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O LEGADO DE ARN / Jan Guillou
O LEGADO DE ARN / Jan Guillou

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LEGADO DE ARN

Primeira Parte

 

                     O princípio do fim

ERA A MORTE QUE BRILHAVA ao sol poente, do outro lado do riacho Säveån. O bispo Kol observou a imagem, justamente, dessa maneira, de forma tão clara como se fosse um dos seus muitos sonhos inspira­dos pelo Espírito de Deus, no momento em que avançava, arfando e tropeçando, subindo as escadas de madeira que levavam à amurada mais elevada. Do outro lado do riacho estava o inimigo, em grande número, batendo suas armas de modo a fazer o maior barulho possí­vel, ao mesmo tempo que gritava as mais terríveis infâmias.

Mas o duque regente, ou jarl, continuava de costas, arrogante­mente, para a demonstração do inimigo e mantinha-se inclinado pen­sativamente sobre uma caixa de areia que sempre o acompanhava nos campos de batalha. Ao seu lado estavam os seus ajudantes mais próxi­mos, Sture Bengtsson e Knut Torgilsson. Na areia diante deles havia uma confusão de linhas e setas traçadas segundo um padrão que nenhum homem de Deus poderia entender. Por todo o lado nas pro­ximidades ecoavam os golpes de machado e de martelões. Na última hora armava-se a defesa para o dia seguinte.

O regente não devia ser interrompido, a não ser pelo bispo, que chegava nesse momento. Olhou para cima, fez um aceno nem amisto­so nem inamistoso e apontou para a mesa onde os cozinheiros reais, vindos de Näs, preparavam a refeição da noite. O bispo Kol avançou e sentou-se à mesa, perto da janela, de modo a ter uma boa visão do riacho e da ponte arrasada de Hervad.

O bispo não podia deixar de olhar mais uma vez para os inimigos barulhentos do outro lado. Mesmo sendo um homem de Deus, e não um guerreiro, já tinha lido bastante sobre guerras para saber que o ini­migo estava ao alcance dos arqueiros de longa distância. E lá embaixo, no acampamento do exército, por trás das primeiras valas já perto do riacho, encontravam-se mais de mil arqueiros de longa distância, todos devidamente avisados, até ameaçados de perder a cabeça caso avançassem demais em direção às valas e se mostrassem para o inimi­go. O bispo Kol achava que, caso esses arqueiros no acampamento ficassem fora da vista do inimigo e disparassem uma ou duas flechas, haveria muitos homens caídos mortos do outro lado. Quando todos esses arcos disparavam ao mesmo tempo até o céu escurecia.

Mas o regente aparentemente não planejava tal ataque de surpre­sa e seria burrice da parte de um bispo se intrometer. O jarl não era nenhum principiante em matéria de guerra. Desde que assumira o alto-comando das forças do reino nunca havia perdido um único combate.

Assim mesmo, desta vez, as perspectivas eram sombrias, isso até um bispo podia presumir. O regente, incompreensivelmente, estava sem cavalaria, que sempre havia sido a arma mais forte, sua e dos fol­keanos. Contudo, havia esquadrões de cavalaria do outro lado e, à luz dos últimos raios de sol, antes do anoitecer, esses esquadrões desfila­vam como que para mostrar que eram muitos e invencíveis. Pelas cores das suas vestimentas de guerra via-se que uma quantidade signi­ficativa deles era de folkeanos, os melhores guerreiros montados da Escandinávia. Ao amanhecer o jarl seria vencido por seus próprios homens, ou então iria vencer os seus próprios homens, ambas as situa­ções igualmente ruins. A guerra entre irmãos era a pior de todas as guerras.

No momento, lá fora, o jarl e os seus dois homens mais próximos pareciam estar prontos, acertando os últimos detalhes. Gesticulavam, os olhares duros, decididos. Encerraram a reunião, levantando e batendo levemente os punhos fechados uns para os outros. O jarl ainda contou alguma piada e os outros dois sorriram. Depois foram sentar-se à mesa onde estava a comida, continuando sem dar sequer uma olhada por cima do ombro ou revelar qualquer interesse pelas demonstrações de força do inimigo do outro lado do riacho.

— E então, meu bom bispo — disse o jarl, esfregando as mãos, como se estivessem geladas, no momento em que se sentava à mesa junto com os outros dois. — Já deve ter rezado as vésperas, acho. E certamente deve ter feito muitas orações por nós, para que consiga­mos vencer amanhã!

— Sim, fiz os meus pedidos — respondeu o bispo tranqüilamen­te. — Rezei por um milagre de Deus, porque é isso que me parece necessário para uma vitória amanhã.

— É mesmo? — reagiu o jarl, com um brilho de troça, tão repen­tino quanto inesperado no seu rosto endurecido. — Você não acha que somos fortes o suficiente aqui em cima, na colina sobre o riacho? Você viu muitos cavaleiros lá fora e pensa que é ruim não os termos do nosso lado, não é? Você acredita que o riacho é raso e que os mercená­rios do diabo, lá do outro lado, vão poder atravessá-lo a vau com faci­lidade. É isso?

O jarl piscou o olho na direção de Sture Bengtsson e Knut Torgilsson e ambos gargalharam, demonstrando confiança. O bispo Kol sentiu-se embaraçado e inseguro em relação à resposta que devia dar. O que o jarl acabara de dizer parecia, afinal, o mais previsível. Um exército tão forte quanto aquele que estava do outro lado poderia, realmente, atravessar a vau aquele riacho raso com facilidade.

— Acho que você deve dedicar um bom tempo para as suas ora­ções esta noite, Birger. E você sabe muito bem o que eu penso disso — respondeu Kol, cautelosamente.

— E você também sabe o que eu penso disso! — respondeu o jarl irritado. — Será que lá do outro lado eles também não têm os seus homens de Deus? Será que Knut Magnusson, que insolentemente se auto-intitula rei, Knut Folkesson, que também insolentemente se auto-intitula jarl, Filip Larsson e seu meio-irmão, uma serpente de nome Filip Knutsson, além dos outros rebeldes, não vão combater sem ter pelo menos um bispo no seu séquito? E esses homens de Deus do lado deles não vão rezar pela vitória durante metade da noite como foram contratados para fazer? E contra eles eu colocaria você, como se fosse um duelo de orações para Deus! E então acho que certamente Nosso Senhor, por desgosto, vira o Seu rosto e deixa de olhar por todos nós. Bem, meu caro bispo, de tudo isso você já sabe.

— Isso você recebeu do seu avô Arn — disse o bispo Kol, em voz baixa, partindo um pedaço de pão e agradecendo o alimento com uma oração. O silêncio se estabeleceu entre todos à volta da mesa e os outros três, pelo menos aparentemente, baixaram a cabeça por um instante como se rezassem.

— Ah, sim, é verdade — continuou o jarl ao começar a sua refei­ção. — E não diga que Arn Magnusson não foi um guerreiro de Deus e, além disso, um santo. E que ele entre todos achava uma audácia rezar a Deus por uma vitória antes do combate. Você sabe pelo que ele rezava nesses momentos? Pedia para não ser arrogante, que ao empu­nhar a sua espada, justamente essa espada que eu trago à cintura, não pensasse em quem ele devia matar, mas em quem podia poupar! Isso é uma coisa que dá o que pensar. E ele foi muito mais santo do que esse tal de Erik Jedvardsson.

— Este talvez não seja o melhor momento para blasfemar — rea­giu o bispo Kol, condescendente.

— Blasfemar! — reagiu o jarl — É blasfemar se eu disser simples­mente que tenho dúvidas a respeito desse tal de Erik Jedvardsson, o Divino Santo Erik? Deus me perdoe, ele não foi tão santo assim. Ele perdeu a cabeça porque se deixou surpreender e morreu porque esta­va bêbado demais para poder se defender. Aliás, nenhum dos três últi­mos papas concordou em transformar esse bêbado em santo. Portanto, se estou blasfemando, então blasfemo junto com três papas e estou assim em boa companhia.

— Não entendo como você pode se aventurar a tal arrogância na noite que poderá ser a última da sua vida na Terra — respondeu o bispo Kol, zangado.

— A situação não é assim tão ruim — reagiu o jarl de repente, em voz baixa e pensativo. — Na realidade, é muito pior. Para a maioria de nós aqui no acampamento, esta poderá ser a última noite. É verdade. Na guerra jamais podemos ter certeza do que vai acontecer. Por muito que se planeje, sempre poderá acontecer alguma coisa na qual não pensamos antes. É assim. Mas eu não tenho receio da morte, se é que você acredita nisso. O pior para mim é a derrota. Porque, se perder­mos, a maioria de nós estará morta amanhã pelo meio-dia. Mas você não. E, na pior das hipóteses, nem eu. Você irá sobreviver porque é bispo, e eu porque serei o prisioneiro que irá ser mostrado pelo reino, a cavalo, de mãos atadas e trocado pela coroa real do meu filho, Valdemar. E isso será pior do que a morte.

O jarl esticou o braço e apanhou um pedaço de carne que levou à boca, mal-humorado. Todos os quatro ficaram em silêncio por algum tempo, comendo, enquanto lá fora começava a anoitecer. Alguns ser­viçais da casa real de Näs chegaram com tochas e as colocaram em ganchos de ferro em volta, e eles então puxaram suas mantas e se envolveram nelas. Estava-se na época do Andfriden, depois da Feira de Mickel. O outono estava inusitadamente frio e as primeiras noites de geada já tinham acontecido.

Foi uma refeição curta, já que tanto Knut Torgilsson, responsável pelas valas de defesa do Leste, quanto Sture Bengtsson, que agüenta­ria o lado ocidental, tinham uma longa noite pela frente, com muito trabalho a realizar. Ambos pediram desculpas respeitosamente e o bispo Kol os abençoou, antes que cada um partisse para o seu lado, a passos largos.

O jarl continuou em silêncio, segurando a jarra de cerveja já pela metade.

— Ambos são grandes homens — acabou dizendo após alguns momentos. — Seus pais foram meus amigos de infância, quando todos nós estávamos aprendendo as coisas em Forsvik. E, ao contrário de alguns outros amigos, nem eles nem os seus pais nunca me traíram.

Sture e Knut sempre estiveram comigo em Tavastland. Muitas das nossas vitórias devem-se a eles.

— Se você se sente traído por amigos, maiores são as razões para confiar em Deus — sugeriu o bispo Kol com uma expressão de quem se achava muito sábio. O jarl parecia, primeiro, querer responder de pronto e com raiva, mas resolveu se conter e beber a sua cerveja, len­tamente, por momentos.

— Uma vez, eu ainda era muito jovem — continuou ele de repen­te —, nós, forsvikianos, juramos que jamais viraríamos as nossas armas uns contra os outros. Nós, forsvikianos, estaríamos sempre do mesmo lado. Foi assim que o meu querido avô Arn uma vez imaginou que seria. Nós, os cavaleiros forsvikianos, todos juntos, seríamos tão fortes que, no reino, nada poderia acontecer senão a paz, já que nin­guém iria poder nos vencer. Haveria paz, nas condições impostas por nós, sem dúvida, mas ainda assim paz.

— Você fala com amargura ao contar essas coisas, meu caro regen­te — afirmou o bispo com cautela. — Mas isso que você conta, de qualquer forma, era sem dúvida um belo sonho.

— Sim, era um belo sonho. Todos os sonhos que o meu avô tinha eram belos. Eram como uma luz no meio da noite. E por muito tempo pareceu que ele tinha razão. Eu cavalguei ao seu lado em Gestilren, era jovem, varria a caserna, mas mesmo assim tive a honra de cavalgar ao seu lado, empunhando a nossa bandeira de guerra, o mesmo símbolo que você talvez tenha visto no telhado, por cima de nós, enquanto subia pelo terreno até chegar aqui. Lá em Gestilren ele venceu os dinamarqueses pela segunda vez. E você deve saber que isso aconteceu na época de Valdemar, o Vencedor, em que a Dinamarca era invencível. Mas meu avô Arn os combateu duas vezes e em ambas foi a nossa cavalaria forsvikiana que decidiu a contenda. Ele deu a vida pela vitória e pelo longo período de paz que se seguiu. E amanhã vamos nos defrontar com esses cavaleiros forsvikianos. O meu avô Arn deve estar chorando lá no céu.

— Isso é o que eu não entendo — disse o bispo Kol. — Ou melhor, são muitas as coisas que eu não entendo, mas, acima de tudo, não compreendo como pode haver cavaleiros folkeanos do outro lado e nenhum do nosso.

— Essa é justamente a questão — suspirou o jarl. — Os rebeldes são nossos amigos, são folkeanos, e os cavaleiros que estão com os rebeldes têm agora a sua vida facilitada, visto que sabem que não exis­te nenhum cavaleiro forsvikiano do nosso lado. E disso o inimigo está bem consciente. E entendem isso, se não por outros meios, pelo menos pela maneira como nos entrincheiramos aqui. Estou habitua­do a vencer com cavaleiros. Mas desta vez, ao contrário, preciso lutar contra cavaleiros, visto que os meus queridos companheiros acharam por bem que não devem atraiçoar o seu juramento de jamais apontar suas armas contra os forsvikianos. E isso era o que ia acontecer se vies­sem combater ao nosso lado. Por isso, é só olhar para as suas fazendas, em especial Hönsäter e Jerv, Ynglingastad, Granasa, Forsvik e Lena, mas também em todas as outras fazendas e castelos onde estão hoje mais de duzentos cavaleiros folkeanos, de braços cruzados, nos aban­donando à sorte de termos de combater por nossas vidas a pé. E você me dizia que eu estava amargurado?

— Tendo você cinco mil homens aqui em Narunga, faria assim tanta diferença ter além deles mais duzentos cavaleiros? — perguntou o bispo, incrédulo.

— Sim — sorriu o jarl, quase sentindo pena da ignorância do homem de Deus. — Se eu tivesse a cavalaria folkeana, homens que limparam toda a Tavastland, não teria sido preciso nos enterrarmos como raposas nas tocas. Então a vitória não custaria tanto sangue como vai custar agora, se é que vamos vencer. Com essa cavalaria fol­keana, iríamos varrer esses mercenários germânicos das nossas terras em uma semana. E se nós a tivéssemos ao nosso lado, iríamos vencer amanhã em poucas horas. Essa é a grande diferença.

— E por que temos que nos entocar como raposas? Por que entrar em combate tão cedo, quase que de imediato, assim que o inimigo penetrou no país? — perguntou o bispo com um tom de voz que denunciava não acreditar que o que acontecia era a coisa mais inteligen­te a fazer. Mas o jarl não demonstrou a mínima intolerância diante do fato de ver o seu entendimento questionado tão cedo.

— Meu caro bispo, a questão que você põe é muito inteligente — reagiu ele. — Eu não tenho certeza se você percebe o quanto a sua per­gunta abrange todas as dificuldades que eu, Knut e Sture discutimos nas últimas semanas. Mas a questão é a seguinte. Knut Magnusson e seus seguidores lá fora contrataram um exército em Schleswig, e, por isso, passaram de barco da província dinamarquesa de Jylland para Halland. Os seus legionários germânicos e dinamarqueses custam muitas pratas; portanto, há que se fazer uma escolha. Podemos evitar o combate por muito tempo e deixar que os mercenários queimem e saqueiem toda a Götaland Ocidental, porque não existe outra manei­ra de pagá-los. Talvez isso leve os nossos nobres amigos forsvikianos a perceber, entretanto, que isso é demais e, como conseqüência, man­dem selar os seus cavalos e cavalguem para o nosso lado. Talvez. Mas uma coisa é certa: a tentação de obter uma vitória rápida se tornará muito grande para Knut Magnusson. Quanto mais rápida, menos pratas terá que pagar aos seus mercenários. E é essa tentação que eu estou colocando como isca diante dele, entende?

— Não, não acredito nisso — respondeu o bispo, ruminando seus pensamentos. — Certamente a tentação de vencer rápido, enquanto os legionários ainda não estiverem esgotados e a um custo tão baixo em moedas de prata quanto possível, isso eu entendo. Mas o que é que você vai ganhar com uma decisão rápida?

— Vou conseguir escolher o lugar para o combate — reagiu o jarl, satisfeito. — Knut Magnusson vai querer ganhar rápido e, por isso, estará disposto a vir até o lugar que eu escolhi. Agora você entende?

— Não — suspirou o bispo. — Ou melhor, sim, entendi que é pre­ferível escolher o lugar do combate. Mas os legionários, de qualquer forma, serão sempre os mais fortes no início do embate, certo?

— Venha cá! — disse o regente, levantando-se e dirigindo-se para a caixa de areia e pegando uma tocha, que passou por cima de toda a confusão de linhas e setas, de modo que tudo desapareceu e a superfí­cie da areia ficou lisa e limpa como se fosse uma folha de papel em branco.

“Aqui está o riacho Säveån, aqui está a Narunga e aqui a ponte Hervadsbro, onde nós nos encontramos agora — explicou o duque enquanto arrastava na areia o seu dedo, rígido e cheio de calos, dese­nhando aquilo de que estava falando. — Aqui em cima estamos nós, você e eu, e lá o inimigo, cujas fogueiras você pode ver daqui, virando-se. Se der uma olhada ao longo das trincheiras e das valas a leste da ponte... aqui há um grande brejo. Por ali não chega ninguém. E mais ao longe, a oeste, existem uns outeiros tão fáceis de defender que nem precisam ser defendidos. E os nossos muros de madeira e paliçadas de defesa estão construídos ao longo da margem do riacho, assim, deste jeito! Muito bem, agora me diga uma coisa: por onde é que o inimigo vai atacar? Onde está o nosso ponto fraco?”

O bispo Kol ficou interessado e preso, de imediato, ao jogo de guerra. Inclinou-se sobre as linhas desenhadas na areia e refletiu um bom momento antes de se decidir.

— Aqui! — disse ele, enfiando o seu indicador bem fundo na areia, até o anel de bispo. — É aqui que eles vão atravessar o riacho, como eu já disse. É aqui que vão aparecer como enxames de abelhas sobre nós. E lá embaixo, à nossa esquerda, está o istmo de areia onde os nossos muros de troncos de madeira são mais fracos. Não tenho razão?

— Sim senhor. Você tem toda a razão, meu caro bispo — falou o jarl, sorrindo. — Para um clérigo, você tem um cérebro que não é tão pequeno como se poderia imaginar. Lá embaixo, onde estamos agora colocando obstáculos para cavalos atrás dos muros, é o lugar por onde eles vão atacar primeiro. Será a primeira coisa que vão fazer. E vão conseguir penetrar vários milhares de cavaleiros e seus cavalos, atrope­lando-se uns aos outros, num aperto total. E o que é que acontecerá depois?

— Vários milhares? Então estaremos perdidos? — perguntou o bispo, estarrecido.

— Aqui, neste lugar — apontou o jarl com o indicador na areia —, a uma distância de dois tiros de flecha (agora está escuro demais para podermos ver), existe um morro onde escondemos três catapul­tas, que eu, depois de longas negociações, consegui trazer de Forsvik. Você conhece o que é fogo grego?

— Tácito conta-nos bastante sobre isso — murmurou o bispo. — Mas eu não li tanto sobre esses escritores romanos com o mesmo inte­resse que você. Aliás, o seu latim é o melhor que eu já escutei ser fala­do por qualquer leigo. Não, não sei o que é. Diga logo!

— As catapultas jogam grandes vasos de barro cheios de óleo extraído de troncos, ramos e resina de pinheiro, óleo que a gente usa para remover tintas. Isso arde como o fogo dos infernos e as barricas recebem uma mecha acesa antes de serem jogadas no ar. E são os fogos dos infernos que vão se esparramar sobre o inimigo quando este pensar que vai obter uma vitória fácil. Tudo, evidentemente, se Deus quiser.

— Já está você blasfemando de novo!

— Você sabe muito bem o que eu penso sobre o assunto. Será que Deus vai querer fritar para nós dois mil legionários? Ou será que Ele não vai querer fazer isso? Essa questão, acho, é irrelevante. Assim como a idéia com a qual você, meu caro bispo, vai ter que se defron­tar, de que, esta noite, vai ter que se ajoelhar e rezar para que o inimi­go caia realmente na nossa armadilha e receba em cheio o fogo que vamos jogar em cima dele. Não existe morte mais terrível. Eles vão morrer sob sofrimento atroz, gemendo. E, depois, vai se espalhar por toda a região o cheiro de carne queimada. Pela minha fé, acho que demonstro muito mais respeito por Deus em não rezar por tal coisa. Mas você vai rezar sim.

— Mas... e todos esses arqueiros de longa distância? — perguntou o bispo Kol, fazendo um esforço para não continuar tecendo mais comentários a respeito de blasfêmias contra Deus, tais como as que o jarl acabava de fazer. — Será que esses mil arqueiros, como todos nós, vão ter que confiar nessa armadilha de fogo? Será que você não colo­cou todos os ovos no mesmo cesto?

— Com os diabos, claro que não — falou o jarl, sorrindo. — É mesmo um prazer verificar que você é muito mais inteligente em matéria de guerra do que eu esperava, meu caro bispo. Muito bem, aqui atrás, à esquerda do morro, nós cortamos todas as árvores e abri­mos uma grande clareira. É lá que vão ficar os nossos arqueiros. Quando o fogo for arremessado e a fuga dos inimigos começar e a confusão for bem maior lá embaixo no riacho, essa será a hora certa de os arqueiros entrarem em ação. Agora vamos nos sentar de novo!

Os dois se deixaram recompensar de novo com taças de cerveja aquecida por causa do frio que fazia, ficando sentados no escuro e mergulhados nos seus próprios pensamentos por alguns momentos. À sua volta brilhavam as fogueiras e soava o eco de machadadas. Os car­pinteiros tinham começado a colocar leves telhados com pequenos troncos por cima das suas cabeças e o mesmo acontecia ao longo de toda a trincheira onde os arqueiros de pequena e longa distância iriam ficar e onde uma parte dos homens já se preparava para passar a noite.

O céu estava estrelado, o que significava que a noite seria fria e o ataque aconteceria bem cedo, já que a luz do amanhecer viria rápido.

— Está vendo este telhado, meu caro bispo? — falou o jarl depois de um longo silêncio. — Isso o inimigo não viu enquanto ficou gri­tando, fazendo barulho e demonstrações de força. Lá do outro lado eles vão apontar os seus arcos e disparar as suas flechas sobre nós, acre­ditando que poderão nos atingir, antes de começarem a invasão pelo riacho. Mas nessa posição vão estar bem acima de nós e os nossos telhados com uma inclinação para baixo. Se tivéssemos feito os telha­dos à luz do dia, eles se teriam dado conta do que estava acontecendo e não poderíamos ver o que estavam fazendo. Isso significa que agora eles não podem nos acertar com as suas flechas. Se não podemos ver os arqueiros, também eles não nos podem acertar, mesmo a curta dis­tância. E eles vão perder muitas flechas antes de perceberem o que está acontecendo. Para chegar até nós eles vão ter que descer pelas águas e, então, ficarão à mercê das nossas flechas.

— Mas e o fogo? Será que eles não podem atirar com flechas de fogo? — objetou o bispo, sem muita convicção.

— Isso acontecerá certamente. Mas vamos colocar peles de vaca encharcadas por cima dos nossos telhados, de modo que impediremos os incêndios. E por trás teremos ainda grandes baldes com água para o caso de termos que apagar alguns pequenos incêndios.

— Receio pelo exagero da sua presunção, meu caro jarl. Será que você pensou em tudo?

— Tenho certeza que não pensei em tudo. Ninguém consegue isso. Como eu disse, na guerra acontece muita coisa imprevisível. E, assim, ninguém pode prever tudo. Só pensei mesmo naquilo que eu e meus auxiliares mais inteligentes pudemos imaginar. E presunçoso eu não sou. Só os loucos são presunçosos na guerra. E esses loucos não vivem muito. Se eu fosse louco, já teria morrido há muito tempo.

— E você não quer rezar comigo?

— Não. E você sabe por quê.

— Por que você ficou tão interessado em ter um bispo aqui con­sigo?

— Interessado sim, mas não no homem de Deus. Estou interessa­do em ter um secretário à mão. Você sabe negociar, sabe escrever diplomas e acordos, e talvez isso seja necessário quando amanhã tiver­mos que estabelecer e selar os termos da nossa vitória. Ou da nossa derrota.

— E se amanhã Deus estiver do seu lado e você vencer, qual será o perdão que irá dar aos seus parentes vencidos?

A pergunta do bispo não era assim tão inocente quanto parecia. O fato de ele tê-la feito já era uma questão singular, visto que demons­trava que tinha maus pressentimentos. Isto porque, num combate entre cavalheiros e, em especial, cavalheiros que eram como irmãos, tudo costumava terminar com uma festa entre vencedores e vencidos e, depois, cada grupo cavalgava para o seu lado, tendo antes jurado umas coisas e outras, juras que nem sempre qualquer dos lados tinha por objetivo cumprir. Com a sua pergunta, porém, o bispo Kol mos­trava duvidar de tal tolerância após a vitória. E ficou ainda mais intranqüilo pelo fato de o jarl ter permanecido em silêncio por longo tempo, com o rosto sério, antes de responder.

— Não vamos negociar a pele antes de o urso morrer — murmu­rou ele finalmente, curto e grosso.

— Existe alguma coisa que torne a nossa vitória certa e qualquer outra coisa que torne a nossa derrota também certa? — perguntou o bispo após ter feito também ele um longo silêncio.

— Sim — reagiu o jarl — A vitória seria certa, independente­mente de qualquer outra coisa, se eu tivesse ao meu lado, nesta noite, os meus queridos forsvikianos. E a derrota virá se o inimigo não cair na nossa armadilha e investir forte em outro lugar que não aquele que parece tão tentador. Se fosse eu que estivesse no lugar deles, ficaria bastante desconfiado ao ver uma defesa que deixasse uma porta meio aberta na minha frente.

— Vamos rezar então para que a presunção do inimigo seja maior do que a sua esperteza.

— Sim, isso seria uma graça pela qual valeria a pena rezar, uma reza da qual não podemos nos orgulhar — reagiu o jarl, meio irritado.

O bispo Kol desistiu e decidiu não mais levantar a questão da ora­ção antes da guerra. No que tocava a essa questão, o jarl parecia obs­tinado, de uma maneira que ia contra todo entendimento. Nenhum outro homem na Escandinávia teria a idéia absurda de não rezar à noite antes de um grande combate. Mas, enquanto esse pensamento atravessava a mente do bispo, ele refletiu sobre um outro homem que, eventualmente, tomaria a mesma atitude.

— Eu nunca cheguei a me encontrar com o seu avô Arn — disse ele em voz baixa, demonstrando que não estava mais disposto a jogar fora palavras a respeito de guerra e de orações. — Que Arn Magnusson foi um grande homem isso eu sei. Que era o maior homem de guerra entre todos isso também sei. Mas como era ele como pessoa, quando não estava em armas?

— Como nenhuma outra. E a herança recebida dele não é fácil de carregar — respondeu o jarl, pensativo. — E agora vou dizer para você, com a maior seriedade, sem tolice ou brincadeira, que ele foi, realmente, um santo. Com um santo ninguém vai querer, de forma alguma, ser comparado, mas eu tenho seguido os seus passos durante toda a minha vida. E como você sabe, estou muito longe de ser um santo.

— Sem dúvida — concordou o bispo tranqüilamente. — Você está longe de ser um santo. Você é um homem duro, Birger, e, por isso, jamais poderá ter certeza de reencontrar seu querido avô na outra vida.

— Veja só, lá está você de novo me comparando com ele! No seu leito de morte eu fiz um juramento, prometi a ele duas coisas. E o que eu jurei e prometi até agora tenho cumprido. Uma delas é manter o reino unido e chamá-lo de Sverige, ou seja, Suécia, e é isso que vai acontecer se, amanhã, conseguirmos a vitória. A outra é construir uma cidade no lugar onde o Lago Mälaren se encontra com o Mar Báltico, perto de Agnefit. Isso eu já comecei a fazer, e essa cidade deci­di chamá-la de Stockholm, ou seja, Estocolmo. Amanhã, no entanto, poderei ter sido malsucedido em cumprir a primeira promessa, se os rebeldes nos baterem. Olhe aqui, esta é a espada de Arn Magnusson! Sempre a tenho comigo, à cintura, mesmo quando a vitória não é certa. E até agora nunca perdi uma batalha quando estou com ela.

Para o bispo Kol não eram muitas as diferenças entre a espada do jarl e qualquer outra espada que ele já tivesse visto. A não ser pelo fato de ter uma bainha muito mais tosca do que as das espadas dos homens importantes, uma bainha feita de couro escuro, sem ricas incrustações e apenas com uma cruz vermelha em cima, junto da empunhadura. Além, é claro, daqueles sinais estranhos e dourados gravados na lâmi­na que não dava para ler. O jarl tinha colocado cuidadosamente a espada em cima da mesa, diante do bispo, entre pedaços de presunto defumado e de pão. O bispo resolveu passar os dedos por cima da escrita dourada, inclinando-se o bastante para tentar ler à luz da tocha o que dizia, mas não conseguiu distinguir nem uma letra sequer.

— Que língua é esta e o que é que está escrito? — perguntou ele ao desistir da sua leitura.

— Se eu lhe disser o que está escrito você vai se exibir e revirar os olhos como se fosse um santarrão em transe — respondeu o jarl com uma gargalhada abafada. — Essa espada é uma dádiva de um rei cujo nome você conhece; para Arn Magnusson, foi um presente oferecido no ano da graça de 1191. E isso é tudo o que lhe posso dizer.

— Ele pertencia à Ordem da Espada?

— Não, era templário. Pertencia à Ordem dos Templários. Poderíamos dizer que era clérigo e leigo ao mesmo tempo e na mesma pessoa. Foi ele que criou toda a nossa cavalaria forsvikiana. Todos nós somos seus filhos, até mesmo aqueles canalhas que estão lá do outro lado. Nós que jamais poderíamos trair uns aos outros. Nós que já traí­mos uns aos outros. Se ele viesse a saber disso, iria sofrer muito.

— E como é que ele iria administrar amanhã a vitória?

— Certamente de uma maneira diferente da minha. Ele era um santo. E agora vou lhe dizer pela última vez que santo eu não sou. Você quer dormir aqui em cima? Não, não acho aconselhável. É para cá que eles vão assestar amanhã a maioria das suas flechas. O inimigo já deve ter visto a minha bandeira e, provavelmente, o meu manto. Vamos então procurar um lugar mais seguro.

Apesar da sua idade, o jarl desceu a escada que ligava a casamata às traseiras dela com muito mais facilidade do que o bispo, que era muito mais jovem. Em seguida passaram pelo acampamento, onde continuavam apressadamente os trabalhos de construção de novas barreiras feitas com troncos de árvores, encaixando-os uns nos outros, além da colocação de mais obstáculos contra a aproximação de cava­los. Para todos os lugares o bispo lançava as suas bênçãos, englobando combatentes e trabalhadores, e em todos os lugares os trabalhos para­vam assim que o manto de arminho do jarl era visto se aproximando.

Demorou um bocado de tempo para percorrerem os duzentos passos que levavam ao morro onde estavam as catapultas e onde o jarl tencio­nava passar a noite. Ao amanhecer, antes de o combate começar, eles iriam fazer juntos a mesma ronda de novo, assegurou o jarl ao bispo Kol que parecia nunca se cansar e terminar de dar as suas bênçãos para os homens que, no dia seguinte, ao meio-dia, poderiam estar mortos.

Quando chegaram ao topo do morro atrás do qual estavam as catapultas e no momento em que o jarl começava a contar para o bispo como elas eram construídas e usadas, ouviu-se um alarme geral no acampamento diante da aproximação de cavaleiros estranhos e de muitos homens armados e a pé.

Visto que a cavalaria jamais poderia atacar no escuro, espalhou-se uma grande apreensão, uma sensação de perigo fantasmagórico se aproximando, embora se ouvisse nitidamente o resfolegar da respira­ção dos cavalos e o tilintar dos ferros dos estribos. Logo em seguida também vozes coléricas e gritos de que era o cavaleiro Sigurd e seus homens forsvikianos que estavam chegando.

O jarl ficou paralisado ao ouvir isso e segurou tão fortemente o braço do bispo Kol que chegou a doer. Depois fez algo que o bispo jamais poderia acreditar que acontecesse. Ajoelhou-se e fez em latim longas orações de agradecimento a Deus e à Virgem Maria. Diante dessa imagem, os olhos do bispo se encheram de lágrimas, sabendo que no Reino dos Céus a alegria era muito maior pela conversão de um pecador do que pela adesão de cem homens justos e corretos.

Sem dúvida o jarl estava rezando e agradecendo a Deus. E o bispo chegou mesmo a notar uma ou duas lágrimas no seu rosto endureci­do e marcado pela guerra. Esse rosto, caracterizado por um queixo bem retangular, representava a imagem de Birger Jarl[1] que assustava os homens, tanto religiosos quanto laicos.

Os cavaleiros pararam a um canto do acampamento e dois deles desceram dos seus cavalos enquanto de todos os lados se esticavam mãos voluntárias, prontas para segurar as rédeas dos animais.

O cavaleiro Sigurd era um homem idoso, mais velho do que o jarl, mas avançou pelo meio da multidão de arqueiros e lanceiros, de cabe­ça erguida, como o grande combatente que sempre fora. O seu cabelo caía em mechas longas e grisalhas até os ombros, e o elmo pendia, como em todos os forsvikianos, de uma corrente presa a um dos ombros.

Quando o jarl se aproximou de Sigurd, com o bispo Kol atrás, ninguém queria acreditar que o jarl acabava de se levantar e que rezara ajoelhado. Ninguém jamais tinha imaginado o jarl de joelhos. Ele parou junto à luz de uma fogueira e aguardou tranqüilamente a che­gada do cavaleiro Sigurd. Quando os dois ficaram frente a frente, era como se nenhum deles quisesse falar primeiro, como se estivessem apenas medindo um ao outro, os rostos serenos e imóveis, mas os olhares bem vivos.

— Se chegou aqui para cear e beber cerveja, Sigurd, você escolheu uma hora muito especial — saudou o jarl em voz alta de modo que todos pudessem ouvir. — Mas nem por isso você é um visitante menos bem-vindo — acrescentou ele após um curto momento de silêncio.

— Tenho muito prazer em aceitar as suas boas-vindas, Birger jarl — respondeu Sigurd do mesmo modo cerimonioso. — Mas espero que você tenha muita cerveja no acampamento, porque nós somos muitos e cavalgamos acelerado para que pudéssemos chegar a tempo.

— De onde vieram e quantos são? — perguntou o jarl sem sequer mover um músculo do rosto.

— Somos doze esquadrões, à maneira forsvikiana de contar. Somos cento e noventa e dois homens. Nós nos reunimos em Lena e de lá cavalgamos até aqui, tal como a honra nos obrigava — respon­deu o cavaleiro Sigurd ao mesmo tempo que o seu rosto, que parecia de pedra, começava a abrir um largo sorriso.

Isso contagiou de imediato o jarl, que jogou para o ar toda a ati­tude cerimoniosa e com três largas passadas se dirigiu ao amigo e o abraçou longamente.

— Você e os nossos amigos chegaram com a vitória, meu caro Sigurd — murmurou o jarl de modo que ninguém mais, além de Sigurd, pudesse ouvir. — É claro que temos muita cerveja no acampa­mento. Mas vamos precisar de muito mais para saciar a nossa sede amanhã, na hora do almoço, quando tudo já estiver terminado.


                     O tempo das Viúvas

A MARAVILHOSA VITÓRIA de Gestilren, no ano da graça de 1210, exigiu um preço alto. Restaram muitas viúvas e, mais ainda, órfãos de pai. Os anos de luto passaram rápido, mas os momentos de dor demo­raram muito mais tempo a passar.

Para o jovem Birger Magnusson a dor foi muito mais profunda e aguda do que para os seus irmãos, ainda que eles tivessem ficado órfãos, tanto quanto ele próprio, e ainda que também tivessem perdi­do o seu amado e respeitado avô, Arn.

Mas o próprio Birger tinha estado em Gestilren, e, apesar da sua pouca idade, havia recebido a honra de cavalgar com a bandeira do reino entre o rei Erik Knutsson e o marechal Arn Magnusson. Dessa forma Birger viu o seu próprio pai, Magnus Månesköld, junto com uma grande quantidade de folkeanos mais velhos, cavalgar diretamen­te para a morte. A horrível cena foi muito rápida, mas na sua memó­ria ficou o pesadelo de ver todos aqueles amigos mais velhos, avançan­do a trote, montados nos seus cavalos com suas pesadas armaduras de ferro.

O rei e o marechal, seus comandados diretos e os estafetas, além de um esquadrão de cavaleiros ligeiros de Forsvik, encontravam-se todos no cimo de um morro com boa visão de todo o campo de batalha. Todos viram ao mesmo tempo aquilo que inevitavelmente estava para acontecer e nada podiam fazer, a não ser, em silêncio, o sinal-da-cruz.

Os folkeanos mais velhos, que não haviam passado pelo aprendi­zado em Forsvik como seus filhos, tinham partido para o ataque sem aguardar o sinal da bandeira vermelha dado pelo marechal. Talvez estivessem desejosos de entrar em combate e, sem dúvida, nenhum deles reconheceu o perigo de atacar cedo demais.

Aqueles que cavalgavam lá embaixo, confiantes e decididos, ao encontro dos cavaleiros dinamarqueses, nunca chegaram a ver a gran­de nuvem negra que crescia por trás deles como um sinal de morte. Eram dois mil dos seus próprios arqueiros de longa distância que no momento previsto haviam disparado a sua primeira salva de flechas e, depois, rapidamente, dispararam a segunda e a terceira. Mais da meta­de dos cavaleiros folkeanos já tinha avançado demais e foi abatida. Eles caíram como anjos de morte e destruição justo no momento em que deviam entrar em colisão com o inimigo dinamarquês. Morreram por altivez e falha de entendimento.

Isso não contribuiu de jeito nenhum para que a dor fosse menor. Nesse momento, o jovem Birger estava no topo do morro, junto do marechal, bem longe de ser o único dos jovens forsvikianos a ficar órfão.

Mas todos só choraram depois da vitória.

 

Quando o ano de luto terminou, pouco antes da colheita, que prome­tia ser especialmente boa, o jovem Birger viajou de volta para Forsvik, apesar de a sua mãe, Ingrid Ylva, a quem apenas alguns jovens e velhos ousavam contrariar, tentar umas vezes convencê-lo, outras vezes obrigá-lo a ficar com os seus irmãos em Ulvåsa. Ela entendia que a sabedoria dos clérigos — com quem ele podia aprender mais e melhor em Ulvåsa, já que tinha acabado de contratar mais um, de Skänninge — valia mais para os seus filhos e para o que eles poderiam realizar no futuro do que a arte da guerra e a arte financeira, ensinadas em Forsvik.

Birger recusou-se a ceder aos argumentos da mãe. Defendeu-se dizendo que já tinha aprendido o suficiente com os padres, até os cinco anos de idade, e que falava e escrevia bem tanto na linguagem da Igreja quanto em francês. E já sabia mais do que o suficiente sobre as Escrituras. Mas ainda não tinha sido armado cavaleiro e com menos do que isso ele não se sentiria satisfeito na vida. Sua mãe assegurava que já estava escrito ser alçado no futuro a uma posição muito supe­rior à de cavaleiro, mas Birger não ligava para isso. Dizia que ninguém podia adivinhar o futuro, por muito que as pessoas viessem falar e cochichar nos ouvidos da sua mãe. E mesmo que assim fosse, os pode­res superiores do reino exigiam muitos conhecimentos da arte da guerra tanto quanto da sabedoria dos padres.

Mais tarde, quando saltou do píer de Ulvåsa para uma das embar­cações de carga que faziam regularmente a viagem entre Linköping e Lödöse, começando assim o caminho para Forsvik, Birger pensou que, afinal, a sua mãe tinha desistido de impor a sua vontade com mais facilidade do que ele supunha. Mas para Forsvik era o caminho, um lugar pelo qual sentia uma grande atração, maior do que por qual­quer outro em especial depois desse doloroso ano em que o que mais houve foram funerais de amigos e parentes.

Era um anoitecer ameno e tranqüilo, de final de verão, quando o barco se aproximou de Forsvik, notando-se apenas uma leve brisa vinda do oeste que mal dava para arrepiar a superfície das águas do lago no caminho para os píeres. Muito antes de a embarcação atracar, sentia-se a brisa trazendo consigo os aromas peculiares de Forsvik, aro­mas que não se sentiam em nenhum outro lugar, nem na Götaland Ocidental nem na Oriental. Esses odores valiam como sagas que se contavam sobre países longínquos, de madeiras queimadas nos fornos dos ferreiros e dos fabricantes de vidro, o cheiro de pães recém-assados em fornos de barro a lenha, que pareciam colméias assentadas sobre o solo, odores atraentes das fogueiras onde se preparavam suculentos pedaços de cordeiro, temperados com aquelas espécies de cominho e de pimenta que só existiam em Forsvik e o aroma ainda mais forte dos canteiros de rosas plantadas pela sua avó, Cecília Rosa. E junto com tudo isso vinham aqueles sons típicos de Forsvik, quase um tipo de cantata com origem da atividade dos ferreiros, dos vidreiros sopradores e das serras operadas por madeireiros que no seu vaivém pareciam provocar gritos agudos de almas perdidas. Isso só poderia ser Forsvik. Era lá que ele havia chegado uma vez, mal tinha feito os seus cinco anos de idade, para aprender. E foi lá que havia passado a maior parte da sua vida. Por isso mesmo, Forsvik tinha sido muito mais o seu lar do que Ulvåsa, do outro lado do Lago Vättern.

Birger saltou ágil para terra bem antes de a embarcação ter atraca­do ao cais. Colocou o manto sobre a espada e pulou do estrado, longo e largo, que estava sendo lançado, e ainda pela metade, na direção do solo firme.

Era como se tivesse chegado a uma pequena cidade onde ninguém ligava para qualquer forasteiro, nem mesmo para um folkeano de manto azul, já que todos os jovens em Forsvik se vestiam dessa manei­ra. E como em qualquer outra cidade, todas as pessoas estavam ocu­padas em fazer alguma coisa. Carregavam sacos de carvão nos ombros para os fornos dos ferreiros, areia em carrinhos para os fornos das vidrarias ou acomodavam pratos de cobre e vasos de barro nos cais superiores, a fim de abrirem espaço para a carga que acabava de che­gar com o último barco que nesse dia atravessou o Vättern. Havia ser­viçais com grandes travessas de madeira cheias de pães frescos, outros carregando peças de carne trazidas do matadouro para a cozinha, e no meio de toda a pressa escutava-se um palavreado em línguas estranhas que apenas eram faladas em Forsvik. Birger parou por um momento, quieto, encostado à esquina de uma casa que tremia, quase impercep­tivelmente, por causa das grandes rodas de moinho que giravam, chiando, lá dentro. Ele respirava e escutava, em Forsvik. E era como se não tivesse estado longe daquele lugar por tanto tempo assim. Do outro lado da aldeia, no campo de treinamento, ouvia-se o embate dos cascos dos cavalos no solo.

Johannes Jacobian, que tinha a mesma idade de Birger, foi o pri­meiro a descobri-lo e logo correu para um longo abraço. E em segui­da, enquanto se dirigiam, conversando vivamente, em direção à câma­ra de Cecília Rosa, ficou claro que nada de mau tinha acontecido em

Forsvik naquele ano que terminara. Era como se o tempo tivesse fica­do em suspenso e nenhuma guerra houvesse ocorrido.

Johannes, filho do mestre das oficinas Jacob Wachtian, falava uma mistura de muitas línguas quando ficava excitado. A sua era uma lin­guagem que surgiu entre as crianças em Forsvik, que incomodava quem não estivesse habituado e era incompreensível para quem che­gasse de fora. Apenas na curta caminhada até a sala de contas de Cecília Rosa, Birger foi obrigado a pedir duas ou três vezes a palavra equivalente na língua dos francos ou em latim para se esclarecer. Diante da porta da sala ficou difícil a separação, visto que Johannes começou a contar qualquer coisa, que certamente podia ser importan­te, mas não era fácil de entender, de como se tinham melhorado as ser­ras em Forsvik, de modo a ser possível obter o dobro da produtivida­de diária. Mas quando Birger, finalmente, começou a dispor o seu manto da forma correta e a alinhar na cintura a sua espada, inclinando-a sob o braço esquerdo, Johannes entendeu rapidamente o sinal e se despediu com a promessa de que no dia seguinte iria lhe mostrar as novas serras.

Ao ficar sozinho, Birger permaneceu imóvel, de cabeça baixa, como se estivesse rezando. Depois respirou fundo, empurrou a pequena porta de madeira rústica e entrou na sala de contas da sua avó.

Ela estava sentada de costas para ele, com uma pena de escrever na mão, inclinada sobre os seus livros de contas. Seus cabelos caíam pelas costas em uma longa e grossa trança agora totalmente prateada e gri­salha. Já não havia nem um único fio dos cabelos ruivos do passado. Sem pressa, ela pousou a pena na mesa, enquanto que, com a outra mão, afastava o véu negro de viúva e se voltava com uma expressão no rosto, nem inamistosa nem amigável, já que não gostava nada de ser perturbada na hora de fazer as suas contas.

Mas logo sua expressão se modificou quando viu o neto. Levantou-se, empalideceu e levou a mão à boca como se quisesse aba­far um grito. Birger apressou o passo e abraçou-a. Segurando-a firme­mente, balançou-a, enternecidamente, sem dizer palavra.

— Você devia ter anunciado a sua vinda, meu amado neto — disse ela finalmente, ao mesmo tempo que, suavemente, o afastava do seu corpo e apontava para um banco forrado de couro para visitantes e, um pouco insegura, se sentava de novo à sua mesa onde fazia as contas.

— De forma alguma foi a minha intenção perturbá-la ou assustá-la com a minha surpresa, querida avó — reagiu Birger, constrangido, ao sentar-se, compondo o manto sobre os ombros.

— Birger, Birger... eu jamais pensaria que a sua intenção fosse ruim ou a de me assustar — disse ela quase num murmúrio. — Mas é que, quando me voltei, com os meus olhos ainda enevoados de olhar as contas, e vi você, de pé, com o corpo escurecido em contraste com a luz, não era você que eu via, Birger, mas sim ao meu amado Arn. Eu vi o manto e a espada, a luz refletindo na cruz dourada, e, então, por um momento, pensei que era ele com a espada que você agora segura em suas mãos.

— Eu empunho esta espada com muito orgulho — murmurou ele com o olhar humildemente fixo no chão. — E nada do que pos­suo me é mais valioso do que esta espada, como a minha avó certa­mente pode compreender.

— A esse respeito não existe qualquer sombra de dúvida no meu coração — respondeu ela num tom de voz amistoso, em que o riso e o sério se misturavam em partes iguais. — No entanto, acho bom que cuide dessa espada com todo o carinho, que a use em cerimônias espe­ciais que a exijam, mas talvez não em qualquer pequena viagem que faça. Se você a perder, jamais poderemos fazer outra igual.

— Eu prefiro morrer a perder esta espada — respondeu ele emo­cionado.

— Tudo bem — reagiu ela de imediato, sorrindo e achando graça —, essa espada é de tamanho sete e, se bem me lembro, o seu tama­nho é maior, é cinco. Vamos corrigir isso até terminar o dia amanhã, prometo. Mas você devia ter me avisado antes da sua chegada, porque como é que eu vou agora organizar a festa de boas-vindas para o meu mais amado neto?

— Querida avó, a senhora não precisa organizar festa nenhuma. Eu não vim a Forsvik para beber cerveja em quantidades especiais, mas para, sem demora, ficar ao seu serviço — respondeu Birger de cabeça erguida e com readquirida segurança.

— A meu serviço? Essa é boa! — disse Cecília Rosa, rindo e olhando para ele com uma expressão muito mais de amor do que de troça. — E que espécie de serviço você pretende fazer? Ferreiro, faze­dor de espadas, serrador? Moleiro, tecelão, madeireiro ou vidreiro? Ou talvez batedor de chapas de cobre ou caçador? Pescador, talvez? Cocheiro ou tratador de cavalos? Nisso, certamente, você funcionaria muito bem, mas já não tão bem como cozinheiro. Não, diga-me antes que eu morra de curiosidade. Qual o serviço?

— Eu pensei em servir no picadeiro de Forsvik — murmurou Birger, enrubescido.

— Ah, no picadeiro. Como é que eu não pensei nisso! Claro, lá há espaço de sobra. Estão lá apenas os cavaleiros Sigurd e Oddvar, que, atualmente, moram aqui em Forsvik. Evidentemente é lá que você pode morar. O seu avô Arn lhe deu entrada para o picadeiro, disso eu me lembro bem. Mas o que é que você pretende fazer, além de morar aqui?

— A senhora minha avó sabe muito bem o que posso fazer — murmurou Birger. — Eu passei mais de dez anos aprendendo em Forsvik, desde os meus cinco anos de idade. Tão bom quanto o cava­leiro Bengt era não sou nem de longe. Nem também quanto os cava­leiros Sigurd e Oddvar, mas posso aprender com eles. E posso ensinar aos mais jovens. Foi nisso que eu pensei ao convencer a minha mãe, Ingrid Ylva, a deixar que eu voltasse para Forsvik.

— Você fala muito bem, meu querido Birger — respondeu Cecília Rosa, pensativa. — Isso me faz lembrar de algumas pessoas na sua família. Você não se dobra diante de troças, e isso é bom. Mas agora está na hora de você saber que muita coisa mudou por aqui. Nos anos antes da guerra, tínhamos quase cem jovens ao mesmo tempo, desde garotos lixeiros até jovens filhos de senhores da terra. Mas agora são muito menos da metade. E daqueles garotos em torno de cinco anos de idade temos apenas seis ou sete. E é bom que você saiba que muitos dos nossos mais jovens nem sequer são folkeanos.

— Então o que são? — perguntou Birger, de sobrancelhas levan­tadas.

— São filhos de escravos libertos, de Forsvik ou estrangeiros — respondeu Cecília Rosa de forma breve. — Você vai querer ter esses garotinhos como aprendizes?

— Quero sim, com certeza — respondeu Birger. — Muitos dos liberados ou estrangeiros são tão bons quanto os folkeanos e, aliás, o meu querido avô transformou muitos liberados de Forsvik em folkeanos, aceitando-os na nossa assembléia. É isso que eu gostaria de fazer de novo.

— Fico orgulhosa em saber disso, Birger — disse Cecília Rosa, de repente pensativa. — Agora eu sei com quem você se parece mais do que ninguém. Começa o seu serviço amanhã e vai morar no dormitó­rio dos cavaleiros. Amanhã vou lhe dar tudo que vai precisar, inclusi­ve uma nova espada para treinos e outra para torneios, de modo que possa pendurar aquela que agora segura nas mãos entre os troféus e escudos conquistados de inimigos, reunidos ali à saída desta sala. Mas por agora, nesta tarde, vamos festejar a sua chegada e, chega de con­versa, me dê um abraço novamente!

 

A primeira semana de Birger como professor em Forsvik foi muito mais difícil do que ele esperava, a ponto de chegar a pensar se não tinha feito uma asneira. Passou a ser sua responsabilidade o treina­mento dos mais jovens, treinamento que começava logo depois da oração matinal, ao nascer do sol, e continuava até o meio-dia. De tarde os menores iam ter aulas com o monge na pequena sacristia da igreja, mas Birger continuava fazendo os treinamentos muito mais difíceis, que eram ministrados pelo cavaleiro Oddvar, junto com os jovens que tinham a mesma idade do próprio Birger e que estavam no último ano de aprendizado em Forsvik.

Quando estava com os menores, ele precisava aprender rápido a ter prudência, visto que houve muito choro e grandes gemidos na decorrência do que fazia doer. Depois, na parte da tarde, na pior das hipóteses, um pouco empanturrado com o que havia comido com muito apetite durante o almoço, sempre bem servido em Forsvik, Birger ia parar entre aqueles aprendizes da mesma idade e tinha que treinar em dobro. Nenhum deles mostrava qualquer prudência ao treinar com Birger, só porque ele pertencia à família mais respeitada, era filho de mãe com parentesco real e neto de Arn Magnusson, além de aparentado também com os jarles de Bjälbo. Antes pelo contrário. Era como se os outros jovens se sentissem honrados em poder acertar em Birger com a espada e a lança, em poder derrubá-lo da sela no campo de treinamento e ter a sorte de lhe causar algum dano, como fazer com que o escudo lhe batesse no queixo.

Birger recebeu um bom aposento no alojamento dos cavaleiros, mas não agüentava ler nem uma linha em qualquer dos dois livros romanos a respeito da arte da guerra que o avô Arn deixara, porque todas as noites caía na cama e adormecia imediatamente, com todos os membros doloridos. Do mesmo jeito, também não conseguia con­versar muito com os cavaleiros Oddvar e Sigurd, que estavam no comando de Forsvik, em tudo o que dizia respeito a manobras de guerra. Birger suspeitava que era a sua mãe que estava por trás dessa dureza toda, que tinha falado com a sua sogra e amiga Cecília Rosa e que a querida avó, em seguida, por sua vez, falara com os dois cavalei­ros. Mas essa suspeita atiçou ainda mais a sua forte decisão e nem um pouco o levou a pensar em desistir. Antes, levou-o a cerrar os dentes e a apresentar-se bem cedo pela manhã, todos os dias, para um novo ciclo de tarefas.

No entanto, fez uma oração de agradecimento quando, na segun­da semana, surgiu uma possibilidade de interrupção. O cavaleiro Bengt Elinsson, de Ymseborg, que era não só folkeano, tendo percor­rido o longo caminho de dócil e solitário garotinho até ser armado cavaleiro, como também se transformou no mais duro e forte comba­tente de todo o reino, chegou um dia na companhia de dez homens do seu próprio exército. Ele tinha uma incumbência a desempenhar na assembléia de Askeberga e, por isso, queria primeiro melhorar as armas e os arreios dos seus homens e, além disso, contratar mais seis folkeanos, de preferência do mais alto nível de parentesco. Foi aí que Birger foi escolhido em primeiro lugar. O cavaleiro Bengt precisava ter um esquadrão completo e, segundo a perspectiva de Forsvik, qual­quer esquadrão deveria ser composto de dezesseis homens, tantos quantos se exigiam para uma representação completa na assembléia. A questão a discutir era uma disputa de terras entre o cavaleiro Bengt e um dos seus vizinhos, e ele disse que preferia resolver o assunto numa assembléia do que com a espada. Embora tivesse dito isso não por medo de enfrentar qualquer espada, visto que ninguém no reino era mais forte em armas do que o cavaleiro Bengt. Todos sabiam que o próprio Arn Magnusson considerara Bengt Elinsson como o seu melhor combatente.

Quando o esquadrão de Forsvik, no dia seguinte, se aproximava do local da assembléia de Askeberga, ao som das batidas dos cascos dos cavalos no solo e espalhando as águas do Rio Tidan para os lados ao atravessá-lo, todos os que já estavam reunidos em assembléia fica­ram mudos de espanto e esqueceram completamente por um momen­to os ladrões que na hora iam ser enforcados. Qualquer esquadrão de Forsvik representava uma visão imponente. Todos os folkeanos se ves­tiam do mesmo modo, se cobriam com o manto azul e usavam as ves­tes de armas em azul e prata. Os arreios negros rebrilhavam e seus cavalos eram mais vivos e animados, de uma maneira que só os ani­mais de Forsvik revelavam. E ainda que em tempos passados houves­se homens que cuspiam para o lado e desdenhavam desses cavalos estrangeiros, ninguém atualmente sequer pensava nisso. Um garanhão novo de Forsvik atingia um preço que qualquer fazenda média e mui­tos gostariam de pagar, mas poucos tinham dinheiro para isso.

Birger, que cavalgava na frente, ao lado do cavaleiro Bengt, já que os dois eram os únicos do esquadrão com direito a usar o símbolo fol­keano nas costas do manto azul, se mortificava por enrubescer e não se comportar fria e tranqüilamente como o cavaleiro Bengt, diante de todos os olhares deslumbrados. Que essa chegada à assembléia fora montada para deixar uma forte impressão não era difícil de imaginar. Mas o que Birger não podia entender era o que o cavaleiro Bengt pre­tendia com essa demonstração de força.

Enquanto os forsvikianos desmontavam e retiravam as selas dos cavalos, começando a circular entre amigos e conhecidos, cum­primentando-os, os trabalhos da assembléia retomaram o seu curso de novo. Os dois ladrões foram enforcados, esperneando e praguejando. E um deles acabou defecando nas calças antes de morrer, o que provo­cou júbilo e muitos risos, embora isso fosse algo que normalmente acontecia.

Birger não conhecia ninguém na assembléia. Por isso manteve-se apenas ao lado do cavaleiro Bengt, cumprimentando todos de manei­ra respeitosa, embora breve e friamente, sempre que eles chegavam perto do cavaleiro Bengt, se curvando e demonstrando sua subser­viência. O próprio homem de leis, Rudrik de Askeberga, foi até ele, se desculpando por não poder levantar de imediato a questão em que o cavaleiro Bengt estava diretamente interessado, visto que seria difícil interromper o processo em andamento dos ferros em brasa. Mas o cavaleiro Bengt sorriu apenas e com um gesto indicou que os traba­lhos e as disposições da assembléia deviam prosseguir como pensado, sem favorecê-lo. O homem de leis, curvando-se e bajulando, virou-se e voltou para a tribuna de pedra de onde dirigia o tribunal e onde se encontrava no momento em que os cavaleiros forsvikianos haviam perturbado com a sua chegada o funcionamento da assembléia, sem que isso parecesse ser a sua intenção. Mas que era mesmo essa a inten­ção, disso Birger não tinha dúvidas.

Em relação, porém, a outras coisas, ele tinha, sim, muitas dúvidas. Como, por exemplo, a necessidade de os ânimos serem exaltados e por que um homem de leis podia bajular e se comportar como subservien­te diante de alguém na assembléia, lugar em que era considerado sem­pre como o mais importante. Birger olhou disfarçadamente para o cavaleiro Bengt, mas não conseguiu ler no seu rosto endurecido nenhuma resposta para as suas questões.

Birger tentou então manter os braços cruzados sobre o peito, do mesmo jeito que o cavalheiro Bengt fazia, e assumir também uma expressão no rosto tão impenetravelmente dura quanto a dele. Mas ao ficarem em silêncio, lado a lado, por alguns momentos, Birger não conseguiu conter a sua curiosidade e acabou perguntando:

— Desculpe-me, cavaleiro Bengt, se vou parecer até um pouco idiota — começou ele cautelosamente —, mas embora eu seja forsvi­kiano e saiba muito mais do que esses homens aqui reunidos em assembléia, há algumas coisas que, de fato, não entendo.

— Se considerarmos que Forsvik é o Reino dos Céus, você se encontra agora aqui embaixo, na Terra — reagiu o cavaleiro Bengt severamente. — Nós nos encontramos entre miseráveis e injustos, e a respeito deles você não foi instruído pelo seu avô e meu mestre. Portanto, pode perguntar sim que eu irei esclarecê-lo no que puder!

— Como é que um homem de leis pode se humilhar tanto quan­to esse Rudrik fez diante de nós? — começou Birger, excitado.

— Porque ele é um miserável — respondeu o cavaleiro Bengt com um sorriso de desprezo. — O seu respeito perante dezesseis espadas forsvikianas e as nossas dezesseis lanças é muito maior do que o seu respeito pela lei.

— E quanto aos ferros em brasa?

— Alguém vai ser ultrajado, torturado e enforcado. Essa é a maior de todas as injustiças que acontecem aqui na assembléia — respondeu o cavaleiro Bengt, entre dentes. — Não é uma imagem tão divertida quanto o enforcamento de ladrões e eu não vou ficar zangado se você sair daqui para urinar por longo tempo quando isso acontecer.

— Eu sou folkeano e não posso demonstrar medo — respondeu Birger em voz baixa.

— Nós somos ambos folkeanos e não receamos nada que seja humano, não é isso! — reagiu o cavaleiro Bengt, veementemente, e, voltando-se para Birger, segurou-o pelos ombros e olhou bem nos seus olhos, acrescentando: — Mas podemos demonstrar o nosso desprezo por meio da nossa saída daqui, quando a lei for desrespeitada.

Ou podemos ficar e você aprenderá algo que jamais vai esquecer a res­peito do que é legal e do que é ilegal.

Birger tinha dificuldade em decidir-se. Convenceu-se de que aquilo que iria acontecer era algo que precisava aprender a reconhecer e, portanto, devia permanecer no lugar. Mas se o próprio cavaleiro Bengt entendesse por desprezo virar as costas, ele não ficaria em má companhia se também fizesse o mesmo.

Entretanto, uma jovem, Yrsa, apareceu conduzida e vestida com apenas uma camisola, os braços nus amarrados nas costas. O cabelo devia ser louro-claro e sedoso se não tivesse sido retorcido e sujo por pancadas, fios de sangue seco e terra, assim como o seu rosto seria dos mais bonitos se não tivesse sido besuntado com excremento de vaca.

O homem de leis, Rudrik, apresentou o caso em voz alta e isso espalhou uma onda de risos e um murmúrio geral de expectativa. E então o homem de leis, num tom monótono, começou a enumerar o que se relacionava com a causa e como se iria chegar a uma decisão na assembléia segundo as leis da Götaland Ocidental e dos nossos ances­trais e segundo o julgamento de Deus, Nosso Senhor.

Yrsa era escrava de presente. Isso porque seu pai ofereceu a si pró­prio como escravo em pagamento de uma dívida que não pôde pagar. Na fazenda onde ela se encontrava atualmente tinha havido uma festa e vindo gente de fora. Entre os visitantes, um jovem senhor, Svante, que foi quem exigiu uma decisão tomada em assembléia. Três moedas de ouro tinham sido roubadas na fazenda Jävsta, em que Svante se encontrava entre os visitantes. A escrava Yrsa tinha apontado Svante como o ladrão e foi entre os pertences dele que encontraram as três moedas de ouro. Svante se defendeu dizendo que pertencia a uma família nobre e não podia ser sequer suspeito de tal infâmia, como era a acusação de roubo, mas que, em contrapartida, fora a escrava que falsamente o acusara, aquela que montara a armadilha insidiosa, cau­sadora para ele de tanta infelicidade. Entretanto, jamais a palavra de uma escrava poderia ser aceita, se atingisse um homem livre. E embora a acusação já estivesse manchando a sua honra, Svante exigiu a deci­são de Deus e se ofereceu para deixar-se enforcar caso a sentença fosse contra ele. A uma tão nobre proposta tinha sido impossível negar pro­cedimento.

Se Yrsa fosse inocente e o nobre Svante, culpado, Deus Nosso Senhor teria, certamente, que observar Yrsa nessa provação dolorosa que se seguiria. Se Yrsa agüentasse quatro barras de ferro em brasa nos seus braços durante dez passos, sem sentir qualquer dor, então Deus teria demonstrado que ela era inocente. E, nesse caso, seria tirada a vida de Svante, de imediato, e ele seria enforcado como ladrão.

Se Deus, ao contrário, mostrasse que Yrsa era a culpada, ela perde­ria a vida como ladra e seu pai e seu irmão seriam obrigados a pagar ao nobre Svante uma pequena compensação pelo desconforto que lhe fora causado e ele seria liberado para sempre das falsas acusações.

Birger não pudera nem se mexer do lugar. Petrificado, permane­ceu na sua posição, escutando as explicações do homem de leis sobre o caso que só poderia terminar, segundo toda a lógica, de uma única maneira.

