruído alto. Quando ele se volta para
mim, seus olhos estão arregalados. — Você se lembra. Depois de todos esses anos, você ainda
reteve os detalhes.
— Detalhes do quê? — Minhas pernas ficam bambas, e aperto o cobertor mais forte em volta do
pescoço.
Morfeu aponta a cadeira ao lado dele. — Sente-se.
Como não me movo, ele pega minha mão e me conduz. Ele está usando luvas pretas, que lembram
as luvas com as quais sonhei no barco. Estou prestes a comentar sobre isso quando ele me dá uma
xícara.
— Tome um pouco de chá e vamos repassar a história.
Repassar?
Enquanto ele se serve de chá, tomo um gole do meu. O líquido quente e doce acalma minha
garganta. Passo um dedo na mesa embaixo do pires. A superfície é um tabuleiro de xadrez, preto e
prateado. Uma chapa de vidro o cobre para protegê-lo de gotas e arranhões. Peças em jade — peões,
torres, cavalos e outras — estão distribuídas em um padrão incomum. Frases flutuam sobre três
quadrados prateados, como por um passe de mágica, em letras pequenas e brilhantes. Inclino-me para
ler, pegando as palavras oceano e mão, e então Morfeu passa a luva sobre o vidro e as borra.
— O que era aquilo? — pergunto.
— É assim que fico a par de seu progresso.
— “Progresso.” Pode explicar melhor? — Tomo outro gole de chá.
Suas asas se estendem pelos dois lados de sua cadeira quando ele se senta diante de mim,
colocando seu chapéu sobre a mesa. — Eu preferiria mostrar.
Ele retira uma pequena caixa de cobre de uma gaveta do seu lado da mesa. A tampa se abre e
Morfeu a entorna. O conteúdo se espalha sobre o tabuleiro de xadrez, uma série de pequeninas peças
de jogo. Estas também são de jade: uma lagarta fumando um narguilé, um gato com um sorriso
arrojado, uma menininha de vestido e avental. Há outros personagens, também, todos familiares.
Morfeu e eu jogávamos com eles quando eu fazia minhas visitas durante o sono.
Estendo a mão para pegar o boneco de Alice e o levanto, correndo o dedo pelas linhas de seu
avental. Com a parte externa em tom marmoreado com traços de verde, ela parece diferente das fotos
— mais frágil. Preciosa e rara, como a pedra na qual ela foi esculpida.
Morfeu ergue sua xícara e me observa por sobre a borda enquanto bebe, e em seguida a repousa no
pires, tilintando. — Ela sempre foi a sua favorita.
Fico ao mesmo tempo lisonjeada e assustada com a expressão de adoração que percorre o rosto
dele. Uma confusão nostálgica invade meu peito. — Você me contava uma história com elas.
— Contava, sim. Ou melhor, nós a assistíamos.
— A assistíamos?
As joias sob seus olhos cintilam, mudando para um azul pacífico. — Como está se sentindo,
Alyssa?
Intrigada com a pergunta, franzo a cara. — Bem. Por que pergunta? — Assim que termino de falar,
a sala começa a girar, as peças de xadrez giram junto. Minha xícara de chá entorna e metade de seu
conteúdo é atirado ao ar. Levo as duas mãos à garganta. — Você colocou alguma coisa na bebida...
— Estou só lavando o palato de sua mente. Você precisa estar relaxada e leve como uma pluma
para canalizar sua magia nos estágios iniciais. Senão, ela virá em ataques e surtos e ficará
incontrolável, como ficou no asilo. — A voz desincorporada de Morfeu flutua em volta de mim, e o
candelabro pisca — do escuro para a luz, do escuro para a luz.
— Está dizendo que...? — Não, não é possível. — Eu estava controlando aquela magia? — Pensar
que tive algo a ver com o quase sufocamento de Alison faz minhas entranhas tremerem.
— Fora de controle é mais apropriado — corrige Morfeu, zombando. — Você estava consternada
demais para fazê-la funcionar de modo adequado.
Esforço-me para encontrá-lo em meio ao caos, sentindo a necessidade de ver seu rosto para saber
se ele está falando sério. — Mas como?
— No momento em que sua mente aceitou a possibilidade de que o País das Maravilhas fosse real,
ela liberou o vácuo de dúvida que a mantinha presa — explica ele, de algum lugar acima de mim. —
Agora, pare de pensar como humana. A lógica dos intraterrenos reside na nebulosa fronteira entre a
razão e a loucura. Mergulhe nessa lógica, visualize as peças de xadrez ganhando vida; veja, e tudo
será.
Cética, giro num círculo de antigravidade por tudo na sala: as prateleiras de vidro, os chapéus, a
mesa e o tabuleiro de xadrez. A cortina de água da cama forma um funil em torno de nós, balançando
e rodopiando, procurando não tocar em nada. A estátua de Alice escorrega de minhas mãos enquanto
tento manter o equilíbrio na sala que rodopia. Sem muita convicção, penso que ela pode me alcançar,
pegar minha mão, mas ela sai do meu ângulo de visão.
— Era uma vez uma menina chamada Alice — conta Morfeu, com voz líquida e calmante. Ainda
não consigo vê-lo. — Ela era inocência, doçura, felicidade e luz. Talvez seu único defeito fosse ser
muito...
— Curiosa — acrescento à fala dele, e, naquele instante, as peças de xadrez crescem até o
tamanho de seres humanos. Esforço-me mais ainda para imaginá-los vivos: visualizar sangue
correndo em seus corpos entalhados como riachos límpidos através das montanhas, imaginar seus
pulmões se expandindo e enviando oxigênio aos corações pulsantes de pedra.
Concentro-me tanto que me assusto quando a Lagarta, com o narguilé fumegando em uma das mãos,
agarra meu punho. — Você se parece com uma menina que eu conhecia. O nome dela começava com
A. Quem sabe o seu também começa? — A fumaça esverdeada se estende com um lençol espesso e
perfumado em torno de mim, combinando com o resplendor do jade.
O gato flutua ao nosso lado. Ele segura o lençol de fumaça e, usando suas garras feito tesouras,
corta oito letras vaporosas para compor a palavra: Alegoria. Ele dispõe as letras feito um cordão de
flocos de neve feitos de papel. O sorriso em sua face esverdeada se alarga.
— Ah — diz a Lagarta, com suas baforadas de tabaco formando nuvens em volta de nós —, ela é
uma personagem figurativa. Ela irá jogar do meu lado, então, pois sou o acadêmico.
O gato balança a cabeça, e seu sorriso desaparece. Eles dão início a um cabo de guerra, me
puxando de um lado para o outro. Eu grito ao sentir as articulações de meu braço estiradas ao limite.
— Me soltem!
— Não, não. As únicas coisas figurativas aqui são vocês dois, idiotas. — Morfeu liberta-me deles
e em seguida envolve minha cintura com um braço e rouba o narguilé da Lagarta com o outro. —
Agora, tomem seus lugares.
Ao ouvir isso, as peças animadas de xadrez descem com as outras pelo funil de água. Morfeu
flutua para cima, para cima, na direção do enorme candelabro na abóbada do teto — a única parte da
sala que ainda está estável. As lâmpadas são do nosso tamanho, e a altura estonteante me dá náuseas.
Passo os braços em volta do pescoço dele e enfio o rosto em seu peito macio enquanto ele nos
acomoda sobre a peça de metal. — Isso não está acontecendo — digo. Mas está, porque consigo
lembrar que aconteceu antes, anos atrás.
— Reúna sua coragem. Olhe para baixo. Seu show está prestes a começar.
Balanço a cabeça e cerro os olhos. — Estamos muito altos... Isso faz meu estômago dar um nó.
Ele ri e dá uma tragada no narguilé, jogando a fumaça sobre mim, saturando-me daquele cheiro
confortador. — É assim que você sabe que está viva, Alyssa. Os nós.
Antes que eu possa responder, uma batida alta me faz arriscar uma espiada.
O funil de água forma uma cortina, que se abre para revelar um palco. O quarto de Morfeu foi
transformado. As peças de xadrez vivas dominam a cena, seus corpos de um verde leitoso vívido
sobre um tabuleiro lustroso preto e prateado que se estende por todo o chão. Tudo está distribuído
em um grande círculo que lembra um picadeiro.
O marido da rainha, o rei da Corte Vermelha, está espreguiçado sobre um trono de veludo. Outra
mulher com vestimenta da realeza está de pé à sua direita, com laços carmim amarrados em cada um
dos dedos. Ela tem laços nos dedos dos pés também. A mulher fica tentando silenciar as fitas, como
se elas não parassem quietas. A Rainha Vermelha está na frente dos dois, presa com correntes. A
tribuna de jurados, que é na verdade uma jaula cheia de tigres com dentes pontiagudos e focas com
cabeça de bolha, está à direita. Guardas de cartas perfilam as paredes.
Sentada na cadeira de testemunhas está Alice, mexendo com a barra de seu vestido entalhado.
O Rábido Branco está atrás dela, com as antenas baixas e os ombros recolhidos, numa aparência
cansada e triste. Seu casaco e suas botas são do mesmo tom marmóreo de sua cabeça tosquiada e
brilhante. Uma estranha variedade de criaturas encontra-se sentada em arquibancadas de madeira e
petisca amendoim e pipoca. Até a Rainha Vermelha e seus cavaleiros élficos compareceram.
Uma criatura com cara de sapo está de pé atrás de um pódio, embora esteja vestida de modo mais
parecido com um domador do que com um juiz. Ela bate um martelo. — A Corte Vermelha está agora
em sessão! — Sua peruca emplumada se mexe. Só quando a criatura estica suas longas e finas pernas
é que percebo que é uma cegonha. Depois de alisar suas penas de jade, ela volta a se acomodar no
lugar e o juiz continua. — Rainha Vermelha, porque A Alice entrou em nosso mundo através da toca
do coelho, que fica na província Vermelha, e, porque a senhora falhou em capturá-la antes que ela
desencadeasse suas travessuras sobre todo o País das Maravilhas, a senhora foi acusada de séria
negligência e devastação por associação. Como se declara?
As asas da Rainha Vermelha pendem em suas costas. Ela olha para o rei e para a mulher com os
laços. — Eu declaro preocupação temporária causada por um coração partido. Meu marido me
largou para ficar com Grenadine... Eu estava muito aturdida com sua traição e não notei algo tão
insignificante como uma criança mortal entre nós.
Murmúrios explodem da tribuna do júri. Grenadine olha com remorso para os laços nos pés. O rei
fica inquieto no alto de suas almofadas de veludo.
— Quem deveria estar acorrentado é você — dispara a Rainha Vermelha para o marido. — Não
era suficiente que, antes de sua morte, meu pai tenha preferido ela a mim, uma pirralha amnésica que
nem carrega seu sangue? Mas sua traição é muito pior. Minha simplória meia-irmã não consegue se
lembrar em que dia estamos a menos que um de seus laços falantes lhe cochiche. Ela certamente não
consegue lembrar-se de quem ela deve amar. Você é responsável por cortejá-la e distrair-me de
meus deveres.
O juiz inclina-se sobre seu pódio, abraçando-o com suas mãos membranosas. — Talvez a senhora
devesse ser grata ao seu marido real por pedir que esta corte renuncie à sentença mais severa. Se
culpada a senhora for considerada, será exilada no deserto. É preferível a que perder a cabeça, eu
diria.
— E quanto àquela Alice? — A Rainha Vermelha lança um olhar corrosivo para a tribuna de
testemunhas. — E a sentença dela?
O juiz aponta o martelo para Alice. — Ela escolheu ler sua confissão escrita em troca de ser
enviada para casa com a promessa de nunca mais voltar e esquecer tudo o que viu aqui. — Ele faz
um sinal com a cabeça para a criança, pedindo que ela fique de pé.
Inclino-me para a frente para ver melhor, tão interessada no resultado que não mais me importo
com a altura em que estou, contando somente com o braço de Morfeu em torno de minha cintura para
manter-me ancorada ao candelabro.
Alice faz uma mesura e tira um pedaço de papel do peitilho do avental. Ela tosse duas vezes,
delicadamente, e lê em voz alta: — Talvez meu primeiro erro tenha sido quem escolhi para serem
meus amigos. Ou foram eles que me escolheram? O gato sorridente e a lagarta fumante... Ah, eles
urdiram planos tão bons!
Olho para Morfeu, que dá tragadas de fumaça e sorri com certo embaraço.
Abaixo de nós, o juiz agita o martelo, perturbando a cegonha que está sobre sua cabeça. Ela solta
um cacarejo e arrebata o martelo com seu bico. — Descrições dos planos, por favor! — pede o juiz,
num guincho, lutando com o pássaro.
Alice pigarreia e respira fundo. — Colocamos um ponto-final no chá da tarde, derramamos sopa
sobre a duquesa para fazê-la espirrar a fim de roubarmos suas luvas e leque, deflagramos um oceano
acidental e ajudamos um artesão faminto a enganar sua amiga morsa e roubar um bando de mariscos
muito faladores, obrigada.
Vários membros bivalves da plateia atiram pipocas na testemunha e berram a palavra “Infame!”
Alice se esquiva da chuva de grãos agachando-se atrás da cadeira. O juiz — que conseguiu salvar
seu martelo com a perda de sua peruca e de sua dignidade — acena para que ela fique de pé e ereta.
— Como você conseguiu se esconder no castelo da Rainha de Marfim?
— Eu não estava me escondendo, na verdade. O Gato de Cheshire e o Sr. Lagarta insistiram que eu
visitasse a Rainha de Marfim e pedisse que ela me enviasse para casa, pois ela é mais agradável do
que a Rainha Vermelha. — Alice volta um olhar penetrante na direção da Rainha Vermelha.
A rainha agrilhoada ri desdenhosamente, e suas correntes se mexem como se estivessem vivas,
quase agarrando o tornozelo de Alice antes de esta subir em sua cadeira.
Batendo o martelo, o juiz pede ordem. — O conselheiro real da Rainha Vermelha poderia dar um
passo para a frente e apertar suas correntes?
Rábido Branco adianta-se para pegar os elos de metal e mantê-los esticados.
— Continue — ordena o juiz.
Amassando suas mãos enluvadas, Alice desce da cadeira e recita o resto de sua confissão de
memória. — Marfim parecia alegre por ter convidados. Na verdade, ela gostava muito do Sr.
Lagarta, que é garboso, em sua maneira de contrair o corpo. Quando eu estava me preparando para
seguir os cavaleiros até o mais alto torreão do castelo, onde a porta para minha casa aguardava,
chegou um convite da corte da Rainha Vermelha, uma partida de croqué. Mas era uma armadilha para
que pudessem me aprisionar e me obrigar a fazer esta confissão no tribunal. — Ela faz mais uma
reverência. — Peço sinceras desculpas pelos problemas que causei. Posso ir para casa agora?
— Nunca voltará para casa, seu polipozinho canceroso! — grita a Rainha Vermelha.
Eu quase não entendo o que acontece a seguir. As mãos do Rábido movem-se mais depressa do
que um relâmpago, escorregando uma lâmina que, de modo mágico, corta os grilhões de metal da
Rainha Vermelha. Isso acontece tão depressa que ninguém mais nota até que a rainha abre suas asas e
agarra Alice pelos ombros, levantando-a no ar. A cegonha do juiz recolhe a lâmina do chão e segue a
Rainha Vermelha, que sai pela porta da corte levando Alice, junto com todos os outros.
No instante em que eles saem, pressiono Morfeu. — Siga-os! — ordeno.
— Siga-os você mesma — diz ele, que em seguida me solta. Eu grito, sobressaltada, em pleno ar,
meu estômago saindo pela garganta. Sinto uma comichão entre os ombros, como se alguma coisa
estivesse tentando sair; e desaparece logo depois. À distância de poucos centímetros do chão, dou
uma guinada e caio em minha cadeira, com a xícara de chá na mão. As peças de xadrez encontram-se
espalhadas sobre a mesa, como se aquela encenação nunca tivesse acontecido.
Não caio nessa.
Morfeu está sentado à minha frente, girando a peça de xadrez da Rainha Vermelha enquanto meu
estômago volta ao lugar.
— Como termina? — pergunto.
— Seu pesadelo sabe.
Coloco a figura de Alice sobre um quadrado preto. — A cegonha e a rainha lutaram suspensas no
ar. Alice escapou e veio procurar você.
— Mas eu não podia fazer absolutamente nada por ela porque minha metamorfose já havia
começado. Fiquei trancado naquele casulo por 75 anos.
— Então como é que Alice venceu?
Morfeu rola a estátua da Rainha Vermelha pelo tabuleiro, derrubando Alice. — Ela não venceu.
Como você sabe muito bem, sua linhagem foi amaldiçoada.
— E foi por isso que você me trouxe aqui.
Ele balança a cabeça, concordando. — Para libertar sua família e reabrir os portais que levam
para casa, você deve reparar todos os danos que fizeram com que a Rainha Vermelha fosse exilada e
perdesse a coroa: secar o mar, levar as luvas e o leque de volta para a duquesa, fazer as pazes com
os mariscos e com os convidados do chá da tarde. Só você pode quebrar os elos mágicos da
Vermelha.
Um silêncio pesado se segue, quebrado somente pelo som da cascata em torno da cama. Procuro a
figura da lagarta, mas a mão de Morfeu prende a minha. O calor atravessa sua luva e me penetra os
ossos.
Por um instante, vejo-o muito claramente como a criança provocadora que ele era quando
passávamos tempo juntos em meus sonhos. Eu o compreendo agora, por que ele recolhia corpos de
mariposas, por que suas asas representavam liberdade, algo que ele não tivera enquanto permaneceu
trancado dentro de seu casulo... Por que ele adorava voar, principalmente durante tempestades, por
que superar os relâmpagos lhe dava uma sensação de poder. Do mesmo modo, ele compreendia
minhas esquisitices: meu medo de altura, minha sede de segurança. Só que agora ele é atormentado,
sedutor e insondável. Um adulto completo com tanta bagagem quanto eu.
— É por isso que você está envolvido — murmuro, testando a hipótese. — Para aplacar sua
consciência da culpa de ter falhado com Alice.
Sibilando, ele levanta, numa comoção de asas e couro. Uma lufada de ar causada pelo movimento
faz esvoaçar meu cabelo. — Minha culpa pelo que aconteceu com Alice nunca será aplacada. — Ele
arrebata a figura do Gato de Cheshire e anda pelo tapete. Apesar de sua altura impressionante, ele
tem a graça de um cisne negro. — E não se iluda. Não sou assim tão altruísta.
— Conheço você muito bem para pensar o contrário. — Levanto uma sobrancelha, brindando com
minha xícara de chá.
Ele me lança um olhar rápido, quase sorrindo. — Na luta com a cegonha, a Vermelha conseguiu
pegar a lâmina. Eu estava inatingível em meu casulo, mas Chessie estava lá. Ele mergulhou para
salvar Alice antes que a Vermelha pudesse decapitá-la. Ele recebeu o golpe que era dirigido a ela.
— Morfeu equilibra a figura do gato na ponta de um dedo, colocando-a contra a luz. — Chessie
pertencia a uma estirpe rara: não parte espírito e parte carne, mas as duas ao mesmo tempo. Ele
podia sumir e reaparecer em pleno ar e assumir qualquer forma. Um ser assim é quase impossível de
matar. Quando a Vermelha o atingiu com a espada vorpal, a única lâmina que pode cortar qualquer
mágica no reino interior, ela fendeu sua mágica em duas. Cortado ao meio, mas ainda vivo.
— Então ele não morreu? — Coloco minha xícara de lado.
