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O LADRÃO DE CORPOS / Anne Rice
O LADRÃO DE CORPOS / Anne Rice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LADRÃO DE CORPOS

Primeira Parte

 

Fala o vampiro Lestat. Tenho uma história para lhe contar, a respeito de algo que me aconteceu. Tudo começou em Miami, no ano 1990, e sinceramente desejaria iniciar o relato ali. Mas é importante que mencione os sonhos que tinha tido com antecedência, já que jogam um papel importante na narração. Refiro às vezes que sonhei com uma menina vampiro de mente adulta e rosto angélico, e a outra oportunidade em que sonhei com o David Talbot, meu amigo humano.

Mas também sonhei com minha infância de mortal transcorrida na França, com neves invernais, com o ruinoso e sombrio castelo que tinha meu pai na Auvernia, com o dia em que saí a caçar uma manada de lobos que rondava por nossa pobre aldeia.

Os sonhos podem ser tão reais como os acontecimentos mesmos, ou ao menos isso me pareceu depois.

Além disso, quando começaram os sonhos tinha eu um estado de ânimo melancólico, pois era um vampiro vagabundo que perambulava pela terra. Às vezes ia tão talher de pó, que ninguém reparava em mim. Do que me servia ter uma espessa cabeleira loira, olhos azuis de olhar intenso, roupas chamativas, um sorriso irresistível e um corpo bem proporcionado, de um metro oitenta e cinco de altura que, em que pese a seus duzentos anos, podia passar pelo de um mortal de vinte? Não obstante, eu seguia sendo um homem da razão, um filho do século XVIII, século no que realmente vivi antes de nascer às trevas.

Mas nas proximidades da década de 1980 tudo estava muito mudado. Já não era aquele acanhado e elegante vampiro que fui alguma vez, tão afeto à clássica capa negra e os encaixes de Bruxelas, aquele cavalheiro de fortificação e luvas brancas que dançava sob o farol de gás.

Tinha-me transformado em uma espécie de deus misterioso graças ao sofrimento, ao triunfo, e a um excesso de sangue de nossos antepassados vampiros. Possuía faculdades que me deixavam perplexo e às vezes até me assustavam. Esses dons me punham triste, embora não sempre sabia por que.

Por exemplo, podia levantar uma cadeira no ar a vontade e fazer que se deslocasse a grandes distancia, balançada pelos ventos noturnos como se fora um espírito. Podia produzir ou destruir matéria mediante o poder de minha mente. Podia acender fogo com apenas desejá-lo. Também podia chamar com minha voz preternatural aos imortais de outros países e moderados e, sem o menor esforço, ler a mente de vampiros e humanos por igual.

Que bom, poderá você dizer. Eu o aborrecia. Sofria sem lugar a dúvidas, por minhas antigas personalidades: o moço mortal, o fantasma recém-nascido que em uma época se propôs ter talento para a maldade.

Compreendam-me: não sou um pragmático. Tenho uma consciência perspicaz e desumana. Poderia ter sido um bom tipo - e possivelmente às vezes o seja -, mas sempre me considerei homem de ação. Condoer-se é para mim um desperdício, como o é o ter medo. E o que você vai encontrar aqui, logo que termine com este preâmbulo, é ação.

Não terá que esquecer que os começos revistam ser difíceis e quase sempre artificiais. Foi a melhor época. E a pior também. Além disso, todas as famílias felizes não são iguais; isso até o Tolstoi tem que havê-lo sabido. Eu não consigo começar com "Havia uma vez" ou "Jogaram-me de um caminhão ao meio dia"; se não, faria-o. E me crie que sempre consigo o que quero. Como disse Nabokov por boca de um de seus personagens, "o assassino sempre fala com prosa extravagante". Extravagante não poderia significar experimental? Certamente, sei que sou sensual, recarregado, voluptuoso; muito me tem feito notar isso já a crítica.

Infelizmente, tenho que fazer as coisas a minha maneira. Já vou chegar ao princípio -se não haver uma contradição nos términos-; o prometo.

Devo explicar aqui que, antes de iniciar-se esta aventura, eu estava padecendo pelos outros imortais a quem conheci e amei, porque fazia tempo que se dispersaram de nosso último reduto do século XX. Que disparate pensar que queríamos criar um novo lugar de reunião. Um a um meus companheiros foram desaparecendo, perderam-se no tempo e o mundo, o qual era inevitável.

O vampiro não sente verdadeiro agrado pelos de sua espécie, em que pese a sua atroz necessidade de amigos imortais.

devido a essa necessidade, criei a minhas vergônteas: ao Louis do Pointe du Lac, que se converteu em meu paciente e freqüentemente carinhoso companheiro do século XIX; e com a inadvertida ajuda dele, a Claudia, a bela e condenada menina vampiro. Durante essas noites solitárias de fins de século, Louis foi o único imortal ao que via com freqüência. O mais humano de todos nós, o mais perverso.

Nunca me afastava muito de sua choça, localizada-se no setor alto de Nova Orleans. Mas você aguarde; já chegarei a isso. Louis tem um sítio nesta história.

A propósito: aqui encontrará muito pouco sobre outros. Em realidade, quase nada.

Salvo Claudia, com quem sonhava cada vez mais freqüentemente. me permita explicar o da Claudia. Ela tinha morrido fazia mais de um século, mas eu sentia sua presença em todo momento, como se a tivesse tido perto.

Corria o ano 1794 quando converti a órfãzinha moribunda em uma suculenta vampira, e passaram sessenta anos antes de que se rebelasse contra mim. "Meterei-te no ataúde para sempre, pai."

Nesse então eu dormia em uma gaveta, sim. E aquele intento de homicídio foi antiquado, posto que houve vítimas mortais às que quis tentar com álcool para que nublassem minha mente, houve facas que rasgaram minha carne branca e, por fim, acreditando-o sem vida, abandonaram meu corpo nas fétidas águas da zona de pântanos, além das luzes de Nova Orleans.

Não lhes deu resultado. Existem muito poucos métodos eficazes para matar aos que não morrem. O sol, o fogo... Para matá-los, terá que propô-la extinção total. Além disso, tenha em conta que sou o vampiro Lestat.

Claudia sofreu por esse crime; logo foi executada por um grupo de bebedores de sangue que cresciam no coração mesmo de Paris, no infame Teatro dos Vampiros. Eu tinha violado as normas ao converter em bebedora de sangue a uma menina tão pequena, e é possivelmente por essa só razão pela que os monstros parisienses puderam havê-la ultimado. Mas também ela violou as normas quando tratou de destruir a seu fazedor, e poderíamos dizer que essa foi a razão lógica que tiveram para deixá-la fora, à luz intensa do dia que a reduziu a cinzas.

Em minha opinião, trata-se de um método diabólico para executar a alguém, porque quem o deixa a um fora devem retornar depressa a seus féretros e nem sequer podem ver o sol quando este executa sua sinistra sentença. Isso foi o que lhe fizeram à deliciosa criatura que eu tinha moldado com meu próprio sangue vampírico, a qual, de órfãzinha suja e andrajosa em uma ruinosa colônia espanhola do novo mundo, passou a ser meu amiga, meu discípulo, meu amor, minha musa, minha companheira de correrias. E sim, minha filha.

Se você leu "Entrevista com o vampiro", já deve saber tudo isto, pois é a versão que Louis dá do tempo em que estivemos juntos. Louis fala de seu amor por essa nossa filha, e de como quis vingar-se de quem a eliminou.

Se você leu meus livros autobiográficos, "O vampiro Lestat" e "Rainha dos condenados", já sabe também tudo o que concerne para mim mesmo. Conhece nossa história, sabe que nascemos faz milhares de anos e que nos propagamos entregando nosso sangue misterioso aos mortais, quando desejamos arrastá-los conosco pelo caminho do diabo.

Mas não é necessário ter lido aquelas obras para compreender esta. Tampouco achará aqui os milhares de personagens que povoavam "Reina-a dos condenados". Nem por um momento a civilização ocidental vai se cambalear. E não haverá revelações de arcaicas épocas nem anciões que confiem enigmas e verdades pela metade, ou prometam respostas que de fato não existem nem existiram jamais.

Não; todo isso já o fiz antes.

Esta é uma história contemporânea. Não se confunda: é um volume das Crônicas de Vampiros, mas o primeiro realmente moderno pois aceita o horroroso absurdo da existência desde seu começo e nos introduz na mente e o coração de seu herói - adivinhe quem é - para ver o que ali descobre.

Leoa este relato, e à medida que volte as páginas eu irei brindando tudo o que precise saber sobre nós. A propósito, são muitas as coisas que acontecem! Como já hei dito, sou homem de ação -o James Bond dos vampiros, por assim dizer-, chamado também por diversos imortais Príncipe Rapace, Criatura Maldita, Monstro...

Outros imortais ainda existem, certamente: Maharet e Mekare, os majores de todos, Khayman, da primeira ninhada, Eric, Santino, Pandora e outros, a quem denomino os Filhos dos Milênios. Também está Armand, o simpático moço de quinhentos anos de idade que em uma época dirigia o Teatro dos Vampiros e, antes disso, uma cova de chupadores de sangue adoradores do diabo que viviam sob o cemitério de Paris: Eles Innocents. Espero que Armand exista sempre.

E Gabrielle, minha mãe mortal e filha imortal que sem dúvida se apresentará uma destas noites, possivelmente antes de que transcorram outros mil anos, se tiver sorte.

Quanto ao Marius, meu velho professor e mentor, que conservava os segredos históricos de nossa tribo, segue estando e estará sempre conosco. antes de começar com este conto, vinha de vez em quando a ver-me para me implorar que por favor terminasse com meus impiadosos assassinatos, publicados invariavelmente nos jornais dos humanos; que por favor deixasse de incomodar ao David Talbot, meu amigo mortal, com tentações para que recebesse o Dom Misterioso de nosso sangue. É que não me dava conta de que não convinha criar mais seres como nós?

Normas, normas e mais normatiza. Sempre terminam falando de normas. E eu gosto das infringir, assim como aos mortais gosta de arrojar as taças de cristal contra o fronte da chaminé depois de um brinde.

Mas basta já de falar de outros... porque este livro é meu do princípio ao fim.

Quero me espraiar sobre os pesadelos que me atormentavam durante minhas vagabundagens.

Com a Claudia foi quase uma obsessão. Todos os amanheceres, antes de abrir os olhos, via-a meu lado, ouvia o murmúrio imperioso de sua voz. E às vezes me remontava atrás nos séculos, até aquele pequeno hospital de colônia com suas fileiras de camitas, onde a órfã estava morrendo.

E aí estava o velho médico, tremente e de ventre volumoso, levantando o corpinho da menina. E esse pranto. Quem chora? Claudia não chorava. Dormia quando o doutor me confiou isso, acreditando que eu era seu pai mortal. E que preciosa aparece nos sonhos. Era tão linda nnaquele tempo? naquele tempo? É obvio que sim.

"Me arrebatando de mãos mortais como dois monstros sinistros em um pesadelo de conto infantil, OH pais cegos e indolentes!"

Uma só vez sonhei com o David Talbot.

Sonhei que David ia caminhando por um bosque de mangles. Não era o homem de setenta e quatro anos que se feito meu amigo, o bondoso erudito que invariavelmente rechaçava meu convite a beber o Sangue Misterioso e com intrépido gesto apoiava sua mão morna, frágil, sobre meu peito frio para demonstrar o carinho e a confiança que nos tínhamos.

Não; que aparecia era o David Talbot jovem, de anos atrás, quando seu coração não pulsava com tanta pressa. Entretanto, corria perigo.

Tiger, tiger, burning bright.1

É sua voz a que murmura essas palavras, ou acaso a minha?

E na luz manchada se aproxima, suas raias negras e alaranjadas semelhantes à luz e a sombra mesmas, de modo que apenas o distingue. Vejo sua imensa cabeça, quão suave é seu focinho branco, arrepiados seus bigodes largos, delicados. Então Miro seus olhos amarelos, apenas dois talhos cheios de ímpia crueldade. David, as presas! Não lhe vê as presas?

Mas ele é curioso como um menino; olhe a enorme língua rosada do tigre que se posa sobre sua garganta e lhe toca a cadenita de ouro que leva a pescoço. O tigre se está comendo a cadeia? Por Deus, David! As presas.

por que me seca a voz? Estou ali, no bosque de mangles? Vibra meu corpo quando luto para me mover. Meus lábios fechados deixam escapar calados gemidos que curvam até a última fibra de meu ser. Cuidado, David!

Logo vejo que ele está com um joelho apoiado no chão, vejo o fuzil comprido e brilhante contra seu ombro. E o gigantesco tigre ainda se acha a metros de distância, avançando para ele. Corre e corre até que o disparo o detém em seco, e se desaba ao tempo que a arma volta a disparar, seus olhos amarelos cheios de indignação, suas garras cruzadas quando se cravam na terra branda com o último suspiro.

Me acordado.

O que significa este sonho? Que meu amigo mortal corre perigo? Ou simplesmente que seu relógio biológico se deteve. A um homem de setenta e quatro anos a morte pode lhe acontecer em qualquer instante.

Alguma vez penso no David sem associá-lo com a idéia da morte?

David, onde está?

Tris, depois de, três, cheiro o sangue de um inglês.

"Quero que me peça o Dom Misterioso", disse-lhe quando o conheci. "Talvez não lhe dê isso, mas quero que me peça isso."

Nunca me pediu isso. Agora o amo. Vi-o pouco depois do sonho. Tive que fazê-lo. Mas não podia esquecer o pesadelo e possivelmente mais de uma vez veio a minha mente durante as horas de luz, no sonho profundo dessas horas em que estou frio como a pedra e indefeso sob o manto literal das trevas.

Bom, já falei dos sonhos.

Mas você evoque uma vez mais a neve invernal da França, por favor, neve que se acumula em torno dos muros do castelo; pense em um moço jovem, mortal, que dorme em seu leito de feno, à luz da luz, custodiado por seus cães de caça. Tal chegou a ser a imagem da vida humana que perdi, mais verdadeira que qualquer lembrança do teatro parisiense onde antes da Revolução eu era tão feliz trabalhando de ator.

Agora sim, estamos preparados para começar. Proponho-lhe que demos volta à página.

 

Miami, a cidade dos vampiros! Isto é South Beach ao entardecer, na luxuriosa tibieza do inverno sem inverno, clara, florescente e empapada em luz elétrica, enquanto a brisa suave sopra desde mar plácido, cruza pela margem escura de areia cor nata e vai esfriar as largas ruas lisas, cheias de felizes meninos mortais.

Simpático desfile de moços elegantes que exibem seus músculos de culturismo com patética vulgaridade, de mulheres jovens orgulhosas de suas aerodinâmicas e aparentemente assexuadas extremidades no meio do imperioso rugir do trânsito e as vozes humanas.

Refaccionadas com modernos tons bolo, velhas estalagens de estuque, antigamente medíocres refúgios de anciões, exibiam seus novos nomes em elegantes letras de néon. Titilavam as velas nas mesas com toalhas brancas dos restaurantes à rua. Enormes e lustrosos automóveis norte-americanos avançavam lentamente pela avenida, enquanto condutores e passageiros por igual contemplavam o deslumbrante desfile humano de pedestres indolentes que aqui e lá bloqueavam o meio-fio.

No longínquo horizonte, as grandes nuvens brancas eram montanhas sob um céu sem teto, tachonado de estrelas. Ah, sempre me impressionou esse céu sulino, cheio de luz celeste e um incansável movimento amodorrado.

Para o norte se elevavam as torres da nova Miami Beach em todo seu esplendor. Ao sul e ao oeste, os arranha-céu deslumbrantes do centro da cidade, com suas auto-estradas elevadas e seus moles lojas de comestíveis de cruzeiros. Pequenas embarcações de recreio se deslocavam raudas pelas águas faiscantes dos inumeráveis canais urbanos.

Nos silenciosos e imaculados jardins de Coral Gables, numerosos faróis iluminavam as magníficas residências com seus tetos de telhas vermelhas e suas piscinas de resplandecente luz turquesa. Os fantasmas se passeavam pelas habitações imensas e escuras do Biltmore. As imponentes árvores de mangle estendiam seus ramos primitivos, cobrindo as ruas largas, bem cuidadas.

No Coconut Grove, o turismo internacional que vinha às compras se apinhava em hotéis luxuosos e modernos centros comerciais. Havia casais que se abraçavam nos balcões de edifícios com paredes de cristal, silhuetas que contemplavam as águas serenas da baía. Os automóveis avançavam pressurosos pelas ruas congestionadas, passando frente a palmeiras sempre dançantes, a achaparradas mansões de cimento, engalanadas com buganvillas vermelhas e moradas detrás finos portões de ferro.

Todo isso é Miami, a cidade da água, da velocidade, das flores tropicais e os céus muito largos. Para ir a Miami, e não a nenhum outro lugar, é que de tanto em tanto estou acostumado a deixar meu lar de Nova Orleáns. Homens e mulheres de diversas nações e cores residem nos populosos bairros de Miami. ouça-se falar idish, hebreu, as línguas da Espanha, do Haiti, os dialetos e acentos da América Latina, do sul deste país, do remoto norte. Sob a superfície lustrosa de Miami se percebe uma ameaça, um desespero, uma palpitante cobiça; o pulso firme de uma grande capital, a energia empeñosa, o perigo constante.

Nunca fica realmente escuro, em Miami. Nunca reina um silêncio verdadeiro.

Miami é a cidade perfeita para o vampiro e sempre encontro nela algum mortal homicida, algum sórdido bocado de cardeal que me cede uma dezena de seus próprios assassinatos quando vazio seus bancos de cor e chupo seu sangue.

Mas esta é a noite da caça maior, a celebração não sazonal de Páscoa logo depois de uma Quaresma de fome: sairei a procurar um desses esplêndidos troféus humanos cujo grotesco modus operandi ocupa páginas inteiras nos arquivos computadorizados das dependências encarregadas de vigiar o cumprimento das leis mortais, um ser ao que um jornalismo reverente ungiu em seu anonimato com o rimbombante nome de "O estrangulador dos becos".

Essa classe de assassinos despertam um apetite especial! Que sorte para mim que semelhante celebridade tivesse aparecido em minha cidade preferida. Que sorte que tivesse atacado seis vezes nessas mesmas ruas, matador de velhos e adoentados que chegaram em grandes quantidades a passar seus últimos dias neste clima quente. OH, teria atravessado um continente inteiro para mordê-lo, mas o tenho aqui, me esperando. A sua macabra história, analisada por não menos de vinte criminologistas e que com toda facilidade eu roubei através do computador que tenho em meu reduto de Nova Orleáns, adicionei secretamente os elementos fundamentais: seu nome e lugar de residência mortal. Truque singelo para um deus tenebroso que pode ler as mentes. Seus próprios sonhos sangrentos me serviram para encontrá-lo. E esta noite será meu o prazer de terminar sua ilustre carreira em um abraço cruel, sem uma faísca de esclarecimiento moral.

Ah, Miami, lugar ideal para este Drama da Paixão.

Sempre volto para Miami, do mesmo modo que sempre volto para Nova Orleáns. E sou o único imortal que segue caçando neste glorioso rincão do Jardim Selvagem porque, como viu você, outros faz já tempo que partiram do reduto onde nos reuníamos, incapazes de tolerar a companhia uns de outros, e eu a deles.

Mas tão melhor que Miami fique para mim sozinho.

Nas habitações que mantinha no luxuoso hotel Park Central, parei-me ante as janelas que dão à frente, sobre o passeio Ocean, aguçando de tanto em tanto meu ouvido preternatural para averiguar o que ocorria nas suítes vizinhas, onde enriquecidos turistas desfrutavam da melhor das solidões -intimidade total a passos da lotada rua-, meu Campos Elíseos do momento, meu Via Véneto.

Meu estrangulador se achava quase preparado para sair do reino de suas visões espasmódicas e fragmentárias e internar-se pela terra da morte literal. Ah, chegou a hora de me vestir para o homem de meus sonhos.

Revisando a habitual confusão de caixas, gavetas, malas e baús recém abertos, escolhi um traje de veludo cotelê cinza, velho preferido meu, sobre tudo porque o tecido é grosa e tem um brilho apenas tênue. Não muito adequado para estas noites cálidas, devo reconhecer, mas acontece que não sinto o frio nem o calor como os humanos. Além disso, a jaqueta era rodeada, de lapelas estreitas; com sua cintura entalhada, parecia-se mais a um traje de cavaleiro, ou melhor ainda, às levita de antigamente. Os imortais preferem sempre a roupa antiquada, a que nos traz para a memória o século em que nascemos às trevas. Às vezes se pode calcular a verdadeira idade de um imortal com apenas observar o corte de seus objetos.

Em meu caso, é também uma questão de textura. O século XVIII foi tão lustroso! Tudo tem que ter um pouco de brilho. E essa formosa jaqueta combinava à perfeição com as calças estreitas de veludo cotelê Lisa. Quanto à camisa de seda branca, o tecido era tão suave que se podia fazer um pão-doce com ela e cabia na palma da mão. por que teria que usar algo distinto, que roce minha pele indestrutível e de tão estranha sensibilidade? Depois, as botas, muito parecidas com meus excelentes sapatos deste último tempo. Têm as reveste imaculadas, já que estranha vez se assentam sobre a mãe terra.

O cabelo me deixei isso solto, a habitual cabeleira espessa e loira, com cachos até os ombros. Que aspecto tinha para os mortais? Na verdade não sei. Escondi meus olhos azuis, como de costume, depois de uns óculos escuros por medo de que seu brilho pudesse hipnotizar acidentalmente -todo um transtorno-, e calcei minhas delicadas mãos, com seus reveladoras unhas cristalinas, nas sabidas luvas de suave couro cinza.

Ah, um pouco de maquiagem marrom para camuflar a pele. Estendi-me isso sobre os maçãs do rosto e sobre o trocito de pescoço e peito que aparecia.

Inspecionei no espelho o produto terminado. Ainda irresistível. Com razão tinha tido tanto êxito em minha breve carreira de cantor de rock. E como vampiro, sempre fui extraordinário. Tenho que agradecer aos deuses não me haver voltado invisível em meus passeios, um vagabundo que frota mais alto que as nuvens, leve como uma cinza ao vento. Quando pensava nisso me dava vontade de chorar.

A caça maior sempre me fazia voltar para presente. Terei que lhe seguir o rastro, esperá-lo, pescá-lo justo no momento em que estava por dar morte a sua próxima vítima, e matá-lo devagarzinho, com dor, me deleitando com sua maldade, observando pela lente imunda de sua alma a todas suas vítimas anteriores...

Quero que me compreenda: nisto não há nada de nobre. Não acredito que resgatando a um pobre mortal de semelhante malvado possa salvar minha alma. Muitas vezes trunquei vistas, a menos que a gente suponha que o poder de uma boa ação é infinito. Não sei se acreditar ou não nisso. O que sim acredito é isto: a maldade que há em um só assassinato já é infinita, e minha culpa, ao igual a minha beleza, eterna. Não posso ser perdoado, porque não há ninguém que me possa perdoar tudo o que tenho feito.

Entretanto, agrada-me salvar de seu destino a esses inocentes. E eu gosto de dar morte aos assassinos porque são meus irmãos, somos da mesma espécie. E por que não teriam que morrer em meus braços eles, em vez de algum pobre e bondoso mortal que alguma vez fez mal a ninguém? Estas são as regras de meu jogo. Acato-as porque eu mesmo as estabeleci. E me prometi mesmo que esta vez não ia deixar os cadáveres atirados por aí; trataria de fazer o que sempre me ordenaram que fizesse. Assim e tudo... eu gostava de deixar as sobras para as autoridades. E depois, quando voltava para Nova Orleáns, eu gostava de acender o computador e ler o relatório completo da autópsia.

De repente me distraí com o som de um patrulheiro que passava lentamente por abaixo. Os policiais foram falando do assassino por mim eleito, de que logo ia atacar de novo, suas estrelas estão na posição correta, a lua à altura indicada. Quase com segurança seria nas ruas laterais do South Beach, igual a antes. Mas, quem era? O que se podia fazer para impedir-lhe. Sete da tarde. Os numeritos verdes do relógio digital assim me indicaram isso, embora eu já sabia, certamente. Fechei os olhos, inclinei um pouco a cabeça para um flanco, me preparando possivelmente para sentir todos os efeitos desta faculdade minha que tanto desprezava. Primeiro me chegaram de novo os sons amplificados, como se dispusera de um moderno dispositivo tecnológico. Os débeis ruídos do mundo se converteram em um coro do inferno, cheio de lamentos e risadas, cheio de mentiras, de angústia, de súplicas fortuitas. Tampei-me as orelhas como se com isso pudesse pará-lo, até que por fim o obtive.

Pouco a pouco fui distinguindo as imagens imprecisas e superpostas de seus pensamentos, que se elevavam como milhares de pássaros batendo as asas e perdendo-se no firmamento. Quero a meu assassino! Quero vê-lo ele!

Aí estava, em um quartinho imundo, muito distinto do meu mas a escassos duzentos metros dele, levantando-se da cama. Notei enrugada sua roupa ordinária, e sua cara tosca banhada em transpiração. Uma mão nervosa procurou os cigarros no bolso da camisa e logo os deixou, já esquecidos. tratava-se de um homem robusto, de facções informe e certo semblante de preocupação, ou de algum escuro pesar.

Não lhe ocorreu vestir-se de etiqueta para o festim que esperava com ânsias. E agora sua mente acordada quase tinha sucumbido sob a carga de seus sonhos horríveis e palpitantes. Todo ele se estremeceu; o cabelo negro, gordurento, caiu-lhe sobre a frente, sobre os olhos semelhantes a partes de vidro negro.

Sem me mover de minha posição nas caladas sombras de meu quarto, segui-lhe os rastros. Vi que baixava uma escada traseira e saía à luz intensa da avenida Collins, passava frente a poeirentas cristaleiras e letreiros comerciais média cansados, avançando sempre para o inevitável -e ainda não eleito- objeto de seu desejo.

E quem podia ser a afortunada dama que andasse passeando, encaminhando-se insensata e inexoravelmente para esse horror em meio das multidões monótonas e escassas do anoitecer nesse mesmo setor deprimente da cidade? Levará em uma bolsa um litro de leite e uma planta de alface? Apurará o passo ao ver o homicida à volta da esquina? Sofrerá tendo saudades a velha costeira onde possivelmente vivesse tão feliz antes de que os arquitetos e decoradores a obrigassem a partir a hotéis mais longínquos, com gretas e a pintura descascada?

E o que vai pensar esse asqueroso anjo da morte quando por fim a divise? Será ela quem lhe traga para a memória à mítica harpia de sua infância, aquela que o esmurrava até deixá-lo desacordado e que logo subiu ao panteão de pesadelo de seu inconsciente? Ou acaso é muito pedir?

Quero dizer que há assassinos dessa espécie que não estabelecem a menor relação entre símbolo e realidade e não recordam nada durante mais que uns dias. O único seguro é que suas vítimas não o merecem, e que eles -os assassinos- merecem topar-se comigo.

Ah, penso lhe arrancar o coração sem lhe dar tempo a que a "liquide", e logo ele me dará tudo o que tem, e o que é. Andando lentamente desci pela escada e cruzei o elegante hall art déco, esplendoroso como foto de revista. Que agradável era atuar como um mortal, sair ao ar fresco. Enfiei pela calçada para o norte me confundindo entre os traunsentes da noite; meus olhos percorriam com ar natural os hotéis recém restaurados e seus barcitos.

Ao chegar à esquina, a multidão já era mais numerosa. Frente a um restaurante ao ar livre, gigantescas câmaras de televisão enfocavam suas lentes sobre uma parte de calçada iluminado por enormes refletores de hiriente luz branca. Uns caminhões fechavam o trânsito; os automóveis se detinham. congregou-se uma multidão de jovens e velhos logo que fascinados, já que as equipes de filmagem de filmes eram um espetáculo habitual na zona do South Beach.

Esquivei as luzes por medo ao efeito que pudessem produzir sobre meu rosto tão sensível. Que não daria de ser um desses seres bronzeados que cheiram a custosas loções canções e andam meio nus com seus desprezíveis farrapos de algodão... Voltei a dar volta a esquina e uma vez mais procurei a minha presa. Vi-o partir com a mente tão cheia de alucinações que logo que sim podia controlar seu andar desajeitado.

Não ficava mais tempo.

Com um pequeno ímpeto de velocidade, me subí aos tetos baixos. A brisa era mais forte, mais adocicada. Suave o estrondo das vozes animadas, aborrecida-las canções das rádios, o som do vento mesmo.

No meio do silêncio percebi sua imagem nos olhos indiferentes de quem passava a seu lado; vi as fantasias que, uma vez mais, se fazia de mãos murchas e murchos pés, de bochechas consumidas e peitos consumidos. estava-se rompendo nele a tênue membrana que separa a fantasia da realidade.

Aterrissei na calçada da avenida Collins tão depressa, que dava a impressão de aparecer ali e nada mais. Mas ninguém olhava. Fui a árvore proverbial que cai no bosque desabitado.

Aos poucos minutos ia caminhando comodamente a poucos passos dele, talvez com meu aspecto de jovem ameaçador, atravessando os grupitos de tipos ferozes que fechavam o caminho; e, perseguindo a minha vítima, transpus as portas de vidro de uma gigantesca farmácia de gélida refrigeração. Ah, que prazer para o olho essa caverna de tetos baixos, cheia de todas as classes imagináveis de mantimentos conservados, artigos de limpeza e atavios para o cabelo, noventa por cento dos quais não existia em maneira alguma no século em que nasci.

Refiro a toallitas higiênicas, gotas para os olhos, forquilhas plásticas para o cabelo, marcadores de fibra, natas e ungüentos para aplicar até na última zona do corpo, líquida máquina de lavar pratos em tudas as cores do arco íris e tinturas de tons nunca antes inventados e difíceis de descrever. Imagino ao Luis XVI abrindo uma bolsita de ruidoso plástico e encontrando-se com uma de tais maravilhas. O que teria pensado dos vasitos térmicos de material sintético, dos biscoitinhos de chocolate envoltas em papel celofane, das lapiseiras que alguma vez ficam sem tinta?

Bom, nem eu mesmo me habituei de tudo a esses objetos, embora durante dois séculos vi com meus próprios olhos o processo da Revolução Industrial. Posso me passar horas fascinado dentro desses negócios.

Mas nesta oportunidade tinha uma presa na olhe, não? Mais tarde podia me dedicar a Teme e Vogue, aos computadores de bolso para traduzir, aos relógios que seguem marcando a hora embora a gente esteja nadando no mar.

Para que tinha entrado ele nesse lugar? As famílias cubanas jovens não lhe agradavam. Não obstante, ficou a caminhar pelos estreitos e lotados corredores sem emprestar atenção às centenas de rostos escuros e acentos espanhóis que o rodeavam. Salvo eu, ninguém reparava nele nem em seus olhos de bordos vermelhos que percorriam os lojas de comestíveis prateleiras.

Meu deus, era um ser imundo, toda decência perdida já em sua loucura, a tosca cara e o pescoço com marcas de sujeira. Dará-me gosto? Diabos, esse tipo não é mais que uma bolsa de sangue. Para que me arriscar sem necessidade? Já não podia matar a meninos nem me desfrutar com prostitutas da costeira querendo autoconvencerme de que tudo está bem porque, total, elas envenenaram a mais de um marinheiro. A consciência me está matando. E para alguém que é imortal, isso pode ser uma morte larga e ignominiosa. Sim, olhem a esse tipo sujo, a esse pestilento assassino. Os reclusos de um cárcere conseguem melhor comida que isso.

Nesse momento, enquanto escrutinava sua mente como quem curta e abre um melão, compreendi algo: esse tipo não sabe o que é! Nunca leu os titulares dos jornais referidos a ele! A tal ponto, que não recorda com discernimento certos episódios de sua vida; portanto, não poderia a consciência confessar certos crímenes que cometeu porque não os recorda! Tampouco sabe que esta noite vai matar! Não sabe o que eu sei!

Ah, tristeza e dor. Havia-me meio doido a pior carta, sem dúvida. Deus santo! No que terei estado pensando para me cravar justo com esse, sendo que o mundo iluminado pelas estrelas está cheio de bestas mais ardilosas e perversas? Me deu vontade de chorar.

Mas então chegou o momento da provocação. Ele divisou à anciã, fixou-se em seus enrugados braços nus, na pequena giba de suas costas, em suas coxas magras e trementes sob os pantaloncitos de cor bolo. A gritã luz fluorescente permitiu ver que a mulher avançava andando pausado, desfrutando de do agitação de quem estava ali, seu rosto semioculto sob uma viseira de plástico verde, o cabelo recolhido com forquilhas na nuca.

Em sua pequena cesta levava uma garrafa de suco de laranja e um par de chinelas tão brandas que vinham dobradas formando um rollito. Com expressão de genuíno prazer, tirou da prateleira uma novela em edição rústica que já tinha lido antes, mas lhe aconteceu a mão com ternura, sonhando voltando a lê-la, algo assim como visitar antigas amizades. "Ao Tree Grows in Brooklyn". Sim, também me tinha encantado.

Enfeitiçado, o sujeito se localizou depois da mulher, mas tão perto que ela certamente deveu sentir seu fôlego na nuca. Com expressão insossa, tola, observou-a enquanto se aproximava da caixa e extraía uns sujos bilhetes de dólar do decote frouxo de sua blusa.

E aí saíram os dois; ele, com o andar laborioso do cão que segue a uma cadela em zelo; ela, avançando sem pressa com sua bolsa cinza, esquivando com estupidez as bandas de jovens ruidosos e atrevidos que rondavam por ali. Vai falando sozinha? Isso parece. Não lhe li a mente a viejita, e ela apura cada vez mais o passo. A li à besta que a persegue, que é de tudo incapaz de apreciá-la.

Rostos esbranquiçados, doentios, passavam por sua mente enquanto ia seguindo. Desejava atirar-se sobre essa carne anciã; ansiava tampar com sua mão essa boca velha.

Quando ela chegou a seu edifício de departamentos, construído ao parecer de deteriorada piçarra, como tudo o desse decrépito setor da cidade, e flanqueado por umas palmeiras maltratadas, o indivíduo se deteve vacilante ao tempo que a olhava cruzar o estreito pátio de ladrilhos e subir os poeirentos degraus de cimento verde. Reparou no número de sua porta no instante em que lhe tirava a chave, ou melhor dizendo seguiu avançando andando pesado até o sítio mesmo; logo voltou a apertar-se contra a parede, sonhando concretamente matando-a dentro de um dormitório vazio e sem rasgos particulares, apenas um manchón de luz e cor.

OH, olhem-no apoiado contra essa parede como se o tivessem esfaqueado, com a cabeça lhe pendurando a um flanco! Impossível interessar-se por ele. por que não o matarei já mesmo!

Mas os minutos seguiam passando, e a noite perdeu sua incandescência crepuscular. As estrelas se voltaram mais brilhantes ainda. A brisa ia e vinha.

Esperemos.

Através dos olhos femininos vi sua sala como se realmente pudesse atravessar pisos e paredes com minha vista: poda, embora com móveis velhos de horrível chapeado, vencidos, que pouco lhe importavam. Tudo estava lustrado com um líquido aromático de sua preferência. A luz de néon transpassava as cortinas de dacron, triste e insípida como o pátio de abaixo. Mas estava o resplendor reconfortante dos abajures pequenos e bem se localizadas. Isso era o que lhe importava.

Em uma poltrona rede de madeira nobre e horrível estofo a quadros escoceses, sentou-se; serena, figura diminuta mas senhorial, com a novela aberta já na mão. Que prazer encontrar-se de novo com o Francie Nolan. Seus joelhos fracos logo que sim ficavam ocultas sob o batón floreado que tinha tirado do placard, e se tinha posto as chinelas azuis que pareciam meias em seus piececillos disformes. O cabelo comprido, grisalho, tinha-o penteado em uma só trança grosa e elegante.

Na tela de seu pequeno televisor em branco e negro, artistas de cinema já mortos discutiam sem emitir som. Joan Fontaine acredita que Cary Grant está por matá-la. E a julgar pelo rosto do Grant, me deu a muito mesmo impressão. Como pode ninguém confiar no Cary Grant -perguntei-me-, um homem que parece feito de madeira?

Ela não precisava ouvir as vozes pois já tinha visto o filme umas treze vezes, conforme calculava. A novela que tinha na saia a tinha lido tão somente dois, pelo qual ia ser um prazer especial voltar a tomar contato com esses parágrafos que ainda não sabia de cor.

Das sombras do jardim de abaixo percebi o conceito que tinha ela de si mesmo, como se aceitava sem dramas, sem apegar-se ao mau gosto que a rodeava. Seus poucos tesouros cabiam em qualquer móvel. O livro e a tela iluminada eram mais importantes que qualquer outra coisa que possuísse, e bem sabia ela da espiritualidade que os animava. Até a cor de sua roupa funcional e sem estilo era algo pelo que não valia a pena preocupar-se.

Meu assassino vagabundo estava ao bordo da paralisia, sua mente povoada de momentos tão pessoais que desafiavam toda interpretação.

Dava a volta ao edifício e encontrei a escalerita que subía até a cozinha da mulher. A fechadura cedeu facilmente quando o ordenei, e a porta se abriu como se eu a houvesse meio doido, coisa que não fiz.

Sem perder um segundo me introduzi na minúscula habitação com pisos de chapeado plástico. O fedor que saía da cocinita branca me era nauseabundo, quão mesmo o aroma do sabão em sua pegajosa saboneteira de cerâmica. Mas todo o ambiente me emocionou no ato. Formosa baixela de porcelana a China azul e branca, muito prolijamente ordenada, com os pratos à vista. OH, os livros de cozinha com as pontas dobradas pelo uso. E que imaculada a mesa com seu oleado de amarelo puro, e a hera que, em um bol redondo de água poda, projetava contra o teto um único e trêmulo círculo de luz.

Mas o que encheu minha mente quando, aí parado, fechei a porta empurrando-a com os dedos, foi notar que ela não temia a morte enquanto lia sua novela da Betty Smith jogando de tanto em tanto uma olhada à tela. Não tinha antena interior com a qual captar a presença do assassino que, presa de loucura, encontrava-se na rua adjacente, nem a do monstro que nesses momentos perambulava por sua cozinha.

Tão absorto estava o assassino em suas alucinações, que não via quem passava a seu lado. Não viu o patrulheiro policial que rondava, nem as olhadas suspicazes e deliberadamente ameaçadoras dos mortais uniformizados que sabiam de sua existência e que essa noite ia atacar, mas não seu nome.

Um fio de saliva lhe correu pelo queixo sem barbear. Nada era real para ele -a vida que levava de dia, como tampouco o medo a que o descobrissem-; só o estremecimento elétrico que tais alucinações produziam em seu torso volumoso, em seus braços e pernas torpes. de repente, a mão esquerda lhe tremeu. Além disso tinha algo no flanco esquerdo da boca.

Como o odiei! Não queria beber seu sangue. Não era um assassino com classe. O que me enlouquecia era o sangue dela.

Que pensativa a notei em sua calada solidão; que diminuta, que satisfeita enquanto, com uma concentração pura como um feixe de luz, lia os parágrafos dessa história que tão bem conhecia. estava-se remontando à época em que tinha lido esse libero pela primeira vez, em um atestado bar da avenida Lexington, em Nova Iorque, quando era uma formosa secretária de elegante saia vermelha e camisa branca com voados e botoncitos de pérolas nos punhos. Trabalhava em uma torre de escritórios, um edifício distinguidísimo, de recarregadas portas de bronze nos elevadores e pisos de mármore amarelo escuro nos corredores.

Me deu vontade de beijar suas recordações, o recordado som de seus tacos altos quando tamborilavam contra o mármore, a imagem de seu tersa pantorrilha sob a seda da média no momento em que calçava com tanto esmero para não corrê-la com suas largas unhas, pintadas. Por um instante, vi seu cabelo avermelhado. Vi também seu chapéu de asa amarela, extravagante e potencialmente horrível, embora encantador.

Esse é sangue que vale a pena reservar. E morria de fome como nunca, nestas últimas décadas. Havia-me flanco um enorme esforço manter esse jejum quaresmal fora de temporada. meu deus, como ansiava matá-la!

Abaixo, na rua, um ruído a fervura partiu dos lábios do assassino estúpido, obtuso, e se abriu passo entre a rumorosa corrente de outros ruídos que chegavam a meus ouvidos vampíricos.

Por último, a besta se afastou da parede aos tombos. Em um momento dado, inclinou-se e pareceu que ia cair escancarado, mas logo avançou lentamente para nós, cruzou o patiecito e a escada.

Vou permitir que a assuste? Não lhe vejo sentido. Acaso não o tenho em meu olhe? Entretanto, deixei que introduzira sua pequena ferramenta de metal no orifício redondo do trinco, dava-lhe tempo para forçar a fechadura. A cadeia se desprendeu da madeira podre.

Entrou na habitação e cravou na mulher seu olhar inexpressivo. Aterrada, ela se tornou para trás em sua poltrona, ao tempo que o livro lhe caía da saia.

Ah, mas nesse momento ele me viu na porta da cozinha, a tenebrosa silhueta de um homem jovem vestido de veludo cotelê cinza, com os óculos levantados, calçados sobre a frente. Eu o observava com rosto tão inexpressivo como o seu. Alcançou a ver meus olhos iridescentes, esta pele que parece reluzente marfim e cabelo semelhante a uma surda explosão de luz branca?

Ou acaso, desperdiçada toda minha beleza, não fui nada mais que um obstáculo entre ele e seu sinistro objetivo?

Fugiu como um tiro. Já tinha baixado as escadas quando a anciã, profiriendo um grito, precipitou-se a fechar com um golpe a porta de madeira.

Saí a persegui-lo sem me preocupar com tocar terra firme, mas quando deu volta a esquina deixei que me visse um instante posado sob um farol da rua. Depois de andar uma meia quadra flutuei para ele -um borrão para os mortais-, mas não se tomou o trabalho de adverti-lo. Então estabeleci a seu lado e ouvi que lançava um gemido no instante em que punha-se a correr.

Seguimos durante várias quadras com o mesmo jueguito. Ele corria, detinha-se, via que me tinha detrás. O corpo lhe transpirava. De fato, o fino tecido sintético de sua camisa logo ficou transparente de suor e lhe pegava à carne suave e imberbe do peito.

Por último, chegou a seu decrépito hotel e a grandes limiares a escada. Eu me encontrava na habitação pequena do piso superior, quando ele entrou. Sem lhe dar tempo a gritar, tomei em meus braços. O fedor de seu cabelo sujo entrou por meu nariz misturado com o aroma ácido das fibras químicas da camisa. Mas já não me importava. Sentia-o robusto e morno em meus braços, um suculento capão. Seu peito se inchava contra mim; o aroma de seu sangue alagava meu cérebro. Senti como palpitava ao percorrer ventrículos, válvulas e copos penosamente estreitados. Lambi-a na carne tenra sob seus olhos.

Seu coração a ponto de estalar, pulsava trabalhosamente. Cuidado, com cuidado para não arrebentá-lo. Deixei que meus dente se cravassem na pele úmida de seu pescoço. Hmmm. Meu irmão, meu pobre irmão atordoado. Mas me resultou saboroso, suculento.

A fonte se abriu; a vida desse homem era um esgoto. Todas essas anciãs, esses anciões. Cadáveres que flutuavam na corrente e chocaram uns contra outros sem sentido no instante em que ele ficou fláccido em meus braços. Não foi divertido. Muito fácil. Sem sagacidade, sem malevolência. Tosco como lagarto me pareceu esse homem, tragando mosca detrás mosca. Deus santo, conhecer isto é conhecer a época em que os répteis gigantes dominavam a terra e, durante um milhão de anos, só seus olhos amarelos contemplaram a chuva ou o sol nascente.

Não importa. Soltei-o e ele deu uns tombos em silêncio. Eu nadava em seu sangue de mamífero. Bastante boa. Fechei os olhos e deixei que o líquido quente penetrasse em meu intestino, ou o que seja que haja agora neste corpo branco e forte. Tão exquisitamente torpe! Que fácil levantá-lo da confusão de jornais, enquanto a xícara volteada jorrava seu café frio sobre o tapete de poeirenta cor.

Dava-lhe uma sacudida para trás, tironeándolo do pescoço da camisa. Seus olhos grandes e vazios ficaram brancos. Logo, esse valentão, esse assassino de velhos e débeis, atirou-me cegamente uma patada e seu sapato roçou minha pantorrilha. Levantei-o, e o aproximei de novo a minha boca faminta, passei-lhe os dedos pelo cabelo e o senti ficar rígido como se minhas presas se afundaram em veneno.

Uma vez mais, o sangue alagou meu cérebro. Senti como eletrizava as venitas de minha cara. Senti-a pulsar até dentro de meus dedos, e uma coceira quente me correu pela coluna. Suguei uma e outra vez. Criatura pesada, substanciosa. Logo voltei a soltá-lo e, quando se afastou aos tombos, fui atrás dele, arrastei-o pelo piso, dava-lhe volta o rosto para mim, arrojei-o para frente, deixei que voltasse a lutar.

Estava-me falando em algo que devia ser linguagem mas não o era. Tratou de me empurrar, mas já não podia ver bem. E pela primeira vez o notei imbuído de uma trágica dignidade, de uma vaga expressão de fúria, cego como estava. Senti-me embelezado, envolto em velhos relatos, em lembranças de estátuas de gesso e Santos anônimos. Seus dedos quiseram cravar-se na impigem de meu sapato. Levantei-o e, quando esta vez lhe rasguei o pescoço, a ferida foi muito grande. Já estava terminado.

A morte chegou como uma trombada nas vísceras. Senti náuseas um instante e logo, simplesmente, o calor, a abundância, o brilho puro do sangue vivente, com essa última vibração de consciência que pulsava em todas minhas extremidades.

Desabei-me sobre sua cama imunda. Não sei quanto tempo estive aí tendido.

Cravei o olhar no teto baixo. Depois, quando me rodearam os aromas azedos e mofados da habitação, mais o fedor de seu corpo, levantei-me e saí me cambaleando, uma silhueta desajeitada como certamente tinha sido ele, estupidizándome nesses gestos mortais, na fúria e o ódio, no silêncio, porque não queria ser o leve, o alado, o viajante da noite. Queria ser humano, me sentir humano, e seu sangue me percorria inteiro. E nada era suficiente. Nem por indício!

Onde ficaram todas minhas promessas? As palmeiras maltratadas se sacodem contra as paredes de estuque.

-Ah, vejo que está de volta -disse-me ela.

Que voz profunda, forte, sem vacilações, tinha. achava-se de pé ante a feia poltrona rede a quadros, com seus gastos apoyabrazos, me observando depois de uns óculos com marco de metal, sustentando ainda a novela em sua mão. Sua boca era pequena, relatório, e deixava entrever dentes amarelados, horrível contraste com a misteriosa personalidade de sua voz, que não conhecia debilidade alguma.

Pelo amor de Deus, no que pensava ao me sorrir? por que não fica a rezar?

-Sabia que ia vir. -tirou-se os óculos e vi seus olhos frágeis. O que estava vendo? O que o fazia ver eu? E eu, que sei dirigir à perfeição todos esses elementos, fiquei tão desconcertado que me deu vontade de chorar. -Sim, sabia.

-Ah, sim? E como soube? -sussurrei ao tempo que me aproximava, desfrutando da estreiteza da pequena habitação.

Estendi meus braços com estes dedos monstruosos, muito brancos para ser humano mas fortes para lhe arrancar a cabeça, e medi sua garganta diminuta. Aroma de perfume Chantilly... ou algum outro aroma de farmácia.

-Sim -disse em tom ligeiro mas decidido-. Soube em todo momento.

-me beije, então. me ame.

O que apaixonada era, e que minúsculos seus ombros, que esplêndidos nesse angostamiento final, flor de tons amarelados mas cheia de fragrância ainda, veias de um azul claro sob sua pele flácida, pálpebras perfeitamente moldadas a seus olhos quando os fechou, pele que se deslizava sobre os ossos de seu crânio.

-Me leve a céu -disse. Do coração, saiu-lhe a voz.

-Não posso. Oxalá pudesse -ronronava-lhe eu no ouvido.

Estreitei-a em meus braços. Esfreguei o nariz contra o ninho suave de seu cabelo grisalho. Senti no rosto seus dedos como folhas secas, e um estremecimento frio me percorreu. Ela também tremia. Ah, cosita tenra e gasta; ah, criatura reduzida a pensamento e vontade com um corpo insustancial como frágil chama! Só um "traguito", Lestat, nada mais.

Mas era muito tarde e soube quando a primeira fervura se chocou contra minha língua. Estava-a sangrando. Certamente meus gemidos a tinham assustado, mas já não podia ouvir... Uma vez que isto começa, eles nunca ouvem os sons verdadeiros.

Me perdoe.

OH, querida!

Estávamos caindo juntos sobre o tapete, amantes em um emplastro de flores descoloridas. Vi ali o livro cansado, e o desenho da tampa, mas todo me pareceu irreal. Abracei-a com muito cuidado, por medo de que se quebrasse. Mas me sentia como uma casca vazia. A morte chegava depressa, como se a viejecita mesma viesse caminhando para mim por um corredor largo, em algum lugar extremamente particular e muito elegante de Nova Iorque; inclusive aqui acima se alcança para ouvir o trânsito, e o ruído surdo de alguma porta que se fecha de repente na escada, ao final do corredor.

-boa noite, querido -murmurou ela.

Estou ouvindo coisas? Como podia ainda articular palavras?

Quero-te.

-Eu também te quero, meu amor.

Ela estava parada no vestíbulo. Seu cabelo era avermelhado e seus bonitos cachos lhe caíam até os ombros. Sorria. Seus tacos eram os que tinham feito esse ruído seco e tentador sobre o mármore, mas agora, enquanto as dobras de sua saia de lã ainda se moviam, só havia silêncio. Olhava-me com uma expressão muito estranha e inteligente. Levantou um revólver pequeno e me apontou.

Que diabos faz?

Está morta. O disparo foi tão forte que em um determinado momento não pude ouvir nada mais que um zumbido. Achava-me tendido no piso com o olhar inexpressivo cravado no teto, sentindo aroma de pólvora em um corredor de Nova Iorque.

Mas estávamos em Miami. O relógio da anciã fazia tictac sobre a mesa. Do reaquecido coração do televisor me chegou a vocecita do Cary Amadurece lhe confessando ao Joan Fontaine que a amava. E Joan Fontaine ficava tão contente... porque antes tinha acreditado que pensava matá-la.

Eu também.

 

SOUTH BEACH. Novamente percorri a franja de néon, só que esta vez me afastei das ruas concorridas e cheguei até a areia, até o mar.

E assim segui até que já não houve ninguém perto, nem sequer os que vão passear à praia ou os nadadores noctâmbulos. Só a areia, onde a brisa já tinha limpo todas as pisadas em do dia e o grande mar noturno cor cinza, que vomitava seu fluxo interminável sobre a paciente costa. Que altos os céus visíveis, quão cheios de nuvens velozes e estrelas longínquas, recatadas.

O que tinha feito eu? Tinha matado à vítima do assassino; tinha tirado a vida à pessoa que devia salvar. Voltei onde ela estava, deitei-me com ela, tomei, e ela disparou o tiro invisível muito tarde.

E de novo me atacava a sede.

Mais tarde, tendi-a em sua cama prolixa, sobre o acolchoado de nylon; preguei seus braços e lhe fechei os olhos.

meu deus, me ajude. Onde estão meu Santos anônimos? Onde estão os anjos com suas asas de plumas para me transportar ao inferno? Quando efetivamente vêm, são eles quão último a gente vê? Quando nos inundamos no lago de fogo, ainda podemos vê-los subir ao céu? pode-se pretender uma última visão de seus trompetistas de ouro, de seus rostos que olham para cima e refletem o brilho do rosto de Deus?

O que sei eu do céu?

Comprido momento permaneci ali, contemplando a longínqua paisagem noturna de nuvens puras; logo, de novo as luzes dos hotéis flamejantes, os brilhos de faróis de automóveis.

Parado na calçada remota, um mortal solitário olhava em direção a mim; mas possivelmente não advertiu minha presença, figura minúscula ao bordo do imenso mar. Ao melhor só olhava por volta do mar tal como o tinha feito eu, como se a costa fora milagrosa, como se a água pudesse desencardir nossas almas.

Houve uma época em que o mundo era só mar. Cem milhões de anos, choveu! Mas agora o cosmos está infestado de monstros.

Seguia estando ali o mortal solitário que olhava. E pouco a pouco fui tomando consciência de que, do outro extremo da praia vazia e sua tênue escuridão, seus olhos se cravavam com fixidez em meus. Sim, olhava-me.

Não o pensei conscientemente; ou seja que o olhava só porque não tomava o trabalho de me dar volta para outro lado. Mas logo experimentei uma sensação estranha, desconhecida até esse momento.

Quando começou, senti uma leve vertigem, seguido de um formigamento que me cruzava o tronco e, logo, as extremidades. Tive a impressão de que as pernas me voltavam mais estreitas, mais estreitas, que lentamente foram pressionando sua substância interior. De fato, foi muito vivida a sensação de que as pernas me apertavam e podiam terminar saindo-se me E isso me maravilhou; encontrei-lhe algo em certo modo fascinante, principalmente para um ser tão frio e indiferente a toda sensação como sou eu. Resultou-me irresistível, tal como me é irresistível beber sangue, embora não era algo tão visceral.

Além disso, assim que o analisei notei que já me tinha ido.

Estremeci-me. Teria sido todo produto de minha imaginação? Seguia contemplando ao distante mortal, um pobre tipo que me devolvia o olhar sem suspeitar sequer quem nem o que era eu.

Havia um sorriso em sua cara jovem, insegura e cheia de insensata perplexidade. E pouco a pouco fui me dando conta de que já tinha visto antes esse rosto. Mas me surpreendeu advertir que ele me reconhecia, como também sua estranha atitude de expectativa. de repente levantou a mão direita e me fez gestos.

Desconcertante.

Mas eu conhecia esse mortal. Não, mais preciso seria dizer que mais de uma vez o tinha vislumbrado. Logo, com total nitidez, vieram-me as únicas lembranças certas.

Em Veneza, revoando pelo bordo da praça São Marcos, e meses depois em Hong Kong, perto do mercado noturno. E em ambas as oportunidades eu tinha reparado expressamente nele porque antes ele tinha reparado em mim. Sim, aí estava o mesmo corpo alto, fornido, o cabelo castanho igual de grosso e ondulado.

Não era possível. Ou teria que dizer provável? Porque ali estava!

Uma vez mais fez gesto de me saudar e logo, muito depressa, torpemente, veio correndo para mim. Me aproximava cada vez mais com seu andar desajeitado, enquanto eu o olhava com obstinado assombro.

Li-lhe a mente. Nada. Travada por completo. Só seu rosto sorridente se voltava cada vez mais claro, posto que ia entrando no resplendor luminoso do mar. O aroma de seu cabelo e o de seu sangue me alagaram. Sim, estava aterrorizado, e ao mesmo tempo com uma enorme excitação. Muito tentador me resultou de repente... outra vítima que quase se arrojava ela sozinha em meus braços.

Brilhavam seus grandes olhos pardos. E o que dente brilhantes, também.

deteve-se um metro antes de chegar, com o coração que lhe pulsava desordenadamente, e me tendeu um sobre grosso e enrugado com sua mão tremente.

Eu segui olhando-o sem transmitir nada, nem orgulho ferido nem respeito pela incrível façanha de que me tivesse encontrado aí, de que tivesse a coragem. Confesso que, a essa altura, já tinha fome de novo para elevá-lo no ato e voltar a me alimentar sem pensá-lo duas vezes. Já não raciocinava mais. Só via sangue.

Como se se tivesse precavido, como se o tivesse percebido com toda claridade, ficou rígido, lançou-me um olhar de indignação, arrojou o sobre a meus pés e fugiu aos saltos pela areia solta. Dava a impressão de que as pernas podiam cair e de fato quase se desaba no momento em que girou sobre seus talões e pôs-se a correr.

A sede me aplacou um tanto. Talvez eu não raciocinava, mas titubeei, e para isso faz falta pensar. Quem era esse filho de puta audaz?

Procurei lhe ler de novo a mente, sem êxito. Muito estranho, na verdade. Mas há mortais que se ocultam naturalmente, embora não tenham a menor suspeita de que possa haver outro lhes espiando os pensamentos.

Seguiu correndo com desespero, de maneira pouco agraciada, e desapareceu na penumbra de uma rua lateral, sempre afastando-se de mim.

Passaram uns instantes.

Já não podia captar mais seu aroma; salvo o do sobre, que tinha ficado onde ele o atirou.

O que podia significar esse episódio? Ele sabia com certeza quem era eu, sem lugar a dúvidas. o de Veneza e o de Hong Kong não tinha sido coincidência e me demonstrava isso ao menos com seu repentino temor. Mas tive que sorrir ao pensar em sua valentia. Que incrível, ficar a seguir a alguém como eu.

tratava-se de algum fanático alienado, que devia golpear as portas do templo na esperança de que eu lhe desse o Sangue Misterioso só por compaixão ou como prêmio por sua temeridade? Todo isso me produziu uma repentina sensação de irritação, mas logo já não me importou.

Ao recolher o sobre notei que vinha em branco e sem fechar. Dentro encontrei, embora pareça mentira, um conto curto, talvez recortado de um livro em edição rústica.

Eram várias folhas grampeadas no ângulo superior esquerdo, e não traziam nenhuma notita pessoal. O autor do conto era um ser encantador de nomeie Howard P. Lovecraft a quem eu conhecia muito bem, escritor de textos sobrenaturais e macabros. Mais ainda, conhecia também o conto e nunca poderia esquecer seu título: "The Thing on the Doorstep". Me deu vontade de rir.

"The Thing on the Doorstep". Sorri. Sim, recordava aquela trama engenhosa, divertida.

Mas, por que esse estranho mortal me dava semelhante conto? Ridículo. Então voltei a me zangar, ou ao menos a me zangar tudo o que me permitiu isso a tristeza.

Guardei com gesto distraído o sobre no bolso e fiquei pensando. Sim, o tipo decididamente se foi. Já nem sequer podia recolher sua imagem tomando a de outra pessoa.

 

Ah, que pena que não tivesse vindo a me tentar alguma outra noite em que não tivesse a alma fatigada, em que pudesse lhe haver demonstrado um pouco de interesse, tanto como para poder averiguar o que havia detrás de todo isso.

Mas já tinha a impressão de que tinham transcorrido eones desde que ele chegou e se foi. A noite estava vazia, salvo pelo rugido da grande cidade e o estrépito apagado do mar. Até as nuvens haviam raleado e desaparecido. O céu parecia infinito e inquietantemente sereno.

Levantei meus olhos para as duras estrelas brilhantes e deixei que o ruído surdo do fluxo me envolvesse. Dirigi um último olhar de desconsolo em direção às luzes de Miami, a cidade que tanto amava.

Logo me elevei, com a mesma simplicidade com que ascendem os pensamentos, tão depressa que nenhum mortal pôde ter visto essa figura que subía cada vez mais alto, que atravessava o vento ensurdecedor, até que a grande extensão da cidade foi só uma galáxia distante que lentamente desapareceu da vista.

Que frio era esse vento alto que não conhece de estações... Em meu interior, o sangue já estava deglutido como se nunca tivesse existido seu doce tibieza, e logo mãos e cara ficaram embainhados em um frio sólido. E essa capa se internou sob meu traje frágil até cobrir toda minha pele.

Mas não me fazia doer. Ou digamos que não me causava muito dor.

Melhor dizendo, que anulou toda sensação de comodidade. Era algo lúgubre, deprimente, a ausência de tudo o que faz valiosa a existência: as labaredas de tibieza de fogos e carícias, de beijos e brigas, de amor e ânsias de sangue.

OH, os deuses astecas têm que ter sido vorazes vampiros, para poder convencer aos pobres diabos humanos de que o universo teria que terminar se não corria sangue. Imagino mesmo dirigindo-o tudo desde um desses altares, fazendo estalar os dedos para que me trouxessem outro, e outro mais, apertando esses corações chorreantes de sangue fresca e me levando isso aos lábios como cachos de uvas.

Girei, dava voltas com o vento, descendi um que outro metro, logo voltei a ascender. Jogava a estirar os braços, depois os deixava cair aos flancos. Pu-me de barriga para cima como um nadador seguro e voltei a contemplar as estrelas cegas e indiferentes.

Utilizando só o pensamento me impulsionei para o este. A noite ainda se estendia sobre a cidade de Londres, embora os relógios marcavam já o início do amanhecer. Londres.

Havia tempo para me despedir do David Talbot, meu amigo mortal.

Vários meses tinham passado desde nosso último encontro no Amsterdam e eu me tinha partido com atitude algo grosseira, envergonhado por isso e por lhe causar tantas moléstias. Após, espiei-o, mas não o estorvei. E sabia que agora devia ir ver o qualquer fosse meu estado de ânimo. Sem lugar a dúvidas ele quereria que eu fora. Era o que correspondia, o mais adequado.