— Diz-se que, em tempos antigos — sussurrou o cavaleiro Bengt —, alguns acusados passaram por essa provação, e aqui e agora esta­mos, sem dúvida, diante de uma inocente. Afinal, todos entendem a situação. Mas olhem só para Svante. Está tremendo e totalmente páli­do. De qualquer maneira, parece que está com forte receio diante da boa vontade de Deus.

— Ele é o culpado, segundo o que se ouviu e o que transparece agora — sussurrou Birger de volta. — Se Deus, Nosso Senhor, ou a Sua Santa Mãe, ou ainda os arcanjos e os santos, alguma vez quiseram se apiedar de algum inocente, esta é a hora e o lugar! Vamos rezar por ela!

Birger fechou os olhos e pediu à Mãe de Deus para que Ela tives­se piedade e com um dos Seus milagres fizesse justiça onde a lei dos homens se mostrasse incapaz. Quando voltou a abrir os olhos, após a sua oração, viu o cavaleiro Bengt ainda ao seu lado tão imóvel quanto antes, parecendo não ter seguido de jeito nenhum a iniciativa de Birger de pedir pela inocente.

Ela própria estava rezando fervorosamente agora que já tinham desamarrado os seus braços desnudados e a dirigiam em direção aos ferros em brasa. Todos os olhares a acompanhavam, exceto os de Birger. Porque ele observava intensamente o ladrão Svante, que, dei­xado sozinho, tinha se ajoelhado e rezava a Deus tão fervorosamente quanto Yrsa. Birger achava que jamais iria esquecer a imagem de um ladrão pedindo a Deus para deixar que uma inocente fosse atingida por uma injustiça em dobro e um culpado fosse absolvido.

Eles a levaram para diante das forjas, do padre da paróquia, que sussurrava suas rezas, e de dois ferreiros que, com a ajuda de foles, já tinham conseguido colocar em brasa os pedaços bem pesados de ferro, que de tão quentes já estavam ficando brancos. Primeiro Yrsa se ajoe­lhou de novo e pediu mais uma vez a Deus pela sua salvação. Ao mesmo tempo, um ou outro insulto era jogado sobre ela e risos e pia­das dos participantes se ouviam das bancadas mais atrás.

Então ela se levantou com um brilho no olhar e grande espírito de decisão, quase com uma expressão sorridente, de convencida, no rosto. E estendeu sem medo os seus braços desnudados para receber o fardo de Deus.

Os ferreiros usaram duas grandes tenazes e se complicaram um pouco antes de colocar todas as quatro barras de ferro em brasa, de uma vez, no colo dela. Ela sorriu, então, e dirigiu o olhar para o céu, parecendo que os ferros, à primeira vista, não a tinham ferido.

Ela começou a andar, primeiro, direita, mas logo aos tropeços, até que se ouviu um silvo agudo vindo da carne queimada dos seus bra­ços. Logo ela tombou e caiu, gritando depois ainda mais, maldizendo o Deus que deixou que ela morresse, em vez de um simples ladrão. E disse ainda outras palavras que não puderam ser ouvidas. Quatro homens se apressaram na sua direção, levando, entre sorrisos, uma tira fina de couro de boi molhada com água salgada. Colocam a tira à volta do pescoço dela e a arrastaram, chorando e gritando de dor, para junto da árvore onde já balançavam ao vento os corpos dos dois ladrões. Jogaram a tira de couro por cima de um dos ramos da árvore e começaram, lentamente, a içá-la. Ela esperneou e gritou, o que tor­nou o prazer dos assistentes ali reunidos em assembléia ainda maior. Ela tentou ainda colocar os seus dedos entre a tira de couro e o pesco­ço, mas apenas conseguiu se arranhar e sangrar nesse esforço. Depois foram içando o seu corpo, até que ela ficou apenas com as pontas dos pés no chão, já balançando. Descalça, com os pés nus e sujos, deixa­ram que ela ficasse nessa posição por alguns momentos. E logo puxa­ram para cima o seu corpo.

Yrsa morreu lentamente. E quando o seu corpo, finalmente, ficou parado no ar, um dos braços queimados caído ao longo do corpo, o outro ainda com o dedo preso sob a tira de couro, os homens foram se afastando. Os amigos de Svante se aproximaram dele, abraçaram-no e ele como que acordou e logo começou a rir do divertido espetá­culo que a ladra-escrava havia apresentado.

Mas justo no momento em que o homem de leis se preparava para dar início ao caso seguinte, alguém gritou alto, esganiçado, e apontou para a árvore dos condenados. A Yrsa enforcada começou a mexer-se como se voltasse à vida. O seu corpo apresentava convulsões e revirou-se várias vezes como uma serpente, dando várias voltas sobre si mesmo antes de aquietar-se de novo. Uma parte dos homens presentes empa­lideceu, mas outros logo disseram que assim acontecia às vezes com os enforcados e que isso não era nada de mais. E com isso seguiu-se em frente com os assuntos da assembléia.

Birger, com lágrimas nos olhos, continuava ao lado do cavaleiro Bengt de quem nem a expressão mudou com o que viu. As lágrimas de Birger não tinham nada a ver com o enforcamento de uma escrava. Aquilo que ele lamentava e não podia entender era Deus ter podido ver e deixar que essa injustiça acontecesse. Ainda que a inocente Yrsa agora estivesse, com toda a certeza, no Paraíso, gozando da justiça extrema e mais elevada, algo que certo ladrão chamado Svante não podia esperar. Esse pensamento tornava fácil uma reconciliação. Mas por que Deus não demonstrava uma compaixão maior pelos seres humanos, por que Ele os deixava continuar vivendo na escuridão e com falsos credos?

De repente, distraindo Birger das suas reflexões sobre a falta de von­tade por parte de Deus em punir o mal, o cavaleiro Bengt sussurrou:

— Dizem que nós, os folkeanos, temos agora todo o poder no reino, mas se isto é poder, esse não é do meu gosto.

Sem explicar melhor o seu pensamento, o cavaleiro Bengt avan­çou em longas passadas para o centro da praça da assembléia para ouvir melhor, talvez porque acreditava ter chegado a hora de a sua causa ser discutida. Hesitantemente, Birger seguiu-o e se colocou de novo ao seu lado, com os braços cruzados sobre o peito, tal como ele.

O homem de leis, Rudrik, parecia ter ficado tão aliviado e satisfei­to depois do vivo espetáculo apresentado pela ladra Yrsa, que, possi­velmente por isso, resolveu ir em frente com a discussão de um caso que, de forma alguma, era aquele que interessava ao cavaleiro Bengt, um questionamento menor sobre terras. Em vez desse caso, apresen­tou um outro que lhe parecia ser também muito divertido. Foi assim, pelo menos, como ele se expressou.

O caso dizia respeito a uma disputa entre dois fazendeiros livres em que nenhum deles era superior ao outro. Um se chamava Guttorm, da fazenda Högesta, e o outro, Härje, o piolhento, da fazen­da Älvadan. A sua disputa era sobre um pedaço de terra no limite entre as suas fazendas. Não tinham chegado voluntariamente a qual­quer acordo, portanto havia que ser tomada uma decisão entre os pre­sentes na assembléia.

Enquanto os fazendeiros e homens livres tentavam avançar entre a multidão, o cavaleiro Bengt descobriu um homem na bancada mais afastada dos participantes que, de repente, com raiva, apontou, cha­mando a atenção de Birger.

— Aquele ali — disse ele em voz baixa, mas com manifesta indig­nação —, o homem que você vê com um manto azul gasto e quase sem cor, ele nós conhecemos. Pelo menos eu o conheço. Chama-se Erik Stensson e é folkeano como nós, mas pobre e sem terras. E, pior ainda, ele é forsvikiano.

— Por quê, nesse caso, ele não vem até nós, não procura os seus parentes e irmãos? — estranhou Birger, espantado.

— Porque ele não veio até aqui com a sua honra intacta — sussur­rou o cavaleiro Bengt. — Eu me lembro dele muito bem. Fui eu que lhe ensinei quase tudo o que ele sabe. É um pouco mais velho que você, mas talvez vocês nem se lembrem mais um do outro. E atual­mente ele prefere lançar vergonha sobre a sua espada!

— Isso a gente não pode tolerar! — disse Birger, com repentina veemência, o que levou o cavaleiro Bengt a rir, coisa que ele não fazia com muita freqüência.

— Vamos ver o que podemos tolerar — disse ele, ainda sorriden­te, lançando o seu braço protetor sobre os ombros do seu jovem e nobre parente.

À medida que a disputa entre os dois fazendeiros prosseguia, pare­ceu que, após algum tempo, feitos os pronunciamentos de ambos sob juramento, a decisão da assembléia iria favorecer Härje, o piolhento. Mas, então, a outra parte, Guttorm, de Högesta, ergueu o braço e logo se estabeleceu um silêncio de expectativa. Falou ele que um homem chamado de piolhento, embora dissesse que a palavra tinha a ver mesmo com piolhos e não com força, não era homem suficiente para merecer a sentença da assembléia. Isso porque sendo mesmo um piolhento ou coisa pior, um vira-lata sem coragem, um miserável, ele não merecia ganhar a parada na assembléia em face de um homem muito melhor.

A frase provocou muitos risos e sussurros animados, já que a dis­puta não iria terminar com a decisão do homem de leis, mas em san­gue. Aquele que aceitasse uma provocação daquelas, contra a sua honra, não merecia nenhum direito da assembléia. Ele não teria direi­to a testemunhar, nem seria um visitante bem recebido em qualquer casa. Mesmo que tentasse levantar qualquer problema a decidir pela assembléia, antecipadamente já perderia a causa, até antes de começar suas explicações.

O rosto de Härje, conhecido como o piolhento da fazenda Älvadan, ficou branco. Ainda teve que deixar passar um momento, ran­gendo os dentes, antes de responder como a situação exigia. O proble­ma seria decidido com sangue. E na espada. Afinal, ele era um homem de honra.

Todos olharam com tensa expectativa para Guttorm, de Högesta, que riu com desprezo antes de declarar que também ele queria resol­ver o caso de imediato. No entanto, como a lei prescrevia, ele vinha acompanhado de um espadachim que lutaria em seu lugar. Esse homem era Erik Stensson, um homem honesto e livre.

Ouviu-se um sussurro de expectativa passando pela multidão. Todos os olhares percorreram o auditório em volta, procurando o homem, até que Erik Stensson se levantou e veio para o círculo cen­tral da arena, entre as pedras brancas. Ao chegar, jogou o manto para o lado e se posicionou, pronto para desembainhar a sua espada. O homem de leis perguntou-lhe, então, qual era o nome dele, embora todos já soubessem, e se ele estava disposto a duelar pela causa de Guttorm. Erik Stensson anunciou o seu nome e disse ser um homem de honra que, de boa vontade, lutaria pela causa de Guttorm, de Högesta. E assim o homem de leis julgou-o capacitado para ser o ho­mem de Guttorm.

— Mas, então, não entendo mais nada — sussurrou Birger. — Por que o nosso companheiro assumiu a causa desse covarde? E, além do mais, nenhum camponês pode defender-se diante de um forsvikia­no, certo?

— Não, isso é tão certo quanto o sol nascer todas as manhãs — respondeu o cavaleiro Bengt. — Se o camponês Härje puxar sua espa­da contra qualquer um de nós, ele vai cair logo, num piscar de olhos.

— Portanto, nenhuma honra vai ser acrescentada ao nosso com­panheiro Erik Stensson — concluiu Birger. — Por que ele desce tão baixo?

— Pela metade do valor em pratas do que vale o terreno em dis­puta, penso eu — respondeu o cavaleiro Bengt. — O irmão dele her­dou tudo e ele ficou pobre. Hoje vive à custa da sua espada.

— Não foi para isso que ele passou tantos anos aprendendo e trei­nando em Forsvik — disse Birger, com um esforço notório para falar em voz baixa e respeitosamente. — Abatendo camponeses em assem­bléias ele está sujando a nossa honra!

— É exatamente como você diz, meu jovem — reagiu o cavaleiro Bengt. — Ele zomba da lei, como esse tal de Guttorm, de Högesta. Mas, neste momento, o receio é tão grande no peito do nosso compa­nheiro sem honra quanto nesse camponês miserável que em breve morrerá.

— Por quê? O que é que ele tem a recear?

— Ele nos viu. E agora não digo mais nada. Pense você mesmo. Veja e aprenda com o que vai acontecer, meu jovem companheiro.

O que aconteceu nesse momento já era esperado. O camponês Härje passou a andar em volta, perguntando a cada um se não estaria disposto a defender a sua causa. Contra o seu vizinho ele não teria dúvida em desembainhar a sua espada, e achava até que isso era corre­to e justo. Mas quem é que iria agora defendê-lo? Ofereceu metade da sua fazenda. Como ninguém se apresentava, resolveu oferecer a fazen­da inteira. Mas nenhum homem na assembléia teria a presunção de aceitar a oferta, nem que fosse pelo valor de dez fazendas se tivesse que duelar com um forsvikiano. A alegria do pagamento seria pouca após a sua morte.

Härje, o piolhento, era um homem nos seus melhores anos de vida, gordo, sem exagero, e bastante forte. E a espada ele a usava na lateral, ao longo das suas calças bem largas de pano vermelho tecido em casa. Mas no momento ele via a morte diante dos olhos e corria de um homem para outro na assembléia, cada um lhe virando as costas. Até que, de repente, ficou cara a cara com os dois recém-chegados forsvikianos, sendo que um deles era ninguém menos do que o cava­leiro Bengt, o maior combatente do reino.

Diante de Bengt e Birger, o desesperado camponês caiu de joelhos e pediu ardentemente para que eles tivessem piedade, que não podia ofe­recer mais do que a sua miserável fazenda, mas que merecia continuar vivendo, já que a sua causa era justa, assim tinha Deus por testemunha.

— Ter Deus por testemunha em uma causa discutida em assem­bléia vale muito pouco como acabamos de ver — respondeu o cava­leiro Bengt em voz alta, mas sem troça na voz.

O cavaleiro Bengt, pensativo, parecia ir dizer mais alguma coisa, mas foi interrompido pelo jovem Birger.

— Eu assumo a sua causa! Vou lutar por você! — exclamou Birger, desembainhando a sua espada e tocando com a face da lâmina em ambos os ombros do desesperado camponês, como se o estivesse armando para um grau superior.

Antes de o cavaleiro Bengt ter tido tempo para dizer qualquer coisa ou evitar a ação de Birger, este dirigiu-se para o círculo interno da assembléia, entre as pedras brancas, onde já se encontrava Erik Stensson à espera.

O homem de leis, Rudrik, não podia fazer outra coisa senão per­guntar o nome do combatente. E Birger respondeu dizendo que era Birger Magnusson, de Ulvåsa, filho de Magnus Månesköld e Ingrid Ylva e um homem de honra. E um sussurro de surpresa perpassou por toda a assembléia. O que estava acontecendo era uma coisa inespera­da e de grande significado. Sem dúvida, o que se esperava era uma dança curta, mas divertida, de um camponês desesperado que em breve perderia a cabeça diante de um forsvikiano. Mas o que iria acon­tecer era ver dois forsvikianos se enfrentando, e isso ninguém podia ter imaginado. E, ainda por cima, um deles, que parecia ser, certamen­te, o mais fraco, usava um manto com a marca do leão folkeano bor­dada a ouro nas costas. Matar um folkeano desse nível não era acon­selhável. Ninguém que matasse tal folkeano viveria mais do que três pores-do-sol seguidos.

Talvez por isso Erik Stensson, um forsvikiano que alugava a sua espada a quem pagasse mais, notoriamente, na hora, empalideceu.

Birger Magnusson estava longe de empalidecer. Antes, parecia estar ardendo, com as duas faces vermelhas. E no momento com a espada em punho, já se encontrava no meio da arena, de onde todos se tinham afastado, exceto ele e um dos homens de sua segurança, Erik Stensson.

— Erik Stensson, eu lhe ordeno agora a falar imediatamente sobre essa sua causa contra mim, Birger Magnusson — exclamou Birger em voz alta, esperando depois, por momentos, que se fizesse silêncio antes de continuar. — Você é forsvikiano, Erik. Eu também sou. Você jurou por sua honra que jamais iria puxar a sua espada contra outro forsvi­kiano. E se trair esse juramento você não vai viver por mais de três pores-do-sol. E isso você sabe!

Erik Stensson, o poderoso combatente, ficou quieto e com a cabe­ça baixa um bom momento, sem responder. Depois levantou o olhar e falou em voz alta e firme:

— Eu, Erik Stensson, não aceito esse duelo. Pouca honra me resta por desistir, mas mesmo assim não aceito esse duelo. A causa, portan­to, volta para você que me contratou, Guttorm, de Högesta!

Pronunciadas essas palavras, Erik Stensson virou as costas, colo­cou o seu gasto manto azul sobre os ombros e a espada, abotoou o manto no pescoço e, a passos largos, saiu do espaço cercado e da assembléia em direção ao seu cavalo, que tinha deixado amarrado um pouco mais longe.

Birger permaneceu no mesmo lugar, de espada em punho.

Guttorm, de Högesta, sofria agora o maior tormento do mundo. Se não entrasse no círculo, entre as pedras brancas, iria perder não só a sua causa como também a sua honra, e jamais poderia voltar a qual­quer assembléia como homem digno. Daí em diante, qualquer um teria direito a chamá-lo de piolhento e de vira-lata, as palavras que ele próprio tinha usado contra a outra parte, sem receio de ser condena­do por isso. Os seus vizinhos nunca mais iriam falar com ele. As suas filhas ficariam condenadas a nunca casar. Nunca mais seria convidado para festas de casamento ou qualquer velório. E ao seu próprio velório ninguém iria comparecer. Essa era uma das conseqüências.

A outra opção seria aceitar o duelo, tal como a honra exigia, e cair na armadilha que havia montado contra o seu vizinho, a de enfrentar um forsvikiano em duelo. Sem dúvida ainda jovem e não muito cor­pulento, mas, de qualquer forma, um forsvikiano, alguém que não tinha empunhado a espada pela primeira vez. O mais provável é que morresse. E se vencesse, de qualquer forma estaria morto dentro de três pores-do-sol.

Guttorm fez uma oração, entrou depois no círculo branco e desembainhou a sua espada. Com um sorriso amargo nos lábios, Birger Magnusson jogou o seu valioso manto para os braços do cava­leiro Bengt e, depois, logo matou o camponês. Foi tão fácil quanto abater um cordeiro.

Limpou, então, a espada suja de sangue na roupa do caído, como era de seu direito, virou as costas, foi buscar o seu manto das mãos do cavaleiro Bengt e saiu a passos largos, abandonando a assembléia, para ficar sozinho em reflexão.

E enquanto os amigos e testemunhas de Guttorm levavam para fora o seu cadáver e a cabeça degolada, a causa de Bengt Elinsson foi apresentada, por último, à assembléia. Logo os dezesseis forsvikianos, todos lado a lado, ombro a ombro, fizeram o seu juramento, com voz firme, máscula e sem qualquer hesitação. Claro, ninguém esperava que a contraparte tentasse entrar em duelo, já que isso seria uma pre­sunção sem lógica contra o cavaleiro Bengt e, portanto, contra dezes­seis forsvikianos. O homem de leis e seus dois assistentes julgaram de imediato a questão total e completamente a favor de Bengt Elinsson. E assim, sem demora os folkeanos montaram nos seus cavalos, aban­donaram a assembléia e foram embora a galope, sem sequer se virar.

A esquentada decisão com que Birger, flamejante, tinha entrado no círculo branco de espada em punho havia se transformado agora em pálida rigidez. Cavalgava concentrado em si mesmo, com uma das mãos na coxa e a outra segurando as rédeas, a cabeça baixa, olhan­do para o chão. Um leve tremor fazia oscilar a mão que segurava as rédeas.

O cavaleiro Bengt, que melhor do que todos os outros sabia o que se passava pela mente do nobre Birger, alinhou-se ao seu lado e lhe falou com suavidade e sem a mínima dureza que o ocorrido sempre acontecia, mais cedo ou mais tarde, com todos os forsvikianos. Matar um homem era fácil sempre que se treinava para isso. E era isso que se fazia em Forsvik, milhares e milhares de vezes, desde que, de início, se usava a espada de madeira, até muitos anos depois, usando outra, mais pesada, de aço. Mas um dia chegaria pela primeira vez a hora de matar de verdade e esse dia não era fácil para ninguém. Era um homem melhor e mais compreensivo aquele que, depois, sentiria a sensação de medo do que aquele fanfarrão que se jactava de não ter sentido nada.

Birger quase não respondia, apenas acenava com a cabeça e conti­nuava olhando para o chão, tal como o cavaleiro Bengt esperava que acontecesse.

Entretanto, aquilo que o cavaleiro Bengt não esperava é que o próprio Birger, um pouco mais tarde, se aproximasse, vindo cavalgar ao seu lado e pedisse clemência e compaixão para o forsvikiano Erik Stensson que vivia desgraçando a sua espada. Birger achava que se devia mandar cavaleiros à procura de Erik e chamá-lo para junto deles. E depois convidá-lo para servir honradamente em Forsvik ou no exército do cavaleiro Bengt em seu castelo, o Ymseborg.

O cavaleiro Bengt continuou cavalgando em silêncio, sem respon­der e sem dar a entender o que estava pensando. Depois mandou cha­mar dois dos seus homens que tinham os cavalos mais rápidos e orde­nou que encontrasse a pista de Erik Stensson e o trouxessem para junto do esquadrão. Quando os dois perguntaram o que deviam fazer se Erik Stensson se recusasse a ir ou oferecesse resistência, respondeu o cavalei­ro Bengt que eles, sem rodeios, deviam explicar não ser morte nem punição que esperava Erik Stensson quando chegasse, mas apenas um convite a que ele, dificilmente, poderia dizer não.

Os dois cavaleiros de Ymseborg partiram então em boa velocida­de para buscar de volta o irmão considerado como o filho pródigo.

 

Das quatro viúvas que governavam o reino na época, pelo menos segundo diziam as más línguas e com o maior prazer, era aparen­temente Ingrid Ylva, de Ulvåsa, a mais nova e a mais bonita. Mais do que rica e da maior nobreza, dizia-se que ela era um bom partido.

A rainha viúva Cecília Blanka era a mais inteligente quando se tra­tava de lutas pelo poder, e a sua amiga mais querida na vida, Cecília Rosa, de Forsvik, a que melhor entendia o poder das pratas e dos negócios. Ulvhilde Emundsdotter era a que entendia mais a maneira de pensar dos homens e de como se comportar para conseguir que a vontade das mulheres prevalecesse.

Juntas elas eram mais fortes do que quinhentos cavaleiros arma­dos, e quando, por vezes, se reuniam as quatro no castelo real de Näs, murmurava-se nas cavalariças e nas padarias que o conselho superior do reino havia entrado em sessão. Em breve, o rei Erik iria dançar conforme a música delas.

Cecília Blanka foi encaminhada para o convento de Riseberga quando o seu marido, o rei Knut Eriksson, morreu de insolação e depressão e os anos ruins estavam a caminho com o início da guerra. As outras três tinham perdido os seus homens em Gestilren. Logo depois da vitória, a rainha viúva Cecília Blanka mudou-se para junto do seu filho, o rei Erik, no castelo de Näs. E com ela, em uma bonita caixa de Lübeck, levou a sua coroa de rainha. Enquanto o jovem sobe­rano permanecesse solteiro, porém, ela continuaria a deter o poder de rainha.

Diante das circunstâncias, muitos poderiam pensar que as viúvas iriam querer manter o jovem rei solteiro o maior tempo possível, para que, por intermédio da mãe, continuassem a governar e a fazer o que bem entendiam. Mas, na realidade, não era essa a situação, e sim o contrário.

No primeiro encontro, numa noite de verão, no castelo real de Cecília Blanka em Näs, elas ficaram sozinhas na torre ocidental.

E muito vinho foi levado para elas. E já depois de ter amanhecido ainda se ouviam conversas exaltadas e muitas gargalhadas na sala da torre, o que era tão inesperado quanto desrespeitoso em se tratando de um momento ainda tão próximo de um ano de luto.

Em que as viúvas pensaram e refletiram nessa noite ninguém pôde saber muito. Em contrapartida, era mais fácil de entender a astúcia delas diante das estratégias planejadas para a próxima reunião do con­selho real que aconteceria em breve no castelo de Näs. Isso porque nesse encontro estava a rainha viúva Cecília Blanka usando a sua coroa de rainha por cima do véu negro. E, em breve, os conselheiros iriam saber que, raramente, essa mulher se mantinha no lugar em que eles tentavam colocá-la.

A reunião do conselho real não atraiu grande número de homens, visto que muitos dos mais proeminentes laicos haviam morrido em Gestilren e também porque o arcebispo Valerius e alguns dos seus clé­rigos mais fiéis, como o bispo de Linköping, acharam por bem não cavalgar para Näs com tão pouco tempo decorrido depois da guerra. Com razão, Valerius achou que o rei não teria olhado com bons olhos o fato de o arcebispo do reino, à última hora, ter passado para o lado do inimigo, tê-lo abençoado antes do embate e rezado pela sua vitória.

Para seu primeiro-ministro-regente, o rei Erik nomeou Folke Birgersson, o jarl, da família de Bjälbo, e o mais poderoso entre os representantes da Igreja no conselho passou a ser, na ausência do arce­bispo, o bispo Bengt II, de Skara, que, com o passar dos anos, ficou tão gordo quanto rico. A reunião realizou-se no salão do conselho, do lado oriental, no cimo da torre redonda. O rei sentou-se no trono com a sua coroa erikiana na cabeça. Ao seu lado ficou o jarl Folke, ainda coberto pelo símbolo do leão folkeano, e ao lado deste a cadeira vazia do arcebispo, sob a cruz. O bispo Bengt, que tentou sentar-se nesse lugar, recebeu uma repreensão do soberano e foi orientado a sentar-se junto com os bispos de Strängnäs e Växjö e os representantes laicos em bancos baixos e duros, que em breve se tornariam bastante descon­fortáveis para quem fosse gordo.

Para a rainha viúva Cecília Blanka foi reservada uma cadeira con­fortável do mesmo tipo lübeckiano em que se sentavam o rei e o regente. Ela ficou ao lado direito do soberano, o que, em especial, o bispo Bengt considerou com visível desagrado.

Após a oração que o bispo Bengt pronunciou lenta e ininteligivel­mente, o rei deu início à reunião, e isso ele fez à maneira nórdica, mui­to mais forte e abrupta, que qualquer dos mais velhos havia esperado.

— Em nome de Deus, damos as boas-vindas para esta reunião — começou ele, peremptoriamente, dando a entender que estava no comando. — Duas questões são da maior importância comparando com todo o resto e, por isso, vamos apresentá-las primeiro. Uma delas diz respeito ao envio de uma mensagem para o rei Valdemar, o Vencedor, como ele se cognomina, apesar de nós e de o nosso exérci­to já o termos batido por duas vezes quando tentou invadir o nosso reino. Junto dele, o rei Valdemar da Dinamarca, pretendemos apresen­tar o pedido de receber como esposa legal a sua irmã, Rikissa. Esta, por­tanto, é uma das questões a discutir. A outra é que achamos ser urgente a nossa coroação, a ser realizada de preferência o mais breve possível. Es­tas são as questões que os respeitáveis conselheiros vão ter que aceitar e, se tiverem considerações a fazer, já adiantamos que a nossa paciência se tornará curta, em especial se ficarem falando por falar.

Primeiro estabeleceu-se o silêncio total na sala fria e de paredes brancas onde não havia nada que prendesse os olhos, a não ser uma cruz, as três coroas erikianas e o leão folkeano. Os bispos olhavam de lado uns para os outros, e o bispo Bengt se queixava de cada vez que, incomodado, era obrigado a mudar de posição no pequeno banco em que se sentava.

— Se os senhores nada têm a dizer a respeito do assunto, achamos que a questão está decidida — finalizou o rei, que se apoiou nos bra­ços da sua cadeira como se pensasse em se levantar e ir embora.

— Majestade! A questão permite, na verdade, que alguma coisa mude — disse o bispo Bengt.

— Ótimo! — respondeu o rei, curto e grosso, fingindo-se dispos­to a sentar-se novamente e a escutar o que fosse dito com o maior inte­resse. — Mas lembre-se das minhas palavras a respeito de conversa fiada!

O bispo Bengt engoliu a reprimenda, ainda que com o maior es­forço, e pareceu realmente pensar bastante antes de tomar a palavra.

— Parece pouco provável que o rei Valdemar veja com tanta boa vontade a idéia de o seu duplo vencedor levar a irmã dele — começou o bispo, lenta e concentradamente, antes de continuar. — Além disso, é possível ver nessa proposta a expressão de uma fraqueza nossa e, por conseqüência, a possibilidade de mais uma nova guerra. Por isso, acho essa proposta mais prejudicial do que vantajosa. E quanto à coroação, acontece que o arcebispo do reino, nesta oportunidade, está ausente, de modo que a questão precisa ser adiada. Esta é a minha posição e, ainda que ela vá contra a proposta de Vossa Majestade, não me pare­ce que tenha sido exageradamente prolixa, certo?

— Prolixa não, mas presunçosa — reagiu a rainha viúva Cecília Blanka em uma reação que causou perplexidade entre os homens na sala. Nunca antes nenhuma mulher, ainda que rainha, se tinha aven­turado a realizar uma intervenção tão direta nas decisões do conselho. — E já que não tem a condescendência de me responder, deixe-me explicar melhor a razão por que o acho apenas presunçoso — conti­nuou Cecília Blanka implacável, e sem que o seu filho, o rei, fizesse o mínimo gesto para impedi-la. — Pense bem na situação do rei Valdemar. Ele venceu no Sachsen e em Schleswig, já controla Hamburgo e, em breve, vai controlar Lübeck. Já venceu na Polônia, na Livônia e no Ducado da Curlândia. Mas por duas vezes sofreu cus­tosas derrotas, ambas na Götaland Ocidental. O que é que acontece na mente de um homem assim tão poderoso? Não, não fique aí senta­do e de boca aberta, mas me responda, se é que o bispo tem alguma coisa a dizer!

— Ele deve estar pensando certamente que precisa acabar com essa desonra e voltar uma terceira vez para, finalmente, nos derrotar no campo de batalha — respondeu o bispo, olhando hesitantemente para os outros homens na sala, como se estivesse inseguro a respeito da legalidade em responder a uma pergunta feita diretamente por uma mulher.

— Com certeza é nisso que ele pensa — continuou Cecília Blanka, tão naturalmente quanto antes. — E comparada às duas der­rotas anteriores, uma vitória deve sair ainda mais cara. E isso apenas por questão de honra, quando, em vez disso, ele poderá prosseguir com a sua campanha no Leste, com a graça de Deus. E pelo muito que lhe vai custar em pratas para armar um novo exército contra nós, nem assim a vitória será certa, já que dois dos seus exércitos mais for­tes foram desbaratados pelos nossos. Assim, será que ele quer real­mente entrar em guerra com um país cristão do Norte, em vez de enfrentar os infiéis do Leste? E se ele puder desembaraçar-se dessa situação ruim por meio de um pacto de paz, uma paz honrosa que apenas lhe vai custar a sua irmã Rikissa, você não iria aceitar se esti­vesse no lugar dele?

O bispo Bengt teve que pensar bastante antes de responder por­que, ao olhar em volta, notou que todos os homens da sala estavam quietos nos seus lugares, dando a entender que o que tinham escuta­do valia a pena repensar. Ninguém tomou qualquer atitude, nem sequer olhou para o lado, procurando entendimento. O rei e o seu ministro-regente continuavam quietos, sem mudar de expressão e dando a entender, sim, que deixavam a rainha viúva continuar a nego­ciação.

— Duas vezes batemos os exércitos dele por completo — recome­çou o bispo Bengt, inseguro por ver que estava perdendo apoio entre os outros homens. — Se o rei Valdemar vier nos atacar uma terceira vez, nós vamos vencê-lo novamente, com a ajuda de Deus!

— Agora o senhor está sendo não só presunçoso, como também irresponsavelmente cruel e insensível quanto à vida dos outros! — interrompeu, rápido, Cecília Blanka. — Os muitos funerais que testemunhou depois de Lena, e ainda mais depois de Gestilren, deviam interferir na sua mente, antes de conceber a possibilidade de mais viú­vas e órfãos no nosso país. Além disso, a vitória em Gestilren quebrou a nossa espinha dorsal. Atualmente estamos sem os nossos melhores homens e, acima de tudo, sem comandante para o nosso exército em substituição do nosso abençoado Arn Magnusson. Se não quiser acre­ditar em mim, pergunte ao nosso jarl aqui ao meu lado!

Agora a situação tinha se tornado um pesadelo para o bispo Bengt. Nem mesmo quando era apenas um jovem capelão ele tinha sido afrontado por uma mulher, e agora isso acontecia até durante uma reunião do conselho do rei. Além disso, estava tão mal sentado que a barriga pendia, pesadamente, para a frente, por cima daquele banquinho de nada, e cada vez ficava mais difícil para ele sequer res­pirar.

— Tudo que a rainha disse é verdade — confirmou o jarl final­mente, com toda a calma, já que, de outra forma, o silêncio na sala iria ficar longo e doloroso demais. — As forças que tínhamos em Gestilren não existem mais. Perdemos muitos homens bons. E a perda mais cara foi a do homem que tornou a nossa vitória possível. Por isso uma nova guerra contra o rei Valdemar seria o pior que poderia acon­tecer ao nosso reino. Qualquer coisa que possamos fazer para evitar a guerra será uma tentativa que devemos apoiar com a maior seriedade. Assim, é inteligente e nobre da parte do nosso rei aceitar como esposa a irmã dele, Rikissa. Se o desejo de vingança por parte de Valdemar for tão grande que ele dê preferência acima de tudo a entrar novamente em guerra conosco, então isso significará que não tivemos sucesso com a nossa iniciativa. Então haverá guerra. Mas se Valdemar estiver em dúvida, por mínima que seja, e pensando que ele não sabe o quan­to sofremos com a nossa vitória, antes acreditando que ainda conti­nuamos fortes, então deve ele, como soberano inteligente que é, acei­tar a mão que lhes estamos estendendo. Esse é o meu pensamento e o da rainha também.

— Esse é também o nosso pensamento! — completou o rei Erik, antes que qualquer bispo ou mesmo outra pessoa na sala prolongasse a discussão.

— Mas ainda em relação à coroação continuam existindo certas dificuldades — tentou cortar o bispo Bengt, de rosto vermelho e com voz sibilante.

— De maneira nenhuma! — interrompeu o rei. — Ali, em cima da mesa, atrás do senhor, perto do sinete e do tinteiro real, está a coroa que nós, com justiça, recebemos de Sverker Karlsson. Ele nos deu a coroa, voluntariamente, por lhe termos poupado a vida e contra a promessa de nunca mais voltar ao nosso reino. Ele traiu a sua palavra. Por isso mesmo, agora está morto. Mas a coroa é nossa, e assim consi­derou também Sua Santidade, o papa de Roma, se é que fomos corre­tamente informados. Será que o bispo tem outra opinião?

— Não, se a coisa está posta nesses termos — gemeu o bispo Bengt. — Mas podem existir dificuldades com o arcebispo Valerius...

— Não acreditamos nisso! — interrompeu o rei novamente. — Valerius tem que escolher entre fazer aquilo que ele, como arcebispo, é obrigado ou fugir do país. A nossa coroação vai acontecer assim que soubermos a resposta do rei Valdemar. E agora não temos mais dis­posição para continuar por mais tempo esta reunião. Antes queremos convidar os presentes para comer e beber.

E com essas palavras o rei se levantou, ofereceu o braço à sua mãe e saiu da sala sem mais saudações ou outras minudências excessivas. O bispo Bengt levantou-se com dificuldade, aos poucos. Do jeito que as coisas correram, ele achava que não tinha conseguido discutir a coisa mais importante. Nem conseguiu ficar sentado por mais tempo naquele banco para o qual o haviam encaminhado e que tinha sido, na realidade, uma autêntica tortura.

E assim as viúvas tinham obtido o que a sua vontade determinara, na primeira medida que discutiram e aprovaram durante uma longa noite, de muita conversa e muito vinho na torre ocidental do castelo real de Näs.

 

Uma vez enviado um mensageiro para o rei Valdemar, o Vencedor, da Dinamarca, com o humilde pedido do rei dos gotas e dos sveas de que todas as hostilidades deviam terminar e de que essa paz devia ser sela­da por meio do casamento entre Rikissa e Erik Knutsson, criou-se um tempo de inatividade e de insuportável espera. Muito pouco podia ser feito no castelo real de Näs, tanto em palavras quanto em ações, antes que a resposta chegasse da Dinamarca.

Mas durante uma espera difícil de suportar ficara muito mais ani­mada a tagarelice. E em Näs tagarelava-se a respeito do regimento das viúvas, o que não ficava bem para a honra do jovem rei Erik. Por isso Cecília Rosa, Ulvhilde Emundsdotter e Ingrid Ylva viajaram e, para manter as aparências, cada uma foi para o seu lado. Antes decidiram que seria mais aconselhável se reunirem em lugares que ficassem mais longe de ouvidos curiosos e de línguas maldosas do que o castelo real de Näs. Portanto, a reunião delas ficaria marcada para Ulvåsa.

Quando a rainha viúva Cecília Blanka e Ulvhilde Emundsdotter, que se reencontraram no caminho de volta como tinham determina­do, chegaram a Ulvåsa uma semana mais tarde, com os seus pequenos séquitos, elas se depararam com uma visão estranha. Justamente ao entrar na praça da aldeia, entre as casas de Ulvåsa, viram quatro segu­ranças do local carregando um homem que esperneava, vestido com roupas de seda, levando-o sem demora e sem hesitação para a estru­meira, onde largaram o visitante de roupas domingueiras praguejando e esbracejando. E mal as amigas tinham se recuperado dessa estranha visão quando descobriram Ingrid Ylva no portão da casa-grande de onde ela, entre palavras fortes e impuras, jogava para o meio da praça uma coisa atrás da outra, inclusive o que parecia ser um colar de ouro com pedras preciosas incrustadas. Os olhos de Ingrid Ylva faiscavam com centelhas de ódio.

Mas logo ela ficou de bom humor ao descobrir as suas amigas, ainda mal refeitas do surpreendente espetáculo, e fez sinal aos cochei­ros para levar os cavalos. Dali a pouco estavam todas sentadas entre almofadas macias e confortáveis dentro da casa-grande de Ulvåsa. Logo foi trazido o vinho das boas-vindas e, entre muitas gargalhadas e risos, a dona da casa contou que já era o terceiro pretendente que mandava jogar na estrumeira e esperava que o conhecimento desse costume se espalhasse aos quatro ventos, rapidamente, em todo o reino. Ulvhilde, no entanto, achou que seria improvável que a notícia se espalhasse e ganhasse asas, antes avançasse como um caracol, visto que poucos seriam os homens jogados na estrumeira que iriam se van­gloriar desse feito. Dessa reação masculina elas se divertiram muito e, nessa tarde, quando Cecília Rosa chegou de barco, vindo de Forsvik, e Ingrid Ylva, a pedidos, voltou a contar a história, todas as mulheres riram ainda mais.

De todas as quatro amigas viúvas, Ingrid Ylva era a única ainda com idade para dar à luz de novo. Era também por esse motivo que tinha mais problemas com os corajosos pretendentes. Ela ainda não tinha passado dos trinta invernos, embora já tivesse dado à luz quatro filhos e parecesse não ter tido nenhum. Isso não facilitava a situação e a solução dos problemas. Ingrid Ylva continuava a ser apreciada por sua grande beleza.

As três outras viúvas, por sua vez, podiam se sentir mais seguras a esse respeito. Não podiam oferecer a possibilidade de ter novos reben­tos, mas apenas riquezas. E, por conseguinte, também não precisavam se casar de novo para tê-las. Portanto, as suas estrumeiras estariam livres de serem decoradas com muitos homens em roupas de seda.

Para os homens do reino, segundo a sua visão do problema, era muito mais fácil tomar uma viúva como esposa. Dessa maneira não havia necessidade de seguir os habituais procedimentos diante da famí­lia da pretendida e, principalmente, diante de responsáveis avarentos discutindo sobre dotes de eles para elas e de elas para eles. No caso de uma viúva, o assunto era discutido e decidido apenas entre ela e o pre­tendente. Os homens eram os que estavam mais dispostos em encontrar uma viúva rica. E isso não era surpresa nenhuma. Mais difícil de entender era o que eles podiam oferecer em contrapartida das riquezas que pre­tendiam compartilhar. A esse respeito, que, pelo menos, as duas Cecílias tinham dificuldade em entender, Ingrid Ylva falou, de maneira diverti­da e meio indecorosa, que os homens achavam primeiro que as mulhe­res não podiam viver sem aquele membro masculino e, segundo, preci­savam de homem na casa para educar os filhos menores.

Mas quando ela mencionou esta última questão, a diversão termi­nou nos olhos de Ingrid Ylva e eles voltaram a faiscar de raiva, pensan­do em voz alta a respeito desses cavaleiros jogados na estrumeira, jul­gando que podiam assumir a posição de Magnus Månesköld, que acreditavam merecer a honra de ter netos de Arn Magnusson e poder criar todos os garotos como preguiçosos da corte, indolentes e burros, convivas costumazes de casamentos e bufos brincalhões. Ingrid Ylva tinha outros planos completamente diferentes. Ela afirmou poder ver o futuro como este seria, se ela pudesse orientar a educação dos filhos sem a presença de amantes da boa vida.

Esses meus garotos — disse ela como se soubesse — vão todos se tornar homens cuja memória vai sobreviver tanto quanto a de Arn Magnusson!

Ela tinha se exaltado tanto com esses pensamentos, do que iria acontecer com os filhos, que passou a falar calorosa e iradamente e não como qualquer mãe normal. E, conseqüentemente, surgiu uma atmosfera de desânimo em substituição daquela alegre confraterniza­ção entre amigas. Mas ela logo reconheceu o seu erro ao ler nos olhos das outras o que estava acontecendo. Pediu desculpas e, em poucas palavras, explicou que esses presunçosos pretendentes mexiam demais com a sua mente e passou a contar mais uma história do que aconte­ceu quando o pretendente anterior acabou tomando o banho indese­jado. Com alguma hesitação, as suas amigas riram, ainda meio cons­trangidas, mas logo voltou a vigorar a boa atmosfera entre elas. E, então, voltaram a olhar-se sem a menor hesitação. Haviam assumido o compromisso entre si de liderar o país para a paz e a recuperação, tal como já tinham vivido durante a longa presença no poder de Cecília Blanka e Knut Eriksson.

Com isso voltaram a falar de coisas sérias, o que não evitava bebe­rem bastante vinho para, de vez em quando, se reconfortarem. Não precisavam mais ficar sentadas durante longas refeições em salas baru­lhentas, entre homens rudes que, por vezes, enjoados, vomitavam e depois se enchiam de mais cerveja. Antes, davam preferência a peque­nas porções preparadas conforme o gosto de cada uma, de peixe assa­do, costeletas de cordeiro e outras delícias.

Elas tinham certeza de que o rei Valdemar iria aceitar a proposta de mandar a sua irmã Rikissa viajar, em vez de ter que mandar invadir a Suécia com um novo exército. Sentiam um pouco de pena de Rikissa, pois acreditavam saber que ela ainda não tinha chegado aos vinte anos de idade, e todas sabiam muito bem o quanto era difícil para uma jo­vem, de repente, sair de um convento para a cama de um marido estra­nho e, na pior das hipóteses, já velho. Sobre Rikissa elas não sabiam muito mais, a não ser que a sua mãe, Sofia, era conhecida em toda a Es­candinávia pela sua beleza. Admitiam, por isso, que Rikissa, com a sua juventude, também seria bonita o suficiente para se tornar uma rainha.

O filho de Cecília Blanka, Erik, também nada tinha de que se envergonhar. Ainda não tinha chegado aos trinta anos de idade, embora os seus cabelos já se apresentassem um pouco ralos, como eram os do seu pai. Mas era forte, alto e esbelto. Era um bom guerrei­ro e a jovem Rikissa devia lembrar-se de que era uma honra casar com ele, já que o irmão, que, aliás, nunca tinha perdido uma batalha, havia sido vencido duas vezes por esse rei Erik.

No entanto, possivelmente a jovem Rikissa estaria imaginando um soberano cruel, dominador, um homem muito mais velho, cami­nhando com o seu armamento pesado, de pernas abertas, de rosto marcado por muitas cicatrizes, com o corpo cheio de marcas da guer­ra e endurecido por longas épocas passadas em campanha; enfim, um homem cheirando mal até durante a noite.

Como Erik não era nada disso que Rikissa poderia estar imagi­nando, certamente ela teria uma agradável surpresa ao ver pela pri­meira vez o seu marido de direito. Essa seria uma boa coisa, achavam todas as quatro mulheres.

Rikissa chegaria com medo e intimidada, apenas na companhia de algumas das suas melhores serviçais, uma vez que a dama de honra dificilmente viria para uma corte estranha onde muita coisa indeseja­da poderia acontecer. Por isso, a situação da futura rainha não seria, no momento, das mais invejáveis. Amarga e tímida, acabaria por fechar-se em si mesma no castelo de Näs. E isso não seria bom.

Foi Cecília Rosa quem primeiro sugeriu o que devia ser feito para debelar as preocupações da jovem Rikissa. Isto porque, salientou ela, seriam apenas alguns dias de cavalgada para Lödöse, que era certa­mente o lugar onde o barco do rei dinamarquês iria deixá-la.

E com certeza todas elas, com exceção de Ingrid Ylva, já eram velhinhas acabadas. Mas ainda podiam cavalgar e uma semana a cava­lo para ir e voltar não traria grandes dificuldades. Portanto, todas elas iriam ao encontro da jovem dinamarquesa a cavalo, seriam as primei­ras a recebê-la na praia e, mais tarde, a acompanhá-la na cavalgada a caminho de Näs e a lhe contar tudo de bom sobre Erik e o país.

— E desde o início a atraí-la para o nosso lado — acrescentou a rainha viúva Cecília Blanka.

— Foi isso que eu pensei também — confirmou Cecília Rosa ani­madamente. — Vamos então rezar para que o rei dinamarquês seja mais compreensivo do que vingativo e que Rikissa venha para nós como esperamos.

— Não precisamos nem rezar por isso — disse Ingrid Ylva. — Ela virá. Até já posso vê-la descendo a escada da embarcação, pisando em terra, vindo ao nosso encontro. Virá de manto vermelho, vestido branco com fios dourados e, na cabeça, uma coroa com uma fita estreita na testa. Os seus cabelos são longos e soltos e os olhos, azuis. Eu a vejo assim, descendo a escada, vacilante, ao pisar o nosso solo. Tudo vai correr como desejamos.

Ninguém disse nada contra aquilo que Ingrid Ylva — senhora que, segundo se dizia, tinha o dom da premonição — havia descrito.

 

Os emissários do rei Valdemar da Dinamarca encontraram, finalmen­te, o rei Erik Knutsson no castelo real de Lena só depois de muita pro­cura na Götaland Ocidental e de, por três vezes, terem sido encami­nhados para os castelos e assembléias erradas. Eles fizeram a entrega ao soberano de presentes riquíssimos, dois cetros em ouro que, segundo o soberano dinamarquês havia dito, iriam ficar muito bem durante a coroação. Um dos cetros tinha uma cruz no topo e o outro uma águia de asas abertas. Ambos eram os melhores troféus de guerra conquista­dos pelos exércitos vencedores da Dinamarca.

Com esses presentes chegou a mensagem do rei Valdemar de que ele, com prazer, mandaria a sua irmã Rikissa para se casar com Erik Knutsson, que ela desembarcaria em Lödöse dois dias depois da missa pelo aprisionamento de Pedro, se Deus e o tempo assim permitissem, mas que ele próprio não poderia estar presente e ao lado da sua irmã em virtude de compromissos de guerra o manterem ocupado em terras estrangeiras. Aquilo que os emissários disseram estava escrito em letra de forma, com os sinetes do rei e do arcebispo dinamarquês.

Para o rei Erik e o seu ministro-regente, Folke, essas notícias eram melhores do que eles poderiam esperar. E embora houvesse pressa em organizar o casamento, eles convidaram os seis dinamarqueses envia­dos como emissários para uma festa de boas-vindas que durou três dias e esvaziou todo o depósito de comes e bebes do castelo de Lena.

Aquilo que tornou o rei e seus homens quase juvenilmente felizes foi o fato de não apenas o rei Valdemar, mas também o arcebispo terem aposto os seus respectivos selos na carta que os emissários trou­xeram. Isso significava que o seu próprio arcebispo, Valerius, traiçoei­ro como ele só, que sempre tinha trabalhado com a ajuda dos dina­marqueses para colocar a coroa real na cabeça de um sverkeriano e, de preferência, degolando a cabeça de um erikiano, havia perdido a para­da. A mensagem do rei Valdemar não podia ser interpretada de outra maneira. Agora a guerra terminara e os erikianos e o rei Erik Knutsson poderiam contar com o apoio do rei dinamarquês logo que a virgem Rikissa deitasse na cama com Erik e os dois reis passassem a estar unidos pelo sangue. Que o rei Valdemar, por segurança, ficasse afastado e não viesse ao reino inimigo, antes que o casamento se realizasse e fosse abençoado, e não cancelado por dificuldades reais ou simuladas, isso não era de admirar. Assim entendia Erik, dizendo que faria o mesmo se estivesse no lugar de Valdemar.

O jarl Folke estava especialmente feliz com tudo isso. Ele detesta­va o bajulador arcebispo Valerius que tratava, normalmente, como filho de rameira, pelo fato de Valerius ter nascido de uma mãe que não tivera marido. Também pensava muito mal dos clérigos que se coloca­vam ao lado do arcebispo, como o untuoso e avarento bispo Bengt, de Skara. Agora todos esses homens de Deus seriam obrigados a se rebai­xarem. Talvez até Deus Pai lhes tivesse mostrado que a gente da Igreja deve ficar fora do poder secular. Pelo menos foi isso que o rei Valdemar lhes mostrou.

Erik Knutsson e o seu ministro-regente chegaram logo à convic­ção de que, antes de mais nada, teriam de mandar organizar a cerimô­nia da coroação. Erik Knutsson, sem dúvida, há muito tempo que tinha assumido a posição e o nome de rei, e ninguém lhe negou esse direito. Mas havia, mesmo assim, uma diferença entre ser rei apenas no nome e aquele que foi coroado e abençoado. Em especial, para o pessoal da Igreja, a diferença era muito grande.

Portanto, Valerius e os seus seguidores deviam ser apanhados de surpresa e colocados imediatamente diante dessa exigência, antes que tivessem tempo de se retirarem para viagens ou de escrever para Roma reclamando ou ainda fazendo qualquer outra coisa que bajuladores como eles costumam aprontar.

Além disso, Erik Knutsson preferia receber a sua futura rainha como rei coroado, suspeitando que, de outra maneira, ela, como irmã de um dos mais poderosos soberanos do mundo, acharia o seu futuro marido demasiado simples.

De preferência, Erik Knutsson gostaria de realizar a sua coroação na própria catedral do arcebispo em Uppsala. Mas como o seu con­selheiro, que sempre em segredo seguia a pista do arcebispo bajulador, lhe contou que este iria viajar para Linköping, Erik decidiu que a coroação seria realizada nesse lugar, ainda que a construção da catedral em Linköping estivesse longe de ficar pronta. A igreja, no entanto, já tinha sido abençoada e dedicada a Deus, portanto teria que servir.

As mensagens com o selo real foram mandadas para todos os can­tos do reino.

Em Forsvik, quando a mensagem chegou, de início parecia que ia causar uma grande confusão. Cecília Rosa, entretanto, por sua vez, já tinha mandado convites para os homens do reino que lhe eram mais próximos para se reunirem ao séquito que iria ao encontro da jovem Rikissa no porto de Lödöse. O cavaleiro Bengt Elinsson, de Ymseborg, já se encontrava em Forsvik junto com Emund Jonsson, o filho mais novo de Ulvhilde Emundsdotter, com mais de vinte cavaleiros de segurança cada um. E Torgils Eskilsson, de Arnäs, sobrinho de Arn Magnusson, era esperado em breve com outros tantos cavaleiros. Agora todos estavam sendo chamados, assim como o nobre Birger, para a coroação do rei, e este pedia um acréscimo de quarenta cavalei­ros folkeanos para bem representar e honrar as cores folkeanas duran­te o evento. Foi isso que estava escrito na mensagem do chanceler do soberano.

Aquilo que de início pareceu transtornar todos os planos para ir buscar a noiva em Lödöse acabou se resolvendo da melhor maneira. Em Forsvik, há dez dias que se limpavam as armas e se mudavam ou renovavam com cores mais fortes os tecidos dos arreios dos cavalos, as rédeas recebiam pedras decorativas, os estribos e outros detalhes de aço eram decorados com prata e ouro. Assim, dessa maneira, Forsvik estava pronta para enviar os quarenta cavaleiros folkeanos para a coroação.

Cecília Rosa entrou por um momento na sua sala, fez suas contas e estudou o calendário, como poucos em Forsvik sequer sabiam do que se tratava. E logo em seguida ela podia convocar os seus amigos e os do seu falecido marido para a sala de reunião dos cavaleiros, a fim de resolverem tudo aquilo que antes parecia irrealizável. Ela chegou à conclusão de que era possível cumprir ambas as obrigações que de iní­cio pareciam se sobrepor.

Os barcos de Eskil Magnusson faziam várias vezes por dia o traje­to pelo Lago Vättern entre Forsvik e as correntes do Mo, assim como outras embarcações ficavam permanentemente navegando entre Forsvik e o Lago Vänern na direção oeste e entre as correntes do Mo e Linköping, para o leste. Transportavam ferro, peles, calcário, telhas, peixe seco, sementes, farinha e tudo aquilo que se produzia em Forsvik em ritmo permanente. Se algumas mercadorias tardavam ou os depósitos se enchiam um pouco mais em Forsvik, isso não causava um transtorno tão grande que não pudesse ser resolvido e tudo voltas­se ao normal dentro de pouco tempo.

Os quarenta cavaleiros podiam viajar antecipadamente para Linköping já que podiam avançar assim que pisassem na outra mar­gem do Vättern. Depois as pessoas e as roupas da coroação podiam ser levadas de galera ou em embarcações menores para Ulvåsa, ou, se qui­sessem, diretamente para Linköping.

Quando Torgils Eskilsson e os seus homens chegassem a Forsvik, ele poderia continuar de barco, enquanto os homens e os cavalos fica­riam se preparando, até que todos voltassem da coroação para, em seguida, tomarem o rumo da recepção à noiva em Lödöse. Haveria tempo suficiente para cavalgar até Lödöse e chegar lá dois dias antes do aprisionamento de Pedro. Aquilo que parecia de início uma situa­ção complicada tornou-se uma coisa fácil de contornar nas mãos de Cecília Rosa.

 

Birger chegou a Linköping entre os primeiros forsvikianos e, quando encontrou o aldeamento real, do outro lado do riacho Stangan, ficou sabendo que iria dormir na própria vila, enquanto que os cavaleiros da sua companhia ficariam em tendas de campanha fora da cidade. Birger levou o seu cavalo para a cocheira real e ficou muito orgulhoso quando dois dos tratadores logo reconheceram que o seu garanhão, ainda novo, era da melhor espécie criada em Forsvik, com a crina e o rabo bem levantados, prateados, e com um belo pêlo brilhoso castanho-escuro.

Ao chegar ao lugar que lhe foi indicado, um sótão abafado e escuro onde havia dez camas vazias ao longo das paredes, ele verificou que era o primeiro a chegar dos convidados que lá iriam dormir. Já detinha uma longa experiência dos cheiros e ruídos que existiam quando muitos homens passavam a noite no mesmo dormitório, e justamente por isso escolheu a cama que estava mais perto da fresta estreita que permanecia aberta na parede. Esvaziou as mochilas de sela e espalhou as roupas em cima da cama, incluindo o manto que havia pertencido a Arn Magnusson. Ao lado colocou a sua veste de malha de aço recém-limpa e a espada de Arn Magnusson.

Como raramente tinha estado em cidades, Birger pensou duas vezes antes de decidir deixar todos os seus pertences no lugar e dar uma volta por Linköping e ver como era. Mas olhou mais uma vez, ao ver a pequena faixa de luz da fresta incidir diretamente sobre a espada e o manto. Notou que do manto irradiava uma cor azul que nem mesmo o céu conseguia imitar e, nas costas, sobressaía o símbolo do leão bordado com fios de ouro sobre a seda preta, de tal maneira que parecia até ser um leão vivo e se mexendo à luz do dia. As garras do leão eram bordadas com fios de prata, assim como as três traves atra­vessadas por cima do escudo. A língua do leão era vermelho-sangue, assim como as três cruzes dos templários, que tinham sido o símbolo de Arn Magnusson. De longe isso fazia com que todos soubessem que era ele, e nenhum outro folkeano, que estava chegando. Esse manto havia sido o melhor e o mais bonito dos trabalhos realizados por Cecília Rosa, o que lhe custou muitos anos de diligente atividade e muitas orações.

Apenas na coroação ou em casamentos esse manto poderia ser usado por Birger com honra e por direito. Ele o tinha herdado. Em qualquer outro lugar usando esse manto Birger se sujeitaria a ser rece­bido com risos, com despeito e gracejos, já que estaria agindo por vai­dade com o símbolo de outra pessoa.

Ele pensou, então, no símbolo que escolheria um dia para ser a sua marca, além do leão folkeano, qualquer coisa que dissesse que era Birger Magnusson e ninguém mais. O seu avô tinha as três cruzes dos templários que pareciam flores dos prados das quais se havia retirado todas as folhas, menos quatro. O seu pai havia escolhido uma meia-lua em prata. Birger Brosa, um lírio do país franco. Qual seria o sím­bolo de Birger Magnusson?

Ele fantasiava alguma coisa como dragões e espadas, ou pilares cruzados em ouro, mas não conseguia acomodar as suas fantasias à expressão do seu próprio ser.

De repente sentiu vergonha da sua infantilidade e presunção, decidindo sair para a rua. Mas se conteve ao olhar novamente para a espada sobre a qual o sol tinha girado um pouco, durante o seu sonho acordado, de tal modo que agora brilhava sobre ela uma cruz em ouro. Primeiro os seus pensamentos ficaram paralisados diante da luz dou­rada, mas depois cerrou os dentes, decidido, e retirou da cintura a espada forsvikiana que havia usado durante a viagem e substituiu-a pela dos templários, reconhecendo conscientemente que a sua queri­da avó tinha toda a razão ao salientar que a espada ainda era grande e pesada demais para ele. Mas que jamais devia ousar se afastar dessa espada em qualquer lugar estranho. Mas também não podia ficar den­tro dessa casa escura, aguardando a coroação no dia seguinte. Se saís­se para a cidade, devia levar aquela espada consigo.

Ao atravessar a ponte e entrar na cidade, do outro lado do riacho, a quantidade de gente circulando foi ficando cada vez maior. Muitas pessoas haviam viajado para a cidade, a fim de ver a coroação, e nem todas com a melhor das intenções. As ruas entre as casas de madeira eram estreitas e estavam muito sujas. Por toda parte se falava alto e se escutavam as exclamações incontidas dos bêbados. E Birger tinha que observar com todo o cuidado onde punha os pés, calçados com botas de fino couro, uma vez que o chão estava cheio de excrementos que ele nem sabia se eram de cães, porcos ou pessoas. Estava ainda com as vestes de viagem muito simples por baixo do manto, camisa de pele de veado e calças de pele de vitela. E se fosse pela sua roupa ele não cha­maria a atenção de ninguém. Mas andando de espada à cintura no meio da cidade e com o símbolo folkeano bordado a ouro nas costas, isso sim já tinha atraído muito mais olhares do que ele desejaria e que nem sequer entendia. As jovens lhe dirigiam palavras que ele tinha dificuldade em compreender, embora suspeitasse que eram convites nada castos. Das muitas tendas e barracas de cerveja partiam sinais para que se aproximasse e era convidado para beber. Birger começou a andar em frente, de olhos fixos no nada, mas logo considerou que não agüentava mais a cidade. Passou a olhar para o chão, evitando pisar nos excrementos, e se apressou a voltar em direção ao aldeamen­to real e ao riacho, o que de início não foi fácil devido à multidão e ao entrecruzamento das ruas. No entanto, ele se lembrava onde o sol estava ao sair do aldeamento. Seguiu a orientação do sol e, assim, pôde avançar mais rápido, de olhos no chão. Aconteceu então que, por acaso, deu um encontrão num homem de cabelo grisalho, com manto negro bordado a ouro, que se virou, furioso, e pegou nele pela gargan­ta, exigindo um pedido de desculpas pelo esbarrão. Birger pediu des­culpa humildemente, mas recebeu de imediato uma bofetada acom­panhada de risos de desprezo dos circundantes, que lhe chamavam de peixinho manso, de nobrezinho de nada e ainda outras coisas que ele não entendeu. Ruborizado, Birger resolveu inclinar a cabeça ainda mais, virou as costas e seguiu em frente, afastando-se do lugar. Mas pouco andou, antes que o homem voltasse correndo e o segurasse pelo braço ao mesmo tempo que se ajoelhava e, desesperado, pedia desculpas. Perplexo, Birger aceitou as desculpas e voltou a seguir o seu caminho.

Aquilo que ele viu da cidade não lhe agradou e ninguém antes lhe tinha dado uma bofetada. Os habitantes da cidade devem ser loucos, pensou ele.

Ao voltar à ponte e ao aldeamento real, muitos convidados já haviam chegado e tinham começado a erguer as tendas de cerveja na praça da vila. Não conseguiu ver ninguém que conhecesse e tentou se convencer, primeiro, que estava cansado da viagem e que devia subir para o dormitório e dormir um pouco. O sol ainda estava alto e ele reconheceu, contra a vontade, que não fazia muito sentido tentar dor­mir tão cedo. Em vez disso, resolveu dirigir-se para uma das tendas de cerveja onde um cozinheiro real olhou para ele, de alto a baixo, uma olhada curta, mas severa, antes de lhe oferecer uma jarra de cerveja em cima da longa mesa à sua frente, cerveja que ele começou a beber devagar, sozinho, por alguns momentos. Logo chegaram até ele três jovens com as cores erikianas e de vestes de malha de aço, que, respei­tosamente, lhe perguntaram se podiam se sentar nos lugares vazios ao seu lado. Ele não respondeu logo porque estava bebendo ainda, mas fez sinal com a mão estendida que, evidentemente, podiam sentar-se à vontade. Assim que os outros três receberam as suas jarras de cerve­ja, começaram a falar de caça e não deram mais atenção a Birger. Eles bebiam rapidamente e dali a algum tempo já cada um tinha bebido três jarras de cerveja, enquanto Birger ainda não tinha passado da primeira. Um deles notou o que estava acontecendo e, então, veio a primeira gozação. Birger ficou revoltado, mas conteve-se, pensando que já havia recebido bofetadas demais naquele dia, ou, melhor dizen­do, na sua vida. Mas uma gozação nunca vem só e quando os três eri­kianos recomeçaram a falar entre si, comentaram o quanto era uma demonstração de macho beber rápido e muito, Birger largou a sua jarra quase vazia em cima da mesa, levantou-se e virou as costas. Ele espera­va que as gozações continuassem, mas, para seu alívio, fez-se um silên­cio total até o momento em que ele saiu da tenda.