— Não exatamente. Sua cabeça rolou na direção dos arbustos onde Alice estava escondida. Ele
conseguiu pegar a espada vorpal na boca e cuspiu-a aos pés dela. A parte inferior de Chessie foi
capturada pela Rainha Vermelha e, num último ato de desafio, ela ofereceu-a ao seu animal de
estimação, o bandersnatch, antes de ser capturada e expulsa do reino.
Morfeu sacode a caixa que antes continha as peças de xadrez. Dela cai a maior figura de todas:
uma criatura grotesca com garras de dragão e cauda de ferrões. Sua boca aberta e dentes pontiagudos
fazem minha espinha se arrepiar. Quando eu era pequena, costumava esconder essa peça enquanto
brincávamos com as outras.
Morfeu joga o gato no ar e deixa que ele caia sonoramente na palma de sua mão, apertando-o entre
os dedos. — O que eu lhe ensinei sobre o bandersnatch? — pergunta ele, me testando.
— Ele é maior do que um caminhão. Engole a comida inteira para que a vítima se decomponha
lentamente no vazio escuro de sua barriga — uma morte que pode levar mais de um século para se
efetivar.
Aquela centelha de orgulho brilha novamente em mim. — Correto. Para Chessie, que não pode
morrer, é como estar exilado em uma ilha deserta, sem qualquer sol, lua nem estrelas. Nem vento e
nem água. Só a morte a sua volta. Lá dentro, metade dele ainda reside, presa e ansiando reunir-se
com sua cabeça.
Um lampejo de compaixão me toca o coração. — Você quer que eu ajude a libertar Chessie do
bandersnatch para que ele possa encontrar sua cabeça.
Morfeu vira-se para olhar para mim, com as asas pensas. — Tudo o que preciso é da espada
vorpal. Somente sua lâmina pode cortar o couro do bandersnatch. Alice escondeu a espada em um
lugar que ela sabia ser seguro. Em algum lugar tão ridículo e mundano que ninguém a procuraria lá.
— O olhar dele cai sobre as figuras à minha frente e eu pego um personagem com um chapéu
esquisito, que parece uma gaiola.
— O chá da tarde. O Chapeleiro Maluco está com ela — arrisco.
— Você esqueceu. Isso é estritamente um Carrolicismo — o nome que Lewis usou em seu conto de
ficção. Seu verdadeiro nome é Herman Chapelão. E não há nada de maluco nele. Ele é bem alegre, na
verdade, quando está acordado.
Tamborilo com o dedo na cabeça da escultura, esperando uma explicação.
— Alice deixou os convidados do chá sob um feitiço de sono — continua Morfeu. — Acorde-os e
eles lhe dirão onde está a espada. Você já secou o mar e fez as pazes com os mariscos. Um
convidado do banquete desta noite receberá as luvas e o leque em nome da duquesa. Depois disso,
consertar a situação dos convidados do chá será a única coisa ainda a fazer.
Parada diante da figura de Alice e pensativa, coloco a lagarta ao lado dela.
Morfeu volta para perto da mesa, solta o gato dentro da caixa de metal, então varre todos os outros
personagens para dentro dela. Parado diante de mim, ele estende a mão. — O que me diz, Alyssa?
Está disposta a me ajudar enquanto ajuda a si mesma? Um favor para um amigo de infância?
Quando eu e Jeb voltarmos para casa, posso dizer a Alison que o pesadelo finalmente terminou,
que nunca mais estaremos ligadas ao País das Maravilhas. Imaginar o sorriso dela reacende uma
chama em meu coração.
Respiro fundo, entrelaço meus dedos nos de Morfeu e o encaro. — Farei isso.
Ele levanta minha mão e aperta os lábios macios contra meus dedos. — Sempre soube que o faria.
— Ele sorri, com suas joias cintilando em um tom prateado e luminoso.
11
Linguardarte
Aguardo em um corredor frio e espelhado com uma mesa de vidro e cadeiras como companhia. Jeb
deve me encontrar aqui. Estou louca para vê-lo novamente, mas ao mesmo tempo estou apreensiva
quanto à reação que ele terá ao saber de minha decisão de ajudar Morfeu sem discutir isso com ele
antes.
Fecho os olhos, desorientada pelo movimento à minha volta. Espelhos perfilam cada centímetro do
teto e das paredes, até o chão. Figuras sombrias deslizam nos reflexos.
Em nosso mundo, os espelhos são feitos colocando-se uma camada de alumínio sobre um vidro
plano. Uma pessoa não pode ver nada além de seu reflexo. Aqui, posso ver sombras dentro deles,
como se elas estivessem imprensadas entre as camadas. Morfeu me disse que são espíritos de
mariposas. Isso me faz pensar nos insetos que matei em casa.
Aparentemente, no País das Maravilhas, todos — ou todas as coisas — possuem alma. O
cemitério é um lugar sagrado reverenciado por todos os intraterrenos. Ninguém pode pisar lá a não
ser as guardiãs do lugar: as irmãs Twid.
Nas mãos das gêmeas, os mortos são cultivados: semeados, regados e mantidos livres de ervas
daninhas, como um jardim virtual de fantasmas. Uma irmã nutre as almas — cantando para os recém-
chegados e mantendo o contentamento da flora espiritual. A outra irmã arranca os espíritos decaídos
que definharam e se tornaram amargos ou revoltados — algo a ver com aprisioná-los dentro de
outras formas para a eternidade.
As Irmãs Twid não estão muito satisfeitas com Morfeu neste momento porque ele se recusa a
enviar suas mariposas mortas a elas. Ele prefere soltá-las para voarem livres em algum lugar entre a
vida e a morte do que amarrá-las em uma prisão de terra. Então, Morfeu as esconde dentro de seus
espelhos.
Alguns podem considerar morbidez. Eu vejo um certo grau de ternura em seu esforço para
oferecer-lhes dignidade. A mesma ternura que vislumbrei em nosso passado, e antes, quando ele
cuidou dos meus ferimentos.
A marca de nascença que tenho em meu tornozelo é universal para as criaturas do País das
Maravilhas — chaves para seu mundo e um modo de curar uns aos outros —, além de ser uma parte
da maldição dos Liddell. Eu ainda não sei por quê, quando mais velha, Alice perdeu a marca. Nem
por que ela esqueceu o período em que habitou o mundo real, jurando que vivia em uma gaiola de
pássaro em vez de ter casado e tido uma família. Mas pelo menos uma coisa está clara: faço parte
deste reino até que consiga quebrar a maldição.
Botas pesadas ecoam pelo chão espelhado e eu olho para cima.
— Jeb! — Corro na direção dele. O chão é escorregadio e as botas que as fadas me deram
possuem pouca tração. Escorrego. Jeb larga a mochila, dá um pulo para a frente e me pega.
Ele me puxa para cima até nossas testas se tocarem e meus pés ficarem pendurados no ar. Nunca
deixo de ficar extasiada com a facilidade com que ele me levanta, como se eu não tivesse peso
nenhum.
Afago seu rosto recém-barbeado e seu piercing — inspirando seu cheiro, me assegurando de que
ele está bem.
— Ele tocou em você? Machucou você? — sussurra Jeb no silêncio.
— Não. Ele foi um cavalheiro.
Jeb franze a cara. — Cavalheiro, sei.
Dou um sorriso debochado, o que derrete sua seriedade e o faz sorrir. Ele me roda no ar. — Senti
sua falta — diz ele.
Enfio o queixo em seu ombro largo e o abraço forte. Meu corpo está sedento e bebe seu calor
como uma esponja. — Nunca mais me deixe, está bem? — Em qualquer outro momento, isso poderia
soar um tanto piegas. Mas neste, é o pedido mais sincero que já fiz na vida.
— Não planejo — sussurra ele, com a boca tão próxima que seu hálito roça a ponta de minha
orelha.
Quando saio do abraço, ele está observando as silhuetas que correm em torno de nós.
— Gossamer me contou sobre elas — explica ele. — Não acreditei. O cara é fanático por
mariposas.
Apoio meus antebraços em seus ombros, com os pés ainda balançando na altura das canelas dele.
— Você devia ver o quarto dele. Ele tem casinhas de vidro cheias de mariposas vivas. Ele as
mantém lá dentro até elas saírem dos casulos. Quando estão fortes o bastante, ele as liberta.
— Ele levou você para o quarto dele? — Uma nuvem negra cobre o rosto de Jeb. — Jura que ele
não tentou nada?
— Palavra de escoteiro.
Ele aperta a minha cintura, me fazendo cócegas. — Só que você nunca foi escoteira.
Contraio o corpo e sorrio. — Não aconteceu nada. — É mentira. Morfeu me impressionou muito,
mostrando-me um lado de mim mesma que mal posso acreditar que existe — e que não estou certa se
Jeb será capaz de aceitar. Mas talvez ele não precise saber sobre os parafusos soltos em minha
cabeça nem sobre meus poderes esquisitos. Talvez eu consiga esconder minhas tendências
amaldiçoadas até sairmos daqui e eu me curar.
Dedos trançados em volta do pescoço de Jeb, puxo seu pequeno rabo de cavalo. Para ajudar a nos
encaixarmos no banquete, vamos ambos fantasiados. Ele será o cavaleiro élfico, então as fadas
puxaram seu cabelo por sobre as orelhas para esconder as pontas redondas. Eu gosto assim. Sua
mandíbula forte e traços expressivos ficam mais aparentes.
— Achei que elas iriam dar-lhe um chapéu — caçoo.
— Que nada. Eles são exclusivamente para vermes com asas.
Dou risada e empurro os ombros de Jeb, uma permissão implícita para ele me colocar no chão.
Ele me pousa de pé. — Você está linda.
— Obrigada. — Eu não revelo que minhas roupas foram criação de Morfeu: uma túnica pêssego
estilo baby-doll sem mangas com sobreposições de babados que começam abaixo dos seios e vão até
o meio da coxa. Os babados têm acabamento de renda vermelha, que complementa o cinto vermelho
estilo sadomasoquista incrustado de cintilantes rubis que cinge minha cintura. Cinco robustos anéis
de prata decoram o cinto, combinando com a blusa cinza sob minha túnica. As mangas bufantes da
blusa cobrem meus braços até os pulsos, onde surgem luvas de renda vermelha sem dedos. Um
legging listrado em cinza e pêssego cobre minhas pernas feito aquelas bengalas doces e desaparece
dentro das botas de cano alto de veludo vermelho.
Todo esse conjunto é um esforço calculado para me fazer parecer selvagem e indomável, para que
os excêntricos convidados do jantar sejam mais receptivos comigo. Para esse fim, as fadas teceram
frutas vermelhas e flores nos dreadlocks por toda a minha cabeça e depois enfiaram o grampo de
cabelo dos tesouros de Alison encontrados na poltrona bem acima de minha têmpora esquerda. Por
alguma razão, Morfeu insistiu que eu o usasse.
Aponto para o uniforme de cavaleiro élfico de Jeb. — Eu já vi isso antes. Essa cruz representa a
elite dos elfos joalheiros. — As calças pretas envolvem suas pernas como jeans bem talhados. Há
uma corrente prateada que entra e sai por duas presilhas do cinto, formando a ilusão de cinco
cordões diferentes, e uma cruz feita de diamantes faiscantes na coxa esquerda. Percorro as joias com
os dedos. — Você não é só um cavaleiro... É um dos acompanhantes reais.
Jeb detém minha mão sobre sua coxa musculosa. Seus olhos ficam mais intensos, como quando nos
abraçamos no fundo do oceano.
Recolho minha mão e ele retesa o queixo.
Constrangida, concentro-me no resto de seu uniforme. A camisa tem mangas compridas e é feita de
um material aderente. É prateada, com listras pretas verticais de tecido semitransparente. Procuro
suas queimaduras de cigarro, ansiosa para vê-las, e noto que os poucos pelos de seu peito sumiram.
— Você raspou o peito?
Ele olha para as listras pretas. — Na verdade, não havia um espelho no meu aposento. Gossamer
raspou depois que tomei banho, quando fez a minha barba. Ela disse que elfos não têm pelos em
nenhum outro lugar além da cabeça.
Em nenhum lugar? Eu o imagino nu — Gossamer tocando seus músculos abdominais, entre outros
lugares. — Aquela fada viu você nu?
Ele pigarreia. — Não foi só ela. Chegou uma hora que tinha umas trinta em cima de mim.
Um surto de ciúme me toma. Meus punhos se fecham. — Trinta fadas tocaram seu corpo nu?
— Fique fria com relação às fadas, tá bom? Feijões-de-lima que voam não são minha praia. Agora
vem cá. Quero te mostrar uma coisa. Ele vira meu rosto para a parede espelhada e fica atrás de mim,
com o queixo apoiado no alto de minha cabeça, e levanta as mãos para os dois lados do meu rosto.
— Repare nos seus olhos.
Minha imagem olha de volta, transposta sobre as sombras de mariposas. Notei a maquiagem assim
que entrei no corredor. As fadas fizeram um trabalho incrível para que parecesse real. Sombra preta
cai dos olhos como listras de tigre debaixo de meus cílios inferiores. As linhas lembram as tatuagens
de Morfeu, só que em uma versão mais feminina.
— Você esteve assim o tempo todo. Eu notei quando saímos da toca do coelho. Achei que sua
maquiagem tinha manchado. Mas, depois do mar, você ainda estava com ela. Eu não liguei as coisas
até ver Morfeu sem máscara há alguns minutos. — Jeb faz uma pausa, e parece aborrecido. Ele
esfrega os polegares nas bordas dos desenhos negros. — Eles não desaparecem. E o brilho em toda a
sua pele? Não são restos de sal. Você está começando a se parecer com os meus desenhos de fadas,
de verdade.
Sentindo-me aturdida, enrosco os babados da minha túnica nos dedos. Isso explica por que o
octobenus achou que eu era intraterrena. — Por que você não disse nada?
— Nós estávamos muito ocupados com tudo aquilo acontecendo.
Volto-me para o meu reflexo. — Então, a maldição está ficando pior.
— Pior do que você pensa. — Jeb fica atrás de mim e passa as mãos por trás de meus ombros. —
Sua roupa tem fendas... Para as asas que vêm por aí?
Seus polegares calejados afagam a pele nua ao longo de minhas escápulas. Não consigo responder.
Pelo que vimos até agora, só alguns intraterrenos têm asas. A ideia de alguma coisa surgir de minha
pele me deixa tonta. Na verdade, pensar nas mudanças que já sofri é o bastante para me fazer sentir
como se eu estivesse rodando em um carrossel descontrolado.
A expressão carrancuda de Jeb se fixa sobre mim no reflexo. — Por que essa maldição só afeta as
mulheres de sua família?
— Alice era do sexo feminino — respondo, ainda passando por um turbilhão por causa da questão
das asas. — Só alguém do sexo feminino pode arrumar a bagunça que ela fez.
— Bagunça — diz Jeb, franzindo a cara ainda mais. Agarrando meus braços com delicadeza, ele
me vira e olha dentro dos meus olhos. — Quando eu estava com as fadas, Gossamer mencionou o que
você fez com o mar. Ela não chamou aquilo de arrumar a bagunça. Ela disse que foi um teste. E sabe
o que é mais estranho ainda? Ela está ressentida que você tenha conseguido... Que você esteja aqui.
Alguma coisa não está batendo. Não vamos fazer mais nada para ajudar o mariposão até que ele abra
o jogo conosco.
— Ele já me disse a verdade. Ele me disse os passos que tenho que percorrer. — Conto a Jeb o
que vi no quarto de Morfeu, embora não tenha coragem suficiente para compartilhar detalhes sobre
nosso momento de “mistura” e nem o show de marionetes do xadrez.
— Então, você simplesmente vai acreditar na palavra dele?
— Ele tem uma motivação nobre. Um amigo está em perigo.
— Pare de humanizar o sujeito, Al! — Jeb bate a mão na parede de espelhos. As sombras das
mariposas afastam-se, assustadas. — Ele não é do nosso mundo, está bem? E ele tem esse poder de
entrar na sua cabeça. Fiquei olhando para você e para ele na clareira... Você não pensa direito com
ele por perto.
A acusação reaviva minha raiva com relação a Londres. — Então é isso que você quer dizer? Que
eu não sou forte o bastante para pensar por mim mesma?
— É diferente. Olhe o que está acontecendo com você!
— Mas eu posso parar isso se fizer mais uma coisa. Só isso.
— Ah, é? Pelo que estou vendo, quanto mais você faz por ele, mas se parece com ele.
— Não. Você está errado. — Puxo uma de minhas tranças, desejando poder convencer a mim
mesma tão facilmente quanto declamo essas palavras. Desejando poder negar que, quanto mais tempo
fico aqui, mais fundo este lugar entra em meu sangue, ou que Morfeu é o torniquete que aperta as
minha veias e retorce.
Jeb cerra os dentes com tanta força que sua mandíbula estala. — Não vamos discutir por causa
disso, Al. É tudo o que ele quer. Não vou deixar que ele faça isso.
— Faça o quê?
Ele enrola o cabelo com que estou brincando em volta de seu pulso e me puxa para perto,
inclinando a cabeça de modo que nossas testas se toquem. — Se colocar entre nós.
Meu corpo inteiro fica mole e quente com a brusca possessividade em sua voz, mas ele não tem
esse direito. — Você esqueceu? Já existe alguém entre nós. Você vai mudar para Londres com ela.
— Fui um idiota. E pensar, por um segundo, que estar do outro lado do oceano me daria algum
controle.
Um nó ardente me aperta o peito e dou um passo para trás. — Controle? Sobre o quê? A minha
vida? Cai na real, esquecidinho: não sou mais a sua “irmãzinha”. Já cansei de ser colocada na
prateleira junto com todas as suas outras responsabilidades; em algum lugar entre cortar as unhas dos
pés e trocar as meias sujas. — Eu o empurro para o lado e ando na direção da cadeira de vidro,
determinada a esperar por Morfeu lá.
De repente, Jeb pega uma das argolas de meu cinto e me rodopia. Em um movimento suave, ele me
coloca sobre a mesa estreita em forma de semicírculo. Minha pele treme sob seu toque quando ele
me empurra contra a parede e enfia os quadris entre minhas coxas. Estamos nivelados, cara a cara. A
sensação de agitação me toma a mente — e, na sombra de meu lado sombrio, uma descarga de
satisfação me sobe, uma excitação perversa de saber que posso atiçar as emoções dele até essa
reação visceral.
Firmo as mãos contra seus ombros para manter um espaço entre nós, mas é pura encenação. Meu
blefe perde força e torna-se morno entusiasmo no instante em que ele pega meus pulsos e os puxa
para baixo, aproximando-se ainda mais, de modo que nossos narizes quase se tocam.
— Cai na real você — rebate ele, com o hálito feito um jato quente na sala fria. — Eu sei que
você não é mais uma menina. Acha que sou cego? — Seus dedos se entrelaçam nos meus, prendendo
meus braços contra os espelhos frios e lisos, de modo que nossos corações batem um contra o outro.
— E a esquecida aqui é você. Porque não há nada fraternal no que você me faz sentir.
Minha mente se fecha. Eu devo ter engolido cada espírito de mariposa daqui até o fim do mundo.
Posso jurar que elas estão flanando no meu estômago.
Jeb solta meus dedos e pega meu rosto em suas mãos, quase sem me tocar, como se eu fosse
quebradiça. — Eu estou perdendo o controle sobre mim mesmo. Centenas de esboços e mesmo assim
não me canso do seu rosto. — Ele passa o polegar sobre a covinha em meu queixo. — Seu pescoço.