Pensei um momento em meu amado Louis. Certamente se encontrava em sua ruinosa casita com jardim de Nova Orleáns, lendo à luz da lua como fazia sempre, ou rendendo-se a uma te titilem vela se a noite era escura e nublada. Mas já era muito tarde para me despedir dele... Se algum ser dos nossos o podia entender, era Louis, disse-me. Embora possivelmente o contrário estivesse mais perto da verdade...

Para Londres me dirigi.

 

Situada nos subúrbios de Londres, em um imenso parque de vetustos carvalhos, encontra-se a Casa Matriz da Talamasca, com seus tetos em pendente e seus jardins talheres por uma grosa capa de neve limpa.

trata-se de um formoso edifício de quatro novelo, com ventanales divididos e chaminés que eternamente despedem fios de fumaça para a noite.

É um sítio de bibliotecas e salas com paredes recubiertas por boiserie, dormitórios de tetos artesonados e comilões silenciosos como os de uma ordem religiosa; seus integrantes são devotos como sacerdotes e monjas e possam lhe ler a um a mente, ver sua aura, lhe predizer o futuro na palma da mão e conjeturar quem foi um em vistas passadas.

Bruxos? Bom, alguns possivelmente o sejam, mas em geral são simples eruditos que dedicaram sua vida a estudar o oculto em todas suas manifestações. Alguns sabem mais que outros. Alguns acreditam mais que outros. Por exemplo, há membros desta Casa Matriz -e de outras, localizada-se no Amsterdam, em Roma ou nas profundidades dos pântanos da Luisiana- que investigaram a vampiros e lobisomens, que padeceram as faculdades telequinésicas potencialmente mortíferas de certos mortais que sabem originar incêndios ou causar a morte, que falaram com fantasmas e receberam respostas deles, que lutaram contra entes invisíveis e ganharam... ou perderam.

A ordem perdura há mais de mil anos. Em realidade é mais antiga, mas sua origens estão veladas pelo mistério. Ou, para ser mais concretos, David não me quer contar isso.

De onde tira o dinheiro a Talamasca? Há em suas abóbadas uma assombrosa quantidade de ouro e jóias. Seus investimentos nos grandes bancos europeus são legendárias. Possui propriedades em todas as cidades onde está radicada, que alcançariam para manter-se embora não dispusera de nenhum outro bem. E, por último, estão os diversos tesouros de arquivo -quadros, estátuas, tapeçarias, móveis e ornamentos antigos-, todos eles adquiridos em relação com distintos casos misteriosos e aos quais não atribui valor monetário algum, já que seu valor histórico excede com acréscimo qualquer lotação que se pudesse realizar.

A biblioteca só vale um Peru em qualquer moeda terrestre. Há ali manuscritos em todos os idiomas, alguns provenientes da famosa biblioteca da Alejandría incendiada séculos atrás, e outros das bibliotecas dos mártires lhes provar, cuja cultura se extinguiu. Há textos do antigo o Egito, e com tal de poder lhes jogar uma olhada, há arqueólogos que estariam dispostos a cometer um assassinato. Há textos escritos por seres sobrenaturais de várias espécies conhecidas, inclusive vampiros. Há nesses arquivos cartas e documentos redigidos por mim.

Nenhum desses tesouros me interessa nem me interessou jamais. OH, em minhas épocas mais festivas joguei com a idéia de entrar pela força nessas criptas e recuperar várias relíquias, antes pertencentes a imortais que amei. Sei que esses eruditos conservam em suas coleções objetos que eu mesmo abandonei: tudo o que havia em certas habitações de Paris quase a fins do último século, os livros e o mobiliário de minha velha casa da mastreada rua de Bairro Jardim, debaixo da qual dormi durante décadas sem emprestar atenção a quem caminhava acima, pelos pisos podres. Só Deus sabe que mais resgataram que as fauces do tempo, que todo o consome.

Mas já não me interessavam essas coisas. Por mim, que ficassem com tudo o que tinham salvado.

O que me interessava era David, o Superior General, que se fez meu amigo da noite em que, sem a menor cortesia, entrei impulsivamente pela janela de seus aposentos, em um quarto piso.

Que valente e sereno esteve. E como eu gostava de olhar a esse homem alto, seu rosto sulcado por rugas, seu cabelo de um cinza resistente. Perguntei-me se um homem jovem poderia alguma vez possuir tal beleza. Mas o fato de que me conhecesse... que soubesse o que eu era, esse foi o maior encanto que lhe encontrei.

O que aconteceria te convertesse em um dos nossos. Sabe que poderia fazê-lo...

Nunca vacilou em sua convicção. "Jamais; nem em meu leito de morte aceitarei", disse. Mas lhe fascinava minha mera presença, coisa que não podia ocultar, embora conseguiu me ocultar seus pensamentos desde essa primeira vez.

Tanto é assim, que sua mente se converteu em uma espécie de caixa forte cuja chave se perdeu. Por isso fiquei só com sua expressão facial, radiante e afetuosa, e com sua voz suave, culta, capaz de convencer ao diabo de que se comportasse bem.

Era já o amanhecer e, quando ia chegando à Casa Matriz em meio da neve do inverno inglês, dirigi às conhecidas janelas do David; mas encontrei as habitações vazias.

Rememorei nosso último encontro. teria ido de novo ao Amsterdam?

Essa última viagem tinha sido inesperado, ao menos disso me inteirei quando devi inquirir por ele, antes de que seus ardilosos companheiros parapsicólogos notassem que eu os espiava telepáticamente -coisa que fazem com notável eficiência- e a toda pressa fechassem suas mentes.

Ao parecer, uma diligência muito importante tinha requerido a presença do David na Holanda.

A Casa Matriz holandesa era mais antiga que a de Londres e só o Superior General tinha chave para acessar a algumas de suas abóbadas. Ao David lhe encomendou que localizasse um retrato pintado pelo Rembrandt -um dos tesouros mais valiosos em poder da ordem-, fizesse-o copiar e enviasse a cópia a seu amigo íntimo Aaron Lightner, quem a necessitava para uma muito importante investigação paranormal que se estava levando a cabo nos Estados Unidos.

Eu tinha seguido ao David até o Amsterdam e ali o espiei, me prometendo para meus adentros não incomodá-lo, como tantas vezes tinha feito.

Permita me relatar agora essa anedota.

Quando, ao anoitecer, saiu a caminhar com passo ágil, segui-o de uma distância prudencial, disfarçando meus pensamentos com a mesma habilidade com que ele sempre disfarçava os seus. Que imponente sua figura sob os olmos que flanqueavam o canal Singel cada vez que se detinha para admirar as velhas casas holandesas, estreitas, de quatro pisos, com seus altos gabletes e suas janelas onde não ficavam cortinas, supostamente para o prazer dos traunsentes.

Quase no ato, detectei uma mudança nele. Levava como sempre sua fortificação, embora era evidente que ainda não o necessitava, e com ele se dava tapinhas no ombro. Mas o notei caviloso; vi nele uma profunda insatisfação. E seguiu caminhando hora detrás hora, como se o tempo não tivesse a menor importância.

Logo compreendi que ia sumido em suas lembranças, e de tanto em tanto me engenhava isso para captar alguma imagem mordaz de sua juventude nos trópicos, inclusive chamas de uma selva luxuriante, tão distinta dessa fria cidade setentrional onde certamente nunca fazia calor. Eu ainda não tinha tido o sonho do tigre. Não sabia o que significava.

Foi lhe exaspere pelo fragmentário. A capacidade do David de manter ocultos seus pensamentos era simplesmente extraordinária.

Entretanto, seguiu caminhando, por momentos como se alguém o impulsionasse, e eu o segui, me sentindo estranhamente reconfortado com apenas vê-lo umas quadras diante de mim.

Desde não ter sido pelas bicicletas que a cada momento passavam zumbindo a seu lado, teria parecido um homem jovem. Mas as bicicletas o sobressaltavam e tinha o típico medo dos velhos de que alguém os golpeie e os faça cair. Olhava com zango aos jovens ciclistas e logo voltava a abstrair-se em seus pensamentos.

Retornava à Casa Matriz indevidamente quando já quase tinha amanhecido. E logo, com toda segurança poria-se a dormir a maior parte do dia.

Outra noite, David já estava caminhando quando me pus ao mesmo tempo dele, e uma vez mais parecia não ter destino fixo. Passeava pelas ruas pavimentadas do Amsterdam mostrando o mesmo prazer que lhe produzia Veneza; e com razão, porque ambas, cidades densas e de tons escuros, mantiveram um encanto similar em que pese a seus notáveis diferencia. O fato de que a uma fora católica, exuberante e plena de uma simpática decadência, e a outra protestante e por fim poda e eficiente, de vez em quando me arrancava um sorriso.

De noite seguinte voltou a sair; ia assobiando sozinho enquanto cobria os quilômetros a passo vivo e logo me dava conta de que estava esquivando a Casa Matriz. Mais ainda, parecia ir esquivando tudo, e quando, por acaso, um velho amigo dele -também inglês e membro da ordem- encontrou-se inesperadamente com ele perto de uma livraria, foi evidente, pela conversação, que David vinha comportando-se de maneira estranha desde fazia tempo.

Os britânicos som muito corteses para comentar e diagnosticar essas questões. Mas o que deduzi logo depois de ouvir semelhante desdobramento de diplomacia foi que David estava descuidando suas tarefas de Superior General. passava-se o dia inteiro fora da Casa Matriz; lhe recriminava que, estando na Inglaterra, fora cada vez mais freqüentemente a seu lar ancestral se localizado nos Cotswolds. O que acontecia?

David subtraiu importância a essas insinuações, como se não lhe interessasse a conversação. Fez uma breve alusão a que a Talamasca podia governar-se só durante um século, que não necessitava de um Superior General dado o muito disciplinados, tradicionalistas e abnegados que eram seus integrantes, e logo partiu para percorrer a livraria, onde adquiriu uma tradução ao inglês do "Fausto" do Goethe. Depois jantou sozinho em um pequeno restaurante indonésio, mas pôs o livro parado ante seus olhos e foi lendo as páginas à medida que consumia seu saboroso banquete.

Ao vê-lo ocupado com a faca e o garfo, eu voltei para a livraria e comprei um exemplar do mesmo título. Que obra tão estranha!

Não posso dizer que a tenha entendido, nem que saiba por que a estava lendo David. De fato, dava-me medo que a razão pudesse ser óbvia e possivelmente por isso rechacei a idéia no ato.

Entretanto, eu gostei; sobre tudo o final, é obvio, quando Fausto se vai ao céu. Não acredito que tenha ocorrido isso nas lendas mais antigas. Fausto sempre se ia ao inferno. Eu o atribuo ao otimismo romântico do Goethe e ao feito de que tivesse sido tão velho quando escreveu o final. O trabalho dos muito anciões sempre é vigoroso e fascinante, extremamente digno de ser analisado, quanto mais porque muitos artistas perdem sua fibra criativa antes de chegar à senilidade.

Ao amanhecer, quando David desaparecia dentro da Casa Matriz, eu perambulava sozinho pela cidade. Queria conhecê-la porque ele a conhecia, porque Amsterdam era parte de sua vida.

Percorri o imenso Rijksmuseum, contemplei os quadros do Rembrandt, pintor que sempre eu adorei. Introduzi-me como um ladrão na casa do Rembrandt da rua Jodenbree, convertida agora em um pequeno mausoléu aberto ao público durante o dia, e caminhei pelas callecitas estreitas da cidade sentindo o resplendor de antigas épocas. Amsterdam é um lugar cativante, povoado de gente jovem proveniente de toda a nova a Europa homogeneizada, uma cidade que nunca dorme.

É provável que, de não ser pelo David, nunca tivesse ido ali. Essa cidade nunca tinha gozado de minhas preferências. Agora, em troca, era-me agradável, ideal para vampiros por causa de suas nutridas multidões noturnas, mas, certamente, era ao David a quem queria ver. Compreendi que não podia ir sem trocar ao menos umas palavras com ele.

Por último, ao cabo de uma semana de minha chegada o encontrei no vazio Rijksmuseum pouco depois do anoitecer, sentado em um banco frente ao grande quadro dos Síndicos da corporação dos pañeros do Amsterdam.

Sabia de algum jeito David que eu teria que estar aí? Impossível; entretanto, aí estava.

E pela conversação que manteve com o guarda -que nesse momento se despedia dele- era evidente que sua venerável ordem de retrógrados intrometidos tinha colaborado com as artes em grande medida, nas diversas cidades onde se assentavam. Por isso lhes era fácil entrar nos museus a contemplar seus tesouros quando o ingresso ao público não estava permitido.

E pensar que eu tinha que entrar nesses lugares como um malviviente!

Quando cheguei aonde estava meu amigo, reinava um silêncio total nas salas de mármore de altos tetos. Vi-o sentado em um banco comprido de madeira, sustentando com ar indiferente o exemplar do Fausto, já com as pontas muito dobradas e cheio de sinalizadores.

Tinha o olhar cravado no quadro, esse onde aparecem vários holandeses característicos que, reunidos ante uma mesa, tratam sem dúvida seus assuntos comerciais e, ao mesmo tempo, observam serenamente ao espectador sob a asa larga de seus grandes chapéus negros. Isto que digo não é absolutamente o efeito total do quadro. Os rostos som de uma grande beleza, cheios de sabedoria, bondade e uma paciência quase angélica. Quase poderia dizer que esses personagens se parecem mais a anjos que a homens do comum.

Dão a impressão de possuir um grande secreto, e que se todo mundo soubesse, não haveria mais guerras nem maldade sobre a terra. Como foi que essas pessoas se fizeram membros da corporação de pañeros do Amsterdam nos anos 1600? Mas me estou adiantando no relato...

Quando lentamente saí das sombras e me aproximei dele, David deu um coice. Sentei-me no banco, a seu lado.

Meu traje era o de um vagabundo, porque em realidade não tinha alojamento no Amsterdam e o vento me tinha despenteado.

Fiquei muito quieto comprido momento, abrindo minha mente com um ato de vontade semelhante a um suspiro humano, e tratei de lhe fazer saber quanto me preocupava seu bem-estar e como, por seu próprio bem, tinha tratado de deixá-lo em paz.

O coração lhe pulsava depressa. Seu rosto, quando me voltei para olhá-lo, no ato se encheu de bondade.

Estendeu a mão direita e tomou o braço.

-Me alegro muito de verte, como sempre.

-OH, mas te tenho feito mal. Sei que é assim. -Não queria lhe dizer que o tinha seguido, que tinha escutado a conversação com seu companheiro, nem tampouco mencionar o que tinha visto com meus próprios olhos.

Jurei não atormentá-lo mais com minha eterna pergunta. E entretanto, vi a morte quando o olhei, possivelmente mais ainda por causa de sua inteligência e sua jovialidade, à força de seus olhos.

Dirigiu-me uma larga, pensativo olhar; ato seguido retirou sua mão e seus olhos voltaram a posar-se no quadro.

-Existem vampiros com essas caras? -perguntou, ao tempo que assinalava com um gesto aos homens que nos observavam do tecido-. Refiro-me à sabedoria e a compreensão que se adverte nesses rostos, algo mais indicativo de imortalidade que um corpo preternatural anatomicamente dependente da possibilidade de beber sangue humano.

-Vampiros com essas caras? -repeti-. David, não seja injusto. Nem sequer há homens com tais caras. Jamais os houve. Note em qualquer das obras do Rembrandt. É um absurdo supor que possam ter existido pessoas assim, e mais ainda que Amsterdam tenha estado cheio delas nessa época, que todo homem ou mulher com que se topava fora um anjo. Não; esses rostos são os do próprio Rembrandt; e Rembrandt, é obvio, é imortal.

David sorriu.

-Não é verdade o que diz. E que solidão extrema emana de sua pessoa. Não compreende que não posso aceitar seu dom? E se o aceitasse, o que pensaria de mim? Seguiria desejando minha companhia? Desejaria eu a tua?

Quase não ouvi essas últimas palavras. Estava olhando o quadro, esses homens que realmente pareciam anjos. Invadiu-me uma irritação surda e não quis ficar mais aí. Eu tinha jurado solenemente não atacá-lo e, apesar disso, ele se tinha defendido de mim. Não, não devi ter ido.

Espiá-lo sim, mas não ficar mais do devido. E uma vez mais fiz gesto de ir.

Isso o enfureceu. Ouvi retumbar sua voz no amplo espaço vazio.

-Não é justo que te parta desta maneira! É decididamente grosseiro que o faça! É que não tem honra? E além disso da honra perdeste os maneiras? -de repente se interrompeu, porque eu não estava perto -foi como se me tivesse evaporado-, e ficou falando sozinho, em voz alta, no museu imenso e frio.

Senti vergonha, mas me tinha ofendido muito, embora não sei bem por que. O que lhe tinha feito a esse ser? Como me arreganharia Marius por isso!

Perambulei pelo Amsterdam durante horas. Furtei papel de escrever grosso, do tipo pergaminho, que é o que mais eu gosto, e uma lapiseira automática de ponta fina, dessas que arrojam tinta todo o tempo; depois procurei, no antigo bairro de prostitutas e jovens drogados, um botequim ruidoso e sinistro onde poder escrever uma carta ao David, um lugar onde ninguém repararia em mim sempre e quando conservasse um jarro de cerveja a meu lado.

Não sabia o que ia pôr lhe; quão único queria era lhe pedir perdão por minha conduta e lhe dizer que algo tinha afetado minha alma ao contemplar o quadro do Rembrandt; por isso, em um estilo pressuroso, compulsivo, escrevi esta sorte de narração:

Tem razão. Abandonei-te de maneira desprezível. Pior ainda, covarde. Prometo-te que, quando voltarmos a nos encontrar, deixarei-te dizer tudo o que queira.

Tenho uma teoria própria sobre o Rembrandt. passei largas horas estudando os quadros deles que há em várias partes -no Amsterdam, Chicago, Nova Iorque ou em qualquer lugar que encontre um- e acredito te haver dito que não podem ter existido tantas almas boas como as obras do Rembrandt nos querem fazer acreditar.

Esta é minha teoria e, quando às, por favor tenha presente que dá capacidade a todos os elementos envoltos. E esta característica de lhes dar capacidade estava acostumada ser a medida da elegância de uma teoria... antes de que a palavra "ciência" adquirisse o significado que tem hoje.

Acredito que, de jovem, Rembrandt vendeu sua alma ao diabo. Foi um acordo singelo. O diabo lhe prometeu convertê-lo no pintor mais famoso de sua época, e lhe enviou hordas de mortais para seus quadros. Concedeu-lhe fortuna, deu-lhe uma formosa casa no Amsterdam, uma mulher e logo uma amante, porque sabia que à larga ia se ficar com a alma do pintor.

Mas o encontro com o diabo trocou ao Rembrandt. depois de ver provas tão inegáveis da existência do mal, obcecou-se com a pergunta: "O que é o bem?". Rastreou no semblante de seus sujeitos sua divindade interior e, sobressaltado, acreditou ver a faísca dessa divindade nos homens mais indignos.

Foi tal sua destreza -me compreenda, por favor, que a destreza não a obteve do diabo mas sim a tinha de antes-, que não só viu essa bondade mas também pôde pintá-la; pôde deixar que seu conhecimento dela, sua fé nela, afluíra em toda sua obra.

Com cada retrato que fazia, ia penetrando mais e mais fundo na graça e bondade do ser humano. Compreendeu a capacidade de compaixão e sabedoria que habita em toda alma. À medida que continuava, sua destreza ia em aumento; a chama do infinito se voltou cada vez mais sutil; sua índole, mais particular; e mais grandiosa, serena e magnífica cada uma de suas obras.

Nenhum dos rostos que pintou eram de carne e osso. Eram semblantes espirituais, retratos do que há dentro do corpo do homem ou a mulher; visões do que era essa pessoa em seu momento mais sublime, no que estava destinada a converter-se.

Por isso é que os comerciantes da Corporação dos Pañeros se assemelham aos Santos mais antigos e sábios de Deus.

Mas em nenhum lado se nota tão às claras essa profundidade espiritual como em seus auto-retratos. E sem dúvida tem que saber que deles nos deixou ao redor de cento e vinte.

por que supõe que pintou tantos? Foram sua prece a Deus para que reparasse no avanço desse homem que, por ter observado atentamente a outros como ele, tinha sofrido uma transformação religiosa total. "Esta é minha visão", dizia a Deus.

Para o final da vida do pintor, o diabo começou a suspeitar. Não queria que seu esbirro criasse obras tão magníficas, tão cheias de amor e bondade. Ele acreditava que os holandeses eram pessoas materialistas e, por fim, mundanas. Mas nesses quadros cheios de esplêndidos trajes e custosas pertences brilhava a prova inegável de que o ser humano é completamente distinto de qualquer outro animal do cosmos, que é uma mescla apreciada de carne e fogo imortal.

Bom, Rembrandt sofreu todos os ultrajes que lhe enviou o diabo. Perdeu sua formosa casa. Perdeu a seu amante e, ao final, perdeu inclusive a seu filho. Não obstante, seguiu pintando sem cessar, sem o menor rastro de amargura ou perversidade; e nunca deixou de pôr amor em suas obras.

Por último, quando estava em seu leito de morte, o diabo revoava feliz a seu redor, preparado para apoderar da alma do Rembrandt. Mas anjos e Santos imploraram a Deus que interviesse.

"Quem no mundo sabe de bondade mais que ele?", perguntaram, assinalando ao pintor moribundo. "Quem mostrou mais que este artista? Quando queremos ver quão divino há no homem, olhamos seus quadros."

Então Deus quebrou o pacto entre o Rembrandt e o diabo. levou-se para si a alma do pintor, e o demônio, ao que não fazia muito tempo Fausto tinha enganado de igual maneira, enlouqueceu de indignação.

Bom, então enterraria a vida do Rembrandt na escuridão. encarregaria-se de que todas seus pertences e perseveranças escritas fossem devoradas pelo fluxo do tempo. E é obvio, é por isso que não sabemos quase nada sobre a verdadeira vida do artista, nem que classe de pessoa era.

Mas o diabo não pôde decidir a sorte dos quadros. Por mais que o tentou, não obteve que a gente os queimasse, que os jogasse no lixo ou os fizesse a um lado demonstrando preferência por pintores mais novos e de moda. De fato, ocorreu algo curioso: Rembrandt se converteu no mais admirado, o melhor pintor de todos os tempos.

Esta é minha teoria sobre ele e esses rostos.

Agora bem: se eu fosse mortal, escreveria uma novela sobre o Rembrandt centrando-a neste tema. Mas não sou mortal. Não posso salvar minha alma mediante obras de arte nem obras de bem. Sou uma criatura semelhante ao demônio, com uma diferença: eu adoro os quadros do Rembrandt!

Entretanto, parte-me a alma olhá-los. Entristeceu-me muito verte aí, no museu. E tinha toda a razão em pensar que não há vampiros com rostos como os Santos da Corporação dos Pañeros.

Por isso te abandonei tão descortésmente. Não foi por fúria demoníaca; só foi por pesar.

Uma vez mais te prometo que, quando voltarmos a nos encontrar, deixarei-te dizer tudo o que queira.

Anotei ao pé da carta o número de meu agente de Paris junto com o domicílio postal, como fazia sempre que escrevia ao David, mas ele nunca me respondeu.

Logo iniciei uma espécie de peregrinação com o propósito de voltar a ver as obras do Rembrandt nas grandes colecione mundiais. Não vi em minhas viagens nada que me tirasse meu convencimento a respeito da bondade do pintor. A peregrinação resultou mas bem uma penitência, porque aferrei a minha idéia sobre o Rembrandt. Mas também renovou minha intenção de não incomodar ao David nunca mais.

Depois tive o sonho. Tigre, tigre... David em perigo. Despertei sobressaltado em minha poltrona, na pequena choça do Louis... como se uma mão me tivesse sacudido a maneira de advertência.

Na Inglaterra, a noite quase tinha terminado. Tinha que me apressar. Mas por fim encontrei ao David em um pequeno botequim de um pueblito dos Cotswolds, a que só se pode acessar por um caminho estreito e perigoso.

Lendo a mente de quem o rodeava, muito em breve me inteirei de que era seu povo natal, próximo a sua antiga herdade, uma aldeia diminuta com edificação do século XVI e um botequim que na atualidade dependia da veleidade dos turistas. David a tinha restaurado de seu próprio bolso visitando-a cada vez mais freqüentemente para escapar da vida em Londres.

Um lugar decididamente misterioso!

Entretanto, quão único fazia David era beber sem mesura seu amado uísque escocês e desenhar em servilletitas a figura do diabo. Mefistófeles com seu alaúde? Satanás com chifres dançando à luz da lua? Certamente o que recebi a distância foi seu abatimento, ou mas bem a inquietação de quem o observava. O que eu tinha captado era a imagem dele na mente dos outros.

Senti desejos de lhe falar mas não me atrevi por medo a armar muito revôo no botequim, onde o preocupado proprietário e seus dois robustos sobrinhos permaneciam acordados, fumando seus cheirosos cachimbos, só como comemoração à presença augusta do lorde local, que se estava embebedando como um beduíno!

Fiquei mais ou menos uma hora espiando pela ventanita. Depois fui.

Agora, transcorridos muitos, muitos meses, enquanto caía a neve sobre Londres, enquanto caía em calados flocos sobre a fachada da Casa Matriz da Talamasca, busquei-o, sumido em um estado de embotamento, pensando que se a alguém no mundo tinha que ver, era ele. Espiei a mente de todos os membros, dormidos e os acordados. Avivei-os. Ouvi-os emprestar atenção com a mesma claridade que, se ao levantar-se da cama, tivessem aceso a luz.

Mas pude averiguar o que queria antes de que fechassem suas mentes.

David se tinha partido ao imóvel de sua herdade nos Cotswolds, que ficava próxima a esse povo estranho e seu estranho botequim.

Bom, podia localizar a casa, não? Para ali parti em sua busca.

A neve caía mais copiosa enquanto deslocava a ras do chão, com frio, zangado, apagado já toda lembrança do sangue que tinha bebido.

Outros sonhos foram a minha mente, como está acostumado a me ocorrer nos invernos rigorosos: as neves duras, miseráveis, de minha infância humana, gelada-las habitações de pedra do castelo paterno, o fogo tênue, meus grandes mastins que roncavam a meu lado no montão de feno, me dando abrigo e calor.

A esses cães os tinha assassinado durante minha última caçada de lobos.

Eu não gostava de recordá-la, mas sempre era prazenteiro pensar que estava novamente aí -com o aroma puro do fogo suave e desses poderosos cães tombados contra mim, e que eu estava vivo, verdadeiramente vivo!- e que a caçada nunca tinha tido lugar. Eu nunca tinha ido a Paris, nunca seduzi ao Magnus, esse vampiro poderoso e demente. A pequena habitação de pedra se achava impregnada do agradável aroma dos cães e agora podia dormir ao lado deles e me sentir seguro.

Por último, aproximei-me de uma pequena mansão isabelina, uma muito belo construção de pedra com tetos de muita queda, gabletes estreitos e janelas embutidas de grossos vidros, muito mais reduzida que a Casa Matriz embora grandiosa em sua escala.

Só algumas janelas se encontravam iluminadas, e ao me aproximar vi que se tratava da biblioteca e que ali estava David, sentado junto a um fogo lhe chispem.

Tinha na mão seu sabido jornal íntimo encadernado em couro, e estava escrevendo muito depressa com uma lapiseira. Não reparava absolutamente em que alguém o observava. de vez em quando consultava outro livro forrado em couro que havia a um lado, sobre uma mesita. Resultou-me fácil me dar conta de que era a Bíblia cristã, com seus dobre colunas de letras miúdas e suas páginas de canto dourado, além da cinta que obrava de sinalizador.

Com mínimo esforço notei que era a Gênese o que lia, do que aparentemente tomava apontamentos. Também tinha à mão sua exemplar do "Fausto". Que diabos lhe interessava nesses textos?

A habitação estava recubierta de livros. Um único abajur o iluminava por cima do ombro. A biblioteca se parecia com muitas similares dos climas nórdicos: confortável e acolhedora, de tetos baixos com vigas e cômodas poltronas antigas de couro.

Mas o que a fazia atípica eram as relíquias de uma existência vivida em outro clima. Estavam aí as lembranças desses anos rememorados.

Sobre o lar aceso, a cabeça de um leopardo a bolinhas e, sobre a parede da direita, a enorme cabeça negra de um búfalo. Numerosas estatuetas hindus de bronze estavam disseminadas em qualquer parte, em suportes e mesas, além de pequenas alfombritas índias sobre o tapete marrom, diante da chaminé, a porta e as janelas.

 

E o couro comprido e chamejante de seu tigre de Rojão de luzes jazia estirado no centro mesmo da habitação, a cabeça bem conservada, com os olhos de vidro e as imensas presas que eu tinha visto no sonho com espantosa nitidez.

A este último troféu dirigiu de repente David sua atenção; depois, apartando seus olhos dele com dificuldade, seguiu escrevendo. Tratei de lhe ler a mente, mas não pude. Para que me terei tomado o trabalho? Nem o menor indício dos bosques de mangles onde pôde ter assassinado a semelhante besta. Olhou uma vez mais ao tigre, até que, esquecendo a pluma, ficou abstraído em seus pensamentos.

É obvio, reconfortou-me o só olhá-lo, como sempre. Divisei na penumbra várias fotos em seu Marcos: tira do David quando era jovem e muitas que claramente lhe tinham sido tiradas a Índia, frente a um belo bangalô de largas galerias e tetos altos. Retratos de sua mãe e seu pai. Retratos dele animais que tinha matado. Explicava isso meu sonho?

Não emprestei atenção à neve que caía a meu redor, me cobrindo o cabelo e os ombros e inclusive os braços que tinha pregados. Por último, movi-me. Ficava apenas uma hora para o amanhecer.

Dava a volta pelo outro lado da casa, encontrei uma porta no fundo, ordenei ao ferrolho que se abrisse, e entrei no pequeno vestíbulo de tetos baixos. Havia ali velhas madeiras com capas de laca ou azeite. Apoiei as mãos sobre os tabuleiros da porta e me apresentou a imagem de um grande bosque de carvalhos banhado em luz de sol. Logo, só me rodearam as sombras. Chegou-me o aroma do fogo longínquo.

Notei que David estava parado na outra ponta do corredor, me fazendo gestos de que me aproximasse. Mas houve algo em meu aspecto que o sobressaltou. Claro, eu estava talher de neve e de uma magra capa de gelo.

Entramos juntos na biblioteca e me localizei na poltrona frente a ele. partiu um instante, e fiquei aí olhando o fogo, sentindo que derretia a nievecilla que me cobria. Pensava eu no motivo de minha visita e como faria para dizer-lhe Minhas mãos estavam brancas como branca era a neve.

Quando David retornou, trazia um toallón morno que usei para me secar a cara, o cabelo e por último as mãos. Que agradável sensação.

-Obrigado -disse-lhe.

-Parecia uma estátua.

-Sim, agora tenho esse aspecto, não? Sigo viagem.

-Não te entendo. -sentou-se frente a mim. -te explique.

-Vou a um sítio desértico. Acredito ter encontrado a forma de terminar contudo. Não é nada singelo.

-por que quer fazê-lo?

-Não quero estar mais com vida. Essa parte é fácil. Não anseio a morte, como faz você; não é isso. Esta noite... -Interrompi-me. Vi a imagem da anciã em sua cama prolixa, vestida com sua bata floreada contra o nylon acolchoado. Depois vi o estranho homem de cabelo castanho que me observava, que me aproximou na praia e me deu o conto que ainda levava, tudo enrugado, dentro do casaco.

Uma insensatez. Chega muito tarde, quem quer que seja.

A que me incomodar em explicar?

De repente vi a Claudia como se estivesse me contemplando desde outro reino, esperando que eu a visse. Que engenhoso que nossas mentes possam evocar uma imagem de aparência tão real. Bem podia ela estar aí, junto ao escritório do David, na penumbra. Claudia, que me tinha parecido uma adaga no peito. "Mandarei a seu ataúde para sempre, pai." Mas também era certo que ultimamente a via de contínuo, em sonho detrás sonho...

-Não vá -disse David.

-Chegou a hora -respondi-lhe em um sussurro, pensando em forma vaga quão desiludido ficaria Marius.

Me teria ouvido David? Talvez falei em voz muito baixa. ouviu-se um crepitar do fogo, alguma parte de madeira acesa que caía ou seiva úmida que chispava dentro do imenso lenho. Voltei a ver esse dormitório frio de minha infância e de repente rodeei com meu braço a um dos cães enormes, esses cães indolentes e carinhosos. É terrível ver que um lobo mata a um cão!

Devi ter morrido, aquele dia. Nem o melhor caçador deveria ser capaz de matar a uma manada de lobos. E talvez foi esse o engano cósmico. Meu destino era partir, se de fato existir tal continuidade, e por me exceder atraí a atenção do diabo. "Assassino de lobos", havia dito o vampiro Magnus com muito carinho, ao tempo que me levava a sua cova.

David voltou a afundar-se em sua poltrona; com gesto distraído apoiou um pé sobre o guardafuego e cravou seus olhos nas chamas. Estava profundamente perturbado, até um tanto desequilibrado, embora o ocultava muito bem.

-Não te vai doer? -perguntou, me olhando.

Por um momento não soube o que me queria dizer. Depois recordei.

Soltei uma risada.

 

-Vim a me despedir de ti, a te perguntar se estiver seguro de sua decisão. Pareceu-me que o correto era te avisar que me partia, que esta era sua última oportunidade. Pensei que correspondia. Compreende-me ou crie que é só um pretexto mais? Em realidade, não importa.

-Como o Magnus de sua história. Deixaria a seu herdeiro e logo desapareceria dentro do fogo.

-Não era uma simples historia -repus, sem vontades de me pôr polêmico mas me perguntando por que soava como se o fora-. E em efeito, possivelmente seja assim. Sinceramente, não sei.

-por que quer te auto-destruir? -Notei-lhe um tom desesperado.

Como tinha ferido a esse homem.

Olhei o tigre do piso com suas magníficas raias negras e sua pele de um laranja intenso.

-Esse era um antropófago, não?

Vacilou como se não compreendesse do todo a pergunta; depois deu a impressão de despertar e assentiu.

-Sim. -Olhou primeiro ao tigre, e logo a mim. -Não quero que o faça. Deixa-o para mais adiante, pelo amor do céu. Não o faça. E depois de tudo, por que precisamente esta noite? Fez-me rir contra minha vontade.

-Esta noite é um bom momento para fazê-lo-disse-. Não; vou. -de repente experimentei um enorme júbilo porque me dava conta de que o dizia a sério! Não era só uma fantasia. De havê-lo sido, jamais o teria contado. -Me ocorreu um método. vou ascender o mais que possa antes de que saia o sol pelo horizonte. Não haverá maneira de encontrar refúgio. Ali o deserto é muito severo.

E morrerei no meio do fogo. Não do frio, como tinha estado naquela montanha quando me rodearam os lobos. Em calor, como tinha morrido Claudia.

-Não, não o faça. -Com quanta convicção o disse. Mas de nada valeu.

-Quer o sangue? -perguntei-lhe-. Não insume muito tempo e a dor é mínima. Confio em que outros não lhe agridam. Farei-te tão forte, que melhor que nem o tentem.

Sinceramente, estava-me parecendo muito ao Magnus, que me deixou órfão sem me advertir sequer que Armand e seus coroinhas me foram perseguir, a amaldiçoar, que quereriam truncar minha vida recém-nascida. Magnus sabia que eu ia vencer.

-Lestat, não quero o sangue, mas quero que fique aqui.

me dê nada mais que umas poucas noites. Em nome de nossa amizade, Lestat, fique agora comigo. Não pode me conceder essas poucas horas? Depois, se ainda desejas fazê-lo, não vou pôr reparos.

-por que?

Parecia doído, e demorou uns instantes em responder.

-me deixe te falar, te convencer para que troque de parecer.

-Você matou ao tigre quando foi muito jovem, não? Foi na Índia. -Passeei a vista pelos outros troféus. -Vi o tigre em um sonho.

Não me respondeu. O via ansioso, perplexo.

-Tenho-te feito mal -prossegui-. Traga-te para a memória lembranças de sua juventude. Obriguei-te a tomar consciência do tempo, e antes não reparava nisso.

Algo ocorreu em seu rosto. Era evidente que minhas palavras o tinham ofendido. Entretanto, negou movendo a cabeça.

-David, toma meu sangue antes de que vá! -sussurrei de repente, ansioso-. Não fica nem um ano. Ouço-o quando estou perto de ti! Alcanço a perceber a fragilidade de seu coração.

-Isso não sabe, amigo -repôs ele, paciente-. Fique aqui comigo e te contarei o do tigre, tudo o daquela época na Índia. Também fui de caçada à a África, e uma vez ao Amazonas. Grandes aventura. Nnaquele tempo, naquele tempo, eu não era um erudito mofado como agora...

-Sei. -Sorri. Jamais me tinha falado dessa maneira; nunca me ofereceu tanto. -Muito tarde, David. -Uma vez mais vi o sonho. Vi a cadenita de ouro que David levava a pescoço. Era essa cadenita o que atraía ao tigre? Parecia uma insensatez. O que ficava era a sensação de perigo.

Contemplei a pele do animal. Que expressão maligna a de sua cara.

-Foi divertido matá-lo?

Duvidou; logo se esforçou por responder.

-Era um tigre antropófago e adorava os meninos. Sim, suponho que me divertiu.

Soltei uma risada.

-Bom, então temos isso em comum, o tigre e eu. E Claudia está me esperando.

-Não me irás dizer que crie isso, verdade?

-Não. Suponho que, se acreditasse, teria medo de morrer. -Vi a Claudia com total nitidez... um diminuto retrato de porcelana, com cabelo áureo, olhos azuis. Algo impetuoso e veraz na expressão face às cores adocicadas e o marco ovalado. Havia poseído eu alguma vez um relicário como esse? Porque era, certamente, um relicário. Estremeci-me ao recordar a textura de seu cabelo e uma vez mais me invadiu a sensação de que a tinha muito perto. Se girava a cabeça possivelmente a visse entre as sombras, com a mão apoiada sobre o respaldo de minha poltrona. Dava-me volta, mas não estava. ia perder a têmpera se não me partia imediatamente.

-Lestat! -exclamou David em tom imperioso. Estava-me escrutinando, pensando com desespero o que outra coisa podia dizer. Assinalou meu casaco. -O que leva no bolso? Uma nota que escreveu? me pensa deixar isso Permite-me lê-la agora?

-Ah, este estranho cuentito. Toma, pode ficar o Você o leigo. Deveria estar em uma biblioteca, calçado talvez em algum dessas prateleiras. -Tirei o sobre dobrado e o olhei. -Sim, li-o. É bastante divertido. -O joguei na saia. -Deu-me isso um mortal muito tolo , uma pobre alma tresnoitada que sabia quem era eu e teve coragem apenas para deixá-lo cair a meus pés.

-me explique isso -disse David, e abriu as folhas-. por que o leva contigo? Deus santo... Lovecraft. -Sacudiu levemente a cabeça.

-Acabo-lhe isso de explicar. De nada vale, David. Não vou trocar de idéia. Vou. Além disso, a história é intrascendente. Um pobre tolo...

Esse homem tinha olhos tão estranhos, tão brilhantes. O que teve de estranho a forma em que veio correndo para mim pela areia, ou a estupidez com que fugiu dominado pelo pânico? Suas maneiras tinham dado a entender tal importância! Ah, mas isso era absurdo. Não me importava, sabia que não me importava. Eu sabia o que queria fazer.

-Lestat, fique !Prometeu-me que a próxima vez que nos encontrássemos foste permitir me dizer tudo o que quisesse. Isso me disse por carta, recorda? Não te retratará de sua palavra, verdade?

-vou retratar me, David. E terá que me desculpar, porque vou. Talvez não haja céu nem inferno e te veja do outro lado.

-E o que passará se existirem ambos?

-estiveste lendo muito a Bíblia. Lê o conto do Lovecraft. -Voltei a soltar uma risada e lhe assinalei as folhas que tinha na mão. -Será o melhor para a paz de seu espírito. E não toque o "Fausto", pelo amor de Deus. Sinceramente crie que ao final virão anjos a nos levar? Bom, a mim não. A ti sim?

-Não vá -repetiu, com uma voz tão tênue e suplicante que me tirou o fôlego.

Mas já me estava indo.

Apenas se o ouvi quando gritou:

-Lestat, necessito-te. É o único amigo que tenho.

Que palavras trágicas! Me deu vontade de lhe dizer que o lamentava, que lamentava tudo, mas já era tarde. Além disso, acredito que ele sabia.

Lancei-me para cima na fria escuridão, me deslocando entre a neve que caía. A vida inteira me parecia insuportável, tanto em seu horror como em seu esplendor. Abaixo, a casita parecia cálida; sua luz se derramava sobre o chão branco e de sua chaminé partia um hilito de fumaça azul.

Pensei no David, que de novo percorreria sozinho as ruas do Amsterdam, mas depois evoquei os retratos do Rembrandt. Então voltei a ver a cara de meu amigo junto ao fogo da biblioteca. Parecia um homem pintado pelo Rembrandt. Desde que o conheci teve sempre esse aspecto. E que aspecto tínhamos nós, congelados para sempre com a forma que tínhamos quando o Sangue Misterioso entrou em nossas veias? Claudia foi durante décadas essa menina grafite em porcelana. E eu assemelhava a uma das estátuas do Miguel Anjo, posto que me voltei branco como o mármore. E igual de frio.

Eu sabia que ia cumprir minha palavra.

Mas há uma mentira terrível em tudo isto. Em realidade, já não acreditava que o sol pudesse me matar. Mas o mesmo me propus tentá-lo.

 

Deserto do Gobi. Eones atrás, nessa era que os homens denominaram cauria, enormes lagartos morreram por milhares nesta insólita zona do mundo. Ninguém sabe por que vieram aqui nem por que pereceram. Era um reino de árvores tropicais e pântanos fumegantes? Não sabemos. Agora o único que fica é o deserto e milhões de fósseis nos narrando um relato fragmentário a respeito de répteis gigantescos que, com toda segurança, faziam tremer a terra cada vez que davam um passo.

portanto, o deserto do Gobi é um imenso cemitério e o lugar apropriado para que eu olhasse o sol de frente. Comprido momento estive tendido na areia antes do amanhecer, pondo em ordem meus últimos pensamentos.

O que faria seria subir até o limite mesmo da atmosfera, me internar no sol nascente, por assim dizê-lo. Depois, quando perdesse o conhecimento, desabaria-me sob o calor terrível e meu corpo se destroçaria contra o chão do deserto ao cair de semelhante altura. Impossível, então, que este meu corpo cavasse sob a superfície, coisa que sim poderia fazer -por própria e maligna volição- em caso de estar inteiro e sobre um terreno brando.

Além disso, se a descarga de luz tinha força suficiente para me consumir com seu fogo, é provável que, me achando nu e a tal altura sobre a terra, eu já estivesse totalmente morto antes de que meus restos se chocassem contra o duro leito de areia.

Pareceu-me uma boa idéia, em seu momento, e acredito que nada nem ninguém teria podido me dissuadir. Entretanto, perguntava-me se outros imortais sabiam o que eu planejava fazer, e se lhes preocupava no mais mínimo. Por certo não lhes enviei mensagens de despedida; não deixei escapar imagens aleatórias de minhas intenções.

Finalmente, a grande tibieza do alvorada foi cobrindo o deserto. Pu-me de joelhos, tirei-me a roupa e comecei a ascender, sentindo que já me ardiam os olhos até com essa luz tão tênue.

Subí e subí até muito mais à frente do ponto onde a tendência natural de meu corpo teria sido a de não impulsionar-se mais e seguir flutuando sozinho. Ao final já não podia respirar, porque o ar era muito pouco denso, e me custava um enorme esforço me manter a semelhante altura.

Logo chegou a luz. Tão imensa, tão cálida e enceguecedora que, mais que uma visão, o que enchia meus olhos parecia um ruído rugiente. Vi todo talher por um fogo amarelo e laranja. Olhei-o de frente, embora a sensação foi de que me jogavam água fervendo nos olhos. Acredito que até abri a boca para tragar esse fogo divino! de repente o sol era meu. Estava-o vendo, estirava-me para alcançá-lo. Depois, a luz me cobriu como chumbo fundido, paralisou-me e torturou até que não pude resistir mais, e meus próprios gritos encheram meus ouvidos. Ainda não desviava o olhar, ainda não caía!

Assim lhe desafio, céu! de repente não houve palavras nem pensamentos. Eu me retorcia, nadava dentro disso. E quando a escuridão e o frio já subían para me envolver -não foi nada mais que o ter perdido o conhecimento-, compreendi que tinha começado a cair.

O som era o do ar que passava zumbindo a meu lado; e tive a sensação de que as vozes de outros me chamavam e, em meio daquela repulsiva mixórdia, distingui uma vocecita infantil.

Depois, nada...

Sonhava, acaso?

Estávamos em um recinto pequeno e fechado, um hospital com aroma de enfermidade e morte, e eu assinalava a cama. E sobre o travesseiro, à menina que jazia, pequena, branca, meio morta.

ouviu-se uma risada clara. Senti aroma de abajur de azeite, esse aroma típico do momento em que alguém sopra e apaga o pavio.

-Lestat. -Que formosa seu vocecita.

Tratei de explicar o do castelo de meu pai, o de que estava nevando e que meus cães me esperavam ali. A esse lugar queria ir. De repente alcancei para ouvir os latidos lastimeros dos mastins que ressonavam pelas colinas cobertas de neve, e quase pude ver as torres mesmas do castelo.

Mas logo ela disse:

-Ainda não.

Era outra vez noite quando despertei, tendido no chão desértico. Agitadas pelo vento, as dunas me salpicaram sua areia suave. Sentia dor em todo o corpo, até nas raízes do cabelo. Era tal a dor, que não podia juntar vontade para me mover.

Durante horas, estive ali tendido. De tanto em tanto deixava escapar algum gemido que em nada aliviava meu sofrimento. Quando movia as extremidades, embora fora um poquito, sentia a areia como partículas de vidro afiado cravadas nas costas, as pantorrilhas e os talões.

Pensei em todos aqueles a quem podia ter chamado para pedir ajuda mas não chamei. Só pouco a pouco fui me dando conta de que, se ficava aí, voltaria o sol, como era natural, e uma vez mais me consumiria com seu fogo. E mesmo assim era provável que não morrera.

Tinha que ficar, não? Acaso era um covarde, para pensar em procurar refúgio?

Mas só me olhando as mãos à luz das estrelas soube que não ia morrer. Estava queimado, sim; tinha a pele marrom, enrugada, dolorida, mas longe estava de morrer.

Por último, rodei e tratei de apoiar a cara contra a areia, coisa que não me trouxe muito mais alivio que olhar de frente às estrelas.

Logo senti que saía o sol. Chorei quando a grande luz alaranjada se derramou sobre o mundo. A primeira dor o senti nas costas; depois pensei que minha cabeça se incendiava, que ia explorar, que o fogo consumia meus olhos. Quando me chegou a penumbra do esquecimento estava louco, totalmente louco.

De noite seguinte despertei e senti areia na boca, areia que me cobria em minha dor. devido a essa loucura, ao parecer me tinha enterrado vivo.

Permaneci na mesma posição durante horas, pensando só que esse sofrimento era mais do que qualquer criatura podia suportar.

Ao final cheguei esforzadamente à superfície, choramingando como um animal já que cada gesto era um puxão que intensificava a dor; logo me induzi a ascender e comecei a lenta viagem para o ocidente, me internando na noite.

Meus poderes não tinham diminuído. Ah, só a superfície de meu corpo tinha sofrido danos profundos.

O vento era imensamente mais suave que a areia. Entretanto, trouxe sua próprio tortura, semelhante a dedos que acariciavam minha pele queimada, que atiravam das raízes queimadas de meu cabelo, cravava-me nas pálpebras queimadas, raspava-me nos joelhos queimados.

Viajei com toda calma durante muitas horas. Tinha-me proposto chegar uma vez mais a casa do David, e senti um instante de alívio esplendoroso quando descendi em meio da neve fria e úmida.

Estava por amanhecer na Inglaterra.

Entrei pela porta do fundo como a vez anterior; cada passo que dava era um suplício. Quase às cegas encontrei a biblioteca, entrei, pu-me de joelhos e, sem emprestar atenção à dor, desabei-me sobre o couro do tigre.

Apoiei a cabeça junto à do animal e a bochecha contra seus fauces abertas. Que pele suave, entupida! Estirei os braços sobre suas patas e senti suas garras duras sob as bonecas. A dor me atacou em feitas ondas. A pele era quase sedosa, e fria a habitação em penumbras. Em tênues brilhos de visões silenciosas imaginei os bosques de mangles da Índia, vi rostos escuros e me chegaram vozes longínquas. E por um momento vi nitidamente ao David quando jovem, tal como o tinha visto no sonho.

Pareceu-me um milagre esse moço vivente, cheio de sangue e malha, e essas façanhas milagrosas que são os olhos, um coração que pulsa e cinco dedos em cada mão esbelta.

Vi-me mesmo caminhando por Paris nos velhos tempos, quando eu estava vivo. Levava uma capa de veludo cotelê vermelho, forrada com a pele dos lobos que tinha matado em minha nativa Auvernia, sem sonhar jamais que houvesse coisas espreitando entre as sombras, coisas que podiam vê-lo um e apaixonar-se só porque a gente era jovem, coisas que podiam tiramos a vida só porque nos amavam e porque a gente tinha matado a uma manada inteira de lobos...

David, o caçador! De jaqueta cor cáqui com cinturão, e esse rifle magnífico.

Lentamente tomei consciência de que a dor já não era tanto. O velho e querido Lestat, o deus, curava-se com velocidade sobrenatural. A dor era como um brilho intenso que se assentava sobre meu corpo. Imaginei mesmo despedindo uma luz cálida a toda a habitação.

Percebi o aroma de mortais. Um servente tinha entrado no quarto e voltado rapidamente a sair. Pobre tipo. Me deu vontade de rir solo em meu torpor, ao pensar no que viu: um homem nu, de pele escura e cabelo loiro desordenado, tendido sobre o tigre do David na habitação às escuras.

de repente captei o aroma do David e ouvi de novo o conhecido retumbar de sangre no interior de veias mortais. Sangue. Tinha tanta sede de sangue. Minha pele queimada clamava por ela, quão mesmo meus olhos ardidos.

Alguém tendeu sobre mim uma manta suave, que me resultou liviana, fresca. Logo houve uma seguidilla de sons. David obscurecia o quarto correndo as pesadas cortinas de veludo cotelê, coisa que não se incomodou em fazer em todo o inverno. Estava manobrando com o tecido para que não ficasse nenhuma hendija de luz.

-Lestat -sussurrou-, me deixe te levar a porão, onde estará a salvo.

-Não importa, David. Posso permanecer aqui?

-É obvio que pode. -Que solícito.

-Obrigado, David. -Voltei a dormir e vi sopro a neve pela janela de minha habitação do castelo, mas logo foi algo totalmente distinto. Vi uma vez mais a camita de hospital, mas a menina não estava nela, e graças a Deus não se encontrava aí a enfermeira mas sim tinha ido acalmar ao que chorava. OH, que som tão tremendo. Parecia-me espantoso. Me teria gostado de estar... onde? Em casa, em pleno inverno francês, certamente.

Essa vez alguém estava acendendo, não apagando, o abajur de azeite.

-Disse-te que não tinha chegado o momento. -O vestido era de um branco perfeito. Que minúsculos os botoncitos de pérola! E que formosa a coroa de rosas que leva na cabeça.

-Mas, por que? -perguntei.

-O que disse? -quis saber David.

-Falava com a Claudia -expliquei-lhe. Estava sentada na poltrona estofada em petit-point estirando as pernas para frente. Tinha postos esses escarpines de raso? Tomei o tornozelo e o beijei, e quando levantei o olhar vi seu queixo e suas pestanas no momento em que ela jogava a cabeça para trás para rir. Uma risada deliciosa, rouca.

-Há outros aí fora -advertiu-me David.

Abri os olhos e me doeu, doeu-me ver as formas mortiças da habitação. Estava por sair o sol. Senti as garras do tigre sob meus dedos. Ah, besta apreciada. Da janela, David espiava por uma fresta aberta entre ambos panos do cortinado.

-Aí fora -prosseguiu-. vieram a certificar-se de que está bem.

O que lhes parece?

-Quais são? -Não alcançava para ouvi-los, não queria ouvi-los. Era Marius? Não os mais antigos, com toda segurança. por que teria que lhes importar semelhante coisa?

-Não sei -respondeu-me-. Mas estão.

-Já sabe o que se está acostumado a dizer: não lhes faça caso e partirão. -De todos os modos já era quase o amanhecer. Têm que ir-se. E por certo que não lhe farão mal, David.

-Sei.

-Não me as memore isso se não me deixa ler a tua.

-Não te zangue. Não entrará ninguém nesta habitação a te incomodar.

-Sim; posso ser um perigo até em repouso... -Quis dizer algo mais, lhe transmitir outra advertência, mas me dava conta de que David era o único mortal que não precisava de tal advertência. Talamasca. Estudiosos do paranormal. Ele sabia.

-Dorme, agora.

Não pude menos que rir para ouvir isso. O que outra coisa posso fazer quando sai o sol? Mesmo que me dê totalmente na cara. Mas suas palavras foram firmes, tranqüilizadoras.

Pensar que nos velhos tempos eu sempre tinha o ataúde, e às vezes o lustrava até deixar bem brillosa a madeira; depois lustrava o minúsculo crucifixo que havia sobre a tampa e sorria para meus adentros ao pensar no esmero com que polia o pequeno corpo retorcido de Cristo, o filho de Deus, assassinado. eu adorava o forro de raso da gaveta. eu adorava a forma, e o ato crepuscular de me elevar de entre os mortos. Mas já não mais...

Realmente estava saindo o sol, o sol do frio inverno inglês. Sentia-o com certeza, e de repente me deu medo. Senti a luz que avançava às escondidas fora da casa e golpeava contra as janelas. Mas deste lado das cortinas reinava a escuridão.

Vi que a llamita no abajur de azeite subía. Assustei-me, só porque sentia tantos dores e porque isso era uma chama. Os deditos femininos sobre a chave dourada, e esse anel que lhe dei de presente, com um pequeno brilhante engastado em pérolas. E o relicário? Devo lhe perguntar por ele? Claudia, alguma vez houve um relicário de ouro?

Chama-a crescia, crescia. Outra vez o aroma. Seu manita com covinhas. Tudo com o passar do departamento da rua Royale se podia perceber o aroma do azeite. Ah, o velho empapelado da parede, os belos móveis feitos à mão, Louis sentado a seu escritório, escrevendo... E o aroma áspero da tinta negra, o rasgueo da pluma...

A pequena mão feminina, tão deliciosamente fria, tocava minha bochecha e senti essa emoção incerta que me percorre quando algum de outros me toca, nossa pele.

-por que teria que querer ninguém que eu vivesse? -perguntei. Ao menos isso foi o que comecei a perguntar... porque depois me desvaneci.

 

Crepúsculo. Não queria me mover, já que a dor seguia sendo intenso. No peito e as pernas a pele começava a ficar me estica, e o formigamento constituía apenas uma variação da dor.

Nem a sede de sangue, com toda sua fúria, nem seu aroma nos serventes da casa obtiveram que me movesse. Sabia que David estava aí, mas não lhe falei. Pensei que, se tentava falar, me ia pôr-se a chorar de dor.

Dormi e sei que sonhei, mas ao despertar não recordava os sonhos. Via de novo o abajur de azeite e a luz seguia me dando medo. Quão mesmo a voz da Claudia.

Em uma oportunidade despertei lhe falando na escuridão. "por que você, nada menos? por que você em meus sonhos? Onde está sua adaga ensangüentada?"

Agradeci a chegada do alvorada. Às vezes, com um grande esforço fechava deliberadamente a boca para não gritar de dor.

Quando despertei, a segunda noite, a dor já não era tanto.

Tinha todo o corpo inflamado -o que os mortais chamam em carne viva-, mas o mais insuportável tinha passado. Estava muito quieto, tendido sobre a pele do tigre, e senti a habitação fria muito.

Havia lenhos no lar de pedra, retirados do frente, bem apoiados contra os tijolos enegrecidos do fundo. Tudo estava preparado para ser aceso; inclusive havia um pão-doce de jornal preparado. Hmmm. Alguém me tinha aproximado perigosamente enquanto dormia. Esperava de verdade não ter estendido os braços, como estamos acostumados a fazer quando estamos em transe, para sujeitar a essa pobre criatura.

Fechei os olhos e emprestei atenção aos sons. Neve que caía sobre o teto, neve que entrava pela chaminé. Voltei a abri-los e notei os vestígios de umidade nos lenhos.

Depois me concentrei, e a energia brotou de mim em forma de uma larga língua que chegou a tocar os troncos. No ato se acenderam as llamitas dançarinas. A casca grosa dos lenhos começou a esquentar-se, a ampollarse. A fogueira vinha em caminho.

À medida que a luz se fazia mais intensa, senti que uma dor deliciosa surgia em minhas bochechas e sobre minha frente. Interessante. Incorporei-me de joelhos, levantei-me. Estava sozinho no quarto. Olhei o abajur de bronze que havia junto à poltrona do David. Com uma ordem mental fiz que se acendesse sozinha.

Sobre a poltrona havia roupa: uma calça de flanela grosa, uma camisa branca de algodão, uma jaqueta algo disforme de velha lã. Tudo os objetos ficavam um pouco grandes, pois tinham sido do David. Até as pantufas forradas em pele foram grandes. Mas eu queria estar vestido. Havia também roupa interior dessa que todo mundo usa no século XX, e um pente.

Tomei meu tempo para tudo, notando tão somente um ardor ao calçar a roupa sobre a pele. Quando me penteei, doeu-me o couro cabeludo e optei por me sacudir o cabelo até lhe tirar todo o pó e a areia, que caíram sobre a grosa atapeta e desapareceram discretamente da vista. me pôr as pantufas foi um prazer. O que quis então foi um espelho.

Encontrei um no corredor, de grosso marco dourado. Pela porta aberta da biblioteca chegava luz suficiente, ou seja que pude lombriga bastante bem.

Em um primeiro momento, não pude acreditar o que contemplavam meus olhos. Tinha a pele suave, imaculada como antes, só que agora possuía um tom âmbar, a mesma cor do marco do espelho, e um brilho tênue, semelhante ao de qualquer mortal que passa uma larga temporada nos mares tropicais.

Brilhavam minhas sobrancelhas e pestanas, como ocorre sempre com os cabelos loiros desses indivíduos bronzeados, e as poucas rugas da cara que o Dom Misterioso me deixou se notavam um poquito mais marcadas que antes. Refiro a duas pequenas coma nas comissuras dos lábios, produto de sorrir tão quando estava vivo, umas patas de galo mínimas, e uma ou duas rugas na frente. Eu gostei das ter de novo, pois fazia muito que não as via.

Minhas mãos tinham sofrido mais. Estavam mais escuras que o rosto e com numerosas arruguitas que lhes davam um aspecto mais humano, o qual em seguida me fez pensar nas numerosas rugas finas que têm as mãos dos mortais.

As unhas ainda brilhavam de uma maneira que podia alarmar aos mortais, mas sem dúvida me bastaria esfregando isso um pouco com cinza. Os olhos, certamente, eram outra coisa. Nunca os tinha visto tão brillosos e iridescentes, mas para isso o único que me fazia falta eram uns óculos logo que defumados. Já não necessitaria a outra máscara (os óculos totalmente negros) para cobrir a pele branca.

"OH, deuses, que maravilhoso", pensei, admirando minha imagem. Parece quase humano! Quase um homem! Sentia uma dor mortiça nas malhas queimadas mas eu gostei, porque tomei como algo que me recordava a forma de meu corpo, seus limites humanos.

Tive desejos de gritar; em troca, orei. Que isto dure, e se não dura, com gosto repetiria todo o processo.

Logo me pus a pensar que em realidade eu não estava aperfeiçoando meu aspecto para poder me deslocar melhor entre os homens, a não ser me destruindo. Tinha que estar morrendo. E se não me tinha matado o sol do deserto... se não o tinha conseguido me tendendo todo um dia ao sol, nem logo com o segundo amanhecer...

Ah, covarde, pensei, poderia ter encontrado a forma de te manter sobre a superfície e não te esconder, esse segundo dia! Ou não?

-Bom, graças a Deus escolheu voltar.

Girei e vi que David se aproximava pelo corredor. Acabava de retornar a casa, pois tinha o casaco úmido pela neve e nem sequer se tirou as botas.

deteve-se em seco e me inspecionou de pés a cabeça, esforçando-se por ver na penumbra.

-A roupa está bem -passou-. Parece um desses moços que fazem surfe, esses que vivem eternamente na praia.

Sorri.

Estendeu um braço -gesto bastante audaz, pensei-, tirou-me da mão e me conduziu à biblioteca, onde o fogo já ardia com brios. Uma vez mais estudou meu semblante.

-Já não há dor -disse, como se duvidasse.

-Há sensação, mas não exatamente o que se diz dor. vou sair um momento. OH, não se preocupe; retornarei. Morro de sede. Tenho que caçar.

Seu rosto empalideceu, mas nem tanto, já que de todos os modos pude ver o sangue de suas bochechas, as venitas de seus olhos.