Resolveu, então, dar uma volta pelo aldeamento, observar os cava­los que chegavam, visitar a cavalariça onde se encontrava o seu cavalo, falar com ele, ao mesmo tempo que tentava, diante dos outros, dar a entender que não estava sozinho nem inseguro a respeito de como se comportar.

Um dos guarda-costas do rei, vestido de negro, salvou-o da falta do que fazer ao lhe pegar pelo braço e indagar, respeitosamente, se ele era Birger Magnusson de Ulvåsa. Ao confirmar, ainda receoso, quem era, recebeu a informação de que o rei tinha mandado chamá-lo e que devia seguir para a sala antes do salão dos cavaleiros, sentar-se lá e esperar entre os outros que também haviam sido chamados. Como Lhe haviam ensinado em Forsvik, fez uma reverência e obedeceu de imediato.

Na ante-sala do salão dos cavaleiros ele foi encontrar homens mais velhos do que ele, combatentes na sua maioria, o que era fácil de ver pelos nós dos dedos meio cortados, alguns sem os próprios, e com cicatrizes no rosto. Birger entrou cautelosamente, sentou-se rapida­mente mais próximo da saída, convencido de que ali não seria desco­berto. Mas essa esperança foi infrutífera. Logo um dos combatentes grisalhos, sentado no outro extremo da sala, perto da entrada para o salão dos cavaleiros, chamou-o em voz tão alta que ele sentiu que não podia fazer nada, já que essa era a ante-sala do rei e qualquer que fosse o seu assunto a tratar, todos seriam chamados pelo nome. Birger enru­besceu, pediu desculpas e disse, como achava que devia fazer, o seu nome em voz alta e necessariamente bem entoada, de modo que todos na sala ouvissem. Mas o homem de cabelos grisalhos, velho guerreiro, não ficou satisfeito e, colocando a mão atrás da orelha, ordenou que ele falasse bem mais alto, com voz de homem, e não sussurrasse o nome como se fosse uma menina e que, além disso, se levantasse para os homens ali presentes o verem.

Birger levantou-se então, lentamente e bastante inseguro, respirou fundo e tentou arranjar coragem para dizer o seu nome novamente com uma voz exageradamente elevada.

— Eu sou Birger Magnusson, de Ulvåsa, filho de Magnus Månesköld! — gritou ele.

Primeiro todo mundo ficou em silêncio. Mas então o rosto do velho homem com a mão atrás da orelha se iluminou, ele deu uma gargalhada sonora, levantou-se e avançou na direção de Birger, e o abraçou entusiasticamente.

— Você cavalgou em Gestilren junto com seu avô marechal e o seu símbolo e fica aí escondido entre amigos como se fosse uma vir­gem saída de um convento! — falou o velho guerreiro, rindo. — Isso quer dizer que somos parentes. Eu sou Karl Birgersson, de Bjälbo, embora seja mais conhecido como Karl, o Surdo. De qualquer forma, não importa como, mas venha sentar-se imediatamente ao meu lado, meu caro Birger!

Com isso, Karl, o Surdo, passou o braço pelos ombros de Birger e conduziu-o lentamente pela sala, ao mesmo tempo que todos se le­vantavam e saudavam aquele jovem que era neto de Arn Magnusson.

Enfim, a situação não melhorou muito com o fato de ele ficar sen­tado perto da porta que dava para o salão onde estava o rei, pensou Birger. Isso porque o seu velho parente tinha uma maneira de condu­zir a conversa que de forma alguma era compatível com a de um jo­vem que não parava de enrubescer a cada pergunta e a cada resposta.

— E como vão os negócios para a nossa querida Cecília Rosa em Forsvik? Andam dizendo que Eskil Magnusson ganha uma moeda de ouro em cada transporte de barco, mas uma moeda de prata fica em Forsvik!

“O cavaleiro Bengt continua com boa saúde e tão rápido quanto antes no manejo das armas?

“E vocês em Ulvåsa tiveram este ano uma colheita tão boa quan­to nós? Ingrid Ylva pensa ainda em contratar um novo lavrador?”

Birger já estava suando, contorcendo-se como uma isca no anzol com todas essas perguntas que não eram da conta dos erikianos na sala nem dos amigos presentes. Além disso, a algumas das perguntas, como no caso da vontade da mãe em contratar um novo lavrador, ele não sabia o que responder. E se respondesse baixo demais, o podero­so, mas surdo combatente folkeano de Bjälbo faria a mesma pergunta de novo.

O sofrimento de Birger teve um final inesperado. Pois, para sur­presa de todos, foi o primeiro a ser chamado à presença do rei quan­do um dos visitantes saiu da sua sala.

Dois dos homens da guarda pessoal do rei, vestidos de preto, le­varam-no através de uma longa sala onde o soberano, o seu ministro regente, o jarl Folke, e um bispo de quem Birger desconhecia o nome estavam sentados no palanque de honra. Todas as mesas haviam sido dispostas ao longo da parede, na frente do rei e dos homens da sua guarda pessoal. E não havia lugares para sentar. Em cima de uma longa mesa diante deles viam-se a cruz do bispo, a espada do jarl e a coroa do soberano cercadas por dois cetros dourados.

Pela primeira vez desde que chegou à cidade de Linköping, Birger sentia-se seguro de como tinha que se comportar. O rei ele conhecia. Ambos tinham estado juntos na vitória em Gestilren, embora, depois disso, não se tivessem visto, a não ser em funerais. Birger avançou todo o caminho ao longo da parede, fez uma reverência com o seu joe­lho esquerdo no chão e esperou nessa posição uma ordem do rei para se levantar.

Mas não foi assim que aconteceu. Em vez disso, o rei levantou-se, deu a volta à mesa, ergueu Birger e abraçou-o.

— Meu nobre Birger, alegra-nos vê-lo são e em forma depois de tudo o que de lamentável aconteceu — disse o rei, recuando alguns passos para dar a entender que queria ver o jovem visitante dos pés à cabeça. — Você parece muito com o seu avô, Birger, embora os seus olhos sejam castanhos, como os da sua mãe e, em parte, a cor dos seus cabelos seja também como a dela. Muito bem, espero que não se sin­tas mal se este encontro for breve. Temos um bando de gente esperan­do lá fora e todos aguardam a sua entrada por um motivo ou outro. Aquilo que queremos lhe dizer nesta hora vai ser breve, e isso não sig­nifica falta de respeito da nossa parte. Portanto, fale.

— Vossa Majestade me chamou. Eu sou folkeano. Nós, folkeanos, já combatemos ao seu lado e lhe juramos fidelidade. Portanto, aquilo que o meu rei decidir eu obedecerei — respondeu Birger, facilmente e com segurança.

O rei observou-o, pensativo, como que fazendo uma avaliação, e deu vários passos à sua volta, como que querendo instigar Birger a falar de novo, antes de lhe dirigir a palavra novamente, mas achou que essa atitude não tinha efeito sobre o nobre Birger e voltou sorrindo para o seu lugar, atrás da coroa e dos cetros.

— Quando este espetáculo tiver terminado, nós desejaremos rece­ber o nobre Birger como nosso convidado em Näs. O seu avô sempre esteve mais próximo de nós do que qualquer outro homem. Espe­ramos de todo coração que atenda a este nosso convite, certo?

— Com muita honra eu irei sim, como folkeano, ao encontro dos nossos amigos erikianos e do nosso rei — respondeu Birger de manei­ra clara e sem hesitações.

— Você cavalgou com o símbolo do reino em Gestilren, meu nobre Birger — continuou o rei, franzindo um pouco a testa. — Portanto, embora isso não possa acontecer amanhã, você não vai ser aquele que irá portar o símbolo do leão dos folkeanos nem o das três coroas do reino, mas ambos os símbolos. E antes que fique desapon­tado, nós iremos explicar por quê. No nosso reino é de tradição que os nobres do rei sejam escolhidos entre os mais velhos e mais importan­tes. Isso é de tradição entre todas as famílias, tanto entre os folkeanos quanto entre as outras. O seu avô, o marechal, porém, seguia outras tradições estrangeiras e fazia dos jovens seus homens mais próximos. Nós não tínhamos nada contra isso, assim como nunca tivemos nada contra aquilo que o marechal decidia na guerra ou no nosso exército. Agora a situação é diferente. Karl, o Surdo, irá segurar o pavilhão do leão folkeano, e o meu amigo Holmgeir o nosso, erikiano. Assim, tive­mos que decidir. No entanto, vamos ter, na coroação, dois cetros de ouro, oferecidos pelo rei Valdemar, da Dinamarca. Você irá segurar um deles, e Knut Holmgeirsson, que é, entre os jovens erikianos, como você entre os folkeanos, o da família mais importante, o outro cetro. Você aceita esse nosso convite?

— Eu me sujeito à vontade do meu rei em tudo o que ele decidir, ainda que esteja errado — respondeu Birger com um sorriso nada tímido.

— Quer dizer que o nobre Birger tem a ousadia de nos contrariar! — exclamou o rei com uma irritação tão visivelmente artificial que ninguém na sala achou por bem se espantar.

— Sim, Majestade. Porque assim devo fazê-lo — respondeu Birger. — Que Knut Holmgeirsson, que é filho de Holmgeir Filipsson, que é filho de Filip, que é filho do sagrado santo Erik, que, portanto, é o mais qualificado entre os jovens erikianos, isso é verda­de e certo. Já a meu respeito, entre os jovens folkeanos, a questão é controversa.

— Você conhece Knut Holmgeirsson? — perguntou o rei, elevan­do as sobrancelhas, espantado.

— Não, Majestade, nunca me encontrei com ele, senhor.

— Então por que motivo você revela ser tão conhecedor de quem foi seu pai, de quem foi seu avô e o pai deste?

— A minha mãe, Ingrid Ylva, conhece todos os homens impor­tantes e poderosos do reino e sabe muito bem quem foram seus filhos e avós. E aquilo que ela sabe deixa que eu e os meus irmãos saibamos também — respondeu Birger agora pela primeira vez um pouco cons­trangido. Isso porque esse tipo de conhecimento só servia para quem queria saber contra quem e qual seria aquele com quem ele tinha de competir para alcançar o poder.

— Nós entendemos... — disse o soberano, pensativo. — Mas diga-nos, então, por que motivo você não seria o mais qualificado entre os jovens folkeanos, você que foi aquele que cavalgou com o símbolo do reino em Gestilren?

— Quem é o mais qualificado entre os jovens folkeanos não é fácil de determinar — respondeu Birger, rápido, mas ainda de olhar baixo. — Na nossa família, nunca tivemos a posse da coroa do rei; portanto, dessa maneira, fica difícil fazer uma avaliação. E muitos devem consi­derar os filhos de Bjälbo como mais qualificados do que eu, que venho de Ulvåsa.

— Para nós, de qualquer forma, você é o mais qualificado! — falou o rei, rindo. — E temos o direito real de decidir o que nos pare­ce melhor. O folkeano que descende diretamente de Arn Magnusson aos nossos olhos será sempre o mais qualificado. Portanto, você aceita ou não a nossa decisão?

— É uma grande honra para mim me sujeitar à decisão do rei — respondeu Birger agora com renovada segurança.

— Ótimo, nobre Birger! Você irá conduzir o cetro com a águia de asas abertas. E o nosso parente o cetro com a cruz. Os nossos amigos e assistentes de coroação e de noivado irão indicar os vossos lugares na cerimônia da coroação amanhã, quando o sol estiver a duas horas do zênite, ao meio-dia. Um último pequeno conselho de quem não ape­nas é o seu rei, mas também seu amigo: não beba mais da nossa cerve­ja amanhã do que aquilo que se exige por essa honra!

Birger se curvou e, de novo abaixando-se, colocou o joelho esquerdo no chão. Depois levantou-se, virou-se e jogou o seu manto por cima da espada, tudo em um só movimento, e saiu da sala do rei com passos seguros e de cabeça erguida.

A autoconfiança aprendida em casa, que Birger havia demonstra­do na sala do rei, no entanto, se desvaneceu rápido quando ele chegou à praça do aldeamento real onde se registrava agora a chegada de muitos novos viajantes, de tal maneira que já havia uma certa dificul­dade em circular. Todos os rostos que de início viu eram para ele des­conhecidos, mas, de repente, sentiu-se agarrado pelos braços e por trás por dois homens. Ao virar a cabeça, porém, descobriu que eram Torgils Eskilsson, de Arnäs, e Emund Jonsson, de Ulfsheim, que brin­cavam com ele. Os dois eram, evidentemente, uns dez anos mais velhos do que ele, mas também eram forsvikianos. Entre parentes como eles, Birger estava em boa companhia.

 

Cecília Rosa e as outras viúvas estavam entre as primeiras pessoas a voltar para Forsvik depois da coroação, desculpando-se pela idade ou por serem senhoras, que deviam deixar Linköping logo após dois dos dias de celebração da grande festa da coroação. E foi bom que assim fosse, porque, em especial, Cecília Rosa tinha agora muito trabalho pela frente para que tudo acontecesse como previsto. Ela tinha que providenciar dois carros de bois com suprimentos, além de pão, cer­veja e vinho, assim como barracas, bandeiras e estacas, de modo que se erguessem a tempo em dois lugares os necessários acampamentos ao longo do caminho entre Lödöse e a praia do Vättern, próprios para o séquito que ia buscar a noiva poder descansar. Para as noites já tinham sido reservados lugares primeiro em Gälakvist, que era um castelo real, e em Lena, uma mansão folkeana. Na praia do Vättern estaria o veleiro real, o Ormen, para realizar o transporte da última etapa da via­gem para Näs, na Ilha de Visingsö.

Cecília enviou muitas mensagens para dirigir a recolocação da car­ga das galeras no Lago Vättern e de barcos em Ulvåsa e na corrente do Mo, no outro lado do lago, já que todos os viajantes causaram uma grande desorganização no comércio entre Lödöse e Linköping. As grandes cargas tiveram que ficar em terra, no cais, para dar lugar aos cavalos e convidados. E foi preciso cobrir toda a carga para não ficar exposta à chuva. A desorganização no comércio iria continuar uma semana inteira depois que todos aqueles que tinham funções a cum­prir em Forsvik tivessem chegado ao seu destino. Nos cais de Forsvik enxameavam as embarcações em espera, barcos que não tinham rece­bido suas mercadorias, como era de costume.

Cecília Rosa administrou toda essa situação com mão de ferro. Nenhum detalhe, por mínimo que fosse, lhe escapou do pensamento e em nenhum lugar e de ninguém ela encontrou resistência.

Só depois de os cavaleiros dos esquadrões de segurança e dos seus senhores, de rostos pálidos e olhos vermelhos de tanta cerveja, terem desembarcado com seus cavalos de pernas vacilantes e o seu linguajar peculiar, é que o trabalho de Cecília Rosa passou a ser mais calmo e ela pôde dedicar-se a um par de noites sossegadas na sua própria casa, na companhia da rainha viúva Cecília Blanka, de Ingrid Ylva e Ulvhilde Emundsdotter.

A rainha viúva contou, então, que o seu filho Erik havia decidido que, já que o rei da Dinamarca não tivera a condescendência de acom­panhar a sua irmã até o porto de desembarque, também ele não devia recebê-la no lugar. Era assim que, na sua concepção do que seria a justa igualdade entre dois reis, ele devia proceder. De qualquer forma, assim ficou determinado e, além disso, o senso comum aconselhava que, para as viúvas, era melhor ter alguns dias de viagem a sós com a jovem Rikissa. Entretanto, o rei Erik ficou muito satisfeito ao saber por intermédio da sua mãe que a jovem dinamarquesa teria uma recepção à altura, com a presença dos melhores cavaleiros do reino.

Enquanto os homens estavam no momento preocupados em armar todos os cavaleiros que iriam ao encontro da jovem Rikissa, as viúvas preparavam também a égua branca que Cecília Rosa tinha escolhido para a futura rainha. Ninguém sabia ao certo como a jovem dinamarquesa gostaria de montar na sela, de modo que foi importan­te decidir por uma égua bem ensinada em vez de um garanhão, jamais tão bonito quanto a fêmea. Além disso, era fácil imaginar que a jovem Rikissa não viesse vestida para cavalgar com estribos, um de cada lado da montaria. Ingrid Ylva suspeitava que ela viria de vestido branco, bordado a ouro, e, por isso, os especialistas sarracenos em Forsvik pre­pararam uma sela muito bonita para mulher, com apenas um estribo lateral, decorada com ouro e prata. O estribo, os freios e os arreios foram decorados da mesma maneira e na testa da égua foi colocada uma pluma negra vinda do exterior e por baixo uma coroa riquíssima, feita de pedras preciosas vermelhas entremeadas com outras brancas, que eram as cores reais da jovem Rikissa.

Também para a rainha viúva Cecília Blanka foi feita uma sela especial, própria para mulheres. Cecília Rosa e Ulvhilde montariam com selas normais, visto que ambas usariam vestidos especiais que Cecília Rosa tinha inventado, ao costurar, há muitos anos, um par de calças que, no entanto, se parecia com vestido para mulher e permitia montar com um estribo de cada lado.

Para Birger, esses dias foram de descanso. Armas e roupas ele tinha em boa ordem, depois da coroação em Linköping, e, em Forsvik, no momento, com a presença de quase oitenta convidados, todo o trabalho de ensino para garotos e jovens tinha sido suspenso. Mas diante da pre­sença de uma quantidade tão grande de velhos e jovens forsvikianos, reunidos todos no mesmo lugar, era difícil ficar longe do antigo campo de treinamentos e logo se organizaram competições de luta.

Em outros aldeamentos e castelos do reino, essas competições tinham começado a se tornar populares nos últimos anos, e na maio­ria dos casos sem problemas. Uma das competições consistia em caval­gar de lança em punho e acertar em anéis suspensos ou o escudo do negro Petrus, evitando receber na nuca a pancada da bola de madeira ou couro que rodava pelo braço da figura quando o escudo desta era atingido pela lança. Ou então o cavaleiro tentava acertar com a espa­da na maçã e dividi-la em duas metades. Nada disso, porém, era coisa de que os forsvikianos sentissem orgulho.

A competição mais dura era o torneio de lanças. Por três vezes, os homens cavalgavam com a intenção de derrubar da montaria o adver­sário com um golpe certeiro no peito ou no escudo. Se não chegassem as três tentativas, a competição continuava até que um dos contende­dores vencesse duas vezes. Evidentemente não se usavam lanças afia­das, mas com pequenas bolas nas pontas. Nem por isso, no entanto, o esporte deixava de ser perigoso.

O cavaleiro Sigurd e o seu irmão Oddvar, que eram os comandan­tes mais graduados em Forsvik em tudo que dissesse respeito à guerra, de início ficaram preocupados diante de todos os gritos que acompa­nhavam a competição. Mas ao contar o número de homens em dispu­ta, chegaram à conclusão de que, para a viagem a Lödöse, podiam dar-se ao luxo de, em cada dez homens, perder um, deixando-o de molho por alguns dias. Mais ou menos era o que se poderia esperar do tor­neio. Boas camas e os melhores cuidados também existiam em Forsvik, bem acima do que poderia ser necessário para receber aqueles que ficavam de cama enquanto os outros viajavam. O cavaleiro Sigurd, no entanto, determinou que nenhum dos jovens que não tivesse terminado os seus estudos em Forsvik e recebido ainda a sua própria lança e a sua espada poderia entrar no torneio, como também não poderia competir quem não tivesse completado os dezessete anos.

Birger ainda pertencia à ala dos mais jovens, mas tinha esperança de avançar bastante na competição. Embora, pensando bem, tivesse reconhecido que o orgulho era um pecado que, muitas vezes, punia quem se dispunha a entrar nesses torneios sem muita experiência. E, por isso, logo resolveu fazer uma ligeira prece para a Virgem Maria, a Mãe de Deus, pedindo desculpas. No entanto, não se arriscou a conti­nuar a prece, pedindo por sucesso nas suas intervenções, já que isso seria atrevimento demais diante da companhia em que ele se encontrava e onde existiam cinco cavaleiros formados e dos mais qualificados.

Os jogos começaram com o desfile de todos os concorrentes no campo maior de treinamento em que as pistas corriam entre as laterais do campo. O cavaleiro Oddvar ficou observando a entrada para que nenhum dos jovens abaixo da idade mínima permitida conseguisse se infiltrar disfarçadamente entre os maiores. Acabou pegando dois deles, que, resmungando e de cabeça baixa, tiveram que desmontar e se dirigir para o lugar dos assistentes.

Quando todos os competidores já se achavam dentro do campo, eles formaram um grande círculo e começaram a cavalgar em volta, de modo que alguém, em determinada altura, estaria no meio de uma pista e, em outro momento, passando de uma pista para outra. Ao sinal de uma trombeta cada homem deveria assumir as rédeas do cava­lo. Para aquele que estivesse no meio da pista, bastava olhar para a outra ponta e ver quem estava do outro lado. Aqueles que estivessem fora de qualquer pista deveriam desmontar e se unir à assistência até que metade dos que foram sorteados para a primeira luta tivesse sido abatida. E em seguida voltava-se a circular, à espera do novo sinal da trombeta.

Da primeira vez que soou a trombeta, Birger ficou de fora, pôde desmontar e tranqüilamente assumir o seu lugar entre os assistentes. Da segunda vez ele se encontrava no meio de uma pista das mais afas­tadas e, quando olhou para a outra extremidade da pista, com o cora­ção batendo acelerado, descobriu que o seu adversário era da mesma idade.

A um novo sinal da trombeta, os dois avançaram um contra o outro, com as lanças na horizontal. Birger venceu fácil a primeira luta e com alguma dificuldade a segunda. E estava entre aqueles indicados para a terceira etapa, e que, por isso, voltaria para o campo, enquanto os vencidos tiveram que desmontar e assumir o seu lugar entre os assistentes ou, então, encaminhar-se para a cama dos doentes ou ainda, na pior das hipóteses, ser transportado para lá. As enfermeiras de Forsvik, com conhecimentos de medicina, na sua maioria vindo de países estranhos, trabalhavam cada vez mais.

Na terceira volta Birger voltou a ficar fora de qualquer pista e teve que se retirar para a assistência. Contou, então, os que ficaram dentro e verificou que, depois daquela etapa, apenas metade dos cavaleiros con­tinuaria em competição. Se tivesse um pouco de sorte com o próximo adversário, ele já estaria em breve entre os últimos remanescentes.

Mas esse tipo de sorte ele não teve. Na vez seguinte, ao parar no meio de uma pista ao sinal da trombeta, ele olhou para a outra extre­midade, respirou fundo e fez o sinal-da-cruz. Lá longe estava ninguém menos do que o cavaleiro Bengt.

Ainda bem, pensou Birger, que ninguém podia ver a expressão do seu rosto, já que todos os competidores usavam os novos elmos que cobriam toda a cabeça, deixando apenas uma fresta na altura dos olhos para permitir a visão. Dessa maneira ninguém podia ter visto como ele empalideceu.

Na primeira investida Birger conseguiu evitar a queda, apesar do impacto da lança adversária, que passou por baixo do seu escudo e o atingiu no peito, quase fazendo-o parar de respirar. Se tivesse sido atingido do mesmo jeito por uma lança de guerra, já estaria morto. Mas não chegou a cair e virou-se na pista para uma nova investida.

Da segunda vez ele foi varrido da sela como se fosse uma luva, visto que o cavaleiro Bengt o atingiu de uma forma que todos em Forsvik aprendiam e que era designada como a vassourada de Arn, com a lâmina horizontal da lança. Ele não se machucou na queda, levantou-se imediatamente e subiu na sela de novo. Todos os que haviam cavalgado ao mesmo tempo que Birger e o cavaleiro Bengt já tinham terminado e desmontado como vencedores ou perdedores. Todos os olhos se voltaram, então, para os dois que voltariam a lutar e sabiam quem iria sair vencedor. E ao mesmo tempo esperavam que o jovem Birger não se machucasse muito.

Ambos acertaram em cheio os escudos um do outro e, então, a sorte favoreceu o cavaleiro Bengt, mais pesado e com mais equilíbrio na montaria. Birger de novo foi jogado no chão, mas desta vez de forma mais perigosa. Foi jogado para trás e caiu de costas e de cabeça no solo. O cavaleiro Bengt deu uma virada rápida no cavalo, saltou da sela, jogou para o lado o seu elmo e correu na direção de Birger, reti­rando cuidadosamente o elmo dele. Birger estava zonzo e ressentiu-se da luz forte ao lhe ser retirado o elmo. De início também parecia não saber ao certo onde se encontrava.

— Está tudo bem com você, meu nobre Birger? — perguntou o cavaleiro Bengt, preocupado.

— Eu não estou pior do que mereço — respondeu Birger, tentan­do sorrir de uma maneira amargamente máscula. — Eu faço votos de que a sorte o acompanhe sempre, cavaleiro Bengt — continuou ele, com um sorriso mais largo.

— Contra um adversário tão terrível é preciso mesmo ter um pouco de sorte — disse o cavaleiro Bengt, sorrindo de volta e pu­xando-o para cima, de modo que Birger ficasse de pé. E ficou, se bem que ainda um pouco cambaleante.

O torneio terminou como o esperado. Ninguém conseguiu derru­bar o cavaleiro Bengt, que venceu a competição sem nunca ter estado em dificuldades, o que era uma honra excepcional para Forsvik, onde os adversários eram melhores do que em qualquer outro lugar do reino.

Quando retirou sua armadura e a pendurou no seu lugar marcado na cavalariça, Birger estava com dor de cabeça e sentia dores por todo o corpo. Estava pior do que esperava. Apesar de o peito estar protegi­do por uma malha de aço, placas de metal e um tecido fortemente acolchoado, ele tinha algumas contusões. Não se lamentava. Afinal, todos em Forsvik viviam com manchas roxas no corpo. Mas pensou que não havia muitos que agüentassem e continuassem montados em seus cavalos depois de receberem uma pancada daquelas.

Ao sair da cavalariça, com a sua roupa normal, estavam à sua espe­ra três companheiros e amigos de infância. Eram Iben Ardous, Johannes Jacobian e Matteus Marcusian, e todos o cumprimentaram carinhosamente, com tapas nas costas e palavras de consolação, dizen­do que ele fora o único que conseguiu ficar sentado na sela após uma pancada dada pelo cavaleiro Bengt e que tinha sido muito bom que pelo menos um dos jovens tivesse avançado e subido um pouco na classificação. Birger sussurrou alguma coisa sobre ter sido uma pena ter se defrontado tão cedo contra, justamente, o cavaleiro Bengt. Se não fosse isso, podia ter feito melhor. Mas os seus companheiros rea­giram então com risos e piadas. O que não teria sido muito melhor se ele tivesse que se defrontar com os outros cavaleiros já formados e que o cavaleiro Bengt, certamente, estaria esperando por ele, de qualquer maneira, na grande final do torneio.

Em Forsvik, toda a gente, jovens e adultos, sabia mais sobre os jogos de guerra do que quaisquer outros de fora, mas entre esses ami­gos só Matteus Marcusian tinha, realmente, um interesse vivo por esses jogos, pois estava no último ano da escola de guerra de Forsvik. Tinha tentado entrar despercebido no campo de treinamento, acredi­tando que o olhar severo do cavaleiro Oddvar não iria distingui-lo entre tantos que estavam vestidos da mesma maneira. Mas enganou-se completamente. O cavaleiro Oddvar logo o reconheceu e baixou a sua lança no caminho quando Matteus pensou que já estava dentro.

Iben Ardous trabalhava uma parte do dia na vidraria, embora mais tempo do que isso durante o inverno. No seu outro horário de trabalho ele ficava na serralheria, dando forma a peças de cobre, uma arte que era mais desenvolvida pelos sarracenos do que pelos povos nórdicos. Johannes Jacobian seguia os passos do seu pai e trabalhava com rodas, dentadas e não dentadas, e serras. Logo lembrou a Birger que ainda não tinha tido a oportunidade de lhe mostrar as novas ser­ras e o que era possível conseguir com elas. Birger pediu desculpas, envergonhado, dizendo que tivera muito o que fazer desde que voltara para Forsvik, mas que agora tinha tempo de sobra.

Os quatro amigos seguiram em alegre conversa na direção das ser­rarias e caíram imediatamente no dialeto que usavam ainda crianças, onde se misturavam o nórdico, o árabe, o saxônico e o latim. Era uma salada de línguas que se tornava um linguajar secreto entre eles, total­mente incompreensível para os de fora.

Nas serrarias houve uma mudança enorme e notável. Antes, as serras não podiam girar mais rápido do que a roda do alcatruz à qual a serra ficava ligada. A dificuldade com a lentidão do trabalho resulta­va do aquecimento das serras cuja temperatura era reduzida por meio de água fria jogada por cima delas. Em contrapartida, a madeira molhada ficava mais dura para serrar.

Entretanto, chegou-se a uma forma de encurtar o tempo de corte pela metade por meio de um artifício, ao soldar na ferraria as serras a eixos menos grossos fixados a rodas dentadas que eram acionadas por outras maiores, ligadas, por sua vez, a roldanas de madeira grandiosas. Estas eram tão grandes que chegavam ao teto da serraria. Entre as grandes rodas e as pequenas a ligação era feita por meio de tiras de couro. Era um autêntico milagre ver como as grandes rodas, movendo-se lentamente, acionavam as pequenas, de tal forma que, no fim da linha, a serra se movia com uma velocidade estonteante.

Johannes estava extremamente orgulhoso desta melhoria e deu a entender que tinha ajudado o seu pai, o mestre Jacob Wachtian, a des­cobrir e a montar essa nova maquinaria. Mas, então, chegou a hora de os seus amigos rirem dele e lhe darem uns tapas nas costas. Johannes, no entanto, não se deixou abater, antes arrastou Birger e os outros amigos pela serraria para lhes mostrar ainda outra novidade.

A serraria estava parada, sem nenhum trabalho em andamento, de modo que Johannes andava pelos seus corredores como se fosse um esquilo ansioso por mostrar e explicar. No meio do galpão havia uma laje tão lisa que parecia a superfície de um lago quieta e intocada pelo vento. Por cima, suspensa por polias e roldanas, havia outra pedra do mesmo tipo e com o mesmo acabamento. Johannes contou que era muito difícil polir daquela forma uma pedra daquelas, mas que o tra­balho valia a pena. Isto porque, antes, era ainda mais difícil produzir lâminas de aço bem lisas e ainda muitíssimo mais difícil endurecer os cantos das lâminas sem que vergassem. Se as lâminas ficassem com um mínimo de curvatura, elas se partiam quando testadas contra troncos de madeira, em especial contra os dos carvalhos. Mas agora, com a ajuda dessas grandes pedras planas e lisas, podiam-se produzir as serras totalmente lisas que eram aquecidas na ferraria na temperatura justa que era aquela em que, ainda vermelhas, elas começavam a escurecer.

Birger estava pouco interessado nessas novidades, mas reconheceu que elas tinham a sua importância e fez todo o possível para não ferir os sentimentos do seu amigo Johannes com seu desinteresse. Antes seguiu com ele para a vidraria e a oficina de cobre para escutar o que ele tinha a dizer sobre outras novidades. Mas depois disso também Iben Ardous e Matteus Marcusian começaram a ficar cansados, e quando Iben sugeriu que fossem buscar os arcos e as flechas, coisa que no momento podiam fazer sem ter que pedir autorização, todos, embora por motivos diversos, concordaram com a sugestão.

Os jovens que freqüentavam o último ano na escola de guerra de Forsvik, como Matteus, e ainda os instrutores, como Birger, podiam ir buscar qualquer arma em qualquer altura no rico depósito de Fors­vik. Para os outros, porém, a coisa era mais difícil e os armeiros res­ponsáveis pelo depósito costumavam ficar se lamuriando quando ti­nham que enfrentar as conversas desses outros que vinham sem a devida autorização.

Havia pouca gente nas pistas de tiro, portanto nem Matteus nem Birger precisavam se preocupar com qualquer flechada que saísse errada.

Entre eles não existia qualquer espírito de competição, visto que todos sabiam ser Birger muito superior no tiro com arco. Desde criança que ele treinava persistentemente com aquela arma. Isso porque tanto o seu pai quanto o seu avô tinham sido os melhores arqueiros do reino.

Durante algum tempo, os dois praticaram tiro com arco, mais de brincadeira do que a sério, e em seguida tanto Birger quanto Matteus passaram a corrigir algumas falhas nos outros dois amigos em vez de atirar eles mesmos. Decidiram, então, que iriam fazer uma caçada assim que a oportunidade surgisse. Johannes e Iben ficariam de tocaia, na espera, enquanto Matteus e Birger iriam direcionar a cavalo os ani­mais selvagens para o lugar determinado, ou até, com um pouco de sorte, tentariam atirar da própria montaria.

Ficaram falando com entusiasmo da próxima caçada, mas havia alguma outra coisa na atmosfera entre eles, que Birger logo suspeitou do que fosse. Iben Ardous foi o primeiro dos três a perguntar sobre a coroação em Linköping. E pela atenção repentina de todos, Birger viu que isso era uma coisa sobre a qual todos queriam ouvir. Embora todos fossem amigos de infância, talvez nenhum quisesse reconhecer que havia algo que os diferenciava, mas os outros não podiam fingir que não sabiam disso por muito mais tempo. Birger era o único dos quatro que podia ser convidado para a cerimônia de coroação. Matteus, evidentemente, esperava que, no futuro, ao ser formado e armado cavaleiro pela escola, isso também poderia vir a acontecer, mas para ele era muitíssimo mais importante ser armado cavaleiro do que convidado do rei.

Birger tinha se convencido, reconheceu então, que nenhum deles iria fazer essa pergunta. E agora que a pergunta tinha sido feita, não restava outra coisa a fazer a não ser responder, embora estivesse dispos­to a não tornar a história tão importante. Pegou uma flecha do cesto mais próximo e, alisando o chão com os pés, começou a desenhar com a ponta a disposição do séquito da coroação em Linköping.

À frente, no séquito, cavalgavam quarenta folkeanos e quarenta erikianos, mostrou ele com uma linha grossa e longa e uma outra, mais fina e ondulada. Assim fora determinado desde o início, a mando do soberano, continuou ele. Mas isso não havia se configura­do ainda aos olhos do rei Erik, pois, na realidade, os cavaleiros folkea­nos, que eram todos forsvikianos, apareceram muito mais fortes e bem armados do que os erikianos. E isso pareceu como se o reino esti­vesse apoiado e coxeasse em uma perna mais forte do que a outra. Quando viu isso na praça, o rei decidiu imediatamente que era para os cavaleiros seguirem dois a dois. Primeiro, dois erikianos, depois, dois folkeanos, e assim por diante, misturando as duas famílias.

Birger alisou as linhas grossa e fina, substituindo-as por várias linhas pequenas, variando entre fortes e fracas, uma atrás da outra, para mostrar como a apresentação dos séquitos da coroação tinha começado.

Depois dos cavaleiros, continuou ele, contando, com a ponta da flecha no chão, vinham os dois homens portando as bandeiras; Karl, o Surdo, em representação dos folkeanos, e, se ele se lembrava bem, um Holmgeir, pelos erikianos. Depois dos homens com as bandeiras, vinha um grupo de amigos do rei, vestidos de negro, assistentes da organização, prontos para atuar em qualquer frente, e, a seguir, um grupo de homens de leis e cortesãos da Svealand, vestidos com grossas peles e pernas envoltas com peles amarradas, embora se estivesse no fim do verão e o tempo fosse quente. Ele repetiu as palavras dos cor­tesãos da Svealand de uma maneira que imitava o sotaque deles, ao mesmo tempo que dava alguns passos, de pernas bem abertas e andar pomposo, com a barriga ao vento e um dedo apontando para o nariz dando a idéia de longa barba, mas interrompeu de imediato a repre­sentação ao achar que a reação dos seus amigos estava sendo exagera­damente alegre diante de uma piada para ele tão inocente.

Um pouco acanhado, Birger se apressou a desenhar no chão linhas curtas, descrevendo como tinham sido as roupas usadas na coroação, os dois jovens que portavam os cetros, aquele que avançou com a coroa até o rei e os dois bispos manhosos, embora ele não tivesse visto muito de tudo isso.

E então ele ficou parado, nada mais dizendo e parecendo que que­ria voltar para os exercícios de tiro com arco, já que nada mais de importância havia para acrescentar sobre o evento.

— Mas onde é que você estava, Birger? — perguntou Matteus, ansioso.

Birger interrompeu, então, o ato de puxar a corda do arco e suspi­rou. Essa pergunta tinha sido curta e clara demais para poder ser con­tornada.

— Eu cavalguei ao lado de um idiota erikiano chamado Knut Holmgeirsson, alto como um poste de barraca — disse ele como se isso fosse tudo o que precisava contar. Mas, olhando nos olhos dos outros, chegou à conclusão de que eles ainda não estavam satisfeitos. E, embora contra a vontade, continuou:

— Knut Holmgeirsson carregou um dos cetros da coroação com a cruz de Cristo no topo, e eu carreguei o outro, com uma águia de asas abertas. E a respeito disso não há muito mais a acrescentar, a não ser que o nobre Knut criou dificuldades, não querendo cavalgar ao meu lado.

Os amigos perguntaram-lhe, então, na hora, e quase ao mesmo tempo, a respeito dos cetros e em relação a esse nobre que se achara tão importante e que tipo de argumentação ele usara para justificar o seu comportamento tão desrespeitoso e presunçoso. Exatamente como Birger tinha imaginado, várias perguntas foram feitas ao mesmo tempo e, portanto, ele poderia escolher qual a melhor resposta a dar, sem que isso demonstrasse uma vontade sua, de se vangloriar, coisa que, evidentemente, ele não queria fazer de jeito nenhum.

— O pai de Knut Holmgeirsson, Holmgeir, é neto do sagrado santo Erik — explicou ele, sério. — Do mesmo modo, também o é o rei Erik Knutsson. Mas se o rei Erik não tiver descendentes com a jovem Rikissa, talvez nunca tenhamos que enfrentar uma exigência de sucessão da parte desse Knut que cavalgou ao meu lado. Foi por isso que ele reagiu como um tolo, reclamou diante do rei e foi repreendido.

— De que maneira ele foi repreendido pelo rei? — perguntou Iben Ardous, bem orientado pela maneira de Birger contar a respeito de várias coisas ao mesmo tempo, mas deixar para o final aquilo que ele mais gostaria de falar.

— O nobre Knut reclamou diante do rei que ele achava injusto ter que cavalgar ao lado de um folkeano cheio de ornamentos e que usava um manto mais caro que o seu — disse Birger, sorrindo. — E mesmo que não fosse verdade, esse manto era tão notável, pois dizia-se que havia pertencido a Arn Magnusson, com as três cruzes dos tem­plários, que só quem fosse cego é que deixaria de notá-lo a longa dis­tância. Dessa forma, o nobre Knut mordeu a própria língua, sem en­tender exatamente como e o quanto estava se comportando mal dian­te do seu rei.

— E o que disse, então, o rei? — perguntou Johannes, extrema­mente interessado e atento, apenas um momento antes dos outros.

— Ele repreendeu o seu parente, dizendo que ele próprio, o rei, conhecia muito bem esse folkeano cheio de ornamentos e que era ele, e ninguém mais, que estava ali para ser coroado — descreveu Birger em voz baixa, rapidamente, como se tivesse expressado com essas pala­vras um golpe mortal. — E sobre o assunto não há muito mais a acres­centar, a não ser que o nobre Knut manteve uma expressão sombria durante toda a cerimônia de coroação e, a certa altura, chegou a inves­tir contra mim, dizendo que iria me dar uma boa surra na primeira e melhor oportunidade que tivesse. E se vocês querem saber o que eu lhe respondi, disse que estaria à disposição dele para qualquer luta e que já conhecia de perto o tipo de covardes que eram os erikianos... Não, acho que esta última frase eu talvez não tenha dito.

Birger jogou de novo a flecha no cesto e esticou os braços sobre a cabeça, flexionando os músculos como se nada mais houvesse para dizer. Mas esperou tranqüilo as muitas questões que os outros, impa­cientemente, jogaram sobre ele antes que escolhesse a sua resposta.

— O resto não teve a menor importância e é fácil para vocês ima­ginar — disse ele enquanto se alongava. — Basta pensar em uma missa extremamente longa e duplicar essa idéia. E, além disso, estava um dia quente, de verão tardio, e as pessoas se amontoavam como se fossem arenques em um barril de salgação. É claro, depois aconteceu o normal, com muita cerveja e carnes em profusão.

E, então, com uma nova flecha no arco, resolveu soltá-la, ficando satisfeito ao ver que tinha acertado bem no anel central, dentro do alvo.

 

Bem cedo, num amanhecer vermelho que prometia bom tempo para viajar, aqueles que iam buscar a noiva deixaram Forsvik. Quarenta cavaleiros, em uniformes de guerra e completamente armados, caval­gavam alinhados por um dos lados, e outros quarenta, do outro lado. No meio e à cabeça, entre os cavaleiros, seguiam as quatro viúvas. Atrás vinham os jovens amigos e assistentes, com os cavalos que carre­gavam as bagagens e com cavalos já selados para os cavaleiros dina­marqueses que quisessem descer a terra. Não precisariam de carnes frias para comer com pão, cerveja e outras refeições, visto que Cecília Rosa havia pensado em tudo, em como e para onde a viagem teria que correr a cada dia, de modo que teto sobre as cabeças e ceias cristãs sempre estariam esperando pelos viajantes.

Na frente do cortejo, seguia o cavaleiro Bengt, com a bandeira fors­vikiana que era composta de quatro espaços iguais. O leão folkeano ficava no quadrante superior, à esquerda, e o símbolo da família de Cecília Rosa, com faixas prateadas sobre um fundo negro, no canto inferior direito. Nos outros dois espaços, havia as três cruzes vermelhas dos templários, sobre fundo branco, além da rosa vermelha forsvikia­na, que Cecília Rosa escolheu para seu símbolo, sobre fundo negro.

À frente das quatro viúvas seguiam quatro cavaleiros, porta-bandeiras, cada uma das bandeiras representando a respectiva família. O grifo negro sobre fundo vermelho para Ulvhilde Emundsdotter e Ingrid Ylva; as três coroas erikianas diante de Cecília Blanka, que via­java com a sua coroa por cima do véu preto da viuvez, e, finalmente, o escudo negro da família pal, com faixas prateadas, agora também com a rosa vermelha, diante de Cecília Rosa.

Séquitos maiores para buscar noivas tinham sido vistos antes no país, mas nenhum tão poderoso. Quando o sol subiu no horizonte, seus raios rebrilhavam nas pontas das lanças recém-limpas e lixadas, assim como na prata das vestes de malha e nos equipamentos de aço polido. Via-se o séquito a longa distância e logo que este se aproximou da primeira aldeia vieram cavaleiros malvestidos, mas preocupados em saber se era a morte que estava chegando, mas logo foram acalma­dos com a informação de que se tratavam de folkeanos a caminho de Lödöse para receber a nova rainha. Dessa maneira foi o que ocorreu em cada uma das pequenas cidades que o séquito atravessou, com as pessoas acorrendo para presenciar o desfile assim que se livravam do medo da morte.

Há apenas vinte anos, essa era uma região em que a guerra seria problema de fazendeiros e em que a honra e desentendimentos pes­soais causavam mais dificuldades do que dinheiro e terras. E nessa época todos os donos de terras se digladiavam a pé, mesmo que che­gassem a cavalo ao lugar da luta.

Mas, então, tinha voltado da Terra Santa um templário, junto com alguns combatentes, para a Götaland Ocidental. E com eles os ventos mudaram. Forsvik tornou-se a nova escola de guerra onde agora os filhos deles que primeiro se inscreveram para aprender tinham recebido a espada forsvikiana e a sua lança, sinal de que dez anos de exercícios tinham chegado ao fim. E, em breve, os filhos des­tes iriam começar o seu curso em Forsvik, a não ser que acabassem nas mãos do cavaleiro Bengt, em Ymseborg, ou do cavaleiro Sune, em Älgarås, ou no castelo de Gum, que também pertencia aos folkeanos.

Entre os homens que no momento cavalgavam no séquito da noiva, mais da metade tinha estado presente na vitória contra o pró­prio Valdemar, o Vencedor, da Dinamarca. Uma força como aquela que agora passava pela região, com oitenta forsvikianos bem armados, equivalia a um exército de camponeses com vários milhares de homens em ação e esperando a morte.

O que se via passar por ali era o novo poder do reino.

Era uma visão que, na medida certa, metia medo a qualquer seqüestrador de noivas. O seqüestro de noivas era comum. A noiva de algum homem era seqüestrada porque algum outro homem queria ir para a cama com ela. Ou porque o seqüestrador queria vendê-la de volta para o noivo por um bom preço, embora nesse caso a devolves­se intocada, tal como a tinha seqüestrado.

A irmã do soberano dinamarquês devia valer o seu peso em ouro para o rei Erik. Mas para qualquer seqüestrador de noivas que tivesse essa idéia, o séquito nas cores prata e azul iria meter mais medo do que as línguas de fogo do Senhor.

Foi uma viagem agradável para as quatro viúvas à frente do séquito. Dispunham de muito tempo e, além disso, até com o tempo tiveram sorte. Ingrid Ylva queria dizer com isso que o bom tempo quase com certeza iria continuar, isto porque o dia seguinte era o do aprisionamento de Pedro. Se chovesse no dia do aprisionamento de Pedro, significaria que o tempo assim se manteria por mais de uma semana. Mas, por outro lado, se esse dia fosse de bom tempo, assim continuaria.

As quatro viúvas, portanto, tinham todas as razões para estar de bom humor. A longa luta pelo poder real parecia ter chegado ao fim. E isso alegrava Ingrid Ylva e Ulvhilde tanto quanto às outras duas, apesar de estas serem sverkerianas e cavalgarem com o grifo negro diante de si. Se fossem homens, raciocinava Ingrid Ylva, estariam, provavelmente, mortificados pela idéia de que a luta tinha chegado ao fim e que eles estavam do lado que havia perdido. Porque foi isso que aconteceu. Agora que o rei da Dinamarca, tão claramente, tinha assi­nado a paz com o rei Erik, aquele que, sem sucesso, tentou derrubar por duas vezes, com a ajuda dos seus amigos sverkerianos, era o fim. A jovem e virgem Rikissa logo estaria pronta para dar à luz e, mais cedo ou mais tarde, viria um filho. Ou, melhor ainda, dois filhos, já que a vida, por vezes, podia ser injustamente curta tanto para os que esta­vam por cima como para os que estavam por baixo.

Mas que a luta pelo poder tinha terminado, continuou Ingrid Ylva, significava também que a paz viria e que os anos de boas colhei­tas estavam para chegar, tal como nos velhos tempos do antigo rei Knut Eriksson.

As duas Cecílias, que tinham grandes recordações de tempos de guerra e de paz, concordavam de boa vontade com isso. Uma vez, ambas tinham estado confinadas no convento de Gudhem, como familiares involuntárias, e muito pouco sabiam da luta que se alastra­va fora dos seus muros. Falavam dessa época uma para a outra antes de Cecília Blanka assumir, revendo os últimos dias dessa luta, quando, ao longe, viram surgir homens armados na direção de Gudhem. As duas subiram aos muros na esperança de que fossem erikianos e folkeanos, com as suas cores azuis. Mas eram cavaleiros vermelhos que estavam chegando. Primeiro, os seus sentidos congelaram diante dessa visão. Mas, depois, ao verem os cavaleiros se aproximarem, verificaram que todos estavam mais ou menos feridos e em fuga. Então, as Cecílias entenderam que o seu lado havia ganho e essa emoção fora sempre difícil de descrever posteriormente, e ainda mais difícil de mencionar, quando, no momento, estavam cavalgando ao lado de duas parentes sverkerianas.

No entanto, depois da vitória nos prados de sangue, perto de Bjälbo, houve um longo período de paz. Em lugar algum do céu se podia imaginar a existência de nuvens. Em lugar algum do mais ínti­mo dos recônditos do pensamento se podia imaginar o perigo de a guerra recomeçar. E, todavia, foi isso que aconteceu.

A guerra era como a chuva, terminou por dizer Cecília Blanka em tom amargurado. Depois do sol vinha a chuva e, assim, era como se as pessoas se esquecessem de que o sol e a seca acabavam sempre por voltar.

Sobre esta triste sabedoria Cecília Rosa permitiu-se brincar um pouco com a rainha viúva. Elas eram amigas de verdade desde a sua tenra juventude e sempre falaram uma com a outra, sem rodeios, tanto antes como depois de uma delas ter se tornado rainha. A chuva, segundo Cecília Rosa, de qualquer maneira, era a água da vida, aqui­lo que proporcionava boas colheitas. Com a guerra — e com isso a boa rainha viúva concordava — acontecia exatamente o contrário.

E desta armadilha verbal, que uma das Cecílias havia montado para a outra, todas riram bastante. E assim o bom humor entre elas voltou a dominar.

O primeiro dia de viagem levou-as até o castelo de Lena, e o segundo, até Gälakvist, perto de Skara. No terceiro, como previsto, chegaram ao porto e à torre de Lödöse.

Os ventos tinham sido favoráveis e o tempo estava seco, tal como havia sido previsto para o dia de São Pedro. Os dois barcos dinamar­queses chegaram, portanto, na hora prevista ao porto de Lödöse, ambos com a bandeira branca e vermelha do rei da Dinamarca.

A paisagem à volta do porto, com a torre e os muros de madeira da zona de comércio, era plana e os homens do rei Valdemar a bordo ficaram olhando por momentos para a praia, surpresos, ao verificar que não havia nenhuma multidão, nem nenhuma bandeirola que des­se a entender que ali era esperada uma irmã do rei. O primeiro pensa­mento dos homens a bordo foi o de que os viajantes suecos estavam atrasados, o que sempre podia acontecer, até mesmo nas ocasiões mais importantes.

Mas, então, ouviram o barulho das patas de cavalos chegando. Uma longa linha de ataque composta por cavaleiros de lanças em riste se aproximava a galope como se pensassem em investir contra os bar­cos no rio. Essa visão deixou boquiabertos os homens da corte dina­marquesa. E os marinheiros também.

Entretanto, as imagens seguintes pareceram ainda mais estranhas. A linha longa e reta de cavaleiros desfez-se, de repente, e se recompôs em quatro grupos, iguais em tamanho, como que a um sinal de trom­beta. Depois cavalgaram enviesados para os barcos e em direção uns contra os outros. À primeira vista, parecia pura loucura e uma coisa que só podia acabar em grande tragédia. Mas o primeiro grupo passou os outros, apenas a uma distância de uma lança, e foi, depois, passado pelo segundo grupo, a uma distância de apenas um braço e, ainda, pelos outros dois grupos. A um novo sinal de trombeta, os cavaleiros viraram ao mesmo tempo os seus cavalos e se viraram uns contra os outros. Era como se, de repente, eles entrassem em formação entrança­da, a uma velocidade estonteante, virados para a praia, os cavalos resfo­legando e as armaduras de aço refletindo os raios solares. Se tivessem se exibindo perante uma formação inimiga, eles teriam causado tanto uma grande desorientação quanto um enorme medo nos adversários.

A um terceiro sinal de trombeta, todos os cavaleiros se reagrupa­ram em duas alas viradas uma para a outra, de lanças apontadas para o chão, subindo desde a praia e formando um corredor. Tudo foi feito num espaço de tempo curtíssimo. E foi uma demonstração extraordi­nária de desempenho na arte de cavalaria.

Após alguns momentos, com as duas alas já formadas, ouviu-se um novo sinal de trombeta e quatro cavaleiros com as suas bandeiras vieram a trote, entre as alas, nas quais os cavaleiros elevaram as suas lanças em continência. Os quatro cavaleiros enterraram, então, as bandeiras na areia e se retiraram a galope pelo mesmo caminho. A seguir, durante alguns momentos, não aconteceu nada. Apenas as quatro bandeiras continuaram desfraldadas ao vento, duas vermelhas, uma azul e outra verde.

E então avançaram as quatro senhoras com vistosos mantos colo­ridos, montadas lado a lado em esplêndidos garanhões negros de cri­nas prateadas. Avançaram sem pressa, com os cavalos a passo, elevan­do bem alto as patas a cada passada. Uma das senhoras no meio vinha com a coroa de rainha na cabeça e outra segurava pelas rédeas um cavalo branco coberto por um tecido vermelho bordado com fios de prata e muitas pedras preciosas incrustadas.

Perto dos píeres, elas pararam. A mulher que portava a coroa na cabeça desceu do cavalo primeiro e o fez com uma facilidade espantosa, considerando-se a idade que aparentava. Nem a coroa na cabeça oscilou.

Depois as outras senhoras também desceram dos seus cavalos e caminharam em seguida com o cavalo branco na direção do píer maior. Estavam todas alegres e sorridentes. A senhora coroada deu, então, mais um passo à frente e levantou nas mãos um pão que ela car­regara por baixo do seu manto azul.

O maior dos barcos dinamarqueses jogou, então, os cordames para fora, que o pessoal do porto foi pegar com alguma hesitação. Todos tinham se escondido atrás dos muros de madeira quando ouvi­ram o tropel dos cavaleiros chegando. Assim que o barco foi puxado para o cais e as senhoras poderiam falar com os homens a bordo, a rai­nha viúva fez a sua saudação de boas-vindas:

— Eu sou a rainha Cecília Blanka, esposa do rei Knut Eriksson e mãe do rei Erik Knutsson — começou ela por dizer, em voz alta e clara, que poucos poderiam esperar de uma senhora idosa como ela. — Comigo estão senhoras proeminentes das províncias dos gotas e dos sveas, de um reino a que os estrangeiros chamam de o país dos sveas. E nós viemos para receber a jovem Rikissa e levá-la em seguran­ça e por amizade até o leito nupcial.

Só então surgiu Rikissa. Hesitante como uma ovelha, perturbada, mas curiosa, ela deu um passo em frente até a amurada e olhou para os homens à sua volta, que não sabiam que resposta dar, já que nenhum deles sabia quem era o mais proeminente e a quem se dirigir, e o que, nesse caso, devia dizer. Em vez disso, ouviu-se uma ordem curta para lançar uma prancha para terra.

Rikissa, da Dinamarca, vestia um longo manto vermelho, em tom sangüíneo, e por baixo um vestido branco de um tecido a que chamavam de seda e pellum gullskotum, entrelaçado com fios dourados, em uma padronagem ondulada sobre fios de prata. Na cabeça trazia uma coroa de ouro e à volta da testa uma fita estreita. Os seus cabelos louros e longos pendiam livres sobre os ombros e a gola de pele de arminho do seu manto.

Uma prancha longa e estreita de madeira fora disposta do barco até o píer. Rikissa hesitou um pouco antes de tomar coragem para des­cer, a passos vacilantes, para o píer onde a esperava a rainha Cecília Blanka que, primeiro, a abraçou e depois a convidou a aceitar o pão e o sal da praxe de boas-vindas, presente que Rikissa, surpreendente­mente, pegou logo, antes que as outras três senhoras, em roupagem de luto, pela ordem, a abraçassem.

Quase que involuntariamente também desceram do barco seis homens com roupagens das cores reais da Dinamarca e um bispo de preto. Fizeram uma saudação respeitosa, mas fria, perante as quatro senhoras, e ficaram olhando em volta como que procurando se havia mais alguém a quem cumprimentar. Mas os cavaleiros forsvikianos continuavam a cavalo, sem mudar a expressão do rosto e sem mostrar qualquer intenção de desmontar.

Os dinamarqueses explicaram que iriam seguir com a jovem Rikissa até o rei sueco, e logo Cecília Blanka acenou com o braço para os jovens assistentes trazerem cavalos para os visitantes. Mas quando os distintos dinamarqueses viram os cavalos torceram o nariz e expli­caram que eram todos nobres, de alto nível, e, por isso, com direito a transporte de carruagem ou charrete. Eles não queriam acreditar no que ouviam quando Cecília Blanka lhes disse na cara e sem rodeios que a única coisa que lhes podia oferecer era cavalo e sela.

Quando esta questão pareceu crescer a ponto de discussão, a jovem Rikissa quase que chorava.

— Você não está só, minha querida Rikissa — sussurrou Cecília Rosa, inclinando-se para ela. E acrescentou: — Eu sei por experiência própria que essas palavras são as mais reconfortantes que uma jovem em ocasião difícil pode ouvir. Nós somos as mulheres do reino e vamos levá-la em segurança para o seu marido, sendo que esses cava­leiros ágeis à nossa volta obedecem ao nosso menor sinal.

— Eu lhe agradeço, minha nobre senhora — respondeu Rikissa, ainda olhando preocupada para os seus acompanhantes que pareciam não estar dispostos a seguir viagem caso tivessem que ir a cavalo. — Eu vim até aqui porque obedeço ao meu irmão e vou fazer tudo o que se espera de mim, assim Deus me ajude e a Virgem Maria também. Mas nem eu vou de carruagem ou charrete?

Com raiva ou por orgulho, os nobres e o bispo dinamarqueses voltaram para bordo do seu barco e mandaram colocar em terra a bagagem da jovem Rikissa que, imediatamente, foi levada por jovens serviçais para os cavalos de carga. Em seguida, soltaram-se as amarras do barco dinamarquês que começou a deslizar pelo rio. Rikissa olhou para trás, preocupada, vendo os seus compatriotas cada vez mais longe. Mas Cecília Rosa abraçou-a novamente, reconfortando-a, enquanto pelas suas costas fazia sinal para Ingrid Ylva, a fim de que trouxessem a égua branca.

A jovem Rikissa hesitou e olhou, implorando, para cada uma das quatro viúvas, a quem agora estava entregue.

— Isto aqui é melhor do que charrete ou carruagem — disse a rai­nha viúva Cecília Blanka. — Veja que bonita trotadora arranjamos para você, Rikissa.

— Mas eu sou a irmã do rei, viajo sempre de charrete ou carrua­gem — respondeu Rikissa, olhando fixamente para a égua branca. — Como é que posso cavalgar como um homem esse longo caminho?

— Não como um homem — disse Cecília Blanka, rindo muito, mas amigavelmente. — Mas como uma de nós. Porque, com todo o respeito, minha nobre menina, eu sou rainha e cavalgo. Comigo andam também a cavalo as minhas amigas, que vão ser também suas amigas. E todas nós cavalgamos. Essa é a tradição neste país do qual você vai ser a rainha. Basta ficar perto de nós e tudo correrá bem.

Assim que Rikissa entendeu que não tinha outra escolha, desapa­receu a sua preocupação, ou era vaidade, e passou a rir toda satisfeita. A um pequeno sinal de Cecília Rosa o jovem Emund veio correndo e se postou com os dedos das mãos entrelaçados para ajudar Rikissa a subir, enquanto Ingrid Ylva segurava o animal pelos arreios e Cecília Rosa ajustava-lhe o estribo e lhe oferecia as rédeas.

Embora de início a cavalgada por parte de Rikissa fosse um pouco vacilante, logo melhorou. As viagens diárias eram curtas, o solo era suave e o tempo continuava bom.

Quando a jovem Rikissa, ao terceiro dia de viagem, chegou à praia do Vättern, onde o barco do rei viria buscá-la para a curta transferência para Näs, ela estava de muito bom humor e brincava, falando sem cons­trangimento de seu traseiro dolorido. Durante a viagem, as mulheres tinham conversado sobre muito mais coisas do que apenas hábitos de cavalgar. E Rikissa sentia-se já tranqüila e convencida de que tinha con­quistado quatro boas amigas, em quem podia confiar, com quem podia se confessar e que, sem dúvida, iriam apoiá-la em tudo.

Na viagem pelo Vättern, com intrigantes marinheiros noruegue­ses, ela empalideceu de novo e os seus medos voltaram. Aqueles pen­samentos que ela havia afastado da cabeça, trocados por risos e brin­cadeiras, com a ajuda sempre agradável e divertida das quatro viúvas, embora também por conversas sérias sobre a vida de mulheres jovens em conventos, o que as unia a todas, esses pensamentos voltaram, a princípio quase sem que ela notasse, como se fosse o primeiro fino gelo do outono.

Em breve ela estaria frente a frente com um rei-guerreiro a quem o irmão a oferecera em troca da paz, apenas pela simples razão de que tinha outras guerras para fazer.

Era esse homem e esse rei, pensava ela, que por duas vezes havia vencido os exércitos de Valdemar, o Vencedor, que ela teria de encarar. Como uma corrente de ar frio, os pensamentos proibidos atravessa­ram novamente a sua cabeça. E ela agasalhou-se melhor com o seu manto e se aconchegou junto do aquecimento na popa do barco onde os noruegueses tinham reservado lugar para ela.

Ao ser buscada no convento, sem aviso, ela ficou esperando que se tratasse, realmente, de casamento. Mas não com um rei estrangeiro, como aconteceu com a irmã dela, que foi mandada para o país dos francos. Ela tinha um amigo querido na família Hvide e se convenceu de que era dele que se tratava, até que ficou frente a frente com o chanceler do seu irmão. Por isso o seu desespero fora ainda maior e, no pior dos momentos, chegou a pensar no pior dos pecados, o de tirar a sua própria vida. Um guerreiro, na fria região nórdica, era a derradeira das suas esperanças, só antes da morte. Rápido como uma pequena ave, agitando as asas sobre a superfície das águas, um pensa­mento passou pela sua cabeça, o de saltar e se jogar nas águas azuis e frias do lago. Mas reconheceu de imediato que os noruegueses a bordo, certamente, eram responsáveis por ela e respondiam por isso com a vida. Além disso, seria fácil demais resgatá-la.

Ela se obrigou a ter pensamentos melhores, a pensar nas quatro viúvas animadas, com quem cavalgou e conversou por vários dias. E apertou contra o corpo ainda mais o seu manto.

Na praia, descendo de Näs, esperava o rei Erik, vestido com o seu manto da coroação e com a coroa na cabeça. As águas do lago estavam calmas e da torre do castelo pôde-se ver o barco a distância.

O rei Erik já na segunda noite depois da coroação tinha feito a despedida de solteiro, cantando tudo o que sabia de canções desaver­gonhadas sobre homens e mulheres. Uma consolação era saber que a mulher que chegava naquele barco, no momento em manobras de atracação, pelo menos não era nenhuma viúva velha. Mas as suas preocupações eram grandes. Reconheceu que o seu coração batia ace­lerado como diante de um combate quando as lanças baixam e a linha de lanceiros começa a trotar.

Ambos ficaram tão surpresos ao verem um ao outro que, contra todas as regras, logo se abraçaram com entusiasmo, sem se sentirem nem um pouco tímidos nem obrigados a manter as aparências. Ne­nhum dos dois naquele momento podia ter encontrado uma surpresa melhor.

 

QUANDO A MENSAGEM chegou do convento de Riseberga de que Alde Arnsdotter pensava em voltar para Forsvik, a sua mãe, Cecília Rosa, sentiu uma espécie de virada da sorte pela primeira vez em mais de um ano. Cecília Rosa tinha cumprido todas as suas obrigações com eficiência e zelo, desde de manhã até a noite. O barco chegou ao porto no Vättern e as embarcações fluviais deixaram o porto de Viken, segundo a ordenação de sempre como se não houvesse acontecido nenhuma mudança de peso maior em Forsvik.