— A palma de sua mão se move pela minha garganta. — Sua... — As duas mãos encontram a minha
cintura e me arrastam para fora da mesa para que fiquemos de pé um diante do outro. — Não vou
perder mais um instante desenhando você — sussurra ele nos meus lábios — quando posso tocá-la.
— Ele pressiona sua boca contra a minha.
Uma fagulha, quente e elétrica, pula entre nós. Surpresa e excitação me transpassam, iluminada
pelo calor e pelo sabor dele. Seis anos de desejos secretos. Seis anos negando que ele é a órbita do
meu mundo.
E pensar que ele também viveu fugindo de mim.
Desorientada pela incredulidade e pelo prazer, me fecho. Meus braços pendem frouxos ao lado do
corpo, os punhos abrindo e fechando. A boca de Jeb vibra contra a minha em um gemido. Ele coloca
minhas mãos em volta de seu pescoço, aproximando-se mais.
O sabor dele é incrível — como chocolate com sal. Familiar, embora novo e excitante. Aperto os
dedos em seu pescoço. Os sentimentos que eu reprimia se desenrolam e batem dentro de mim como
enguias elétricas, me dando choques e trazendo-me à vida. Cada receptor sensorial vibra,
hiperligado. Eu o saboreio, o inalo, o sinto.
Só ele.
Meus lábios seguem os dele, pulsando lentos, macios e quentes. Seu piercing arranha meu queixo,
um contrapeso áspero e sensual.
Suas mãos guiam meu queixo, me mostrando como inclinar o rosto. Ele me incita a abrir os lábios
com os dele. Minha língua percorre seus dentes, encontrando aquele incisivo torto antes que sua
língua encontre a minha.
Talvez eu esteja respirando muito forte. Talvez eu esteja babando demais. Talvez eu não chegue
aos pés das outras garotas com quem ele esteve. Mas não importa, porque, de todas as coisas que já
vivi nesta jornada — encolher e crescer, fadas voadoras, peças de xadrez com vida —, nenhuma é
mais mágica do que este momento.
Seus beijos cedem e ele começa a esfregar o nariz pelo meu rosto e pescoço, carinhoso e pungente.
— Al — sussurra. — Seu sabor é tão doce... como madressilva.
— Não — murmuro, extasiada.
Ele se afasta com os olhos sérios e sombrios. — Quer que eu pare?
— Não. — Eu tantas vezes adormeci rezando para que você me olhasse desse jeito. Me tocasse
desse jeito. — Não parta meu coração.
Sombras de mariposas flutuam sobre ele no teto espelhado, me distraindo da seriedade de sua
expressão. — Eu arrancaria o meu primeiro.
Acredito nele. Ficando na ponta dos pés, aperto seu rabo de cavalo. Desta vez, eu o beijo. Ele
reage com um frêmito, os dedos me penetrando os quadris. Deslizo as mãos enluvadas para baixo a
fim de encontrar seu peito, em busca das cicatrizes. Parando nas correntes em sua cintura, eu as
seguro com força até o metal me ferir os dedos, depois nos coloco contra a parede. A friagem do
espelho me penetra as escápulas, mas seu corpo perfeito contra o meu faz o meu sangue fervilhar, me
consumindo.
Estamos os dois tão envolvidos que nenhum de nós ouve os passos até que um grunhido nos
separa. Viramos e encontramos Morfeu ali parado, com ódio suficiente em seus olhos escuros para
mandar o diabo para o céu.
Jeb recolhe os dedos dos anéis em meu cinto, mas mantém uma mão nas minhas costas. Eu toco
meus lábios; eles vibram e estão sedentos, ansiando por mais.
— Ora, ora. Mas que cena acolhedora! — A voz de Morfeu não está fluida desta vez. Ela arranha
feito pregos enferrujados me tocando os tímpanos. Ele arranca suas luvas e bate-as contra a palma da
mão, as asas caídas e arrastando no chão, como um manto. — Talvez você possa devolver o batom a
Alyssa. Não temos tempo de encontrar outro antes do jantar.
Jeb limpa meu brilho labial de sua boca. Eu lambo os lábios, atingida por uma inexplicável onda
de culpa.
O acalanto de Morfeu toca suavemente em meu pensamento, melancólico e seco. As palavras da
canção parecem ter sido alteradas para se adequar ao que ele sente:
Vermelha e pêssego, a florzinha,
Atraindo meninos com sua linda cabecinha;
Provoque, jogue, seja dengosa e esperta,
Pois um dia o magoará, fique certa.
O acalanto fica mais amargo e alcança notas estridentes em meus ouvidos, fazendo-me retrair.
Com um grunhido que vem do fundo do peito, Morfeu vira-se para um espelho e escova suas
roupas com as luvas. Ele está usando uma camisa branca com babados sob um casaco vermelho de
brocados que balança na altura das coxas. Ele é transpassado e tem botões de metal nas duas lapelas.
Suas calças lembram leggings — veludo amassado vermelho. Botas de cadarço pretas que vão até a
altura da canela. Ele poderia ser um Romeu saído diretamente da peça de Shakespeare, não fosse o
cabelo azul e as asas.
Morfeu abre toda a envergadura das asas em seu completo esplendor. As joias nas pontas dos
desenhos em seus olhos faíscam com sua irritação, de vermelho a verde. — Você não sabe, cavaleiro
élfico — ele se vira para nós — que é muito desfavorável para um guarda fazer uma proposta à sua
inocente protegida?
Eu franzo a cara. E por acaso eu tenho a palavra puritana estampada na testa? — Você não sabe
nada sobre mim.
Morfeu torce a boca num sorriso irônico. — Talvez você estivesse somente fingindo, então?
Ficando com as bochechas coradas feito um pêssego imaculado?
Jeb me arrasta para atrás de si. — Ela não vai falar sobre isso com você.
Morfeu bufa. — Um pouco tarde para cavalheirismos. Se alguém tivesse visto essa demonstração,
sua máscara de cavaleiro teria terminado antes mesmo de começar. Você se esqueceu de informar a
ele qual é a primeira ordem de um cavaleiro, queridinha? Manter as mãos e as emoções sob
controle? — A atenção de Morfeu cai sobre seu ombro direito. Gossamer está espiando por baixo de
seu cabelo. Ela e Jeb trocam olhares.
O olhar de Morfeu volta-se para mim, cortante feito lâminas de ônix. Tudo que eu quero é me
deleitar com a lembrança do meu primeiro beijo. Em vez disso, estou me culpando por ter traído um
sujeito do reino interior que eu não via há anos, e, por alguma razão, a ideia de magoá-lo é
insuportável.
Jeb retesa a postura. — Mudança de planos — afirma ele. — A Al não vai mais ajudar você com
esse joguinho, seja qual for. Você vai nos mandar de volta. Agora.
Morfeu levanta um lado da boca, desdenhando. Ele se dirige a Gossamer mais uma vez enquanto
ainda olha para mim. — Parece que você estava errada. Você me disse que o mortal não
representava uma ameaça. Talvez tenha subestimado o poder de sedução de nossa engenhosa Alyssa.
Gossamer observa seus próprios pés pequeninos. Suas asas batem devagar, como as de uma
borboleta em repouso. — Achei que ele preferisse alguém...
— Shhh! Não pode revelar esse segredo! — grita Morfeu. O volume de sua voz faz Gossamer cair
de seu poleiro. Ela flutua no ar com as mãos tampando as orelhas pontudas.
Morfeu leva um dedo à boca. — Leia meus lábios, fadinha tagarela. Pegue. A. Maldita. Caixa. Já
é hora de mostrar à nossa donzela e ao seu soldadinho de brinquedo que tipo de boas-vindas eles
receberão se derem as costas ao seu único aliado.
Gossamer chispa para o corredor.
— E traga-me meu Chapéu da Lisonja! — Morfeu grita para ela. Seu comando ainda ecoa no ar
quando ele dá uma volta sobre o calcanhar e se vira para nos observar. Pretensioso, ele veste as
luvas. — Há um problema com o seu pedido, pseudoelfo. Não posso simplesmente mandá-los de
volta. E Alyssa sabe disso.
Jeb vira a cabeça para trás com olhar inquisidor.
— Nossa! — Morfeu bate a palma da mão no rosto, como se estivesse perplexo. — Vocês
estavam ocupados demais para falar de algo pertinente? Ou talvez nossa inocente donzela estivesse
se sentindo culpada pelo dinheiro que ela “tomou emprestado” da bolsa da sua outra namorada, e
você, sendo um nobre cavaleiro, decidiu confortá-la.
Jeb vira para mim. — Espere... Aquele dinheiro no estojo de lápis. Tae realmente deixou a bolsa
na loja? Você roubou o dinheiro dela.
Morfeu inclina-se entre nós. — Bem, de que outra maneira Alyssa iria para Londres me procurar?
O olhar de Jeb fica imóvel, repleto de acusação. — Não acredito que você mentiu na minha cara.
Você roubou o dinheiro para comprar um passaporte falso e planejava ir para Londres.
— As duas coisas — diz Morfeu em tom provocativo, agora atrás de mim. — Mentirosa e ladra.
Aquele pedestal está escorregadio, não está, queridinha?
Dou-lhe uma cotovelada tão forte que suas asas farfalham. — Eu fiz o que tinha que ser feito para
ajudar Alison — grito para Jeb, ignorando o sorriso convencido de Morfeu, que passa por mim. —
Eu só tomei emprestado. Vou devolver.
Morfeu para ao lado de Jeb. — Nisso ela está certa. A motivação sempre justifica o crime. É a lei
de nossa terra.
— Ouviu isso? — dispara Jeb, me trespassando com o desdém em sua voz. — A baratinha local te
deu o selo de aprovação. E você ainda se pergunta por que não posso confiar que você ande por aí
sozinha.
Uma pequena fogueira queima na base da minha garganta, uma necessidade irritante de me
justificar que me invade feito ácido. — Eu tinha um plano.
— Ah, grande plano. — Jeb faz um gesto mostrando a sala à nossa volta.
— Eu não sabia que seria assim, Jeb!
Antes que Jeb possa responder, Morfeu se interpõe entre nós, agarrando cada um pelo ombro. —
Me desculpem, pombinhos — diz ele, recitando. — Mas, por mais que eu esteja adorando, essa
briguinha corre o risco de ofuscar minha grande revelação.
Ele aponta para a porta, onde Gossamer aguarda com outras trinta fadas. Cinco delas carregam
uma cartola vermelha com uma larga faixa preta ostentando uma pluma de pavão. Um cordão de
corpos iridescentes de mariposas azuis decora a aba, feito uma guirlanda.
As outras fadas trazem uma sacola preta pesada demais para ser erguida, então elas a arrastam
pelo chão.
— Todos os convidados já chegaram, mestre — avisa Gossamer, em um trinado. Ela e suas
companheiras depositam a cartola no alto da cabeça de Morfeu enquanto as outras deixam a sacola
ao lado de nossa mochila.
— Sirva os aperitivos e peça à harpa que toque alguma coisa. — Morfeu ajusta o ângulo do
chapéu. As mariposas mortas tremem com o movimento, como se lutassem para escapar. — Não
demoraremos.
Gossamer aquiesce e segue as outras, olhando para trás mais uma vez antes de adentrar o corredor
ao lado.
Morfeu pega a sacola. Ao caminhar na direção da mesa de vidro, suas asas acetinadas roçam
minha bota esquerda. Uma vibração penetra pela minha marca de nascença e sobe pela canela, indo
parar na minha coxa, quente e excitante. Fazendo uma careta, escorrego a perna para trás e dou um
tapa na bota para aliviar a sensação. Jeb me observa com olhar desaprovador.
Morfeu abre a sacola e vemos uma caixa de chapéu alta e prateada decorada com veludo branco.
Nunca vi nada assim, nem mesmo nos meus sonhos. A curiosidade me atrai até a mesa.
Morfeu indica a cadeira, desempenhando mais uma vez o papel de anfitrião cavalheiro.
— Vou ficar de pé — murmuro. Gostaria de deixar seus olhos negros ainda mais negros por ter
provocado minha briga com Jeb só para se vingar do beijo. Mas estou estranhamente intrigada que
ele se importe o suficiente para ter ciúmes, é verdade.
Jeb se acomoda atrás de mim e aperta meus ombros — ainda meu protetor, mesmo quando está
bravo. Recosto-me em seu corpo quente, em gratidão.
Morfeu lança um olhar desgostoso para nós e depois arrasta a caixa para o centro da mesa. Na
verdade, ela é feita de peltre. Rosas de veludo branco cobrem os lados, e entalhes se enrodilham no
alto da tampa, em alguma língua arcaica. Quanto mais eu olho para as palavras, mais legíveis elas se
tornam. Será mais uma manifestação da maldição dos Liddell, que esta língua me venha
naturalmente?
— Hora das apresentações — diz Morfeu, abrindo a tampa um segundo antes que eu possa
compreender a primeira sentença.
Um fluido escuro e oleoso se move dentro da caixa. Uma folha de vidro sobre o topo mantém o
líquido lá dentro. Morfeu dá uma sacudidela no conteúdo e um objeto esbranquiçado vem à tona.
Ele me lembra uma Bola 8 Mágica que vi uma vez em um bazar. A bola de plástico preta continha
uma janela. Um fluido azul preenchia o interior, e um dado branco emergia até a janela, marcado com
frases em cada um dos lados. Você só tinha que fazer uma pergunta para a bola, rodá-la nas mãos e
depois virá-la para cima. Sua resposta aparecia na janela escrita no dado... E ia de bem provável até
pergunte novamente depois.
Só que este objeto flutuante é quase do tamanho de um melão e tem formato oval. Fios grossos e
esbranquiçados rodopiam lá dentro. Morfeu agita novamente a caixa. O globo gira e revela um rosto.
É uma cabeça!
Com um ganido, controlo a bile que me sobe até a garganta.
Jeb solta um palavrão e tenta me virar para ele, mas não consigo deixar de olhar para ela. O
líquido deve ter algum tipo de formol. Por que Morfeu teria uma cabeça conservada em uma caixa de
peltre?
— Acorde, minha bela — sussurra Morfeu, com suavidade forçada. Eu observo, mortificada, ele
bater levemente no vidro, percorrendo os cílios fechados e cristalizados daquele rosto. Quando os
olhos se abrem, quase caio para trás.
A coisa está viva.
Percebo que conheço aquela imagem, da encenação com as peças de xadrez. É a Rainha de
Marfim, ainda mais linda do que sua cópia em jade, delicada e alva como a luz da lua. Marcas
parecidas com tatuagem perfilam as duas têmporas, em uma rede de veias, como se asas de libélulas
tivessem sido transferidas para um carimbo e depois para a pele. Seus olhos são de um azul tão claro
que quase não têm cor; longos cílios se curvam para cima a cada piscada. Eles são iguais a suas
sobrancelhas, prateados e cristalinos, como se fossem revestidos de gelo. Nos contornos externos,
duas linhas pretas mergulham até as maçãs do rosto e terminam em forma de lágrima; é como se ela
chorasse tinta. Lábios de um rosa pálido — curvos e belos como um coração — abrem-se num
sorriso adorador quando seu olhar cai sobre Morfeu. Ela tenta falar.
Morfeu se inclina, passando carinhosamente a mão enluvada sobre seu rosto encerrado. Ela tenta
falar mais uma vez, mas não pode ser ouvida através do líquido e do vidro.
Jeb e eu ficamos ali parados, presos em nosso próprio silêncio.
Morfeu quebra a quietude. — Esta é uma caixa linguardarte. Ela pode conter um ser inteiro em seu
interior, embora só o rosto apareça. Você já ouviu a frase “Cortem-lhe as cabeças”, do livro que
carrega?
Olho para as minhas mãos enluvadas, pensando em minhas cicatrizes. O livro não é o único lugar
em que vi essas palavras, e Morfeu sabe disso. Seria isso que Alison quis dizer quando mencionou
que não queria que eu perdesse a cabeça?
— Bem, esta é a origem dessa frase — termina Morfeu. — A pequena Alice a tomou muito
literalmente. Isso costumava ser uma punição comum aqui no País das Maravilhas. Mas agora é
considerada uma barbárie. É pior do que qualquer prisão, pois seu ocupante pode ser visto, mas não
ouvido. Sua fala fica trancada aqui.
A caixa treme sob as mãos de Morfeu. A expressão da rainha muda de adoradora a desesperada.
Ela se debate com força, e bolhas chegam à superfície. Seu cabelo enrodilha-se feito plantas
marinhas albinas. Morfeu envolve a caixa nos braços numa tentativa de impedir que caia da mesa.
Quando sua boca se estica em um grito mudo, ele fecha a tampa. O rosto de Morfeu fica lívido e ele
guarda a caixa na sacola antes que eu possa olhar a inscrição novamente.
Esticando as mangas por sobre as luvas com dedos trêmulos, ele suspira. — Eu não queria
perturbá-la. Ela fica em paz quando está sozinha. Mas, se não for libertada logo, todas as suas
lembranças se perderão para sempre.
— Você se importa com ela — digo com um inesperado quê de inveja. Nas minhas lembranças há
muito perdidas de quando éramos pequenos, só havia nós dois. Nós nos entendíamos em todos os
níveis. Morfeu me fazia sentir adorada, especial, importante. Nunca imaginei que ele pudesse fazer o
mesmo por outra pessoa quando crescesse e se tornasse um homem. — Morfeu, o que ela representa
para você?
Ele não responde. Não em voz alta, pelo menos. Sua expressão é nebulosa e perturbada, e as joias
em torno de seus olhos mudam de prateadas para pretas, como estrelas perscrutando o céu em uma
noite de tempestade. A confissão de Alice no tribunal me vem à mente. “Marfim, na verdade,
gostava muito do Sr. Lagarta.” Julgando pelo modo como Morfeu olhou para a rainha agora, por
como ela o olhou, ele voltou ao castelo depois de sua metamorfose.
Imagino seus dedos elegantes correndo pela pele dela, seus lábios macios junto aos dela. Aquela
pontada de inveja evolui para algo muito mais feio — uma cobiçosa mudança de emoção que não
consigo nem nomear. O que há de errado comigo? Por que eu me importaria com a vida amorosa de
Morfeu, quando finalmente beijei Jeb depois de tantos anos?
As asas de Morfeu se estendem e voltam a fechar. A obscuridade que permeia seus traços dá lugar
à raiva reprimida. — Neste reino, os espelhos são portas. Mas o corredor no qual estamos leva
somente a outras partes do País das Maravilhas. As portas que levam ao seu mundo estão dentro dos
castelos Branco e Vermelho e estão ligadas às rainhas. O portal da Rainha de Marfim está congelado
por causa do estado dela e permanecerá assim até que ela seja libertada pela pessoa que a colocou
nesta caixa. Isso nos deixa somente o portal da Rainha Vermelha. Creio que vocês já conheceram o
Rábido Branco.
Engulo seco e faço um sinal afirmativo com a cabeça.
— Então sabem como serão bem recebidos na província Vermelha. Pisem lá e poderão terminar
em uma caixa igual a esta.
Uma imagem minha e de Jeb trancados em meio a um líquido escuro me passa pela cabeça. Jeb
deve ter sentido o meu arrepio, porque apertou mais forte os meus ombros. — E quem colocou a
Rainha de Marfim aí dentro? — pergunta ele.
