Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LEGADO DOS TEMPLÁRIOS / Steve Berry
O LEGADO DOS TEMPLÁRIOS / Steve Berry

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Paris, França, Janeiro de 1308

Jacques de Molay desejava a morte, sabendo que a salvação nunca lhe seria proposta. Era o vigésimo segundo grão-mestre dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, uma ordem religiosa com duzentos anos de existência. Todavia, nos últimos três meses, ele, assim como cinco mil dos seus irmãos, eram prisioneiros de Filipe IV, rei de França.

- Levantai-vos - ordenou Guillaume Imbert da soleira da porta. De Molay permaneceu deitado. - Sois insolente mesmo face à morte - afirmou Imbert.

- A arrogância é tudo o que me resta.

Imbert era um homem maquiavélico, com cara de cavalo e impassível como uma estátua. Era também o grande inquisidor de França e o confessor pessoal de Filipe IV, o que significava que conhecia os segredos do rei. De Molay interrogara-se muitas vezes sobre o que alegraria a alma do dominicano, para além de lhe incutir dor. Todavia, sabia perfeitamente aquilo que o irritava.

- Não farei nada daquilo que me pedir.

- Já haveis feito bem mais do que pensais.

Era verdade e De Molay voltou a lamentar a sua fraqueza. As torturas infligidas por Imbert após as prisões de 13 de Outubro haviam sido brutais e muitos irmãos tinham já confessado os crimes de que eram acusados. De Molay estremeceu ao recordar-se das suas próprias revelações. Dissera que todos aqueles que eram admitidos na Ordem rejeitavam Jesus Cristo e cuspiam na cruz em sinal de desrespeito. Chegara mesmo a vacilar e a escrever uma carta a apelar aos irmãos que confessassem, tal como ele fizera, e um grande número deles obedecera.

Porém, há alguns dias, emissários de Sua Santidade, o papa Clemente V, tinham chegado finalmente a Paris. Clemente era conhecido por ser o fantoche de Filipe e fora por esse motivo que De Molay levara florins de ouro e doze cavalos carregados com prata para França no Verão passado. Se as coisas tomassem o pior dos rumos, esse dinheiro seria usado para comprar a boa vontade do rei. Todavia, subestimara Filipe. O rei não desejava um tributo parcial. Ambicionava sim todos os bens da Ordem. Com esse intuito, tinham sido levantadas acusações de heresia e centenas de templários foram presos num só dia. Aos emissários do papa, De Molay revelara a tortura de que fora alvo e abjurara publicamente a sua confissão, decisão que acarretaria retaliações. Por esse motivo, disse:

- Imagino que Filipe esteja neste momento preocupado que o seu papa afinal de contas tenha espinha dorsal.

- Não me parece que insultar o seu captor seja uma atitude sensata - afirmou Imbert.

- E o que seria sensato?

- Fazer o que mandamos.

- E depois que contas daria ao meu Deus?

- O vosso Deus está à espera que vós e todos os outros Cavaleiros Templários respondais. - Imbert falava na sua habitual voz metálica e desprovida de quaisquer emoções.

De Molay não tinha nenhum desejo de continuar a argumentar. Ao longo dos últimos três meses suportara interrogatórios intermináveis e privação do sono. Fora colocado a ferros, os pés besuntados com gordura e colocados perto de chamas, e o corpo esticado na roda. Também fora obrigado a assistir à tortura de outros templários, não passando a maior parte de simples agricultores, diplomatas, navegadores, artífices, guarda-livros e eclesiásticos. Já se envergonhava o suficiente das coisas que confessara e não estava disposto a dizer mais nada. Permaneceu deitado na malcheirosa cama e esperou que o carcereiro saísse.

Imbert fez sinal e dois guardas entraram na cela e colocaram De Molay de pé.

- Trazei-o - ordenou.

De Molay fora preso no Templo de Paris e ali mantido desde Outubro. A alta torre com quatro torreões de canto era um dos quartéis-generais dos templários - um centro financeiro - e não possuía qualquer câmara de tortura. Imbert vira-se forçado a improvisar e convertera a capela num lugar de inimaginável angústia, que De Molay visitara repetidas vezes ao longo dos últimos três meses.

De Molay foi arrastado para o interior da capela e trazido até ao centro do chão axadrezado. Muitos irmãos haviam sido admitidos na Ordem sob aquele tecto ornamentado de estrelas.

- Segundo sei - começou Imbert -, é aqui que tem lugar a mais secreta das vossas cerimónias.

- O francês, que envergava vestes negras, dirigiu-se a um dos lados da grande sala onde se encontrava um receptáculo esculpido que De Molay conhecia bem. - Já observei o conteúdo desta arca. Contém uma caveira humana, dois fémures e uma mortalha branca. Curioso, não é?

Não estava disposto a revelar mais nada. Em vez disso, pensou nas palavras que cada postulante proferia quando era recebido na Ordem. Sofrerei todas as penas que Deus achar por justas.

- Muitos dos vossos irmãos contaram-me de que modo estes objectos eram usados. - Imbert abanou a cabeça. - A vossa Ordem transformou-se numa coisa revoltante.

Aquele comentário foi a gota de água.

- Como servos do servo de Deus, prestamos contas exclusivamente ao nosso papa. Só ele nos pode julgar.

- O vosso papa presta vassalagem ao meu suserano. Não irá salvar-vos.

Era verdade. Os emissários do papa haviam deixado claro que transmitiriam a renúncia da sua confissão, mas duvidavam que isso pudesse alterar o destino dos templários.

- Dispam-no - ordenou Imbert.

A bata que vestia desde o dia que se seguira ao seu encarceramento foi-lhe arrancada do corpo. De Molay não ficou propriamente aborrecido de a ver rasgada no chão, pois já tresandava a fezes e a urina. Porém, as regras da Ordem proibiam qualquer irmão de mostrar o corpo. Sabia muito bem que a Inquisição preferia as suas vítimas nuas - desprovidas de orgulho -, por isso instou-se a não vacilar face àquele acto insultuoso. Apesar dos seus cinquenta e seis anos, possuía ainda uma compleição forte. Tal como todos os irmãos cavaleiros, tomara bem conta de si. Manteve uma postura orgulhosa e perguntou num tom calmo:

- Por que tenho de ser humilhado?

- O que quereis dizer?

A pergunta encerrava uma entoação de incredulidade.

- Esta sala era um lugar de veneração e, apesar disso, mandais despir-me, sabendo que os irmãos reprovam tais comportamentos.

Imbert baixou-se, abriu a arca e retirou do interior um longo tecido de sarja.

- Recaem dez acusações sobre a vossa preciosa Ordem.

De Molay conhecia-as a todas e variavam entre a negação dos sacramentos, a adoração de ídolos, o lucro com actos imorais e a prática de actos homossexuais.

- Aquela que mais me preocupa - disse Imbert - é a vossa exigência de que cada irmão renuncie a Jesus Cristo Nosso Senhor e que cuspa e pise a cruz. Um dos irmãos contou-nos que alguns chegavam mesmo a urinar sobre uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz. Isso é verdade?

- Perguntai a esse irmão.

- Infelizmente, ele não resistiu às provações de que foi alvo. De Molay nada disse.

- O meu rei e Sua Santidade ficaram mais abalados com esta acusação do que com qualquer uma das outras. Como um homem da Igreja, por certo entendeis que a vossa renúncia de Jesus Cristo como nosso salvador os enfureceu.

- Prefiro dar contas apenas ao meu papa.

Imbert fez um sinal e os dois guardas colocaram ferros em torno dos pulsos de De Molay e depois afastaram-se, esticando-lhe os braços sem se preocuparem com os seus músculos já danificados. O inquisidor retirou de sob as suas vestes um chicote com várias tiras. As pontas tiniram e De Molay reparou que cada uma delas era guarnecida com osso.

Imbert arremessou o chicote em direcção às suas costas nuas. A dor invadiu-lhe o corpo e depois abrandou, deixando um ardor que não diminuía. Antes que a pele tivesse tempo de recuperar, sentiu outra chicotada e depois mais uma. De Molay não desejava dar a Imbert nenhum motivo de satisfação, contudo a dor subjugou-o e acabou por gritar.

- Não voltareis a fazer troça da Inquisição - declarou Imbert. De Molay controlou as emoções. Sentia vergonha por ter gritado.

Olhou fixamente para os olhos melífluos do inquisidor e esperou pelo seu próximo gesto. Imbert devolveu-lhe o olhar.

- Negais Jesus Cristo, dizeis que Ele era apenas um homem e não o filho de Deus? Desonrais a cruz? Pois, muito bem. Ireis ver o que é suportar a cruz.

O chicote voltou a zurzir, dilacerando-lhe as costas, as nádegas e as pernas, e fazendo espirrar sangue de cada vez que as pontas de osso rasgavam a carne.

- Coroai o grão-mestre - gritou Imbert quando parou de o chicotear.

De Molay ergueu a cabeça e tentou focar a imagem à sua frente. Viu o que parecia ser um pedaço circular de ferro negro com pregos fixos nos lados com as pontas viradas para baixo e para dentro.

O inquisidor aproximou-se.

- Ireis saber o que Nosso Senhor suportou. O Senhor Jesus Cristo que vós e vossos irmãos negais.

A coroa foi-lhe ajustada na cabeça e depois empurrada para baixo. Os pregos enterraram-se na carne e o sangue escorreu das feridas, ensopando o cabelo oleoso.

Imbert atirou o chicote para o lado.

- Trazei-o.

De Molay foi arrastado pela capela até uma porta alta de madeira, que em tempos dera acesso aos seus aposentos privados, e obrigado a subir para um banco ali colocado. Um dos guardas segurava-o direito enquanto o outro permanecia alerta, não fosse o prisioneiro resistir. Contudo, estava demasiado fraco para os enfrentar.

Os ferros foram retirados.

Imbert entregou três pregos a outro guarda.

- O braço direito para cima - ordenou o inquisidor -, tal como havíamos discutido.

O braço foi esticado acima da cabeça. O guarda aproximou-se e De Molay viu o martelo. Compreendeu de imediato o que pretendiam fazer.

«Meu Deus».

Sentiu uma mão prender-lhe o pulso e depois a ponta de um prego pressionada contra a carne suada. Viu o martelo inclinar-se para trás e escutou o barulho do metal contra o metal.

O prego atravessou-lhe o pulso e ele gritou.

- Haveis atingido alguma veia? - perguntou Imbert ao guarda.

- Nenhuma.

- Muito bem. Não é meu desejo que ele se esvaia em sangue. Quando jovem, De Molay combatera na Terra Santa durante a última cruzada em Acre. Recordava-se ainda da sensação da lâmina de uma espada a trespassar a carne. Profunda. Duradoura. Porém, um prego no pulso era algo infinitamente mais doloroso.

O braço esquerdo foi puxado para cima e outro prego espetado no pulso. Mordeu a língua, para tentar não gritar, mas a agonia enterrou-lhe os dentes bem fundo. Não tardou que a boca se lhe enchesse de sangue, que engoliu.

Imbert empurrou o banco para longe e o corpo de De Molay ficou suspenso apenas pelos ossos dos pulsos, em especial pelo direito, uma vez que o ângulo do braço esquerdo esticava o outro até ao máximo. Algo se desconjuntou no ombro e a dor toldou-lhe o cérebro.

Um dos guardas agarrou-lhe o pé direito e observou-o com atenção. Pelos vistos, Imbert havia tomado o cuidado de escolher os pontos de inserção, zonas pouco irrigadas por veias. O pé esquerdo foi então colocado atrás do direito e ambos pregados à porta com um único prego.

A dor era atroz.

O inquisidor inspeccionou o trabalho.

- Pouco sangue. Excelente. - Recuou uns quantos passos. - Tal como Jesus Cristo sofreu, também vós ireis sofrer. Mas com uma diferença.

De Molay entendia agora por que motivo haviam escolhido uma porta. Imbert abriu-a lentamente e depois fechou-a com violência.

O corpo do prisioneiro foi atirado para um lado e depois para o outro, oscilando pelas articulações deslocadas dos ombros e a girar em torno dos pregos. Era um tipo de dor que nem sequer sonhara que podia existir.

- Tal como a roda - explicou Imbert -, na qual a dor pode ser infligida por fases. Aqui existe também um elemento de controlo. Posso deixar-vos pendurado, posso balançar-vos para a frente e para trás ou posso fazer o que acabais de experimentar, que é o mais doloroso.

O mundo em seu redor aparecia e desaparecia e mal conseguia respirar. Os músculos contraíam-se com cãibras e o coração batia descontrolado. Todo o seu corpo escorria suor e queimava como se tivesse febre.

- Continuais a troçar da Inquisição? - perguntou Imbert.

O seu desejo era dizer-lhe que odiava a Igreja pelas suas acções. Um papa fraco controlado por um monarca francês corrupto conseguira derrubar a maior organização religiosa que a humanidade alguma vez conhecera. Quinze mil irmãos espalhados pela Europa. Nove mil propriedades. Um pequeno grupo de cavaleiros que em tempos dominara a Terra Santa e se expandira depois ao longo de duzentos anos. A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão era o epítome da bondade. Todavia, o sucesso gerara invejas e ele, como grão-mestre, deveria ter avaliado melhor as agitações políticas que proliferavam em seu redor. Deveria ter sido menos rígido, mais tolerante e não tão contestatário. Graças a Deus que antecipara alguns dos acontecimentos que entretanto haviam ocorrido e tomara precauções. Filipe IV nunca veria sequer um grama do ouro e da prata dos templários.

E jamais veria o maior tesouro de todos.

De Molay reuniu o que lhe restava das forças e levantou a cabeça. Imbert pensou que este iria falar e aproximou-se.

- Maldito sejais - murmurou -, vós e todos aqueles que vos auxiliam nesta causa demoníaca.

Voltou a deixar cair a cabeça contra o peito. Escutou Imbert gritar para que a porta fosse balançada, mas a dor era de tal modo intensa e debilitante para o cérebro que pouco ou nada sentia.

Estavam a descê-lo da porta. Não se recordava de quanto tempo estivera pendurado, porém o relaxar dos membros não lhe causava qualquer alívio, pois estes há muito que tinham ficado dormentes. Foi levado de volta à cela. Os guardas deitaram-no no colchão e o corpo afundou-se-lhe na palha macia, ao mesmo tempo que um odor familiar lhe chegava ao nariz. Ergueram-lhe a cabeça sobre uma almofada e estenderam-lhe os braços para cada lado.

- Contaram-me - disse Imbert calmamente - que quando um novo irmão é admitido na vossa Ordem lhe colocais um pano de linho sobre os ombros. Um gesto que simboliza a morte e depois a ressurreição para uma nova vida como templário. Também vós ireis ter agora essa honra. Coloquei aos vossos pés a mortalha que guardais no interior da arca. - Imbert debruçou-se e esticou o pano sobre os pés do grão-mestre e depois ao longo do corpo húmido. A sua visão era agora filtrada pelo pano. - Sei também que este tecido foi utilizado pela Ordem na Terra Santa, e depois trazido para aqui e colocado em torno de cada iniciado. Haveis renascido - troçou o inquisidor. - Aproveitai para pensar nos vossos pecados. Voltarei mais tarde.

De Molay estava demasiado fraco para responder. Sabia que Imbert deveria ter recebido ordens para não o matar, porém também sabia que ninguém iria cuidar dos seus ferimentos. Assim sendo, deixou-se ficar deitado e quieto. A dormência começava a desaparecer, substituída por uma agonia intensa. O coração batia-lhe forte e descontrolado, e suava profusamente. Precisava acalmar-se e pensar em coisas mais agradáveis. Um pensamento que não o abandonava era aquilo que ele sabia que os seus captores desejavam acima de tudo. Era o único homem vivo a possuir esse conhecimento. Era uma das regras da Ordem. Um grão-mestre passava o conhecimento ao mestre seguinte para que apenas esse fosse o seu detentor. Infelizmente, devido ao seu súbito encarceramento e à expulsão da Ordem, desta vez essa transmissão teria de ser feita de outra maneira. Não permitiria que Filipe ou a Igreja tivessem sucesso nos seus intentos. Saberiam apenas aquilo que ele desejasse. O que dizia o salmo? «A tua língua é como navalha afiada, ó fabricante de enganos.»

Nesse momento recordou-se ainda de outra passagem bíblica, uma que trazia algum refrigério à sua alma atormentada. Deitado naquela cama e envolto na mortalha, o corpo a expelir suor e sangue, pensou no Deuteronómio.

«Deixa-me destruí-lo, quero apagar o seu nome debaixo do céu.»

 

 

 

 

 

 

Copenhaga, Dinamarca Quinta-feira, 22 de Junho, actualidade, 14 h 50 m

Cotton Malone viu a faca ao mesmo tempo que avistou Stephanie Nelle. Encontrava-se confortavelmente sentado numa cadeira branca na esplanada do Café Nikolaj. A tarde estava soalheira e convidativa e a Höjbro Plads, a mais conhecida praça dinamarquesa, fervilhava de vida. No café decorria a azáfama do costume e ele esperava por Stephanie há já meia hora.

Era uma mulher baixa e magra, na casa dos sessenta, embora nunca tivesse confirmado a sua idade e os registos do Departamento de Justiça, que Malone consultara em tempos, exibissem um espaço em branco na zona reservada à data de nascimento. O cabelo loiro exibia madeixas grisalhas e os olhos azuis possuíam a expressão de uma liberal e o brilho de uma promotora pública. Dois presidentes já tinham tentado que ela fosse procuradora-geral, mas Stephanie recusara ambas as propostas. Um procurador-geral fizera pressão para que fosse despedida - principalmente depois de ter sido recrutada pelo FBI para o investigar -, mas a Casa Branca rejeitara a ideia, uma vez que, entre outras qualidades, Stephanie Nelle era uma profissional honesta.

Em contraste, o homem da faca era baixo e corpulento e usava o cabelo curto. Algo parecia assombrar as feições de europeu de Leste, um desespero que preocupava Malone bem mais do que a faca brilhante que trazia na mão. O homem vestia umas calças de ganga e um casaco vermelho.

Malone levantou-se da cadeira, mas manteve os olhos fixos em Stephanie.

Pensou gritar em sinal de aviso, mas ela encontrava-se demasiado afastada e havia muito barulho na praça. Por momentos, o seu ângulo de visão foi obstruído por uma das esculturas modernistas que decoravam Höjbro Plads - representava uma mulher escandalosamente obesa, deitada, nua, em decúbito ventral, com as indiscretas nádegas redondas como montanhas. Quando Stephanie surgiu do outro lado do bronze fundido, o homem da faca aproximara-se e Malone observou-o a cortar a alça da mala e a empurrar Stephanie para o chão.

Uma mulher gritou e a confusão instalou-se.

O homem da faca fugiu com a mala de Stephanie e empurrou as pessoas que se atravessavam no seu caminho. O ladrão virou à esquerda, contornou outra das esculturas de bronze e, por fim, desatou a correr. Parecia dirigir-se para Köbmagergade, uma rua apenas para peões que virava para norte, afastando-se de Höjbro Plads, e continuava depois para o interior da zona comercial da cidade.

Malone empurrou a mesa, determinado a cortar o caminho ao ladrão antes que este conseguisse dobrar a esquina. Todavia, um amontoado de bicicletas bloqueou-lhe o caminho. Contornou as bicicletas e acelerou a corrida, rodeando parcialmente uma fonte antes de placar a sua presa.

Aterraram ambos na pedra dura, tendo o homem da faca absorvido grande parte do impacto. Foi nessa altura que Malone se apercebeu que o seu oponente era um homem musculado e robusto. Pouco impressionado pelo ataque, o ladrão rebolou uma vez e depois pressionou o joelho contra o estômago de Malone, que ficou sem conseguir respirar e com as costelas a doer.

O homem da faca ergueu-se e correu em direcção à rua pedonal.

Malone também se levantou, mas teve de se dobrar e inspirar lentamente.

Maldição. Estava destreinado.

Recuperou o fôlego e retomou a perseguição. A sua presa levava agora cerca de quinze metros de vantagem. Malone não vira a faca durante a luta, mas enquanto subia a rua percebeu que o homem ainda levava a mala de pele. Sentia o peito a arder, mas a distância começava a diminuir.

O homem da faca derrubou um carrinho de flores, um dos muitos que ladeavam tanto Höjbro Plads como Köbmagergade. Malone detestava os vendedores de flores, que pareciam adorar amontoar-se em frente da sua livraria, principalmente aos sábados. O ladrão empurrou o carrinho em direcção ao seu perseguidor. Malone não podia deixar que o pequeno carro continuasse em movimento - havia demasiadas pessoas na rua, incluindo crianças -, assim, precipitou-se para a direita, agarrou-o e inclinou-o até parar.

Olhou para trás e viu Stephanie virar a esquina para a Köbmagergade na companhia de um polícia. Estavam a meio campo de futebol de distância e ele não tinha tempo para esperar.

Continuou a correr e perguntou-se para onde se dirigia o homem. Talvez tivesse deixado um veículo, ou um condutor, à espera no local onde a rua pedonal desembocava noutra das mais movimentadas praças de Copenhaga, a Hauser Plads. Esperava que isso não acontecesse. Aquele local era um pesadelo em termos de trânsito, já para não falar do labirinto de ruas pedestres que formavam a meca dos consumidores, conhecida como Ströget. As coxas doíam-lhe em resultado do exercício inesperado, os músculos já mal recordavam os dias em que pertencera à Marinha e ao Departamento de Justiça. Após um ano de reforma voluntária, o seu plano de treino não impressionaria o seu antigo empregador.

Mais à frente aparecia a Torre Redonda, aninhada firmemente contra a Igreja da Trindade como uma garrafa-termo presa a uma lancheira. A robusta estrutura cilíndrica elevava-se a uma altura de nove andares. Fora mandada erigir por Cristiano IV, em 1642, e o símbolo do seu reinado - um 4 dourado rodeado por um C - brilhava na fachada do sóbrio edifício de tijolo. No lugar onde a torre se erguia cruzavam-se cinco ruas e o homem da faca podia escolher qualquer uma delas para a sua fuga.

Começaram a surgir carros da Polícia.

Um deles travou com violência no lado sul da Torre Redonda. Outro apareceu mais ao fundo da Köbmagergade, bloqueando qualquer tentativa de fuga para norte. O ladrão estava agora confinado à praça onde se erguia a torre. Parou para avaliar a situação e depois correu para a direita e desapareceu no interior do edifício.

O que estaria o idiota a fazer? Não havia saída para além da porta do rés-do-chão. Mas talvez o homem da faca não soubesse disso.

Malone correu para a entrada. Conhecia o homem da bilheteira. O norueguês passava muitas horas na sua livraria, a literatura inglesa era a sua paixão.

- Arne, para onde foi aquele homem? - perguntou em dinamarquês, a arquejar.

- Passou por aqui a correr sem pagar.

- Está alguém lá em cima?

- Um casal mais velho subiu um pouco antes.

Não havia elevador ou escadas para o topo. Em vez disso, existia uma passagem em espiral instalada originalmente para que os enormes instrumentos astronómicos do século XVII pudessem ser levados para cima. A história que os guias turísticos locais gostavam de contar era que Pedro, o Grande, a subira a cavalo e que a imperatriz o seguira num coche.

Malone conseguia ouvir o eco de passos vindos do andar de cima. Abanou a cabeça ao pensar no que o esperava.

- Diz à Polícia que estamos lá em cima.

Começou a correr.

A meio da subida espiralada passou por uma porta que dava para a Sala Grande. A entrada de vidro estava trancada e as luzes apagadas. As paredes exteriores da torre possuíam janelas duplas ornamentadas, mas tinham todas grades de ferro. Pôs-se de novo à escuta e continuou a ouvir passos de corrida vindos de cima.

Avançou, a respiração tornando-se-lhe mais apressada e pesada. Quando passou por uma representação planetária medieval afixada na parede, abrandou o passo. Sabia que a saída para a plataforma do telhado ficava apenas a alguns metros de distância, ao virar da última curva.

Deixou de escutar passos.

Continuou em frente e atravessou a arcada. Ao centro, erguia-se um observatório octogonal - não do tempo de Cristiano IV, mas de construção mais recente - com um terraço grande a toda a volta.

À esquerda, uma vedação de ferro decorativa contornava o observatório e a única entrada existente encontrava-se fechada com uma corrente. Para a direita, ao longo da orla da torre, estendia-se um corrimão trabalhado. Para lá do corrimão cresciam os telhados vermelhos e os pináculos verdes da cidade.

Contornou a plataforma e viu um homem idoso deitado no chão em decúbito ventral. Para lá do corpo, o homem da faca refugiava-se atrás de uma mulher idosa, segurava-a com um braço e mantinha a faca encostada ao pescoço dela. A mulher parecia querer gritar, mas o medo embargava-lhe a voz.

- Não se mexa - aconselhou Malone em dinamarquês. Observou o seu opositor. Tinha o mesmo olhar assombrado e gotas de suor brilhavam-lhe no rosto com a luz do Sol. Tudo indicava que Malone devia manter-se afastado e o som de passos vindos do andar de baixo anunciava que a Polícia estaria ali dentro de alguns minutos.

- E que tal acalmar-se? - perguntou Malone, tentando comunicar em inglês.

Viu que o ladrão o entendeu, mas a faca não se afastou do alvo. O olhar dele não parava quieto e ora mirava o céu, ora o espaço vazio atrás de si. Parecia nervoso e isso preocupava Malone. As pessoas desesperadas acabam sempre por cometer actos desesperados.

- Ponha a faca no chão. A Polícia está a chegar. Não tem por onde fugir.

O homem da faca voltou a olhar para o céu e depois fitou Malone. Viu indecisão no rosto dele. Que se passava ali? Um ladrão de malas que foge para o topo de uma torre de trinta metros de altura sem saída?

Os passos tornaram-se mais audíveis.

- A Polícia não tarda a chegar.

O homem da faca aproximou-se ainda mais do corrimão, mas não soltou a mulher. Malone percebeu que a rigidez do ultimato forçava uma decisão e repetiu-a.

- Não tem por onde escapar.

O ladrão puxou a mulher mais para si e recuou, encontrando-se agora completamente encostado ao corrimão. Atrás dele e da sua refém havia agora apenas o vazio.

Os olhos perderam a expressão de pânico e uma súbita calma apoderou-se do homem. Empurrou a mulher para a frente e Malone apanhou-a antes que ela se desequilibrasse. O homem da faca fez o sinal da cruz e, com a mala de Stephanie na mão, saltou por cima do corrimão, gritou uma palavra - «beauséant» -, esfaqueou o pescoço e o seu corpo mergulhou em direcção à rua.

A mulher soltou um grito ao mesmo tempo que a Polícia aparecia.

Malone largou-a e precipitou-se para o corrimão.

O homem da faca estava estendido no chão. Caíra de uma altura de trinta metros.

Malone abanou a cabeça.

Voltou-se e olhou para o céu. No mastro da bandeira no topo do observatório, a Dannebrog, a bandeira nacional da Dinamarca - uma cruz branca sobre um fundo vermelho - pendia inerte na calma da tarde.

Para onde estaria o homem a olhar? E por que razão teria saltado?

Voltou a olhar lá para baixo e avistou Stephanie a tentar abrir caminho por entre a multidão que se amontoava. A sua mala de pele estava caída a pouca distância do cadáver. Malone viu-a baixar-se e apanhá-la do chão, e depois desaparecer por entre os curiosos.

Seguiu-a com o olhar enquanto ela se apressava em direcção a uma das ruas que dava acesso à movimentada Ströget sem sequer olhar para trás.

Abanou a cabeça em sinal de reprovação e murmurou:

- Mas que raio...

 

Stephanie estava preocupada Após vinte e seis anos a trabalhar para o Departamento de Justiça, os últimos quinze à frente do Magellan Billet, aprendera que se algo tinha quatro patas, tronco e cheirava a amendoins, então tratava-se de um elefante e não havia necessidade de pendurar um cartaz ao pescoço do animal. Isso significava que o homem do casaco vermelho não era nenhum ladrão de malas.

Deveria ser qualquer coisa bem diferente. E isso queria dizer que havia alguém a par dos seus objectivos.

Vira o ladrão mergulhar da torre - a primeira vez que assistira à morte de alguém. Durante anos escutara os seus agentes falar sobre isso, mas havia uma grande diferença entre ler um relatório e ver uma pessoa morrer. O corpo abatera-se sobre a calçada com um som seco. Teria saltado? Teria sido empurrado por Malone? Houvera luta? Teria ele dito alguma coisa antes da queda?

Viera à Dinamarca com um único objectivo e, uma vez aí, decidira visitar Malone. Há anos ele fora um dos doze escolhidos para o Magellan Billet. Conhecera o pai de Malone e seguira a carreira brilhante do filho, tendo ficado muito satisfeita por tê-lo a trabalhar para ela quando este decidiu aceitar a sua oferta e trocou o JAG (1) da

 

Nota 1: Sigla de Judge Advocate General's Corps, o corpo de justiça militar da Marinha dos Estados Unidos que intervém em diversos casos judiciais que envolvem membros dessa força armada» (N. da T.)

 

Marinha pelo Departamento de Justiça. Com o tempo, acabara por se tornar um dos seus melhores agentes mas, no ano anterior, decidira deixar o departamento, decisão que ela ainda lamentava.

Desde então não o voltara a ver, embora tivessem falado ao telefone umas quantas vezes. Quando ele saiu em perseguição do ladrão, reparou que continuava um homem musculado e de cabelo basto e ondulado com o mesmo tom de um ligeiro castanho-avermelhado que recordava, semelhante à pedra antiga dos edifícios que a rodeavam. Durante os doze anos que trabalhara para ela, sempre fora decidido e independente, características que faziam dele um bom operacional - no qual podia confiar -, e também não deixava de ser compassivo. Acabara por se transformar em algo mais do que um mero funcionário. Era também um amigo.

No entanto, isso não significava que o quisesse a meter o nariz nos seus assuntos.

Perseguir o homem da faca era típico de Malone, mas era também um problema. Visitá-lo agora iria implicar um sem-número de perguntas às quais não tinha intenção de responder.

O encontro teria de ficar para uma outra ocasião.

Malone abandonou a Torre Redonda e seguiu Stephanie. Quando desceu do telhado, os paramédicos estavam a tratar do casal de idosos. O homem estava meio atordoado devido à pancada na cabeça, mas iria ficar bem. A esposa continuava histérica. Ouvira um dos enfermeiros alertar para que fosse transportada para uma ambulância.

O corpo do homem da faca continuava no chão sob um lençol amarelo e a Polícia apressava-se a afastar as pessoas do caminho. Avançando por entre a multidão, Malone viu o fotógrafo da Polícia levantar o lençol e começar a trabalhar. O ladrão cortara mesmo a garganta. A faca ensanguentada estava caída a poucos metros de um dos braços, contorcido num ângulo estranho. O sangue escorrera da ferida do pescoço e acumulara-se num poça escura.

O crânio estava rachado, o tronco esmagado e as pernas torcidas como se não tivessem ossos. A Polícia dissera a Malone para não abandonar o local - iriam precisar que prestasse declarações -, mas naquele momento era mais importante encontrar Stephanie.

Afastou-se dos curiosos, e olhou o céu da tarde onde o Sol brilhava com fulgor. Não se avistava uma única nuvem. Iria, sem dúvida, estar uma excelente noite para observar as estrelas, mas ninguém poderia visitar o observatório no cimo da Torre Redonda. Não. Estaria fechado, pois um homem acabara de pôr fim à própria vida.

E quem seria esse homem?

Os pensamentos de Malone oscilavam entre a curiosidade e a apreensão. Sabia que o melhor seria regressar à sua livraria e esquecer Stephanie Nelle, e o que quer que ela andasse a tramar. Os assuntos dela já não lhe diziam respeito. Contudo, também estava consciente que isso não iria acontecer.

Algo se passava e não era coisa boa.

Avistou Stephanie cinquenta metros mais à frente, na Verstergade, outra das compridas ruas que cruzavam o movimentado bairro comercial de Copenhaga. Caminhava numa passada decidida e apressada, e virou subitamente à direita e desapareceu no interior de um dos edifícios.

Malone estugou o passo e viu a placa na porta - HANSEN'S ANTiKVARIAT -, uma livraria cujo proprietário fora uma das poucas pessoas que não o recebera de forma acolhedora. Peter Hansen não gostava de estrangeiros, em especial de americanos, e chegara mesmo a tentar impedir a admissão de Malone na Associação de Alfarrabistas da Dinamarca. Felizmente para si, a aversão de Hansen não se tornara contagiosa.

Os velhos instintos começavam a dominá-lo, sentimentos que tinham permanecido adormecidos desde que se retirara no ano anterior. Sensações que não lhe agradavam, mas que sempre o haviam motivado.

Estacou a pouca distância da porta e viu Stephanie no interior da livraria, a conversar com Peter Hansen. Os dois recolheram-se mais para o interior da loja, que ocupava o rés-do-chão do edifício de três andares. Malone conhecia bem a disposição do interior, tendo no ano anterior estudado as livrarias de Copenhaga. Eram quase todas um exemplo da disciplina nórdica, com as estantes organizadas por assuntos e os livros cuidadosamente arrumados. Hansen, contudo, era mais informal, sendo a sua livraria uma mistura ecléctica de velho e novo - em especial novo, pois não estava para pagar muito dinheiro por aquisições particulares.

Malone esgueirou-se para o interior e esperou que nenhum dos empregados desse pela sua presença e o chamasse. Jantara algumas vezes com a gerente da loja e fora num desses jantares que ficara a saber que não era a pessoa de quem Hansen mais gostava. Por sorte, ela não estava por perto e havia pouca gente em volta das estantes, não mais do que uma dezena de pessoas. Avançou com destreza até às traseiras onde sabia existirem uma miríade de compartimentos repletos de estantes. Apesar disso, não se sentia bem por estar a fazer aquilo. Afinal de contas, Stephanie ligara-lhe apenas para dizer que estava na cidade por umas horas e que gostaria de o ver. Mas isso fora antes do incidente com o homem da faca. Agora estava demasiado curioso e desejava saber o que levara aquele homem ao suicídio.

Não deveria sequer estar surpreendido com o comportamento de Stephanie. Sempre guardara as coisas muito para si própria, demasiado até, e isso havia por vezes gerado alguns confrontos. Uma coisa era estar em segurança a trabalhar num gabinete em Atlanta, outra bem diferente era andar no terreno. Era impossível tomar decisões sensatas sem boas informações.

Viu Stephanie e Hansen numa pequena sala sem janelas que este usava como escritório. Já ali estivera da primeira vez que tentara travar amizade com o idiota. Hansen era um homem robusto com o nariz comprido e bigode grisalho. Malone posicionou-se atrás de uma fila de prateleiras repletas de livros e pegou num, fingindo ler.

- E o que a fez deslocar-se de tão longe por isto? - perguntava Hansen na sua voz arquejante.

- Está a par do leilão de Roskilde?

Era típico de Stephanie, responder a uma pergunta com outra.

- Vou lá muitas vezes. Há muitos livros à venda.

Malone também conhecia o leilão. Roskilde ficava a trinta minutos a oeste de Copenhaga. Os negociantes de livros antigos da cidade reuniam-se de três em três meses para uma venda que atraía compradores de toda a Europa. Dois meses depois de abrir a sua loja, Malone havia ganho perto de duzentos mil euros no leilão com a venda de quatro livros que encontrara numa obscura venda imobiliária na República Checa. Aqueles fundos tinham-lhe permitido passar de trabalhador assalariado a empresário com uma vida mais calma. No entanto, também haviam gerado cobiça e Peter Hansen não escondera a sua inveja.

- Preciso do livro de que falámos. Esta noite. Disse-me que não teria problemas em comprá-lo - disse Stephanie num tom de quem estava habituada a dar ordens.

Hansen soltou uma risada.

- Vocês americanos são todos iguais. Pensam que o mundo gira em vosso redor.

- O meu marido disse que o senhor era capaz de encontrar uma agulha num palheiro. O livro que desejo já foi encontrado, só preciso que o compre.

- Pertencerá a quem fizer a melhor oferta.

Malone estremeceu. Stephanie não fazia ideia do território perigoso em que estava a entrar. A primeira regra do negócio era não mostrar o quanto se desejava o objecto.

- É um livro pouco conhecido e que não interessa a ninguém - explicou ela.

- Mas pelos vistos interessa-lhe a si, o que significa que existirão outros.

- Basta-nos fazer a melhor oferta.

- E por que razão é este livro tão importante? Nunca antes ouvi falar dele e o autor é desconhecido.

- Exigiu explicações ao meu marido?

- O que quer dizer com isso?

- Que não é da sua conta. Adquira o livro e receberá a sua percentagem, como combinado.

- E por que não o compra a senhora?

- Não pretendo explicar-lhe os meus motivos.

- O seu marido era bem mais simpático.

- Pois, mas está morto.

Embora a declaração tivesse sido proferida sem qualquer emoção, fez-se um momento de silêncio.

- Viajamos juntos para Roskilde? - perguntou Hansen, tendo aparentemente entendido que não iria conseguir arrancar qualquer informação dela.

- Eu encontro-me consigo lá.

- Mal posso esperar.

Stephanie saiu do escritório e Malone recuou no seu esconderijo, e virou o rosto quando ela passou. Ouviu a porta do escritório de Hansen bater e aproveitou a oportunidade para voltar à entrada da loja.

Stephanie abandonou a livraria e virou à esquerda. Ele esperou um pouco e depois seguiu-a por entre os transeuntes em direcção à Torre Redonda.

Não olhou para trás uma única vez. Parecia nem sequer conceber que alguém pudesse estar interessado nas suas andanças. Contudo, devia estar preocupada com essa possibilidade, principalmente depois do que acontecera com o homem da faca. Interrogou-se porque não estaria ela atenta e alerta. Era certo que não era uma operacional, mas também não era parva.

Ao chegar à Torre Redonda, em vez de virar à direita e dirigir-se à Höjbro Plads, onde se situava a livraria de Malone, continuou em frente, e depois de andar mais três quarteirões, entrou no Hotel d'Angleterre.

Ficou a vê-la entrar.

Sentia-se magoado por saber que ela desejava comprar um livro na Dinamarca e não lhe pedira ajuda. Era óbvio que não o queria envolver no assunto. Na verdade, depois do que sucedera na Torre Redonda, ela parecia nem sequer querer falar com ele.

Olhou para o relógio. Passava um pouco das dezasseis e trinta. O leilão tinha início às dezoito horas e Roskilde ficava a meia hora de automóvel. Não planeara estar presente, pois o catálogo que lhe tinham enviado não continha nada de interessante. Mas isso já não era importante. Stephanie estava a agir de modo estranho, até para ela, e uma voz familiar na sua cabeça, voz essa que o mantivera vivo durante doze anos como agente do governo, dizia-lhe que ela ainda ia precisar dele.

 

Abbaye des Fontaines Pirenéus Franceses, 17 h 00 m

O senescal ajoelhou-se ao lado da cama para confortar o seu mestre moribundo. Rezara durante semanas para que aquele momento não chegasse mas em breve, depois de ter dirigido sabiamente a Ordem durante vinte e oito anos, o velho homem deitado na cama ganharia um merecido lugar no céu junto dos seus antecessores. Infelizmente, para o senescal os tumultos do mundo físico continuariam e ele temia esse panorama.

A divisão era espaçosa e as antigas paredes de pedra e madeira não exibiam quaisquer sinais da passagem do tempo, apenas as vigas de pinho do tecto haviam escurecido. Uma janela solitária, como um olho melancólico, deixava ver o exterior e emoldurava a beleza de uma queda-d'água que contrastava com a robustez cinzenta da montanha. A luz baça do crepúsculo começava a fazer crescer os cantos do quarto.

O senescal pegou na mão do mestre e reparou que esta estava fria e mole.

- Está a ouvir-me, mestre? - perguntou em francês.

As pálpebras cansadas abriram-se.

- Ainda não morri, mas já não falta muito.

Já ouvira outros que no leito de morte haviam proferido afirmações semelhantes e sempre se interrogara se o corpo simplesmente se exauria, deixando de ter forças para obrigar os pulmões a respirar ou o coração a bater, a morte invadindo aos poucos os territórios da vida. Apertou-lhe a mão com mais força.

- Irei sentir a sua falta.

Os lábios finos esboçaram um sorriso.

- Foste um bom aprendiz, tal como eu previra. Foi por isso que te escolhi.

- Os dias vindouros trarão muitos conflitos.

- Estás preparado. Tratei de tudo para que assim fosse.

Ele era o senescal, o sucessor do grão-mestre. A sua ascensão fora rápida, demasiado rápida para alguns, e apenas a firme liderança do mestre abafara o descontentamento. Mas a morte em breve viria reclamar o seu protector e ele temia que a revolta se instalasse logo de seguida.

- Não há garantias que eu vos suceda.

- Subestimas as tuas qualidades.

- Respeito o poder dos seus adversários.

O silêncio encheu o quarto, permitindo que as cotovias e os melros se escutassem do outro lado da janela. Olhou para o seu mestre. Vestia uma bata azul-celeste salpicada de estrelas douradas. Apesar das linhas faciais parecerem mais acentuadas com a proximidade da morte, exibia ainda algum fulgor. Do queixo pendia-lhe uma barba longa, emaranhada e grisalha, as mãos e os pés estavam retorcidos pela artrite, mas o brilho dos olhos não se tinha apagado. Sabia que os vinte e oito anos de liderança tinham ensinado muita coisa ao agora cansado cavaleiro-guerreiro. A lição mais importante de todas fora porventura a de mostrar uma máscara de civilidade, mesmo perante a morte.

O médico confirmara o cancro há alguns meses. Tal como a Regra exigia, permitiu-se que a doença avançasse ao seu ritmo, aceitando-se desse modo as consequências naturais da acção de Deus. Ao longo dos séculos, milhares de irmãos tinham enfrentado o mesmo fim e era impensável que o grão-mestre não seguisse a tradição.

- Quem me dera sentir o cheiro da água - murmurou o mestre. O senescal olhou em direcção à janela. As vidraças do século XVI encontravam-se abertas e permitiam que o aroma doce das pedras molhadas e da vegetação verde enchesse o quarto. Ao longe, a água bramia.

- O seu quarto tem uma vista magnífica.

- Foi uma das razões que me levou a querer ser grão-mestre.

O senescal sorriu, sabendo que o mestre estava apenas a brincar. Lera as Crónicas e sabia que o seu mentor ascendera àquele lugar por ser capaz de se adaptar a cada viragem do destino com a mestria de um génio. A sua liderança caracterizara-se pela paz, mas tudo isso iria mudar em breve.

- Devo rezar pela sua alma - disse o senescal.

- Há tempo para isso mais tarde. É preciso que te prepares.

- Para quê?

- Para o conclave. Reúne os votos. Prepara-te. Não dês tempo aos teus inimigos para se organizarem. Lembra-te de tudo o que te ensinei. - A voz rouca cedeu à doença, mas existia ainda firmeza no seu tom.

- Não sei ao certo se quero ser grão-mestre.

- Queres.

O amigo conhecia-o bem. A modéstia exigia que recusasse o manto, mas ele desejava aquela posição mais do que qualquer outra coisa na vida.

Sentiu a mão do mestre a tremer. E foram precisos alguns minutos para que ele recuperasse.

- Já preparei a mensagem. Está ali, sobre a mesa.

Também estava a par que seria responsabilidade do próximo mestre estudar aquele testamento.

- O dever tem de ser cumprido - afirmou o mestre. - Tal como tem acontecido desde o Início.

O senescal não queria ouvir falar do dever. Estava mais preocupado com os sentimentos. Olhou em redor do quarto, mobilado apenas com uma cama, um genuflexório virado para um crucifixo de madeira, três cadeiras com uma almofada bordada, uma escrivaninha e duas estátuas antigas de mármore colocadas em nichos na parede. Tempos houvera em que aquele quarto estivera repleto de peles espanholas, porcelanas de Delft, mobiliário inglês. Contudo, a audácia há muito que fora expurgada do carácter da Ordem.