Na realidade, Cecília Rosa havia mudado da luz para a escuridão no momento em que o seu amado Arn morreu, após uma longa luta contra a febre causada pelas feridas sofridas em Gestilren. Durante os primeiros tempos ela realizou rigidamente, e como num sonho, tudo o que se exigia dela, mas era como se não fosse ela, antes uma outra pes­soa, ao seu lado. Quando o séquito do funeral, porém, retornou para casa, vindo de Varnhem, a respectiva recepção fraternal havia termina­do, os convidados tinham deixado Forsvik e tudo parecia ter voltado ao normal, era como se Cecília Rosa, de repente, se desfizesse em pó.

Ela começou a ponderar na maior parte do tempo sobre a vonta­de inescrutável de Nossa Senhora. Se não, perguntava a si mesma Cecília Rosa, como entender que ela e Arn tivessem sofrido tanto, ele na guerra, na Terra Santa, e ela, açoitada por um demônio do mal cha­mado madre Rikissa, no convento de Gudhem, e, ao receberem o per­dão e se reencontrarem de novo, tivessem se separado tão rapidamen­te pela morte?

Qual foi a intenção de Nossa Senhora com isso e o que Ela queria mostrar para as pessoas ao terminar com a premiação ao amor e à fide­lidade, tão rápido e logo de uma vez? Arn, durante os seus muitos anos de serviços prestados na guerra sob a Sua bandeira, muito mere­cia voltar para sua casa e para o paraíso, o que não pudera fazer duran­te vinte anos de guerra na Terra Santa, essa mercê era mais do que justa. Mas isso era só uma parte da questão. Qual seria a intenção de lhe dar aquilo que ele, sem dúvida, merecia receber em vida, mas, ao mesmo tempo, jogar a sua amada esposa e a sua filha no mais profun­do e lamentável luto? Será que Nossa Senhora, com isso, queria mos­trar para as pessoas qual era a diferença entre um homem que fora quase um santo — em Forsvik, muitos já rezavam em segredo para ele como o santo Arn — e Cecília Rosa e a filha Alde, que eram apenas pessoas comuns?

Essas ponderações, porém, levavam sempre, em círculo vicioso, ao lugar onde ela havia começado, ao infortúnio, que era grande, negro e injustificável. Não havia resposta.

Quando Alde, no seu sofrimento, decidiu recolher-se a um conven­to, Cecília Rosa chegou a pensar, primeiro, em desistir da vida. Isto por­que se ela ia perder a filha, logo depois de perder o marido, não agüen­taria mais viver. A respeito disso, de início, estava firmemente decidida.

Em breve, porém, começou a luta para conservar Alde em sua casa. Alde vivera até então uma curta vida de liberdade e tinha apenas idéias sonhadoras em relação à vida por trás dos muros do convento. Em contrapartida, Cecília Rosa havia passado mais de vinte anos den­tro de conventos, primeiro no repulsivo Gudhem e, depois, em Riseberga. Começou por descrever a vida do convento, seca e desco­lorida, mas também os pequenos e raros momentos de alegria e de bom convívio, enfeitando com muitas palavras aquilo que era bom no convento, como a arte da tecelagem, os bordados e a costura, os tra­balhos na horta e no jardim e a hora dos cânticos. Mas todos esses momentos de alegria Alde podia ter em grande quantidade em Forsvik. Enquanto que as noites geladas do inverno, passadas em salas de paredes de pedras rústicas, sem aquecimento, com cobertores finos, andando com os pés descalços sobre o chão de pedra gelada para a frente e para trás, várias vezes por noite, a água corrente para lavagens que não corria por estar congelada, e outras dificuldades no convento, tudo isso eram coisas que uma jovem bem podia evitar.

De pouco serviram, porém, as suas litanias. Para Alde, assim como para muitas outras jovens febris e sonhadoras, se oferecer para trabalhar na obra de Deus era uma maneira de reagir à dor. Ela prati­camente ela admitia que a morte do seu pai bem no meio de uma vida iluminada pela luz do sol era um sinal inquestionável dos poderes celestiais para que ela virasse as costas para o mundo, onde a sua boa vida havia terminado.

Contra essas interpretações, Cecília Rosa não queria responder nem com risadas nem com argumentações sérias e prolixas. Mas muito menos queria perder a sua filha e sabê-la atrás dos muros de qualquer convento. Cecília Rosa, entretanto, logo entendeu que a sua argumentação não valia de nada contra a dor e a inspiração religiosa, extremamente agitada, de uma donzela. Mesmo qualquer jovem mini­mamente experiente em assuntos de religião chegaria imediatamente à conclusão de que essa argumentação era egoísta e que, de forma algu­ma, poderia ser confundida com a chamada para servir a Deus.

Entretanto, essa luta para conservar Alde junto de si fez com que Cecília Rosa recomeçasse a viver a vida, já que havia algo para ter espe­rança e algo para perder.

Antes de Alde viajar para Riseberga, ambas ficaram sentadas por muito tempo, se despedindo no jardim das rosas, que, no momento, começavam a murchar e a se recolher para o inverno. Uma coisa rea­cendeu a esperança de Cecília Rosa quando conseguiu de Alde a pro­messa de que, durante o primeiro ano, ficaria apenas entre as familia­res do convento, como noviça, a fim de se certificar de que realmente queria aceitar o chamado de Deus. Para jovens de boas famílias era cos­tume poderem fazer os votos perpétuos apenas algumas semanas depois de terem entrado para o convento como noviças. Depois disso não havia volta. Cecília Rosa observava quieta as suas rosas murchando e em conseqüência das primeiras noites de geada do ano, e pensava que o inverno que se aproximava talvez já fosse uma provação suficiente no convento para a sua filha. Assim, a sua vida por trás dos muros come­çaria pelas noites invernosas. Pior seria se ela fosse começar essa nova vida, com os gelos já derretendo, diante da aproximação da primavera e do verão, época em que a vida no convento se tornava tão fácil e ilu­minada que era quase impossível imaginá-la difícil e insuportável como acontecia no inverno.

Era preciso, portanto, que Alde tivesse em boa memória as dificul­dades do inverno no final daquele primeiro ano de noviciado, quando de novo o outono se aproximava e o momento decisivo dos votos per­pétuos chegava. Ou ficaria para sempre enclausurada ou voltaria para a vida em Forsvik. Melhor e mais forte provação do que essa para uma jovem, diante da chamada para Deus, era impossível encontrar.

E no momento, finalmente, Alde optou pelo amor à vida, em vez das privações. Ao receber a mensagem, Cecília Rosa passou muitas horas na pequena igreja de Forsvik, rezando e conversando com Nossa Senhora. Depois ela se sentiu purificada e liberada de todos os pesares e uma nova pessoa surgiu aos ventos do verão. Não poderiam existir afazeres mais prazerosos do que começar a preparar a volta de Alde para casa.

Além disso, havia uma coisa que devia preocupar qualquer mãe. Ainda que a carta chegada de Riseberga fosse escrita pela abadessa Kristina, transparecia nela, notória e claramente, um desejo de Alde. Na carta dizia-se que, tendo em conta os tempos agitados em que o seqüestro de jovens pelos caminhos e pelas águas era, infelizmente, uma constante, seria perigoso deixar que Alde viajasse sozinha pelo caminho de volta, já na pré-escuridão do outono, de Riseberga para Forsvik. Portanto, seria bom e prudente que o cavaleiro Sigurd, mais alguns dos seus homens, fosse chamado a acompanhá-la em seguran­ça de volta para casa.

Deixar que Alde fizesse a viagem sozinha nem por um momento tinha passado pela mente de Cecília Rosa. Mas também isso Alde nem por um momento tinha acreditado que pudesse acontecer. Portanto, nesse aspecto, o pedido de acompanhamento e guarda de cavaleiros fora totalmente desnecessário. Como também manifestar qualquer desejo em relação a quem deveria ser dada essa missão entre todos os cavaleiros e guardas disponíveis em Forsvik.

Alde, porém, tinha indicado em especial o nome de Sigurd. Para Cecília Rosa essa foi a confirmação de uma coisa que já suspeitava. Ela havia visto, mais de uma vez, a troca de olhares entre Alde e Sigurd, desde os tempos antes da última guerra. E também notado que haviam se sentado um ao lado do outro durante mais de uma refeição. Nessa altura, Cecília Rosa pensou que tudo isso eram apenas manifes­tações precoces de paixão, normais na juventude, e nada com que se entusiasmar ou preocupar. Mas que Alde, dois anos mais tarde, fizes­se questão de indicar Sigurd para acompanhá-la já era uma coisa total­mente diferente. Isso significava que ele fazia parte, e parte muito importante, da vida que Alde havia escolhido em substituição daque­la outra vida, antes divisada, de se fechar entre os muros de um con­vento até a morte.

Cecília Rosa imediatamente decidiu fazer a vontade de Alde e, ao que parecia, de Sigurd também. Seria ele a pessoa que ia trazê-la de novo para a vida.

A segunda coisa que ela decidiu foi de natureza muito mais terre­na. E era uma coisa que lhe fazia sentir um pouco de remorso por não ter feito antes.

Sigurd e seu irmão Oddvar haviam se chamado antes Sigge e Orm e tinham chegado a Forsvik ainda garotos, cobrando uma promessa de Arn Magnusson de autorizar a sua entrada para a escola de guerra. Arn confirmou que era verdade, que a promessa fora feita. Lembrava-se de ter se deparado perto da praça de descanso e de reuniões de Askeberga com os dois irmãos ainda garotos, filhos de um escravo liberto e de lhes ter feito essa promessa de aceitá-los na escola de guerra caso eles, dentro de um par de anos, ainda quisessem.

Os dois acabaram sendo os primeiros jovens não-folkeanos a entrar na escola forsvikiana de cavalaria. Talvez por isso eles se com­portavam com a maior atenção e persistência. Com o tempo acaba­ram sendo premiados por sua elevada moral, depois de terem estado com Arn e os três primeiros esquadrões de Forsvik na batalha de Älgarås vencendo os guerreiros dinamarqueses do rei Sverker e, no último momento, salvado a pele de Erik Knutsson. Nesse momento Erik assumiu a coroa, tornou-se rei e, a conselho de Arn, armou cava­leiros cinco dos jovens entre os forsvikianos que exerceram o coman­do, entre eles Sigge e Orm.

Um pouco mais tarde, Arn mandou chamá-los para o centro da escola e envolveu-os com os mantos azuis que comprovavam a sua entrada para a família folkeana. E como cavaleiros e folkeanos eles mudaram os seus nomes de escravos para Sigurd e Oddvar.

Fora até então uma história longa e bonita, louvando suas virtu­des. Mas nenhum homem vive só de virtudes, mesmo que seja de muita bravura. Aquilo que diferenciava Sigurd e Oddvar de todos os outros homens não eram apenas os estribos de ouro que usavam por terem sido armados cavaleiros por um rei, coisa que a poucos no reino acontecia. O que mais os diferenciava também dos outros era a pobre­za. Nesse aspecto eram como templários. À parte o equipamento, as armas e o cavalo, eles não tinham nada. Se agora Cecília Rosa fizesse aquilo que havia muito tempo pensara fazer, ou seja, lembrar ao rei Erik a situação em que dois dos seus cavaleiros e melhores ajudantes nas vitórias de Lena e Gestilren se encontravam, isto é, na pobreza, logo o rei Erik poderia remediar essa situação.

Caso contrário a própria Cecília Rosa iria dar a cada um deles uma grande fazenda. O fato de ela ter se desviado do assunto não era conseqüência de qualquer preocupação em relação às arcas de dinhei­ro de Forsvik, cuja prata e ouro aumentavam a cada descarregamento e a cada viagem realizada pelos seus barcos. Antes ela pensava que para a honra de um jovem valia mais receber propriedades doadas pelo rei do que pela sua mãe de criação.

Além disso, Cecília Rosa superaria a sua dificuldade de dar um presente a um homem que não teria condições de oferecer-lhe qual­quer presente em contrapartida. E para alguns desses orgulhosos fors­vikianos essa era uma questão nada pequena.

Independentemente do que pudesse haver entre Alde e Sigurd, Cecília Rosa tinha que resolver, o mais rápido possível, essa pequena questão pecuniária. Talvez fosse apenas um entusiasmo passageiro entre Alde e Sigurd, talvez nem isso sequer. Mas de qualquer maneira estava na hora de arranjar uma riqueza razoável para Sigurd e Oddvar. E no que dizia respeito a Alde, atendendo de quem era filha, e ao pre­sente que, pelo casamento, sairia dos ricos recursos de Forsvik, ela era uma das mulheres mais invejadas como esposa em todo o reino. E a ela não faltariam pretendentes agora que tinha voltado à vida.

Mas Cecília Rosa e o seu amado Arn haviam prometido a si mes­mos e à sua filha que nunca, jamais iriam casá-la contra a vontade por propriedades e presentes, nem mesmo por questões de família e de luta pelo poder. Isto porque a mãe e o pai, contra o desejo de todos os seus parentes e pelo preço de vinte anos de afastamento, jamais que­braram a sua promessa de amor eterno. Portanto, Alde nunca seria obrigada a casar contra sua vontade, antes, poderia escolher o homem da sua vida, alto ou baixo, folkeano ou até qualquer ex-escravo liber­to, por uma única razão e uma única certeza, a de que nada é maior e mais importante do que o amor.

 

Foi como uma jovem rainha que voltava para casa que Alde chegou a Forsvik, cavalgando ao lado do cavaleiro Sigurd. Ela era amada por todos pelo seu bom humor e alegria até a morte do seu pai. Mas era também aquela de quem o futuro de Forsvik mais dependia, porque, além da sua mãe, era a única que entendia de contas e de escrituração. Todos os serviçais na cozinha sabiam que os livros eram a cabeça de Forsvik, onde tudo o que era fabricado, embarcado ou, ainda, dava entrada pelo porto, era anotado, assim como era nos livros que se registravam todos os pagamentos.

Ela chegou pelas pontes, enfeitadas com rosas e ramos de folha­gem. Todos os forsvikianos ficaram em formação pelos dois lados da última ponte até a praça central em que todos se reuniram para recebê-la. A sua chegada tinha sido anunciada para todos por diligen­tes e jovens cavaleiros.

Foi na época entre a colheita do feno que terminara na Götaland Ocidental e as outras colheitas no final do verão, nos meses de setem­bro e outubro. Nos outros lugares essa época seria de muita atividade, mas pouco apropriada para festas de boas-vindas. Mas em Forsvik há muito tempo que não se trabalhava na lavoura. Apenas o dízimo com que Forsvik ficava de todos os grãos que eram moídos nos seus moi­nhos era mais do que suficiente para satisfazer todas as necessidades de pão do lugar. Qualquer camponês que chegasse com dez barris de grãos logo poderia seguir o seu caminho de volta com uma porção de farinha já moída e pronta para embarcar. Só dez por cento ficavam em Forsvik como pagamento do serviço de moagem.

Os barcos de Forsvik circulavam com muito feno durante o inver­no. E era fácil comprá-lo para os cavalos forsvikianos, desde que isso fosse realizado bem cedo. E nesse aspecto Cecília Rosa nunca falhava. Comprava o feno necessário sempre a tempo.

Portanto, a época era boa para festejar a volta de Alde.

Birger era aquele que estava ao lado de Cecília Rosa e o segundo a dar as boas-vindas a Alde quando esta se afastou depois de um longo, feliz e muito emocionado abraço da sua mãe. Alde abraçou-o como aquele irmão que sempre tinha sido para ela, desde os tempos em que, ainda pequenos, foram aprendizes do abençoado frei Guilbert. Ela beijou-o na testa e se jogou depois, com risadas alegres e gritinhos, em uma dança circular de abraços, gargalhadas e lágrimas.

Birger ficou boquiaberto, olhando para ela. Aquele ano como penitente, de uma maneira muito notória, tinha mudado Alde. A sua cintura tinha afinado, ao mesmo tempo que os seus seios, por baixo do vestido longo, ficaram maiores e mais visíveis, ou ambas as coisas. Ele tinha sentido isso ao lançar os braços à volta dela e no momento em que ela o pressionou com o corpo para lhe dar o beijo fraternal na testa. O corpo dele esquentou estranhamente até as entranhas. E ele teve que se relembrar com consternação que ela era sua tia, embora ambos fossem da mesma idade.

Enquanto Alde rodava de abraço para abraço ou de criança para criança, levantando-as bem alto e elogiando-as por isto ou aquilo, ou de aprendiz de vidraceiro soprador ou caçador até qualquer fazedor de utensílios de cobre, todos sarracenos, estar se inclinando num cum­primento respeitoso, já que jamais poderiam sonhar em abraçá-la ou tocar nela como filha ou esposa, todos os forsvikianos se reuniram na grande praça, de modo que até mesmo o fogo nas ferrarias esmoreceu e a carne no braseiro queimou. Mas depois que cumprimentou a todos, que no conjunto deviam ter sido umas quase cem pessoas, ela se apressou e correu na direção da casa da sua mãe para trocar as suas vestes simples, de tecidos rudimentares, de Riseberga, para uma roupa mais adequada para a festa de boas-vindas a Forsvik com muita cerveja.

No mesmo momento em que ela desapareceu, todos os forsvikia­nos, desde homens de guerra a moedores de grãos ou churrasqueiros, ficaram agitados. De repente todos correram para seus respectivos lugares para da melhor maneira possível se prepararem para a festa. Em breve espalhavam-se deliciosos aromas da cozinha e dos grelhados sarracenos.

As casas em Forsvik eram, na sua maioria, pequenas e baixas, jun­tas umas às outras, em duas filas, com uma rua no meio, mas aqui não havia excrementos nem lixo espalhado com porcos focinhando neles como em cidades maiores. Os porcos em Forsvik eram mantidos fora do pequeno aglomerado habitacional por existir muita gente que não tolerava esses animais.

Mais além, perto das pontes e da correnteza do rio, ficavam quase todas as ferrarias e as outras oficinas. Forsvik também tinha uma igre­ja e uma cavalariça, que eram as construções maiores, e três casas grandes. Cecília Rosa tivera certa dificuldade em decidir em qual das casas grandes a festa devia se realizar. A sala dos cavaleiros era a que oferecia o melhor espaço, mas as regras a respeito de que pessoas podiam ou não entrar tornavam o convite a todos difícil. Desde que a construção ficou pronta, só entravam nela cavaleiros já armados, os comandantes de Forsvik, os líderes das famílias, convidados do rei e uma pequena quantidade de homens a quem Arn Magnusson fez o especial favor de autorizar o direito à entrada na sala dos cavaleiros. Era território sagrado para a maioria dos homens de Forsvik, e mesmo que Cecília Rosa pudesse avançar e forçar como proprietária única do lugar o seu direito de agir como quisesse em Forsvik, ela achou mais inte­ligente não se utilizar desse direito no caso do uso da sala dos cavaleiros.

A antiga casa-grande era inutilizável por motivos mais simples. Havia sido transformada em habitação para muitos dos ex-escravos e escravas da casa, desde que eles se organizassem para manter ali todas as refeições. Portanto, muitos podiam comer e beber ao mesmo tempo na casa, mas havia a diferença entre uma refeição rápida para ferreiros e alunos da escola e uma festa que iria durar até a manhã do dia seguinte, com muitos gritos e cada vez mais pessoas vomitando. Isso seria horrível para todos os libertos que tinham suas camas nessa sala e ainda mais para as suas crianças.

Restava a casa-grande que, em Forsvik, todos, nas conversas diá­rias, por brincadeira ou por reverência, chamavam de Terra Santa.

Era a casa dos homens solteiros sarracenos, onde esses infiéis rea­lizavam os seus cultos e as suas festas da colheita em horas e dias ines­perados. Poucos moravam lá pelo fato de que, atualmente, era normal o infiel arranjar uma mulher e, imediatamente, exigia casa própria num dos lados da rua da aldeia. Portanto, era mais fácil decidir que a festa de boas-vindas de Alde fosse realizada na Terra Santa.

Mas, de qualquer maneira, não foi assim tão simples. Isso porque os infiéis tinham hábitos distintos no que dizia respeito a comidas e não bebiam nem vinho nem cerveja. As suas casas, por outro lado, eram as mais limpas e as decoradas com mais gosto, onde o chão de todas as divisões era coberto por lindos tapetes de cores vermelha e preta. Era difícil imaginar os cristãos vomitando lá dentro.

Por outro lado, os infiéis tinham água corrente através do vestíbu­lo, do mesmo jeito que Cecília Rosa na sua casa. A água de um córre­go era dirigida por meio de uma longa canaleta de barro, pelo lado da porta, saindo pelo outro lado da casa até cair no Lago Vättern. Era o caso de pedir aos cristãos com vontade de vomitar que o fizessem por ali?

Ela falou primeiro com Gure, o meio-irmão de Arn, que na ausência dela decidia sobre tudo em Forsvik, tudo o que não dissesse respeito à arte da guerra. Todos tinham receio de Gure, porque como ele decidia era como normalmente acontecia. E ele prometeu a Cecília Rosa que colocaria para fora todos que começassem a vomitar, desde que desrespeitassem as instruções recebidas nas águas do córrego.

Depois disso ela falou com os dois fazedores de cobertores, Aibar e Bulent, que na época eram os mais velhos entre os infiéis. Eles con­cordaram em retirar do chão todos os tapetes, já que aquela refeição era para ser tomada à mesa e com todos sentados em bancos compri­dos, e não em almofadas macias e em cima dos tapetes. Ela olhou inquisitiva para eles, pois achava que ambos estavam demonstrando boa vontade demais e com grande facilidade haviam aceitado a suges­tão dela, apresentada com o máximo cuidado. Mas ela não pôde des­cobrir nenhum truque de escravos neles que, aliás, nunca tinham sido escravos. Além disso, Alde também era muito querida até pelos infiéis, e falava a língua deles bastante bem em face daquilo que Cecília Rosa acreditava haver entendido.

Assim que as mesas dos convidados, os bancos e a mesa de honra foram colocados na sala da Terra Santa, a casa ficou outra. As lampa­rinas de cobre, brilhantes, que desciam do teto, assim como as telas com os textos secretos dos sarracenos nas paredes, faziam com que a sala permanecesse tipicamente sarracena. Mas os bancos compridos, as mesas e o chão agora sem tapetes falavam uma linguagem mais severa. Cecília Rosa havia decidido que a mesa de honra devia ficar na frente da grande lareira, no canto mais afastado, que as mesas e os ban­cos deviam ser colocados ao longo da sala e não na direção perpendicu­lar às paredes. Dessa maneira ela pôde colocar todos os homens de guer­ra nas mesas das filas externas, para que, assim, eles pudessem sair facil­mente se precisassem. Nas filas internas de mesas, de um lado e do outro, ficariam sentados os cristãos e os forsvikianos mais controlados, e, finalmente, na fila do meio, os infiéis, onde ficariam mais protegidos daqueles que os consideravam ateus.

Foi uma festa brilhante e não apenas nas primeiras horas. Era como se a volta de Alde trouxesse de novo a alegria a todos em Forsvik e se sentissem mais próximos uns dos outros naquela sala, de uma maneira que nunca antes se tinha presenciado. Ninguém fazia cara feia diante da opinião dos outros a respeito de certa carne ou de certa bebida — a carne de porco e a cerveja seguiam para as mesas externas, água e carne de cordeiro para as mesas do meio —, e a alegria existia, como habitualmente, tão elevada, tanto entre os sarracenos, apesar de eles estarem sóbrios, quanto entre os cristãos. A surpresa ficou por conta dos jovens sarracenos que aprenderam a cantar com grande talento as canções do seu país de origem, assim como a tocar aqueles instrumentos de corda a que chamavam de aoud.

Cecília Rosa sentou-se no centro da mesa de honra, com Gure do seu lado esquerdo e Birger ainda à esquerda dele. Como deveria ser. Gure era meio-irmão de Arn Magnusson, fruto de uma ligação do pai deste, Magnus, com uma escrava, Suom. E foi o próprio Arn que resolveu recebê-lo na família folkeana após reconhecimento em assembléia e o respectivo juramento de fidelidade. Que Cecília Rosa tivesse colocado Alde à sua direita, isso todos já esperavam, pelo menos todos aqueles que seguiam a linha de pensamento cristão.

O que ninguém esperava era a decisão de Cecília Rosa em colocar o cavaleiro Sigurd, que tinha trazido Alde em segurança de Riseberga para Forsvik, com apenas quatro homens, justamente ao lado de Alde.

Cecília Rosa queria saber se estava com razão em suas suspeitas, e ela, logo desde o início da noite, antes de o vinho começar a mostrar os seus efeitos, concluiu que tinha razão. Era só ver como os dois apenas tinham olhos e ouvidos um para o outro e como parecia nunca faltarem palavras nem risos entre eles. Portanto, estava na hora de ir falar com o rei a respeito de propriedades para o cavaleiro Sigurd. Por momentos Cecília Rosa ficou distraída e pensativa ao conjecturar como o castelo de Gum poderia ficar sob o comando do cavaleiro Sigurd. Mas logo ela afastou esses pensamentos e dedicou-se a todos os forsvikianos que que­riam brindar à sua saúde. E isso representava agir com sensibilidade e escolher entre beber vinho em copos verdes produzidos em Forsvik e água servida em jarros de cobre por sarracenos diligentes.

Havia uma pequena preocupação que cresceu durante a noite e continuou no início da madrugada: Birger não parecia nada satisfeito. De vez em quando ele tentava inclinar-se para a frente para, com algu­ma palavra gritada, chamar a atenção de Alde, o que não era fácil. Por um lado, a mesa de honra era bem longa e eles ficavam afastados um do outro. E por outro, talvez mais forte, Alde raramente notava as ten­tativas de Birger, por só ter olhos e ouvidos para o cavaleiro Sigurd. Por isso mesmo, Birger ficou meio amuado e, finalmente, acabou pedindo autorização para mudar de lugar e se sentar entre alguns jovens da mesma idade, o que Cecília Rosa logo concedeu, aliviada.

Após a meia-noite, Gure começou a andar em volta das mesas, a fim de retirar dali quem estivesse a ponto de vomitar ou que, na pior das hipóteses, já o tivesse feito. Nessa altura, a maioria dos padeiros, cozi­nheiros, caçadores e aprendizes de ferreiro já tinha ido embora, na dire­ção das suas camas. O trabalho deles começava bem cedo pela manhã e eles tinham todas as razões para cuidar bem do seu sono.

Mas entre os homens de guerra ainda ninguém, nem um único, tinha arredado pé voluntariamente. Já tinham começado a dizer poe­sias, a cantar e a rir às gargalhadas de coisas que os outros na sala não conseguiam ouvir e que, talvez, fosse até bom que não ouvissem.

Quando Cecília Rosa achou que estava na hora de se retirar e se enfiar debaixo dos cobertores, como se dizia em Forsvik, ela arrastou consigo Alde, que, meio contra a vontade, se afastou do cavaleiro Sigurd.

Gure prometeu continuar a postos a noite inteira e, se necessário, usar de métodos bem mais persuasivos contra os bêbados e os abusados.

 

O nobre Birger foi convidado ao castelo real de Näs e para Cecília Rosa a oportunidade era ótima para lhe fazer companhia e tratar de negócios com o rei Erik. O barco que conduziria Birger e Cecília Rosa pelo Lago Vättern, embora depois eles fizessem um desvio por Ulvåsa, tinha o nome de Os Garanhões. O estranho para Birger era ter visto as expressões dos marinheiros e o sinal-da-cruz que fizeram quando ele conduzia o seu garanhão mais querido, Ibrahim, para uma das três baias existentes no barco. Um dos homens a bordo perguntou, olhan­do preocupado para o agitado Ibrahim, se havia mais cavalos para entrar no barco. E quando Birger acenou que sim e disse que ia voltar com mais dois cavalos, o homem quase entrou em desespero e quis saber mais a respeito dos outros dois animais. Birger, que não enten­dia a preocupação de alguém que vivia transportando cavalos e caixas sobre o Vättern, informou que os dois cavalos que ele ia buscar eram uma égua prenha e um garanhão castrado que servia para carregar bagagens. Só então os marinheiros se sentiram aliviados e o ajudaram a colocar Ibrahim na respectiva baia.

Quando Birger voltou pela segunda vez com o garanhão castrado e a égua prenha, chamada Umm Anaza, ele continuava refletindo sobre o que havia causado tanta preocupação entre os marinheiros. E acabou perguntando, diretamente, do que se tratava. Recebeu uma resposta clara e também a explicação para o nome do barco ser, justa­mente, Os Garanhões, em vez de ter nomes comuns, como O Cisne e A Garça.

Alguns anos antes, chegou um homem à corrente do Mo queren­do embarcar com três cavalos para Forsvik Um pedido desses não era nem um pouco anormal e ele próprio conduziu os três cavalos para as respectivas baias que na época não eram tão fortes quanto agora. Iniciada a viagem, verificou-se que o homem, ignorante, tinha coloca­do uma égua no cio entre dois garanhões. Os três animais relincharam alto e escoicearam para todos os lados. Logo os três já tinham saído das baias, com os dois garanhões de membros bem inchados e desen­volvidos, caçando a égua à volta do convés do barco ou lutando um contra o outro às mordidas e aos coices. Quando, finalmente, achou que os pretendentes já estavam esquentados demais, a égua saltou na água e nadou para terra. E então a calma voltou. Mas, entretanto, muita coisa a bordo estava destruída e muitos homens feridos. Pouco faltou para que o barco virasse. Por isso, o barco se chamava agora Os Garanhões e os homens ficavam muito preocupados ao receber a bordo uma égua e um garanhão juntos na mesma viagem. Rindo, Birger assegurou-lhes que naquele caso não havia perigo, a égua esta­va prenha e era a mãe do garanhão ainda inteiro, enquanto o outro já estava castrado. E, além disso, nenhum forsvikiano jamais teria a idéia maluca de colocar uma égua no cio entre dois garanhões.

Eles tiveram uma viagem tranqüila e bonita pelo Mo e das baias não se escutou o mínimo barulho. Cecília Rosa ficou sentada a maior parte do tempo, pensativa, junto da amurada, olhando sobre as águas o sol claro e brilhante do outono. Ela tinha boas razões para passar antes por Ulvåsa, visto estar preocupada e precisar falar com Ingrid Ylva, a mãe de Birger. Por sua vez, Birger tinha se envolvido em con­versa com alguns dos aprendizes de marinheiro no barco, que, religio­samente, o escutavam. E a distância, pelos movimentos que ele fazia, estava contando aquilo que todos os forsvikianos, a pedido, contavam, quando encontravam jovens de fora.

Durante dois dias eles permaneceram em Ulvåsa, e nesse meio-tempo Ingrid Ylva e Cecília Rosa ficaram quase sempre a sós, conver­sando, longe dos ouvidos de todos.

Na curta estada em Ulvåsa, Birger resolveu acompanhar os seus irmãos e assistir a algumas lectionis, dadas por dois pastores, de Linköping e Skanninge. O irmão mais velho, Eskil, era o único dos cinco que acompanhava esses ensinamentos a sério. Tinha decidido que se tornaria homem de leis, apesar de não ter qualquer direito here­ditário para isso. E sem esse direito, dizia ele, era preciso demonstrar muito mais talento e capacidade, de modo que o saber pesasse mais. Eskil não era muito de se divertir com piadas e brincadeiras e virava o nariz para os seus irmãos quando eles queriam que o tempo passasse mais rápido, fazendo alguma travessura.

Karl, que era o mais forte dos cinco na fé cristã, tinha já recebido a promessa da sua mãe de que se tornaria bispo em Linköping e, mais tarde, poderia passar a arcebispo. Ele falava muito menos do que Eskil e Birger, mas, muitas vezes, cerrava os olhos de uma maneira profun­damente divina. O mais tímido era, no entanto, Elof, que muitas vezes era corrigido e punido pelos seus irmãos mais velhos.

Bengt era aquele com quem Birger tinha mais facilidade em se comunicar. Estavam sempre prontos para uma boa brincadeira ou contestação e, assim, atormentavam ambos os padres e o compenetra­do Eskil com perguntas capciosas de natureza teológica ou, o que sempre arreliava ainda mais o sério Eskil, zombando das leis do país. Ambos concordavam que as leis tinham por base a espada e o escudo, possivelmente a casa do bispo, mas pior ainda a assembléia, entre homens livres. Para Bengt e Birger eram apenas jogadas para o povo ver, palavras levavam os dois padres ao desespero e deixavam Eskil furioso. As leis do país valiam menos do que a atuação de malabaris­tas e de pássaros exóticos no mercado. E, nesse caso, o povo ainda se divertia mais vendo os malabaristas e os pássaros exóticos do que com os homens das leis que traíam o povo com palavras de que um país só se constrói com leis e outras baboseiras.

Foi um alívio para ambos quando, finalmente, se separaram, podendo Eskil voltar para as suas lectionis e Birger sair para o castelo de Näs, ao encontro do rei, com a espada de combate à cintura e a de exercícios na bagagem.

Aconteceu que Ingrid Ylva também decidiu viajar para Näs, a fim de conferir as suas idéias com as das duas Cecílias e da jovem rainha em conselho. Birger passou a liderar o grupo de viajantes com o sím­bolo de Ulvåsa. Ele ficou orgulhoso com essa liderança e o comando de dez homens formando um esquadrão de segurança.

Perto das correntes de Mo, de onde deviam passar para a galera real que os levaria para Näs, na Ilha de Visingsö, o grupo encontrou-se com Ulvhilde Emundsdotter, chegando com dez homens de guarda da sua fazenda, Ulfsheim. Era notório que todas as três viúvas tinham assuntos a tratar em Näs, mas quais eram as suas intenções não adianta­va perguntar nem a Birger nem a ninguém mais.

Quando o barco do rei chegou para buscar os seus convidados, todos os cavaleiros dos esquadrões de guarda foram mandados de volta para casa. Em Visingsö reinava a paz e os convidados mais proe­minentes eram recebidos sempre por esquadrões de cavaleiros bem armados.

 

Havia poucos visitantes em Näs pelo fato de ainda estar por se fazer a última colheita do ano. Nessa época a maioria dos homens com con­dições de se tornarem convidados do rei estava festejando com cerve­ja a colheita em sua casa ou a dos vizinhos na casa deles, ou ainda, em seqüência, a dos parentes, também na casa deles. As refeições do fim da tarde, na grande sala do castelo de Näs, eram realizadas, portanto, com pouca gente, a sala quase deserta, o eco das vozes reverberando, mas, em compensação, eram refeições muito agradáveis pelo fato de todos chegarem à vontade, com roupas simples, a realeza sem as suas coroas e seus mantos mais caros. O rei disse que gostava dessa época do ano, em que era possível comer mais cedo, ir para a cama antes da meia-noite e sair dela quando ainda continuava sendo de manhã. Dessa maneira, ele e o seu chanceler podiam realizar uma grande quantidade de trabalhos de escrita, de modo que os montões não aumentavam até o ponto de não serem mais administráveis, como quando se chegava ao Natal e as refeições voltavam a ter primazia.

Naquela agradável e tranqüila ordem que reinava nas refeições do fim da tarde e início da noite também ninguém precisava seguir rigo­rosamente todos os preceitos da corte. Não eram tantos que não pudessem falar uns com os outros à mesa e também não era importan­te saber onde cada um tinha que se sentar, aliás uma coisa que podia causar tremendos conflitos e vexames.

O rei, no entanto, cometeu uma gafe perigosa na segunda noite, quando o seu jovem parente Knut Holmgeirsson chegou a Näs, con­vidado pelo soberano com uma esperança que logo se desfez. Isto por­que, quando ele ordenou ao seu novo convidado para se sentar ao lado do nobre Birger, ambos os homens obedeceram de imediato, mas olhando de revés um para o outro, como quem já espera um inciden­te. E não demorou muito para o conflito começar, um conflito que podia terminar com uma desgraça para todo o reino. Knut Holm­geirsson, ao lado de Birger, sussurrou que, notoriamente, já era tradi­ção em casa do rei deixar que os rapazinhos se sentassem ao lado dos homens à mesa. Birger respondeu dizendo que os galhos de lúpulo podem ser grandes, mas partem-se facilmente pelo meio.

Uma palavra puxa outra inevitavelmente. Knut ameaçou dar-lhe uma surra. Birger respondeu que já era a segunda vez que ele fazia essa ameaça. Que a primeira vez até que passava. Duas vezes, era uma infantilidade, mas uma terceira vez seria a palavra de um canalha que precisava ser castigado exemplarmente.

E assim se seguiram as palavras umas às outras, como em uma dança. Knut perguntou se era a ele que se destinava a palavra canalha. Birger respondeu que, como não havia mais ninguém por perto, era isso mesmo. Knut achava que era sorte de Birger estarem os dois à mesa do rei, e Birger reagiu dizendo que qualquer forsvikiano jamais se sentiria ameaçado por qualquer miserável feito ramo de lúpulo. E assim por diante, cada um por sua vez.

Quando Knut Holmgeirsson levantou a voz, de modo que todos na sala se viraram, e quando o rei interrompeu peremptoriamente o conflito e, veementemente, perguntou se a sua cerveja e os pratos não estavam agradando aos dois nobres, Knut Holmgeirsson levantou-se, o rosto vermelho de raiva, explicando que não era digno dele estar sentado ao lado de alguém que não era homem para empunhar uma espada e que somente podia ser considerado um filhinho de mulher.

A sala ficou em silêncio total quando Knut Holmgeirsson termi­nou. Isso porque uma coisa era ficar sentado e tratar mal o homem ao lado, mas uma coisa totalmente diferente era, diante da corte do rei, ultrajar outro homem. Isso só podia terminar de duas maneiras, e ambas horríveis.

Todos os olhares se dirigiram, então, para Birger, que lentamente se levantou e enxugou, proficientemente, a espuma da cerveja dos lábios para ganhar um pouco mais de tempo, antes de dizer o que precisava ser dito, caso ele não quisesse deixar o castelo do rei em desonra.

— Majestade — começou ele, em voz grave, contida. — O senhor e todos aqui presentes ouviram. Knut violou a paz desta mesa real e insultou a minha honra. Se ele for homem e mantiver a sua pala­vra, deverá defendê-la com a espada. Caso contrário, o que seria melhor para ele, deverá pedir desculpas, reparar o insulto e deixar este lugar.

Ingrid Ylva, sentada ao lado do rei, levou as mãos ao rosto em desespero, mas não disse nada. Cecília Rosa, que estava ao lado dela, apenas abanou a cabeça com um sorriso de amargura nos lábios. Ambas sabiam que a coisa tinha ido longe demais e que só poderia ter­minar em sangue.

O rei ficou em silêncio por um momento, a testa enrugada, uma expressão severa, enquanto todos à volta da mesa aguardavam a sua decisão.

— No nosso reino a língua torna-se facilmente a assassina do homem — começou ele num tom amargurado. — Por essas palavras que disse na presença de muitas testemunhas e na nossa mesa, nobre Knut, você precisa responder com a espada na mão. Isso é exigido pela sua honra. Mas nós não convidamos vocês dois, meus jovens, para que arranjassem de imediato uma razão para um acabar com a vida do outro. Por isso nós, e ninguém mais, decidimos que ambos devem limpar-se dessas palavras. Decidimos que vocês dois deverão usar armas de instrução e treinamento e lutar até que um de vocês não agüente mais. Está entendido?

Knut logo fez restrições ao fato de usar armas sem fio, dizendo que, assim, não faria justiça por suas palavras. Birger salientou que, como ele era o insultado, tinha direito a propor como a luta deveria ser definida e o seu desejo era que fosse feita a cavalo. Contra isso Knut Holmgeirs­son não tinha restrições, o que, pela primeira vez, durante essa briga, levou o rei a sacudir a cabeça, sorrindo, antes de levantar a mão para silenciar os murmúrios que se estabeleceram na sala.

— Não, a cavalo não! — objetou ele. — A razão pela qual nós proibimos que os dois nobres lutem a cavalo não vou explicar, ainda que o motivo seja bom. Agora quero que os dois se apresentem ama­nhã com suas espadas de ponta arredondada na praça central, antes do meio-dia, quando o sol estiver no seu zênite. Assim decidimos e assim será feito!

Foi um alívio geral. Na realidade, a maioria já contava que no dia seguinte haveria um nobre morto de uma das duas famílias que há muito lutavam juntas do mesmo lado no reino. Uma morte dessas se espalharia como fogo na floresta e não havia razão para continuar sen­tado, bebendo cerveja e a falar sobre coisas alegres. A morte tinha agora uma ótima razão para esperar uma boa colheita.

Ingrid Ylva e Cecília Rosa se juntaram para pegar Birger e levá-lo para os aposentos dos convidados, a fim de chamá-lo à razão. Ele não poderia jamais negar-se a isso. Curvou-se diante do rei e da rainha e seguiu atrás da mãe e da avó, saindo da sala e tomando a direção dos alojamentos ao longo do muro.

Sem grande surpresa para Birger, começaram a discutir ao mesmo tempo e a acusá-lo, de modo que, naquela pequena sala de paredes brancas, ninguém conseguia dizer nada de razoável. De início ele não se defendeu e, então, as duas viúvas se acalmaram, passaram a falar uma de cada vez e começaram a exigir-lhe respostas.

A primeira coisa de que teve de se defender foi da suspeita da parte delas de que ele, por orgulho, tinha atraído o erikiano a uma armadi­lha para se envergonhar. Isso ele negou, assim como que tivesse podi­do sair dali para evitar a briga, pois isso levaria a palavras ainda mais fortes da próxima vez que se encontrassem.

Em breve a conversa pôde continuar ordenadamente, e ainda puderam chamar um serviçal para reavivar o fogo dos braseiros, acen­der algumas velas e trazer vinho. Houve uma interrupção na conver­sa, enquanto os três se sentavam nas pesadas cadeiras lübekianas de carvalho com almofadas estrangeiras bem macias e puxaram para si mesas e bancos para colocar o vinho.

Depois de a sala ficar mais iluminada e aquecida, e ao recomeçar a conversa, verificou-se que a sua mãe e a sua avó tinham razões com­pletamente diferentes para se preocupar.

— Pela primeira vez e desde a primeira noite após o seu nascimen­to, sou obrigada a me ajoelhar e a pedir pela sua vida — disse Ingrid Ylva. — O nobre Knut é mais de uma cabeça mais alto do que você e tão porco que fede. Como é que você pôde ser enganado tão facilmen­te e cair nessa armadilha? Isso porque você não é burro; portanto, como é que pôde acontecer?

— Não havia, sem dúvida, muita escolha — reagiu Birger em voz baixa e lentamente para não reacender a disputa de novo. — Como sabem, esse Knut andou ao meu lado, com o outro cetro, no séquito da coroação em Linköping. Já nessa altura ele ficou falando de manei­ra ofensiva e ameaçadora. E, então, eu ainda pude disfarçar e fingir que não o ouvia, já que não seria compreensível que chegássemos às vias de fato no meio da coroação. Mas o que eu poderia fazer esta noite, e ainda por cima à mesa do rei? À mesa do rei! Pensem nisso!

— Meu querido Birger, você não precisa causar-lhe mais mal do que o necessário — falou Cecília Rosa rapidamente, antes que Ingrid Ylva pudesse recomeçar com as suas reclamações. — Lembre-se de que ele será herdeiro do trono pela morte do rei Erik. Se você o muti­lar, terá um inimigo para a vida inteira. E se o matar, vamos ter os eri­kianos com desejo de vingança sobre nós, e isso seria o pior que pode­ria acontecer ao nosso reino. Portanto, contenha a sua raiva, Birger, use a sua compreensão e vai com suavidade contra ele!

— Sim, claro, eu já pensei nisso antes — respondeu Birger no mesmo tom de voz grave de antes. — Foi nisso que o rei pensou ao nos proibir de lutar a cavalo, porque depois de uma pancada na cabe­ça e da queda que se seguiria pode acontecer coisa pior do que uma simples dor de cabeça. Aquilo que o rei ordenou, embora com pala­vras veladas, eu vou seguir à risca. Knut vai sair vivo desse recontro, sem qualquer ferimento grave que não possa ser curado em pouco tempo.

A mudança no tom da conversa deixou Ingrid Ylva quase muda, o que era incomum. A preocupação que fazia o seu coração bater mais forte era pela vida do seu filho mais amado, por aquele entre os seus filhos que lhe parecia ter as maiores chances. E aí vem a sua querida sogra e fala para Birger ter cuidado, usar de tolerância e lutar pelo poder mais do que pela sua vida.

— Será que a presunção não é o pior dos pecados em uma noite como esta? — perguntou ela tranqüilamente. — Vocês dois não falam da grande infelicidade como se ela não existisse. Vocês falam, antes, da luta como se já houvesse um vencedor, Birger? Não têm receio da punição por um pecado como esse?

— Não é presunção de jeito nenhum, querida Ingrid Ylva — res­pondeu Cecília Rosa. — É apenas a realidade. Lembre-se de que eu já vejo esses jovens cavaleiros há mais de vinte anos em Forsvik. Já vi todos os melhores cavaleiros do reino, eu já vi tudo o que há para ver entre os homens em matéria de aprendizado para a guerra. E, portan­to, posso dizer com toda a certeza, minha querida amiga, que Birger não tem nada a recear diante de Knut. Ele carrega a sua espada de maneira canhestra e, além disso, ela é pesada demais para ele, talvez um legado do pai. É também muito alto, desconfortavelmente alto, para lutar com qualquer homem da altura de Birger, com a espada e a pé. Não é verdade, Birger?

— Sim, eu já pensei nisso tudo e é tal qual como a senhora pen­sou, querida avó — respondeu Birger, rápido, sem olhar para a sua mãe.

— Muito bem, então! — suspirou Cecília Rosa, satisfeita. — Por minha parte, portanto, não tenho mais nada a dizer. A não ser que você deve ter em mente que, amanhã, a união do reino estará em suas mãos e em sua espada. Não quebre nenhuma perna dele, domine a sua raiva e, acima de tudo, não deixe que ele o irrite e o leve a matá-lo. E, depois, você deve fazer todo o possível para se reconciliar com ele. Mas amanhã, mais do que em todo o resto, você deve pensar na regra de ouro do seu avô, dos tempos em que ele serviu como templário!

— Quando puxar pela sua espada, não pense em quem vai matar, mas sim em quem vai poupar — murmurou Birger rapidamente, em latim, como se estivesse rezando.

— Isso mesmo. Então está dito o que precisava ser dito — suspi­rou Cecília Rosa, sorrindo amorosamente para o seu neto.

E com isso ela pediu desculpa, dizendo que se sentia cansada e precisava se retirar para dormir. Assim que Ingrid Ylva e Birger foram deixados a sós, verificaram que não tinham muito mais a conversar e logo em seguida Birger fez uma reverência e retirou-se para, como ele disse, acordar descansado e com as idéias bem claras na cabeça, a fim de que pudesse manter longe de si as burrices, os erros e o mau humor ao chegar à praça central da aldeia.

Ingrid Ylva ficou sentada sozinha, olhando fixamente para o fogo da lareira com uma expressão vazia. Então ela viu de novo, mais clara­mente do que nunca, o futuro de Birger em que grandes exércitos se debatiam, estando em jogo a coroa do reino. Ela não precisava dedicar-se de jeito nenhum, nesta noite, a rezas exageradas e desespe­radas. Afinal, não era como as outras mães.

 

Enquanto Birger dormiu tranqüilo durante a noite, o contrário acon­teceu com Knut Holmgeirsson. Este ficou por muito tempo entre ser­viçais e cozinheiros na sala do rei, então totalmente vazia de convida­dos. E ficou bebendo cerveja para fortalecer a sua coragem, depois outra, que o levou a contar bravatas de como iria degolar o folkeano no dia seguinte, e, finalmente, mais uma, que o fez apagar, o que levou os serviçais do rei, por fim, a levá-lo para a cama.

Era um dia claro, sem nuvens no céu e muito quente para a época do ano. Quando os combatentes se apresentaram em vestes de luta diante do rei, da jovem rainha dinamarquesa e de todos os outros na grande praça central, já corria o suor pela testa de Knut e os seus olhos estavam vermelhos de ódio e muito pequenos, como se a luz incidisse neles forte demais e os obrigasse a fechar-se.

Enquanto o soberano lia o juramento para os dois, Cecília Rosa, com uma risadinha, sussurrava para a pálida Ingrid Ylva que o nobre Knut, em breve, iria esquentar além do agradável. Ele havia escolhido um dos novos elmos, que, na realidade, serviam para cavaleiros e que cobriam todo o rosto. Birger, por seu lado, trazia um elmo aberto e redondo que apenas protegia o nariz e as faces. O que isso significava não estava totalmente claro para Ingrid Ylva, mas ela se deixou conta­giar pela despreocupada alegria de Cecília Rosa.

Quando os combatentes colocaram na cabeça os seus elmos e fize­ram entre si a saudação de praxe, a luta começou e, para Ingrid Ylva, continuou desigual. É que Knut, o Alto, avançou e atacou Birger furiosamente, obrigando-o a recuar o tempo todo. Por seu lado,

Birger não fazia nada, a não ser esquivar-se. Parecia que em breve a luta iria terminar com a derrota de Birger.

Mas Cecília Rosa abanava a cabeça, apenas sorrindo, cada vez mais satisfeita, e fazendo sinal de aprovação para Ingrid Ylva, que apertava fortemente com os dedos quase brancos, exangues, uma cruz de ouro contra o coração e fazia o sinal-da-cruz a todo momento.

Para Birger, o começo do duelo tornou-se cansativo e monótono, mas ele se consolava com a idéia de que aquele que veio para o com­bate cheirando a cerveja em breve ficaria muito pior, especialmente por causa do seu elmo fechado.

Sem dúvida o nobre Knut manobrava a sua espada muito melhor do que qualquer camponês. Mas em Forsvik ele teria atraído mais risos de escárnio do que de admiração. É que ele atacava o tempo todo com golpes de cima para baixo, de pernas abertas, paralelas, com o braço do escudo longe do corpo. E continuou golpeando de cima para baixo e, alternadamente, de viés, da esquerda para a direita e da direi­ta para a esquerda. Pacientemente, Birger foi recuando em círculo e recebendo no escudo os golpes iniciais, mais fortes, do adversário. Logo, pouco restou do leão folkeano no escudo. Raiva não sentia nenhuma, porque ter raiva era uma tolice em qualquer luta de vida ou morte. Mas ele estava firme e friamente decidido a cumprir aquilo que prometera à sua querida avó.

Furioso por não poder atingir o inimigo, a não ser com os golpes no seu sempre volátil escudo, Knut começou a jorrar novos insultos, ao mesmo tempo que ficava cada vez mais lento nos seus ataques. Birger nada respondia, a não ser com um sorriso de escárnio, àquelas que ele considerava tentativas infantis para fazer com que perdesse o bom humor. Além disso, os palavrões de Knut mal conseguiam atra­vessar o aço do seu elmo, o que mais demonstrava as dificuldades pelas quais ele passava do que a periculosidade dos seus golpes.

Golpes que ficavam cada vez mais fracos e mais lentos, ainda que, de vez em quando, Knut voltasse a atacar com desesperados acessos de cólera. Estava na hora de Birger mudar de tática.

Em vez de recuar em largos círculos, Birger começou a rodar mais rápido e em círculos menores, o que tornou mais difícil para Knut vê-lo através das pequenas faixas abertas no seu elmo. Com isso Birger pôde também inclinar o seu escudo no momento de receber os golpes. A espada de Knut, em vez de bater pesado e parar no escudo, começou a resvalar para o chão, provocando desequilíbrio do golpeador.

O rei Erik manteve-se calmo o tempo todo, sem alterar a expres­são do rosto e com o braço protegendo os ombros da sua jovem rainha Rikissa, que logo começou a perguntar-lhe o motivo, na realidade, daquele duelo. O soberano tomou a mão esquerda dela, apertou-a ligeira e amorosamente e respondeu com um sorriso que um rei pre­cisa conhecer muitas maneiras de punir cabeças quentes, que esse duelo estava prestes a terminar e que, certamente, ninguém iria sofrer qualquer ferimento grave. Em contrapartida, desculpou-se ele, a rai­nha vai dormir esta noite sem o seu rei, visto que ele tenciona passá-la na companhia de um grupo de jovens, com muita cerveja e vinho. Ela reagiu com uma gargalhada, dizendo que tal sofrimento podia supor­tar, desde que fosse para o bem do reino e seu bem-estar, mas que ela também já tinha entendido que era disso que se tratava. Ele acenou com a cabeça, concordando, e, encorajado, inclinou-se para ela, con­fidenciou-lhe ao ouvido que Deus havia abençoado os dois, e ele em especial, com um casamento obrigado que, sem dúvida, podia ter sido muito pior. A essa afirmação a rainha riu alto, também concordando, e, sem a menor timidez, beijou o seu rei. Mas logo reparou em certos olhares nada amistosos por sua atitude de desprezo diante da luta que se desenrolava na praça, o que a levou a retomar a pose respeitosa e neutra de rainha, endireitando as costas e elevando a cabeça.

Birger começou, então, a achar que estava na hora de acabar com o espetáculo. Knut lutava agora de pernas cada vez mais abertas e com isso deixava desprotegidos os seus joelhos, assim como o braço que segurava o escudo, cada vez mais longe do seu corpo, o que era um dos piores erros que se podia cometer. Em uma luta de espadas afiadas ele logo perderia o braço.

Até o momento Birger ainda não tinha desferido qualquer golpe de ataque e pensava que lhe bastaria desferir apenas um único golpe certeiro. Mas ao começar a se aproximar um pouco mais para dar esse golpe, ele reconheceu que poderia ferir Knut, deixando-o com seqüe­las para o resto da vida, ainda que ambos usassem espadas com a ponta protegida. Ele precisava, portanto, agir de outra maneira.

Esperou, então, que Knut levantasse o braço para golpear para baixo e da direita para a esquerda, recebeu o golpe no seu escudo incli­nado e virou-se, dando uma volta inteira pela direita, com a espada baixa e estendida, de modo que ela atingiu a parte posterior do joelho direito de Knut. Rápido, deu um pulo para trás, para ver o efeito do seu golpe.

Knut cambaleou e sentiu o golpe, mas os tendões por sorte não tinham sido atingidos. Ele gemeu e rogou uma praga. Birger baixou a sua espada e convidou-o a desistir com honra, visto que já tinha sido atingido com o primeiro golpe. Knut abanou teimosamente a cabeça, mas teve que levantar imediatamente a mão, fazendo sinal de que pre­cisava de um pouco de descanso para colocar direito o elmo na cabe­ça. Depois, de repente, atacou de novo, com redobrada fúria, embora coxeando.

Birger tinha que seguir ensaiando novo golpe. Passou ao ataque, obrigando Knut a se defender por baixo, o que lhe era difícil por causa da sua altura, e por cima, o que lhe consumia mais forças. Após gol­pear Knut várias vezes e em círculos, Birger desferiu, então, um golpe certeiro no elmo de Knut, primeiro com pouca força e, depois, com toda a violência. O elmo de Knut amassou, de modo que ele perdeu quase toda a visibilidade. Foi então que, quando Knut levantou a espada, Birger acertou-lhe entre o punho e o antebraço, um golpe não muito forte para não machucar, mas para obrigá-lo a soltar a arma, o que acabou acontecendo.

Quando Knut ia abaixar-se para, muito lentamente, pegar de novo a espada, Birger tinha colocado o seu pé sobre ela e, com a maior calma e sem muita força, dirigiu a ponta da sua espada, ainda que arredondada, para o diafragma de Knut, justo no lugar em que as cos­telas se encurtam para os lados.

Knut caiu de vez e Birger pôde pegar a espada dele do chão, virou-lhe as costas e dirigiu-se para o lugar onde estavam o rei e a rainha. Diante deles retirou o seu elmo, ajoelhou-se, colocando o joelho esquerdo no chão, e depôs a espada de Knut à sua frente. O rei aguar­dava com um sorriso nos lábios, a um tempo sério e divertido.

— E então, meu nobre Birger, o que é que você tem a dizer para nós? — perguntou o rei.

— Eu peço encarecidamente a Vossas Majestades que declarem esta luta terminada — respondeu Birger, de cabeça respeitosamente inclinada para a frente. — A minha honra já não está enodoada. Knut Holmgeirsson mostrou que era homem de palavra e, portanto, esta­mos quites.

— Levanta-te, Birger! — ordenou o rei e Birger obedeceu, rápido. — Como prêmio, eu lhe ofereço o escudo de Knut, com as nossas próprias três coroas. Exatamente como ele teria ficado com o seu leão, se tivesse vencido. Mas nós lhe ordenamos que cuide bem desse escu­do, que o coloque em um lugar onde possa vê-lo amiúde e relembrar-se do que podem ser as conseqüências de palavras insanas. A espada de Knut será também sua. É assim que decidimos e que assim seja!

Birger apanhou a espada de Knut, fez uma reverência e dirigiu-se de cabeça bem levantada para o centro da praça, enquanto ajeitava as suas madeixas ruivo-escuras e enxugava o suor da testa. Então Knut já havia se erguido sofridamente, apoiado nos joelhos. Tinha retirado o elmo e o seu rosto estava vermelho e ensopado em suor. Mantinha os olhos bem fechados pela humilhação e ambas as mãos na frente do seu dolorido diafragma.

Sem dizer palavra, Birger pegou o escudo azul com as três coroas, virou as costas e saiu dali.

Sua mãe, Ingrid Ylva, e a avó, Cecília Rosa, pularam em cima dele, o abraçaram e beijaram. Não era bem pela vitória que elas o feli­citavam, porque até mesmo a sua preocupada mãe, afinal, acabou valorizando-a por baixo. Era a maneira como ele venceu que elas que­riam louvar.

Másculo e austero, pelo menos era assim que ele tentava ser, Birger desdenhou de todas as felicitações, dizendo que precisava trocar de rou­pa e, antes disso, apressar-se a tomar um banho, como era de praxe em Forsvik. Com uma reverência, despediu-se então das duas.

Após um banho nas águas geladas do Lago Vättern e um copo de cerveja refrigerada no porão, do tipo escuro, vindo de Lübeck, e já trocado as vestes de luta por um traje elegante de veludo azul, usando então o seu manto e botas de couro de vitela, ele subiu à sala da torre mais alta e ficou sozinho por um momento, recebendo com prazer o vento fresco no rosto. Birger estava estranhamente satisfeito consigo mesmo, mas ainda não entendia a raiva e as implicações de que, na realidade, aquele caluniador havia demonstrado estar possuído. No entanto, Birger não ficou só por muito tempo com seus pensamentos. Um dos serviçais do rei chegou fazendo uma reverência e informando que o soberano havia ordenado que o jovem e nobre Birger, sem demora, se apresentasse na sala superior da torre ocidental. Birger retribuiu a reverência, disse ter entendido a ordem e seguiu os passos de volta do apressado serviçal da corte.

Ao entrar na sala algo escura da torre, iluminada apenas por uma série de tochas elevadas, viu imediatamente que não só o rei, mas tam­bém o jarl, estavam esperando por ele. Sem refletir, logo colocou o joelho esquerdo no chão de pedra e aguardou as palavras do soberano de cabeça baixa.

— Levante-se, Birger! Venha sentar-se conosco e pegue uma cer­veja para você! — ordenou o rei em tom severo.

Birger obedeceu imediatamente. Mas só ao se aproximar da mesa descobriu a presença do jarl Folke, no momento em que este se apres­sava para sentar-se. O jarl estava apreciando a sua cerveja, mas levantou-se de novo e fez uma reverência.

— Beba à nossa saúde! — ordenou o rei.

E Birger obedeceu da melhor maneira que lhe era possível, insegu­ro a respeito daquele “nossa”, se era só a ele, o rei, ou a ele e também ao jarl Acabou tentando ficar entre os dois, no meio-termo, e, então, os dois, barulhentos e satisfeitos, soltaram sonoras gargalhadas.

— Hoje você manteve a unidade do reino na ponta da sua espa­da, meu amigo Birger — disse o rei, acompanhando a sua fala por um longo e arrastado suspiro que, no entanto, pareceu muito mais de satisfação do que de preocupação. — Se tivesse matado hoje o meu idiota, mas amado... e lembre-se bem, eu disse amado... jovem paren­te, o que poderia ter feito de imediato, você teria nos lançado na infe­licidade. E com nós eu quero dizer todos nós mesmo. Responda!

— Assim falou também a minha sábia mãe, e a minha, no que diz respeito à espada, ainda mais sábia avó ontem à noite — respondeu Birger. — E elas não desistiram até que as suas intenções fossem tam­bém as minhas.

— É isso, nós vivemos sim sob um regimento de viúvas — disse o rei, rindo. — E aqui entre nós, homens, seja como for, essa sabedoria das mulheres tem sido uma grande satisfação, não é verdade, Birger?

— Vossa Majestade é o nosso soberano coroado, a quem todos juramos fidelidade — respondeu Birger rapidamente, como se não tivesse nem escutado essas mortificadoras palavras sobre regimento de viúvas. Para seu espanto, a sua resposta provocou novas gargalhadas por parte dos outros dois homens.

— Isso é verdade, meu caro parente — disse o jarl Folke. — Não é fácil fazer você cair em armadilhas com palavras. E sabe muito bem se comportar. O nosso consagrado Birger Brosa não teria avançado com palavras mais inteligentes do que aquelas que você usou.

— Eu digo apenas aquilo que o meu coração me dita — reagiu Birger, sorrindo atrevidamente, bebendo sem constrangimento mais um gole da sua caneca de cerveja, pois, para o jarl que era seu paren­te, ele podia responder quando e quase como quisesse, — O que o senhor diria se estivesse no meu lugar, Folke?

— Você é meu amigo querido de verdade, caro Birger — inter­rompeu o rei para salvar o jarl de precisar responder. — Em você eu vejo um jarl do reino num futuro ainda nebuloso. Mas de agora em diante vou deixar de lado a linguagem real e dizer “eu” quando quero me referir a mim pessoalmente, e “nós” quando quero dizer nós todos. Todavia, aquilo que dissermos agora é apenas para ficar entre nós três, só para os nossos ouvidos. E, então, quero dizer em primeiro lugar que, neste momento, eu gostaria de lhe armar cavaleiro pela sabedoria que demonstrou na luta contra Knut. Mas isso não seria tão sábio da minha parte em premiar um folkeano por ter derrubado um erikiano que é segundo na hierarquia como pretendente à coroa. Você entende?

— Diante de Vossa Majestade juro ainda fortitudo e sapientia, tal como o meu avô Arn jurou diante do seu pai e de Vossa Majestade também. E além disso o escudo erikiano que ganhei, uma grande honra em especial, caso se analise o que significa: a nossa conservada unidade — respondeu Birger tranqüilamente, sem demonstrar a menor insatisfação e gaguejar ou hesitar em qualquer palavra.

— Qual é a sua idade afinal, Birger? — interveio o jarl com uma pergunta que ele, por puro assombro, não pôde evitar.

— Eu terei em breve dezoito anos — respondeu Birger.

— Você fala como um homem feito, e ainda por cima com uma sabedoria que poucos homens têm, Birger — atalhou o rei, pensativo. — Você não se acanha diante do seu rei como os outros fazem, mas sabe como demonstrar para ele aquele respeito que o rei precisa rece­ber. De onde veio esse talento?

— De Gestilren, Majestade — respondeu Birger sem hesitar. — Foi lá que o meu avô, o marechal, ofereceu a sua vida pela vitória. Assim faria eu se fosse preciso, e assim faria o senhor, Majestade. Nesse momento ninguém era folkeano ou erikiano, nem rei nem jovem combatente. Nesse momento nós éramos um só. E eu cavalguei ao seu lado. Era como se fôssemos amigos próximos, porque para nós era tudo ou nada. Desde então eu me sinto, com toda a reverência que se exige da minha parte, como seu amigo próximo, rei Erik.