Morfeu tira o chapéu e o coloca ao lado da sacola, deixando seu cabelo um emaranhado azul
brilhante. — Depois que a Rainha Vermelha foi exilada para a floresta, nunca mais foi vista. Sua
meia-irmã, Grenadine, desposou o rei e tornou-se rainha. Uma mulher por demais negligente para
ostentar uma coroa. E agora o rei quer dar-lhe duas. — Morfeu fisga uma tiara de diamantes
fulgurantes na sacola. — Tenho um espião no castelo Vermelho. Quando a Corte Branca veio até mim
trazendo a notícia do destino de Marfim, há algumas semanas, enviei ordens para que meu contato
roubasse a caixa linguardarte. Estou abrigando Marfim aqui, junto com sua coroa, para mantê-las a
salvo de Grenadine e do Rei Vermelho. Se eles controlarem o portal Vermelho e o Branco, vocês
nunca voltarão para casa. — Ele volta a guardar a tiara. — Tudo será resolvido quando Alyssa
encontrar a espada vorpal. Ela é a arma mais poderosa do País das Maravilhas. Posso usá-la para
forçá-los a libertar a Marfim. O portal dela será então aberto a vocês.
Jeb olha diretamente para Morfeu. — Deixe-me ver se entendi direito. Você nos atraiu para cá
com a promessa de salvar a mãe de Ali, sabendo o tempo todo que não teríamos como voltar para
casa antes de libertarmos sua namorada esquisita.
Morfeu levanta um dedo. — Como estamos esclarecendo os fatos, não devemos esquecer que você
nunca foi convidado, para começo de conversa. Se isso for demais para sua delicada constituição,
escória mortal, poderá permanecer trancado em segurança no meu quarto de hóspedes até que tudo
termine.
— Eu vou aonde a Al vai, insetão. E só para seu conhecimento, se alguma coisa acontecer com
ela, vou espetar você pelas asas numa prancha de cortiça e usá-lo para treinar dardos.
O confronto entre Jeb e Morfeu é só um ruído de fundo. Estou aqui para quebrar a maldição por
Alison — só isso importa.
Só que eu nunca deveria ter metido Jeb nisso. Se eu pudesse voltar no tempo...
Algo que as flores zumbis disseram me cutuca a memória. Algo sobre o tempo andando para trás
no País das Maravilhas. O que elas queriam dizer com isso? Obviamente, não é uma verdade literal.
O tempo tem andado para a frente desde a visita de Alice, ou as coisas não estariam neste estado.
Um sentimento de urgência me arrebata. Alison irá para o eletrochoque na segunda-feira. —
Preciso chegar nesse chá da tarde e acordar os convidados.
Jeb olha para mim. — E como vai fazer isso? Dando um beijo mágico no seu chapeleiro de meia-
tigela?
Morfeu coloca o chapéu na cabeça e o inclina. — Meia-tigela? As habilidades de Herman
Chapelão são excepcionais. Ninguém faz chapéus como ele. E quanto a dar um beijo para acordá-lo?
Conto de fadas errado, Príncipe Encantado. Mas eu lhe asseguro — Morfeu roça o polegar na minha
têmpora —, nossa queridinha aqui vai nos brindar com um ”viveram felizes para sempre”.
Jeb agarra o pulso de Morfeu no ar. Seus olhares se encontram.
— Sem tocar — Jeb rosna.
Morfeu dá um puxão e liberta a mão. — Nossos convidados sabem por que Alyssa está aqui.
Como eles sentem falta de suas excursões ao reino humano, estão dispostos a recebê-la na esperança
de poderem voltar a ter acesso ao portal branco. Mas, se eles perceberem em você um estranho que
chegou sem ser convidado, não serão tão amáveis. Para a sua própria preservação, você deve ser
convincente como um cavaleiro élfico. Estes têm temperamento estável e imparcial. É hora de fingir
que possui essas virtudes.
Sinto a tensão no ar enquanto Jeb luta para conter sua irritação. Os dois se enfrentam, encarando-
se.
Meto um braço entre eles. — Não temos que ir ao banquete?
Franzindo a testa, Morfeu tira as luvas brancas de Alice de seu casaco. A grama e a sujeira foram
lavadas. — Vamos precisar do leque de renda. — Ele dirige o comando a Jeb, que se detém como se
fosse dar-lhe um soco. Agarro o seu cotovelo — um apelo silencioso.
Jeb segue pelo corredor a fim de pegar a mochila.
Morfeu e eu analisamos um ao outro num silêncio perturbador. Não consigo decidir o que me
perturba mais: meus traços intraterrenos cada vez mais evidentes... A urgência por causa do
tratamento de Alison... A caixa linguardarte... Por que Morfeu parece se importar que eu beije Jeb se
está envolvido com outra pessoa... Ou, pior ainda, por que me perturba saber de seu amor pela
Rainha de Marfim.
Os pensamentos se espalham à minha volta feito vidro quebrado quando Jeb retorna.
Morfeu enfia o leque em sua lapela junto com as luvas. — Deixem a bagagem aqui. Se algo sair
errado durante o jantar, venham imediatamente para este corredor. Ele é isolado... Praticamente
impossível de encontrar a menos que se conheça a entrada secreta. Gossamer providenciará que
vocês sejam enviados para o chá caso tenhamos convidados inesperados.
— Convidados inesperados? — pergunto.
— Convidados com intenção maliciosa ou assassina. Você é, afinal, uma fugitiva da Corte
Vermelha. — Morfeu esfrega as mãos como se apreciasse a ideia de confusão. — Estou faminto.
Vamos ao banquete.
12
O banquete
das bestas
Listras brancas e pretas cobrem as paredes da sala de jantar, que não possui janelas. Não consigo
definir com precisão onde terminam as paredes e começa o chão ou o teto.
É quase tão desorientador quanto os espíritos de mariposas que vi há pouco. Até a comprida mesa
de jantar e as cadeiras da sala são pintadas de modo a combinar e criar um efeito de camuflagem. Os
convidados parecem estar flutuando no lugar sobre um pano de fundo listrado. Sinto-me perdida, mas
estranhamente em casa, como uma pulga que decidiu residir em uma zebra.
Um candelabro gigante instalado no teto abobadado ilumina os arredores com faixas de luz
dançante. Atravesso a soleira com Morfeu ao meu lado direito, minha mão curvada sobre a sua. Jeb
está dois passos atrás, à minha esquerda. No código élfico, é indecoroso para um cavaleiro ter
qualquer interação com sua protegida, exceto para proteger sua vida, caso seja necessário. Não
podemos nos tocar, não podemos trocar olhares, não podemos nem nos dirigir a palavra, ou nosso
disfarce cairá por terra.
— Sua atenção, por favor. — Morfeu fala aos convidados. Gossamer espia por debaixo de seu
cabelo novamente, e a harpa que toca sozinha emudece, junto com o tagarelar dos convidados. — A
Senhorita Alyssa, do Outro Reino. — Ele se vira para mim e estende meu braço. — Estes são os
solitários de nossa espécie, nascidos na Corte Vermelha ou na Branca. Nós, os selvagens e rudes do
País das Maravilhas, lhe damos as boas-vindas ao Banquete das Bestas.
Minha mão aperta a dele enquanto os convidados olham fixamente para mim, com comida
pingando de seus focinhos.
Reunida em volta da longa mesa está uma mixórdia de criaturas, algumas vestidas, outras nuas.
Embora variem em tamanho e gênero, elas são todas mais bestiais do que humanoides. Uma parece
um ouriço, com espinhos e tudo, só que tem a cara de um pardal. Ela deve ser tímida, porque se
enrola em uma bola quando entramos, e depois quica para baixo da mesa. Uma mulher cor-de-rosa
com pescoço do comprimento de um flamingo abaixa-se e cutuca o ouriço com a cabeça, mandando a
bola de debaixo da mesa para o outro lado da sala.
Há mais criaturas: algumas com asas; algumas são parte sapo e parte planta, com trepadeiras
saindo de sua pele; outras são carecas como focas, com corpos de primatas e cabeças lanudas de
carneiros.
A única coisa que todos têm em comum é o interesse por mim. Sou o ponto focal de mais de
cinquenta pares de olhos.
Alguns murmúrios quebram o silêncio.
— É ela...
— É igualzinha, sim.
— Ouvi dizer que ela secou o mar com uma esponja. Uma esponja! Astuta e criativa.
Todos eles sabem sobre minha relação com Alice e o que vim fazer aqui. Potencial para um épico
fracasso.
Meu nervoso se junta ao fedor de comida, pelos de animais e almíscar. Tudo na sala gira. Jeb está
atrás de mim. Eu sei que, se eu desmaiar, ele irá me pegar. Também sei que, se desmaiar, estragarei
tudo. Tenho que ficar forte para Alison. Então, me recomponho e meu olhar passa de uma cara
estranha para outra, curiosa para saber qual criatura veio coletar o leque e as luvas em nome da
duquesa.
Morfeu me conduz até a mesa e puxa uma cadeira à direita da sua, à cabeceira. Há um enorme
malho apoiado ao lado da perna da mesa, e um debaixo de cada cadeira de nossa fileira. Ele me
acomoda ao lado de uma criaturinha crespa que parece um furão albino usando um capacete de
beisebol preto na cabeça, embora seus olhos serpentinos e língua bifurcada a privem de qualquer
graça.
Jeb assume seu lugar atrás de mim, fora de alcance. Morfeu fica de pé ao lado de sua cadeira e faz
uma reverência com o chapéu para os convidados, asas pretas arqueadas. — Me desculpem pelo
atraso. Mas, olhando o lado bom, nosso anjo vingador finalmente chegou. Então, que comece a
comemoração!
Depois de uma salva de palmas de nossos convidados, Morfeu passa seu chapéu para Gossamer e
várias outras fadas. Elas o penduram no braço da cadeira enquanto Morfeu se senta, dobrando as
asas sobre as costas feito um manto. Gossamer se aninha em seu ombro e todos os outros voltam a se
acomodar, com um ranger de madeira e o farfalhar de pelos e tecidos. O falatório recomeça, junto
com os ruídos de goladas, garfadas e sorvos.
— Prove um pouquinho, querida. — Morfeu aponta para o meu prato. Em seguida, vira-se para ter
uma conversa animada com um animal verde parecido com um porco que está sentado à sua
esquerda, na minha frente. O porco está vestindo um terno cinza com listras e punhos de pele. Suas
mangas são compridas, mas mal cobrem suas garras de lagosta. Ele sorri, e eu recuo ao ver seus
dentes — pretos e redondos como grãos de pimenta.
No meu prato, uma porção de peixinhos dourados no centro, arfando.
— Pisca? — o furão ao meu lado diz com voz de flauta. Ele aponta o dedo com garras para os
peixes.
— Temos que comer os peixes crus? — pergunto a ele. — Nunca fui muito fã de sushi.
— Sue-she? — pergunta ele.
— Deixa pra lá. — Meu olhar passa dos peixes para ele, agradecida pela distração. — Então seu
nome é Pisca?
Ele inclina a cabeça, o capacete brilhante cintilando conforme ele aponta para os esqueletos de
peixes em seu prato. — Pisca.
Nauseada, olho novamente para meu próprio jantar pululante.
Seus olhos de peixe saltam das órbitas, olhando diretamente para mim. Pena e repulsa viram meu
estômago. Não consigo nem imaginar minhas enguias de estimação fora da água e incapazes de
respirar. Será que as mariposas e insetos que uso nos mosaicos sofrem assim quando morrem? Por
que nunca me preocupei em perguntar?
— Pisca — repete a criatura ao meu lado. Ela levanta uma colher de prata quase do seu próprio
tamanho, fica de pé na cadeira e passa a golpear vários dos meus peixes na cabeça, matando-os. —
Pisca eles, entendeu? — Sua língua bifurcada lambe seus lábios.
— Ah, não! Por favor... — Num impulso, pego minha taça e jogo o líquido para que os outros
peixes que continuam vivos possam voltar a respirar. A mistura se esvai rapidamente, revestindo os
peixes com uma camada farinhenta que cheira a suco de maçã e canela. Desesperada, resgato os
peixes sufocados da sujeira, limpando a gosma com as unhas e sujando o tecido de minhas luvas.
Todos estão me olhando novamente, mas estou muito indignada para dar importância.
— O que é isso? — desabafo para Morfeu.
Os olhos dele faíscam. — De onde você vem não se coloca areia na sidra? — Ele sorri
afetadamente. Lembro-me de ver aquele mesmo sorriso nos sonhos quando criança, que costumava
significar que estávamos prestes a fazer algo ousado e divertido. Mas agora há um quê de malícia por
trás dele. O que poderia ter acontecido para transformá-lo de menino brincalhão no homem
perturbado que ele é hoje?
— Prefere experimentar o vinho? — pergunta ele.
Na outra ponta da mesa, os intraterrenos primatas recolhem garrafas de vinho que flutuam no ar, e
prendem tufos de lã de suas cabeças de carneiro nos gargalos para fazê-las descer. Depois, passam o
vinho aos outros para brindar.
Franzindo o nariz, recuso a oferta.
— Ah, pobre e delicada flor. — Morfeu pega um guardanapo e toma minha mão direita com
delicadeza. — Vamos limpá-la. — Gossamer aparece flutuando sobre a mesa ao lado da minha mão
direita e ajuda, com rispidez desnecessária, dando puxões nas minhas luvas e beliscando minhas
juntas enquanto ri de mim. Em contraste, Morfeu retira suavemente a mistura arenosa de meus dedos.
Faíscas de calor surgem do contato.
Há calor atrás de mim, também, e vem do olhar de Jeb. Não preciso ver, eu sinto. Ele alertou
Morfeu para que não me tocasse durante o banquete.
— Uma pena que estivéssemos tão ocupados no Corredor dos Espelhos e acabamos perdendo a
entrada — diz Morfeu, olhando para Jeb de soslaio. — Você teria adorado a sopa de aranhas, já que
é tão adepta a ferir insetos.
Eu me contraio.
— Pena maior ainda — ele se inclina e sussurra bem baixinho para que só eu possa ouvir — que
você desperdice seus beijos com um homem que fantasia com outras mulheres. A pequena Gossamer
pode ver a mente dos outros enquanto dormem. A linda jovem que povoa os sonhos de Jeb não é
você. O interessante é que ele agora escolhe agir em nome de “sentimentos ocultos”. Justo aqui,
longe de todos, quando ele quer tão desesperadamente dissuadi-la de sua missão.
Uma sombra penetrante me atravessa o peito, cortando-me como uma faca.
— Ah, mas é claro que ele é sincero — Morfeu continua a provocar. — Ele nunca escondeu nada
de você. Sempre foi sincero.
A mudança de Jeb para Londres com Taelor toma minha mente, deixando-me tão sombria quanto
as nuvens escuras por trás dos olhos do nosso anfitrião.
Observando minha reação, Morfeu sorri. — Sim. Um homem que nunca mente nunca partirá seu
coração. — Plantando um beijo no alto de minha luva, ele joga fora o guardanapo e me solta.
Gossamer me encara com fúria e voa de volta para o ombro dele.
Lágrimas me brotam nos olhos. Me controlo para que elas não caiam, mas não consigo comandar a
dor que me toma o estômago. Morfeu deve estar certo. Jeb nunca mencionou nutrir sentimentos por
mim na nossa vida real. Lá, ele ainda está com Taelor e ainda sonha com ela.
Morfeu fica de pé e recoloca o chapéu na cabeça, tratando de negócios. — Chega de brincarmos
com essas migalhas insossas. Garçons, tragam o prato principal!
Algum movimento ao longo das paredes propicia uma distração momentânea da dor em meu
coração. É como se pedaços do reboco ganhassem pernas. Só quando eles se desprendem de seus
lugares e se esgueiram para uma das salas adjacentes é que percebo que são um bando de camaleões
do tamanho de seres humanos, com ventosas nos dedos.
Quando os lagartos listrados retornam, com os olhos salientes girando em todas as direções,
trazem uma travessa decorada com frutas secas e algo que lembra um pato. Está depenado e assado,
mas ainda mantém a cabeça intacta. Um cheiro quente de ervas me pinica o nariz. Pelo menos está
cozido.
— Posso apresentar a todos o prato principal? — Morfeu estende um braço com um gesto
dramático. — Jantar, conheça seus dignos adversários: os convidados famintos.
Minha língua vira uma lixa quando os olhos do pássaro se abrem, e ele se esforça para ficar sobre
os pés palmados, trôpego, a carne marrom e brilhando cheia de temperos e óleo. Ele tem um sino
pendurado no pescoço que tilinta quando o pato se curva para cumprimentar a todos.
Isso não pode estar acontecendo.
Cada nervo do meu corpo se eriça, pedindo que eu me una a Jeb. Mas não posso.
Morfeu arrasta o pesado malho que está ao lado de sua cadeira e o bate na mesa, como o martelo
de um juiz. — Agora que todos se conhecem, que comece a pancadaria.
Gossamer decola do ombro de Morfeu e sai da sala com as outras fadas quando explode a
confusão em massa. Todos os convidados ficam de pé, com os malhos na mão, prontos para caçar o
pato que chocalha.
Ele é surpreendentemente ágil e se esquiva, fazendo manobras em meio às travessas, pratos e
prataria.
— O que você está fazendo? — pergunto a Morfeu. — Eu nunca vi nada tão selvagem!
— Selvagem? — O porco verde bufa em resposta. — Você age como se fôssemos um bando de
animais. — Seus dentes de pimenta formam um sorriso desdenhoso.
— Pare de pensar com a cabeça, Alyssa. — Morfeu inclina-se sobre a mesa, seu cabelo azul
balançando na altura dos ombros. — Pense com isto. — Ele coloca um dedo acima do meu umbigo.
É bom que Jeb não consiga ver desse ângulo, ou ele quebraria a mão de Morfeu.
— Com o estômago? — Eu mal consigo enunciar a pergunta.
— Com suas entranhas. Instinto. A parte mais profunda de você sabe que é assim — ele aponta o
caos à nossa volta — que deve ser. Aquela mesma parte de você que a fez me procurar e atravessar o
espelho. A mesma parte que lhe deu o poder de animar seu mosaico.
As palavras dele me remetem de volta àquele momento no meu corredor quando as patas dos
grilos mortos começaram a chutar e as contas de vidro brilharam. Ele está dizendo que a magia da
minha maldição fez aquilo também?
— Você compreende a lógica que está além do ilógico, Alyssa. É da sua natureza encontrar
tranquilidade em meio à loucura. E é isso o que estamos fazendo aqui. Estamos dando à nossa
comida uma chance de resistir. — Ele pisca para mim. — Agora, se nos desculpar, meu camarada e
eu temos algumas bordoadas a dar. — Ele e o porco deixam a mesa. Morfeu se inclina para que suas
cabeças fiquem na mesma altura enquanto eles se dirigem ao outro extremo da sala.
— Pisca! — grita o furão branco. Ele sobe na mesa com a colher nas mãos e acaba sendo
atropelado pelo pato assado. Aparo meu amigo peludo antes que ele caia de cabeça no chão. Sua
colher bate com força no piso, ao lado de seu capacete. Sem o capacete, seu escalpo pelado fica
exposto — a pele é tão fina que seu cérebro fica à mostra. Ele não tem crânio.
Ele se aninha no meu colo. — Datum. Muito datum, meu anjo! — Olhos cor-de-rosa em forma de
contas me estudam, suaves de mórbida adoração. Fico tão cativada com a estranheza da criatura que
não percebo a multidão que vem em nossa direção, brandindo seus malhos numa corrida caótica pelo
prêmio.
Jeb puxa minha cadeira da mesa para me salvar de ser martelada, enquanto o furão se agarra na
minha túnica com obstinação. Em seguida, Jeb se esquiva para o canto, ficando à minha frente, numa
diagonal, mantendo distância. A expressão dele é de esforço para não fazer contato visual.
— Conhecem as regrassss! — Um lobo sinuoso sibila ao dar uma tacada, quase acertando o pato
quando ele se choca com uma travessa. — O primeiro a acertar é o primeiro a trinchar!