-Bom, o que pensava? -disse-. Que já não o ia fazer mais?

-Não, não, claro.

-Quer dever ver?

Não disse nada, mas notei que o tinha assustado.

-Não esqueça o que sou. Quando me ajuda, está ajudando ao diabo. -Assinalei o exemplar do "Fausto", que seguia sobre a mesa. Também estava esse conto do Lovecraft. Hmmm.

-Não é indispensável que tire a vida, para fazê-lo, não? -perguntou, sério.

Mas o que pergunta grosseira.

Soltei um ruidito desdenhoso.

-Eu gosto de tirar a vida. -Com um gesto assinalei ao tigre. -Sou caçador, como foi você em uma época. Resulta-me divertido.

Olhou-me um comprido momento com a perplexidade grafite no rosto, e logo assentiu lentamente, como com aceitação. Mas longe estava de aceitá-lo.

-Aproveita para comer, agora que vou -disse-lhe-. Dou-me conta de que tem fome e sinto o aroma de carne que estão cozinhando na casa. E pode estar seguro de que jantarei antes de voltar.

-Tem-te proposto que te conheça como realmente é, em?, que não haja o menor engano ou sentimentalismo.

-Exato. -Estirei os lábios e lhe mostrei as presas um instante. Em realidade são muito pequenos, ínfimos em comparação com os do leopardo e o tigre, cuja companhia procurava ele obviamente por gosto. Mas essa careta sempre atemoriza aos mortais. Mais que atemorizá-los, espanta-os. Acredito que lhes produz no organismo uma reação primitiva de alarme que nada tem que ver com a coragem racional.

ficou branco e, sem fazer o menor movimento, permaneceu uns segundos me olhando, até que seu rosto recuperou sua expressão de calidez.

-Muito bem -disse-. vou estar aqui quando voltar. E se não voltar, porei-me furioso! Juro que nunca mais te dirigirei a palavra. Se esta noite desaparecer, jamais voltarei tão sequer a te saudar. Considerarei que desprezaste minha hospitalidade. Entendido?

-De acordo, de acordo! -exclamei, me encolhendo de ombros, embora no fundo me emocionava que queria me ter ali. Eu não tinha estado tão seguro. Por outra parte, tinha-me mostrado muito descortês para ele. -Voltarei. Além disso, quero saber.

-O que?

-por que não tem medo a morrer.

-Bom, você tampouco lhe tem medo, por isso vejo.

Não respondi. Recordei o sol, a grande bola ígnea que se convertia em terra e céu, e me estremeci. Logo vi o abajur de azeite do sonho.

-O que acontece? -quis saber.

-Tenho medo a morrer -repus, sacudindo a cabeça para transmitir mais ênfase-. Todas minhas ilusões se estão fazendo pedacinhos.

-É que tem ilusões? -perguntou, com sincero assombro.

-É obvio. Uma delas era que ninguém podia rechaçar o Dom Misterioso; ao menos, não sabendo.

-me permita te recordar que você mesmo o rechaçou, Lestat.

-David, eu era um menino e me estavam forçando. Lutei quase por instinto. Mas isso não teve nada que ver com o fato de saber.

-Não te subestime. Acredito que te teria negado embora o tivesse compreendido cabalmente.

-Essas são ilusões tuas -disse-. Tenho fome. te aparte de meu caminho ou lhe Mato.

-Não te acredito. E mais vale que retorne.

-Voltarei. Esta vez cumprirei a promessa que te fiz por carta. Poderá me dizer tudo o que queira.

Saí a percorrer as ruas se separadas de Londres. Andei perambulando pela estação Charing Cross em busca de algum malviviente para me alimentar, por mais que suas ambições ajudantas pudessem me irritar. Mas as coisas não resultaram como supunha.

Encontrei a uma anciã que caminhava arrastando os pés. Vestia um casaco imundo e levava os pés envoltos em trapos. Estava louca e imersão de frio, e com segurança ia morrer antes da manhã. fugiu-se pela porta do fundo de não sei que lugar onde a tinham encerrada, ou ao menos isso gritava a quem queria ouvi-la, decidida a não deixar-se encerrar nunca mais.

Fomos fantásticos amantes! Ela me deu um cacho de lembranças e aí estivemos, dançando juntos pelos bairros baixos, ela e eu, tendo-a longamente entre meus braços. Estava muito bem alimentada, como muitos mendigos deste século em que tanto abunda a comida nos países ocidentais. E bebi com grande lentidão, saboreando o sangue, sentindo que percorria toda minha pele queimada.

Quando terminou tudo, tomei consciência de que sentia muitíssimo o frio, e que o havia sentido desde o começo. Quer dizer, estava percebendo mais nitidamente as mudanças de temperatura. Interessante.

O vento me golpeava, coisa que me desagradou. Ao melhor a queimação tinha tirado uma capa de pele. Não sabia. Sentia os pés úmidos, e as mãos me doíam tanto que por força tive que as colocar nos bolsos. Uma vez mais voltaram para minha mente as lembranças do inverno francês de meu último ano em casa, do jovem lorde mortal em uma cama de feno e os cães por toda companhia. de repente, já não me bastava com tudo o sangue do mundo. Hora de voltar a me alimentar, uma e outra vez.

Foram todos carentes, induzidos a abandonar suas precárias choças de cartão e internar-se na gélida penumbra, e eram seres condenados, ou ao menos isso pensei enquanto me deleitava com o festim no meio do rançoso fedor a suores, ferrugem e escarro. Mas o sangue era o sangue.

Quando os relógios deram as dez, seguia ainda com apetite e havia vítimas em abundância, mas me cansei e já não me importou mais.

Percorri várias quadras, cheguei ao distinto West End e entrei em uma pequena loja sumida na escuridão, loja de comestíveis de roupa masculina elegante, de bom corte -ah, os tesouros de confecção desta era-, e me equipei com calças cinzas de tweed, um casaco com cinturão, pulôver grosso de lã e até um par de óculos de vidro levemente colorido e fino marco de metal. E aí parti, a me lançar de novo de noite fria com seus redemoinhos de neve, cantando sozinho e arriscando uns pasitos de sapateado americano sob um farol da rua, tal como estava acostumado a fazê-lo para a Claudia Y...

Pum! de repente apareceu um jovem belo e feroz, com fôlego a vinho, um descarado que me ameaçou com uma faca, disposto a me matar pelo dinheiro que eu não tinha, o qual me recordou que, por ter roubado um guarda-roupa de finos objetos irlandeses, acabava de me converter em um vil ladrão. Hmmm. Mas uma vez mais me deixei levar no abraço estreito, quebrei-lhe as costelas ao filho de puta, deixei-o seco como rato morto em um mezanino do verão, e ele caiu sobressaltado, em êxtase, com uma mão aferrando penosamente meu cabelo até o último momento.

Ele sim levava algum dinheiro nos bolsos. Que sorte. Ao dono da loja onde tinha roubado lhe deixei essa soma, que me pareceu mais que adequada quando fiz as contas, embora a aritmética não é meu forte, poderes preternaturales ou não. Também lhe deixei uma notita de agradecimento; sem assina, certamente. Por último, fechei a loja dando várias voltas telepáticas de chave, e me parti.

 

Era exatamente a meia-noite quando cheguei ao Talbot Manor, a residência do David. Deu-me a impressão de estar vendo o sítio pela primeira vez. Tive tempo para percorrer o labirinto na neve, apreciar atentamente o desenho dos arbustos podados e imaginar como seria o jardim na primavera. Um lugar esplêndido.

Logo reparei nas habitações mesmas, pequenas e escuras, construídas para não deixar acontecer o cru inverno inglês, e nas ventanitas com maineles, muitas delas a plena luz nesse momento e extremamente tentadoras na penumbra nevada.

David tinha terminado de jantar e os serventes -um homem e uma mulher- estavam trabalhando na cozinha da planta baixa enquanto o amo se trocava de roupa em seu dormitório do primeiro piso.

Observei como ficava, sobre o pijama, uma bata negra larga com lapelas de veludo da mesma cor e laço à cintura, o qual lhe dava um aspecto clerical por mais que o desenho do tecido fora muito rebuscado para ser uma casula, principalmente com o lenço branco de seda calçado no decote.

Depois baixou a escada.

Eu entrei por minha porta preferida do fundo do corredor e, quando ele se agachou para atiçar o fogo na biblioteca, apareci a seu lado.

-Ah, voltou -exclamou, tratando de dissimular seu agrado-. Deus santo, não faz nada de ruído para ir e vir!

-Assim é. Fastidioso, não? -Olhei a Bíblia que estava na mesita, o exemplar do "Fausto" e o conto do Lovecraft ainda grampeado mas com suas páginas alisadas. Também estava ali o botellón de uísque e um bonito copo de cristal de base grosa.

Com os olhos fixos no conto, assaltou-me a lembrança do moço ansioso. Que estranha sua maneira de caminhar. Percorreu-me um leve estremecimento ao pensar no fato de que me tivesse se localizado em três lugares tão distintos. O mais provável era que não voltasse a vê-lo nunca mais. Embora, por outra parte... Mas já haveria tempo para me ocupar desse chato. por agora, em minha mente estava David na agradável perspectiva de ter toda a noite para conversar.

-De onde tirou essa roupa tão fina? -Seus olhos me inspecionaram lentamente e, ao parecer, não reparou na atenção que eu emprestava a seus livros.

-OH, por aí, em uma loja. Nunca lhe roubo a roupa a minhas vítimas, se for isso o que quer saber. Além disso, sou viciado nos habitantes de bairros baixos e eles não vestem tão bem.

Tomei assento na poltrona frente ao dele, que agora supus era minha poltrona. Fofo, de brando couro, molas que chiavam mas muito cômodo, com respaldo alto e largos apoyabrazos. A poltrona dele não fazia jogo com o meu, mas também era bom, embora um pouco mais gasto.

achava-se de pé ante o fogo, ainda me observando. Logo se sentou a sua vez. Desentupiu o botellón de cristal, encheu seu copo e o levantou como pequeno brinde.

Bebeu um comprido sorvo e fez uma mínima careta quando foi óbvio que o líquido lhe esquentou a garganta.

de repente recordei vividamente essa sensação. Recordei ter estado no henal de um celeiro de minhas terras, na França, bebendo conhaque dessa mesma maneira, inclusive fazendo o mesmo gesto, e ao Nicki, meu amiga e amante mortal, me arrebatando a garrafa das mãos com expressão ávida.

-Vejo que tornaste a ser o de sempre -disse David com repentina calidez, baixando um tanto a voz e sem deixar de me olhar. recostou-se contra o respaldo e colocou o copo sobre o apoyabrazos direito de sua poltrona. Tinha um aspecto senhorial, embora mais sereno do que jamais lhe tinha visto. Seu cabelo era ondulado, espesso, e tinha adquirido uma formosa tonalidade cinza.

-Pareço o de sempre?

-Tem essa expressão de picardia nos olhos -respondeu em voz baixa, sem deixar de me espionar-. Vejo uma ameaça de sorriso em seus lábios, que não vai nem quando fala. E a pele... totalmente distinta. Espero que não lhe aduela. Dói-te?

Fiz um gesto como lhe subtraindo importância. Alcançava para ouvir os batimentos do coração de seu coração, apenas mais fracos que no Amsterdam. E de vez em quando, irregulares também.

-Quanto tempo te vai durar a pele assim de escura?

-Anos, talvez; ao menos isso me disse um de meus companheiros mais antigos. Não mencionei este tema em "Reina-a dos condenados"? -Pensei no Marius e em quão zangado estava comigo. Como ia criticar o que fiz.

-Disse-o Maharet, seu amiga ruiva -recordou David-. Em seu livro, ela assegura ter feito exatamente isso só para obscurecê-la pele.

-Que coragem -sussurrei-. E não crie em sua existência, verdade? Embora eu esteja aqui sentado, frente a ti.

-Claro que acredito nela! Acredito em tudo o que tem escrito. Mas te conheço! me diga, o que foi o que aconteceu o deserto? Realmente creíste que te foste morrer?

-Não sente saudades que faça essa pergunta, David; e assim, a boca de jarro. -Suspirei. -Bom, não posso dizer que o tenha acreditado de tudo. Provavelmente estivesse jogando a um de meus típicos jueguitos. Juro Por Deus que a outros não digo mentiras. Mas me minto mesmo. Não acredito que possa morrer agora, ao menos de uma maneira que eu pudesse planejar.

Deixou escapar um comprido suspiro.

-E me diga, David. por que não lhe tem você medo a morrer, David? Não o digo para te atormentar com meu oferecimento de sempre. Na verdade não o compreendo. Não tem o menor medo à morte, e isso não o posso entender. Porque pode morrer, é obvio.

Duvidava-o acaso? Não me respondeu no ato. Entretanto, o notava enormemente estimulado. Quase podia ouvir como lhe funcionava o cérebro, embora é obvio não lhe ouvia os pensamentos.

-A que se deve o "Fausto", David? Crie que sou Mefistófeles? É você Fausto?

Negou com a cabeça.

-Possivelmente eu seja Fausto -disse por fim, ao tempo que bebia outro sorvo de uísque-, mas está claro que você não é o diabo. -Suspirou.

-Arruinei-te a vida, não, David? Soube no Amsterdam. Já não fica na Casa Matriz a menos que seja imprescindível. Não te tornei louco, mas te tenho feito mal, verdade?

Outra vez se tomou uns instantes para responder. Olhava-me com seus grandes olhos negros, e obviamente analisava a pergunta desde todos seus ângulos. Marcada-las rugas de seu rosto -na frente, aos flancos da boca e as patas de galo- acentuavam sua expressão afável, franco. Aquele ser não tinha nada de azedo, mas sob sua fachada escondia certa infelicidade, mesclada com profundas reflexões que se remontavam a toda sua vida passada.

-Teria ocorrido de todas maneiras, Lestat -disse ao final-. Existem razões para que já não seja tão eficiente como Superior General. Teria ocorrido de todas maneiras; disso estou bastante seguro.

-por que não me explica isso? Eu acreditava que estava nas vísceras mesmas da ordem, que isso era sua vida.

Sacudiu a cabeça.

-Sempre fui um candidato improvável para a Talamasca. Alguma vez te disse que passei minha juventude na Índia. Podia ter vivido a vida inteira desse modo. Não sou um erudito no sentido convencional da palavra; nunca fui. Entretanto, pareço-me com o Fausto da obra. Sou velho e não tenho descoberto os segredos do universo; absolutamente. Pensei que o tinha feito quando era jovem, a primeira vez que tive... uma visão. A primeira vez que vi uma bruxa, a primeira vez que ouvi a voz de um espírito, a primeira vez que convoquei a um espírito e fiz que me obedecesse, pensei que o tinha descoberto! Mas não foi nada. Essas são coisas pedestres... mistérios prosaicos. Ou mistérios que de todos os modos jamais vou resolver.

Fez uma pausa como se queria adicionar algo mais, algo em particular, mas logo levantou o copo e bebeu quase com gesto distraído, sem a careta esta vez, porque evidentemente a careta tinha sido para o primeiro gole da noite. Cravou o olhar no copo e ato seguido procedeu a enchê-lo de novo.

Desgostava-me não poder lhe ler os pensamentos, não captar nem a mais leve emanação atrás de suas palavras.

-Sabe por que me fiz membro da Talamasca? Não teve nada que ver com a erudição. Jamais supus que me ia encerrar na Casa Matriz, que ia dirigir papéis, a guardar arquivos no computador, a enviar faxes a todas partes do mundo. Nada pelo estilo. Tudo começou com outra caçada, uma nova fronteira, por assim dizer, uma viagem ao longínquo o Brasil. Foi ali onde descobri o oculto nas callecitas sinuosas do velho Rio, que me resultou tão emocionante e perigoso como minhas antigas caçadas do tigre. Isso foi o que me atraiu: o perigo. E como terminei tão longe disso, não sei.

Eu nada disse, mas se algo ficou claro foi que me conhecer lhe significou um risco. Gostava do perigo, sem dúvida. Tinha-me parecido que ele encarava a relação com a ingenuidade do erudito, mas agora via que não.

-Sim -assegurou quase imediatamente, e seus olhos se alargaram ao sorrir-. Exato. Embora honestamente não posso acreditar que possa me fazer danifico nunca.

-Não te engane -rebati-. Porque é indubitável que te ilude. Comete o velho pecado de acreditar no que vê, e eu não sou o que vê.

-Ah, não?

-Vamos... tenho aspecto de anjo, mas não o sou. As velhas regras da natureza incluem muitas criaturas como eu. Somos belos como a serpente de cascavel, ou o tigre a raias, mas também somos assassinos implacáveis. Deixa-te enganar por seus olhos. Mas não quero brigar contigo. me conte a história. O que aconteceu Rio? Morro por sabê-lo.

Um sotaque de tristeza se apoderou de mim ao pronunciar essas palavras. Tivesse querido lhe dizer: se não poder te ter como companheiro vampiro, me permita te conhecer como mortal. Enchia-me de uma emoção quase evidente o estar sentados aí os dois, tal como estávamos.

-De acordo -disse-. Já expôs sua idéia e me dou por informado. Senti, é verdade, a tentação do perigo quando, anos atrás, aproximei-me de ti no auditório onde cantava, quando te vi a primeira vez que veio para mim. E o fato de que me tente com seu oferecimento... isso também é perigoso, porque sou humano, como ambos sabemos.

Recostei-me contra o respaldo, um pouco mais feliz; levantei a perna e apoiei o talão no assento de couro da velha poltrona.

-Eu gosto que a gente me tenha um pouco de medo -disse, me encolhendo de ombros-. Mas, o que aconteceu Rio?

-Topei-me cara a cara com a religião dos espíritos. O candomblé. Conhece a palavra?

Voltei a me encolher de ombros.

-Ouvi-a uma ou duas vezes -expliquei-. Penso ir ali algum dia, possivelmente logo. -Imaginei as grandes cidades da Sudamérica, os bosques, o Amazonas. Sim, gostava de tal aventura, e o desespero que me tinha levado até o Gobi me parecia já muito longínqua. Alegrava-me estar vivo ainda, e em silêncio me neguei a me sentir envergonhado.

-Ah, se pudesse voltar a ver Rio -disse David, mais para si mesmo que dirigindo-se a mim-. É obvio, Rio não é o que era nnaquele tempo. naquele tempo. Agora é um mundo de arranha-céu e enormes hotéis de luxo. Mas eu adoraria ver de novo essa costa em curva, o Cristo no topo da Corcunda. Acredito que não há geografia mais deslumbrante no mundo inteiro. por que deixei passar tantos anos sem retornar a Rio?

-Acaso não pode ir quando te agradar? -Senti de repente grandes anseia de protegê-lo. -Suponho que esses monges de Londres não podem te impedir que vá. Além disso, é o chefe.

Riu em um estilo muito cavalheiresco.

-Não, não me impediriam isso -disse-. É questão de ter, ou não, os brios, tanto físicos como mentais. Mas a questão não é essa; só queria te contar o que aconteceu. Ou talvez sim tenha que ver... Não sei.

-Conta com médios para viajar ao Brasil, se quisesse?

-Sim, isso nunca foi problema. Em questões de dinheiro, meu pai foi muito inteligente e, em conseqüência, nunca tive que me preocupar muito.

-Se não tivesse o dinheiro, eu lhe poria isso nas mãos.

Obsequiou-me um de seus sorrisos mais tolerantes e afáveis.

-Hei-me posto velho -disse-. Estou sozinho e algo parvo, como deve sê-lo todo homem com um pouco de sabedoria. Mas pobre não sou, graças a Deus.

-E bem? O que aconteceu o Brasil? Como começou tudo?

ia falar, mas guardou silêncio.

-Seriamente pensa ficar aqui a me escutar? -disse, depois.

-Sim -respondi imediatamente-. Por favor. -Compreendi que nada ansiava tanto no mundo. Não tinha um só plano nem ambição no coração, nem outro pensamento que não fora estar ali, com ele. Um pouco tão simples como isso me deixou um pouco perplexo.

Assim e todo o notei resistente a confiar em mim. Logo se produziu uma mudança sutil nele, uma espécie de relaxação, um entregar-se, possivelmente.

Até que por fim começou.

-Ocorreu depois da Segunda guerra mundial. A Índia de minha infância já não existia. Além disso, eu desejava novos horizontes. Então organizei com meus amigos uma expedição para ir caçar ao Amazonas. Obcecava-me a perspectiva da selva amazônica. Queríamos caçar o grande jaguar sul-americano. -Assinalou um rincão da habitação onde, montada sobre um pedestal, via-se uma pele salpicada de felino em que eu não tinha reparado. -Não imagina as vontades que tinha de apanhá-lo.

-Parece que o conseguiu.

-Não imediatamente -esclareceu com uma risada irônica-. Decidimos começar a expedição passando primeiro umas formosas férias em Rio, duas semanas para percorrer a praia da Copacabana e os lugares históricos: monastérios, Iglesias, etc. Tenha em conta que nessa época o centro da cidade era muito distinto, uma conejera de callecitas estreitas e maravilhosa arquitetura. Eu estava ofegante, emocionava-me muito a perspectiva de fazer algo tão insólito! Isso é o que impulsiona aos ingleses a ir aos trópicos.

Sentimos a necessidade de nos afastar dos cánones sociais, da tradição... e nos inundar em alguma cultura ao parecer selvagem a que nunca podemos domesticar nem compreender.

À medida que falava todo seu porte ia trocando; o notava mais vigoroso, brilhavam-lhe os olhos e as palavras lhe fluíam mais rapidamente com esse marcado acento britânico que tanto eu gostava.

-Bom, a cidade superou todas nossas expectativas, certamente, mas muito mais fascinante ainda foi sua gente. Os brasileiros não se parecem com ninguém que alguém conheça. Para começar, são muito belos, e embora todos coincidem neste ponto, ninguém sabe o porquê. Não; digo-o a sério -assegurou quando me viu sorrir-. Talvez seja a mescla de português com africano e o aplique de sangue indígena. Não sei. O certo é que são muito atrativos e têm uma voz muito sensual. A gente pode apaixonar-se por essas vozes... pode beijar essas vozes... E a música, a bossa nova, é sua linguagem.

-Deveria haver ficado ali.

-Não, não! -protestou, e bebeu outro sorbito de uísque-. Bom, continúo: tive uma relação apaixonada por um moço de nome Carlos, já desde a primeira semana. Fiquei encantado. Dedicamo-nos a beber e fazer o amor dia e noite sem cessar, em minha suíte do Palace Hotel. Uma verdadeira indecência.

-Seus amigos lhe esperaram?

-Não; convocaram-me: ou vem já mesmo conosco ou lhe abandonamos. Mas não tinham inconveniente em que Carlos se incorporasse ao grupo. -Fez um gesto.-Eram homens muito mundanos, certamente.

-Imagino.

-Entretanto, a decisão de levar ao Carlos foi um tremendo engano. Sua mãe era sacerdotisa do candomblé, coisa da que eu não tinha nem a mais remota idéia. Ela não queria que seu filho viajasse à selva amazônica; queria que fora ao colégio. Então me fez perseguir pelos espíritos.

Fez uma pausa e me olhou, possivelmente para medir minha reação.

-Tem que ter sido divertido.

-Davam-me golpes de punho na escuridão. Levantavam minha cama e me jogavam no piso! Quando tomava banho, faziam girar os grifos e quase me queimavam vivo. Enchiam-me a taça de chá com urina. Ao cabo de sete dias já me estava voltando louco. Primeiro senti chateio, logo incredulidade e daí passei ao terror. Voavam os pratos da mesa ante meus olhos. Soavam timbres em meus ouvidos. As garrafas caíam das prateleiras e se faziam pedacinhos. Em qualquer lugar que ia, via pessoas de tez escura que me observavam.

-Sabia que era essa mulher?

-Ao princípio, não. Mas por último Carlos me confessou tudo. Sua mãe não pensava levantar a maldição até que não me fora. Bom, essa mesma noite me parti.

"Retornei a Londres exausto e médio louco, mas as coisas não melhoraram, porque os espíritos vieram comigo. E começaram a produzi-los mesmos fenômenos aqui, no Talbot Manor. Portas que se golpeavam, móveis que se moviam, timbre que soavam constantemente nas dependências de serviço. Já todos estávamos perdendo o julgamento. E minha mãe -sempre teve inclinações espíritas- vivia correndo de uma médium a outra por todo Londres. Foi ela a que chamou à a Talamasca. Eu lhes contei a história completa e eles começaram a me explicar o que era o espiritismo e o candomblé.

-Exorcizaram aos demônios?

-Não. Mas ao cabo de uma semana de intensos estudos na biblioteca da Casa Matriz e prolongadas entrevistas com os poucos membros que conheciam Rio, pude-os dominar. Todos ficaram muito surpreendidos. Depois, quando resolvi voltar para Rio, desconcertei-os. Advertiram-me que essa sacerdotisa tinha faculdades suficientes para me matar.

"Precisamente -disse-lhes-; pretendo ter eu esses mesmos dons. vou ser seu aluno. Quero que ela me ensine". Imploraram-me que não fora e lhes respondi que à volta ia apresentar um relatório escrito. Imaginará como me sentia. Eu tinha visto como trabalhavam esses entes invisíveis. Havia sentido que me tocavam. Tinha visto objetos que se lançavam pelos ares. Pensava que ante mim se abria o grande mundo do invisível. Tinha que viajar. Nada me teria podido dissuadir. Nada absolutamente.

-Entendo. Foi tão emocionante como uma expedição de caça maior.

-Assim é. -Sacudiu a cabeça. -Que épocas. Certamente pensava que, se não me tinha matado a guerra, já nada poderia fazê-lo. -de repente se deixou levar pelas lembranças e não me permitiu compartilhá-los.

-Enfrentou-te à mulher?

-Enfrentei-a e a deixei impressionada; depois a subornei de mil maneiras. Disse-lhe que queria ser seu aprendiz; jurei-lhe de joelhos que desejava aprender, que não ia até não ter compreendido o mistério, e aprendido todo o possível. -Soltou uma risada. -Acredito que ela nunca tinha conhecido a um antropólogo, nem sequer aficionado, e se pode dizer que eu era isso. Seja como for, fiquei um ano em Rio e me acredite que foi o mais notável de minha vida. Ao final, parti-me só porque sabia que, se não ia nesse momento, não ia mais. Teria sido o fim do David Talbot, o inglês.

-Aprendeu a convocar aos espíritos?

Assentiu. Uma vez mais estava rememorando, vendo imagens que me estavam vedadas. Notei-o perturbado, muito triste.

-Escrevi um relato completo -disse finalmente-, que está nos arquivos da Casa Matriz. Ao longo destes anos, muitas, muitíssimas pessoas o leram.

-Alguma vez te tentou a possibilidade de publicá-lo?

-Não posso. É uma exigência da Talamasca. Jamais publicamos para fora.

-Teme ter esbanjado sua vida, não é assim?

-Não. Sinceramente, não... Embora seja verdade o que te disse antes. Não descobri os segredos do universo. Jamais avancei mais à frente do ponto ao que cheguei no Brasil. OH, depois houve horripilantes revelações. Recordo minha incredulidade da primeira noite, quando li os arquivos sobre os vampiros; e a sensação estranha que me produziu baixar às criptas a revisar as provas. Mas em definitiva me passou quão mesmo com o candomblé: pude chegar até um determinado ponto e não mais.

-me acredite que sei. David, o mundo tem que seguir sendo um mistério. Se houver uma explicação, não a vamos encontrar nós; disso estou seguro.

-É certo -coincidiu, pesaroso.

-E penso que lhe tem mais medo à morte do que admite. Comigo assumiste uma atitude instada, de ordem moral, e não te culpo. Talvez tem idade e critério para saber positivamente que não quer te converter em um de meus, mas não fale da morte como se ela pudesse te dar as respostas. Eu suspeito que a morte é espantosa. Alguém se termina, não há mais vida, nenhuma possibilidade de saber mais nada.

-Nisso não estou de acordo, Lestat. Impossível te dar a razão. -Estava olhando novamente ao tigre; logo disse: -Alguém criou a simetria perfeita, Lestat. Isso teve que fazê-lo alguém. O tigre e a C'A2ja... não pode ter acontecido sozinho.

Fiz um gesto de negação sem separar os lábios.

-ficou mais inteligência na criação desse velho poema, da que jamais se empregou na criação do mundo. Quando fala assim parece episcopal. Mas entendo o que diz.

Eu também às vezes pensei igual: tem que haver algo que o explique tudo. Tem que havê-lo! Faltam tantas peças do quebra-cabeças. Quanto mais o pensa, mais tem a impressão de que os ateus falam como fanáticos religiosos. Mas eu acredito que é uma falsa ilusão. Tudo é processo e nada mais.

-Peças que faltam, Lestat. Certamente! Imagina por um instante que eu fabricasse um robô, uma réplica perfeita de mim mesmo. Suponha que lhe desse todas as enciclopédias de informação possíveis; quer dizer, que as programasse em seu cérebro-computador. Bom, só seria uma questão de tempo, porque em algum momento viria a me perguntar: "Onde está o resto, David? Quero a explicação! Como começou tudo? Por que omitiu explicar a razão de que tenha havido um big Bang em primeiro lugar ou o que foi o que ocorreu quando os minerais e demais compostos inertes de repente evoluíram e se converteram em células orgânicas? Como se explica a enorme brecha no registro dos fósseis?".

Ri-me agradado.

-Então teria que lhe confessar ao pobre tipo -prosseguiu- que não há explicação alguma, que não tenho as peças que faltam.

-David, ninguém as tem nem as terá.

-Não esteja tão seguro.

-Isso é o que esperas, verdade? Por isso está lendo a Bíblia? Volta para Deus porque não pôde desentranhar os mistérios do universo?

-Deus é o segredo oculto do universo -expressou, pensativo, com o rosto muito sereno, quase juvenil. Tinha os olhos cravados no copo, admirando possivelmente a forma em que concentrava a luz sobre o cristal. Não sei. Tive que esperar uns instantes para que continuasse. -Acredito que a resposta poderia estar na Gênese -disse por fim-. Sinceramente acredito.

-Deixa-me sobressaltado, David. Falas de peças que faltam e menciona a Gênese, que não é mais que um punhado de fragmentos.

-Sim, mas fragmentos reveladores que ficaram para nós, Lestat. Deus criou ao homem a sua imagem e semelhança, e suspeito que essa é a chave. Ninguém sabe com certeza o que isso significa. Os hebreus não acreditavam que Deus fora um homem.

-por que supõe que pode ser a chave?

-Deus é uma força criativa, Lestat, e nós também. Ao Adão ordenou: "Cresçam e lhes multiplique". Isso foi o que fizeram as primeiras células orgânicas: cresceram e se multiplicaram. Não trocaram meramente de forma mas sim se reproduziram. Deus é uma força criativa. Ele fez todo o universo partindo de si mesmo mediante a divisão celular. Por isso os demônios estão tão cheios de inveja... refiro-me aos anjos maus: porque não são forças criativas; não têm corpo nem células; são espíritos. E presumo que o que sentiram não foi inveja mas sim mas bem uma forma de desconfiança, porque viram que Deus estava cometendo um engano ao construir outro motor de criatividade -Adão- tão parecido a Ele. Quero dizer que os anjos provavelmente pensaram que já bastante mau era o universo físico, com todas as células que se reproduziam, como para que em cima tivessem que aceitar a seres que falavam e pensavam, que além disso podiam crescer e multiplicar-se. Sem dúvida o experimento os indignou, e esse foi seu pecado.

-Então o que diz é que Deus não é puro espírito.

-Em efeito. Deus tem corpo; sempre o teve. O segredo das células que se dividem e produzem vida reside no mesmo Deus. E todas as células vivas levam dentro de si uma minúscula parte do espírito divino, Lestat: essa é a peça que falta, a que produz vida em primeiro lugar, a que separa à vida da não vida. O mesmo ocorre com sua gênese de vampiro. Diz que o espírito do Amel -um ente perverso- imbuiu os corpos de todos os vampiros... Bom, da mesma maneira os homens compartilham o espírito de Deus.

-Santo céu. Acredito que te está voltando louco, David. Os vampiros são uma mutação.

-Ah, sim, mas existem em nosso universo e sua mutação reflete a mutação que somos nós. Além disso, há outros que sustentam a mesma teoria. Deus é o fogo e nós minúsculas llamitas; e quando morremos, as llamitas retornam ao fogo de Deus. Mas o importante é compreender que Deus mesmo é corpo e alma! Absolutamente.

"A civilização ocidental se assentou sobre um trastrocamiento. Mas acredito, com toda honestidade, que em nossas ações diárias conhecemos e honramos a verdade. Só ao falar de religião afirmamos que Deus é espírito puro, que sempre foi e sempre o será, e que a carne é pecado. A verdade está na Gênese. E te digo o que foi o big Bang, Lestat: foi o momento em que as células de Deus começaram a dividir-se.

-É uma bela teoria, David. surpreendeu-se Deus?

-Não, mas os anjos sim. Digo-o a sério. E agora te digo a parte supersticiosa: a crença religiosa de que Deus é perfeito. Obviamente, não o é.

-Que alívio. Assim se explicam muitas coisas.

-Está-te rendo de mim e não te culpo. Mas é assim como diz: isso o explica tudo. Deus cometeu muitos, muitíssimos enganos. E por certo Ele mesmo sabe! Eu suspeito que os anjos trataram de advertir-lhe O diabo se converteu em diabo porque tratou de pôr sobre aviso a Deus. Deus é amor, sim, mas não estou seguro de que seja extremamente talentoso.

Tratei de conter a risada mas não o obtive de tudo.

-David, se seguir com estes lhes plante, partirá-te um raio.

-Tolices. Deus quer que nós o compreendamos.

-Não. Isso não o posso aceitar.

-Quer dizer que aceita todo o resto? -disse, com outra risada-. Não, falo muito a sério. A religião é primitiva pelas conclusões ilógicas a que acima. Imagine a um Deus perfeito que permite que surja um demônio. Não; isso nunca teve sentido.

"O grande enguiço da Bíblia é o conceito de que Deus é perfeito. Representa uma falta de imaginação por parte dos antigos eruditos. E esse enguiço explica todas as utopias teológicas sobre o bem e o mal com que vamos lutando há séculos. Entretanto, Deus é bom, maravilhosamente bom. Sim, Deus é amor, mas nenhuma força criativa é perfeita. Isso está claro.

-E o diabo? Há algum exponho novo sobre ele?

Observou-me um instante com um sotaque de impaciência.

-É tão cínico -sussurrou.

-Não, não o sou. De verdade quero saber. Tenho um interesse particular no diabo, é obvio. Falo dele com muito mais assiduidade que de Deus. Não entendo por que os mortais o amam tanto; quer dizer, por que adoram a idéia de que exista. É assim.

-Porque não acreditam nele. Porque a idéia de um diabo totalmente maligno tem menos sentido ainda que a de um Deus perfeito. Não se pode acreditar que durante todo este tempo o diabo não tenha aprendido nada, que ainda queira seguir sendo diabo. Semelhante idéia é uma ofensa a nosso intelecto.

-Então, qual é a verdade que vê depois da mentira?

-Que ele não é totalmente irredimível. É tão somente uma parte do plano de Deus, um espírito com permissão para tentar e pôr a prova aos humanos. O diabo está contra os humanos, do experimento em sua totalidade. Precisamente esse foi o caráter da Queda, como o vejo eu. Nunca pensou que a idéia fora dar resultado. Mas a chave, Lestat, é compreender que Deus é matéria! Deus é um ser físico, é o amo da divisão celular, e o diabo não quer permitir uma desenfreada divisão das células.

Fez outra de suas pausas enloquecedoras, voltou a abrir os olhos com expressão de assombro e continuou:

-Tenho outra teoria em relação ao demônio.

-me diga.

-Que existe mais de um. E a nenhum gosta de muito o trabalho. -Isso o disse quase em um murmúrio. Estava abstraído, como se queria adicionar algo mais, mas não o fez.

Eu reagi com uma risada franco.

-Isso sim o entendo -disse-. A quem pode lhe gostar do trabalho de diabo? E pensar que um nunca vai poder ganhar, sobre tudo tendo em conta que o diabo começou sendo um anjo; e muito inteligente, conforme dizem.

-Exato. -Assinalou-me com um dedo. -Quanto a sua teoria sobre o Rembrandt, digo-te que, se o diabo tivesse cérebro, deveria ter advertido o gênio do Rembrandt.

-E a bondade de Fausto.

-Ah, sim; viu-me lendo o "Fausto" no Amsterdam, não? E em conseqüência te comprou um exemplar.

-Como sabe?

-Contou-me isso ao dia seguinte o dono da livraria. Disse que, segundos depois de partir eu, entrou um francês jovem, loiro de aspecto estranho, comprou o muito mesmo livro e ficou meia hora lendo-o na rua, sem mover-se. Tinha a pele mais branca que jamais tivesse visto. Não podia ser outro que você, é obvio.

Sacudi a cabeça e sorri.

-Estou acostumado a cometer essas estupidezes. Chama-me a atenção que algum cientista não me tenha caçado ainda com uma rede.

-Isto não é piada, meu amigo. Noites atrás foi muito negligente em Miami. Deixou a duas vítimas sem uma gota de sangue.

Suas palavras me encheram de perplexidade e ao princípio não soube o que dizer; depois, só comentei meu assombro de que a notícia tivesse cruzado até este lado do oceano e me sumi na desesperança.

-Os assassinatos estranhos chegam aos titulares internacionais. Além disso, a Talamasca recebe informe de todo tipo de coisas. Temos gente que, do mundo inteiro, manda-nos recortes sobre qualquer aspecto do paranormal. "Assassino vampiro ataca duas vezes em Miami". Várias pessoas nos enviaram isso.

-Mas realmente não acreditam que tenha sido um vampiro; você sabe que não acreditam.

-Não; mas se insistir com o mesmo, vão terminar acreditando-o. Isso era o que pretendia antes de iniciar sua breve carreira de cantor de rock. Queria lhes fazer entender. Não é algo impensável. E essa predileção que demonstra pelos assassinos múltiplos! Está deixando uma pista muito clara.

Sinceramente, surpreendeu-me. Para dar caça aos assassinos tubo que ir e vir pelos continentes. Nunca pensei que ninguém -salvo Marius, certamente- fora a relacionar essas mortes tão separadas umas de outras.

-Como foi que o deduziu?

-Já te disse que essas histórias chegam a nossas mãos. Tudo o que tenha que ver com o satanismo, o vampirismo, o vodu, os lobisomens: tudo deve parar a meu escritório. Grande parte desse material termina no cesto de papéis, é obvio, mas eu me dou conta quando algo é verdade. E seus homicídios são fáceis de detectar.

"Já faz um tempo que te dedica a perseguir assassinos múltiplos. Não ocultas os cadáveres. O último o deixou em um hotel, onde alguém o encontrou apenas uma hora depois. Quanto à anciã, foi muito descuidado! O filho a achou ao dia seguinte. O forense não encontrou feridas em nenhuma das duas vítimas. É uma celebridade anônima em Miami, que eclipsa até a má fama do pobre morto do hotel.

-Não me importa uma mierda -reagi. Mas vá se me importava. em que pese a que deplorava minha própria negligência, não fazia nada para corrigi-la. Bom, tinha que me propor trocar. Essa mesma noite, por exemplo, tinha obrado melhor? Pareceu-me covarde procurar desculpas para justificar esse tipo de coisas.

David me observava atentamente. Se havia algo que o distinguia, era sua característica de estar alerta.

-Não me chamaria a atenção -disse- que lhe capturassem.

Soltei uma risada depreciativa, como descartando essa possibilidade.

-Poderiam te encerrar em um laboratório, te estudar em uma jaula de cristal.

-Impossível. Mas que idéia interessante.

-Tinha razão eu! Queria que passasse isso.

Encolhi-me de ombros.

-Poderia ser divertido por pouco tempo. Mas te asseguro que é absolutamente impossível. A noite de minha única aparição como cantor de rock aconteceram muitas coisas insólitas. Quando terminou tudo, o mundo mortal se limitou a passar a vassoura e não se voltou a falar mais do assunto. Quanto à mulher de Miami, foi um percalço terrível. Jamais teria que ter acontecido... -Interrompi-me. E os que tinham morrido essa mesma noite em Londres?

-Mas desfruta matando. Disse que era divertido.

Senti uma dor tão grande que me deu vontade de fugir. Mas como tinha prometido não ir, fiquei olhando o fogo, pensando no deserto do Gobi, nos ossos de enormes sáurios, em como a luz tinha cheio o mundo inteiro. Pensei na Claudia. Senti o aroma do pavio do abajur.

-Sinto muito. Não quero ser cruel contigo -disse.

-Bom, por que diabos não? Não me ocorre uma forma mais fina de crueldade. À parte, eu não sou sempre amável contigo.

-O que é o que quer realmente? Qual é sua maior paixão?

Pensei no Marius e no Louis, que muitas vezes me tinham feito a mesma pergunta.

-Como posso expiar o ato que cometi? Minha intenção era terminar com o assassino. Esse homem era um tigre antropófago, irmão. Espreitei-o. Em troca a anciã... era uma menina no deserto, nada mais. Mas, o que importa? -Pensei nos pobres aos que tinha dado morte um momento antes, essa mesma noite. Semelhante açougue como deixei nos becos de Londres! -Eu gostaria de poder recordar que não importa. A ela quis salvá-la. Mas, o que tem de bom um ato de compaixão frente a tudo o que tenho feito? Se existir um Deus ou um diabo, estou condenado. por que não continua com seu bate-papo religiosa? O estranho do caso é que falar de Deus e o diabo me seda. me conte mais sobre o diabo. É inconstante, não? E inteligente. Deve ser capaz de sentir. por que teria que permanecer estático?

-Exato. Já sabe o que diz o Livro do Jó.

-recorde-me isso –Falas dessas idéias como se tivessem sido reais...

-Bom, Satanás está no céu com Deus. Deus lhe pergunta: "Onde andou?". E lhe responde: "Passeando pela terra!". trata-se de uma conversação habitual. Então começam a discutir sobre o Jó. Satanás acredita que a bondade do Jó se apóia inteiramente em sua boa sorte. E Deus acessa a que Satanás atormente ao Jó. Esta é a imagem mais próxima à verdade que possuímos. Deus não sabe tudo. O diabo é íntimo amigo dele. E toda esta coisa é um experimento. Mas esse Satanás não tem nada que ver com o diabo tal como o conhecemos agora em qualquer parte do mundo.

-Falas dessas idéias como se fossem seres reais...

-Acredito que são reais -sustentou, e sua voz se foi apagando à medida que ia sumindo-se em seus pensamentos. Logo se avivou. -Quero te contar uma coisa. Em realidade, teria que haver lhe confessado isso antes. Em certo sentido, sou supersticioso e religioso como qualquer. Porque tudo isto se assenta em uma espécie de visão... você sabe, esse tipo de revelações que afetam a nosso intelecto.

-Não, não sei. Eu tenho sonhos sem revelação. me explique, por favor.

Com o olhar fixo no fogo, entregou-se de novo a suas reflexões.

-Não me exclua -pedi-lhe em tom fico.

-Hmmm. Tem razão. Estava pensando em como relatá-lo. Bom, você sabe que sigo sendo sacerdote do candomblé. Quer dizer, posso convocar a forças invisíveis: espíritos fastidiosos ou como a gente queira chamá-los..., fantasmas, fenomenais psicocinéticos. Isso significa que certamente tive sempre uma capacidade latente para ver os espíritos.

-Imagino que sim.

-Bom, em uma oportunidade vi algo... inexplicável, antes de ter ido nunca ao Brasil.

-Ah, sim?

-antes do Brasil, eu virtualmente não lhe tinha dado importância. De fato, era-me tão inquietante, tão inexplicável, que para a época em que viajei a Rio tinha conseguido apagar o de minha mente. Agora, entretanto, penso todo o tempo nisso. Não me posso tirar isso da cabeça. Por isso é que voltei para a Bíblia, para ver se ali encontro a resposta.

-me conte.

-Ocorreu antes da guerra, em Paris, aonde tinha ido com minha mãe. Estava sentado em um café sobre a borda esquerda do Sena. Não sei que café era; só recordo que era um formoso dia primaveril, uma época magnífica para estar em Paris, como dizem todas as canções. Estava bebendo uma cerveja, lendo os jornais ingleses, quando de repente me dava conta de que, sem querer, ouvia uma conversação. -Uma vez mais ficou absorto. -Oxalá soubesse o que aconteceu -confessou em um murmúrio.

inclinou-se para frente, tomou o atiçador e ficou a revolver os lenhos, com o qual se elevaram faíscas ardentes pelos tijolos escuros.

Deram-me umas vontades intensas de sacudi-lo, mas preferi esperar, até que por fim prosseguiu.

-Como te disse, estava em um café.

-Sim.

-E comecei a escutar uma conversação... que não era em inglês nem em francês... até que pouco a pouco tomei consciência de que não era em nenhum idioma, e entretanto a entendia perfeitamente. Deixei o jornal e me concentrei. Era uma espécie de discussão. De repente já não sabia se as vozes eram audíveis em um sentido convencional. Não estava seguro de que ninguém mais pudesse as ouvir! Levantei o olhar e, sem me apressar, girei em redondo.

"E aí estavam... dois seres sentados a uma mesa, conversando; por um momento me pareceu algo normal: simplesmente dois homens conversando. Voltei a olhar o jornal e me invadiu uma sensação de estar nadando. Tive que me ancorar a algo, me concentrar um instante no jornal, na mesa, para que cessasse esse nadar. Então retornou o ruído do café como se fora uma orquestra inteira. Mas sabia que o que acabava de ver eram dois seres que não eram humano.

"Dava-me volta de novo e me esforcei por emprestar atenção, por captar o mais possível. Eles seguiam em seu lugar e eu compreendi que eram ilusórios. Evidentemente não eram do mesmo pano que todo o resto. Compreende o que te digo? lhe posso recortar isso por partes. Não estavam iluminados pela mesma luz, por exemplo. Existiam em um reino onde a luz provinha de outra fonte.

-Como a luz no Rembrandt.

-Sim, como isso. Seus rostos eram mais tersos que os dos humanos. Toda a visão tinha uma textura distinta, uniforme em todos seus detalhes.

-Viram-lhe eles a ti?

-Não. Quer dizer, não me olharam nem se deram por inteirados de minha presença. olhavam-se um ao outro, seguiram falando e eu retomei o fio imediatamente. Era Deus lhe dizendo ao diabo que devia prosseguir com seu trabalho, e o diabo não queria fazê-lo. Explicava que já levava muito tempo trabalhando. Quão mesmo acontecia com ele acontecia com todos outros. Deus disse que Ele entendia, mas que o diabo devia saber quão importante ele -o diabo- era, que não podia evitar suas obrigações, que não era tão singelo. Em definitiva, dizia-lhe que devia ser forte, tudo dito em tom muito amistoso.

-Que aspecto tinham?

-Essa é a pior parte: não sei. Nesse momento eu vi duas figuras grandes, decididamente masculinas, ou que assumiam forma masculina, por assim dizê-lo, de agradável aparência; absolutamente monstruosos nem fora do comum. Não me dava conta de que faltassem detalhes, como por exemplo cor do cabelo, facções, essas coisas. As duas silhuetas pareciam completas. Mas quando depois quis reconstruir o episódio, não me lembrava das particularidades! Não acredito que a ilusão fora tão completa. Acredito que me deixou satisfeito, mas essa sensação proveio de algo distinto.

-Do que?

-Do conteúdo, da significação, certamente.

-Eles não lhe viram, não souberam que estava aí.

-Meu querido amigo, têm que ter sabido que estava. Têm que havê-lo sabido. Certamente o faziam para mim! Como, se não, me permitiu vê-lo?

-Não sei, David. Ao melhor não tinham a intenção de que os visse. Talvez algumas pessoas podem ver, e outras não. Ou possivelmente fora um rasgão na outra trama, a trama de todo o resto que havia no café.

-Poderia ser, mas me temo que não foi isso. Temo-me que a intenção tenha sido que os visse, produzir um efeito em mim. E esse é o horror, Lestat: que não me produziu um bom efeito.

-Não te fez trocar de vida.

-OH, não, absolutamente. Mais ainda: aos dois dias já duvidava até de havê-los visto. Cada vez que o contava a alguém, cada vez que me diziam "David, está louco", o episódio se voltava mais impreciso e duvidoso. Não; nunca obrei em conseqüência.

-Mas, o que podia ter feito? O que pode fazer uma pessoa que teve uma revelação, salvo levar uma boa vida? Imagino, David, que o terá contado a seus companheiros da Talamasca.

-Sim, sim, o contei. Mas isso foi muito mais tarde, depois do do Brasil, quando apresentei minhas memórias como deve fazer tudo bom integrante. Certamente, relatei a história completa tal como ocorreu.

-E o que lhe disseram?

-Lestat, a Talamasca nunca diz muito sobre nada; isso terá que sabê-lo. "Nós observamos e estamos sempre alertas." Para falar a verdade, não era uma visão que muitos de meus companheiros queriam escutar. No Brasil, se falas de espíritos em seguida tem público. Mas menciona ao Deus cristão e ao diabo... Em certo modo, a Talamasca está regida por prejuízos e até por modas, como qualquer instituição. A história provocou certa perplexidade. Não recordo muito mais. Mas, o que se pode esperar de cavalheiros que viram lobisomens, que foram seduzidos por vampiros, que lutaram contra bruxas e falaram com fantasmas?

-Mas Deus e o diabo -disse, rendo- são as estrelas do elenco. Não será que seus companheiros lhe invejaram mais do que supõe?

-Não; não tomaram a sério -disse, aceitando minha brincadeira com uma risada-. Para te ser franco, chama-me a atenção que você o tenha tomado tão ao pé da letra.

de repente se levantou agitado, encaminhou-se à janela, abriu a cortina e tratou de olhar fora, de noite coberta de neve.

-David, essas aparições... o que crie que pretendiam de ti?

-Não sei -reconheceu com voz de desalento-. A isso quero chegar. Já tenho setenta e quatro anos, e não sei. Vou morrer sem sabê-lo. E se não poder me esclarecer, que assim seja. Isso em si mesmo é uma resposta, com independência de que tome suficiente conscientiza disso ou não.

-Vêem aqui e sente-se, por favor. Eu gosto de verte a cara quando fala.

Obedeceu quase automaticamente. sentou-se e voltou a tomar o copo vazio, ao tempo que seus olhos se posavam no fogo uma vez mais.

-O que opina, Lestat? De verdade, em seu interior. Existe um Deus ou um diabo? Me diga com sinceridade o que pensa.

Tomei um comprido momento para responder.

-Honestamente, acredito que Deus existe. Eu não gosto de dizê-lo, mas acredito. E é provável que exista também alguma forma de diabo. Reconheço que há peças que faltam, como havemos dito. E poderia ser que nesse café de Paris tivesse visto o Ser Supremo e a seu adversário. Mas o fato de que nunca possamos decifrar o mistério é parte do jogo enloquecedor de ambos. Buscas uma explicação possível de sua conduta, saber por que lhe permitiram vislumbrar algo? Queriam que tivesse uma reação de tipo religioso! Jogam conosco dessa maneira. Lançam visões, milagres, vestígios de revelação divina; então nos enchemos de ardor e fundamos uma igreja. Tudo é parte de seu jogo, de seu bate-papo interminável. E sabe uma coisa? Acredito que a visão que tem você deles -a de um Deus imperfeito e um diabo que está aprendendo- é uma interpretação tão boa como qualquer outra. Acredito que deste na tecla.

Olhava-me com grande atenção, mas não respondeu.

-Não -continuei-. A intenção não é que conheçamos as respostas, que saibamos se nossas almas viajam de um corpo a outro, e a outro mais através da reencarnação. Nunca vamos ou seja se Deus fez o mundo, se for Alá, Yahvé, Siva ou Cristo. Ele semeia dúvidas da mesma maneira como semeia revelações. Nós somos seus tolos.

Seguia sem abrir a boca.

-Abandona a Talamasca, David. Vete ao Brasil antes de que seja muito velho. Retorna à a Índia. Vá a todos os sítios que quer conhecer.

-Sim, talvez devesse fazê-lo -repôs brandamente-. E eles se ocuparão de tudo por mim. O conselho já se reuniu para tratar o tema de minhas recentes ausências da Casa Matriz. Aposentarão-me com uma boa soma, certamente.

-Eles sabem que me viu?

-OH, sim. Isso é parte do problema, porque me proibiram tomar contato contigo. O qual é muito divertido, realmente, posto que estão ansiosos por verte eles mesmos. Sabem quando anda pela Casa Matriz, certamente.

-Já sei que se dão conta. O que é isso de que lhe proibiram o contato?

-OH, a admoestação de rigor -respondeu, com os olhos ainda posados nos lenhos-. Tudo muito medieval e apoiado em uma antiga diretiva: "Não deve respirar a esse ser; não deve cercar nem prolongar a conversação com ele. Se insistir em suas visitas, fará o possível por levá-lo a um sítio muito povoado, porque sabido é que a essas criaturas não gosta de atacar se estão rodeadas de mortais. E jamais tratará de lhe surrupiar secretos, nem acreditará por um instante que qualquer emoção revelada por ele seja genuína, porque sabem fingir com singular astúcia e se sabe de casos em que, por razões impossíveis de analisar, levaram a mortais à loucura. Essa sorte correram notáveis investigadores e pobres inocentes com quem os vampiros estabelecem contato. Deve informar ao conselho, sem a menor demora, de todo encontro, avistamiento, etc".

-Realmente sabe de cor?

-Eu mesmo o redigi -reconheceu com um sorriso-. Através dos anos reparti a diretiva a muitos outros membros.

-Seguro que sabem de minha presença aqui, agora.

-Não, claro que não. Faz tempo já que deixei de informar nossos encontros. -Voltou a sumir-se em seus pensamentos. -Procura deus? -perguntou logo.

-Por certo que não -respondi-. É uma grande perda de tempo, mesmo que a gente tenha séculos para esbanjar. Já não empreendo mais essas buscas. Miro o mundo que me rodeia para encontrar as verdades, verdades encerradas no físico e o estético, verdades que posso abraçar plenamente. A visão que teve me interessa porque é tua, porque me relatou isso e porque te quero muito, mas nada mais.

Voltou a tornar-se para trás, com o olhar perdido na penumbra.

-Não vai importar, David. vai chegar um momento em que morrerá, e eu também, com toda probabilidade.

Seu sorriso voltou a ser cálida, como se só pudesse aceitar isso como uma sorte de brincadeira.

produziu-se um comprido silencio, que ele aproveitou para servir-se mais uísque e bebê-lo com mais lentidão que antes. Não estava nem sequer um pouco ébrio, porque expressamente se propunha não chegar até esse ponto. Quando eu era mortal, sempre bebia para me embebedar. Mas nesse então eu era muito jovem e muito pobre, castelo ou não castelo, e a maioria das bebidas eram más.

-Você procura deus -sentenciou, fazendo gestos de afirmação com a cabeça.

-Maldito se for assim. Diz-o por sua própria experiência, mas sabe perfeitamente bem que não sou o moço que vê aqui.

-Ah, é verdade que não devo me esquecer disso. Mas nunca tolerou a maldade. Se for verdade embora mais não fora a metade do que escreveu em seus livros, é evidente que sempre te enojou todo o relacionado com o mal. Daria algo por descobrir o que Deus quer de ti, e cumprir seus intuitos.

-Está-te pondo caduco, David. Redige seu testamento.

-OH, que cruel -queixou-se com seu sorriso franco.

Estive a ponto de lhe dizer algo mais, mas me distraí para ouvir certos sons em minha mente. Um automóvel que passava a marcha lenta por um caminho estreito da longínqua aldeia, em meio de uma neve enceguecedora.

Efetuei uma exploração mental mas não encontrei nada, só mais neve que caía e o automóvel que avançava com dificuldade. Pobre mortal, ter que atravessar o campo às quatro da madrugada.

-Já é muito tarde -disse-, e tenho que ir. Não quero passar outra noite aqui, embora esteve extremamente amável. Isto não tem nada que ver com que alguém esteja informado. É só que prefiro...

-Entendo-te. Quando voltarei a verte?

-Talvez antes do que crie. me diga, David, a outra noite, quando fui como um atordoado a me assar no Gobi, por que disse que eu era seu único amigo?

-É-o.

Permanecemos uns instantes em silêncio.

-Você também é meu único amigo, David.

-Aonde vai agora?

-Não sei. Possivelmente volte para Londres. Te vou avisar quando cruzar de novo o Atlântico. De acordo?

-Sim, me avise. Não... não cria nunca que não quero verte; não volte a me abandonar mais.

-Se acreditasse ser uma boa influência para ti, se pensasse que te convém deixar a ordem e voltar a viajar...

-Claro que me convém. Meu lugar já não está na Talamasca. Nem sequer estou seguro de seguir confiando na instituição... nem de acreditar em seus objetivos.

Eu desejava lhe dizer muito mais; quanto o queria, que nunca esqueceria como me protegeu quando procurei refúgio sob seu teto, que estava disposto a fazer algo que me pedisse, o que fosse.

Mas me pareceu inútil. Não sei se me teria acreditado, nem que valor teriam tido minhas palavras. Eu ainda estava convencido de que não lhe convinha lombriga. E não ficava muito nesta vida.

-Todo isso sei -disse quedamente, me obsequiando de novo seu sorriso.

-David, tem aqui uma cópia do relatório que apresentou sobre suas aventuras no Brasil? Posso lê-lo?

levantou-se e caminhou até uma biblioteca com portas de vidro. Revisou uns instantes a grande quantidade de material que ali guardava e retirou duas grosas pastas de couro.

-Aqui está minha vida no Brasil, o que escrevi posteriormente na selva usando uma desmantelada máquina de escrever portátil, sobre uma mesita de acampamento, antes de voltar para a Inglaterra. Saí a caçar um jaguar, certamente. Tive que fazê-lo. Mas a caçada não foi nada em comparação com as experiências que vivi em Rio; não foi absolutamente nada. Esse foi o momento crítico. Acredito que o fato mesmo de redigir isto foi um intento de voltar a me converter em um inglês, de pôr distância com a gente do candomblé, com o tipo de vida que tinha levado com eles. O relatório que apresentei à a Talamasca se apoiou neste material.

Recebi-o agradecido.

-E isto -adicionou, refiriéndose à outra pasta- é um breve resumo de meus dias na África e a Índia.

-Também eu gostaria de lê-lo.

-São em sua major parte velhas histórias de caçadas. Era muito jovem quando as escrevi. Não falo mais que de armas e é pura ação! Foi antes da guerra.

Recebi também a segunda pasta. Logo me pus de pé em um estilo muito cavalheiresco.

-Passei-me a noite inteira falando eu -disse de repente-; muito desatento de minha parte. Ao melhor você tinha coisas que contar.

-Não, nenhuma. Foi exatamente o que eu queria. -Tendi-lhe a mão e ele me tomou. Assombrosa a sensação de seu roce contra minha carne queimada.

-Lestat... esse conto do Lovecraft... quê-lo ou prefere que lhe guarde isso?

-Ah... é uma história bastante interessante... quero dizer, a forma como chegou a minhas mãos.

Quando me entregou isso, guardei-o dentro do casaco. Talvez voltava a lê-lo. Recuperei a curiosidade e junto com ela uma sorte de receio temeroso. Veneza, Hong Kong, Miami. Como tinha feito esse insólito mortal para me localizar nos três lugares, e como conseguiu que o localizasse eu a ele!

-Quer me falar disso? -perguntou David, gentil.

-Quando tivermos mais tempo, contarei-te. -Sobre tudo se voltar a ver esse tipo, pensei. Como o fez?

Saí de maneira civilizada, fazendo de propósito um pouco de ruído ao fechar a porta lateral da casa.

Estava por amanhecer quando cheguei a Londres. E, pela primeira vez em muitas noites, alegrei-me de meus imensos poderes e da enorme sensação de segurança que me transmitiam. Não necessitava eu ataúdes, sítios escuros onde me esconder, a não ser só uma habitação onde não entrassem os raios do sol. Um elegante hotel com grosas cortinas me brindaria paz e comodidade.

Dispunha de algum tempo para me instalar sob a cálida luz do abajur e começar a ler as aventuras do David no Brasil, coisa que ansiava fazer com soma complacência.

Dada minha ligeireza e minha loucura, quase não levava dinheiro em cima, por isso tive que usar todo meu poder de persuasão com os empregados do venerável Claridge para que aceitassem o número de meu cartão de crédito em que pese a não ter nenhum cartão para exibir; e quando assinei com um de meus pseudônimos preferidos -Sebastian Melmoth-, acompanharam a uma preciosa suíte com muito belos móveis uso Reina Ana e equipada com todas as comodidades que alguém pudesse desejar.

Coloquei o cortês cartelito impresso de que não me incomodassem, avisei também na mesa de entradas que não queria ser incomodado até o anoitecer e logo travei todas as portas de dentro.

Sinceramente, não tinha tempo para ler. Estava chegando a manhã depois do céu cinza e a neve seguia caindo em flocos grandes, úmidos. Corri todas as cortinas salvo uma (para poder contemplar o céu), e aí fiquei, esperando o espetáculo da chegada da luz e ainda um tanto atemorizado por sua fúria. A dor da pele me estava intensificando, devido, mais que nada, a esse medo.