Primeiro o rei não respondeu, mas lançou um longo olhar para o seu velho jarl, que acenou afirmativamente, de forma pesada e refletida.

— Gestilren, Gestilren, um milagre de Nosso Senhor! — sussur­rou o rei. — É como se fosse um sonho que nunca mais termina. Ven­cemos o maior exército que jamais invadiu o nosso reino. Vencemos as forças do rei Valdemar pela segunda vez. Eu não me portei muito como rei; então, se você quer saber, Birger. Quem foi rei, então, foi Arn Magnusson. Foi ele que nos presenteou com a vitória e isso você sabe muito bem tanto quanto eu.

— O meu querido avô fez aquilo que um marechal deve fazer, o meu rei fez aquilo que um rei deve fazer, e, por isso, a Mãe de Deus, Nossa Senhora, nos guiou à vitória — respondeu Birger cautelosa­mente.

— A Mãe de Deus e não o Seu Filho, o próprio Deus, Nosso Senhor? — indagou o rei, franzindo as sobrancelhas com espanto. — Alguns dos meus bispos traiçoeiros falam diferente. O que é que você sabe que eles desconhecem?

— A Mãe de Deus e ninguém mais é a mais alta Protetora dos templários e o seu marechal era um deles — respondeu Birger.

— Diante da sua sabedoria religiosa eu me inclino — disse o rei, sorrindo. — E hoje você demonstrou para seu rei o que é sapientia e por ela será recompensado no futuro. Mas agora tenho um pedido a te fazer, uma coisa que será difícil, mas que, mesmo assim, exijo que faça. Está disposto a atendê-lo mesmo assim, Birger?

— Eu obedecerei e farei tudo o que estiver ao meu alcance, ainda que esse alcance não vá muito longe para um jovem como eu — res­pondeu Birger.

— Você terá que voltar a fazer amizade com o jovem Knut, essa é a minha ordem! — afirmou o rei severamente, estudando o rosto espantado de Birger, antes de continuar. — Vou chamar Knut aqui. Você, eu e ele vamos beber mais cerveja do que poderemos agüentar. Isso tudo vai terminar com você assumindo a responsabilidade nada fácil de fazer de Knut um espadachim melhor. Você aceita esta decisão minha?

— Se eu tiver capacidade para isso — respondeu Birger pela pri­meira vez meio inseguro. — Knut acredita ser um grande combaten­te. Não vai ser fácil convencê-lo de que terá que aprender com alguém mais jovem do que ele.

— Não, a sua missão não é nada fácil. Mas é isso que estou lhe pedindo. Vocês dois vão ter a responsabilidade pelo futuro do reino nos vossos jovens ombros. A hostilidade ou a amizade entre os dois poderá fazer a diferença entre uma vida longa para o nosso reino ou uma guerra entre folkeanos e erikianos, o que nos lançaria a todos na desgraça. Certamente isso está bem claro, não é?

— Sim, Majestade, está claro para mim também. Mas mesmo assim não vai ser fácil — respondeu Birger tristemente, visto prever para si um longo tempo de trabalho escravo pela frente.

— Então assim será como decidimos! — disse o rei subitamente. — Agora o jarl Folke vai nos deixar e eu vou chamar, daqui a pouco, o nosso quase morto, mas nobre jovem Knut. Depois haverá uma longa noite de muita cerveja e de conversas sobre assuntos de homem entre nós. Ou você prefere beber vinho ou mjöd[2], que sei ser uma bebida bem feminina, mas popular em Forsvik? Não, nada disso, meu jovem, não se sinta injuriado! O seu avô bebia vinho e ele era o melhor guerreiro da Escandinávia, certo?

— No início da noite costumo beber cerveja, de preferência. Mais tarde, talvez um pouco de vinho — murmurou Birger de repente, meio tímido, o que provocou uma sonora gargalhada dos outros dois homens.

O jarl Folke levantou-se, cobriu-se com o manto, despediu-se ami­gavelmente tanto do seu rei como do seu jovem parente e saiu coxean­do um pouco da sala. O rei fez um sinal chamando um dos seus jovens serviçais que estava na porta e o mandou trazer o nobre Knut.

Os dois não trocaram muitas palavras durante a espera pelo jovem Knut. O rei levantou-se, espreguiçou-se e estalou os dedos das mãos. Perguntou também a outro serviçal remanescente quando estariam prontas as carnes grelhadas, o filé de vaca, o pernil de cordeiro e os pri­meiros pedaços de veado do ano, além dos respectivos acompanha­mentos. Birger ficou pensativo, imaginando o pior e tentando se acos­tumar ao seu duro destino. Para aquela pessoa já adulta e tão segura de si mesma como era o caso de Knut, seria difícil começar a aprender tudo do início, que era certamente o que se fazia necessário. Ensinar os garotos em Forsvik era muito mais fácil, isso porque, apesar de muitos gemidos e reclamações por golpes que causavam dor, eles queriam aprender. Ele receava que o mesmo não fosse acontecer no caso de Knut.

Knut chegou olhando astutamente e mancando, parecendo de início que não existiam boas perspectivas para a idéia do rei em trans­formar dois inimigos em amigos. Mas o rei Erik não se deixou abater nem um pouco com a expressão fechada dos dois, fingindo até que não estava notando nada. No início ele ficou falando de guerras, do seu crescente amor por Rikissa e da primeira caçada bem-sucedida de veados e javalis. E foi enchendo os copos com mais cerveja dos dois involuntários convidados.

Mais tarde, quando começaram a comer, ele desviou a conversa para os conhecimentos maravilhosos sobre a guerra trazidos para a Escandinávia por um templário de Deus, o que proporcionou duas vitórias inesquecíveis, em Lena e Gestilren. Falou também do que se ensinava no momento em Forsvik aos jovens, o que fazia com que os folkeanos fossem guerreiros muito melhores do que todos os outros, em especial quando a cavalo.

E justamente por isso, acrescentou, por atenção e cuidado com o seu jovem parente, ele havia proibido que os dois se enfrentassem a cavalo. A luta teria sido desigual.

Lenta, mas seguramente, e com a boa ajuda da cerveja e do vinho, o rei conseguiu dissolver a hostilidade entre os dois e exacerbar a curiosidade de Knut. Ao pedir a Birger para revelar os segredos de Forsvik, Knut já estava significativamente mais interessado em saber coisas novas do que em ser hostil.

O rei Erik usou de persuasão, bebeu e não desistiu antes de come­çar a amanhecer, o que não acontecia tão cedo nessa época do ano. No fim da noite, ele tinha levado a sua vontade adiante, sem mesmo ter que utilizar o seu direito real de ordenar. Birger Magnusson havia recebido um novo aluno.

 

Enquanto o rei estava de porre, tentando um entendimento entre dois jovens guerreiros, também a jovem rainha Rikissa não estava passan­do a noite sozinha, nem totalmente sóbria. Ela tinha aproveitado a oportunidade para convidar todas as quatro viúvas, as suas únicas e verdadeiras amigas no seu novo reino, para a sala real na torre ociden­tal. Da sala por cima delas, onde o rei e os jovens Birger e Knut faziam a sua festa, ouvia-se cada vez mais barulho e mais risos e gargalhadas à medida que a noite decorria, o que, para as viúvas, era um bom sinal.

Rikissa viu na amizade com as quatro viúvas uma bênção dos céus, visto que eram elas que podiam ajudá-la, tanto nos grandes como nos pequenos problemas. Quando ela reclamou do fato de o rei e a rainha se recolherem numa sala fria da torre, tendo esta uma posi­ção nada boa em relação aos ventos do inverno escandinavo, logo Cecília Rosa, assim como a rainha viúva, Cecília Blanka, puderam explicar a razão pela qual se vivia segundo essa ordenação em Näs.

O castelo fora construído dois reinados atrás, no tempo do rei Karl, sverkeriano, contou Cecília Blanka. Tinha sido uma época hor­rível, em que vários soberanos haviam sido assassinados, um depois do outro, por aquele que, então, assumiria a coroa. O rei Karl Sverkersson jurou que esse não seria o seu destino, que também tinha sido o do seu pai. Por isso mandou construir Näs ao sul do longo istmo de uma ilha, a Visingsö, no Lago Vättern. Aqui nenhum matador contratado poderia chegar de surpresa ou montar uma emboscada como a que fizeram durante uma procissão ao antigo rei Sverker. Da torre do cas­telo e dos seus muros era possível ver a chegada de qualquer embarca­ção a longa distância e ninguém podia se esconder na ilha sem que um alerta fosse declarado.

— Era um plano grande e inteligente — disse a rainha viúva, sor­rindo. — No entanto, o meu marido, o rei Knut, conseguiu matar Karl Sverkersson exatamente aqui, a menos da distância de um tiro de flecha do lugar onde você está. Foi isso que aconteceu, quando o meu marido se tornou rei e eu, rainha.

Agora os tempos eram outros, mais seguros, mas se um matador conseguisse se infiltrar na ilha durante a noite, a ordem era de que o rei dormisse com a maior segurança na torre ocidental. Por cima nin­guém poderia entrar sem fazer um ruído enorme para passar pelas portas de carvalho da sala de cima e da sala intermediária. Por baixo seria ainda mais difícil, porque havia sempre guardas. E pelas seteiras era impossível passar, a não ser que o assassino tivesse a forma de uma cobra.

O preço cobrado por esse plano estouvado de segurança era a vivência de noites outonais frias e úmidas e de inverno ainda piores, brincou a rainha Rikissa. Segundo ela, talvez fosse melhor morrer rápi­do nas mãos de um assassino do que, lentamente, ser torturada até a morte pelo frio. Mas era justamente a esse respeito que Cecília Rosa tinha o remédio certo. Ela prometeu enviar alguns dos seus pedreiros para Näs, a fim de construírem lareiras com chaminés ao longo das paredes externas antes do início do outono. Mais tarde não daria para construí-las. E assim já seria possível passar um inverno bem aquecido.

Pelas viúvas a jovem rainha também ficou sabendo sobre tudo o que devia saber a respeito do país em que ia reinar, pois muita coisa era diferente do que existia na sua Dinamarca. E a lista não seria fácil de fazer sozinha. Uma das coisas que ela devia tomar conhecimento era a razão pela qual o jarl Folke odiava os clérigos, e não lhe faltavam motivos para isso. Sobre o assunto foi Ingrid Ylva que falou.

Todos sabiam que o traiçoeiro arcebispo Valerius possuía uma longa lista de pecados. Primeiro com intrigas e manobras escusas havia trabalhado para que Sverker Karlsson, e não Erik Knutsson, fosse coroado rei, depois da morte do antigo rei Knut Eriksson, com diabetes. Nessa intenção ele teve sucesso, mas ainda não ficara satisfei­to. Por isso continuou a despejar o seu veneno nos ouvidos do jovem e inconstante soberano, o que resultou em muitos anos de guerra e grande sofrimento para o reino. Valerius conseguiu convencer o rei de que a coroa ainda não estaria segura enquanto ele não mandasse matar todos os quatro filhos de Cecília Blanka. Então, finalmente, o rei Sverker mandou cavaleiros dinamarqueses a Älgarås para resolver o assunto.

Três dos meus filhos foram mortos, comentou Cecília Blanka, friamente e sem gaguejar, quando viu que Ingrid Ylva tinha hesitado em prosseguir. Todos eles estavam enterrados em Riseberga. Mas o quarto conseguiu salvar-se, fugindo para a Noruega. Era Erik, o atual rei. E foi com a ajuda dos folkeanos que ele se rebelou e tanto o trai­çoeiro Valerius quanto o facilmente enganado rei Sverker, com a cabe­ça a prêmio, tiveram que fugir para a Dinamarca. Depois seguiram-se duas guerras, em que Valerius, de ambas as vezes, voltou ao seu país rodeado de exércitos dinamarqueses. Foi uma pena os folkeanos não o terem decapitado, como fizeram com o banido rei Sverker, quando este acompanhou a segunda invasão. Mas acontecia que, em especial, os arcebispos agiam determinando pesadíssimas penitências para aqueles que os matassem, por muito que merecessem ser mortos.

E agora Valerius estava de novo no reino, continuando como arce­bispo, uma situação horrenda que só Sua Santidade, em Roma, podia modificar.

Dessa história havia uma coisa ou outra que valia a pena observar, disse Cecília Blanka, finalizando impassível a sua dissertação. O mais importante, segundo ela, era aprender com a história e não odiar.

Antes de mais nada, era preciso aprender a suspeitar desses homens que ocupavam os mais altos postos na hierarquia religiosa. Isto porque quase todos trabalhavam para se imiscuir no poder secu­lar, por vezes à custa de muito sangue. Segundo, era possível entender muito bem a razão por que o jarl Folke odiava os clérigos, sem que, por esse motivo, pudesse ser considerado como ateu. Terceiro, e mais importante, era preciso suspeitar sempre desse tal de Valerius, por mais que ele bajulasse e lisonjeasse. Isso porque muitas eram as mulheres que ficaram viúvas por sua causa.

De acordo com Ingrid Ylva, havia que chamar a atenção para mais um detalhe. Jamais se devia comer de pratos ou beber de copos de que esse Valerius tivesse ficado perto, pois ele era o diabo sob o manto de padre. Era capaz dos mais graves crimes, caso se convencesse de que isso convinha aos seus intentos. E, no momento, por trás das suas lisonjas, ele queria que o rei erikiano morresse jovem e sem descen­dentes, de modo que ele pudesse colocar no trono mais uma vez um sverkeriano.

À medida que a noite foi passando e o vinho foi escorrendo das jarras, as conversas amainaram e abandonaram os temas de morte e de emboscadas. Cecília Blanka contou, alegremente, que até mesmo o jarl Folke riu dos planos de fazer doações vultuosas para o convento de Riseberga. Era verdade que, sem dúvida, o rei e a rainha viúva haviam feito isso mais como pagamento pelas missas rezadas pela alma dos seus irmãos e filhos assassinados que estavam lá enterrados do que por amor à Igreja como instituição. Mas nem mesmo esse Valerius podia reclamar dessas liberalidades, pois elas lhe serviam como ligação para a conversa sobre as cruzadas no Leste. Isso não era fácil para ele, tão sôfrego se mostrava por demonstrações em que pudesse usar o anel e o báculo. No entanto, era divertido poder acer­tar dois pássaros com a mesma flecha, ou seja, prantear os parentes mortos e, ao mesmo tempo, evitar a conversa sobre as cruzadas, já que, em vez disso, era melhor se dedicar à construção do país e reco­lher as boas colheitas, esperadas em tempos de paz.

Um pouco mais tarde, quando o vinho começou a tornar as con­versas mais diversificadas e espirituosas, as viúvas e a rainha riram muito da infantilidade dos homens e trocaram impressões, o que, ape­nas quando estavam a sós, podiam fazer. Foi então que Cecília Rosa deu uma boa notícia, ainda sigilosa, de que em breve teria um genro dentro de casa, mas primeiro teria que discutir uns detalhes com o soberano a respeito de dinheiro e de terras.

Diante dessa boa notícia, as outras bateram palmas de alegria, mas logo ficaram cheias de curiosidade em saber quem seria o genro. Houve satisfação e desapontamento ao saberem que era o cavaleiro Sigurd. A melhor notícia ainda era que uma jovem ia se casar por amor e não por dever perante a família. E a menos boa era justamen­te o contrário. Era saber que Alde, uma das mais procuradas jovens do reino, sendo desejada por muitos homens poderosos, não queria ser­vir melhor a causa da paz. Em relação a esse problema, Cecília Rosa disse estar francamente esperançosa de que, em breve, o amor seria a única razão a imperar nas decisões sobre o casamento. Segundo as outras mulheres presentes, esse pensamento era bom, mas impossível. No entanto, não era o caso de discutirem ali sobre o assunto, mas sim desejar, sincera e calorosamente, toda a felicidade a Cecília Rosa.

Quando todas já estavam enternecidas pela amizade que as unia e os pensamentos profundos sobre o amor e a paz que eram aguardados para o país, a jovem rainha Rikissa contou a maior de todas as notí­cias. Ela tinha certeza de que já estava grávida do primeiro filho, ou filha, pois já se tinham passado quatro semanas sem que tivesse volta­do a habitual indisposição feminina.

Imediatamente, as outras mulheres presentes fizeram o sinal-da-cruz e se levantaram, indo abraçar e beijar a jovem rainha e dizendo que esperavam ser um menino logo da primeira vez.

A esse respeito, tranqüilamente, Ingrid Ylva abanou a cabeça, mas não disse nada do que pensava sobre o assunto.

 

O COMEÇO DA CAMINHADA dos dois jovens juntos tornou-se insu­portável para ambos, mas pior para Knut Holmgeirsson. Tal como o rei havia determinado, eles teriam que começar o seu duro trabalho já no dia seguinte, ao meio-dia. Com isso, segundo o soberano, eles teriam tempo para se recuperar da bebedeira e da longa noite passada na sala da torre. Mas teria sido muito pior se começassem logo de manhã bem cedo e não tivessem dormido o suficiente.

Aquilo que afligia Birger, tanto quanto a sua dor de cabeça, era ver que Knut já tinha absorvido tantos movimentos errados que seria difí­cil conseguir que ele reaprendesse os movimentos certos.

Aquilo que afligia Knut, mais do que a sua dor de cabeça, era ver a humilhação por que passava diante de todos aqueles espectadores curiosos que tinham acesso àquela parte do castelo onde se realizavam os exercícios. Isto porque os espectadores riam grosseira e abertamen­te dele cada vez que Birger, continuadamente, o agredia nas costas com a face lisa da lâmina da espada, como quem cutuca ladrões de galinhas.

Mas Birger sabia como fazer melhor. Era assim que se fazia em Forsvik para relembrar aos alunos que eles continuavam cometendo o mesmo erro. Em Forsvik os alunos costumavam aprender rápido e corrigir seus erros, mas Knut logo cometia de novo o mesmo erro e quantas mais vezes Birger o atingia nas costas maiores eram as garga­lhadas da assistência. Podia-se pensar que Birger fazia de propósito, para rebaixar Knut, mas não era o caso. Birger apenas obedecia ao seu rei da melhor forma possível. Ele não tinha qualquer outra escolha, nem também existia qualquer outra maneira de ensinar.

Já ao final do primeiro dia de exercícios, ambos procuraram o rei e pediram para deixar Näs. Ambos asseguraram ao rei que não tinham qualquer outra intenção a não ser obedecer-lhe, mas Näs era o pior lugar para treinar. Knut achava que se ressentia de ser punido no cas­telo do rei. E Birger que eles precisavam ficar a sós para chegar a algum resultado.

O rei escutou com boa vontade aquilo que os dois tinham a dizer e achou que ambos estavam dispostos a alcançar algo de melhor, que, além disso, estavam concordando nesse ponto. Achava, também, ter visto a primeira demonstração de que as suas intenções estavam sendo cumpridas, que a ordem dada para encadeá-los um ao outro os obri­gava a procurar a mesma meta. Se dentro de um ano eles continuas­sem a trabalhar juntos, a hostilidade entre ambos poderia se transfor­mar, sem dúvida, em amizade. O que seria o melhor para o bem do reino.

Mas embora estivesse satisfeito com a mudança que o caso regis­trou já após um único dia, ele não demonstrou isso em palavras. Em vez disso, falou para eles com energia e ameaçadoramente, disse que não deviam se convencer de que, apenas porque iam ficar fora do seu alcance imediato, podiam relaxar e deixar de obedecer à ordem que receberam. Ele podia pensar em mudar alguma coisa no que havia decidido, mas nem por isso eles deveriam pensar que ele pretendia esquecer o seu desejo. Eles se desculparam humildemente e assegura­ram não ter de jeito nenhum essa intenção mesquinha.

O rei mandou o seu chanceler escrever uma ordem para Ingrid Ylva e o pai de Knut, Holmgeir, de Vik, perto do Lago Mälaren, dizen­do que durante um ano os dois jovens nobres iriam ficar juntos na esco­la de esgrima e que, depois, estavam convocados para ir a Näs, a fim de demonstrarem os frutos do seu trabalho. Se durante esse tempo eles qui­sessem visitar Ulvåsa ou Vik, podiam fazê-lo a seu bel-prazer.

Eles se sentiram mais à vontade ao deixar Näs para apanhar o barco no lado norte de Visingsö e seguir depois a cavalo para Ulvåsa, onde poderiam decidir como quisessem a respeito de quem poderia ou não vê-los trabalhando. Assim que começaram a viagem, consegui­ram falar um com o outro de uma maneira mais fácil e descontraída, mas Knut fez questão de cavalgar na frente o tempo todo e segurava do seu lado esquerdo um novo escudo com as três coroas, de modo que pudesse ser visto a distância.

Chegaram a Ulvåsa no mesmo dia, à noite, Knut na condição de visita, e Birger, na de anfitrião, já que a sua mãe, Ingrid Ylva, conti­nuava em Näs com as outras viúvas. Comeram um jantar simples, depois de todos os outros que estavam na casa. Birger mostrou a Knut onde este iria dormir e não se eximiu em avisá-lo de que estava habi­tuado a começar a trabalhar bem cedo, ao amanhecer. Knut estreme­ceu ao escutar o aviso, mas como visita não podia reclamar.

Como estipulado, Birger puxou sem maiores considerações as cobertas de Knut já na manhã seguinte, assim que as primeiras luzes do amanhecer começaram a surgir. E logo deu início aos exercícios do dia que Knut viria a esquecer. Eles se vestiram em silêncio, colocando coletes acolchoados e couro por baixo da veste de malha de aço. Em seguida dirigiram-se para os fundos de um dos depósitos onde o terre­no era plano e seco. Era uma manhã fria e um vapor saía da boca e do nariz deles dois como baforadas de neblina. Tendo chegado ao lugar previsto, pararam e se mediram de alto a baixo por um momento.

— Vamos fazer agora como o rei nos ordenou — disse Birger.

— Tudo bem. Vamos fazê-lo porque o rei assim nos ordenou e porque nenhum de nós é homem sem fé — confirmou Knut.

— Vai ser um dia longo — continuou Birger. — E durante este dia você não vai esquecer a dor na parte traseira do seu joelho direito, porque esse é o lugar, assim como o seu braço que segura o escudo, onde reside a sua maior fraqueza. E são essas partes que você deve aprender a defender melhor.

Knut teve grande dificuldade em manter a boca fechada, mas con­seguiu dominar-se. Fez uma ligeira reverência e desembainhou a sua espada.

E assim começou o grande sofrimento deles. Durante as primeiras horas, descansaram três ou quatro vezes por um curto período. Birger tinha como meta cansar Knut, para que, desse modo, ele aprendesse a não desperdiçar tanto as suas forças. Isto porque Knut manipulava a espada como a maioria dos sveas ainda fazia na época e como também os ancestrais de Birger na Götaland Ocidental. Knut estava mais incli­nado para atacar do que para defender, queria vencer rapidamente pela força e pelo peso. E quando isso não acontecia, o cansaço era o seu pior inimigo, visto que ficava para ele cada vez mais difícil esquivar-se e isso lhe causava muita dor. Apesar de Birger gritar um breve aviso antes de cada golpe, ele acabava atingindo todas as vezes a parte de trás do joelho direito de Knut.

Knut, na verdade, disputava um combate acirrado consigo mesmo. Ali não havia testemunhas nem nenhuma honra a defender perante os outros. Deus era a sua única testemunha e Ele sabia bem que o pequeno folkeano ruivo era largamente superior. Não dava para evitar esse reconhecimento, se não por outro motivo, pelo menos por causa da dor constante atrás do seu joelho direito. Era uma permanen­te lembrança da situação a reconhecer.

Portanto, era preciso repensar a situação, começar a olhar para si mesmo de uma nova maneira, o que não era a coisa mais fácil de fazer. Knut sempre havia se considerado um grande espadachim. Ele era aquele que sempre vencia nos jogos de espada entre todos os parentes jovens e os amigos na província de Svealand. E se sentia seguro de que muitos dos guerreiros mais antigos iriam pensar duas vezes antes de enfrentar Knut Holmgeirsson. E tudo isso estava errado, tão errado que nem dava para negar. Birger Magnusson iria feri-lo como se ele fosse um cordeiro caso se defrontassem com armas afiadas.

Reconhecer isso era o primeiro passo no caminho do aprendizado. Ele imaginou que o segundo passo seria dominar os sentidos e não desperdiçar as forças agindo com raiva. Isto porque, se tentasse partir para o contra-ataque com força e raiva, ele via que Birger o deixaria prosseguir sem se mostrar nem um pouco preocupado. E logo depois viria, inexoravelmente, aquele golpe na perna.

O terceiro passo devia ser o de começar a pensar, imaginou Knut. Como Birger sempre fazia o mesmo movimento, mostrando cada vez com mais clareza qual era a sua intenção, chegando até a avisar com um grito antes de dar o golpe, Knut sentiu-se obrigado a estudar uma maneira de se defender, atacando um momento antes de ser golpeado. Ele sentia que tinha de fazer algo de novo, algo que nunca fizera antes. Na vez seguinte que ouviu o grito de Birger, Knut jogou a sua espada do lado para baixo, direto, e não a levantou acima da cabeça como fazia antes. E foi assim que ele conseguiu acertar Birger no braço que segura­va a espada, de leve, mas acertou. Ambos ficaram igualmente surpresos, mas foi Birger que se recuperou primeiro, olhando para Knut com um sorriso bem aberto e abaixando a sua espada enquanto esfregava o local no braço onde fora atingido.

— Levou um pouco mais de tempo do que eu esperava — disse Birger, enxugando o suor da testa e indicando com a espada uma ban­cada junto da estradinha do depósito onde havia algumas jarras com cerveja e um pouco de carne salgada e defumada. — Mas, como você viu, a isso se dá o nome de contra-ataque! Você golpeou bem, ainda que um pouco hesitante, mas logo vai ficar melhor. Por ora vamos beber um pouco de cerveja e comer alguma carne. Nós dois merece­mos isso, pelo suor do nosso rosto!

— Não se trata de eu não gostar de aprender — reagiu Knut com certo esforço para não parecer feliz demais. — Trata-se apenas de que não gosto de ser ensinado!

Pela primeira vez os dois riram juntos ao mesmo tempo. Birger cortou uma fatia de carne com o seu punhal e, com a ponta, ofereceu-a a Knut. Brincando, disse que não era fácil aprender sem professor e também para quem não aceita ter um.

O resto da manhã eles dedicaram ao treinamento de Knut nos dois golpes que ele poderia usar para se defender de Birger, rasteiro, contra o joelho direito. Knut ficou tão animado por ter aprendido alguma coisa nova que agüentou o cansaço tanto quanto Birger, ape­sar de ser quem se movimentava mais o tempo todo.

Quando eles finalmente decidiram almoçar e descansar, suas lín­guas se soltaram de tal maneira que começaram a conversar um com o outro sem parar, embora Knut continuasse irritadiço e inclinado a se sentir insultado toda hora.

Por isso Knut ficou de cabeça quente de novo quando Birger, à mesa, na hora que a cerveja foi servida, começou a falar como sendo uma coisa clara e comprovada, que o fato de ser bem alto era uma des­vantagem. Primeiro Knut que sempre acreditou no respeito dos outros perante os homens altos como ele próprio, achou nas palavras de Birger uma tentativa ruim de fazer brincadeira. Birger pediu logo desculpas, assegurando que de jeito nenhum ele tinha qualquer inten­ção de fazer brincadeira quando se tratava de trabalho. Mas que aque­le que era alto demais, no mundo de antigamente, teria tido vantagens quando as espadas não conseguiam furar os escudos e as vestes de malha de aço. Ao passo que, nos tempos atuais, com armas mais afia­das, os mais altos tinham dificuldade em defender embaixo, como os joelhos e os pés, e acima, a cabeça e os braços. No mundo antigo as espadas eram rombudas, não cortavam nem braços nem pernas cober­tos com malha de aço e era vantagem ser alto e forte. Aquele que era alto podia golpear de cima para baixo e usando o seu peso e a sua força até aniquilar o adversário. Isso, porém, não valia mais. A lutar desse jeito, o homem alto acabaria com uma perna cortada, e sem pernas ninguém conseguia lutar nem ter coragem para prosseguir.

Uma hora mais tarde, ao terminar o descanso e ao reassumirem o treinamento, Birger demonstrou de uma maneira dolorosa e convin­cente aquilo que havia dito. Obrigando Knut a se defender uma vez pelo alto e outra por baixo, ele deixou-o em breve tão cansado e lento de reflexos que acabou por abrir a guarda totalmente, pronto para receber qualquer golpe fatal.

Nos dias seguintes Birger ficou trocando de golpes entre o joelho direito e o braço esquerdo que segurava o escudo. O lugar no braço que ele pretendia golpear era o cotovelo, e então Knut recebeu um reforço extra, muito espesso, com uma fita vermelha, para amortecer os golpes. Mas isso não o impediu de que ficasse com o cotovelo ver­melho e dolorido. Depois mudou o reforço para o joelho esquerdo, em seguida para a cabeça, o ombro direito e os antebraços, e assim sucessivamente. Passo a passo e a cada parte do corpo para onde se mudava o reforço e a fita, Birger estava construindo a nova defesa de Knut.

Birger achava como todos os forsvikianos que tinham sido seus professores que o mais importante era saber defender-se. Aqueles que apenas sabiam atacar tinham vida curta. A base para tudo na luta era a defesa.

No entanto, o ataque também podia ser uma defesa e, por vezes, isso era feito no mesmo movimento, de modo que, na realidade, não tinha sentido definir o que era golpe de ataque ou de defesa. Mas por um lado Birger estava convencido de que Knut, primeiro, precisava aprender a se defender, já que o tempo todo a sua disposição era de atacar sempre que tinha uma arma na mão. Eram necessárias muitas contusões para conseguir que ele se contivesse e saísse dessa tendência aprendida em anos anteriores. Por outro lado, Birger achava que Knut precisava de uma espada nova e totalmente diferente, de modo que desenhou vários modelos em pergaminhos, com explicações adequa­das a cada caso, mandando-os de barco para Forsvik. Logo, alguns dias depois, chegou o primeiro modelo, ainda experimental, mas pronto para os primeiros ensaios. A princípio Knut ficou desconfiado com a mudança. Afinal, a sua espada de treinamento foi fabricada da mesma maneira que a usada em cerimônias solenes e que era o seu orgulho por se dizer que fora a espada do próprio rei e santo Erik.

De qualquer forma, e fosse como fosse, Birger pensava que se Knut usasse uma espada mais longa, um pouco mais estreita e com o centro de gravidade mais à frente, o seu desempenho daria melhores resultados. Para sua surpresa, Knut logo descobriu que as duas novas espadas que experimentou se transformaram em parte do seu corpo, no prolongamento do seu próprio braço, e que ele, contra o poste de trei­namento, podia acertar várias vezes no mesmo ponto, o que seria impossível conseguir com a sua espada antiga.

Em breve Knut já recebia de Forsvik duas espadas de treino, bem acabadas, e a conselho de Birger também uma espada de combate, bem afiada, com as mesmas medidas. Birger reclamou, agora de brin­cadeira, que talvez tivesse sido uma tolice ele providenciar espadas melhores. Isto porque seria de imediato muito mais trabalhoso evitar os seus violentos golpes.

Aquilo que Knut não havia entendido nos primeiros dias, pois estava mais preocupado com as suas dores e as suas manchas roxas, quando ia para a cama, do que em pensar, ficou, todavia, claro algu­mas semanas depois. Lenta, mas seguramente, ele estava se transfor­mando em um espadachim completamente diferente. Foi então tam­bém que ele reconheceu que o seu ódio infundado àquele folkeano havia desaparecido.

Para Birger, tinha sido um tempo monótono. Todos os dias, pela manhã bem cedo, ele tinha que cerrar os dentes e se persuadir de que cumpria uma ordem do rei, de que ele, como nobre da casa de Ulvåsa, não podia esquivar-se. Mas pelo fato de treinar uma outra pessoa de nível inferior, ele próprio se tornava pior a cada dia, visto que tudo acontecia com mais lentidão. E não havia sido isso que ele procurava, ao decidir, apesar das palavras duras da sua mãe, que tinha que voltar para Forsvik após os anos de luto. Era lá que ele pretendia treinar com os melhores, na esperança de um dia ser um deles. Agora essa esperan­ça parecia ter ficado longe de concretizar-se.

Ingrid Ylva nunca reconheceu que do estratagema do rei em agri­lhoar os dois jovens nobres com uma ordem sua poderia resultar em algo de bom nem para Birger nem para Knut. Ela sentiu que um deles, de qualquer maneira, acabaria por matar o outro quando o des­tino assim decidisse. E até que esse dia chegasse não era nem inteligen­te nem sábio fazer com que Knut ficasse mais forte e mais perigoso.

Esses pensamentos, no entanto, Ingrid Ylva guardou para si mesma e não se traiu nunca, nem apenas na expressão do seu rosto. Knut sentava-se ao seu lado como visitante erikiano de honra em todas as refeições noturnas agora que ela tinha voltado de Näs.

Também irritava Ingrid Ylva o fato de ela ter Birger em casa, sem dúvida, mas sem a chance de poder sentar-se com os seus irmãos e clé­rigos, durante o dia, para se instruir de conhecimentos muito mais importantes do que a espada e o escudo. Do jeito que as coisas iam, Birger tinha uma desculpa indiscutível para se entregar aos jogos de guerra. A ordem do rei era incontestável.

Além disso, ela entendeu muito bem aquilo que o rei Knut havia pensado ao obrigar os dois jovens a ficarem amigos. Era uma mano­bra inteligente para o bem do reino e isso nem mesmo Ingrid Ylva podia negar.

Mas com Birger ela teve poucas chances de conversar. Na única oportunidade, durante as primeiras semanas, com o jovem Knut na casa, a caminho da igreja, no segundo domingo, ela ficou furiosa com ele. Estavam cavalgando lado a lado atrás dos cavaleiros com as ban­deiras e conversavam por alguns momentos sobre os treinamentos com Knut, embora nenhum dos dois, na realidade, parecesse estar muito interessado na conversa. Birger tinha o pensamento voltado para outro assunto e logo começou a refletir e a falar alto a respeito de parentes normalmente bem conceituados, mas não pertencentes à corte, que, no entanto, não tinham o direito de escrever para Roma a respeito de certas barreiras contra o casamento. Os reis podiam, com a bênção de Sua Santidade, derrubar essas barreiras; portanto, por que os outros não podiam fazer o mesmo, já que, perante Deus, o homem e a mulher eram iguais?

Como um raio que atingisse Ingrid Ylva, ela se deu conta do que se tratava, mas fingiu de início não ter entendido. Em vez disso, per­guntou, suave e tranqüilamente, a que espécie de parentes próximos ele se referia, e quando ele respondeu dizendo que não estava bem certo, mas pensava em casamentos entre um homem e a filha de um tio por parte de pai ou um homem e a filha de um tio por parte de uma tia-avó, ou ainda, pura e simplesmente, de um homem com a sua tia, era como se ela, de um momento para outro, virasse um animal selvagem. No entanto, não elevou a voz ao responder-lhe, para que ninguém no séquito pudesse ouvir, mas usou de palavras duras que doeram como ferro em brasa.

— Em primeiro lugar — cuspiu ela, entre dentes — o caso men­cionado é incesto e jamais poderia ser outra coisa em se tratando de você e de Alde. Em segundo lugar, nem mesmo o mais religioso e obe­diente a Deus dos reis poderia levar o papa a conceder autorização para que você levasse a sua tia para a cama. Em terceiro lugar, Alde quer se casar com o homem que ama, e ele é o cavaleiro Sigurd. E, em quarto lugar, Birger, você deve receber como esposa a filha de um rei e nada menos do que isso. Finalmente, está intimado a jamais levan­tar esse tema pecaminoso de novo.

Birger mordeu o lábio e não teve mais nada a dizer.

 

Após o período pacífico das colheitas, o da Feira de Per, chegou o outono, o da Feira de Mickel, em que ninguém precisava mais tomar conta dos cercados na Götaland Ocidental e na Oriental, visto que o gado era recolhido aos estábulos, os cavalos às cavalariças e era lá que recebiam os devidos cuidados. As árvores adquiriam os seus tons outonais de vermelho e ouro que, em breve, se transformariam em tons de cinza. Um mês e uma semana depois, Birger e Knut cumpri­ram o seu compromisso perante o rei e aqueles que tinham visto os dois desde o início poderiam dizer que havia uma grande diferença no comportamento de Knut em comparação com aquilo que ele era nos primeiros dias. De Forsvik, além disso, Birger tinha recebido, seguida­mente, aquilo que havia medido e encomendado, de maneira que a espada de Knut agora se encaixava muito melhor na sua mão e o escu­do tinha uma configuração muito mais apropriada para a luta do que apenas para exibição. Também as vestes de malha de aço de Knut que lhe serviam de defesa para as pernas e os braços agora eram muito mais leves e resistentes, o que era um alívio bem-vindo para as suas massacradas articulações.

Ambos pensavam, no entanto, que mais dez meses de treinamen­to desse jeito seriam difíceis de agüentar. Mas nenhum deles queria ser o primeiro a desistir e demonstrar a sua fraqueza perante o outro. E muito menos se apresentar ao rei dizendo que não agüentava mais a obediência àquela ordem do soberano. Ainda faltava muito tempo para a chegada do Natal, quando todo o trabalho era suspenso e eles poderiam descansar e deixar de lutar um contra o outro todos os dias. Sem trair os seus pensamentos perante o outro parceiro, ambos pro­curavam uma desculpa para, pelo menos por um curto período, fazer outra coisa, a não ser treinar com espadas e escudos.

A desculpa chegou com um mensageiro erikiano que esteve pri­meiro em Näs, antes de ser mandado para Ulvåsa. O jovem nobre Knut Holmgeirsson estava convidado para uma festa de casamento do seu amigo Jon Agnesson na Ilha de Fogdö, ao largo de Strängnäs. Era um convite impossível de ser recusado, visto que Jon era da família ulfeana, muito ligada à erikiana, e Knut, assim como o seu pai e o rei, era dos homens mais destacados entre os erikianos. Não ficaria bem responder pelos mensageiros que ele preferia continuar com os seus treinamentos com a espada em uma casa folkeana. Portanto, devia viajar, e o mais rápido possível.

Mas como o mais destacado dos convidados para o casamento, Knut também tinha o direito de levar consigo algum parente ou amigo, e nem mesmo Ingrid Ylva tinha qualquer objeção a fazer quando Knut convidou Birger para a festa. Isto porque durante os dez dias em que Knut estaria fora, em viagem, não faria qualquer sentido tentar levar Birger a sentar-se com seus irmãos e os clérigos. Se ficasse sozinho em Ulvåsa, ele iria desaparecer que nem uma raposa vermelha a caminho de Forsvik.

Por seu lado, Birger teria preferido usar essa semana de férias em Forsvik para agilizar a sua mão e a sua mente, destreinadas por tanta lentidão de lutas. Mas isso ele também poderia fazer por mais tempo e em melhores condições assim que tivesse passado aquele ano de compromisso com a ordem do rei. Além disso, existia um atrativo em viajar para uma região estranha, onde iria conhecer novas pessoas. O atrativo não ficou menor, antes pelo contrário, quando Knut lhe sus­surrou ao ouvido algumas palavras a respeito de certas tradições sveas, habituais entre jovens nobres e mulheres nessas festas, já mais tarde, quando os mais velhos caíam cansados nas suas camas.

O meio mais agradável e seguro de viajar de Ulvåsa para Strängnäs era embarcando em qualquer um dos cargueiros que saíam diariamente de Ulvåsa e seguiam para o leste, na direção, primeiro, de Linköping e, depois, para Söderköping, situada já no Mar Báltico. Daí havia todos os dias barcos com destino ao Lago Mälaren, pela costa, na direção norte, ou para Visby, na sul. E uma vez no Mälaren, havia sempre barcos para as cidades aonde se pretendia chegar.

Uma viagem dessas levaria pelo menos quatro dias e o tempo era escasso pelo fato de os mensageiros se terem atrasado ao procurar Knut. Um outro caminho mais rápido, e mais perigoso, era o de seguir na direção contrária, de Ulvåsa para o Lago Vättern, até a praia norte, e de lá a cavalo pela floresta de Tiveden até Örebro e, depois, atravessar o Mar de Hjälmaren, até Eskilstuna. O que era pavoroso nesse caminho era a travessia da floresta de Tiveden até Örebro onde imperavam os salteadores durante o dia e os bruxos à noite, e onde poucos eram aqueles que se atreviam a viajar, senão em grupos, na companhia de muitos guardas bem armados.

Ingrid Ylva achava que a viagem de barco via Söderköping e Tälje até o Mälaren, era melhor, mais confortável e mais segura para um pequeno grupo de viajantes. Um dia de atraso na chegada podia ser desculpado pelo fato de os mensageiros terem chegado tarde.

Knut e Birger objetaram, dizendo que era pouco cortês chegarem atrasados ao casamento, e que, além disso, seguiam dois guardas armados em sua companhia. E no que dizia respeito aos salteadores, agora não havia tantos, graças aos novos tempos, bons e pacíficos, sob o governo do rei Erik. Muitos fora-da-lei haviam sido atraídos para fora das florestas por anistia real e tinham podido fazer as pazes com aqueles com quem tinham tido problemas ou dívidas. Além disso, era pouco provável que alguém se atrevesse a enfrentar quatro homens bem armados e ainda por cima exibindo as três coroas dos erikianos e o leão dos folkeanos. Esses símbolos exibidos nos escudos eram conhecidos de todo mundo e ninguém podia se enganar. Eles signifi­cavam a morte imediata ou mais tarde e mais cruel nas mãos de paren­tes vingativos, mas, de qualquer modo, a morte certa.

Apenas algumas horas depois de os quatro mensageiros erikianos terem chegado a Ulvåsa, eles partiram cavalgando bem armados e com dois cavalos carregados com barracas de lona, cobertores de peles, pre­sentes para o casal de noivos e comida para a viagem.

Se viajassem de Ulvåsa ao amanhecer, não necessitariam passar mais de uma noite no coração escuro da floresta de Tiveden. Mas Ingrid Ylva chamou a atenção para o fato de que, se partissem de imediato, teriam de passar duas noites. No entanto, esse aviso não encontrou res­paldo, isto porque nem Birger nem Knut, entre si ou perante outros, estavam dispostos a mostrar a menor hesitação diante do perigo.

Na primeira noite na floresta nada aconteceu de anormal, embo­ra três dos quatro homens dormissem, enquanto o quarto ficava de sentinela, vigiando e mantendo o fogo aceso. Os três que dormiam, no entanto, faziam-no com um dos olhos aberto.

Na segunda noite e na hora mais escura aconteceu uma coisa que Birger jamais esqueceria pelo resto da sua vida, sobretudo por causa do seu medo.

Tal como na primeira noite, ele teve dificuldades em adormecer. Os seus pensamentos giravam entre as muitas formas do espírito do mal que existiam nas florestas mais fundas e escuras e os estranhos hábitos que caracterizavam as relações entre os jovens sveas durante os casamentos. Quando já estava prestes a adormecer, os pensamentos voaram para as imagens fantásticas, negras e horríveis, e ele se obriga­va a pensar em festas de casamento e nas bonitas jovens sveas. Mas, ao se cansar de novo e ficar a ponto de adormecer, bastava um rugido de raposa a distância para que ele acordasse e se afundasse novamente no poço das fantasias negras.

Durante toda a sua infância, ele tinha ouvido histórias de sereias da floresta, de espectros luminosos, duendes com tesouros em ouro e outras figuras que viviam enganando as pessoas para lhes tirar a vida. Em especial, os duendes gostavam de seqüestrar as noivas a caminho do altar, uma coisa que era tão habitual que ele, quando criança, acha­va estranho que a sua família nunca tivesse passado por tais aconteci­mentos horrorosos. Magnus, o seu pai, explicou-lhe a razão disso dizendo que os folkeanos sempre viajavam para os casamentos em grande comitiva e que os maus espíritos não eram tolos e tinham aprendido a ter medo do abençoado aço das lâminas das espadas. A sua mãe deu uma outra explicação: esses espíritos das florestas eram pagãos, criados pelo diabo, e que, por isso, eram afastados para luga­res mais distantes ao norte pelo som dos sinos das igrejas e dos salmos cantados, que os irritavam mais do que qualquer outra coisa. O seu avô Arn afirmava que os espíritos do mal eram encontrados dentro dos seres humanos, nos seus pensamentos, mais do que na realidade exterior, e aquele cuja mente estivesse limpa nada tinha a recear fosse qual fosse a forma que eles tomassem na escuridão.

Para uma criança não foi nada fácil ordenar todas essas explica­ções. Mas ele, com grande insistência, foi procurar saber entre os seus familiares mais próximos se já tinham visto algum desses espíritos do mal. Todos, aliás, confessaram que nunca tinham visto nenhum. E isso era muito estranho, porque em Forsvik muitos dos escravos libertos diziam ter visto um ou outro em suas vidas. Em Forsvik existiam duas velhinhas que eram tão respeitadas pelos seus conhecimentos de plan­tas curativas quanto por suas ligações sigilosas com os espíritos do mal que habitavam na escuridão das florestas. Ele se lembrava em especial de uma delas, nascida nas regiões do Leste e que se chamava Lara.

Quando se ouvia o latido de uma raposa nas noites de março, ela pis­cava o olho e sussurrava que era a sereia da floresta que se disfarçava de raposa. Quando se ouvia o berro do veado após a copulação em setembro, ela sussurrava dizendo que era o rei das montanhas que tinha chegado das grutas subterrâneas, todo vestido de ouro, para beber o sangue dos seres humanos. Essas eram as histórias que conti­nuavam subsistindo na sua mente.

No entanto, havia também alguns adultos ou velhos que diziam ser tudo isso histórias para crianças e que as pessoas que tinham pas­sado muitas vezes pelas florestas negras deviam saber melhor. O cava­leiro Sigurd era uma dessas pessoas, assim como o seu irmão Oddvar. Eles diziam que aquilo que nunca tinham visto para eles não existia. Mudar de idéias era, evidentemente, uma coisa natural para qualquer pessoa inteligente, mas por que mudar antes de encontrar uma razão forte para isso?

Birger não estava absolutamente seguro lá bem no fundo da sua mente no que acreditar ou não em relação aos espíritos malignos da floresta. De certeza apenas o fato de esses pensamentos surgirem quando se estava deitado, como era o seu caso, ao lado de uma peque­na fogueira, bem dentro da floresta de Tiveden, e era por isso que ele se obrigava a fantasiar sobre as jovens mulheres de Svealand. Uma difi­culdade com essas fantasias, no entanto, estava no problema de elas não serem, nem em parte, tão vivas quanto os pensamentos horroro­sos. Birger nunca tinha estado perto de qualquer mulher. E aquela chama que Alde acendeu dentro dele fora apagada dura e friamente por sua mãe, Ingrid Ylva. No mundo de sonhos de Birger, entre a sonolência e o acordar repentino, com o coração batendo forte e rápi­do, após sons imaginados ou verdadeiros, na escuridão da floresta, as visões de sereias e duendes tornaram-se cada vez mais nítidas do que as das jovens sveas. Finalmente, ele sucumbiu entorpecido pelo cansa­ço e caindo novamente em sonolência.

Um rugido abismai, de algo que não era humano, acordou Birger e os dois guardas erikianos que se puseram em pé de um pulo, se desfizeram rápido dos seus mantos e ainda meio bêbados de sono procuraram as espadas, olhando um para o outro, até confirmarem que não se trata­va de um sonho, mas de realidade. Os cavalos que estavam presos por perto relinchavam, tentando romper as correias que os prendiam. Um deles chegou a levantar as patas da frente no ar. Birger pensou logo que era apenas um urso atraído pelo odor dos homens.

Entretanto, ouviram mais dois rugidos vindos de um canto da cla­reira vagamente iluminado pelas labaredas tremulantes da fogueira. Aquilo que Birger conseguiu ver, então, deixou a sua mente e o seu corpo completamente paralisados, como que congelados. Ali estavam dois elfos, de braços caídos, flutuando, vestidos de pele de lobo, com unhas salientes e com o rosto muito mais animalesco do que semi-humano. Uma visão horrorosa. Os monstros exibiam, cada um, o seu bastão de madeira com uma caveira humana no alto, que eles balan­çavam ameaçadoramente.

Birger continuava paralisado, com a sua espada meio desembai­nhada. Ele se recusava a acreditar no que seus olhos viam. Estava con­gelado, boquiaberto, não conseguia nem pensar nem agir, apesar de o seu coração bater violentamente no peito. Os dois guardas também continuavam paralisados ao seu lado.

— Desapareçam daqui, homens! — rugiu um dos elfos, com voz cavernosa, ameaçando-os com o bastão de madeira. De novo se ouvi­ram os relinchos e o desespero dos cavalos ainda presos. Birger estava a ponto de vencer o medo e fugir rápido.

Knut, que estava de sentinela, mas ainda sonolento, não total­mente acordado como os outros, fez então uma coisa que Birger pas­sou a lhe agradecer pelo resto da sua vida. Ele ficou de pernas abertas e de espada desembainhada no meio da clareira e sussurrou para Birger esticar o arco, rápido, escondido atrás de si, e disparar. Enquanto Birger, atrapalhadamente, retesava o arco, tremendo, os elfos continuavam rugindo, rindo às gargalhadas e se mostrando ainda mais ameaçadores, começando a avançar, lenta, animalesca­mente, em direção às suas presas humanas.

— Onde devo acertar? — sussurrou Birger, ainda escondido atrás das costas largas do gigante Knut.

— Como em qualquer homem, no meio do peito, mas rápido! — murmurou Knut, de volta.

Ainda com a mão tremendo, Birger retesou o arco atrás das costas de Knut, respirou fundo, deu um passo para o lado, levantou o arco já retesado, apontou para um ponto abaixo do queixo do elfo da direita e soltou a flecha. A pontaria foi certeira, a julgar pelo que, nitidamen­te, se ouviu, e, no mesmo momento, Knut deu quatro longos passos para a frente, correndo com a espada suspensa na mão, jogando-a na cabeça do outro espírito do mal que era o maior e parecia mais amea­çador. Ouviram-se então alguns gritos desesperados e o som da lâmi­na da espada cortando a carne e os ossos do peito. E em seguida só o silêncio e o roçar fraco vindo da outra figura, ainda se contorcendo, que Birger havia atingido na garganta.

Birger sentia que um dos seus joelhos tremia violentamente. E que a sua cabeça se anuviava com pensamentos contraditórios no momento em que ele deixava cair o arco no chão. Metade dele ainda vivia no mundo das fantasias, enquanto a outra metade cavalgava, desorientada­mente, a caminho da luz, querendo entender. Os dois guardas atrás dele continuavam paralisados e olhando sem entender, tal como ele. De repente ouviu-se uma gargalhada de satisfação vinda de Knut, que caminhava, respirando fundo, arrastando consigo um dos monstros, aos pontapés. Ao chegar perto da fogueira, deu para ver esse monstro. Knut abaixou-se e retirou-lhe a máscara, feita de resina, fios de palha e peda­ços de madeira, o que revelou os cabelos longos e grisalhos de uma cabe­ça ensangüentada e quase degolada, uma trouxa que ele remexeu com a ponta da espada. O que todos viram foi um homem morto, com a cabe­ça cortada pela metade, nem mais nem menos.

Eles correram então em direção ao mais baixo dos dois monstros, aquele em que Birger havia acertado no pescoço. Era um adolescente, com pouco mais de treze ou catorze anos. Mostrava ainda fracos sinais de vida, mas da sua garganta saíam borbotões de sangue a cada batida do coração. Knut enfiou a espada no corpo do jovem, atravessando o coração, que passou para o outro lado, atingindo o chão.

— Era o destino desses salteadores — disse Knut. — Deus nos enviou contra eles, e só Ele sabe quantas vezes eles foram bem-sucedidos com essa trapaça. A primeira vez certamente não foi. E se nós fugíssemos na escuridão, o que poderia ter nos acontecido?

— Não iríamos muito longe, correndo aos tropeços — disse Birger. — E quando ousássemos voltar ao amanhecer, veríamos que os nossos cavalos, presentes de casamento e armas teriam desaparecido. Não seria um retorno nada agradável.

— Não. Voltaríamos com o rabo entre as pernas — disse Knut, pensativo. — E por isso mesmo seríamos mais quatro testemunhas vivas, jurando pela honra de nossas mães que teríamos visto elfos na floresta de Tiveden a curta distância.

— E cada vez essas figuras diabólicas ficariam mais reais e em maior número, maiores e mais horrorosas — murmurou Birger. — E ninguém poderia ser culpado pelo assalto seguido de roubo. O plano desses salteadores era bastante inteligente e astucioso.

— É claro — confirmou Knut, sorrindo. — Eles pensavam inte­ligentemente e tudo lhes corria às mil maravilhas, quer dizer, até que morreram. Eu gostaria imensamente de saber o que esse pobre-diabo pensou ao me ver de espada em punho, bem elevada, descarregando em cima da cabeça dele.

— Ele pensou que com certeza estava na hora de inventar um novo truque — concordou Birger secamente, conseguindo com isso que todos soltassem uma grande gargalhada. Uma gargalhada que libertou-os do medo e do pesadelo que os assolara alguns momentos antes.

No entanto, eles não conseguiram dormir muito pelo resto da noite, um sono que lhes seria reparador diante da longa viagem que os esperava no dia seguinte. Também não conversaram muito, pois cada um deles fingia dormir, já que seus pensamentos a respeito do que havia acontecido não os deixavam.

Ao amanhecer e ao levantarem acampamento, tiraram os disfarces dos dois salteadores e penduraram-nos, lado a lado, em um galho gros­so de pinheiro. No tronco Knut fez um corte, retirando a casca com o punhal, e gravou o símbolo das três coroas, a fim de deixar registrado para cada viajante que passasse quem tinha castigado esses malandros. Birger, porém, ainda não estava satisfeito com essa mensagem e foi bus­car os disfarces dos mortos, recompondo-os junto do tronco da árvore para mostrar não apenas quem os matara, mas também a razão pela qual foram mortos. Segundo ele, aqueles que se disfarçavam como elfos e duendes também morriam como tal. Todos concordaram que essa era uma boa mensagem.

O resto da viagem decorreu tranqüila e sem percalços pela flores­ta, pelos prados e por cima das águas. Chegaram a Agneshus, na Ilha de Fogdö, um pouco antes do anoitecer do dia anterior ao casamento, e na bagagem não havia apenas os presentes caros, de vidro e de pra­ta, do depósito de Ulvåsa, mas também uma longa história da viagem para contar, difícil de ser suplantada.

Um pouco insatisfeito, Birger achou que Knut contava a história repetidamente, salientando o quanto os outros ficaram cheios de medo e isso o irritava ainda mais porque era obrigado a confirmar vezes sem fim que estava com medo quando Knut lhe sussurrou e o convenceu a armar o arco e disparar a primeira flecha. Além disso, ficava mal-humorado e espantado pelo fato de Knut se referir ao seu amigo e acompanhante como um folkeano que se chama Birger. Sem dúvida isso era verdade, mas havia uma verdade maior, a de ele ser Birger Magnusson, de Ulvåsa.

Eram poucos os convidados já presentes na noite anterior aos três dias da festa de casamento. A maioria chegaria no dia seguinte para bus­car a noiva, ver os jovens em torneios e, certamente, se divertir e testemu­nhar o ato dos nubentes irem para a cama na primeira noite. Agneshus pertencia à família ulfeana, e a noiva vinha de uma família de um homem de leis do norte da província de Uppland, mas, no momento, ela já estava em Strängnäs e era lá que teriam de ir buscá-la.

A comitiva da noiva, em especial, tinha que levantar bem cedo na manhã seguinte, por isso o senhor Agne, que era o pai de Jon, o noivo, decidiu que as bebidas não se prolongariam muito tarde, depois da meia-noite. Ele mesmo estava disposto a se retirar bem cedo para sua cama com colchão de penas e cobertor de peles. Mas antes disso que­ria saber se o jovem folkeano, amigo de Knut, podia acompanhar o séquito da noiva, se ele, nesse caso, queria portar a bandeira dos fol­keanos e se tinha um cavalo que não envergonhasse ninguém. Caso contrário, podia lhe emprestar. Todas essas perguntas deixaram Birger primeiro tão desorientado que teve dificuldades em responder e sem alterar a expressão do rosto, mas assegurou que tinha trazido consigo o escudo com o leão e que o seu cavalo ostentaria as cores folkeanas e não havia razões para sentir vergonha dele. O senhor Agne, já grisa­lho, acenou com a cabeça concordando que esse era um bom sinal da paz que agora vigorava no reino, o de ver que um folkeano podia cavalgar no séquito da noiva. Antes, nos casamentos dos sveas, a pre­sença dos folkeanos era rara. Em seguida ele se levantou com dificul­dade, acenou amistosamente para os jovens que ficaram na sua sala e estava a ponto de desejar uma boa noite quando se lembrou de mais uma coisa. Virou-se então para Birger com um sorriso meio descon­certante e perguntou:

— Ah, sim, mais uma coisa. Eu me lembrei agora, quando ouvi falar que quase todos aqui são sveas, exceto você, Birger. Nós vamos ter jogos para os jovens, o que é uma tradição nos nossos casamentos. Isso é do seu conhecimento?

— Sim, claro, isso também faz parte das nossas tradições — res­pondeu Birger sem pestanejar, apesar de, imediatamente, ter tido uma idéia.

— Ótimo. Então você já sabe como as coisas se passam — reagiu o senhor Agne. — Acontece que os jovens que vão participar dos jogos uns contra os outros são ulfeanos, erikianos e alguns sveas do Norte que eu não conheço bem. Mas com um folkeano entre nós, acho que é até injusto convidar você para os jogos. Como o único folkeano presente, você vai se sentir mal entre os nossos parentes, mas a praxe nos obriga, a mim e a você, que eu lhe faça a pergunta.

— E a praxe folkeana me obriga a aceitar imediatamente esse con­vite — respondeu Birger, rápido, com uma pequena reverência.

O senhor Agne sorriu então significativamente, erguendo as sobrancelhas, fingindo espanto diante da forma resoluta que ele falou. Abanou a cabeça, murmurando qualquer coisa a respeito do sangue quente e da ousadia da juventude, e desejou uma boa noite e um sono tranqüilo para todos.

Birger olhou de lado para Knut e viu que ele estava abatido e nada satisfeito. Não foi difícil imaginar por quê. Alguns jovens sentados perto de Knut, entre eles o noivo, Jon, já tinham começado a falar dos jogos, apontando Knut como o provável vencedor.

Birger verificou que tinha uma escolha simples a fazer entre uma coisa boa e outra nem tanto. Podia encher mais uma vez a sua jarra de cerveja, continuar na sala que agora se esvaziava rapidamente dos senhores e das senhoras de mais idade e se juntar ao grupo restante, à volta de Jon Agnesson, o noivo, e do seu amigo Knut. E então logo alguém perguntaria por que Knut e Birger tinham viajado juntos e como é que tinham se tornado amigos. E se Knut fosse responder a essa pergunta, ou a algo parecido, certamente tentaria evitar dar respostas diretas ou talvez até mentirosas. Isso, segundo Birger, era certo que Knut poderia fazer melhor que ninguém.

E se eles começassem a perguntar a ele, Birger, qual era o seu nome completo e que espécie de folkeano era, isso também não iria aumentar a alegria e a amizade entre os dois, visto que Knut sempre falara do seu amigo de viagem só pelo prenome, o que era contra todas as praxes.

Sair às escondidas dali era ruim, mas ficar apenas sentado no banco, ainda pior. Justamente quando os outros jovens restantes na sala começaram a se embebedar e a se juntar no mesmo lugar, cha­mando os criados para trazer mais cerveja, Birger levantou-se e se des­culpou, dizendo que tinha dormido mal na noite anterior na floresta dos supostos elfos e tinha de honrar as cores da família no dia seguin­te. Com isso fez uma reverência e um sinal para um criado para lhe mostrar onde dormir. E saiu fingindo não ouvir as palavras de desen­canto e de tola arrelia ditas pelas suas costas. Ele não saiu dali nada tranqüilo, antes com muita raiva. No entanto, resolveu se conter, se convencendo de que tinha uma ordem real a cumprir. E essa ordem não incluía a perspectiva de aumentar a hostilidade entre ele e Knut justamente no momento em que ela começava a diminuir.

 

Na manhã seguinte, Birger foi um dos primeiros a chegar à cavalariça, quando ainda estava escuro. Assim, ele teve tempo para falar com Ibrahim, afagá-lo no pescoço e contar para ele a respeito das suas preocupações e de como, juntos, precisavam fazer o seu melhor durante a tarde e o anoitecer para mostrar aos erikianos, aos ulfeanos e também aos sveas o que era o poder dos folkeanos. Além disso, Birger preferia ser ele a selar o cavalo e a cobri-lo com as cores folkea­nas. Para cobrir o animal com o caparazão não era difícil, essa arte estava ao alcance até mesmo de qualquer tratador. Mas Ibrahim fica­va por vezes nervoso no que se referia ao tecido que cobria a cabeça, visto que não gostava de ficar com os olhos tapados, nem que fosse por pouco tempo.

Assim que Ibrahim ficou pronto, Birger foi até o lugar onde ele e Knut tinham deixado a bagagem. Achando-a, então retirou o seu escudo, a espada, o elmo de cavaleiro e a lança pintada com listras prateadas e azuis. Das rações retirou ainda um pouco de carne defu­mada, que prendeu ao cinto por baixo da sua veste de malha de aço. Raramente ficava com fome logo de manhã, depois de uma festa, mas sentia que o estômago iria roncar após algumas horas de cavalgada.

De volta à cavalariça, ele foi encontrar não só vários tratadores como uma parte dos cavaleiros, em vez de começar os seus trabalhos mais urgentes, reunidos junto de Ibrahim. Alguns deles que achavam entender de garanhões diziam que esse era um daqueles cavalos negros, com crina prateada, dos mais caros, criado na Götaland Ocidental. Birger confirmou isso com um rápido aceno de cabeça, acrescentando que Ibrahim era de uma raça chamada anaza. Em seguida, pegou Ibrahim pelas rédeas e saiu com ele da cavalariça antes de montá-lo.

Birger pensara que seria o primeiro a se preparar logo de manhã para dar uma volta de aquecimento e que só regressaria à praça maior da casa de Agne, a Agneshus, quando todos já estivessem formados para partir na comitiva da noiva. Dessa maneira ele só poderia colocar-se em algum lugar no final do cortejo, onde ninguém ia reconhecê-lo. Isso porque não queria escutar nada do que ele suspeitava que teria sido dito por Knut para os seus amigos durante a noite.

O seu plano falhou. Ao voltar para Agneshus, o senhor Agne esta­va montado em um grande e gordo cavalo marchador, organizando o cortejo no meio da praça, entre a casa-grande e a cavalariça, ordenan­do onde cada um devia colocar-se na formação. E quando ele viu Birger chegar, montando um garanhão engalanado como só os senho­res das maiores famílias podiam e com um escudo folkeano e o seu leão dourado brilhando à luz do sol nascente, ordenou imediatamen­te que esse folkeano devia ser chamado para um lugar de honra no cortejo e, portanto, colocado bem na frente.

E assim Birger foi colocado na segunda fileira, atrás dos porta-bandeiras, junto com o próprio senhor Agne e seu filho, Jon, o noivo, e quem ficou ao seu lado foi o melhor amigo de Jon, Knut. Tudo aconteceu ao contrário do que Birger havia pensado.

Quando o cortejo partiu de Agneshus, Birger e Knut cavalgaram lado a lado durante muito tempo e em total silêncio.