Um uivo horripilante quebra o caos quando alguém arranca uma perna do pato. Ele consegue sair
se arrastando enquanto vários dos perseguidores roem a coxa arrancada.
O pato sobe em uma garrafa de vinho que flutua e ganha o ar, rindo em delírio. Arrancando e
atirando pedaços da própria carne, ele incita os outros a tentarem pegá-lo.
Ele quer ser comido.
Uma pontada doentia convulsiona minha barriga, provocada pela excitação da caça. Minhas pernas
se contraem no desejo de pular. Reprimo o impulso.
Todas as criaturas capazes de voar o seguem com os malhos em punho, flutuando sobre os outros.
Os presos ao solo se descolam apressadamente para cima da mesa ou correm pelo chão, tropeçando
em pratos e cadeiras na esperança de que alguém abata o prato principal e ele caia.
Tapo a minha boca para abafar um grito ou riso histérico. Poderia ser qualquer um dos dois a esta
altura. Estou começando a apreciar a loucura.
Isso não é bom. Não mesmo.
Meu novo amigo furão acaricia meus dedos, as almofadas de suas patinhas cor-de-rosa macias
contra a minha pele.
— Sã fique, anjinho — consola sua voz de flauta. — Sã e agradável. Escolha e cante. Seja
sorrisos reais para mim. — Ele ri, os dentes afiados brilhando à luz do candelabro. Seus caninos são
longos como as presas de uma serpente.
Sinto meu instinto aguçado e faço o que Morfeu sugeriu — sigo-o. Faço cócegas na orelha
esquerda da criatura, como faria com um bicho de estimação. Ele ronrona em resposta.
Me desligo de tudo — da perseguição ao jantar, da loucura no riso e nos gritos dos animados
convidados, da carinhosa e peluda criatura no meu colo — quando vejo Morfeu passar o leque e as
luvas para o porco.
Em troca, o porco passa para Morfeu um pequeno saco branco amarrado com uma fita preta.
Depois, o porco recolhe seu malho e vai correndo juntar-se à festa, que fora parar na cozinha. O
ruído de potes e panelas na outra sala ecoa com força no repentino silêncio da abandonada sala de
jantar.
Tenho um sobressalto quando o furão me agarra o rosto. — Seja doce, anjinho. — Ele lambe meu
queixo com sua língua bifurcada e fria e depois pula para o chão, arrebatando sua colher e seu
capacete. — Pisca. Pé-de-vento e fora! — Com isso, ele recoloca o capacete e ruma para a cozinha.
Assim que ele desaparece, somente Jeb, Morfeu e eu ficamos no recinto. Livres de olhos curiosos,
olho para Jeb da minha cadeira e ele me olha do outro lado, sem nenhum de nós se mexer.
Uma estranha pressão começa a penetrar no meu queixo onde a língua serpentina do furão deixou
uma marca molhada. Ela penetra na minha pele e serpenteia até a minha boca, quente e fria ao mesmo
tempo. Sinto seu gosto — amargo e doce, como um doce feito de lágrimas.
A sensação não para por aí. Ela flui para dentro da minha garganta, depois para meu peito,
beliscando com uma tristeza profunda. No princípio, fico triste por mim e Jeb, por como ainda temos
tantas coisas a acertar. Depois, fico triste por Alison e papai, e os anos juntos que perderam. Fico
triste pela Rainha Vermelha e seu coração partido, e pela Rainha de Marfim, que sempre sofreu em
silêncio, agora trancada sozinha na prisão daquela caixa. A tristeza vai aumentando, como se toda a
dor do mundo convergisse para um só ponto logo acima de meu coração. Quero chorar... Quero tanto
que chego a ficar sem ar.
Jeb corre até mim, agachando-se aos meu pés. — Al, está tudo bem. Já passou. — Ele sente minha
testa. — Você está tão fria. Diga algo, por favor.
Não consigo responder por medo de começar a chorar de modo incontrolável.
— Ela está ficando azul! — Jeb grita para Morfeu. — Aquele furão esquisito fez alguma coisa
com ela!
— Não, não. Não fique histérico, pseudoelfo. — Morfeu joga o chapéu sobre uma cadeira e junta-
se a nós. Ele se inclina sobre mim. Jeb, relutante, se afasta alguns centímetros para dar-lhe espaço.
Morfeu levanta meu queixo e inclina meu rosto para um lado e para o outro, como um médico
realizando um check-up. — Tem sorte de ele ter gostado de você, queridinha. Os intraterrenos
Mustela são conhecidos por seu temperamento, e têm o veneno de mil vespas em uma mordida de
seus caninos. Suas cabeças são frágeis e vulneráveis. Se você o tivesse tocado em outro lugar além
das orelhas, ele teria tomado isso como uma ameaça. Você estaria se contorcendo no chão neste
momento, sufocando em sua última e excruciante respiração.
Tento falar, mas não consigo. A tristeza vai ficando cada vez maior. Cada batida de meu coração
esgota meu peito feito uma sanguessuga. Quero escorregar para o chão, enrodilhar-me em mim
mesma e chorar para sempre. Mas estou congelada no lugar.
— Você a acomodou ao lado daquela coisa de propósito, não foi? — pergunta Jeb, ou melhor,
grita. — Para puni-la por ter me beijado! Seu miserável filho da... — Ele ataca Morfeu, girando-o e
envolvendo-o em suas asas, e pressionando-o contra o tampo da mesa. Pratos e utensílios tremem
com o impacto. Com o antebraço apertado contra a laringe de nosso anfitrião, Jeb o mantém preso.
— Conserte isso. Agora.
— Não há nada para consertar. Foi um presente dele. — Morfeu grunhe quando o braço de Jeb
aperta sua garganta. Ele tenta se libertar, mas Jeb o embrulhou tão fortemente em suas asas que ele
não consegue se mover. — Se você me deixar sair — balbucia ele por entre os dentes — eu
mostrarei.
Rosnando, Jeb se afasta e cai de joelhos ao meu lado novamente, tomando minha mão mole. Ele
entrelaça meus dedos nos dele. — Vamos, menina do skate. Fique comigo, está bem? Haja o que
houver dentro de você, não deixe que vença.
A preocupação que tensiona os traços de Jeb deixa o meu peito ainda mais pesado e me sufoca.
Ele precisa que eu responda. Mas se eu abrir a boca para responder, vou chorar sem parar até nada
mais restar de mim.
— Dê-me um pouco de espaço. — Morfeu agacha e Jeb se afasta, mantendo nossos dedos
entrelaçados. Morfeu coloca um guardanapo de pano perto do meu rosto. — Deixe que saia, querida.
Eu sei que parece um dique prestes a desmoronar, mas eu lhe asseguro que basta uma lágrima e você
se sentirá bem.
Não é possível. Uma lágrima nunca será suficiente. Eu me dobro. Um grito agudo irrompe de
minha garganta, tão profundo que fere minhas cordas vocais e esvazia meu abdômen. O grito termina
em um soluço. E, então, uma única lágrima me rola pelo lado esquerdo do rosto.
De repente, sou eu mesma novamente. Aperto a mão de Jeb.
Morfeu embrulha no guardanapo o que parece ser uma bola de gude de vidro transparente, embora
seja macia e maleável, como aquelas bolinhas de óleo para banho. — Isto é seu.
— Esta é a minha lágrima? — pergunto.
— É um desejo. Seu novo amiguinho tem o dom da invocação. Eles só concedem um na vida, e ele
escolheu você. Eu o manterei em segurança por enquanto. Você ainda não está pronta para lidar com
tanto poder. — Enfiando o guardanapo no casaco, nosso anfitrião começa a se levantar, mas Jeb
agarra seu ombro e o mantém ajoelhado.
— Nada disso. Você vai dar isso para ela agora. Dê a ela e ela poderá usá-lo para nos mandar
para casa.
Morfeu liberta-se. — E deixar a maldição continuar? Além disso, temo que não seja assim tão
simples. Porque isto aqui pode ser usado por ela, e só para ela. Ela deve ser o sujeito do desejo,
pois foi ela que o chorou. Ninguém mais pode se aproveitar deste poder. Então, ela não pode levá-lo
para casa. Se querem voltar, os portais são sua única chance.
Jeb e eu trocamos caretas.
— Terei outros desejos — sugiro.
Morfeu ri. — Ah, mas é claro que sim. Como fez Alice. Ela pediu uma infinita variedade de
desejos. Depois, as lágrimas não paravam de sair. Foi assim que o oceano nasceu, para começo de
conversa. Nós quase nunca conseguimos parar essa fonte. Se você tentar ser mais esperta do que a
magia, há sempre um preço a ser pago. — Morfeu coloca-se de pé.
Eu agarro o seu pulso. — Você me fez sentar ao lado dele por alguma razão. Você queria que eu
produzisse esse desejo. Por quê?
Em silêncio, ele afrouxa o nó da gravata em seu pescoço, num gesto de relaxamento, mas sustenta
meu olhar. O lado esquerdo de sua boca se curva num meio sorriso.
— Ei... — Jeb ergue nossas mãos unidas e aperta o polegar contra meu esterno para chamar minha
atenção. Meu coração começa a bater com a pressão, lembrando de suas carícias no corredor
espelhado. — Você estava ficando azul, Al. Aquela cobra-furão podia ter matado você fácil, fácil.
Esse miserável arriscou sua vida só para se divertir. Ele não tinha nenhum motivo nobre.
— Os intraterrenos Mustela são excepcionais juízes de caráter — explica Morfeu, entoando. — Eu
sabia que Alyssa estaria à altura. Tenho certeza absoluta de que ela pode defender a si mesma. Você,
por outro lado, não parece compreender esse conceito.
Jeb me ajuda a levantar da cadeira e me puxa para um abraço. É bom estar em seus braços, mesmo
estando incerta quanto aos seus motivos.
Nosso anfitrião coloca o chapéu no lugar. — Ainda bem que não comi nada, ou ficaria nauseado
com tal demonstração.
Jeb beija minha testa para provocar Morfeu. Eu me afasto, porque quero que ele me beije porque
deseja.
— O porco. — Provoco uma mudança de assunto na conversa; não estou a fim de bancar a juíza
para nenhuma de suas briguinhas.
— Sim — Morfeu responde sem quebrar sua carranca de enfrentamento para Jeb. — O porco é, na
verdade, um diabrete nascido da duquesa.
Alguns pedaços da história de Lewis Carroll se encaixam. Alguém estava fazendo uma sopa para a
duquesa com muitos temperos. Era por isso que o leque e as luvas cheiravam a pimenta. E ela teve
um bebê que se tornou um porco — Então, o que ele lhe deu em troca das luvas e do leque?
Morfeu levanta o saco branco. — A chave para acordar Herman Chapelão no chá da tarde;
gratuitamente. — Ele a entrega a mim, e Jeb começa a desatar a fita.
O dedo de Morfeu se põe sobre o laço. — É melhor não fazer isso. É a pimenta-do-reino mais
poderosa e cara neste lado do reino interior. E só há o bastante para uma dose.
Jeb franze a testa. — Pimenta-do-reino. Que tipo de mágica barata é essa?
Antes que Morfeu possa responder, uma horda de fadas invade a sala de jantar, voando pela porta
principal.
— Mestre, temos companhia — grita Gossamer. — Má companhia!
— Vão — diz Morfeu para Jeb, inclinando-se para pegar um malho.
Jeb enfia o saco de pimenta dentro do bolso e depois pega minha mão. Só demos dois passos na
direção da saída secreta quando um baralho de cartas — cada uma completa com seis perninhas e
bracinhos — marcha pela porta principal. Os guardas de cartas continuam chegando até cobrirem
todas as paredes.
Olhando mais de perto, estes guardas de cartas têm cara de insetos com antenas tremelicantes, e
seus dorsos finos como papel são, na verdade, conchas achatadas, salientes nas bordas e pintadas de
vermelho e preto para lembrar naipes de cartas. Com seus membros estranhamente unidos e bocas
perfurantes entrecruzadas nas mandíbulas, eles parecem mais insetos do que cartas.
Todos esses anos venho matando insetos e agora o carma está aqui para me fazer pagar, em naipes
espadas.
Os insetos se dividem em naipes: cinco copas e cinco paus de um lado e cinco espadas e cinco
ouros do outro, com o Rábido Branco no centro. As fadas, pequeninas e indefesas, olham a situação
de lá de cima, reunidas em volta do candelabro.
Um colete vermelho com luvas combinando pende da estrutura miúda e esquelética do Rábido. Em
uma mão ele segura uma corneta e na outra um pergaminho enrolado. Ele entorta a cabeça com
antenas para produzir três notas soprando o instrumento. Depois, com um estalido do pulso e um
chacoalhar de ossos, o Rábido abre o pergaminho.
— Alyssa Gardner, da corte humana, é chamada diante da Rainha Grenadine, da Corte Vermelha.
— Seus olhos cintilantes e cor-de-rosa se erguem, fixando-se em mim. Sou tomada por uma onda de
terror.
Jeb e Morfeu se colocam na minha frente. Dane-se aquela história de defender a mim mesma...
— Ela não vai a lugar algum com você, Rábido. — Morfeu levanta seu malho.
— Caso contrário, diz a Rainha Grenadine. — Espuma lambuza a boca de Rábido, e seus olhos
brilham como brasas acesas, vermelhos de fogo. — Caso contrário, seu exército assume o comando.
Diante do sinal dele, as cartas contra a parede se unem e dão um salto em nossa direção, como se
controladas por uma mão invisível.
As fadas mergulham de lá de cima, tentando interferir. Morfeu abre as asas ao máximo para
proteger a mim e a Jeb do ataque. Lanças atingem suas asas, esticando-as, mas sem trespassá-las.
Estico as mãos sobre as costas de Morfeu, absorvendo o choque quando seus músculos se retesam a
cada golpe do malho. Seus grunhidos se sobrepõem ao barulho dos guardas, caindo no chão.
— Saiam daqui! — grita ele por sobre os ombros, ao nos conduzir de costas até a saída secreta
para a sala espelhada, ainda usando as asas como barreira.
Jeb agarra meu cotovelo e me arrasta para a porta.
— Não! — Me debato. — Não podemos deixá-lo lutar sozinho. São muitos!
Cerrando os dentes, Jeb me arrebata para o seu ombro. — Ele está se saindo bem. E você é mais
importante. — Seu braço aperta minhas coxas, minha cabeça e meu torso ficam pendurados de
cabeça para baixo em suas costas. A escadaria sinuosa de mármore preto passa por baixo de mim, e
o sangue desce para a minha cabeça.
Fecho os olhos com força, ouvindo a batalha na sala de jantar ficar cada vez mais longínqua.
A lembrança de como Morfeu e eu brincávamos em nossa infância, do modo como ele curou meus
ferimentos hoje, o som de seu lindo acalanto — tudo isso ferve em mim, num caldo confuso de
emoção. Penso no desejo enfiado em seu casaco... O desejo que ele queria me dar, por alguma razão.
Se eu o tivesse agora, desejaria estar na sala de jantar ajudando Morfeu a lutar.
Estou prestes a tentar fugir quando ouço o som de potes e panelas.
— Pisca! Pisca todos eles!
Em seguida, ouço uma série de guinchos e rugidos — as mesmas vozes bestiais que ouvi na festa.
As bestas voltaram de sua caçada, e Morfeu não está mais lutando sozinho.
Jeb e eu nos esgueiramos pela passagem secreta que leva a outro lance de escadas. Em pouco
tempo estaremos tão distantes que o único som será o das suas botas pisando no chão espelhado.
— Pode me colocar no chão agora — resmungo.
— Eu não sei. É muito mais fácil salvar sua pele quando ela está pendurada no meu ombro.
— Você não precisa me salvar.
Jeb solta um riso sarcástico. — Não tenho muita escolha se você se joga em situações perigosas
nessa sua cruzada. Agora você vem e nos coloca no meio de uma guerra mágica.
Eu bato nele. Bem no meio das escápulas.
— Ei... — Ele coloca meus pés no chão, de modo que ficamos olhando um para o outro enquanto
ele esfrega as costas. Apesar de sua careta, Jeb parece impressionado.
Meus dedos estão latejando. O sujeito poderia colocar uma pedra nessa história de vergonha. —
Eu já me sinto mal o bastante por ter arrastado você para dentro disto, está bem? Se eu pudesse fazer
tudo de novo, você não estaria aqui. — Relaxo os dedos. Gossamer ainda não veio para abrir a porta
no espelho, e uma urgência em chegar ao chá da tarde se instaura em mim.
Jeb levanta meus dedos e aperta os lábios contra eles. — Eu ainda desejaria estar aqui com você,
mesmo se tivéssemos uma segunda oportunidade. Mas, se quisermos sair desta, você precisa parar de
acreditar no homem-mariposa como se ele fosse algum tipo de santo.
— O nome dele é Morfeu. — Sinto um nó na garganta quando penso no que está acontecendo três
andares abaixo. — Você acha que ele está perdendo? Acha que vão machucá-lo?
— Por que tanta preocupação com ele?
— Eu cresci com ele. Eu me importo.
— Não faz sentido. Isso foi nos seus sonhos. A amizade de vocês não era real.
— Parece real. Porque ele acredita em mim. Ele me deixa arriscar e aprender com isso. É algo
que um amigo faz. — Cerrando os dentes, olho para Jeb.
A expressão dele fica tristonha, como se uma sombra o encobrisse. — Então, só porque o
esquisitão alimenta seu ego, você está disposta a ignorar todas as mentiras dele? Ele não disse a
verdade sobre nada desde que nós chegamos.
— Então ele combina bem com você, visto que são dois mentirosos. — Odeio a acusação na
minha voz, mas não consigo contê-la. Separo nossas mãos, percebendo o saco sobre a mesa; o que
continha a caixa linguardarte. — Por que ela ainda está aqui?
Fazendo uma careta, Jeb aproxima-se de mim enquanto desembrulho a caixa. — Deve ser o lugar
mais seguro. Você não deveria mexer com isso.
— Quero dar mais uma olhada na inscrição. — Eu queria olhar para a rainha de novo. O que ela
tem que deixa Morfeu tão encantado?
Jeb cobre a tampa com a palma da mão. — Sabe, você não pode simplesmente chamar as pessoas
de mentirosas e deixar por isso mesmo. Talvez eu não tenha sido honesto em relação a Londres. Mas
você também mentiu.
Os espíritos de mariposas deslizam em minha visão periférica, como se acompanhassem minha
pulsação acelerada. — Não sobre os meus sentimentos. Você esperou até chegarmos aqui para
assumir sua suposta atração por mim. De volta ao mundo real, onde vale mesmo, você escolheu a
Taelor.
Ele me força a encará-lo, empurrando a caixa de chapéu para o fundo da mesa. — De onde veio
isso? Aquela baratona andou nadando dentro de sua mente novamente?
— Não. Mas Gossamer viu a sua quando você estava desmaiado. E ela viu que você sonhava com
outra moça. Quando você me beijou... Foi só para me convencer a desistir e ir para casa, para você
poder voltar para a Tae.
— O quê? — Os dedos dele são quentes e fortes, e eu os sinto através das mangas. — O sonho que
eu tive foi com Jen e mamãe. Estou preocupado com elas.
— Tá bom — digo, querendo ser convencida, mas ainda não completamente.
Ele se afasta e anda até o outro lado do corredor, mudo e estoico.