Assim como do seu.

O mestre estava com dificuldade em respirar.

Observou o homem ali deitado num torpor febril e doente. O grão-mestre recuperou o fôlego, pestanejou umas quantas vezes e depois disse:

- Ainda não, meu amigo. Em breve.

 

Roskilde, 18 h 15 m

Alone esperou até um pouco depois da hora marcada para o início do leilão e só nessa altura entrou. Estava familiarizado com os procedimentos e sabia que as licitações não começariam antes das dezoito e vinte, pois havia ainda assuntos relativos aos registos de compradores e acordos de vendedores que precisavam de ser verificados antes de o dinheiro começar a mudar de mãos.

Roskilde era uma cidade antiga aninhada ao lado de um estreito fiorde de água salgada. Fundada pelos Viquingues, fora a capital da Dinamarca até ao século XV e continuava envolta num ambiente régio. O leilão ia ter lugar na baixa, perto da Domkirke - a catedral -, num edifício à saída da Skomagergade, uma rua outrora dominada por sapateiros. Na Dinamarca, a venda de livros era uma forma de arte e havia um profundo interesse nacional pela palavra escrita, que Malone como bibliófilo muito apreciava. Os livros haviam começado por ser apenas um passatempo, uma distracção das pressões da sua profissão arriscada, mas agora eram a sua vida.

Ao ver Peter Hansen e Stephanie na fila da frente, deixou-se ficar para o fundo, atrás de um dos pilares que suportava o tecto abobadado. Não fazia tenções de licitar, por isso pouco importava se o leiloeiro o via ou não.

Os livros iam e vinham a troco de grandes quantias de dinheiro. Reparou que Peter Hansen esticou o pescoço quando o livro seguinte foi apresentado.

- Pierres Gravées du Languedoc, de Eugène Stüblein. Copyright de 1887 - anunciou o leiloeiro. - Uma história local, bastante comum naquela época. Foram impressas apenas algumas cópias. Esta faz parte de um lote que adquirimos recentemente. É um livro muito bonito, capa em pele, sem defeitos e com gravuras extraordinárias, uma delas reproduzida no catálogo. Não é nosso hábito fazê-lo, mas este volume é encantador e, por isso, pensámos que seria interessante mostrá-la. Podem começar a licitar, se fazem favor.

Seguiram-se três ofertas, sendo a última de quatrocentas coroas. Malone fez as contas. Dava sessenta e quatro dólares. Hansen acenou para oitocentas. Nenhum dos outros licitadores avançou mais propostas até que um dos funcionários destacados para atender as chamadas telefónicas daqueles que não podiam estar presentes anunciou uma oferta de mil coroas.

Hansen parecia preocupado com o desafio inesperado, em especial vindo de um licitador anónimo, e subiu a sua oferta para mil e cinquenta coroas. O licitador anónimo respondeu com duas mil e um terceiro interessado juntou-se à contenda. Os gritos continuaram e as ofertas subiram até às nove mil coroas. Os outros pareceram adivinhar que o livro deveria ser valioso e seguiu-se mais um minuto de intensa licitação que terminou com Hansen a oferecer vinte e quatro mil coroas.

Equivalia a quase quatro mil dólares.

Malone sabia que Stephanie, sendo funcionária pública, deveria auferir qualquer coisa entre setenta e oitenta mil dólares por ano. O marido falecera há anos e deixara-lhe alguns bens, contudo não era rica nem sequer coleccionadora de livros, e Malone questionava-se por que estaria ela disposta a pagar tanto dinheiro por um diário de viagens que ninguém conhecia. Também lhe apareciam bastantes lá na livraria, a grande maioria do século XIX e princípios do século XX, uma época em que as narrativas pessoais de lugares longínquos estavam na moda. Muitas haviam sido escritas numa linguagem demasiado floreada e extravagante e não tinham qualquer interesse.

Parecia claramente tratar-se de uma excepção.

- Cinquenta mil coroas - gritou o representante do licitador anónimo.

Era mais do dobro da última oferta de Hansen.

As cabeças dos presentes viraram-se e Malone escondeu-se atrás do pilar quando Stephanie se voltou para ver o homem do telefone. Inclinou um pouco a cabeça para o lado e reparou que Stephanie e Hansen pareciam conferenciar. Depois concentraram a sua atenção no leiloeiro. Fez-se um momento de silêncio enquanto Hansen parecia considerar o seu próximo passo, embora estivesse claramente a seguir as indicações de Stephanie.

Ela abanou a cabeça.

- O livro é vendido ao licitador do telefone por cinquenta mil coroas.

O leiloeiro retirou o livro do expositor e anunciou um intervalo de quinze minutos. Malone sabia que os organizadores iam observar o livro e tentar perceber o que o fazia valer oito mil dólares. Os negociantes de Roskilde eram homens astutos e pouco habituados a que os tesouros lhes escapassem dos dedos. Porém, daquela vez tinha acontecido.

Deixou-se ficar atrás do pilar enquanto Hansen e Stephanie permaneciam perto dos seus lugares. Havia algumas pessoas conhecidas na sala e Malone esperava que nenhuma delas o chamasse. A maioria dirigia-se para o outro canto onde estavam a servir bebidas. Reparou que dois homens se aproximaram de Stephanie e se apresentaram. Eram ambos corpulentos, de cabelo curto e vestidos com roupas semelhantes. Quando um deles se curvou para lhe apertar a mão, Malone reparou na característica protuberância de uma pistola nas costas dele.

Após uma troca de palavras, os homens retiraram-se. A conversa parecia ter sido amigável e, enquanto Hansen aproveitava a cerveja gratuita, Stephanie aproximou-se de um dos auxiliares, disse-lhe qualquer coisa e depois saiu por uma porta lateral.

Malone dirigiu-se de imediato ao mesmo auxiliar, Gregos, um dinamarquês esguio que conhecia bem.

- Cotton, que bom vê-lo.

- Sempre à procura de uma pechincha.

Gregos sorriu.

- Difícil encontrá-las aqui.

- Aquela última peça foi uma surpresa.

- Pensei que chegasse até perto das quinhentas coroas, mas cinquenta mil? Espantoso.

- Faz alguma ideia do motivo?

Gregos abanou a cabeça.

- Nenhuma.

Malone apontou para a porta lateral.

- A mulher com quem estava a falar, e que saiu, sabe para onde ia?

O auxiliar fitou-o com um sorriso.

- Está interessado nela?

- Não da forma que pensa, mas sim, estou.

Malone tornara-se um dos clientes preferidos da casa de leilões desde que, há alguns meses, ajudara a encontrar um vendedor desonesto que oferecera três volumes de Jane Eyre, circa 1847, que posteriormente se descobriu serem roubados. Quando a Polícia os apreendeu ao novo comprador, a casa leiloeira foi obrigada a devolver cada coroa, mas o vendedor já descontara o cheque que a leiloeira lhe dera. Malone encontrou o homem em Inglaterra e recuperou o dinheiro, fazendo com esse gesto alguns amigos, que para sempre lhe ficariam gratos.

- Perguntou-me onde ficava a Domkirke, em especial a capela de Cristiano IV.

- Explicou porquê?

Gregos sacudiu a cabeça.

- Disse apenas que ia até lá.

Esticou o braço e apertou a mão do auxiliar. Dobrada na palma da mão ia uma nota de mil coroas. Viu que Gregos apreciou a oferta e a guardou discretamente no bolso, pois as gratificações não eram bem vistas pela casa leiloeira.

- Só mais uma coisa - disse Malone. - Quem era o licitador endinheirado ao telefone?

- Como muito bem sabe, Cotton, essa informação é confidencial.

- Como muito bem sabe, detesto regras. É alguém que eu conheça?

- É o proprietário do edifício que aluga em Copenhaga.

Por pouco não sorria. Henrik Thorvaldsen. Devia ter adivinhado.

O leilão ia recomeçar. À medida que os presentes retomavam os seus lugares, Malone dirigiu-se para a entrada e viu Peter Hansen sentar-se. Lá fora, a noite dinamarquesa começava a arrefecer e, apesar de serem quase oito horas, o céu guardava ainda alguma luz e cor do lento entardecer. A alguns quarteirões de distância erguia-se a catedral de tijolos vermelhos, a Domkirke, onde a família real dinamarquesa era sepultada desde o século XIII.

O que estaria Stephanie a fazer ali?

Ia começar a dirigir-se para lá quando dois homens se aproximaram. Um deles encostou-lhe uma coisa dura às costas.

- Não resista, Sr. Malone, ou disparo - murmurou-lhe uma voz ao ouvido.

Ele olhou para a esquerda e para a direita.

Os dois homens que vira a conversar com Stephanie flanqueavam-no agora e nas suas caras espelhava-se o mesmo olhar ansioso que observara há algumas horas no rosto do homem da faca.

 

Stephanie entrou na Domkirke. O homem da leiloeira dissera que a catedral era fácil de encontrar e não mentira. O monstruoso edifício, demasiado grande para a cidade em seu redor, dominava o céu do fim do dia.

No interior da grandiosa igreja descobriu uma miríade de extensões, capelas e pórticos cobertos por um tecto alto e abobadado e janelas de vitrais que banhavam as antigas paredes com uma luz celestial. Apercebeu-se de que a catedral já não era católica - devia ser luterana, pela decoração - e a sua arquitectura revelava uma influência claramente francesa.

Estava zangada por não ter conseguido arrematar o livro. Pensou que não custaria mais de trezentas coroas, cerca de cinquenta dólares. Mas, para seu azar, um comprador anónimo pagara oito mil dólares por um inofensivo relato escrito há mais de cem anos.

Mais uma vez, alguém estava a par dos seus intentos.

Talvez fosse a pessoa que a esperava. Os dois homens que a tinham abordado disseram-lhe que ficaria tudo esclarecido se ela fosse até à catedral e encontrasse a capela de Cristiano IV. Achara tudo aquilo um pouco despropositado, mas não tinha outra escolha. A verdade é que havia muita coisa para fazer e o tempo escasseava.

Seguiu as indicações que lhe tinham sido dadas e contornou o pórtico. Decorria um serviço religioso na nave à sua direita, frente ao altar-mor, ao qual assistiam cerca de cinquenta pessoas. A música do órgão ecoava no interior da igreja com uma vibração metálica. Stephanie encontrou a capela de Cristiano IV e entrou, abrindo um gradeado de ferro forjado.

À sua espera estava um homem de cabelo fino e grisalho, rosto enrugado e barbeado, que vestia calças de algodão de cor clara, uma camisa de colarinho desapertado e um blusão de cabedal. À medida que se aproximava, notou que os olhos escuros possuíam um brilho que de imediato considerou frio e suspeito. Talvez ele tenha adivinhado a sua apreensão, pois fitou-a com uma expressão mais afável e sorriu-lhe.

- Sr.ª Nelle, que prazer conhecê-la.

- Como sabe quem eu sou?

- Conhecia muito bem o trabalho do seu marido. Era um grande estudioso de assuntos que me interessam.

- Que assuntos? O meu marido era versado em muitas áreas.

- Rennes-le-Château é o meu principal interesse, assim como o trabalho que desenvolveu sobre o alegado segredo dessa aldeia e da terra que a rodeava.

- Foi o senhor quem arrematou o livro?

O homem levantou os braços como se estivesse a render-se.

- Não, não fui eu. Mas foi por essa razão que pedi para falar consigo. Tinha um representante a licitar por mim, porém, tal como lhe deve ter acontecido, fiquei chocado com a oferta final.

Precisando de pensar um pouco, Stephanie deambulou pelo sepulcro real. Quadros gigantescos, emoldurados por elaborados trompe l'oeil, cobriam as magníficas paredes de mármore. Cinco caixões decorados, sob um enorme tecto em arco, ocupavam o centro.

O homem apontou para os caixões.

- Cristiano IV é considerado um dos mais importantes monarcas da Dinamarca. Tal como Henrique VIII na Inglaterra, Francisco II em França e Pedro, o Grande, na Rússia, também ele mudou este país. As suas marcas estão por todo o lado.

Ela não estava interessada em lições de história.

- O que deseja de mim?

- Deixe-me mostrar-lhe uma coisa.

O homem caminhou até ao gradeamento na entrada da capela e ela seguiu-o.

- Conta a lenda que foi o próprio diabo quem desenhou este entrançado. O trabalho é de uma perfeição extraordinária. Inclui os monogramas do rei e da rainha e uma variedade imensa de criaturas fabulosas. No entanto, repare no fundo.

Stephanie fez o que ele lhe pediu e viu uma frase gravada no metal trabalhado. t

- Diz, Gaspar Fincke bin ich genannt, dieser Arbeit binn ich bekannt. O meu nome é Gaspar Fincke e devo a minha fama a este trabalho - traduziu o homem.

Ela fitou-o.

- E então?

- No topo da Torre Redonda, em Copenhaga, em torno do rebordo existe outro gradeamento. Também foi Fincke quem o desenhou. Fê-lo baixo para que se pudessem ver os telhados da cidade, mas também facilita os saltos.

Stephanie entendeu a mensagem.

- O homem que saltou hoje lá de cima trabalhava para si?

Ele assentiu.

- Morreu porquê?

- «Os Soldados de Cristo travam as batalhas do seu Senhor em segurança, sem temor do pecado ao matar o inimigo, nem temendo o perigo da própria morte.»

- Ele suicidou-se.

- «Causar a morte, ou morrer em nome de Cristo, nada tem de criminoso, sendo antes merecedor de gloriosa recompensa.»

- Não é capaz sequer de responder a uma pergunta.

O homem sorriu.

- Estava apenas a citar um grande teólogo, que escreveu estas palavras há oitocentos anos. Trata-se de São Bernardo de Claraval.

- Quem é o senhor?

- Pode chamar-me Bernardo.

- O que deseja?

- Duas coisas. Uma delas é o livro que ambos perdemos no leilão. Todavia, reconheço que esse não me pode dar. A segunda é algo que está em seu poder e que lhe foi enviado há um mês.

A expressão de Stephanie manteve-se inalterada. Aquele era de facto um homem que estava a par dos seus assuntos.

- E que coisa é essa?

- Ah! Um teste. Uma forma de avaliar a minha credibilidade. Muito bem. O pacote que recebeu continha um diário que pertenceu ao seu marido, um caderno de apontamentos que ele guardou até ao dia da sua morte. Passei no teste? - Ela não respondeu.

- Quero esse diário.

- E o que o torna assim tão importante?

- Não eram poucas as pessoas que achavam o seu marido um excêntrico, um homem muito estranho. A comunidade académica fazia pouco dele, assim como a imprensa. Para mim ele era um homem brilhante, capaz de ver coisas que passavam despercebidas à maioria das pessoas. Veja só o que ele conseguiu. Deu origem a todo o actual fascínio por Rennes-le-Château. O seu livro foi o primeiro a alertar o mundo para os mistérios locais. Vendeu cinco milhões de cópias em todo o mundo, o que é um grande feito.

- O meu marido vendeu muitos livros.

- Catorze, se não estou enganado, mas nenhum tinha a magnitude do primeiro, O Tesouro de Rennes-le-Château. Graças a ele, existem agora centenas de volumes publicados sobre o assunto.

- E o que o leva a pensar que tenho o diário do meu marido?

- Ambos sabemos que neste momento ele seria meu, não fosse pela interferência de um homem chamado Cotton Malone. Creio que em tempos trabalhou para si.

- A fazer o quê?

O homem parecia entender o desafio que ela constantemente lhe colocava.

- A senhora trabalha para o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e está à frente de uma unidade conhecida como Magellan Billet, composta por doze advogados escolhidos por si, e que apenas a si prestam contas, e que tratam de assuntos, digamos, sensíveis. Cotton Malone trabalhou alguns anos para a senhora. Todavia, reformou-se o ano passado e agora é dono de uma livraria em Copenhaga. Se não fosse pelas infelizes acções do meu acólito, teria desfrutado de um simpático almoço com o Sr. Malone e depois de se despedir dele ter-se-ia dirigido para aqui, para assistir ao leilão, o verdadeiro motivo que a trouxe à Dinamarca.

Já chegava daquele jogo de faz-de-conta.

- Trabalha para quem?

- Para mim próprio.

- Duvido muito.

- Porquê?

- Anos de prática.

O homem voltou a sorrir, o que a irritava.

- O diário, se faz favor.

- Não o tenho. Depois das atribulações de hoje, achei que o melhor seria guardá-lo num lugar seguro.

- É Peter Hansen quem o tem?

Stephanie não respondeu.

- Pois, também não estava à espera que respondesse.

- A nossa conversa chegou ao fim.

Virou-se para o gradeamento aberto e atravessou-o apressada. À sua direita, na direcção da porta principal, avistou dois homens com cabelo curto. Não eram os mesmos que a haviam abordado na casa leiloeira, mas soube de imediato de quem recebiam ordens.

Voltou a olhar para o homem cujo nome não era Bernardo.

- Tal como aconteceu ao meu acólito na Torre Redonda, não tem por onde fugir.

- Vá-se lixar!

Correu para a esquerda e desapareceu no interior da catedral.

 

Malone avaliou a situação. Encontrava-se numa praça pública, adjacente a uma rua movimentada. As pessoas entravam e saíam da casa leiloeira, enquanto outras esperavam que lhes trouxessem os carros do parque de estacionamento próximo. Era óbvio que a sua vigilância a Stephanie não passara despercebida e amaldiçoou-se por não ter sido mais cuidadoso. Todavia, decidiu que, ao contrário da ameaça proferida, os dois homens não arriscariam serem vistos. O seu objectivo era detê-lo e não eliminá-lo. Talvez a sua missão fosse impedi-lo de chegar à catedral, para que o que quer que estivesse a acontecer no seu interior se pudesse desenrolar sem a sua interferência.

Isso significava que precisava de agir.

Observou enquanto mais pessoas abandonavam o leilão. Uma dessas pessoas, um dinamarquês alto e magro, tinha uma livraria na Ströget, perto da loja de Peter Hansen. O empregado trouxe-lhe o automóvel.

- Vagn - chamou Malone, e afastou-se da pistola encostada às suas costas.

O amigo voltou-se.

- Cotton, como estás? - cumprimentou o homem em dinamarquês.

Malone avançou calmamente em direcção ao carro e olhou para trás, vendo o homem de cabelo curto esconder a arma por baixo do casaco. Apanhara os seus perseguidores desprevenidos, o que só demonstrava que não passavam de amadores. E até era capaz de apostar que também não falavam dinamarquês.

- Podias dar-me boleia até Copenhaga? - pediu.

- Claro. Ainda temos lugar. Entra.

Abriu a porta de trás.

- Obrigado. A minha boleia ainda vai ficar mais um pouco e eu tenho de regressar.

Assim que fechou a porta, acenou pela janela e viu a expressão confusa dos dois homens quando o automóvel passou.

- Não viste nada de interesse no leilão? - perguntou Vagn.

- Não, nada - respondeu Malone, desviando a atenção para o condutor.

- Nós também não, por isso decidimos vir embora e jantar mais cedo.

Malone olhou para a mulher sentada ao seu lado. No banco da frente, seguia outro homem. Como não conhecia nem um nem outro, apresentou-se. Lentamente, o automóvel foi-se afastando das ruas estreitas de Roskilde em direcção à auto-estrada de Copenhaga.

Ao avistar as torres espiraladas da catedral, tocou no ombro do condutor e disse-lhe:

- Vagn, não te importas de me deixar sair? Vou ficar mais um pouco.

- Tens a certeza?

- Sim, lembrei-me agora que ainda tenho umas coisas para fazer.

Stephanie passou ao lado da nave e mergulhou ainda mais no interior da catedral. Para lá dos enormes pilares que se elevavam à sua direita, o serviço religioso continuava. Os saltos baixos dos sapatos faziam barulho no chão de pedra, mas apenas ela os escutava, graças ao som imponente do órgão. O caminho à sua frente rodeava o altar-mor e uma série de meias paredes e estátuas dividiam o claustro do coro.

Olhou para trás e viu o homem que dizia chamar-se Bernardo a caminhar vagarosamente. Contudo, dos outros dois homens não havia nem sinal. Apercebeu-se de que não tardaria a chegar à entrada principal, mas do lado contrário do edifício. Apercebia-se, pela primeira vez, dos riscos que os seus agentes corriam. Ela nunca trabalhara no terreno - tal não fazia parte das suas funções mas aquela também não era uma missão oficial. Tratava-se de um assunto pessoal e oficialmente encontrava-se de férias. Ninguém sabia que ela viajara para a Dinamarca, à excepção de Cotton Malone e, tendo em conta a sua situaçSo, esse anonimato estava a tornar-se um problema.

Contornou o claustro.

O seu perseguidor mantinha uma pequena e discreta distância, sabendo por certo que ela não tinha para onde fugir. Stephanie passou por um lanço de escadas de pedra que desciam para outra capela lateral e, quinze metros à sua frente, viu os dois homens aparecerem no pórtico traseiro, bloqueando-lhe a saída da igreja. Atrás de si, Bernardo continuava a avançar. À sua esquerda ficava outro sepulcro, identificado como Capela dos Reis Magos.

Correu para o interior.

Dois túmulos de mármore que lembravam templos romanos ocupavam o interior. Escondeu-se atrás do que ficava mais recuado e foi assolada por uma enorme sensação de pânico ao aperceber-se da sua situação.

Estava encurralada.

Malone correu para a catedral e entrou pela porta principal. À direita avistou dois homens - robustos, cabelos curtos e roupas discretas - parecidos com os que lhe haviam encostado uma arma às costas. Decidiu não correr mais riscos e meteu a mão por dentro do casaco para tirar a Beretta automática, a arma que todos os agentes do Magellan Billet usavam. Conseguira autorização para ficar com a arma depois da reforma e trouxera-a às escondidas para a Dinamarca, onde era ilegal possuir uma arma de fogo.

Agarrou a coronha da pistola, colocou o dedo no gatilho e escondeu-a ao lado da coxa. Há mais de um ano que não empunhava uma arma. Era uma sensação que pensava pertencer ao passado e da qual não tinha muitas saudades. Porém, o voo de um homem para a morte chamara-lhe a atenção e viera preparado. Era assim que pensava um bom agente e esse tipo de atitude já lhe salvara a vida muitas vezes.

Os dois homens estavam de costas para ele, com as armas à cintura e.as mãos vazias. A música do órgão abafou a sua chegada. Malone aproximou-se e disse:

- Que noite atarefada. - Voltaram-se ambos e ele mostrou-lhes a arma. - Vamos ser civilizados.

Por cima do ombro de um dos homens avistou um terceiro, a cerca de trinta metros, que se dirigia calmamente na sua direcção. Quando o viu deslizar a mão para o interior do casaco de cabedal não ficou à espera e saltou para a esquerda, abrigando-se numa fila de bancos vazia. O disparo ecoou mais alto do que a música e a bala acertou nos bancos à sua frente.

Os outros dois homens sacaram também das armas.

Deitado, Malone disparou duas vezes. Os tiros ecoaram pela catedral, acompanhando a música. Um dos homens foi atingido e o outro fugiu. Malone ajoelhou-se e ouviu mais três disparos. Baixou-se e as balas voltaram a alojar-se nos bancos de madeira.

Respondeu com mais dois tiros disparados na direcção do atirador solitário.

O órgão parou de tocar.

As pessoas perceberam o que se passava e começaram a fugir dos seus lugares, correndo para o exterior pela porta das traseiras. Malone aproveitou a confusão para espreitar por cima dos bancos. Viu o homem do casaco de cabedal junto à entrada de uma das capelas laterais.

- Stephanie - chamou por cima do rebuliço. Não houve resposta.

- Stephanie, sou eu, Cotton Malone. Diga-me se está bem.

Não obteve qualquer resposta.

Rastejou até encontrar o transepto e depois levantou-se. O caminho à sua frente rodeava a igreja e conduzia ao outro lado. Os pilares que ladeavam o trajecto tornavam impossível um tiro certeiro e mais à frente o coro iria escondê-lo por completo. Assim, começou a correr em frente.

Stephanie ouviu Malone chamá-la. Ainda bem que ele era incapaz de não se meter nos assuntos alheios. Continuava no interior da Capela dos Reis Magos, escondida atrás de um túmulo de mármore negro. Escutou tiros e compreendeu que Malone estava a fazer o que podia, tendo em conta que se encontrava em inferioridade numérica. Queria ajudá-lo, mas não estava armada. O máximo que podia fazer era dizer-lhe que estava bem. Todavia, antes de conseguir responder, avistou Bernardo através de outro gradeamento, de arma em punho.

Quando o homem entrou na capela, o medo bloqueou-lhe todos os músculos do corpo.

Malone circundou o coro. As pessoas continuavam a fugir da igreja, em pânico e aos gritos. Por certo alguém já teria chamado a Polícia. Só precisava de controlar os seus atacantes até a ajuda chegar.

Saltou a cerca do claustro e viu um dos homens que alvejara ajudar outro e ambos saírem pela porta das traseiras. Aquele que começara o ataque não estava à vista e isso preocupava-o.

Abrandou o passo e elevou a arma.

Stephanie encolheu-se de medo. Bernardo estava a cinco metros do seu esconderijo.

- Eu sei que está aqui - disse ele num tom rouco e profundo.

- O seu salvador chegou e, por isso, não vou ter tempo de tratar de si. Já sabe o que eu quero. Voltaremos a ver-nos. - Era uma ideia que a arrepiava. - O seu marido também não soube colaborar quando a mesma oferta lhe foi feita há onze anos.

Sentiu-se provocada por aquelas palavras. Sabia que o melhor era manter-se em silêncio, mas não conseguiu.

- O que sabe sobre o meu marido?

- O suficiente. Mas deixemos esse assunto por agora. E ouviu-o afastar-se.

Malone viu o homem do casaco de cabedal abandonar uma das capelas laterais.

- Pare! - gritou.

O outro virou-se e apontou a arma.

Malone mergulhou em direcção a uns degraus que levavam a outra sala. Três balas lascaram a pedra por cima da sua cabeça. Levantou-se de um salto, preparado para disparar, mas o homem estava a trinta metros de distância, e corria em direcção ao pórtico traseiro.

- Stephanie - chamou.

- Estou aqui, Cotton.

Viu a sua antiga chefe emergir da capela. O rosto calmo exibia uma expressão fria. Lá fora começavam a ouvir-se sirenes.

- É melhor sairmos daqui - disse Malone. - Vão chover perguntas e tenho a sensação que não vai querer responder a nenhuma delas.

- Acertou - disse ela.

Ia sugerir que usassem uma das outras saídas quando as portas principais se escancararam e a Polícia invadiu o interior da igreja. Ele ainda segurava a arma, que não passou despercebida.

Os polícias assumiram posições de defesa e apontaram armas. Ele e Stephanie detiveram-se.

- Hen til den landskab. Nu - foi a ordem gritada. - Para o chão. Já.

- O que disseram eles? - perguntou Stephanie.

- Que estamos metidos num grande sarilho.

 

Raymond de Roquefort deixou-se ficar do lado de fora da catedral, para lá do círculo de curiosos, e observou o desenrolar de todo aquele drama. Ele e os seus dois comparsas haviam procurado refúgio nas sombras das enormes árvores que cresciam na praça da catedral. Conseguira sair por uma porta lateral no exacto instante em que a Polícia entrara de rompante pela porta da frente. Ninguém o vira. Por enquanto, a Policia centraria as suas atenções em Stephame Nelle e em Cotton Malone. Levaria ainda algum tempo até que as testemunhas começassem a descrever outros participantes armados. Estava familiarizado com aquele tipo de situações e sabia que manter a cabeça fria era essencial. Por isso, disse a si mesmo para acalmar. Tinha de mostrar aos seus homens que controlava a situação.

A fachada da catedral de tijolo brilhava intermitentemente com luzes vermelhas e brancas. Dali a minutos, apareceram mais polícias e ele espantou-se como é que uma cidade da dimensão de Roskilde possuía tantos agentes da lei. A multidão de curiosos aumentava a cada instante, vindos da praça principal. A situação estava a ficar caótica, o que era perfeito. Sempre se movimentara com maior à-vontade no meio do caos, desde que fosse ele a controlá-lo.

Fitou os dois homens que tinham estado com ele no interior da catedral.

- Estás ferido? - perguntou ao que fora alvejado.

O homem afastou o casaco e mostrou-lhe que o colete à prova de bala fora a sua salvação.

- Estou apenas dorido.

Os outros dois acólitos surgiram logo de seguida por entre a multidão - os que enviara para o leilão. Haviam comunicado por rádio que Stephanie Nelle não conseguira arrematar o livro e ele ordenara-lhes que a encaminhassem para ali. Pensou que talvez ela pudesse ser intimidada, mas os seus esforços tinham sido infrutíferos. E o pior de tudo fora que chamara demasiadas atenções para as suas actividades, graças a Cotton Malone. Os seus homens tinham-no avistado no leilão e recebido ordens para o entreterem enquanto ele falava com Stephanie. Pelos vistos, até isso falhara.

Os dois homens aproximaram-se e um deles informou:

- Perdemos Malone.

- Eu encontrei-o.

- É um homem corajoso e cheio de recursos.

Não era nada que não soubesse. Investigara Malone depois de saber que Stephanie Nelle ia viajar para a Dinamarca e visitá-lo. Uma vez que Malone podia fazer parte do que quer que ela estivesse a planear, fizera questão de saber o máximo que pudesse acerca dele.

O seu nome de baptismo era Harold Earl Malone, tinha quarenta e seis anos e nascera no Estado americano da Geórgia. A sua mãe era natural da Geórgia e o pai um militar de carreira, licenciado pela academia naval de Annapolis, promovido a capitão-de-fragata antes de o seu submarino se ter afundado quando Malone tinha dez anos.

O filho seguira as pisadas do pai, frequentara a academia naval e terminara o curso entre os três primeiros da sua turma. Fora admitido no esquadrão de instrução de voo, e destacara-se o suficiente para escolher o treino de piloto de caças. Depois, estranhamente, a meio da sua formação, pedira transferência e fora aceite na Universidade de Direito de Georgetown, terminando o curso enquanto trabalhava para o Pentágono. Fora então transferido para o Judge Advocate General's Corps, onde trabalhara durante nove anos como advogado. Há treze anos fora destacado para o Departamento de Justiça e para o recém-formado Magellan Billet de Stephanie Nelle, pedindo a reforma no ano anterior.

A nível pessoal, Malone era divorciado e o seu filho de catorze anos vivia com a ex-mulher na Geórgia. Logo após a reforma, deixara a América e mudara-se para Copenhaga. Era um amante de livros e católico, embora não praticante. Falava fluentemente várias línguas, não se lhe conheciam vícios ou fobias e era uma pessoa motivada e dedicada. Possuía também uma excelente memória visual. Tendo em conta estas características, era o tipo de homem que De Roquefort preferia ter a trabalhar para si do que contra si.

E os últimos minutos haviam confirmado o seu currículo.

A desvantagem numérica de três para um não parecia ter amedrontado Malone, em especial quando pensou que Stephanie Nelle podia estar em perigo. Umas horas antes, o seu acólito mais novo também demonstrara coragem e lealdade, embora tivesse agido de modo precipitado ao roubar a mala de Stephanie. Deveria ter esperado até depois da visita a Cotton Malone, quando esta se dirigisse para o hotel, sozinha e vulnerável. Talvez o rapaz estivesse a tentar agradar, sabendo da importância da missão, ou talvez fosse apenas impaciência. Todavia, quando encurralado na Torre Redonda, havia sabiamente escolhido a morte à prisão. Um desperdício, mas o processo de aprendizagem era assim mesmo. Os mais inteligentes sobreviviam e todos os outros eram eliminados.

Fitou um dos homens que permanecera no leilão e perguntou-lhe:

- Conseguiste saber quem arrematou o livro?

O homem assentiu.

- Tive de dar mil coroas ao empregado pela informação.

De Roquefort não estava interessado no preço da fraqueza.

- O nome?

- Henrik Thorvaldsen.

O telemóvel no seu bolso vibrou. O seu segundo comandante sabia que ele estava ocupado, por isso devia ser importante. Atendeu a chamada.

- Já não falta muito - disse a voz ao telefone.

- Quanto tempo?

- Nas próximas horas.

Um bónus inesperado.

- Tenho uma tarefa para ti - afirmou De Roquefort para a pessoa ao telefone. - Há um homem, Henrik Thorvaldsen, um dinamarquês endinheirado que vive a norte de Copenhaga. Sei algumas coisas sobre ele, mas preciso da informação completa daqui a uma hora. Telefona-me quando tiveres tudo.

Desligou o telefone e encarou os seus subordinados.

- Temos de regressar, mas ainda há duas tarefas que precisamos de completar antes de amanhecer.

 

Malone e Stephanie Nelle foram transportados para uma esquadra da Polícia nos arredores de Roskilde. Nenhum deles abriu a boca no caminho, pois sabiam ambos o suficiente para estarem calados. Estava convencido que a visita da sua antiga chefe à Dinamarca nada tinha a ver com o grupo que liderava. Ela nunca trabalhara no terreno, era o vértice do triângulo e toda a gente em Atlanta lhe prestava contas. Para além disso, quando na semana passada ela lhe telefonara e dissera que gostava de o ver, deixara bem claro que se deslocava à Europa de férias. «Grandes férias», pensou ele quando os deixaram sozinhos numa sala bem iluminada, mas sem janelas.

- Ah, acabei por não lhe dizer mas estava-se muito bem na esplanada do Café Nikolaj - comentou Malone. - Tive de beber o seu café. Claro que isso foi antes de ter perseguido um homem até ao topo da Torre Redonda e tê-lo visto saltar lá de cima. - Ela não disse nada. - Também reparei que apanhou a mala do chão. Por acaso não viu o cadáver mesmo ao lado, não? Pois, não deve ter reparado, afinal estava com pressa.

- Já chega, Cotton - ripostou ela num tom que lhe era familiar. -

- Já não trabalho para si.

- Então por que veio atrás de mim?

- Interrogava-me sobre isso mesmo na catedral, mas as balas desconcentraram-me.

Antes que conseguisse responder-lhe, a porta abriu-se e entrou um homem alto de cabelo ruivo e olhos castanhos. Era o inspector da Polícia de Roskilde que os acompanhara desde a catedral e segurava a Beretta de Malone.

- Fiz a chamada que me pediu - disse o inspector para Stephanie. - A Embaixada dos Estados Unidos confirma a sua identidade e ligação ao Departamento de Justiça. Estou à espera de instruções do nosso Ministério do Interior sobre o que fazer consigo. - Voltou-se para Malone. - O senhor é outro assunto. Está na Dinamarca com um visto temporário de residência como comerciante. - Mostrou-lhe a arma. - As nossas leis não permitem o porte de armas e muito menos dispará-las no interior das catedrais, e estamos a falar de uma que é Património da Humanidade.

- Só gosto de quebrar as leis mais importantes - argumentou ele, mostrando ao inspector que não se sentia amedrontado pelas suas palavras.

- Também aprecio o humor, Sr. Malone. Todavia, isto é um assunto da maior seriedade. Não para mim, mas para si.

- As testemunhas referiram que havia outros três homens armados e que foram eles que começaram o tiroteio?

- Temos descrições. Mas é pouco provável que ainda estejam por perto. O senhor, no entanto, está aqui.

- Inspector - interrompeu Stephanie -, toda aquela situação foi culpa minha e não do Sr. Malone. - Lançou-lhe um olhar. - Ele trabalhou em tempos para mim e pensei que pudesse necessitar da sua ajuda.

- Está a dizer-me que o tiroteio nunca teria acontecido se não fosse a interferência do Sr. Malone?

- Não. Estou apenas a dizer que as coisas se descontrolaram, mas não foi responsabilidade dele.

O inspector considerou o que acabara de ouvir com alguma apreensão. Malone interrogou-se sobre o que estaria Stephanie a fazer. Mentir não era o seu forte, mas decidiu não a contradizer frente ao inspector.

- Estava na catedral em missão oficial? - perguntou-lhe o polícia.

- Isso não posso revelar. Creio que compreende.

- O seu trabalho envolve actividades sobre as quais não pode falar? Pensei que fosse advogada.

- E sou. No entanto, a minha unidade está frequentemente envolvida em investigações ligadas à segurança nacional. Na verdade, é por essa razão que existimos.

O inspector não pareceu impressionado.

- O que veio fazer à Dinamarca, Sr.ª Nelle?

- Vim visitar o Sr. Malone. Há mais de um ano que não o via.

- Foi esse o único motivo que a trouxe cá?

- É melhor esperarmos pelo parecer do Ministério do Interior.

- Foi um milagre ninguém se ter magoado naquela confusão. Houve estragos em alguns monumentos sagrados, mas nenhum ferido.

- Eu acertei num dos atacantes - revelou Malone.

- Se isso aconteceu, ele não sangrou.

Isso significava que estavam a usar coletes à prova de bala. O grupo viera preparado, mas para o quê?

- Quanto tempo mais planeia ficar na Dinamarca? - interrogou o inspector.

- Amanhã já cá não estarei - respondeu Stephanie.

A porta abriu-se e um homem fardado entregou uma folha de papel ao inspector. Este leu o seu conteúdo e depois disse:

- Parece que a senhora tem amigos muito poderosos. Os meus superiores dizem-me que devo soltá-la e não fazer perguntas.

Stephanie dirigiu-se para a porta.

Malone levantou-se.

- Estou incluído nessa ordem?

- Sim, também pode ir.

Esticou a mão para levar a arma, mas o inspector não permitiu.

- No papel não há nada que diga que tenho de lhe devolver a Beretta.

Decidiu não discutir. Trataria desse assunto mais tarde. O mais importante agora era falar com Stephanie.

Saiu a correr e encontrou-a lá fora.

Ela fitou-o com uma expressão séria.

- Cotton, agradeço muito o que fez na catedral, mas escute bem o que lhe vou dizer. Não se meta nos meus assuntos.

- Não sabe o que está a fazer. Na catedral meteu-se numa situação perigosa sem estar sequer preparada para ela. Aqueles três homens queriam matá-la.

- Tiveram muitas oportunidades para o fazer, antes de você aparecer, e não o fizeram. Porquê?

- Isso levanta ainda mais questões.

- Não tem que fazer na sua livraria?

- Até tenho muito.

- Então dedique-se a essa tarefa. Quando se reformou o ano passado, deixou bem claro que estava farto de ser alvo de balas. Também me disse que o seu patrono dinamarquês lhe oferecia a possibilidade de ter a vida com que sempre sonhara. Pois então, aproveite-a.

- Foi a Stephanie quem me ligou a convidar para um café.

- E já vi que foi uma péssima ideia.

- Aquele homem não era nenhum ladrão de carteiras.

- Não se meta nisto.

- Salvei-lhe a vida, está em dívida para conigo.

- Ninguém lhe disse para o fazer.

- Stephanie...

- Raios, Cotton, não volto a repetir. Se insistir terei de tomar atitudes drásticas.

Começava a ficar irritado.

- Ai sim? E o que planeia fazer?

- O seu amigo dinamarquês não é o único com influência. Eu também posso mexer uns quantos cordelinhos.

- Faça isso! - ripostou, furioso.

Stephanie não respondeu. Em vez disso, virou costas e afastou-se.

A sua vontade era ir atrás dela e terminar o que tinham começado, mas decidiu que ela tinha razão. Não era assunto dele e já fizera estragos suficientes para uma noite.

Estava na hora de ir para casa.

 

Copenhaga, 22 h 30 m

De Roquefort aproximou-se da livraria. A rua pedonal mesmo em frente estava agora deserta, pois a maior parte dos cafés e restaurantes ficava a quarteirões de distância. O comércio daquela parte da Ströget fechava à noite. Assim que tratasse das duas últimas tarefas, deixaria a Dinamarca. Por certo as testemunhas da catedral já os tinham descrito à Polícia, por isso era importante que não se demorassem mais do que o necessário.

Trouxera consigo de Roskilde quatro dos seus subordinados e planeava supervisionar cada detalhe das suas acções. Já houvera demasiada improvisação para um dia só e parte dela custara a vida de um dos seus homens na Torre Redonda. Não pretendia perder mais nenhum. Dois deles estavam já a inspeccionar as traseiras da livraria e os outros dois permaneciam a seu lado. Havia luz no primeiro andar do edifício.

Ainda bem.

Ele e o dono precisavam de ter uma conversa.

Malone tirou uma Pepsi do frigorífico e desceu quatro lanços de escadas até ao rés-do-chão. A sua loja ocupava todo o edifício. O rés-do-chão era para os livros e os clientes, os outros dois serviam de armazém e o último era um pequeno apartamento ao qual chamava casa.

Acostumara-se ao espaço exíguo e apreciava-o bem mais do que a casa enorme na qual vivera em Atlanta. A sua venda, no ano anterior, por cerca de trezentos mil dólares, dera-lhe um rendimento de sessenta mil dólares para investir na sua nova vida, que lhe fora oferecida, como Stephanie referira, pelo seu benfeitor dinamarquês, um homenzito estranho chamado Henrik Thorvaldsen.

Há catorze meses não passava de um estranho e agora era um dos seus amigos mais chegados.

Deram-se bem desde o início. O homem mais velho via no mais novo qualquer coisa - o quê, Malone nunca entendera - e o seu primeiro encontro em Atlanta, numa quinta-feira chuvosa, tinha selado o destino de ambos os homens. Stephanie insistira que ele tirasse um mês de férias depois do julgamento de três arguidos na Cidade do México - que envolvera tráfico de droga e o assassinato de um director da DEA (1), amigo pessoal do presidente dos Estados Unidos da América - ter terminado numa autêntica carnificina. Ao regressar ao tribunal, após o intervalo para o almoço, Malone fora apanhado no fogo cruzado de uma tentativa de assassinato. Uma acção que não estava relacionada com o julgamento, mas que ainda assim ele tentara controlar. Regressara a casa com um ferimento de bala no ombro esquerdo. O tiroteio resultara em nove feridos e sete mortos, sendo um deles um jovem diplomata dinamarquês chamado Cai Thorvaldsen.

 

Nota 1: Sigla de Drug Enforcement Administration, a agência norte-americana de combate ao narcotráfico (N. da T.)

 

- Vim falar consigo em pessoa - dissera Henrik Thorvaldsen.

Estavam sentados no gabinete de Malone. O ombro ainda lhe doía bastante. Nem sequer se dera ao trabalho de perguntar a Thorvaldsen como o localizara ou como sabia que ele falava dinamarquês.

- O meu filho era a coisa mais importante que eu tinha - continuou ele. - Quando ingressou no corpo diplomático fiquei delirante. Pediu para ser destacado para a Cidade do México, pois era também um estudioso da civilização Asteca. Teria dado um excelente membro do parlamento. Um político inteligente.

Malone foi invadido por um sem-número de primeiras impressões. Thorvaldsen tinha um ar distinto e elegante. Todavia, aquela sofisticação contrastava com o seu corpo deformado: a coluna descrevia um alto exagerado e grotesco, quase como o pescoço de uma garça. A pele do rosto assemelhava-se a couro e sugeria uma vida inteira de escolhas difíceis, as rugas pareciam fendas profundas, e os braços e mãos estavam repletos de manchas. O cabelo grisalho e farto combinava com as sobrancelhas, que lhe davam um ar ansioso. Apenas nos olhos

- cinzento-azulados e estranhamente clarividentes, um deles marcado por uma catarata em forma de estrela detectou alguma paixão.

- Vim conhecer o homem que matou o assassino do meu filho.

- Porquê? - perguntou Malone.

- Para lhe agradecer.

- Podia ter telefonado.

- Prefiro ver a cara do meu interlocutor.

- E neste momento, eu prefiro ficar sozinho.

- Sei que por pouco também não morreu. - Malone encolheu os ombros. - Também sei que pediu demissão do seu trabalho e que vai reformar-se.

- Parece saber muita coisa.

- O conhecimento é o maior dos luxos. Não estava minimamente impressionado.