— Você por acaso disse alguma coisa a meu respeito, ontem à noite, que eu deva saber? — perguntou Birger finalmente constrangido.

— Posso talvez ter contado alguma coisa que não lhe agradaria, mas calei muito mais — respondeu Knut relutantemente.

— Então conta o que foi, visto que o que é desagradável de dizer é melhor que seja dito antes do que mais tarde — replicou Birger, sem olhar para Knut.

— Eu disse que éramos amigos íntimos, que nos conhecemos na corte real em Näs, que desde então temos vivido inseparáveis e que caçamos muito juntos — disse ele após um longo momento de refle­xão e com notória apreensão no rosto.

— Inseparáveis nós somos. Até aí é tudo verdade. Mas ninguém sabe, portanto, que o rei nos ordenou a treinar a sua mão direita da espada durante um ano inteiro. E acho que você prefere que ninguém saiba disso — disse Birger.

— Não. Prefiro que ninguém saiba — respondeu Knut. — Nós somos, portanto, dois bons amigos, você e eu.

Com isso morreu a conversa entre eles por um longo tempo. Birger sentia-se desconfortável em cavalgar ao lado de um homem que não se atinha à verdade, mas como havia receado algo pior do que essa inocente meia-verdade, não ficou mal-humorado como pensava que ia ficar. Além disso, ficou aliviado pelo desagradável ter sido dito e ver que mais uma vez havia sido confirmado aquilo que o seu amado avô tantas vezes repetia, que o que tinha que ser dito era melhor que fosse logo do que depois de uma longa espera, o que só tornava a dor ainda pior. Por isso ele ficou de início completamente surpreso, quando Knut abordou um tema ainda mais desagradável. Embora demorasse a entender aonde realmente Knut queria chegar.

— Há mais uma questão que eu gostaria de falar e que também não é fácil — disse Knut após outro momento de silêncio. — Assim que voltarmos a Agneshus, haverá uma pequena festa antes do início dos jogos entre os jovens. Não haverá muito tempo para descansar, visto que tudo tem que terminar antes do anoitecer. E tal como a situação se põe agora, você e eu estamos numa situação embaraçosa.

— Nesses jogos? Não posso nem imaginar, visto que não se trata de nenhum duelo — reagiu Birger ingenuamente.

— Ninguém deve saber aqui que você é meu professor — come­çou Knut, de novo, depois de um momento de reflexão. — Ninguém sabe aqui que você é forsvikiano, nem sequer o que isso significa, a não ser um ou outro tratador que conhece quanto valem seus cavalos, a julgar por algumas conversas sussurradas que ouvi.

— Não entendo aonde você quer chegar com isso. Muito menos entendo que existam quaisquer dificuldades da nossa parte com esses jogos — respondeu Birger, verdadeiramente perplexo.

— Todos os amigos e parentes esperam que seja eu o vencedor dos jogos da juventude — continuou Knut após um novo silêncio. — Seria uma alegria para todos e melhor para a amizade entre as nossas famílias. Se o senhor Agne não tivesse tido a idéia de convidar você para os jogos, seria isso mesmo que aconteceria, quase com certeza. Essa é uma situação embaraçosa para nós.

— Eu não sou bom em lançar o machado, nem a lança. Isso é uma coisa para os guerreiros camponeses. Nem em Forsvik nós treinamos isso — respondeu Birger, olhando para longe. Estava claro que ele parecia sentir vergonha. E, de fato, sentia mesmo, mas mais pelo rumo que a conversa parecia ir tomar do que pela sua incapacidade para os jogos dos guerreiros camponeses.

— Três dos jogos são disputados a cavalo, como você sabe — con­tinuou Knut, hesitante. — E por aquilo que o meu querido parente, o rei Erik, disse, a respeito de cavalos e de forsvikianos, você deve ser tão bom a cavalo como é com a espada.

Então Knut voltou a calar-se, como se não conseguisse continuar, apresentando a proposta que se seguiria. No entanto, Birger nada mais fez para ajudá-lo com novas perguntas, antes continuou caval­gando, com o rosto fechado e o olhar fixo em frente. Knut estava sen­tindo grande dificuldade em chegar aonde queria. E quando conse­guiu dizer aquilo que realmente desejava, não o fez com palavras muito bonitas:

— Eu lhe ofereço uma fazenda no sul, na província de Götaland Ocidental, com vinte vacas e quinze escravos, águas próprias para pes­caria e campos de caça aos veados se você deixar que eu vença hoje — completou Knut, atabalhoadamente, tão rápido que as palavras se atropelaram umas às outras, apesar do longo tempo que ele teve para pensá-las.

— A honra de um folkeano não está à venda, nem pode ser com­prada, nem mesmo por um pretendente ao trono da família do aben­çoado santo Erik — respondeu Birger, em voz baixa, depois de um longo e doloroso silêncio. — Isso que você me propõe também não favorece a nossa convivência durante os muitos meses que restam para cumprir a ordem do rei. Em vez disso, tente vencer com a honra intacta.

— Como é que eu posso vencê-lo se três dos jogos são a cavalo? — perguntou Knut, em voz tão alta que o senhor Agne, que cavalgava na frente deles, se virou e lhes lançou um olhar severo. Brincando, tam­bém lhes disse que os jovens nobres deviam cumprir as suas obriga­ções de honra, uma de cada vez e pela ordem. E, agora, a obrigação era de irem buscar a noiva.

— Essas certamente você não vencerá — sussurrou Birger em seguida. — Mas quatro dos jogos não são a cavalo e, mais ainda, nenhum deles é de homem contra homem com espada ou lança. Faça bem as contas e verá que se você me vencer por maior margem nos jogos a pé do que eu, nos jogos a cavalo, a vitória acabará sendo sua. A lança eu não jogo bem. E se tiver um machado de guerra nas mãos, a minha última idéia será jogá-lo em algum lugar. Ganhe de mim com grande vantagem nesses jogos e você poderá suplantar os seus resulta­dos adversos nos jogos a cavalo.

— Mas o terceiro jogo é o porrete no tronco — interveio Knut, depois de ter ficado por longo tempo fazendo contas.

— Sim. E daí? — perguntou Birger, impaciente.

— É uma luta muito parecida com a de espada — murmurou Knut timidamente. — Aquele que domina a espada como você é tão bom quanto no porrete em cima do tronco.

— Sim, aí você tem razão. Mas reze para santo Örjan para que ele o proteja, e não a mim, no tronco — sussurrou Birger. — E pense em mais uma coisa. Qual seria a maior alegria para você: de terminar em segundo lugar, depois de mim, ou ganhar, mas à custa de suborno, na batota?

— A maior alegria para mim seria a de vencer — respondeu Knut, tão rápido que mal teve tempo de pensar.

Ao se aproximar de Strängnäs, ambos tinha cavalgado por longo tempo em completo silêncio. Birger estava mergulhado em negros pensamentos, e Knut achava que não tinha nada a ganhar tentando encontrar melhores palavras para aquilo que já havia pedido. Ele se arrependeu ao ver em plena luz do dia e mais de perto o manto azul de Birger com o grande leão dourado nas costas. Não seria totalmen­te errado imaginar que apenas aquele manto teria um valor igual àquele da fazenda que ele tinha oferecido a Birger para lhe facilitar a vitória. Mas afastou a idéia de que teria mais sucesso se tivesse feito uma oferta maior.

Birger cogitava. Essa seria a sua primeira entrada em uma compe­tição entre os jovens e tinha sentido uma alegria selvagem e indomi­nável no seu peito quando o senhor Agne lhe ofereceu lugar nos jogos, visto que há muito tempo sonhava em vencer uma competição como essa. Havia jovens que ele conhecia e que já tinham concorrido, e todos diziam que um forsvikiano que tivesse pelo menos algum valor jamais perderia nos jogos da juventude, apesar daqueles jogos com o machado e com a lança no início. Ele jamais venderia a sua vitória. Mas talvez houvesse uma razão para dá-la de presente? Ainda faltam quase dez meses de convivência obrigatória com Knut. Se houvesse uma guerra pelo poder, uma coisa que ninguém podia saber por ante­cipação, era talvez decisivo que ele e Knut ficassem do mesmo lado ou em lados opostos. Enfim, seria bom encarnar agora em Birger Brosa para decidir, tranqüila e friamente, sobre o que seria mais inteligente fazer. No entanto, ele tinha apenas dezoito anos e a caminho de reali­zar um sonho, o de vencer pela primeira vez uma competição dos jogos da juventude, ainda mais entre sveas do norte e do sul. No entanto, essa seria justamente uma situação que jamais Birger Brosa teria imaginado. Birger sentia-se ainda jovem demais e tolo para rece­ber sobre os ombros uma responsabilidade como essa. Era como se o seu manto, de repente, passasse a ser pesado e caro demais.

Ele se obrigou, finalmente, a deixar que a curiosidade em relação à cidade de Strängnäs sobrepujasse o resto, visto que nunca conhecera outras cidades além de Skara e Linköping.

A cidade era menor e mais limpa que Linköping, pelo menos o caminho percorrido pelo cortejo da noiva, entre fileiras de casas bai­xas de madeira. Os habitantes da cidade pareciam prestativos, curio­sos e quietos, em longas filas de ambos os lados do caminho até a cate­dral. Pela primeira vez Birger se deu conta de que esse cerimonial de ir buscar a noiva seguia um padrão diferente daquele utilizado na Götaland Ocidental. Isto porque nunca tinha ouvido falar antes em ir buscar a noiva numa igreja, em vez de em sua casa. Ao perguntar inocentemente sobre esse assunto, Knut sentiu-se aliviado e se mos­trou satisfeito em poder explicar.

O séquito da noiva havia percorrido um longo caminho, desde a mais escura região do norte da Uppland. E para lá seria impossível aos cavaleiros que vinham buscar a noiva chegar sem terem que enfrentar grandes complicações. E na Ilha de Fogdö também não havia igrejas, muito menos um bispo, como em Strängnäs.

Quando o bispo abençoou a noiva, que estava com véu de linho, e o jovem nobre Jon Agnesson, de manto ulfeano, do lado de fora da catedral, os presentes dos recém-casados foram trocados e a noiva afas­tou para o lado o véu de linho branco, mostrando o seu rosto. Birger viu, então, uma coisa que o surpreendeu. A noiva, que se chamava Brígida Helgesdotter, era magra e jovem, mas estava com uma barriga que até mesmo um rapaz inexperiente como Birger não podia enten­der outra coisa, a não ser que ela já estava em estado adiantado de gra­videz. Portanto, era prostituta. Se o noivo era o culpado, então ela era duplamente prostituta.

Ao arranjar coragem para sussurrar uma pergunta no ouvido de Knut, este abriu um grande sorriso e sussurrou de volta que a noiva, de fato, iria dar à luz antes do Natal, mas já casada. Portanto, não havia dificuldade alguma a vencer, em especial quando o bispo agora havia abençoado o casal e com isso transformado o preto em branco. Pelo que ele, o bispo, aliás, tinha recebido uma boa soma em dinheiro.

Na viagem de volta, o cortejo da noiva avançou a passo de caracol, visto que a noiva e o bispo não cavalgavam, antes eram transportados por carruagens que, o tempo todo, atolavam na lama, prendendo as rodas em raízes nodosas e em pedras. Birger mergulhou de novo nos seus próprios pensamentos.

Tal como ele conhecia a história recente da sua família, Magnus, o seu pai, havia nascido de Cecília Rosa e Arn Magnusson, antes de eles serem abençoados e autorizados a dormir juntos. Como conse­qüência desse pecado, ambos foram condenados a vinte anos de peni­tência. Arn, o seu avô, foi mandado para a guerra na Terra Santa e a sua avó, Cecília Rosa, para um convento. Por isso demorou mais de vinte anos antes de o seu pai, Magnus, ser reconhecido como nascido em cama oficial, com direito a herança.

E ali agora acontecia o mesmo pecado, a noiva com a barriga notoriamente crescida, que todos podiam ver, inclusive o bispo, que não fez a mínima expressão de condenação. Era muito estranho ver como as leis podiam ser diferentes de província para província, ainda que a distância entre elas fosse apenas de alguns dias de viagem. Entretanto, não podia dizer se eram leis piores ou melhores.

Quando já tinha várias questões curiosas a esclarecer sobre esse tema e não demonstrava nenhuma daquelas expressões zangadas sobre o que tinham falado antes, Knut sentiu muito prazer em contar a res­peito de algumas tradições dos sveas que pareceram a Birger comple­tamente incompreensíveis.

O próprio Knut tinha três crianças ilegítimas, duas meninas e um menino. Possivelmente ia legalizar a sua situação na cama, isto é, casar, com a jovem mãe do filho, pelo simples motivo de que o garoto se revelava um arteiro de primeira.

Esses novos conhecimentos sobre tradições nada cristãs, lá pelo norte, na Nordanskog, deixaram Birger boquiaberto. Ele não teve tempo de pensar muito nessas questões, na continuação da viagem para Agneshus, mas algumas delas ele iria apresentar, sem corar, o que seria humanamente normal. Acima de tudo, ele gostaria de saber como essas crianças haviam nascido, pois, para isso, sabia muito bem, era preciso que o homem e a mulher tivessem uma relação muito ínti­ma. Por muito que repensasse sobre o assunto, não podia entender como é que isso era possível antes da festa de casamento e de conduzir os noivos até o leito nupcial.

Como previsto, houve uma pequena festa à chegada a Agneshus onde já se tinham reunido quase cem convidados. Como esse casa­mento tinha certa urgência, estava sendo realizado já bem tarde no ano, em que os dias eram curtos. Por isso, era preciso que os torneios para os jovens começassem logo em seguida.

Quando os jovens estavam trocando de roupa, para vestes mais leves, já que não era necessário usar malhas de aço nem armas afiadas, visto que o sangue e a morte tinham pouco a ver com casamento, Knut pareceu querer repetir aquele assunto nada honroso de comprar a vitória. Birger estava ao lado dele na casa menor onde trocavam as vestes de malha de aço por outras de couro de veado, linho branco e tecidos feitos em casa. Ele receava o pior, que Knut de novo os enver­gonhasse a ambos e que ele, então, não tivesse mais palavras sensatas para lhe responder.

Apesar de estarem quase no final do ano, o tempo estava bom em Agneshus, o que era um bom prenuncio para o casamento e sinal de boa sorte para o jovem casal que seria acompanhado até a cama, como era de tradição, ainda naquela mesma noite e não na noite seguinte, como era costume. Tanto Helge, o pai da noiva e homem de leis de Gottsunda, quanto o senhor Agne estavam de acordo em apressar o evento mais importante, para, depois, se dedicar com mais tranqüili­dade às festas dos dias seguintes.

No meio da praça, o pessoal da fazenda ergueu uma plataforma para a noiva, com vários bancos compridos dispostos em degraus, de viés, para que a noiva, que ficaria no meio, assim como os seus paren­tes, tivessem os seus lugares de destaque. Ao lado, em posição seme­lhante, estava a plataforma dos parentes do noivo, que também parti­ciparia dos jogos.

Ao som de tambores e flautas, os criados trouxeram para a praça um grande carregamento de feno já meio escurecido, pois era do ano transato, e a nova colheita ainda não tinha começado. Com isso os presentes desataram a rir e a soltar palavrões, dizendo que esse lixo não era o que eles, e, em especial, os homens lúcidos, queriam. Depois dispuseram os blocos de feno em linha, todos marcados com os sím­bolos dos escudos dos jovens em competição, alguns pintados melhor do que os outros. Não havia nada de errado nos dois que apresenta­vam as três coroas douradas sobre fundo azul, um em representação de Knut Holmgeirsson e o seu parente Botolf da Uppland. A cabeça ver­melha de lobo da família ulfeana sobre fundo negro. Mas, naquele que seria o símbolo da família folkeana, o leão com três traços prateados parecia mais uma galinha atrás das grades, o que despertou risadas maliciosas.

As regras eram simples. O jovem que vencesse uma partida rece­beria uma espiga de feno na sua cesta. O que terminasse em último lugar recebia sete. Depois era só contar as espigas em cada cesto para coroar o vencedor, premiar o segundo e lançar na vergonha o último. Para os presentes, esse último lugar estava reservado para o tratador de galinhas que tinha chegado da Götaland Ocidental.

O senhor Agne não gostou nem um pouco que os seus próprios parentes e os convidados do Norte demonstrassem tão pouco respeito pelo único convidado folkeano. Também não era o que ele tinha espe­rado e nem achava que isso fosse uma demonstração de inteligência e de sabedoria. Mas quando os sete jovens foram buscar os seus cavalos na cavalariça e cavalgaram em volta da praça, passando cada um na frente das bancadas do público e saudando a noiva com o seu escudo, o senhor Agne achou que o único folkeano iria, sem dúvida, dar-se bem na competição, saindo com apenas pequenas contusões. A sua maneira de conduzir o cavalo fez com que o senhor Agne recordasse mais uma vez o que se passou em Lena e em Gestilren, onde, justa­mente, os cavaleiros folkeanos, de ambas as vezes, foram aqueles que limparam o campo de batalha, deixando os dinamarqueses ensan­güentados, antes de os combatentes a pé, vindos da Svealand, entra­rem no campo com os seus machados. Se esse folkeano, o jovem nobre Birger, fosse um desses cavaleiros, ele iria, sem dúvida, honrar muito bem as cores do seu brasão de armas.

Mas começou tudo muito mal para o jovem folkeano. Isto por­que quando o noivo, Jon, e o seu amigo mais próximo, Knut Holmgeirsson, tiraram a sorte para saber qual dos dois abriria os jogos com o lançamento de machados, e Jon tirou a palha mais longa, Knut inclinou-se para ele e sussurrou alguma coisa, ao mesmo tempo que apontava para o folkeano.

Cada um dos homens tinha direito a jogar três machados de lâmi­na dupla contra um cepo de madeira. E ninguém tinha visto jogar o machado tão mal quanto o folkeano, que não conseguiu acertar e fixar o machado uma única vez no cepo. Com isso ele ficou em último lugar e o pessoal da fazenda contou em alto e bom som as sete espigas de feno que colocaram no seu cesto, enquanto imitavam o cacarejo das galinhas, para grande alegria dos presentes.

O senhor Agne esqueceu por um momento as dificuldades do seu convidado folkeano ao ver a atuação do seu filho Jon, conhecido por ser muito bom no arremesso de machado. Depois do folkeano, Jon venceu sem grandes dificuldades todos os outros jovens, até que, final­mente, restava Knut. Entre os dois, a disputa foi dura e eles foram obrigados a repetir mais de uma vez a série de arremessos, até que Knut venceu e recebeu uma espiga de feno, enquanto Jon duas no seu cesto.

Como vencedor no primeiro jogo, Knut teve o privilégio de começar o lançamento de dardo, e ele apontou, de repente, a sua lança para o folkeano, que se ergueu pesadamente e avançou sem coragem e quase indiferente para uma rápida derrota. Tão mal quanto com o machado não foi, mas também não tão bem-sucedido com o dardo.

O senhor Agne estava ficando cada vez mais preocupado com toda aquela gritaria de desprezo e brincadeiras da audiência que pode­riam derivar para uma hostilidade capaz de estragar o casamento. Entre todos os jovens presentes, que gritavam mais porque não tinham assegurado o seu lugar entre os sete escolhidos para a compe­tição, haveria aqueles que, certamente, mais tarde, quando a cerveja começasse a ser servida, iriam ficar tão bêbados que mal conseguiriam ficar em pé. E havia um limite claro, pelo menos para homens que viveram mais tempo e obtiveram alguma experiência entre o que era divertimento normal em qualquer festa e aquilo que, seriamente, poderia ferir a honra de alguém. Algumas palavras a mais e a espada iria soltar-se, brilhante e afiada, e, depois, seria difícil evitar o resto. E independentemente do resultado final, as conseqüências seriam gran­des e nefastas. Havia um ditado no sul que dizia que aquele que matasse um folkeano não iria viver além dos três pores-do-sol seguin­tes. Essa conversa era nada mais do que apenas uma bravata e, além disso, dependia, no caso, de quem fosse o folkeano, porque havia muitos da mesma espécie.

O senhor Agne reconheceu com crescente mal-estar que aquele cavalo e aqueles arreios, assim como o escudo e a lança que o folkea­no trazia, eram caríssimos e que só grandes senhores podiam comprar. E para maior tolice, na hora de perguntar o nome, ele apenas ficou sabendo que era Birger. Esse poderia ser o prenome de qualquer um, mas seria horrível se fosse Birger de Bjälbo, Forsvik, Ulvåsa, Ymse­borg, Arnäs ou qualquer outro dos grandes clãs folkeanos lá do sul. Se esse folkeano fosse mais humilhado durante os jogos, estaria claro como água para o senhor Agne que o seu primeiro cuidado após a competição de tiro com arco seria fazer com que o convidado folkeano fosse embora, cavalgando para longe da festa do casamento, rápi­do, em silêncio e sem derramamento de sangue.

A sua preocupação a respeito do perigo que rondava o casamento em Agneshus não diminuiu quando o seu filho, Jon, que finalmente venceu Knut no lançamento de dardo, apontou para o folkeano no jogo seguinte, que seria o do porrete no tronco roliço. Todos os pre­sentes voltaram a imitar o cacarejo das galinhas e essa gozação atingiu em cheio o folkeano como se fosse chuva forte, quando ele pegou o porrete e se dirigiu para o tronco rolante onde o filho vencedor do senhor Agne já o estava esperando e saudando alegremente a sua noiva. Isso ele fez de ânimo leve e erradamente, porque num momen­to já estava caindo na água.

Todos os convidados sentados nas plataformas da noiva e do noivo ficaram em silêncio quando Jon Agnesson saiu se arrastando da água que enchia a cova cavada no chão da praça, em substituição do fosso que não havia na fazenda. Alguém sugeriu tratar-se de um aci­dente e que não deveria contar, mas, então, o senhor Agne falou seve­ramente, dizendo que acidente ou queda provocada valiam da mesma maneira para o jogo como golpe bem aplicado e como sorte ou azar. E apontou, sem pestanejar, para o cesto do filho onde os criados começaram a contar com alguma hesitação as sete espigas de feno.

Entretanto, Jon não deu nenhum sinal de que tivesse sido um golpe sujo aquele que o derrubou e seguiu enxugando as suas roupas enquanto se dirigia para onde estava Knut, que, de cabeça baixa, pare­cia estar rindo do seu amigo. E isso era uma coisa que muitos dos espectadores podiam entender, visto que todos sabiam ser Knut e Jon os dois maiores candidatos ao título de vencedor do torneio, e se um deles recebesse sete espigas de feno em um dos jogos isso significaria muitas dificuldades em alcançar o outro.

— Se eu me lembro bem — disse Jon para Knut —, você disse que esse folkeano devia ser escolhido primeiro, porque seria o pior concorrente de todos nós. Mas tão ruim assim ele não é, visto que conseguiu me fazer cair do tronco antes que eu me desse conta do que estava acontecendo.

— Não, não foi nenhum golpe ruim que abateu você — respon­deu Knut, tranqüilamente. — Mas aquilo que eu disse para você foi que o meu amigo Birger era ruim com o machado e o dardo. Em rela­ção ao porrete no tronco eu não disse nada, foi suposição sua.

Birger continuava em cima do tronco, balançando lentamente o porrete revestido de couro na ponta para não causar ferimentos. Ele respirou fundo logo que o jogo terminou, tentando também dominar a sua raiva, antes de decidir quem escolheria para próximo adversário. Nunca antes tinha participado de qualquer evento em que se gritas­sem palavras de desprezo contra os folkeanos, e também não sabia como entender isso. Que os folkeanos não eram muito respeitados ao norte do reino ele já tinha ouvido falar. Mas que ele e os seus parentes também fossem odiados, como se podia deduzir por alguns dos pala­vrões pronunciados e pelas imitações do cacarejo das galinhas, isso representava, a partir daquele momento, um perigo para a festa do casamento. Knut devia entender isso melhor do que ninguém e, cer­tamente, não gostaria que a diversão se transformasse em disputa com espadas afiadas. O que é que ele teria a ganhar com isso?

Birger decidiu deixar que os jogos tivessem prosseguimento, mas dispôs-se a acompanhar de perto a contagem das espigas de feno na sua própria cesta e nas de Knut e de Jon. Podia ser que essas reações de insulto e grosserias diminuíssem. Acabou apontando para um dos sveas do norte, de quem lhe parecia ter ouvido as piores manifesta­ções. O escolhido, então, foi se aproximando, tinha um bode como símbolo no escudo e parecia mesmo um guerreiro de primeira, com a sua barba longa e loura pendente do queixo.

O homem parecia, também, ter entendido que o noivo, Jon, teve azar ao cair tão rápido e avançou a passos largos e de pernas bem aber­tas na direção do tronco. Antes, porém, voltou-se para os outros con­correntes e falou qualquer coisa a respeito de que daria um banho no folkeano. Depois, ao subir no tronco, virou-se rápido e desfechou um golpe forte e inesperado em Birger, mas acabou caindo direto no fosso. Birger tinha ficado quieto no seu lugar, e, em vez de aparar o golpe, simplesmente desviou-o para o lado, de modo que o adversário caiu, em função do próprio movimento do seu golpe.

Os jovens seguintes que subiram no tronco foram mais cautelo­sos, mas não tiveram melhor sorte. E os espectadores foram ficando cada vez mais silenciosos. Logo, restou apenas Knut como último adversário.

— É uma honra para mim ver que você esperou que eu fosse o último — disse Knut ao subir no tronco, bem atento e com o porrete seguro com ambas as mãos, na defensiva.

— Não esteja tão certo de eu continuar sendo tão respeitoso no próximo jogo, ainda que sejamos amigos — respondeu Birger.

— Para ser aquele que vai decidir quem será o seu adversário no próximo jogo é preciso que você me vença neste primeiro — disse Knut.

— Isso já vi que vai acontecer, bastando ver a expressão dos seus olhos — reagiu Birger, sorrindo.

Com isso ele conseguiu o que estava previsto, isto é, Knut resol­veu atacar de imediato e com força total, cheio de raiva, para mostrar que realmente não estava com medo.

— Atacar com raiva é a pior coisa que pode acontecer. Acho que nós dois já concordamos a esse respeito — gritou Birger, olhando para baixo, para o buraco onde Knut já tinha caído, ficando todo molhado.

E logo Birger correu rápido para a cavalariça, a fim de buscar Ibrahim, isto porque os três jogos seguintes seriam disputados a cava­lo. Entretanto, houve um pequeno intervalo para refrescar com cerve­ja a garganta dos jovens concorrentes aos jogos seguintes.

O senhor Agne bebeu um caneco inteiro de cerveja, sem interrup­ção, por puro alívio e alegria. A forma como o desconhecido folkeano havia despachado os outros jovens no porrete silenciara todos os insul­tos e grosserias. E assim que os sete jovens voltaram, desfilando na praça, montados nos seus garanhões, a fim de acertar, conveniente­mente, as selas e as rédeas e acalmar as montarias com palavras tranqüi­las, não era preciso ser tratador de cavalos para imaginar que alguma coisa de grande importância estava para acontecer. Um sinal bem expressivo disso estava no fato de todos os tratadores da cavalariça terem acorrido a um dos cantos da praça, formando um novo grupo de espectadores, que o senhor Agne viu se formar pelo canto dos olhos. E ele resolveu fingir que não tinha visto essa atitude preguiçosa dos criados e escravos. Por sua parte, eles podiam ficar ali o tempo que qui­sessem.

Na primeira disputa, os jovens, cada um com o seu saco de couro cheio de areia, deviam tentar derrubar os adversários das selas. Essa disputa costumava levar bastante tempo e proporcionar lutas bem duras. Mas não foi isso que aconteceu nesse dia.

Birger manteve o ansioso Ibrahim à rédea curta e a trote enquan­to dava uma volta de aquecimento pela praça, ensaiando golpes com o saco de areia, que ele apanhou do chão, cavalgando, e apenas inclinando-se de cima da sua montaria, o que levou os outros jovens a trocarem olhares inquietos. Então Birger apontou mais uma vez para aquele svea do norte que parecia ele mesmo um bode e foi colocar-se a um dos cantos da praça em atitude de espera. O seu adversário caval­gava um alazão bem grande e forte que, na opinião de Birger, devia ser ótimo para arrastar troncos nas florestas, em especial se fosse bem trei­nado e se tornasse mais fácil de comandar.

O homem devia ter recebido algum tipo de aviso a respeito da facilidade com que Birger o derrubou do tronco. Mas ele talvez con­siderasse a cautela como uma demonstração de covardia, visto que era um svea do Norte. Ou talvez considerasse que, com o peso e a veloci­dade por ele empregados, derrubaria de uma vez o folkeano e até o seu cavalo. Assim, esporeou o seu alazão e cavalgou na velocidade máxi­ma, a galope, soltando um banzé danado, bem do hábito dos sveas, na direção de Birger. E pareceu, na verdade, que tudo terminaria logo, bastando meter medo. E era mesmo de meter medo.

Tudo terminou logo, sim, mas no ridículo. Isso porque quando o svea se segurou na sela para enfrentar um golpe que não veio, e logo balançou o saco de areia para atingir Birger, acertando no vazio, ele quase caiu do cavalo. E teve de escutar pelas costas alguns risos abafa­dos. E quando se virou de novo, viu apenas a cauda bem levantada do cavalo do folkeano. Birger cavalgava, tranqüilo, em frente, a meio galope, na direção da bancada da noiva, e só então se virou para a praça. Antes de avançar de novo, Birger resolveu despejar um pouco da areia do seu saco de couro e atá-lo ao seu punho. O alcance ficou um pouco mais curto, mas, com a facilidade de movimento e o balan­ço, também ficou mais pesado. Em seguida, Birger pegou o saco e ficou rodopiando com ele sobre a cabeça, a fim de atrair o guerreiro para um novo ataque arrasante, o que não foi difícil.

Quando o guerreiro caiu da sela e se espatifou no chão, o silêncio foi total entre os presentes sentados nos seus bancos, os convidados e os parentes. Mas entre os tratadores e a gente das cavalariças os aplau­sos e os gritos festivos foram muitos. E, para seu espanto, o senhor Agne viu como os escravos e os criados da fazenda se abraçaram e fica­ram discutindo sobre o que tinham acabado de ver. O senhor Agne desviou rápido o seu primeiro pensamento de intervir junto do pes­soal menor da fazenda, até porque o seu vizinho do lado o pegou pelo braço e lhe perguntou o que estava acontecendo.

Não era fácil descrever, confessou o senhor Agne, visto que tudo aconteceu muito rápido e inesperadamente. Mas, repensando bem o que se passou, viu-se que o folkeano tinha atingido o seu adversário na cabeça, se bem que pelo lado contrário. Birger tinha ficado quase quieto no lugar até que o svea chegasse perto e, no último momento, fez pular o seu cavalo para a frente e para o lado direito, volteando-o em seguida com o animal, de modo que pôde atingir o svea pelas cos­tas, balançando em arco pleno o saco. O vizinho do senhor Agne achava que tudo tinha acontecido de outra maneira e logo os dois fica­ram discutindo sobre o caso, até que, finalmente, concordaram que a única coisa certa era essa arte nunca ter sido vista antes por essas bandas.

Nem também um cavalo como esse. A sua discussão terminou ainda mais rápido quando viram que o folkeano tinha indicado Knut Holmgeirsson para seu próximo contendedor. Aquele que perdesse nesse confronto iria receber seis espigas de feno; portanto, por que não esperar e deixar para mais tarde esse risco?

Porque o folkeano pensa ganhar, imaginou o senhor Agne. Jon havia recebido sete espigas de feno no jogo do porrete porque, tolo como ele só, resolveu escolher o folkeano como seu primeiro adversá­rio. E se Knut agora recebesse seis espigas, o resultado ficaria igual entre eles.

E ele recebeu mesmo as seis espigas de feno. Birger, desta vez, agiu de uma maneira completamente diferente. Cavalgou em direção a Knut em círculos cada vez mais reduzidos, de forma que este teve que se defender atacando com o seu saco de areia, mas não conseguia virar o animal com a necessária presteza. E acabou sendo atingido pelas costas e caindo sem apelo nem agravo.

Esse jogo foi o que menos complicações teve para Birger e Ibrahim. E para os presentes parecia que o folkeano tinha o cuidado de não massacrar os outros jovens e não quisesse usar de toda a força, embora a cada golpe parecesse encontrar uma nova maneira de atingir o alvo. Por seu lado, eles avançavam contra Birger cada vez com menos confiança e para o final era como se os dois últimos nem sequer tentassem oferecer uma resistência honesta, querendo antes se livrar do tormento o mais breve possível.

Houve um novo intervalo para que cada um dos jovens fosse bus­car a sua espada, enquanto os criados traziam apressadamente umas armações de madeira feitas para secar o feno, que colocaram em duas linhas, uma ao lado da outra ao longo do comprimento da praça. E em cima de cada armação puseram um molho de feno.

Duas coisas espantaram logo o senhor Agne e seus parentes mais velhos que se sentavam ao seu lado. A primeira foi a espada do folkea­no. Quando passou pelos seus molhos de feno empilhados em cima das armações, ele não precisou sequer golpeá-los como os outros concorrentes. Precisou apenas manter a sua espada estendida lateralmen­te e, assim, fazendo com que ela acertasse a parte alta dos blocos de feno. Devia ser uma espada meticulosamente bem afiada.

A segunda coisa espantosa foi ver que o folkeano escolheu Jon para penúltimo e Knut por último, quando ele podia ter cavalgado contra eles logo de início e com isso fazer com que recebessem um maior número de espigas de feno, de modo a colocar a vitória fora do seu alcance. Será que ele não queria vencer?

Ainda mais estranha foi a atitude do folkeano no último jogo do torneio a cavalo, em que cada dupla de concorrentes competia em velocidade, cortando os molhos das espigas de feno. Era do conheci­mento geral que aquele que vencia esse jogo tinha dificuldade em cavalgar seis corridas rápidas em seguida para ser vencedor. E o folkea­no que chegou como vencedor até o derradeiro jogo precisava cavalgar as seis corridas para vencer. Por isso, teria sido inteligente cavalgar pri­meiro contra Jon e Knut. Em vez disso, reservou-os para as últimas corridas, embora tivesse vencido os outros jovens cada vez com mais dificuldade.

A cada vitória aumentavam o entusiasmo e os aplausos dos trata­dores de cavalos e outros serviçais, mas o senhor Agne havia ficado tão ocupado em contar as espigas de feno que nem quis desviar a sua aten­ção para conter o pessoal. Contra Jon o folkeano ganhou por tão pouca margem que ninguém acreditava ser possível ser bem-sucedido mais uma vez. E Knut, então, insistiu para que a sua prova contra Birger fosse feita logo.

Knut partiu também antes da bandeirada e seguiu na frente, cavalgando rápido, até o ponto de volta, contornando o poste. Mas como o folkeano virou mais rápido, logo ficou emparelhado com ele e daí em diante era como se o seu garanhão tivesse asas e voado, dei­xando Knut para trás. Comparativamente, este mais parecia estar acompanhando a cavalo uma procissão religiosa. Agora o barulho feito pelo grupo dos tratadores e agregados foi tão grande que o senhor

Agne não pôde mais ignorá-lo, passando vergonha. Alguns dos seus convidados já tinham começado a sussurrar e a gargalhar diante dessa atitude, embora eles se comportassem naturalmente bem e ainda que não soubessem se deviam ou não se alegrar com o que acontecera. O senhor Agne acabou gritando ordens severas na direção do pessoal das cavalariças para se manterem em silêncio imediatamente. Todos obe­deceram de pronto, mas não envergonhados. E acabaram se retirando em meio a risadas e muita conversa.

O senhor Agne começou a contar as espigas de feno de novo, enquanto os cavalos foram para a cavalariça e a cerveja foi servida, antes de ser iniciado o último jogo, de tiro com arco. Por muito que ele recontasse as espigas, chegava sempre ao mesmo extraordinário resultado. Para ter certeza, puxou seu punhal e começou a marcar um traço no banco à sua frente para cada espiga que os três tinham nos seus respectivos cestos. Mas ainda chegou ao mesmo resultado.

Birger não tinha razões para se apressar, visto que a luz do dia ainda iria perdurar o suficiente para a disputa final. Ao contrário dos outros jovens, ele mesmo levou Ibrahim para a sua baia. O cavalo esta­va bem suado e espumava. Birger fazia questão de enxugá-lo e cobri-lo depois de tantas corridas. Lá dentro na cavalariça meio escura veio ao seu encontro um feliz tratador que, atrevidamente, como todos, queria afagar Ibrahim. Alguns dos tratadores queriam até apertar a mão de Birger, o que este, surpreso, acabou permitindo. E todos con­tinuavam falando uns com os outros sem parar. Foi assim que eles não fizeram a mínima objeção quando Birger lhes pediu para tomar conta de Ibrahim, dar-lhe um banho lentamente e depois cobri-lo diante da primeira noite de geada que se aproximava. Quando Birger se apron­tava para sair, um dos tratadores teve o desplante de mencionar que havia uma égua no cio em uma outra baia. Birger ficou tão surpreso com esta velada proposta que reagiu olhando para o tratador com bas­tante severidade. Foi então que um dos homens se desculpou, dizen­do que se chamava Yrje, que era escravo liberto e aquele que manda­va na cavalariça. Continuou afirmando que a idéia não tinha segundas intenções. Mas como grande vencedor o garanhão também merecia uma boa recompensa, e para ele cerveja e carne de porco de nada valiam. E, além disso, um potro nascido de um pai como ele seria um grande tesouro para Agneshus.

Birger afagou o seu queixo, meditando e analisando a questão, enquanto o silêncio imperava, com todo mundo na cavalariça aguar­dando com a respiração suspensa.

— Muito bem — disse ele finalmente. — Vocês são homens que entenderam o que viram e isso me deixa feliz. E por isso podemos agora falar muito mais a respeito do assunto. Vou dizer apenas o seguinte: nem eu nem o meu Ibrahim, que é o seu nome, temos nada contra vocês se ele ficar junto dessa égua.

— O seu garanhão precisa descansar bastante tempo depois de todas essas corridas antes da visita? — sussurrou o liberto Yrje, entu­siasmado e com olhos fixos nos lábios de Birger.

— Não por muito tempo, se a égua estiver bem disposta — sus­surrou Birger de volta, sorrindo e virando as costas rápido, saindo para que os escravos não passassem a dar-lhe mais tapinhas nos ombros. Birger abanou a cabeça e fez o sinal-da-cruz, diante de alguns dos seus pensamentos ao sair para o ar livre. Isto porque, embora ainda não soubesse tudo a respeito de como o homem e a mulher faziam filhos, ele já sabia em relação à maneira como eram concebidos os pequenos potros. E esperava que Ibrahim pelo menos estivesse um pouco cansa­do ao fazer a visita, de modo que não fizesse tanto barulho no momento de copular.

Ao pegar o seu arco na bagagem, Birger voltou a fazer o sinal-da-cruz, satisfeito pelo fato de tê-lo trazido consigo e não precisar, por­tanto, pedir emprestado outro qualquer diante da decisão final que estava se aproximando.

Os dois alvos eram feitos de fardos de palha, redondos, envoltos num fino tecido de linho e pintados com círculos vermelhos e negros, de forma que até os espectadores mais afastados pudessem ver bem onde as flechas tinham acertado.

Birger voltou a escolher o homem que se parecia com um bode para primeiro adversário, mas logo verificou que havia razões para se lamentar, pois teve que dar o máximo para vencer. Isso o fez pensar que talvez tivesse errado nas contas e que talvez não pudesse prosse­guir por nenhuma das duas maneiras que havia pensado. Toda hora ele recordava uma saga que tinha ouvido contar durante toda a sua infância.

Quando o seu avô, Arn Magnusson, se casou e entrou nos torneios não havia apenas Erik Knutsson, o futuro rei Erik, na competição, mas também o seu pai, Magnus Månesköld. E nunca antes se tinham visto jogos da juventude como aqueles, não apenas porque pai e filho duelavam. O pai e o avô de Birger eram conhecidos como os melhores arqueiros jamais vistos nas duas Götalands, a Oriental e a Ocidental. E Birger sabia muito bem que não conseguia igualar-se a eles em desem­penho no arco. No castelo de Arnäs ainda existiam os dois alvos da época, pendurados numa parede, com a coroa dourada do vencedor à volta de todas as flechas em um dos alvos e a coroa prateada do segun­do classificado no outro. Os dois concorrentes que formaram o último par eram o seu avô e o irmão Guilbert, seu professor durante a infân­cia. Os dois acertaram todas as suas flechas na mosca, e isso a uma dis­tância de trinta passos, de tal maneira que foi possível envolvê-las com as duas coroas, uma dourada e outra prateada. Ainda então era possível ver os dois alvos pendurados na parede da sala de honra do castelo. Havia mesmo quem dissesse que essas flechas deviam ter sido coloca­das na mosca, uma a uma, de propósito e como enfeite.

Tinha sido uma esperança infantil da parte de Birger tentar repe­tir a proeza. O avô Arn e o irmão Guilbert tinham sido tão ruins quanto ele no lançamento do machado e do dardo, mas ainda assim conseguiam ter menos espigas de feno no cesto do que os outros. Era mesmo um sonho repetir a proeza, mas apenas um sonho. Pois nada do que agora ia acontecer tinha a ver com nobreza e competição esportiva. Alguma outra coisa pesava muito mais, podendo-se defini-la como a luta pelo poder no reino. E, então, era preciso ser sábio como Birger Brosa e não um cabeça-de-vento como Knut Holm­geirsson. Ele precisava comportar-se como se Birger Brosa, o seu pai, e Arn Magnusson estivessem ali entre os espectadores.

As flechas que Birger acertou depois do adversário foram compa­rativamente piores. Mas ele também prestou mais atenção aos arcos dos adversários e à maneira como estes os seguravam na hora de esco­lher o seguinte para disparar as dez flechas do jogo.

Finalmente, restaram mais uma vez Knut e Jon. Birger apontou, então, para Knut, que respirou fundo antes de pegar o seu arco e de avançar para a posição de disparo. Birger fez uma saudação, mas não disse mais nada. Apenas indicou com o braço para ele disparar o pri­meiro tiro.

Knut demorou a fazer pontaria, mas conseguiu acertar na mosca no círculo vermelho mais interno.

— Você já contou as espigas e sabe como está o resultado? — per­guntou Birger enquanto retirava uma flecha do cesto, examinando-a, antes de colocá-la na corda do arco.

— Não fiz contagem nenhuma, mas sei que tudo depende dessas flechas — respondeu Knut.

Birger fez um aceno com a cabeça concordando e disparou a fle­cha, que também acertou na mosca, tal qual a de Knut. E esperou que Knut disparasse depois a sua segunda flecha, que acertou na mosca como a primeira, para lhe falar.

— Eu tenho dezoito espigas na minha cesta — disse Birger enquanto examinava a sua segunda flecha. — Você tem dezesseis, e Jon, dezessete. Se eu ganhar de você e, depois, vencer contra Jon, vamos ficar os três com dezenove espigas. Não será isso o melhor que pode acontecer?

Knut não respondeu e Birger passou a prestar atenção de novo no alvo, disparando a sua flecha que foi acertar novamente no círculo vermelho mais interno.

Em seguida era a vez de Knut de novo. E parecia que ele tinha tido muito em que pensar. Fez pontaria durante muito tempo e teve que abaixar o arco para respirar fundo e recomeçar. Em seguida disparou a flecha e esta foi parar em posição pior que as duas primeiras.

Birger disparou a sua terceira flecha, que acertou novamente na mosca, ficando, portanto, na liderança. Knut olhou para o chão, preparando-se seriamente para o disparo seguinte, que acertou de novo na mosca.

— E se eu vencer, o que poderá acontecer entre Jon e mim? — perguntou Knut, de chofre, justo no momento em que Birger dispa­rava a sua quarta flecha.

— Você devia saber contar — respondeu Birger ao abaixar o arco para recomeçar a sua rotina. — Se Jon ganhar de você, vocês serão os dois vencedores. Se ganhar dele, você será o único vencedor. E não me perturbe de novo na hora de eu disparar!

Birger acertou mais uma vez na mosca, como nas vezes anteriores. Mas Knut errou novamente pela segunda vez, ficando na segunda posição.

— Se eu ganhar agora, prometo que vou deixar que Jon ganhe de mim e assim haverá dois vencedores — disse Knut quando Birger ajustou uma nova flecha na corda do seu arco.

— Diga-me, então, por que dois vencedores são melhores do que três — questionou Birger, rápido, soltando a flecha, que foi acertar o alvo um pouco melhor do que Knut.

— Por conta da nossa amizade, sua, minha e de Jon, pela alegria de Jon vencer junto com o seu melhor amigo no dia em que deixou a juventude para trás e passou a ser um homem sério — respondeu Knut, resoluto, aprontando-se para disparar e acertando mais uma vez na mosca.

— Você se considera melhor arqueiro do que ele? — perguntou Birger, preparando-se para disparar de novo.

— Eu venço nove vezes em dez contra Jon — respondeu Knut. Birger abaixou, então, o arco sem disparar e ficou olhando para o chão, como se tivesse que se concentrar ao máximo antes de disparar a próxima flecha. Recomeçou depois, demorou a fazer pontaria e fez o seu pior disparo, permitindo a recuperação de Knut, que continua­va ainda em segundo lugar.

— Eu vou deixar que você vença se deixar Jon ganhar de você — disse ele, rápido, enquanto mirava o alvo. — Se você jurar por sua honra que será assim.

— Eu juro — disse Knut num tom de quase felicidade, ao mesmo tempo que se preparava para mais um disparo certeiro.

Birger fez questão, a seguir, de demorar muito mais a fazer ponta­ria e errar. Era uma coisa que acontecia com freqüência quando havia muito em jogo e muitos não conseguiam agir friamente. E quando Knut e Jon se enfrentaram depois, para surpresa de muita gente, Jon ganhou fácil.

As espigas foram, então, contadas solenemente pelo senhor Agne, que, no entanto, devia ter tido um bom pressentimento do que a con­tagem ia dar, visto que ficou pálido diante da expectativa do resultado final do tiro com arco, nem sequer conseguindo falar com os seus vizi­nhos na bancada.

Quando o senhor Agne, junto com a noiva, Brígida Helgesdotter, avançaram para entregar os louros da vitória, ele fez uma coisa que ninguém esperava e de que se falaria por muito tempo. Ele não cha­mou apenas os dois vencedores, mas também o folkeano Birger e ordenou que se fosse buscar um cepo e a espada folkeana.

De repente todos os comentários brincalhões e alegres a respeito de como o noivo Jon e o seu melhor amigo, Knut, haviam ganho, esvaneceram, dando lugar a sussurros e, em seguida, a um silêncio total. Ninguém estava entendendo a ordem do senhor Agne, mandan­do buscar um cepo e a espada. O senhor Agne era conhecido por suas extravagâncias.

Após uma curta espera, ele recebeu o que tinha exigido, trazido por dois escravos ofegantes e reverentes. E então ele colocou a coroa de louros, dourada, em cima do cepo, diante dos três jovens que se mantinham sem dizer palavra. Estendeu a espada para o folkeano, ergueu o braço, pedindo silêncio a todos, o que era desnecessário, já que nem um murmúrio se ouvia no momento.

— Temos dois vencedores e apenas uma coroa dourada! — excla­mou ele. — E você, folkeano, que honrou as suas cores, terá a sua coroa prateada. Mas, antes, precisa fazer por merecê-la usando a tua espada bem afiada!

Birger fez então uma reverência ao senhor Agne e, sem dizer pala­vra, desembainhou a espada e apontou, depois, com uma das mãos, para a coroa dourada em cima do cepo. O senhor Agne acenou que sim com a cabeça e em silêncio, confirmando. Birger elevou a espada com ambas as mãos, fez pontaria e acertou a coroa bem no meio, partindo-a em dois pedaços iguais, sem que qualquer um deles caísse no chão. Cautelosamente, soltou a espada semi-enterrada na madeira do cepo, limpou-a na sua camisa de linho e enfiou-a novamente na bainha. Fez nova reverência e recuou um passo.

O senhor Agne fez também uma reverência na direção de Birger, pegou as duas metades da coroa dourada e entregou-as, ao mesmo tempo, para Jon e Knut. Na seqüência, os dois vencedores pareceram a um tempo desapontados e felizes. Então, o senhor Agne mandou que Birger se aproximasse e colocou na sua cabeça a coroa prateada, sem qualquer palavra ou outro gesto.

Tinha começado a escurecer e os convidados foram entrando, satisfeitos, na sala maior da casa-grande, a fim de participarem do banquete de casamento. As conversas eram feitas em voz tão alta e tão viva, já que, a propósito dos jogos da juventude, havia tanta coisa a falar e até talvez a discutir, que ninguém prestou atenção aos guinchos e relinchos que escutavam vindo da cavalariça.

Mas Birger, que estava a caminho de mudar de vestes, junto com os outros jovens, corou e abaixou a cabeça ao pensar em como o seu nada tímido Ibrahim estava traindo as suas sigilosas diversões.

Da bagagem de roupas ele retirou uma nova veste de malha, feita não para combater, mas para o prazer, de tecido importado, azul bri­lhante com fios de prata. Retirou também um forro para o seu manto feito de peles de marta. E com essas roupas novas nas mãos ele voltou para a praça agora vazia e entrou na casa dos jovens onde foi encon­trar os outros que estavam trocando as suas vestes molhadas. A atmos­fera na sala era estranha, com alguns de muito bom humor e outros, de expressão triste e zangada, olhando furtivamente para Birger quando este entrou no dormitório e jogou as suas roupas em cima da cama. Jon e Knut, rindo e brincando, estavam ocupados em encontrar uma maneira de cingir na cabeça, com fitas de couro, a metade da coroa dou­rada. Eles vieram ao seu encontro, abraçando-o fraternalmente e dizen­do em voz alta, mais para os outros do que para Birger, o quanto ele era, verdadeiramente, amigo deles e um nobre competidor.

Birger não respondeu com muitas palavras, antes tirou da cabeça a coroa prateada, jogando-a em cima das roupas, e, em seguida, ficou de tronco nu e saiu à procura de uma casa de banhos.

Na casa de banhos estava escuro e frio e não havia água nos bal­des. Nem havia também sabão para uma pessoa se lavar, nem ramos de bétula. Resmungando, pegou um balde de madeira vazio e saiu pri­meiro para procurar na sua bagagem aquele pedaço de sabão de Forsvik que a sua mãe, Ingrid Ylva, prudentemente, lá colocara, junto com a carne de porco e o presunto. Depois pegou água do poço, vol­tou para a casa de banhos e se lavou. Quando voltou à casa dos jovens, molhado e um pouco desgrenhado, os outros já estavam quase vesti­dos e prontos. E para seu espanto ficou ouvindo pelas costas que era uma atitude feminina ir para uma festa depois da luta e da competi­ção sem cheirar como homem, antes como mulher. Ele fingiu não ouvir e continuou se vestindo cuidadosamente, de costas voltadas para os outros, que ficavam cada vez mais impacientes, em especial pelo tempo que ele levou para ajustar o forro de peles de marta por dentro do seu manto. Alguns queriam partir de imediato, mas foram contidos por Jon e Knut com algumas palavras mais severas ditas em voz baixa.

Como recompensa nos jogos da juventude, os dois primeiros tinham lugar na mesa de honra, e como o senhor Agne havia determi­nado, eram vencedores aqueles que se apresentassem com a coroa na cabeça, mesmo que fosse pela metade.

Eram palavras que não podiam ser mal interpretadas. Por isso, entraram primeiro na sala Knut e Jon, com Birger entre eles, e à fren­te dos outros jovens, sendo recebidos com fortes aplausos, e alguns até esmurravam as mesas.

A mesa de honra estava colocada no fundo mais estreito e distan­te da sala e, no lado oposto, a da noiva, com as suas sete donzelas de branco e seus amigos mais próximos. No meio da sala ardia uma longa lareira que ocupava todo o comprimento, desde a mesa da noiva até a mesa de honra. E de ambos os lados da lareira foram colocadas as mesas e os bancos corridos para a maioria dos convidados. Os criados da casa encaminharam Jon, Knut e Birger para a mesa de honra e os jovens restantes da competição para lugares abaixo, mas ainda perto do lugar de honra.

Birger ficou sentado perto do centro da mesa onde estavam o se­nhor Agne, o pai e a mãe da noiva, o bispo, Jon e Knut. Ele conside­rou a disposição com alívio e imaginou que até Knut e Jon teriam gos­tado de se sentar separados, para que, com mais facilidade, pudessem falar a respeito das suas atuações para os outros que, seguramente, queriam ouvir mais detalhes dos jogos. Para Birger não tinha compli­cação alguma ficar apenas bebendo e comendo durante uma festa como aquela. Isso já tinha acontecido antes e ele achava que, desta vez, era ainda melhor assim, que ele fosse deixado em paz.

A esse respeito, porém, ele se enganou redondamente. Primeiro, notou que muitos olhos na mesa estavam fixados nele, o tempo todo, com as pessoas apontando e sussurrando. Isso o incomodava ainda mais por centralizar a atenção dessas pessoas e, além disso, por não entender qual fosse a razão. A mulher sentada ao seu lado, que disse ser a viúva Sigun, de Tiundaland, fez com que ele passasse a entender um pouco melhor a situação. Ela começou a elogiar vivamente o seu manto, afagou o tecido, os fios de ouro e as peles, e logo passou a fazer-lhe uma série de perguntas, onde essa peça caríssima tinha sido feita e quantos marcos de prata custava para comprar um manto igual, caso estivesse à venda.

Era o pior dos temas para Birger. Quanto ao preço, em primeiro lugar ele não fazia a menor idéia, visto que ninguém em casa jamais falara do assunto. Segundo, esse manto tinha sido costurado pela sua avó e, portanto, coisa igual não dava para comprar. Corando e mur­murando, ele tentou dizer que havia mantos ainda melhores para comprar nos conventos de Gudhem e de Riseberga, mas que era pre­ciso esperar, talvez, até um ano para que o trabalho ficasse pronto e, possivelmente, era preciso pagar antecipado. A viúva Sigun, porém, não se deixou abater nem um pouco pela timidez de Birger e, em vez disso, continuou enchendo-o de perguntas a respeito de tudo. Queria saber, primeiro, se ele tinha laços de parentesco na Svealand. Ele res­pondeu que o filho do irmão do seu avô, Torgils Eskilsson, era mari­do da filha de um homem de leis chamado Leif, dono de uma fazen­da, Norrgarn, situada na região mais escura de Uppland, mas que ele, no momento, não se lembrava do nome do lugar. A viúva Sigun ficou exageradamente satisfeita com essa resposta desmiolada, riu sonora­mente e derramou cerveja no joelho dele, que, de imediato, quis enxu­gar e, sem vergonha, passou a afagá-lo com todo o carinho. Birger esquivou-se, receoso, e logo começou a sentir calafrios no pescoço ao perceber que essa convivência à mesa estava descambando para uma situação nada cortês nem fácil de agüentar com honra.

Quando a primeira série de skals, os brindes de honra, terminou, já vários canecos de cerveja tinham sido esvaziados e alinhados como uma cobra que mordia o rabo a um dos cantos da mesa. E então, à medida que uma segunda rodada de comidas e de cerveja era servida, o tom das conversas e das canções foi ficando cada vez mais alto, atin­gindo o teto fumacento. Sigun, que quase tinha idade para ser sua mãe, foi ficando também cada vez mais atrevida em seu linguajar e encontrando sempre novas razões para se pendurar no jovem vizinho, pedindo para alcançar mais um pouco de pasta de cenoura com mel ou um pedaço de pernil de cordeiro. A cada pedido ela fazia questão de apoiar-se no colo de Birger, o que o deixava, a um tempo, constran­gido e excitado.

O senhor Agne, porém, não estava sentado muito longe e logo percebeu a situação de Birger. E, então, aproveitou um momento em que a seqüência de brindes com a participação do dono da casa se interrompeu, levantou-se com o caneco de cerveja na mão e foi enfiar-se sem muita cerimônia entre Sigun e Birger.

— Meu nobre e jovem Birger — disse ele à maneira de quem é mais velho e tem conselhos a dar, e depois de terem feito, reciproca­mente os devidos skals —, você é muito bom em contar espigas, mesmo no calor da disputa, e, por isso, merece o meu respeito; aliás, o meu maior respeito. E isso eu quero que você saiba.

— Nesse caso, convém dizer que o senhor não é menos bom em contar espigas do que eu — reagiu Birger, em voz baixa e de olhos na mesa.

— Muito bem, então; já que está tudo dito a respeito de espigas e que eu entendo completa e perfeitamente aquilo que os outros querem dizer — exclamou, feliz, o senhor Agne, olhando satisfeito pela sala. — Por isso, foi uma grande alegria para mim colocar a coroa na sua cabe­ça, nobre Birger, a única coroa inteira.

Birger conseguiu apenas acenar afirmativamente com a cabeça, concordando, não podendo encontrar nenhuma palavra que servisse para iniciar uma nova conversa.

— Deixe que eu lhe faça uma pergunta a respeito de um outro assunto — continuou o senhor Agne depois de ter deixado que enchessem os canecos dele e de Birger com mais cerveja. — Essa sua espada, onde é que se pode comprar uma igual?

— Com sua autorização, senhor Agne — respondeu Birger, de início um pouco hesitante —, eu gostaria de lhe mandar uma espada do mesmo aço e com o mesmo fio antes do Natal. Mas para isso é necessário primeiro que nós dois cortássemos uma tira de couro para saber qual o tamanho e a largura da espada que deseja.

— Eu não estou lhe pedindo que me dê uma espada tão cara de presente. Sou um homem de recursos. E, portanto, pergunto nova­mente sobre o preço — disse o senhor Agne, rispidamente, embora sentindo dificuldade em esconder o brilho da tentação que aflorou em seus olhos.

— Isso eu entendi muito bem, visto que o senhor é um homem honesto e honrado, senhor Agne — respondeu Birger, com maior rapidez e facilidade agora que, de repente, se sentia pisando em chão mais seguro. — Mas o senhor honrou a mim, seu convidado desco­nhecido, de uma forma que eu jamais vou esquecer. Portanto, eu lhe devo um serviço que, prazerosamente, quero pagar quanto mais cedo melhor. Por isso, a sua espada chegará aqui antes do Natal.

— Você não é um folkeano qualquer, meu nobre e jovem Birger! — exclamou o senhor Agne, encantado com a idéia de receber de pre­sente uma espada que, certamente, nenhum dos seus parentes tinha igual. — Diga-me, então, de onde vem um jovem nobre, com tradi­ções tão corteses e cavalheirescas? Qual é o seu nome, além de Birger, e quem é o seu pai?

— Eu sou Birger Magnusson, de Ulvåsa. Magnus Månesköld foi o meu pai; o jarl Birger Brosa foi o irmão de criação do meu pai, e o cavaleiro Arn Magnusson, o meu avô — respondeu Birger, levantan­do o olhar e acentuando o orgulho em cada palavra, dita com toda a segurança.

Primeiro o senhor Agne empalideceu, depois acenou com a cabe­ça, como se estivesse refletindo, e, em seguida, sem uma palavra, bebeu toda a cerveja do seu caneco. Pouco depois, levantou-se e pediu desculpas, dizendo que precisava voltar para junto do bispo e dos seus parentes. Ele parecia querer dar um tapinha cheio de afeto no ombro de Birger, mas desistiu por achar inapropriado. Pegou então o seu caneco e foi embora.

A viúva Sigun veio logo ocupar o seu lugar, tal qual uma abelha esfomeada procurando uma flor. Sentou-se ao lado de Birger, tão che­gada que ele até podia sentir a maciez da coxa dela. E ela foi logo dizendo, entusiasmada, que tinha escutado tudo.

Mas o senhor Agne tinha agora alguns outros assuntos a tratar com o bispo e o seu futuro compadre na mesa de honra. Aquilo que a persistente viúva Sigun, possivelmente, tinha em mente não era nada de especial, pelo menos nessa primeira noite de núpcias, em que ela, dificilmente, poderia forçar a sua entrada na casa dos jovens. E, além disso, todas as viúvas tinham liberdade para dispor de seu corpo, sem que daí lhe adviesse qualquer constrangimento e muito menos a deca­pitação pela espada.

Em contrapartida, observando-se o olhar feroz de Brynulf, do clã do bode, do norte de Uppland, era de esperar fumaças de incêndio e reclamações de viúvas no futuro próximo. Isto porque Brynulf tinha se tornado, ignominiosamente, a decepção nos jogos, aquele que ficou em último lugar. E por essa situação ele não se culparia, certamente, a si mesmo, mas muito mais Birger Magnusson.

Havia, portanto, duas coisas a fazer para salvar esse casamento da maior das infelicidades. Uma delas era convocar sem demora o jovem Brynulf e com palavras suaves tentar esfriar os seus desejos de vingan­ça, dando-lhe a conhecer quem era aquele a quem ele queria cortar a cabeça com a espada mais tarde, durante a noite. E o que isso impli­caria se ele, para infelicidade sua e dos seus parentes, tivesse sucesso.

A outra era deixar que os guardas, ignominiosamente, sem com­paixão, trancafiassem Brynulf, amarrado, em uma saleta pelo resto da noite ou em algum lugar na fazenda.

Helge, o homem de leis de Gottsunda que, em breve, se tornaria compadre do senhor Agne, achava que era ruim amarrá-lo ou prendê-lo e que ele não iria compactuar com esse tratamento de um jovem parente no casamento. E que, se o fizesse, adviria mais tarde muita irritação por esse fato. Era melhor, em sua opinião, advertir o jovem Brynulf que, se persistisse na sua loucura, atacando Birger pela frente, em breve ele estaria morto. Se o atacasse pelas costas, seria considera­do um vândalo, a sua casa seria queimada e os seus parentes, até a ter­ceira geração, seriam mortos pelos vingativos folkeanos de Sunnanskog. Esse homem não seria louco a ponto de desconsiderar essas razões.

O bispo Ulf, de Strängnäs, porém, disse ter amargas experiências por ter confiado no bom senso dos jovens brigões, em especial quan­do têm a oportunidade de liquidar de graça o suprimento de cerveja da casa. Seria melhor, segundo o bispo, assumir o certo pelo incerto. Tornar o jovem Brynulf inofensivo por uma noite, amarrando-o em uma saleta, seria, evidentemente, uma afronta. Decerto ele iria embo­ra cavalgando, cheio de raiva, no dia seguinte, logo que o soltassem. E com certeza o homem de leis Helge teria mais tarde problemas a enfrentar. Tudo isso era de considerar num dos pratos da balança.

No outro prato, pesavam incêndio, morte e cavaleiros noturnos em cores azul e prata. Era isso o que se podia deduzir pelo nome e o paren­tesco desse jovem Birger. Sem dúvida, ele não seria vingado de leve.

Todos concordaram com isso, mas decidiram esperar até que a cerimônia do encaminhamento do casal para a cama tivesse lugar. Logo em seguida, e de preferência em silêncio, para ninguém notar, Brynulf seria conduzido para um dormitório à parte, fechado a chave e com vigilantes na porta.