Meus braços sentem frio com a ausência de seu toque. A dor é excruciante, mas fico feliz por ter
dito alguma coisa. Eu ficaria com essa dúvida para sempre, pensando estar roubando beijos que eram
para outra garota. Puxo a caixa de peltre para perto de mim, concentrando-me na inscrição da tampa
para impedir que as lágrimas quentes em meus olhos caiam. Se eu focar e desfocar através do borrão,
as letras se movem, formando um texto legível. Eu o percorro com a ponta do dedo e sussurro as
palavras:
“Eis a caixa linguardarte; a mais bela em seu interior repousa. Para libertar a dama e sua dor
aliviar, há que em seu fluxo penetrar. Um mar vermelho de laços de amor, pinte as rosas da
mesma cor, em finas pinceladas pelas mãos de um artista guiados. Uma troca de almas a porta
fechará, e para todo o sempre o sangue a selará.”
— É a chave para libertar a rainha se não foi você a pessoa que a aprisionou. — A voz em trinado
de Gossamer me tira da minha meditação. — Individualizada para o habitante da caixa. — Ela pousa
em meu ombro, então consigo vê-la de perto: a forma perfeita de uma mulher, de um verde dourado e
nua, exceto pelas escamas cintilantes nas partes estratégicas. Ela apoia as mãos na cintura. — Um
mar vermelho de laços de amor. — Seus olhos de libélula se acendem. — As rosas devem ser
pintadas com o sangue de alguém disposto a trocar de lugar com ela pela mais nobre das razões. O
amor deflagra a transferência.
A famosa cena de Lewis Carroll me passa pela cabeça — os guardas de cartas pintando as rosas
de vermelho no jardim para não serem decapitados. Que ironia! Neste País das Maravilhas, alguém
poderia perder a cabeça para sempre pintando as rosas sobre esta caixa.
— Então Morfeu não foi completamente sincero — digo. — Existe outra maneira de libertá-la e
abrir o portal. Não depende somente da pessoa que a colocou lá. — Jeb está parado atrás do meu
reflexo, com expressão convencida. Quase posso ouvir um “eu disse” emanando de seus olhos.
— Não é uma decisão assim tão fácil — diz Gossamer, ralhando, e depois decola do meu ombro,
as asas zunindo. — Uma vez que a troca seja feita, ninguém jamais poderá libertar a alma substituta.
O sangue produz um selo permanente, eterno. “Uma troca de almas a porta fechará, e para todo o
sempre o sangue a selará.”
— Então, o que você está dizendo — Jeb dá um passo à frente — é que tem que ser um amor
desapegado. O que Morfeu é incapaz de dar. Falta a ele esse tipo de coragem.
Gossamer bate as asas no ar, os braços cruzados sobre o peito. — Meu mestre tem grande
capacidade de coragem. Ele salvou minha vida uma vez. — Ela olha para a entrada do corredor e
para nós novamente. — Ninguém sabe do que é capaz até as coisas chegarem ao limite. É por isso
que a chave para abrir a caixa é a essência do coração. Lá dentro se encontra o poder mais potente
do mundo. — Suas palavras crípticas ficam pairando no ar.
Ela se agacha debaixo da mesa e tira o canivete de papai, deixando-o aos pés de Jeb. Ele coloca a
arma no bolso. Quero perguntar o que a fada quis dizer sobre a essência do coração, sobre o limite.
Quero perguntar como Morfeu e os solitários intraterrenos estão se saindo lá embaixo. Mas minha
língua fica presa no poema da caixa linguardarte e na reação de Jeb às minhas perguntas.
Gossamer faz com que fiquemos de frente para um dos espelhos, e toca o vidro com a ponta do
dedo. Os espíritos de mariposas desaparecem do plano intermediário, voando para outros espelhos
ao longo das paredes.
Com a palma da mão estendida sobre a superfície reflexiva, a fada dá início àquele mesmo efeito
estilhaçado que vi no espelho giratório em meu quarto. Uma longa mesa cheia de doces e xícaras de
chá aparece no espelho, colocada sob uma árvore à frente de um chalé de campo que tem o formato
de uma cabeça de coelho — completo com chaminés como orelhas e teto de pelos. Parece que o sol
sobrepujou a lua desta vez, porque a luz do dia resplandece sobre tudo em volta. Com uma chave
quase do tamanho de seu antebraço, Gossamer abre o portal, alisando o vidro.
O ruído forte de passos ecoa no corredor adjacente. A luta chegou aqui.
— Vão! — Gossamer comanda.
Jeb nem olha para mim e leva a mochila ao ombro, a face quase tão verde quanto a de Gossamer.
Pulo através do espelho, mais desesperada para escapar à minha dor e confusão do que de qualquer
coisa que o Rábido Branco e o exército Vermelho possam causar.
13
Chapelão
Minhas botas acabam pisando em um prato cheio de doces. Quando a tontura passa, levanto o pé e
sacudo um pouco de glacê.
Antes que eu possa explorar a mesa na qual me encontro, alguma coisa cai em cima de mim, vinda
de trás. Tropeço e caio de cara em uma torta recheada de suculentas frutinhas roxas.
— Al... Me desculpe. — Jeb me ergue pelos cotovelos, puxando minhas escápulas na direção de
seu peito. — Você está bem?
Recuso-me a responder pelo simples motivo de ele não ter especificado se era física ou
emocionalmente. Com a ajuda dele, consigo ficar de pé entre uma travessa de pão com manteiga e
uma tigela de violetas cristalizadas. Um pouco do recheio da torta decora minha boca.
Lambo os lábios e depois sacudo os dedos, tentando me livrar daquela coisa pegajosa.
Da ponta da mesa onde estamos, a paisagem que vimos refratada no espelho se descortina por
completo. O chalé em forma de coelho fica em uma colina — um oásis verde e luxuriante em meio a
um deserto. A distância, dunas de areia parecem um tabuleiro de xadrez — quadrados pretos e
brancos como aqueles em que sempre tropeço no meu pesadelo. Queria ter uma tela, pincéis e tinta
para captar essa vista distorcida para sempre.
Uma brisa balança minhas tranças, pássaros gorjeiam em uma amoreira acima de nós, e a luz do
sol me aquece os ombros. Me faz lembrar tanto de Pleasance que uma onda de saudade me invade.
Eu queria poder falar com papai; mais ainda, queria poder abraçá-lo.
É sábado. Pelo menos eu acho que é. Se eu estivesse em casa, papai estaria grelhando bifes. Eu
faria uma salada de frutas, porque estou encarregada de fazer com que ele coma refeições
balanceadas.
E se eu fracassar e não voltar mais para casa? Alison se culparia para sempre e mergulharia nas
profundezas para valer. O tratamento com eletrochoques só vai conseguir piorá-la. E papai ficará só
na cozinha comendo cereais frios, tendo somente sua dor como companhia. E ainda tem a mãe de Jeb
e Jenara. O emprego dele no Submundo ajuda a pagar as contas mensais. Elas dependem dele. O que
fariam sem ele?
Se eu fracassar, arruinarei a vida de todos.
Jeb — ainda atrás de mim — me oferece um guardanapo. Limpo o rosto e resmungo: — Por que
não aterrissou na outra ponta da mesa?
— Estava ocupada. — Jeb me vira.
Eu quase engasgo ao ver os convidados do chá da tarde — Herman Chapelão, a Lebre Careca e o
Camundongo — todos sentados na outra ponta e congelados sob uma camada espessa de gelo
azulado.
— O mariposão tem uma noção deturpada de “dormindo” — lança Jeb.
Morfeu tem uma noção deturpada de tudo. Balançando a cabeça, caminho na direção deles. Ao
passar pelo bule de chá, o vapor me atinge a canela, umedecendo meu legging. Chapelão e sua turma
estão suspensos feito geleiras, mas a comida parece fresca e o chá ainda está quente.
— Cadê aquela pimenta? — Estendo a mão. É esquisito trabalhar em equipe. Minha família está
no modo transtorno desde que eu me conheço por gente, mas pelo menos nos últimos anos eu posso
contar com a amizade de Jeb. Agora ela está por um estranho fio emocional; não sei se acredito nele
ou em Morfeu. Era mais fácil ficar possessa no mundo real, quando eu tinha certeza de que ele havia
escolhido Taelor.
Jeb tira o saco do bolso. Eu desato o laço, respirando pela boca. Não quero arriscar inalar aquilo.
Só o cheiro leve de pimenta no leque e nas luvas já era suficiente para me fazer espirrar.
Espirrar...
Deve ser o que Morfeu pretendia com este saquinho de tempero.
— Você não vai desperdiçá-la tentando fazer o cara do chapéu espirrar, vai? — pergunta Jeb. —
Ele é uma escultura de gelo. Não tem nenhuma abertura onde deveriam estar as narinas. E só temos
pimenta para uma dose. É melhor ter certeza.
É estranho como ele às vezes pode me ler tão bem, embora em outras seja tão distraído.
Fecho o saco e o devolvo. Ele tem razão. Nunca conseguiremos acordar Chapelão com pimenta.
Ele nem tem nariz. Eu me aproximo. Ele está segurando uma xícara de chá fumegante numa posição
em que parecia estar enfatizando uma afirmação.
— Jeb, tem alguma coisa errada com a cara dele. É só um espaço vazio. — O vazio de um cinza
azulado brilhante reflete minha imagem, mais perturbadora do que seria a expressão congelada de um
estranho.
— Talvez o gelo seja tão espesso que cobriu os traços dele — arrisca Jeb.
— Não sei. Mas olhe só o chapéu. — Poderia ser um instrumento medieval de tortura, uma parte
cartola e outra parte gaiola, feito de pinos de metal com uma aba com dobradiças e que se abre feito
uma tampa. Olhando bem, o metal parece crescer da cabeça dele, feito ossos. A gaiola penetra em
buracos na carne, como as peças de xadrez do quarto de Morfeu.
— Um conformador — diz Jeb, com a voz tensa. — Ele tem um conformador brotando da cabeça.
A maioria das pessoas não saberia da existência desse instrumento do século XIX usado para
customizar os chapéus para se moldarem aos vários tipos de cabeças, mas Jenara tem um em seu
quarto. Perséfone o encontrou em um leilão, e, sabendo que Jen adora coisas relacionadas à moda,
deu um lance baixo e acabou arrematando-o, porque ninguém sabia o valor do artefato.
A estrutura de tiras de metal se molda à circunferência da cabeça do cliente onde ficaria a aba do
chapéu, e os pinos adaptam-se à conformação do crânio. Um papelão oval é inserido na tampa de aba
e pressionado no lugar da coroa, fazendo com que os pinos façam buracos na forma da cabeça. Ele
forma um molde que o chapeleiro pode usar para fazer um chapéu customizado para aquele
indivíduo.
Por que este aqui está fisicamente ligado ao crânio de Herman está além de minha compreensão, e
eu nem quero imaginar como ele o usa em seu trabalho.
Concentro minha atenção em seu rosto refletivo e volto-me para a “lebre”, que é demasiado
hedionda. Em boa parte porque parece ter sido virada do avesso — não tem pelo, só carne mortiça.
É como olhar para um coelho esfolado. Mas pelo menos ela tem uma cara. Sua expressão é demente,
com um lampejo selvagem nos olhos brancos. Uma xícara de chá está equilibrada em cima de um
doce em seu prato. Sua pata está enfiada na xícara de chá a partir do pulso, como se estivesse
embebendo algo.
Dos três convidados, o Camundongo é o único que parece normal. Se é que um camundongo
vestindo um casaco de porteiro pode ser considerado normal.
— Não sei como resolver isso — digo. — Eles estão todos congelados, então como vamos fazê-
los espirrar com uma pitada de pimenta?
Jeb balança a cabeça. — Vamos ver o livro. — Ele anda ao redor da mesa se esquivando e passa
para uma cadeira vazia. Empurrando para o lado um vacilante carrinho de chá de três andares, ele
pisa na grama. — Vem cá — diz ele, me chamando para pegar sua mão enquanto ele se senta à mesa
e acomoda a mochila ao seu lado.
Permito que ele me ajude a descer, mas me liberto no instante em que meus pés tocam o chão.
Secando o resto de suco de amora do meu rosto com um guardanapo de tecido, verifico minhas
roupas para ver se estão limpas. — Estou com fome. — Que nada. Estou morrendo de fome. Nem me
lembro da última vez que comi alguma coisa.
— Bem, não devíamos comer essas coisas. — Jeb aponta para a mesa posta. — Quem sabe o que
isso poderia fazer com a gente? — Ele encontra uma barra de cereais na mochila e me dá metade,
indicando uma cadeira vazia ao seu lado. Em vez dela, sento-me em outra dois lugares adiante. Ele
me olha com firmeza enquanto comemos; os únicos sons são o farfalhar da embalagem, os pássaros e
a brisa.
Evitando seu olhar, conto as listras pêssego e cinza do meu legging. Minhas pernas estão
começando a parecer pirulitos. Pirulitos doces e gostosos.
Fico com água na boca.
O que há de errado comigo? Preciso ajudar Jeb a descobrir uma saída, mas só consigo pensar em
comida.
Depois de engolir o último pedacinho da barra, a fome ainda não passou. Me lembro do gosto bom
que aquela coisa roxa tinha e desejo nunca ter caído nela, para começar.
Por outro lado, deve ter sido hilário de assistir. Eu me vejo tropeçando e caindo na torta e dou
uma risada bem alta.
— O que é tão engraçado? — pergunta Jeb. Ele está com o romance País das Maravilhas aberto no
colo e joga o resto da barra dentro da boca.
— Nada. — Outro ataque de riso me toma. Este é tão forte que mordo o interior de minhas
bochechas para não ceder.
Alheio, Jeb vira as páginas. — Aqui diz no capítulo sete que o Rato ficava pegando no sono
durante o chá e o Chapeleiro jogou chá quente no nariz dele para acordá-lo. A passagem está
sublinhada, então talvez seja uma dica. O que acha?
— Acho que o Camundongo deve ter bom faro para chá. — Bato a mão na boca, envergonhada
pelo comentário sem sentido.
— OK. Chega de fingir que está tudo bem. — Jeb coloca o livro dentro da mochila junto com a
embalagem. Ele chega perto de mim e pega meu queixo, levantando-o para que eu o encare. — Você
acha mesmo que eu estava fingindo quando te beijei?
Um estranho desejo de brincar brota dentro de mim, completamente inadequado para a seriedade
da situação. — Há-há-há, cavaleiro élfico. — Afasto o queixo e fico de pé, coquete, frívola, e
totalmente nada a ver comigo. — Você não deve tocar na minha preciosa bundinha, lembra? Afasta-te
de mim, Jebbeth. — E viro as costas para ele.
Ele me pega pelo cotovelo. — Quer olhar para mim, por favor?
Puxo o cotovelo e me liberto, pulando sobre o carrinho de chá para o outro lado da mesa, de modo
que os arranjos da mesa formam uma barricada entre nós. À minha esquerda está o Camundongo. Ele
é do tamanho de um hamster, mas sua cauda fina é peluda como a de um esquilo e coberta de gelo
branco. Há travesseiros empilhados em sua cadeira, para erguê-lo à altura da mesa. Sua cabeça
descansa ao lado de uma xícara de chá quente cheia até a metade. Ele deve ter congelado enquanto
cochilava.
Inclino-me para perto de suas orelhas — prateadas de gelo e alongadas. — Não o culpo por
dormir a vida toda — sussurro para ele. Jeb está boquiaberto, como se eu fosse de Marte. — Queria
ter dormido as últimas horas da minha.
A expressão de Jeb despenca, e sei que o magoei. Não foi minha intenção. Sinto-me tudo menos
rancorosa. Além de estar faminta, estou extravagante, insensata e desinibida. É muito libertador.
— Al, vamos lá. Não quero que as coisas fiquem desse jeito... Não entre a gente. — Jeb começa a
contornar a mesa e eu estou prestes a disparar numa corrida, pensando que um bom pega-pega seria
divertido, quando ouço alguém fungando. É tão suave que a princípio penso que é o rumorejo das
folhas acima de nós. Depois, vejo o nariz do Camundongo se retorcer. É brilhante, úmido e rosa,
como uma bolinha de glacê de morango. Estou quase o arrancando e comendo quando Jeb chega por
trás de mim.
O Camundongo funga novamente.
— O que você acha, Jeb? Uso a pimenta para acordá-lo? Ele pode ser nosso parceiro. Vamos
chamá-lo de Skittles, que nem a bala. — As coisas que saem da minha boca não têm sentido nenhum,
mas não consigo detê-las. Não mais do que consigo deter o ronco colossal de meu estômago que vem
a seguir.
Me olhando com uma careta incomodada, Jeb senta-se ao meu lado e retira o saquinho da mochila.
— O nariz dele deve ter descongelado por causa do chá.
Não consigo me concentrar em nada a não ser meu corpo. Minha pele coça, como se eu precisasse
fazer alguma coisa. Subo na cadeira, dela para a mesa, chutando alguns pratos para o lado.
— Al, que diabos...?
Uma música toca na minha cabeça... E não é o acalanto de Morfeu. Algo com uma batida sensual e
viciante. Sacudo os quadris para a frente e para trás. Os rubis em meu cinto cintilam, e os anéis
balançam — estilo dança do ventre. Eu nem sabia que podia me mexer assim. Deve ser por causa de
todos aqueles anos que brinquei de bambolê com a Jen.
Os olhos de Jeb parecem que vão saltar das órbitas... E também as veias em seu pescoço. Ele faz
um som — algo entre um pigarro e um gemido —, magnetizado pela ginga em meus quadris. Depois
se levanta. — Quer descer daí? Você ainda vai se machucar.
— Não. Sobe aqui comigo. — Levanto os braços sobre a cabeça e jogo a pelve de modo sedutor.
— É uma dança para acordar o Skittles. Sabe, que nem os índios americanos faziam para chamar
chuva.
Jeb está boquiaberto. — Duvido que os índios se mexessem desse jeito.
Sentindo o ritmo pulsar em cada pedacinho de meu corpo, visualizo as correntes do cinto de Jeb
dançando com a música, imagino espirais de energia correndo pelas argolas, induzindo movimento.
Com a ponta de um dedo, faço um sinal, chamando-as.
— Ei... Ei, espere! — A corrente de Jeb dá uma guinada, forçando-o a subir na cadeira. Ele tenta
agarrar as argolas com as mãos, mas elas se libertam, puxando-o até ele subir na mesa e ficar na
minha frente.
Agarro seus quadris, convidando seu corpo a gingar junto do meu. Agarrada a ele, fungo em seu
pescoço, distribuindo beijos sobre sua pele macia enquanto penteio seu cabelo com meus dedos. Seu
rabo de cavalo se solta. — Você tem um gosto tão bom que dá vontade de comer — eu sussurro.
As correntes se enrolam na perna dele, apertando. Retesando-se todo, ele as agarra. — Co... Como
você está fazendo isso?
Eu rio, correndo minhas mãos sobre seus bíceps e peito. — Morfeu me mostrou como eu poderia
animar objetos. Não é espetacular?
Estou me concentrando tanto em apreciar os músculos dele que isso quebra minha conexão com as
argolas de metal. Assim que Jeb se liberta, pula para o chão e me desce também. Me jogo na cadeira,
dando risada, enquanto ele segura minhas duas mãos cruzadas sobre o meu peito.
— Você está me assustando, Al. Pare com isso.
— Parar com o quê? — Liberto uma mão e, com um dedo, percorro sua camisa até embaixo,
seguindo o limite do tecido preto sobre seu umbigo gostoso e parando para agarrar sua cintura.
Um músculo no queixo dele salta.
Eu ronrono. — Você é viciado em controle, Jeb. Seu mundo vira de cabeça para baixo quando a
pequenina Alyssa não está tropeçando em seu cinto de castidade. Não é isso, garotão? — Dou um
tapinha no botão que fica no alto de sua barguilha.