- Obrigado pela palmadinha nas costas. Tenho um buraco no ombro que não pára de doer. Uma vez que já disse o que tinha a dizer, não se importava de sair?

Thorvaldsen nem sequer se mexeu do sofá. Limitou-se a observar o gabinete e as divisões em redor, visíveis através de uma arcada. Todas as paredes estavam forradas de livros e a casa mais parecia um suporte para as estantes.

- Também sou um apaixonado por livros - comentou o seu convidado. - A minha casa está igualmente repleta deles. Coleccionei-os durante toda a vida.

Era óbvio que aquele homem, com mais de sessenta anos, era dado a coisas grandiosas. Ao abrir a porta, reparara que viera de limusina. Assim, perguntou:

- Como sabia que eu falava dinamarquês?

- Sabe falar várias línguas e fiquei satisfeito ao descobrir que a minha língua materna era uma delas.

Não era uma resposta, mas estaria ele mesmo à espera de uma?

- A sua memória eidética deve ser uma bênção. A minha desapareceu com a idade. Já não me lembro de quase nada.

Duvidava muito que assim fosse.

- O que deseja?

- Já pensou no que vai fazer?

Malone apontou em redor do gabinete.

- Estava a pensar abrir uma livraria de livros antigos. Tenho muitos para vender.

- Parece-me uma excelente ideia. Tenho uma para vender, se quiser.

Decidiu alinhar naquele jogo. No entanto, havia algo no brilho dos olhos daquele homem que lhe dizia que o seu visitante não estava a brincar.

As mãos trémulas procuraram um bolso no interior do casaco e Thorvaldsen colocou um cartão-de-visita no braço do sofá.

- O meu número pessoal. Se estiver interessado, ligue-me. O homem levantou-se.

Malone deixou-se ficar sentado.

- O que o leva a pensar que estou interessado?

- Está sim, Sr. Malone.

Irritou-o aquela certeza, sobretudo porque o homem tinha razão, Thorvaldsen encaminhou-se para a porta.

- Onde fica a livraria? - perguntou, detestando-se por mostrar interesse.

- Em Copenhaga, claro.

Recordava-se de ter esperado três dias antes de fazer o telefonema. A perspectiva de viver na Europa sempre o atraíra. Será que Thorvaldsen até isso sabia? Contudo, nunca achou ser possível viver no estrangeiro. Trabalhava para o governo e era um americano de alma e coração. Porém, isso fora antes dos acontecimentos na Cidade do México. Antes dos sete mortos e nove feridos.

Ainda conseguia ver a expressão indiferente da mulher um dia depois de ter ligado para Copenhaga.

- Concordo. Já estamos separados há bastante tempo, está na altura de nos divorciarmos.

A declaração foi proferida com a mesma objectividade com que costumava defender os seus casos em tribunal.

- Há outra pessoa? - perguntou Malone.

- Não que isso importe, mas sim. Que raios, Cotton, estamos separados há cinco anos. Tenho a certeza que não foste nenhum monge durante esse tempo.

- Tens razão. Está na hora.

- Vais mesmo reformar-te da Marinha?

- Já o fiz. Desde ontem que é oficial.

Ela abanou a cabeça, tal como fazia quando Gary precisava de um conselho maternal.

- Será que alguma vez vais saber o que queres? Primeiro a Marinha, depois a Academia da Força Aérea, a Universidade de Direito, o JAG, o Departamento. Agora esta reforma súbita. O que se segue?

Malone nunca gostara do seu tom condescendente.

- Vou viver para a Dinamarca.

A expressão dela manteve-se, inalterada. Até podia ter dito que se ia mudar para a Lua.

- O que procuras?

- Estou farto que disparem sobre mim.

- Desde quando? Sempre adoraste o Magellan Billet!

- Está na altura de crescer.

Ela sorriu.

- E achas que viver na Dinamarca vai operar esse milagre?

Não tinha a mínima intenção de lhe dar explicações. Ela não queria saber e ele nem tão-pouco desejava o contrário.

- Preciso de falar com o Gary.

- Para quê?

- Quero saber se ele aceita tudo isto.

- E desde quando te imporias com o que ele pensa?

- Foi por causa dele que saí. Quero que tenha um pai sempre presente...

- Tretas, Cotton. Saíste por ti mesmo, não uses o rapaz como desculpa. O que quer que estejas a planear, é por ti, não por ele.

- Não preciso que me digas o que penso ou não penso.

- Então quem te vai dizer? Estivemos casados durante muito tempo. Julgas que era fácil esperar que regressasses de sabe-se lá onde? Sempre a pensar se seria num caixão? Paguei um preço bem alto, Cotton, e Gary também. Apesar disso, aquele rapaz adora-te. Não, ele idolatra-te, incondicionalmente. Ambos sabemos o que ele vai dizer, pois a cabeça dele é mais sã que a nossa. Apesar de todos os nossos falhanços, ele foi um sucesso.

Mais uma vez ela tinha razão.

- Escuta, Cotton. O que te leva a ir viver para a Europa é assunto teu. E se isso te faz feliz, então vai. Mas não uses o teu filho como desculpa. A última coisa que ele precisa é de um pai frustrado a tentar remediar a sua própria infância infeliz.

- Gostas de me insultar, não é?

- Não. Mas a verdade tem de ser dita e tu sabes disso.

Olhou em redor da livraria, já às escuras. Pensar em Pam nunca trouxera nada de bom. A sua animosidade para com ele era vincada e começara há quinze anos. Ele fora infiel e ela descobrira. Tinham decidido tentar manter o casamento e procuraram um conselheiro matrimonial. No entanto, dez anos depois, quando regressou de uma missão, descobriu que ela e Gary se tinham mudado para uma casa alugada do outro lado de Atlanta, levando apenas o necessário. Um bilhete informava-o da nova morada e do fim do casamento. Pam sempre fora assim, pragmática e fria. Estranhamente, nunca pedira o divórcio. Em vez disso, viviam separados, eram civilizados um para o outro e falavam apenas quando era preciso, por causa de Gary.

Contudo, o dia de todas as decisões acabou por chegar. Ele- demitiu-se do emprego, pediu a reforma, pôs fim ao casamento, vendeu a casa e deixou a América, tudo numa longa, desgastante, mas satisfatória semana.

Olhou para o relógio. Devia mandar uma mensagem electrónica a Gary. Falavam, pelos menos, uma vez por dia e ainda era dia em Atlanta. O filho deveria chegar a Copenhaga dali a três semanas para passar um mês com ele. Tinham feito o mesmo no Verão anterior e Malone estava ansioso pela companhia do filho.

A sua discussão com Stephanie continuava a perturbá-lo. Já vira aquele tipo de inocência noutros agentes que, embora cientes dos riscos, acabavam por ignorá-los. O que costumava ela dizer? Podes dizê-las, fazê-las, pregá-las, gritá-las, mas nunca, nunca acredites nas tuas próprias tretas. Era um bom conselho, que ela própria devia seguir. Não fazia a mínima ideia de onde se estava a meter. Mas, a bem da verdade, ele também não. As mulheres nunca tinham sido o seu forte. Apesar de tantos anos casado com Pam, nunca se preocupara em tentar conhecê-la. Assim, como poderia ele entender Stephanie? O melhor era não se meter na vida dela.

Porém, havia algo que o preocupava.

Aos doze anos descobrira que nascera com uma memória eidética. Não era fotográfica, como os filmes e os livros gostavam de retratar, era apenas um recordar de pormenores que a maior parte das pessoas pura e simplesmente esquecia. Isso fora de grande ajuda nos estudos e na aprendizagem de línguas, contudo, tentar separar um detalhe de uma imensidão de outros, por vezes enervava-o.

Tal como naquele momento.

 

De Roquefort forçou a fechadura da porta da frente e entrou, na livraria. Dois dos seus homens seguiram-no. Os outros dois permaneceram do lado de fora, a vigiar a rua.

Avançaram silenciosamente, às escuras e por entre estantes repletas de livros, até às traseiras do piso térreo, e subiram um lanço de escadas estreitas. No primeiro andar, De Roquefort viu luz numa sala e avançou até à porta. Peter Hansen estava refastelado num cadeirão a ler, na mesinha ao lado tinha uma cerveja e no cinzeiro ardia um cigarro.

Ficou surpreendido ao aperceber-se de que não estava sozinho.

- O que está aqui a fazer? - perguntou Hansen em francês.

- Tínhamos um acordo.

O livreiro ergueu-se do cadeirão.

- Ofereceram mais dinheiro que nós. O que podia eu fazer?

- Garantiu-me que não haveria qualquer problema.

Os seus comparsas deslocaram-se até ao outro extremo da sala e detiveram-se junto às janelas. De Roquefort deixou-se ficar à porta.

- O livro foi arrematado por cinquenta mil coroas! Um preço exorbitante - fez notar Hansen.

- Quem ficou com o livro?

- A casa leiloeira não revela essas informações.

De Roquefort interrogou-se se Hansen o acharia assim tão estúpido.

- Paguei-lhe para se assegurar que Stephanie Nelle comprava o livro.

- E eu tentei, mas ninguém me avisou que o preço ia subir daquela maneira. Acompanhei as licitações, mas ela mandou-me parar. Estava disposto a pagar mais de cinquenta mil coroas pelo livro?

- Teria pago qualquer quantia.

- Mas o senhor não estava lá e a determinação dela era menor que a sua. - Hansen parecia ter relaxado. A surpresa inicial fora substituída por uma presunção que De Roquefort se esforçava por ignorar. - E o que torna esse livro tão valioso?

Observou a exígua divisão que tresandava a álcool e a nicotina. Havia centenas de livros espalhados por entre pilhas de jornais e revistas e De Roquefort interrogou-se como poderia alguém viver no meio daquela confusão.

- Faço-lhe a mesma pergunta.

Hansen encolheu os ombros.

- Não faço ideia. Ela não me disse porque o queria.

A sua paciência estava a esgotar-se.

- Eu sei quem arrematou o livro.

- Como?

- Sabe muito bem que os funcionários da leiloeira são fáceis de convencer. A Sr.ª Nelle contactou-o para agir como seu intermediário. Eu contactei-o para obter o livro para que o pudesse copiar antes de você o devolver. E depois você decidiu arranjar um licitador anónimo.

Hansen sorriu.

- Demorou a chegar lá.

- Na verdade, levei apenas uns minutos, assim que obtive a informação.

- Uma vez que agora sou eu quem detém o controlo do livro e Stephanie Nelle deixou de ser um problema, quanto está disposto a pagar para o ter?

De Roquefort já sabia que medidas teria de pôr em prática.

- A questão que se coloca é: quanto vale este livro para si?

- Para mim não tem qualquer valor.

Fez um sinal e os seus dois acompanhantes agarraram Hansen pelos braços. Depois esmurrou o livreiro no estômago e este gemeu e caiu para a frente, sendo suportado apenas pelas pernas.

- O meu desejo era que Stephanie Nelle ficasse com o livro, depois de eu ter feito uma cópia - explicou De Roquefort. - Foi para isso que lhe paguei e apenas para isso. Parece que a sua utilidade chegou ao fim.

- Eu... tenho o... livro.

De Roquefort encolheu os ombros.

- Isso não é verdade. Sei exactamente onde o livro se encontra.

Hansen abanou a cabeça.

- Não conseguirá... obtê-lo.

- Engana-se. Na verdade, será uma tarefa bem fácil.

Malone acendeu as luzes da secção de história. Livros de todos os tamanhos, formas e cores enchiam as prateleiras pretas. Porém, havia um em particular do qual se recordava. Comprara-o há umas semanas, juntamente com outras histórias de meados do século XX, a um negociante italiano convencido de que a sua mercadoria valia mais do que Malone estava disposto a pagar. A maioria dos vendedores não entendia que o valor estava associado ao desejo, à raridade e à escassez. A antiguidade não era forçosamente importante pois, tal como no século XXI, já tinha sido publicado muito lixo.

Recordava-se de ter vendido alguns dos livros do italiano, mas esperava que aquele ainda estivesse por ali. Não se lembrava de o ter visto sair da loja, a menos que algum dos seus empregados o tivesse vendido. Contudo, lá estava ele, na segunda fila a contar de baixo, no exacto lugar onde o havia arrumado.

A capa nunca fora protegida por um guarda-pó e o verde-escuro, por certo a cor original, estava agora transformado em verde-água.

As páginas eram de papel fino, debruadas a ouro e decoradas com gravuras. O título era ainda visível em letras douradas.

Os Cavaleiros do Templo de Salomão.

A data do copyright era de 1922 e, por saber pouco acerca dos templários, Malone interessara-se pelo livro. Sabia que não se tratava de simples monges, sendo antes uma espécie de guerreiros religiosos. Mas a ideia que tinha da Ordem limitava-se a homens de manto branco com cruzes vermelhas. Um estereótipo de Hollywood, sem dúvida. Também se recordava de ter ficado fascinado ao folhear o livro.

Levou-o consigo para uma das muitas cadeiras que povoavam a livraria, sentou-se confortavelmente e começou a ler. Aos poucos começou a formar-se um resumo.

No ano de 1118, os Cristãos voltavam a controlar a Terra Santa. A Primeira Cruzada fora um sucesso estrondoso. Apesar de os Muçulmanos terem sido derrotados, as suas terras confiscadas e as suas cidades ocupadas, não tinham sido dominados. Ao invés disso, permaneciam nas fronteiras dos recém-criados territórios cristãos, matando todos aqueles que se aventuravam na Terra Santa.

A peregrinação segura aos locais santos foi uma das razões das cruzadas e as portagens eram a principal fonte de rendimento para o novo Reino Cristão de Jerusalém. Os peregrinos afluíam diariamente à Terra Santa, vindo sozinhos, em pares ou em grupos, que por vezes chegavam a ser constituídos por comunidades inteiras. Infelizmente, as estradas não eram seguras. Os Muçulmanos patrulhavam os acessos, os bandidos deslocavam-se com facilidade e até os soldados cristãos eram uma ameaça, pois as pilhagens eram para eles uma forma normal de ganhar dinheiro.

Assim, quando um cavaleiro francês, Hugh de Payens, fundou um novo movimento juntamente com outros oito cavaleiros, uma ordem monástica de irmãos guerreiros cuja função inicial era proteger os peregrinos que se dirigiam à Terra Santa, o conceito foi recebido com grande entusiasmo e aceitação. Balduíno II, que governava Jerusalém, permitiu que a mesquita de Al Aqsa lhes servisse de sede - um lugar considerado pelos Cristãos como o antigo Templo de Salomão. A todos os cavaleiros era exigido que fizessem voto de pobreza, castidade e obediência. Tendo em conta o local do seu quartel-general e os seus votos e fé em Cristo, os membros da ordem adoptaram o nome de Pobres Cavaleiros de Cristo e do Tenlplo de Salomão em Jerusalém.

Não detinham quaisquer bens individuais e todos os seus pertences terrenos passavam a ser propriedade da Ordem. Viviam em comunidade e tomavam as refeições em silêncio. Cortavam o cabelo muito curto, mas deixavam crescer a barba. Dependiam da caridade para comerem e se vestirem e seguiam as regras monásticas ditadas por Santo Agostinho. A insígnia da Ordem era particularmente simbólica, retratando dois cavaleiros a montar o mesmo cavalo - uma clara referência aos tempos em que os cavaleiros não tinham recursos para comprar um cavalo.

Para a mentalidade medieval, a existência de uma ordem religiosa composta por guerreiros não era uma contradição. Na verdade, a nova Ordem apelava ao fervor religioso e à valentia militar. A sua criação também resolveu outro problema, a falta de efectivos, pois agora existia uma presença constante de guerreiros fiéis.

Por volta de 1128 a Ordem já se havia expandido, e contava com o apoio político dos mais poderosos. Os príncipes europeus e os prelados eram frequentes doadores de terras, dinheiro e materiais. O papa acabou por reconhecer a Ordem e em pouco tempo os Cavaleiros Templários passaram a ser a única força armada permanente na Terra Santa.

Obedeciam a uma Regra rígida que continha seiscentas e oitenta e seis leis nas quais se estipulava a proibição de caçar e de jogar. Só lhes era permitido falar quando necessário e não podiam rir. A ornamentação também não era permitida. Dormiam com as luzes acesas e vestidos, prontos para o combate.

O grão-mestre era o senhor absoluto. Depois dele vinha o senescal que detinha funções de conselheiro e deputado. Os marechais comandavam as tropas durante as batalhas. Os servos eram os artífices, trabalhadores e criados que apoiavam os cavaleiros e formavam a espinha dorsal da Ordem. Um decreto papal de 1148 dispõe que cada cavaleiro deverá usar uma cruz vermelha de quatro pontas iguais sobre um manto branco. Os templários foram o primeiro exército disciplinado, equipado e regulamentado desde o tempo dos romanos. Os cavaleiros da Ordem participaram em todas as cruzadas subsequentes, sendo os primeiros nas linhas da frente e os últimos a retirar, não podendo nunca ser libertados mediante o pagamento de resgate. Acreditavam que servir a Ordem era uma forma de garantir o descanso eterno no Céu e, durante mais de duzentos anos de lutas constantes, vinte mil templários conquistaram o seu objectivo ao morrerem em combate.

Em 1139, a bula papal colocou a Ordem sob o controlo exclusivo do papa, o que permitiu que esta funcionasse independente de todo e qualquer monarca. Era uma atitude sem precedentes e, à medida que os templários ganhavam influência política e económica, foram acumulando enormes reservas de riqueza. Tanto reis como patriarcas deixavam-lhes largas somas nos seus testamentos. Também faziam empréstimos a mercadores e barões sob a promessa de que as suas casas, terras, vinhas e jardins seriam doados à Ordem após a sua morte. Aos peregrinos garantiam segurança nas viagens para a Terra Santa a troco de generosos donativos. Por volta do início do século XIV, os templários rivalizavam com os genoveses, os lombardos e até os judeus, enquanto detentores e controladores de riqueza. Os reis de França e de Inglaterra mantinham os seus tesouros guardados nos cofres da Ordem e até os muçulmanos obtinham empréstimos junto deles.

O Templo de Paris transformou-se no centro do mercado mundial de valores. A organização evoluiu lentamente para um complexo financeiro e militar, auto-suficiente e auto-regulador. Não tardou que as propriedades dos templários, cerca de nove mil herdades, gozassem de isenção do pagamento de impostos e esse privilégio deu origem a conflitos com os cleros locais, pois as suas igrejas sofriam enquanto os templários prosperavam. A competição com as outras ordens, em particular com os Cavaleiros Hospitalários, agudizou ainda mais as tensões.

Durante os séculos XII e XIII, o controlo da Terra Santa alternou entre Cristãos e Árabes. A ascensão de Saladino como líder dos Muçulmanos deu aos Árabes o seu primeiro grande chefe militar e, em 1187, tem lugar a tomada de Jerusalém que põe fim à ocupação cristã da cidade. No caos subsequente, os templários confinaram as suas actividades a Acre, uma fortaleza nas costas do Mediterrâneo. Nos cem anos seguintes, o seu poderio na Terra Santa foi definhando, ao contrário do que acontecia na Europa, onde a Ordem florescia a cada dia, graças a uma extensa rede de igrejas, abadias e propriedades. Quando Acre caiu em 1291, a Ordem perdeu a sua última base na Terra Santa e a razão de existir.

O seu constante secretismo, que a distinguiu inicialmente, acabou por encorajar a calúnia. Em 1307, Filipe IV de França, cobiçando as vastas riquezas dos templários, mandou prender grande parte dos irmãos. E muitos outros monarcas fizeram o mesmo. Seguiram-se sete anos de acusações e julgamentos. Em 1312, Clemente V dissolveu formalmente a Ordem. A última estocada chegaria a 18 de Março de 1314 quando o último grão-mestre, Jacques de Molay, foi queimado na estaca.

Malone continuou a ler. Havia qualquer coisa que o perturbava. Algo que lera quando folheara o livro pela primeira vez há semanas. Ao avançar pelas páginas, ficou a saber como, antes da sua extinção em 1307, a Ordem se tornara perita em navegação, criação de animais, agricultura e, mais importante que tudo, finanças. Enquanto a Igreja proibia experiências científicas, os templários aprendiam com os seus inimigos, os Árabes, cuja cultura encorajava o pensamento livre. Os templários também esconderam grande parte dos seus bens, tal como os bancos modernos espalham a riqueza por vários cofres. Havia até um poema francês citado no livro e que descrevia de forma concisa e brilhante a opulência e consequente ruína e desaparecimento dos templários:

Os irmãos, os mestres do Templo, Que tantas riquezas possuíam:

Ouro e prata e terras.

Onde estão agora? Como conseguiram?

Era seu o poder e ninguém ousava

Tirar-lhes a riqueza acumulada;

Tudo compravam, nada vendiam.

A História não tratara bem a Ordem. Embora tenham prendido a imaginação de poetas e romancistas - os Cavaleiros do Graal em Parsifal eram templários, tal como os demoníacos anti-heróis em Ivanhoe -, à medida que as cruzadas começaram a ganhar o rótulo de agressão e imperialismo europeu, os templários tornaram-se parte integrante do seu fanatismo violento.

Malone continuou a avançar pelo livro até que encontrou a passagem que se recordava de ter lido da primeira vez. Sabia que estava ali. A sua memória nunca falhava. As palavras descreviam como, no campo de batalha, os templários exibiam sempre um estandarte vertical dividido em duas partes: uma preta, que representava o pecado que os irmãos cavaleiros haviam deixado para trás, e a outra branca, que simbolizava a sua nova vida na Ordem. A legenda do estandarte estava escrita em francês. Traduzida, significava um estado nobre e glorioso. A palavra também era utilizada como grito de guerra da Ordem.

Beauséant. Sê glorioso.

Exactamente a mesma palavra que o homem da faca gritara ao saltar da Torre Redonda. O que se estaria a passar?

Sentimentos antigos voltaram a agitar-se dentro de si. Os bons agentes eram simultaneamente inquisitivos e cautelosos. Esquecer qualquer um desses atributos podia significar uma potencial tragédia. Malone cometera esse erro uma vez, há anos, durante uma missão, e a sua impetuosidade custara a vida a um dos operacionais. Não seria a última pessoa por cuja morte se sentiria responsável, mas fora a primeira e jamais esquecera essa falta de atenção.

Stephanie estava em apuros. Disso não restava qualquer dúvida. Não valia a pena voltar a falar com ela, pois esta tinha-lhe dito que se mantivesse longe dos seus assuntos. Talvez Peter Hansen pudesse fornecer-lhe algumas informações.

Consultou o relógio. Já era tarde, mas Hansen também nunca se deitava cedo e ainda devia estar levantado. Se assim não fosse, acordá-lo-ia.

Colocou o livro de lado e dirigiu-se para a porta.

 

Onde está o diário de Lars Nelle? - perguntou De Roquefort.

Ainda agarrado pelos dois homens, Peter Hansen fitou-o. De Roquefort sabia que em tempos Hansen conhecera Lars Nelle. Quando descobriu que Stephanie Nelle ia à Dinamarca para assistir ao leilão de Roskilde, presumiu que ela o contactaria. Fora por essa razão que falara primeiro com Hansen.

- De certeza que Stephanie Nelle lhe falou no diário do marido.

Hansen abanou a cabeça.

- Não, não me disse nada sobre isso.

- Quando Lars Nelle estava vivo, nunca lhe disse que mantinha um diário?

- Nunca.

- Tem consciência da sua situação, não tem? Nada do que eu queria aconteceu e, pior que tudo, desiludiu-me.

- Sei que Lars apontava tudo de modo muito meticuloso - revelou Hansen com resignação.

- Continue.

Hansen pareceu ganhar alguma confiança.

- Assim que me soltar.

De Roquefort permitiu-lhe aquela pequena vitória. Fez um sinal e os dois homens largaram-no. Hansen apressou-se a dar um gole na caneca de cerveja que tinha sobre a mesa.

- Lars escreveu muitos livros sobre Rennes-le-Château. As histórias sobre pergaminhos perdidos, geometrias escondidas e quebra-cabeças vendem sempre muito bem. - Hansen estava mais seguro de si. - Fez menção a todos os tesouros que conhecia. O ouro visigodo, as riquezas dos templários, os despojos dos cátaros. Ele costumava dizer: «Com um fio tece-se um tapete.»

De Roquefort sabia tudo sobre Rennes-le-Château, um pequeno povoado no Sul de França que existia desde o tempo dos Romanos. Na última metade do século XIX, um padre gastara largas somas de dinheiro a remodelar a igreja local. Décadas mais tarde começaram a circular rumores que afirmavam que o padre financiara as obras com um tesouro que descobrira. Lars Nelle soubera daquele intrigante povoado há trinta anos e escrevera um livro sobre a história, que viria a tornar-se um grande sucesso.

- Diga-me então o que estava escrito nesse caderno de apontamentos - pediu De Roquefort. - Eram informações diferentes daquelas que Lars Nelle publicou nos seus livros?

- Já lhe disse que não sei nada sobre nenhum caderno de apontamentos. - Hansen deu outro gole na cerveja. - Mas conhecendo Lars, duvido que tenha revelado ao mundo tudo o que sabia.

- E o que escondia ele?

Nos lábios do dinamarquês esboçou-se um sorriso malicioso.

- Tenho a certeza que sabe. Mas garanto-lhe que eu não faço ideia. Sei apenas o que li nos livros que escreveu.

- Se eu fosse a si não presumia nada.

A expressão de Hansen não se alterou.

- Mas diga-me, o que torna o livro do leilão assim tão importante? Nem sequer aborda a temática de Rennes-le-Château.

- É a chave de tudo.

- Como pode um livro insignificante, escrito há mais de cento e cinquenta anos, ser a chave de tudo?

- Muitas vezes as coisas mais simples são as mais importantes.

Hansen alcançou o cigarro que ardia no cinzeiro.

- Lars era um homem estranho. Nunca o entendi. Estava completamente obcecado com a história de Rennes. Adorava aquele lugar. Até comprou lá uma casa. Fui lá uma vez. Lúgubre.

- Lars alguma vez lhe disse se tinha encontrado alguma coisa?

Hansen voltou a olhá-lo com um olhar desconfiado.

- Como o quê?

- Não se arme em esperto. Não estou com disposição para isso.

- Você deve saber alguma coisa, ou não estaria aqui. - Hansen dobrou-se para colocar o cigarro de volta no cinzeiro, mas as suas mãos seguiram em direcção a uma gaveta da mesinha de apoio do interior da qual retirou uma arma. Um dos homens de De Roquefort deu um pontapé na mão de Hansen e este deixou cair a pistola.

- Isso não foi muito inteligente - comentou De Roquefort.

- Vá-se lixar! - exclamou Hansen, a esfregar a mão.

O rádio preso à cintura de De Roquefort deu sinal no seu ouvido e uma voz disse:

- Aproxima-se um homem. - Fez-se uma pausa. - É Malone e vem para a loja.

Não era uma visita esperada, mas talvez estivesse na hora de deixar uma mensagem bem clara a Malone para que se mantivesse longe daquele assunto. Fez sinal aos seus dois subordinados e estes voltaram a agarrar Hansen pelos braços.

- A traição tem um preço - disse De Roquefort.

- Quem é você?

- Alguém com quem não deveria ter brincado. - De Roquefort fez o sinal da cruz. - Que o Senhor o acompanhe.

Malone viu luz nas janelas do terceiro andar. A rua em frente à livraria de Hansen estava deserta. Havia apenas alguns carros estacionados, que desapareceriam pela manhã, altura em que os compradores voltavam a invadir aquela zona pedonal da Ströget.

O que dissera Stephanie quando estivera na livraria ao início da tarde? «O meu marido disse que o senhor era capaz de encontrar uma agulha num palheiro.» Isso significava que Peter Hansen estava aparentemente relacionado com Lars Nelle e essa antiga sociedade explicaria a razão que levara Stephanie a procurar Hansen e não ele. Apesar disso, não explicava a infinidade de questões que lhe martelavam a cabeça.

Malone nunca conhecera Lars Nelle. O marido de Stephanie falecera um ano antes de ele se juntar ao Magellan Billet, altura em que ele e a sua chefe começavam a conhecer-se. Todavia, depois disso lera todos os livros de Nelle, que considerava uma mistura de história, factos, conjecturas e muitas coincidências. Lars era um conspirador internacional que sempre acreditara que a antiga província de França, conhecida como o Languedoc, albergava um grande tesouro. Era uma teoria compreensível, tendo em consideração que aquela zona sempre fora terra de trovadores, de castelos e cruzadas, e o local onde a lenda do Santo Graal começara. Infelizmente, o trabalho de Lars Nelle nunca gerara estudos sérios. Em vez disso, as suas teorias haviam chamado a atenção de escritores e realizadores independentes que desenvolveram a ideia original, propondo teorias que oscilavam entre extraterrestres, pilhagens romanas, e a essência oculta do próprio Cristianismo. Claro que nunca nada fora provado ou encontrado. No entanto, Malone estava certo que o turismo francês adorava todas aquelas especulações.

O livro que Stephanie tinha tentado adquirir no leilão de Roskilde intitulava-se Pierres Gravées du Languedoc, Pedras gravadas do Languedoc. Um título estranho para um tema ainda mais bizarro. Que importância poderia ter? Sabia que Stephanie nunca levara o trabalho do marido a sério e esse fora sempre o grande problema do seu casamento e que acabara por levar a uma separação continental - Lars a viver em França e ela na América. Assim sendo, o que fazia ela na Dinamarca onze anos depois da sua morte? E por que razão havia terceiros tão interessados naquele assunto, a ponto de morrerem?

Continuou a andar e tentou organizar os pensamentos. Já sabia que Peter Hansen não ia ficar contente por o ver, por isso disse a si mesmo que deveria escolher as palavras com cuidado. Precisava de acalmar o idiota e arrancar-lhe o máximo de informações possível. Até pagaria por elas, se fosse necessário.

Algo rebentou numa das janelas do edifício de Hansen.

Malone olhou para cima ao mesmo tempo que um corpo, atirado de cabeça, deu uma volta no ar e aterrou sobre a capota de um dos carros estacionados na rua.

Correu em direcção aos automóveis e viu Peter Hansen. Tomou-lhe o pulso. Estava fraco.

Miraculosamente, Hansen abriu os olhos.

- Consegue ouvir-me? - perguntou Malone.

Não obteve resposta.

Algo passou a assobiar perto da sua cabeça e o peito de Hansen elevou-se. Outro silvo e o crânio abriu-se, espirrando sangue para o seu casaco.

Malone voltou-se para trás.

Na janela partida, três andares mais acima, estava um homem com uma arma. O mesmo homem de casaco de cabedal que começara o tiroteio na catedral. Nos segundos que o atirador demorou a ajustar a mira, Malone procurou abrigo atrás do carro.

Seguiu-se uma chuva de balas.

O seu rebentar parecia abafado, como alguém a bater palmas. O homem estava a usar um silenciador. Uma das balas perfurou o tejadilho junto a Hansen e outra estilhaçou o pára-brisas.

- Sr. Malone, este assunto não lhe diz respeito - gritou um homem lá de cima.

- Agora já diz.

Não ia ficar ali a debater o assunto. Agachou-se ainda mais e usou a fila de automóveis estacionados como escudo enquanto rastejava rua abaixo.

Os tiros continuavam a procurar caminho por entre metal e vidro.

Vinte metros mais à frente, arriscou olhar para o edifício de onde provinham os tiros. O homem já não estava à janela. Malone ergueu-se e desatou a correr, virando na primeira esquina. Contornou mais outra, tentando usar o labirinto de ruas em sua vantagem e colocando cada vez mais edifícios entre si e os seus perseguidores. O sangue latejava-lhe nas têmporas e o coração batia apressado. Raios. Estava de volta à acção.

Parou por uns instantes para recuperar o fôlego.

Atrás de si aproximavam-se passos em corrida. Interrogou-se se os seus perseguidores conheceriam bem a Ströget. O melhor seria partir do pressuposto que sim. Virou outra esquina e ficou rodeado por mais lojas às escuras. A tensão acumulava-se-lhe no estômago. Começava a ficar sem opções. À sua frente ficava uma das muitas praças abertas da cidade com uma fonte ao centro. Todos os cafés que contornavam o perímetro fechavam durante a noite e não havia ninguém por ali perto. Os esconderijos começavam a escassear. Do outro lado da praça erguia-se uma igreja. Pelas janelas de vitral reparou numa luz difusa. Durante o Verão, as igrejas de Copenhaga ficavam abertas até à meia-noite. Precisava de um lugar onde se esconder, pelo menos durante um bocado, e correu em direcção ao portal de mármore.

O trinco abriu. Malone empurrou a porta para dentro e depois fechou-a cuidadosamente, esperando que os seus perseguidores não se tivessem apercebido.

Pequenas luzes iluminavam o interior vazio. O altar e as estátuas projectavam sombras ameaçadoras por todo o lado. Malone procurou a escuridão junto ao altar e viu degraus e uma luz pálida oriunda do fundo das escadas. Desceu, sentindo o nervosismo crescer.

No fundo, um portão de ferro abria para um espaço aberto com três naves, tecto baixo e abobadado. Ao centro estavam dois sarcófagos de pedra com lajes de granito esculpidas. A única iluminação daquele lugar escuro provinha de uma pequena luz cor-de-âmbar junto a um pequeno altar. Parecia um bom lugar para se esconder. Não podia voltar para a loja. Por certo já saberiam onde ele morava. Pensou que o melhor seria acalmar-se, contudo estes segundos de descontracção foram interrompidos pelo abrir de uma porta lá em cima. O seu olhar disparou para o tecto.

Duas pessoas caminhavam no piso de cima. Malone escondeu-se ainda mais na escuridão. A mente foi-lhe invadida por um pânico familiar, que reprimiu com um pouco de autocontrole. Precisava de algo que pudesse usar como arma de defesa e procurou na escuridão. Numa abside, a seis metros dali, reparou num candelabro de ferro. Pé ante pé avançou até lá.

O ornamento tinha cerca de um metro e meio de altura. Uma solitária vela erguia-se na ponta. Malone retirou a vela e avaliou o peso do ferro. Era pesado. Com o castiçal na mão, esgueirou-se pela cripta e escondeu-se atrás de um pilar. Alguém começou a descer as escadas.

Malone espreitou para lá dos túmulos, por entre a escuridão. O seu corpo vibrava com uma energia que, no passado, sempre o ajudara a clarificar os pensamentos.

Ao fundo das escadas surgiu a silhueta de um homem. Na mão trazia uma arma com um silenciador acoplado ao cano. Malone segurou melhor o candelabro. O homem avançava na sua direcção. Contou mentalmente até cinco, cerrou os dentes e balançou o candelabro. Apanhou o seu perseguidor em cheio no peito e lançou a sombra para cima de um dos túmulos.

Deitou o candelabro para o lado e esmurrou o queixo do homem. A pistola deslizou pelo chão. O seu atacante caiu.

Malone procurou a arma enquanto mais passos se aproximavam da cripta. Encontrou a pistola e colocou de imediato o dedo no gatilho.

O outro homem disparou dois tiros na sua direcção.

Do tecto choveu pó, pois as balas encontraram apenas pedra. Malone mergulhou junto do pilar mais próximo e disparou também. Em resposta, escutou um tiro abafado que fez ricochete na parede atrás de si.

O segundo atacante tomou posição atrás de um dos túmulos.

Malone estava encurralado.

Entre si e a única saída estava um homem armado. O primeiro perseguidor começava a recuperar os sentidos, gemendo por causa dos golpes. Malone estava armado, mas as probabilidades estavam contra si.

Observou a câmara mal iluminada e preparou-se.

De súbito, o homem que se levantava do chão voltou a cair.

Passaram alguns segundos.

O silêncio era absoluto.

Do andar de cima ecoaram passos. Depois escutou a porta da igreja abrir-se e fechar. Não se mexeu. Aquela quietude era enervante. Perscrutou a escuridão. Não detectou movimento em lado nenhum.

Decidiu arriscar e abandonar o seu esconderijo. O primeiro atacante estava caído no chão e o outro homem encontrava-se igualmente deitado e inerte. Verificou se algum deles tinha pulsação. Era fraca em ambos. Foi então que reparou em algo num dos pescoços. Aproximou-se mais e retirou um pequeno dardo, na ponta do qual estava uma pequena agulha. O seu salvador tinha acesso a equipamento sofisticado. Os dois homens caídos no chão eram os mesmos que estavam à porta da casa leiloeira naquela tarde. Mas quem os teria atingido? Voltou a agachar-se, retirou-lhes as armas e revistou-os. Nenhum deles trazia identificação. Um tinha um rádio por baixo do casaco. Malone tirou-lhe o aparelho, o auricular e o microfone.

- Está aí alguém? - disse para o microfone.

- Quem fala?

- É o mesmo homem que estava na catedral? Aquele que matou Peter Hansen?

- Sim e não.

Entendeu que ninguém iria revelar muita coisa em canal aberto, mas a mensagem fora clara.

- Os seus homens foram eliminados.

- Foi você?

- Gostava de ficar com os créditos, mas não. Quem é o senhor?

- Isso não é relevante para a nossa conversa.

- De que modo é que Peter Hansen era um empecilho para si? _ Detesto quem me engana.

- Isso é óbvio. No entanto, alguém apanhou os seus dois homens de surpresa. Não sei quem foi, mas gosto dele.

Não houve resposta. Esperou uns segundos e quando se preparava para falar, o rádio emitiu som.

- Se eu fosse a si, aproveitava a maré de sorte e voltava a dedicar-me exclusivamente à venda de livros.

O outro rádio desligou-se.

 

Abbaye des Fontaines Pirenéus Franceses, 23 h 30 m

O senescal acordou. Adormecera numa cadeira à beira da cama. Olhou de relance para o relógio que estava sobre a mesa-de-cabeceira e constatou que dormira cerca de uma hora. Depois desviou a atenção para o mestre. O som familiar da sua respiração arrastada desaparecera. Sob a luz pálida que banhava o interior da abadia, viu que o véu da morte se estendera sobre os olhos do grão-mestre.

Verificou se ainda tinha pulsação.

O mestre falecera.

A coragem abandonou-o quando se ajoelhou para rezar pelo amigo. O cancro vencera. A batalha terminara. Porém, outro conflito de diferentes proporções iria em breve começar. Pediu a Deus que aceitasse a alma do seu mestre no céu. Ninguém mais do que ele merecia a salvação. Tudo o que sabia, aprendera com o grão-mestre - os seus falhanços pessoais e solidão emocional tinham-no colocado há muito tempo sob a sua alçada. Aprendera depressa e tentara nunca o desapontar. «Os erros são tolerados desde que não se repitam», dissera-lhe o mestre, e apenas uma vez, já que ele nunca se repetia.

Muitos dos irmãos encaravam essa directriz como sinal de arrogância. Outros criticavam o que achavam ser uma atitude condescendente. Contudo, ninguém questionava a autoridade do mestre. O dever de qualquer irmão era obedecer.

As interrogações chegariam com a escolha de um novo mestre, o que teria lugar no dia seguinte.

Pela sexagésima sétima vez desde o Início, que remontava aos princípios do século XII, outro homem seria eleito grão-mestre. Todos haviam servido a Ordem até à morte. Alguns tinham até morrido no campo de batalha, mas esses dias de guerra aberta há muito que tinham terminado. Actualmente, as buscas eram mais subtis e os campos de batalha locais que os mestres nunca teriam imaginado. Os tribunais, a Internet, livros, revistas, jornais - eram meios que a Ordem patrulhava com regularidade, assegurando-se de que os seus segredos estavam a salvo e a sua existência incógnita. Todos os mestres, independentemente da sua aptidão, tinham conseguido manter esse objectivo. Todavia, o senescal antevia que o próximo mandato seria bastante decisivo. Estava em preparação uma guerra interna, que o mestre agora falecido conseguira reprimir com uma capacidade única de adivinhar os passos dos seus inimigos.

No silêncio que o rodeava, a água corrente no exterior parecia mais próxima. Durante o Verão, ele e os irmãos costumavam ir até às quedas-d'água e desfrutar de um mergulho nas frias piscinas naturais, e ele ansiava por esses momentos de descontracção. No entanto, sabia que nos próximos tempos não haveria lugar para tais descansos. Decidiu não informar a irmandade da morte do grão-mestre até às orações da hora de prima, que teriam lugar dali a cinco horas. No passado, ter-se-iam juntado todos ao soar da meia-noite para as matinas, mas esse ritual havia seguido o caminho de muitas outras regras. A Ordem era agora regida por um horário mais realista, que reconhecia a importância do sono, e orientado para a natureza prática do século XXI.

Sabia que ninguém entraria nos aposentos do mestre. Apenas ele, como senescal, detinha esse privilégio, em especial estando o grão-mestre doente. Assim, pegou no cobertor e tapou a cara do amigo.

A mente foi-lhe invadida por vários pensamentos e lutou para afastar a crescente tentação. A Regra apelava à disciplina e ele sentia-se orgulhoso por nunca ter cometido nenhuma violação. Todavia, naquele momento havia umas quantas a chamar por si. Havia pensado nelas todo o dia enquanto velava o seu amigo. Se a morte tivesse reclamado o grão-mestre enquanto a abadia fervilhava de vida, teria sido impossível realizar aquilo que agora contemplava. Contudo, àquela hora tinha livre-trânsito e, dependendo do que acontecesse nos próximos dias, aquela podia bem ser a sua única oportunidade.

Desse modo, puxou o cobertor para trás e abriu as vestes azuis do mestre, expondo-lhe o peito. A corrente estava lá, exactamente onde deveria estar, e ele passou os elos de ouro pela cabeça.

Na ponta do fio balançava uma chave de prata.

- Perdoe-me - murmurou, enquanto voltava a tapá-lo com o cobertor.

Atravessou o quarto e dirigiu-se a um armário renascentista escurecido após incontáveis camadas de cera. No seu interior, encontrava-se uma caixa de bronze decorada com um brasão de prata. Apenas o senescal tinha conhecimento da sua existência e vira o mestre abri-la muitas vezes, embora nunca tivesse visto o que continha. Levou a caixa até à escrivaninha, inseriu a chave na fechadura e uma vez mais implorou por perdão.

Procurava um livro com capa de pele que o mestre guardara durante anos. Sabia que estava guardado na caixa - o mestre colocara-o lá na sua presença -, mas quando abriu a tampa viu apenas um rosário, alguns papéis e um missal. O livro não estava lá.

O seu medo era agora uma realidade. Onde antes existiam apenas suspeitas, havia agora certezas.

Guardou a caixa no armário e saiu do quarto.

A abadia era um labirinto de alas, cada uma acrescentada num século diferente, cuja arquitectura dava origem a um edifício complexo que albergava agora cerca de quatrocentos irmãos. Incluía uma capela, um pátio com claustros, oficinas, escritórios, um ginásio, salas comuns para higiene, refeições, entretenimento, uma casa do capítulo, uma sacristia, um refeitório, salões, uma enfermaria e uma biblioteca monstruosa. Os aposentos do grão-mestre situavam-se numa ala construída originalmente no século XV, com vista para precipícios rochosos sobre um vale estreito. Os alojamentos dos irmãos situavam-se ali perto e o senescal atravessou um portal em arco que levava ao dormitório, onde as luzes permaneciam acesas - a Regra não permitia que os aposentos ficassem totalmente às escuras. Não se apercebeu de nenhum movimento e não ouviu barulho, com excepção de um ressonar intermitente. Séculos atrás, estaria um guarda à porta e ele interrogou-se se esse costume não teria de ser reactivado nos próximos tempos.

Atravessou a larga passagem, seguindo o tapete que cobria as pedras do chão. O corredor era ladeado por quadros, estátuas e monumentos sobre o passado da abadia. Ao contrário de outros mosteiros dos Pirenéus, aquele não fora vítima das pilhagens que tinham ocorrido durante a Revolução Francesa, por isso a sua arte e a sua mensagem tinham sobrevivido.