Para Birger estava cada vez mais difícil esquivar-se da viúva Sigun, que ficava cada vez mais atrevida à medida que bebia, enquanto ele cada vez menos constrangido. Além disso, ele estava atormentado pela necessidade de urinar, mas de qualquer modo não podia levantar-se e sair como todos os outros. Isto porque o seu membro, em estado de excitação, iria dar conhecimento a todos dos seus pensamentos peca­minosos. Contra a precisão de fazer as suas necessidades, no entanto, era impossível esquivar-se por uma eternidade, de modo que, final­mente, ele teve que envolver-se pelo lado esquerdo da espada, com o seu manto grosso, e, escondendo a prova do seu pecado, saiu de fini­nho, um pouco inclinado para a frente, na direção do urinol especial­mente montado com ramos de arbustos, do lado de fora do portão da sala. Mas lá fora estava um grupo de homens gritando e rindo às gar­galhadas, fazendo suas necessidades em cima dos arbustos, enquanto outros apenas se divertiam. Ao ver a chegada de Birger, eles ficaram primeiro em silêncio, mas vieram ter com ele logo em seguida, com piadas afetuosas e perguntas a respeito de cavalos. A essa altura a necessidade de urinar já tinha se tornado mais do que difícil de agüen­tar, mas essa convivência involuntária teve a vantagem de fazer com que o seu membro voltasse mais rápido ao normal e em condições de ser usado para a função primária que lhe foi destinada. O seu alívio foi fenomenal, ficando a urinar por longo tempo e de forma viril.

De volta à mesa de honra, Birger reencontrou a viúva Sigun, que o recebeu não só como ele queria, como também como ele esperava. Pela primeira vez Birger apalpou as coxas dela e, então, ela o incen­tivou com um sorriso a apalpar um pouco mais acima. E, assim, o membro dele acabou retomando a forma excitada anterior. E ela, cari­nhosamente, estendeu a sua mão e agarrou-o, sentindo e elogiando o seu volume e a sua força.

Aquilo que poderia ter acontecido logo em seguida, no entanto, apenas ficou por conta da imaginação de Birger. Isto porque, nesse momento, todo o entretenimento por baixo da mesa terminou de chofre. As cornetas soaram alto na sala, as flautas e os tambores toca­dos por artistas contratados entraram no ritmo certo e a dança das donzelas teve início, com elas se apresentando de vestidos longos brancos, os pés descalços e coroas de folhas de amoreira nos cabelos. E como tudo tinha que ser feito às pressas nesse casamento, a dança foi curta e logo a noiva foi conduzida para a cama num quarto situado no sótão da casa-grande. A viúva Sigun, sendo amiga muito chegada da noiva, teve que seguir na procissão a caminho da alcova dos recém-casados. E Birger teve que confessar para si mesmo estar sentindo a falta dela, em vez de aliviado com a sua fuga.

Logo em seguida foi a vez de Jon Agnesson ser conduzido para o quarto no sótão, e atrás dele seguiu também o bispo entre dois guar­das para que, mais uma vez, abençoasse os recém-casados, antes de se puxar a coberta da cama por cima deles.

Duas famílias estavam então se unindo por meio desse casamento apressado, em que praticamente todos os mandamentos foram cum­pridos no primeiro dia e noite. Como conseqüência dessa maneira incomum de realizar a festa de casamento, a noite dos jovens e das donzelas iria seguir-se de imediato, ainda que sem a noiva entre as donzelas e o noivo entre os jovens.

Na casa dos jovens, Knut estava agora de muito bom humor, subs­tituindo como anfitrião o seu amigo Jon, que tinha deixado de ser solteiro, passando a homem sério, tendo outras obrigações a cumprir, mais difíceis do que ficar bebendo cerveja entre os amigos. E entre esses amigos estava faltando Brynulf, de Uppland. Ninguém sabia onde ele estava, apesar de Knut ter mandado dois amigos seus para procurá-lo por toda parte. Knut ainda fez brincadeira, dizendo que, provavelmente, Brynulf devia ter passado mal e acabara dormindo em algum lugar. Depois devia ter se escondido feito um porco-espinho no outono embaixo de algum monte de folhagens. Ou havia encontrado alguma viúva esperta e considerado que ela era uma escolha melhor para a noitada do que agüentar as piadas dos amigos por ter sido aque­le que ficou em último lugar, com a espiga negra.

Ao ouvir falar em viúva esperta, Birger teve a sensação estranha de ver Sigun nos braços de Brynulf. Mas logo se sentiu de novo à vonta­de, comendo carne defumada de vaca, bebendo cerveja e acompa­nhando Knut, alegre e agitado, que quis ficar ao seu lado e o tempo todo falava em alto e bom som, diante dos outros, o quanto Birger era um bom companheiro. Toda a hostilidade que Birger receava tinha desaparecido como que levada pelo vento. E no início da noitada, pelas conversas a respeito dos jogos do dia, os outros começaram a dis­cutir quem é que havia caído do tronco com mais rapidez na disputa com Birger e como tinha sido um desespero ter que enfrentá-lo a cavalo com o saco de areia na mão. Em seguida a conversa passou a concentrar-se em Forsvik e em todas as lendas a respeito do que por lá acontecia. Nessa altura Birger ficou no centro de todas as conversas e, em breve, já tinha bebido mais do que estava acostumado, começan­do a contar suas bravatas, coisa que ele nunca tinha feito antes. Tal como havia aprendido, não era digno da sua espada aquele que deixas­se a sua língua entrar por esse caminho.

Em Nordanskog, porém, tudo era diferente daquilo que Birger tinha aprendido ao crescer na Götaland Ocidental. Em Sunnanskog, jamais podia acontecer de as jovens da festa das donzelas aparecerem nos aposentos dos rapazes.

Knut foi pessoalmente buscá-las e logo se ouviram risadinhas e passos leves lá fora, na varanda da casa. Knut abriu a porta e a todos saudou de braços abertos, dizendo que agora sim iam começar os ver­dadeiros prazeres da juventude. Tremendo de frio, as donzelas tiraram seus mantos e correram direto para a lareira para se aquecerem antes de começar a dançar, com suas vestes brancas, à volta da mesa longa onde se sentavam os jovens. Diante disso, estes soltaram seus gritos de aprovação. Birger, por seu lado, parou de beber por pura reação de espanto, enquanto sentia de novo aquele fogo ardente que a viúva Sigun havia acendido antes naquela noite.

Foi uma longa noite de festa, com muitas correrias para lá e para cá, uma noite sem preocupações, visto que, na casa-grande de Agneshus também a noite seria longa, com certeza. E no dia seguinte ninguém iria acordar antes do meio-dia. Entretanto, os velhos acaba­riam caindo na cama antes dos jovens e não ficariam sabendo o que os filhos e as filhas estariam fazendo durante o resto da noite, em que a pressa mudou uma coisa ou outra quanto às tradições normais em fes­tas de casamento.

Aquela donzela que se aproximou de Birger chamava-se Signy, mas parecia que ele tinha uma estranha dificuldade em falar o seu nome, de modo que, várias vezes, a chamou de Sigun. Foi Knut que os reuniu, após ter consultado entre as donzelas qual delas se sentia mais atraída pelo seu amigo Birger.

Como é que ele e Signy acabaram saindo, envoltos no seu manto grande e quente, para um dos depósitos de feno, ele não se lembrava muito bem ao pensar no caso mais tarde. Em compensação, lembrava-se perfeitamente das suas mãos pequenas e macias e do seu rosto bonito, para não falar daquilo que, nem em pensamento, ele ousava descrever com palavras.

Entretanto, quando acordou no dia seguinte, ele era uma outra pes­soa, diferente daquela que fora participar de uma festa de jovens e don­zelas, pela primeira vez realizada em conjunto. Tal como Knut colocou em palavras e em voz alta para todos os jovens presentes e para embara­ço de Birger, a diferença estava no fato de ele ser agora um homem de verdade e não apenas um cavaleiro bom de espada e escudo.

No segundo dia da festa de casamento todas as jovens ficaram enclausuradas, sob a vigilância das mães e de outros parentes porque se espalharam boatos maliciosos sobre elas entre os convidados. E, assim, Birger não pôde mais ficar a sós com a sua jovem amiga Signy.

Em contrapartida, pôde ficar a sós com a viúva Sigun, que embo­ra não fosse assim tão jovem, era muito mais quente e mais atrevida do que qualquer donzela.

Quando Birger e Knut, sozinhos, depois da terceira noite de fes­tas, cavalgaram para o sul, em direção a Strängnäs, para depois tomar o barco para Tälje e Söderköping, pela primeira vez eles já não eram amigos por obrigação. Knut achava que se ele tinha aprendido muito das virtudes másculas em termos de luta de espada, também Birger aprendera bastante sobre essas virtudes em termos de truques na cama. Portanto, havia muita coisa entre eles, que os havia posto no mesmo patamar.

Na mente de Birger não havia grandes preocupações a respeito de atos pecaminosos, visto que agora estava mais perfeito em termos de masculinidade. Por isso, não tinha objeção nenhuma em se considerar quite com Knut.

Onze dias depois de terem deixado Ulvåsa, eles voltaram ao acam­pamento, navegando pelo rio. E para satisfação geral tiveram muito que contar sobre falsos elfos e a festa de casamento em Nordanskog.

Ingrid Ylva notou logo que Knut e Birger agora falavam um com outro, sem problemas. E pensou que, para simplificar, eles tinham feito da necessidade uma virtude. E, por isso, agiam como amigos mais do que realmente eram. No entanto, logo sentiu pelo seu filho, Birger, que alguma coisa mais tinha acontecido, além de matar saltea­dores e participar de jogos da juventude, porque, a esse respeito, eles estavam sempre mais do que dispostos, quase se atrapalhando um ao outro ao falar. Em contrapartida, ela achou que algo havia mudado em Birger, alguma coisa de que os jovens não gostam de falar nem para suas mães.

Feita a descoberta, ela nada disse, porque não havia nada a dizer e era uma coisa que, mais cedo ou mais tarde, iria acontecer. Ela estava convencida de que iria demorar mais, antes de o seu Birger ficar noivo e casar, coisa que, aliás, ela acabaria exigindo dele. E diante dessa longa espera nenhuma força do mundo iria impedi-lo de tornar-se homem. No entanto, ela não queria esperar muito para falar com Birger sobre o assunto, um assunto que qualquer mãe devia tratar com o filho, advertindo-o para a ganância feminina que sempre pode atrair vinganças para casa.

Mais cedo do que esperava, Ingrid Ylva teve a oportunidade de levantar o assunto com Birger. Durante o resto do outono, até a pri­meira nevasca, Birger continuou treinando com Knut, tal como a ordem que os dois haviam recebido do rei. E eles eram muito mais assíduos do que o rei Erik teria exigido.

Mas com a aproximação do Natal, Knut veio falar com ela, expli­cando que, em nome da dívida de gratidão que ele tinha para com Birger, gostaria que lhe fosse concedida a honra de poder convidá-lo, em seu nome e no do seu pai, Holmgeir, para passar as festas em Vik.

Knut fez essa comunicação com palavras bem escolhidas, em todos os detalhes que a honra exigia. Ingrid Ylva ficou impossibilitada de recusar o pedido. Mas sabia muito bem que havia algo mais do que canções natalinas, procissões religiosas e orações pelo nascimento de Jesus atravessando o pensamento dos dois jovens diante das longas festas do Natal.

Ela estava certa, mais do que poderia imaginar. Knut tinha ante­cipado para Birger vários divertimentos e não se esqueceu de mencio­nar que uma das fazendas da viúva Sigun era contígua à casa do seu pai em Vik.

Os gelos se formaram cedo nesse inverno e, assim, Birger e Knut tiveram que viajar de trenó para o norte, atravessando as florestas, na direção do Lago Mälaren e de Vik. Fizeram ainda um desvio, passan­do pela Ilha de Fogdö, perto de Strängnäs, onde Birger precisava entregar de presente uma nova espada feita em Forsvik. Ingrid Ylva ainda os ouviu falar e rir a longa distância quando eles partiram.

 

COM A PRIMAVERA CHEGANDO, na época de Tiburtius, as cegonhas já estavam há três semanas no norte, para fazer seus ninhos nas chami­nés do país, tendo abandonado as suas danças à volta do Lago Hornborgasjö no sul. Desde tempos imemoriais, era justamente nesse dia que os gelos começavam a derreter na Götaland Ocidental e os ursos saíam das suas tocas, após a sua hibernação em Nordanskog. Nesse ano o inverno não tinha sido muito duro e a primavera chega­va cedo.

Cecília Rosa ficou muito ocupada com a retomada do tráfego de embarcações fluviais carregadas de mercadorias. Muitas haviam sido guardadas em depósitos e em caixas no ano anterior, assim que os gelos começaram a se formar, bem antes do normal. E na primavera sempre chegavam barcos de Lübeck a Söderköping com mercadorias que seguiam depois para Forsvik. Havia muitas contas a fazer e, além disso, Cecília Rosa se impacientava em realizar os negócios com o rei Erik e com Eskil Magnusson, que, nos últimos anos, passava o inver­no mais ao sul, em Visby, a principal cidade da Ilha de Götaland, no Mar Báltico, a fim de organizar o comércio para o ano inteiro. Mas na volta para casa, em Arnäs, mais cedo ou mais tarde ele teria que passar por Forsvik e, portanto, não havia outra coisa a fazer senão ter paciência.

Finalmente, quando Eskil chegou, estava com pressa para voltar para casa, o que talvez tenha contribuído para ter aceitado rapidamen­te todas as propostas de Cecília Rosa e, além disso, se ofereceu para realizar a festa da noiva e o casamento de Alde em Arnäs, visto que a festa do noivo seria realizada no castelo de Forsvik. Pela filha do seu irmão, Alde, estava disposto a abrir o coração e a bolsa, disse ele. Além disso achava que os negócios de Cecília Rosa iam muito bem. Era um homem que dava preferência a essa espécie de atos de bondade que se pagavam. E isso que Cecília Rosa havia pensado devia-se pagar muito bem para os folkeanos, aqueles que ainda continuavam vivos e os seus descendentes. Todos os folkeanos iriam, com isso, fortalecer o seu poder sobre a província de Götaland Ocidental.

Cecília Rosa conseguiu, assim, uma negociação mais fácil com o seu cunhado Eskil Magnusson do que com o soberano, ainda que fosse Eskil aquele que, comparativamente, teve de pagar mais.

A primeira coisa que ela tinha de convencer o rei foi mais fácil, de que o cavaleiro Sigurd e o seu irmão Oddvar, que antes, justificada­mente, haviam sido armados cavaleiros por terem salvo a vida do rei Erik, precisavam ter terras e fazenda própria, como todos os melhores guerreiros do reino. Eles não podiam ficar o tempo todo dependentes de Forsvik, mesmo considerando que seus trabalhos eram excelentes e que jamais tivessem reclamado. E mais fácil não poderia ser para o rei destacar a fidelidade dos dois e reconhecer uma dívida de gratidão.

Foi assim que o rei Erik reagiu, lamentando até a sua falta de lem­brança e por Cecília Rosa não o ter feito lembrar mais cedo a respeito do assunto.

As coisas ficaram mais difíceis quando Cecília Rosa entrou na questão de como o favor da corte se traduziria em termos de terras e casas. Ela sugeriu os aldeamentos e as terras que ficavam ao sul do cas­telo de Lena, na praia ocidental do Lago Vättern, na fronteira entre as terras de erikianos e folkeanos. O rei Erik achava difícil que uma das famílias abrisse mão das terras a favor da outra. À objeção de Cecília Rosa de que seria da mesma maneira se fosse o contrário na hora de escolher as terras para os dois, ele descartou a idéia, dizendo que o problema estava justamente em ter que ceder terras na fronteira. Ela ainda tentou persuadir o soberano de uma forma ou de outra. E, final­mente, se ofereceu para pagar a diferença em ouro, o que levou o rei Erik a se dar por vencido.

Esse foi o primeiro passo do plano arquitetado por ela. Agora Sigurd e Oddvar já tinham terras ao sul do castelo de Lena. O segun­do passo seria o soberano autorizar que os dois irmãos tomassem conta e reconstruíssem o castelo folkeano de Lena com gente de Forsvik. Com isso eles estariam pagando aos folkeanos pelas terras que tinham acabado de receber do rei.

Lena era um castelo construído pelo jarl Birger Brosa, mas que pertencia agora a Eskil Magnusson, que tinha investido nele mais dinheiro do que qualquer outro, em conjunto com alguns parentes de Birger Brosa que viviam perto de Bjälbo. Eram eles que precisavam se retirar como proprietários e para isso Eskil, mais uma vez, teria de avançar com mais pratas.

Ainda que Eskil, ao contrário do seu abençoado irmão Arn, nunca tivesse sido um homem de armas, ele entendia, no entanto, de tudo o que dizia respeito à guerra em geral e do que precisava ser feito para garantir a segurança da família no futuro. Com dois cavaleiros folkea­nos em Lena, três bons castelos passariam às mãos dos folkeanos na Götaland Ocidental. Arnäs, onde o filho de Eskil, Torgils, era coman­dante, era o melhor e mais forte. Depois seguia-se o de Ymseborg, comandado por Bengt Elinsson, e agora o de Lena, com Sigurd, em breve, com laços de sangue na família em Arnäs e Forsvik, e o seu irmão, o cavaleiro Oddvar.

Eskil entendia muito bem o valor dessa força folkeana na Götaland Ocidental e por isso não reclamava dos valores empregados nesse sentido e do que isso lhe custava. Ele dizia que eram valores como os que se empregavam em mosteiros e conventos, que se paga­vam muito bem, mesmo para além da própria morte.

Com isso ficou determinada a realização de uma festa de noivado que reuniria mais guerreiros com vestes em azul e prata do que jamais se tinha visto antes no reino. Para o noivado de Alde com um cavalei­ro de Forsvik viriam todos aqueles que tinham passado por lá nos últi­mos vinte anos e recebido instruções do próprio Arn Magnusson, além de Emund, Oddvar, Bengt ou de qualquer outro do mesmo nível. Todos viriam completamente armados e exibindo com destaque as cores da família. Os forsvikianos eram fortemente unidos e todos tinham em alta consideração a filha de Arn Magnusson.

Cecília Rosa estudou atentamente o calendário e achou que até a época da Feira de Erik, em meados de maio, quando os filhotes dos tordos abandonavam os ninhos, daria para organizar tudo. Era a época também de preparar as terras e semeá-las, mas esse era um tra­balho que não existia em Forsvik e no qual os convidados esperados também raramente se preocupavam.

 

Ingrid Ylva estava entre aquelas pessoas que, de forma alguma, recea­vam as velhas bruxas que pretendiam saber de tudo entre o céu e a terra, de coisas desconhecidas para a grande maioria, quer fossem boas cristãs ou simplesmente pastoras de outras seitas religiosas, ou ainda mulheres rudes, tratadoras de cavalos.

Apesar das amistosas advertências de alguns parentes, ela deixou que um casebre na praia, antes utilizado por pescadores de Ulvåsa, fosse habitado por duas velhas irmãs, chamadas Jorda e Vattna. Se estes eram seus verdadeiros nomes ela não sabia, assim como onde tinham nascido e vivido antes de um dia terem chegado com a roupa do corpo à sua porta. Ela achou primeiro que se tratavam de escravas fugitivas, pois como é que elas poderiam andar por aí, vagabundean­do, como escravas libertas? Mas como em Ulvåsa e Forsvik não havia escravos, apenas libertos assalariados, Ingrid Ylva, por reação normal, convidou-as para comer e passar a noite. Se alguém viesse correndo atrás delas e dissesse quaisquer palavras ofensivas por ela ter dado gua­rida a duas fugitivas, teria apenas que jogar com desprezo na mesa algumas moedas e falar sobre a paz na sua casa duramente atingida pela invasão de caçadores de escravos. Isto porque, acima de Ulvåsa, só havia duas casas folkeanas, Arnäs e Bjälbo, e nelas, por princípio, também não existiam escravos.

Todavia, ninguém foi atrás das duas mulheres e, assim, Ingrid Ylva não teve que pagar pela liberdade de Jorda e Vattna a qualquer proprietário. E logo após ter falado um pouco com elas na primeira noite, decidiu construir um casebre para as duas, com tudo o que elas precisassem, comida e tecidos, em troca dos conhecimentos delas sobre Ulvåsa. Vattna e Jorda conheciam muito bem todas as ervas e sabiam não só trazer para a luz crianças como também baixar a febre delas, curar suas feridas, recolocar no lugar braços e pernas deslocados, e até combater diarréias. Mas muitos, especialmente entre os libertos, logo se mostraram exageradamente receosos em relação a Jorda e Vattna, comentando que elas eram bruxas. As crianças nem gostavam de passar por perto do casebre delas na praia.

Ingrid Ylva estava vindo justamente de lá, carregando um peque­no cesto com algumas cebolas frescas da primavera para cozinhar e usar contra a depressão, ruminando seus pensamentos e andando len­tamente em direção ao píer do rio quando viu uma embarcação com carregamento de ferro que, normalmente, não devia parar em Ulvåsa, mas que, de qualquer maneira, pretendia atracar. E no píer não havia nenhuma bandeira vermelha indicando a necessidade de passagem na viagem, nem de mercadorias a serem embarcadas. Com grande curio­sidade Ingrid Ylva aproximou-se do píer, como se a depressão já tives­se desaparecido em função das cebolas que ainda estavam no cesto para fazer a mezinha que ela ainda não tinha tomado.

Por isso, ficou sozinha e foi a primeira a receber a mensagem dada pelo inesperado barco e enviada de Forsvik de que Alde e Sigurd iriam dar uma festa de noivado em menos de um mês. A princípio ficou extremamente alvoroçada com a boa notícia. Mas a caminho da casa-grande maus pensamentos passaram de novo pela sua mente, relem­brando a lamentável aberração de Birger por Alde.

Birger e Knut ainda não tinham voltado das festas por ocasião do Natal em Vik, embora já se estivesse a caminho do inverno, no início de fevereiro, e tivesse caído tanta neve quanto o esperado. E não pare­cia para Ingrid Ylva que os dois jovens passassem o tempo todo ape­nas jejuando, rezando e treinando esgrima.

Caso tivessem descartado as aulas de esgrima, o que era mais do que provável, eles teriam a chance de, nos meses seguintes, se recupe­rarem no treinamento. Com uma persistência que beirava a obsessão, ficariam duelando desde a manhã até as vésperas. Os seus dias de traba­lho eram os mais prolongados de Ulvåsa, ainda que ali todos trabalhas­sem duramente, todos os dias, principalmente os ex-escravos libertos.

O progresso deles no jogo era notável, mas sobre isso Ingrid Ylva não tinha como ajuizar com precisão. Para ela, toda aquela algazarra e barulho de espadas, todo aquele suor derramado e o respectivo mau cheiro de corpos eram a mesma coisa, independentemente de quais fossem os homens que se dedicavam a esse esforço. No entanto, a esse respeito resolveu escutar as palavras do porta-bandeira de Ulvåsa, que era um guerreiro experimentado e pertencia ao seu próprio clã. Ele afirmou de forma breve, mas bem definitiva, que sobre Birger não havia muito mais a acrescentar. Birger era forsvikiano e contra ele nin­guém, a não ser outro forsvikiano do mesmo nível, poderia ter qual­quer chance. Em relação a Knut, entretanto, ele já não era mais aque­le esgrimista inexperiente nas mãos de qualquer forsvikiano, antes poderia oferecer resistência a qualquer um. Ele disse isso e era verdade que já nenhum dos escudeiros de Ulvåsa estaria disposto a entrar em luta contra Knut. Isto porque Knut era agora um guerreiro completa­mente diferente do que aparentava no outono anterior.

Ingrid Ylva não tinha certeza se devia gostar disso ou não. De qualquer forma, era bom que o seu filho respeitasse as ordens do seu rei. Mas ao pensar mais adiante no futuro, ela de novo não conseguia ver nenhuma vantagem no fato de Knut se tornar um espadachim com desempenho equivalente ao de Birger.

Caso Birger tivesse tido a oportunidade de escutar as preocupa­ções da sua mãe, certamente ele teria todas as razões para rir-se disso. Na verdade, Knut estava muito mais desenvolto com a espada do que antes. E isso era uma vantagem para os dois, visto que Birger, com o passar dos meses, quase que sem notar, era obrigado a melhorar o desempenho de todos os seus movimentos. Dessa forma já não tinha a sensação de estar ficando mais lento.

Todavia, também era verdade que Knut jamais conseguiria me­lhorar, a ponto de se igualar a Birger. Ninguém conseguiria isso tendo começado a usar a espada da forma correta após os vinte anos de idade, em vez dos cinco.

Agora, porém, eles se divertiam muito mais do que no início do treinamento. Também tinham começado a dedicar mais tempo e esforço àquilo que poderia favorecer melhor as suas próprias intenções do que as do soberano. Knut passou a treinar tiro com arco uma hora por dia com Birger, visto que era de evitar receber sempre no jogo as sete espigas. Birger também treinava com Knut o jogo do porrete no tronco, o que era mais fácil de aceitar como parte das ordens do rei, já que esse jogo melhorava tanto a velocidade quanto os reflexos.

A intenção por trás disso não seria difícil de imaginar. Birger e Knut não tinham casamento à vista, mas em compensação poderiam participar de muitos jogos da juventude. E aquele que vencesse nesses jogos tinha mais do que ouro e honra a receber, acima de tudo teria vantagens daquele tipo que havia sido o único que Knut ensinou a Birger. As grandes guerras tinham acontecido ainda há pouco tempo e, por isso, havia muitas viúvas jovens para encontrar.

Ao chegar a mensagem da festa de noivado em Forsvik, a primei­ra pergunta de Knut, ansioso, para Birger foi se haveria competições entre os jovens durante esse evento. A pergunta era mais do que nor­mal. Eles já tinham começado a sonhar com os muitos casamentos durante o verão e de como iriam se revezar em obter o primeiro e o segundo lugares, com as respectivas coroas de ouro e de prata.

A resposta de Birger arrefeceu Knut tão rápido quanto um balde de água fria em cima de qualquer cachorro esperto. Certamente have­ria jogos de armas em Forsvik na festa de noivado, concordou Birger. Mas, nesse caso, apenas a cavalo e com lança, visto que os forsvikianos consideravam todo o resto como brincadeiras fúteis. E a Forsvik chegariam os melhores cavaleiros do reino. Birger já se sentiria feliz se ficasse entre os quinze ou vinte melhores. Knut achou logo que não devia viajar para essa festa, e Birger nada disse para contrariá-lo. Mas sugeriu, em vez disso, que Knut aproveitasse esses dias de descanso para visitar o rei Erik em Näs. Isto porque o soberano talvez compa­recesse ao casamento em Arnäs, mas não ao noivado em Forsvik, ao qual mandaria para representá-lo a sua mãe, a rainha viúva Cecília Blanka.

Os dois chegaram a um acordo sensato em poucas palavras, tal como já se tinha tornado um hábito. O resto da tarde Birger ficou treinando com Knut uma coisa que ele tinha inventado nos últimos tempos. Knut se defendia apenas com o escudo, enquanto Birger fica­va atacando sem um. Knut aprenderia a se defender de cada golpe sem usar muita força e a evitá-los, tanto quanto possível, desviando-os. Além disso, dessa maneira ele se obrigava a entender que o escudo também era uma arma.

 

De início a festa de noivado em Forsvik foi justamente aquilo que todos esperavam. De toda a Götaland Ocidental e de grande parte da Götaland Oriental vieram antigos forsvikianos com as suas cores sim­bólicas e completamente armados como se fosse o caso de uma coroa­ção. Tantos jamais se reuniram, nem mesmo por ocasião da recepção da noiva real, Rikissa, em Lödöse. Ao longo do píer todos os forsvikia­nos se colocaram em formação, com lanças e escudos, embandeirados e vestidos em prata e azul, exibindo um ondulante e cintilante mar azul à luz do sol. Da longa fila de escudos com o leão dourado emana­va a nova força do poder folkeano.

Os cavaleiros e Birger, além de outros homens que também tinham sido comandantes em Forsvik, reuniram-se em conselho sob a liderança de Bengt Elinsson e decidiram que, desta vez, seria aberta, também, a sala dos cavaleiros, visto que seria impossível colocar todos os convidados em uma única sala na casa-grande.

Os torneios seriam realizados no grande campo de treinamento logo no primeiro dia. Qualquer outra decisão teria sido impossível de imaginar dada a quantidade de forsvikianos reunidos de uma vez só. Levaram o dia todo para apurar o primeiro vencedor, que, sem surpre­sa, foi o cavaleiro Bengt, embora este reclamasse por se sentir velho demais, após ter resistido a cavalo contra oito bons forsvikianos e ter caído do animal duas vezes.

A esperança de Birger de ficar entre os últimos ainda invencíveis terminou mal ainda desta vez. Ele teve sorte com os seus três primei­ros adversários que ou estavam entre os mais velhos ou entre os mais jovens. Mas na quarta etapa, embora houvesse uma pequena esperan­ça de vitória, em comparação com aquela que havia tido no meio da confusão inicial, foi o cavaleiro Sigurd que lhe coube por sorte como adversário.

Birger começou por maldizer a sua sorte. Mas depois se motivou ainda mais e lhe sobreveio, então, uma vontade forte de vencer, tão forte que quase começou a sentir ódio por Sigurd. Na disputa entre os dois Birger não avançou, cavalgando como se fosse um jogo, uma brincadeira, com grosseiras bolas ajustadas na ponta das lanças, antes, enérgico e decidido, como se fosse na guerra.

Da primeira vez ao se confrontarem, houve empate. Nenhum dos dois caiu do cavalo em função da pancada certeira com a ponta defen­dida da lança. Da segunda vez que os dois avançaram um contra o outro, cavalgando, Birger atraiu o despeito de todos sobre si próprio ao desrespeitar uma das regras mais importantes de Forsvik. Entre os presentes ninguém escondeu a opinião de que ele havia feito pontaria contra o rosto de cavaleiro Sigurd, e por pouco não o atingiu. Assim se fazia na guerra, mas não entre forsvikianos em uma peleja amisto­sa. Um golpe desses poderia causar a morte, mesmo com a lança pro­tegida com uma bola.

O preço que Birger teve de pagar foi alto. Em parte, ele acabou caindo da sela, visto que assestou todas as suas fichas numa única coisa, acertar o adversário, que estava vencendo, com um único golpe.

Por outro lado, teve que reconhecer o seu erro. E, portanto, não pôde fazer outra coisa senão levantar o braço, pedindo desculpa, e retirar-se da peleja. Com isso teve de reconhecer a derrota, ainda que tivesse caído apenas uma única vez.

Ao levar Ibrahim para a cavalariça, Birger amaldiçoou a sua sorte e formalizou todas as suas desculpas para o garanhão, em vez de para aqueles a quem elas eram devidas. Depois de enxugar Ibrahim e de se despedir dele com um beijo, ele não voltou para o campo de disputas. Em vez disso, foi disfarçadamente para o pequeno cercado onde o pai de Ibrahim, o garanhão de Arn Magnusson, Abu Anaza, vivia sua vida tranqüila, entre uma forragem verde e a corrida atrás de alguma égua para cruzar.

Ninguém tinha montado Abu Anaza depois que o seu dono mor­reu. Nem eram essas as intenções de Birger, num momento em que se sentia envergonhado e com a certeza de que se tinha desonrado mais do que o suficiente num único dia.

Primeiro Abu Anaza olhou para ele, desconfiado, no momento que Birger pulou a cerca. Mas depois pareceu que o garanhão, de repente, o reconheceu, relinchou amistosamente e se aproximou dele trotando. Birger afagou o seu focinho já meio envelhecido e falou para ele da sua feia presunção e da sombra do seu avô que pairava sobre a sua cabeça, com quem ele sempre era comparado, uma comparação que nunca terminava a seu favor. Birger perguntava a Abu Anaza como havia se sentido ao ser montado por um guerreiro como Arn Magnusson, atravessando nuvens de flechas que escureciam o céu e o barulho de milhares de cascos batendo no chão, além do tilintar das espadas. Era isso que fazia um homem se engrandecer? Quem era o maior dos guerreiros, aquele que jamais havia caído ou aquele que, após cada caída, se levantava de novo e jamais desistia?

Abu Anaza olhou para ele com os seus olhos grandes e bonitos, pare­cendo responder com a sua compaixão, como se aquelas perguntas desesperadas jamais precisassem ser respondidas. E resfolegava pelas nari­nas, encostando o pescoço macio em Birger, como que a confortá-lo.

Birger sentiu-se então atacado por uma irresistível tentação. Agora ninguém podia vê-lo ali, e isto porque todos os forsvikianos estavam sentados na grande praça de treinamento onde, em breve, não haveria mais contendedores para o cavaleiro Bengt e apenas ele restaria como vencedor.

Assim, Birger pegou a crina de Abu Anaza e pulou no seu dorso, como se, de repente, tivesse tido uma premonição. Abu Anaza resfole­gou e saiu imediatamente, trotando pelo cercado, alteando a cauda, sem que Birger fizesse o menor sinal de comando. Depois passou a galope à volta do cercado. As lágrimas escorreram pelo rosto de Birger de tal forma que não conseguia retê-las, nem talvez quisesse. De algum modo ele acreditava ter recebido uma resposta. Do corpo de Abu Anaza escorria uma corrente de tranqüilidade e confiança para o corpo de Birger, de maneira que, pelo menos naquele momento, ele se reconciliou com os muitos sentimentos contraditórios que assolavam a sua mente. E prometeu a si mesmo nunca mais passar vergonha diante de todos aqueles que eram os seus mais próximos na vida.

Nos dois primeiros dias e noites ele conseguiu manter a sua pro­messa. A terceira noite, porém, foi a mais infeliz e desonrosa da sua jovem vida.

Como em Forsvik era impossível reunir mais de duzentos convi­dados na mesma sala, Cecília Rosa tinha decidido que, simplesmente, era preciso dividir o grupo pelas três salas que existiam. A mesa de honra seria colocada na sala dos cavaleiros e era nela que ficariam os convidados de maior prestígio, entre eles a rainha viúva, os cavaleiros e outros folkeanos que acompanhassem suas esposas. Os que com­parecessem sem as suas esposas ficariam na sala chamada Terra Santa, e a maioria do pessoal de Forsvik teria que se aglomerar na antiga casa-grande. Mas como Alde e o cavaleiro Sigurd eram amigos de todos da casa, eles ficariam na sala da casa-grande na primeira noite de festa, na sala da Terra Santa na segunda noite, e na sala dos cavaleiros na tercei­ra noite. Dessa maneira todos teriam a alegria e a honra de festejar uma noite na companhia dos noivos. Era uma forma de organizar a festa de noivado nunca tentada antes e que não fazia parte das tradi­ções da Götaland Ocidental. Mas Cecília Rosa era uma mulher que, muitas vezes, se dispunha a ir contra as tradições. Assim também fora o seu marido, Arn Magnusson, e como Forsvik continuava a florescer e a enriquecer todos os dias, era extremamente raro alguém reclamar e tentar mudar aquilo que Cecília Rosa determinava, quer se tratas­sem de tradições antigas ou de novas maneiras de fazer negócios.

Ingrid Ylva ficou sentada na mesa de honra com as suas amigas mais queridas, as duas Cecílias, e elas tinham apenas coisas agradáveis para falar. Os tempos eram bons, havia paz em todo o reino e a rainha Rikissa, em Näs, estava para dar à luz por esses dias seu primeiro filho. Se fosse um menino, isso esfriaria, talvez, as pretensões do arcebispo Valerius, na sua permanente tentativa de colocar no trono um sverke­riano. Se fosse uma menina, mesmo assim não haveria problema. Certamente se encontraria, com o tempo, algum folkeano disposto a ser seu consorte real. Além disso, Rikissa havia demonstrado que era fértil e, sendo jovem e saudável, poderia dar à luz muitas outras crian­ças. Quanto à luta pelo poder, estava acontecendo no reino aquilo que Arn Magnusson havia previsto.

Cecília Rosa contou como era no tempo em que ele voltou da Terra Santa e como, então, pensou em construir o poder da família folkeana, fortalecendo-a de maneira que ninguém lhe pudesse resistir. Com isso a sua intenção foi estabelecer a paz. E era essa a paz que exis­tia agora. Enquanto a união entre as famílias folkeana e erikiana per­sistisse, nem mesmo Valerius conseguiria lançar o reino de novo na guerra e na infelicidade. Os erikianos não estariam dispostos a se transformar em inimigos dos folkeanos, e estes não poderiam preten­der assumir a coroa do reino. Por isso, ambas as partes teriam toda a vantagem em permanecer em paz e na tranqüilidade. E agora, com a realização do próximo casamento, os folkeanos ficavam com três cas­telos bem protegidos sob a sua responsabilidade na Götaland Ocidental e, além disso, com Älgarås, onde Sune Folkesson era comandante. Para não falar de Forsvik, cuja força não estava concen­trada na ação defensiva, mas no poder criado a partir do dinheiro e do ouro. Na verdade, o país tinha pela frente um futuro luminoso. E esse era o pensamento das duas Cecílias.

Ingrid Ylva ficou em silêncio enquanto as suas duas amigas se suplantavam uma à outra em ilustrar o futuro com as melhores espe­ranças. Para ela, parecia quase uma pretensão exagerada considerar a vida sem a mínima preocupação, visto que, em sua opinião, a dor e a alegria eram gêmeas que andavam de mãos dadas. Havia sempre escu­ridão onde se fazia a luz, e sempre infelicidade por trás de cada virada quando a felicidade era maior. Isso porque os seres humanos sempre agiam, de repente, como loucos, com uma loucura que ninguém poderia prever. E, assim, toda felicidade se transformava em infelici­dade. Por vezes bastavam algumas palavras mal interpretadas durante uma festa e acontecia de alguém querer seqüestrar a noiva de outro para que uma longa série de vinganças crescesse e se transformasse em uma grande guerra.

E ela refletia em silêncio, ao mesmo tempo que observava Birger, um pouco afastado, sem os seus irmãos por perto, visto que Ingrid Ylva achou que eles deviam ficar estudando, em se tratando apenas de uma festa de noivado, mas estava claro que iriam cavalgando ao casa­mento em Arnäs. Embora Birger estivesse sem a companhia de ami­gos próximos, ainda assim ele não sentia tanta timidez como normal­mente acontecia. Estava bebendo e falando pelo que ela podia imagi­nar pela gesticulação dos seus braços e de algum irritado brilho de olhos de um ou outro forsvikiano mais idoso sentado ao seu lado. E ele ficava olhando, atrevida e descaradamente, para as jovens criadas da casa forsvikiana que traziam comida e cerveja para as mesas e ser­viam vinho como se costumava fazer ali em Forsvik. Birger tinha se transformado rapidamente em uma outra pessoa no último ano, e nisso não havia apenas coisas boas e outras que eram inevitáveis na hora de passar de jovem para homem adulto. Ele vinha se parecendo muito com Knut Holmgeirsson e esse homem era bem diferente, comparando com o seu pai e o seu avô.

Foi um imposto que ela, como sua mãe, teve que pagar para o rei, achou ela. O rei Erik tinha entendido, por são e simples bom senso, que não havia preço suficientemente alto que evitasse uma crescente inimizade entre Knut e Birger. E da amizade entre eles dependia a paz no reino. Mas dessa amizade resultou que Birger se transformou em um homem pior do que ela como mãe tinha esperado e que, nitida­mente, havia visto nas suas visões.

Suas suspeitas mais terríveis tornaram-se realidade da pior manei­ra possível na terceira e última noite da festa, quando a bancada flori­da dos noivos foi trazida para a sala dos cavaleiros, a fim de que Alde e Sigurd nela se sentassem. De início a alegria foi maior naquela noite do que nas duas anteriores, não só porque os noivos estavam presen­tes, mas também por causa dos músicos sarracenos que, morando em Forsvik, costumavam tocar os seus instrumentos de cordas e cantar em festas como essa.

Mas nessa noite Birger ficou carrancudo e completamente bêba­do. Ninguém, a não ser Ingrid Ylva, pressentiu o perigo. Mais tarde, ela se culpou por ter hesitado e não interferido a tempo. Embora tam­bém fosse difícil dizer, refletindo sobre o caso, como ela teria podido salvá-lo.

Tudo começou quando ele, de repente, esticou o braço com o seu copo de vinho vazio na mão, na direção de Gurmund, o pai de Sigurd e Oddvar, e lhe ordenou que fosse buscar mais. Primeiro Gurmund ficou espantado, mas pareceu até que pensava em obedecer, quando Oddvar segurou o braço do pai, com decisão, evitando que ele agisse. E Oddvar disse então para Birger, num tom de voz amigável, que havia muitos criados em volta, que poderiam atendê-lo e que o seu pai estava ali como convidado, como todos os outros.

No entanto, Birger não se deu por satisfeito e em alto e bom som, atrevidamente, exclamou que um velho escravo como Gurmund de­certo estava habituado a servir os folkeanos, como era o caso, aliás, dos seus descendentes, Orm e Sigge. Ele pronunciou os antigos nomes de Sigurd e Oddvar, quando ainda eram escravos, de uma maneira clara e sibilante, de modo que o silêncio pairou em toda a sala, enquanto de todos os lados olhares aterrorizados se dirigiram para ele.

Sigurd estava sentado longe, na bancada dos noivos, mas também pôde ouvir tudo. Como era o mais aguerrido dos dois irmãos, não conseguiu dominar a língua, habituado como estava a mandar em Birger durante muitos anos na escola de guerra. E disse em voz alta que, em termos de sangue, não importava para ele como fosse, mas aquilo que fazia um homem eram as suas ações. Aquele que não tinha ainda recebido as esporas douradas na sala dos cavaleiros de Forsvik jamais poderia se comportar mal contra os seus irmãos já armados cavaleiros pelo rei. E que isso, sem dúvida, representava muito mais do que, sem merecimento e sem querer, ser filho de mãe importante dentro do clã.

Então, fingindo achar que essas palavras atingiam a honra da sua mãe, Birger disse que aquele que mal sabia quem o seu pai era, entre tantos escravos reprodutores, devia ter cuidado ao pronunciar palavras de desonra contra a sua mãe, visto que na parede por trás dele, entre símbolos, bandeiras e escudos reais dinamarqueses, em Gestilren e Lena, pendia a sua espada e que havia pertencido a Arn Magnusson, e que essa espada jamais tinha entrado em luta para perder.

A ameaça de puxar a espada contra o cavaleiro Sigurd, colocando forsvikiano contra forsvikiano, pois foi assim que todos na sala enten­deram as palavras de Birger, era uma violação clara demais, embora todos também entendessem que ele estava bêbado a ponto de suas palavras não fazerem sentido. A situação acabaria em tumulto e com palavras ainda mais duras e fortes. Logo ficaram Birger, de um lado da longa mesa, Oddvar em sua frente e Sigurd na bancada florida, na ponta mais curta da mesa, trocando os piores insultos. Tudo termi­nou, porém, quando Ingrid Ylva se levantou e se aproximou de alguns dos guerreiros mais conceituados que ainda não haviam se introme­tido e pediu a eles para, sem demora ou contemplações, levarem Birger para fora.

Birger então esbravejou, esperneou e continuou com seus insultos quando foi dominado por eles. A caminho do portão, levado por bra­ços fortes, jurou que agora esses filhos de escravos eram os seus piores inimigos para o resto da vida e, enquanto continuassem em Forsvik, ele jamais voltaria a pôr os pés lá. As últimas coisas que se ouviram da sua boca foram que queria ter de volta a sua espada e ainda qualquer outra coisa que dizia respeito a uma injustiça na herança, até que, finalmente, os seus gritos se dissiparam por trás do pesado portão que se fechou.

A atmosfera na sala dos cavaleiros ficou a pior possível. Alguém ainda brincou, falando das dificuldades dos jovens brigões em beber por três dias seguidos e que por onde entrava o vinho saía o bom senso. Mas nenhum discurso de desculpas podia fazer com que as lágrimas de Alde parassem de correr pelo seu rosto. E lágrimas na ban­cada florida dos noivos eram a pior coisa que podia acontecer duran­te a festa do noivado.

Na manhã seguinte, Birger tinha desaparecido.

Ingrid Ylva viajou com a rainha viúva Cecília Blanka para Näs na galera real que ficou aguardando no píer de Forsvik. Ela queria refle­tir um pouco sobre o seu relacionamento com Birger, antes de voltar a falar com ele e chamá-lo à ordem.

No entanto, nada disso aconteceu quando ela, três dias mais tarde, voltou para Ulvåsa. Birger estava envergonhado, mas tentava fingir que não. Ele também se sentia irritado e contrariado, mas con­servava-se o tempo todo afastado nos seus treinamentos com Knut.

 

Nesse verão, Birger e Knut viajaram para assistir a muitos casamentos nas regiões de Nordanskog e de Sunnanskog, ao norte do reino. E como combinaram de antemão, trocavam de posições, uma vez ganhava Birger e, na seguinte, Knut. Com uma exceção, em que era a vez de Knut vencer, e eles tiveram que enfrentar, entre os jovens, um forsvikiano. Ele tinha a mesma idade de Birger e se chamava Aunund Gunlaugsson. Nessa altura, Birger partiu furiosamente não só para a vitória como também para a decisão de escolhê-lo para primeiro con­tendedor, a fim de que Aunund recebesse a espiga negra que compe­tia ao último lugar. Birger conseguiu os seus intentos, embora os lou­ros devessem ser creditados talvez mais a Ibrahim do que a ele.

No início do outono, entre as feiras de Brynulf e de Bartel, quan­do as grandes colheitas estavam em andamento, tudo era tranqüilida­de em Näs e poucos eram os convidados, Birger e Knut viajaram a cavalo, de cabeça erguida, para o castelo real, pedindo uma audiência ao rei.

O rei Erik, que já tinha sido avisado da sua chegada, apresentou-se de coroa na cabeça e de manto nas costas, mandando que trouxes­sem o trono para a recepção. E foi sentado no trono e com uma expressão severa no rosto que mandou que os dois jovens se aproxi­massem e o saudassem, apoiando o joelho esquerdo no chão.

— Eu, Erik, rei dos gotas e dos sveas, dei aos dois um duro traba­lho a realizar durante o ano que agora termina. Vocês cumpriram o meu desejo? — perguntou o soberano, num tom de voz alto e severo.

— Sim, Majestade, nós fizemos o melhor que pudemos — res­pondeu Birger.

— Essa é também a sua opinião, meu jovem e nobre Knut? — perguntou o rei no mesmo tom ríspido de voz.

— Sim, Majestade. Se isso lhe agradar, podemos realizar uma demonstração para o senhor — respondeu Knut.

— Ótimo — exclamou o soberano. — Palavras são palavras, mas a ação é sempre mais verdadeira. Portanto, vamos dar continuidade àquele pobre embate iniciado aqui neste castelo pelos dois há um ano!

Aquilo que o soberano disse não admitia hesitações. Logo eles ficaram frente a frente na praça do castelo, com o escudo e a espada de treinamento. Ambos fizeram uma reverência perante o rei e, em segui­da, um diante do outro.

Muita gente acorreu de todos os lugares do castelo para ver o ines­perado espetáculo e logo se escutaram suspiros de espanto e de admi­ração. Isto porque Birger e Knut tinham treinado como aconteceria na demonstração. Em determinada oportunidade, Knut fingiu perder a sua espada e passou a defender-se apenas com o escudo, de uma forma que nem o olhar experimentado de qualquer observador pode­ria acompanhar. E quando Birger o encurralou num canto e ia atacar as suas pernas com um corte lateral, Knut deu um pulo por cima da espada vencedora no momento certo, ao mesmo tempo que jogava com força o escudo na cabeça de Birger, ganhando espaço para pegar do chão novamente a sua espada. E assim continuaram, combatendo como se fosse uma luta de verdade, a uma velocidade e com uma força que logo atraíram mais aplausos dos espectadores cada vez mais numerosos.

Parecia que em apenas um ano Knut tinha passado de um simples combatente de Nordanskog para líder dos folkeanos. E para quem entendia dessa arte e se lembrava do que tinha visto no encontro ante­rior, estava claro como água que Birger havia tratado o adversário com a maior tolerância ao se enfrentarem como inimigos.

Quando achou que já tinha visto o suficiente, o soberano suspen­deu a apresentação, chamou os dois combatentes ofegantes e mandou que se ajoelhassem.

— Um cavaleiro não é apenas aquele que realiza um grande feito na guerra — começou o rei Erik solenemente. — Um cavaleiro é tam­bém aquele que se submete às ordens do seu soberano, que luta por ele, pela paz do reino e pelo bem contra o mal, seguindo os ensina­mentos de Cristo. Um cavaleiro é ainda aquele que pensa mais na uni­dade do reino do que nas suas vantagens pessoais e está disposto a tra­balhar arduamente para essa finalidade. Um homem que nos é muito próximo e que era marechal do reino ensinou-nos num dos piores momentos da nossa história que vale a pena ter esse tipo de compor­tamento. Por isso, peço a vocês que vão buscar as suas espadas afiadas e voltem a mim.

O rei não precisou dar essa ordem duas vezes. Rápido, os dois foram buscar as suas espadas forsvikianas, que estavam bem afiadas, e as desembainharam na presença do soberano, ajoelhando-se de novo diante dele, conforme suas ordens.

— Quero que jurem três coisas diante deste vosso rei — anunciou o rei Erik, agora com um novo tom de voz, amistoso, ao contrário daquele que tinha usado antes. — A primeira coisa é fidelidade, a segunda, sapientia, e a terceira, fortitudo. Jurem para mim com ambas as mãos sobre as suas espadas.

Birger e Knut juraram por sua honra sem pestanejar. Então o rei desembainhou a sua própria espada e tocou com ela o ombro esquer­do de ambos. Pediu depois que se levantassem, armando-os, assim, como cavaleiros do reino dos gotas e dos sveas.

Naquela noite o soberano mandou organizar uma boa festa, durante a qual entregou aos dois novos cavaleiros do reino as suas esporas de ouro. Durante a festa, Knut ficou sabendo por Birger o que aquelas duas palavras que haviam jurado significavam em latim. Uma delas permitia que eles dessem a sua opinião para o rei, e a outra, pro­metia usar a espada e a força na defesa do reino. Isso de ter jurado uma coisa que não tinha entendido ele desculpava, sorrindo e dizendo que não teria sido muito respeitoso, naquele momento decisivo, pergun­tar sobre o significado daquelas palavras estrangeiras. Birger comple­mentou dizendo que o risco de essas palavras serem ignominiosas era muito pequeno. E logo soltaram gargalhadas estrondosas, se abraçan­do como se fossem velhos e queridos amigos de sempre.

O rei ficou muito satisfeito ao ver como a amizade entre eles tinha se desenvolvido e respirou fundo ao sentir como as suas ordens seve­ras haviam sido cumpridas e resultado em algo melhor do que pode­ria esperar. E se ele, antes, tinha unido os dois com uma ordem tão dura quanto o ferro, agora estava unindo-os por um meio muito mais agradável, com esporas de ouro. Esse ouro era uma despesa muito barata a pagar pelo bem-estar do reino, pensava ele.

Para Birger e Knut, porém, a honra de terem alcançado a posição de cavaleiros representava a concretização de um sonho que eles haviam alimentado desde os tempos em que eram apenas dois garo­tos. Era uma honra incompreensivelmente grandiosa, que iria perdu­rar a vida inteira.

Ao fato de terem recebido essa honra, talvez, de uma forma menos criteriosa do que os outros cavaleiros do reino, eles não deram a menor importância. Antes se dedicaram a passar uma noite muito agradável junto com o rei, na sala da torre ocidental do castelo, ainda que este, desta vez, não mandasse servir tanta cerveja e vinho, por tanto tempo, como da primeira vez, um ano antes, quando Birger e Knut ainda eram inimigos implacáveis.


                        O tempo dos Velhos

NO ANNO DOMINI DE 1216, sob a forte canícula do verão, o rei Erik Knutsson faleceu de repente, com febre alta e depois de ter uri­nado sangue nos últimos dias de vida. A rainha Rikissa, até então, tinha dado à luz três filhas e estava grávida mais uma vez. No leito de morte, muito febril, ele falou com voz fraca e já em delírio que era preciso colocar a rainha grávida em segurança, levando-a para a corte do rei Valdemar da Dinamarca, caso contrário a vida dela e da crian­ça ainda por nascer correriam um grande perigo. Com a voz cada vez mais fraca e frases bastante desconexas, à medida que a febre aumentava ele disse que as suas suspeitas eram tão terríveis que só poderia apresentá-las sob o sigilo da confissão. Quando o seu chanceler, que também era bispo, deu ao moribundo a extrema-unção e o recebeu em confissão, ele voltou dos aposentos reais na torre ocidental do cas­telo com o rosto branco. Mas das coisas horríveis que ouviu e ficou sabendo nada pôde falar.

O jarl Folke e a rainha viúva Cecília Blanka trataram imediata­mente da última viagem do rei para Varnhem e do seu funeral. Como o calor nesse verão estava muito forte, era necessário que o cadáver do rei fosse enterrado o mais rápido possível.

Em Varnhem, foi Cecília Rosa quem recebeu o séquito real para o funeral, composto de quatro esquadrões de cavaleiros folkeanos, o que era muitíssimo mais do que algum bispo poderia esperar em tempos de paz. Mas essa força não servia apenas para defender Cecília Rosa, mas também a rainha Rikissa, que depois do enterro viajaria imedia­tamente para Lödöse com as três filhas. As moedas de ouro das duas Cecílias foram suficientes para elas pagarem o transporte na primeira boa galera disponível que, com soldados folkeanos armados a bordo para proteger a rainha e as suas filhas, logo partiu com destino à Dinamarca.

Pouco depois, as quatro viúvas se reuniram em Näs, onde a rainha viúva Cecília Blanka, por enquanto, como ela amargamente falou, era a única que mandava na ausência do rei. Ulvhilde Emundsdotter era a única das quatro que não tinha estado presente no funeral do sobe­rano em Varnhem, visto estar viajando em Uppland quando ele mor­reu. Embora nenhuma dessas mulheres fosse de se lamentar muito perante a morte e o luto, visto terem muita experiência nessas doloro­sas situações, era impraticável não apresentar algumas palavras de con­solo à rainha viúva Cecília Blanka. Isto porque o seu marido, o aben­çoado rei Knut, fora o único entre os seus familiares mais próximos e queridos a morrer de morte natural, quando Deus o chamou para junto de Si. Os seus três filhos mais jovens tinham sido assassinados em Älgarås por bandidos do rei Sverker e, mais recentemente, o seu filho mais velho também fora assassinado. E disso ela estava bem con­vencida, ainda que não pudesse provar como ou por quem.

Por parte dela, nada restava a fazer do que realizar uma derradeira viagem para o convento de Riseberga. Era lá que ela queria fazer os votos perpétuos e procurar consolação nas orações e na vida tranqüila do convento, à espera de sua própria morte, que ela considerava como uma libertação. Já tinha escrito a última página da saga da sua vida e nada havia mais para acrescentar.

Cecília Rosa, Ulvhilde Emundsdotter e Ingrid Ylva tentaram persuadi-la a ficar e a lutar, porque se o rei tivesse sido assassinado, o reino estaria à beira do abismo e poderia cair a qualquer momento na guerra.

No entanto, logo tiveram que desistir das tentativas de convencê-la a ficar, visto que Cecília Blanka achava ter dado o suficiente da sua vida e pago um preço suficientemente alto pela sua participação na luta pelo poder. Além disso, achava ela, embora fosse fácil imaginar que o trai­çoeiro Valerius iria desenterrar o filho Johan do antigo rei Sverker de algum lugar na Dinamarca e tentar coroá-lo, de momento, o poder esta­va mais nas mãos dos folkeanos do que dos sverkerianos.

Se, todavia, houvesse uma ligação entre o arcebispo Valerius ao crime de envenenamento do rei, aconteceria uma mudança radical na luta pelo poder, objetou Ulvhilde Emundsdotter calmamente, fazen­do com que as outras três mulheres se endireitassem, rapidamente, das suas posições, entre almofadões e almofadas, onde se mantinham dei­tadas como de hábito, sempre com um copo de vinho branco ao seu alcance. A um tempo, todas lhe perguntaram o que ela queria dizer com isso.

De início Ulvhilde sentiu-se um pouco embaraçada por ser obri­gada a justificar as suas palavras. Das quatro viúvas, ela era aquela que, normalmente, falava menos, enquanto que Cecília Rosa sempre tinha mais a dizer. Mas, explicou ela, ao viajar para Nordanskog tinha feito uma primeira parada em Linköping, para tratar de vários assuntos, e soube então que o rei também estivera lá. Ele convocara uma assem­bléia local nas pedras de Mora, havia mudado sentenças, mandou que enforcassem alguns miseráveis e trouxe para casa as multas reais. Ulvhilde também tinha se encontrado rapidamente na cidade com o rei, quando este estava a caminho do castelo do bispo, onde faria a refeição da noite. Não tiveram muito tempo para falar um com o outro, mas ela ainda chegou a brincar, dizendo que Sua Majestade devia tomar cuidado durante o banquete, visto que o arcebispo Valerius também estava na cidade e, certamente, também sentaria à mesma mesa com o rei naquela noite. A isso ele apenas respondeu ale­gre, dizendo que, na verdade, não esperava comer nada que fosse pre­parado por Valerius, mas que, além disso, para maior segurança, um dos seus criados da escolta provaria primeiro toda a comida que apre­sentassem para o rei.

Cecília Rosa objetou calmamente que tudo isso devia ter aconte­cido uma semana antes da morte do rei. Ao ser obrigado a recolher-se ao seu leito de morte em Näs, ele não tinha recebido nenhum visitan­te durante vários dias. E por muito que se quisesse acreditar nos maus poderes de Valerius, será que ele podia matar a distância ou envenenar o rei uma semana antes de ele morrer?

Era verdade que homens nas mais elevadas posições da Igreja tinham sido assassinos por meio de envenenamento, acrescentou Cecília Rosa, de repente pensativa. O seu amado Arn lhe havia conta­do a respeito de um homem, sete vezes mais malvado que Valerius, e que estava acima de qualquer bispo e era chamado de patriarca de Jerusalém, o posto mais alto da cristandade depois de Sua Santidade, o papa, em Roma. Por um momento, Cecília Rosa teve que se esforçar para tentar lembrar o nome desse filho de serpente feito homem. Era Heraclius. Tal como lhe contou o seu abençoado marido, o patriarca Heraclius conseguiu envenenar dois bispos a caminho de Roma, mas, mais tarde, ele e os seus comparsas foram castigados por Deus, Nosso Senhor, com a perda de Jerusalém, a Cidade Santa.

No entanto, seria mais fácil acreditar nessa terrível suposição se o rei tivesse morrido na mesma noite em que esteve à mesa com Valerius, e não uma semana mais tarde.

Dessa forma não havia nada a fazer senão ficarem sentadas, de braços cruzados, e esperar a vingança celestial, sussurrou Cecília Blanka, mas logo mudou de tom e ficou pensativa. Isto porque, de repente, ela lembrou que um dos criados da escolta tinha morrido da mesma maneira que o rei. Tinha-se falado até de uma nova epidemia durante algum tempo. Mas a morte do serviçal ficara na sombra do falecimento do próprio soberano, e, por isso, ela não sabia muito mais sobre a questão. Mandou chamar, então, de imediato, alguns serviçais e ordenou que fossem recolher informações sobre a morte do compa­nheiro. E não demorou muito tempo para que eles voltassem com as respostas para as perguntas mais importantes.

Aquele criado que morrera tinha estado com o rei na assembléia em Linköping, e também com ele no banquete do bispo, mais tarde à noite. E morrera da mesma forma dolorosa que o rei, urinando sangue.

Elas ficaram discutindo sobre o assunto durante algum tempo, mas a rainha viúva Cecília Blanka chegou à conclusão de que esses pensamentos horríveis não podiam mudar a realidade. O seu filho, o rei Erik, estava inquestionavelmente morto. Seria impossível acusar um arcebispo de assassinato por mágica. Todos sabiam que se tinha passado mais de uma semana entre o banquete do bispo em Linköping e a morte em Näs. E aquele que recebia o veneno costuma­va cair no chão, gritando de dor e com o rosto ficando roxo logo depois da refeição. Aquilo que aconteceria em seguida era para deixar nas mãos de Deus. O reino entrar em guerra, o que seria pior, era uma coisa que Valerius não poderia provocar. Para evitá-la, os folkeanos estavam fortes demais.

E assim aconteceu. E nada parecia levar Cecília Blanka a mudar de idéia a respeito dos últimos tempos da sua própria vida. Ela iria para Riseberga.

Cecília Rosa conseguiu, entretanto, que ela prometesse ficar por algum tempo em Forsvik, visto que teria que passar por lá, era seu caminho, e assim as duas poderiam se despedir uma da outra com um longo adeus.

Ingrid Ylva, desta vez, foi a que menos falou das quatro. Dentro de si havia sentimentos conflituosos. Se a sua própria família sverke­riana, embora contra todas as previsões, assumisse o poder do reino, isso não seria jamais para a sua desvantagem e de seus filhos. Mas tam­bém era verdade que a família sverkeriana jamais poderia conservar em suas mãos a coroa real sem o apoio dos folkeanos. Isso pesava em um dos pratos da balança.

No outro prato estava a sua vontade ardente de saber realmente se o reino tinha um arcebispo que assassinara por envenenamento. Caso assim fosse, a satisfação de se meter a defendê-lo seria bem menor, ainda que lhe rendesse um primeiro lugar de bispo para o seu filho Karl.

A última noite das viúvas juntas tornou-se a mais curta de todas.

 

De volta para casa, em Ulvåsa, Ingrid Ylva ficou obcecada pelas refle­xões sobre o arcebispo como possível, para não dizer provável, assassi­no por envenenamento. Demorou dois dias para ela chegar à conclu­são de que não podia ficar quieta e sozinha, tentando chegar à verda­de pelo pensamento. Aquela sabedoria que a gente não tem não se pode obter ou, como alguns homens parecem acreditar, não se pode chegar a ela por meio de bebedeiras e de bravatas pela noite adentro. Ingrid Ylva precisava consultar as únicas pessoas em Ulvåsa que, even­tualmente, poderiam ter essa sabedoria sobre o bem e o mal na natu­reza de Deus, Jorda e Vattna, na saída para a praia.

A missão, porém, não seria fácil de empreender. Ingrid Ylva era a senhora e a mandante para todos na casa e se ela fosse perguntar como seria possível cometer um assassinato, o boato ganharia asas e se espa­lharia como o vento e, em breve, causaria muito sofrimento. E melhor não seria se ela, primeiro, explicasse a razão de querer saber, dizendo que o rei tinha morrido de tal maneira que não só ela, mas muita gente, suspeitava de uma manobra escusa.

De qualquer forma, entre essas duas hipóteses ruins ela tinha que se decidir por uma, por muito que refletisse sobre o assunto. Final­mente, resolveu descer até a praia para encontrar-se com Jorda e Vattna, que encontrou limpando um chão de cogumelos e juntando todos num único lugar.

Ingrid Ylva sentiu-se um pouco nauseada ao ver pessoas bem dis­postas trabalhando nessa repugnante forragem para animais. Nenhum ser humano comia cogumelos, a não ser em tempos passados, depois de anos de más colheitas e com a fome se alastrando pelo reino. Todos sabiam, no entanto, que os cogumelos constituíam uma forma incer­ta de se manter com vida, mesmo na pior época de fome. Na pior das hipóteses, isso poderia levar à morte e, na melhor, a pessoa se salvava, apesar de ter alguns dias de febre e diarréia.