— Uhhh...
— Por que você não acorda o Skittles e depois nós vamos para casa e fazemos uma festinha de
verdade? — Estou sorrindo tanto que meu rosto dói — um sorriso provocativo, gozador. Por alguma
razão, não consigo parar.
— Você precisa parar de me olhar desse jeito — diz Jeb com a voz áspera.
— E se eu não parar? — Sinto uma comichão tão forte nas entranhas por saber que ele está
confuso. Por saber que eu provoquei isso.
Engolindo em seco, ele tira novamente o saquinho de pimenta. — Casa. Muito bem. Pode ser que,
se a gente acordar o Camundongo, os outros também acordem.
— É! Que comece o chá! — Aí, finalmente, vou poder comer alguma coisa. Rufo um tambor na
borda da mesa usando meus indicadores.
Jeb lança mais um olhar perplexo na minha direção. Me delicio ao ver que sou capaz de tirá-lo do
sério. Como quando seu sangue ficou verde por causa de Morfeu antes. Nunca conheci nenhuma
garota que controlasse Jebediah Holt. Seria o máximo ser a primeira.
Uma vozinha dentro de mim tenta sair, tenta me lembrar de que aquela não sou eu... Que eu não
diria essas coisas, não para Jeb — a quem eu não gostaria de ver sofrer. Algo está errado, e eu
deveria contar para ele poder ajudar ou pelo menos se defender. Mas a fome dentro de mim esmaga
minha consciência. É mais do que o desejo por comida. Estou faminta de poder também. Poder para
fazer o cara que eu quero se ajoelhar. Fazê-lo pagar por não me querer de volta.
Com um olho em mim e outro no saco de pimenta, Jeb o coloca no nariz do Camundongo. A
pequenina criatura inala com força. Um espirro se forma, e irrompe como um soluço. Sua cobertura
gelada se espatifa. Nacos de gelo deslizam de sua pele marrom e casaco vermelho enquanto ele se
ergue para coçar o nariz.
No momento em que nos vê, ele se esconde atrás de sua xícara de chá. Arriscando uma olhadela,
ele pisca os olhinhos em nossa direção. Parecem gotas de chocolate. Aquela fome selvagem me
revolve novamente.
Babando, jogo-me em cima da mesa.
— Epa! — O Camundongo solta um guincho estridente ao escapulir de seu esconderijo.
— Al, pare. Precisamos da ajuda dele. — Jeb tenta me agarrar pelos tornozelos, mas eu sou mais
rápida.
Empurrando travessas e pratos para os lados, arrasto-me atrás do Camundongo enquanto ele foge
aos pulinhos para perto de seus amigos, com a cauda sacudindo. Ele derrapa e para quando percebe a
condição deles. Com os bigodes murchos, ele se vira para olhar para mim.
— Senhorita Alice, tem que acordá-los! — guincha ele. Hesitante, seus pezinhos andam para trás.
— Você não é a Senhorita Alice. — Ele leva as patinhas à cara e me encara. — Você é muito mais...
— Faminta. — Agora entendo a preocupação do octobenus com seu estômago; intimamente. Estalo
os lábios e dou uma guinada para a esquerda a fim de escapar da tentativa de Jeb de me pegar pela
cintura. Minha mão vai parar em uma torta, e sacudo o glacê grudado nela. Tenho os olhos cravados
na isca viva.
O Camundongo recua, guinchando nervosamente. Pequeninas mãos com garras procuram os
bigodes, colando-os debaixo do queixo. Ele está quase caindo dentro da torta na qual eu aterrissei, e
estou torcendo para que isso aconteça. Eu adoraria uma fatia de torta de rato neste momento.
Jeb pisa em uma cadeira e pula para a próxima, no meu encalço. — Escute, pequenino. — Ele fala
suavemente com o Camundongo. — Eu a impeço de comer você se você nos ajudar a acordar os
outros. Você se lembra como Alice fez com que adormecessem?
O Camundongo enrola a cauda em si mesmo, abraçando-a. — Ela deixou o relógio cair na xícara
de chá. — Ele me analisa com cautela do meio da mesa, dando um passo na direção da torta roxa.
Sento com os joelhos dobrados e cravo as unhas nas rótulas para me distrair do estômago. De
olhos fechados, concentro-me no livro. Os detalhes da história são obscuros, mas lembro-me de uma
discussão sobre o funcionamento interno do relógio de bolso do chapeleiro. Alguma coisa a ver com
a lebre passar manteiga... manteiga. Balas amanteigadas, creme de manteiga, biscoitos amanteigados.
Solto um grunhido e bato o punho na mesa, fazendo tremer a prataria e os pratos e provocando
grande dor no meu braço, que faz minha mente voltar a engrenar. Engrenar! É isso — a lebre
colocou manteiga no mecanismo com uma faca de pão e emporcalhou o seu interior com migalhas de
pão. Na versão que consta no livro País das Maravilhas, foi por isso que a Lebre de Março largou o
relógio dentro do chá — para lavá-lo. Mas talvez não tenha sido ela quem mergulhou o relógio. Ela
poderia estar tentando tirá-lo de lá. Ao submergi-lo, Alice suspendeu o mecanismo e congelou os
convidados no tempo. É isso que eu preciso consertar. O mecanismo. Eu só preciso secá-lo e colocá-
lo em movimento.
Abro os olhos e Jeb está bem distante de mim, com o livro nas mãos. Ele já está ao lado do lugar
da Lebre Careca. Jeb entorna a xícara de chá com cuidado para não quebrar a pata congelada do
coelho. Eu me arrasto até lá enquanto o chá respinga sobre os doces no prato. O relógio de bolso
emerge, arrastando sua corrente. Jeb abre a tampa. — Parou às seis horas.
— Hora do chá! — O Camundongo chilreia com excitação, batendo palmas. Seu entusiasmo o faz
cair para trás, dentro da torta amassada.
Meu foco dura somente o tempo suficiente para que eu pegue o relógio de Jeb, seque seu
mecanismo, mova os ponteiros para um minuto depois das seis e o rebobine. Me perco de todos os
pensamentos racionais depois disso, porque o rato trepa na borda da torta, comendo as frutinhas e
pingando calda roxa.
Uma deliciosa calda roxa.
A saliva goteja do canto da minha boca. A fome insaciável que eu vinha reprimindo explode. Não
sei mais onde estou. Na minha cabeça, o Camundongo é aquele pato assado do banquete e ele está no
papo.
Jogo o relógio, quase nem ouvindo o ruído do metal. Num pulo, fico de pé e começo a caçada.
Minha presa mergulha atrás dos doces e abre túneis através dos pães, conseguindo me despistar toda
vez que estou perto dela. Patino em pratos, escorrego em travessas e derrapo em bolos. Nem mesmo
percebo que Jeb está no meio da mesa até ele me pegar e me derrubar, seu peso sólido nas minhas
costas. — Al, pare! Você ficou louca?
Como um animal, rosno e arranho a toalha de mesa até ela rasgar com as minhas unhas.
— Al. — A respiração de Jeb no meu pescoço é quente. — Volte para mim. Seja minha menina do
skate de novo.
Minha menina do skate. A súplica carinhosa quase me traz de volta.
Quase.
Talvez seja a adrenalina, ou talvez seja um demônio que me possuiu quando eu caí naquela torta e
provei daquele troço roxo... Mas alguma coisa me dá força suficiente para empurrar Jeb de lado
como se ele fosse um graveto. Ele rola para fora da mesa com um grunhido e eu agarro aquela delícia
pegajosa de rato que se debate sem parar. Uma calda roxa me escorre dos dedos para minhas luvas.
Estou prestes a dar uma mordida em sua cabeça quando sou guinchada por trás, e ele escapa.
— Me coloque de pé! — rosno, com uma explosão momentânea de força sobre-humana
praticamente terminada.
Alguém me deita de costas e me gruda no lugar. Minha visão fica turva e quase não consigo
distinguir as duas formas que se inclinam sobre mim.
— Ela provou o suco do fruto da Árvore Tumtum — diz a silhueta usando o chapéu de gaiola numa
voz que varia entre o tenor e o alto. — Ela tem que comer as frutas inteiras, senão vai ficar maluca.
— A pessoa então explode em gargalhadas tão altas e absurdas que parece uma hiena num pula-pula.
— Ah, mas... Ser maluco não é tão ruim — entoa a sombra com longas orelhas, acrescentando sua
gargalhada à mistura. — Podemos deixar que ela coma a gente. Abra a boca dela que eu entro.
Sempre quis ver um estômago por dentro.
Uma pata entra na minha boca e a segura, quase me sufocando. Eu lhe dou uma mordida. O intruso
a puxa e eu cuspo o gosto de carne chamuscada.
— Ela morde!
Risos e uivos explodem em todo canto.
— Afastem-se dela! — A explosão de Jeb os deixa mudos. Ele afaga meu cabelo para me acalmar,
o que tem o efeito oposto. Estar perto dele faz com que a fome perfure meu estômago — como um
espinheiro plantado bem fundo.
Não há nada engraçado sobre a maneira como me sinto agora. — Jeb, por favor! Estou com muita
fome! Me alimente ou vou morrer!
— Está bem, está bem... — A voz dele titubeia e percebo que eu o coloquei de joelhos.
Meus intestinos queimam como se formigas de fogo o consumissem. Fecho os olhos, mas ainda
consigo sentir cheiro de comida — em todo lugar.
Depois de um intervalo que pareceu uma eternidade, algo acolchoado e frio roça meus lábios.
Abro a boca, gulosa, e engulo todas as frutinhas que cabem lá dentro. Elas explodem em minha
língua, suculentas e deliciosas. Engolindo, imploro por mais.
Cinco bocadas depois, consigo me concentrar e não tenho mais dor.
Sento-me, piscando para os convidados do chá que se acomodaram no outro canto da mesa. O
coelho está preocupado com o relógio de bolso, secando-o com um guardanapo e distribuindo
desculpas para o Pai Tempo. Seus olhos brancos cintilam como bolas de gude quando ele sorri, sua
boca sem lábios revelando três dentes amarelos e tortos. O Camundongo está tomando banho em uma
xícara de chá, seu uniforme manchado esparramado sobre o pires. E Chapelão — ele realmente não
tem rosto. Ora é parecido com o rato, ora com o coelho, como se alguém estivesse mudando de canal
entre eles.
Jeb se inclina sobre a mesa. — Você está bem? — Ele parece preocupado.
Sinto-me mortalmente culpada pela maneira como quis puni-lo. — Eu estava...
— Desinibida e impulsiva. E como!
Olho para os pratos quebrados e a comida esmagada à minha volta. — Eu tenho um outro lado,
Jeb. E não tenho certeza se ele tem a ver com a maldição. Acho que esse lado pode ter estado sempre
comigo.
Ele junta nossas mãos. — Tudo bem que você tenha um lado meio ruim. Eu também tenho. Assim,
nós formamos um grande par. — Ele me ajuda a sair da mesa, envolvendo os braços na minha
cintura. Quando ele beija a minha testa, seu piercing aperta o ponto entre minhas sobrancelhas, frio e
reconfortante.
Eu me afasto. — Então, você não estava fingindo quando disse que queria ficar comigo e não com
a Taelor. Isso... Nós... É real?
O polegar e o indicador dele me beliscam o lóbulo da orelha carinhosamente. Ele está tão quieto e
pensativo. Temo que ele não responda.
Respirando fundo, ele olha para baixo. — Eu namorei a Tae... Para tentar não pensar em você.
Esperando que ela tirasse você de dentro de mim. O mesmo aconteceu com o lápis e o caderno de
desenho: não funcionou. E depois eu não tinha certeza de que você sentia o mesmo. E, se você sentia,
eu tinha medo de... — Jeb estuda as queimaduras de cigarro nos braços através das listras
transparentes de suas mangas.
— Continue ... — pressiono.
— De despejar minha carga em alguém tão doce quanto você.
Não consigo controlar um sorriso. — Uau, nossa.
— O quê?
— Acho que nós dois não tínhamos consciência. Foi por essa razão que escondi meus sentimentos
de você.
— Porque eu sou doce? — Aquele sorriso de garoto, com a covinha, se abre para mim.
Correndo os dedos pelo seu cabelo desgrenhado, dou risada. — Eu não queria arrastar você para a
loucura da minha família.
Um chocalhar de pratos faz tremer o outro lado da mesa, onde o Camundongo e a lebre brigam por
uma colher, ambos tentando ver seu reflexo na prata.
Jeb pega no meu queixo, recobrando minha atenção. — Escute, eu nunca quis magoar a Tae. Ela já
passa o diabo com o pai. Mas, quando ela veio me buscar para o baile de formatura, nós terminamos.
Eu disse para ela que tinha acabado... Que nós devíamos terminar. Eu não ia dizer nada antes do
baile porque ela me pediu. Ela já tinha comprado o vestido e eu tinha alugado o smoking, entende?
Mas ela sabe da verdade. Que, para mim, só existe você, Al. Só você.
São as palavras mais lindas que já ouvi em toda a minha vida. Meu estômago está esquisito, como
quando eu era criança e o carrossel do playground parava de girar e eu ficava lá olhando o céu que
rodava — tonta, feliz e extasiada — até que o mundo voltasse a ficar perfeitamente claro. — Ah, Jeb.
Ele levanta a minha mão e beija meus dedos. O piercing em seu lábio brilha na luz, me lembrando
dos olhos com joias de Morfeu. Odeio ter permitido que ele metesse dúvidas na minha cabeça sobre
o cara mais leal que já conheci. Não posso deixar Morfeu me influenciar novamente — nunca mais.
— Para mim também só existe você. — Entrelaço meus dedos nos de Jeb. — Me desculpe pelas
coisas que eu disse no Corredor dos Espelhos. E por ter mentido para você sobre a bolsa da Taelor...
E ter roubado....
— Shhh. — Ele se inclina para me beijar, tão terno e doce que tudo mais desaparece ao seu toque.
— Vamos esquecer tudo isso. Exceto uma coisa — sussurra ele em meus lábios. — Quando
voltarmos para casa, você faz o truque da corrente? Aquela dança na mesa foi muito sexy. — Ele
grunhe.
Eu rio, estremecendo com a vibração ardente em seu peito. Ele também ri, e depois puxa meus
quadris para si e beija minhas orelhas, minhas têmporas, meus lábios — me mergulhando em mil
sensações diferentes, todas tão deliciosas que quase esqueço o que ainda tenho que fazer.
Desfaço nosso abraço. Os olhos semicerrados e questionadores de Jeb me olham. — Já volto —
digo. Tiro minhas luvas emporcalhadas, jogo-as de lado e pulo na mesa, parando ao lado de
Chapelão. — A espada vorpal. Alice a trouxe para você antes de ser congelado. Precisamos dela.
A tela plana do rosto dele pisca, mostrando o meu reflexo e em seguida o de Alice. O efeito é
horripilante, como uma tela de cinema alternando entre duas eras diferentes. Jeb aproxima-se, e
espera.
— Espada? — Chapelão olha para seus dois companheiros. — Algum de vocês lembra de algo
sobre uma espada? — Todos eles caem na gargalhada, um som que me deixa atordoada.
— Talvez você a tenha engolido, Herman — diz a lebre, resfolegando. — Abra a boca e vamos
olhar.
— É melhor acender uma tocha — o Camundongo guincha. — Lá dentro é escuro e vasto como um
desfiladeiro.
Mais risadas e gritos.
Jeb pega a lebre pelas orelhas e a segura acima da mesa, pondo um fim ao festival de risos. Ele
aponta para Herman e o Camundongo. — Um pouco de cooperação os ajudaria muito a ficarem com
suas peles.
O rosto de Chapelão lampeja à imagem de Jeb. — Está falando com a pessoa errada, sua marmota.
— Ele olha para a amoreira acima de nós. — Alguém mandou vocês para uma caçada ao pato
selvagem. Quer saber quem?
Um farfalhar de folhas e Morfeu aparece no alto da copa. — Seria eu? — intervém ele com um
riso forçado.
14
Gaiolas
Faço sombra nos olhos para olhar para Morfeu, com um nó de raiva se formando no peito. Jeb tinha
razão. Ele só faz nos enganar. — Você mentiu.
Seu sorriso se desfaz e Gossamer, debaixo do cabelo dele, estica a cabeça para olhar. — Eu
estava mal-informado — diz ele.
O corpo inteiro de Jeb fica visivelmente tenso. — Mal-informado? Você mandou a Al para cá, a
colocou em perigo porque estava mal-informado?
Desço da mesa, passando os dedos nos músculos trabalhados de suas costas para acalmá-lo.
Morfeu abre mais um sorriso forçado de seu poleiro no alto da árvore — régio e pomposo com as
asas abertas bem alto, um fundo de cetim macio protegendo seu rosto pálido do sol. — Foi besteira,
eu sei. Tomei boatos como verdade. Eu estava no meu casulo quando a pequena Alice escapou com a
espada. Eu mesmo não vi o que aconteceu. Eu ouvi por aí que ela chegou aqui com a espada. Mas
agora eu soube da verdade. A espada ficou escondida este tempo todo no próprio castelo Vermelho...
Guardada pelo bandersnatch.
— Certo. — A voz de Jeb sai sufocada pelo autocontrole forçado. — E nós temos que aceitar sua
palavra.
— Meu espião só soube disso hoje. Alyssa acredita em mim, não é? — Morfeu desvia seu olhar
de mim.
Eu não respondo. A verdade é que não confio nele.
— Tome o silêncio dela como um não, insetão. — Jeb está concentrado na copa.
— Nenhum de vocês está ao menos curioso sobre a batalha que travei para mantê-los a salvo?
Lamento a ingratidão. — Morfeu estica as luvas enquanto Gossamer voa em torno de seu casaco,
verificando os rasgos. As roupas dele estão amassadas e danificadas, até mesmo com fuligem em
alguns pontos. Ele perdeu seu chapéu, e seu cabelo está completamente emaranhado. — Tive que
incendiar a sala de jantar para colocá-los para fora. Mas eles logo se espalharão por todo o País das
Maravilhas atrás de você. A Rainha Grenadine planeja dar um jantar e está determinada a revelar um
novo animal de estimação que divertirá seus convidados.
Os ombros de Jeb se impacientam debaixo de minha mão. — Animal de estimação?
— Grenadine deseja um substituto para Alice há décadas. Um pássaro engaiolado, por assim
dizer. — Tendo jogado essa bomba, Morfeu dá um gracioso salto e pousa na mesa, perto de
Chapelão e companhia. — Que bom ver vocês novamente. Como foi a soneca?
Os três intraterrenos saúdam Morfeu com abraços e apertos de mão.
Tomo a mão de Jeb, com o pulso acelerado. — Você se lembra do relatório psiquiátrico? Alice
disse ao terapeuta que passou 75 anos em uma gaiola no País das Maravilhas. Mas ela deve ter
voltado. Ela se casou e teve uma família. Caso contrário, eu não existiria. Certo?
Ele me puxa para perto. — Não sei o que está acontecendo. Mas precisamos tirar você daqui
depressa.
— Agora a maldição já está quebrada — digo, embora não me sinta nem um pouco diferente.
Morfeu parece alheio à nossa urgência. Ele dá tapinhas no conformador do Chapelão. O
homenzinho de cara insossa chega somente à altura de sua coxa. — É ótimo tê-lo de volta entre os
vivos, Herman. Necessito desesperadamente um novo Chapéu da Lisonja.