Encontrou a escadaria principal e desceu até ao piso térreo. Atravessou mais corredores, passou por áreas onde os visitantes aprendiam o modo de vida monástico. Não havia muitos convidados, alguns milhares por ano, as receitas apenas um modesto suplemento para as despesas anuais de manutenção, mas as visitas eram as suficientes para ser necessário garantir a privacidade dos irmãos.

A entrada que procurava ficava no fim de outro corredor do rés-do-chão. A porta, decorada com ferro trabalhado, estava aberta, como sempre.

Entrou na biblioteca.

Poucas colecções podiam gabar-se de nunca terem sido mexidas, porém os incontáveis volumes que o rodeavam permaneciam intactos há sete séculos. Tudo começara com apenas alguns livros, depois a colecção crescera graças a ofertas, doações, compras e, no Início, devido à produção própria de escribas que trabalhavam dia e noite. Os temas eram variados, com ênfase em teologia, filosofia, lógica, história, leis, ciência e música. A frase latina gravada por cima da porta principal não podia ser mais adequada.

 

       CLAUSTRUM SINE ARMARIO

       EST QUASI CASTRUM SINE ARMENTARIO

 

Um mosteiro sem biblioteca é como um castelo sem depósito de armas.

Parou e ficou à escuta.

Não estava ninguém por perto.

A segurança não era um problema, pois oitocentos anos de Regra tinham sido mais do que suficientes para garantir o amparo da colecção. Nenhum irmão se atreveria a entrar sem permissão. Contudo, ele não era um simples irmão. Ele era o senescal. Pelo menos, durante mais um dia.

Movimentou-se por entre as estantes até ao extremo da enorme sala e parou junto a uma porta de metal preta. Passou o cartão pela ranhura do identificador colocado na parede. Apenas o mestre, o arquivista e ele possuíam cartões. O acesso aos volumes guardados atrás daquela porta era obtido apenas com a autorização directa do grão-mestre. Até o arquivista tinha de pedir autorização antes de entrar. No interior daquela sala encontrava-se uma enorme variedade de livros valiosos, mapas antigos, documentos de propriedade, um registo dos membros e, mais importante, as Crónicas que continham a narrativa histórica de toda a existência da Ordem. Do mesmo modo que uma acta registava as acções do Parlamento britânico ou do Congresso americano, as Crónicas detalhavam os sucessos e os fracassos da Ordem. Os registos escritos eram ainda guardados, muitos com capas quebradiças e fivelas de bronze, cada um parecendo uma pequena arca. Todavia, grande parte da informação fora já digitalizada e inserida em computador, tornando simples a consulta electrónica de registos com novecentos anos.

Entrou e deambulou por entre as estantes até encontrar o códice que permanecia no seu lugar habitual. O pequeno volume media vinte centímetros por doze e dois centímetros de espessura e as suas páginas eram encadernadas a couro cru, que recobria placas de madeira muito leve. Encontrara-o há dois anos. Não era ainda um livro, mas um seu antepassado, uma primeira tentativa que veio substituir os pergaminhos e permitiu que os textos passassem a ser escritos em ambos os lados de uma folha.

Abriu cuidadosamente a capa.

Não havia página de rosto. O texto latino aparecia emoldurado por uma iluminura em tons de vermelho, verde e dourado. Descobrira que o livro fora copiado no século XV por um dos copistas da abadia. A grande maioria dos códices antigos fora destruída, as suas folhas utilizadas noutros livros ou como combustível para as lareiras. Graças a Deus aquele tinha sobrevivido. A informação que continha era inestimável. Nunca revelara a ninguém o que descobrira no interior do códice, nem mesmo ao seu mestre, e uma vez que poderia necessitar dessa informação e não existia melhor altura do que a presente, colocou o livro no interior da sotaina.

Avançou até ao corredor seguinte e encontrou outro volume, também escrito à mão, mas no último quartel do século XIX. Não era um livro escrito para leitores, era antes um registo pessoal. Como poderia também vir a precisar dele, colocou-o junto do outro.

Depois de terminada a missão, abandonou a biblioteca, sabendo que o computador que controlava a porta de segurança registara a hora da sua visita. As tiras magnéticas colocadas em cada um dos livros iriam revelar que ambos haviam sido retirados. Uma vez que não existia outra saída que não fosse pelas portas de segurança e retirar as faixas poderia danificar os livros, não tinha outra escolha. Só poderia esperar que, na confusão dos dias que estavam por vir, ninguém se lembrasse de ir examinar os registos do computador.

A Regra era clara.

O roubo de propriedade da Ordem era punido com a expulsão.

Porém, esse era um risco que ele estava disposto a correr.

 

23 h 50 m

Malone resolveu não arriscar e saiu da igreja por uma porta traseira, atrás da sacristia. Não podia perder tempo com os dois homens inconscientes. Naquele momento era mais importante ir ter com Stephanie e que se lixasse o seu feitio intratável. Era óbvio que o homem da catedral, o que matara Peter Hansen, tinha os seus próprios problemas. Alguém eliminara os seus dois cúmplices. Malone não fazia ideia de quem seria ou porque o teria feito, mas estava agradecido, pois escapar daquela cripta teria sido uma tarefa quase impossível. Voltou a admoestar-se por se ter envolvido, porém agora era demasiado tarde para se desligar de tudo. Estava metido naquilo quer gostasse quer não.

Fez um percurso circular para sair da Ströget e dirigiu-se para Kongens Nytorv, uma típica e movimentada praça citadina rodeada por edifícios imponentes. Os seus sentidos estavam em alerta máximo e manteve-se atento para o caso de estar a ser seguido, mas ninguém o perseguia. Àquela hora tardia o trânsito na praça era quase inexistente. Nyhavn, do outro lado do extremo leste da praça, com o seu passeio marítimo ladeado por coloridas casas triangulares, continuava a albergar restaurantes e esplanadas que vibravam com música.

Estugou o passo em direcção ao Hotel d'Angleterre. A imponente estrutura de sete andares estava virada para o mar. e ocupava todo o quarteirão. O elegante edifício datava do século XVIII e os seus quartos tinham hospedado reis, imperadores e presidentes.

Entrou no átrio e passou pela recepção. Do salão principal escapava-se uma melodia suave. Uma fila de telefones repousava sobre um balcão de mármore e Malone utilizou um para ligar para o quarto de Stephanie Nelle. O telefone tocou três vezes antes de ela atender.

- Acorde - disse ele.

- Tem problemas de compreensão, não é, Cotton? - A voz encerrava o mesmo tom de desagrado que escutara em Roskilde.

- Peter Hansen está morto.

Fez-se silêncio.

- Estou no quarto seiscentos e dez.

Entrou no quarto. Stephanie vestia um dos roupões azuis do hotel. Contou-lhe tudo o que acabara de se passar. Ela ouviu em silêncio, tal como há anos quando ele fazia os relatórios das missões. Todavia, notou uma ligeira expressão de derrota, que ele esperava ser indicadora de uma mudança de atitude.

- E agora vai deixar-me ajudá-la? - perguntou Malone.

Ela estudou-o com um olhar que, notara com frequência, mudava de cor conforme o seu humor. Em alguns aspectos, recordava-lhe a mãe, embora Stephanie fosse apenas uma dúzia de anos mais velha do que ele. Não apreciava cometer erros e detestava que lhos apontassem. O seu talento encontrava-se não na recolha de informações, mas na sua análise e avaliação. Era uma organizadora meticulosa que elaborava planos com a argúcia de um leopardo. Já muitas vezes a observara a tomar decisões difíceis sem hesitar - tanto procuradores-gerais como presidentes confiavam na sua cabeça fria - e questionou-se sobre a actual situação em que ela se encontrava e o estranho efeito que esta parecia ter sobre a sua habitual capacidade de julgamento.

- Levei-os até Hansen - murmurou ela. - Na catedral. Não o desmenti quando insinuou que Hansen poderia ter o diário de Lars.

- Depois contou-lhe a conversa que haviam tido.

- Descreva-o. - Depois de ela o ter feito, Malone disse: - É o mesmo homem que começou o tiroteio e aquele que matou Hansen.

- O suicida da Torre Redonda trabalhava para ele. O objectivo era roubar a minha mala que continha o diário de Lars.

- E depois ele vai assistir ao mesmo leilão, sabendo que você estaria lá. Quem mais sabia que ia?

- Somente Hansen. O departamento sabe apenas que estou de férias e que só me devem incomodar em caso de catástrofe.

- Como ficou a saber do leilão?

- Há três semanas recebi um pacote enviado de Avinhão, em França. Lá dentro estava um papel e o diário de Lars. - Fez uma pausa. - Já não via aquele caderno há anos.

Malone sabia que se tratava de um assunto proibido. Lars Nelle decidira pôr fim à própria vida há onze anos. Fora encontrado enforcado numa ponte no Sul de França, com um papel no bolso que dizia apenas ABRAÇOS, STEPHANIE. Para um académico que escrevera tantos livros, aquela simples despedida quase parecia um insulto. Embora naquela altura ela e o marido estivessem separados, Stephanie aceitou com muita dificuldade aquela perda. Malone recordava-se de como os primeiros meses após a morte de Lars tinham sido difíceis para ela. Nunca tinham falado daquele assunto e só o facto de ela estar a mencioná-lo já era extraordinário.

- E que registava ele nesse diário? - questionou ele.

- Lars estava fascinado com os segredos de Rennes-le-Château.

- Eu sei. Li os livros que escreveu.

- Nunca me disse.

- Nunca perguntou.

Ela pareceu notar a irritação dele. Havia muita coisa a acontecer e nenhum deles tinha tempo para conversas de circunstância.

- Lars passou a vida a explorar teorias sobre o que podia ou não estar escondido em Rennes-le-Château - explicou ela. - No entanto, a maioria dos seus pensamentos mais íntimos e privados estava guardada no diário, que o acompanhou toda a vida. Depois da sua morte, pensei que Mark o tivesse feito.

Esse era outro assunto tabu. Mark Nelle fora um estudante de História Medieval em Oxford que ensinava na Universidade de Toulouse, no Sul de França. Há cinco anos, perdera-se nos Pirenéus devido a uma avalancha e o seu corpo nunca fora encontrado. Malone sabia que a tragédia fora acentuada pelo facto de Stephanie e o filho nunca terem tido um relacionamento muito próximo. Havia muita hostilidade no seio da família Nelle, mas nada disso era da sua conta.

- Aquele maldito diário era como um fantasma que voltava para me assombrar - continuou ela. - Lá estava a caligrafia de Lars. O papel informava sobre o leilão e sobre a disponibilidade do livro. Recordo-me de Lars falar dele e havia referências no diário, por isso vim comprá-lo.

- E não lhe disparou nenhum alarme dentro da cabeça?

- Por que haveria? O meu marido não estava envolvido no mesmo tipo de trabalho que eu. Como poderia eu saber que haveria pessoas dispostas a matar pelo livro?

- O homem que saltou da Torre Redonda era um bom indício. Deveria ter vindo falar comigo nessa altura.

- Preciso de fazer isto sozinha.

- Fazer o quê?

- Não sei, Cotton.

- E por que razão é o livro tão importante? Ao que sei, não passa de um relato sem importância. Ninguém esperava que fosse vendido por tanto dinheiro.

- Não faço ideia. - A voz dela voltou a soar irritada. - A sério que não sei. Há duas semanas, peguei no diário de Lars e li-o e tenho de admitir que fiquei fascinada. Não me orgulho de revelar que nunca lera nenhum dos seus livros. Quando os li, senti-me péssima em relação à minha atitude para com ele. Onze anos podem mudar muita coisa e acrescentar outra perspectiva às coisas.

- E o que planeava fazer?

Stephanie encolheu os ombros.

- Não sei. Comprar o livro, lê-lo e depois logo via. Já que estava na Europa, também pensei ir a França e passar alguns dias na casa de Lars. Já há muito tempo que não vou lá.

Aparentemente, ela estava a tentar apaziguar os seus demónios, mas havia que pensar na realidade.

- Precisa de ajuda, Stephanie. Alguma coisa se passa e eu estou habituado a lidar com estas situações.

- Não tem uma livraria para gerir?

- Os meus empregados podem tomar conta de tudo durante uns dias.

Ela hesitou, parecendo considerar a sua oferta.

- Você era o meu melhor agente. Continuo furiosa por se ter vindo embora.

- Fiz o que tinha de fazer.

Stephanie abanou a cabeça.

- E saber que me trocou por Henrik Thorvaldsen...

O ano passado, quando se demitiu e lhe falou sobre os seus planos de ir viver para Copenhaga, ela ficara satisfeita por ele até saber do envolvimento de Thorvaldsen. Como era seu costume, nunca dava explicações e Malone sabia que não devia perguntar.

- Tenho mais más notícias para lhe dar - anunciou ele. - Sabe a pessoa que arrematou o livro? Ao telefone? Foi Henrik.

Ela olhou-o com desdém.

- Estava a trabalhar com Peter Hansen - explicou.

- Como chegou a essa conclusão?

Malone contou-lhe o que descobrira na casa leiloeira e o que o homem da catedral lhe dissera pelo rádio. Detesto quem me engana.

- Aparentemente, Hansen estava a trabalhar para os dois e essa traição saiu-lhe cara.

- Não se importa de sair? - pediu ela.

- Foi por isso que vim. A senhora e Henrik têm de falar, mas precisamos de sair daqui com cuidado. Aqueles homens podem muito bem estar lá fora, à espera.

- Eu visto-me num instante.

Malone dirigiu-se para a porta.

- Onde está o diário de Lars? - perguntou.

Ela apontou para o cofre do quarto.

- Traga-o.

- Acha sensato?

- A Polícia vai encontrar o corpo de Hansen e não irá demorar muito até ligar todas as pistas. Precisamos de estar preparados para desaparecer.

- Deixe a Polícia comigo.

Malone fitou-a.

- Washington ajudou-a no caso de Roskilde porque não fazem ideia do que anda a fazer. Neste momento, tenho a certeza que alguém do Departamento de Justiça está a tentar descobrir. Detesta perguntas e não pode dizer ao procurador-geral para ir pentear macacos quando ele telefonar. Ainda não faço ideia do que está a fazer, mas digo-lhe uma coisa, não vai querer falar sobre isso. Aconselho-a a fazer as malas.

- Não tinha saudades dessa arrogância.

- E a sua personalidade encantadora também não me fez muita falta. Não pode, ao menos uma vez na vida, fazer o que lhe peço? Agir no terreno é difícil, mesmo quando não se faz asneiras. - Não preciso que me lembre disso.

- Claro que precisa.

E saiu do quarto.

 

Sexta-feira, 23 de Junho, 1 h 30 m

Malone e Stephanie saíram de Copenhaga pela auto-estrada 152. Apesar de ter já conduzido do Rio de Janeiro para Petrópolis e percorrido a estrada junto ao mar entre Nápoles e Amalfi, Malone acreditava que a via a norte de Helsingör, ao longo da costa rochosa a leste da Dinamarca, era sem dúvida a mais bonita das estradas litorais. As aldeias piscatórias, os bosques de faias, as casas de Verão e o extenso Öresund criavam um esplendor eterno. O tempo era o típico do país. A chuva abatia-se sobre o pára-brisas, sacudida por um vento torrencial. Depois de passar por uma pequena estância de Verão, a auto-estrada virava para o interior, para uma zona florestada. Atravessando um portão aberto, Malone seguiu um caminho coberto de erva e parou num pátio empedrado. A casa que se erguia mesmo em frente era um exemplo genuíno do barroco dinamarquês - três pisos construídos em tijolo e arenito, cobertos por um gracioso e arredondado telhado de cobre. Uma das alas estava voltada para o interior e a outra para o mar.

Malone conhecia bem a sua história. Chamada Christiangate, a casa fora erigida há trezentos anos por um membro inteligente da família Thorvaldsen, que se lembrara de converter turfa em combustível para produzir porcelana. Em 1800, a rainha da Dinamarca elevara a vidraria a fornecedor real e a Adelgate Glasvaerker, com o seu símbolo composto por dois círculos com uma linha por baixo, ainda era uma das mais importantes na Dinamarca e na Europa. O actual líder do conglomerado era o patriarca da família, Henrik Thorvaldsen.

Um criado veio abrir-lhes a porta e não pareceu surpreendido por vê-lo, o que era um facto no mínimo estranho, tendo em conta que já passava da meia-noite e Thorvaldsen levava uma vida solitária. Foram conduzidos até uma sala na qual as vigas de carvalho, as armaduras e os retratos a óleo transmitiam a opulência de uma linhagem nobre. Uma mesa comprida dominava o salão principal. Segundo o próprio Thorvaldsen teria cerca de quatrocentos anos e o seu acabamento brilhante era fruto de séculos de uso dedicado. O dono da casa estava sentado a uma das pontas, com um bolo de laranja e um fumegante samovar à frente.

- Entrem, por favor. Sentem-se.

Thorvaldsen levantou-se da cadeira com visível dificuldade e sorriu-lhes. A sua corcunda parecia disfarçada pela larga camisola que vestia. Malone notou um ligeiro brilho nos olhos cinzentos. O seu amigo devia ter alguma na manga.

- Estava tão seguro que viríamos que mandou fazer um bolo? - perguntou Malone, e apontou para a mesa.

- Não tinha a certeza se ambos fariam a viagem, mas sei que você faria.

- Porquê?

- Assim que descobri que esteve no leilão, sabia que era apenas uma questão de tempo até estar a par do meu envolvimento.

Stephanie deu um passo em frente.

- Quero o meu livro.

Thorvaldsen fitou-a.

- Nem sequer boa noite ou muito prazer em conhecê-lo? Apenas «Quero o meu livro».

- Não gosto de si.

O dono da casa retomou o seu lugar na ponta da mesa. Malone achou o bolo com bom aspecto e resolveu sentar-se e cortar uma fatia.

- Não gosta de mim? Que estranho, tendo em conta que não me conhece.

- Conheço-o, sim.

- Isso significa que o Magellan Billet tem um ficheiro a meu respeito?

- O seu nome aparece nos lugares mais estranhos. Chamamos-lhe pessoa de interesse internacional.

A face de Thorvaldsen contorceu-se «como se estivesse a sofrer» uma dor agonizante.

- Acham que sou um terrorista ou um criminoso?

- Qual dos dois é?

O dinamarquês olhou-a com uma súbita curiosidade.

- Fiquei a saber que possui o génio necessário para conceber grandes planos e a diligência para os colocar em prática. No entanto, com tantas capacidades, falhou redondamente como mãe e como esposa.

Os olhos de Stephanie encheram-se de indignação.

- Não sabe nada a meu respeito.

- Sei que a senhora e Lars já não viviam juntos há anos, antes de ele morrer. Sei que tinham opiniões diferentes sobre muitos assuntos e sei que não tinha um relacionamento muito íntimo com o seu filho.

Stephanie corou de raiva.

- Vá-se lixar!

Thorvaldsen pareceu imperturbado pela resposta.

- Está enganada, Stephanie.

- Sobre o quê?

- Muitas coisas. E está na altura de conhecer a verdade.

De Roquefort encontrou a casa senhorial precisamente no local indicado pela informação que pedira. Assim que descobrira quem estava a trabalhar com Peter Hansen para comprar o livro, o seu tenente demorara apenas meia hora a compilar um ficheiro. Agora que estava a olhar para a casa de Henrik Thorvaldsen tudo fazia sentido.

O dinamarquês era um dos cidadãos mais ricos do país, com raízes familiares que chegavam aos Viquingues. Os seus bens empresariais eram impressionantes. Para além da Adelgate Glasvaerker, detinha interesses em bancos ingleses, em minas polacas, em fábricas alemãs e nos transportes europeus. Num continente onde o dinheiro de família valia milhares de milhões, Thorvaldsen estava no topo da lista dos mais ricos. Era um homem estranho que quase nunca saía de casa. As suas contribuições para a caridade eram sobejamente famosas, em especial para os sobreviventes do Holocausto, para organizações anticomunistas e de auxílio médico internacional.

Tinha sessenta e dois anos de idade e mantinha relações de amizade com a família real dinamarquesa, em especial com a rainha. A esposa e filho tinham ambos falecido, a primeira com cancro e o filho morto a tiro no ano anterior enquanto se encontrava ao serviço da Embaixada da Dinamarca na Cidade do México. O homem que abatera um dos atiradores era um agente e advogado americano de nome Cotton Malone. Existia até uma ligação a Lars Nelle, embora não muito favorável, pois Thorvaldsen fizera alguns comentários públicos pouco elogiosos sobre as teorias de Nelle. Um episódio menos digno que tivera lugar há quinze anos na Bibliothèque Sainte-Geneviève em Paris, em que os dois se haviam envolvido numa disputa verbal que acabara nos jornais franceses. Tudo isso podia explicar a razão por que Henrik Thorvaldsen se interessara pela oferta de Peter Hansen, mas não explicava tudo.

Precisava de saber a história completa.

O vento frio do mar continuava a soprar forte e a chuva transformara-se em nevoeiro. Dois dos acólitos estavam a seu lado e os outros dois permaneciam no carro, estacionado longe da propriedade, ainda meio atordoados pela droga que lhes fora administrada. Continuava sem saber quem interferira nos seus planos. Não pressentira que estivesse a ser seguido, mas alguém tinha habilmente seguido os seus passos. Alguém com recursos suficientes para utilizar dardos tranquilizadores.

Mas uma coisa de cada vez. Avançou pelo pátio até uma fila de sebes que se erguiam frente à elegante casa. Havia luz numa sala do piso térreo que, durante o dia, devia ter uma vista magnífica para o mar. Não se apercebera de guardas, cães ou de qualquer sistema de alarme. Era curioso, mas não inédito.

Aproximou-se da janela iluminada. Avistara um carro estacionado na entrada e interrogara-se se a sua sorte estaria prestes a mudar. Espreitou com cuidado e viu Stephanie Nelle e Cotton Malone a conversarem com o velho homem.

Sorriu. A sua sorte estava de facto a mudar.

Fez sinal e um dos seus homens entregou-lhe um estojo de nylon. Abriu-o e retirou um microfone. Com extremo cuidado, colou-o ao vidro molhado. Com o moderno receptor que se encontrava no interior do estojo, poderia escutar cada palavra.

Colocou um auscultador minúsculo no ouvido.

Antes de os matar, precisava de saber o que diziam.

- Sente-se - pediu Thorvaldsen.

- É muito gentil, Herr Thorvaldsen, mas prefiro ficar de pé - retorquiu Stephanie com desdém.

O dinamarquês estendeu a mão para o samovar e encheu a sua chávena.

- Sugiro que me chame tudo menos Herr. - Pousou o samovar sobre a mesa. - Detesto tudo o que seja alemão.

Malone observou a reacção de Stephanie àquele pedido. Sendo considerado «pessoa de interesse» pelos ficheiros do departamento, por certo que ela saberia que os avós, tios, tias e primos de Thorvaldsen tinham todos sido vítimas da ocupação nazi da Dinamarca. Apesar disso, esperava que ela retaliasse, mas a sua expressão acalmou.

- Chamar-lhe-ei Henrik, então.

Ele deitou um cubo de açúcar na chávena e mexeu o café.

- Aprendi há muito tempo que tudo se pode resolver enquanto se toma uma chávena de café. Qualquer pessoa lhe dirá mais sobre a sua vida privada após ter apreciado um bom café, do que depois de uma taça de champanhe ou de um cálice de vinho do Porto.

Malone sabia que Thorvaldsen gostava de acalmar os seus ouvintes com conversa de circunstância enquanto avaliava a situação. O dinamarquês deu um gole na chávena fumegante.

- Como disse, Stephanie, chegou a altura de saber a verdade.

Ela aproximou-se da mesa e sentou-se frente a Malone.

- Faz favor, esteja à vontade para destruir todas as minhas ideias a seu respeito.

- E quais são elas?

- Podia estar aqui horas a descrevê-las, mas digo-lhe os tópicos mais importantes. Há três anos esteve ligado a uma organização criminosa de ladrões de arte com ligações a radicais israelitas. O ano passado interferiu nas eleições nacionais alemãs ao financiar ilegalmente alguns candidatos. Por alguma razão, tanto os alemães como os israelitas resolveram não apresentar queixa.

Thorvaldsen fez um gesto impaciente de concordância.

- Culpado em ambos os casos. Essas «ligações a radicais israelitas», como lhes chama, são colonos que acham que as suas casas não devem ser destruídas por um governo israelita corrupto. Para ajudar a sua causa, providenciámos fundos oriundos de árabes abastados que traficavam arte roubada. As peças foram simplesmente roubadas aos ladrões. Talvez os seus ficheiros digam que as peças de arte foram entregues aos devidos donos.

- Por um preço.

- Que qualquer investigador de arte privado também cobraria. Apenas canalizámos o dinheiro obtido para causas mais nobres. Acho que há uma certa justiça nisso. E em relação às eleições alemãs... Bem, financiei vários candidatos que enfrentavam uma forte oposição da direita radical. Com a minha ajuda, todos ganharam. Não vejo razão para deixar que o fascismo volte a ganhar posição.

- O senhor cometeu uma ilegalidade que levantou imensos problemas.

- O que eu fiz foi resolver um problema, o que é bem mais do que os americanos fizeram.

Stephanie não parecia impressionada.

- O que faz metido nos meus assuntos?

- E de que forma é que isto é assunto seu?

- Diz respeito ao trabalho do meu marido.

A expressão de Thorvaldsen tornou-se mais severa.

- Não me recordo que tivesse mostrado qualquer interesse pelo trabalho de Lars quando ele era vivo.

Malone reparou na crítica subjacente às palavras «não me recordo», que sugeriam também algum conhecimento passado em relação a Lars Nelle. Estranhamente, Stephanie parecia não estar a ouvir com atenção.

- Não pretendo discutir a minha vida privada consigo. Diga-me apenas o que o levou a comprar o livro.

- Peter Hansen informou-me do seu interesse. Também me disse que havia outro homem que pretendia que a senhora ficasse com o livro, mas não sem que antes essa pessoa fizesse uma cópia. E pagou uma percentagem a Hansen para se assegurar de que assim era.

- Ele disse de quem se tratava? - perguntou Stephanie. Thorvaldsen abanou a cabeça.

- Hansen está morto - revelou Malone.

- Era de prever. - Não havia qualquer emoção na voz do dinamarquês.

Malone contou-lhe o que acontecera.

- Sempre foi um homem ganancioso. Achava que o livro era valioso, por isso queria que eu o comprasse em segredo para que o pudesse dar ao outro homem, por um preço mais elevado - explicou Thorvaldsen.

- E o senhor aceitou fazê-lo, sendo a pessoa humanitária que todos conhecemos.

Stephanie não estava disposta a ser branda com ele.

- Eu e Hansen fizemos muitos negócios juntos. Ele contou-me o que estava a acontecer e eu ofereci-lhe a minha ajuda. Fiquei preocupado que ele fosse procurar outro comprador anónimo. Eu também desejava ficar com o livro, por isso acedi às suas condições. Contudo, não tinha intenção de o devolver a Hansen.

- Não acha sinceramente...

- E que tal está o bolo? - questionou o dono da casa. Malone percebeu que o amigo estava a tentar recuperar o controlo da conversa.

- Excelente - respondeu ele, entre garfadas.

- Vamos ao que interessa - exigiu Stephanie. -A tal verdade que eu tanto preciso de saber.

- O seu marido e eu éramos amigos chegados.

No rosto de Stephanie surgiu uma expressão de repugnância.

- Lars nunca me disse nada sobre isso.

- Tendo em consideração o vosso relacionamento longínquo, isso não me admira nada. Apesar disso, tal como na sua profissão existem segredos, o mesmo acontecia na dele.

Malone terminou a fatia de bolo enquanto observava a sua antiga chefe, que parecia não acreditar no que ouvia.

- Está a mentir - declarou ela por fim.

- Posso mostrar-lhe correspondência que prova o que lhe estou a contar. Eu e Lars comunicávamos com frequência. Havia entre nós uma espécie de esforço cooperativo. Fui eu quem financiou as suas pesquisas iniciais e o ajudava quando as coisas se tornavam mais difíceis. Paguei a casa que tinha em Rennes-le-Château. Partilhava da sua paixão e ficava feliz por o poder ajudar.

- Que paixão? - perguntou ela. Thorvaldsen fitou-a desgostoso.

- Sabe tão pouco sobre ele. Os remorsos devem atormentá-la.

- Não preciso da sua psicanálise.

- Vem para a Dinamarca atrás de um livro sobre o qual nada sabe e que está relacionado com o trabalho de um homem que já morreu há uma década e quer convencer-me que não sente quaisquer remorsos?

- Deixe-se de histórias e dê-me o livro.

- Primeiro terá de ouvir aquilo quev tenho para lhe dizer...

- Então seja breve.

- O primeiro livro de Lars foi um sucesso estrondoso. Vendeu milhões de cópias em todo o mundo, embora os números tenham sido mais modestos na América. Os-que se seguiram não foram assim tão bem aceites, mas venderam o suficiente para financiar as suas pesquisas. Lars achava que um ponto de vista oposto ao seu poderia ajudar a popularizar a lenda de Rennes. Com isso em mente, financiei vários autores que escreveram livros que analisavam de uma maneira crítica as suas conclusões sobre Rennes e apontavam falhas. Um livro levou a outro e a outro. Alguns eram bons, outros nem por isso. Eu mesmo cheguei a fazer alguns comentários públicos menos elogiosos sobre Lars. Não tardou a que nascesse um género.

Os olhos dela brilhavam de raiva.

- Mas o senhor é doido?.

- A controvérsia gera publicidade. E Lars não escrevia para

um público vasto, por isso tinha de gerar a sua própria publicidade. No entanto, passado algum tempo, toda aquela história ganhou vida própria.

Rennes-le-Château é bastante popular. Já se fizeram programas de televisão, artigos de revistas e a Internet está cheia de páginas dedicadas exclusivamente aos seus mistérios. O turismo na " região é a principal indústria. Graças a Lars a aldeia transformou-se numa atracção.

Malone sabia que existiam centenas de livros sobre Rennes. Várias prateleiras da sua loja estavam repletas deles. Passava-se mais qualquer coisa e ele precisava de saber o que era.

- Henrik, morreram duas pessoas hoje. Uma saltou da Torre Redonda e cortou o pescoço durante a queda. A outra foi atirada de uma janela. Não se trata de um golpe de relações públicas.

- Diria que hoje na Torre Redonda esteve na presença de um irmão da Ordem dos Templários.

- Noutras condições, responderia que está doido, mas o homem gritou algo antes de saltar. Beauséant.

Thorvaldsen acenou com a cabeça.

- O grito de guerra dos templários. Essa palavra gritada em uníssono por uma horda de cavaleiros ao ataque era o suficiente para despertar terror no inimigo.

Malone recordou-se do que dizia o livro que lera na livraria.

- Os templários foram erradicados em 1307. Já não existem Cavaleiros do Templo.

- Isso não é verdade, Cotton. Foi feita uma tentativa de os erradicar, mas o papa revogou a sua decisão. O Pergaminho de Chinon absolve os templários de todas as acusações de heresia e blasfémia. Clemente V mandou redigir as actas em segredo, em 1308. Muitos pensavam que o documento se perdera quando Napoleão pilhou o Vaticano, mas foi recentemente encontrado. Não. Lars acreditava que a Ordem ainda existe e eu também sou dessa opinião.

- Havia muitas referências aos templários nos livros de Lars - contrapôs Malone -, mas não me recordo de ele ter alguma vez escrito que ainda existem nos dias de hoje.

Thorvaldsen voltou a anuir.

- Um acto intencional da parte dele. Eram um grupo tão contraditório e continuam a ser. Pobres por voto, mas ricos em bens e em sabedoria. Discretos, porém conhecedores da vida mundana. Monges e guerreiros. Os estereótipos de Hollywood e os verdadeiros templários são duas coisas bem diferentes. Não se deixe seduzir pela versão romântica. Eram um grupo cruel.

Malone não estava impressionado.

- E como sobreviveram durante setecentos anos sem ninguém saber?

- De que modo vive um animal ou insecto no seu habitat sem ninguém saber que existe? E no entanto são catalogadas novas espécies diariamente.

«Tem uma certa razão», pensou Malone, mas apesar disso não estava convencido.

- Então o que se passa aqui?

Thorvaldsen recostou-se na cadeira.

- Lars andava à procura do tesouro dos Cavaleiros Templários.

- O quê?

- No início do seu reinado, Filipe IV desvalorizou a moeda francesa como medida para estimular a economia. A ideia foi de tal modo impopular que os seus súbditos se sublevaram para o matar. O rei francês foi obrigado a fugir do seu palácio e a procurar refúgio junto dos templários no Templo de Paris. Foi nessa altura que terá visto pela primeira vez a riqueza da Ordem. Anos mais tarde, quando os cofres do reino se encontravam quase vazios, arquitectou um plano para acusar a Ordem de heresia. Não se pode esquecer que naquela época todos os bens de um herético passavam a ser propriedade da coroa. Todavia, após as prisões de 1307, Filipe descobriu que o cofre do Templo de Paris estava vazio, esse e todos os outros por toda a França. A riqueza dos templários nunca foi encontrada.

- E Lars acreditava que o tesouro estava em Rennes-le-Château? - perguntou Malone.

- Não precisamente lá, mas algures na região do Languedoc - explicou Henrik. - Existem várias pistas que apontam para essa possibilidade, mas os templários asseguraram-se de que a sua localização não fosse fácil de encontrar.

- Mas o que tem tudo isto a ver com o livro que comprou esta noite? - questionou Malone.

- Eugène Stüblein era o presidente da câmara de Fa, uma vila perto de Rennes. Era um homem culto, músico e astrónomo amador. Foi primeiro autor de um livro de viagens sobre a região e só depois escreveu Pierres Gravées du Languedoc. Pedras gravadas do Languedoc. Um livro singular que versa sobre as pedras tumulares de e em redor de Rennes. Concordo que é um assunto estranho, mas não descabido. O Sul de França possui túmulos únicos em todo o mundo. No livro, existe um desenho de uma lápide que chamou a atenção de Stüblein. O desenho é importante porque a pedra tumular já não existe.

- Posso ver o desenho? - pediu Malone.

Thorvaldsen levantou-se da cadeira e deslocou-se até uma pequena mesa. Voltou com o livro do leilão.

- Foi-me entregue há uma hora.

Malone abriu o livro numa página marcada e estudou o desenho.

 

           CT GIT NOBLe M

           ARIE DE NEGRE

           DARLES DAME

           D'HAUPOUL DE BLANCHEFORT

           AGEE DE SOIX

           ANTE-SEPT ANS

           DECEDEE LE

           XVII JANVIER

           MDC0LXXXI

           REQUIES CATIN

           PACE

 

- Partindo do pressuposto que o esboço de Stüblein é fiel ao original, Lars acreditava que a lápide era uma pista para a localização do tesouro. Procurou este livro durante muitos anos. Deveria existir um em Paris, pois a Bibliothèque Nationale possui uma cópia de todos os livros que alguma vez foram impressos em França. Todavia, embora um esteja catalogado, a cópia não se encontra lá.

- Lars era o único que sabia deste livro? - questionou Malone.

- Não faço ideia. Muitos acreditam que ele nem sequer existe.

- E onde foi encontrado?

- Falei com o leiloeiro. Disse-me que pertencia a um engenheiro ferroviário que construiu a linha entre Carcassonne e os Pirenéus. O engenheiro reformou-se em 1927 e morreu em 1946. O livro foi herdado pela filha e colocado a leilão pelo neto agora que a senhora morreu. Pelos vistos, o engenheiro sempre se interessara pela região do Languedoc, especialmente por Rennes, e mantinha um inventário de lápides decalcadas em papel.

Malone não estava satisfeito com aquele esclarecimento.

- Então quem alertou Stephanie para o leilão?

- Esse é o dilema da noite - respondeu Henrik.

Malone fitou Stephanie.

- No hotel disse-me que vinha um papel juntamente com o diário. Ainda o tem?

Procurou dentro da mala e retirou um caderno de apontamentos já gasto. Entre as suas páginas estava uma folha de papel dobrada. Entregou-a a Malone que leu a mensagem escrita em francês.

No dia 22 de Junho será leiloado em Roskilde o livro Pierres Gravées du Languedoc. O seu marido procurou este volume durante anos. Eis uma oportunidade para obter aquilo que ele não conseguiu. Le bon Dieu soit loué.

Malone traduziu silenciosamente a última linha. Deus seja louvado. Encarou Stephanie, sentada à sua frente.

- De onde pensa que poderá ter vindo este bilhete?

- De um dos colegas de Lars. Achei que algum dos seus seguidores desejava que eu fosse a guardiã do diário e pensava que eu poderia estar interessada no livro.

- Onze anos depois?

- Concordo que parece estranho, mas há três semanas eu nem sequer pensava nisso. Como já referi, sempre acreditei que as demandas de Lars eram inofensivas.

- Então por que veio? - perguntou Thorvaldsen.

- O senhor já o disse. Sinto remorsos.

- Não é minha intenção piorar esses sentimentos. Não a conheço, mas conhecia o seu marido. Era um homem bom e a sua demanda, como tão bem diz, era inofensiva, não deixando porém de ser importante. A morte dele tocou-me profundamente e sempre me questionei se teria sido mesmo suicídio.

- Também eu - revelou ela num murmúrio. - Tentei colocar a culpa em tudo, para tentar racionalizar o sucedido, mas bem no fundo nunca acreditei que Lars tivesse posto fim à própria vida.

- O que explica, mais do que qualquer outra coisa, o facto de estar aqui - disse Henrik.

Malone percebeu que ela estava fragilizada e interveio para que pudesse recuperar.

- Posso ver o diário?

Stephanie entregou-lhe o caderno e ele folheou por entre as cento e poucas páginas, vendo números, desenhos, símbolos e páginas de texto escrito. Depois examinou a encadernação com a perícia de um bibliófilo e houve algo que lhe chamou a atenção.

- Faltam páginas.

- Como assim? Mostrou-lhe o topo do livro.

- Olhe aqui. Está a ver estes pequenos espaços? - Abriu a capa. Apenas uma tira minúscula do papel original permanecia na zona onde em tempos estivera preso à capa. - Cortado com uma lâmina. Estou sempre atento a isto. Não há nada que desvalorize mais um livro.

Voltou a observar o diário e chegou à conclusão que faltavam oito páginas.

- Não me apercebi - explicou ela.

- Houve muita coisa que percebeu. - Stephanie corou.

- Admito que fiz asneiras, sim.

- Cotton - interrompeu Thorvaldsen -, isto pode significar muito mais. É provável que o arquivo dos templários faça parte do achado. Os arquivos da Ordem estavam originalmente em Jerusalém, depois foram transferidos para Acre e por fim para Chipre. Reza a história que após 1312 os arquivos passaram para os Cavaleiros Hospitalários, mas não existem provas que isso tenha de facto ocorrido. Filipe IV procurou os arquivos entre 1307 e 1314, porém não encontrou nada. Muitos afirmam que se trata da maior colecção medieval do mundo. Imagine o que significaria encontrar esses livros.

- Era a maior descoberta bibliográfica de sempre.

- Manuscritos que ninguém viu desde o século XIV, muitos até completamente desconhecidos. Só a possibilidade de encontrar tal colecção, ainda que remota, vale a pena explorar.

Malone concordou.

Thorvaldsen voltou-se para Stephanie.

- E que tal umas tréguas? Por Lars. Tenho a certeza que a sua agência trabalha com muitas «pessoas de interesse» para alcançar objectivos de interesse mútuo. E se fizéssemos o mesmo neste caso?

- Quero ver a correspondência que trocou com Lars. - Anuiu.

- Com certeza.

Depois olhou para o seu antigo agente.

- Tem razão, Cotton, preciso de ajuda. Peço desculpa pela minha atitude. Pensei que podia tratar disto sozinha, mas uma vez que somos todos amigos, que tal irmos os dois a França e ver o que conseguimos encontrar em casa de Lars. Já há algum tempo que não vou lá. Também existem algumas pessoas em Rennes-le-Château com as quais podemos falar, pessoas que trabalhavam com Lars. Depois logo vemos o que havemos de fazer.

- Também gostaria de vos acompanhar - confessou Thorvaldsen.

Malone ficou admirado. Henrik raramente saía da Dinamarca.

- E o que o fez tomar essa decisão?

- Conheço bem a demanda de Lars e esse conhecimento pode vir a ser útil.

Malone encolheu os ombros.

- Por mim tudo bem.

- Muito bem, Henrik - concordou Stephanie. - Isso irá dar-nos algum tempo para nos conhecermos. E, tal como diz, eu ainda tenho umas coisas para aprender.

- Temos todos, Stephanie, temos todos.

De Roquefort teve de fazer um esforço para não intervir. As suas suspeitas confirmavam-se. Stephanie Nelle pretendia seguir o trilho desbravado pelo marido. Também era ela quem detinha o diário de Lars juntamente com uma cópia do livro Pierres Gravées du Languedoc, talvez a única cópia ainda existente. Essa era uma das características de Lars Nelle: era bom no que fazia e agora a viúva herdara todas as pistas.

Cometera um grave erro ao confiar em Peter Hansen, porém naquela altura parecera-lhe a escolha certa. Não tornaria a cometer o mesmo erro. Havia demasiadas coisas em jogo para voltar a confiar num estranho.

Continuou a ouvir enquanto o trio finalizava os seus planos sobre o que fazer uma vez em Rennes-le-Château. Malone e Stephanie seguiam viagem no dia seguinte e Thorvaldsen iria lá ter uns dias mais tarde. Quando achou que já ouvira o suficiente, De Roquefort descolou o microfone da janela e escondeu-se, juntamente com os dois acólitos, atrás de umas árvores.

Não haveria mais mortes naquela noite.

«Faltam páginas.»

Precisava daquela informação. O remetente do diário fora esperto.

Dividir os despojos impedia actos precipitados. Pelos vistos, aquele quebra-cabeças era mais complicado do que parecia e ele entrara no jogo a meio.

Não havia problema, assim que todos os jogadores estivessem em França seria mais fácil lidar com eles.

 

Abbaye des Fontaines, 8 h 00 m

O senescal colocara-se frente ao altar e olhava para o caixão de carvalho. Os irmãos começavam a entrar na capela. Caminhavam de modo solene e cantavam em uníssono. A melodia era antiga, entoada nos funerais de todos os mestres desde o Início. A letra, em latim, falava de perda, de tristeza e de dor. A sucessão seria apenas discutida ao final do dia, quando o conclave se reunisse para escolher um sucessor. A Regra era clara. Não podiam passar dois sóis sem mestre e, como senescal, tinha de garantir que a Regra era cumprida.

Observou enquanto os irmãos completavam a marcha de entrada e se posicionavam atrás dos bancos. Cada um deles envergava um simples hábito castanho-avermelhado com o capuz a tapar a cabeça, apenas as mãos visíveis e juntas em oração.

O interior da igreja tinha o formato de uma cruz latina com uma nave única e duas alas. Também exibia pouca ou nenhuma decoração, nada que pudesse distrair a mente dos mistérios da fé, não deixando no entanto de ser majestosa, com as colunas e capitéis a criarem um ambiente imponente. Os irmãos tinham-se ali reunido pela primeira vez após a Expulsão, em 1307. Aqueles que tinham conseguido fugir às garras de Filipe IV, esconderam-se no campo e migraram depois para sul. Aos poucos, foram-se juntando ali, na segurança daquela fortaleza na montanha, e criaram uma estrutura religiosa, fazendo planos, compromissos e nunca esquecendo.

Fechou os olhos e deixou-se levar pela música. Não havia órgão a acompanhar o cântico dos irmãos, nada, apenas a voz humana em coro. Retirou forças da melodia e preparou-se para o que estava para vir.

O cântico parou. Após um minuto de silêncio colocou-se ao lado do caixão.

- O nosso reverendo e respeitado mestre deixou esta vida. Liderou a Ordem durante vinte e oito anos com sabedoria, justiça e em conformidade com a Regra. Haverá certamente lugar para ele nas Crónicas.