A lembrança do David ocupava minha mente; de fato, desde que nos tínhamos separado não pude deixar de pensar nele. Seguia ouvindo sua voz e tratava de imaginar sua visão fragmentária de Deus e do diabo no café de Paris. Mas minha posição quanto a todo esse tema era singelo e predecible. Acreditava que o do David eram delírios muito reconfortantes. E logo ele já não estaria comigo pois o levaria a morte. E de sua vida, só me foram ficar esses manuscritos. Nem mesmo me propondo isso podia acreditar que ele saberia algo mais quando estivesse morto.

Não obstante, assombrava-me o giro que tinha tomado a conversação, os brios do David, as coisas peculiares que haviam dito.

Achava-me muito cômodo com esses pensamentos, contemplando o céu plúmbeo e a neve que se acumulava abaixo, nas calçadas, quando de repente sofri um enjôo; mais ainda, um momento de total desorientação, como se estivesse por ficar dormido. Resultou-me muito agradável a sensação de sutil vibração, acompanhada por certa ingravidez, como se em efeito estivesse abandonando a forma física e entrando em meus sonhos. Logo veio essa pressão que com tanta nitidez experimentei em Miami: me comprimiam as pernas, todo meu corpo pressionava para dentro, voltava-me mais estreito e, de repente, a lhe atemorizem imagem de que me forçava a sair pelo cocuruto!

por que me passava isso? Estremeci-me, tal como fiz a vez anterior na praia solitária da Florida. E no ato se dissipou a sensação. Voltei a ser o de antes, mas fiquei com um sotaque de chateio.

Passava algo mau com minha bela e disforme anatomia? Impossível. Não necessitava que os mais antigos me certificassem dessa verdade. Não havia resolvido ainda se devia me preocupar com isso ou esquecê-lo, ou se devia tratar de voltar a induzi-lo, quando um golpe na porta me fez esquecer a preocupação.

Extremamente irritante.

-Mensagem para você, senhor. O cavalheiro solicitou que o entregasse em suas próprias mãos.

Tinha que haver algum engano. Entretanto, abri a porta.

O jovem entregou um sobre grosso, volumoso. Durante um instante só atinei a olhá-lo. Como ficava um bilhete de uma libra -da trombadinha ao que tinha dado morte mais cedo-, o dava e voltei a me encerrar.

tratava-se do mesmo tipo de sobre que me tinha dado em Miami aquele mortal louco que me aproximou correndo pela areia. E a sensação! A mesma coisa estranha que tinha experiente no instante em que meus olhos se posaram naquela criatura. Ah, mas não era possível...

Rasguei o sobre com mãos repentinamente trementes. Era outro conto curto impresso, recortado de algum livro igual ao primeiro e grampeado da mesma maneira, no ângulo superior esquerdo!

Fiquei desconcertado. Como diabos tinha feito esse ser para me seguir? Ninguém sabia que me encontrava aí! Nem sequer David! Claro que estava o número do cartão de crédito, mas Por Deus, qualquer mortal teria demorado horas em me localizar por esse meio, caso que fora possível; que não o era.

E o que tinha que ver com isso a sensação, essa estranha vibração, a pressão que parecia sentir dentro mesmo de minhas extremidades?

Mas não havia tempo para analisá-lo. Já era quase de amanhã!

Imediatamente captei o perigo da situação. Como não o tinha advertido antes? Esse ser decididamente tinha algum meio para saber onde estava eu, inclusive onde elegia me ocultar durante o dia! Tinha que abandonar esses aposentos! Que ultraje!

Tremendo de indignação, fiz um esforço e joguei uma olhada ao conto, de umas poucas páginas de comprimento. O autor era Robert Bloch, e o título, "Os olhos da múmia". Um título engenhoso, mas o que podia significar para mim? Pensei no do Lovecraft, que era muito mais extenso e, ao parecer, totalmente distinto. O que queria dizer todo isso? A aparente idiotice do assunto me enlouquecia.

Mas já era muito tarde para seguir refletindo. Recolhi os manuscritos do David, deixei as habitações, fui pela saída de incêndios e subí ao teto. Observei a noite em todas as direções. Não pude ver o muito maldito! Sorte para ele, porque, se o via, matava-o. Quando se trata de defender meu refúgio, tenho pouca paciência ou moderação.

Ascendi e percorri os quilômetros a maior velocidade possível. Por último descendi em um bosque coberto de neve, longe de Londres em direção ao norte, e ali cavei minha própria tumba na terra congelada como tantas vezes tinha feito com antecedência.

Pô-me furioso ter que fazê-lo, realmente furioso. vou matar a esse filho de puta, quem quer que seja, pensei. Como se atreve a me espreitar, a me dar esses contos! Sim, isso vou fazer: apenas o agarre, o Mato.

Mas logo me atacou o enjôo, o embotamento, e logo já nada importou...

Uma vez mais estava sonhando, e ela estava aí, acendendo o abajur de azeite, dizendo: "Ah, chama-a já não te assusta..."

-Está-te burlando de mim -disse, me sentindo desventurado. Tinha estado chorando.

-Caramba, Lestat, você sim que te repõe rápido desses ataques cósmicos de desesperança. Vi-te em Londres, dançando sob os faróis da rua. Que barbaridade!

Quis protestar, mas como estava chorando, não me saíam as palavras...

Em um último lapso de consciência, vi esse mortal em Veneza... sob as arcadas de São Marcos, onde pela primeira vez reparei nele... Vi seus olhos pardos e sua boca jovem, tersa.

O que quer?, exigi saber.

Ah, quão mesmo você, pareceu responder.

 

Quando despertei já não estava tão furioso contra o estranho. Em realidade, o que sentia era uma grande intriga. Mas logo tinha cansado a noite, e isso me deu vantagem.

Decidi fazer um experimento. Dirigi a Paris, para o qual realizei o cruzamento a toda velocidade, e sozinho.

Permita-se me agora uma pequena digressão para explicar que nos últimos anos evitei Paris por todos os meios, e o certo é que nunca a tinha visto como cidade do século XX. As razões possivelmente sejam óbvias. Tinha sofrido muito ali, em épocas pretéritas, e estava precavido contra o espetáculo de modernos edifícios em volto do cemitério do Pére-Lachaise, ou de rodas mágicas de diversão com luzes elétricas nas Tullerías. Mas, no mais recôndito, sempre tinha tido saudades voltar. Como podia ser de outra maneira?

E esse pequeno experimento me deu coragem e uma desculpa perfeita. Reduziu a dor que com toda certeza teriam que me produzir minhas observações, já que me levava um propósito. Mas aos poucos instantes de chegar me precavi de que realmente estava em Paris -que essa cidade não podia ser outra-, e uma alegria assustadora me alagou quando caminhei pelos amplos bulevares e tubo que acontecer o sítio onde em uma época se levantava o Teatro dos Vampiros.

Em efeito, sobreviviam vários teatros desse período e aí estavam, imponentes, recarregados, convocando ainda a seus públicos entre modernos edifícios que os rodeavam por todos lados.

Enquanto passeava pelos muito iluminados Campos Elíseos -congestionados por automóveis velozes e milhares de pedestres- compreendi que Paris não era uma cidade de museu, como Veneza. Era uma cidade viva, como foi durante os últimos dois séculos. Uma capital. Um sítio ainda moderno, de valentes inovações e mudanças. Maravilhei-me ante o austero esplendor do Centro Georges Pompidou, que se eleva, audaz, não longe dos arcos do Notre me Dê. Ah, que feliz me fazia estar de volta.

Mas tinha uma tarefa, não é assim?

A ninguém contei, mortal nem imortal, que estava ali. Não chamei a meu advogado de Paris, por mais que me teria feito muita falta. Preferi, pelo contrário, obter uma grande soma de dinheiro da maneira habitual: tirando-lhe a dois criminosos desagradáveis e opulentos, que foram minhas vítimas em ruas escuras.

Logo enfiei para a nevada Agrada me Vendo, que albergava os mesmos palácios que em minhas épocas, e sob o nome fictício de barão Vão Kindergarten me ocultei em uma magnífica suíte do Ritz.

Encerrado ali durante duas noites, evitei a cidade envolto em um luxo e esplendor dignos do Versailles da María Antonieta. De fato, apareciam lágrimas a meus olhos ao ver a excessiva ornamentação parisiense que me rodeava, as fabulosas poltronas Luis XVI, a magnífica boiserie esculpida das paredes. Ah, Paris. No que outro lugar pode estar a madeira grafite como ouro e seguir sendo bela?

Tendido em um sofá uso Diretório, imediatamente me pus a ler os manuscritos do David, me interrompendo só de tanto em tanto para caminhar pelas silenciosas habitações, ou para abrir uma porta-janela e contemplar o jardim traseiro do hotel, tão formal, tão calado e orgulhoso.

O relato do David me fascinou, a tal ponto que logo me senti mais perto dele que nunca.

O que estava claro era que em sua juventude tinha sido um homem de ação e nada mais que ação, que só tinha contato com livros que narravam ação, e que seu maior prazer tinha sido sempre a caçada. Matou seu primeiro animal quando só contava dez anos. Nos relatos a respeito de como dava morte aos tigres de Rojão de luzes se advertia o entusiasmo pela perseguição mesma e os riscos que deveu enfrentar. Como se aproximava muito à besta antes de disparar, mais de uma vez esteve a ponto de sucumbir ele mesmo.

apaixonou-se por África, como também da Índia; caçou elefantes na época em que ninguém sonhava que a espécie pudesse correr perigo de extinção. Em numerosas oportunidades foi atacado por essas enormes bestas antes de poder as derrubar. E quando caçava leões na planície do Serengeti correu riscos similares.

Com esforço percorreu árduos atalhos de montanha, nadou em rios inseguros, apoiou a mão sobre a dura pele do crocodilo, venceu sua inata repulsão pelas serpentes. adorava dormir à intempérie, fazer notas em seu jornal à luz das velas ou os abajures de azeite, comer só a carne de quão animais caçava, embora fossem poucos, e esfolar a essas feras sem ajuda.

Seu poder de descrição não era muito notável. Não tinha paciência com a palavra escrita, especialmente quando era jovem. Entretanto, em suas memórias se podia sentir o calor dos trópicos, ouvir o zumbido dos mosquitos. Parecia inconcebível que um homem como ele tivesse desfrutado de alguma vez do invernal distração do Talbot Manor, ou dos luxos das casas matrizes da ordem, às quais agora parecia haver-se voltado viciado.

Mas muitos outros cavalheiros britânicos tinham tido alguma vez tais opções e fizeram o que consideraram adequado a sua idade e posição social.

Quanto à aventura no Brasil, parecia escrita por outro homem. O vocabulário era igual de escasso e preciso e, é obvio, advertia-se a mesma avidez de perigo, mas ao manifestar-se nele a inclinação para o sobrenatural surgiu um indivíduo muito mais cerebral, mais inteligente. Em realidade, o léxico mesmo trocou, posto que incorporou muitas palavras desconhecidas de origen português e africano, para definir conceitos e sensações físicas impossíveis de descrever de outra maneira.

Mas a medula era que David tinha desenvolvido seus notáveis poderes telepáticos mercê a uma série de encontros aterradores e primitivos com sacerdotisas brasileiras, como também com espíritos, ou seja que seu corpo se converteu em mero instrumento de suas faculdades parapsicológicas. Esta experiência preparou o caminho para o erudito que teria que ser em anos posteriores.

Havia muita descrição física nas memórias do Brasil. falava-se ali de pequenas choças campestres, onde os fiéis do candomblé se reuniam para acender velas ante estátuas de Santos católicos e deuses nativos. falava-se de tambores e de danças, e do inevitável transe em que caíam alguns membros do grupo quando, ao converter-se em hóspedes inconscientes dos espíritos, adquiriam os atributos de uma determinada deidade durante compridos lapsos que logo apagavam de sua memória.

Mas o acento caía sobre o invisível, sobre a percepção de uma força interior e a luta contra as forças externas. Já não existia o jovem aventureiro que procurava a verdade puramente no físico, no aroma da besta, no atalho da selva, no estalo de uma arma ou a queda de uma presa.

Quando partiu de Rio, David era outra pessoa. Embora com posterioridad seu relato foi gentil -e indubitavelmente sofreu também correções-, incluía de todos os modos grandes fragmentos do jornal que tinha escrito no momento mesmo. Não cabe dúvida de que esteve ao bordo da demência no sentido convencional. Quando olhava a seu redor já não via edifícios, cale e pessoas a não ser espíritos, deuses, poderes invisíveis que emanavam de outros, como também diversos níveis de resistência espiritual, tão consciente como inconsciente, que punham os humanos ante todas essas coisas. De fato, se não se internou na selva amazônica, se não se esforçou por voltar a ser o caçador britânico, possivelmente se teria perdido para sempre de seu velho mundo.

Foi, durante meses, um ser gasto, queimado pelo sol, que perambulou por Rio em mangas de camisa e calças sujas em busca de uma experiência espiritual major, um homem que cortou todo vínculo com seus compatriotas face ao muito que eles insistiam em manter o contato. Depois se abasteceu do traje cor cáqui de rigor, tomou suas armas largas, conseguiu os melhores equipamento britânicos para acampamento e partiu para reivindicar-se, para o qual matou ao jaguar pintalgado e logo o esfolou com sua própria adaga.

Realmente não era tão inverossímil que em todos esses anos não tivesse retornado a Rio do Janeiro, já que, de havê-lo feito, talvez nunca teria podido partir.

Entretanto, não lhe bastava sendo um adepto do candomblé. Os heróis procuram a aventura, mas a aventura só não lhes alcança.

Como aumentou meu carinho por ele ao me inteirar dessas experiências, e quanto me entristeceu pensar que passou o resto de sua vida na Talamasca. Não me pareceu algo digno dele ou, mas bem, não me pareceu que fosse o melhor para fazê-lo feliz, por muito que dissesse que isso era o que queria. Deu-me a impressão de que foi quão pior pôde fazer.

E, é obvio, o fato de conhecê-lo mais em profundidade me fez o ter saudades mais. Uma vez mais refleti que em minha lôbrega juventude preternatural me rodeei de seres que nunca podiam ter sido verdadeiros companheiros: Gabrielle, que não me necessitava; Nicolás, que se voltou louco; Louis, que nunca me perdoou por havê-lo seduzido para entrar no reino dos imortais, em que pese a que ele mesmo o quis.

A única exceção foi Claudia -minha pequena e intrépida Claudia, companheira de caça e matadora de vítimas fortuitas-, vampira por excelência. Sua fascinante fortaleza foi o que a induziu a voltar-se contra seu fazedor. Sim, ela foi a única verdadeiramente parecida comigo, como se diz nesta era. Possivelmente seja por isso que na atualidade sua lembrança me atormenta.

Sem dúvida isso tinha certa relação com meu amor pelo David! E antes não me tinha dado conta. Quanto o amava, e que profunda a sensação de vazio que experimentei quando Claudia se voltou contra mim e deixou de ser minha companheira.

Esses manuscritos me serviram também para esclarecer outro ponto. David ia rechaçar o Dom Misterioso sempre, até as últimas conseqüências. Esse homem não temia a nada. Não gostava da morte, mas não lhe tinha medo. Jamais o teve.

Mas eu não tinha ido a Paris só para ler suas memórias; tinha outro propósito em minha mente. Abandonei o bendito confinamento do hotel e saí a perambular lenta, visivelmente.

Na rua Madeleine me comprei roupa de categoria, inclusive um casaco cruzado azul marinho de cachemira. Logo passei horas na margem esquerda percorrendo seus tentadores cafés, rememorando a anedota do David sobre Deus e o diabo, me perguntando o que teria sido o que viu. Certamente, Paris seria um lugar excelente para Deus e o diabo, mas...

Viajei em subterrâneo e me pus a observar os rostos dos passageiros, tratando de determinar por que os parisienses eram tão diferentes. Seria sua expressão chicoteada, seu vigor, a forma em que evitavam o olhar de outros? Não podia precisá-lo. Mas eram muito distintos dos norte-americanos -isso tinha notado eu em todas partes-, e me dava conta de que os compreendia. Além disso, caíam-me bem.

O fato de que Paris fosse uma cidade tão opulenta, tão cheia de custosos casacos de pele, jóias e inumeráveis boutiques me deixou levemente sobressaltado. Pareceu-me até mais rica que as cidades dos Estados Unidos. Não me tinha resultado menos rica em meus tempos, possivelmente, com seus carros de cristal e seus varredores uniformizados de branco. Mas também havia visto pobres, inclusive moribundos, pelas ruas. Mas agora eu só via ricos e, por momentos, essa cidade com seus milhões de automóveis, suas numerosas casas de pedra, seus hotéis e mansões me parecia inverossímil.

Certamente, cacei. Alimentei-me.

Ao dia seguinte, à hora do crepúsculo, instalei-me no piso superior do Pompidou sob um céu tão violeta como o de minha querida Nova Orleáns e vi como se acendiam todas as luzes da grande cidade. ao longe, a torre Eiffel se elevava claramente na divina penumbra.

Ah, Paris! Eu sabia que ia voltar, sim, e logo. Alguma noite do futuro me fabricaria uma cova na ilha St. Louis, que sempre eu adorei. Ao diabo com as mansões da avenida Foch. Procuraria a casa onde certa vez Gabrielle e eu fizemos atuar juntos a Magia Misteriosa, onde ela -minha mãe- pediu-me que a convertesse em minha filha, e a vida mortal a soltou, deixando-a ir como se essa vida fora uma simples emano cuja boneca eu tivesse obstinado.

Pensei em trazer de volta ao Louis, Louis que tanto tinha amado essa cidade antes de perder a Claudia. Sim, devia convidá-lo a que voltasse a amar Paris.

Enquanto isso, caminharia sem pressa até o Café da Paix, no grande hotel onde Louis e Claudia se alojaram durante esse ano tão trágico do reinado do Napoleón III, e ali, sentado com meu copo de vinho sem tocá-lo, faria o esforço de pensar serenamente em todo isso... e em que já estava concluído.

Bom, era evidente que o suplício do deserto me tinha fortalecido; sobre isso não cabia dúvida. Já me sentia com vontades de que acontecesse algo...

...Até que por fim, nas primeiras horas da manhã, um tanto melancólico ao não ver os velhos edifícios da década de 1780, quando já se abatiam brumas sobre o rio semicongelado e estava aparecido em parapeito da borda, muito perto da ponte que leva a île da Citei, divisei a meu homem.

Primeiro experimentei a sensação, e esta vez a reconheci no ato. Fui analisando-a à medida que a sentia: o me permitir uma leve desorientação sem perder nunca o controle; as deliciosas ondas vibratórias e, logo, a intensa constrição, a opressão de meu corpo inteiro -dedos das mãos e dos pés, braços, pernas, tronco-, igual a antes. Sim, como se meu corpo retivera suas proporções e ao mesmo tempo se voltasse cada vez mais pequeno, me obrigando a sair desse contorno! No instante mesmo em que já me parecia impossível permanecer dentro de mim, limpou-se minha mente e as sensações se terminaram.

Exatamente o que me tinha passado a vez anterior. Fiquei aí, na ponte, tirando conclusões, memorizando os pormenores.

Logo reparei em um autito desvencilhado que se deteve na margem oposta do rio. dele baixou o jovem de cabelo castanho, com os mesmos movimentos torpes. endireitou-se com ar tímido quão alto era e posou em mim seus olhos frágeis.

Tinha deixado o motor em marcha. Ao igual à vez anterior, pude cheirar seu medo. Evidentemente sabia que eu o tinha visto; nisso não podia me equivocar. Supus que também se teria dado conta de que eu levava ali duas horas, esperando que me encontrasse.

Por último se armou de coragem e cruzou a ponte em meio da névoa, imponente com seu comprido sobretudo e écharpe branca ao pescoço; médio caminhando e médio correndo, deteve-se escassos centímetros de mim, do frio olhar que eu, acotovelado no corrimão, lançava-lhe. Arrojou-me outro sobre e eu lhe aferrei a mão.

-Não se apresse, senhor do Lioncourt! -murmurou com desespero. Acento britânico de classe alta, muito semelhante ao do David, e imitava quase à perfeição as sílabas do francês. Estava pouco menos que decomposto de medo.

-Quem diabos é você? -exigi saber.

-Tenho uma coisa que lhe propor! Seria muito parvo que não me escutasse. trata-se de algo que você deseja muito. E lhe asseguro que não há ninguém no mundo que possa oferecer-lhe -No -se opuso-. Pero hablaremos muy pronto. -Tenía una voz culta, refinada.

Soltei-o, deu um salto atrás e se cambaleou, por isso estirou uma mão para sujeitar-se do corrimão. O que tinham de estranho seus movimentos? em que pese a ser de forte textura se movia como um ser inseguro, coisa que me chamava muito a atenção.

-me explique já mesmo sua proposta! -disse, e alcancei a sentir que, dentro de seu peito, o coração lhe detinha.

-Não -opôs-se-. Mas falaremos muito em breve. -Tinha uma voz culta, refinada.

Muito refinada para esses enormes olhos frágeis e essa cara juvenil, tersa e robusta. Seria uma planta de estufa, que alcançou um tamanho prodigioso em companhia de gente maior, sem ter tido alguma vez contato com pessoas de sua idade?

-Não se apresse! -voltou a gritar, e saiu correndo; trastabilló e se endireitou, logo seu físico alto e torpe entrou no pequeno veículo, e partiu em meio da neve congelada.

Ia a tanta velocidade quando desapareceu no St. Germain que não pude menos que pensar que se estrelaria.

Olhei o sobre; sem dúvida, outro maldito conto. Abri-o zangado, não muito convencido de ter feito bem em deixá-lo ir e ao mesmo tempo desfrutando de do jueguito, desfrutando inclusive a indignação que me dava sua astúcia e sua habilidade para me seguir os passos.

Comprovei então que era um vídeo de um filme recente. O título, "Viceversa". por que diabos...? Dava-lhe volta e li a tampa. Um filme cômico.

Retornei ao hotel e ali encontrei me esperando outro pacote. Outro vídeo, titulado "All of Me". Uma vez mais, a descrição que trazia a coberta de plástico me deu uma idéia do tema.

Subí a minhas habitações. Não tinha reprodutor de vídeo! Nem sequer no Ritz. Chamei o David por telefone em que pese a que já era quase o alvorada.

-por que não vem a Paris? Eu me encarrego de te organizar tudo. Espero-te para jantar, amanhã às oito no comilão da planta baixa.

Logo chamei a meu agente mortal, levantei-o da cama e lhe dava instruções para que se ocupasse da passagem do David, da limusine, a suíte e todo o resto. Tinha que esperá-lo com dinheiro em efetivo, lhe enviar flores e champanha frio. Depois saí a procurar um lugar seguro onde dormir.

Mas uma hora mais tarde, me achando no porão úmido de uma velha casa abandonada, perguntei-me se esse mortal filho de puta não me estaria vendo nesse momento, se não saberia onde dormia eu de dia, se não poderia fazer entrar a luz do sol para que me afetasse, como qualquer vulgar caçador de vampiros de filme mau, sem o menor respeito pelo misterioso.

Ocultei-me no mais profundo, debaixo do porão. Nenhum mortal poderia me encontrar aí sem ajuda. E se me encontrava, até dormido eu poderia havê-lo estrangulado sem me inteirar jamais disso.

-Que conclusão sacas de tudo isto? -perguntei ao David. O comilão estava elegantemente decorado e semivacío. Aí estava eu sentado à luz das velas, vestindo traje de etiqueta e camisa de peitilho engomado, com os braços pregados por diante, desfrutando de do fato de que agora só necessitava os óculos de leve tintura violáceo para dissimular meus olhos. Que bem alcançava a ver os cortinados e o jardim às escuras do outro lado das janelas.

David comia com prazer. Tinha-lhe encantado a idéia de vir a Paris; agradou-lhe muito a suíte do Agrada me Vendo, com seus tapetes aveludados e seus móveis dourados à folha, e se passou a tarde inteira no Louvre.

-Compreende qual é o tema, não?

-Não estou seguro -respondi-. Vejo certos elementos comuns, certamente, mas esses contos são totalmente diferentes.

-Em que sentido?

-Bom, no do Lovecraft, Asenath, uma mulher diabólica, troca de corpo com seu marido. Sai a percorrer a cidade usando o corpo masculino, enquanto ele fica na casa, desventurado e perplexo, dentro do corpo dela. Pareceu-me muito cômico, muito ardiloso. E, é obvio, Asenath não é Asenath, se mal não recordar, a não ser seu pai, que antes tinha trocado o corpo com ela. Depois todo se volta muito típico do Lovecraft, com vis demônios semihumanos e coisas pelo estilo.

-Possivelmente essa seja a parte que não vem ao caso. E o conto egípcio?

-Outra coisa. Os mortos convertidos em pó mas que ainda possuem vida, você sabe...

-Sim, mas a trama...

-Bom, a alma da múmia consegue apoderar do corpo de um arqueólogo, e ele, pobre diabo, termina dentro do cadáver podre de uma múmia...

-Sim?

-Deus santo, agora entendo o que diz. Depois, o filme "Viceversa", que trata sobre as almas de um menino e de um homem que intercambiam os corpos! arma-se uma confusão de todos os demônios até que conseguem fazer a mudança de volta. E o filme "All of Me" também trata sobre mudança de corpos. Tem toda a razão. As quatro histórias giram em volto do mesmo.

-Exato.

-Por Deus, David... Agora o vejo claro. Não sei como não caí antes. Mas...

-O homem trata de te fazer acreditar que sabe algo sobre este assunto de trocar de corpo. Está tratando de te tentar dando a entender que se pode fazer semelhante coisa.

-Mas claro! Isso explica sua forma de mover-se, de caminhar, de correr.

-O que?

Sobressaltado, antes de responder evoquei uns instantes a imagem da besta; tratei de recordar sua figura desde todos os ângulos que me permitia a memória. Sim, até em Veneza lhe tinha notado essa estupidez de movimentos.

-David, ele pode fazê-lo.

-Não tire uma conclusão tão amalucada, Lestat! Talvez acredita que pode fazê-lo; possivelmente até o tente. É provável que esteja vivendo inteiramente em um mundo de delírio...

-Não. Essa é sua proposição, David, a proposição que, segundo ele, vou querer ouvir! É capaz de trocar de corpo com outras pessoas!

-Não me diga que crie...

-Isso é o que lhe noto de estranho! Desde que o vi na praia de Miami tratei que compreender o que lhe passava. Não está dentro de seu corpo! Por isso não pode usar seus músculos nem seu... estatura!

Por isso trastabilla quando corre. Não pode dominar essas pernas largas e fortes. Santo céu, esse homem está ocupando o corpo de outro. E a voz, David... isso eu lhe comentei isso. Não é uma voz de moço. Assim se explica tudo! Sabe o que penso? Que escolheu esse físico em particular porque eu ia reparar nele. E te digo algo mais: já tratou inclusive de fazer comigo esse truque da mudança e lhe fracassou.

Não pude continuar. Deslumbrava-me muito a possibilidade.

-Como é isso de que tratou?

Relatei-lhe as sensações peculiares, a vibração e a contração, aquilo de que literalmente me obrigava a abandonar meu eu físico.

Não fez comentários a minhas palavras, mas me dava conta do efeito que lhe tinham causado. Estava imóvel, com os olhos entreabridos, a mão direita semicerrada e apoiada perto de seu prato.

-Foi uma agressão contra mim, não? Tentou me tirar de meu corpo, possivelmente para introduzir-se ele. E, certamente, não o pôde fazer. Mas, como é que se arriscou a me ofender mortalmente com seu ato?

-Ofendeu-te mortalmente?

-Não; só me deixou com mais curiosidade, uma grande curiosidade!

-Aí tem a resposta. Acredito que te conhece muito bem.

-O que? -Ouvi o que havia dito, mas não pude lhe responder no momento pois me pus a evocar as sensações. -Esse sentimento é muito intenso. Não vê o que está fazendo? Dá-me a entender que pode intercambiar comigo. Oferece-me essa bela ossatura de mortal.

-Sim -repôs David, sem matizes-. Acredito que tem razão.

-por que, se não, ia permanecer nesse corpo? É óbvio que se acha incômodo nele e quer trocar. Está-me dizendo que pode fazer a troca! Por isso correu o risco. Deve saber que me resultaria fácil matá-lo, arrebentá-lo como se fora um inseto. Nem sequer me agrada seu... maneira de ser. O corpo é excelente. Sim, é isso. Pode-o fazer, David; conhece o modo.

-Nem o pense! Não pode pô-lo a prova.

 

-por que não? Diz que não se pode fazer, que em nenhum arquivo da Talamasca há perseveranças de...? David, sei que esse homem o fez. O que não pôde é me obrigar a mim, mas por certo que trocou de corpo com outro mortal.

-Lestat, quando acontece isso dizemos que há posse. trata-se de um acidente parapsicológico! A alma de um morto se apodera de um corpo vivo. É um espírito que possui a um ser humano e ao que terá que persuadir de que o abandone. Os seres vivos não andam fazendo-o por aí ex-professo, consertando acordos. Não, acredito que não é possível. Não acredito que haja casos semelhantes! Não... -interrompeu-se, dúbio.

-Sabe que houve casos. Deve havê-los.

-Isto é muito perigoso, Lestat, é um risco muito grande para qualquer tipo de prova.

-Olhe, se pode ocorrer circunstancialmente também pode ocorrer desta maneira. Se o pode fazer a alma de um morto, por que não um vivo? Eu sei o que é viajar fora de meu corpo. Você também sabe; aprendeu-o no Brasil e o descreveu com luxo de detalhes. Muitos, muitos humanos sabem. As religiões antigas o praticavam. Não é inconcebível que alguém possa retornar a outro corpo e tratar de retê-lo enquanto o outro trata em vão de recuperá-lo.

-Que idéia tão abominável.

Voltei a lhe explicar o das sensações e quão intensas tinham sido.

-David, é possível que tenha roubado esse físico!

-Simplesmente encantador.

Uma vez mais recordei a sensação de opressão, a impressão aterradora mas de uma vez estranhamente prazenteira de que meu corpo se apertava e pugnava por sair através de meu cocuruto. Que coisa estranha! Se esse ser era capaz de me fazer sentir isso, seguro que podia obter também que um mortal saísse de si mesmo, principalmente se esse mortal não tinha nem a mais leve idéia do que estava passando.

-te serene, Lestat -exclamou meu amigo, aborrecido, e apoiou o pesado garfo sobre o prato quase vazio-. Pensemo-lo um pouco mais. Ao melhor se pode fazer esse troco por uns minutos, mas imagina permanecer dentro desse novo corpo, funcionando ali dia detrás dia? Não. Significaria funcionar também quando está dormido, não só quando está acordado. Está falando de um pouco totalmente distinto e claramente arriscado. Com isto não se pode experimentar. E se desse resultado?

-Exato. Se desse resultado, eu poderia me colocar dentro desse corpo. -Calei um momento. Não me atrevia a dizê-lo, mas ao final o soltei: -David, poderia voltar a ser mortal.

Fiquei sem fôlego. Transcorreu um instante de silêncio, durante o qual nos olhamos com fixidez. A ligeira expressão de temor de seus olhos não alcançou a aplacar meu entusiasmo.

-Eu saberia usar esse corpo -prossegui em um sussurro-. Saberia como utilizar esses músculos, essas pernas largas. OH, sim, certamente escolheu esse corpo porque supôs que me pareceria possível, muito possível...

-Lestat, não pode seguir com isto! Essa pessoa fala de trocar um corpo por outro! Não pode lhe permitir que fique com o teu! A idéia é monstruosa. Já é bastante com que você te encontre dentro deste corpo!

Impressionado, fiz silêncio.

-Olhe -prosseguiu, tratando de me monopolizar outra vez-, peço-te que me perdoe por falar como superior general de uma ordem religiosa, mas isto não o pode fazer! Por começar, de onde tirou ele esse corpo? E se o tivesse roubado? Não pensará que um moço o entregou alegremente, sem protestar! trata-se de um ser sinistro e isso terá que reconhecê-lo. Não pode lhe entregar um corpo poderoso como o teu.

Eu escutei tudo, compreendi-o, mas não me convenceu.

-Pensa-o, David -disse, sabendo que minhas palavras pareciam loucas, incoerentes-. Permitiria-me ser mortal.

-Peço-te por favor que desperte e me Prestes atenção. Isto não é uma obra cômica nem um conto gótico do Lovecraft. -limpou-se a boca com o guardanapo e, zangado, bebeu um sorvo de vinho. Logo estirou uma mão sobre a mesa e a apoiou sobre minha boneca.

Teria que lhe haver permitido que a levantasse e me sujeitasse isso, mas não cedi e imediatamente se deu conta de que querer mover minha mão era como pretender mover-lhe a uma estátua de granito.

-Não pode jogar com isto! Não pode correr o risco de que dê resultado, porque esse ser malévolo, quem quer que seja, logo terá sua força.

Fiz um gesto de negação.

-Entendo o que diz, David, mas pensa um pouco. Tenho que falar com ele! Tenho que encontrá-lo e averiguar se isso se pode fazer. Ele não importa; o importante é o processo, saber se se pode fazer.

-Suplico-lhe isso: não investigue mais. vais cometer outro engano atroz!

-A que te refere? -Custava-me lhe emprestar atenção. Onde estava agora esse depravado ladino? Pensei em seus olhos, no bonitos que seriam se não fosse ele quem olhasse por eles. Sim, era um formoso corpo para o experimento! De onde o teria tirado? Propu-me averiguá-lo.

-David, deixo-te.

-Não, você não vai! Se não ficar onde está, juro-te que te faço perseguir por uma legião dos espíritos mais malignos com que tive trato em Rio do Janeiro! Agora me escute.

Ri-me.

-Não levante a voz ou nos jogam do Ritz -pedi-lhe.

-Bom, façamos um trato. Eu volto para Londres, acendo o computador e procuro todos os casos de mutação de corpos que figurem em nossos arquivos. Vá um ou seja com o que me vou encontrar. Lestat, pode ocorrer que ele esteja dentro desse corpo, que o corpo lhe esteja deteriorando e ele não possa sair nem deter a deterioração. Não pensou nessa possibilidade?

-Não se está deteriorando; em tal caso, eu teria percebido o aroma. Esse corpo não tem nada de mau.

-Salvo que possivelmente o tenha roubado a seu legítimo proprietário e o pobre diabo agora anda aos tombos no do outro, e não temos nem o menor indício.

-te tranqüilize, David, por favor. Você retorna a Londres e te põe a investigar nos arquivos. Eu começo a procurar a este filho de puta porque quero ver o que me diz. Não se preocupe! Não vou seguir adiante sem te consultar. E se dito...

-Não decidirá nada! Pelo menos, sem ter falado comigo.

-De acordo.

-Promete-me isso?

-Sim, por minha honra de assassino sanguinário.

-me dê um número telefônico em Nova Orleáns.

Olhei-o um instante sem pestanejar.

-Está bem. Não o tenho feito nunca, mas aqui o tem. -Dava-lhe o número de meus aposentos no bairro francês. -Não o vais anotar?

-Já o memorizei.

-Então até mais tarde!

Levantei-me da mesa e, em que pese a minha excitação, tratei de caminhar como um humano. OH, poder mover-se como um humano, estar dentro de um corpo humano... Ver o sol, ver seriamente esse círculo brilhante em um céu azul!

-Ah, David, quase me esquecia. Já está tudo pago. Chama a meu representante; ele se ocupará de seu vôo...

-Isso não me preocupa. me escute, Lestat: quero que já mesmo me diga quando vamos reunir nos para seguir falando disto. Se te esfumar, jamais lhe...

Eu seguia de pé e lhe sorri. Dava-me conta de que o estava enfeitiçando. É obvio que não me ia ameaçar com não me dirigir mais a palavra. Que absurdo.

-Enganos atrozes -disse, sem poder abandonar o sorriso-. Claro que os cometo, verdade?

-O que lhe dirão... os outros... seu bienamado Marius, os majores, se fizer semelhante coisa?

-Possivelmente lhe dessem uma surpresa, David. Ao melhor o que mais desejam é voltar para ser humano. Talvez seja isso o que todos desejamos: ter outra oportunidade. -Pensei no Louis, que estava em sua casa de Nova Orleáns. Deus santo, o que pensaria quando o contasse?

David murmurou algo pelo baixo, impaciente e irritado, mas com expressão de afeto e preocupação.

Fiz gesto de lhe mandar um pequeno beijo e me parti.

Tinha passado escassamente uma hora quando tomei consciência de que não poderia encontrar ao depravado ladino. Se se achava em Paris, estaria escondido de modo de não me deixar captar nem o menor indício de sua presença. E tampouco captei uma imagem dele na mente de outros.

Isso não queria dizer que não estivesse na cidade. A telepatia tem muito de azar e Paris era uma cidade imensa, transbordante de pessoas provenientes de todos os países.

Por último, retornei ao hotel e me inteirei de que David já tinha partido, me deixando seus diversos números telefônicos para me comunicar por fax, por computador ou por linha comum.

"Por favor, me chame amanhã de noite", escreveu-me, "porque para esse então já terei notícias."

Subí a me preparar para retornar. Não via a hora de me encontrar de novo com esse louco mortal. E Louis... Tinha que contar-lhe tudo a ele. Certamente, não acreditaria possível; isso ia ser o primeiro que diria. Mas sentiria a tentação. Sim, claro que sim.

Não fazia nem um minuto que estava na habitação tratando de decidir se tinha que me levar alguma coisa dali -ah, sim, os manuscritos do David- quando na mesita de luz vi um sobre liso, apoiado contra um enorme floreiro. Dizia "Conde vão Kindergarten", escrito com traços firmes, masculinos.

Apenas o vi soube que era uma nota dele. A mensagem estava escrita à mão, com a mesma letra firme, rebuscada.

 

Não se apresse. E tampouco lhe faça caso a esse tolo seu amigo da Talamasca. Vemo-nos amanhã de noite em Nova Orleáns. Não me defraude. Plaza Jackson. Ali nos poremos de acordo para elaborar uma pequena alquimia própria. Acredito que compreenderá o que está em jogo.

Atentamente, Raglan James

 

"Raglan James", murmurei em voz alta. Raglan James. Eu não gostava do nome porque se parecia com ele.

Marquei o número da zeladoria.

-Esse sistema de fax que acaba de inventar-se -disse em francês-, têm-no já aqui? explique-me isso por favor.

Tal como supunha, através de uma linha Telefónica se podia enviar do hotel um fac-símile completo desta notita até o aparelho que tinha David em Londres. Então meu amigo não só receberia a informação mas também também a caligrafia, se é que podia lhe servir de algo.

Recolhi os manuscritos, passei pelo escritório com a nota do Raglan James, fiz-a enviar por fax, voltei a me guardar isso e por último dirigi ao Notre me Dê porque queria me despedir de Paris com uma prece.

Sentia-me louco, totalmente louco. Quando tinha experiente semelhante grau de felicidade! Na penumbra da catedral -fechada nesse momento pela hora que era- recordei a primeira vez que tinha estado ali, muitas décadas atrás. Nesse então não existia a grande praça frente ao átrio; só a pequena Agrada do Gréve rodeada de edifícios maltratados; tampouco existiam os grandes bulevares como os que há atualmente em Paris, a não ser só cale largas de terra, que nos pareciam majestosas.

Pensei naqueles céus azuis, em como era a sensação de ter fome, muita fome de pão e de carne, recordei como era querer me embriagar com um bom vinho. Pensei no Nicolás, meu amigo mortal a quem tanto amei, e em quão fria era antes nossa piecita do desvão. Nicki e eu discutindo como tínhamos discutido David e eu! OH, sim.

Tinha a impressão de que minha prolongada existência tinha sido um pesadelo desde aquela época, um pesadelo cheia de gigantes, de monstros e de horríveis máscaras depois das quais se escondiam seres que me ameaçavam na escuridão eterna. Notei que tremia. Estava chorando. Ser humano, pensei. Voltar para ser humano. Acredito que pronunciei em voz alta as palavras.

de repente, o sussurro de uma risada me sobressaltou. Era uma menina pequena em meio da penumbra.

Voltei-me. Estava quase seguro de havê-la visto: uma silhueta diminuta que avançava a toda velocidade por um corredor, para um altar lateral, e depois desaparecia da vista. Suas pegadas tinham sido apenas audíveis. Mas certamente devia tratar-se de um engano. Não havia aroma, não havia uma verdadeira presença. Era uma ilusão.

Entretanto, exclamei:

-Claudia!

 

E minha voz ricocheteou em uma sorte de áspero eco. Não havia ninguém ali, certamente.

Recordei as palavras do David: "vais cometer outro engano atroz!".

Sim, não vou negar que cometi enganos atrozes, terríveis. Voltei a sentir o clima de meus sonhos recentes, mas não em profundidade; só ficava uma vaga sensação de estar com ela. A imagem de um abajur de azeite e ela rendo-se de mim.

Rememorei uma vez mais como a tinha executado: o poço de ventilação com paredes de tijolo, o sol que se aproximava, quão pequena era ela; logo se mesclou também a lembrança do sofrimento no deserto do Gobi e já não pude suportá-lo mais. Adverti que, com meus braços, estreitava meu próprio peito, que tremia, que meu corpo estava rígido como se padecesse o tortura de um shock elétrico. OH, mas ela não deve ter sofrido. Certamente foi uma morte foto instantânea por tratar-se de uma menina tão pequena e tenra. Pó é...

A angústia foi total. Não eram essas épocas as que queria recordar, em que pese a que um momento antes me tinha demorado no Café da Paix, e em que pese a que acreditava me haver voltado muito forte. O que tinha saudades era minha Paris, o Paris anterior ao Teatro dos Vampiros, quando eu era inocente e tinha vida.

Permaneci uns minutos mais entre as sombras, contemplando simplesmente as grandes arcadas. Que igreja majestosa era, inclusive agora, com o ruído de fundo dos automóveis. parecia-se com um bosque de pedra.

Atirei-lhe um beijo, tal como tinha feito com o David. E parti para empreender o comprido retorno a casa.

 

Nova Orleáns. Atraquei a primeira hora da noite posto que voltava para trás em horário, em sentido inverso à rotação do mundo. O clima era frio, tonificante, mas não cruel, embora se moravam intensos ventos gelados do norte. Não havia nenhuma nuvem no firmamento, mas sim inumeráveis estrelas, muito nítidas.

Imediatamente dirigi a minha pequena pent house do bairro francês flui, apesar de todo seu encanto não era muito alta já que se achava em um edifício de apenas quatro novelo, construído muito antes da Guerra Civil. Tinha uma vista um tanto íntima do rio e suas formosas pontes gêmeas e, quando deixava as janelas abertas, chegavam-me os ruídos do loja de comestíveis Café du Pode e os concorridos negócios e ruas da praça Jackson.

Tinha que me encontrar com o senhor Raglan James só ao dia seguinte. E embora estava impaciente por vê-lo, era-me cômodo ter fixado esse dia, pois primeiro queria me reunir com o Louis.

Mas antes me dava o típico luxo mortal de uma ducha quente; logo me pus um singelo traje de veludo cotelê negro -traje parecido ao que tinha usado em Miami- e um par de botas negras novas. E em que pese a que estava cansado -se me tivesse ficado na Europa já estaria dormindo dentro da terra-, saí a percorrer a cidade, caminhando como um humano.

Por motivos que não podia precisar, passei pelo velho domicílio da rua Royale onde em uma época vivemos Claudia, Louis e eu. Nisso realidade o fazia freqüentemente, embora nunca me permitia pensá-lo até que já estava a metade de caminho.

Nesse simpático departamento tivemos nosso reduto durante mais de cinqüenta anos. Um dado que por certo terá que ter em conta quando me julgar por meus enganos, já seja que me eu condene sozinho ou que o façam outros. Reconheço que Louis e Claudia foram feitos por e para mim. Entretanto, nossa existência foi estranhamente brilhante e prazenteira até que Claudia resolveu que eu devia pagar por minhas criações com a vida.

As habitações nesse então estavam lojas de comestíveis de todos os adornos e luxos da época. Tínhamos uma carruagem, uma junta de cavalos nos estábulos contigüos, e os serventes viviam nos aposentos do fundo, passando o pátio. Mas os antigos edifícios já estavam algo opacos e ultimamente o departamento não estava habitado por ninguém -salvo por espíritos, possivelmente-; a loja do subsolo se alugou a um livreiro que nunca se tomava o trabalho de tirar o pó aos livros da vidraça nem aos de dentro. de vez em quando ele me conseguia tratados sobre a natureza do mal, escritos pelo historiador Jeffrey Burton Russell, ou as maravilhosas obras filosóficas da Mircea Eliade, como também exemplares antigos das novelas que mais eu gostava.

O velho casualmente estava aí dentro, lendo, e o observei uns minutos através do vidro. Que distintos eram os cidadãos de Nova Orleáns dos do resto da América do Norte. A esse homem, ganhar dinheiro lhe tinha sem cuidado.

Incorporei-me e olhei, lá encima, as balaustradas de ferro fundido. Vieram-me à mente os sonhos perturbadores, o abajur de azeite, a voz da Claudia. por que me estava perseguindo, mais implacavelmente que alguma vez?

Fechei os olhos e alcancei para ouvi-la de novo; sua voz me falava, mas não percebi a natureza de suas palavras. E de repente me encontrei rememorando uma vez mais sua vida e sua morte.

Já não ficavam nem rastros da choça onde a encontrei pela primeira vez nos braços do Louis. Nessa casa tinha estado a peste, por isso só um vampiro se teria atrevido a entrar. Nenhum ladrão ousou sequer roubar a cadeia de ouro que a mãe levava posta ao morrer. E o que envergonhado se sentiu Louis de ter eleito como vítima a uma menina pequenina. Mas eu o compreendi. Tampouco ficavam rastros do velho hospital aonde posteriormente a levaram. Que estreita rua de terra tinha atravessado eu com esse corpinho morno em meus braços, seguido depressa pelo Louis, que me suplicava que lhe dissesse o que pensava fazer.

Uma rajada de vento frio me sobressaltou.

Alcancei para ouvir música proveniente dos botequins da rua Bourbon, a escassos cem metros de distância. E gente que caminhava frente à catedral... uma risada de mulher... a buzina de um automóvel na penumbra. O tênue batimento do coração eletrônico de um telefone moderno.

No interior da livraria, o velho estava movendo o dial da rádio e passou do dixieland à música clássica e por último a uma voz chorosa que entoava poesia com fundo de canções de um compositor inglês...

O que me levou a esse antigo edifício, que se erguia desamparado e indiferente como uma lápide de tumba, com suas letras e datas já apagadas?

Depois, já não quis demorar mais.

Tinha estado jogando com o entusiasmo louco que me produzia o que acabava de acontecer em Paris e enfiei para o setor alto da cidade para procurar o Louis e lhe expor tudo.

Uma vez mais preferi caminhar. Preferi sentir a terra, medi-la com meus pés.

Em minha época -fins do século XVIII-, o setor alto da cidade não existia como tal mas sim era campo aberto. Ainda havia plantações, e era difícil transitar pelos caminhos pois, além de estreitos, estavam talheres só com conchillas.

Para fins do século XIX, logo depois de destruído nosso pequeno refúgio e resultar eu com feridas e quebraduras, quando parti a Paris em busca da Claudia e Louis, o setor alto e seus pueblitos já estavam unidos a grande cidade e se construíram muitas formosas casas de madeira, em estilo Vitoriano.

Algumas dessas casas são imensas e, a sua maneira, tão monumentais como as grandiosas residências em uso renascimento, anteriores à Guerra Civil, que se podem encontrar no Bairro Jardim e sempre recordaram a templos, ou como as imponentes residências do próprio bairro francês.

Mas grande parte do setor alto, com seus chalecitos de madeira ao igual às grandes casa, ainda conserva aspecto rural, com enormes carvalhos e magnólias que se sobressaem depois dos tetos em qualquer parte, com ruas sem calçadas onde as sarjetas não são mais que resolve cheias de flores silvestres que brotam a pesar do frio invernal.

Inclusive as lojascomerciais -um trecho aqui e lá de edifícios contigüos- não se parecem com o bairro francês, com suas fachadas de pedra e sua sofisticação própria do velho mundo, mas sim fazem acordar da típica "rua principal" das aldeias rurais norte-americanas.

É um lugar fantástico para caminhar de noite. ouça-se ali o gorjeio dos pássaros como não o ouvirá nunca no Vieux Carré; e sobre os tetos dos galpões situados com o passar do sinuoso rio, o crepúsculo dura uma eternidade, resplandece entretanto das grosas ramos das árvores. A gente pode encontrar esplêndidas mansões com galerias ruinosas e decoração brega, casa com torrecillas e gabletes, e algumas com mirantes. Há grandes balança depois dos corrimões recém pintados dos alpendres. Há cercas brancas feitas com estacas bicudas, e largas avenidas de grama bem talhada.

Os chalecitos exibem uma variedade infinita. Alguns estão bem pintados com cores intensas, segundo a moda; outros, mais maltratados mas não menos belos, luzem o formoso tom cinza da madeira flutuante, estado ao que facilmente pode chegar qualquer casa neste clima tropical.

Aqui e lá se encontra algum lance de rua com tão abundante vegetação, que costa acreditar que ainda se esteja dentro de uma cidade. Arreboleras silvestres e dentelarias azuis obscurecem as cercas que delimitam as propriedades. Os ramos dos carvalhos se inclinam de tal maneira que obrigam aos pedestres a agachar-se. Até em seus invernos mais frios, Nova Orleáns está sempre verde. A geada não pode matar as camélias, embora às vezes as queima um pouco. O jasmim amarelo e a buganvilla púrpura cobrem paredes e cercas.

Em um desses trechos de suave penumbra sombra, depois de uma larga fileira de imensas magnólias, foi onde Louis armou seu lar secreto.

Atrás do portão oxidado, a imensa mansão vitoriana se achava desocupada, sua pintura amarela quase totalmente descascada. Só de tanto em tanto Louis a percorria com uma vela na mão. Mas seu verdadeiro lugar de residência era uma cabana se localizada ao fundo -coberta por montanhas de informe trepadeiras-, um sítio cheio de livros e objetos diversos que tinha colecionado através dos anos. Da rua não podiam ver-se suas janelas; mais ainda, não acredito que ninguém soubesse sequer que existia a casa. Os vizinhos não podiam vê-la depois dos altos muros de tijolo, a espessura da folhagem e as adelfas silvestres que cresciam em redor. Além disso, não havia um atalho marcado no meio da grama alta.

Quando o divisei, todas as portas e janelas das singelas habitações estavam abertas. Ele se achava sentado a seu escritório, lendo à luz de uma única vela.

Espiei-o comprido momento, coisa que eu adorava fazer. Freqüentemente, quando saía de caça, seguia-o, simplesmente para observar como se alimentava. Ao Louis o mundo moderno não interessa para nada; ele percorre as ruas como um fantasma, sem produzir ruído, atraído unicamente por quem acolhe a morte com beneplácito, ou que parecem fazê-lo. (Não estou seguro de que ninguém possa acolher nunca a morte com beneplácito.) E quando se alimenta, é algo indolor, delicado e veloz. Sempre tem que matar pois não sabe salvar a vida da vítima. Nunca teve a fortaleza necessária para beber só o "traguito" com que subsisto eu tantas noites, ou mas bem com que subsistia antes de me converter em um deus voraz.

Sua vestimenta é sempre antiquada. Ao igual a muitos de nós, procura roupa em estilo parecido ao que se usava quando ele era mortal. As camisas soltas com punhos franzidos o fascinam, quão mesmo as calças ajustadas. Quando usa casaco -estranha vez- é sempre entalhado como os que escolho eu: jaqueta de cavaleiro, muito larga, e ampla ao chegar à arena.

Às vezes lhe levo de presente roupa desse tipo, para que não tenha que usar até as deixar feitas farrapos os poucos objetos que possui. Alguma vez estive tentado de lhe acomodar a casa, lhe pendurar os quadros, pôr belos adornos, rodeá-lo do luxo embriagador que eu tinha no passado.

Ele sem dúvida tivesse querido que o fizesse, mas nunca o confessou. Vivia sem eletricidade nem calefação moderna, perambulando no caos e fingindo que se sentia plenamente satisfeito.

Algumas janelas de sua casa não tinham vidro, e só de tanto em tanto fechava as antiquadas persianas de tablitas. Não parecia lhe importar se entrava chuva sobre seus pertences, porque não eram realmente pertences a não ser só lixo amontoado sem ordem nem concerto.

Repito: acredito que queria que eu fizesse algo para solucionar-lhe Muito freqüentemente vinha a me visitar meus aposentos do centro, super calefaccionados e com excelente iluminação. Ali ficava, olhando minha tela gigante de televisão. Às vezes trazia seus próprios filmes para passar em disco ou em cinta. "A bela e a fera,una" filme francês do Jean Cocteau, agradava-lhe muito. Também estava "The Dead", do John Huston, apoiada em um conto do James Joyce. E entenda-se me por favor, que este filme não tem nada que ver com os de minha espécie; trata a respeito de um grupo muito comum de mortais da Irlanda de princípios de século, que se reúnen a celebrar uma jovial janta de Natal. Havia muitos outros filmes que lhe atraíam. Mas essas visitas nunca se produziam porque eu as ordenasse e nunca duravam muito. Freqüentemente ele deplorava o "grosseiro materialismo" em que eu me "desfrutava" e demonstrava desprezo por meus almofadões de veludo cotelê, a grosa atapeta do piso e o esplêndido banho de mármore. Então se ia, retornava a sua choça desolada, coberta de trepadeiras.

Essa noite o encontrei em sua tresnoitada glória, com uma mancha de tinta na bochecha, lendo um grosso tiro da biografia de Dickens escrita recentemente por um novelista inglês, enquanto passava lentamente as páginas, pois não lê com mais velocidade que a maioria dos mortais. De fato, de todos os que ficamos sobreviventes, que se assemelha mais aos humanos é ele. E isso é por própria eleição.

Muitas vezes lhe ofereci meu sangue mais poderoso e sempre a rechaçou. O sol do deserto do Gobi o teria convertido em cinzas. Seus sentidos são vampíricos e bem afinados, mas não como os de um Filho dos Milênios. Não tem muita capacidade para ler os pensamentos de outra pessoa. Quando põe a algum mortal em transe, sempre é por engano.

E, certamente, não posso lhe ler os pensamentos porque eu o criei, e os pensamentos do discípulo e o professor são sempre próximos, embora o porquê nenhum de nós sabe. Minha suspeita é que conhecemos muito os sentimentos e desejos do outro; só que a amplificação é muito estridente como para que possa aparecer alguma imagem com nitidez. Todo teoria. Ao melhor algum dia estudam em laboratórios. Se isso ocorrer, vamos implorar por vítimas viventes através das grosas paredes de vidro de nossos cárceres, enquanto nos acossam com perguntas e nos extraem amostras de sangue das veias. OH, mas como fazer isso ao Lestat, que é capaz de reduzir a outro a cinzas apenas com um pensamento enérgico?

Louis não ouviu que estava entre o pasto crescido, fora da casa.

Entrei na habitação criando uma enorme sombra indireta, e já estava sentado em meu bergére preferida de veludo cotelê vermelho -tempo atrás a tinha levado aí para que a usasse eu- quando ele levantou o olhar.

-Ah, você! -disse no ato, e fechou o livro.

Seu rosto, enxuto por natureza, de facções finas -muito delicado em que pese a sua óbvia força-, estava belamente rosado. Isso queria dizer que tinha caçado um momento antes e eu não sabia. Durante um momento fiquei aniquilado.

Entretanto, era emocionante vê-lo tão revitalizado pelo lento batimento do coração do sangue humano. Eu também alcançava a cheirá-la, o qual acrescentava uma estranha dimensão ao feito de estar perto dele. Sua beleza sempre me tinha enlouquecido. Quando não estou com ele, acredito que o idealizo, mas depois, ao vê-lo, de novo me sinto desarmado.

Sem dúvida foi sua formosura o que me atraiu durante minhas primeiras noites na Luisiana, quando isto era uma colônia selvagem e anárquica e ele um parvo bêbado e temerário que jogava por dinheiro e se metia em brigas nos botequins, que fazia todo o possível para provocar sua própria morte. Bom, conseguiu mais ou menos o que acreditava desejar.

Em um primeiro momento não compreendi sua expressão de horror ao me olhar, nem por que se levantou de repente, aproximou-se de mim, agachou-se e me tocou a cara. Então recordei: era minha tez bronzeada.

-O que fez? -murmurou. ajoelhou-se junto a minha poltrona e seguiu me olhando, me apoiando levemente a mão sobre o ombro. Formoso gesto de intimidade, mas eu não ia reconhecer o. Por isso fiquei sereno em meu sítio.

-Não é nada; já passou. Fui a um lugar deserto... queria ver o que ocorria...

-Queria ver o que ocorria? -ficou de pé, deu um passo atrás e me olhou indignado. -Queria te auto-destruir, verdade?

-Não, não. Fiquei tendido à luz um dia inteiro. À segunda manhã, não sei como fiz, mas devo ter cavado e me enterrei na areia.

Permaneceu um comprido instante me olhando como se estivesse por reagir com desaprovação; logo voltou para seu escritório, sentou-se em forma bastante ruidosa tratando-se de alguém tão delicado, acomodou as mãos sobre o livro fechado e me olhou com expressão perversa e cheia de fúria.

-por que o fez?

-Louis, tenho algo mais importante que te contar. Não falemos mais desse assunto. -Fiz um gesto assinalando minha cara. -aconteceu algo notável e tenho que lhe contar isso tudo. -Levantei-me sem poder me conter e comecei a me passear com cuidado para não tropeçar com as abomináveis pilhas de lixo que havia por toda parte, além de me sentir levemente enlouquecido pela luz da vela, não porque não me alcançasse para ver mas sim porque era tão tênue e eu gosto da luz.

Relatei-lhe tudo: que tinha visto esse tal Raglan James em Veneza e em Hong Kong, depois em Miami, e como ele me tinha enviado a mensagem em Londres e logo me seguiu até Paris, tal como supus que faria. Agora havíamos ficado de nos encontrar ao dia seguinte na praça. Expliquei-lhe o dos contos e sua significação. Mencionei o que lhe encontrava de estranho ao moço, disse-lhe que o corpo onde esse tipo estava não era o seu e que, em minha opinião, era capaz de fazer a mudança.

-Está louco -disse-me.

-Não te apresse.

-Diz-me as mesmas palavras que ele a ti? Destrói-o. Termina com ele. Busca o esta noite e elimina-o se puder.

-Pelo amor de Deus, Louis...

-Se esse homem pode te encontrar a vontade, Lestat, significa que sabe onde te enterra. Trouxeste-o até aqui e agora sabe onde me enterro eu. É o pior dos inimigos! Mon Dieu, por que sempre procura a adversidade? Não há nada sobre a terra que possa te destruir; nem mesmo os Filhos dos Milênios têm força para fazê-lo. Não te destruiu nem o sol do meio-dia no deserto... e provoca ao inimigo que tem poder sobre ti. Um mortal que pode caminhar à luz do dia. Um homem capaz de obter um domínio total sobre sua pessoa quando está sem um pingo de consciência ou vontade. Não, aniquila-o; é muito perigoso. Se o vir, destruo-o eu.

-Louis, esse homem pode me dar um corpo humano. Não escutou tudo o que disse?

-Um corpo humano! Não podemos nos converter em humanos simplesmente dando procuração de um corpo! Você não foste humano quando vivia! Nasceu monstro, e sabe. Como diabos pode te enganar assim.

-Se não te calar, vou chorar.

-Chora, que eu gostaria de verte. Tenho lido muito sobre seu pranto em seus livros, mas jamais te vi fazê-lo pessoalmente.

-Ah, com isso demonstra ser um perfeito embusteiro -indignei-me-. Em suas miseráveis memórias descreve meu pranto em uma cena que você e eu sabemos que não existiu!

-Lestat, mata a esse ser! É uma loucura que o deixe aproximar-se para te falar.

Sentia-me aturdido, totalmente aturdido. Voltei a me desabar na poltrona e fiquei com o olhar ausente. Fora, a noite parecia respirar com ritmo suave e encantador; a fragrância das flores era apenas um toquecito no ar frio e úmido. Uma tênue incandescência emanava do rosto do Louis, de suas mãos pregadas sobre o escritório. achava-se envolto em um manto de silêncio, aguardando minha resposta, suponho, embora eu não sabia bem por que.

-Nunca esperei isto de ti -reconheci abatido-. Esperava ouvir uma larga diatribe filosófica, como essas insensatezes que escreveu em suas memórias, mas isto...

Seguia sentado em silêncio, me observando fixo; a luz brilhou um instante em seus olhos pensativos. Parecia profundamente atormentado, como se minhas palavras o tivessem feito sofrer. Por certo não o afetava minha crítica a seu livro, pois era algo que eu vivia fazendo. Isso era uma brincadeira. Bom, uma espécie de brincadeira.

Não soube o que dizer nem o que fazer. Louis me estava pondo nervoso. Quando falou, fez-o com voz muito baixa.

-Você não quer realmente ser humano. Não me diga que crie isso...