— Posso fazer! — A tampa da engenhoca do chapeleiro se fecha. Sua estrutura óssea e crânio se
contorcem e entram no lugar enquanto os pinos de metal rangem e se moldam em volta de sua cabeça
até que ele e Morfeu pareçam um par de bonecas Matrioshka.
É por isso que ele é o melhor chapeleiro do reino. Ele se torna a cabeça e o rosto de seu cliente
até terminar um projeto, produzindo o ajuste perfeito. Como deve ser isso? Nunca ter uma identidade
própria. Não é de estranhar que eles o chamem de maluco.
— Quiçá goste de um chapéu coco? — arrisca Chapelão, tateando suas maçãs do rosto
temporárias. — Tenho um ótimo feltro vermelho em casa.
— Hum... — Morfeu limpa a fuligem de sua lapela. — Eu estava pensando em fazer de entretela.
— Ei! — Jeb bate o punho no nosso lado da mesa. O grupo se volta para nós. — A Al está
correndo o risco de se tornar o periquito humano de alguém. Ela já terminou o que veio fazer aqui.
Cumpriu as exigências para quebrar a maldição. Agora precisamos voltar para o nosso mundo. E isso
é para ontem.
— Ontem, você disse? — gorjeia o chapeleiro, em seu timbre vacilante. — Ontem é exequível.
Gargalhando, a lebre bate no joelho e acrescenta: — Mas dois ontens seria impossível.
O Camundongo dá um risinho maroto e veste seu uniforme. — Não, não! Você pode retroceder
quantos ontens quiser. Pode andar de volta até o começo da sua vida.
Todos eles se curvam, com as mãos nas costelas de tanto rir histericamente. A falta de sobriedade
deles me espanta, e Jeb parece que vai surtar a qualquer instante.
Com um bater de asas, Morfeu pousa na grama ao nosso lado. Gossamer está aninhada em seu
cabelo. — Tenho mais notícias ruins quanto a sua partida.
Jeb fecha a cara. — Como pode ficar pior?
— Quando o exército Vermelho atacou a minha casa, eles encontraram a caixa linguardarte e a
levaram. Ela já não está mais sob minha proteção, e, sem a Rainha de Marfim, seu portal
permanecerá fechado. Isso torna ainda mais imperativo que peguemos a espada e derrotemos
Grenadine e seu rei.
Jeb avança para perto de Morfeu. — E como você propõe que nós os derrotemos se a espada está
no castelo deles sob a guarda de algum cachorro mutante?
Agarro o ombro dele por trás, lembrando-o de se controlar. Morfeu é nosso único aliado, não
importa as táticas detestáveis que ele use.
— Nem tudo está perdido — diz Morfeu. — Chessie pode dominar o bandersnatch, posto que sua
outra metade habita dentro da fera. — Ele coça os pezinhos balouçantes da fada. — Vocês vão pegar
a cabeça de Chessie para mim. Ele terá controle total, e eu poderei roubar a espada, derrotar
Grenadine e depois mandar vocês dois para casa pelo portal que quiserem, Vermelho ou Branco.
— Não! — dispara Jeb, num movimento tão rápido que quase desloca meu braço. Ele pega Morfeu
pela camisa rendada e o ergue até ele ficar na ponta dos pés e as asas arrastarem no chão. Gossamer
se pendura em um cacho do cabelo azul. — Isso é uma manobra para dar mais uma “tarefa” para a
Al, não é? Mais um teste. O que eu quero saber é para que ela está sendo testada? O que acontece
quando ela passar em todos?
Arrogante, Morfeu bate de leve em cada um dos dedos de Jeb, como se tocasse uma flauta. — Ah,
Gossamer tem falado demais, não? Ninfa ciumenta. — A fada foge do ombro dele e chispa para a
árvore acima de nós. — Sabe, nunca se pode confiar em uma mulher com pele verde. Pergunte a
qualquer homem que teve uma ressaca de absinto. — Morfeu olha para mim. — Tudo o que eu
sempre quis foi libertar Alyssa e mandá-la de volta para o lugar dela.
— E onde seria isso? — Jeb coloca a cabeça na minha frente, de modo que Morfeu tem que olhar
para ele.
— A casa dela, é claro. — As joias nas bordas das tatuagens de Morfeu ficam claras e cintilam
feito líquido, traduzindo a sinceridade de lágrimas reais. — Nada me agradaria mais do que pegar a
cabeça de Chessie eu mesmo. Mas, em razão de nosso mal-entendido com relação aos espíritos de
mariposa que abrigo, as Irmãs Twid e eu não estamos nos dando muito bem. Elas não me deixam
pisar e nem voar perto do portão delas.
— Espere. — Dou um passo à frente. — O que isso tem a ver com o cemitério?
— É lá que reside a cabeça de Chessie — responde Morfeu. — Por estar tecnicamente
“parcialmente” morto, lhe foi possível buscar conforto lá. Então a solução é simples: salvar o gato
para dominar o bandersnatch, libertar a Rainha de Marfim com a espada e depois vocês vão para
casa.
— Que bobagem. — Jeb dá um empurrão em Morfeu. Suas asas intraterrenas se abrem por
completo, mantendo seu equilíbrio antes que ele caia sobre uma cadeira. Gossamer mergulha das
folhas, pairando sobre ele.
Jeb pega minha mão. — Deixe que outra pessoa vá atrás do gato. A Al corre perigo aqui.
Precisamos nos esconder até podermos chegar em casa. Ela fez tudo que você pediu. A maldição está
quebrada, certo?
Morfeu olha para mim, não para Jeb. — De que vale a maldição quebrada se não puderem voltar
para casa? Se Alison nunca mais puder ver sua filha, ficará pior do que está agora. A insanidade dela
não será mais uma encenação.
Estremeço. Morfeu está certo. Alison nunca se perdoaria se eu me perdesse por sua causa.
Morfeu olha para trás, onde a turma do chá discute para ver quem vai beber a água em que o rato
se banhou na bota da lebre. O canto de sua boca franze. — O jardim interno é sagrado para a nossa
espécie. Somos proibidos de andar sobre aquele chão. Só posso enviar vocês.
Aperto a mão de Jeb, odiando o que vou dizer em seguida. — Então não temos escolha. Nós
vamos.
Jeb aperta meus dedos contra seu peito. — Não. Eu vou. Você volta voando com o meleca de
inseto.
— Naturalmente — interrompe Morfeu, a voz variando entre o sarcasmo e a insinuação. — Terei
prazer em levar Alyssa de volta comigo. Podemos retomar de onde paramos em meu quarto, certo,
querida?
Faço cara feia.
Jeb me empurra para o lado, saca o canivete suíço e pressiona a lâmina contra o esterno de
Morfeu. — Uma ideia melhor. Devolva o desejo para a Al... Agora.
Meu estômago dá um nó. — Jeb, eu não vou embora sem você.
— Não se trata disso. — Ele leva a lâmina até a garganta de Morfeu. — Você pode desejar nunca
ter vindo. Você ainda seria o sujeito do desejo, e isso tirará nós dois daqui. Eu nunca teria vindo se
não tivesse visto você pular para dentro daquele espelho.
Ele tem razão. Funcionaria. O único problema é que eu terei feito isso por nada. Alison ainda faria
o tratamento com eletrochoques e minha família seria amaldiçoada novamente porque eu nunca terei
vindo aqui para consertar as coisas.
— Dê a ela — diz Jeb —, ou ela vai ter uma mariposa tamanho família para usar na próxima obra
de arte. Entendeu?
Gossamer voa sobre o rosto de Jeb, num frenesi de asas. Sua distração dá a Morfeu a chance de
pegar o pulso de Jeb e dominá-lo. — Eu não estou com o desejo — diz ele, fervendo de raiva. — O
desejo se esvaiu quando eu tentava salvar suas miseráveis vidinhas e agora está nas mãos do Rábido
Branco.
Jeb torce o braço e se liberta. — Mentiras.
— Não importa — responde Morfeu, observando Jeb com cautela. — Alyssa não o usaria de
modo tão prosaico. Do contrário, sua família sofrerá para sempre a maldição que ela arriscou a pele
para quebrar.
O calor do olhar cúmplice de Morfeu é mil vezes pior do que os holofotes dos mineiros de
Submundo, e não há como esconder minha alma desnuda. — Ele tem razão.
Jeb olhar para mim. — Você deve estar brincando. Sua mãe não iria querer que você corresse
perigo!
Olho para minhas botas. — Por que estamos falando nisso? Ele disse que não está com o desejo
mesmo.
O riso de Jeb tem uma pitada de veneno por trás. — É incrível. Você continua um joguete nas
mãos dele. — A expressão dele endurece. — Você sabe o que eu faria se tivesse um desejo? Eu
desejaria que você confiasse em mim como costumava confiar. Como você confia nele agora.
A insinuação me atinge lá no fundo. Ele não pode estar falando a verdade. Pode?
Jeb se vira para Morfeu, brandindo novamente a lâmina do canivete. — Se alguma coisa der
errado, se ela sofrer um arranhão, eu corto você dos pés à cabeça. — Fazendo um esforço enorme
para se afastar, ele dá meia-volta e pega nossa mochila.
— Pegue as indicações para chegar ao cemitério — explica ele, dirigindo-se a mim, e depois
segue para a colina, parando no limite do deserto de tabuleiro de xadrez. Ele fecha o canivete e olha
para a distância com toda a paciência e compostura de um animal selvagem engaiolado, enquanto
Gossamer flutua em torno dele.
— Seu namorado tem sérios problemas com confiança — provoca Morfeu.
— Cale a boca. Ele teve uma infância difícil.
— Ele devia ser grato por ter tido uma infância, afinal.
— Pare de se fazer se vítima. Você teve uma infância. Eu estava lá, lembra?
As marcas pretas em torno dos olhos de Morfeu enrugam-se num sorriso sarcástico. — Não,
Alyssa. Eu estava me referindo à pobre e pequena Alice.
— O que quer dizer com isso?
— Você vai precisar de uma arma. — Morfeu se esquiva da pergunta. Enfiando a mão enluvada no
casaco, ele vasculha um bolso interno e tira um pequeno e delgado cilindro de madeira. Ele o vira,
revelando buracos ao longo do objeto e um bocal em uma ponta.
— Uma flauta? Como isso vai nos proteger? — pergunto.
Morfeu aproxima-se e enfia o cilindro na minha blusa. Ele o desliza por minha pele nua até
encaixá-lo no meu decote. Gossamer deve estar distraindo Jeb, ou ele já teria jogado esse idiota do
alto da colina. Pessoalmente, estou pensando em esfregar o instrumento no nariz dele.
O olhar dele me coloca em cheque. Em algum lugar, por trás dessa imagem fantasmagórica, está a
sinceridade, talvez até preocupação. Meu coração bate junto à madeira fria e lisa da flauta.
— Esperemos que você se lembre daquelas aulas de música que foi obrigada a frequentar. —
Morfeu apoia o quadril na mesa. Suas asas relaxam. — Um violoncelo deve bastar para saber a
escala musical. Se você tocou um instrumento, tocou todos, certo?
Pela primeira vez, sou atingida à queima-roupa. — Você é a razão pela qual ela queria que eu
tocasse?
— Embora ela esperasse, de todo o coração, que você nunca viesse parar aqui, mesmo assim ela a
preparou. E, até agora, você se mostrou gloriosamente capaz. Como ela ficaria orgulhosa de seu
comportamento grotesco na mesa há pouco.
Um rubor sobe, quente, para minhas bochechas. Ele me viu dançar? Ou talvez esteja se referindo à
minha luta bárbara para comer o Camundongo. As possibilidades são igualmente perturbadoras. —
Você estava vendo?
— A propósito... — Ele olha para as costas de Jeb e aproxima-se, murmurando baixinho. — O
suco de Tuntum altera as inibições de uma pessoa, aumenta sua fome. Mas não é a fome de comida. É
das experiências que elas desejam. Se tivesse sido comigo e não com o seu soldadinho de brinquedo,
eu teria encontrado um meio de saciar tanta fome sem recorrer a frutinhas.
A arrogância dele me ferve o sangue. — Você não tem equipamento para satisfazer nada.
Mariposa. Lembra?
Ele ri silenciosamente, num gesto sombrio e suave. — Sou um homem em todos os sentidos. Assim
como você é uma mulher, mesmo que alguns acreditem que você não passa de uma menininha
assustada que está sempre necessitando de ajuda.
Ignoro a farpa. — Naturalmente. Você é um especialista em mulheres. — O olhar de cobiça na
expressão apaixonada da Rainha de Marfim por trás do vidro emerge em meu pensamento. Aquela
pontada estranha e possessiva vem em seguida, mas eu a refreio.
— Sinto um certo ciúme?
— Até parece.
Ele sorri, arrastando uma asa sobre o ombro para alisá-la. — Estou nesta forma há algum tempo.
Tive que praticar um pouco. Mas somente uma mulher é igual a mim em todos os aspectos.
Intelectual, física e magicamente.
— É ela, não é? — Minha inveja é quase palpável. — Você colocaria qualquer um em perigo para
tê-la em seus braços.
— Sem dúvida.
— Odeio você.
— Só por causa do que eu provoco em você.
Minhas unhas se cravam nas palmas das mãos. — Só porque você traz à tona o que há de pior em
mim.
— Ah, não, querida. Eu trago à tona a vida que há em você. — Seu olhar intenso me atrai. O
acalanto excita meu sangue, levando minha pulsação a seguir seu ritmo. “Pêssego e cinza, cresceu a
florzinha, forte ficou e seu caminho encontrou; duas coisas ainda há que fazer, até finalmente...”
O fim do verso — a última peça do quebra-cabeças — ainda me escapa. Aperto as têmporas para
tirá-lo de minha cabeça. A ponta de meu dedo roça meu grampo de cabelo, e ele me aperta. — Pare
com isso! — retruco. — Onde é o cemitério?
Gossamer aparece no ombro de Morfeu quando ele aponta. — Depois do abismo... Logo ali.
Ele indica uma gota entre as areias do tabuleiro de xadrez à beira da duna, não muito distante de
onde Jeb está. É difícil distinguir daqui, mas parece ser uma fissura na terra.
— Há um abismo? — pergunto, mais desconfiada a cada segundo.
— Ele separa o deserto do vale — um pouco largo para um mortal saltar. O cemitério é do outro
lado. Está encoberto por uma touceira de vinhas e hera que protege os espíritos da luz do sol.
Minha coragem dá meia-volta frente à ideia de arrastar-me através de um matagal escuro cheio de
fantasmas — intraterrenos ou não —, mas controlo meu medo. Jeb estará lá; não estarei sozinha.
— A menos que ache um modo de atravessar o abismo — acrescenta Morfeu —, terá que subir a
pé. Pegue a crista mais alta que o circunda.
As areias da crista parecem se estender ao infinito. Se a contornarmos, pode levar um dia. Não
temos esse tempo todo se quisermos impedir o tratamento de Alison. Estou quase me opondo quando
o Camundongo grita: — Pássaros Jubjub!
Gossamer faz um túnel no cabelo de Morfeu quando ele bate as asas e ganha o céu. O
deslocamento de ar passa por mim, numa lufada com perfume de alcaçuz. A turma do chá entra
apressada no chalé da lebre e bate a porta. Nuvens de poeira preta e branca assomam a distância.
As nuvens de poeira se dissolvem, revelando um exército de guardas de cartas montados em
pássaros. Enormes, com constituição de avestruz, cauda de pavão e cabeça e asas de gafanhotos
gigantes. Embora os pássaros pareçam não poder voar, suas longas pernas cobrem a distância entre
nós com facilidade. É um enxame de gafanhotos mutantes vindo nos devorar.
Nunca mais matarei um inseto que seja na vida...
Com o coração martelando as vértebras como um gongo, grito para Morfeu lá em cima: — Ajude-
nos!
— Cuidado com as areias movediças — grita ele em resposta. — Use a flauta se precisar ganhar
terreno. Presumindo que vocês cheguem ao vale, dirijam-se diretamente para o cemitério. O exército
não entrará para segui-los. — Numa investida, ele voa na direção oposta de nossos atacantes. E vai
embora. Sem mais nem menos.
Presumindo que nós cheguemos? Fico tão aviltada que meus olhos queimam. — Você jurou que
não me deixaria novamente! Suas asas vão encolher, seu covarde! — grito.
Mas você não está machucada... Ainda.
É a voz dele, mas não tenho certeza se ela vem da minha memória ou se ele ainda está dentro da
minha mente. Seja o que for, eu tinha esquecido da estipulação para seu voto da magia da vida. Ele é
o mestre dos detalhes.
Um martelar estilhaça o ar. Viro-me e vejo Jeb batendo o carrinho de chá contra o tronco da
árvore. Antes que eu compreenda o que ele está fazendo, ele já desmontou duas prateleiras da
estrutura. Ele afasta a franja do rosto e vira as tábuas para analisar o fundo. Elas são lisas e sem
emendas, ligeiramente curvadas para cima no final.
Ele estende uma para mim. — Vamos!
Pego o pedaço de madeira, confusa.
Jeb coloca a mochila no ombro, corre para a beira da duna alguns metros adiante e coloca a sua
prateleira no chão, na borda onde começa o declive. Com um sapato na madeira para mantê-la
abaixada, ele se vira para mim: — É agora, menina do skate!
Corro para ele, os braços tremendo ao acomodar minha prancha no lugar. Ele espera que a gente
desça nelas — como surfe de areia. Mas será que ele não vê o abismo entre o deserto e o vale?
O final do declive se curva para cima, como uma rampa de lançamento. Ele não pode estar
contando que nós...
— Hoje você vai aprender um ollie — diz ele, completando meu pensamento.
Minha pulsação martela no pescoço. — Sem chance.
— Sem escolha. — Ele estende a mão. — Se começarmos a cair, use seu truque mágico. Faça as
pranchas flutuarem sobre o abismo.
— E se eu não conseguir? Já quebrei a maldição, consertei os erros de Alice. Talvez eu tenha
voltado a ser eu mesma.
— Você ainda se parece com um deles. Aposto que não vai voltar a ser normal até que a gente
atravesse aquele portal. A esta altura, o que temos a perder? — A mão dele aguarda a minha.
Eu a agarro e olho para trás. Nuvens de poeira consomem a ladeira e o exército toma a colina.
Eles chegarão no platô a qualquer momento. Olho para os torvelinhos de areia.
De perto, a inclinação é umas três vezes mais íngreme do que a maior queda do Submundo, e eu
nunca cheguei a subir no alto dela. Estamos tão alto que minha visão flutua e meus joelhos ficam
moles.
— Uaaaa! — Jeb passa um braço em torno da minha cintura para me equilibrar.
— Jeb... — Agarro o seu pulso. — Vamos nos separar.
— Não vamos. — Ele solta uma ponta da corrente de metal pendurada nas presilhas de seu cinto.
Depois a desenrola, deixando a outra ponta ainda presa em sua calça. Prendendo a corrente a um dos
anéis do meu cinto, ele forma uma corda de segurança. Quando esticados, os anéis permitem que
fiquemos à distância de um metro, e nos deixam seguros.
— Pronta? — pergunta ele, olhando por sobre o ombro para nossos iminentes captores.
— Sim. — Mas meu estômago dá voltas e diz “não”.
Cada pedaço de mim pede para voltar... Para correr na direção oposta. Mas os pássaros Jubjub
guincham atrás de nós — um som que perfura os tímpanos, como os pterodáctilos gigantes de alguma
trilha de filme pré-histórico — e eriçam os pelos do meu pescoço.
Deslizo o pé para cima da prancha.
— Agora! — grita Jeb.
Meu estômago vai ao chão quando damos um empurrão juntos e mergulhamos nas profundezas de
xadrez.