Um dos irmãos empurrou o capuz para trás.

- Lugar esse que eu contesto.

O senescal estremeceu. A Regra dava o direito de contestação a qualquer irmão. Esperava uma guerra de palavras mais tarde, no conclave, mas não durante o funeral. Voltou-se para a primeira fila de bancos e fitou o orador.

Raymond de Roquefort.

Um homem baixo e atarracado com um rosto desprovido de expressões no qual o senescal nunca confiara. Pertencia à Ordem há trinta anos e ascendera ao cargo de marechal, o que o colocava em terceiro lugar na hierarquia. No Início, há séculos, o marechal era o comandante militar da Ordem, o líder dos cavaleiros durante as batalhas. Agora era o chefe da segurança, encarregue de se certificar de que a Ordem se mantinha inviolada. De Roquefort ocupava o cargo há quase duas décadas. Ele e os irmãos que trabalhavam sob as suas ordens detinham o privilégio de entrar e sair da abadia sempre que achassem conveniente, prestando contas apenas ao mestre. O marechal nunca fizera segredo do desprezo que sentia pelo seu superior, agora falecido.

- Exprima a sua contestação.

- O nosso falecido mestre enfraqueceu esta Ordem. As suas políticas eram desprovidas de coragem. Chegou a hora de avançar numa outra direcção.

As palavras de De Roquefort foram expressas sem qualquer emoção e o senescal sabia que o marechal era perito em disfarçar os maiores erros com palavras grandiloquentes. De Roquefort era um fanático. Homens como ele haviam mantido a Ordem forte durante séculos, todavia o mestre referira muitas vezes que a sua utilidade era cada vez menor. Havia quem discordasse e tal conduzira ao aparecimento de duas facções - De Roquefort liderava uma e o mestre a outra. A grande maioria dos irmãos tinha mantido a sua escolha secreta, como era o hábito da Ordem. No entanto, o interregnum era um tempo de debate livre, mediante o qual o colectivo decidia que rumo de acção tomar.

- Já terminou? - perguntou o senescal.

- Há já demasiado tempo que os irmãos se vêem excluídos do processo de decisão. Não fomos consultados e as nossas ideias também não foram tomadas em consideração.

- Isto não é uma democracia - afirmou o senescal.

- Nem tão-pouco eu gostaria que fosse. Contudo, é uma irmandade assente em necessidades comuns e em objectivos comunitários à qual cada um de nós entregou a vida e os bens. Não merecemos ser ignorados.

A voz de De Roquefort tinha uma entoação calculista. O senescal reparou que nenhum dos outros pôs em causa a solenidade da contestação e, por um instante, a santidade que durante tanto tempo pairara sobre a capela pareceu manchar-se. Era como se estivesse rodeado por homens com espíritos e objectivos diferentes. Havia uma palavra que não lhe saía da cabeça.

Revolta.

- E o que gostaria que fizéssemos? - questionou o senescal.

- O nosso mestre não merece o respeito habitual. Permaneceu imóvel e fez a pergunta obrigatória.

- Está a pedir que se faça uma votação?

- Sim.

Durante o interregnum, e sempre que pedida, a Regra exigia uma votação sobre todos os assuntos. Sem mestre, governavam como um todo. Aos restantes irmãos, cujos rostos não conseguia ver, disse:

- Que erga o braço aquele que considera que devemos negar ao nosso mestre o seu merecido lugar nas Crónicas.

Alguns braços levantaram-se de imediato, outros hesitaram. O senescal respeitou os dois minutos concedidos pela Regra para a decisão. Depois contou.

Duzentas e noventa e uma mãos apontavam para o céu.

- Mais de sessenta por cento são a favor da contestação. - Dominou a raiva que sentia. - O nosso mestre não será incluído nas Crónicas. - Não queria acreditar que acabara de proferir aquelas palavras. Que o amigo o perdoasse. Afastou-se do caixão e regressou ao seu lugar frente ao altar. - Uma vez que não demonstraram o mínimo respeito pelo nosso falecido líder, estão dispensados. Para todos aqueles que desejarem participar, estarei na Sala dos Mestres daqui a uma hora.

Os irmãos saíram em silêncio até que ficou apenas De Roquefort. Confiante, o francês aproximou-se do caixão.

- Foi o preço que pagou pela cobardia.

Já não havia necessidade de manter as aparências.

- Irá arrepender-se do que fez.

- O aprendiz julga-se mestre? Estou desejoso que comece o conclave.

- Vai destruir-nos.

- Vou ressuscitar-nos. O mundo precisa de saber a verdade. O que se passou há séculos foi verdade e está na hora de corrigir esse erro.

O senescal não discordava dessa conclusão, mas havia outra questão.

- Não precisava de ter humilhado um bom homem.

- Bom para quem? Para si? A mim só me tratou com desprezo.

- Era o que merecia.

Na face de De Roquefort esboçou-se um sorriso maléfico.

- O seu protector já morreu. Agora é entre nós.

- Estou desejoso que a batalha comece.

- Também eu. - De Roquefort fez uma pausa. - Trinta por cento dos irmãos não me apoiaram, assim sendo, deixo-vos a despedirem-se do mestre.

O seu inimigo virou costas e saiu da capela. O senescal esperou até que as portas se fechassem e depois colocou uma mão sobre o caixão. Um grupo de homens unidos pelo ódio, pela traição e pelo fanatismo começava a cercá-lo. Voltou a escutar as palavras que dissera ao mestre no dia anterior.

«Respeito o poder dos seus adversários»

Acabara de enfrentar o seu inimigo e perdera. Não era um bom augúrio para os acontecimentos que se seguiriam.

 

Rennes-le-Château, 11 h 30 m

Malone virou para leste à saída da auto-estrada principal, perto de Couiza, e começou a subir uma colina cheia de curvas. A estrada ascendente proporcionava uma vista magnífica dos montes circundantes, cobertos de roseiras, alfazema e tomilho. Ao longe erguiam-se as ruínas de uma fortaleza e as suas muralhas queimadas assemelhavam-se a dedos magros pelo modo como se projectavam no céu. Até onde a vista alcançava, a terra parecia o cenário de um romance histórico, e não era difícil imaginar bravos cavaleiros a descer as colinas a cavalo para atacar os seus inimigos.

Malone e Stephanie tinham deixado Copenhaga por volta das quatro da manhã e voado directamente para Paris, onde apanharam o primeiro avião do dia para Toulouse. Uma hora mais tarde já se encontravam em terra ao volante de um carro alugado e em direcção a sudoeste, a uma região conhecida como Languedoc.

No caminho, Stephanie contou-lhe o que sabia sobre a vila que se encontrava a três mil metros de altitude no topo do monte ermo que subiam naquele momento. Os gauleses haviam sido os primeiros a habitar o cimo da colina, atraídos pela sua localização privilegiada sobre o vale do rio Aude. Todavia, foram os visigodos no século V que construíram a cidadela e adoptaram o antigo nome celta para o local - Rhedae, que significava quadriga -, transformando aos poucos a cidadela num entreposto comercial. Duzentos anos mais tarde, quando os visigodos foram empurrados para Espanha, os francos converteram Rhedae numa cidade real.

No entanto, por volta do século XIII, o estatuto da cidade foi decaindo e no final da Cruzada Albigense acabou por ser completamente arrasada. Depois de pertencer a franceses e a espanhóis, ficou nas mãos de um dos tenentes de Montfort que aí fundou um baronato. A família mandou construir um castelo, em torno do qual cresceria uma pequena aldeia, e acabaria por mudar o nome de Rhedae para Rennes-le-Château. Os seus descendentes governaram a região e a aldeia até 1781, ano em que morreu a última herdeira, Marie d'Hautpoul de Blanchefort.

- Diz-se que antes de falecer ela terá confessado um grande segredo - contara Stephanie. - Um segredo que a família mantivera durante séculos. Como não tinha filhos e o marido morrera antes dela, contou o segredo ao seu confessor, o abade Antoine Bigou, que era o padre da paróquia de Rennes.

Naquele instante, enquanto pousava os olhos na última curva daquela estrada estreita, imaginou como teria sido viver naquele local tão remoto. Os vales isolados formavam um esconderijo perfeito para fugitivos e peregrinos. Era fácil entender o que levara aquela região a transformar-se num parque temático da imaginação, numa Meca para caçadores de mistérios, um local onde escritores com visões originais podiam ganhar uma reputação. Tal como acontecera com Lars Nelle.

A aldeia começou a surgir ao fundo. Malone abrandou a marcha e atravessou um portão emoldurado por dois pilares de pedra calcária. Um sinal avisava: FOUILLES INTERDITES. Proibido fazer escavações.

- Tiveram de colocar um cartaz por causa das escavações? - perguntou ele.

Stephanie acenou afirmativamente.

- Há alguns anos as pessoas abriam buracos em todos os cantos à procura de tesouros. Chegavam mesmo a utilizar dinamite. A Câmara Municipal teve de intervir.

O Sol começava a pôr-se do outro lado dos portões da cidade. Os edifícios de pedra encostavam-se uns aos outros como livros numa prateleira, muitos com telhados íngremes, portas grossas e varandas de ferro já ferrugento. Uma estreita e empedrada grand-Rue ziguezagueava no sentido ascendente. Pessoas carregadas com mochilas e guias de viagem seguiam em fila encostadas à parede, em ambas as direcções. Malone avistou umas quantas lojas, uma livraria e um restaurante. A aldeia tinha menos de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro.

- Apenas cerca de cem pessoas vivem aqui permanentemente - explicou Stephanie. - Porém, todos os anos recebe cinquenta mil visitantes. Lars teve um efeito e pêras.

- Maior do que eu imaginava.

Ela apontou para a frente e depois para a esquerda. Passaram por quiosques que vendiam rosários, medalhas e lembranças a mais uns quantos turistas de máquinas fotográficas ao pescoço.

- Chegam aqui em autocarros cheios - explicou ela - à espera de acreditar no impossível.

Depois de mais uma pequena subida, Malone estacionou o Peugeot num parque de terra batida. Já lá estavam dois autocarros e os condutores fumavam um cigarro. Um depósito de água erguia-se de um dos lados, a pedra gasta decorada com um signo do Zodíaco.

- Os visitantes chegam cedo - afirmou Stephanie ao sair do automóvel. - Daqui avista-se o domaine d'Abbé Saunière. A propriedade do padre, ou seja, aquilo que ele construiu com o misterioso tesouro que supostamente terá encontrado.

Malone aproximou-se de um muro de pedra. Lá em baixo, os campos e os bosques estendiam-se até perder de vista e os montes eram férteis em carvalhos e castanheiros. Os picos gelados dos Pirenéus tapavam o horizonte a sul e um vento forte assobiava de oeste, felizmente aquecido pelo sol de Verão.

Olhou para a direita. A trinta metros dali, a torre neogótica, com o tecto guarnecido por ameias e um único torreão, tinha já sido capa de inúmeros livros e guias turísticos. Erguia-se na ponta de um penhasco, solene e desafiadora, parecendo nascer da rocha. O extenso miradouro era percorrido por visitantes que admiravam e fotografavam os montes e vales circundantes.

- Aquela é a Torre Magdala. Impressionante, não é? - perguntou Stephanie.

- Parece não pertencer aqui.

- Essa tamhém foi sempre a minha opinião.

À direita da Torre Magdala, estendia-se um jardim ornamental que conduzia a um edifício de estilo renascentista que também parecia deslocado.

- A villa Béthanie - explicou ela. - Também foi mandada construir por Saunière.

Malone ficou a pensar no nome, Betânia, e depois disse:

- É bíblico. Na Terra Santa significava «casa com uma resposta». Stephanie assentiu.

- Saunière sabia escolher os nomes. - Apontou para os edifícios atrás deles. - A casa de Lars fica ali. Antes de irmos, tenho ainda uma coisa a fazer. Enquanto caminhamos, deixe-me contar-lhe o que sucedeu aqui em 1891. O que tirou este lugar da obscuridade. Descobri tudo isto a semana passada.

O abade Bérenger Saunière avaliou a tarefa que tinha pela frente. A igreja de Maria Madalena fora construída sobre ruínas visigodas e consagrada em 1059. Agora, oito séculos mais tarde, o seu interior estava em ruínas, graças a um telhado que deixava entrar água. As paredes começavam a desmoronar-se e as fundações a ceder. Seria necessária muita paciência e determinação para reparar os estragos, mas considerava-se à altura daquela tarefa.

Era um homem robusto, musculado, de ombros largos e cabelo curto e preto. A sua única característica atraente, que utilizava em seu benefício, era a cova no queixo, que emprestava um ar de excentricidade à expressão séria conferida pelos olhos negros e sobrancelhas densas e grossas. Nascido e criado a alguns quilómetros dali, na aldeia de Montazels, conhecia-bem a geografia de Corbières. Desde a infância que conhecia Rennes-le-Château. A sua igreja, dedicada a Santa Maria Madalena, há décadas que mal era utilizada e nunca imaginara que um dia aqueles problemas passariam para a sua alçada.

- Completamente arruinada - disse-lhe o homem conhecido como Rousset.

O abade olhou para o pedreiro.

- Concordo.

Outro dos pedreiros, Babou, estava atarefado a escorar uma das paredes. O arquitecto estatal recomendara recentemente a destruição, do edifício, mas Saunière nunca permitiria que isso acontecesse. Havia qualquer coisa naquela antiga igreja que lhe dizia para a restaurar.

- Vai ser preciso muito dinheiro para completar a obra - afirmou Rousset.

- Uma enorme quantidade de dinheiro - concordou o padre, e sorriu para que o outro homem soubesse que ele compreendia bem o desafio que tinha pela frente. - Mas conseguiremos transformá-la numa casa digna do Senhor.

O que não disse foi que já tinha grande parte dos fundos. Uma doação efectuada por uma paroquiana ao seu antecessor havia-lhe deixado seiscentos francos destinados ao restauro da igreja. Também conseguira convencer a Câmara Municipal a emprestar lhe outros mil e quatrocentos francos. Contudo, grande parte do dinheiro fora obtido em segredo há cinco anos. A condessa de Chambord, viúva de Henrique, o último Bourbon herdeiro do extinto trono de França, fizera uma doação de três mil francos. Nessa altura, Saunière tinha conseguido chamar a atenção sobre a sua pessoa com inflamados discursos anti-republicanos, discursos esses que fizeram agitar sentimentos monárquicos junto dos seus paroquianos. O governo condenou os sermões, retirou-lhe o rendimento eclesiástico anual e exigiu que o padre fosse demitido. Em vez disso, o bispo suspendeu-o por nove meses. Todavia, as suas acções tinham já chamado a atenção da condessa, que o contactou através de um intermediário.

- Por onde começamos? - questionou Rousset.

Já ponderara bastante sobre aquele assunto. Os vitrais tinham de ser substituídos e o novo pórtico de entrada estava quase terminado. Era certo que a parede norte, na qual Babou estava a trabalhar, precisava de ser reconstruída, necessitavam também de instalar um novo púlpito e o telhado tinha de ser remendado. Todavia, o abade sabia bem o que tinham de fazer primeiro.

- Começamos pelo altar.

Rousset olhou-o com uma expressão admirada.

- É aqui que o povo se ajoelha - explicou Saunière.

- O senhor abade é que manda.

Apreciava o respeito que os paroquianos mais velhos lhe devotavam, apesar de ter apenas trinta e oito anos. Nos últimos cinco anos, começara a apreciar Rennes. Estava perto de casa e tinha bastante tempo livre para estudar as Escrituras e aperfeiçoar o seu latim, grego e hebraico. Também gostava de passear pelas montanhas, de pescar e de caçar. No entanto, chegara a altura de fazer algo mais construtivo.

Aproximou-se do altar.

O topo era de mármore branco perfurado pelo constante pingar da água que caía do tecto. A laje era suportada por dois pilares esculpidos com cruzes visigóticas e letras gregas.

- Substituímos a laje e os pilares - declarou ele.

- Como, senhor abade? - perguntou Rousset. - Não temos maneira de levantar a pedra.

Saunière apontou para o lugar onde Babou se encontrava.

- Utilizem o maço. Não precisamos de a retirar inteira.

Babou trouxe a ferramenta e observou o altar. Depois, elevou o martelo e bateu com força no centro da laje. A pedra rachou, mas não partiu.

- É sólido - disse Babou.

- Martele de novo - pediu o abade.

Um golpe mais forte e a pedra calcária quebrou-se em duas, cada parte aterrando entre os pilares intactos.

- Terminem isso - pediu ele. As duas partes foram rapidamente partidas em pedaços mais pequenos.

Baixou-se.

- Vamos carregar isto lá para fora.

- Nós levamos, senhor abade - disse Babou, e encostou o maço à parede. - O senhor junta os pedaços.

Os dois pedreiros levantaram os bocados maiores e dirigiram-se para a porta.

- Levem isso lá para trás, para o cemitério. Ainda nos vão ser úteis - gritou-lhes.

Quando os homens saíram, reparou que ambos os pilares haviam resistido intactos à demolição. Empurrou o entulho e o pó do cimo de um deles. Sobre o outro ainda se encontrava um pedaço da pedra do altar e, quando a atirou para a pilha que juntara, reparou que no cimo do pilar havia uma pequena abertura. O espaço não era maior que a palma da sua mão, e por certo destinava-se a suportar o encaixe da pedra do altar, mas no seu interior Saunière viu qualquer coisa que tremeluzia.

Dobrou-se para ver melhor e soprou a poeira.

Sim, havia algo ali.

Um pequeno frasco de vidro.

Não era muito maior que o seu dedo indicador e apenas ligeiramente mais largo. A boca do frasco estava tapada com uma cera escurecida. Observou com mais cuidado e viu que continha um pedaço de papel enrolado. Interrogou-se há quanto tempo estaria aquilo ali. Não havia notícia de nenhum trabalho recente feito no altar, por isso devia estar escondido ali há muitos anos.

Libertou o frasco do seu esconderijo.

- Foi aquele frasco de vidro que deu início a tudo - explicou Stephanie.

Malone acenou afirmativamente com a cabeça.

- Também li os livros de Lars. No entanto, pensava que Saunière teria encontrado três pergaminhos escondidos no pilar com uma espécie de mensagens codificadas.

- Não. Isso faz parte do mito que outros acrescentaram à história. Cheguei a falar com Lars acerca disso. Grande parte das lendas começou nos anos cinquenta e foram divulgadas por um estalajadeiro de Rennes com o objectivo de aumentar as vendas. Uma lenda conduziu à outra. Lars nunca acreditou que aqueles pergaminhos fossem verdadeiros. O suposto texto que continham foi publicado em inúmeros livros, mas nunca ninguém viu os ditos pergaminhos.

- Então o que o levou a escrever sobre eles?

- Assim conseguia vender mais livros. Sei que isso o incomodava, mas ainda assim fê-lo. Ele sempre disse que qualquer tesouro que Saunière tivesse encontrado remontaria a 1891. Contudo, mais ninguém acreditava nisso. - Apontou para outro dos edifícios de pedra. - Aquele é o presbitério onde Saunière morava. Agora é um museu acerca dele. O pilar com o pequeno nicho está lá, para que todos o possam ver.

Passaram pelos quiosques apinhados de pessoas e continuaram pela rua mal pavimentada.

- A Igreja de Maria Madalena - anunciou ela, e apontou para um edifício de estilo românico. - Em tempos idos foi a capela dos condes locais, agora por alguns euros pode ver-se a grande criação do abade Saunière.

- Não aprova?

Stephanie encolheu os ombros.

- Nunca aprovei. Era esse o problema.

À direita Malone avistou uma casa de campo decrépita, que outrora devia ter sido luxuosa.

- É a herdade d'Hautpoul - explicou ela. - Foi perdida para o governo durante a Revolução e desde essa altura que se tem vindo a transformar numa ruína.

- Contornaram o extremo mais afastado da igreja e passaram sob um arco de pedra que exibia o que parecia ser uma caveira sobre duas tíbias cruzadas. Recordava-se de ter lido no livro que aquele símbolo aparecia em grande parte das lápides dos templários.

O terreno que se estendia para lá da entrada estava pejado de pedras. Sabia o que os franceses chamavam àquele espaço. Enclos paroissial. Recinto paroquial. E aquele parecia bem típico. Um dos lados estava contornado por um muro baixo e o outro aninhado junto a uma igreja, a entrada um arco imponente. O cemitério albergava uma profusão de campas, lápides e memoriais. Havia flores em algumas das campas e muitas eram decoradas, segundo a tradição francesa, com fotografias dos falecidos.

Stephanie dirigiu-se a um dos monumentos que não apresentava flores nem imagens e Malone não a acompanhou. Sabia que Lars era tão estimado pela população local que esta o agraciara com o privilégio de ser enterrado junto à sua adorada igreja.

A lápide era simples e salientava apenas nome, datas e um epitáfio que dizia MARIDO, PAI, ACADÉMICO.

Malone deteve-se ao lado de Stephanie.

- Nunca protestaram por ter sido aqui enterrado - murmurou ela.

Malone sabia o que ela queria dizer. Em solo sagrado.

- O presidente da câmara da altura disse que não havia provas conclusivas de que se tratara de suicídio. Ele e Lars eram muito chegados e queria que o amigo fosse enterrado aqui.

- É o lugar perfeito - afirmou Malone.

Ela estava a sofrer, era óbvio, mas dar a conhecer esse facto seria uma invasão da sua privacidade.

- Fiz muitas asneiras com Lars - confessou Stephanie. - E a maior parte fez-me perder o contacto com Mark.

- O casamento é uma coisa complicada. - O seu próprio casamento falhara por egoísmo. - Tal como ser progenitor.

- Sempre considerei a paixão de Lars uma patetice. Eu era advogada governamental e ele andava à procura do impossível.

- Então o que a trouxe aqui?

O olhar dela não se desviou da campa.

- Percebi que lhe devo muita coisa.

- Ou que o deve a si mesma.

Ela afastou-se da campa.

- Talvez deva a ambos - confessou.

Malone resolveu não fazer mais perguntas.

Stephanie apontou para um dos cantos do cemitério.

- A amante de Saunière está sepultada ali.

Lera essa história nos livros de Lars. Marie Dénarnaud era dezasseis anos mais nova que o abade e tinha apenas dezoito anos quando deixou o trabalho de chapeleira para se transformar na governanta de Saunière. Permaneceu a seu lado durante trinta e um anos, até à morte do abade em 1917. Tudo o que o abade foi adquirindo ao longo da vida acabou por ficar em nome dela, incluindo as propriedades e contas bancárias. Isso impossibilitou que terceiros, e mesmo a Igreja, pudessem reclamar os seus bens. Marie continuou a viver em Rennes. Vestia roupas escuras e comportava-se de modo tão estranho como quando o seu amante era vivo, até falecer em 1953.

- Era uma pessoa estranha - afirmou Stephanie. - Muito depois de Saunière ter morrido declarou que «com aquilo que ele deixou podia alimentar toda a aldeia durante cem anos», no entanto, viveu na pobreza até ao dia em que morreu.

- Alguém sabia porquê?

- Ela limitava-se a dizer: «não lhe posso tocar».

- Pensei que não soubesse muito sobre este assunto.

- E não sabia, até à semana passada. Os livros e o diário foram bastante informativos. Lars passou muito tempo a fazer perguntas aos habitantes locais.

- Soa a boato em segunda ou terceira mão.

- Isso é verdade em relação a Saunière, afinal já tinha falecido há muito tempo. No entanto, a sua amante viveu até aos anos cinquenta, por isso ainda havia muita gente nos anos setenta e oitenta que a conhecera. Em 1946, vendeu a villa Béthanie a um homem chamado Noël Corbu. Foi ele quem a converteu num hotel, o tal estalajadeiro que inventou grande parte das lendas sobre Rennes. A amante prometeu contar a Corbu o grande segredo de Saunière, mas no fim da vida sofreu um acidente vascular cerebral e deixou de ser capaz de falar.

Atravessaram o terreno com a areia a estalar sob os pés.

- Saunière também estava aqui sepultado, ao lado dela, mas o presidente da câmara achou que a campa corria o risco de ser violada por caçadores de tesouros, e desenterrou o padre e mudou-o para um mausoléu no jardim. Agora paga-se três euros para ver a sua campa... Presumo que seja esse o preço da segurança de um cadáver.

Malone entendeu o sarcasmo implícito nas suas palavras. Ela apontou para a campa.

- Recordo-me de ter vindo aqui há anos. Quando Lars veio para cá, no final dos anos sessenta, havia apenas duas cruzes antigas a marcar as campas e estavam quase cobertas por ervas daninhas. Ninguém queria saber deles. Saunière e a amante estavam completamente esquecidos.

Uma corrente de ferro rodeava o talhão e havia flores frescas em vasos de cimento. Malone reparou num epitáfio já quase ilegível numa das pedras.

AQUI JAZ BÉRENGER SAUNIÈRE

PADRE DA PARÓQUIA DE RENNES-LE-CHÂTEAU

1853-1917

MORREU A 22 DE JANEIRO DE 1917 COM 64 ANOS

- Li algures que a lápide era demasiado frágil para ser transportada e por isso deixaram-na aqui, para os turistas verem.

Malone observou a campa de Marie.

- Ela não foi também alvo dos oportunistas?

- Pelos vistos não, uma vez que a deixaram aqui.

- E o relacionamento deles não era um escândalo?

Stephanie encolheu os ombros.

- Qualquer que fosse a riqueza de Saunière, não a guardou só para si. A torre de água que vimos lá atrás foi construída por ele. Mandou erigi-la para a aldeia. Também mandou pavimentar as ruas, reparou casas e emprestou dinheiro a pessoas necessitadas. Acho que lhe perdoaram qualquer fraqueza que pudesse ter tido. Para além disso, era comum os padres nessa altura terem auxiliares femininas. Ou, pelo menos, foi isso que Lars escreveu num dos seus livros.

Um grupo de visitantes barulhentos virou a esquina atrás deles e dirigiu-se para a campa.

- Já estão a chegar os curiosos - exclamou Stephanie com desdém. - Pergunto-me se têm o mesmo tipo de comportamento na terra deles, nos cemitérios onde os seus parentes estão enterrados.

O grupo barulhento aproximou-se mais e um guia turístico começou a despejar a história da amante. Stephanie e Malone retiraram-se.

- Isto para eles não passa de uma atracção - comentou ela em voz baixa. - Na qual o abade Saunière descobriu um tesouro e decorou a sua igreja com mensagens que levavam à sua localização. Não entendo como é que alguém acredita nisso.

- Mas não foi sobre isso que Lars escreveu?

- Até certo ponto, sim. Mas pense um pouco, Cotton. Mesmo que o padre tenha encontrado um tesouro, porque deixaria um mapa para outra pessoa o encontrar? Construiu tudo isto ainda em vida. A última coisa que desejaria era que alguém lhe ficasse com tudo. - Abanou a cabeça. - Esta história vende livros, mas não é verdadeira.

Preparava-se para fazer outra pergunta quando reparou que o olhar dela se desviava para outro canto do cemitério, para lá de uns degraus de pedra que levavam à sombra de um carvalho que se erguia sobre mais lápides. Por entre a sombra dos ramos, avistou uma campa recente decorada com flores coloridas, as letras prateadas a brilhar ao sol.

Stephanie avançou nessa direcção e ele seguiu-a.

- Meu Deus! - exclamou ela, com um olhar preocupado. Malone leu o que estava escrito na lápide. ERNST SCOVILLE.

Depois reparou nas datas e fez as contas. O homem tinha setenta e três anos quando morreu.

Na semana anterior.

- Conhecia-o? - perguntou.

- Falei com ele há três semanas. Depois de ter recebido o diário de Lars. - A atenção dela manteve-se fixa na campa. - Ele era uma das pessoas que trabalhavam com o meu marido e com a qual precisávamos de falar.

- Disse-lhe o que planeava fazer?

Ela anuiu lentamente.

- Falei-lhe do leilão, do livro e que vinha à Europa.

Malone não podia acreditar no que estava a ouvir.

- Mas disse-me a noite passada que mais ninguém sabia onde estava.

- Menti.

 

Abbaye des Fontaines, 13 h 00 m

De Roquefort estava satisfeito. Saíra vitorioso do seu primeiro confronto com o senescal. Até então apenas seis mestres tinham sido contestados, os seus pecados oscilando entre roubo, cobardia e luxúria. Tudo isso tivera lugar após a Expulsão, quando a irmandade estava fraca e caótica. Infelizmente, a sanção proveniente de uma contestação era mais simbólica do que punitiva. O domínio do mestre seria ainda assim registado nas Crónicas, os seus sucessos e fracassos, mas haveria uma nota esclarecendo que os seus irmãos não o haviam considerado «digno de ser recordado».

Nas últimas semanas, os seus tenentes tinham garantido os dois terços de votos necessários e enviado uma mensagem ao senescal. Aquele idiota precisava de saber que a batalha que tinha pela frente ia ser bastante difícil. Era verdade que o insulto de ser contestado pouco importava ao mestre, esse seria sepultado junto dos seus antecessores, quer quisessem quer não. A recusa era mais uma afronta ao suposto sucessor e uma forma de incentivar aliados. Tratava-se de um recurso antigo criado pela Regra, oriundo de um tempo em que a honra e a memória significavam alguma coisa. Um recurso que ele ressuscitara com sucesso na primeira salva de uma guerra que terminaria ao fim do dia. Ele seria o próximo mestre.

Os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão existiam desde 1118. Filipe IV de França, que ganhara o desprezível cognome de Filipe, o Belo, tentara em 1307 exterminar a Ordem. Porém, tal como o senescal, também subestimara o seu adversário, conseguindo apenas que a Ordem passasse à clandestinidade.

Outrora, dezenas de milhares de irmãos dominavam castelos, templos e quintas espalhados por nove mil propriedades na Europa e na Terra Santa. A mera visão de um irmão a envergar o manto branco com a cruz vermelha era suficiente para incutir medo nos seus inimigos. Os irmãos possuíam imunidade da pena de excomunhão e estavam dispensados do pagamento de feudo, para além disso, era-lhes permitido guardar todos os despojos de guerra. Respondendo apenas perante o papa, os Cavaleiros Templários eram uma autêntica nação.

Todavia, há setecentos anos que não travavam qualquer batalha. Em vez disso, a Ordem retirara-se para uma abadia nos Pirenéus e disfarçara-se de simples comunidade religiosa. Mantinha relações com os bispos de Toulouse e Perpignan e cumpria todos os deveres para com a Igreja Católica. Não faziam nada que pudesse chamar a atenção sobre eles e que fizesse as pessoas questionarem-se sobre o que se passava dentro dos seus muros. Todos os irmãos faziam dois votos. Um para com a Igreja, por necessidade. E o outro para com a irmandade, o mais importante. Os rituais antigos eram ainda cumpridos, embora às escondidas e atrás de muralhas. E tudo pelo Grande Legado.

A futilidade paradoxal daquela tarefa indignava-o. A Ordem existia para guardar o Legado, mas o Legado não existiria se não fosse a Ordem.

Um dilema, sem dúvida.

Ainda assim, era um dever.

Toda a sua vida fora apenas um preâmbulo para as próximas horas. Nascido de pais incógnitos, fora educado por jesuítas numa escola perto de Bordéus. No Início, os irmãos eram na sua maioria criminosos arrependidos, amantes desiludidos e párias. Actualmente, eram oriundos de todos os quadrantes da sociedade. O mundo secular fornecia grande parte dos recrutas, mas a sociedade religiosa é que produzia os verdadeiros líderes. Os últimos dez mestres podiam gabar-se de uma educação religiosa. A sua começara na universidade em Paris e fora depois completada no seminário em Avinhão. Aí permanecera como professor depois de terminados os estudos e ensinara durante três anos, antes de ser abordado pela Ordem, que abraçou com entusiasmo, seguindo a Regra à letra.

Durante os seus cinquenta e seis anos de vida, nunca tocara numa mulher ou se sentira tentado por um homem. Sabia que a sua promoção a marechal tinha sido uma maneira que o mestre encontrara de satisfazer a sua ambição ou talvez até uma armadilha para que criasse inimigos suficientes que impedissem os seus progressos. No entanto, ele usara a sua posição com sabedoria, fazendo amigos, cimentando lealdades, acumulando favores. A vida monástica era a que melhor se lhe adequava. Na última década estudara as Crónicas e era agora versado em todos os aspectos - bons e maus -- da história da Ordem. Não iria repetir os erros do passado. Acreditava fervorosamente que, no Início, o auto-imposto isolamento da irmandade acelerara a sua queda. O secretismo gerava mistério e suspeição, e daí até à recriminação distava apenas um passo. Logo, os setecentos anos de silêncio tinham de terminar.

A sua hora chegara.

A Regra era clara.

«Quando algo é ditado pelo mestre, não pode haver qualquer hesitação e deve ser executado sem demora como se tivesse sido ordenado pelos céus.»

O telefone na secretária tocou e ele levantou o auscultador.

- Os nossos dois irmãos em Rennes-le-Château - disse-lhe o adjunto - informaram que Stephanie Nelle e Malone já chegaram. Tal como previu, ela foi direita ao cemitério e descobriu a campa de Ernst Scoville.

Conhecer o inimigo era sempre uma vantagem.

- Os irmãos que se limitem a vigiá-los, mas que estejam prontos para agir em qualquer altura.

- Relativamente ao outro assunto que nos pediu para investigar... Ainda não sabemos quem atacou os irmãos em Copenhaga.

De Roquefort detestava fracassos.

- Está tudo preparado para esta noite? - perguntou ele.

- Estaremos prontos.

- Quantos acompanharam o senescal até à Sala dos Mestres?

- Trinta e quatro.

- Todos identificados?

- Cada um deles.

- Ser-lhes-á dada a oportunidade de se juntarem a nós. Se recusarem, tratem deles. No entanto, vamos assegurar-nos de que a maioria prefere a via mais pacífica. É capaz de não ser problemático, poucos são os que gostam de fazer parte de uma causa perdida.

- O consistório começa às dezoito horas.

Ao menos o senescal estava a cumprir o seu dever, chamando os irmãos para a assembleia antes do anoitecer. O consistório era a única variável na equação - um procedimento especialmente elaborado para impedir manipulações - que há muito ele estudara e antecipara.

- Estejam preparados - aconselhou ele. - O senescal irá recorrer à pressa para gerar confusão. Foi assim que o seu mestre conseguiu ser eleito.

- Ele não vai aceitar a derrota de braços cruzados.

- Nem eu espero que o faça, e foi por isso que lhe preparei uma surpresa.

 

Rennes-le-Château, 13 h 30 m

Malone e Stephanie atravessaram a aldeia apinhada de gente. Outro autocarro subia a rua central, avançando em direcção ao parque de estacionamento. A meio do caminho, Stephanie entrou num restaurante e falou com o dono enquanto ele fixava o olhar num peixe delicioso que alguns dos clientes estavam a degustar. Infelizmente, o almoço teria de esperar.

Estava zangado por Stephanie lhe ter mentido. Ou ela não tinha noção ou não acreditava na gravidade daquela embrulhada. Havia homens determinados, dispostos a matar e a morrer, atrás de qualquer coisa. Não era a primeira vez que se deparava com gente assim e quanto mais informação possuísse, maiores eram as probabilidades de sucesso. Já era difícil o suficiente ter de lidar com o inimigo, mas ter de se preocupar com um aliado ainda complicava mais as coisas.

Ao sair do restaurante, Stephanie disse:

- Ernst Scoville foi atropelado por um carro a semana passada quando foi fazer o seu passeio diário fora dos muros da aldeia. Já vivia aqui há bastante tempo e toda a gente gostava dele.

- Há alguma pista sobre o carro?

- Não houve testemunhas. Nada.

- Mas chegou a conhecer Scoville?

Stephanie assentiu.

- Ele não gostava muito de mim. Falámos poucas vezes. Tomou sempre o partido do meu marido.

- Então o que a levou a telefonar-lhe?

- Foi a única pessoa que me ocorreu a quem poderia fazer perguntas sobre o diário de Lars. Foi muito educado, tendo em consideração que já não falávamos há anos. Ele queria ver o diário e por isso pensei que poderia remediar algumas coisas enquanto aqui estava.

Malone pensou em tudo aquilo. O marido falecera, o filho também e agora os amigos do marido. A origem da sua culpa era óbvia, mas o que planeava ela fazer sobre isso era ainda uma incógnita.

Fez sinal para que continuassem a andar.

- Quero ir a casa de Ernst. Era dono de uma biblioteca notável. Gostava de saber se os livros ainda lá estão.

- Era casado?

Stephanie abanou a cabeça.

- Um solitário. Teria dado um bom eremita.

Desceram uma das vielas laterais por entre mais filas de casas antigas.

- Acredita mesmo que existe um tesouro escondido algures por aqui? - perguntou ele.

- É difícil responder a isso, Cotton. Lars costumava dizer que noventa por cento da história de Saunière era ficção. Eu ralhava com ele por perder tempo com uma coisa tão ridícula. Mas ele contrapunha sempre com os dez por cento de verdade. Era isso que o fascinava e, até certo ponto, a Mark também. Pelos vistos, aconteceram coisas muito estranhas aqui há cem anos.

- Está a referir-se de novo a Saunière?

- Sim.

- Ajude-me a compreender tudo isto.

- Na verdade, eu também preciso de ajuda nesse campo. Mas posso contar-lhe o que sei sobre Bérenger Saunière.

- Não posso deixar uma paróquia onde o dever me prende - disse Saunière ao bispo no palácio episcopal de Carcassonne, trinta quilómetros a norte de Rennes-le-Château.

Há meses que andava a evitar aquele encontro com atestados médicos que o proibiam de viajar por motivos de doença, mas o bispo era um homem persistente e o último pedido fora acompanhado por um agente da Polícia que levava instruções para o escoltar até à sua presença.

- Quero que me apresente um relatório que explique as origens dos seus recursos monetários, que parecem tão súbitos e de tão grande monta.

- Ah, Monsenhor, pergunta-me a única coisa que não posso revelar. Pecadores a quem, com a ajuda do Senhor, mostrei o caminho do arrependimento são os responsáveis por essas generosas doações. Não desejo trair o segredo da confissão e revelar os seus nomes.

O bispo aceitou a sua argumentação.

- Então falemos do seu estilo de vida. Que eu saiba não está protegido pelo segredo da confissão.

Saunière fez uma cara inocente.

- O meu estilo de vida é bastante modesto.

- Não foi isso que me foi dito.

- As suas informações devem estar erradas.

- Então vejamos. - O bispo abriu a capa de um livro grosso colocado à sua frente. - Mandei elaborar um inventário e revelou-se bastante interessante.

Saunière não gostou do que ouviu. O seu relacionamento com o antigo bispo fora cordial e sempre pudera contar com alguma liberdade. O novo bispo era diferente.

- Em 1891, deu início às renovações da igreja. Nessa altura substituiu as janelas, mandou fazer um pórtico, instalou um altar e um púlpito novos e reparou o telhado. Custo, aproximado, dois mil e duzentos francos. No ano seguinte reconstruiu as paredes exteriores e substituiu o chão. Depois veio o novo confessionário, setecentos francos, estátuas e estações da cruz, todos encomendados em Toulouse à casa Giscard, três mil e duzentos francos. Em 1898, acrescentou uma pia baptismal que custou quatrocentos francos. Um ano depois, em 1900, manda colocar um baixo-relevo de Santa Maria Madalena, bastante elaborado segundo me foi dito, frente ao altar.

Saunière limitava-se a escutar. Aparentemente, o bispo conhecia bem os registos da paróquia. O último tesoureiro desistira do cargo há alguns anos, alegando que os seus deveres eram contrários à sua crença. Havia alguém atento às suas obras.

- Vim para aqui em 1902 - disse o bispo. - Durante os últimos oito anos tentei, em vão, que comparecesse às audiências e me explicasse o que se estava a passar. Todavia, durante esse tempo, conseguiu construir a villa Béthanie adjacente à igreja. Segundo sei, é uma construção burguesa, com janelas de vitrais, sala de jantar, sala de estar e quartos para os seus hóspedes, que são bastantes, pelo que me dizem. Recebe muitas visitas.

Aquele comentário pretendia provocar uma resposta, mas o abade nada disse.

- Depois há a Torre Magdala. O seu devaneio de uma biblioteca com vista para o vale. Pelo que sei, possui dos mais belos trabalhos de marcenaria das redondezas. A isto há ainda a juntar as suas colecções de selos e de postais, que são avultadas, e ainda alguns animais exóticos. Estamos a falar de muitos milhares de francos. - O bispo fechou o livro. - O rendimento da sua paróquia não ultrapassa os duzentos e cinquenta francos por ano. Como é possível ter juntado tanto dinheiro?

- Como disse, Monsenhor, recebi muitas doações privadas de almas generosas que desejam ver a paróquia prosperar.

- O senhor tem andado a traficar intenções de missa - declarou o bispo. - Vende os sacramentos. É culpado do crime de simonia.

Fora avisado de que aquela era a acusação mais séria.

- Não entendo por que razão me censura. Quando cheguei, a paróquia encontrava-se num estado lamentável. Que eu saiba, é da responsabilidade dos meus superiores garantir que Rennes-le-Château possua uma igreja digna dos seus fiéis e um abrigo decente para o seu pastor. No entanto, nos últimos vinte e cinco anos tenho trabalhado para reconstruir e embelezar a igreja sem nunca pedir um cêntimo que fosse à diocese. Diria que mereço ser felicitado e não recriminado.

- E quanto acha que terá gasto em todos esses melhoramentos?

Saunière resolveu responder.

- Cento e noventa e três mil francos.

O bispo desatou a rir à gargalhada.

- Senhor abade, isso não teria chegado sequer para comprar a mobília, as estátuas e os vitrais. Segundo os meus cálculos, terá gasto mais de setecentos mil francos.

- Não tenho grandes dons de contabilista, por isso não lhe posso dizer quanto foi gasto. Tudo o que sei é que o povo de Rennes-le-Château gosta da sua igreja.

- Dizem-me as autoridades que o senhor recebe entre cem e cento e cinquenta vales postais por dia. Muitas dessas ordens de pagamento são oriundas da Bélgica, da Itália, da Renânia, da Suíça e de toda a França, oscilando cada uma entre os cinco e os quarenta francos. É no banco de Couiza que as troca por dinheiro. Como explica isso?

- É a minha governanta quem trata da correspondência. É ela quem abre as cartas e responde aos pedidos. Essa pergunta deve ser-lhe colocada a ela.

- É o senhor quem aparece no banco.

Manteve-se fiel à sua história.

- O melhor é perguntar-lhe a ela.

- Não é a sua governanta quem está a ser alvo deste inquérito.

Saunière encolheu os ombros.

- O senhor anda a traficar missas. É óbvio para mim que os envelopes que lhe são enviados não contêm doações. No entanto, há algo ainda mais perturbador.

Permaneceu em silêncio.

- Fiz uns cálculos. A menos que lhe paguem somas exorbitantes pelas missas, e pelo que sei a quantia base é cinquenta cêntimos, o senhor teria de rezar missas vinte e quatro horas por dia, durante cerca de trezentos anos para acumular o dinheiro que já gastou.

- Não, senhor abade, o tráfico de missas é apenas uma fachada para esconder a verdadeira fonte da sua fortuna.

Aquele homem era mais esperto do que aparentava.

- Quer responder?

- Não, Monsenhor.

- Assim sendo, encontra-se a partir deste momento afastado dos seus deveres em Rennes e deverá apresentar-se de imediato na paróquia de Coustouge. Para além disso, está suspenso e não poderá dizer missa ou administrar os sacramentos, até ordem em contrário.

- E qual é a duração deste castigo? - perguntou calmamente.

- Até o Tribunal Eclesiástico ouvir o seu recurso, que estou certo irá interpor.