-Sim, acredito! -respondi, humilhado pela carga de afeto que pus em minhas palavras-. Como pode não acreditá-lo você?-Levantei-me e comecei a me passear de novo. Fiz um circuito ao redor da pequena casa e me internei no jardim selvagem, para o qual tive que limpar o caminho empurrando as trepadeiras. Achava-me em tal estado de desconcerto que já não podia falar mais com o Louis.

Pensava em minha vida de mortal tratando em vão de não convertê-la em mito, mas não podia me desprender dessas lembranças: a última caçada de lobos, meus cães morrendo na neve. Paris. O teatro do bulevar. Realmente não quer ser humano. Como pôde dizer semelhante coisa?

Pareceu-me que tinha transcorrido uma eternidade no jardim até que, finalmente, para melhor ou para pior, voltei a entrar. Louis estava sentado ainda a seu escritório e me olhou com desânimo, quase com tristeza.

-Olhe -disse-lhe-, há duas coisas que acredito. Primeiro, que nenhum mortal pode rechaçar o Dom Misterioso se na verdade chega ou seja o que é. E não me fale de que David Talbot segue negando-se, porque David não é um ser comum. Segundo, que se nos desse a oportunidade, todos nós quereríamos voltar para ser humano. Esses são meus princípios. Nada mais.

Fez um pequeno gesto de aceitação e se recostou contra o respaldo de sua poltrona. A madeira rangeu levemente sob seu peso; logo levantou a mão direita com gesto lânguido, sem ter consciência absolutamente de quão sedutor era esse pequeno gesto, e se passou os dedos pelo cabelo escuro, solto.

Me atenaceó então a lembrança da noite em que lhe dava o sangue, como discutiu comigo até o último momento para me dissuadir, como ao final se rendeu. Eu já o tinha explicado tudo perfeitamente, quando ele era ainda um jovem fazendeiro febril e bêbado que, em seu leito de doente, tinha o rosário enrolado no poste da cama. Mas é tão difícil explicar uma coisa assim! E ele, tão amargo, tão consumido, tão jovem!, convenceu-se de que queria vir comigo e de que a vida humana já não lhe atraía.

O que sabia ele nnaquele tempo? naquele tempo? Tinha ouvido alguma vez um poema do Milton, ou escutado uma sonata do Mozart? Dizia-lhe algo o nome de Marco Aurelio? O mais provável é que o considerasse um nome rebuscado de algum escravo negro. OH, aqueles donos de plantações, fanfarrões e indômitos, com seus espadines e suas pistolas incrustadas em prata. O que sim apreciavam era o excesso; pensando-o retrospectivamente, isso tenho que reconhecer-lhe -Además, ¿qué pasaría con tu cuerpo? -prosiguió, conteniendo hábilmente su indignación-. No irás a dejar todos tus poderes a disposición de ese ser, brujo o lo que sea. Nuestros compañeros aseguran que tus poderes son tan inmensos que ni siquiera se atreven a calcularlos. Oh, no. La idea es aterradora. Dime, ¿cómo hace para encontrarte? Eso es lo más importante.

Mas agora ele estava longe daqueles tempos, não? Era autor de "Entrevista com o vampiro" (habrá visto título mais ridículo). Tratei de me serenar. Amava-o tanto que não podia menos que ser paciente e esperar até que ele voltasse a falar. Acaso não o tinha feito eu de carne e sangue humanas, convertendo-o em meu torturante preternatural?

-Isso não é tão fácil -disse, despertando de meu sonho. Sua voz foi premeditadamente suave, com um tom quase conciliatório ou suplicante. -Não pode ser tão singelo. Você não pode trocar de corpo com um mortal. Para te ser justifico, não acredito que seja possível, mas embora o fora...

Não respondi. Tive desejos de dizer: "Mas, e se o fora? Se pudesse sentir de novo o que significa estar vivo?".

-Além disso, o que aconteceria seu corpo? -prosseguiu, contendo habilmente sua indignação-. Não irás deixar todos seus poderes a disposição desse ser, bruxo ou o que seja. Nossos companheiros asseguram que seus poderes são tão imensos que nem sequer se atrevem a calculá-los. OH, não. A idéia é aterradora. me diga, como faz para te encontrar? Isso é o mais importante.

-Ao contrário, é o menos importante. Mas é óbvio que, se pode fazer um intercâmbio de corpos, pode abandonar o seu. Pode deslocar-se como um espírito o tempo necessário para me rastrear e me encontrar. Eu devo lhe resultar muito visível quando se acha nesse estado, tendo em conta o que sou. Isso em si mesmo não é um milagre, se me compreender.

-Sei. Ou ao menos disso me inteiro pelo que leão e pelo que me dizem. Acredito que te topaste com um ser muito perigoso, muito pior que nós.

-Pior em que sentido?

-É outro intento desesperado de alcançar a imortalidade! Acaso crie que esse mortal, quem quer que seja, planeja envelhecer dentro desse ou de outro corpo e morrer?

Devo confessar que seu raciocínio me chegou. Logo lhe falei da voz desse homem, que soava culta, de seu marcado acento britânico, de como não parecia a voz de uma pessoa jovem.

estremeceu-se.

-Provavelmente pertença à a Talamasca. Deve ser aí onde se inteirou de sua existência.

-Quão único teve que fazer para saber de mim foi comprar uma novela em rústica..

-Sim, mas não para acreditar, Lestat, não para acreditar que era certo.

Contei-lhe que tinha falado com o David e que ele havia ficado de averiguar se o tipo pertencia a sua ordem, mas eu supunha que não. Esses eruditos jamais fariam semelhante coisa. Além disso, o tipo tinha algo de sinistro. os da Talamasca eram tão retos que já aborreciam. Mas o que importava: eu estava disposto a conversar com o homem para me formar minha própria idéia.

Notei-o meditabundo uma vez mais, e muito triste. Olhá-lo quase me fazia sofrer. Me deu vontade de tomá-lo pelos ombros e sacudi-lo, mas com isso só ia conseguir irritá-lo mais.

-Amo-te -confessou com voz fica.

Eu o olhei sobressaltado.

-Vive procurando a maneira de triunfar -continuou-. Jamais te rende. Mas a forma de triunfar não existe. Estamos metidos no purgatório, você e eu. E ainda por cima terá que agradecer que não seja o inferno.

-Não; isso não acredito -contradisse-o-. Olhe, não importa o que diga nem o que possa ter opinado David: vou falar com o Raglan James. Quero me inteirar de tudo e ninguém me vai impedir isso!

-Ah, de modo que David Talbot também te acautelou contra esse indivíduo.

-Não escolha a seus aliados entre meus amigos!

-Lestat, se esse humano me aproxima, e se acreditar que representa um perigo para mim, tenha por seguro que o destruo.

-Sim, claro. Mas ele não te aproximaria. Escolheu-me , e com razão.

-Escolheu-te porque é despreocupado e ostentoso. Não lhe digo isso para te ofender, de verdade. Deseja que lhe vejam, que lhe rodeiem, que lhe compreendam; você gosta de fazer picardias e armar revôos para ver se baixa Deus a te salvar por um cabelo. Bom, Deus não existe. Deus bem poderia ser você.

-Você e David... a mesma cantilena, as mesmas admoestações, embora ele assegura ter visto deus e você não crie que exista.

-David viu deus? -perguntou com acento de respeito.

-Não, não -murmurei, e fiz um gesto desdenhoso-. Mas os dois me arreganham da mesma maneira. Igual a Marius.

-E é obvio, você escolhe as vozes que lhe repreendem. Sempre o tem feito, do mesmo modo como escolhe a quem logo se voltam contra ti e lhe cravam uma adaga no coração.

referia-se a Claudia, mas não se atreveu a pronunciar seu nome. Eu sabia que, de havê-lo querido, podia feri-lo lhe lançando uma maldição, lhe dizendo coisas como por exemplo: "Você participou daquilo! Estava presente quando o fiz, e também quando ela blandió a adaga!".

-Não quero te ouvir mais, Louis! vais passar te a vida entoando a canção das limitações. Bom, eu não sou Deus. E tampouco sou o diabo, embora às vezes finjo sê-lo. Tampouco sou o arteiro Yago. Não tramo situações horripilantes e perversas. E não posso pôr freio a minha curiosidade ou meu espírito. Sim, quero saber se esse homem é capaz de fazê-lo. Quero saber o que vai passar. E não me darei por vencido.

-E entoará eternamente a canção da vitória embora não exista tal vitória.

-Mas é que existe. Tem que existir.

-Não. quanto mais conhecimento adquirimos, mais nos damos conta de que não existem as vitórias. por que não podemos recorrer à natureza, fazer o que se deve fazer para perdurar e nada mais?

-Essa é a mais indigna definição da natureza que escutei em minha vida. Note bem, não na poesia a não ser no mundo exterior. O que vê na natureza? Quem fez às aranhas que se metem sob as úmidas madeiras dos pisos? Quem criou às mariposas com suas asas multicoloridas, que parecem grandes floresça malignas na penumbra? O tubarão do mar, por que existe? -Adiantei-me, apoiei ambas as mãos no escritório e o olhei à cara- Estava tão seguro de que foste entender isto. E a propósito, eu não nasci monstro! Quando nasci era um menino mortal, quão mesmo você. Mais forte que você! Com mais desejos de viver que você! Isso que disse foi cruel.

-Sei. Às vezes me assusta tanto, que te ataco com paus e pedras. É uma tolice. Me alegro de verte, embora não me atrevo a reconhecê-lo. Estremeço-me de só pensar que pudesse ter posto fim a sua vida no deserto! Não suporto a idéia da existência sem ti! Põe-me furioso! por que não te ri de mim? Não seria a primeira vez.

Endireitei-me, dava-lhe as costas e me pus a contemplar a grama balançada brandamente pela brisa do rio, os brotos da trepadeira que cobriam como um véu o oco da porta.

-Não me rio. Mas isto o vou levar adiante; de nada vale que te minta. Deus santo, é que não o vê? Se chegar a estar em um corpo humano embora mais não seja cinco minutos, de que não poderia me inteirar?

-De acordo -aceitou, desalentado-. Espero que descubra que o homem te seduziu com uma fileira de mentiras, que o único que deseja é o Sangue Misterioso e que o envie diretamente ao inferno. me permita te advertir uma vez mais: se o vir, se me chegar a ameaçar, juro-te que o Mato. Eu não tenho sua força. Dependo da possibilidade de me manter anônimo. Minhas pequenas memórias, como você as chamas, pareciam tão afastadas do mundo moderno que ninguém tomou a sério.

-Não lhe permitirei que te faça mal, Louis. -Girei e lhe dirigi um olhar avesso. -Jamais teria permitido que ninguém te fizesse mal.

Dito o qual, parti-me.

É obvio, isso foi uma acusação, e antes de dar meia volta e ir, vi com prazer que lhe tinha parecido um dardo.

A noite em que Claudia se rebelou contra mim, ele se tinha ficado aí, qual impotente testemunha, reprobatorio mas sem intervir, nem sequer quando o chamei.

Logo elevou o que supôs era meu corpo sem vida e o jogou no pântano. OH, vergônteas ingênuas, pensar que podiam me eliminar tão facilmente.

Mas, para que recordá-lo agora? Nesse então ele me amava, com independência de que soubesse ou não. Quanto a meu amor por ele e por essa menina zangada e infeliz, jamais tive a menor duvida.

Ele se condolió de mim; isso tenho que reconhecer-lhe Mas é tão bom para condolerse! Usa o infortúnio como outros usam o veludo; o sofrimento o favorece como a luz das velas; as lágrimas lhe sintam como jóias.

Bom, comigo não dá resultado nenhuma dessas tolices.

Retornei a minha morada do terraço, acendi tudo meus belos abajures elétricos e fiquei durante duas horas me desfrutando com o grosseiro materialismo. Olhei um desfile interminável de imagens de vídeo na tela gigante e por último dormi um momento em meu fofo sofá antes de sair a caçar.

Sentia-me cansado, fora de meu horário. E com sede também.

Reinava o silêncio além das luzes do bairro francês e os arranha-céu do centro da cidade, eternamente iluminados. Nova Orleáns cai em sombras muito rápido, tanto nas ruas rurais que já hei descrito como entre as velhas casas e edifícios de tijolos do centro.

Percorri essas zonas comerciais deserta, com suas fábricas e galpões fechados, suas desoladas casitas de madeira, e cheguei até um lugar maravilhoso próximo ao rio que possivelmente não tenha significado algum para ninguém, salvo para mim.

trata-se dos terrenos vizinhos aos moles, sob os enormes pilote das auto-estradas que levam até duas altas pontes de rio que para mim, do primeiro instante em que os contemplei, foram sempre os Portais do Sul.

Devo confessar que o mundo oficial pôs outro nome a essas pontes, muito menos simpático. Mas eu disposto escassa atenção ao mundo oficial. Para mim sempre serão os Portais do Sul e, cada vez que retorno a esta cidade, saio em seguida a caminhar, chego até eles, e me encanto com a piscada de seus milhares de lucecitas.

Quero deixar bem em claro que não se trata de finas criações estéticas como a ponte do Brooklyn, que incitou o amor do poeta Hart Crane. Tampouco têm a solene grandiosidade do Golden Gate de São Francisco.

Não obstante isso, são pontes, e tudas as pontes me resultam formosos, estimulantes para meu pensamento; e quando estão totalmente iluminados como esses, suas inumeráveis vigas e varinhas adquirem uma sorte de mística grandiosa..

Quero adicionar aqui que o mesmo milagre de luz se produz na negra campina noturna do sul, com suas imensas refinarias de petróleo e suas usinas elétricas que se elevam com chamativo esplendor da terra plaina e invisível. E estas têm além disso a glória de suas chaminés e suas chamas eternamente acesas. A Torre Eiffel não é agora um simples andaime de ferro a não ser uma escultura de deslumbrante luz elétrica.

Mas voltando para Nova Orleáns, pu-me a percorrer esse páramo ribeirinho, flanqueado por choças ordinárias de um lado, por galpões abandonados do outro, e no extremo norte pelos maravilhosos depósitos de maquinarias em desuso e seus cercos de arame talheres pelas infaltables trepadeiras em flor.

OH, campos do pensamento e campos da desesperança. eu adorava caminhar por aí, sobre a terra erma e branda, em meio das malezas altas e as partes de vidro quebrado, para escutar o pulso débil do rio embora não pudesse vê-lo, para contemplar o longínquo resplendor rosado do centro da cidade.

Esse lugar horrível, atroz e esquecido, essa enorme brecha em meio de pitorescos edifícios velhos, onde só de tanto em tanto aparecia um automóvel, nas ruas desertas e supostamente perigosas, pareceu-me a essência do mundo moderno.

Não quero me esquecer mencionar que essa zona, face aos tenebrosos atalhos que a ela conduziam, em realidade nunca estava de tudo escura. Uma corrente de iluminação casal chegava dos faróis das auto-estradas, como também das escassas luzes da rua, e tudo criava um aspecto lôbrego constante, de origen ao parecer desconhecido.

Dá vontade de ir aí correndo, não é certo? Não morre você por ir rondar em meio dessa imundície?

Agora, sério, é divinamente triste estar aí parado, ser uma silhueta diminuta dentro do cosmos que se estremece para ouvir os ruídos apagados da cidade, as imponentes máquinas que gemem em longínquos complexos industriais, o rugido de ocasionais caminhões sobre nossas cabeças.

A poucos passados do lugar havia uns edifícios de moradias abandonados. Em suas habitações convertidas em depósitos de lixo encontrei a dois assassinos, embotadas de narcóticos suas mentes, com quem me alimentei lenta e silenciosamente deixando-os sem conhecimento mas com vida.

Retornei ao campo vazio e solitário e me pus a percorrê-lo com as mãos nos bolsos, chutando as latas que encontrava a meu passo. Durante comprido momento dava voltas sob as auto-estradas propriamente sortes; logo peguei um salto e me parti pelo braço norte do portão mais próximo. Que profundo e turvo meu rio. O ar estava afresco sobre as águas e, face à deprimente névoa que o cobria, alcançava a ver profusão de estrelas cruéis e diminutas. Comprido momento permaneci refletindo a respeito de tudo o que me havia dito Louis e tudo o que David me havia dito, mas ainda seguia entusiasmado com a idéia de me encontrar de noite seguinte com o Raglan James. Por último, aborreci-me até do formoso rio. Revisei mentalmente a cidade em busca do louco espião mortal, mas não o pude achar. Explorei o setor alto da cidade e tampouco o encontrei. Mas não estava do todo seguro. Quando já terminava a noite retornei à casa do Louis -agora vazia e às escuras- e passeei pelas ruelas procurando de tanto em tanto ao mortal espião, sempre em guarda. Com segurança Louis estava a salvo em seu refúgio secreto, oculto dentro do ataúde onde se escondia todos os dias antes do amanhecer. Logo voltei caminhando ao campo uma vez mais, cantando sozinho, e pensei que os Portais do Sul, com todas essas luzes, recordavam-me aqueles bonitos vapores do século XVIII que pareciam enormes tortas de bodas flutuantes, adornadas com velitas. É isto uma metáfora mista? Não me interessa. Mentalmente ouvia a música dos vapores. Tratei de imaginar o século vindouro, com que formas nos receberia, como combinaria a fealdade e a beleza com a nova violência, tal como o fazia cada século. Contemplei os pilote das auto-estradas, grácis arcos elevados de aço e concreto, polidos como esculturas, singelos e monstruosos, folhas de pasto incolor brandamente dobradas. Até que por fim chegou o trem, estralando pela longínqua via diante dos galpões, com sua tediosa fileira de vagões sujos, odioso, perturbador, enviando com o chiado de seu apito assinale de perigo a minha alma muito humana. Quando terminou de retumbar o último estalo continuado, a noite replicou com total vacuidade. Não havia automóveis visíveis que se deslocassem sobre as pontes e uma névoa espessa avançava silenciosa tudo ao largo do rio, ocultando as estrelas esfumadas. Uma vez mais me encontrei chorando. Pensava no Louis, em suas advertências. Mas, o que podia fazer? Eu não sabia o que era a resignação; jamais ia ou seja. Se o miserável do Raglan James não aparecia de noite seguinte, buscaria-o pelo mundo inteiro.

Não queria falar mais com o David; não queria ouvir seus conselhos, não podia escutá-lo. Sabia que devia seguir adiante com isto. Continuei com o olhar cravado nos Portais do Sul. Não podia me tirar da mente a beleza de suas luzes titilantes. Me deu vontade de ver uma igreja com velas, montões de velas acesas como as que tinha visto no Notre me Dê. E elevar-se, qual preces, a fumaça dos pavios. Uma hora ainda para o amanhecer. Tempo suficiente. Lentamente me encaminhei ao centro da cidade. A catedral de São Luis tinha estado fechada toda a noite, mas essas fechaduras não eram nada para mim. Parei-me à entrada mesma da igreja e cravei os olhos em uma fileira de velas acesas que havia sob a estátua da Virgem. antes das acender, os fiéis deixavam seu óbolo em um porquinho de cobre. Velas de vigília, diziam-lhes. Freqüentemente me sentava no lugar ao anoitecer e escutava o ir e vir dessas pessoas. Eu gostava do aroma de cera; eu gostava da iglesita em penumbras que parecia não ter trocado um ápice em mas de um século. Respirei fundo; logo coloquei a mão no bolso, tirei um par de enrugados bilhetes de dólar e os introduzi na ranhura. Tomei uma mecha larga, aproximei-a de uma chama já acesa, levei-a a uma vela nova e observei como a lengüita ficava alaranjada, luminosa. Que milagre, pensei, que uma só llamita pudesse fazer tantas mais. Uma llamita podia prender fogo ao mundo inteiro. Com esse simples gesto eu acabava de aumentar a quantidade total de luz no universo, ou não? Notável milagre, para o qual não haverá nunca explicação, nunca um bate-papo de Deus e o diabo em um café de Paris. Entretanto, as amalucadas teorias do David me tranqüilizavam quando as rememorava. "Cresçam e lhes multiplique", disse o Senhor, Yahvé; da carne dos dois, multidões de descendentes, como nasce um grande fogo a partir de duas pequenas chamas... de repente se produziu um ruído nítido, que ressonou pela igreja como se fora um passo marcado ex-professo. Fiquei petrificado, surpreso de não me haver dado conta antes de que ali havia alguém. Então recordei Notre me Dê e os passos infantis sobre o piso de Pedra. Um repentino temor me invadiu. Ela estava aí, verdade? Se me dava volta a olhar, esta vez a veria com a capotita posta, possivelmente, com os cachos de cabelo desordenados pelo vento e as mãos embainhadas em mitones de lã, e ela me olharia com esses ojazos. Cabelo dourado e formosos olhos.

De novo o som. Como odiava esse medo! Voltei-me e divisei a silhueta inconfundível do Louis que emergia de entre as sombras. Só Louis. A luz das velas lentamente foi revelando seu rosto plácido e algo gasto. Tinha posto um detestável saco sujo e aberta a gasta camisa, e parecia ter algo de frio. aproximou-se sem pressa e me aferrou com força do ombro.

-Te vai voltar a passar algo espantoso -disse, ao tempo que a luz das velas brincava primorosamente em seus olhos verde escuro-. vais fazer todo o possível; sei.

-vou triunfar -respondi com uma risada incerta, um tanto aturdido pela alegria de vê-lo. Logo me encolhi de ombros-. Acaso não sabe ainda? Sempre ganho.

Mas me chamava a atenção que me tivesse achado aí, que tivesse vindo tão perto do amanhecer. E ainda me encontrava tremendo por causa de minhas loucas imaginações de que ela houvesse tornado, como havia tornado em meus sonhos, e eu tivesse querido saber por que. De repente me preocupei com ele; vi-o tão frágil com sua pele branca e suas mãos largas e delicadas. Porém, alcancei a perceber a aplomada fortaleça que emanava dele, como sempre o fiz, a força do reflexivo que nada faz por impulso, a pessoa que vê desde todos os ângulos, que escolhe com cuidado suas palavras. que nunca joga com o sol nascente. afastou-se de mim bruscamente e em silêncio saiu pela porta. Fui atrás dele, mas não fechei a porta ao sair, o qual me pareceu imperdoável porque nunca terá que perturbar a paz das Iglesias. Observei-o afastar-se na manhã fria e negra, pela calçada dos departamentos Pontalba, ao outro lado da praça. Ia depressa, com seu estilo etéreo, dando passados compridos, leves. A luz, cinza e letal, aproximava-se tingindo as vidraças com um resplendor apagado. Eu poderia suportá-lo uma meia hora mais, talvez. Ele não. Tomei consciência de que não sabia onde estava escondido seu ataúde, nem a distância que devia percorrer para chegar até ele. Não tinha nem a mais leve idéia. antes de chegar à esquina mais próxima ao rio, voltou-se. Enviou-me uma pequena saudação com a mão e notei nesse gesto mais carinho que em tudo o que me havia dito antes. Retornei para fechar a igreja.

 

De noite seguinte, dirigi-me sem demora à praça Jackson. Finalmente se tinha abatido sobre Nova Orleáns o tremendo temporal do norte, trazendo consigo um vento gelado. Esse tipo de fenômeno pode apresentar-se em qualquer momento durante os meses de inverno, embora alguns anos não ocorre absolutamente. Eu tinha passado por meu departamento para me pôr um sobretudo grosso de lã, feliz de experimentar como antes essa sensação em minha pele recentemente bronzeada. Uns poucos turistas desafiavam as inclemências do tempo e entravam nos bares e padarias próximos à catedral que ainda estavam abertos; o trânsito noturno era veloz, ruidoso. O velho e gordurento Café du Pode se encontrava repleto e tinha suas portas fechadas. o vi imediatamente. Que sorte. Tinham rodeado o perímetro do lugar com cadeias, como se acostuma fazer agora ao entardecer -o que chateio-, e ele se achava do lado de fora, frente à catedral, olhando nervoso a seu redor. Dispus de um momento para observá-lo antes de que notasse minha presença Era algo mais alto que eu -um metro noventa, calculei-lhe, e de excelente textura, como já tinha advertido. Não me equivoquei quanto à idade. Esse corpo não podia ter mais de vinte e cinco anos. Ia vestido com roupa muito cara: impermeável forrado em pele, de muito bom corte, e uma grosa cachecol de cachemira tinta. Notei que, à lombriga, percorria-o um espasmo, mescla de ansiedade e satisfação. desenhou-se em seu rosto um horrível sorriso resplandecente e, tratando em vão de dissimular seu pânico, olhou-me fixo quando me aproximei arremedando isso o passo dos humanos.

-OH, mas parece você um anjo, senhor do Lioncourt -murmurou-. E que estupendo o bronzeado de sua pele. me perdoe que não o tenha elogiado antes.

-De maneira que veio, senhor James -disse, arqueando as sobrancelhas-. O que me vai propor? Fale rápido, porque você não me cai bem.

-Não seja descortês, senhor do Lioncourt. Seria um lamentável engano que me ofendesse; sinceramente o digo. -Sim, voz igualita a do David. Da mesma geração, o mais provável. E sem dúvida, com um sotaque de acento da Índia.

-Nisso tem razão -prosseguiu-; vivi muitos anos na Índia. E um tempo na Austrália e na África também.

-Ah, vejo que pode me ler os pensamentos com facilidade.

-Não com tanta como supõe, e agora possivelmente não poderei fazê-lo mais.

-O vou matar se não me diz como fez para me seguir e o que é o que quer.

-Você sabe o que quero -repôs, soltando uma risada pouco alegre, ansiosa. Posou seus olhos em mim e logo desviou o olhar. -Já o disse através dos contos, mas não posso falar aqui, com tão frio. Isto é pior que Georgetown, que é onde vivo, dito seja de passagem. Tinha a esperança de poder escapar deste clima. por que arrastou a Londres e a Paris nesta época do ano? -Mais espasmos de risada seca. Evidentemente não podia me olhar mais de um minuto sem ter que desviar os olhos como se eu o deslumbrasse.

-Fazia um frio espantoso em Londres, e eu odeio o frio. Aqui estamos perto do trópico, não? Ah, você e suas lembranças sentimentais da neve invernal.

Este último comentário me deixou sobressaltado e não o pude dissimular. Tive um momento de indignação, até que consegui me dominar.

-Vamos ao café -propu-lhe, assinalando o velho mercado francês ao outro lado da praça. Caminhei depressa pela calçada. Estava tão perplexo e agitado que não queria me arriscar a pronunciar nenhuma palavra mais. O ambiente do café era ruidoso mas quente. Entrei primeiro e me encaminhei para uma mesa no extremo mais afastado da porta, pedi o famoso café au lait para os dois e fiquei sentado em rígido silêncio, algo distraído pelo fato de que a mesa estava pegajosa. Fascinado, vi que ele se estremecia, tirava-se a écharpe com gesto nervoso, voltava a ficar a tirava-se as luvas de fino couro, os guardava no bolso, logo voltava a tirar-lhe ficava um, deixava o outro sobre a mesa, até que por último tomou novamente e calçou também. Havia sem lugar a dúvidas algo de horrível nesse indivíduo, algo no modo em que esse corpo esplêndido se inflava com seu espírito tortuoso e inquieto, em seus cínicos ataques de risada. Entretanto, não podia apartar meus olhos dele. Experimentava um prazer em certo modo diabólico ao observá-lo. E acredito que ele sabia. detrás desse rosto belo, perfeito, ocultava-se uma inteligência provocadora. Ele me fez tomar consciência do intolerante que havia me tornado para com os que eram jovens de verdade. Nisso nos serviram o café, e eu rodeei com ambas as mãos a taça quente. Deixei que o vapor me subiera à cara, operação que observou com seus grandes olhos castanhos como se fora ele quem estava fascinado. Tratou de manter meu olhar sem apartar a sua, o qual lhe custou o bastante. Boca deliciosa, pestanas bonitas, dente perfeitos.

-Que diabos lhe passa? -perguntei.

-Você sabe; já o adivinhou. Eu não gosto deste corpo, senhor do Lioncourt. Um ladrão de corpos tem seus pequenos problemas.

-Isso é o que você é?

-Sim, um ladrão de corpos de primeira categoria. Acaso não sabia já quando acessou a ver-me? Terá que perdoar minha ocasional estupidez. Durante a maior parte de minha vida fui um homem magro, quase pele e ossos. Nunca tive boa saúde. -Lançou um suspiro e, por um instante, seu rosto juvenil se afligiu.

-Mas esse capítulo de minha vida já está fechado -adicionou com repentino chateio-. Permita ir direito ao grão, por respeito a seu notável intelecto preternatural e ampla experiência...

-Não se burle de mim, descarado! -murmurei pelo baixo-. Está jogando comigo, e eu o vou matar devagarzinho. Já lhe disse que não me cai bem. Nem sequer eu gosto do título que se adjudica.

Isso o fez guardar silêncio e serenar-se. Talvez perdeu a têmpera, ou ficou petrificado de terror. Acredito que simplesmente deixou de ter tanto medo e se zangou.

-De acordo -murmurou com tom sério, sem o furor de antes-. Quero permutar corpos com você. Quero que me dê o sua por uma semana, e eu me encarregaria de lhe dar o meu, um corpo jovem, que goza de perfeita saúde. É evidente que lhe gosta de meu físico. Posso lhe mostrar vários certificados de boa saúde, se o desejar. Este corpo foi examinado exaustivamente antes de que desse procuração dele. Ou de que o roubasse. É muito robusto, como pode apreciar.

-Como o faz?

-Fazemo-lo juntos, senhor do Lioncourt -respondeu ele, cortês. Seu tom se ia voltando mais amável com cada frase que pronunciava. -Tratando-se de um ser como você, impossível que eu lhe roube o corpo.

-Mas tentou fazê-lo, não é assim?

Observou-me um instante, sem saber muito bem o que responder.

-Bom, não pode me culpar por isso agora, verdade? -pediu-me em tom suplicante-. Como tampouco posso culpá-lo eu porque bebê sangre. -Sorriu ao pronunciar a palavra "sangue". -Mas eu em realidade o que estava fazendo era tratar de que me emprestasse atenção, o qual não é nada fácil. -Parecia pensativo, e muito sincero. -Além disso, sempre é necessária a colaboração em algum plano, por oculto que este possa ser.

-Sim. Mas, qual é a mecânica, se não lhe incomodar a palavra? Como colaboramos um com o outro? Seja concreto, porque resisto a acreditar que se possa fazer.

-Vamos, vamos, claro que crie -apontou, calmo, como se fora um professor muito paciente. Parecia quase uma personificação do David, mas sem o vigor de meu amigo. -Do que outra maneira poderia haver dado procuração deste corpo? -Fez um pequeno gesto ilustrativo e continuou. -Reuniremo-nos no sítio adequado. Depois nos elevaremos e sairemos de nossos corpos, coisa que você sabe fazer à perfeição e há descrito com grande eloqüência em seus livros. Depois cada um tomará posse do corpo do outro. Não é nada complicado; o único que se requer é coragem e um ato de vontade. -Levantou a taça com mão muito tremente e bebeu um sorvo de café quente. -Para você, a prova será a coragem, nada mais.

-O que será o que me retenha dentro do novo corpo?

-Senhor do Lioncourt, não haverá ninguém ali dentro que queira deslocá-lo. Compreenda, que isto não tem nada que ver com a posse. OH, a posse é uma luta. Quando entre neste corpo, não encontrará a menor resistência. Pode permanecer nele até que dita retirar-se.

-É muito enigmático! -expressei, molesto-. Sei que se escrito muito sobre estas questões, mas há algo que não...

-me deixe pô-lo em perspectiva -disse com voz fica e elegante condescendência-. Estamos falando de ciência, mas de uma ciência ainda não de tudo codificada pelos cientistas. O que temos são as memórias de poetas e aventureiros do oculto, totalmente incapazes de analisar o processo.

-Exato. Como você assinalou, eu mesmo me atrevi a sair do corpo. Entretanto, não sei o que é o que acontece. Não entendo por que o corpo não morre quando um o abandona.

-A alma tem mais de uma parte, igual ao cérebro. Como você saberá, um menino pode nascer sem cerebelo e, entretanto, se tiver o que se denomina caule cerebral, o corpo pode viver igualmente.

-Que idéia desagradável.

-É um caso muito freqüente, o asseguro. Quem por causa de um acidente sofreram danos cerebrais irreversíveis podem continuar respirando e inclusive bocejar em seu torpor, enquanto lhes siga o bulbo raquiano funcionando.

-E você pode possuir esses corpos?

-OH, não. Para tomar posse total, necessito que o cérebro esteja são. Devem funcionar à perfeição tudo seus neurônios e ser capazes de interrelacionarse dentro da mente invasora. Note-se bem, senhor do Lioncourt, que cérebro e mente são coisas distintas. Além disso recorde que não estamos falando de posse mas sim de algo imensamente mais delicado. me permita continuar, por favor.

-Adiante.

-Como ia dizendo, a alma consta de mais de uma parte, quão mesmo o cérebro. a de maior tamanho -a identidade, a personalidade, a consciência se o desejar- é o que se desprende e viaja mas sempre fica uma pequena parte residual, que é o que mantém com vida o corpo vazio, por assim dizê-lo, porque, do contrário, ao ficar vazio se produziria a morte, sem dúvida.

-Entendo. O que me está dizendo é que a alma residual dá vida ao caule cerebral.

-Sim. Quando você saia de seu corpo, deixará dentro uma alma residual. E quando entre em este, encontrará também uma alma residual. O mesmo achei eu quando tomei posse. E essa alma se enlaça automaticamente com qualquer alma superiora, quer abranger a essa alma superiora. Sem ela, sente-se incompleta.

-E quando se produz a morte, ambas as almas partem?

-Assim é. Ambas, a residual e a maior, partem juntas em violenta evacuação; então o corpo fica como uma casca inerte e começa sua decomposição. -Aguardou, me olhando com o mesmo ar de infinita paciência; logo adicionou: -me crie que a força da verdadeira morte é muito mais intensa. Não existe o menor perigo no que nos propomos fazer.

-Mas se essa pequena alma residual é tão perspicaz, por que não posso eu, com todos meus poderes, tirar um mortal de sua pele e entrar nele?

-Porque a alma maior trataria de recuperar o corpo. Embora não houvesse uma compreensão do processo, tentaria-o uma e outra vez. Às almas não gosta de estar sem corpo. E embora a alma residual recebe de bom grau ao invasor, dentro dela há algo que sempre reconhece à alma particular da qual antes formava parte Se houvesse uma luta, inclinaria-se por essa outra alma E até uma alma desconcertada pode realizar um forte intento de recuperar seu esqueleto humano.

Nada disse, mas por mais que suspeitava dele, por mais que procurava estar sempre em guarda, encontrava sentido a suas palavras.

-A posse é sempre uma luta sangrenta -reiterou-. Olhe o que acontece os espíritos malignos, os fantasmas, esse tipo de coisas. A eles sempre os erradica, embora o vencedor nunca saiba o que foi o que ocorreu. Quando vem o sacerdote com o incenso e todo esse assunto da água bendita, apela à alma residual para que expulse ao intruso e faça voltar para a velha alma.

-Mas com o enfoque cooperativo, ambas as almas têm corpos novos.

-Precisamente. me crie; se pensar que pode meter-se dentro de um humano sem minha ajuda, bom, tente-o e já vai ver o que lhe digo. Jamais poderá experimentar a fundo os cinco sentidos de um mortal enquanto dentro se livre uma batalha.

Seu tom se voltou ainda mais cauteloso, confidencial.

-Olhe este corpo de novo, senhor do Lioncourt -disse com enganosa doçura-. Pode ser dele, absolutamente dele. -Sua pausa de repente me resultou tão precisa como suas palavras. -Faz um ano o viu pela primeira vez em Veneza. Durante todo este tempo, sem interrupção, albergou a um intruso. Albergará-o a você.

-De onde o tirou?

-Já lhe disse que o roubei. Seu antigo dono morreu.

-Quero dados mais concretos.

-É-lhe necessário? Eu não gosto de ficar comprometido.

-Não sou um mortal funcionário da lei, senhor James. Sou vampiro. me fale com palavras que me resultem compreensíveis.

Soltou uma risada irônica.

-O corpo foi eleito com supremo cuidado -disse-. A seu antigo dono já não ficava mente. OH, não tinha nada de mau no orgânico, porque, como lhe disse, lhe tinham praticado exames exaustivos. converteu-se em uma espécie de grande animal de laboratório. Não se movia nunca. Não falava. Tinha perdido irremediavelmente a razão, por mais que os neurônios sãs continuassem reproduzindo-se, como revestem fazer. Consegui fazer a mudança por etapas. Expulsá-lo a ele de seu corpo foi fácil. O que requereu uma grande habilidade foi tentá-lo para que ingressasse em meu antigo corpo e logo deixá-lo ali.

-Onde está agora seu velho corpo?

-Senhor do Lioncourt, é do todo impossível que a velha alma venha nunca a golpear as portas, o garanto.

-Quero ver uma foto de seu velho corpo.

-Para que?

-Porque me vai dizer coisas sobre sua pessoa, possivelmente mais do que me diz com palavras. O exijo; não penso seguir sem ver uma foto.

-Ah, não? -Conservava seu sorriso amável. -E se me levanto e vou?

-Matarei seu esplêndido físico novo assim que o tente, e ninguém se dará conta. Acreditarão que está bêbado, que por isso o sustento entre meus braços. Essas coisas as faço todo o tempo.

ficou calado, mas notei que fazia cálculos febris. Logo caí na conta do muito que ele saboreava a situação, como a tinha desfrutado desde o começo. assemelhava-se a um grande ator, imerso por completo no personagem mais importante de sua carreira. Sorriu-me, assombrosamente sedutor; logo se tirou a luva direita, tirou algo do bolso e me pôs isso na mão. Uma foto velha de um homem magro, de cabelo grisalho, ondulado. Calculei-lhe uns cinqüenta anos. Levava uma espécie de uniforme branco e gravata negra de coque. Em realidade tinha um aspecto agradável, muito mais fino que David embora com o mesmo estilo britânico de elegância, e um lindo sorriso. Estava apoiado contra um corrimão que parecia de navio. Sim, era um navio.

-Você sabia que lhe ia pedir uma foto, não?

-cedo ou tarde...

-Quando foi tomada?

-Não tem importância. Para que diabos o quer saber? -Deixou traslucir um pouco de impaciência, que imediatamente dissimulou. -Foi faz dez anos -precisou, baixando um tanto a voz-. Basta-lhe com isso?

-Quer dizer que andaria pelos..., sessenta e tantos?

-Digamos que sim -aceitou, com um largo sorriso.

-Como fez para inteirar-se disto? por que não houve outros que aperfeiçoassem a técnica? Olhou-me de cima abaixo com certo desagrado e me pareceu que podia chegar a perder a compostura. Logo voltou a assumir os maneiras corteses.

-Muitos o têm feito -repôs, adotando um tom confidencial-. Isso o podia haver dito seu amigo David Talbot, mas não quis. Ele minta, como todos os bruxos da Talamasca. São religiosos. Acreditam que podem dominar às pessoas; usam seus conhecimentos para dominar.

-Como é que os conhece?

-Porque fui membro da ordem -explicou com picardia, e voltou a sorrir-. Expulsaram-me me acusando de utilizar meus poderes em meu próprio proveito. Para que, se não? Por exemplo você, senhor do Lioncourt, para que usa suas faculdades se não em seu próprio benefício?

De modo que Louis tinha acertado. Não respondi. Tratei de lhe ler a mente, mas foi inútil. Em troca, afetou-me profundamente sua presença física, o calor que emanava dele, a fonte cálida de seu sangue. Suculento, seria um bom término para qualificar seu corpo, além do que pudesse opinar-se sobre seu espírito. Não me agradava a sensação porque me deram desejos de matá-lo nesse mesmo instante.

-Inteirei-me do de você através da Talamasca -prosseguiu, retomando o mesmo tom confidencial-. Certamente, eu estava a par de suas pequenas obras de ficção. Estou acostumado a ler esse tipo de literatura. Por isso me vali dos contos para me comunicar com você. Mas foi nos arquivos da Talamasca onde descobri que suas ficções não eram tais.

Indignei-me com o Louis para meus adentros, por ter acertado.

-De acordo -disse-. Entendo todo o do cérebro dividido e a alma dividida, mas e se depois de fazer a mudança você não quer me devolver o corpo, e eu não tenho força suficiente para recuperá-lo? Como posso lhe impedir que fique para sempre? Permaneceu um comprido instante em silêncio; logo respondeu medindo suas palavras:

-Com um bom suborno.

Ah.

-Uma conta bancária de dez milhões de dólares me aguardando para quando voltar a possuir meu corpo. -Voltou a colocar a mão no bolso e extraiu uma tarjetita plástica com uma pequena foto de sua nova cara. Também havia uma impressão digital além de seu nome, Raglan James, e um domicílio em Washington. -Isso você certamente pode arrumá-lo. Uma fortuna que só possa cobrar a pessoa que tenha este rosto e esta impressão digital. Não pensará que vou desprezar semelhante fortuna, verdade? Além disso, não quero seu físico para sempre. Bastante eloqüente foi você ao descrever seus sofrimentos, seu desassossego, sua ruidoso descida ao inferno, etc. Não. Seu corpo o quero por um breve lapso, nada mais. Há aí fora muitos corpos esperando que os possua, muitas classes de aventura.

Examinei a tarjetita.

-Dez milhões -repeti-. É uma soma avultada.

-Não é nada para uma pessoa como você, que tem milhares de milhões ocultos em bancos internacionais sob todos seus nomes fictícios. Um ser com suas formidáveis faculdades pode adquirir todas as riquezas do mundo. Só os vampiros dos filmes de segunda perambulam durante toda a eternidade levando umas vidas paupérrimas como sabemos. limpou-se puntillosamente os lábios com um lenço de linho; logo bebeu um sorvo de café.

-Fiquei extremamente intrigado -continuou- com suas descrições do vampiro Armand em "Reina-a dos condenados", como usou seus poderes para amassar uma fortuna e construir uma grande empresa, a Ilha da Noite..., formoso nome... Deixou-me muito impressionado. -Sorriu um instante e logo prosseguiu com a mesma amabilidade. -Não me custou muito reunir dados sobre as afirmações que você faz, embora como ambos sabemos, seu misterioso companheiro faz tempo já que partiu da Ilha da Noite e desapareceu dos arquivos informáticos..., ao menos que eu saiba.

Não disse nada.

-Além disso, por isso lhe estou oferecendo, dez milhões é um presente. Quem outro lhe ofereceu tanto? Não existe ninguém, neste momento ao menos, que possa brindar-lhe -¿No hay en la Talamasca registros de ángeles?

-E se fosse eu o que não quer voltar para o de antes ao concluir a semana? Suponhamos que queira seguir sendo humano sempre.

-Por mim, não há nenhum problema, porque posso me desprender de seu corpo em qualquer momento. Muitos estariam dispostos a tirar-me o das mãos. -Obsequiou-me um sorriso respeitoso, de admiração,

-O que vai fazer com meu corpo?

-Desfrutá-lo, Desfrutar da fortaleza, o poder! Já tive o que pode oferecer um corpo humano: juventude, beleza, elasticidade. Também estive em um corpo de mulher. Dito seja de passagem, não o recomendo. Por isso agora quero o que você tem para oferecer. -Entrecerró os olhos e inclinou a cabeça. -Se houvesse por aqui algum anjo corpóreo, possivelmente também me aproximaria isso.

-Não há na Talamasca registros de anjos?

Vacilou um instante e logo soltou uma risada

-Os anjos são espírito puro, senhor do Lioncourt, e nós estamos falando de corpos, verdade? Apaixonam-me os prazeres da carne. E os vampiros são monstros de carne, não? Crescem com o sangue. -Uma vez mais lhe notei um brilho especial nos olhos ao pronunciar a palavra "sangue".

-O que é o que persegue realmente? Qual é sua paixão? Não pode ser o dinheiro. Para que serve o dinheiro? O que pode comprar com ele? Experiências que não teve?

-Sim, poderíamos dizer que é isso. Experiências que não tive. Obviamente sou um sensual, por assim dizê-lo, mas se quiser que lhe diga a verdade -e não vejo por que deveria haver mentiras entre nós-, sou em todo sentido um ladrão. Não desfruto de algo se não o obtive regateando, enganando a alguém ou roubando-o. É minha forma de lhe encontrar utilidade a tudo, poderíamos dizer, o que assemelha a Deus!

interrompeu-se como se se impressionou tanto com o que havia dito, que teve que recuperar o fôlego. Seu olhar saltava de um lado a outro; logo olhou a taça de café semivacía e esboçou uma sonrisada secreta.

-Segue-me, verdade? Esta roupa a roubei. Tudo o que tenho em minha casa do Georgetown, cada móvel, quadro e objeto de arte é roubada. Até a casa mesma é roubada, ou digamos que foi transferida em um matagal de falsas impressões e falsas esperanças. Acredito que o chamam fraude. É todo a mesma coisa. -Novamente sorriu com ar de orgulho e, ao parecer, com tal profundidade de sentimento que me deixou impressionado. -Todo o dinheiro que possuo é roubado, quão mesmo o automóvel que conduzo no Georgetown. Também as passagens de avião que usei para persegui-lo a você por todo mundo.

Não respondi. Que estranho era, pensei, intrigado e ao mesmo tempo repelido por ele em que pese a sua simpatia e aparente honestidade. Era um ato estudado, quase perfeito. E essa cara cativante, que com cada nova revelação parecia mais expressiva, mais dúctil. Mais costure me faltava saber.

-Como conseguiu me seguir a todas partes? Como sabia onde me encontrar?

-Desde duas maneiras, para lhe ser justifico. A primeira é evidente. Possuo a faculdade de abandonar meu corpo por períodos breves, durante os quais posso buscá-lo atravessando enormes distancia. Mas eu não gosto desse tipo de viagem imaterial. Além disso, você não é fácil de encontrar. Se oculta durante compridos períodos; depois resplandece em uma visibilidade total. E, certamente, desagrade-se sem seguir esquema algum. Freqüentemente, quando o localizo e levo meu corpo até o lugar, você já se partiu. "Depois há outra maneira, quase tão mágica como a anterior: os sistemas de informática. Você usa vários nomes fictícios. Eu já lhe descobri quatro. Freqüentemente não sou o suficientemente rápido e não posso localizá-lo através do computador, mas posso estudar seus rastros. E quando decide voltar para ponto de partida, sei onde se localizá-lo.

Eu guardava silêncio, me maravilhando uma vez mais do muito que ele desfrutava de todo isso.

-Tenho o mesmo gosto que você para as cidades -disse-. Seu mesmo gosto quanto a hotéis: o Hassler em Roma, o Ritz em Paris, o Stanhope em Nova Iorque. E certamente, o Park Central em Miami, um hotelito muito simpático. Não, não fique tão desconfiado. Não tem nada de estranho perseguir pessoas mediante o computador. Não tem nada de especial subornar a empregados para que nos mostrem um comprovante de cartão de crédito ou nos revelem dados que não devem dar a conhecer. Com os truques isso se consegue muito bem. Não faz falta ser um assassino preternatural para obtê-lo. Absolutamente.

-Rouba você por computador?

-Quando posso -admitiu, fazendo uma pequena careta-. Roubo de diversas maneiras. Nada me resulta indigno. Mas em modo algum tenho a capacidade de me elevar com dez milhões de dólares. Se a tivesse, não estaria aqui, não lhe parece? Não sou tão inteligente. Em duas oportunidades me pescaram e caí preso. Aí foi onde aperfeiçoei a forma de viajar fora do corpo, já que não tinha outra maneira -O sorriso que esboçou foi irônica.

-por que me conta todo isto?

-Porque seu amigo David Talbot o vai dizer, e porque acredito que você e eu deveríamos nos entender. Já estou cansado de correr riscos. A grande razão que me anima é o corpo dele, e os dez milhões quando o devolver.

-Soa-me tudo tão corriqueiro, tão prosaico

-Dez milhões lhe parecem prosaicos?

-Sim. Trocou um corpo velho por um novo. Voltou a ser jovem! E o próximo passo, se eu aceitar, será meu corpo, meus poderes. Entretanto, o que lhe importa é o dinheiro nada mais.

-Ambas as coisas! -protestou, desafiante-. São coisas muito parecidas. -Com esforço deliberado recuperou a compostura. -Você não se dá conta porque adquiriu ao mesmo tempo o dinheiro e suas faculdades. A imortalidade é um grande féretro cheio de ouro e pedras preciosas. Não foi assim como o contou? Você saiu da torre do Magnus convencionado em imortal e com uma fortuna. Ou acaso essa história é mentira? Embora você evidentemente é real, não sei se acreditar todas as coisas que escreveu. Mas tem que compreender o que lhe digo, porque você também é ladrão.

Minha reação imediata foi de indignação. de repente me resultou muito mais desagradável que ao princípio, quando estava tão nervoso.

-Não sou um ladrão -murmurei a meia voz.

-Sim o é. Sempre rouba algo a suas vítimas. Sei que o faz.

-Não, nunca, salvo que... não fique outro remédio.

-Como você diga. Eu, entretanto, acredito que o é. -inclinou-se para frente com os olhos novamente brillosos e me falou em tom tranqüilizador: -Rouba o sangue que bebe; isso não o pode negar.

-Como foi o incidente que teve com a Talamasca?

-Já lhe contei que me jogaram, me acusando de usar meus dons para obter informação com fins pessoais. Acusaram-me de engano... e de roubo, certamente. Foram muito tolos e míopes esses seus amigos da Talamasca. Subestimaram-me totalmente. Teriam que me haver valorado. Teriam que me haver estudado, me haver implorado que lhes ensine o que sei. "Em troca, jogaram-me e me pagaram seis meses de indenização. Uma miséria. E me negaram meu último desejo... uma passagem em primeira classe aos Estados Unidos no Queen Elizabeth II. Teria sido tão singelo que me concedessem isso. Além disso, estavam em dívida comigo por todas as coisas que lhes revelei. Teriam que haver me dado isso. -Suspirou, lançou-me uma miradita e logo posou seus olhos no local. -Pequenas coisas que importam neste mundo. Importam muito.

Não lhe respondi. Voltei a olhar a foto, a imagem que aparecia na coberta do navio, mas não estou seguro de que ele se deu conta. Tinha o olhar perdido no ruidoso resplendor do local; seus olhos percorriam as paredes, o teto, posavam-se em algum turista ocasional, mas não registravam nada.

-Tratei de chegar a um acordo com eles -continuou com a mesma voz mesurada de antes-. Quer dizer, perguntei-lhes se queriam que lhes devolvesse alguns objetos, que lhes esclarecesse certos interrogantes... você sabe. Mas não quiseram entender razões! Além disso, para eles o dinheiro não tem importância, quão mesmo para você. São tão miseráveis que nem sequer analisaram a possibilidade. Deram-me uma passagem de avião em classe turista e um cheque por seis meses de salário. Seis meses! Ah, estou tão cansado destas vicissitudes!

-O que lhe fez pensar que podia ser mais ardiloso que eles?

-É que fui! -exclamou, com uma sonrisada-. Não são muito cuidadosos com suas coisas. Você não se dá uma idéia da quantidade de pequenos tesouros que lhes roubei. Nunca o vão imaginar. Certamente, o roubo mais importante foi você, me inteirar de que existia. OH, descobrir essa cripta cheia de relíquias foi pura boa sorte. Quero que saiba que não me levei nenhum de seus antigos bens: levita já podres de seus placares de Nova Orleáns, pergaminhos com sua assinatura rebuscada... até havia um relicário com uma pintura em miniatura dessa menina detestável...

-Cuide seu vocabulário -sussurrei. ficou muito calado.

-Perdoe. Não quis ofendê-lo.

-Que relicário? -quis saber. teria se precavido de que o coração me pulsava com mais força? Procurei me acalmar, não deixar que me subiera o sentimento à cara. Que submisso parecia quando respondeu.

-Um relicário de ouro com sua cadeia, que dentro tinha uma miniatura ovalada. Não quis roubá-lo, o juro. Deixei-o onde estava. Ainda segue na cripta. lhe pergunte a seu amigo Talbot.

Ordenei a meu coração que ficasse quieto, ao tempo que apagava de minha mente todas as imagens do relicário.

-O certo é -disse logo- que a Talamasca o pescou e o pôs de patinhas na rua.

-Não vejo por que me segue ofendendo -murmurou, humilde-.Você e eu podemos chegar a um acordo sem necessidade de ser antipáticos. Lamento ter mencionado o do relicário...

-Quero pensar um pouco sua proposta -disse.

-Poderia ser um engano.

-por que?

-Corra o risco! Não se atrase. E tenha presente que, se me fizer mal, desperdiçará esta oportunidade para sempre. Eu sou o único que pode lhe brindar esta experiência; sem mim, não poderá saber jamais o que se sente sendo de novo um ser humano. -Me aproximou, mas tanto que alcancei a sentir seu fôlego em minha bochecha. -Nunca vai ou seja o que é caminhar ao sol, desfrutar de uma comida de verdadeiros mantimentos, fazer o amor com uma mulher ou um homem.

-Quero que saia já mesmo daqui. Vá-se da cidade e não retorne nunca. Eu irei ao Georgetown a me reunir com você quando me sentir preparado. E por tratar-se da primeira vez, a mudança de corpo não será por uma semana. Será...

-Posso lhe sugerir dois dias?

Não lhe respondi.

-E se começarmos com um dia? -propôs-. Se gostar, depois podemos arrumar por um período mais largo.

-Um dia -disse, e minha voz soou estranha ainda para meus próprios ouvidos-. Um período de vinte e quatro horas... por ser a primeira vez.

-Um dia e duas noites. Sugiro-lhe que seja esta mesma quarta-feira, apenas fique o sol. A segunda mudança o faríamos na sexta-feira, antes do amanhecer.

Nada disse.

-Tem a noite de hoje e a de manhã para preparar-se -adicionou, querendo me enrolar-. depois de fazer a mutação, vai ter toda a noite da quarta-feira e na quinta-feira inteira, poderia ser até... Parece-lhe bem duas horas antes de sair o sol na sexta-feira? Tem-lhe que resultar cômodo assim. -Observou-me atentamente e logo, com um pingo de ansiedade. -Ah, e me traga um de seus passaportes, qualquer que seja; também um cartão de crédito e nos bolsos, uma soma de dinheiro além dos dez milhões. Compreendido?

Segui sem responder.

-Você sabe que isto vai andar bem.

Continuei calado.

-me crie que tudo o que lhe disse é verdade. lhe pergunte ao Talbot. Eu não nasci arrumado como me vê agora. E este corpo está já mesmo, neste instante, ao seu dispor.

Não falei.

-Venha para ver-me na quarta-feira. vai se alegrar de havê-lo feito.

-interrompeu-se, e suas maneiras se suavizaram ainda mais. -Olhe... Dá-me a sensação de que o conheço -assegurou, sua voz apenas um sussurro-. Sei o que quer! É espantoso desejar algo e não o ter. Ah, mas quando a gente depois sabe que o pode conseguir... Olhei-o aos olhos. Seu rosto atrativo estava sereno, sem a menor expressão, e os olhos pareciam maravilhosos por sua fragilidade e sua precisão. A pele parecia ter elasticidade e pensei que seria sedosa ao tato. Logo me chegou uma vez mais sua voz, uma espécie de cochicho sedutor no qual as palavras trasuntaban um sotaque de tristeza.

-Isto é algo que só podemos fazer você e eu -disse-. Em certo sentido, trata-se de um milagre que unicamente você e eu somos capazes de compreender.

A cara, com sua tranqüila beleza, pareceu-me nesse momento monstruosa, quão mesmo a voz, com seu timbre encantador, com sua eloqüência, com sua maneira de expressar empatia e até afeto, possivelmente até amor. Senti um desejo imperioso de aferrá-lo pelo pescoço, de sacudi-lo até que perdesse a compostura e deixasse de fingir um sentimento profundo, mas de maneira nenhuma o ia fazer. Sentia-me cativado pelos olhos e a voz. Estava-me deixando enfeitiçar, do mesmo modo que antes me tinha deixado invadir pelas sensações físicas de agressão. Isso se devia, supus, a que esse indivíduo parecia frágil e ridículo e eu, em troca, estava seguro de minha própria fortaleza. Mas era mentira. Eu queria fazer o experimento! Queria fazer a mudança. Só ao momento ele desprendeu seu olhar e a passeou pelo local. Estaria esperando sua oportunidade? O que acontecia sua alma arteira e totalmente encoberta? Um homem que podia roubar corpos, viver dentro da carne de outros! Com gestos lentos, tirou uma lapiseira, arrancou uma servilletita de papel e escreveu o nome e a direção de um banco. Deu-me o papel e o guardei no bolso sem abrir a boca.

-antes de fazer a mudança -advertiu-me- darei-lhe meu passaporte; que tem a cara correta, certamente. o deixarei comodamente instalado em minha casa. Suponho que levará dinheiro consigo... sempre leva. Minha casa lhe resultará muito acolhedora. Georgetown lhe vai gostar. -Suas palavras me produziam uma sensação de dedos suaves percorrendo o dorso de minha mão, algo fastidioso e emocionante de uma vez. -É um sítio antigo, muito civilizado. É obvio, ali agora neva. Faz muito frio. Se queria fazer a mudança em um lugar mais quente...

-Não me incomoda a neve -disse pelo baixo.

-Imagino. Bom, de todos os modos lhe deixarei muita roupa de casaco -adicionou no mesmo tom conciliatório.

-Nenhum desses detalhes me importa. -Que parvo era ao supor que me interessavam. O coração me pulsava desordenadamente.

-OH, isso não sei. Quando seja humano talvez note que começam a lhe importar muitas coisas.

A você, pode ser, pensei. A mim o único que me importa é estar nesse corpo, me sentir vivo. Rememorei a nevada do último inverno na Auvernia. Vi o sol que caía das montanhas... Vi o padre do povo, tremendo no grande hall no momento em que se queixava ante mim dos lobos que baixavam à aldeia pelas noites. É obvio, comprometi-me a lhes dar caça. Era minha obrigação. Não me incomodou que pudesse me haver lido esses pensamentos.

-E não quer provar a boa comida, um bom vinho? O que me diz de ter relações com uma mulher, ou com um homem se ou prefere? Para isso necessitará dinheiro e uma casa agradável.

Não lhe respondi. Vi o sol sobre a neve. Lentamente meus olhos subiram até o rosto desse ser. Chamou-me a atenção quão atrativo era pelo fato de ter adotado esse novo modo de persuasão, quanto se parecia com o David. Quando vi que estava por seguir me falando de luxos, fiz-lhe gestos de que calasse.

-De acordo -aceitei-. Acredito que me verá na quarta-feira. Digamos uma hora depois de cair o sol? Ah, e lhe advirto que essa fortuna de dez milhões de dólares estará ao seu dispor a manhã da sexta-feira só por um período de duas horas. Terá que ir em pessoa a retirá-la. -Toquei-o com suavidade no ombro. -A esta pessoa refiro.

-É obvio. Com tudo gosto.

-Além disso, vai necessitar uma contra-senha para efetuar o transação. Essa contra-senha saberá quando me devolver meu corpo conforme o convencionado.

-Não, nada de contra-senhas. A transferência de recursos deve estar terminada antes de que fechamento o banco, na quarta-feira pela tarde, para que o único que tenha que fazer na sexta-feira seja me apresentar ante seu representante, deixar tomar as impressões digitais se você insistir nisso, e que logo ele me possa assinar a cessão do dinheiro.

Eu estava calado, refletindo.

-Ao fim e ao cabo, meu arrumado amigo, o que acontece não gosta de sua experiência de um dia como ser humano, se lhe parecer que não valeu a pena?

-Sim, vai valer a pena -murmurei, mais falando comigo mesmo que com ele.

-Nada de contra-senhas -repetiu. Escrutinei-o em silêncio. Quando me sorriu, notei-lhe um aspecto quase inocente e muito juvenil. Deus santo, teve que ter sido muito importante para ele ter conseguido esse vigor juvenil. Não podia ser que não se deslumbrou, embora mais não fora durante um momento. Ao princípio deve ter pensado que tinha obtido o que sempre ambicionou.

-longe disso! -exclamou de repente, como se não pudesse impedir que lhe saíssem as palavras da boca. Não pude menos que rir.

-Lhe vou contar um pequeno secreto sobre a juventude -disse, com súbita secura-. Bernard Shaw disse que a juventude se desperdiça nos jovens. Recorda esse comentário ao que sempre lhe atribuiu tanto valor?

-Sim.

-Bom, não é assim. Os jovens sabem o difícil e terrível que pode ser a juventude. A juventude se desperdiça em todos outros: esse é o horror. Os jovens não têm autoridade, não têm respeito.

-Está louco. Acredito que você não usa bem o que rouba. Como pode não emocionar-se ante o vigor? Como pode não regozijar-se com a beleza que vê refletida nos olhos de quem o olha?

Sacudiu a cabeça.

-Isso o desfrutará você -repôs-. O corpo é jovem, tem toda a juventude que você sempre quis. Sem dúvida se emocionará com o vigor, como diz; regozijará-se com esses olhares de aprovação. -Calou. Bebeu um último sorvo de café e ficou com o olhar cravado na xícara. -Nada de contra-senhas -acrescentou.

-De acordo.