A curiosidade conduziu, porém, Ingrid Ylva para a pergunta sobre cogumelos assim que ela encontrou um banquinho para sentar. Jorda e Vattna contaram, então, de boa vontade, como o saber a respeito de cogumelos conseguia separar o que era comida saborosa e fortalecedo­ra daquela que era ruim e mortal. Aquele cogumelo chamado de cone amarelo, com o formato de um barrete de cocheiro para a chuva, vira­do ao contrário, estava entre os mais saborosos e mais fáceis de reco­nhecer, explicaram Jorda e Vattna, exibindo uma porção deles nas mãos em concha para que Ingrid Ylva pudesse apreciar o aroma, embora esta virasse as costas, horrorizada. Os cogumelos de cone ama­relo podiam ser salteados em banha e, depois, comidos sobre o pão ou ajuntados às sopas, sendo fáceis de secar e comer no inverno. As pala­vras de Jorda tiveram comprovação quando ela apontou para um lugar no telhado de onde pendiam longas enfiadas de cogumelos a secar. Tal como os esquilos, as pessoas podiam reunir um bom suprimento de comida para o inverno, caso se aprendesse a escolher corretamente o que era bom entre as riquezas dadas por Deus e oferecidas na floresta durante os meses de verão.

Normalmente Ingrid Ylva teria muito mais paciência para conver­sar, visto gostar de aprender tudo aquilo que Jorda e Vattna, com os seus muitos conhecimentos naturais, tinham a ensinar. Mas, no momento, estava mais preocupada em esclarecer as manobras do arce­bispo assassino. Por isso mudou bruscamente de assunto e contou o motivo que a levara até ali.

O rei havia falecido e muitos à sua volta achavam que ele tinha sido envenenado. Qualquer outro motivo para a sua morte repentina era difícil de achar. Ele era um guerreiro forte e saudável, com pouco mais de trinta anos de idade e um homem que nunca tinha ficado doente. Havia homens maus que, certamente, queriam tirar a vida do rei. E a respeito desses homens não era difícil imaginar que eles podiam obter qualquer veneno, tanto no reino como no estrangeiro.

Jorda e Vattna franziram a testa, mas não tanto quanto Ingrid Ylva havia esperado, e começaram a perguntar mais detalhes em relação à morte do soberano, se ele tivera febre e evacuado como se fosse água, se o branco dos olhos tinha ficado amarelado e se, de início, vomitara. Até onde Ingrid Ylva sabia, ele tinha vomitado sim nos primeiros dias. Já no final de sua vida, as febres vieram fortes e também tinha urina­do sangue. Quando um monge tentou estancar o sangue, ele conti­nuou a sangrar, se é que isso tinha alguma coisa a ver com o caso. Essas informações deixaram as duas velhas irmãs muito pensativas e por um momento sussurrando entre si, antes que Jorda assumisse a palavra, dizendo lenta e seriamente:

— Foi ruim a senhora ter vindo até nós com essas perguntas justo no momento em que estávamos lidando com os cogumelos, e, além disso, a falar dos benefícios que esses cogumelos podem trazer para a senhora. Mas a pessoa que morre com febre e urinando sangue após uma longa luta pode muito bem ter ingerido uma boa quantidade de cogumelos venenosos.

— Quais são esses cogumelos que matam e onde é que existem? — perguntou Ingrid Ylva, intensamente curiosa.

— Eles não são tão difíceis de encontrar. Podemos sair juntas agora e até escurecer teremos encontrado pelo menos dois desses cogumelos venenosos para lhe mostrar — respondeu Vattna.

— Aqui a floresta é minha! Será que a morte cresce às portas da minha casa? — perguntou Ingrid Ylva, indignada.

— Oh, sim, minha senhora — continuou Jorda. — Aqui, na Götaland Ocidental, podemos encontrar os ramos da uva-do-monte e escolher a Morte Branca; na primavera cresce a morte nas praias com um cogumelo chamado rebento-da-primavera. Mas no meio da flo­resta cresce um musgo que é o mais traiçoeiro de todos os venenos, a que chamamos a Morte Marrom. Aquele que comer qualquer dessas três espécies está condenado, sem salvação possível.

— Como é a morte de quem comeu qualquer uma dessas três espécies? — perguntou Ingrid Ylva, tensa.

— É diferente para cada caso — respondeu Jorda calmamente. — Aquele que come o rebento-da-primavera começa a vomitar algumas horas mais tarde, tem febre e tontura, começa a falar sincopadamente e vai piorando durante dois dias, até que morre. Aquele que comeu da Morte Branca não fica doente na mesma hora, só no dia seguinte, no qual começa a evacuar com uma diarréia que nem água. Mas, depois, fica bom novamente, como se o perigo tivesse passado. Uma semana depois, começa a sentir dores no corpo, a urinar sangue, precisa se recolher à cama e morre com febre e tontura alguns dias mais tarde. A Morte Marrom é mais traiçoeira. Aquele que come o musgo não nota nada e só fica doente depois de uma semana. Então acontece como no caso da Morte Branca, com a diferença de que pára de urinar no final, a urina permanece no corpo e ele fica cheirando mal até que morre.

— Existe esse cogumelo aqui na Götaland Ocidental? — pergun­tou Ingrid Ylva com uma ansiedade difícil de esconder.

— Sim, como dissemos no início — confirmou Jorda com a mesma calma inabalável. — Aqui na Götaland Ocidental a Morte Marrom é muito comum, assim como a Morte Branca. Na Escânia e na Dinamarca existe um cogumelo do qual se morre da mesma ma­neira que na Morte Branca e do qual não sabemos o nome. Mas, aqui, basta entrar um pouco na floresta e logo encontramos as espécies branca e marrom, tão comuns elas são.

Ingrid Ylva decidiu de repente não prolongar mais a conversa que já estava ficando perigosa. Disse que tinha mais algumas coisas para fazer e que ia refletir sobre o assunto. Talvez voltasse com mais algu­mas perguntas, caso necessário. Mas tudo o que disse ali e agora deve­ria ficar entre elas, visto que qualquer boato sobre o assunto seria peri­goso para as três. Jorda e Vattna não tiveram qualquer dificuldade em concordar com isso. Elas conheciam muito bem, e melhor talvez do que ninguém, o tipo de sofrimento que poderia advir do medo das pessoas quanto à medicina natural, em combinação com as suas lín­guas soltas em uma mistura muito impetuosa. Podia terminar com a necessidade de uma fuga ou, ainda pior, na fogueira.

 

Quando Birger recebeu a mensagem da morte do rei Erik, estava em Visby, na Ilha de Götaland, no Báltico, onde tinha passado a maior parte do tempo nos últimos dois anos. A sua mãe, Ingrid Ylva, mandou-lhe uma carta, escrita com todo o cuidado e lacrada com o seu próprio selo. A mensagem chegou com um carregamento de baca­lhau da Noruega que tinha passado por Forsvik e Ulvåsa. O senhor Eskil é que recebeu a bula junto com as contas que sempre acompa­nhavam todos os carregamentos e logo mandou chamar Birger, que estava tratando de um assunto no porto. Birger seguiu apressadamen­te, subindo pelas ruas calçadas com lajes lisas da cidade, e logo entrou na câmara de contas do tio-avô. O senhor Eskil era um homem idoso, ainda que mais jovem de corpo e espírito do que, normalmente, reclamava. O seu olhar era claro, direto, alegre e estava quase sempre pronto para contar uma boa piada.

Quando Birger entrou na câmara de comércio, porém, a sua boa disposição normal tinha desaparecido e ele apenas apontou em silêncio para o rolo de pergaminho. Se alguma coisa era de tal importância para vir por escrito e selado, o mais provável era que fossem más notícias. Birger avançou, pegou o rolo da escrivaninha e verificou o selo.

— É da minha mãe — disse ele, quebrando o selo e começando a ler.

— É, eu vi que era dela — suspirou o senhor Eskil. — Alguém morreu?

— O rei — sussurrou Birger, de repente pálido à medida que cor­ria os olhos pelas linhas escritas. — Diz que o rei está morto e que deve ter sido envenenado por malfeitores... Preciso voltar para casa imediatamente.

— Logo os folkeanos vão ter que se reunir em Bjälbo e Arnäs. E todos os homens como você deverão comparecer — disse o senhor Eskil sombriamente. — É assim que tem que ser e nada podemos mudar. Mas parta amanhã, em vez de hoje à noite, assim vamos poder ter uma conversa juntos.

— Claro, nesse pequeno detalhe devo fazer como o senhor deseja — concordou Birger, pensativo, avançando em direção à lareira para destruir a mensagem da sua mãe.

Para Birger era como se a sua antiga vida caísse em cima dele, crua e inesperadamente, como o ladrão cai em cima da vítima na escuridão da noite. Ali estava ele, com as suas vestes lübeckianas, um jovem mer­cador na cidade, que nem mesmo uma espada de verdade tinha, antes um pequeno espadim, mais por vaidade do que para a luta. E ainda competia ter penas no chapéu. Ao amanhecer, quando a galera estives­se partindo para o norte, deixando o porto de Visby, ele estaria vesti­do de novo para a guerra e com o manto folkeano. As vestes do passa­do eram uma exigência tão imperativa como se ela viesse da própria Virgem Maria.

Ele pediu desculpa ao senhor Eskil, mas queria ficar sozinho e dar uma volta pela cidade uma última vez. Regressaria bem cedo para a refeição da noite. O senhor Eskil assentiu com um sinal da cabeça. Lamentava, mas entendia.

Estava-se um pouco antes da época do nascimento da Virgem Maria, que o povo, normalmente, chamava de Feira da Madre e que, pelo menos ao norte, no continente, costumava ser o momento dos primeiros sinais da chegada do outono. Na amena atmosfera marinha de Visby não se sentia o mínimo prenúncio de outono e ainda não tinha chegado a hora de usar forro de peles nas vestes.

Ele foi primeiro à igreja de Santa Maria, no centro da cidade, e acendeu algumas velas durante suas orações no sentido de que a guer­ra passasse depressa, se ela viesse a acontecer, e que a vida voltasse rápi­do a ser tranqüila como antes. Depois da guerra ele poderia regressar a Visby e reconstruir o seu sonho de novo.

Birger já estava com vinte e dois anos de idade e se sentia como homem adulto, muito longe das brincadeiras infantis que ele e Knut Holmgeirsson desfrutaram por dois anos da sua juventude. Em suas viagens os dois percorreram todas as fazendas dos grandes senhores do reino, com poucas diferenças em jogos e adversários. Ganharam mui­tas coroas de louros em ouro e prata, isto porque, entre os outros jovens, poucos se lhes podiam equiparar. Muita cerveja passara pela garganta deles e não foram poucas as vezes em que suas carnes peca­minosas tiveram as suas diversões, pelo menos antes que a maioria das viúvas de guerra tivesse tempo de arranjar novos senhores.

Também Knut Holmgeirsson se tornou, finalmente, senhor quando o seu pai o obrigou a contrair casamento com uma das suas amantes, que lhe deu à luz um filho. E com isso terminou a sua juven­tude, assim como terminaram as suas constantes viagens para partici­par de jogos e festas. Para Birger, essa interrupção foi um alívio, embora não tivesse compreendido isso de imediato. Aquele que, acima de tudo, viajava por toda parte, participando do casamento dos outros, era um preguiçoso, de muito pouca utilidade para o mundo e para si mesmo. Tal como a situação se apresentava agora, ele olhava para aquele tempo de antes, com Knut, viagens e prazeres, com certa repugnância. Nada de bom poderia advir desse tipo de vida. E, mais tarde, teve de se desculpar diante de si mesmo, dizendo que, nessa época, tinha apenas dezoito anos de idade e era fácil de ceder às tentações.

Para Forsvik ele não podia voltar nunca mais, por ter passado a vergonha que passou diante dos seus amigos mais próximos e dos seus parentes mais amados. Se tivesse ficado em casa, em Ulvåsa, a sua mãe o teria obrigado a voltar para a sala de estudos e a ficar entre os irmãos para quem a sede por estudos parecia nunca mais acabar. Quando disse que queria viajar para ver Visby e se encontrar com Eskil, o irmão do seu avô Arn, pareceu de início que essa era uma proposta razoável, a que Ingrid Ylva não podia dizer não, apesar de considerar que era mais uma tentativa para fugir dos estudos e das responsabilidades. No entanto, não contava que Eskil e Birger se dessem tão bem, a ponto de Birger pensar que poderia ficar para sempre em Visby.

No momento em que descia a rua da igreja de Santa Maria, indo na direção do porto com roupas que não demonstravam nada mais do que ser ele um jovem cidadão e mercador como qualquer outro, não pôde evitar um sorriso ao recordar como era ao chegar e como ele seria, na manhã seguinte, ao partir. Em Visby, qualquer cavaleiro de esporas de ouro e manto folkeano atraía a atenção de todos, mas não da mesma maneira como quando ele entrava cavalgando em qualquer fazenda no continente. Ali em Visby, os moradores da cidade o olha­vam e riam das suas roupas, que, de modo nenhum, os levavam a pen­sar em fidalguia e em coragem, mas antes muito mais em incapacida­de para ler, contar ou entender as coisas mais simples. Em Visby, qual­quer cavaleiro era tão respeitado quanto um camponês que viesse para vender ovos ou patos no mercado.

O senhor Eskil achou muita graça às dificuldades de Birger nos primeiros dias, mas depois tratou logo de arranjar para ele novas rou­pagens. E assim começou uma nova aventura, porque de aventura se tratava, a de fazer longas viagens pelas florestas cheias de falsos elfos.

Nos últimos anos Birger tinha feito oito viagens para Lübeck e Hamburgo, com galeras de que o senhor Eskil era dono ou em outras que transportavam seus carregamentos. Birger viu, assim, um novo mundo de riquezas se abrindo para ele e daí cresceu nele um amplo interesse por tudo o que dizia respeito ao comércio.

O senhor Eskil tinha sido um professor insistente, pois estava convencido de que a vida dos seres humanos dependia muito mais do comércio e da riqueza daí advinda do que das guerras e dos cavaleiros nos campos de batalha. Isto porque, como ele costumava dizer, a questão era saber quem cada um devia temer mais como inimigo, alguém que fosse um grande espadachim, como Birger, ou quem, como Eskil, podia comprar e pagar mil espadachins.

Havia um forte laço secreto entre Birger e o senhor Eskil na sua eterna admiração e dedicação à memória de Arn Magnusson. Era pos­sível que se achasse existir entre o senhor Eskil e o seu irmão Arn uma diferença enorme, sendo um deles um ascético cavaleiro e ardente fiel de Deus e o outro, um mercador exageradamente bem alimentado e gordo, com uma fé muito mais fundamentada nas variações dos negó­cios do que nas rezas e nas chamadas do além. Um deles tinha sido um cavaleiro imbatível no campo de batalha, e o outro, era um homem que só contrariado se afastava das suas arcas cheias de ouro e dos seus livros de contas, a não ser por causa de cerveja e carnes grelhadas.

Mas como o senhor Eskil pôde contar logo no início do tempo de Birger em Visby, ele e o seu irmão Arn tinham muito mais coisas em comum do que se poderia acreditar em função do aspecto externo dos dois, e, também, na crença em Deus. Isto porque Arn também fora um mercador inteligente e eficiente. E isso não foi assim tão estranho como parecera de início, ainda que também viesse a surpreender Eskil na época do regresso de Arn, vindo da Terra Santa. A questão, toda­via, era que os templários constituíam uma força poderosa no comér­cio no mundo inteiro, uma associação comercial igual àquela que estava crescendo no Mar Báltico, entre Lübeck, Hamburgo e Visby, além de outras cidades da área. A respeito do comércio dos templá­rios, Eskil fez muitas perguntas a Arn assim que ele viu que o irmão levava jeito para escrever os seus livros de contas e fazer cálculos quan­to ao valor das mercadorias em prata, o que poucos homens conse­guiam. Mas Arn tinha gerido o comércio entre os desertos árabes e Roma, entre o Egito e Veneza, e, como comandante de um lugar na Terra Santa chamado Gaza, tinha assumido a responsabilidade de uma frota de galeras de carga. Nesse ponto, portanto, os dois irmãos tinham muito em comum. O poder que advinha do comércio e das riquezas era uma força muito maior do que aquela baseada nas mãos bem armadas dos cavaleiros.

Esses conhecimentos totalmente novos sobre as qualidades de Arn Magnusson tiveram uma influência enorme sobre Birger. Abriram os seus olhos para uma visão nova do seu idolatrado avô. E mais do que isso. Ele descobriu uma vida nova de riqueza e de respeito na convi­vência com a pessoa do senhor Eskil, um tipo de vida que ele jamais tinha imaginado. Por isso, se transformou rapidamente no mais ativo aprendiz entre os jovens servidores na câmara de comércio de Visby.

Por isso mesmo estava bem claro aquilo que o senhor Eskil queria conversar com Birger quando chegou a hora de eles se juntarem à mesa para, inesperadamente, fazer a sua refeição de despedida. Ele ainda não tinha dito nada antes, mas agora ia falar, imaginava Birger.

Na casa do senhor Eskil e da sua esposa, Bengta Sigurdsdotter, de Sigtuna, a refeição da noite não era exatamente igual àquelas de Ulvåsa ou Bjälbo. Neste caso, a comida vinha para a mesa já cortada, em ban­dejas, e os convivas comiam pedaços ainda menores, cortados com faca e com a ajuda dos dedos. Os convivas comiam as carnes servidas na mesa pelos serviçais em pratos de latão e não havia canecos de cerveja visto que tudo se bebia em copos, tanto o vinho quanto a cerveja. A moradia era de pedra e tinha três andares. As comidas eram servidas no segundo andar, para fugirem do barulho e das correrias do pessoal da cozinha, no andar de baixo.

À mesa estavam apenas Birger e o senhor Eskil, e ambos começa­ram a comer em silêncio. Mas logo depois do segundo copo de cerve­ja, Eskil limpou a boca com um pedaço de tecido, largando na mesa a sua faca.

— Vamos rezar para que seja uma guerra curta, se é que ela vai ser necessária — começou ele sem mostrar a mínima intenção de querer rezar. — Alguém matou o rei Erik. Não sabemos quem foi, mas, cer­tamente, foi alguém que quer coroar um novo rei que melhor possa servir aos interesses do assassino. Certo?

— Claro, isso é o mais provável — concordou Birger, cautelosa­mente, pondo de lado, também, a sua faca de comer.

— Muito bem — continuou Eskil. — Esse alguém de que fala­mos não é folkeano, já que nós não temos nenhum pretendente ao trono. Se tivéssemos, nesse caso, seria você o pretendente. Você tem, pelo menos, sua mãe, que vem de uma família real, mas isso também outros têm. E não foram os erikianos que mataram o próprio rei para tentar transferir a coroa para outro erikiano. Seria como atravessar um riacho à procura de água. E, nesse caso, o pretendente deles seria Knut Holmgeirsson, se é que eu estou bem-informado, não é verdade?

— Ele e o seu pai são os que estão mais perto da coroa, do lado dos erikianos, mas matar o seu rei eles não fariam! — afirmou Birger, convicto.

— Muito bem. — Sorriu Eskil. — Esse assassino de que falamos quer pôr a coroa na cabeça de um sverkeriano, embora não possa haver muitos para escolher. O que você sabe a esse respeito?

— Na verdade, não muito — confessou Birger. — Eu nem sequer pensava que o rei Erik fosse morrer tão cedo. E muito menos que res­tasse algum pretendente entre os sverkerianos após a grande derrota que sofreram. Essas contas não conferem.

— Sem dúvida — reagiu Eskil. — Aquele último, Sverker, de que vocês cortaram a cabeça em Lena, tem um filho chamado Johan que vive na Dinamarca. É nele que você terá o seu novo soberano, pelo menos se esse assassino conseguir o que quer.

— Como é que o senhor consegue estar a par de tudo isso? — per­guntou Birger, admirado. — O senhor fica sentado aqui em Visby, longe de tudo, e sabe muito mais do que eu a respeito da luta pelo poder que se passa, no meu próprio país.

— Visby não fica assim tão longe. — Sorriu o senhor Eskil. — Pelo contrário, eu diria, sem querer atrapalhar suas idéias, meu jovem parente, que Ulvåsa, certamente, também fica bem longe. Um merca­dor vive das informações que recebe. E as galeras não transportam apenas mercadorias, mas também uma grande quantidade de boatos e informações. Se o rei Valdemar quiser taxar os mantimentos em Hamburgo ou Lübeck, eu vou saber disso muito rapidamente, pois o meu bem-estar depende de informações como essa. Se vocês lá no norte vão ter um rei que é amigo ou inimigo do rei Valdemar, eu pre­ciso saber disso também, e a tempo. Sem informações, nenhum mer­cador consegue ficar rico.

— E quem é que o senhor gostaria de ver como rei na sucessão a Erik Knutsson? — perguntou Birger, pensativo.

— Ninguém em especial. Para mim, podem até botar um cavalo como rei, desde que isso não seja feito após uma guerra longa — res­pondeu o senhor Eskil com um sorriso solto e bem aberto. — Uma guerra longa significa fazendas arrasadas, galeras saqueadas e a des­truição de tudo aquilo que eu construí daqui de Visby até Lödöse. Como eu disse, precisamos rezar para que a guerra não dure muito tempo e, de preferência, não aconteça guerra nenhuma. Não creia, porém, que eu lhe censuro pela decisão de viajar para essa loucura, em vez de ficar aqui comigo. Eu sei que você tem que ir. Sei tudo a respei­to de honra, de fidelidade à família e de todas as suas conseqüências. Lembre-se de que eu também sou folkeano!

— Certo — disse Birger, finalmente. —A minha honra exige que eu volte ao reino nesse momento difícil, porque sou quem eu sou. Não posso faltar.

— Não pode, eu sei, eu sei — respondeu o senhor Eskil rapida­mente. — Se agora pensarmos que a guerra terminou, ou aquele garo­to, Johan Sverkersson, se tornar rei, com muitos conselheiros ganan­ciosos à sua volta, ou vocês o mandam para o outro mundo e fazem de Knut Holmgeirsson soberano. E tudo voltará a ficar tranqüilo. E, então, vai querer voltar para mim?

— Isso eu gostaria, mas talvez não possa determinar eu mesmo o meu futuro — respondeu Birger.

— Você entende a razão da minha pergunta? — continuou o se­nhor Eskil, um pouco impaciente sempre que falava de negócios.

— Não, posso até fazer uma idéia, mas saber não sei — respondeu Birger com cautela.

— A situação é a seguinte — disse o senhor Eskil, esticando o braço com o copo de cerveja para trás, a fim de que o serviçal mais próximo o reenchesse. — Você conhece o meu filho, Torgils, de Arnäs, ele deve ter uns dez anos a mais do que você, mas vocês devem se conhecer bem, certo?

— Sim, ele é forsvikiano como eu — respondeu Birger, olhando para o lado.

— Justamente. São ambos forsvikianos! Isso significa que ele é guerreiro e que é o senhor em Arnäs de que todos nós precisamos. Repare que eu não estou brincando, nem me lamentando, de forma alguma! Arnäs é fundamental para nossa segurança e paz. E alguém com os conhecimentos necessários, um forsvikiano, se você quiser, tem que ser o senhor em Arnäs. Mas muito bem, o meu neto Knut tem apenas dez anos de idade. Por outro lado, eu já estou com seten­ta e começando a emagrecer alarmantemente nos últimos anos. Sou obrigado o tempo todo a mandar consertar minhas roupas. Eu preci­saria viver mais uns dez anos para preparar Knut, mas é mais fácil acreditar que ele vai querer ser comandante de castelo como o pai. Agora você já deve saber aonde esta conversa vai chegar, certo?

— Sim, seria uma covardia eu negar, embora sinta aflorar a minha timidez normal. No entanto, a herança dos seus bens pertence a Torgils e não deve ser compartilhada.

— A herança não significa nada. É coisa morta. A herança é feita de arcas com dinheiro e um pouco de ouro, além de algumas galeras — resmungou Eskil. — Uma câmara de comércio é muito mais do que isso. É um corpo vivo que todos os dias precisa de alimento para viver. Bengta, minha querida esposa, pode administrá-la tão bem quanto eu. Mas nós não tivemos filhos juntos e, em primeiro lugar, se dispersará uma parte da câmara pelos meus herdeiros quando eu mor­rer. Depois, pela ordem, é Bengta que morrerá, e aí vai tudo parar em Nordanskog e a organização morre também. No entanto, eu não quero que a organização morra, nem Bengta quer isso também. Portanto, eu lhe peço para que seja o continuador da minha obra. Você tem inclinação para o trabalho aqui e do seu interesse não há como duvidar.

— Aquilo que o senhor quer me dar é grande demais para mim, nem posso aceitar — respondeu Birger em voz baixa.

— Eu não vou lhe dar nada, só peço para salvar a minha câmara de comércio.

— Isso eu não poderei fazer, se tudo tiver que ser vendido para que cada herdeiro receba a sua parte.

— Ainda em minha vida, você vai receber uma parte suficiente­mente grande da câmara para poder administrá-la. Podemos ir até a prefeitura da cidade e botar isso preto no branco amanhã mesmo!

— Mas eu preciso primeiro voltar ao continente e sobreviver à guerra — respondeu Birger, recuando.

O senhor Eskil ainda insistiu para que recebesse um compromis­so mais definitivo da parte de Birger, mas teve que desistir. Diante de uma guerra, todos os pensamentos a respeito do futuro praticamente não faziam sentido, assim como não faziam sentido quaisquer pro­messas e compromissos.

 

Ao olhar da popa da galera de carga, Birger, agasalhado com o seu manto folkeano forrado de peles e com o vento batendo forte nos seus cabelos ruivos, viu os muros da cidade de Visby e a torre da igreja desaparecerem no sul. E era como se tivesse acordado de um sonho. Visby fora um sonho sim, de uma outra vida, longe dos torneios da juventude, de vinganças de sangue e de bebedeiras monstruosas. Visby era a vida futura da humanidade na paz e na riqueza, onde todos podiam comer bem e onde as bases de todos os conhecimentos cresciam cada vez que novos barcos aportavam à cidade para descarre­gar e carregar. Aquilo que chegava das terras do sul fazia mais bem do que mal. Na realidade, Birger sempre havia sabido disso ao crescer em Forsvik, onde muita coisa se misturava, do norte e do sul, tornando-se uma espécie de oásis de conhecimentos e de trabalhos em uma terra árida. Ele não sabia ao certo o que era um oásis, mas essa era a palavra que todos usavam para descrever Forsvik.

Com Visby acontecia o mesmo, embora em maiores proporções. Visby era uma cidade que, comparativamente, fazia com que Skara e Linköping parecessem pequenas aldeias sujas. Visby era como Hamburgo e Lübeck, lugares aonde chegavam viajantes e mercadorias de todas as partes do mundo.

Em Visby, Birger pôde usar muito o idioma da Igreja, pois um de cada dois habitantes da cidade não entendia a língua popular dos nór­dicos. Por meio das suas viagens para Hamburgo e Lübeck ele come­çou a praticar também a língua saxônica, que chegou a dominar o suficiente para pelo menos realizar os negócios mais simples no porto sem ter que recorrer ao latim. Para o mercador em Visby era necessá­rio esse conhecimento, isto porque a língua saxônica era também a mais usada de todas. Podiam passar vários dias sem falar uma única palavra na língua nórdica, a não ser na refeição da noite com o senhor Eskil e a sua esposa, Bengta, mas acontecia também, cada vez com mais freqüência, que eles continuavam a falar na língua saxônica por uma questão de inércia, ao voltar para casa, após os trabalhos do dia, na sala de contas ou nos depósitos.

O comércio era como sangue que corria nas veias do corpo e Visby o coração para as duas províncias dos gotas e a Svealand, pensa­va Birger. Por isso, aquilo que acontecia em Visby era muito maior do que o que acontecia em Bjälbo ou Skara, ainda que nenhum dos seus parentes pudesse entender.

E agora estava ele em uma galera que seguia lentamente, por causa da sua pesada carga de folhas de aço para serem transformadas em espadas, em grande parte com destino a Forsvik, onde seriam pro­duzidas, afiadas e vendidas, dando bom lucro para os senhores e cam­poneses ricos do país. Ele próprio se sentia como uma parte da carga, tão inerte quanto esse aço. Estava sem vontade própria. Se os folkea­nos entrassem na guerra, a sua posição na família exigiria que ele caval­gasse na primeira linha. Era o filho de Magnus Månesköld e neto de Arn Magnusson, portanto, se não aderisse ao lado dos parentes neste momento difícil, isso seria um sinal indisfarçável de desunião ou de desavença na família. E se alguém entrasse em guerra contra os folkea­nos para tomar o trono, Birger seria um dos primeiros que o inimigo tentaria abater.

Assim, estúpida era a guerra. Mas também impossível de evitá-la.

Birger foi até o centro da galera e desceu ao porão de carga mais largo, dedicando-se por alguns momentos a Ibrahim, que agora tinha se tornado um garanhão adulto, poderoso e, em breve, no máximo da sua força. De qualquer forma, algo separava Birger dos jovens e dos velhos mercadores de Visby, algo que ele não abria mão, a despeito das muitas roupas sulistas que lhe pusessem em cima dos ombros. Um cavaleiro ele seria para todo o sempre. Todas as manhãs ele saía para uma longa cavalgada fora dos muros, passando rápido pelos domínios dos camponeses que aravam as terras perto da cidade. Também os camponeses viviam bem na Ilha de Götaland, podendo vender as suas mercadorias em troca de moedas de prata, finas como casca de ovo, tilintando na mão, ou por mercadorias diversas, como couro de boi, um belo cavalo ou um boi possante.

Birger ficou conversando com Ibrahim, dizendo que as cavalgadas que os dois tinham pela frente talvez não fossem tão pacíficas como nas terras dos gotlandenses e que a vida de ambos iria depender muito da maneira como os dois se entendessem e se ajudassem um ao outro nos tempos que estavam por vir. Ibrahim relinchou amigavelmente e afagou-o com o focinho em sinal de consolo e de confiança.

A viagem para Söderköping e, posteriormente, para Ulvåsa, foi tranqüila e até monótona. O tempo estava bom, ainda faltando muito para as tempestades do outono.

 

O arcebispo Valerius visitou a fazenda de Ulvhilde Emundsdotter em Ulvsheim, para onde convocou também Ingrid Ylva. E ele tinha boas razões para marcar esse encontro. As duas eram conhecidas não ape­nas por fazerem parte do grupo das viúvas em Näs, no tempo do abençoado rei Erik. Elas estavam entre as sverkerianas mais graduadas do reino, tendo Ingrid Ylva, inclusive, laços de família com o falecido soberano. Além disso, eram viúvas de dois folkeanos e mães de filhos folkeanos. Se o arcebispo Valerius queria obter apoio para as suas idéias de colocar um novo sverkeriano no trono, ele não poderia encontrar muitos homens no reino que fossem mais importantes para a sua causa. Mas, se ele esperava que a negociação iria ser fácil de rea­lizar, habituado como estava a ser reverenciado por todos diante da cruz de arcebispo pendurada no seu pescoço, nisso ele estava redonda­mente enganado.

Ingrid Ylva chegou a cavalo, com uma expressão severa no rosto e uma escolta de cavaleiros folkeanos em número maior que a do pró­prio arcebispo. Isso não se tratava de boas maneiras e até ia contra a lei real. Os líderes da guarda do arcebispo chegaram a falar que os cavalei­ros folkeanos não eram quaisquer guardas da fazenda, mas cavaleiros forsvikianos aguerridos. Aqueles que chegaram nesse séquito dificil­mente se poderia dizer que estavam com boas intenções.

Valerius, porém, era um homem astuto e achou que, no momen­to, tratava-se de avançar com persuasão gentil e não com palavras for­tes a respeito de bagatelas. Quando foi cumprimentar Ingrid Ylva no meio da praça, ele não só se espantou diante de tanta beleza como, também, diante da força dos seus faiscantes olhos negros. Se começas­se a reclamar em relação ao elevado número de cavaleiros do seu séquito, isso certamente não conduziria a nenhum avanço nas conver­sações. O mais provável era que ela sacudisse a cabeça, se despedisse e voltasse para casa com todos os seus cavaleiros. Como todos os seus planos iriam, assim, por água abaixo, ele preferiu nem sequer comen­tar a falta de boas maneiras da parte dela quando a recebeu e a aben­çoou, uma coisa que ela quase considerou com desprezo.

Todavia, não terminaram por aí as surpresas desagradáveis para o arcebispo Valerius. Isto porque, quando Ulvhilde Emundsdotter o convidou e a Ingrid Ylva para entrarem na sala dos visitantes, não havia nem comida nem bebidas em cima da mesa. Foi trazido um bar­ril de cerveja, que fora colocado junto de Ulvhilde e Ingrid Ylva, sen­tadas em um dos lados da mesa longa da sala e não à mesa de honra. Elas pretendiam que o arcebispo e os seus acompanhantes se sentas­sem do outro lado da mesa, para ficarem frente a frente. Ainda que não se pudesse dizer ser essa uma maneira incorreta de se sentar, isso era de qualquer modo uma coisa jamais vista antes. Além disso, as duas mulheres ficaram olhando para ele com severidade, não demons­trando o mínimo sinal de medo.

— Neste momento consideramos que o senhor, arcebispo Valerius, é nosso convidado — começou por dizer Ulvhilde Emunds­dotter. — O senhor está na minha casa, na qual faço como eu quiser. O senhor pediu para falar conosco e nisso fizemos-lhe a vontade. Mas nenhuma de nós quer comer na mesma mesa com o senhor, já que isso poderá ser perigoso para a saúde.

O insulto nas palavras de boas-vindas de Ulvhilde Emundsdotter dirigidas ao arcebispo do reino foi maior do que qualquer outro de que se tivesse ouvido falar. O arcebispo e o seu chanceler, assim como o jovem bispo Brun, de Växjö, perderam o fôlego e ficaram tentando respirar como peixes fora da água antes que qualquer deles fizesse menção de querer responder.

— As suas palavras foram inamistosas — disse Valerius finalmen­te, sibilando e com uma expressão dura. — Por menos do que isso a penalidade seria a excomunhão.

— Essas palavras, nesse caso, são também minhas — interveio Ingrid Ylva, rápido, antes que o arcebispo pudesse continuar sua ameaça. — Excomungue nós duas, levante-se da mesa e saia já, se lhe aprouver. Mas pergunte a si mesmo também o que ganharia com isso. E pergunte a si mesmo, ainda, quem é que respeitaria e aceitaria uma excomunhão como essa. Certamente nenhum daqueles nossos paren­tes sverkerianos de quem o senhor quer fazer rei.

Essas palavras fizeram com que o arcebispo pensasse duas vezes antes de responder. Ingrid Ylva observava-o duramente, sem pestane­jar. O que ela via, em sua opinião, era um velho sujo e malcheiroso, vestindo uma bata pequena e branca, bordada a ouro, cujo valor altís­simo não encobria a sua baixeza. Mas era com esse homem, conside­rou ela longamente, mais tarde, que ela devia se reconciliar, e isso não seria fácil.

— Um pouco de cerveja, pelo menos, as conceituadas senhoras podiam nos oferecer? — perguntou o arcebispo, bajuladoramente, depois de pensar e, assim, resolver não insistir em mais ameaças. Se transformasse essas duas viúvas em inimigas, tudo aquilo que havia pensado ficaria impossível de realizar.

— A cerveja podemos oferecer, mas servida por nossas mãos, dire­tamente do barril que está aqui ao meu lado — respondeu Ulvhilde suavemente, fazendo sinal para alguns serviçais que chegaram com uma bandeja de madeira e canecos. Em silêncio, ela ofereceu a cerve­ja primeiro ao arcebispo e, depois, pela ordem, aos seus acompanhan­tes. Finalmente, serviu vinho de uma jarra em dois copos com frisos azuis que colocou na sua frente e de Ingrid Ylva.

Todos beberam, fazendo um brinde em silêncio. Em seguida, Ingrid Ylva virou-se abruptamente na direção do arcebispo, pedindo-lhe para, sem rodeios, dizer por que viera.

Valerius ficou assim, mais uma vez, contra a parede, uma situação para ele inesperada. Pensara que tudo ocorreria da maneira habitual em visitas dessa natureza. Na primeira noite não se falaria em nada de especial, antes se entregando às bênçãos da mesa. Na segunda noite, entrava-se na questão que realmente importava, e, finalmente, estabelecia-se o acordo na terceira noite, antes do banquete, para que tudo fosse escrito e sacramentado com selos, se o assunto o exigisse, antes da festa de despedida. Avançando, assim, lenta e cautelosamen­te, era possível avaliar o estado de espírito do adversário, falar em rodeios, sem dizer claramente o que se queria, para finalmente enten­der aonde a outra parte poderia chegar. Só então era chegada a hora de apresentar as suas condições.

Mas, neste caso, essas duas senhoras impertinentes estavam ali sentadas, num sóbrio entardecer, querendo que tudo fosse dito de imediato. Não era confortável. Que ele não poderia mandar na casa de Ulvhilde Emundsdotter como se fosse qualquer outro homem do reino já tinha percebido.

— Se o senhor não tem nada a dizer, arcebispo, então eu fiz essa viagem em vão — disse Ingrid Ylva com dureza na voz justo no momento em que ele pensava abrir a boca. — Diga logo o que preten­de, senão eu voltarei logo para Ulvåsa!

— A questão, portanto, é saber quem será o nosso rei — começou por dizer o arcebispo, atormentado. — Na atual situação, não existe nenhum filho homem na família erikiana...

— Quem sabe se a rainha Rikissa não vai dar à luz um filho agora que ela está em segurança na Dinamarca? — perguntou Ingrid Ylva, com um tom de tolerância na voz, mas dureza nos olhos.

— Mas no momento em que o rei Erik morreu, não havia, de fato, nenhum filho — reagiu Valerius, em tom sério e refletido, como se as suas palavras tivessem o maior significado. — E nesse momento já existia e existe Johan Sverkersson, o garoto que, assim, tem o maior direito hereditário à coroa. Por isso, segundo o julgamento da Igreja, o jovem Johan é aquele que queremos coroar como o próximo sobe­rano do reino.

E assim tudo foi dito logo na primeira noite. As duas viúvas do outro lado da mesa pareciam a Valerius não mais como seres huma­nos, mas como serpentes, visto que não responderam de pronto, antes apenas ficaram olhando fixamente para ele, com os rostos sem expres­são, como se ainda estivessem esperando e ele não tivesse terminado de falar.

O que, na realidade, ele fez. Porque, agora, era chegada a hora de fixar o preço do acordo. As duas poderosas mulheres sverkerianas tinham que dar apoio à Igreja. E com a sua forte influência na família folkeana, esse apoio seria decisivo no caminho de Johan para a coroa. Se nem mesmo Ulvhilde Emundsdotter e Ingrid Ylva quisessem ver o seu próprio parente, Johan, no trono, então toda a questão talvez esti­vesse perdida.

Aquilo que os erikianos pensavam não era difícil de imaginar. Eles queriam que um erikiano fosse declarado rei, ou a criança ainda por nascer na Dinamarca, se fosse um menino, ou Holmgeir, ou ainda o filho deste, Knut.

E se os folkeanos continuassem firmes na sua ligação com os eri­kianos, todo o poder no mundo estaria do mesmo lado no reino. Então a esperança para Johan teria acabado e, assim, também, a espe­rança do próprio arcebispo Valerius.

— A questão do preço, portanto — disse o arcebispo Valerius, continuando. — As senhoras querem saber o preço da sua adesão? Muito bem, deixem que eu mencione primeiro que a unidade do reino e a escolha do rei sem guerra é a melhor coisa que poderá acon­tecer para todos nós. A unidade poderá prevalecer se as duas apoiarem a Igreja na nossa intenção de fazer justiça, de modo que Johan possa ser o nosso próximo rei. Não vão perder nenhum dos seus filhos na guerra, nenhuma nuvem negra vai pairar sobre o nosso reino. Não será esse preço suficiente? Como duas boas cristãs, vocês devem almejar a paz acima de tudo, certo?

— Boas mulheres não somos, com certeza — respondeu Ingrid Ylva, em tom duro —, visto que mal o senhor se sentou na nossa casa já nos ameaçava com a excomunhão.

— E a paz também tem um preço, até para o senhor, arcebispo, e é sobre isso que queremos ouvir agora, e não amanhã — continuou Ulvhilde, no mesmo tom de voz ríspido de Ingrid Ylva.

Valerius chegou à conclusão de que essas duas mulheres poderosas deviam estar dominadas pelo diabo e que tal união devia extinguir-se, de preferência, pelo fogo, quanto mais cedo, melhor. Mas sobre isso não se podia dizer nada, achou ele, sem dúvida. Isso porque se tocas­se em um só fio de cabelo dessas duas mulheres, nem ele estaria certo de continuar com vida, por muito que fosse arcebispo. E que as duas serpentes sabiam, exatamente, qual era o seu valor, isso já se sabia desde o início da conversa. Agora era mais fácil de entender toda a tagarelice sobre o grupo das viúvas em Näs, onde as duas Cecílias tam­bém não seriam ingênuas em negociações sobre poder.

— Vamos recomeçar de onde ficamos — murmurou o arcebispo, algo inseguro. — Eu falava de paz no reino, o melhor presente que podemos desejar para todos nós. A esse respeito eu não faço conces­sões. Nós precisamos conseguir a união entre a família sverkeriana, onde vocês nasceram, e entre folkeanos e erikianos. Aqueles que estão menos dispostos a nos apoiar certamente são os erikianos, o que se explica por si mesmo. Portanto, os folkeanos e os sverkerianos devem preservar a nossa paz É aí que as senhoras ficam no meio, nascidas como sverkerianas e com filhos folkeanos. Digam-me, então, como devemos nos unir e conseguir, assim, alcançar nossos desejos?

— A espada do jarl deve ficar com um folkeano, visto que assim tem sido desde os dias de Birger Brosa — disse Ulvhilde, em voz baixa, lentamente, como se as suas palavras não tivessem importância nenhuma.

— Nesse aspecto eu tenho a mesma opinião — concordou o arce­bispo, um pouco satisfeito com o caminho da conversa. — Nós vamos ter, no entanto, algumas dificuldades com o jarl Folke. Ele é meu inimigo e inimigo da Igreja. A questão é saber se podemos con­vencer Karl Birgersson, o Surdo, a assumir a posição de jarl.

— Isso temos certeza de conseguir — respondeu Ingrid Ylva, com um suspiro. — Poucos são os velhinhos que recusam essa glória. E Karl, o Surdo, é o líder na família folkeana e o senhor de Bjälbo. Mas assim teria que ser com ou sem o meu apoio e o de Ulvhilde. Portanto, agora, queremos ouvir de verdade o que o senhor tem para nos ofere­cer, arcebispo.

Valerius ficou inquieto e olhou para seus acompanhantes que não ousavam enfrentar o seu olhar e que, nesse momento, não lhe podiam dar qualquer apoio.

— Talvez seja melhor se nós três continuarmos a nossa conversa a sós — disse, então, Ulvhilde, num tom de voz o mais amigável possí­vel, tal como se ela estivesse querendo sossegar uma criança. Tanto ela como Ingrid Ylva haviam notado os olhares do arcebispo dirigidos para o lado, para os seus conselheiros.

— Talvez você tenha razão nesse caso — sussurrou o arcebispo, com o olhar fixado no tampo da mesa à sua frente. Ele pensou um pouco, antes de ordenar que os seus acompanhantes se retirassem, o que eles fizeram, hesitantes, olhando um para outro, mas tendo que obedecer-lhe. Ulvhilde, então, fez sinal para os seus serviçais também se retirarem, após trazerem mais vinho e cerveja.

— Muito bem, talvez agora possamos ir direto ao assunto, sem mais rodeios — disse Ingrid Ylva quando ficaram a sós. — O filho da minha querida Ulvhilde, Emund Jonsson, é um dos poucos cavaleiros já armados do reino.

— Sim, eu o conheço de nome — afirmou o arcebispo. — E daí?

— Quero um lugar para ele entre os conselheiros do reino — res­pondeu Ulvhilde suavemente, como se não estivesse pedindo nada de especial.

— Ele é jovem, talvez jovem demais, certo? — objetou o arcebis­po, hesitante.

— Ele já tem mais de trinta anos, a idade de maior força como cavaleiro, e, de qualquer forma, o seu lugar no conselho é o meu preço! — respondeu Ulvhilde, pela primeira vez, com um tom de voz elevado.

— Tudo bem, estou de acordo — concordou o arcebispo, afirma­tivamente. — E você, Ingrid Ylva, qual é a sua exigência?

— O lugar no bispado de Linköping está vago. O meu filho Karl é um homem da Igreja e um clérigo de muitos estudos. Em primeiro lugar, eu exijo essa posição para ele. E, em segundo lugar, quero que ele seja nomeado chanceler do rei.

— Essa não foi uma exigência nada tímida! — exclamou o arce­bispo, espantado.

— Também não era a minha intenção apresentar exigências tími­das em se tratando de você comprar nosso apoio — respondeu Ingrid Ylva, rápido. — E você ainda não ouviu nada. O meu outro filho,

Eskil, deverá receber o título de homem de leis e a respectiva fazenda, perto de Skara, e também um lugar no conselho do rei.

Valerius perdeu a fala e ficou sentado, em silêncio, por longo tempo, enquanto as duas mulheres, do outro lado da mesa, o observa­vam sem dar o mínimo sinal do que estavam pensando. Ele conside­rou que tinha de manter a cabeça fria, ainda que o seu primeiro pen­samento fosse o de repreender com palavras duras as duas viúvas por sua nada tímida fome de poder. Mas, como já se tinha visto, elas não aceitavam facilmente a repreensão. E terminar a reunião com palavras duras e em desacordo tornaria a indicação do jovem Johan Sverkers­son para soberano muito difícil. As viúvas sabiam muito bem qual era o seu valor no negócio e na sua capacidade de entendimento não havia nada de errado. E isso o enchia de uma indescritível irritação, saber que essas duas filhas de Satã o mantinham amarrado e, atrevidamen­te, mostravam que sabiam disso.

— A fazenda do homem de leis, perto de Skara, pertence ao rol de propriedades do rei e não pode ser cedida — falou ele, finalmente, tentando com isso mostrar que mais lamentava a existência dessa bar­reira do que sentia vontade de negar essa concessão a Ingrid Ylva.

— O homem de leis Ejvind está muito doente e, em breve, não estará mais entre nós — respondeu Ingrid Ylva, sem a mínima hesita­ção. — E no que diz respeito às propriedades do rei, acho que não deve se preocupar muito com isso, arcebispo. Se você for bem-sucedido na sua intenção de colocar o garoto Johan no trono, ele vai ter que pagar uma nota bastante elevada para você e para a Igreja. Nenhum de nós vai sair dessa situação sem nada, mas o seu lote vai ser maior do que o meu.

Ela mordeu mais uma vez como uma serpente, pensou Valerius, tão rápida e tão venenosa quanto antes. Dessa demonstração havia apenas uma conclusão a tirar. Ele não podia dar-se ao luxo de tê-la como inimiga.

— Muito bem — reagiu ele, pensativo, acenando com a cabeça como se não tivesse notado a atrevida menção de Ingrid Ylva às van­tagens que ele receberia ao colocar a coroa na cabeça do garoto sverke­riano. — Nesse caso, eu tenho um acordo com vocês duas, senhoras sverkerianas de bom trato. Se Johan, o jovem, com a ajuda de Deus, se tornar rei, e as duas me apoiarem nesse sentido, o filho de Ulvhilde se tornará conselheiro do rei. E os seus dois filhos, Ingrid Ylva, irão receber o posto de bispo em Linköping e a fazenda do homem de leis perto de Skara.

— E Karl será nomeado chanceler do rei e ambos vão ter lugar no conselho do rei! — acrescentou Ingrid Ylva, furiosa.

— Está certo. Então estamos de acordo. Podemos dizer, então, que nós três temos um acordo, o qual juramos cumprir fielmente e que conservaremos no mais completo segredo, certo?

— E esse acordo vamos agora colocar no pergaminho, ao qual aporemos os nossos selos — disse Ulvhilde, sem pestanejar.

Mais uma vez e justamente no momento em que acreditava ter terminado essa penosa e difícil negociação, o arcebispo ficou paralisa­do. Estava claro que as duas tinham preparado essa conversa com todo o cuidado, talvez até tivessem acordado sobre quem devia dizer o quê. Além do mais, elas ainda tinham a incompreensível insolência de não aceitar a palavra de um arcebispo como garantia.

— Um pergaminho desses seria um perigo para nós três se fosse parar nas mãos erradas — respondeu ele finalmente.

— Nem nas corretas! — reagiu Ingrid Ylva. — A sua palavra, porém, não vale muito para mim, arcebispo. E isso eu digo para você só porque estamos aqui sozinhos. Se os seus homens estivessem aqui, essa sinceridade não teria vez. De qualquer forma, tanto Ulvhilde quanto eu exigimos que nosso acordo seja feito por escrito e autenti­cado com os nossos selos.

— E que utilidade teria para vocês duas esse acordo por escrito? Isso é uma coisa que não entendo — disse o arcebispo, ainda em dúvi­da. — Vocês estão traindo os seus parentes folkeanos, estão agindo pelas costas dos seus próprios filhos e seus parentes erikianos. Essas palavras por escrito seriam tão perigosas para vocês quanto para mim; portanto, por que devemos nos expor?

— Pela simples razão de que nós duas não acreditamos na sua palavra, nem mesmo no seu juramento — reagiu Ulvhilde. — E nem por isso deixamos de concordar com você que melhor seria que essas palavras escritas jamais sejam lidas por outras pessoas, além dos nos­sos, ou do seu chanceler, que é quem vai ter que escrevê-las, já que ouvimos dizer que você mesmo é ruim nessa arte. Mas pense agora que tudo acontecerá como você quer. Johan Sverkersson será coroado rei, mas um soberano fraco nas mãos violentas de muitos, e muito mais, nas suas. Você cumpre a sua palavra e os nossos filhos receberão o que foi acordado. Aquela de nós que tiver o acordo por escrito em suas mãos poderá queimá-lo sem problemas e ninguém vai sofrer nada.

— Mas se por algum motivo, sobre o qual apenas Deus pode dis­por, as coisas acontecessem de maneira diferente daquela que nós acordamos? — perguntou Valerius com uma expressão de astúcia.

— Nesse caso, você não terá apenas nos enganado — continuou Ulvhilde. — Haverá também um conselho do rei sem folkeanos, tal­vez apenas clérigos e sverkerianos fracos que também vão dançar con­forme a sua música. Os nossos parentes folkeanos vão definhar procu­rando por uma razão para partir e segui-lo com lanças e espadas. Nós mostraremos para eles, folkeanos, as suas promessas e o seu selo. Contra quem você acha que eles vão assestar sua raiva e as pontas das suas lanças? Contra duas viúvas que, por pura incompreensão, tenta­ram cuidar do futuro dos seus filhos? Ou contra um arcebispo que, conscientemente, falta com a sua palavra? Agora você deve entender melhor por que queremos que o acordo seja feito por escrito.

As palavras dela eram duras, mas a voz, clara e suave. Valerius, para sua grande surpresa, sentia-se divertido e alegre, em vez de con­trariado e, na pior das hipóteses, controladamente furioso. Ele nunca tinha tido as mulheres em alta consideração, e muito menos acredita­do que um dia teria de negociar com duas que, no que diziam, havia, de fato, muita consistência. Enfim, o que estava acontecendo parecia, realmente, um milagre do Senhor.

Deus, através do Seu Espírito, tinha inspirado essas mulheres, de modo que ambas falavam coisas claramente compreensíveis e poucos seriam os homens que pudessem expor seus pensamentos com tal cla­reza. Com isso Deus queria mostrar que perdoava um grande pecador e um servidor deficiente, que Ele via o coração do Seu servidor e entendia os motivos bons e nobres que estavam por trás de certos atos, atos esses que, aos olhos de pessoas de pouca visão, dificilmente pode­riam ser perdoados. Deus tinha mostrado o rosto sorridente para o Seu pobre arcebispo Valerius e, com isso, dado a entender que o per­dão dos pecadores estava próximo e, em breve, Valerius poderia, após a sua morte, sentar-se ao Seu lado direito. Essa mensagem celestial não podia ser interpretada de outra maneira e devia ser obedecida nos menores detalhes.

— Eu abençôo as duas por sua inteligência e consideração — disse ele, emocionado quase até as lágrimas. — Eu as abençôo e lhes perdôo por seus pecados. E logo vamos encomendar o que desejam! Mas, depois disso, será que podemos comer juntos, num ambiente de amizade, como é de hábito em visitas do vosso arcebispo?

Pela primeira vez as duas viúvas ficaram um pouco desconcertadas e trocaram um olhar de interrogação antes de Ingrid Ylva retomar a palavra:

— Eu não faço muita questão de suas bênçãos, como sabe — começou ela, num tom de voz que soava como uma estranha mistura de desprezo e insegurança. — Mas vamos escrever agora o nosso acor­do como foi dito. Depois disso alguns dos meus homens vão embora com o pergaminho antes que seja queimado ou desapareça. Isso feito, iremos comer e beber com você como deseja.

Valerius irrompeu em altos louvores ao Senhor, que costurou essas conversações com tanta sabedoria, e, então, vieram as lágrimas de ver­dade.

Ulvhilde olhou interrogativamente para Ingrid Ylva, que também parecia não entender aonde aquele assassino hipócrita queria chegar. Elas quase riram diante daquele arcebispo que já tinha se ajoelhado e rezava, de mãos juntas, dirigidas para o céu. Elas abanaram a cabeça, encolheram os ombros e brindaram com vinho uma à outra.

 

Assim que pôs os pés em terra, no píer de Ulvåsa, Birger mal teve tempo de colocar Ibrahim na baia, logo foi chamado pela mãe e seus irmãos para conversar na sala da casa-grande. Não houve uma grande recepção para Birger, que tinha estado dois anos fora de casa. Ingrid Ylva desculpou-se, dizendo que havia coisas importantes e urgentes para falar. Dentro de dois dias haveria uma reunião familiar em Bjälbo, onde todas as famílias folkeanas mais poderosas estariam pre­sentes e, por isso, era preciso que o homem de Ulvåsa soubesse, exata­mente, aquilo que teria a dizer.

Ingrid Ylva decidiu que o representante de Ulvåsa seria Birger. Sobre isso Birger falou com todos os irmãos. Fora uma decisão que tinha deixado um gosto amargo na boca de Eskil, isso todos percebe­ram. Eskil já se sentia como homem de leis, tinha barba longa e fala­va, andando de um lado para outro, com uma voz de tom mais grave do que, realmente, era para ele natural. Mas mesmo que ele sentisse que era o melhor entre os irmãos para falar em nome da família, isso não significava nada para Ingrid Ylva, que disse saber muitíssimo melhor o que convinha.

Ela falou dura e muito claramente para os filhos e mostrou para eles, sem rodeios, o acordo que ela e Ulvhilde Emundsdotter tinham feito por escrito com o arcebispo. Como todos os irmãos eram bons de leitura e conheciam bem a língua da Igreja, logo descobriram, divertidos, alguns pequenos erros cometidos pelo chanceler do arce­bispo. No entanto, esses erros em nada alteravam o conteúdo do documento.

Depois todos refletiram sobre esse acordo. Eskil ficou sério e começou a andar pela sala, dizendo que deveriam ter pensado bem nessa determinação de ajudar o arcebispo a colocar um sverkeriano no trono. Os folkeanos estavam ligados aos erikianos. Os sverkerianos eram inimigos dos folkeanos e, por esse motivo, muita gente tinha sangrado até morrer em Gestilren e Lena.

Ingrid Ylva deixou que ele falasse por algum tempo, até que se cansou e, rispidamente, pediu para ele calar a boca, se sentar e escutar. Depois, diante dos filhos cada vez mais espantados, ela explicou como havia articulado o plano.

Nesse momento Birger sentiu-se inundado por um amor muito mais caloroso pela mãe do que jamais se lembrava de ter sentido. Para ele, aquilo que ela disse foi limpo e claro como água, embora os irmãos tivessem mais dificuldade em entender. Ele era mesmo filho dela, no sentido de seguir uma linha de pensamento e de reflexão muito mais próxima da dela do que do seu pai, Magnus.

Ingrid Ylva não foi muito prolixa no que tinha a explicar. Estava claro que todos iriam trabalhar para manter os erikianos no poder e no trono ainda por algum tempo. Ainda era cedo demais para colocar um folkeano como pretendente ao trono. Mas o certo era continuar mantendo o poder, independentemente de ser um erikiano a assumir a coroa, o que era o mais provável, ou um sverkeriano na pessoa de um garoto de apenas doze anos, Johan Sverkersson, isto se, na pior das hipóteses, o arcebispo e assassino Valerius levasse as suas idéias adian­te com orações e intrigas.

Se a rainha Rikissa desse à luz um filho no seu exílio na Dinamarca, caso se pudesse falar de exílio em seu próprio país de nas­cimento, então o rapaz seria pretendente ao trono por direito de herança. Isso todos poderiam entender.

Se ela desse à luz mais uma vez uma menina, então seria Holmgeir, pai de Knut, aquele que os erikianos apresentariam como pretendente. Isso se tornaria questionável, visto que o grupo de bispos iria argumentar que Johan era filho de um rei, não podendo se dizer o mesmo de Holmgeir, embora este fosse neto de um soberano, o aben­çoado santo Erik.

O grupo dos bispos não tinha cavaleiros nem espadachins a seu serviço, mas tinham um direito, o de, em nome de Deus, coroar um rei, e esse era um poder que não podia ser subestimado.

A questão decisiva para Ingrid Ylva era saber que, independente­mente do homem ou da criança que assumisse a coroa, os seus filhos teriam lugar garantido no poder para o qual se prepararam.

O mais provável era que o acordo escrito e assinado com o trai­çoeiro Valerius jamais tivesse que ser usado, visto que seria um erikia­no a ocupar o trono. Mas se Valerius conseguisse mais uma vez coroar um sverkeriano, então aquilo que foi combinado garantiria uma van­tagem. Mesmo que acontecesse o pior, os filhos de Ingrid Ylva teriam o poder para o qual foram preparados, uma meta pela qual ela tinha vivido, com empenho, desde que se tornara viúva. Foi assim que ela pensou.

Birger estava sentado, quieto e sorrindo para sua mãe, cheio de admiração. Os seus irmãos tinham pequenas objeções a fazer, embora com grandes palavras, como honra, juramentos, ancestrais, honra de família e semelhantes.

Todavia, Ingrid Ylva esperou até a tarde do dia seguinte para re­velar a Birger todos os seus planos em relação a ele. De repente, como uma pancada, ele viu o caminho da sua vida tomar um novo rumo, tal qual a galera lübeckiana, bem carregada, se fazia ao vento para cambar e mudar de curso.

Ela puxou-o de lado e levou-o para a sua sala de tecelagem onde se sentou e ficou fiando com a roca enquanto afirmava que, desse jeito, pensava melhor, desde os tempos do convento, quando tinha algum trabalho em mãos.

Assim como Karl seria bispo, independentemente de quem ganhasse a luta para conquistar a coroa do reino, e Eskil, homem de leis, lugar para o qual estava bem preparado, também Birger não devia sequer duvidar do futuro que o aguardava. Ingrid Ylva tinha planos ainda maiores para ele, disse ela, como se isso fosse a coisa mais certa e mais clara do mundo. E o início da nova carreira, como um cometa cruzando o céu, iria acontecer na assembléia da família folkeana que começaria no dia seguinte, em Bjälbo.

Na assembléia da família, segundo Ingrid Ylva, dois velhotes iriam disputar o poder: Karl, o Surdo, que ficou ressentido ao ser nomeado apenas jarl da família e não do reino, e o jarl Folke, que demonstrou o seu ódio ao arcebispo Valerius tantas vezes que seria difícil ele con­servar o seu título de jarl.

Karl, o Surdo, iria advogar a indicação de Johan Sverkersson para rei. Não explicaria que, nesse caso, se tornaria jarl do reino, mas que pensaria exclusivamente no melhor para os folkeanos. Ele iria dizer, portanto, que um rei de doze anos seria um rei fraco, e à volta de um rei fraco os folkeanos seriam aqueles que, realmente, iriam dispor do poder.

Contra isso o jarl Folke iria mencionar que existia uma aliança entre folkeanos e erikianos, que o destino do reino dependia dessa alian­ça e que a honra exigia dos folkeanos que mantivessem a sua palavra.

Assim, a assembléia ficaria dividida em dois grupos de força equi­valente.

E aí chegaria o importante momento para Birger, pois ele se trans­formaria em sucessor dos dois. No que ele devia pensar antes de tudo é não se colocar definitivamente do lado de nenhum dos dois velho­tes, enquanto eles discutiam, mas, antes, devia ganhar tempo. Se ele pudesse, deveria prolongar a discussão, evitando que se avançasse para uma apressada decisão em nome de uma falsa unidade e, acima de tudo, evitando que nenhum dos dois velhotes se transformasse em seu inimigo, abrindo caminho, assim, para o seu futuro poder.

Ingrid Ylva ficou com Birger durante muito tempo como um clé­rigo dando instruções e mencionando cada palavra que devia ser dita contra cada coisa que lhe fosse dirigida. Ao final, ficaram ensaiando os dois, com ela demonstrando uma inesperada competência em imitar tanto a maneira de o velho Karl falar como a do seu meio-irmão Folke. Era como se Birger os visse à sua frente, quando ela fazia essa imitação teatral.

Quando começou a escurecer na sala, ela o levou para os seus apo­sentos em uma das casas de fora. Foi lá que ela lhe entregou uma herança especial que lhe pertencia, a espada de Arn Magnusson, que ela mandara vir de Forsvik de barco, acompanhada em segurança por quatro forsvikianos. Ela disse em poucas palavras, como se isso não estivesse pesando nem um pouco na sua consciência, que era impor­tante ele levar essa espada para a assembléia. Embora ele fosse um dos mais jovens a falar na assembléia, todos conheciam a espada de Arn Magnusson e essa visão teria um efeito muito bom em cada um dos presentes, entre os quais, provavelmente, alguns estariam inclinados a falar da pouca idade ou de outras falhas entre os jovens.

Birger colocou à volta do seu corpo o cinturão de onde pendia a espada com um movimento rápido e natural, ajustando-a à sua cintura. Depois saiu no crepúsculo para ficar sozinho. A estrela vespertina luzia forte, longe e sozinha, na abóbada celestial.

Ainda há pouco tempo ele era um mercador em roupas lübeckia­nas e os seus cabelos ainda estavam curtos. Isso talvez provocasse alguns comentários tolos no dia seguinte na assembléia. Mas agora ele sabia que jamais seria um mercador.

Olhou para a estrela vespertina, juntou as mãos e rezou para a Virgem Maria, a santa protetora do seu avô Arn, pedindo-lhe uma resposta para a grande questão de saber quais seriam as Suas intenções em relação à vida dele. Não recebeu resposta nenhuma e também não esperava que ela viesse.

 

Birger dormiu mal naquela noite. E quando a primeira claridade do amanhecer despontou, ele achou que não podia mais dormir, já que estava bem acordado, pensando e repensando como devia se compor­tar e o que deveria dizer na assembléia da família. Vestiu-se com rou­pas simples e foi primeiro falar com Ibrahim a respeito das...

 

[1] Birger Jarl, que em sueco se lê como “biriere iarle”, é o nome do personagem que ficou regis­trado na história da Suécia como o fundador do reino e da cidade de Estocolmo. (N. T. )

[2] Mjöd, lê-se mieude, é uma bebida alcoólica feita a partir do mel fermentado, misturando-se condimentos diversos, malte etc. Era uma bebida muito popular em tempos antigos na Escandinávia, principalmente entre as mulheres. (N. T. )

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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