- Saunière recorreu - disse Stephanie. - E até apelou ao Vaticano. No entanto, viria a falecer em 1917, antes de ser ilibado. O que fez foi afastar-se da Igreja, mas nunca deixou Rennes, passando a dizer missa na villa Béthanie. Os habitantes locais gostavam dele e, por isso, boicotaram o novo abade. Não se esqueça que a terra em redor da igreja, incluindo a casa, pertenciam à amante de Saunière, e nisso ele foi inteligente. Logo, a Igreja não podia fazer nada.

- Mas como foi que ele pagou todas as obras? - questionou Malone.

Ela sorriu.

- Foi uma pergunta à qual muitos tentaram responder, incluindo o meu marido.

Meteram por outra das serpenteantes vielas, ladeada por habitações melancólicas cuja pedra tinha a cor de lenha seca, desprovida de casca.

- Ernst vivia ali mais à frente - indicou ela.

Aproximaram-se de um edifício antigo decorado por rosas trepadeiras. Depois de três degraus de pedra ficava a porta de entrada. Malone subiu as escadas, espreitou pelos vidros e não viu quaisquer sinais de negligência.

- Está tudo em ordem. Ernst era um homem muito meticuloso.

Tentou a maçaneta, mas a porta estava trancada.

- Gostava de entrar - disse ela.

Malone olhou para um lado e depois para o outro. À esquerda, a rua terminava num muro exterior. Para lá do muro estendia-se um céu azul com nuvens encapeladas. Não havia uma única pessoa à vista. Voltou-se e, com o cotovelo, partiu o vidro da porta. Depois meteu a mão na abertura e destrancou a fechadura.

Stephanie subiu os degraus.

- Depois de si - declarou ele.

 

Abbaye des Fontaines, 14 h 00 m

O senescal empurrou o portão de ferro para dentro e encabeçou o cortejo fúnebre através da antiga arcada. A entrada para a subterrânea Sala dos Mestres situava-se dentro dos muros da abadia, no extremo de uma extensa passagem onde um dos mais antigos edifícios se erguia da rocha. Há mil e quinhentos anos, os monges começaram a ocupar as cavernas, vivendo em isolamento. À medida que mais e mais penitentes foram chegando, construíram-se os edifícios. As abadias tinham tendência a expandir-se ou a decrescer drasticamente e aquela fora fundada com um ímpeto de construção que duraria séculos, continuada depois pelos Cavaleiros Templários que, nos finais do século XIII, a tinham discretamente acrescentado à sua extensa lista de bens. A casa mãe da Ordem - maison chèvetaine, como a Regra a designava - começara por se situar em Jerusalém, depois em Acre, depois em Chipre, e acabara por se fixar ali após a Expulsão. Aos poucos, o complexo foi rodeado por muros com ameias e torres e a abadia transformou-se numa das maiores da Europa, erigida bem no alto nos Pirenéus, isolada pelo acidente geográfico e pela Regra. O seu nome provinha do rio que corria ali perto, das cascatas e da abundância de água subterrânea. Abbaye des Fontaines: abadia das fontes.

Desceu os estreitos degraus esculpidos na rocha. As solas das sandálias escorregavam na pedra húmida. Onde outrora as tochas eram a única luz, as lâmpadas eléctricas mostravam agora o caminho. Atrás dele seguiam os trinta e quatro irmãos que haviam decidido juntar-se-lhe. Ao fundo das escadas continuou em frente até que o túnel se transformou numa sala abobadada. Ao centro, assemelhando-se ao tronco de uma árvore centenária, erguia-se um pilar de pedra.

Lentamente, os irmãos juntaram-se em torno do caixão, que já fora trazido para baixo e colocado sobre um plinto. Por entre o fumo do incenso ergueram-se cânticos melancólicos.

Assim que as vozes se calaram, o senescal deu um passo em frente.

- Estamos aqui reunidos para lhe prestar homenagem. Oremos - disse ele em francês.

Assim fizeram e depois entoaram um hino.

- O nosso mestre liderou-nos bem. Vós, que permaneceis fiéis à sua memória, tende coragem. Ele teria ficado orgulhoso.

Seguiram-se alguns minutos de silêncio.

- O que nos reserva o futuro? - perguntou em voz baixa um dos irmãos.

Não era permitido conferenciar na Sala dos Mestres, mas dadas as circunstâncias permitiu um pequeno desvio à Regra.

- Incerteza - declarou. - O irmão De Roquefort está pronto a tomar o poder. Aqueles de entre vós que forem escolhidos para o conclave terão de lutar para o deter.

- Ele irá provocar a nossa queda - murmurou outro dos irmãos.

- Concordo - disse o senescal. - Ele acredita que podemos de alguma maneira vingar pecados com setecentos anos. Mesmo que pudéssemos, por que razão o faríamos? Sobrevivemos.

- Os seus seguidores têm andado a fazer pressão sobre nós. Aqueles que forem contra serão punidos.

O senescal sabia ser essa a razão que levara tão poucos irmãos a acompanhá-lo à Sala dos Mestres.

- Os nossos antepassados enfrentaram muitos inimigos. Na Terra Santa enfrentaram os sarracenos e morreram com honra. Aqui, suportaram a tortura da Inquisição. O mestre De Molay foi queimado na estaca. É nosso dever permanecer fiéis.

Não passavam de palavras fracas, sabia-o bem, mas tinham de ser ditas.

- De Roquefort quer declarar guerra aos nossos inimigos. Um dos seus seguidores disse-me que ele pretende até recuperar o manto.

O senescal estremeceu. Outros radicais haviam já sugerido esse acto de desafio, mas nenhum mestre o aprovara.

- Temos de o travar no conclave. Felizmente, não poderá controlar o processo de selecção.

- Ele assusta-me - confessou um dos irmãos, e o silêncio que se seguiu indicou que os outros partilhavam daquela opinião.

Após uma hora de orações, o senescal fez um sinal. Quatro homens envergando vestes carmesins levantaram o caixão.

Ele voltou-se e aproximou-se de duas colunas de pórfiro vermelho entre as quais ficava a Porta de Ouro. O nome não provinha do material de que eram feitas, mas daquilo que em tempos era guardado do outro lado.

Quarenta e três mestres repousavam no seu próprio loculus, sob um tecto de rocha polida e pintada de azul-escuro, no qual brilhavam estrelas douradas. Há muito que os corpos se haviam transformado em pó. Restavam apenas os ossos, guardados em ossários, cada qual exibindo o nome do mestre e as datas do tempo de serviço. À sua direita havia ainda nichos vazios, e um deles albergaria o corpo do seu mestre durante o próximo ano. Só nessa altura um irmão regressaria ali para transferir os seus ossos para um ossário. As técnicas fúnebres, já há muito utilizadas pela Ordem, pertenciam aos judeus da Terra Santa, que as utilizavam desde o tempo de Cristo.

Os carregadores depositaram o caixão no nicho designado. Havia uma profunda tranquilidade naquele lugar meio escurecido.

Naquele instante, pensou no amigo. O mestre era o filho mais novo de um mercador belga abastado. Chegara à Igreja sem nenhuma razão aparente, segundo ele sentira-se apenas impelido a fazê-lo. Fora recrutado por um dos muitos representantes da Ordem, irmãos espalhados por todo o mundo cuja tarefa era recrutar novos membros. A vida monástica combinava com ele. Embora não fosse de posição elevada, após a morte do seu antecessor, todos no conclave haviam proclamado: «Que seja o novo mestre». E foi assim que prestou juramento. «Coloco-me ao serviço de Deus omnipotente e da Virgem Maria para salvação da minha alma e assim será durante toda a minha vida e até ao meu último suspiro». O senescal proferira o mesmo juramento.

Depois os seus pensamentos vaguearam para os primeiros tempos da Ordem, os gritos de guerra, os gemidos dos irmãos feridos ou moribundos, os lamentos por todos aqueles que não tinham sobrevivido à crueldade das batalhas. Esse era o costume da Ordem. Os primeiros a chegar e os últimos a partir. Raymond de Roquefort ansiava por esses tempos. Mas porquê? A inutilidade de tudo aquilo ficara provada quando a Igreja e o Estado se voltaram contra os templários na altura da Expulsão, não mostrando qualquer apreço por duzentos anos de lealdade e serviço. Os irmãos acabaram queimados na fogueira, outros torturados e estropiados para o resto da vida, e tudo por ganância. Para o mundo moderno, os Cavaleiros Templários não passavam de lendas, de memórias de um tempo antigo. Ninguém queria saber se existiam ou não, por isso, tentar corrigir qualquer injustiça parecia-lhe um acto inútil.

Os mortos deviam descansar em paz.

Voltou a olhar em redor para as caixas de pedra e depois mandou retirar os irmãos, à excepção de um. O seu assistente. Precisava de falar com ele a sós. O homem mais novo aproximou-se.

- Diz-me, Geoffrey - começou o senescal -, tu e o mestre andaram de conluio?

Viu surpresa nos olhos do irmão.

- Como assim?

- O mestre pediu-te que fizesses alguma coisa nestes últimos tempos? Vá, não me mintas. Ele já não está cá, mas eu estou.

- Pensou que puxar dos galões seria a maneira mais fácil e rápida de saber a verdade.

- Sim, senescal. O mestre pediu-me que enviasse duas encomendas. - Fala-me da primeira.

- Era densa e pesada como um livro. Coloquei-a no correio quando estive em Avinhão há mais de um mês.

- E a segunda?

- Era uma carta. Enviada na segunda-feira de Perpignan.

- A quem estava endereçada?

- Ernst Scoville em Rennes-le-Château.

O assistente benzeu-se e o senescal detectou espanto e desconfiança no seu olhar.

- O que se passa?

- O mestre disse que o senhor iria fazer-me estas perguntas. - Fitou-o. - E que ao chegar esse dia, eu devia dizer a verdade. Também me pediu para o alertar do perigo e adverti-lo que todos aqueles que seguiram este caminho nunca o conseguiram terminar. Também lhe desejou boa sorte.

O seu mentor era um homem brilhante que sempre soubera bem mais do que mostrara.

- Também disse que é o seu destino terminar a demanda, quer entenda isso ou não.

Já ouvira o suficiente. A caixa de madeira vazia no interior do armário do mestre estava agora explicada. O livro que continha fora retirado pelo mestre e enviado a alguém. Com um aceno da mão, o senescal mandou embora o assistente. Geoffrey fez uma vénia e dirigiu-se para a Porta de Ouro.

Foi então que lhe ocorreu.

- Espera. Não me chegaste a dizer para quem foi enviada a primeira encomenda, o livro.

Geoffrey parou, voltou-se, mas permaneceu em silêncio.

- Não respondes?

- Não devíamos falar disto. Não aqui, com ele tão perto - disse o assistente, olhando para o caixão.

- Acabaste de me revelar que era seu desejo que eu soubesse.

Geoffrey fitou-o com apreensão.

- Diz-me para onde foi enviado o livro.

Embora já desconfiasse, precisava de escutar as palavras.

- Para a América. Para uma mulher chamada Stephanie Nelle.

 

Rennes-le-Château, 14 h 30 m

Malone observou o interior da casa de Ernst Scoville. Era uma habitação modesta com uma colecção ecléctica de antiguidades britânicas, peças de arte espanholas do século XII e quadros franceses. Calculou que deveria estar na presença de cerca de mil livros, a maioria antigos e amarelecidos, todos meticulosamente organizados por assunto e tamanho. Os jornais estavam empilhados por ano e por ordem cronológica e o mesmo se aplicava às revistas. Tinha tudo a ver com Rennes, com Saunière, com a história de França, a Igreja, os templários e Jesus Cristo.

- Pelos vistos, Scoville era um estudioso da Bíblia - disse ele, e apontou para as filas de livros sobre o assunto.

- Passou a vida a estudar o Novo Testamento. Era a fonte bíblica de Lars.

- Não me parece que tenha andado aqui alguém a vasculhar.

- Pode ter sido feito com cuidado.

- Sim, mas o que procurariam? E do que andamos nós à procura?

- Não faço ideia. Tudo o que sei é que conversei com Scoville e duas semanas mais tarde ele está morto.

- O que poderia ele saber que resultasse na sua morte?

Stephanie encolheu os ombros.

- A nossa conversa foi agradável. Pensei que tivesse sido ele a enviar-me o diário. Ele e Lars trabalhavam em conjunto. Porém, ele não sabia nada do assunto, embora desejasse lê-lo. - Fez uma pausa no discurso. - Olhe para tudo isto. Estava obcecado.

- Abanou a cabeça. - Lars e eu discutimos sobre isto durante muitos anos. Sempre pensei que ele estava a desperdiçar as suas capacidades académicas. Era um bom historiador. Deveria estar a ganhar a vida como professor universitário e a publicar pesquisas credíveis. Em vez disso, passava o tempo a correr o mundo atrás de sombras.

- Era um escritor de best-sellers.

- Só com o primeiro livro. O dinheiro era outro dos assuntos polémicos.

- Parece ter muitos arrependimentos.

- Não tem alguns? Lembro-me que o seu divórcio também não foi pacífico.

- Ninguém gosta de falhar.

- Ao menos o seu cônjuge não se suicidou. Tinha razão.

- No caminho para aqui contou-me que Lars acreditava que Saunière teria descoberto uma mensagem dentro do frasco de vidro escondido na coluna. De quem era a mensagem?

- No diário escreveu que seria provavelmente de um dos antecessores de Saunière, Antoine Bigou, que foi padre da paróquia de Rennes na última metade do século XVIII, na altura da Revolução Francesa. Falei-lhe dele no carro. Foi o padre ao qual Marie d'Hautpoul de Blanchefort revelou o segredo da sua família antes de morrer.

- Então Lars achava que o segredo da família estava guardado no frasco?

- Não é assim tão simples. A história é muito mais complicada. Em 1732, Marie d'Hautpoul casou com o último marquês de Blanchefort. A linhagem da família De Blanchefort recuava até à época dos templários. A família participou tanto nas cruzadas como nas guerras contra os Albigenses. Um dos antepassados chegou mesmo a mestre da Ordem em meados do século XII e a família controlou a aldeia de Rennes e as terras em redor durante séculos. Quando os templários foram presos, em 1307, os De Blanchefort deram refúgio a muitos fugitivos. Diz-se, embora ninguém tenha a certeza, que desde então os membros da família continuaram a fazer parte dos templários.

- Já começa a parecer o Henrik. Acredita mesmo que os templários ainda andam por aí?

- Não faço a mínima ideia. Mas houve algo que o homem na catedral disse e que não me sai da cabeça. Citou São Bernardo de Claraval, o monge que no século XII desempenhou um papel fulcral na ascensão dos templários. Fiz de conta que não sabia do que ele falava, mas Lars escreveu muita coisa acerca dele.

Malone também se recordava desse nome do livro que consultara em Copenhaga. Bernardo de Fontaines era um monge cisterciense que fundara um mosteiro em Claraval no século XII. Sendo um pensador respeitado, exerceu grande influência no seio da Igreja, e tornou-se um dos conselheiros do papa Inocêncio II. O seu tio fora um dos nove cavaleiros fundadores da Ordem e foi Bernardo quem convenceu o papa a outorgar a Regra aos templários.

- O homem da catedral conhecia Lars - revelou Stephanie - e chegou a insinuar que falara com ele sobre o diário e que o meu marido o desafiara. O homem da Torre Redonda também trabalhava para ele e esse mesmo homem clamou o grito de guerra dos templários antes de saltar.

- Pode tratar-se apenas de um plano para a confundir.

- Começo a duvidar disso.

Malone concordava, especialmente tendo em consideração o que vira no caminho do cemitério para ali. Mas, por enquanto, iria guardar as desconfianças para si mesmo.

- Lars escreveu sobre o segredo de De Blanchefort no seu diário, segredo esse que datava de 1307, ano da prisão dos templários. Encontrou bastantes referências ao suposto dever da família em documentos da época, mas nunca detalhes do mesmo. Pelos vistos, passou muito tempo nos mosteiros locais a pesquisar os seus registos. Todavia, é a campa de Marie, a que está desenhada no livro que Thorvaldsen comprou, que parece ser a chave de tudo. Marie faleceu em 1781, mas só dez anos depois é que o abade Bigou erigiu uma lápide e uma placa sobre os seus restos mortais. É preciso não esquecer de que época estamos a falar. A Revolução Francesa agitava a sociedade e as igrejas católicas começavam a ser destruídas. Bigou era anti-republicano e, por isso, fugiu para Espanha em 1793, onde viria a morrer dois anos mais tarde, nunca regressando a Rennes-le-Château.

- E que achava Lars que Bigou teria escondido no frasco?

- Não o próprio segredo de De Blanchefort, mas antes uma maneira de descobrir qual ele era. Lars escreveu no seu diário que acreditava piamente que a lápide continha a chave do segredo.

Começava a entender.

- Então era isso que tornava o livro tão importante.

Ela acenou com a cabeça.

- Saunière remexeu em muitas das campas do cemitério, desenterrando os ossos e colocando-os num ossário comum que ainda hoje existe atrás da igreja. Isso explica, como Lars escreveu, porque não existem hoje campas anteriores a 1885. Os habitantes da aldeia fizeram queixa das suas actividades e o abade foi mandado parar com os trabalhos. A campa de Marie de Blanchefort não foi exumada, mas todas as letras e números constantes da lápide foram arrancados por Saunière. Todavia, sem o conhecimento dele, existia já um desenho da lápide feito por Eugène Stüblein, um prefeito local. Lars soube da existência desse desenho, mas nunca foi capaz de encontrar uma cópia do livro.

- E como terá Lars descoberto que foi Saunière quem desfigurou a lápide?

- Há um registo de a campa de Marie ter sido vandalizada nessa altura. Ninguém prestou especial atenção ao acto, mas quem mais poderia ter sido, se não o abade Saunière?

- E o seu marido achava que tudo isso apontava para um tesouro?

- O que li no diário é que ele acreditava que Saunière decifrara a mensagem que o abade Bigou deixou e encontrara o esconderijo dos templários, contando a sua descoberta apenas à amante, que faleceu sem a revelar a ninguém.

- Então, quais eram os seus planos, Stephanie? Utilizar o diário e o livro para conduzir novas buscas?

- Não sei o que teria feito. Posso apenas dizer-lhe que algo me disse para vir, comprar o livro e dar uma vista de olhos. - Fez uma pausa. - Também constituiu uma razão para vir, ficar algum tempo na casa dele e recordar.

Malone compreendia isso muito bem.

- E porquê envolver Peter Hansen? Poderia ter comprado o livro sozinha.

- Continuo a trabalhar para o governo americano. Pensei que Hansen podia funcionar como intermediário e assim o meu nome não apareceria em lado nenhum. Claro que não fazia ideia de tudo o que estava envolvido.

Malone ponderou o que Stephanie dissera.

- Então Lars estava a seguir as pistas de Saunière, tal como este seguiu as de Bigou.

Ela acenou afirmativamente.

- E parece que mais alguém anda a seguir as mesmas pistas.

Inspeccionou o quarto mais uma vez.

- Temos de estudar tudo isto com atenção para ver se conseguimos ao menos uma ideia do que se passa.

Algo junto à porta da frente chamou a sua atenção. Quando entraram havia um monte de cartas espalhadas pelo chão, seguramente depositadas pelo carteiro através da ranhura. Dirigiu-se aí e pegou nuns quantos envelopes.

Stephanie aproximou-se.

- Deixe-me ver esse - pediu ela.

Entregou-lhe um envelope castanho escrito com tinta preta.

- O papel que vinha junto do diário de Lars era dessa mesma cor. e a caligrafia é muito semelhante. - Retirou a folha de papel da carteira e compararam as letras. - É idêntica - confirmou.

- Tenho a certeza que Scoville não se vai aborrecer.

Rasgou o envelope e retirou nove folhas do seu interior. Uma estava escrita à mão com a mesma tinta e caligrafia que Stephanie já reconhecera.

Ela irá procurá-lo. Seja clemente. Há muito que procura e merece descobrir. Juntos é possível que tenham sucesso. Em Avinhão, procure Claridon. Ele indicará o caminho. Mas prend garde à l'Ingénieur.

Voltou a ler a última linha - prend garde à l'ingénieur.

- «Cuidado com o engenheiro». O que significa isto?

- Boa pergunta.

- Há alguma menção a um engenheiro no diário?

- Nenhuma.

- Seja clemente. Pelos vistos, o remetente sabia do seu desentendimento com Scoville.

- Isto é enervante. Não fazia ideia que alguém estivesse a par disso.

Malone examinou as restantes oito páginas.

- Pertencem ao diário de Lars. São as folhas que faltavam. - Verificou o selo no envelope. Fora enviada de Perpignan, na costa francesa, há cinco dias. - Scoville nunca recebeu a carta. Chegou demasiado tarde.

- Ernst foi assassinado, Cotton. Não restam quaisquer dúvidas.

Malone concordou, mas havia ainda outra coisa que o preocupava. Aproximou-se de uma das janelas e espreitou discretamente pela veneziana.

- Temos de ir a Avinhão - declarou ela.

Também era dessa opinião, mas ao observar melhor a rua, detectou um vislumbre do que sabia estar do outro lado e disse:

- Iremos, mas primeiro temos de resolver um assunto.

 

Abbaye des Fontaines, 18 h 00 m

De Roquefort enfrentou a congregação. Eram raras as ocasiões em que os irmãos vestiam os seus trajos oficiais. A Regra exigia que na maior parte das situações se vestissem «sem qualquer traço de superficialidade e ostentação». Todavia, o conclave exigia formalidade e cada membro deveria usar as vestes relativas ao seu posto.

Era uma visão impressionante. Os irmãos cavaleiros exibiam mantos de lã branca por cima de sotainas brancas guarnecidas com tiras carmesim. As pernas eram protegidas por grossas meias cinzentas e um capuz branco tapava cada cabeça. No peito, aparecia a cruz vermelha de quatro braços. Usavam também um cinto carmesim em volta da cintura e onde outrora pendia uma espada agora existia apenas uma faixa que distinguia os cavaleiros dos artífices, dos camponeses, dos artesãos, dos letrados, dos sacerdotes e dos ajudantes, que envergavam um conjunto semelhante mas em diferentes tons de verde, castanho e preto, distinguindo-se os clérigos pelas suas luvas brancas.

Sempre que o consistório se reunia, a Regra ditava que o marechal presidisse aos trabalhos. Era uma forma de equilibrar a influência de qualquer senescal que, por ser o segundo na hierarquia, podia facilmente dominar a assembleia.

- Meus irmãos - gritou De Roquefort. O silêncio tomou conta da sala. - Chegou a hora da renovação. É nosso dever eleger um novo mestre. Antes de começarmos, oremos ao Senhor para que nos guie nas próximas horas.

Sob o brilho dos candelabros de bronze, De Roquefort observou os quatrocentos e oitenta e oito irmãos baixarem a cabeça em oração. O chamamento fora feito logo após o amanhecer e a maior parte dos que prestavam serviço fora da abadia tinham regressado a casa. Estavam reunidos no salão do palais, uma enorme cidadela circular que datava do século XVI, erigida a trinta metros de altura, com vinte e um metros de diâmetro e paredes de três metros de espessura. Outrora funcionara como a última linha defensiva da abadia em caso de ataque, mas acabara por evoluir para um elaborado edifício cerimonial. As fendas na pedra destinadas às setas estavam agora tapadas com vitrais e o estuque amarelo-claro exibia imagens de São Martinho, Carlos Magno e da Virgem Maria. A sala circular, com duas galerias, acomodava facilmente os perto de quinhentos homens e possuía uma acústica quase perfeita.

De Roquefort levantou a cabeça e estabeleceu contacto visual com os outros quatro oficiais. O comandante, que acumulava as funções de oficial responsável pela distribuição de víveres e de tesoureiro, era seu amigo. De Roquefort dedicara anos a cultivar um relacionamento com aquele homem distante e esperava ver esse esforço dar frutos em breve. O alfaiate, o irmão responsável pelas roupas da Ordem, era um apoiante incondicional da sua causa. O capelão, que supervisionava todos os aspectos espirituais, representava um problema. De Roquefort nunca conseguira nada de tangível do veneziano, a não ser algumas generalizações do óbvio. Depois havia o senescal que segurava o beauséant, o venerado estandarte preto e branco da Ordem. Parecia confiante na sua túnica e capa, e a insígnia bordada sobre o ombro esquerdo indicava o seu alto cargo. Aquela visão revoltava o estômago de De Roquefort. Ele não tinha o direito de envergar aquelas vestes.

- Irmãos, o consistório está reunido. Chegou a hora de nomearmos o conclave.

O processo era simples, mas eficaz. Era escolhido um nome da urna que continha os nomes de todos os irmãos. Depois esse homem observava a assembleia e escolhia livremente outro irmão. O próximo nome era retirado de novo da urna e passava-se a mais uma escolha livre, repetindo-se aquele padrão até estarem escolhidos dez representantes. O sistema misturava um elemento de acaso e de envolvimento pessoal, diminuindo a possibilidade de interferência no processo. De Roquefort, como marechal, e o senescal estavam automaticamente incluídos, perfazendo doze membros. Para a eleição ser válida eram necessários dois terços dos votos.

O marechal observou enquanto se procedia à selecção. Quando terminou, tinham sido escolhidos quatro cavaleiros, um padre, um escriturário, um camponês, dois artesãos e um operário. Muitos eram seus seguidores. Todavia, o maldito factor do acaso permitira que tivessem sido incluídos alguns irmãos cuja fidelidade era, no mínimo, questionável.

Os dez homens aproximaram-se e dispuseram-se em semicírculo.

- Temos conclave - declarou De Roquefort. - O consistório terminou. Comecemos.

Todos os irmãos empurraram os capuzes para trás, em sinal de que o debate poderia começar. O conclave não era um acontecimento secreto. Muito pelo contrário. A nomeação, a discussão e a votação teriam lugar frente a toda a irmandade. No entanto, a Regra ditava que os espectadores não podiam falar ou emitir qualquer som.

De Roquefort e o senescal tomaram os seus lugares junto aos outros. O marechal deixava de ser o presidente, pois no conclave todos os irmãos eram iguais. Um dos doze, um cavaleiro mais velho de barba grisalha e espessa disse:

- O nosso marechal, um homem que protegeu e guardou a Ordem durante tantos anos, deverá ser o próximo mestre. Proponho-o para nomeação.

Mais dois irmãos deram o seu consentimento. Com os três necessários, o nomeado foi aceite.

Outro dos doze, um dos artesãos, um armeiro, deu um passo em frente e declarou:

- Discordo da contestação ao mestre. Foi um bom homem que sempre amou esta Ordem. Proponho o senescal para nomeação.

Outros dois irmãos fizeram um aceno de cabeça em sinal de assentimento.

De Roquefort não se mexeu. As linhas da batalha tinham sido desenhadas.

A guerra podia começar.

O debate estava a entrar na sua segunda hora. A Regra não estabelecia um limite de tempo para o conclave, porém estipulava que todos os participantes tinham de permanecer, ou seja, a duração do acontecimento dependia apenas da resistência dos participantes. Ainda não fora pedida a votação. Qualquer um dos doze possuía esse direito, mas ninguém queria perder a contagem - isso era sinal de fraqueza -, por isso a votação só era exigida quando os dois terços pareciam assegurados.

- O seu plano não me convence - disse um dos membros do conclave, o padre, para o senescal.

- Não sabia que tinha um plano.

- Irá seguir as pisadas do mestre. O caminho do passado. Verdade ou mentira?

- Permanecerei fiel ao meu voto, como o irmão também deveria.

- O meu juramento nada dizia sobre fraqueza - argumentou o padre. - Não exige que eu seja complacente com um mundo que definha na ignorância.

- Protegemos a nossa sabedoria durante séculos. O que o leva a querer mudar isso?

Outro dos membros do conclave tomou a palavra.

- Estou farto da hipocrisia. Revolta-me. Por pouco não fomos dizimados devido à ganância e à ignorância. Está na hora de devolvermos a simpatia.

- Com que objectivo? - perguntou o senescal. - O que ganharíamos com isso?

- Justiça - clamou outro dos cavaleiros, e outros membros do conclave concordaram.

De Roquefort decidiu que estava na altura de intervir.

- O Evangelho diz: «Quem procura, não cesse de procurar até encontrar; e, quando encontrar, ficará estupefacto; e, quando estupefacto, ficará maravilhado e então terá domínio sobre o Universo.»

O senescal fitou-o.

- Tomé também disse: «Se os vossos guias vos disserem que o reino está no céu, então as aves chegarão lá primeiro; se vos disserem que está no mar, então os peixes chegarão lá primeiro.»

- Nunca chegaremos a lado nenhum se continuarmos como até agora - argumentou De Roquefort.

Houve cabeças que acenaram • em concordância, mas não as suficientes para pedir a votação.

O senescal hesitou por uns instantes e depois falou:

- Pergunto-lhe, marechal, quais são os seus planos caso vença esta eleição? Pode dizer-nos? Ou faz como Jesus, e revela os seus mistérios apenas àqueles dignos de os ouvir, nunca deixando que a mão esquerda saiba o que faz a direita?

Regozijou-se pela oportunidade de explicar à irmandade a sua visão.

- Jesus também disse: «nada é oculto que não seja manifestado.»

- Então qual seria o nosso futuro?

Observou toda a sala. Aquele era o seu momento.

- Lembrem-se do Início quando milhares de irmãos faziam o juramento. Todos homens valentes que conquistaram a Terra Santa. Nas Crónicas conta-se a história de uma guarnição que perdeu contra os sarracenos. Após a batalha, o inimigo ofereceu-se para poupar a vida a duzentos desses homens se eles renunciassem a Cristo e abraçassem o islamismo. Cada um deles escolheu ajoelhar-se frente aos muçulmanos para que a sua cabeça fosse cortada. Essa é a nossa herança. As Cruzadas eram a nossa cruzada. - Fez uma pausa propositada para criar ambiente. - É isso que faz da sexta-feira do dia 13 de Outubro de 1307 um dia tão infame e desprezível, que a civilização ocidental continua a intitular de azarento. Milhares dos nossos irmãos foram injustamente presos. Um dia eram os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, o epítome da bondade, dispostos a morrer pela sua Igreja, pelo seu papa, pelo seu Deus, e no outro eram acusados de heresia. E qual era o seu crime? Cuspir na Cruz, trocar carícias obscenas, realizar reuniões secretas, sodomia e veneração de uma figura barbuda.

- Nova pausa. - Nenhuma delas era verdadeira e, no entanto, os nossos irmãos foram torturados e muitos cederam, e confessaram falsidades. Cento e vinte acabaram por arder na fogueira. - Parou para recuperar o fôlego. - O nosso legado é feito de vergonha e somos recordados pela história como uma organização suspeita.

- E o que diria ao mundo? - questionou o senescal num tom calmo.

- A verdade.

- E por que razão acreditariam em si?

- Teria provas.

- Conseguiu localizar o nosso Grande Legado?

O senescal estava a pressionar o seu único ponto fraco, mas não podia mostrar fraqueza.

- Estou perto de o fazer.

Da galeria vieram expressões de espanto. A face do senescal não se alterou.

- Está a dizer que encontrou os nossos arquivos perdidos há mais de sete séculos. Também descobriu o tesouro que escapou das mãos de Filipe, o Belo?

- Também estou perto de encontrá-lo.

- Palavras audazes, marechal.

De Roquefort olhou para os irmãos.

- Há dez anos que procuro. As pistas são difíceis, mas em breve terei provas que o mundo não poderá refutar. Mesmo que as mentalidades não mudem isso não é relevante. A vitória estará em provar que os nossos irmãos não eram hereges, mas sim santos.

As galerias irromperam em aplausos. De Roquefort aproveitou o clima de euforia.

- A Igreja Católica baniu-nos, chamando-nos idólatras. Porém, a Igreja venera os seus próprios ídolos com grande pompa e circunstância. - Calou-se por uns instantes e depois clamou em voz alta:

- Recuperarei o manto.

Choveram mais aplausos e cada vez mais sonoros. Era uma violação clara da Regra, mas ninguém parecia importar-se.

- A Igreja não tem o direito de ficar com ele - gritou o marechal por cima das palmas. - O nosso mestre Jacques de Molay foi brutalmente torturado e depois queimado na estaca. E qual foi o seu crime? Ser um servo fiel do seu Deus e do seu papa. O seu legado não lhes pertence. É o nosso legado. Temos os meios para atingir esse objectivo e assim será sob o meu governo.

O senescal entregou o beauséant ao homem que se encontrava ao seu lado, aproximou-se de De Roquefort e esperou que os aplausos acalmassem.

- E o que será daqueles que não acreditarem?

- «Quem procura, achará; a quem bate, abrir-se-lhe-á.»

- E aqueles que escolherem não o fazer?

- O Evangelho também é claro nesse sentido. «Malditos todos aqueles que albergam demónios dentro de si.»

- O marechal é um homem perigoso.

- Não, senescal, o senhor é que é. A sua época já passou. O senhor e o seu mestre sempre acharam que sabiam quais eram as nossas necessidades, mas na verdade nunca souberam nada. Dediquei a minha vida a esta Ordem e ninguém, para além de si, duvidou das minhas capacidades. Sempre fui defensor da ideia de que mais vale quebrar que dobrar. - Voltou-se para o conclave.

- Já chega de discussão. Votemos.

A Regra ditava que o debate terminara.

- Serei o primeiro a votar - declarou De Roquefort. - Voto em mim. Todos aqueles que forem a favor que o digam.

Observou enquanto os restantes dez homens meditavam na sua decisão. Tinham permanecido em silêncio durante o confronto com o senescal, mas cada um escutara com uma atenção que demonstrava concordância. Os olhos de De Roquefort passearam-se pelo grupo e depois fixaram-se naqueles que sabia serem-lhe fiéis.

Mãos começaram a elevar-se.

Um. Três. Quatro. Seis. Sete.

Já tinha os dois terços necessários, mas desejava mais, por isso esperou um pouco antes de declarar vitória.

Os dez homens votaram nele.

A sala encheu-se de aplausos.

Em tempos mais antigos, teria sido carregado em ombros para a capela onde uma missa seria rezada em sua honra, e mais tarde teria lugar um festejo, uma das raras ocasiões em que a Ordem se descontraía e os irmãos se divertiam. Contudo, actualmente isso já não acontecia. Agora, os homens cantavam o nome do vencedor e os irmãos, que viviam num mundo desprovido de emoções, mostravam a sua aprovação batendo palmas. O aplauso transformou-se em beauséant e a palavra ecoou pela sala.

Sê glorioso.

À medida que o cântico prosseguia, fitou o senescal que permanecia ao seu lado. Os olhos de ambos encontraram-se e, através desse olhar, deu-lhe a entender não só que o sucessor escolhido pelo mestre perdera a batalha, mas que corria agora perigo de morte.

 

Rennes-le-Château, 21 h 30 m

Stephanie deambulou pela casa do falecido marido.

A construção era típica daquela zona. Chão de madeira, tectos com traves, lareira de pedra e mobília simples de pinho. Não era muito grande, mas tinha dois quartos, uma sala, casa de banho, cozinha e uma pequena oficina. Lars sempre gostara de marcenaria e ela reparara que os seus tornos mecânicos, escopros e goivas estavam todos ali, cada ferramenta cuidadosamente arrumada e coberta por uma camada de pó. Tinha um talento especial para o torno mecânico e ela ainda possuía tigelas, caixas e castiçais que ele talhara.

Durante o tempo que estiveram casados visitara-o apenas algumas vezes. Ela e Mark viviam em Washington e depois em Atlanta. Lars permanecia na Europa e a última década passara-a ali em Rennes. Nenhum dos dois tinha alguma vez violado a privacidade do outro sem pedir autorização. Apesar de todos os desacordos e desentendimentos, tinham sido sempre educados. Talvez até demasiado, pensara ela muitas vezes.

Sempre acreditara que Lars comprara a casa com os direitos de autor provenientes do primeiro livro, mas agora sabia que Henrik Thorvaldsen o ajudara a adquirir o imóvel. Era tão típico de Lars. Nunca dera importância ao dinheiro, gastava tudo o que ganhava em viagens e na sua obsessão, e cabia-lhe a ela a tarefa de assegurar que as contas da família fossem pagas. Apenas recentemente conseguira amortizar o empréstimo que contraíra para financiar os estudos de Mark. Por várias vezes o filho oferecera-se para assumir a dívida, em especial quando começaram a afastar-se, mas ela sempre recusara. Era a obrigação de um progenitor educar o filho e ela levava as suas obrigações muito a sério. Talvez até demasiado.

Ela e Lars não se tinham falado nos meses que antecederam a morte dele. O último encontro fora um desastre, outra discussão sobre dinheiro, responsabilidade e família. A tentativa de o defender perante Henrik Thorvaldsen no dia anterior soara a falso, porém ela nunca sequer sonhara que havia alguém que soubesse a verdade sobre o seu casamento. Pelos vistos, Thorvaldsen sabia. Talvez ele e Lars fossem íntimos. Lamentavelmente, nunca iria saber. Esse era um dos inconvenientes do suicídio - o término do sofrimento de uma pessoa apenas prolongava a agonia das que ficavam. O que mais desejava era ver-se livre daquela sensação na boca do estômago. Um escritor chamara-lhe a dor do insucesso e ela concordava.

Depois de ter percorrido todas as divisões, dirigiu-se para a pequena sala e sentou-se frente a Malone, que desde o final do jantar se concentrara a ler o diário de Lars.

- O seu marido era um investigador muito meticuloso - afirmou ele.

- Muito do que está aí é desconcertante, um pouco como o seu autor.

Malone notou a frustração na voz dela.

- Não me quer dizer por que razão se considera responsável pela morte dele?

Stephanie decidiu autorizar a intrusão. A verdade é que precisava de falar sobre aquele assunto.

- Não é que me sinta responsável. Sinto-me apenas parte do problema. Éramos ambos muito orgulhosos e teimosos. Eu trabalhava para o Departamento de Justiça, o Mark já era crescido, e falava-se na possibilidade de eu liderar o meu próprio gabinete. Assim, concentrei-me naquilo que pensava ser mais importante. Lars fez o mesmo. Infelizmente, nenhum de nós soube apreciar o outro.

- É fácil dizer isso agora, que já se passaram anos. Naquela altura era impossível sabê-lo.

- É esse o problema, Cotton. Eu estou aqui e ele não. - Não se sentia à vontade a falar sobre si mesma, mas as coisas precisavam de ser ditas. - Lars era um escritor dotado e um bom investigador. Tudo o que lhe contei sobre Saunière e a aldeia é deveras interessante. Se eu tivesse prestado mais atenção aos seus interesses quando ele estava vivo, talvez ainda aqui estivesse. - Hesitou. - Era um homem tão calmo. Nunca levantava a voz. Nunca disse uma palavra insultuosa. O silêncio era a sua arma. Era capaz de passar semanas sem dizer uma palavra. Isso enfurecia-me.

- Uma reacção que não me é estranha - disse ele, com um sorriso.

- Eu sei, irrito-me com facilidade. Lars também não sabia como lidar comigo. Por fim acabámos por decidir que o melhor era cada um viver a sua vida. Mas nenhum de nós queria o divórcio.

- E isso diz muito sobre o que ele pensava de si, lá no fundo.

- Nunca vi isso. Tudo o que via era Mark no meio. Ele sentia-se mais próximo do pai. Não lido bem com as emoções e Lars era bem diferente. Para além disso, Mark possuía a curiosidade do pai. Eles eram tão parecidos. O meu filho preferiu o pai a mim e eu forcei essa escolha. Thorvaldsen tinha razão. Para alguém tão cuidadoso e empenhado no trabalho, fui completamente inepta a lidar com a minha família. Antes de Mark morrer, eu já não falava com ele há : três anos. - A dor desse reconhecimento fez-lhe estremecer a voz. - Acredita, Cotton? Eu e o meu filho estivemos esse tempo todo • sem trocar uma palavra.

- E o que originou esse afastamento?

- Ele tomou o partido do pai. Eu fui viver a minha vida e eles a deles. Mark veio viver para França. Eu permaneci na América. Após algum tempo tornou-se fácil ignorá-lo. Nunca deixe que isso aconteça entre si e Gary. Faça o que tiver a fazer, mas não permita uma coisa dessas.

- Vivo a mais de seis mil quilómetros de distância dele.

- Mas o seu filho adora-o. Esses quilómetros pouco significam.

- Tenho-me perguntado se tomei a decisão certa.

- É importante que viva a sua vida, Cotton. E à sua maneira. O seu filho parece respeitar isso, embora ainda seja novo. O meu era muito mais velho e mais duro comigo.

Malone olhou para o relógio.

- O Sol já se pôs há vinte minutos. Está quase na hora.

- Quando é que se apercebeu que estávamos a ser seguidos?

- Assim que chegámos. São dois homens. Ambos parecidos com os da catedral. Seguiram-nos até ao cemitério e depois pela aldeia. Estão lá fora, agora.

- Não há perigo de entrarem?

Abanou a cabeça.

- A missão deles é apenas observar.

- Compreendo agora porque deixou o departamento. É difícil lidar com a ansiedade e nunca se pode baixar a guarda. Tinha razão em Copenhaga. Não sou nenhuma operacional.

- O problema começou quando comecei a gostar de toda aquela agitação.É isso que faz com que acabemos mortos.

- Todos vivemos uma vida relativamente segura. Mas ter alguém a seguir todos os nossos movimentos, com intenção de nos matar? Isso acaba por desgastar qualquer um. Chega o dia em que temos de fugir de tudo isso.

- O treino ajuda-nos a lidar com a ansiedade e a incerteza, mas a Stephanie nunca recebeu esse tipo de treino. - Sorriu. - Era apenas a pessoa que mandava.

- Espero que saiba que nunca foi minha intenção envolvê-lo nisto.

- Deixou isso bem claro desde o início.

- Mas fico feliz por tê-lo aqui.

- Não teria perdido isto por nada deste mundo.

Ela sorriu abertamente.

- Foi o melhor agente que alguma vez tive.

- Fui apenas o que teve mais sorte e soube quando estava na hora de parar.

- Peter Hansen e Ernst Scoville foram ambos assassinados. - Fez uma pausa e enunciou por fim aquilo em que começava a acreditar. - E talvez Lars também. O homem da catedral queria que eu soubesse disso. Era a sua maneira de me enviar uma mensagem.

- Grandes suposições.

- Eu sei. Não há provas, mas tenho um pressentimento e, embora não seja um agente, tenho aprendido a confiar nos meus instintos. De qualquer modo, como eu costumava dizer-lhe, nada de conclusões baseadas em pressupostos. Quero factos. Esta é uma história bizarra.

- A quem o diz. Cavaleiros Templários, segredos escritos em lápides, padres que encontram tesouros perdidos.

Stephanie olhou para uma fotografia de Mark tirada poucos meses antes de ele morrer. A figura do pai estava estampada no rosto jovem. O mesmo queixo, o brilho nos olhos e a compleição bronzeada. Não deveria ter deixado as coisas chegarem àquele ponto.

- Estranho isso estar aqui - disse Malone ao reparar no interesse dela.

- Fui eu que a coloquei aqui da última vez que cá estive, há cinco anos. Logo após a avalancha. - Era difícil acreditar que o seu único filho já falecera há cinco anos. As crianças não deveriam morrer a pensar que os pais não as amavam. Ao contrário do marido, que tinha uma campa, Mark estava enterrado sob toneladas de neve a cinquenta quilómetros a sul daquele local. - Tenho de terminar isto - murmurou ela para a fotografia, a voz a tremer.

- Ainda não sei bem o que isto é. Nem tão-pouco ela o sabia.

Malone fez sinal com o diário na mão.

- Ao menos já sabemos onde encontrar Claridon em Avinhão, tal como a carta dirigida a Ernst Scoville dizia. Chama-se Royce Claridon. Há uma referência a ele juntamente com a morada aqui no diário. Ele e Lars eram amigos.

- Perguntava-me quando iria encontrar essa nota.

- Mais alguma coisa que me possa ter escapado?