-Ah, bom -disse, e um sorriso esplendoroso se pintou em seu rosto-. Recorde que por esta soma eu lhe ofereci uma semana. Foi você quem preferiu aceitar um dia, não mais. Quem sabe, quando tomar o gustito, quererá prolongá-lo mais tempo.

-Quem sabe. -Outra vez me distraí com apenas olhá-lo, ao ver a mão grande e morna que nesse momento cobriu com a luva.

-E se quer fazer outra mutação, custará-lhe outra soma avultada de dinheiro -expressou alegremente, todos sorrisos, acomodando-a cachecol dentro das lapelas.

-Sim, claro.

-Para você o dinheiro não significa nada, não é assim?

-Nada absolutamente. -Que trágico, pensei, que para ele signifique tanto.

-Bom, agora vou. Deixo-o que se vá preparando. Vemo-nos na quartas-feiras, como ficamos.

-Não trate de fugir de mim -adverti-lhe em voz baixa, me inclinando um pouco para frente. Logo levantei a mão e lhe toquei a cara. O gesto evidentemente o sobressaltou, porque ficou imóvel, como um animal que, no bosque, de repente percebe que pode haver perigo onde antes não o havia. Mas sua expressão seguiu sendo calma quando deixei os dedos apoiados contra sua cútis barbeada. Pouco a pouco fui baixando a mão, e então senti a solidez de seu queixo. Deixei a mão em seu pescoço. Também por ali tinha passado o barbeador elétrico deixando seu rastro tênue; a pele era muito firme e emanou dela um aroma jovem no momento em que brotaram gotas de suor de sua frente e seus lábios se rendiam para formar um sorriso.

-Suponho que terá desfrutado embora seja um pouco sendo jovem -aventurei. Sorriu, como se soubesse quanto podia seduzir com esse sorriso.

-Sonho os sonhos dos jovens -confessou-, ou seja que sempre sonho sendo maior, mais rico, mais sensato, mais forte.

Soltei uma risada.

-Espero-o na quarta-feira de noite -disse com a mesma eloqüência-. Disso pode estar seguro. Venha. Acontecerá, o prometo. -Inclinando-se para frente, sussurrou: -vai habitar neste físico! -E uma vez mais me dirigiu um sorriso cativante.

-Já vai ver.

-Quero que parta já mesmo de Nova Orleáns.

-OH, sim, em seguida -aceitou. E sem dizer meia palavra mais, ficou de pé afastando-se de mim, tratando de dissimular seu repentino temor. -Tenho a passagem preparada. Não me agrada seu sujo reduto caribenho. -Lançou uma risada humilde. Logo prosseguiu com ar de professor que admoesta a um aluno. -Falaremos mais quando você venha ao Georgetown. E enquanto isso, não trate de me espiar porque vou dar conta. Tenho uma grande capacidade para advertir essas coisas. Até a Talamasca se assombrou de meus poderes. Teriam que me haver conservado em seu rebanho! Teriam que me haver estudado! -cortou-se.

-O vou espiar de todas maneiras -disse, imitando seu tom de voz baixo e medido-. E não me importa que se inteire.

Voltou a rir, mas em um tom levemente aplacado; logo com uma pequena inclinação de cabeça, encaminhou-se depressa para a porta. Era de novo um ser desajeitado e torpe, poseído por um louco entusiasmo. E que trágico me pareceu, porque esse corpo, com outro espírito em seu interior, certamente poderia haver-se movido como uma gazela. Alcancei-o quando ia pela calçada e quase morre de espanto.

-O que quer fazer com meu corpo? -perguntei-lhe-. Refiro a outra costure além de fugir do sol pelas manhãs como se fora um inseto noturno ou uma lesma gigante.

-O que lhe parece? -disse, assumindo um ar de cavalheiro inglês e ao mesmo tempo com total sinceridade-. Quero beber sangue. -Abriu muito os olhos e me aproximou mais. -Quero tirar a vida no ato de bebê-la. Esse é o atrativo, não? O que a você mais atrai não é o sangue a não ser a vida dessas pessoas. Eu nunca roubei a ninguém nada de valor. -Dirigiu-me um sorriso de cumplicidade. -O corpo, sim, mas não o sangue e a vida.

Deixei-o ir, para o qual fiz um gesto visível de me jogar para trás, como um momento antes ele tinha feito comigo. O coração me pulsava com força e tremi de cima abaixo ao observar seu rosto belo e na aparência inocente. Não lhe apagou o sorriso.

-Você é ladrão por excelência -espetou-me-. Cada vida que tira é roubada! Sim, desejo ter seu corpo; tenho que viver essa experiência. me introduzir nos arquivos de vampiros da Talamasca foi um triunfo, mas possuir seu corpo, e roubar sangue estando nele! OH, seria todo um lucro!

-Afaste-se de mim! -murmurei.

-Vamos, vamos, não seja tão suscetível. Não gosta quando outros o fazem a você. Considero-o um ser privilegiado, Lestat do Lioncourt. Encontrou o que procurava Diógenes: um homem honesto! -Outro amplo sorriso e logo uma surriada de risadas, como se já não pudesse as conter mas. -Vejo-o na quarta-feira. Venha cedo, porque quero que fique a maior quantidade de noite possível. Deu meia volta e se afastou pressuroso. Fez gestos enérgicos a um táxi; logo se lançou contra o trânsito para introduzir-se em um carro que acabava de deter-se, obviamente para outra pessoa. Houve uma pequena discussão que ele ganhou imediatamente, por isso fechou com força a porta e o veículo se afastou a toda velocidade. Vi pelo guichê sujo que me piscava os olhos um olho, e saudava com a mão. Um instante depois, ele e o automóvel tinham desaparecido. Incapaz de reagir, fiquei sumido no desconcerto. Pese ao frio noturno, havia muito movimento, vocerío de turistas, automóveis que reduziam a velocidade ao passar pela praça. Sem um intuito rápido, sem palavras, tratei de pensar em como podia ser a paisagem durante o dia; tratei de imaginar os céus sobre esse ponto de um impreciso tom azul. Depois, me subí lentamente o pescoço do sobretudo. Horas e horas caminhei, sentindo em meus ouvidos a voz culta, refinada. O que a você mais atrai não é o sangue a não ser a vida dessas pessoas. Eu nunca roubei a ninguém nada de valor. O corpo, sim, mas não o sangue e a vida. Não me sentia com coragem para enfrentar ao Louis. Não suportava a idéia de conversar com o David. E se Marius se inteirava de meu projeto, mais me valeria nem começá-lo. Quem sabe o que Marius podia chegar a me fazer só por ter albergado semelhante idéia! Entretanto ele, com sua ampla experiência, saberia se isso era verdade ou fantasia. OH, deuses, é que alguma vez quis fazê-lo ele mesmo? Por último retornei a meu departamento, apaguei as luzes e me desabei sobre o mole sofá de veludo cotelê que, localizado-se frente à janela de vidro, permitia ver lá abaixo a cidade. Tenha presente que, se me fizer mal, desperdiçará esta oportunidade para sempre... Sem mim não poderá saber jamais o que se sente sendo de novo um ser humano... Nunca vai ou seja o que é caminhar ao sol, desfrutar de uma comida de verdadeiros mantimentos, fazer o amor com uma mulher ou um homem. Pensei na faculdade de me elevar e abandonar o corpo material. Eu não gostava desse dom, e essa possibilidade de realizar a viagem imaterial, como a chamava, tampouco me saía espontaneamente. De fato, podia contar com os dedos de uma emano as poucas vezes que a tinha usado. E com tudo o que padeci no Gobi, nunca tratei de abandonar minha forma material; nem sequer me ocorreu me elevar e sair do corpo. É mais, a idéia de estar desligado de meu corpo, de flutuar à deriva sem poder encontrar a porta do céu ou do inferno, era-me aterradora. E a evidência de que essa alma errante não podia transpor o portal da morte a vontade, me apresentou com toda nitidez desde a primeira vez que experimentei com o truque. Mas me introduzir no corpo de um mortal! Ficar ancorado aí, caminhar, sentir, ver como mortal... Ah, não podia conter a emoção, uma emoção que se estava convertendo em pura dor. depois de fazer a mutação, vai ter toda a noite da quarta-feira e na quinta-feira inteira. na quinta-feira inteira, inteiro... Por último, um momento antes do amanhecer, chamei a meu agente de Nova Iorque. Esse homem não sabia da existência de meu agente de Paris. Conhecia-me só com dois nomes, e fazia muito que eu não usava nenhum dos dois. Era muito improvável que Raglan James conhecesse essas identidades e seus diversos recursos. Pareceu-me a rota mais singela a seguir.

-Tenho um trabajito que lhe encarregar, algo muito complicado que é preciso realizar imediatamente.

-Sim, senhor, como você diga.

-Darei-lhe o nome e domicílio de um banco de Washington. Quero que o anote...

 

De noite seguinte, completada a documentação necessária para transferir os dez milhões de dólares, enviei-a por mensageiro ao banco de Washington junto com o cartão de fotoidentificación do senhor Raglan James, além de uma reiteração total das instruções, de meu punho e letra, e a assinatura do Lestan Gregor, que, por diversas razões, era o melhor nome para usar em toda essa questão. Meu representante em Nova Iorque também me conhecia por outro pseudônimo, ao que convimos não fazer figurar em nenhum momento do transação; por outra parte, se precisava me pôr em contato com ele, esse outro nome, e duas contra-senhas novas, autorizariam-no para realizar transferências de dinheiro, bastando para isso só uma ordem verbal de minha parte. Quanto no nome Lestan Gregor, desapareceria por completo de toda documentação assim que os dez milhões passassem a poder do senhor James. Os restantes bens do senhor Gregor ficavam transferidos a meu outro nome, que, dito seja de passagem, era Stanford Wilde. Todos meus representantes estão habituados a receber instruções assim de insólitas: cessões de dinheiro, abandono de identidades, ordem de me girar recursos aonde quer que me encontre, mediante apenas um chamado telefônico. Mas ajustei o sistema. Dava contra-senhas estranhas, difíceis de pronunciar. Em soma, fiz todo o possível por melhorar a questão da segurança em volto de minhas identidades, como também para deixar totalmente estabelecidas as condições para a transferência dos dez milhões. Desde meio-dia da quarta-feira o dinheiro estaria em uma conta fiduciária no banco de Washington, do qual só poderia retirá-lo o senhor Raglan James e unicamente entre as dez e as doze da sexta-feira seguinte. O senhor James demonstraria sua identidade se seu aspecto coincidia com a foto, além de sua impressão digital e sua assinatura, antes de que o dinheiro passasse a sua conta. Às doze e um minuto tudo o transação ficaria sem efeito e o dinheiro retornaria a Nova Iorque. Ao senhor James deviam apresentar-se o as condições a mais demorar na quarta-feira pela tarde e lhe teria que assegurar que, em caso de cumprir-se com todos os requisitos, o dinheiro lhe seria transferido conforme o combinado.

Pareceu-me que era um convênio rigoroso, mas eu não era ladrão não obstante o que pensasse o senhor James. Sabendo que ele sim o era, revisei várias vezes até o último detalhe, em forma algo compulsiva, para não lhe dar vantagem alguma. Logo me perguntei por que ainda me estava enganando com que não ia realizar o experimento, se já tinha decidido fazê-lo. Enquanto isso, com freqüência soava o telefone de meu departamento, já que David tratava desesperadamente de comunicar-se comigo; mas eu fiquei sentado na escuridão, sem atender, um tanto vexado com os timbrazos, até que por fim desconectei o aparelho.

O que me propunha fazer era desprezível. Esse canalha sem dúvida usaria meu corpo para os crímenes mais cruéis e abjetos. E eu ia permitir que acontecessem só para poder ser humano? Era difícil justificá-lo desde todo ponto de vista. Cada vez que pensava na possibilidade de que meus companheiros -qualquer deles- pudessem descobrir a verdade, estremecia-me e tratava de pensar em outra coisa. Oxalá estivessem muito ocupados com suas forçosas atividades em todo mundo largo e hostil. Quanto melhor pensar em toda a proposta com crescente emoção. E o senhor James sem dúvida estava no certo respeito ao tema do dinheiro. Dez milhões não significavam absolutamente nada para mim. Através dos séculos amassei uma grande fortuna que fui aumentando de diversas maneiras, e eu mesmo não sabia a quanto ascendia. Por muito que entendesse quão distinto era o mundo para um mortal, ainda não compreendia do todo por que ao James importava tanto o dinheiro. Ao fim e ao cabo, estávamos falando de uma magia potente, de enormes poderes sobrenaturais, de percepções espirituais potencialmente entristecedoras, de feitos demoníacos, quando não heróicos. Mas era óbvio que o que o filho de puta desejava era dinheiro. em que pese a tudo, não tinha outro interesse que o dinheiro. E possivelmente fosse melhor assim. Pensemos em quão perigoso podia ser em caso de ter grandes ambicione. Mas não as tinha. E eu ansiava esse corpo humano: em definitiva isso era. O resto, no melhor dos casos, eram racionalizações. E à medida que foram acontecendo as horas, isso era o que mais fazia. Expu-me, por exemplo, se entregar meu poderoso corpo era um ato tão vil. Esse idiota não era capaz de usar o corpo humano que tinha. Na mesa do café, durante meia hora pareceu um verdadeiro gentleman, mas, assim que se levantou, arruinou tudo com seus gestos pouco elegantes. Jamais poderia aproveitar minha fortaleza física. Tampouco poderia orientar minhas faculdades telekinésicas por mais parapsicólogo que dissesse ser. Talvez podia usar a telepatia, mas quanto a pôr em estado hipnótico ou enfeitiçar, certamente não poderia sequer começar a usar esses dons. Duvido que tivesse conseguido deslocar-se com velocidade. Pelo contrário, ia ser lento, torpe. Seria-lhe impossível voar e possivelmente até se meteria em apuros. Sim, melhor que fosse um maquinador vil e não um desses tipos violentos que se acreditam deuses. E eu, o que pensava fazer? A casa no Georgetown, o automóvel e as demais costure não me importavam absolutamente! Fui sincero ao dizer-lhe Queria me sentir vivo! Claro que ia necessitar um pouco de dinheiro para bebidas e mantimentos, mas ver a luz do dia não custava nada. Mais ainda, para essa vivencia não faziam falta grandes luxos nem um conforto especial. Eu só desejava a experiência física e espiritual de ser novamente de carne e osso. Considerava-me totalmente distinto desse miserável Ladrão de Corpos! Mas ficava uma dúvida. E se não bastavam dez milhões para que me devolvesse meu físico? Talvez me convinha duplicar o montante. Para alguém tão curto de idéias como ele, uma fortuna de vinte milhões seria uma grande tentação. E, no passado, sempre me tinha dado bons resultados duplicar as somas que qualquer me cobrava por seus serviços; assim, obtinha uma lealdade que nem eles mesmos teriam acreditado possível jamais. Voltei a chamar Nova Iorque e dupliquei a cifra. Como era de prever, meu agente acreditou que me estava voltando louco. Usamos as novas contra-senhas para confirmar a validez do transação. Depois cortei. Já era hora de conversar com o David ou ir ao Georgetown. Além disso tinha feito uma promessa ao David. Fiquei muito quieto, esperando que soasse o telefone. Quando soou, atendi-o.

-Graças a Deus que te encontro.

-O que acontece? -perguntei-lhe.

-Reconheci no ato o nome Raglan James, e tinha toda a razão. Esse tipo não está dentro de seu corpo! A pessoa de que falas tem sessenta e sete anos. Nasceu na Índia, criou-se em Londres, e esteve cinco vezes preso. É um ladrão conhecido por todos os organismos de segurança da Europa, um estelionatário. Também tem notáveis poderes parapsicológicos, de magia negra... dos mais arteiros que se conhecem.

-Sim, contou-me. Conseguiu infiltrar-se na ordem.

-Assim é; foi um dos enganos maiores que cometemos. Mas esse tipo é capaz de seduzir à Virgem María, de lhe roubar o relógio ao muito mesmo Deus. Entretanto, em poucos meses se cavou sua própria fossa e esse é a essência da questão. me escute bem, Lestat. Os que fazem magia negra ou feitiçarias sempre se fazem mal a si mesmos! Com esses dons podia nos haver tido enganados toda a vida; em troca os utilizou para depenar aos outros membros e saquear as criptas!

-Também me contou isso. Quanto ao assunto de trocar de corpo, pode ficar alguma dúvida?

-me descreva ao homem tal como o viu.

Assim o fiz. Recalquei o dado da estatura e a textura robusta. O cabelo grosso e brilhante, a pele estranhamente tersa e acetinada.

Sua excepcional beleza.

-Neste mesmo instante estou olhando uma foto dela.

-A ver, me diga -pedi-lhe.

-Esteve um tempo encerrado em um hospital de Londres para dementes criminais. A mãe era anglo-a Índia, o qual explica sua tez excepcional, que aqui também se adverte. O pai era taxista. O tipo mesmo trabalhava em uma oficina onde arrumavam automóveis extremamente caros. Como atividade secundária comercializava drogas para poder comprar ele também esses carros. Um dia assassinou a toda sua família -a mulher, dois filhos, o cunhado e a mãe-, e logo se entregou à polícia. Lhe encontrou no sangue uma aterradora mescla de alucinógenos e grande quantidade de álcool. Eram as mesmas drogas que estava acostumado a vender aos jovens do bairro.

-Transtorno dos sentidos mas nada mau no cérebro.

-Precisamente, essa fúria homicida a provocaram as drogas, conforme puderam comprovar as autoridades. Depois do incidente, o homem não voltou a abrir a boca. Permaneceu imune a todo estímulo até três semanas depois de ter sido internado, momento no qual escapou misteriosamente, deixando em sua habitação a um enfermeiro assassinado. A que não imagina quem era o enfermeiro?

-James.

-Exato. Na autópsia se realizou a identificação mediante as impressões digitais, dado que logo foi corroborado pela Interpol e Scotland Yard. James tinha estado trabalhando no hospital com nome falso durante um mês, sem dúvida esperando que atracasse tal corpo! Depois assassinou alegremente seu próprio corpo. Um tipo de aço, o filho de puta, para ter podido fazer isso.

"Claro que era um corpo muito doente, estava morrendo de câncer. A autópsia determinou que não teria vivido mais de seis meses. Lestat, bem pode ser possível que James tenha ajudado a cometer os crímenes mediante os quais pôde dispor logo do corpo do jovem. Se não tivesse roubado esse físico, teria conseguido outro de maneira similar. E uma vez que matou seu próprio corpo, este se foi à tumba levando-se consigo todo o prontuario criminal do James.

-por que me deu seu nome verdadeiro, David? por que me contou que pertenceu à a Talamasca?

-Para que eu pudesse confirmar sua versão. Tudo o que faz está calculado. Você não sabe quão ardiloso é. Quer que saiba que pode fazer tudo o que diz! E que o antigo dono desse corpo jovem já não pode causar transtornos.

-Mas David, ainda há certos aspectos que me desconcertam. A alma do outro homem, morreu no corpo velho? por que não... saiu?

-O pobre diabo não deve nem ter sabido que era possível semelhante coisa. É indubitável que James orquestrou a mudança. Olhe, tenho aqui todo um dossiê com testemunhos de outros membros da ordem. Eles dizem que esse indivíduo os forçou a sair de seus corpos e se apoderou logo depois deles durante breves lapsos. "Essas sensações que experimentava -a vibração, a contração- sentiram-nas também eles. E falo de membros da Talamasca, toda gente culta. Este mecânico de oficina não entendia dessas coisas. "Sua experiência com o preternatural se limitava às drogas, e só Deus sabe o que outras idéias andavam rondando por aí. Além disso, durante todo o processo James tratou com um homem em grave estado de shock.

-E se tudo fosse uma espécie de ardilosa artimanha? -sugeri.

-me descreva ao James que você conhecia.

-Fraco, quase gasto, olhos de olhar intenso, cabelo grisalho, abundante. Aspecto bastante agradável. Lembrança que tinha uma voz formosa.

-É ele.

-Lestat, essa nota que me enviou por fax de Paris..., não deixa dúvidas. É a letra do James, é sua assinatura. Não vê? inteirou-se de que existia através da ordem! Para mim esse é o aspecto mais perturbador: que localizou nossos arquivos.

-Isso me disse.

-Ingressou na ordem para ter acesso a esses segredos. Entrou ilegalmente em nosso sistema de computação. Quem sabe quantas coisas terá descoberto. Mas não pôde resistir a tentação: roubou-lhe um relógio bracelete de prata a um dos membros e sustrajo um colar de brilhantes das criptas. Teve uma atitude ousada com outros. Roubou-lhes coisas de suas habitações. Não deve ter mais trato com essa pessoa!

-Está-me falando como superior general, David.

-O que está em jogo é uma mudança de corpo, pôr todos seus poderes a disposição desse indivíduo!

-Sei.

-Não deve fazê-lo. me permita te fazer uma sugestão terrível. Se desfruta tirando a vida, como me há dito, por que não assassinas quanto antes a este sujeito tão nefasto?

-David, fala por orgulho ferido. E me parece terrível o que propõe!

-Não jogue comigo. Não há tempo. Não te dá conta de que este personagem é tão matreiro que deve estar especulando com seu caráter veleidoso? Escolheu-te a propósito, tal como escolheu ao pobre mecânico de Londres. estudou os dados que há sobre sua impulsividade, sua audácia. E pode supor com fundamento que não vais fazer caso de minhas advertências.

-Interessante.

-Fala mais alta, que não te ouço.

-Que mais me pode dizer?

-Que mais te faz falta saber?

-Quero entender isto.

-por que?

-David, compreendo que o pobre mecânico tenha estado confundido, mas, por que a alma não saiu do corpo canceroso quando James lhe atirou o golpe de graça na cabeça?

-Você mesmo o há dito, Lestat. Porque o golpe foi na cabeça. A alma já se enredou com o novo cérebro. Não houve um momento de claridade ou de vontade no qual pudesse ter saído em liberdade. Até nos feiticeiros ardilosos como James, se lhes produzir danos graves na malha cerebral, a alma não tem tempo de liberar-se e se produz a morte física, que se leva deste mundo a alma inteira. Se decide ultimar a este monstro, ataca-o por surpresa e lhe destroce o crânio como se esmagasse um ovo.

Ri-me.

-David, nunca te ouvi tão exasperado.

-Porque te conheço, porque sei que quer fazer a mutação e não deveria!

-me responda umas perguntas mais. Quero analisar todas as possibilidades.

-Não.

-A experiência de estar próximo à morte... Refiro a essa pobre gente que tem um enfarte, atravessa um túnel, vê uma luz e depois volta para a vida. O que acontece com eles?

-Só tenho conjeturas.

-Não te acredito. -Contei-lhe o melhor que pude o que tinha mencionado James sobre o caule cerebral e a alma residual. -Nas experiências de aproximar-se da morte, ficou uma parte da alma?

-Pode ser, ou possivelmente esses indivíduos morrem de verdade, cruzam realmente ao outro lado; mas a alma íntegra, intacta, é enviada de retomo.

-Seja como for, a gente não morre pelo simples feito de ter saído de seu corpo, não? Se no deserto do Gobi eu tivesse saído de meu corpo, não poderia ter encontrado o portão de entrada, verdade? O portão não teria estado ali. Só se abre para a alma inteira.

-Sim; que eu saiba, sim. -Não falou durante um instante. -por que me pergunta isso? -disse logo-. Ainda sonha morrendo? Não acredito; vejo-te muito desesperado por viver.

-Faz dois séculos que estou morto, David. O que me diz dos fantasmas, os espíritos que habitam na terra?

-Não puderam encontrar o portão, por mais que lhes abriu. Ou eles se negaram a transpô-lo. Olhe, se quer posso conversar sobre todas estas coisas alguma noite, passeando pelas callecitas de Rio ou onde te pareça. O importante é que me jure que não vais ter mais entendimentos com esse bruxo, se é que não quer aceitar meu conselho de ultimá-lo quanto antes.

-por que lhe tem tanto medo?

-Você não entende o destrutivo e depravado que é. Não pode entregar seu corpo a semelhante indivíduo! E isso é o que pretende fazer. Se te propor possuir um corpo mortal durante um tempo, eu me oporia por ser algo antinatural, diabólico! Mas entregar-lhe a esse demente! OH, por que não vem a Londres? Quero te convencer de que não o faça. Está em dívida comigo!

-David, você o investigou antes de que entrasse na ordem, não? Que classe de homem é? Quer dizer, como foi que se converteu em uma espécie de bruxo?

-Enganou-nos com complicadas maquinações e documentação falsa em uma escala difícil de imaginar. adora essas confabulações Além disso é um gênio da informática. A investigação mais importante a praticamos depois de que se foi.

-E como foram seus começos?

-Vinha de uma família rica de comerciantes. Fizeram muito dinheiro antes da guerra. A mãe era uma famosa médium, ao parecer honesta e abnegada, que cobrava uma soma módica por seus serviços. Todo mundo a conhecia em Londres. Lembrança ter ouvido falar dela muito antes de me interessar por estas coisas. A Talamasca confirmou em mais de uma ocasião que era autêntica, mas ela nunca quis emprestar-se para que a estudassem. Era uma mulher frágil, e amava profundamente a seu único filho varão.

-Raglan -demarquei.

-Sim. Morreu de câncer com terríveis dores. A filha mulher se fez costureira e até o dia de hoje trabalha em Londres, em uma loja para noivas. Faz uns trabalhos muito finos. Sofreu muito com a morte de seu problemático irmão, mas também sente alívio. Falei com ela esta manhã e me contou que o irmão tinha ficado destruído com a perda da mãe, que morreu quando ele era muito jovem.

-É compreensível.

-O pai trabalhou quase toda sua vida na empresa naval Cunard, e os últimos anos foi garçom de primeira classe no Queen Elizabeth II. Muito orgulhoso de seu desempenho. Grande escândalo não faz muitos anos, quando, por recomendação do pai, também contrataram ao James, e lhe roubou quatrocentas libras a um passageiro. O pai o repudiou e foi reabilitado pela Cunard antes de morrer. Ao filho, jamais voltou a lhe dirigir a palavra.

-Ah, a foto no navio.

-Como?

-E quando vocês o jogaram, quis viajar nesse mesmo casco de navio de volta aos Estados Unidos, verdade?

-Ele te contou isso? É possível. Eu não me ocupei dos detalhes.

-Não importa. Continua. Como é que se dedicou ao oculto?

-Era um homem muito instruído. Esteve vários anos em Oxford, embora às vezes levava uma vida paupérrima. Começou a praticar o trabalho de médium incluso antes de que morrera a mãe. Não demonstrou suas habilidades até a década do cinqüenta, em Paris, onde em seguida teve muitíssimos adeptos aos que fraudou das maneiras mais ásperas imagináveis, e terminou preso.

"Mais ou menos o mesmo lhe aconteceu depois no Oslo. Logo depois de ter diversos trabalhos, inclusive alguns muito servis, fundou uma sorte de igreja espírita, roubou-lhe suas economias a uma viúva e foi deportado. Depois trabalhou em Viena como garçom em um hotel de primeira, até que em questão de semanas se converteu em parapsicólogo de gente rica. Também fez uma rápida retirada antes de que o detiveram. Em Melam lhe roubou milhares a um membro da antiga aristocracia e teve que fugir da cidade a meia-noite. Seu novo destino foi Berlim, onde o prenderam mas conseguiu sair; logo retornou a Londres, e ali foi de novo ao cárcere.

-Vicissitudes -comentei, recordando sua expressão.

-O esquema é sempre o mesmo. Tem um emprego muito ajudante, ascende e chega a viver com grande luxo, acumula dívidas absurdas pela compra de roupa fina, automóveis, excursões em jato a todas partes e por último todo se derruba quando tiram o chapéu seus delitos e traições. Não pode cortar o ciclo. Sempre termina derrotado.

-Isso parece.

-Lestat, este ser tem algo de estúpido. Fala oito idiomas, é capaz de ingressar ilegalmente em qualquer rede de informática e de apoderar do corpo de outras pessoas o tempo necessário para lhes saquear as caixas fortes -tem uma obsessão quase erótica com as caixas fortes!-, mas depois lhes faz truques tolos às pessoas e termina algemado. Os objetos que se levou de nossos tesouros eram impossíveis de vender, de modo que teve que entregá-los por uma miséria no mercado negro. Em realidade é um idiota.

Soltei uma risada contida.

-Os roubos são simbólicos, David. trata-se de um ser dominado pela compulsão e a obsessão. Tudo é um jogo. Por isso não pode ficar com o que rouba. O que lhe importa mais que nada é o processo.

-Mas Lestat, é um jogo totalmente destrutivo.

-Entendo, David. Obrigado pela informação. Chamo-te quanto antes.

-Espera um minuto. Não pode me cortar assim, não o vou permitir. É que não te dá conta de...?

-claro que sim, David.

-Lestat, há um dito muito comum no mundo do oculto: o igual atrai ao igual. Entende o que significa?

-por que tenho que saber eu sobre o oculto, David? Esse é seu campo, não o meu.

-Não é momento para ironias.

-Perdão. O que significa?

-Quando um feiticeiro usa suas faculdades de maneira vil e egoísta, a magia sempre se volta contra ele.

-Isso é superstição.

-É um princípio tão velho como a mesma magia.

-Ele não é mago, David, a não ser só um ser com certos poderes parapsicológicos definidos e mensuráveis. Tem a faculdade de possuir a outras pessoas. Em um caso que conhecemos, realmente efetuou essa mudança.

-É a mesma coisa! Se se usarem esses poderes para tratar de causar machuco a outros, o dano se transborda sobre um.

-David, eu sou a prova de que esse conceito é falso. Depois me vais explicar a teoria do carma e lentamente me vou ficar dormido.

-James é a quintaesencia do feiticeiro malvado! Já derrotou uma vez à morte a costa de outro ser humano. Terá que detê-lo.

-por que não tratou de me deter mim quando teve a oportunidade? Estive a sua mercê no Talbot Manor. Podia ter encontrado a forma.

-Não me afaste com suas acusações!

-Amo-te, David. Volto-te a chamar logo. -Estava a ponto de cortar quando me lembrei de algo. -David, quero te perguntar outra coisa.

-Sim. O que? -Que alívio de que eu não tivesse talhado.

-Vocês têm relíquias que eram nossas... velhas pertences guardadas em suas abóbadas.

-Sim. -Desconforto. Também certa vergonha, ao parecer.

-Um relicário... não viu um relicário com a imagem da Claudia?

-Acredito que sim. depois de que veio para ver-me pela primeira vez, verifiquei o inventário de todos esses objetos, e acredito que sim, que havia um relicário. Estou quase seguro. Teria que lhe haver isso dito antes, claro.

-Não, não importa. Era um com cadeia, de esses que revistam usar as mulheres?

-Sim. Quer que lhe busque isso? Se o encontrar, dou-lhe isso, é obvio.

-Não, agora não o busque. Talvez mais adiante. Adeus, David. Logo terá minhas notícias.

Cortei e desconectei o telefone da parede. Assim tinha havido um relicário de mulher. Mas, para quem foi feito? E por que aparecia em meus sonhos? Claudia não teria tido posto seu próprio retrato. Além disso, de ser assim eu o recordaria. Quando tratei de me evocá-lo alagou uma mescla de tristeza e medo. Deu-me a impressão de me achar perto de um lugar escuro, cheio de morte. E como acontece freqüentemente em minhas lembranças, ouvi risadas. Só que esta vez não foi a da Claudia a não ser a minha. Percebi uma sensação de juventude sobrenatural e possibilidades ilimitadas. Em uma palavra, estava recordando ao vampiro jovem que era ou nos velhos dias do século XVIII, antes de que o tempo tivesse atirado seus golpes. Bom, o que me importava esse maldito relicário? Talvez tomei a imagem do cérebro do James quando este me perseguia. Certamente ele o usou como arma para me tentar, e a verdade era que eu nunca tinha visto o relicário. Melhor que tivesse eleito algum outro objeto que em um tempo me tinha pertencido. Não, esta última explicação me pareceu muito fácil, e a imagem era muito vívida. Além disso, tinha-a visto em sonhos antes de que entrasse James em minhas aventuras. de repente senti irritação. Nesse momento tinha que pensar em outras coisas, não? Atrás, Claudia. Toma seu relicário, MA chérie, e vete, por favor.

Comprido momento permaneci na penumbra, consciente do tic tac do relógio sobre o suporte do lar, escutando o ruído ocasional do trânsito que me chegava da rua. Tratei de analisar os reparos que me tinha posto David. Tratei, mas o único que pensava era..., assim James pode fazê-lo, fazê-lo seriamente. É o homem grisalho da foto e, efetivamente, realizou a mudança com o mecânico no hospital de Londres. pode-se fazer! De tanto em tanto aparecia em minha mente a imagem do relicário. Via a miniatura da Claudia grafite artisticamente ao óleo. Mas não despertava em mim emoção alguma: nem pena, nem irritação, nem dor. Era James quem me interessava. James sabe fazê-lo! Posso viver e respirar dentro desse corpo! E quando essa manhã saísse o sol sobre o Georgetown, veria-o com esses olhos. Cheguei a Washington à uma da madrugada. Tinha estado nevando toda a noite; nas ruas a neve formava grandes pilhas podas, formosas. Também se acumulava contra as portas das casas, e aqui e lá realçava em branco os corrimões negros de ferro e as salientes profundas das janelas. A cidade estava imaculada, encantadora. As casas eram em sua maioria de madeira, em elegante estilo federal, quer dizer com a linha fina do século XVIII, tão propenso à ordem e o equilíbrio, embora muitas se construíram nas primeiras décadas do século seguinte. Perambulei comprido momento pela deserta cale M, com suas numerosas lojas; logo atravessei o campus silencioso de uma universidade próxima e por último as ruas da colina, alegremente iluminadas. A residência do Raglan James era das mais belas. De tijolo e construída com vista à rua. Tinha uma formosa porta com grosa aldaba de bronze e dois alegres faróis a gás. Nas janelas, persianas antiquadas, e na parte superior da porta, um Simpático montante. As janelas estavam podas face à neve das salientes, e alcancei a ver de fora as habitações, muito ordenadas. O aspecto do interior era atrativo: móveis estofados em couro branco de extrema severidade moderna, obviamente custosos. Numerosos quadros nas paredes: Picasso, do Kooning, Jasper Johns, Andy Wartp e mescladas com esses tecidos multimilionários, várias fotos de grande tamanho e caros Marcos, com navios modernos. De fato, havia também em algumas vitrines várias réplicas de enormes transatlânticos. Os pisos tinham um reluzente plastificado. em qualquer parte atapeta orientais de desenhos geométricos, e os numerosos adornos que havia sobre mesitas de cristal e anuários com incrustações eram quase todos de origen chinês. Podia definir o ambiente dizendo que era elegante, caro e extremamente pessoal. Pareceu-me que tinha o mesmo aspecto que todas as moradias dos mortais: como uma série de cenários de teatro. Impossível acreditar que eu pudesse ser mortal e me sentir bem nessa casa, nem sequer por uma hora. Em realidade, as pequenas habitações eram tão reluzentes que não davam a impressão de estar habitadas. A cozinha estava cheia de brilhantes panelas de cobre, artefatos negros, armários sem cabos visíveis e pratos de cerâmica vermelho intenso. face à hora que era, James não aparecia por nenhuma parte. Entrei na casa. Em um segundo piso se achava o dormitório, onde havia uma moderna cama baixa -apenas uma armação de madeira com um colchão- coberta por um acolchoado de desenhos geométricos e muitos almofadões brancos, austera e elegante como todo o resto. O armário estava abarrotado de roupa cara, como deste modo as gavetas da cômoda a China e de outro móvel esculpido à mão que havia junto à cama. Outras habitações também estavam vazias, mas nenhuma com aspecto de descuido. Nem rastros de um computador. Sem dúvida devia tê-la em outro sítio. Em um desses quartos guardei uma soma avultada de dinheiro para usar depois; escondi-a dentro da chaminé do lar, que não se utilizava. Também escondi um pouco de dinheiro em outro banho em desuso, atrás do espelho da parede. Foram simples precauções. O certo é que não tinha idéia de como era sentir-se humano. Ao melhor sentia necessitado. Ignorava-o. Feito isso, me subí ao telhado. Alcancei a ver o James ao pé da colina, carregado de pacotes, dobrando da rua M. Indubitavelmente tinha ido roubar, porque não havia nenhum negócio aberto a essa hora da noite. Perdi-o de vista quando iniciou a ascensão. Mas também apareceu outro visitante, sem fazer o menor ruído audível para um mortal. tratava-se de um enorme cão que não sei de onde saiu e se dirigiu ao pátio traseiro. Eu tinha captado seu aroma assim que se aproximou, mas não o vi até que não subí ao teto pelo fundo da casa. Que estranho que não o tivesse ouvido antes, porque ele deveu me haver cheirado e haver-se dado conta instintivamente que eu não era humano; que estranho que não desse o alarme ladrando e grunhindo. Muitas vezes, através dos séculos, os cães me têm feito isso, embora não sempre. Em ocasiões os hipnotizo e ficam a minha mercê. Mas eu temia o rechaço instintivo, que sempre me causou uma enorme pena. Esse cão não tinha ladrado nem dado amostras de saber que eu estava aí. Olhava fixamente a porta do fundo da casa e os quadrados amarelos de luz que caíam sobre a neve profunda da ventanita superior da porta. Tive oportunidade de observá-lo em silêncio e me pareceu um dos cães mais formosos que jamais tivesse visto. Tinha a pele suave, felpuda, de um precioso tom dourado em algumas parte e cabelos negros mais compridos no lombo. A forma do animal me recordava a do lobo, mas era muito grande e não tinha nada de furtivo nem matreiro para ser lobo. Pelo contrário, seu porte, parado ali junto à porta, pareceu-me majestoso. Ao observá-lo mais atentamente vi que se assemelhava a um enorme pastor alemão, com seu característico focinho negro e expressão alerta. Quando me aproximei do bordo do teto e ele por fim me olhou, emocionou-me a inteligência feroz que vi brilhar em seus olhos amendoados. Seguia sem ladrar nem grunhir. Parecia ter uma compreensão quase humana. Mas, como explicar seu silêncio? Eu nada tinha feito para subjugá-lo, para tentá-lo nem obnubilar sua mente. Não. Não havia nele nem a menor aversão instintiva. Saltei e caí a seu lado na neve, enquanto ele se limitava a seguir me olhando com esses olhos expressivos e misteriosos. Era tão imenso, tão tranqüilo e seguro de si mesmo que ri para meus adentros. Não agüentei a tentação de acariciar seu cabelo suave. Inclinou a cabeça a um lado sem deixar de me olhar, gesto que me resultou enternecedor. Depois, quando levantou uma enorme pata para acariciar meu sobretudo me maravilhou ainda mais. Era de ossos tão grandes e pesados que me fez acordar dos que antigamente foram meus mastins. Ao mover-se, tinha como eles a mesma graça lenta. Tendi-lhe os braços para estreitá-lo, admirando sua força e seu pesadez; ele se parou sobre as patas traseiras, apoiou seus manazas em meus ombros e me passou pela cara sua língua de cor presunto. Isso me produziu uma felicidade maravilhosa que quase me faz chorar, e a seguir rir vertiginosamente. Esfreguei meu nariz contra seu corpo, abracei-o, acariciei-o encantado por seu cabelo sedoso, dava-lhe beijos no focinho negro até que por fim o olhei aos olhos. Isto é o que viu Caperucita Vermelha -pensei- quando se apresentou ante o lobo, embelezado com a camisola e a boina de dormir da abuelita. Causava-me muita graça a expressão extraordinária e penetrante de sua cara escura.

-É que não sabe o que sou? -perguntei. Depois, quando voltou a ficar em majestosa posição de sentado e me olhou quase obediente, pensei que esse cão era um presságio. Não; "presságio" não é a palavra adequada. Foi, simplesmente, algo que me fez pensar no que estava por fazer, por que queria fazê-lo, e o pouco que me importavam os riscos implícitos. Passava o tempo e eu seguia aí parado, acariciando-o. Era um jardim pequeno; a neve tinha começado a cair de novo, se fazia mais profunda a nosso redor e a dor fria que sentia em minha pele se voltava também mais profundo. As árvores eram silhuetas nuas, negras, na calada tormenta. Se é que havia grama ou flores, é obvio não se viam; mas várias estátuas de cimento e uns arbustos densos -agora só ramitas cortadas e neve- marcavam um claro desenho retangular dentro de tudo. Devo ter acontecido possivelmente três minutos com o cão até que descobri com a mão a chapita chapeada que lhe pendurava do colar e a levantei para aproximá-la à luz. Molho. Eu conhecia essa palavra. Molho. Tinha que ver com o vodu, com os amuletos e os feitiços. O molho era um feitiço bom, protetor. Como nome de cão me pareceu adequado; mais ainda, estupendo, e quando o chamei Molho se excitou e voltou a me acariciar com sua pata ansiosa.

-Assim que te chama Molho, né? -repeti-. Formoso nome.

-Beijei-o e senti o roce de seu nariz. Entretanto, na chapita havia algo mais escrito: a direção dessa casa. De improviso, o cão ficou tenso; lenta, elegantemente, levantou-se e ficou em posição de alerta. Vi que estava chegando James. Ouvi o ruído de seus passos na neve. Ouvi sua chave na fechadura. Percebi que de repente ele se precavia de que me tinha perto. O cão deixou escapar um grunhido feroz e se encaminhou à porta do fundo com movimentos pausados. Logo chegou o ruído da madeira do piso que rangia sob os pés pesados do James. O cão lançou um latido de irritação. James abriu a porta, posou sobre mim seu olhar louco, sorriu e logo arrojou um objeto duro ao animal, mas este o esquivou com facilidade.

-Me alegro de vê-lo! Mas veio antes de tempo. -disse. Não lhe respondi. Como o cão lhe grunhia com a mesma expressão ameaçadora, teve que voltar a lhe emprestar atenção, com grande chateio de sua parte.

-Tire-lhe de cima! -exclamou, furioso-. Mate-o!

-me fala? -disse. Voltei a apoiar a mão sobre a cabeça do animal, acariciei-o, sussurrei-lhe que ficasse quieto, e ele reagiu aproximando-se me mais, esfregando seu corpo contra mim, até que por último se sentou a meu lado. James observou a cena nervoso, tremendo de frio. de repente se levantou o pescoço para defender do vento e pregou os braços. A neve, como pó branco, aderia às sobrancelhas marrons, ao cabelo.

-É da casa, não é certo? -disse, frio-. Esta casa, que você roubou. Observou-me sem dissimular seu ódio e logo esboçou um de seus típicos sorrisos sinistros. Desejei na verdade que voltasse a comportar-se como cavalheiro inglês. Me fazia tão mais fácil tudo... Pensei fugazmente que era uma desonestidade ter que tratar com ele. Perguntei-me se ao Saul teria resultado tão desagradável a Bruxa do Endor. Mas o corpo, ah, o corpo, que esplêndido era. Nem sequer em seu ressentimento, com os olhos posados no cão, ele podia afear do todo a beleza desse físico.

-Bom, parece que também se roubou ao cão -disse.

-Me vou tirar isso de cima -murmurou, olhando-o de novo com um desprezo feroz-. E você? No que ficou? Não vai ter toda a vida para decidir-se. Não me deu uma resposta concreta. Quero que me responda já mesmo.

-Vá a seu banco amanhã pela manhã -disse-. Vejo-o depois de cair o sol. Ah, mas há uma condição mais.

-Qual? -exclamou apertando os dentes.

-lhe dê de comer ao animal. lhe consiga carne. Logo empreendi a retirada com tanta velocidade que ele não alcançou a adverti-lo, e ao voltar o olhar e notar que Molho me observava em meio da escuridão nevada, não pude menos que sorrir pensando que, face ao rápido que tinha sido o movimento, o cão pôde vê-lo. O ultimo som que ouvi foi ao James lançando impropérios sem a menor elegância no momento em que fechava a porta. Uma hora mais tarde estava tendido na penumbra, à espera do sol, rememorando uma vez mais minha juventude na França, os cães tendidos a meu lado, a última caçada com os dois enormes mastins que avançavam lentamente entre a neve profunda. E o rosto do vampiro me espiando das trevas em Paris, me chamando com veneração "assassino de lobos" antes de me cravar as presas no pescoço.

Molho. Um presságio. Colocamos a mão em algo que é um caos, tomamos algum pequeno objeto que brilha, aferramos a ele e nos convencemos de que tem um significado, de que o mundo é bom e nós não somos maus, e que ao final todos vamos voltar para nossas casas. Amanhã de noite -pensei-. Se esse filho de puta me mentiu, parto-lhe o peito, arranco-lhe o coração e o dou a comer a esse formoso cão. Aconteça o que acontecer, vou ficar me com esse animal. E assim foi. Mas antes de que avanço mais na história, permita me adicionar algo sobre o cão. Neste livro, ele não vai fazer nada. Não vai salvar a um bebê que se está afogando nem vai entrar em um edifício em chamas para despertar a seus moradores de seu sonho quase fatal. Não está poseído por um espírito maligno nem é um cão vampiro. Aparece no relato simplesmente porque o encontrei na neve, detrás dessa casa do Georgetown, e me afeiçoei com ele, e do primeiro momento ele também deu a impressão de me querer. Tudo se ajustou às cegas e implacáveis leis nas que acredito: as leis da natureza, como dizem os homens; ou as leis do Jardim Selvagem, como as chamo eu. Molho amava minha fortaleza; eu amava sua formosura. E nenhuma outra coisa importava absolutamente.

 

-Quero que me conte em detalhe -disse- como o obrigou a sair de seu corpo e como pôde fazê-lo entrar no seu.

Quarta-feira, por fim. Não tinha passado nem meia hora de pôr-do-sol. Sobressaltei-o quando apareci pela porta do fundo. Estávamos na imaculada cozinha branca, habitação por certo desprovida de mistério para uma reunião tão esotérica. Uma única lamparita em um spot de cobre iluminava a mesa com um resplendor rosado, brindando intimidade à cena. Seguia nevando e no subsolo a caldeira emitia um rugido contínuo. Eu tinha levado comigo ao cão, com grande desgosto do dono da casa, e logo depois de tranqüilizá-lo um pouco, o animal ficou tendido como esfinge egípcia, com as patas dianteiras estiradas sobre o piso encerado, nos olhando. de vez em quando James lhe lançava uma miradita nervosa, e com razão, porque parecia que o cão tinha o demônio dentro e que o demônio conhecia toda a história. Notei ao James muito mais relaxado que em Nova Orleáns. Havia tornado a ser o gentleman inglês, o qual realçava seu corpo alto e juvenil. Tinha um suéter cinza posto que se aderia atractivamente a seu peito largo, e calças escuras. Levava anéis de prata nos dedos e, na boneca, um relógio ordinário. Não me lembrava desses objetos. James me olhava com expressão faiscante, o qual me era muito mais fácil de suportar que seus horríveis sorrisos iracundos. Não podia lhe tirar os olhos de cima, não podia deixar de olhar esse corpo que logo poderia ser meu. Alcancei a cheirar o sangue dentro do corpo, é obvio, e isso me fez arder de paixão. quanto mais o olhava, mais me perguntava o que sentiria se bebia seu sangue e terminava aí mesmo com o assunto. Trataria ele de fugir do corpo e me deixaria aferrando uma mera casca com respiração? Olhei-o aos olhos, pensei "bruxo", e uma excitação nada habitual me tirou a fome. Entretanto, não sei se acreditava capaz de fazer o que dizia. Pensei que essa noite ia terminar me dando um grande festim e nada mais. Esclareci-lhe a pergunta.

-Como foi que encontrou este corpo? Como conseguiu que a alma entrasse no seu?

-Eu tinha estado procurando um espécime assim; quer dizer, um homem que psicologicamente tivesse perdido a vontade e a capacidade de raciocínio, mas que tivesse são o cérebro. Nessas questões, a telepatia é uma grande ajuda, porque só mediante ela se podia chegar até os restos de inteligência enterrados ainda em seu interior. Tive que convencê-lo no nível mais profundo do inconsciente, por assim dizê-lo, de que ia em sua ajuda, que me constava que era uma boa pessoa, que estava de sua parte. E uma vez que cheguei a esse núcleo rudimentar, foi bastante fácil lhe roubar as lembranças e insisti-lo à obediência. -encolheu-se de ombros. -Pobre tipo. Suas respostas eram totalmente supersticiosas. Acredito que até o último momento pensou que eu era seu anjo da guarda.

-E o seduziu para que saísse de seu corpo?

-Sim, isso foi exatamente o que fiz, me valendo de sugestões um tanto rebuscadas. Uma vez mais, minha aliada foi a telepatia, terá que ser vidente para manipular dessa maneira a outros. A primeira vez se levantou possivelmente quarenta ou cinqüenta centímetros, mas voltava a cair dentro da carne. Era mais um reflexo que uma decisão. Mas tive paciência, muita paciência. Quando por fim consegui tentá-lo para que saísse por espaço de uns segundos, isso me bastou para me colocar eu dentro e ao mesmo tempo centrar toda minha energia em fazê-lo entrar nele no que ficava de meu velho eu.

-Que formosa maneira de expressá-lo.

-Bom, você sabe que somos corpo e alma -assegurou com um sorriso plácido-. Mas, que necessidade de falar de tudo isto agora? Você sabe sair de seu corpo, de modo que não lhe resultará difícil.

-Poderia chegar a surpreendê-lo. O que passou quando ele já esteve no corpo de você? deu-se conta do que tinha passado?

-Absolutamente. Deve compreender que o homem estava muito deteriorado psicologicamente. E é obvio, era um ignorante.

-Além disso, não lhe deu tempo para nada, verdade? Matou-o.

-Senhor do Lioncourt, o que fiz foi um ato de piedade! Que terrível deixá-lo dentro desse corpo, confundido como estava! Compreenda que ele não ia se recuperar, com independência do corpo que habitasse. Tinha matado a toda sua família, até ao bebê em seu cunita.

-Você tomou parte nesse fato?

-Que pobre opinião tem de mim! Não, absolutamente. Eu andava vigiando os hospitais em busca de um espécime porque sabia que algum ia aparecer. Mas, a que vêm estas últimas perguntas? Acaso David Talbot não lhe disse que na Talamasca há numerosos casos de transmutação registrados?

David não me havia isso dito, mas não podia culpá-lo por isso.

-Em todos houve um assassinato de por meio?

-Não. Alguns se fizeram através de um trato como o que convimos você e eu.

-Estava pensando... você e eu somos muito distintos.

-Sim, mas não me vai dizer que não nos complementamos. Este corpo que lhe ofereço é muito belo -disse, ficando-a mão contra o peito-. Não tanto como o seu, sem dúvida, mas muito bom! Além disso, é exatamente o que precisa. Quanto ao dele, que mais posso dizer? Espero que não tenha ouvido falar de mim ao David Talbot, que cometeu tantos enganos trágicos.

-A que se refere?

-É um escravo dessa funesta organização -disse-. Eles o dominam. Que pena que não pude falar com ele ao final, porque assim se teria convencido do que eu podia lhe oferecer, o que podia lhe ensinar! Falou-lhe de suas aventuras em Rio? Sim, uma pessoa excepcional, a que me teria gostado de conhecer. Mas lhe advirto que não convém cruzar-se com ele.

-Como se pode impedir que você me mate assim que intercambiemos nossos corpos? Isso foi o que fez com esse indivíduo ao que tentou para que lhe desse seu corpo, lhe atirando um rápido golpe na cabeça.

-Ah, vejo que conversou com o Talbot -repôs, disposto a não deixar-se afetar-. Ou acaso investigou por sua conta? Vinte milhões de dólares me impedirão de matá-lo. Necessito o corpo para ir ao banco, não se esqueça. Maravilhoso de sua parte que tenha duplicado a soma, mas lhe asseguro que teria mantido minha palavra por dez. Ah, você me liberou, senhor do Lioncourt. A partir da sexta-feira, à mesma hora em que cravaram a Cristo na cruz, não vou ter que roubar nunca mais.

Bebeu um sorvo de chá. Deixando de lado a fachada que mostrava se ia pondo cada vez mais nervoso. E algo similar me ocorria . E se dá resultado?

-Claro que dará resultado -assegurou com essa maneira sua tão intensa-. E há outras razões de peso para que não tente lhe fazer danifico. as vejamos uma por uma.

-De acordo.

-Bom, você poderia decidir sair do corpo ante uma agressão minha física. Já lhe expliquei que necessito sua colaboração.

-E se não me dá tempo?

-Isso é uma questão teórica. Jamais me atreverei a lhe fazer danifico, já que seus companheiros se inteirariam. Na medida em que você esteja aqui, dentro de um corpo humano são, a seus companheiros não lhes ocorrerá destruir seu corpo preternatural por mais que eu seja o que esteja dentro. Isso não o fariam, não lhe parece? Mas se o Mato... quer dizer, se lhe destroçar a cara ou o que seja sem lhe dar tempo a desligar-se -e me crie que é uma possibilidade, sei muito bem!- cedo ou tarde seus amigos averiguarão que sou um impostor e me ultimarão sem mais trâmite. Com toda probabilidade perceberiam sua morte Quando esta se produzira, não crie?

-Não sei, mas com o tempo descobririam tudo

-Certamente!

-É fundamental que você não apareça por Nova Orleáns enquanto esteja dentro de meu corpo, que não se aproxime de nenhum bebedor de sangue, nem sequer aos mais débeis. Deve usar sua capacidade para encobrir-se, como compreenderá.

-Sim, claro. Tenha a segurança de que analisei tudo. Se me ocorresse queimar vivo a seu belo Louis do Pointe du Lac, os outros se inteirariam imediatamente, não é assim? E terminaria sendo eu a róxima fogueira que esquilo na noite.

Não lhe respondi. Senti a ira como se fora um líquido sorvete que me percorria, de cima abaixo, anulando toda esperança, toda coragem. Mas eu queria isso! Queria-o e o tinha ao alcance da mão!

-Não se complique com essas tolices -suplicou-me. Suas maneiras eram tão parecidos com os do David Talbot... Ao melhor o fazia de propósito. Talvez usava de modelo ao David. Entretanto, pareceu-me que era mas bem uma questão de educação similar e certo instinto para a persuasão que nem sequer David possuía. -Não, eu não sou assassino -declarou, com repentina intensidade-. O que mais importa é o que se adquire, e eu desejo me rodear de conforto, de beleza, de todo o luxo imaginável, poder ir a viver onde me agrade.

-Quer que lhe dê instruções?

-Sobre o que?

-Sobre o que fazer quando estiver dentro de meu corpo.

-Já me deu as instruções, meu estimado amigo: li seus livros. -Obsequiou-me um largo sorriso, inclinou levemente a cabeça e me olhou como se me estivesse tentando para que me fora com ele à cama. -Também tenho lido até o último documento dos arquivos da Talamasca.

-Que classe de documentos?

-Descrições pormenorizadas da anatomia dos vampiros, os limites óbvios que vocês têm, esse tipo de coisas. Deveria lê-los você também. Talvez tomasse a risada. Os artigos mais antigos se escreveram na época do obscurantismo e dizem tantas tolices que até o Aristóteles se teria posto a chorar. Mas os dossiês mais recentes são científicos e muito precisos.

Eu não gostava do giro que ia tomando a conversação. Eu não gostava de nada do que estava passando. Tentado estive de dar tudo por terminado nesse momento. Mas de repente soube que ia levar a cabo a experiência. Tive a certeza. Uma estranha serenidade se apoderou de mim. Sim, íamos fazer o em questão de minutos. E daria resultado. Senti que ia a cor da cara: um imperceptível esfriamento da pele, que ainda me doía pelo suplício padecido sob o sol. Duvido que ele tenha notado a mudança ou um endurecimento em minha expressão, porque seguiu falando como antes.

-As observações escritas na década de 1970, logo depois de publicado "Entrevista com o vampiro", são muito interessantes. E os últimos capítulos, inspirados na rebuscada história que narrou você sobre a espécie... Sim, sei tudo o que terá que saber sobre seu corpo, possivelmente até mais que você mesmo. Sabe o que pretende a Talamasca? Conseguir uma amostra de suas malhas, de suas células vampíricas! Eu em seu lugar não permitiria jamais que obtiveram um espécime. Você não teve o menor cuidado com o Talbot. Talvez lhe tenha talhado as unhas ou alguma mecha de cabelo quando o teve dormindo sob seu teto.

Mecha de cabelo. Não havia uma mecha loira no relicário? Tinha que ser cabelo de vampiro! O cabelo da Claudia. Estremeci-me, me replegué mais dentro de mim mesmo e não lhe permiti entrar em minha mente. Séculos atrás, houve uma noite fatídica em que Gabrielle, minha mãe mortal e filha vampírica recém-nascida, cortou-se o cabelo. Mas durante as largas horas do dia que transcorreu no ataúde, voltava-lhe a crescer. Eu não queria recordar os gritos que deu quando descobriu esses magníficos cachos largos que de novo chegavam aos ombros; não queria pensar nela nem no que poderia me dizer sobre isto que me propunha fazer. Fazia anos que não posava meus olhos nela. Podiam passar séculos até que voltasse a vê-la. Voltei a olhar ao James quem, com expressão radiante de esperança, tratava de parecer sereno.

-Esqueça-se da Talamasca -murmurei pelo baixo-. por que lhe custa tanto estar nesse corpo? Lhe nota torpe. Só se sente cômodo quando está sentado e pode deixar todo sacado a sua cara e sua voz.

-Muito perceptivo -comentou, com inconmovible decoro.

-Não acredito. É muito evidente.

-O corpo fica muito grande, isso é tudo -explicou tranqüilo-, Muito fornido..., atlético, por assim dizê-lo. Mas para você é perfeito. Fez uma pausa, olhou a taça com ar pensativo e logo posou em mim seus olhos, tão sinceros na aparência.

-Vamos, Lestat -disse-. por que estamos perdendo o tempo com esta conversação? Uma vez que esteja dentro de você, minha intenção não é dançar com o Royal Balé a não ser desfrutar da experiência, fazer coisas novas, ver o mundo através de seus olhos. -Olhou brevemente a hora. -Bom, ofereceria-lhe algo de beber para lhe dar mais coragem, mas isso à larga seria contraproducente, verdade? Ah, antes de que me esqueça: o passaporte. Pôde consegui-lo? Recorda que lhe pedi um? Espero que não o tenha esquecido; certamente, eu também tenho um para você, embora imagino que não irá a nenhuma parte com este temporário... Deixei meu passaporte sobre a mesita, ele se meteu a mão debaixo do pulôver, tirou o seu do bolso da camisa e me entregou isso na mão. Revisei-o. Era norte-americano, e falso. Inclusive a data de emissão, de dois anos atrás, era falsa. Raglan James. Idade, vinte e seis. Foto correta. Boa foto. O domicílio do Georgetown. Ele estava observando meu passaporte, também falso, sua pele bronzeada!

-vê-se que o fez confeccionar ex-professo... certamente ontem à noite mesmo.

Não tomei o trabalho de lhe responder.

-Que inteligente de sua parte, e que boa a foto. -Olhou-a com atenção. -Clarence Oddbody2. Como lhe ocorreu semelhante nome?

-É uma piada privada. O que importa? Terá-o unicamente esta noite e amanhã de noite. -Encolhi-me de ombros.

-É certo, muito certo.

-Espero-o aqui de volta na sexta-feira cedo, entre as três e as quatro da madrugada.

-Excelente. -Ia já a guardar o passaporte, mas se conteve e soltou uma risada áspera. Logo seus olhos me escrutinaram com expressão de genuíno prazer. -Está preparado?

-Ainda não. -Tirei a carteira, abri-a, extraí ao redor da metade do dinheiro que levava e a entreguei.

-Ah, sim, o dinheiro para gastos menores. Muito amável em recordá-lo. Eu, com a emoção, estou-me esquecendo de todos os detalhes importantes, o qual é imperdoável. E você, tão cavalheiro...

Recolheu os bilhetes e uma vez mais se conteve quando já estava por guardar-lhe no bolso. Voltou a deixá-los sobre a mesa e sorriu. Eu apoiei a mão sobre a carteira.

-O resto é para mim -disse-, para depois de que façamos o intercâmbio. Espero que esteja satisfeito com a soma. A trombadinha que há em você não se sentirá tentado de elevar-se com o que fica?

-Farei o possível por me comportar bem -respondeu faiscante-. Agora bem, quer que me troque de roupa? Estes objetos as roubei especialmente para você.

-Estão bem.

-Quer que esvazie minha bexiga? Ou prefere fazê-lo você?

-Prefiro fazê-lo eu.

Assentiu.

-Estou com fome. Pensei que isso lhe agradaria. Há um restaurante muito bom por esta mesma rua. Paolo'S. Servem uns estupendos spaghetti alla carbonara. Pode ir caminhando apesar da neve.

-Maravilhoso. Eu não tenho fome porque me pareceu que assim lhe resultaria mais singelo. Mencionou você um automóvel. Onde está?

-Ah, sim, o automóvel. Saindo pelo fronte, à esquerda da escada de entrada. É um Porsche esportivo cor vermelha, que supus lhe agradaria. Aqui estão as chaves. Mas tome cuidado...

-Com o que?

-Bom, obviamente com a neve. Ao melhor nem sequer consegue movê-lo.

-Agradeço-lhe a advertência.