- É difícil dizer o que é importante. Há tanta coisa aí.

- Tem de parar de me mentir. Já estava à espera da repreensão.

- Eu sei.

- Não a posso ajudar se não me contar tudo.

Stephanie compreendia.

- E há alguma coisa nas páginas do diário que foram enviadas a Scoville?

- Veja o que consegue descobrir. - E entregou-lhe as oito folhas. Pensou que manter a cabeça ocupada a ajudava a esquecer um pouco o marido e o filho e concentrou a atenção sobre as páginas. A maioria da informação era insignificante, mas havia parágrafos que lhe partiam o coração.

Era óbvio que Saunière gostava da amante. Marie ficou ao serviço dele quando a família se mudou para Rennes. O pai e o irmão eram artesãos talentosos e a mãe cuidava do presbitério da paróquia. Isto teve lugar em 1892, um ano após muitas das descobertas do padre. Quando a sua família se mudou para a aldeia para trabalhar numa fábrica, ela permaneceu com Saunière até à sua morte, duas décadas mais tarde. A certa altura, o abade colocou todos os seus bens em nome de Marie, o que revela uma confiança inquestionável. Sempre lhe foi fiel e dedicada, e manteve os seus segredos durante trinta e seis anos após a sua morte. Invejo Saunière. Era um homem que possuía o amor e a confiança incondicionais de uma mulher e recompensava esse amor com confiança e respeito incondicionais. Todos os registos mostram que era um homem difícil de contentar, um homem impelido a alcançar algo pelo qual fosse recordado. A sua ornamentada criação na Igreja de Maria Madalena parece ser o seu legado. Não existe qualquer registo de a amante alguma vez ter expressado qualquer oposição relativamente aos seus trabalhos. Aparentemente, Marie apoiava tudo o que o seu benfeitor fazia. Por certo deveriam existir alguns desacordos, mas esteve sempre ao lado de Saunière até ao dia da sua morte e muito depois disso, durante quase quatro décadas. Tudo isto mostra que a devoção é algo importante. Um homem pode alcançar os horizontes mais longínquos quando é apoiado pela mulher que ama, ainda que ela considere a sua demanda uma tolice. Acredito que a amante de Saunière tenha frequentemente questionado o absurdo das suas criações. Tanto a villa Béthanie como a Torre Magdala são construções ridículas para a sua época. Contudo, ela nunca lhe reprimiu os sonhos. Gostava dele o suficiente para o deixar ser quem desejava e o resultado pode ser agora visto pelos milhares de pessoas que visitam Rennes todos os anos. Esse é o legado de Saunière. O dela é esse legado ainda existir.

- Porque me deu isto para ler? - perguntou a Malone quando terminou.

- Achei que precisava de ler isso.

De onde teriam vindo todos aqueles fantasmas? Rennes-le-Château podia não encerrar qualquer tesouro, mas aquele lugar guardava demónios cujo único objectivo era atormentá-la.

- Quando recebi o diário e o li, compreendi que não tinha sido justa com Lars e com Mark. Ambos acreditavam naquilo que procuravam, tal como eu acreditava no meu trabalho. Mark costumava dizer que eu era demasiado negativa. - Interrompeu o discurso na esperança de que os espíritos estivessem a escutar. - Quando voltei a ver esse diário, compreendi o quanto estivera errada. Qualquer que fosse a demanda de Lars era importante para ele e, por isso, também deveria ter sido importante para mim. Foi por isso que vim, Cotton. Devo-lhes isso. - Olhou-o com olhos cansados. - Deus sabe o quanto lhes devo. Só nunca imaginei que a parada fosse tão alta.

Malone voltou a consultar o relógio e olhou em direcção às janelas escurecidas.

- Está na hora de descobrirmos o quanto elevada pode ser. Vai conseguir estar à altura da situação?

Ela recompôs-se e assentiu.

- Eu mantenho o meu ocupado. Você toma conta do outro.

 

Malone saiu de casa pela porta da frente, sem se esforçar para se esconder. Os dois homens, que avistara ao início do dia, estavam colocados no extremo da rua, ao virar de uma esquina e junto a um muro, do qual conseguiam ver a residência de Lars Nelle. Para o seguirem teriam de atravessar a mesma rua deserta que ele. Só demonstrava que eram amadores. Os profissionais ter-se-iam separado. Um em cada ponta da rua, prontos para se deslocarem em qualquer direcção. Tal como em Roskilde, essa avaliação diminuía a sua apreensão. Contudo, mantinha-se alerta, interrogando-se sobre quem estaria tão interessado nos assuntos de Stephanie.

Poderiam mesmo ser os templários modernos?

No interior da casa, os desabafos da sua antiga chefe haviam-no feito pensar em Gary. A morte de um filho devia ser insuportável. Não conseguia sequer imaginar a sua dor. Talvez devesse ter ficado na Geórgia após a reforma, mas Gary opusera-se. «Não te preocupes comigo», dissera, «eu vou visitar-te». Com apenas catorze anos, o miúdo possuía uma enorme inteligência emocional. Apesar disso, aquela decisão atormentava-o, principalmente agora que estava de novo a arriscar a vida por outra pessoa. Contudo, com o pai não fora muito diferente. Este morrera quando o submarino que comandava se afundou no Atlântico Norte durante um exercício de treino. Malone tinha dez anos na altura e recordava-se que a mãe encarara a morte do marido com muita dificuldade. Durante o funeral, recusara-se até a aceitar a bandeira dobrada oferecida pela guarda de honra. Foi ele quem lhe pegou e desde essa altura que a guardava. Sem campa para visitar, a bandeira era a única recordação física do homem que mal conhecera.

Chegou ao fim da rua. Não precisou de olhar para trás para perceber que um dos homens o seguia e que o outro ficara com Stephanie.

Virou à esquerda e dirigiu-se para os domínios de Saunière.

Rennes não era uma aldeia noctívaga. Todas as portas e janelas se encontravam trancadas. O restaurante, a livraria e os quiosques estavam todos fechados e a escuridão estendia-se pelas ruas. O vento sussurrava para lá das muralhas como uma alma a lamentar-se. Todo aquele cenário parecia tirado de um livro de Dumas, como se a vida ali apenas murmurasse.

Subiu a rua em direcção à igreja. A villa Béthanie e o presbitério encontravam-se fechados, o jardim iluminado apenas por um quarto crescente atravessado por algumas nuvens.

O portão para o cemitério permanecia ainda aberto, tal como Stephanie dissera. Estugou o passo nesse sentido, sabendo que o seu perseguidor não o deixaria. Uma vez no interior, aproveitou a escuridão para se esgueirar para trás de um ulmeiro enorme.

Espreitou, viu o homem entrar no cemitério, e apressar o passo.

Quando passou pela árvore, Malone deu-lhe um murro no estômago. Ficou satisfeito por não ter sentido qualquer colete de protecção. Voltou a atingi-lo no queixo, derrubando-o, e depois levantou-o pelo colarinho.

O homem era ainda jovem e robusto, com cabelo curto. Ficou desorientado quando Malone o atirou para o chão. De seguida, levantou-o e descobriu a arma que transportava à cintura. Uma Beretta Bobcat de fabrico italiano. Era uma pequena arma semiautomática, usada como última defesa. Também já usara uma em tempos. Encostou o cano ao pescoço do homem e empurrou o seu perseguidor com força contra a árvore.

- Diz-me para quem trabalhas.

Não houve resposta.

- Falas inglês?

O homem sacudiu a cabeça enquanto tentava recuperar o fôlego e orientar-se.

- Já que percebeste a minha pergunta, também compreendes isto? - Puxou o gatilho da arma.

O seu perseguidor ficou tenso e deu a entender que se apercebera da ameaça.

- Trabalhas para quem?

Ouviu-se um tiro e uma bala alojou-se no tronco da árvore mesmo por cima da cabeça de ambos. Malone virou a cabeça e avistou a silhueta de um homem, arma em punho, a trinta metros de distância, empoleirado onde o miradouro se juntava ao muro do cemitério.

Voltou a disparar e a bala raspou o solo a apenas alguns metros dos seus pés. Largou o primeiro perseguidor e este fugiu.

Malone estava agora mais preocupado com o atirador. Viu a figura abandonar o terraço, e desaparecer para trás do miradouro. Sentiu-se tomado por uma nova energia. De arma em punho, fugiu do cemitério e correu em direcção a uma passagem estreita entre a villa Béthanie e a igreja. Memorizara a geografia do local quando ali passara nessa tarde. O jardim ficava do outro lado, cercado por um miradouro em forma de U que se estendia em direcção à Torre Magdala.

Correu para o jardim e avistou a figura a atravessar o miradouro. O único acesso era feito por umas escadas de pedra. Dirigiu-se para estas e subiu três degraus de cada vez. No cimo, o ar frio fez-lhe doer os pulmões e o vento empurrava-lhe o corpo, dificultando a sua progressão.

Viu o homem encaminhar-se para a Torre Magdala. Pensou em disparar, mas uma súbita rajada de vento desequilibrou-o. Interrogou-se para onde se dirigiria o seu atacante. Não existia nenhuma escada para baixo e a torre estava por certo fechada durante a noite. À esquerda estendia-se um corrimão de ferro, para lá do qual havia árvores e uma queda de três metros para o jardim.

À direita, depois de um muro baixo, ficava um fosso com quatrocentos e cinquenta metros. Algures entre um lado e outro, ele e quem quer que fosse teriam de se encontrar cara a cara.

Contornou o terraço, atravessou uma estufa e reparou que a silhueta entrava na Torre Magdala. Parou.

Não previra aquilo.

Recordou-se do que Stephanie lhe dissera sobre a geometria do edifício. Cerca de vinte metros quadrados, com um torreão redondo no interior do qual se erguia uma escadaria em caracol que conduzia a um telhado guarnecido de ameias. Era aí que em tempos se situara a biblioteca de Saunière.

Chegou à conclusão de que não tinha escolha. Avançou a passos largos para a porta, viu que estava aberta e colocou-se a um dos lados. Empurrou-a com o pé e esperou pelo tiro.

Nada.

Atreveu-se a espreitar e constatou que a sala estava vazia. As janelas ocupavam duas paredes. Não havia mobília. Não havia quaisquer livros, apenas armários de madeira vazios, dois bancos estofados e uma lareira de pedra. Foi então que percebeu.

O telhado.

Aproximou-se da escada em caracol. Os degraus eram estreitos e baixos. Subiu até chegar a uma porta de ferro e empurrou-a, mas esta nem se moveu. Empurrou com mais força. Percebeu que estava fechada pelo lado de fora.

No piso abaixo de si, outra porta bateu.

Malone desceu a escada e descobriu que a única saída estava agora também trancada pelo exterior. Aproximou-se de duas janelas sobranceiras ao jardim e viu a silhueta preta saltar do terraço, agarrar-se a um ramo e depois aterrar no chão com uma agilidade surpreendente. A figura correu por entre as árvores e dirigiu-se para o parque de estacionamento a trinta metros de distância, o mesmo onde ele deixara o Peugeot naquela manhã.

Afastou-se um pouco e disparou três tiros para o lado esquerdo das janelas duplas. O vidro estilhaçou-se e depois cedeu. Com a arma afastou os fragmentos que tinham ficado presos às divisórias e esgueirou-se pela abertura. A queda era apenas de cerca de um metro. Saltou e correu para o parque de estacionamento.

Ao sair do jardim, ouviu o barulho de um motor e viu a silhueta montada numa mota. O condutor guinou para o lado contrário e evitou a única rua que saía do parque, acelerando por uma das passagens laterais em direcção às casas.

Malone decidiu usar a tranquilidade da aldeia em seu benefício. Correu para a esquerda, desceu uma pequena ruela e virou na rua principal. A inclinação ajudou e ouviu a mota aproximar-se vinda do lado direito. Teria apenas uma oportunidade, por isso ergueu a arma e desacelerou o passo.

Quando o motociclista saiu do beco, disparou duas vezes.

Um dos tiros falhou o alvo, mas o segundo acertou no quadro da mota, provocando faíscas, e depois fez ricochete.

A mota acelerou pelos portões da aldeia.

Por todo o lado começaram a acender-se luzes. O barulho de tiros por certo não era um som habitual por aquelas paragens. Malone escondeu a arma sob o casaco, esgueirou-se por outra ruela e dirigiu-se para a casa de Lars Nelle. Conseguia escutar vozes atrás de si. As pessoas começavam a sair das suas casas para investigar o • que se passava. Dali a alguns instantes já estaria dentro de casa e a salvo. Não acreditava que os outros dois homens ainda andassem por ali, mas se assim fosse o problema era deles.

No entanto, havia uma coisa que o preocupava.

Ficara desconfiado quando vira a silhueta saltar do terraço e depois desaparecer. Algo na forma como se movimentava.

Não tinha a certeza, mas acreditava que o seu atacante era uma mulher.

 

Abbaye des Fontaines, 22 h 00 m

O senescal encontrou Geoffrey. Andava à procura dele desde a dissolução do conclave e tinham-lhe dito que o seu assistente se retirara para uma das capelas mais pequenas na ala norte, depois da biblioteca. Um dos muitos locais de meditação que a abadia oferecia aos seus ocupantes.

Entrou na sala iluminada apenas por velas e encontrou Geoffrey deitado no chão. Os irmãos costumavam prostrar-se frente ao altar. Durante o empossamento esse acto demonstrava humildade, uma prova de insignificância face à grandeza de Deus, e o seu uso continuado era uma forma de nunca esquecer essa abnegação.

- Precisamos de falar - disse em tom calmo.

O assistente permaneceu imóvel durante alguns instantes, depois ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e levantou-se.

- Diz-me sem rodeios o que tu e o mestre andavam a fazer.

- Não estava com disposição para segredos e felizmente Geoffrey parecia mais calmo do que na Sala dos Mestres.

- Queria ter a certeza que as duas encomendas eram enviadas.

- E disse porquê?

- Não tinha de o fazer. Ele era o mestre e eu apenas um irmão.

- Mas pelos vistos ele confiava o suficiente em ti para te incumbir dessa tarefa.

- Ele disse que o senescal iria melindrar-se com isso.

- Não me melindro com tanta facilidade. - Pressentia que ele sabia mais. - Conta-me tudo.

- Não posso.

- Porquê?

- O mestre instruiu-me que respondesse apenas às perguntas sobre as cartas. Não posso revelar o resto... Até que aconteça mais alguma coisa.

- Geoffrey, o que mais terá de acontecer? De Roquefort é o novo mestre. Tu e eu estamos praticamente sozinhos. Os irmãos estão a tomar o partido dele. O que mais precisa de acontecer?

- Isso não me cabe a mim decidir.

- De Roquefort não terá futuro sem o Grande Legado. Ouviste a reacção no conclave. Os irmãos irão abandoná-lo se ele não o exibir. Era sobre isso que tu e o mestre estavam a planear? O mestre sabia mais do que aquilo que me revelou?

Geoffrey nada disse e subitamente o senescal detectou no assistente uma maturidade em que nunca reparara antes.

- Não me orgulho de revelar que o mestre previu a sua derrota contra o marechal.

- E que mais disse ele?

- Nada que eu possa declarar.

Aquelas evasivas começavam a irritá-lo.

- O nosso mestre era um homem brilhante. Tal como dizes, tinha a capacidade de antever o futuro. Aparentemente, previa-o com a antecedência suficiente para fazer de ti o seu oráculo. Diz-me, o que devo fazer? - O tom de súplica era bastante óbvio.

- O mestre pediu-me que respondesse às suas perguntas com as palavras de Jesus: «Quem não odiar seu pai e sua mãe, como eu, não pode ser meu discípulo.»

A frase provinha do Evangelho de Tomé. Mas o que significariam naquele contexto? Pensou numa outra frase de Tomé. «Quem não amar a seu pai e sua mãe, como eu, esse não pode ser meu discípulo.»

- Também pediu que o recordasse do que Jesus disse. «Quem procura, não cesse de procurar até encontrar...»

- «... e, quando encontrar, ficará estupefacto; e, quando estupefacto, ficará maravilhado e então terá domínio sobre o Universo.» - Terminou a frase. - Tudo o que ele disse foi sob a forma de enigma.

Geoffrey não respondeu. O jovem era de um nível bastante inferior ao do senescal e o seu caminho para o conhecimento estava apenas no início. A pertença à Ordem era uma progressão lenta em direcção ao gnosticismo, uma viagem que normalmente demorava três anos. Geoffrey chegara à abadia há apenas dezoito meses, oriundo de um colégio jesuíta na Normandia. Fora abandonado em criança e educado pelos jesuítas. O mestre apercebera-se de imediato das suas qualidades e pedira que fosse incluído no corpo executivo. O senescal questionara-o sobre aquela decisão apressada, mas o velho homem limitara-se a sorrir e a responder:

- Não foi diferente do que fiz contigo. Colocou a mão sobre o ombro do assistente.

- Para o mestre requisitar a tua ajuda é porque tinha grande confiança nas tuas capacidades.

Geoffrey fitou-o com um olhar determinado.

- E eu não irei desiludi-lo.

Os irmãos seguiam caminhos diferentes. Alguns enveredavam pela administração. Outros tornavam-se operários. Muitos contribuíam para a auto-suficiência da abadia como artesãos ou agricultores. Alguns dedicavam-se exclusivamente à parte religiosa e apenas cerca de um terço eram escolhidos como cavaleiros. Geoffrey seria cavaleiro dentro dos próximos cinco anos, dependendo dos seus progressos. Já fizera a sua aprendizagem e completara o treino elementar obrigatório. À sua frente tinha ainda um ano de Escrituras e só depois viria o primeiro voto de fidelidade. Era uma pena que pudesse vir a perder tudo o que trabalhara para o atingir.

- Senescal, e o Grande Legado? Pode ser encontrado, como disse o marechal?

- Essa é a nossa única salvação. De Roquefort não o possui, mas provavelmente acha que nós sabemos onde se encontra. Sabemos?

- O mestre falou nisso. - As palavras foram proferidas com rapidez, como se não fossem para ser ditas, e havia nervosismo na face pálida do seu assistente. Esperou pelo resto. - Também me disse que um homem chamado Lars Nelle foi o que mais perto esteve e que o seu caminho era o correcto.

Ele e o mestre tinham falado muitas vezes sobre o Grande Legado. As suas origens remontavam aos anos anteriores a 1307, mas o seu esconderijo após a Expulsão fora uma maneira de impedir Filipe IV de se apropriar da riqueza e conhecimento dos templários. Nos meses anteriores a 13 de Outubro, Jacques de Molay escondera tudo o que a Ordem mais estimava. Infelizmente, a sua localização não ficara registada e a Peste Negra acabou por matar todas as almas que sabiam alguma coisa acerca do seu paradeiro. A única pista provinha de uma passagem anotada nas Crónicas relativa a 4 de Junho de 1307. «Qual é o melhor local para esconder uma pedra?» Os mestres que se seguiram tentaram responder a essa pergunta e procuraram até à exaustão. Todavia, apenas no século XIX tinham surgido novas pistas, não oriundas da Ordem, mas de dois padres da paróquia de Rennes-le-Château: os abades Antoine Bigou e Bérenger Saunière. O senescal sabia que Lars Nelle ressuscitara a sua história mirabolante, e que escrevera um livro nos anos setenta que dava a conhecer ao mundo a pequena aldeia francesa e o seu suposto mistério. Descobrir agora que ele fora quem «estivera mais perto» e que «o seu caminho era o correcto» parecia quase irreal.

O senescal preparava-se para fazer mais perguntas quando ouviu passos. Virou-se e quatro irmãos cavaleiros, homens que ele conhecia, entraram na capela. De Roquefort seguia-os, envergando agora a sotaina branca de mestre.

- A conspirar, senescal? - perguntou De Roquefort, os olhos a brilhar.

- Já não. - Questionou-se sobre aquela demonstração de poder e força. - Precisa de audiência?

- Estão aqui para sua protecção, embora eu espere que isto possa ser resolvido de forma civilizada. Está preso.

- E qual é a acusação? - questionou, não se mostrando nada preocupado.

- Violação do seu voto.

- Vai explicar isso?

- No local apropriado. Estes irmãos irão acompanhá-lo aos seus aposentos, onde passará a noite. Amanhã tratarei de arranjar-lhe umas instalações mais apropriadas. Nessa altura, o seu substituto irá precisar do seu quarto.

- É muito simpático da sua parte.

- Foi o que pensei. Mas dê-se por feliz. A cela do penitente teria sido a sua casa noutros tempos.

Já ouvira falar dessas celas. Não passavam de caixas de ferro demasiado pequenas para se conseguir estar de pé ou deitado. Em vez disso, o prisioneiro era obrigado a permanecer de cócoras sem receber qualquer alimento ou água.

- Está a planear reactivar essas celas?

Apercebeu-se de que De Roquefort não apreciava a provocação, mas o francês limitou-se a sorrir. Poucas vezes aquele demónio mostrara sequer um esgar.

- Os meus seguidores, ao contrário dos seus, são leais aos seus votos. Não há necessidade dessas medidas extremas.

- Quase penso que acredita nisso.

- Sabe, o que me leva a fazer-lhe frente é essa insolência. Os irmãos treinados na disciplina da devoção nunca falariam uns com os outros dessa maneira insultuosa. No entanto, homens como o senhor, vindos do mundo secular, pensam que a arrogância é necessária.

- E negar ao nosso mestre o reconhecimento devido foi demonstrar respeito?

- Foi o preço que ele pagou pela sua arrogância.

- Tiveram os dois a mesma educação.

- Só mostra que também somos capazes de errar.

Começava a ficar cansado de De Roquefort e disse:

- Exijo o meu direito a um tribunal.

- E ser-lhe-á concedido. Por enquanto fica confinado ao seu quarto.

De Roquefort fez um sinal. Os quatro irmãos avançaram e, embora estivesse com medo, decidiu acompanhá-los com dignidade.

Deixou a capela, rodeado pelos guardas, mas à porta hesitou um pouco e olhou para trás, para Geoffrey. O homem mais jovem permanecera em silêncio enquanto ele e De Roquefort discutiam. O novo mestre não estava certamente preocupado com alguém de linhagem tão inferior. Iria demorar ainda muitos anos até que Geoffrey pudesse constituir alguma ameaça. Apesar disso, o senescal questionava-se.

Não havia sinal de medo, vergonha ou apreensão no rosto do seu assistente. Em vez disso, o seu olhar parecia o de alguém determinado.

 

Rennes-le-Château Sábado, 24 de Junho, 9 h 30 m

Malone sentou-se ao volante do Peugeot. Stephanie já se encontrava no interior do automóvel.

- Viu alguém? - perguntou ela.

- Os nossos dois amigos da noite passada estão de volta. São insistentes.

- Não há sinal da rapariga da mota?

Contara a Stephanie o que vira e que conclusões retirara.

- Não, nem eu esperava que estivesse por aqui.

- Onde estão os nossos dois amigos?

- Num Renault vermelho lá ao fundo, para lá do depósito de água. Não se volte. Não queremos assustá-los.

Ajustou o espelho retrovisor lateral de modo a conseguir ver o Renault. Os autocarros de turismo e cerca de uma dúzia de automóveis enchiam já o parque de estacionamento. O céu limpo do dia anterior fora substituído por nuvens grossas e cinzentas. Não tardaria a chover. Dirigiam-se para Avinhão, a cerca de cento e cinquenta quilómetros de distância, na tentativa de encontrarem Royce Claridon. Malone já consultara o mapa e escolhera o melhor caminho para afastarem quaisquer perseguidores.

Pôs o carro a trabalhar e atravessaram a aldeia. Depois de atravessarem os portões e de se encontrarem na estrada descendente que levava ao vale, avistou o Renault a uma distância segura e discreta.

- De que modo planeia despistá-los?

Malone sorriu.

- À maneira antiga.

- Planear sempre com antecedência, não é?

- Aprendi isso com alguém para quem trabalhei.

Encontraram a estrada nacional D 18 e dirigiram-se para norte.

O mapa indicava uma distância de trinta quilómetros até à A61, a auto-estrada a sul de Carcassonne que levava a Avinhão. Nove quilómetros mais à frente, em Limoux, a estrada dividia-se em duas. Uma atravessava o rio Aude e a outra continuava para norte. Decidiu que ali seria onde teria a melhor oportunidade.

A chuva começou a cair. Primeiro uns chuviscos e depois mais forte.

Ligou os limpa-vidros dianteiro e traseiro. A estrada estava deserta em ambos os sentidos. O sábado de manhã parecia ser um bom dia para viajar.

O Renault, com as luzes de nevoeiro a atravessar a chuva, acompanhava a sua velocidade e continuava a avançar. Através do espelho retrovisor viu o Renault ultrapassar o carro imediatamente atrás de si e depois acelerar, colocando-se paralelo ao Peugeot na faixa oposta.

A janela do passageiro abriu-se e surgiu uma arma.

- Segure-se - gritou ele para Stephanie.

Pisou o acelerador e fez a curva a toda a velocidade. O Renault ficou para trás.

- Parece que houve uma mudança de planos. As nossas sombras tornaram-se agressivas. O melhor será baixar-se o mais possível.

- Já sou crescidinha. Conduza que eu estou bem.

Fez mais uma curva apertada e o Renault ganhou terreno. Manter a aderência à estrada começava a tornar-se difícil. O pavimento estava coberto por uma fina camada de condensação e tornava-se cada vez mais escorregadio. Não havia marcações a definir os limites das faixas e a berma estava coberta de poças de água que facilmente fariam o carro derrapar.

Uma bala atingiu o vidro traseiro.

O vidro não se partiu, mas Malone duvidava que aguentasse outra bala. Começou a ziguezaguear, tentando adivinhar onde terminava o pavimento de cada lado. Avistou um carro que se aproximava no sentido contrário e regressou à sua faixa.

- Sabe disparar uma arma? - perguntou sem tirar os olhos da estrada.

- Onde está?

- Por baixo do assento. Foi a que tirei ao meu perseguidor a noite passada. Há um carregador cheio. Não desperdice nenhuma bala. Preciso que eles fiquem para trás.

Ela encontrou a pistola e baixou o vidro. Malone viu-a fazer pontaria e disparar cinco vezes.

Os tiros tiveram o efeito pretendido. O Renault afastou-se, mas não desistiu da perseguição. Ziguezagueou ao longo de mais uma curva, travando e acelerando como aprendera há muito tempo.

Já chegava de ser a raposa.

Guinou para a faixa que seguia para sul e meteu os pés ao travão. Os pneus agarraram-se ao alcatrão e chiaram. O Renault seguiu disparado em direcção a norte. Soltou o travão, meteu a segunda e depois acelerou.

Os pneus rodopiaram e avançaram.

Foi ganhando velocidade até meter a quinta.

O Renault encontrava-se agora à sua frente. Acelerou mais. Noventa quilómetros por hora. Cem. Cento e vinte. Tudo aquilo era estranhamente revigorante. Já há muito tempo que não participava naquele tipo de acção.

Guinou para a faixa que seguia em direcção a sul e colocou-se paralelo ao Renault.

Ambos os carros seguiam agora a cento e vinte quilómetros por hora numa zona mais ou menos recta da estrada. De súbito, passaram por cima de uma pequena lomba e perderam por instantes o contacto com o pavimento, a parte de baixo do carro a bater no chão quando os pneus voltaram a tocar no asfalto molhado. O seu corpo foi sacudido com violência, e manteve-se no lugar graças ao cinto de segurança.

- Foi divertido - comentou Stephanie.

À esquerda e à direita estendiam-se campos verdes decorados por alfazema, espargos e uvas. O Renault mantinha-se ao seu lado.

Olhou de soslaio para a direita e viu que um dos homens estava a tentar sair pela janela, apoiando-se no tejadilho para conseguir disparar.

- Atire para os pneus - gritou para Stephanie.

Ela preparava-se para disparar quando Malone reparou num camião na faixa do Renault. Já conduzira vezes sem conta nas estradas europeias para saber que, ao contrário do que acontecia na América, onde os camiões andavam a uma velocidade estonteante, ali moviam-se ao ritmo de um caracol. Gostaria de encontrar um mais perto de Limoux, mas não estava em maré de desperdiçar oportunidades. O camião encontrava-se cerca de duzentos metros mais à frente. Não tardariam a estar em cima dele e com sorte a sua faixa estaria livre.

- Espere - pediu-lhe.

Manteve o automóvel paralelo ao Renault, não lhe dando qualquer possibilidade de saída. O outro condutor teria de travar, embater no camião ou guinar para a direita e entrar em campo aberto. Fez figas para que o camião permanecesse naquela faixa ou não teria outra escolha que não fosse procurar a berma.

O condutor do Renault avaliou as suas três opções e guinou para fora do alcatrão.

Malone passou pelo camião a toda a velocidade e pelo espelho retrovisor viu os perseguidores atolados em lama.

Voltou a guinar para a faixa que seguia para norte, descontraiu-se um pouco, mas manteve a velocidade, deixando a estrada principal em Limoux, tal como planeado.

Chegaram a Avinhão um pouco depois das onze da manhã. A chuva parara de cair e agora o Sol brilhava sobre as colinas verdes. Uma muralha ameada contornava a cidade que em tempos funcionara como a capital da cristandade durante quase cem anos. Malone conduziu o Peugeot por um labirinto de ruas até um parque de estacionamento subterrâneo.

Assim que chegaram ao cimo das escadas que davam para a superfície, reparou de imediato nas igrejas românicas rodeadas por habitações, nos telhados e paredes cor-de-areia que davam à cidade um ambiente claramente italiano. Sendo fim-de-semana, os turistas já enchiam as principais atracções.

A morada no diário de Lars levou-os por uma das ruas principais. Enquanto caminhavam, Malone pensou no século XIV, altura em que os papas trocaram o rio Tibre em Roma pelo Ródano francês e ocuparam o enorme palácio na colina. Avinhão tornou-se num local de asilo para os hereges. Os judeus compravam a tolerância a troco de um pequeno imposto, os criminosos viviam incólumes e as casas de jogo e bordéis floresciam. O policiamento era negligente e sair à rua depois de anoitecer podia ser perigoso. O que escrevera Petrarca? «Um lugar de pesares onde tudo respira mentiras.» Esperava que as coisas tivessem mudado em seiscentos anos.

A morada de Royce Claridon era uma loja de antiguidades - livros e mobílias - com a montra a exibir volumes de Júlio Verne da primeira metade do século XX. Malone conhecia bem as edições coloridas. A porta estava fechada, mas um papel colado no vidro avisava que se encontravam no mercado Cours Jean Jaurès, onde decorria a feira do livro que tinha lugar mensalmente.

Perguntaram a direcção e indicaram-lhes um local adjacente a uma das avenidas principais. Mesas de metal velhas povoavam a praça arborizada e sobre estas amontoavam-se caixas de plástico com livros franceses e ingleses, a maioria sobre cinema e televisão. A feira parecia atrair um público bem diferente. Cabelos bem cortados, óculos, saias, gravatas e barbas, nem uma máquina fotográfica ou de filmar à vista.

Os autocarros sucediam-se apinhados de turistas a caminho do palácio papal e o barulho dos motores abafava a música de uma banda que tocava do outro lado da rua. Uma lata de Coca-Cola rebolou pela rua calcetada, assustando Malone. Estava nervoso.

- Passa-se alguma coisa?

- Demasiadas distracções.

Deambularam pelo mercado, a observar os artigos. Os melhores livros estavam embrulhados em plástico. Um cartão identificava a proveniência e os preços, que ele reparou serem demasiado elevados para a fraca qualidade do produto. Perguntou a um dos vendedores qual a banca de Royce Claridon e encontraram-na num dos extremos da praça, longe da rua. A mulher que tomava conta das mesas era baixa e robusta, com cabelo loiro penteado num rolo. Usava óculos de sol e o cigarro preso entre os lábios roubava-lhe qualquer beleza que pudesse exibir. Para Malone, fumar nunca fora um hábito que tornasse ninguém atraente.

Examinaram os livros e tudo o que tinha exposto sobre a banca. A maioria dos volumes estava em muito mau estado e ele interrogou-se como seria possível alguém interessar-se por aquilo.

Apresentou-se e a Stephanie. A mulher não devolveu a cortesia, nem revelou o seu nome e limitou-se a continuar a fumar.

- Passámos pela sua loja - disse ele em francês.

- Hoje estamos fechados. - O tom na voz dela sugeria que não desejava ser incomodada.

- Não estávamos interessados em nada - esclareceu.

- Então, façam favor de escolher um destes livros maravilhosos.

- O negócio está assim tão mau?

Soprou o fumo e respondeu.

- Uma porcaria.

- Então, o que faz aqui? Porque não foi passar o dia fora?

Ela olhou-o com suspeição.

- Não gosto de perguntas, principalmente de americanos que mal sabem falar francês.

- Pensei que o meu fosse razoável.

- Mas não é.

Decidiu ir direito ao assunto.

- Andamos à procura de Royce Claridon.

Ela soltou uma gargalhada.

- E quem não anda?

- Pode dizer-nos onde ele se encontra?

Aquela mulher começava a enervá-lo. Não respondeu logo pois a sua atenção desviou-se para um casal que examinava uns livros. A banda do outro lado da rua começou a tocar outra música e, por fim, os seus potenciais clientes foram-se embora.

- Tenho de estar sempre de olho - murmurou ela. - Esta gente rouba tudo.

- Fazemos o seguinte - disse Malone -, compro uma caixa de livros se me responder a uma pergunta.

A proposta pareceu interessar-lhe.

- O que deseja saber?

- Onde está Royce Claridon?

- Já não o vejo há cinco anos.

- Não foi isso que perguntei.

- Desapareceu.

- Para onde foi?

- Já fez todas as perguntas que uma caixa de livros compra. Era óbvio que ela não ia revelar nada e ele não estava com

disposição para lhe dar mais dinheiro. Assim, atirou uma nota de cinquenta euros para cima da mesa e pegou na caixa.

- A sua resposta foi uma porcaria, mas irei manter a minha parte do acordo.

Caminhou até um balde de lixo aberto e despejou o conteúdo da caixa lá dentro. Depois voltou a colocá-la sobre a mesa.

- Vamos embora - disse ele para Stephanie, e viraram costas.

- Ei, americano!

Malone parou e voltou-se. A mulher levantou-se da cadeira.

- Gostei disso.

Malone ficou à espera.

- Andam muitos credores atrás de Royce, mas ele é fácil de encontrar. Procure no sanatório em Villeneuve-les-Avignon.

- Encostou o indicador a uma das têmporas. - Completamente doido!

 

Abbaye des Fontaines, 11 h 30 m

O senescal sentou-se no seu quarto. Dormira pouco na noite anterior, a reflectir no seu problema. Dois irmãos guardavam a porta e ninguém estava autorizado a entrar, a não ser para levar comida. Não gostava de estar fechado, mas ao menos aquela prisão era confortável. Os seus aposentos não eram tão grandes quanto os do mestre ou os do marechal, porém eram privados e tinham casa de banho e uma janela. Havia pouco perigo de ele fugir pela janela, pois a queda seria de várias centenas de metros para um precipício de rocha cinzenta.

No entanto, a sua sorte por certo mudaria ainda naquele dia, uma vez que De Roquefort não iria permitir que ele deambulasse pela abadia à sua vontade. O mais certo seria acabar preso num dos quartos subterrâneos, locais há muito utilizados como armazéns, o lugar ideal para manter um inimigo isolado. O seu destino era uma incógnita.

Já percorrera um longo caminho desde a sua iniciação.

A Regra era clara. «Se alguém desejar abandonar o caminho da perdição e a vida secular e escolher a vida comunitária, não o aceiteis de imediato pois São Paulo disse: Testai a alma para ver se vem de Deus. Se a companhia da irmandade lhe for concedida, que lhe leiam a Regra e se ele aceitar obedecer aos mandamentos nela estabelecidos, então deixai que os irmãos o recebam, deixai que revele os seus desejos frente a todos eles e faça o seu pedido de coração puro.»

Tudo isso ocorrera e ele fora recebido. Proferira o voto de livre vontade e servira a Ordem com empenho e prazer. Agora era um prisioneiro. Falsamente acusado por um político ambicioso. Muito à semelhança do seu antigo mestre, que caíra nas mãos do odioso Filipe, o Belo. Sempre achara o cognome estranho. Na verdade, o adjectivo nada tinha a ver com o seu temperamento, pois o monarca francês era um homem frio e calculista, cujo único desejo era ser chefe da Igreja Católica. Em vez disso, referia-se ao seu cabelo loiro e olhos azuis. Uma coisa por fora e algo bem diferente por dentro.

Levantou-se da secretária e caminhou de um lado para o outro, um hábito adquirido na universidade. Andar ajudava-o a pensar. Sobre a secretária estavam os dois livros que tirara da biblioteca, duas noites atrás. Apercebeu-se que as próximas horas podiam ser a sua última oportunidade para os estudar. De certeza que, assim que dessem pela sua falta, o roubo de propriedade da Ordem seria acrescentado à lista das acusações. O seu castigo - banimento seria uma bênção, mas ele sabia que a sua Némesis nunca permitiria uma saída tão fácil.

Pegou no códice do século XV, um tesouro pelo qual qualquer museu pagaria uma elevada soma para o ter no seu espólio. As páginas estavam escritas com uma letra redonda, conhecida como rotunda, muito comum na época e utilizada em manuscritos eruditos. O texto continha pouca ou nenhuma pontuação, apenas linhas longas que ocupavam toda a página. O escriba teria levado semanas a produzir tal obra, fechado no scriptorium da abadia e dobrado sobre uma mesa, pena na mão, a desenhar lentamente cada letra. Havia marcas de queimaduras na capa e pingos de cera em algumas páginas, mas o códice estava em excelente estado. Uma das principais missões da Ordem era preservar o conhecimento e ele tivera sorte em descobrir aquela pérola por entre os milhares de volumes que compunham a biblioteca.

«Tens de terminar a demanda. É o teu destino. Quer tenhas consciência disso, quer não.» Tinham sido as palavras do mestre para Geoffrey. Contudo, também dissera, «Muitos seguiram o caminho que vais percorrer, mas nunca ninguém o terminou com sucesso.»

Mas saberiam eles tudo o que ele sabia? Por certo não.

Pegou no outro volume. O seu texto também tinha sido escrito à mão, não por esrribas, mas pelo marechal da Ordem em Novembro de 1897. Este estivera em contacto com o abade Jean-Antoine-Maurice Gélis, o padre da paróquia de Coustausa, uma vila situada no vale do rio Aude, não muito longe de Rennes-le-Château. O seu encontro fora bastante proveitoso, pois o marechal ficara na posse de informações vitais.

Voltou a sentar-se e folheou o relato.

Algumas páginas chamaram-lhe a atenção, palavras que lera pela primeira vez com interesse há três anos. Levantou-se e dirigiu-se para a janela com o livro na mão.

Fiquei perturbado ao saber que o abade Gélis tinha sido assassinado no Dia de Todos os Santos. Foi encontrado vestido, com o chapéu eclesiástico posto, e deitado sobre o próprio sangue no chão da cozinha. O seu relógio parara à meia-noite e quinze minutos, mas a hora da morte foi estabelecida entre as -três e as quatro da manhã. Fazendo-me passar pelo representante do bispo, falei com alguns habitantes e com o polícia local. Gélis era um homem nervoso e conhecido por ter sempre as janelas e as portadas fechadas, mesmo no Verão. Nunca abria a porta do presbitério a estranhos e, como não havia sinais de entrada forçada, as autoridades concluíram que o abade conhecia o seu assassino.

Gélis faleceu aos setenta e um anos de idade depois de ter sido atingido na cabeça com as tenazes da lareira e mutilado com um machado. O sangue era abundante, tendo sido encontradas manchas e salpicos no chão e no tecto. Porém, não existiam quaisquer pegadas por entre as várias poças de sangue, o que deixou o polícia admirado. O corpo foi intencionalmente deitado de costas, com as mãos cruzadas sobre o peito, na habitual posição dos mortos. Foram encontrados no interior da casa seiscentos e três francos em ouro e notas, e mais cento e seis francos. Não parece que o motivo tenha sido o roubo. O único objecto que pôde ser considerado prova foi um maço de mortalhas. Numa delas estava escrito «Viva Angelina». Um achado importante, pois Gélis não fumava e detestava até o cheiro dos cigarros.

Na minha opinião, o verdadeiro motivo para o crime foi encontrado no quarto do padre. Aí, o assassino tinha aberto uma pasta. Os papéis continuavam no seu interior e não havia maneira de saber o que faltava. Dentro e em redor da pasta foram encontradas pingas de sangue. O polícia concluiu que o assassino andava à procura de alguma coisa e eu talvez saiba o que poderia ser.

Conheci o abade duas semanas antes do seu assassinato. Um mês antes disso, Gélis comunicara com o bispo em Carcassonne. Eu apareci na casa do abade, fiz-me passar por representante do bispo, e falámos longamente sobre o que o afligia. Acabou por me pedir que o ouvisse em confissão. Uma vez que não sou padre e, por isso, não estou limitado pelo segredo da confissão, posso revelar o que me foi dito.

Algures durante o Verão de 1896, Gélis descobriu um frasco de vidro escondido na sua igreja. O corrimão do coro precisara de ser substituído e, quando a madeira foi arrancada, encontraram um esconderijo que continha um frasco de vidro selado e no seu interior uma tira de papel que continha o seguinte:

 

Y E N S Z N T M G L N Y Y R A E F V H E

O • M O T + P E C T H P E R + A + B L Z

V O U P H R E I + D U S T L E G R ' D F

L P O R X F O N S R T V H V G + C R K R

R D E U M A E T R + R O A U • S M B A Q

R I O + A O I L U J N R Z K M A O X E M

T N A F O G R N E O Y + M P F Q L E ' +

K X V O ' L T K Y I U D • S G T S X O I

N U E + V G A N P E E S L L E + U P S Q M

S N L I N E ' L O + P A Q D L X D V G P

Y V E K C • T U B G ' H S M S C • L Y '

O U P T B M + M L V O V + N A X W X S U

P A T S O E S F X • C T I W B • T Y + O

 

Este criptograma era um sistema de código muito utilizado no século passado. Contou-me que seis anos antes, o abade Saunière, da paróquia de Rennes-le-Château, encontrara também um criptograma na sua igreja. Quando comparados, repararam que eram idênticos. Saunière acreditava que ambos os frascos haviam sido escondidos pelo abade BIgou, responsável pela paróquia de Rennes na altura da Revolução Francesa. No tempo do abade, a igreja de Coustausa era também utilizada pelo padre de Rennes, logo Bigou teria sido uma presença frequente na actual paróquia de Gélis. Saunière também acreditava que existia uma ligação entre o criptograma e a pedra tumular de Marie d'Hautpoul de Blanchefort, que falecera em 1781. O abade Bigou fora o seu confessor e encomendara a lápide para a campa da paroquiana, mandando gravar nela um conjunto de estranhos símbolos e letras. Saunière não foi capaz de decifrar nada, mas após um ano de trabalho Gélis resolveu o criptograma. Revelou-me que não foi completamente honesto com o amigo abade por achar os seus motivos pouco puros e honestos. Desse modo, escondeu de Saunière as soluções a que tinha chegado.

O abade Gélis desejava que o bispo fosse informado das suas conclusões e acreditava que eu lhe entregaria a mensagem.

Infelizmente, o marechal não anotara as conclusões de Gélis. Talvez pensasse que a informação era demasiado importante para ser escrita ou, quem sabe, não passava de um oportunista, tal como De Roquefort. O mais estranho era que, segundo as Crónicas, o próprio marechal desapareceu no ano seguinte, em 1898. Teria saído da abadia em serviço, e nunca mais regressara. As buscas realizadas nessa altura não tiveram qualquer sucesso. Graças a Deus, o marechal tinha anotado o criptograma.

Os sinos tocaram para As sextas, chamando os irmãos para as orações do meio-dia. Todos, com excepção do pessoal da cozinha, iriam reunir-se na capela para orar e escutar a leitura de salmos até à uma da tarde. Decidiu aproveitar aquele tempo para meditar também um pouco, mas foi interrompido por um suave bater na porta.