-Não quero que se faça mal. Se você não aparecer por aqui na sexta-feira, poderia me custar vinte milhões. De todos os modos, no escritório que há na sala encontrará o registro de condutor com a foto correta. O que acontece?

-Não me ocorreu trazer roupa para você. Só tenho esta que levo posta.

-OH, não, isso eu já o pensei faz muito, quando estive bisbilhotando em sua habitação do hotel de Nova Iorque. Tenho meu guarda-roupa, não se preocupe, e me agrada esse traje negro de veludo cotelê. Viu você muito bem. Sempre vestiu com elegância, não? Mas claro, provém de uma época em que se usavam trajes tão suntuosos. A atual deve lhe parecer aborrecida. Esses botões são antigos? Bom, já terei oportunidade de olhá-los com mais atenção.

-Aonde pensa ir?

-Aonde queira, certamente. Está perdendo a coragem?

-Não.

-Sabe conduzir automóveis?

-Sim. Mas se não soubesse, arrumaria-me o mesmo.

-Parece-lhe? Acredita que vai ter sua inteligência sobrenatural quando estiver neste corpo? Não sei. Não estou seguro. Ao melhor as pequenas sinapsis do cérebro não funcionam com tanta rapidez.

-Não sei nada sobre sinapsis.

-Está bem. Comecemos, então.

-Sim, acredito que agora sim. -dentro de meu peito, o coração me fez um nó, mas no ato James adotou um tom autoritário.

-me escute atentamente -disse-. Quero que saia e se eleve de seu corpo, mas não antes de que eu tenha terminado de falar. Tem que ascender. Recorde que já o tem feito antes. antes de chegar ao teto, quando estiver justo em cima de nós dois, fará o esforço de introduzir-se neste corpo. Não deve pensar em nenhuma outra coisa. Não permita que o medo o desconcentre. Não fique a pensar como é que acontece isto. O que deve fazer é descender, entrar neste corpo e conectar-se imediatamente com cada fibra, com cada célula. Represente-a cena enquanto a vive! Imagine que já está dentro.

-Sim, entendo-lhe.

-Como lhe antecipei, vai encontrar algo invisível, algo que fica do ocupante original, e esse algo deseja sentir-se completo de novo... com a alma de você.

Indiquei-lhe com um gesto que compreendia.

-Possivelmente experimente diversas sensações desagradáveis -prosseguiu-. Quando entre neste corpo, notará-o muito compacto, apertado, mas não titubeie. Faça-se à idéia de que seu espírito vai ingressando nos dedos de ambas as mãos, nos dedos dos pés. Olhe através dos olhos. Isso é o mas importante, porque os olhos formam parte do cérebro. Quando olhar por eles, estará assentando-se dentro do cérebro. dali não se desprenderá, isso é seguro. Uma vez que esteja dentro, vai fazer falta um grande esforço para tirá-lo dali.

-Verei-o você em espírito quando estivermos fazendo a mudança?

-Não. poderia-se fazer, mas grande parte da concentração se separaria do objetivo imediato. Você não precisa ver nada mais que este corpo; tem que entrar nele, começar a movê-lo, respirar com ele e ver com ele, como lhe disse.

-Sim.

-Agora bem. Uma coisa que lhe dará temor será ver seu próprio corpo inerte, ou habitado por mim. Não se deixe esmagar por essa impressão, para o qual terá que fazer uso de certa dose de confiança e humildade. me crie que vou efetuar a posse sem danificar seu corpo, e me partirei imediatamente para que, quando me olhar, não recorde constantemente o que fez. Não voltará para ver-me até na sexta-feira pela manhã como convimos. Tampouco lhe falarei, porque possivelmente não goste de ouvir minha voz saindo de sua boca e se distraia. Entende-me?

-Que som terá sua voz? Que som terá a minha?

Uma vez mais jogou uma rápida olhada à hora, e logo novamente a mim.

-Haverá diferenças -respondeu-. O tamanho da laringe é distinto. Este homem, por exemplo, deu a minha voz um tom mais grave que eu antes não tinha. Você conservará seu ritmo, seu acento, suas pautas lingüísticas, é obvio, mas o timbre será distinto.

Olhei-o com atenção.

-É importante que eu cria que isto se pode realizar?

-Não -repôs, com um largo sorriso-. Não vai ser uma sessão espírita. Não tem que atiçar o fogo para a médium com sua própria fé. Já o verá dentro de um instante. Que mais fica por dizer? -Um pouco mais tenso, adiantou-se em sua poltrona. de repente o cão lançou um grunhido áspero, e eu estirei uma mão para tranqüilizá-lo.

-Vamos! -apurou-me James, sua voz um sussurro-. Saia já de seu corpo! Joguei-me para trás e fiz um gesto ao cão para que ficasse quieto. Logo me propus mentalmente me elevar e senti que uma vibração percorria todo meu corpo. Depois veio a maravilhosa sensação de estar me elevando como espírito leve, livre, enquanto ainda podia ver minha forma masculina, com seus braços e pernas estendidos, muito próxima ao teto branco, e quando olhei para baixo observei o assombroso espetáculo de meu próprio corpo sentado ainda na poltrona. Ah, que gloriosa a sensação, como se pudesse ir a qualquer parte em um instante! Como se não necessitasse o corpo e meu vínculo com ele tivesse sido um engano do momento de nascer. O corpo físico do James caiu levemente para frente e seus dedos começaram a mover-se para fora sobre a mesa branca. Não tinha que me distrair. O importante era a mutação!

-Devo baixar e me colocar nesse corpo! -expressei em voz alta, mas não houve uma voz audível; depois, sem palavras, consegui cair verticalmente e me fundir com essa carne nova, com essa forma física. Um som retumbante alagou meus ouvidos; logo experimentei uma sensação de constrangimento, como se todo meu ser se visse forçado a percorrer um tubo estreito e escorregadio. Muito doloroso! Ansiei a liberdade, mas em troca senti que ia enchendo os braços e pernas vazios; senti o formigamento e o peso da carne que me cercava, e sensações similares sobre meu rosto. Com esforço abri os olhos antes de me dar conta sequer de que estava movendo as pálpebras desse corpo mortal, que de fato estava piscando, olhando a habitação em penumbras com olhos humanos, e vi ante mim meu velho corpo e minha velha pele bronzeada, meus olhos azuis que a sua vez olhavam através dos vidros cor violeta. Sentia que me afogava -tinha que escapar!-, mas ao mesmo tempo tomei consciência de que tinha entrado! Estava dentro do outro corpo! operou-se a mudança. Não pude deixar de inalar Uma baforada de ar grosa, pesada, e ao fazê-lo movi essa monstruosa ossatura de carne. Logo me dava uma palmada no peito e consternado notei quão sólido era, ao tempo que ouvia o passo úmido do sangue pelo coração.

-Deus santo, estou dentro -exclamei, lutando por limpar a penumbra que me envolvia, o véu escuro que me impedia de ver com mais nitidez a silhueta que tinha ante mim e que nesse momento cobrou vida. Meu velho corpo pegou um salto e se elevou com os braços em alto, em gesto de horror. Uma das mãos se chocou contra a luz do teto e fez explorar a lamparita, ao tempo que a poltrona caía ruidosamente contra o piso. O cão se incorporou e emitiu uma sorte de aterradora melodia de latidos guturais.

-Não, Molho, não. Sente-se! -ouvi-me clamar com minha grosa garganta de mortal, tratando ainda de ver nas trevas mas sem poder fazê-lo, e me dando conta de que era meu emano a que o sujeitava do colar e lhe pegava um puxão para que não atacasse ao velho corpo vampírico, corpo que a sua vez contemplava ao cão com enorme perplexidade, com um brilho feroz nos olhos azuis desmesuradamente abertos, ausentes.

-Sim, mate-o! -proferiu, estentórea, a voz do James saindo de minha velha boca preternatural. Imediatamente me tampei os ouvidos com as mãos para me proteger do som. O cão voltou a adiantar-se, e uma vez mais o aferrei do colar. Doeram-me os dedos ao sujeitar os elos e me chamou a atenção a força do animal como deste modo a pouca resistência de meus braços mortais. OH, deuses, tinha que fazer funcionar este corpo! Ele não era mais que um cão, e eu, um fornido humano!

-Basta, Molho! -implorei-lhe no momento em que me arrastava da poltrona me fazendo cair de joelhos-. E você, vá-se daqui! -indignei-me. Doíam-me terrivelmente os joelhos. A voz me pareceu insignificante, opaca. -Vá-se! -repeti. O ser que eu tinha sido passou a meu lado sacudindo ainda os braços, estrelou-se contra a porta do fundo e fez lascas os cristais, pelo qual entrou uma rajada de vento frio. O cão estava enlouquecido, e eu já quase não o podia dominar.

-Vá-se! -gritei uma vez mais e, consternado, observei que o ser retrocedia e atravessava a porta, que despedaçava a madeira e o que ficava de vidro, e no alpendre se elevava para internar-se na noite nevada. Vi-o um último instante, repugnante aparição suspensa no ar sobre os escaloncitos do fundo, enquanto a neve se formava redemoinhos em redor. Sacudia suas extremidades ritmicamente, qual nadador em um mar invisível. Seus olhos azuis seguiam muito abertos e insensíveis, como se a carne pretematural que os rodeava fosse incapaz de formar uma expressão, E brilhantes como duas gemas incandescentes. Sua boca -minha velha boca- estirou-se em um sorriso insensato. Imediatamente desapareceu. Fiquei sem fôlego. A habitação estava geada a causa do vento que entrava por todos os rincões, fazendo cair as panelas de cobre de seu elegante suporte enquanto se precipitava contra a porta do comilão. E de repente o cão se sossegou. Tomei consciência de que eu estava no piso a seu lado, que lhe tinha passado o braço direito pelo pescoço e que, com o esquerdo, rodeava-lhe o peito peludo. Cada respiração me fazia doer, forzosamente tinha que entreabrir as pálpebras para que a neve gasta pelo vento não me entrasse nos olhos, sentia-me apanhado nesse corpo estranho cheio com pesos de chumbo, e o ar frio eram ferroadas que sentia em cara e mãos.

-Deus santo, Molho -murmurei em sua orelha suave, rosada-. Deus santo, aconteceu! Já sou um homem mortal.

 

-De acordo -disse estupidamente, me surpreendendo uma vez mais ante o som baixo e fraco da voz-. Isto já começou, assim, a controlar-se. -A idéia me fez rir. A pior parte foi do vento frio. Me tocavam castanholas os dentes. A dor aguda na pele era totalmente distinto de que sentia como vampiro. Era preciso arrumar essa porta, mas não tinha idéia de como se fazia. Ficava um pouco de porta? Impossível sabê-lo, porque era como tratar de ver em meio de uma nuvem de fumaças tóxicas. Lentamente me pus de pé, e no ato tomei consciência do aumento de estatura; senti-me muito instável. Já não havia na habitação nem rastros de calor. É mais, a entrada do vento produzia ruídos em toda a casa. Com supremo cuidado me encaminhei ao alpendre. Meus pés escorregaram para a direita e me arrojaram de novo contra o marco da porta. Presa do pânico, obtive de todos os modos me agarrar da madeira úmida com esses dedos grandes e trementes, o que impediu que rodasse pelos degraus. Esforcei-me outra vez por ver na penumbra, mas não pude distinguir nada absolutamente.

-te tranqüilize -disse-me, notando que os dedos me transpiravam e me intumesciam ao mesmo tempo, e que os pés também me doíam pois me estavam adormecendo-. O que passa é que aqui não há luz artificial, isso é tudo -pensei-, e está olhando com olhos de mortal. Agora faz algo inteligente! -E com cuidado, quase escorregando de novo, voltei a entrar. Alcançava a adivinhar o tênue contorno de Molho que me observava ofegando ruidosamente, e notei um hilito de luz em um de seus olhos escuros. Falei-lhe com doçura.

-Sou eu, Molho. Sou eu! -Acariciei-lhe com suavidade o cabelo das orelhas. Enfiei para a mesa, desabei-me bruscamente em uma cadeira -sempre assombrado pela consistência de minha nova carne- e me tampei a boca com a mão. Aconteceu de verdade, tolo, disse-me. Não há dúvida. Um formoso milagre, isso é o que é. Liberou-te de seu corpo preternatural! É um ser humano, um homem. Agora deve rebater o pânico. Pensa como o herói que te vangloria de ser! Tem assuntos práticos que resolver. Está-te entrando neve. Este corpo mortal se está congelando, pelo amor ao céu. te ocupe das coisas como deve! Não obstante, quão único fiz foi abrir mais os olhos e fixá-los em algo que parecia ser a neve acumulando-se com pequenos cristais faiscantes sobre a superfície branca da mesa, na esperança de que em qualquer momento a visão fora mais nítida, embora certamente não o ia ser. Isso era chá derramado, não? E vidros quebrados. Não te corte com os vidros, porque não vais cicatrizar! Me aproximou Molho e eu gostei que apoiasse seu flanco morno e peludo contra minha perna tremente. Mas, por que a sensação me era tão longínqua, como se tivesse que transpassar várias capas de flanela? por que não alcançava a cheirar o maravilhoso aroma de seu cabelo? Isso quer dizer que os sentidos são mais limitados. Teria que havê-lo suposto. Bom, agora vê e te olhe em um espelho. Sim, e fecha todas as portas, que faz frio.

-Vamos, moço -disse-lhe ao cão, e saímos da cozinha para entrar no comilão. Cada passo que dava era lento, pesado e com dedos torpes, muito imprecisos, fechei a porta. O vento se chocou contra ela e penetrou pelos borde, mas a porta resistiu. Girei sobre meus talões, perdi um instante o equilíbrio mas no ato me endireitei. Não teria que ser tão difícil me habituar, Por Deus! De novo me assentei firmemente sobre os pés, baixei a vista para olhá-los e me assombrou seu tamanho; logo me estudei as mãos, também grandes mas de maneira nenhuma feias. Não te deixe dominar pelo pânico! O relógio bracelete me era incômodo mas me fazia falta. Está bem: deixe lhe posto isso. Mas os anéis... Decididamente não queria os ter nos dedos. Picavam-me. me quis tirar isso mas não pude! Não saíam por nada. Deus santo. Bom, basta. Te vais voltar louco só porque não lhe pode tirar isso Que tolice. te tranqüilize. Sabe que existe o sabão... Bom, te ensaboe as mãos, essas manazas escuras, geladas, e os anéis lhe sairão em seguida. Cruzei os braços e, ao apoiar as mãos sobre os flancos de meu corpo, surpreendeu-me sobremaneira a sensação úmida da transpiração humana sob a camisa -nada que ver com o suor do sangue-; inspirei lentamente sem emprestar atenção à sensação de que algo forte me oprimia o peito, à sensação do ato mesmo de respirar, e fazendo um esforço me obriguei a passear a vista pelo ambiente. Não era momento para lançar um alarido de terror. Estava muito escuro. Só havia um abajur de pé em um rincão longínquo e outra muito pequena sobre o suporte da chaminé, ambas acesas mas de todos os modos estava tremendamente escuro. Deu-me a impressão de me achar sob água, e que a água era suja, possivelmente até turvada com tinta. Isto é normal; isto é mortal. Assim é como eles vêem. Mas que lôbrego me parecia tudo, que parcial, sem nada desse característico espaço aberto que tinham as habitações onde se desagradem os vampiros. Que sombrias as cadeiras e seu escuro fulgor, a mesa apenas visível, a opaca luz dourada que subia pelos rincões, as molduras de gesso dos tetos que se esfumavam entre as sombras, as trevas impenetráveis, e o que lhe atemorizem a negrume vazia do corredor. Podia haver algo oculto nessas sombras, um rato, algo. Podia haver outro ser humano nesse corredor. Olhei a Molho e me assombrou quão impreciso o via, misterioso mas de uma maneira totalmente distinta. Era isso: as coisas perdiam seus contornos nessa sorte de penumbra. Impossível calcular sua textura ou tamanho total. Ah, mas sobre a chaminé havia um espelho. Fui buscá-lo, frustrado pelo muito que me pesavam as pernas, pelo repentino medo a tropeçar e a necessidade de me olhar os pés mais de uma vez. Coloquei o pequeno abajur sob o espelho e logo me olhei. OH, sim. Que distinto estava. Desapareceu a tensão, o brilho nervoso dos olhos. que me devolvia o olhar era um homem jovem, com cara de grande susto.

Levantei a mão e me apalpei a boca, as sobrancelhas, a frente -que era mais alta que a minha-, e por último o cabelo suave. O rosto me resultou muito agradável, imensamente mais do que supunha, pelo fato de ser quadrado, de não ter rugas marcadas e ser muito proporcionado, pelos olhos de olhar intenso. Mas eu não gostei da expressão de medo que havia neles. Tratei de ver uma expressão distinta, de afirmar as facções de dentro, das deixar que expressassem o assombro. E não estou seguro de que nesse momento me sentisse maravilhado. Hmmm. Não pude ver nessa cara nada que viesse de dentro. Lentamente abri a boca e falei. Disse em francês que eu era Lestat do Lioncourt, que me achava no interior desse corpo e que tudo estava bem. O experimento tinha resultado! Estava transcorrendo a primeira hora da prova, o malvado James se foi e tudo tinha saído bem! Nesse momento adverti nos olhos algo de minha antiga ferocidade; e quando sorri vi minha própria malícia durante ao menos uns segundos antes de que se apagasse o sorriso, me deixando inexpressivo, com cara de assombro. Voltei-me e olhei ao cão, que se achava a meu lado e levantava a cabeça para me observar, como era seu costume, com grande satisfação.

-Como sabe que sou eu o que está aqui dentro, e não James? -perguntei. Levantou a cabeça e moveu apenas uma orelha.

-Vamos, basta já de tanta loucura e debilidade! -Enfiei para o corredor escuro, mas de repente me dobrou a perna direita e me deslizei pesadamente; a mão esquerda patinou sobre o piso para amortecer o impacto; a cabeça se chocou contra a chaminé de mármore, e senti uma súbita explosão de dor quando o cotovelo golpeou também contra o mármore. Com grande estrépito me caíram em cima os implementos para o fogo, mas isso não foi nada. O golpe no cotovelo me havia meio doido o nervo e a dor era um fogo que me subía por todo o braço. Dava-me volta de barriga para baixo e aguardei um momento que me passasse a dor. Só então tomei consciência de que a cabeça me pulsava pelo golpe contra o mármore. Levantei uma mão e senti entre o cabelo a umidade do sangue. Sangue! Ah, que bom. Ao Louis faria muita graça, pensei. Pu-me de pé e a dor se transladou ao flanco direito da frente, como se fora um peso que se corria de adiante. Para me afirmar, sustentei-me do bordo da chaminé. Uma das numerosas alfombritas da habitação jazia no piso a meus pés. A culpado. Chutei-a para tirá-la do caminho, girei sobre meus talões e com supremo cuidado me encaminhei ao corredor. Mas, aonde ia? O que pensava fazer? A resposta me chegou de improviso. Tinha a bexiga enche, o mal-estar era major do momento da queda. Tinha que urinar. Não havia um banho aí abaixo, por alguma parte? Encontrei a chave da luz e acendi a aranha do teto. Durante um comprido instante contemplei as diminutas lamparitas -ao redor de vinte- e compreendi que isso era bastante luz, com independência do que me parecesse , mas ninguém havia dito que não pudesse acender tudo os abajures da casa. Isso me propus fazer. Cruzei o living, a pequena biblioteca e o corredor do fundo, e todas as vezes a luz me desiludia. Não podia me desprender da sensação de escuridão, e o impreciso das coisas me desorientava e alarmava um tanto. Por último subí lenta, cuidadosamente a escada, temeroso de perder o equilíbrio em qualquer momento e tropeçar, aborrecido com a dor surda que sentia nas pernas. Umas pernas tão largas. Olhei para baixo pelo oco da escada e fiquei sobressaltado. Aqui um se pode cair e matar, disse-me. Entrei no estreito banho e em seguida encontrei a luz. Tinha que urinar, isso era, coisa que não tinha feito em mais de duzentos anos. Baixei o fechamento de minha calça moderna e tirei o membro, que imediatamente me impressionou por seu tamanho e flaccidez. O tamanho me pareceu bem, é obvio. Quem não quer que esses órgãos sejam grandes? E estava circuncidado, o qual me pareceu um detalhe simpático. Mas não o queria tocar porque me repugnava seu flaccidez. Tive que fazer um esforço para recordar que era meu. Caramba! E o aroma que emanava dele, que surgia do cabelo que o rodeava? Isso também é seu corpo, moço! Agora faz-o funcionar. Fechei os olhos, e quando o apertei -possivelmente incorretamente, com muita força- brotou dele um grande arco de urina fedorento que não caiu no inodoro mas sim ricocheteou contra a tabela branca. Repulsivo. Corrigi a pontaria e observei com perversa fascinação que logo caía dentro do privada, que se formavam borbulhas na superfície e que o aroma se fazia cada vez mais nauseabundo, até que já não pude agüentá-lo mas. Por fim a bexiga estava vazia. Guardei essa coisa branda e desagradável, subí o fechamento e baixei a tampa do inodoro. Acionei o cabo e ali partiu a urina, salvo as salpicaduras que ficaram sobre a tabela e no chão.

Procurei respirar fundo, mas o feio aroma me envolvia. Levantei as mãos e notei que também o tinha nos dedos. Abri o grifo do lavatório, tomei o sabão e me pus a trabalhar. em que pese a que me ensaboei várias vezes não podia estar seguro de que me tivessem ficado podas de tudo. A pele era muito mais porosa que minha antiga epiderme sobrenatural; por isso a sentia suja. Logo comecei a tironear dos anéis. Nem mesmo com a espuma me pude tirar isso Fiz memória: sim, o filho de puta os tinha postos em Nova Orleáns. Provavelmente ele tampouco os podia tirar, e agora tinha que agüentá-los eu! Já estava ao bordo de minha paciência, mas nada podia fazer até que não encontrasse um joalheiro que me cortasse isso com uma sierrita, umas tenazes ou algum outro instrumento. Desde só pensá-lo senti que os músculos me punham tensos e voltavam a afrouxar-se em dolorosos espasmos. Eu mesmo me dava a ordem de me dominar. Enxagüei-me as mãos uma e outra vez -costure ridícula-, gesticulei a toalha e as sequei, novamente enojado por sua textura absorvente e por vestígios de sujeira que encontrei ao redor das unhas. Deus santo, por que esse imbecil não se lavava bem as mãos? Logo me olhei no espelho que cobria a parede do fundo do banho, e o que vi me desagradou enormemente. Um grande manchón de umidade nas calças. vê-se que esse estúpido membro não estava seco quando o guardei! Bom, nos velhos tempos nunca me tinha preocupado por isso. Mas claro, nesse então eu era um imundo latifundiário que se banhava no verão, ou quando lhe ocorria mergulhar-se em um arroio de montanha. De maneira nenhuma podia andar com essa mancha! Saí do banho, passei junto ao paciente Molho, fiz-lhe apenas uma carícia na cabeça e cheguei ao dormitório principal. Abri o placard, encontrei outra calça de lã -de melhor qualidade ainda-, tirei-me os sapatos e no ato me troquei. E agora, o que tenho que fazer? Procurar algo para comer, disse-me. Então compreendi que tinha fome! Esse era o mal-estar que tinha estado sentindo, junto com o da bexiga enche, somado a uma sensação geral de pesadez desde que começou esta pequena saga. Comer. Mas, sabe o que acontecerá come? Terá que voltar para esse banho, ou a algum outro, a eliminar a comida digerida. A só idéia quase me dá arcadas. De fato, deram-me tantas náuseas de só imaginar que saíam excrementos humanos de meu corpo, que por um momento pensei que ia vomitar. Fiquei sentado muito quieto ao pé da moderna cama baixa e tratei de dominar minhas emoções. Procurei me fazer à idéia de que esses eram os aspectos mais simples do ser mortal; não devia permitir que obscurecessem as questões mais importantes. Também pensei que me estava comportando como um perfeito covarde, não como o herói que dizia ser. Em realidade, não acredito que o mundo me considere um herói, mas faz muito tempo decidi que devia viver como se o fora, que devia atravessar todas as dificuldades de meu caminho porque são meus inevitáveis círculos de fogo. De acordo, esse era meu pequeno e ignominioso círculo de fogo. E no ato devia deixar de ser covarde. Para cumprir essa prova devia comer, saborear, sentir, ver. Mas que tortura ia ser! Por último, pu-me de pé e, dando passos mais compridos por causa de minhas novas pernas, voltei para placard; ali comprovei assombrado que não havia muita roupa: duas calças de lã, duas jaquetas de lã bastante livianas, ambas as novas, e não mais de três camisas em uma prateleira. Hmmm. O que tinha passado com o resto? Abri a gaveta superiora da cômoda. Vazio. Mais ainda: tudas as gavetas estavam vazias, quão mesmo o mueblecito próximo à cama. O que podia significar? Que James se levou sua roupa ou a tinha enviado ao lugar ao que foi? Mas, por que? Não foram bem com seu novo corpo e, conforme me havia dito, ocupou-se de todos esses detalhes. Senti-me profundamente perturbado. Significaria que pensava não retornar mais? Que absurdo. Não ia desprezar os vinte milhões. E eu não podia perder meu valioso tempo de mortal me preocupando com semelhante bagatela! Baixei a perigosa escada acompanhado por Molho, que se movia lentamente a meu lado. Já dirigia o novo corpo sem esforço, face ao incômodo e pesado que me era. Abri o placard do corredor e vi que ficava pendurado um velho casaco, um par de galochas e nada mais. Retornei até o pequeno escritório do living porque ele me havia dito que aí ia encontrar o registro de condutor. Lentamente abri a primeira gaveta: vazio. Tudo estava vazio. Ah, mas em uma das gavetas havia uns papéis. Algo que ver com essa casa, mas em nenhuma parte figurava o nome Raglan James. Procurei compreender o que eram os papéis, mas o jargão oficial me superou. Não recebi uma impressão imediata do significado, como me passava quando olhava com meus olhos vampíricos.

Veio-me à memória o que havia dito James sobre as sinapsis. Sim, pensava com mais lentidão, e também me custava ler cada palavra.

OH, bom, mas o que importava? Não encontrei nenhum registro de condutor. E o que me fazia falta era dinheiro. Ah, sim, eu tinha deixado o dinheiro sobre a mesa. E se se tinha pirado ao jardim? Voltei no ato para a cozinha. Notei o ambiente gélido, e de fato a mesa e as panelas de cobre estavam cobertas por uma fina capa de geada branca. A carteira não estava sobre a mesa; tampouco as chaves do automóvel. E a luz, certamente, feito-se pedacinhos. Ajoelhei-me às escuras e comecei a medir o chão. Encontrei o passaporte, não assim a carteira nem as chaves. Só vestígios de vidro do abajur que me cravaram nas mãos e me cortaram em dois sítios. Minúsculas gotitas de sangue sem aroma, sem verdadeiro sabor. Tratei de ver sem sentir. Não estava a carteira. Voltei a sair a escalerita, esta vez com cuidado para não cair. A carteira não estava. Não pude ver na profunda neve do jardim. Ah, mas de nada valia as buscar, verdade? Tanto a carteira como as chaves eram pesadas, ou seja que não podiam haver-se pirado. As levou ele! Provavelmente até retornou para as buscar! Monstro depravado... E quando tomei consciência de que o tipo já estava dentro de meu potente corpo preternatural quando fez isso, a fúria me paralisou. Bom, você imaginava que podia passar, não? Coincidia com sua natureza. E de novo te está congelando. Treme! Volta para comilão e fecha a porta. Isso fiz, mas tive que esperar a Molho, que se tomou seu tempo como se não lhe incomodasse a nevisca. O comilão se esfriou, dado que deixei a porta aberta, e quando voltei para subir à planta alta comprovei que a temperatura de toda a casa tinha descendido por causa de minha incursão pela cozinha. Tinha que me lembrar de fechar as portas. Dirigi a uma das habitações em desuso e fui direito à chaminé em que tinha escondido o dinheiro. Quando coloquei a mão não toquei o sobre que tinha posto ali a não ser uma só folha de papel. Retirei-a feito uma fúria, e inclusive antes de acender a luz alcancei a ler o texto:

 

Sinceramente deve ser você um parvo, para supor que um homem de minha capacidade não ia encontrar isso que ocultou. Não é preciso ser vampiro para detectar certa umidade delatora no piso e a parede. Que tenha uma agradável aventura. Vejo-o na sexta-feira. Cuide-se!

Raglan James.

 

Tanto me indignei, que por um momento não me pude mover. Estava que jogava faíscas. Tinha os punhos crispados. "Maldito descarado!", desafoguei-me, com essa voz opaca, débil, detestável. Encaminhei-me ao banho. Certamente, tampouco estava o outro dinheiro atrás do espelho, e só encontrei outra notita.

 

O que é a vida humana sem dificuldades? Compreenderá você que não posso resistir ante estes pequenos descobrimentos. É como deixar garrafas de vinho soltas perto de um alcoólico. Vejo-o na sexta-feira. Por favor, tome cuidado ao caminhar pelas calçadas congeladas. Não quisesse que se quebrasse uma perna.

 

Não agüentei mais e peguei um murro contra o espelho! OH, bom. Foi uma bênção que não tivesse ficado uma enorme brecha na parede, como teria ficado de ter sido Lestat o vampiro o autor do golpe, a não ser só cristais quebrados. E má sorte durante sete anos! Dava meia volta e baixei de novo à cozinha, mas esta vez tranquei a porta ao passar. Quando abri a geladeira, não encontrei nada! Nada! Ah, demônio, o que lhe ia fazer! Como pensou que podia obrar impunemente? Acaso não me crie capaz de lhe dar de presente vinte milhões e depois lhe retorcer o cangote? Como lhe ocorre? Hmmm. Era difícil entendê-lo? James não ia voltar, não é certo? É obvio que não. Retornei ao comilão. Não havia jogos de prata nem de porcelana na vitrine, mas sem dúvida os houve a noite anterior. Saí ao corredor: nem um quadro nas paredes. Revisei o living. Não estavam os tecidos do Picasso, Jasper Johns, do Kooning nem Warhol. Tudo tinha desaparecido, até as fotos dos navios. Tampouco estavam as esculturas chinesas. As bibliotecas se achavam quase vazias. Dos tapetes ficavam muito poucas: uma no comilão, com a que quase me tinha matado! E outra ao pé da escada Se levou todos os objetos de valor da casa! Se até faltava a metade dos móveis. O muito filho de puta não pensava voltar! Jamais teve a intenção. Sentei-me na poltrona mais próxima à porta. Molho, que me tinha seguido fielmente, aproveitou a ocasião para tender-se a meus pés. Afundei a mão em seu pelame, dava-lhe um suave tironcito, a alisei e pensei que grande alívio era o ter comigo.

Certamente, James tinha sido um parvo em planejar isso. Pensou acaso que não me atreveria a recorrer a meus companheiros? Hmmm. lhes pedir ajuda... que idéia grotesca. Não faziam falta grandes alardes de imaginação para adivinhar o que me diria Marius se lhe contava o que fiz. O mais provável era que já soubesse e estivesse ocultando sua desaprovação. Quanto ao que opinariam os mais velhos, estremecia-me de só pensá-lo. o melhor que me podia passar, desde todo ponto de vista, era que o intercâmbio de corpos passasse inadvertido. Isso soube desde o começo. O mais importante era que James não sabia -não podia sabê-lo- quanto foram se zangar os outros comigo por causa desse experimento. E tampouco conhecia os limites das faculdades das que nesse momento dispunha. Ah, mas todo isso era prematuro. me roubar o dinheiro, saquear a casa, não era mais que uma piada maligna do James, nada mais que isso. Não podia me deixar a roupa e o dinheiro; sua mesquinharia o impedia. Tinha que trapacear um pouco. É obvio que planejava retornar e cobrar os vinte milhões. Além disso, contava com que eu não lhe ia fazer mal porque certamente ia querer repetir o experimento, porque o valoraria por ser a única pessoa capaz de fazê-lo. Sim, esse era o ás que se guardava na manga: que eu não ia prejudicar ao único mortal com quem poderia intercambiar meu corpo quando queria fazê-lo de novo. Fazê-lo de novo! Tive que rir. Ri-me em efeito, e que som estranho me resultou. Fechei fortemente os olhos e permaneci sentado uns momentos, aborrecido com o suor que aderia às costelas, com a forma em que me doíam o estômago e a cabeça, com a pesadez que sentia em mãos e pernas. E quando voltei a abri-los, quão único vi foi esse mundo impreciso de cores pálidas e borde apagados... Fazê-lo de novo? te controle, Lestat. Apertou os dentes Com tanta força, que te machucou. Cortou-te a língua! Tem-te feito sangrar a boca! E o sangue tem gosto a salmoura, nada mais que água e sal, água e sal. Pelo amor do inferno, te domine! Ao cabo de um instante de tranqüilidade, pu-me de pé e empreendi uma busca sistemática do telefone. Não havia nenhum em toda a casa. Formoso. Que parvo fui em não planejar melhor a experiência. Entusiasmei-me tanto com as considerações mais amplas de ordem espiritual, que não previ nada com sensatez. Teria que ter tido uma suíte no Willard e o dinheiro na caixa forte do hotel! Devi ter pensado em um automóvel. A propósito, onde estava o automóvel? Fui ao placard da entrada, encontrei o sobretudo, adverti que o forro tinha um rasgão -possivelmente por isso não o tinha vendido- me pus lamentando isso que não houvesse um par de luvas nos bolsos e saí pela porta de atrás, mas não sem antes me ocupar de fechar fortemente a do comilão. Perguntei-lhe a Molho se queria me acompanhar ou ficar dentro. Quis vir, é obvio. No senderito havia uns trinta centímetros de neve e quando cheguei à rua, a capa era mais espessa ainda. Certamente, nem sinais do Porsche. Nem à esquerda dos degraus do frente nem em toda a quadra. Só para me certificar, cheguei-me até a esquina, dava meia volta e retornei. Tinha os pés congelados, quão mesmo as mãos, e me doía a pele da cara. Bom, teria que caminhar, pelo menos até que localizasse um telefone público. A neve soprava afastando-se de mim, o qual era uma bênção, mas infelizmente não sabia aonde tinha que ir. A Molho esse clima parecia lhe encantar, porque avançava por diante de mim sem cessar, enquanto os minúsculos copitos de neve caíam, brilhantes, sobre sua pelagem cinza. Eu teria que ter intercambiado o corpo com ele, pensei. Mas a idéia de que estivesse Molho dentro de meu corpo vampírico me deu muita risada; ri e ri sem parar, dava voltas em círculo e segui rendo até que ao final me detive porque, sinceramente, morria de frio. A situação era muito graciosa. Aí estava eu feito um ser humano, ou seja que tinha conseguido o que sempre sonhei desde minha morte, e a experiência me era espantosa! Senti uma pontada de fome em meu estômago que uivava, e logo outra, às que só podia denominar retortijones de fome.

-Tenho que encontrar Paolo'S. Mas, como vou conseguir que me dêem comida? Preciso comer, não? Não posso subsistir sem alimento, do contrário me debilitaria. Ao chegar à esquina da avenida Wisconsin vi luzes e gente que baixava pela rua. Já tinham espaçoso a neve do meio-fio, de modo que estava aberta ao trânsito. Alcancei a distinguir a pessoas que foram e vinham sob os faróis, mas todo o via pouco claro, é obvio. Segui depressa apesar de que os pés me intumesciam de dor, o qual não é uma contradição, como bem sabe qualquer que tenha caminhado na neve, até que por fim vi a vidraça iluminada de um bar. Martini'S. Não havia problema. nos esqueçamos do Paolo`s. vou ter que me conformar com o Martini'S. Um automóvel se deteve à frente e dele baixou um casal jovem que imediatamente entrou no local. Lentamente me aproximei da porta e vi uma moça bastante bonita que, de um escritório de madeira, recolhia dois menus para entregá-los aos jovens e junto com eles se internava nas sombras. Vislumbrei velas e toalhas a quadros, e de repente compreendi que o fedor fétido que impregnava meu nariz era aroma de queijo queimado. Não me teria gostado desse aroma sendo vampiro; não, absolutamente, mas tão não me teria repugnado. O teria tomado como algo que vinha de fora. Mas nesse momento o relacionei com a fome que sentia e foi como se me tironeara os músculos desde para dentro da garganta. Em realidade, deu-me a impressão de que tinha o aroma, dentro das tripas, que era algo mais que um simples aroma pela força com que me pressionava. Que curioso. Sim, tenho que advertir todas essas coisas porque isso é estar vivo. A jovem tinha retornado. Vi seu perfil suave quando olhou o papel que havia sobre seu pequeno escritório e levantou uma lapiseira para anotar algo. Tinha cabelo escuro, comprido e ondulado, e pele muito clara. Me deu vontade de vê-la melhor. Tratei de perceber seu aroma mas não pude. Só me chegava o aroma de queijo queimado. Abri a porta sem emprestar atenção ao mau aroma, entrei, plantei-me diante da moça e a bendita tibieza do local me envolveu, com aromas e tudo. Era muito jovem, de facções pequenas e estreitos olhos negros. Tinha lábios grandes, exquisitamente pintados, e pescoço comprido, de formosa linha. O corpo era típico do século XX: puro osso sob o vestido.

-Mademoiselle -disse, enfatizando meu acento francês-, tenho muita fome e fora está muito fria. Não há nada que possa fazer para ganhar um prato de comida? Se quiser lhe lavo os pisos ou as caçarolas, farei o que faça falta.

Olhou-me um momento, inexpressiva. Logo se endireitou, apartou-se a cabeleira, pôs os olhos em branco e voltou a me olhar.

-Saia daqui! -Sua voz me pareceu metálica, apagada. Não o era, certamente; era o modo em que ouviam os mortais. Não pude perceber a ressonância que sim captava um vampiro.

-Dá-me um pedaço de pão? Um só pedaço. -Os aromas de comida, desagradáveis e tudo, atormentavam-me. Não recordava bem que gosto tinha a comida. Não podia recordar textura e alimento juntos mas uma sensação muito humana se estava dando procuração de mim. Estava desesperado por comida.

-vou chamar à polícia -disse, lhe tremendo um tanto a voz- se não se for já mesmo daqui. Tratei de lhe ler os pensamentos. Impossível. Olhei em redor entreabrindo as pálpebras. Tentei ler-lhe aos outros humanos. Nada. Nesse corpo, não tinha a faculdade. Não, não pode ser. Voltei a olhá-la. Nada. Nem o menor indício de seus pensamentos, nada que me indicasse que classe de pessoa era.

-Ah, bom -repus, lhe obsequiando meu sorriso mais amável, embora sem ter idéia de como me saía ou qual podia ser seu efeito -Espero que se apodreça no inferno por sua falta de caridade. Mas Deus sabe que não me mereço mais que isto -Dava meia volta e estava já por partir quando me tocou a manga

-Olhe -começou estremecendo-se levemente do desgosto-, você não pode vir aqui e pretender que lhe dê de comer!

-O sangue lhe havia subido às bochechas, mas não a pude cheirar. Cheirei em troca uma espécie de perfume almiscarado que emanava dela, algo que era em parte humano e em parte essência comercial. de repente vi dois mamilos diminutos que ressaltavam no tecido de seu vestido. Que assombroso. Tratei de lhe ler de novo os pensamentos. Supus que poderia fazê-lo, posto que se tratava de uma faculdade inata, mas foi em vão.

-Adverti-lhe que estava disposto a lhe pagar com trabalho -articulei, procurando não lhe olhar os peitos-. Farei o que me peça. E lhe rogo me desculpe. Não quero que se apodreça no inferno. Como pude lhe dizer um pouco tão horrível O que passa é que estou em apuros. Aconteceram-me muitas coisas. Esse que está aí fora é meu cão. O que lhe posso dar de comer?

-Esse cão! -Olhou através da vidraça a Molho, que estava sentado na neve com ar majestoso. -Não me faça brincadeiras. -Que voz aguda tinha; sem a menor personalidade. Quantos ruídos do mesmo tipo me chegavam. Metálicos, débeis.

-Seriamente é meu cão -disse, fingindo indignação-. Quero-o muito.

riu.

-Esse cão come aqui todas as noites pela porta da cozinha!

-Ah, fabuloso. Pelo menos um dos dois se alimenta. Me alegro de ouvi-lo, mademoiselle. Talvez teria que ir eu pela porta da cozinha, ou possivelmente o cão me deixe algo. -Soltou uma risada falsa. Estava-me observando -isso era evidente-, olhando com interesse meu rosto e minha roupa. Que impressão lhe terei causado? Não sei. O sobretudo negro não era um objeto ordinário, mas tampouco elegante. O cabelo castanho dessa minha cabeça estava cheio de neve. Era flacucha mas de inegável sensualidade. Nariz muito estreito, olhos muito bem formados, formosos ossos.

-De acordo -aceitou-. Sente-se ao mostrador, que lhe farei servir algo. O que quer?

-O que seja. Algo. Obrigado por sua amabilidade.

-De nada. Tome assento. -Abriu a porta e lhe gritou ao cão:

-Vê pela porta do fundo -acompanhando a palavra com um gesto. Molho ficou sentado onde estava, paciente montanha de pele. Eu então saí ao vento gelado e lhe indiquei que fora pela porta da cozinha. Com um gesto lhe assinalei o beco lateral. Olhou-me um comprido instante; logo se levantou, encaminhou-se para o beco e desapareceu. Voltei a entrar, pela segunda vez agradecido de poder me proteger do frio, embora tinha os sapatos cheios de neve derretida. Internei-me na penumbra do restaurante, tropecei contra uma banqueta de madeira que não tinha visto, quase me caio e por último me sentei nessa mesma banqueta. Já me tinham preparado um lugar no mostrador, com um individual azul e pesados talheres de aço. O aroma de queijo era asfixiante. Havia outros aromas: fritura de cebola, alho, graxa queimada. Tudo repugnante. A banqueta me era muito incômoda. O bordo redondo do assento me incrustava nas pernas, e me seguia incomodando não ver bem na escuridão. O restaurante parecia muito comprido, como se tivesse várias habitações mais em fileira. Mas não alcançava a ver até o fundo. Ouvia ruídos atemorizantes, como de grandes panelas que se chocavam contra um pouco de metal, e todo isso me fazia mal aos ouvidos ou, melhor dizendo, desagradava-me. A moça apareceu sorridente, trazendo um copo grande de vinho tinjo. O aroma era azedo e potencialmente nauseabundo. Dava-lhe as obrigado. Logo tomei o copo e bebi um sorvo grande. Retive o vinho um instante antes de tragá-lo, e no ato me afoguei. Não entendi o que aconteceu, se tinha tragado mau, se o vinho me irritava a garganta por algum motivo, ou o que. Só sei que me deu um acesso de tosse e tubo que gesticular o guardanapo -de tecido- para me tampar a boca. Uma parte do vinho me ao nariz. Quanto ao gosto o notei débil, ácido. Uma frustração total. Fechei os olhos e apoiei a cabeça sobre a mão esquerda, a mesma mão que sustentava fortemente o guardanapo.

-por que não prova de novo -convidou-me ela. Abri os olhos e vi que tinha uma enorme jarra e me estava enchendo outra vez o copo.

-Bom, obrigado. -Tinha uma sede enorme, que o mero sabor do vinho não tinha feito a não ser incrementar. Mas esta vez não ia tragar tão de repente. Levantei o copo, tomei um sorvo pequeno, tratei de saboreá-lo embora parecia não haver nada que saborear, e por último o traguei. Muito leve, totalmente distinto do gole suculento de sangue. Tenho que tomar a mão. Apurei o resto. Logo tomei a jarra, voltei a enchê-lo, e isso também o bebi. Houve um momento em que senti só frustração. Depois fui me sentindo enjoado. Já vai vir a comida, pensei. Ah, aí chega... uma bandejita de palitos de pão, ou ao menos isso parecem ser. Levantei um, cheirei-o com cuidado para me certificar de que fora pão, dava-lhe uma dentada e no ato desapareceu. Foi como comer areia. Igual à areia do deserto do Gobi que me entrava na boca. Areia.

-Como comem isto os mortais? -perguntei.

-Mais devagar -respondeu a mulher formosa, e soltou uma risada-. Não é mortal? De que planeta vem?

-De Vênus, o planeta do amor.

Observava-me sem dissimulação, e suas bochechas voltaram a adquirir um leve rubor.

-Bom, por que não fica por aqui até que termine meu turno? Depois pode me acompanhar a casa.

-Com muito prazer -aceitei. Logo tomei consciência do que isso podia significar para mim, e me produziu um efeito estranho. Talvez poderia me deitar com ela. OH, sim, era decididamente uma possibilidade porque a notei disposta. Meus olhos descenderam até seus pequenos mamilos, que me tentavam ao se sobressair sob a seda negra de seu vestido. Sim, me deitar com ela. E que suave era a pele de seu pescoço. O membro me excitou entre as pernas. Menos mal, algo que me funciona, disse-me. Mas que estranha essa sensação local, esse endurecimento e inchaço, a forma insólita em que consumia todos meus pensamentos. A sede de sangue nunca era local. Deixei vagar o olhar. Nem sequer baixei a vista quando me serviram o prato de spaghetti ao tuco. A forte fragrância chegou ao nariz: queijo derretido, carne queimada. E graxa. Baixa lhe, disse-lhe ao membro. Ainda não é hora disso. Por último dirigi o olhar ao prato. A fome me oprimia como se alguém me tivesse agarrado os intestinos com ambas as mãos e me estivesse retorcendo isso. Recordava essa sensação? Sabe Deus que em minha época de mortal tinha passada fome. A fome era como a vida mesma. Mas a lembrança me pareceu longínquo, muito pouco importante. Lentamente tomei o garfo, que nnaquele tempo naquele tempo jamais usava porque não tínhamos -só facas e colheres em nosso tosco mundo-, introduzi os dentes sob o matagal de macarrão úmidos e elevei uma pilha que me levei a boca. Soube que estavam muito quentes antes de que me tocassem a língua, mas não me detive com a necessária rapidez. Queimei-me muito e deixei cair o garfo. Isso sim que foi idiotice pura, pensei, e já deve ser meu décimo ato de idiotice pura. O que devo fazer para encarar as coisas de forma mas inteligente, com mais paciência e serenidade? Joguei-me para trás na incômoda banqueta, o mais que se podia fazer sem cair ao piso, e tentei pensar. Estava tratando de dominar meu novo corpo, que me era débil e com sensações desconhecidas -um frio doloroso nos pés, por exemplo; pés molhados em meio de uma corrente de ar próxima ao piso-, e era compreensível que cometesse enganos tão tolos. Teria que ter trazido as galochas. Teria que ter procurado um telefone antes de ir ali, para chamar Paris e falar com meu representante. Não raciocinava; tercamente me comportava como se fora vampiro, e não o era. Sem dúvida, a temperatura da comida não me teria queimado quando era vampiro. Mas nesse momento não o era. Por isso devia ter levado as galochas. Pensa! Que diferente do que tinha suposto me estava resultando a experiência. OH, deuses. Aí estava eu, falando de pensar, quando o que tinha acreditado era que ia desfrutar! Acreditei que ia inundar me em sensações, lembranças, descobrimentos; e o único que podia pensar era em como me frear! Para falar a verdade, tinha imaginado diversos prazeres: comer, beber, me deitar com uma mulher, depois com um homem. Mas do vivido até esse momento, nada me era muito prazenteiro. Bom, a culpa dessa situação tão lamentável era só minha, mas podia revertê-la. Limpei-me a boca com o guardanapo, feita de áspero tecido sintético, não mais substância absorvente que uma parte de oleado; logo tomei o copo e voltei a apurar o vinho. Uma sensação de náusea me percorreu. Me fechou a garganta, e ato seguido me senti enjoado. Deus santo, três copos e já me embriagava? Levantei de novo o garfo. Como os pegajosos macarrão já estavam mais frios, carreguei o garfo e me levei isso a boca. Quase me afogo uma vez mais! Me fechou a garganta, como se queria impedir que o menjunje me asfixiasse. Tive que parar, respirar lentamente pelo nariz, me convencer de que isso não era veneno, de que eu já não era vampiro, e por último mastigar com cuidado para não me morder a língua. Mas como me tinha mordido isso um momento antes, começou a me doer o trocito de carne machucado. A dor me resultou muito mais perceptível que a comida. Não obstante, segui mastigando os spaghetti e me pus a pensar que não tinham muito sabor, que estavam azedos e salgados, que a consistência era espantosa, e quando comia voltei a sentir a tensão, o nó na boca do estômago. Agora bem, se fosse Louis o que acontecia... se você fosse o vampiro presumido de sempre e estivesse sentado frente a ele, observando-o, criticaria-o por tudo o que esteve fazendo e pensando, condenaria-o por seu acanhamento, por estar desperdiçando a experiência, por não perceber as coisas. Levantei uma vez mais o garfo. Mastiguei outro bocado e o traguei. Bom, aí notei algo de gosto. Não era, isso sim, o sabor agudo e delicioso do sangue, a não ser algo muito mais suave, mais granulado, mais gomoso. Bom, outro bocado mais. Isto te pode chegar a gostar. Também pode ser que a comida não seja muito boa. Outro bocado.

-Né, não te apure tanto -disse-me a mulher formosa. Estava apoiando-se contra mim, mas não pude sentir sua saborosa doçura através do sobretudo. Voltei-me, olhei-a de novo aos olhos e me maravilhei de suas pestanas largas e curvas, do tenra que parecia sua boca quando sorria. -Te vais engasgar.

-Sim; tenho muita fome -expliquei-lhe-. Não o vás tomar como ingratidão mas, não teria algo que não fora um mazacote coagulado como isto? Algo com mais consistência, como carne, por exemplo...

riu.

-É um homem muito estranho. De onde vem?

-Da França, zona de campo.

-Bom, trarei-te outra coisa.

Assim que se teve partido bebi outro copo de vinho. Decididamente me estava enjoando, mas também sentia uma tibieza interior que não me desagradava. De repente me deu vontade de rir e me dava conta de que estava pelo menos algo ébrio, ao fim. Decidi observar aos outros seres humanos que havia no Salão. Que estranho isso de não poder perceber seus aromas nem lhes ouvir os pensamentos. Nem sequer ouvia bem suas vozes, a não ser apenas ruídos mesclados. E muito estranho sentir frio e calor ao mesmo tempo, a cabeça afetada pelo ar excessivamente esquentado e os pés gelados pela corrente de ar próxima ao piso. A jovem pus ante mim um prato de carne (vitela, chamei-a). Tomei um trocito, o qual pareceu impressioná-la -teria que ter usada faca e garfo-, mordi-o e me resultou bastante insípido, como os macarrão. Mas reconheço que era melhor, e mastiguei com gosto.

-Obrigado, foste muito amável comigo. É um encanto, e te peço que me perdoe pela forma em que te falei faz um momento. De verdade o digo.

Deixou-me uns instantes para ir cobrar lhe a um casal que se retirava e eu segui com minha comida, minha primeira comida de areia, borracha, pedacinhos de couro e sal. Ri-me para meus adentros. Mais vinho, pensei; é como não beber nada, mas um pouco de efeito me produz. depois de levar o prato me trouxe outra jarra de vinho. E eu segui aí, com as meias e os sapatos úmidos, frios, incômodo na banqueta de madeira, me esforçando por ver na penumbra, cada vez mais bêbado, até que por fim ela esteve lista para partir. Nesse momento não me sentia mais cômodo que quando começou tudo. E apenas me levantei me precavi de que quase não podia caminhar. Não tinha sensibilidade nas pernas, a tal ponto que olhei para baixo para me certificar de que estavam em seu lugar. À mulher bonita pareceu muito divertido; a mim nem tanto. Ajudou-me a andar pela calçada nevada, dirigia-se a Molho chamando-o "Cão" com grande respeito, e me assegurou que vivia a "uns pasitos" daí. O único bom era que o frio já não me incomodava tanto. Custava-me manter o equilíbrio. As pernas me eram de chumbo. Até os objetos mais iluminados me pareciam fora de foco. Doía-me a cabeça. Estava seguro de que me ia cair. É mais, o medo a cair se estava convertendo em pânico. Mas felizmente chegamos a sua porta e subimos uma escada atapetada, esforço que me esgotou tanto que me deixou com o coração agitado e a cara banhada em transpiração. Não via quase nada! Era uma loucura. Ouvi-a pôr a chave na fechadura. Agrediu-me outro fedor insuportável. O tétrico departamentito parecia uma toca de cartão e madeira atravessada, com suas paredes cobertas de pôsteres anódinos. Mas, a que se devia o aroma? De repente compreendi que provinha dos gatos, aos que lhes permitia fazer suas necessidades em uma caixa de terra, já cheia de excrementos, que havia no piso de um bañito, e pensei que se acabava tudo, que me ia morrer! Permaneci imóvel, fazendo esforços por não vomitar. Senti de novo uma dor surda no estômago, mas esta vez não era fome, e me dava a impressão de que o cinturão me apertava enormemente. Quando o mal-estar se intensificou, dava-me conta de que devia me abocar a uma tarefa similar a que já tinham efetuado os gatos. Tinha que fazê-lo nesse instante ou passar vergonha. E terei que entrar nesse mesmo recinto. O coração se me à garganta.

-O que te passa? Sente-se mau?

-Posso usar esse quarto? -perguntei, assinalando a porta aberta.

-É obvio. Entra nomás. Passaram dez minutos, talvez mais, até que saí. Sentia tal desagrado pelo simples processo da evacuação -o aroma, a sensação de fazê-lo, o espetáculo- que não podia falar. Mas já tinha terminado. Só ficava a bebedeira, a desdorosa experiência de querer apagar a luz e lhe errar ao interruptor, de querer tomar o trinco e que minha mão -essa manaza imensa- não o achasse. Encontrei o dormitório, muito quente, abundante em móveis modernos de laminado ordinário, sem um estilo em particular. A moça estava toda nua, sentada no flanco da cama. Tratei de vê-la com claridade em que pese a que um abajur próximo distorcia a luz. Mas seu rosto era uma mescla de sombras feias, e sua pele parecia amarelada. Rodeava-a o aroma rançoso da cama. A única conclusão que pude tirar foi que era tremendamente magra, como é habitual nas mulheres desta época; as costelas se o traslucían na pele blancuzca, seus peitos eram insolitamente pequenos, com mamilos diminutos, e os quadris não existiam. Parecia um espectro. E entretanto, aí estava sonriendo, como se isso fora normal, com seu formoso cabelo ondulado que lhe caía pelas costas, ocultando a tênue sombra de seu púbis sob uma mão flácida. Bom, era óbvio qual ia ser a maravilhosa experiência humana que estava a ponto de ocorrer. Mas não sentia nada por essa mulher, nada. Sorri-lhe e comecei a me despir. Apenas me tirei o sobretudo senti frio. É que ela não o sentia? Logo me tirei o suéter, e no ato me horrorizou o aroma de minha própria transpiração. Santo Deus, assim era tudo, antes? E tão limpo que me tinha parecido esse corpo. Ela não deu amostras de notá-lo e mentalmente o agradeci. Tirei-me a camisa, os sapatos, as meias e o calzoncillo. Seguia tendo os pés frios. De fato, tinha frio e estava nu, muito nu e não sabia se eu gostava. de repente me vi no espelho da cômoda e adverti que o membro, é obvio, estava dormido. Ela tampouco pareceu surpreender-se.

-Vêem aqui -convidou-me-. Sente-se. Obedeci-a tremendo de cima abaixo. Depois tossi. Ao princípio foi um espasmo que tomou por surpresa. Logo foi um ataque de tosses incontroláveis, e ao final tão violentas que me deixaram uma grande dor nas costelas.

-Perdão.

-eu adoro seu acento francês -murmurou, ao tempo que me acariciava o cabelo e me passava as unhas pela bochecha. Essa sensação sim que foi agradável. Inclinei a cabeça e a beijei na garganta, e isso também foi lindo. Não tão emocionante como aferrar a uma vítima, mas lindo igual. Tratei de recordar o que sentia faz duzentos anos, quando era o terror das garotas do povo. Sempre se apresentava algum granjeiro às portas do castelo, jogava-me maldições e me ameaçava com o punho em alto, me assegurando que se sua filha ficava grávida teria que me fazer responsável! Nesse momento todo me parecia divertidísimo. E as garotas, ai, que encantadoras.

-Passa-te algo?

-Não, nada. -Beijei-a novamente no pescoço. Também lhe senti aroma de transpiração, e eu não gostei. Mas, por que? Esses aromas não eram tão penetrantes como me eram antes, em meu antigo corpo. Mas tinham que ver com algo desse novo corpo: essa era a parte desagradável. Não podia me proteger deles e pareciam ser capazes de me invadir e me poluir. Por exemplo, o suor de seu pescoço agora o sentia em meus lábios. Dava-me conta do que era, senti-lhe o gosto e me deu vontade de me afastar dela. OH, mas era uma loucura. Essa mulher era um ser humano, quão mesmo eu. Graças a Deus todo terminaria na sexta-feira. Mas que direito tinha eu de agradecer a Deus! Os bultitos mornos de seus mamilos roçaram meu peito, e a carne que havia atrás deles me pareceu esponjosa, tenra. Passei-lhe um braço para rodear suas costas miúda.

-Está quente. Acredito que tem febre -disse-me ao ouvido, e me beijou no pescoço da mesma maneira como o tinha feito eu.

-Não, estou bem -assegurei, embora não tinha nem idéia de se era certo ou não.

Que difícil trabalho! De repente, sua mão tocou meu membro, desatando uma imediata estimulação. O membro se alargou e endureceu. A sensação, embora localizada, excitou-me. Quando voltei a olhar seus peitos, e o triangulito de cabelo entre suas pernas, o membro se voltou mais duro ainda. Sim, lembrança muita bem todo isso. Meus olhos têm relação com isso, e agora nenhuma outra coisa importa. Hmmm. O que deve fazer é tendê-la sobre a cama.

-Epa! -murmurou-. Que pedaço de artefato!

-Parece-te? -Baixei o olhar. Essa coisa monstruosa estava ao dobro de seu tamanho. Pareceu-me grosseiramente desproporcionada com respeito a todo o resto. -Sim, tem razão. Teria que haver imaginado que James o ia constatar primeiro.

-Quem é James?

-Não, nada -balbuciei. Tomei seu rosto para voltá-lo para mim e beijei seus lábios finos, úmidos. Ela abriu a boca procurando minha língua. Isso me agradou, pese ao mau gosto que lhe senti. Não me importou. Logo me cruzou pela mente a idéia do sangue, de beber seu sangue. Onde estava essa sensação intensa que experimentava ao me aproximar da vítima, o momento antes de lhe cravar os dentes na pele, de sentir fluir o sangue em minha língua? Não, não ia ser tão fácil, nem tão ardente. Será mas bem uma sensação entre as pernas e mais parecida com um estremecimento; mas que estremecimento, tenho que reconhecê-lo. O só feito de pensar em sangue aumentou minha paixão e a empurrei bruscamente ao leito. Queria acabar; nada me importava mais que acabar.

-Espera um momento -pediu-me.

-Esperar o que? -Me subí sobre ela, beijei-a de novo, afundei mais a língua em sua boca. Nada de sangue. Ah, que branca. Não há sangue. Meu membro se introduziu entre suas coxas quentes, e nesse momento quase me sai o jorro. Mas ainda faltava.

-Disse que esperasse! -gritou, com as bochechas tintas-. Tem que te pôr um preservativo.

-Que diabos diz? -murmurei. Entendia o significado das palavras mas não lhes encontrava sentido Estirei a mão para baixo e apalpei a abertura úmida, suculenta, que me pareceu deliciosamente pequena. Gritou-me que a soltasse e me empurrou com ambas as mãos. Estava avermelhada, formosa pela indignação, e quando me quis apartar com o joelho, deixei-me cair sobre ela. Penetrei-a com o membro e senti essa carne tenra, quente e estreita que me envolvia, que me deixava sem fôlego.

-Não! Basta! Disse-te que não! -vociferava. Mas não podia parar. Como diabos lhe ocorria pensar que era momento para falar dessas coisas, disse-me médio enlouquecido até que, em um momento de espasmódico entusiasmo, acabei. Brotou rugiente sêmen do membro! Um momento antes, tinha sido a eternidade, e ao seguinte já : tinha terminado tudo, como se não tivesse começado nunca. Fiquei tendido em cima dela, exausto, é obvio empapado em suor, levemente aborrecido por quão pegajoso tinha sido tudo e por seus alaridos de terror.

Por último me dava volta e fiquei de barriga para cima. Doía-me a cabeça e todos os aromas espantosos da habitação se intensificaram: um aroma de sujo proveniente da cama mesma, com seu colchão fundo, empelotado; o aroma fétido dos gatos. Ela saltou da cama. Parecia haver-se voltado louca. Tremente, choramingando, gesticulou uma manta de uma poltrona para tampar-se e começou a me gritar que me fora, que me fora, que me fora.

-Mas, o que é o que te passa? -quis saber. Lançou-me uma surriada de maldições modernas.

-Estúpido, filho de puta, idiota, descarado! -Costure pelo estilo. Disse que podia lhe haver contagiado alguma enfermidade, e até mencionou várias. Também podia havê-la deixado grávida, ou seja que era um imbecil, um delinqüente, e devia partir nesse mesmo momento daí. Melhor que me fora, disse, porque se não, chamava à polícia. Senti uma quebra de onda de sonolência. Tratei de ver bem à moça face à escuridão. Logo me atacaram umas náuseas mais fortes que antes. Procurei as dominar e só mediante um enérgico ato de vontade consegui não vomitar. Por último, incorporei-me e me pus de pé. Olhei-a enquanto ela se dedicava a me gritar, a chorar, e de repente compreendi que estava sofrendo muito, que realmente lhe tinha feito doer e de fato tinha um feio machucado na cara. Muito lentamente captei o que tinha passado. Ela pretendia que me pusesse um profilático e eu tomei pela força, pelo qual não desfrutou de nada: só teve medo. Recordei sua imagem no momento de meu clímax, recordei como resistia, e cheguei à conclusão de que para ela era inconcebível que eu tivesse desfrutado da luta, sua indignação e seus protestos, que me tivesse agradado dominá-la. Mas de algum jeito comum e mesquinha, acredito que gozei. Todo o assunto me resultou deprimente, encheu-me de desesperança. O prazer mesmo não tinha sido nada! Isto não o suporto nem um minuto mais, pensei. Se tivesse podido chamar o James teria devotado outra fortuna só para que retornasse imediatamente. Chamar o James... Tinha-me esquecido por completo de procurar um telefone.

-me escute, MA chère -disse-, sinto-o muitíssimo. Tudo saiu mau, sei. me perdoe.

Fez gesto de me dar um sopapo, mas lhe sujeitei a boneca facilmente e a obriguei a baixar a mão, machucando-a um pouco.

-Já mesmo te parte ou chamo à polícia.

-Compreendo-te. Foi uma estupidez de minha parte. Estive muito mal. Muito pior que mau! -espetou-me, com voz áspera.

E essa vez sim me deu a bofetada. Não tive suficiente rapidez e fiquei sobressaltado pela força do impacto, pela forma em que me ardeu. Passei-me a mão pelo lugar golpeado da cara. Que dor molesta, injuriante.

-Vai! -gritou-me. Vesti-me, mas foi como levantar bolsas de tijolos. Uma vergonha surda se apoderou de mim, uma sensação de inépcia, de mal-estar ante o menor gesto que fazia ou a menor palavra que me ocorria pronunciar; tanto, que só queria que me tragasse a terra. Por último, já tudo corretamente fechado e abotoado, voltei a calçar as meias molhadas, os sapatos magros, e estive preparado para partir. Ela sentada na cama. Os ossos das costas apareciam sob a carne branca e o cabelo lhe caía em montoncitos grossos sobre a manta que mantinha apertada contra o peito. Que frágil parecia..., que penosamente feia e repugnante. Tratei de vê-la como se fosse Lestat, mas não pude. Essa mulher me parecia uma coisa corriqueira, inútil, nem sequer interessante. Senti-me um tanto horrorizado. Teria sido o mesmo na aldeia de minha infância? Quis fazer memória, recordar a essas garotas -mortas já faz séculos-, mas não pude ver seus rostos. O que recordava era felicidade, picardia, uma grande exuberância que durante períodos intermitentes me tinha feito esquecer as privações e desesperança de minha vida. O que significava aquilo nesse preciso momento? Como era possível que toda a experiência me tivesse resultado tão desagradável, ao parecer tão inútil? De ter sido eu, essa mulher me teria parecido fascinante como pode sê-lo um inseto; até suas habitações pequenas me teriam parecido peculiares até em seus piores detalhes. Ah, quanto afeto despertava sempre o triste hábitat dos pequenos mortais. Mas por que era assim? E essa pobre mulher me teria parecido formosa simplesmente porque estava viva! Não teria sido sujado por ela nem que a tivesse usado durante uma hora para me alimentar. Nesse momento, em troca, sentia-me imundo por ter estado com ela e sujo por havê-la tratado com crueldade. Não sentia saudades o medo que lhe tinha à enfermidade! Eu também me sentia poluído! Mas, onde residia a perspectiva da verdade?

-Sinto-o muitíssimo -voltei a dizer-. Tem que me acreditar. Não era isso o que queria. Em realidade, não sei o que queria.

-Está louco -murmurou amargamente, sem levantar o olhar.

-Uma destas noites virei a verte e te trarei um presente, um pouco muito formoso que realmente deseje. Assim talvez me perdoe.

Não me respondeu.

-me diga algo que de verdade deseje. Não importa o que custe. Que coisa você gostaria de ter e não pode?

Elevou a vista com ar áspero. Tinha a cara abotagada, avermelhada; logo se limpou o nariz com o dorso da mão.

-Já sabe o que queria -expressou com voz azeda, desagradável, quase assexuada.

-Não, não sei. diga-me isso Me volví para hacer precisamente eso. Pensé en el frío que hacía afuera, en Mojo que me esperaba en el pasillo, en la casa con la puerta de atrás arrancada de sus bisagras, en que no tenía dinero ni teléfono. Ah, el teléfono. Ella sí tenía. Se lo había visto sobre el tocador. Cuando me encaminé hacia el aparato, me gritó y me arrojó algo; un zapato, creo. Me dio en el hombro pero no me dolió. Levanté el tubo, marqué los dos ceros de larga distancia y pedí hablar con mi agente de Nueva York con cobro revertido. Sonó muchas veces. No había nadie. Ni siquiera estaba puesto el contestador automático. Qué raro, y qué gran inconveniente. Por el espejo alcancé a ver que ella me miraba en silencio, furiosa, envuelta en la manta que le quedaba como un vestido moderno. Una situación patética, hasta el último detalle. Llamé a París. Una vez más sonó incansablemente, hasta que por fin me llegó la conocida voz de mi agente, a quien saqué del sueño. Le informé en francés que me encontraba en Georgetown, que necesitaba veinte mil dólares..., no, mejor que me enviara treinta, y de inmediato. Me explicó que en París estaba amaneciendo. Tendría que esperar que abrieran los bancos, pero en cuanto pudiera me remitiría el dinero. Quizá fuera el mediodía en Georgetown cuando lo recibiera. Memoricé el nombre de la agencia donde debía ir a retirarlo y le imploré que no se demorara, que no me fuera a fallar pues se trataba de una emergencia, me encontraba sin un centavo y debía atender obligaciones. Me aseguró que iba a obrar con la mayor celeridad. Entonces corté. Ella me miraba fijamente. No creo que haya entendido la conversación, porque no hablaba francés.

Seu rosto estava tão desfigurado, e a voz me soou tão estranha, que me assustou. Ainda me sentia aturdido pelo vinho, mas minha mente não se alterou com a embriaguez. Era-me muito prazenteiro isso de que o corpo estivesse ébrio mas eu não.

-Quem é? -perguntou. A via inflexível e amarga. -É alguém importante, não? Não um simples... -Sua voz se foi apagando.

-Se lhe o conto não acreditaria. Girou mais a cabeça e me observou como se de repente começasse a compreender tudo. Não soube o que acontecia sua mente. Só sabia que lhe tinha lástima e que ela eu não gostava. Eu não gostava desse quartinho sujo com seus tetos baixos, a cama feia, o tapete cor torrada, a luz mortiça e a pestilenta caixa dos gatos no banheiro.

-Te vou ter presente -disse, me sentindo desventurado mas com ternura-. Penso te dar uma surpresa. vou trazer te algo maravilhoso, algo que nunca poderá comprar. Um presente como de outro mundo. Mas agora tenho que te deixar.

-Sim, melhor que vá.

Voltei-me para fazer precisamente isso. Pensei no frio que fazia fora, em Molho que me esperava no corredor, na casa com a porta de atrás arranco de suas dobradiças, em que não tinha dinheiro nem telefone. Ah, o telefone. Ela sim tinha. O tinha visto sobre o penteadeira. Quando me encaminhei para o aparelho, gritou-me e me arrojou algo; um sapato, acredito. Deu-me no ombro mas não me doeu. Levantei o tubo, marquei os dois ceros de larga distância e pedi falar com meu agente de Nova Iorque a cobrar. Soou muitas vezes. Não havia ninguém. Nem sequer estava posto a secretária eletrônica. Que estranho, e que grande inconveniente. Pelo espelho alcancei a ver que ela me olhava em silêncio, furiosa, envolta na manta que ficava como um vestido moderno. Uma situação patética, até o último detalhe. Chamei Paris. Uma vez mais soou incansavelmente, até que por fim me chegou a conhecida voz de meu agente, a quem tirei do sonho. Informei-lhe em francês que me encontrava no Georgetown, que necessitava vinte mil dólares..., não, melhor que me enviasse trinta, e imediatamente. Explicou-me que em Paris estava amanhecendo. Teria que esperar que abrissem os bancos, mas assim que pudesse me remeteria o dinheiro. Possivelmente fora o meio-dia no Georgetown quando o recebesse. Memorizei o nome da agência onde devia ir retirá-lo e lhe implorei que não se atrasasse, que não me fora a falhar pois se tratava de uma emergência, encontrava-me sem um centavo e devia atender obrigações. Assegurou-me que ia obrar com a maior celeridade. Então cortei. Ela me olhava fixamente. Não acredito que tenha entendido a conversação, porque não falava francês.

-Te vou recordar -disse-. Me perdoe, por favor. Agora vou. Muitos transtornos te causei já.

Não me respondeu. Fiquei olhando-a, tratando de entender tudo por última vez, de saber por que ela me parecia tão tosca e carente de atrativo. Desde que perspectiva estava acostumada olhar as coisas antes, posto que a vida me parecia tão bela e todas suas criaturas variações sobre o mesmo magnífico tema? -Adeus, MA chère -saudei-a-. Sinto-o muito, muitíssimo.

Molho me esperava pacientemente fora. Passei a seu lado e fiz estalar os dedos para lhe indicar que me seguisse, coisa que fez. E aí nomás baixamos a escalerita e nos internamos na noite geada. face às rajadas de vento que penetravam na cozinha e conseguiam introduzir-se até o comilão, as demais habitações da casa estavam aceitavelmente esquentadas. De umas rejillitas que havia nos pisos saíam correntes de ar morno. Que amável, James, em não ter apagado a calefação, pensei. Mas sua intenção é partir assim que receba os vinte milhões, de modo que a conta nunca se pagará. Subí à planta alta, cruzei o dormitório principal e entrei no banheiro, um ambiente agradável com cerâmicas brancas, elegantes espelhos, e a casinha da ducha fechada com portas de reluzente vidro. Provei a água: jorro terminante, quente. Uma delícia. Tirei-me a roupa úmida e cheirosa, coloquei as meias perto da calefação E dobrei o suéter porque era o único que tinha. Logo me instalei comprido momento sob a ducha. Apoiei a cabeça contra a cerâmica e até pode ser que me tenha ficado dormido de pé. Mas depois comecei a chorar e quase ao mesmo tempo, a tossir. Senti um ardor intenso no peito, e a mesma coceira dentro do nariz. Por último saí, sequei-me e voltei a olhar esse corpo no espelho. Não lhe encontrei enguiço alguma. Os braços eram robustos mas de músculos planos, quão mesmo o peito. As pernas, bem formadas. A cara era realmente bela -a tez escura quase perfeita-, embora em sua estrutura já não ficava nada infantil, como em minha própria cara. Era uma cara de homem, retangular, um pouco dura mas bela, muito bela, possivelmente devido aos olhos grandes. Também a notei um pouco áspera. Estava-me crescendo a barba. Devia me barbear. Que moléstia.

-Esta vivencia teria que te resultar esplêndida -pronunciei em voz alta-. Tem o corpo de um homem de vinte e seis anos em perfeito estado. Mas até agora tudo foi um suplício. cometeste um engano atrás de outro. Como é que não pode fazer frente ao desafio? Onde ficaram sua fortaleza e sua força de vontade?

Sentia-me gelado. Molho se tinha dormido ao pé da cama. vou fazer isso, pensei; dormir. Dormir como mortal e, quando despertar, já entrará a luz do dia na habitação. Embora esteja nublado será algo maravilhoso. Será de dia. Poderá ver o mundo de dia como o tiveste saudades todos estes anos. Não dê importância a esta luta abismal, a estas trivialidades, ao medo. Mas uma horrível suspeita se apoderou de mim. Acaso minha vida mortal tinha sido outra coisa que luta abismal, trivialidades e medo? Não era dessa mesma maneira para a maioria dos humanos? Não era esse a mensagem de inumeráveis escritores e poetas modernos: que esbanjávamos a vida em vões preocupações? Não era todo isso um péssimo lugar comum? Senti-me extremamente comovido. Tratei de argumentar comigo mesmo uma vez mais, como o tinha feito todo o tempo. Mas, do que servia? Estar dentro desse lerdo corpo humano me fazia sentir muito mal! Era espantoso não ter meus dons sobrenaturais. E o mundo, se o olhava bem, era sujo, desprolijo, cheio de acidentes. E nem sequer podia ver a maior parte dele. Que mundo? Ah, mas amanhã! OH Deus, outro péssimo lugar comum. Ri-me sozinho, e imediatamente me deu um acesso de tosse. Essa vez a dor foi no pescoço e muito intenso, e me saltaram lágrimas. Convém-me dormir, descansar, me preparar bem para meu único e prezado dia. Apaguei o abajur e abri a cama. Por sorte estava poda. Apoiei a cabeça sobre o travesseiro de plumas, encolhi as pernas até aproximar os joelhos ao peito, tampei-me até o queixo e me pus a dormir.

Tinha uma leve idéia de que, se se incendiava a casa, ia morrer. Se havia algum escapamento de gás pelos ralos da calefação, ia morrer Mais ainda, podia entrar alguém pela porta aberta do fundo e me matar Todo tipo de catástrofes podia ocorrer Mas aí estava Molho, não? E eu me sentia tão, mas tão cansado! Horas mais tarde, despertei. Tinha outro ataque de tosse e sentia um frio tremendo. Necessitava um lenço, encontrei uma caixa de pañuelitos de papel e me soei o nariz umas cem vezes Depois, quando pude voltar a respirar, caí outra vez em um estranho esgotamento febril que me deu a sensação enganosa de estar flutuando, quando em realidade me achava tendido firmemente sobre a cama. Não é mais que um resfrio, pensei. Não teria que ter tomado tão frio. Isto me vai estorvar, mas também é experiência, experiência que devo investigar. À segunda vez que despertei, o cão estava parado ao lado da cama me lambendo a cara. Estirei a mão, senti seu focinho peludo e me ri; logo voltei a tossir pese ao ardor da garganta e me dava conta de que tinha estado fazendo-o comprido momento. A luz era muito clara, maravilhosamente clara. Graças a Deus, encontrava por fim um abajur de luz intensa nesse mundo tenebroso. Incorporei-me. Por um momento me senti tão deslumbrado que não pude me dar conta cabal do que via. O céu que se vislumbrava pelas janelas era de um azul perfeito, vibrante, o sol se derramava sobre os pisos encerados e o mundo : inteiro parecia glorioso em sua luminosidade: os ramos cortados das árvores com seu festão nevado, o teto de em frente nevado, a habitação mesma, cheia de branco e de cor lustrosa, a luz que se refletia do espelho, do cristal do penteadeira, do trinco de bronze da porta do banho.

-meu deus, olhe, Molho -sussurrei. No ato chutei as mantas, Corri à janela e a levantei até acima. O ar frio era cortante, mas o que importava? Que formoso a cor intensa do céu, as altas nuvens brancas que corriam para o oeste, o verde vivo do pinheiro da casa vizinha. de repente pus-se a chorar sem consolo, e a padecer com outro acesso de tosse.

-Este é o milagre -murmurei. Molho me tocou com delicadeza e deixou escapar um gemido agudo. Os dores e moléstias mortais não importavam Esta era a promessa bíblica que durante duzentos anos não se cumpriu.

 

Aos poucos instantes de sair da casa, e me internar na gloriosa luz do dia, soube que essa experiência ia valer todas as tribulações e o padecidos. E que um simples resfrio, face aos sintomas de debilitação que produzia, não me impediria de pular sob o sol da manhã. Nada importou que me estivesse enlouquecendo uma grande debilidade física, que ao ir caminhando com Molho sentisse o corpo como de chumbo, que, por mais que o tentasse, não conseguisse dar saltos no ar, nem que abrir a porta do açougue fosse um esforço sobre-humano; tampouco importou que me estivesse pondo cada vez pior do resfrio. Uma vez que Molho teve devorado as sobras que lhe deu de presente o açougueiro, saímos juntos a deleitamos com a luz e tubo a sensação de que me embebedava ao ver o sol que caía sobre as janelas e as ruas úmidas, sobre os atoleiros frágeis nos lugares onde se derreteu a neve, sobre os cristais das cristaleiras e sobre a gente, os milhares e milhares de pessoas felizes que alegremente se encaminhavam a realizar as tarefas da jornada. Que distintas eram das pessoas da noite, porque era evidente que se sentiam seguras à luz do dia, porque caminhavam e falavam abertamente, porque encaravam os numerosos transações do dia, que estranha vez se efectúan com tal vigor ao cair a noite. Ah, ver as mamães que, com seus filhinhos ao rastro, guardavam a fruta na bolsa das compras; observar os enormes e ruidosos caminhões de partilha estacionadas nas ruas lamacentas enquanto homens de robusta textura baixavam a mercadoria e a entravam pelas portas de serviço! Ver homens tirando a neve a pazadas e limpando janelas, ver os bares cheios de seres que consumiam com prazenteira expressão grandes quantidades de café e cheirosos cafés da manhã fritos ao tempo que liam o jornal, preocupavam-se com o tempo ou conversavam sobre o trabalho do dia. Fascinante ver grupitos de escolar de uniforme que, desafiando o vento gelado, organizavam seus jogos em uma quadra de esportes de piso duro banhada pelo sol.

Uma grande energia, um grande otimismo unia a todos esses seres, e até o podia perceber como emanando dos estudantes que corriam entre os edifícios do campus universitário ou se reuniam a almoçar em quentes restaurantes. Esses humanos, ante a luz se abriam como flores, apuravam o passo, aceleravam sua dicção. E quando senti o calor do sol sobre cara e mãos, eu também me abri como uma flor. Senti, assim, a alquimia desse corpo mortal que respondia, com toda sua vitalidade, face à congestão do resfrio e ao molesta dor de mãos e pés congelados. Fazendo caso omisso da tosse, que piorava hora a hora, e da visão que me nublava, novo e molesto sintoma, caminhei com Molho pela ruidosa rua M e entrei em Washington, a capital do país. Passeei pela zona dos monumentos e mausoléus de mármore, vi os enormes edifícios e residências oficiais, percorri a triste beleza do cemitério do Arlington com suas milhares de pequenas lápides todas iguais e cheguei até a poeirenta mansão do grande general confederado Robert E. Lê. A essa altura, já estava ao bordo do delírio e é muito possível que o mal-estar físico aumentasse minha felicidade, posto que me produzia uma atitude semelhante a da pessoa ébria ou drogada. Não sei. O único certo é que estava contente, muito contente, e que o mundo à luz do dia não era o mundo da noite. Pese ao frio, muitos turistas se atreveram a sair como eu a ver esses famosos lugares de interesse. Deleitei-me em silencio com seu entusiasmo; compreendi que a eles, igual à mim, afetavam-lhes as paisagens abertas da cidade capital, que os alegrava e transformava ver o céu tão azul e os numerosos monumentos espetaculares eretos para celebrar os lucros da humanidade. "Sou um deles!", pensei de improviso, já não Caín procurando eternamente o sangue de seu irmão. Olhei aturdido em redor. "Sou um de vocês!". Comprido momento contemplei a cidade das alturas do Arlington, tremendo de frio e inclusive soltando umas lágrimas frente ao deslumbrante espetáculo tão ordenado, tão representativo dos princípios da grande Idade da Razão, desejando que Louis ou David estivessem aí comigo sofrendo porque sabia que ambos desaprovariam meu proceder. Mas isso que via era o verdadeiro planeta, a terra vivente nascida do sol do calor, inclusive sob o reluzente manto de neve invernal. Por último, desci da colina; Molho corria de tanto em tanto por diante de mim, e logo retornava para me acompanhar. Percorri a ribeira do congelado Potomac, me maravilhando ante o sol que se refletia no gelo e na neve já em processo de derreter-se. Até eu adorei observar como a neve se ia convertendo em água. Em algum momento da tarde fui parar ao grandioso mausoléu do Jefferson, um elegante e amplo pavilhão grego que tem gravadas em suas paredes de mármore as palavras mais solenes e conmovedoras que tenho lido jamais. Meu coração se enchia ao pensar que, durante essas apreciadas horas, não me senti longe dos sentimentos ali expressos. De fato, durante esse lapso em que me mesclei com a raça humana, não houve nada em mim que me diferenciasse de outros. Mas isso era mentira, ou não? Levava a culpa em meu interior, na continuidade de minha memória, em meu espírito irredutível: Lestat o assassino, Lestat o que rondava pelas noites. Recordei a advertência do Louis: "Não pode te converter em humano só dando procuração de um corpo humano!" Rememorei a expressão trágica, consternada, de seu rosto. Mas, e se o vampiro Lestat alguma vez tivesse existido? E se tivesse sido só uma criação literária, puro invento do homem em cujo corpo eu agora morava? Que idéia maravilhosa! Permaneci comprido momento na escalinata do mausoléu, com a cabeça encurvada, enquanto o vento tironeaba com força de minha roupa. Uma mulher amável me disse que estava doente, que devia me abotoar o casaco. Olhei-a aos olhos e notei que o que ela via era só um moço. Não estava deslumbrada nem temerosa. Não havia em mim essa necessidade de truncar sua vida para poder eu desfrutar mais da minha. Pobre mulher de olhos celestes e cabelo descolorido! De repente tomei sua mão pequena e enrugada, a beijei, disse-lhe em francês que a amava e vi que um sorriso se desenhava em seu rosto murcho. Que encantada me pareceu, encantada como todos os humanos sobre os que alguma vez posei meus olhos vampíricos. A sordidez da noite anterior se apagou nessas horas do dia. Acredito que todo o sonhado para essa aventura se cumpriu. Mas um inverno rigoroso me rodeava. Apesar de sentir-se mais animada pelo céu azul, a gente dizia que se aproximava outra tormenta pior ainda que a anterior. As lojas foram fechar cedo, as ruas voltariam a ficar intransitáveis e já se enclausurou o aeroporto. Vários pedestres me advertiram que me sortisse de velas porque podia cortá-la eletricidade. E um senhor maior, que levava um grosso gorro de lã, repreendeu-me por não ter posto nada na cabeça. Uma moça me disse que parecia doente, que me fora rápido a minha casa. Não é mais que um resfrio, respondia-lhes. Com um bom xarope para a tosse me ia passar. Raglan James saberia o que fazer quando recuperasse seu corpo. Certamente não lhe faria muita graça, mas poderia consolar-se com os vinte milhões. Além disso, ainda ficavam várias horas para me medicar com remédios comerciais e descansar. No momento, sentia-me muito incômodo em geral para me preocupar com semelhante costure. Tinha esbanjado muito tempo nessas distrações corriqueiras. E certamente, podia conseguir ajuda para todas as moléstias banais da vida real... Ah, a vida real. Tinha-me esquecido da hora, e sem dúvida na agência me estava esperando o dinheiro. No relógio de uma loja vi que eram as duas e meia. A mesma hora marcava o ordinário relógio bracelete que eu levava. Bom, ficavam só umas treze horas. Treze horas nesse corpo espantoso, com a cabeça que me estalava e com dor de pernas. Minha felicidade desapareceu em um ataque súbito de temor. Mas o dia era muito belo para arruiná-lo por covardia! Afastei então essa sensação de minha mente. Partes de poesia foram a minha memória..., e de vez em quando a tênue lembrança de meu último inverno mortal, de ter estado de cuclillas frente à chaminé, na grande sala da casa paterna, tratando por todos os meios de me esquentar as mãos no fogo que se extinguia. Mas em geral pude viver o momento de um modo muito distinto a como estava acostumado a fazê-lo minha mente maquinadora. Tão fascinado estava com tudo o que acontecia meu redor, que durante horas não experimentei aflição nem distração de tipo algum. Isso era absolutamente extraordinário. E, em minha euforia, estava seguro de poder levar sempre dentro de mim a lembrança dessa singela jornada. A volta a pé até o Georgetown me resultou por momentos uma façanha desonesta. Até antes de partir do mausoléu do Jefferson, o céu já tinha começado a nublar-se e rapidamente ia adquirindo um tintura plúmbeo. A luz se secava como se fora líquida. Entretanto, eu adorei essas manifestações mais melancólicas. Sentia-me hipnotizado pelo espetáculo de quão mortais fechavam suas lojas, que caminhavam pressurosos em contra do vento, carregados com bolsas de mantimentos, pelos faróis dos automóveis que iluminavam sua luz intensa, quase festiva, a crescente penumbra.

Compreendi que não ia haver crepúsculo. OH, que lástima. Mas como vampiro, muitas vezes tinha contemplado o crepúsculo. Então, a que me queixar? Não obstante, durante um momento fugaz lamentei ter acontecido essas horas tão valiosas nas garras do cru inverno. Mas por razões que não acertava a me explicar, tinha sido justo o que queria. Um inverno cru como os de minha infância. Cru como aquele inverno em Paris, quando Magnus me levou a sua cova. Fiquei satisfeito, agradado. Quando cheguei à agência, até eu me dava conta de que a febre me estava subiendo e devia procurar refúgio e alimento. Felizmente tinha chegado meu dinheiro. Também me tinham preparado um novo cartão de crédito em nome do Lionel Potter, um dos nomes fictícios que usava em Paris, e um talonário de cheques de viagem. Guardei tudo nos bolsos e, ante a horrorizado caixa, meti nos bolsos também os trinta mil dólares.

-Olhe que alguém o pode assaltar! -murmurou, inclinando-se sobre o mostrador. Adicionou algo que não entendi bem a respeito de que me convinha levar o dinheiro ao banco antes do horário de fechamento. Depois devia me dirigir a uma sala de primeiros auxílios porque se aproximava um temporal. Havia muita gente engripada, virtualmente a epidemia de todos os invernos. Para simplificar, disse a todo que sim, mas não tinha nem a menor intenção de passar as horas de mortal que ficavam em mãos dos médicos. Além disso, não fazia falta. Quão único precisava era comida, algo quente para beber e a paz de uma cama branda de hotel. Então poderia devolver ao James esse corpo em condições passíveis e retornar tranqüilamente ao meu. Mas primeiro tinha que me trocar de roupa. Eram apenas as três e quinze, ficavam umas doze horas e não agüentava nem um minuto mais esses trapos sujos! Cheguei às distinguidas Galerias Georgetown justo quando estavam fechando para que a gente pudesse fugir do temporal, mas fui convincente e me permitiram entrar em uma elegante casa de roupa, onde em um instante entreguei ao impaciente empregado uma lista de tudo os objetos que acreditava ia necessitar. Quando lhe dava a tarjetita plástica, invadiu-me um enorme enjôo. Causou-me graça, porque o homem já tinha perdido toda sua impaciência e tratou de me vender cachecóis e gravatas várias. Quase não lhe entendia o que me dizia. Ah, sim, marque tudo na registradora. Tudo isto o entregaremos ao senhor James às três da madrugada. Sim, claro, o outro pulôver, e por que não, a écharpe também. Quando consegui escapar com meu carregamento de reluzentes caixas e bolsas, atacou-me outra quebra de onda de enjôos. De fato, uma negrume total começava a me rodear; corria perigo de cair de joelhos e perder o conhecimento aí nomás, sobre o piso. Uma preciosa moça veio a me resgatar. "está-se por deprimir!" A esta altura, já transpirava profusamente, e sentia frio pese ao ambiente esquentado da galeria. Expliquei-lhe que necessitava um táxi, mas não passava nenhum. Já era pouca a gente que ficava pelas ruas e de novo tinha começado a nevar. Tinha visto antes, não longe de ali, um formoso hotel com o romântico nome de "As Quatro Estações" e para ele me dirigi, para o qual primeiro me despedi da bela criatura e agachei a cabeça para enfrentar o vento feroz. Em "As Quatro Estações" sentiria-me a salvo, pensei quase com alegria, encantado de pronunciar em voz alta o significativo nome. Poderia jantar, e não precisava voltar para essa casa odiosa até que não se aproximasse a hora de devolver o corpo. Quando cheguei por fim ao lugar, resultou-me mais que satisfatório. Deixei um volumoso depósito para garantir que Molho se comportaria como um cavalheiro educado, quão mesmo eu. A suíte era suntuosa, com enormes ventanales que davam ao Potomac, tapetes aparentemente intermináveis, quartos de banho dignos de um imperador romano, aparelhos de televisão e heladeritas dissimuladas dentro de formosos móveis de madeira, e numerosos artefatos mais. Sem perda de tempo pedi um banquete para mim e para Molho; logo abri o barcito, que estava cheio de caramelos e outras guloseimas além de licores, e me servi o melhor uísque. Que gosto espantoso! Como diabos podia David beber isso? O tablete de chocolate esteve melhor. Fantástica! Devorei-me isso e depois chamei o restaurante para que, ao pedido de minutos antes, adicionassem tudas as sobremesas com chocolate que tivessem no menu. Tenho que chamar o David, disse-me. Mas me parecia uma total impossibilidade me levantar da poltrona e ir até o escritório para tomar o telefone. Além disso, eram tantas as coisas que desejava analisar, fixar na mente. Malditos sejam os mal-estares. Assim e tudo tinha ficado uma experiência fabulosa. Inclusive me estava acostumando a essas manazas que me chegavam vários centímetros mais abaixo de onde deviam, e a essa pele escura, porosa. Não devia ficar dormido. Que desperdício... Despertou o timbre. Tinha passado uma meia hora completa de tempo mortal. Pu-me de pé com esforço, como se com cada passo tivesse que levantar tijolos, e não sei como me engenhei isso para lhe abrir à garçonete, uma agradável mulher maior, de cabelo amarelo claro, que entrou empurrando um carrinho com toalha, cheio de comida. Dava-lhe carne a Molho -antes tinha colocado no piso uma toalha de banho a modo de toalha- e ele começou a comê-la com vontades. Ao mesmo tempo que comia se tendeu, coisa que só fazem os cães de grande tamanho e que a Molho em particular lhe deu um aspecto muito mais monstruoso: parecia um leão que indolentemente mordisca a um cristão indefeso ao que sustenta entre suas imensas patas. Sem perda de tempo bebi a sopa quente, embora não lhe senti muito o gosto, mas o que podia esperar-se com semelhante resfrio. O vinho era excelente, muito melhor que o ordinário da outra noite, e embora seu sabor ainda me parecia frouxo em comparação com o sangue, bebi dois copos. Estava a ponto de devorar as massas, como lhes diz aqui, quando levantei o olhar e notei que a inquieta garçonete não se retirou.

-Você está doente -constatou-, muito doente.

-Tolices, MA chère. Tenho um resfrio mortal, nem mais nem menos. -Procurei o maço de bilhetes no bolso da camisa, dava-lhe vários de vinte e lhe pedi que partisse. Ela resistia a me deixar.

-Está tossindo muito. Acredito que está doente de verdade. Passou muito tempo à intempérie, verdade?

Fiquei olhando-a, totalmente desarmado ao vê-la tão solícita, sabendo que corria verdadeiro perigo de que, como um parvo, brotassem-me as lágrimas. Queria lhe advertir que eu era um monstro, que esse corpo simplesmente era roubado. Que tenra era, que carinhosa.

-Todos estamos relacionados -disse-lhe-, a humanidade inteira. Temos que nos preocupá-los uns pelos outros, não? -Supus que ia se horrorizar portanto sentimentalismo, demonstrado com a emoção densa do bêbado, e que por fim partiria. Mas não foi assim.

-claro que sim -disse-. Me permita lhe chamar a um médico antes de que piore a tormenta.

-Não, minha querida; vá-se não mais.

me dirigindo um último olhar de preocupação, por fim se retirou. depois de consumir os macarrão com molho de queijo -insípidos-, comecei a me perguntar se a mulher não teria razão. Fui até o banho e acendi a luz. O homem que vi no espelho tinha, em efeito, um muito mau aspecto com seus olhos injetados em sangue, o corpo que lhe tremia e sua pele escura amarelada, se não diretamente pálida. Apalpei-me a frente, mas do que me serve? Não me posso morrer disto, pensei. Entretanto, não estava tão seguro. Recordei a expressão que tinha visto na cara da garçonete, a preocupação das pessoas que me pararam pela rua. Deu-me outro acesso de tosse. Algo tenho que fazer, disse-me. Mas, o que? E se os médicos me davam algum sedativo forte e ficava tão atordoado que não podia retornar à casa do Georgetown? E se os medicamentos afetavam minha capacidade de concentração e depois não podia realizá-la mutação de corpos? Deus santo, nem sequer tinha tratado de sair e me elevar desse corpo humano, truque que me saía muito bem em minha outra forma. Tampouco quis tentá-lo. E se não podia voltar a entrar? Não, melhor esperar ao James para tais experimentos, e enquanto isso, não me aproximar de médicos nem seringas! Soou o timbre. Era a garçonete bondosa que me trazia uma bolsa cheia de remédios: frascos de líquidos vermelhos e verdes, tubitos plásticos de comprimidos.

-Teria que fazer-se ver por um doutor -aconselhou-me, enquanto depositava tudo em fileira sobre o mármore do banho-. Quer que lhe chamemos um nós?

-De maneira nenhuma -respondi, ao tempo que lhe entregava mais dinheiro e a acompanhava à porta. Mas me pediu que aguardasse, e me perguntou se não podia tirar o cão posto que já tinha terminado de comer. Ah, sim, era uma muito boa idéia. Pu-lhe mais bilhetes na mão. Logo lhe disse a Molho que fizesse tudo o que lhe indicava. A mulher parecia fascinada com Molho. Algo disse a respeito de que sua cabeça era maior que a dela. Retornei ao banho e contemplei os medicamentos. Que desconfiança lhes tinha! Mas tampouco era muito cavalheiresco lhe devolver ao James um corpo doente. E se depois não o queria? Não, difícil. Certamente ficaria com os vinte milhões, e também com as tosses do resfrio. Bebi um gole de repulsivo xarope verde, lutando por dominar as náuseas; depois me transladei com esforço ao living, onde me desabei ante o escritório. Ali havia papelaria do hotel e uma caneta que funcionava bastante bem, dessa maneira escorregadia que têm as canetas. Pu-me a escrever e, embora notei que me era muito difícil com esses dedos grandes, perseverei o mesmo. Então anotei depressa tudo o que tinha visto e sentido. Segui escrevendo em que pese a que quase não podia sustentar a cabeça e me custava respirar a causa do resfrio. Finalmente, quando não ficava mais papel e já nem podia ler meus próprios ganchos de ferro, coloquei as folhas em um sobre, passei-lhe a língua para fechá-lo e o dirigi a meu próprio nome, ao departamento de Nova Orleáns; logo me guardei isso no bolso da camisa, debaixo do pulôver, onde não me ia perder. Por último me tendi no piso. O sonho ia se dar procuração de mim, cobrindo muitas das horas mortais que me subtraíam, porque já não ficavam forças para nada. Mas não dormi profundamente. Tinha muita febre, e medo. Lembrança que a garçonete amável entrou com Molho e voltou a me dizer que estava doente. Lembrança também que entrou a empregada da noite, preocupada como a outra. E que Molho se deitou a meu lado, e o tibiecito que o senti quando me acurruqué contra ele, encantado com seu aroma, com o aroma maravilhoso de sua pelagem, embora não fora uma emoção tão forte como teria sido na época em que tinha meu antigo corpo, e por um momento até pensei que estava de volta na França, naqueles velhos tempos. Mas em certo sentido, a imagem dos velhos tempos quase tinha ficado apagada pela nova experiência. de vez em quando abria os olhos, via uma auréola ao redor do abajur aceso, via as janelas negras que refletiam o mobiliário, e imaginava que ouvia nevar fora. Em algum momento me pus de pé, enfiei para o banho, golpeei-me fortemente a cabeça contra o marco da porta e caí de joelhos. meu deus, quantos torturas! Como os suportam os mortais? Como pude suportá-los eu alguma vez? Que dor. Como se se esparramasse líquido sob minha pele. Mas piores calamidades me aguardavam. De puro desesperado tive que usar o banho e me limpar cuidadosamente depois. Que desagradável! E me lavar as mãos. Tremendo de repugnância, devi me lavar as mãos uma e outra vez. Quando descobri que a cara desse corpo se havia talher com uma sombra grosa de áspera barba, ri-me. Que crosta tinha sobre o lábio superior, o queixo e baixando até o pescoço da camisa. Que aspecto me dava? De louco; de carente. Mas não podia me barbear todo esse cabelo. Não tinha navalha e, além disso, seguro que se o fazia me cortava o pescoço. Que suja a camisa. Tinha-me esquecido de me pôr a roupa que comprei, mas não era tarde já para isso? Aturdido, vi que meu relógio marcava as duas. Deus santo, quase a hora em que devia efetuá-la transformação.

-Vêem, Molho -disse, e descemos pela escada em vez de usar o elevador, o qual não foi uma grande façanha posto que estávamos apenas no primeiro piso. Cruzamos o hall quase deserto e saímos de noite. Havia neve amontoada por toda parte. As ruas estavam realmente intransitáveis e houve momentos em que voltei a cair de joelhos, os braços afundando-se me na neve, e Molho que me lambia a cara como tratando de me dar calor. Mas segui adiante, subí a colina não sei no que estado físico e mental, até que por fim dobrei a esquina e vi ao longe as luzes da casa. A cozinha em penumbras estava cheia de neve suave, profunda. Pareceu-me singelo atravessá-la, até que me dava conta de que por debaixo de tudo havia uma capa congelada, muito escorregadia, resto da tormenta da véspera. Assim e tudo consegui chegar ao living e me atirei tiritando no chão. Só então tomei consciência de que me tinha esquecido o sobretudo e o dinheiro guardado em seus bolsos. Ficavam apenas uns bilhetes na camisa. Mas não importava. Logo chegaria o Ladrão de Corpos. Recuperaria minha velha forma, todos meus poderes! Depois, que prazenteiro seria rememorar a vivencia, são e salvo em meu reduto de Nova Orleáns, quando o frio e a enfermidade já não significassem nada para mim, quando não existissem já os dores, quando voltasse a ser o vampiro Lestat que voa sobre os tetos, que tende as mãos para as estrelas longínquas. O lugar me pareceu muito frio comparado com o hotel. Dava-me volta uma vez, divisei o pequeno lar e tratei de acender os lenhos com a mente. Depois me ri ao recordar que ainda não era Lestat, que logo atracaria James.

-Molho, não suporto este corpo nem um instante mais -confessei-lhe em sussurros. O cão se sentou ante a janela do frente e olhava a noite ofegando, empanando o vidro com seu fôlego. Tratei de permanecer acordado mas não pude. quanto mais frio sentia, mais me envolvia a sonolência. E então se apoderou de mim um pensamento aterrador: e se, no momento indicado, não conseguia sair desse corpo e me elevar? Se não podia acender fogo, se não podia ler as mentes, se não podia... Médio dominado pelo torpor, tratei de realizar o pequeno truque psíquico. Deixei afundar minha mente quase até o bordo dos sonhos. Senti a deliciosa vibração que freqüentemente precede a ascensão do espírito. Mas não aconteceu nada fora do habitual. Tentei-o uma vez mais. "Sube", disse. Tratei de imaginar a forma etérea de mim mesmo que se liberava e elevava até o teto. Não tive sorte. Impossível; como se quisesse que me crescessem asas de plumas. E estava tão esgotado e dolorido. De fato, estava amarrado a essas pernas imprestáveis, a esse peito que me doía, impossibilitado de respirar sem esforço. Mas logo estaria ali James, o feiticeiro, que conhecia o truque. Sim. Ansioso por receber os vinte milhões, James dirigiria toda a operação Quando voltei a abrir os olhos vi a luz do dia. Sentei-me no ato e olhei para frente. Não podia haver engano. O sol estava alto nos céus, e a inundação de luz que derramava entrava pelas janelas e caía sobre o piso encerado. De fora me chegavam os ruídos do trânsito.

-meu deus -murmurei em inglês, porque Mon Dieu não significa a mesma coisa-. Meu deus, Meu deus, Meu deus. Voltei a me deitar, tão sobressaltado que não podia pensar com coerência nem saber se o que sentia era fúria ou um cego temor. Depois levantei lentamente o braço para ver a hora. Onze e quarenta e sete da manhã. Em menos de quinze minutos a fortuna de vinte milhões de dólares, que retinha um banco do centro, voltaria uma vez mais ao Lestan Gregor, meu próprio pseudônimo, o ser que tinha ficado abandonado dentro desse corpo pelo Raglan James, quem obviamente não tinha retornado essa madrugada à casa para efetuar o intercâmbio convencionado. E agora, tendo perdido essa imensa fortuna, certamente já não voltaria nunca mais.

-OH Deus, me ajude -implorei em voz alta; imediatamente me veio escarro à garganta e as tosses foram como punhaladas em meu peito-. Eu sabia. Sabia. -Que parvo tinha sido. Que tolo. Maldito descarado, friável Ladrão de Corpos, me vais pagar isso! Como te atreve a me fazer isto! E este corpo! Este corpo que me deixou, que é quão único tenho para ir te buscar, está realmente doente.

Quando consegui sair à rua, já eram as doze em ponto. Mas, o que importava? Não me lembrava do nome nem a direção do banco. Tampouco poderia ter dado uma boa razão para me apresentar ali, de todos os modos. por que teria que reclamar vinte milhões que quarenta e cinco segundos depois voltariam igualmente para mim? Aonde ia levar essa massa tremente de carne? Ao hotel, a retirar a roupa e o dinheiro? Ao hospital, para que me administrassem os medicamentos que tanta falta me faziam?

A Nova Orleáns, a ver o Louis para que me ajudasse, Louis que possivelmente fora o único capaz de me ajudar? Como ia localizar a esse miserável Ladrão de Corpos se não contava com a colaboração do Louis? E o que faria Louis quando me aproximasse dele? Como me julgaria quando lhe contasse o que tinha feito? Estava-me caindo. Tinha perdido o equilíbrio. Tratei de me agarrar do corrimão de ferro mas já era tarde. Um homem corria para mim. A dor fez explosão em minha cabeça quando golpeei contra o degrau. Fechei os olhos e apertei os dentes para não gritar. Voltei a abri-los e vi sobre mim um plácido céu azul.

-Chame uma ambulância -disse-lhe o homem a outro que havia a seu lado. Eram só forma sem rasgos contra o céu resplandecente, o céu claro, saudável.

-Não! -tentei gritar, mas me saiu apenas um áspero murmúrio-. Tenho que chegar a Nova Orleáns! -Com uma corrente de palavras tratei de explicar o do hotel, o dinheiro, a roupa, que por favor alguém me ajudasse, que chamassem um táxi, tinha que viajar imediatamente do Georgetown a Nova Orleáns. Logo fiquei tendido na neve, calado, e pensei que bonito era esse céu com suas nuvens brancas, e inclusive essas sombras escuras que me rodeavam, essas pessoas que intercambiavam sussurros furtivos que não alcançava para ouvir. E Molho que ladrava e ladrava sem cessar. Tratei de lhe falar mas não pude, não pude lhe dizer sequer que não se preocupasse, que tudo ia sair bem. aproximou-se uma garotinha. Distingui seu cabelo comprido, seus manguitas abullonadas e uma parte de cinta que se agitava ao vento. Olhava-me de acima como outros; seu rosto era todo sombras e, depois dela, o céu brilhava perigosamente.

-Por Deus, Claudia, te faça a um lado que me tampa o sol! -clamei.

-Fique quieto, senhor, que já o devem levar.

-Não se mova, amigo.

Aonde se tinha ido ela? Fechei os olhos e tratei de ouvir o ruído de seus passos na calçada. O que era essa risada que percebia? A ambulância. Máscara de oxigênio. Agulha. Então compreendi. ia morrer dentro desse corpo e seria tão singelo! Estava por morrer, como milhões de outros mortais. Ah, essa era a causa de tudo, o motivo pelo qual o Ladrão de Corpos, o Anjo da Morte tinha ido ver-me, me dando quão médios eu tinha procurado com mentiras e auto-engano. Estava por morrer. Mas não queria morrer!

-Por favor, Deus, assim não, não neste corpo. -Fechei os olhos enquanto murmurava -Ainda não. Por favor, não quero morrer! Não me deixe morrer. -Estava chorando, desfeito, cheio de medo. Senhor Deus, se alguma vez me tivesse revelado um esquema mais perfeito... a mim, o monstro pusilânime que se internou no Gobi, não para procurar o fogo do céu mas sim por orgulho, por orgulho. Fechei com força os olhos. Sentia que as lágrimas rodavam por minhas bochechas.

-Não me deixe morrer. Por favor, não me deixe morrer. Não agora nem assim. Não neste corpo! me ajude! Uma manecita me tocou, tratando de procurar a minha. Apertou-me isso firme, tenra, morna. E tão suave, tão pequena. E você sabe de quem é essa mão, sabe mas tem tanto medo que não abre os olhos. Se ela estiver aqui quer dizer que te está morrendo. Não posso abrir os olhos. Tenho medo, muito medo. Choro e me estremeço. Apertei com tanta força seu manecita que certamente lhe fiz mal, mas não me decidia a abrir os olhos. Louis, ela está aqui. Veio a me buscar. me ajude, Louis, por favor. Não posso olhá-la. Não a vou olhar. Não posso soltar sua mão! E onde está você? Dormido dentro da terra, baixo esse descuidado teu jardim, com o sol que banha suas flores, dormido até que volte a noite.

-Marius, me ajude. Pandora, onde quer que esteja, me ajude. Khayman, vêem me ajudar. Armand, esqueçamos os rancores. Necessito-te! Jesse, não deixe que me aconteça isto. OH, o penoso murmúrio da prece de um demônio tampada pelo ulular da sereia. Não abra os olhos. Não a olhe. Se a miras, acabou-se. Pediu ajuda nos últimos momentos, Claudia? Tinha medo? Viu a luz como se fora o fogo do inferno que enchia o poço da ventilação, ou acaso foi a luz formosa a que alagou o mundo inteiro com amor? Estávamos os dois juntos no cemitério, na noite morna e fragrante, tachonada de estrelas longínquas, banhada em suave luz púrpura. Sim, as numerosas cores da penumbra. Olhe sua pele brilhante de mulher, o escuro machucado de seus lábios femininos, a cor intensa de seus olhos. Sustentava seu ramo de crisântemos amarelos e brancos. Jamais esquecerei esse aroma.

-Minha mãe está enterrada aqui?

-Não sei, petite chérie. Nunca soube seu nome, sequer.

-A mãe já estava podre, emprestava quando a vi; as formigas lhe caminhavam pelos olhos, entravam-lhe pela boca.

-Teria que ter averiguado como se chamava. Teria que havê-lo feito por mim. Eu gostaria de saber onde a sepultaram.

-Isso ocorreu faz meio século, querida. me odeie pelas coisas mas importantes. me odeie, se o desejar, porque não jaz agora a seu lado. Daria-te tibieza se estivesse ali com ela? O sangue é morno, querida. Vêem comigo, bebe sangue, como você e eu sabemos fazê-lo, podemos fazê-lo juntos até o fim do mundo.

-Para tudo tem uma resposta. -Que frio seu sorriso. Nestas sombras um quase pode ver a mulher que há nela, a mulher que desafia à imagem permanente de doçura infantil, com o inevitável convite a beijar, a abraçar, a amar.

-Nós somos a morte, MA chérie; a morte é a resposta final -Tomei em meus braços, apertei-a contra mim, beijei, beijei e beijei sua pele de vampiro. -depois disso já não há perguntas. Sua mão me tocou a frente. A ambulância corria como se a perseguisse a sereia, como se a sereia fosse a força que a impelia A mão roçou minhas pálpebras. Não te vou olhar! OH, por favor, me ajudem, a monótona prece do demônio a seus secuaces à medida que se afunda cada vez mais, rumo ao inferno.

 

Sim, já sei onde nos encontramos. Desde o começo estiveram tratando de me trazer de volta aqui, ao pequeno hospital.

-Que aspecto desolado tem agora, com suas paredes de barro, suas janelas com persianas e as camitas atadas umas a outras. Entretanto, ela estava aí na cama, não? Conheço a enfermeira, sim, e ao velho médico de ombros cansados, e te vejo aí na cama..., é você, a pequenina de cachos que está deitada sobre a manta, e aí está Louis...

"Bom, por que estou aqui? Sei que isto é um sonho. Não é a morte. A morte não tem uma consideração especial pelas pessoas.

-Está seguro? -disse ela. Estava sentada na cadeira de respaldo reto, levava o cabelo loiro recolhido com uma cinta azul e chinelas em seus piececitos, Isso queria dizer que estava aí, na cama, e na cadeira, meu muñequita francesa, meu encanto, com seus pés de impigem alta e suas mãos perfeitas.

-E você está aqui conosco, em uma cama de uma sala de primeiros auxílios de Washington. Sabe que está aqui morrendo, não?

-Hipotermia aguda, muito provavelmente pneumonia. Mas, como sabemos que infecção tem? Bombardeiem-no com antibióticos, impossível lhe dar oxigênio agora. Se o enviarmos à Universidade, também vão terminar atendendo-o no corredor.

-Não deixem que me mora, por favor. Tenho muito medo.

-Estamos aqui com você, estamo-lo atendendo. por que não nos dá seu nome? Tem algum familiar a quem há que dar aviso?

-Vamos, lhes diga quem é realmente -aguilhoou-me ela com uma risada argentina e sua voz sempre tão formosa, tão delicada. Sinto seus lábios tenros... olhem-nos. Eu estava acostumado a lhe apertar o lábio inferior com um dedo, a modo de jogo, quando lhe beijava as pálpebras e sua frente tersa.

-Não te passe, pequena! -murmurei entre dentes-. Além disso, quem sou aqui?

-Não um ser humano, se a isso refere. Não há nada que possa te converter em humano.

-De acordo, dou-te cinco minutos. por que me trouxe aqui? O que quer que diga? Que lamento o que fiz, te haver tirado dessa camita para te converter em vampiro? Quer que te diga a verdade mais sincera? Não sei se me arrependo. Sinto muito que tenha sofrido. Sinto muito que qualquer sofra, mas honestamente não posso assegurar que lamente esse pequeno truque.

-Não tem nenhuma pingo de medo a ficar sozinho?

-Se a verdade não pode me salvar, nada poderá. -Como odiava o aroma de enfermidade que me rodeava, esses corpinhos febris, úmidos sob as opacas mantas, todo esse sujo hospital de muitas décadas atrás.

-Pai meu que está no inferno, Lestat seja seu nome.

-E você? Quando o sol te queimou inteira no poço de ventilação do Teatro dos Vampiros, foi ao inferno?

Risadas, risadas puras, como moedas reluzentes que caem de uma carteira.

-Não lhe vou dizer isso jamais!

-Bom, sei que isto é um sonho, que o foi do primeiro momento. Não pode ser que alguém retorne de entre os mortos para dizer semelhantes banalidades.

-Acontece todo o tempo, Lestat. Não te excite tanto. Agora quero que me Prestes atenção. Olhe essas camitas, olhe a esses meninos que sofrem.

-te resgatei daí.

-Sim, da mesma maneira em que Magnus te tirou de sua vida e te deu em troca algo maligno e perverso. Converteu-me em assassina! de meus irmãos e irmãs. Todos meus pecados provêm daquele momento, quando me levantou da cunita.

-Não, não pode me jogar toda a culpa . Não o vou permitir. Acaso o pai é autor dos crímenes do filho? E embora assim fora, o que? Quem há ali que leve a conta? Não vê que esse é o problema? Não há ninguém.

-Então está bem que matemos?

-Eu te dava vida, Claudia. Não foi para sempre, não, mas foi vida, e até nossa vida é melhor que a morte.

-Como memore, Lestat. "Até nossa vida", diz. A verdade é que pensa que nossa maldita vida é melhor que a vida mesma. Reconhece-o. te olhe como está agora em seu corpo humano. Como o odiava.

-É verdade, admito-o. Mas agora quero te ouvir falar com o coração, minha preciosa, minha pequena feiticeira. Sinceramente teria preferido a morte em vez da vida que te dei de presente? Vamos, me diga. Ou isto acaso é um tribunal como o dos humanos, onde o juiz pode mentir e os advogados podem mentir e só estão obrigados a dizer a verdade quem suben ao estrado das testemunhas? Olhou-me com ar muito pensativo, enquanto uma mão gordinha brincava com o bordado de sua túnica. Quando baixou o olhar, a luz brilhou primorosamente em suas bochechas, em seu boquita escura. Ah, que formosa criação. A boneca vampiro.

-O que sabia eu de opções? -disse, olhando à frente com seus olhos grandes, frágeis e cheios de luz-. Não tinha alcançado a idade da razão quando fez seu sujo trabajito; e dito seja de passagem, pai, sempre quis saber uma coisa: gozou quando me deu a sugar o sangue de seu braço?

-Isso não interessa -murmurei. Apartei meus olhos dela e os posei na huerfanita moribunda que havia sob as mantas. Vi a enfermeira de cabelo recolhido, vestida com farrapos, que se deslocava Inquieta entre as camas. -Aos meninos mortais os concebe em um ato de prazer -disse, mas não sabia se me estava escutando. Não quis olhá-la. -Não posso mentir. Não importa se houver um juiz ou um jurado. Eu...

-Não trate de falar. Dei-lhe uma combinação de drogas que lhe vão vir bem. A febre já está cedendo. Estamo-lhe curando a congestão pulmonar.

-Por favor, não me deixem morrer. Tudo está sem terminar e é monstruoso. Se existir o inferno vou ali, mas não acredito que exista. Se é que existe, deve ser um hospital como este, só que cheio de meninos doentes e moribundos. Mas eu acredito que só existe a morte.

-Um hospital cheio de meninos?

-OH, olhe como ela te sorri, como te apóia a mão sobre a frente. As mulheres lhe amam, Lestat. Ela te ama embora esteja dentro desse corpo. Olha-a. Quanto amor.

-por que não teria que preocupar-se comigo? Acaso não é enfermeira? E eu sou um moribundo.

-E que atrativo moribundo. Teria que haver imaginado que faria a transmutação só se lhe ofereciam um corpo belo. Que vão e superficial é! Olhe esse rosto. Muito mais arrumado que o teu próprio.

-Eu não diria tanto!

Dirigiu-me um sorriso malicioso. Seu rosto brilhava na penumbra da habitação.

-Não se preocupe, que eu estou com você. Me vou ficar aqui, a seu lado, até que se melhore.

-Vi morrer a tantos humanos. Eu lhes provoquei a morte. O momento em que a vida se vai do corpo é tão simples e traiçoeiro. Simplesmente se desliza e se vai.

-Está dizendo insensatezes.

-Não; estou dizendo a verdade, e você sabe. Não posso prometer que, se vivo, vá reformar me. Não acredito possível. Entretanto, morro de medo ante a idéia de morrer. Não me solte a mão.

-Lestat, por que estamos aqui? Louis?

Levantei o olhar. Estava parado na porta do pequeno hospital, desorientado, com o mesmo aspecto que tinha a noite em que o criei, já não aquele jovem mortal cegado de furor, a não ser o sombrio cavalheiro de olhos serenos e a paciência infinita de um santo.

-me ajude a me levantar -disse-. Tenho que tirar a de seu camita. Estirou a mão, mas se achava muito confundido. Não interveio nesse pecado? Não, é obvio que não, porque vivia cometendo desatinos e sofrendo, expiando sua culpa ao mesmo tempo que os cometia. Eu era o demônio. Eu era o único que podia levantar a de seu camita. Hora de lhe mentir ao médico.

-Essa menina que está aí é minha filha. Certamente ia se alegrar de que lhe tirassem uma carga.

-Leve-lhe senhor, e obrigado. -Olhou agradecido as moedas de ouro que lhe joguei sobre a cama. Claro que fiz isso. É obvio que os ajudei. -Sim, obrigado. Deus o benza.

Seguro que me benzerá. Sempre o faz. Eu também o benzo.

-Agora durma. Assim que se desocupe um quarto, levaremo-lo; ali estará mais cômodo.

-por que somos tantos aqui? Por favor, não me abandone.

-Não; eu fico com você. Sinto-me aqui, a seu lado.

As oito. Estava tendido na maca com a agulha cravada no braço e a bolsita plástica desse líquido que atraía à luz, pude ver com toda claridade o relógio. Lentamente voltei a cabeça. Havia ali uma mulher. Tinha um casaco negro posto que ressaltava contra suas meias brancas e seus sapatos brandos, brancos também. Levava o cabelo penteado em um grosso coque e estava lendo. Tinha cara larga, de ossos fortes, tez clara e grandes olhos castanhos. Suas sobrancelhas eram escuras e bem delineadas e, quando levantou o olhar, eu adorei sua expressão. Fechou o livro sem falar e me sorriu.

-Já está melhor -sentenciou. Voz modulada, doce. Um mínimo risco de sombra azul sob os olhos.

-Sim? -O barulho me fazia mal aos ouvidos. Havia muitas pessoas. Portas que se abriam e fechavam. levantou-se, cruzou o corredor e tomou minha mão entre as suas.

-OH, sim, muito melhor.

-Então vou viver?

-Sim -respondeu, mas não estava segura. propôs-se me demonstrar expressamente que não o estava?

-Não me deixe morrer dentro deste corpo -roguei, me umedecendo os lábios com a língua. Sentia-os tão secos! Deus santo, como odiava esse físico, como odiava a forma em que o peito subía e baixava, a voz que me saía, a dor insuportável detrás dos olhos.

-Já começa de novo -disse, alargando o sorriso.

-Sinta-se aqui, comigo.

-Já o estou. Disse-lhe que não ia. Fico aqui, com você

-Se me ajudar, estará ajudando ao demônio.

-Já me disse isso.

-Quer escutar toda a história?

-Só se conserva a calma enquanto me conta isso, se se tomar seu tempo

-Que bonito rosto tem. Qual é seu nome?

-Gretchen

-É monja, não?

-Como se deu conta?

-Dava-me conta. Acima de tudo, pelas mãos, pela aliança de prata que usa, por algo da cara, uma expressão resplandecente... a expressão dos que têm fé. E o fato de que se ficou comigo quando outros lhe diziam que seguisse com o seu. Eu advirto quando uma mulher é religiosa. Sou o diabo, e sei quando estou contemplando a bondade. Eram lagrimas o que vi amontoar-se em seus olhos?

-Está-me tirando o sarro -disse com amabilidade-. Tenho uma etiquetita aqui, sobre o bolso, onde diz que sou monja. Irmana Marguerite.

-Não a vi, Gretchen. Não queria fazê-la chorar.

-Já está melhorando. Está muito melhor. Acredito que vai se curar perfeitamente.

-Sou o diabo, Gretchen. OH, não o próprio Satanás, o Filho das Trevas, Ben Sharar, mas sim mau, muito mau. Um demônio de primeira, sem dúvida.

-Está sonhando. É produto da febre.

-Isso seria esplêndido? Ontem, parado na neve, tratei de imaginar precisamente isso: que toda minha vida de maldade não fora a não ser o sonho de um mortal. Oxalá, mas não é assim, Gretchen. O diabo precisa de você. O diabo está chorando. Quer que tome a minha. Não lhe tem medo ao demônio, verdade?

-Se o que precisa é um ato de piedade, não. Agora durma. vão vir a lhe pôr outra injeção. Eu não vou. Olhe, arrimo a cadeira a sua cama para poder lhe ter a mão.

-O que está fazendo, Lestat? Estávamos em nossa suíte do hotel, um lugar muito melhor que esse pestilento hospital -sempre é melhor uma boa habitação de hotel que um pestilento hospital-, e Louis lhe tinha chupado o sangue a Claudia. Louis, o pobre indefeso.

-Claudia, Claudia, me escute. Volta em ti... Está doente, ouve-me? Para te curar débitos fazer o que te digo. -Mordi-me minha própria boneca e, quando começou a brotar o sangue, a pus nos lábios. -Muito bem, querida, bebe um poquito mais...

-Trate de beber um poquito disto. -Passou-me a mão por detrás do pescoço. Ah, que dor quando me levantou a cabeça.

-O sabor é tão frouxo. Não se parece absolutamente ao do sangue.

Suas pálpebras me pareceram tersos sobre seus olhos cabisbaixos. Fez-me acordar de uma mulher grega grafite pelo Picasso, pelo singela que parecia com seus ossos grandes, fina e forte. Alguma vez alguém tinha beijado sua boca de monja?

-Há gente morrendo aqui, não? Por isso estão tão cheios os corredores. Ouço gente que chora. trata-se de uma epidemia, verdade?

-É uma época má -disse movendo apenas seus lábios virginais-. Mas vai se curar. Eu fico aqui.

Louis estava tão zangado.

-Mas, por que, Lestat?

Porque ela era formosa, porque se estava morrendo, porque quis ver se dava resultado. Porque ela estava aí e ninguém a queria; então a elevei, tive-a em braços. Porque era algo que eu podia fazer, como a velita da igreja que serve para acender outra sem perder sua própria luz. Era minha maneira de criar, minha única maneira...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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