Voltou-se e viu Geoffrey entrar, transportando um tabuleiro com comida.

- Ofereci-me para lhe trazer isto - disse o homem mais novo. - Disseram-me que não tomou o pequeno-almoço. Deve estar com fome. - O tom do seu assistente era estranhamente alegre.

A porta ficou aberta e conseguiu ver os dois guardas lá fora.

- Também lhes trouxe algo para beberem - comentou Geoffrey e apontou para o outro lado da porta.

- Muito generoso da tua parte.

- Jesus disse que a vida provém da fé, do amor e da generosidade.

O senescal sorriu.

- Isso é verdade, meu amigo. - Manteve o mesmo tom bem disposto para os dois pares de ouvidos escutarem.

- Está bem? - perguntou Geoffrey.

- Tão bem quanto seria de esperar nestas condições. - Aceitou o tabuleiro e colocou-o sobre a mesa.

- Rezei por si, senescal.

- Esse título já não me pertence. Aposto que De Roquefort já deve ter nomeado outro irmão para o meu lugar.

Geoffrey acenou afirmativamente.

- O seu tenente-chefe.

- Ai de nós...

Viu um dos guardas cair no chão e, poucos segundos depois, o outro juntou-se-lhe.

Dois copos de metal rebolaram pelas pedras do chão.

- Demorou - disse Geoffrey.

- O que lhes deu?

- Um sedativo. Cortesia do enfermeiro. Inodoro e insípido, mas de acção rápida. O irmão é nosso aliado e deseja-lhe boa sorte. Agora temos de ir. O mestre tomou providências e cabe-me a mim garantir que são cumpridas.

Geoffrey meteu a mão por baixo da sotaina e retirou duas pistolas.

- O responsável pelo depósito das armas também é nosso amigo, podemos precisar delas.

O senescal aprendera a lidar com armas, fazia parte do treino básico de todos os irmãos. Pegou numa das pistolas.

- Vamos deixar a abadia?

- Sim, temos de o fazer para cumprir a nossa missão - informou Geoffrey.

- A nossa missão.

- É verdade, senescal. Já há muito tempo que ando a preparar-me para isto.

Notou a ansiedade na sua voz e, embora tivesse quase mais dez anos que Geoffrey, sentiu-se pouco à vontade. Aquele suposto irmão mais novo era bem majs adulto do que aparentava.

- Como disse ontem, o mestre foi sábio em escolher-te.

Geoffrey sorriu.

- Foi sábio em escolher-nos a ambos.

Pegou numa mochila e colocou no interior alguns objectos de higiene pessoal e os dois livros que tirara da biblioteca.

- Não tenho outras roupas para além da sotaina.

- Podemos comprar outras assim que sairmos daqui.

- Tens dinheiro?

- O mestre era um homem muito meticuloso e previdente.

Geoffrey aproximou-se da porta e espreitou para ambos os lados.

- Os irmãos estão todos na capela. Não devemos ter problemas em sair.

Antes de seguir o assistente em direcção ao corredor, olhou os aposentos pela última vez. Alguns dos melhores momentos da sua vida tinham sido ali passados e entristecia-o ter de abandonar todas aquelas memórias. No entanto, havia algo nele que o impelia a seguir em frente, em direcção à verdade que apenas o mestre conhecia.

 

Villeneuve-les-Avignon, 12 h 30 m

Malone observou Royae Claridon. O homem envergava umas calças largas manchadas com o que parecia ser tinta e uma camisola desportiva. Aparentava ter quase sessenta anos e uma constituição magra e seca. Os olhos negros e encovados já não tinham qualquer brilho, mas pareciam atentos. Os pés descalços estavam sujos, as unhas mal tratadas, e o cabelo e barba grisalhos e emaranhados. O auxiliar do sanatório dissera-lhes que Claridon sofria de alucinações, embora fosse inofensivo, e que quase todos na instituição o evitavam.

- Quem são vocês? - perguntou Claridon em francês, observando-os com um olhar distante e perplexo.

O sanatório ocupava um enorme palácio que um painel na frente afirmava pertencer ao governo francês desde a Revolução. As alas projectavam-se do edifício principal em ângulos pouco vulgares e muitos dos antigos salões tinham sido convertidos em quartos para os pacientes. Encontravam-se num solário, com janelas do tecto até ao chão que emolduravam os campos circundantes. Nuvens densas tapavam o Sol do meio-dia. Um dos auxiliares dissera-lhes que Claridon passava ali grande parte dos dias.

- Foram enviados pelo mestre? - questionou o velho homem.

- Tenho muitas informações para lhe dar.

Malone decidiu entrar no jogo.

- Sim, o mestre pediu-nos que viéssemos falar consigo.

- Ah, finalmente. Esperei durante muito tempo. - Havia ansiedade nas suas palavras.

Malone fez um sinal e Stephanie afastou-se. Era óbvio que aquele homem se considerava um templário e as mulheres não faziam parte da irmandade.

- O que tem para me dizer, irmão? Conte-me tudo.

Claridon brincou com o cabelo, depois levantou-se, e começou a andar de um lado para o outro.

- Terrível - disse. - Estávamos cercados por todos os lados. Havia inimigos a perder de vista. Já quase não tínhamos setas, a comida estava estragada e a água acabara. Muitos dos irmãos tinham sucumbido à doença e nenhum de nós ia viver muito mais tempo.

- Uma situação complicada. O que fizeram?

- Aconteceu uma coisa estranha. Do interior das muralhas foi içada uma bandeira branca. Olhámos uns para os outros e as nossas expressões de espanto revelavam o que cada um estava a pensar. «Eles querem negociar.»

Malone conhecia bem a história medieval. As negociações eram muito comuns durante as cruzadas. Os exércitos em situação de impasse costumavam negociar condições para que ambos pudessem retirar e clamar vitória.

- E reuniram-se? - perguntou Malone.

O velho homem assentiu e levantou quatro dedos sujos.

- De cada vez que nos reunimos fomos bem recebidos e acabámos por chegar a acordo.

- Agora diga-me, qual é a mensagem que o mestre precisa de saber?

Claridon fitou-o contrariado.

- É um homem insolente.

- Como assim, irmão? Se não o respeitasse não estava aqui. O irmão Lars Nelle disse-me que era um homem de confiança.

O questionário parecia aborrecê-lo, mas logo surgiu um brilho de reconhecimento no seu olhar.

- Lembro-me dele. Um guerreiro corajoso que lutou com muita honra. Sim, sim, recordo-me dele. O irmão Lars Nelle, que Deus guarde a sua alma.

- Porque diz isso?

- Não sabe? - Havia incredulidade no seu tom. - Morreu em batalha.

- Onde?

Claridon abanou a cabeça.

- Não faço ideia, sei apenas que agora está na companhia do Senhor. Rezámos uma missa em sua honra e oferecemos-lhe muitas orações.

- Encontrou-se muitas vezes com o irmão Nelle?

- Muitas vezes.

- Ele alguma vez lhe falou da sua demanda?

Claridon desviou-se para a direita, mas manteve o olhar fixo em Malone.

- Por que razão me faz essa pergunta?

Aquele homenzinho inquieto começou a andar à sua volta como um gato. Malone resolveu aumentar a parada de qualquer que fosse o jogo que a mente confusa daquele homem estava a jogar. Agarrou Claridon pela camisola e levantou-o do chão. Stephanie deu um passo em frente, mas com um olhar rápido ele pediu-lhe que se afastasse.

- O mestre não está nada contente - revelou ele. - Mesmo nada.

- Mas como?

A face de Claridon enrubesceu de vergonha.

- Consigo.

- Mas eu não fiz nada.

- Recusa-se a responder às minhas perguntas.

- Mas o que deseja saber? - Havia perplexidade no seu olhar.

- Fale-me da busca do irmão Nelle.

Claridon abanou a cabeça.

- Nada sei sobre isso. O irmão não me falou dessas coisas.

Malone viu medo e desorientação no olhar dele. Largou-o e Claridon correu para junto dos vidros e agarrou num rolo de papel de cozinha e no detergente, e começou a limpar um vidro que não estava sujo.

Voltou-se para Stephanie.

- Estamos a perder o nosso tempo.

- O que o levou a desconfiar?

- Tinha de tentar.

Recordou-se da nota enviada a Ernst Scoville e decidiu fazer uma última tentativa. Retirou o papel do bolso e aproximou-se de Claridon. Para lá do vidro, a alguns quilómetros para oeste, erguiam-se as muralhas de Villeneuve-les-Avignon.

- Os cardeais vivem ali - disse Claridon sem parar de limpar.

- Insolentes, todos eles.

Malone sabia que os cardeais tinham em tempos debandado para as colinas fora das muralhas de Avinhão e construído aí palacetes como forma de escaparem ao congestionamento da cidade e à vigilância constante do papa. Os cardeais já não viviam ali, mas a antiga cidade permanecia silenciosa e em ruínas.

- Somos os protectores dos cardeais - disse Malone, e continuou o jogo de faz-de-conta.

Claridon cuspiu para o chão.

- Que apanhem todos sífilis.

- Leia isto.

O homenzinho pegou no papel e passou os olhos pelas palavras, escancarando-os em seguida de espanto.

- Não roubei nada à Ordem. Juro - O tom de voz começava a elevar-se-lhe. - Não roubei coisa nenhuma, juro por Deus.

O homem estava a ler apenas aquilo que Malone queria que ele visse. Retirou o papel do vidro.

- Isto é uma perda de tempo, Cotton - declarou Stephanie. Claridon aproximou-se dele.

- Quem é esta megera? O que faz ela aqui?

Quase sorriu.

- É a viúva do irmão Nelle.

- Não sabia que o irmão tinha sido casado. - Lembrou-se do que lera sobre os templários há duas noites.

- Como sabe, muitos irmãos foram casados. Como não foi fiel, o laço do matrimónio desfez-se e ela foi banida para um convento.

Claridon sacudiu a cabeça em sinal de descontentamento.

- Tem ar de ser uma mulher difícil. O que faz ela aqui?

- Procura a verdade sobre o marido.

Claridon fitou Stephanie e apontou com um dedo.

- É o diabo! - gritou o homem. - O irmão Nelle procurou penitência junto dos irmãos por causa dos seus pecados. Devia ter vergonha.

Stephanie teve o bom senso de se limitar a baixar a cabeça e dizer:

- Procuro apenas o perdão.

A expressão severa de Claridon tornou-se mais compreensiva face à sua humildade.

- E tem o meu, irmã. Vá em paz.

Malone fez-lhe sinal e dirigiram-se para a porta. Claridon regressou à sua cadeira.

- É tão triste - comentou ela -, e assustador. Perder o juízo é uma coisa terrível. Lars falava disso com frequência e era coisa que muito temia.

- Acho que todos tememos. - Tinha ainda na mão o bilhete encontrado na casa de Ernst Scoville. Voltou a olhar para o texto e leu as últimas três linhas:

Em Avinhão procure Claridon. Ele poderá indicar o caminho. Mas prend garde à l'Ingénieur.

- Pergunto-me o que terá levado o remetente a pensar que Claridon podia indicar o caminho - comentou ele. - Não temos uma única pista. Estamos num beco sem saída.

- Isso não é verdade.

As palavras foram proferidas em inglês e vinham do solário.

Malone virou-se para trás no exacto instante em que Claridon se levantava da cadeira. O seu olhar confuso e alienado tinha desaparecido por completo.

- Posso dar-vos essa informação e o aviso feito no bilhete deve ser levado a sério. Tenham cuidado com o engenheiro. É por causa dela, e de outros, que procurei refúgio aqui.

 

Abbaye des Fontaines

O senescal seguiu Geoffrey pelo labirinto de corredores abobadados. Esperava que a sua previsão estivesse correcta e que todos os irmãos se encontrassem na capela para as orações do meio-dia.

Até ao momento não tinham visto ninguém.

Dirigiram-se para o palais, composto pelo salão principal, pelos escritórios administrativos e pelas salas públicas. Quando, no passado, a abadia não permitia o contacto com o exterior, ninguém estranho à Ordem estava autorizado a passar além da sala de entrada no rés-do-chão. Todavia, quando, no século XX, o turismo começou a florescer e as outras abadias abriram as suas portas, a Abbaye des Fontaines, para não originar suspeitas, seguiu o mesmo exemplo, oferecendo aos interessados visitas e sessões informativas, muitas das quais tinham lugar no palais.

Entraram na enorme sala de estar. As janelas feitas de vidro verde e grosseiro projectavam farrapos de luz pálida no chão de xadrez. Um gigantesco crucifixo de madeira dominava uma das paredes e da outra pendia uma tapeçaria.

Na entrada para outro corredor, a trinta metros da enorme sala, encontrava-se Raymond de Roquefort com cinco irmãos, todos de armas em punho.

- Já de saída? - perguntou De Roquefort.

O senescal estacou, porém Geoffrey levantou a sua arma e disparou dois tiros. Os homens do outro lado mergulharam no chão e as balas cravaram-se na parede.

- Por ali - disse Geoffrey, e apontou para a esquerda, na direcção de outro corredor.

Dois tiros rasaram-lhes as cabeças.

Geoffrey disparou outra bala e assumiram posições defensivas no corredor, junto a uma saleta onde outrora os mercadores mostravam os seus artigos.

- Muito bem - gritou De Roquefort. - Já tem a minha atenção. É mesmo necessário haver derramamento de sangue?

- Isso é consigo - respondeu o senescal.

- Pensei que o seu voto fosse uma coisa preciosa. Não é seu dever obedecer ao mestre? Eu ordenei-lhe que ficasse nos seus aposentos.

- Ai, sim? Devo ter-me esquecido dessa parte.

- É interessante ver como há regras que se aplicam só a si e as outras aos restantes irmãos. Ainda assim, não podemos resolver isto a bem?

- O que propõe?

- Imaginei que tentaria fugir. As sextas pareciam a melhor altura, por isso fiquei à espera. Como vê, conheço-o bem. Todavia, o seu aliado surpreende-me. Demonstrou grande coragem e lealdade. Gostava que se juntassem ambos à minha causa.

- Para fazermos o quê?

- Ajudarem-nos a reclamar o nosso destino, em vez de boicotarem as nossas acções.

Havia algo de errado. De Roquefort parecia muito civilizado. Foi então que lhe ocorreu. Estava a tentar ganhar tempo.

Deu a volta.

A quinze metros dali, um homem armado contornava a esquina. Geoffrey também o avistou. O senescal disparou um tiro para a parte inferior da sotaina do atacante. Escutou o barulho do metal a perfurar a carne e um grito de dor. Que Deus o perdoasse. A Regra proibia que se ferisse outro cristão, mas não tinha escolha. Precisava de escapar daquela prisão.

- Vamos - chamou.

Geoffrey tomou a dianteira e saíram dali a correr, saltando poi cima do irmão que se contorcia de dores. Viraram a esquina e continuaram a correr. Atrás deles escutavam-se passos.

- Espero que saibas o que estás a fazer - disse para o assistente: Mais uma esquina e Geoffrey parou junto a uma porta meio aberta. Entraram e fecharam-na com cuidado. Uns segundos mais tarde, os seus perseguidores passaram a correr, o barulho dos passos diminuindo com a distância.

- Aquele caminho vai dar ao ginásio. Não vão demorar muito a perceber que não estamos lá - informou ele.

Voltaram a sair e dirigiram-se, pelo mesmo caminho que os homens, mas em vez de virarem à direita, voltaram à esquerda, em direcção à sala de jantar.

Questionava-se por que motivo os tiros não tinham chamado a atenção de mais irmãos. Porém, a música na capela era sempre tão alta que não se ouvia mais nada. Apesar disso, De Roquefort antecipara a sua fuga e o mais certo era ter mais homens espalhados pela abadia à sua espera.

As compridas mesas e bancos da sala de jantar encontravam-se vazios e da cozinha chegava o aroma de alimentos cozinhados. No púlpito, a um metro de altura, estava um irmão também armado.

O senescal atirou-se para baixo de uma mesa, e usou a mochila como amortecedor. Geoffrey procurou refúgio debaixo de outra mesa.

Uma bala lascou o tampo de carvalho.

Geoffrey saiu do seu esconderijo e disparou dois tiros, um dos quais acertou no atacante. O homem estremeceu e depois caiu no chão.

- Está morto? - perguntou o senescal.

- Espero que não. Acho que lhe acertei no ombro.

- Isto está a ficar descontrolado.

- Agora é demasiado tarde para desistirmos.

Levantaram-se. O pessoal da cozinha saiu disparado para ver o que se passava. Não representavam qualquer perigo.

- Voltem para a cozinha - ordenou o senescal, e ninguém desobedeceu.

- Senescal! - chamou Geoffrey ansioso.

- Indica o caminho, Geoffrey.

Deixaram a sala de jantar por outro corredor. Atrás deles começaram a ouvir vozes e o barulho de passos apressados. Os ferimentos dos dois irmãos iriam motivar até o mais tímido dos seus perseguidores. O senescal estava furioso por ter caído na armadilha que De Roquefort lhe tecera. Qualquer credibilidade que ainda possuísse tinha desaparecido. Agora é que ninguém iria apoiá-lo e amaldiçoou a sua imprudência.

Entraram na ala do dormitório. A porta no extremo oposto encontrava-se fechada. Geoffrey correu até lá e experimentou a fechadura. Trancada.

- Parece que as nossas opções estão a diminuir - afirmou o senescal.

- Venha - disse o assistente.

Correram para o interior do dormitório, uma sala grande e oblonga com tarimbas dispostas perpendicularmente, ao estilo militar, sob uma fila de janelas em ogiva.

Escutaram gritos e vozes. Vinha mais gente na sua direcção.

- Não há outra saída - constatou ele.

Encontravam-se a meio de uma fila de camas vazias. Atrás deles ficava a entrada, que não tardaria a encher-se de adversários, à frente deles, as casas de banho.

- Vamos para as casas de banho - sugeriu. - Pode ser que eles continuem.

Geoffrey correu para a outra ponta onde duas portas davam acesso a sanitas separadas por divisórias.

- Aqui.

- Não. O melhor será separarmo-nos. Entra numa e sobe para cima da sanita. Eu fico noutra. Se não fizermos barulho, pode ser que tenhamos sorte. Para além disso... - Hesitou, não gostando da situação. - Não temos outra escolha.

De Roquefort examinou a ferida. O ombro do irmão sangrava com abundância e este contorcia-se com dores. Todavia, demonstrava um extraordinário autocontrole, lutando para não entrar em choque. Colocara o atirador na sala de jantar, pensando que o senescal poderia entrar ali, e não se enganara. O que subestimara fora a determinação dos seus inimigos. Os irmãos faziam um voto de nunca ferirem outro irmão. Ele achara que o senescal era demasiado idealista e se manteria fiel a esse juramento. Enganara-se e agora dois homens iam a caminho da enfermaria. Esperava que nenhum deles tivesse de ser transportado para o hospital de Perpignan ou Mont Louis, pois isso levantaria um sem-número de perguntas. O enfermeiro da abadia era um cirurgião qualificado e possuía uma sala de operações bem equipada que já fora utilizada bastantes vezes ao longo dos anos, porém a sua eficiência também tinha limites.

- Levem-no para a enfermaria e digam ao médico que ele deve ser tratado aqui - ordenou a um dos ajudantes.

Olhou para o relógio. Dali a quarenta minutos as orações do meio-dia chegariam ao fim.

Um dos irmãos aproximou-se dele.

- A porta do outro extremo, depois da entrada do dormitório, continua fechada, como ordenou.

De acordo com o relato do irmão ferido, sabia que eles não tinham voltado para trás pela sala de jantar. Isso só deixava uma alternativa. Pegou no revólver.

- Fica aqui e não deixes passar ninguém. Eu trato disto sozinho.

O senescal entrou na casa de banho iluminada. Filas de cubículos com sanitas, urinóis e lavatórios de aço inoxidável encastrados em bancadas de mármore compunham o espaço. Ouviu Geoffrey na divisória ao lado a posicionar-se num dos cubículos. Estava nervoso e tentou acalmar-se. Nunca antes estivera numa situação daquelas. Respirou fundo, voltou para trás, e abriu uma fresta da porta para espreitar.

O dormitório continuava vazio.

Talvez tivessem passado e seguido em frente. A abadia assemelhava-se a um formigueiro cheio de corredores. Tudo o que precisavam era de alguns minutos preciosos para conseguirem fugir. Voltou a amaldiçoar-se pela fraqueza. Todos os anos que passara a reflectir e a aprender tinham sido desperdiçados. Agora não passava de um fugitivo com mais de quatrocentos irmãos como inimigos. «Respeito o poder dos seus adversários.» Tinha-o dito ao mestre apenas há um dia. Abanou a cabeça. Grande respeito. Até agora, não fizera nada de inteligente.

A porta do dormitório abriu-se e Raymond de Roquefort entrou.

O seu adversário fechou o trinco da porta.

Qualquer esperança que o senescal pudesse ter desapareceu.

O espectáculo ia ter lugar ali e naquele momento.

De Roquefort trazia um revólver e observou o quarto, interrogando-se por certo onde estaria a sua presa. Não o tinham conseguido enganar. Ainda assim, o senescal não tinha qualquer intenção de arriscar a vida de Geoffrey e precisava de algo para chamar a atenção do inimigo. Soltou a maçaneta da porta e deixou que esta se fechasse com um pequeno estalido.

De Roquefort apercebeu-se de um movimento e ouviu o barulho de um trinco a encaixar-se na estrutura de metal. Desviou os olhos para a extremidade do dormitório e para uma das portas da casa de banho.

Não se enganara.

Eles estavam ali.

Estava na hora de pôr um ponto final naquele problema.

O senescal observou a casa de banho. A lâmpada fluorescente iluminava tudo como se fosse a luz do dia e uma parede de vidro sobre o balcão dos lavatórios fazia a divisão parecer ainda maior. O chão era de ladrilhos e as casas de banho separadas por divisões de mármore. Fora tudo construído com dedicação e durabilidade.

Escondeu-se no segundo cubículo e fechou a porta. Saltou para cima da sanita e debruçou-se sobre a divisória até conseguir fechar e trancar as portas do primeiro e terceiro cubículos. Depois voltou à posição inicial e esperou que De Roquefort mordesse o isco.

Como precisava de alguma coisa para chamar a sua atenção, libertou o papel higiénico do suporte.

Houve um movimento de ar quando a porta da casa de banho se abriu e escutou o som de passos.

Deixou-se ficar sobre o tampo da sanita, de arma em punho, e lembrou-se de respirar muito lentamente.

De Roquefort apontou a arma automática em direcção aos cubículos. O senescal estava ali. Disso tinha a certeza. Mas onde? Seria uma boa estratégia baixar-se e espreitar pelo espaço entre as portas e o chão? Três das portas estavam fechadas e as outras três escancaradas.

Não.

Decidiu disparar.

O senescal pensou que não demoraria muito até De Roquefort começar aos tiros, por isso fez deslizar o suporte do papel higiénico por baixo da porta do primeiro cubículo.

O metal tilintou na pedra do chão.

De Roquefort disparou naquela direcção e escancarou a porta com um pontapé. Uma nuvem de pó de mármore branco encheu o ar. Disparou mais uma rajada de tiros para o interior do cubículo, que destruiu por completo a sanita e o estuque da parede.

A água começou a jorrar.

Todavia, o cubículo estava vazio.

No segundo antes de o seu inimigo se aperceber do erro, o senescal disparou por cima das divisórias, e com duas balas acertou no peito do seu atacante. Os tiros ecoaram pela casa de banho.

Viu De Roquefort cambalear para trás e cair para cima do balcão dos lavatórios e depois dobrar-se como se tivesse sido apunhalado no peito. No entanto, não viu qualquer mancha de sangue no ponto de entrada das balas. O homem parecia mais atordoado que outra coisa. Foi então que se apercebeu de uma superfície meio azulada por entre os buracos da sotaina.

Um colete à prova de bala.

Ajustou a mira e apontou-lhe à cabeça.

De Roquefort apercebeu-se da ameaça e reuniu a força necessária para rebolar do balcão quando a bala saiu do cano. O seu corpo deslizou pelo chão molhado em direcção à porta.

Pedaços de loiça sanitária e pedra estalavam sob ele. O espelho explodiu, quebrando-se em mil pedaços. A casa de banho era demasiado exígua e o seu oponente mais corajoso do que antecipara. Assim, recuou em direcção à porta e esgueirou-se para o exterior no momento em que outra bala se alojava na parede atrás de si.

O senescal desceu da sanita e abandonou o cubículo. Avançou pé ante pé até à porta e preparou-se para sair. Não tinha dúvidas que De Roquefort estaria à sua espera. Mas não ia acobardar-se.

Não agora. Devia esta luta ao mestre. Os Evangelhos eram claros. Jesus não viera trazer a paz, mas sim uma espada. Também ele assim o faria.

Acalmou-se, segurou melhor a arma e escancarou a porta.

A primeira coisa que avistou foi Raymond de Roquefort. Depois viu Geoffrey com a arma encostada ao pescoço do novo mestre e o revólver de De Roquefort caído no chão.

 

Villeneuve-les-Avignon

Malone fitou Royce Claridon e exclamou:

- Afinal não está doente. - Tive muitos anos de prática. - Claridon virou-se para Stephanie. - É a mulher de Lars?

Ela acenou afirmativamente.

- Era um bom amigo e um grande homem. Muito inteligente, mas também muito ingénuo. Subestimou o poder dos que se lhe opunham.

Continuavam sozinhos no solário e Claridon reparou no interesse de Malone pela porta de saída.

- Ninguém nos virá incomodar. Não há uma única alma que tenha paciência para os meus delírios. Fiz questão em me tornar muito aborrecido. Ficam todos contentes quando me retiro para aqui.

- Há quanto tempo aqui está?

- Há cinco anos.

Malone ficou espantado.

- Porquê?

Claridon caminhou em passo lento por entre os vasos de plantas. Do outro lado do vidro, nuvens negras contornavam o horizonte.

- Existem outros que procuram o mesmo que Lars. Não o fazem de uma maneira pública ou chamam a atenção para as suas actividades, mas recorrem a métodos menos pacíficos para tratarem de todos aqueles que se lhes atravessam no caminho. Por isso, refugiei-me aqui e fingi estar doente. Tomam bem conta de nós, a comida é boa e, mais importante que tudo, não fazem perguntas. Em cinco anos só falei de forma sã comigo mesmo e posso garantir-lhe que falar para os próprios botões é muito aborrecido.

- E o que o fez querer falar connosco? - questionou Stephanie.

- A senhora é a viúva de Lars. Por ele faria qualquer coisa. - Claridon apontou. - E esse bilhete. Enviado por alguém com conhecimento de causa. Talvez até pelas mesmas pessoas que não apreciam que se metam nos seus assuntos.

- E Lars atravessou-se no caminho deles? - interrogou Stephanie.

- Não tenho dúvidas que sim. Havia muita gente que desejava saber o que ele descobrira.

- E qual era a sua ligação ao meu marido? - perguntou ela.

- Eu tinha acesso ao comércio dos livros e ele precisava de volumes pouco procurados.

Malone sabia muito bem que os alfarrabistas eram locais procurados tanto por coleccionadores como por estudiosos.

- Ficámos amigos e acabei por partilhar da sua paixão. Esta região é a minha casa. A minha família vive aqui desde os tempos medievais. Alguns dos meus antepassados eram cátaros, queimados nas fogueiras pelos cristãos. Depois Lars morreu. Uma tristeza. E outros também faleceram depois dele. Foi por isso que vim para aqui.

- Que outros?

- Um negociante de livros em Sevilha, um bibliotecário em Marselha, um estudante universitário em Roma. Já para não falar de Mark.

- Ernst Scoville também está morto. Foi atropelado por um carro a semana passada, logo depois de eu ter falado com ele.

Claridon benzeu-se.

- Todos os que procuram sofrem, de facto, as consequências. Diga-me, minha senhora, sabe de alguma coisa?

- Tenho o diário de Lars.

No rosto dele surgiu uma expressão preocupada.

- Então corre perigo de morte.

- Como assim? - perguntou Malone.

- Isto é terrível - desabafou Claridon. - Terrível. Não é justo que seja envolvida. Já perdeu o seu marido e o seu filho...

- O que sabe sobre Mark?

- Foi logo depois da morte dele que vim para aqui.

- O meu filho morreu vítima de uma avalanche.

- Isso não é verdade. Foi assassinado, tal como os outros que já referi.

Stephanie e Malone permaneceram em silêncio à espera que o homem se explicasse.

- Mark estava a seguir pistas que o pai descobrira anos antes. Não era tão dedicado e apaixonado quanto Lars e levou alguns anos até decifrar os apontamentos do pai, mas acabou por conseguir. Viajou para sul, para as montanhas, e nunca mais regressou. Tal como o pai.

- O meu marido enforcou-se numa ponte.

- Eu sei, cara senhora. Mas sempre me perguntei o que teria realmente acontecido.

Stephanie nada disse, porém o seu silêncio indicava que também ela se interrogava.

- Disse que se refugiou aqui para fugir deles. Quem são eles? - perguntou Malone. - Os Cavaleiros Templários?

Claridon assentiu.

- Os principais culpados. Estive cara a cara com eles em duas ocasiões. Não foi uma coisa agradável.

Malone decidiu deixar aquela ideia fermentar durante uns momentos. Segurava ainda o bilhete que fora enviado a Ernst Scoville em Rennes-le-Château. Levantou o papel.

- De que modo pode indicar o caminho? Onde devemos ir? E quem é este tal engenheiro, ou engenheira, com o qual devemos ter cuidado?

- Também ela procura o mesmo que Lars. O seu nome é Cassiopia Vitt.

- Tem boa pontaria?

- Possui variados talentos. Estou certo que disparar deve ser um deles. Vive em Givors, uma antiga cidadela. É uma mulher negra, muçulmana, e bastante rica. Trabalha na floresta e está a reconstruir um castelo, utilizando apenas técnicas do século XIII. A casa dela fica ali perto e ela acompanha pessoalmente o projecto de reconstrução, autodenominando-se l'Ingénieur. O Engenheiro. Já a viu?

- Sim, duas vezes. Salvou-me a vida em Copenhaga e em Rennes. O que me leva pensar por que motivo alguém acha que devemos ter cuidado com ela.

- Os seus motivos são deveras suspeitos. Procura o mesmo que Lars, mas por razões diferentes.

- E o que procura ela? - questionou Malone já farto de enigmas.

- Aquilo que os irmãos do Templo de Salomão há muito deixaram para trás. O Grande Legado. Aquilo que o padre Saunière descobriu. O que os irmãos procuram há muitos séculos.

Malone não acreditava em nada daquilo, mas voltou a mostrar-lhe o papel.

- Então indique-nos o caminho certo.

- Não é assim tão simples. As pistas são escassas.

- Sabe ao menos por onde começar?

- Se possuem o diário de Lars, então sabem mais do que eu. Ele falava muito desse caderno de apontamentos, mas nunca me autorizou a vê-lo.

- Também temos uma cópia de Pierres Gravées du Languedoc - informou Stephanie.

Claridon escancarou a boca.

- Nunca pensei que esse livro existisse.

Ela remexeu no interior da mala e mostrou-lhe o volume.

- Existe.

- Posso ver a lápide?

Stephanie abriu o livro na página do desenho e mostrou-lho. Claridon estudou-o com interesse. Depois sorriu.

- Lars teria ficado satisfeito. O desenho é muito bom.

- Pode explicar? - pediu Malone.

Antes de falecer, Marie d'Hautpoul de Blanchefort contou um segredo ao abade Bigou. Antes de fugir de França, em 1793, e apercebendo-se de que não regressaria nunca mais, Bigou escondeu o que sabia na igreja de Rennes-le-Château. Essa informação foi mais tarde encontrada por Saunière dentro de um frasco de vidro, em 1891.

- Sabemos tudo isso - esclareceu Malone. - O que não sabemos é o segredo de Bigou.

- Ah, mas isso é que sabem - disse Claridon. - Posso ver o diário de Lars?

Stephanie passou-lhe o caderno de apontamentos. Ele passou as folhas com ansiedade e mostrou-lhes uma página.

- Este criptograma estava supostamente no interior do frasco de vidro.

- Como sabe isso? - questionou Malone.

- Para se saber é preciso compreender Saunière.

- Tem toda a nossa atenção.

- Durante a vida de Saunière nunca se escreveu uma linha sobre o dinheiro que ele gastou na igreja e nos outros edifícios. Ninguém fora de Rennes sabia sequer que aquilo existia. Quando faleceu em 1917 foi completamente esquecido. Os seus pertences e papéis devem ter sido roubados ou destruídos. Em 19477 a amante vendeu os imóveis a um homem chamado Noël Corbu, e morreu seis anos depois. A suposta história de Saunière, sobre a descoberta de um grande tesouro, apareceu pela primeira nos jornais em 1956. Um jornal local, La Dépêche du Midi, publicou três fascículos que supostamente contavam a história verdadeira. No entanto, a fonte de todo o material era Corbu.

- Também sei disso - afirmou Stephanie. - Tratou de romancear ainda mais a história, modificando tudo. Isso só fez com que o assunto recebesse ainda mais atenção por parte do público e a história ficasse cada vez mais fantasiada.

Claridon assentiu.

- A ficção acabou por suplantar os factos.

- Está a falar dos pergaminhos? - perguntou Malone.

- São um excelente exemplo. Saunière nunca encontrou pergaminhos no pilar do altar. Nunca. Foi Corbu, e os outros, quem acrescentou esse detalhe. Os pergaminhos nunca sequer foram vistos por ninguém, porém os seus textos apareceram publicados em inúmeros livros. Não passou tudo de uma grande mentira e Lars sabia-o.

- Mas Lars publicou os textos dos pergaminhos nos seus livros - argumentou Malone.

- Falámos sobre isso. Tudo o que ele disse foi: «As pessoas gostam de um bom mistério.» Mas eu sei que isso também o incomodava.

Por esta altura, Malone já estava a ficar confuso.

- Então a história de Saunière é mentira? Claridon acenou afirmativamente com a cabeça.

- A versão moderna é falsa. A maioria dos livros escritos sobre o assunto também relaciona Saunière com os quadros de Nicolas Poussin, em especial Os Pastores da Arcádia. Segundo os relatos da época, o abade teria levado os dois pergaminhos para Paris em 1893 para que fossem decifrados e, uma vez aí, comprara no Louvre uma cópia desse quadro e duas outras. O problema é que nessa altura o Louvre não vendia cópias de quadros e não existem sequer registos de que Os Pastores da Arcádia estivesse no Louvre em 1893. A verdade é que os homens que propagaram esta mentira não estavam preocupados com os erros e partiram do pressuposto que ninguém iria verificar os factos. Durante algum tempo ninguém o fez.

Malone apontou para o criptograma.

- Onde é que Lars encontrou isto?

- Corbu escreveu um manuscrito sobre Saunière.

Algumas das palavras contidas nas oito páginas do diário enviadas a Ernst Scoville vieram-lhe à memória. Aquilo que Lars escrevera sobre a amante do abade. «A certa altura ela revelou a Noël Corbu um dos esconderijos de Saunière. Corbu escreveu sobre isto no manuscrito que eu consegui encontrar.»

- Enquanto, por um lado, se dedicava a contar aos jornalistas a história ficcionada de Rennes, por outro, detalhou de forma minuciosa no seu manuscrito a história verdadeira, tal como a amante de Saunière a contou.

Malone recordou-se de outras passagens do diário de Lars. «Corbu nunca revelou o que descobriu, se é que descobriu alguma coisa. Todavia, o manancial de informações contido no seu manuscrito faz-me pensar onde terá descoberto tudo o que escreveu.»

- É claro que Corbu nunca deixou que ninguém lesse o seu manuscrito, uma vez que a verdade não era tão cativante quanto a mentira. Morreu no final dos anos sessenta de acidente de automóvel e o seu manuscrito desapareceu. Lars conseguiu encontrá-lo.

Malone estudou as filas de letras e símbolos do criptograma.

- Então o que é isto? Alguma espécie de código?

- Sim, e bastante comum nos séculos XVIII e XIX. São letras e símbolos dispostos ao acaso numa grelha. Algures por entre todo esse caos está a mensagem. Básico, simples e, para a época, bastante difícil de decifrar. Ainda hoje o é, sem a chave.

- Como assim?

- é necessária uma sequência numérica para encontrar as letras certas e ordenar a mensagem. Às vezes, para tornar a coisa ainda mais confusa, o ponto de início na grelha também era alterado.

- Lars conseguiu decifrar isto? - perguntou Stephanie. Claridon abanou a cabeça.

- Não foi capaz. E isso deixava-o bastante frustrado. No entanto, nas semanas que antecederam a sua morte, pensou ter descoberto uma nova pista.

A paciência de Malone começava a esgotar-se.

- Presumo que não lhe terá dito do que se tratava.

- Não disse. Ele era assim.

- Então o que fazemos agora? Indique o caminho, como deveria.

- Regresse aqui ao sanatório às cinco da tarde e espere por mim na estrada junto ao edifício principal. Eu vou ter consigo.

- E como vai sair?

- Ninguém ficará triste de me ver partir.

Malone e Stephanie olharam um para o outro. Estaria certamente a considerar, tal como ele, se fariam bem em seguir as indicações de Claridon. Até àquele momento a viagem estivera recheada de perigos e pessoas perigosas ou excêntricas, para já não falar de especulações desenfreadas. Mas alguma coisa se passava e, se queriam saber mais, teriam de aceitar as regras que aquele estranho homem ditava.

Apesar disso, queria saber.

- Onde vamos?

Claridon voltou-se para a janela e apontou para oeste. Ao longe, a quilómetros de distância, numa colina sobranceira a Avinhão, erguia-se um palácio de muralhas douradas que se destacava na paisagem pela sua imponência.

- Ao Palais des Papes - respondeu Claridon.

Ao Palácio dos Papas.

 

Abbaye des Fontaines

O senescal observou os olhos de Geoffrey e viu ódio. Nunca antes vira aquele sentimento no seu assistente.

- Avisei o nosso novo mestre - disse Geoffrey enterrando ainda mais o cano da arma no pescoço de De Roquefort - que o melhor era estar quieto ou eu disparava.

O senescal aproximou-se e espetou um dedo sob o manto branco, no colete à prova de bala.

- Se não tivéssemos sido nós a começar o tiroteio, teria sido você, não era? A ideia era morrermos enquanto fugíamos. Dessa maneira, o seu problema ficaria resolvido. Eu era eliminado e você ficava como o salvador da Ordem. - De Roquefort permaneceu em silêncio. - Foi por isso que veio sozinho. Para terminar o trabalho sem testemunhas. Eu vi-o fechar a porta do dormitório.

- Temos de ir - avisou Geoffrey.

Apercebeu-se do perigo que aquela empresa envolveria, mas duvidou que algum dos irmãos pusesse a vida do mestre em risco.

- Para onde vamos?

- Eu mostro-lhe.

Mantendo a arma encostada ao pescoço de De Roquefort, Geoffrey conduziu o refém através do dormitório. O senescal manteve a arma preparada e, ao chegarem à porta, abriu o trinco. No corredor estavam cinco homens armados. Ao verem o seu líder em perigo, levantaram as armas, prontos para dispararem.

- Baixem as armas - gritou De Roquefort.

Nenhum deles obedeceu.

- Ordeno-vos que baixem as armas. Não quero mais derramamento de sangue.

A atitude corajosa produziu o efeito desejado.

- Afastem-se - disse Geoffrey.

Os irmãos recuaram uns quantos passos.

Geoffrey fez sinal com a arma, e ele e De Roquefort avançaram para o corredor. O senescal seguiu-os. Ao longe escutaram-se os sinos. Era uma da tarde. As orações não tardariam a terminar e os corredores iriam encher-se novamente de irmãos.

- Temos de nos apressar - avisou o senescal.

Sem largar o refém, Geoffrey avançou pelo corredor. O senescal protegia a retaguarda com os olhos postos nos cinco homens.

- Fiquem aqui - ordenou o senescal.

- Façam o que ele diz - gritou De Roquefort, quando dobravam a esquina.

De Roquefort estava curioso por saber de que modo planeavam eles deixar a abadia. O que dissera Geoffrey? «Eu mostro-lhe.» Decidiu que a única maneira de descobrir alguma coisa era acompanhá-los, razão pela qual dissera aos seus homens para se afastarem.

O senescal acertara-lhe duas balas no peito e se não tivesse sido rápido, uma terceira tê-lo-ia atingido na cabeça. A parada subira. Os seus raptores pareciam ter uma missão a cumprir, algo que ele acreditava envolver o seu antecessor e sobre a qual precisava de saber mais. A viagem à Dinamarca não produzira grandes resultados e até agora nada se sabia de Rennes-le-Château. Embora tivesse conseguido desacreditar o anterior mestre, o velho poderia muito bem ter guardado para si mesmo a última gargalhada.

Também não lhe agradava nada o facto de dois homens terem sido feridos. Não era a melhor maneira de começar o seu mandato.

Os irmãos empenhavam-se em manter a ordem e o caos era visto como fraqueza. A última vez que a violência invadira a abadia fora quando a populaça em fúria tentara arrombar os portões, durante a Revolução Francesa, mas depois de alguns terem morrido acabaram por retirar. A abadia era um local de tranquilidade e refúgio. A violência era ensinada - e por vezes utilizada -, mas sempre doseada com disciplina. O senescal demonstrara uma total ausência de disciplina. Aqueles que ainda podiam ser-lhe fiéis, por certo não perdoariam esta violação da Regra.

Apesar disso, para onde iriam aqueles dois?

Continuaram a percorrer os corredores, passaram pelas oficinas, pela biblioteca e por mais corredores vazios. Conseguia ouvir passos atrás deles. Os cinco homens continuavam a segui-los, prontos para agir assim que tivessem oportunidade. Pagariam bem caro se algum deles interferisse antes de uma ordem sua.

Pararam frente a uma porta com letras gravadas e uma simples maçaneta de ferro.

Os aposentos.do mestre.

O seu quarto.

- Ali dentro - disse Geoffrey.

- Porquê? - perguntou o senescal. - Ficaremos encurralados.

- Entre, por favor.

O senescal abriu a porta e depois de entrarem trancou-a.

De Roquefort estava espantado.

E curioso.

O senescal mostrava-se preocupado. Estavam presos no quarto do mestre. A única saída era uma pequena janela que dava apenas para o ar. Limpou as gotas de suor que lhe caíam da testa e chegavam aos olhos.

- Sente-se - disse Geoffrey para De Roquefort, e este puxou a cadeira para junto da secretária.

O senescal observou a divisão.

- Vejo que já fez mudanças.

Havia mais cadeiras junto às paredes e uma mesa onde antes não existia nada. A colcha da cama era diferente, assim como os objectos sobre as mesas e a secretária.

- Esta agora é a minha casa - explicou De Roquefort.

Reparou na folha de papel sobre a secretária, escrita com a caligrafia do seu mentor. Era a mensagem para o sucessor, exigida pela Regra. Pegou nela e leu.

- Acredita mesmo que aquilo que considera eterno não irá um dia perecer? Deposita toda a esperança neste mundo e coloca o seu Deus nesta vida. Isso irá ditar o seu próprio fim. Vive na escuridão e na morte, ébrio de poder e repleto de ódio. O seu espírito foi consumido pelo fogo que queima dentro de si e regozija com a humilhação e derrota dos seus inimigos. As trevas irão envolvê-lo, pois trocou a liberdade pela escravidão. Irá falhar, tenho a certeza.

- O seu mestre considerava relevantes as passagens do Evangelho de Tomé - comentou De Roquefort. - E pelos vistos acreditava que seria eu, e não você, a usar o manto branco após a sua morte. Não me parece que essas palavras se destinem ao seu escolhido.

Isso era verdade.

Interrogou-se por que teria o seu mestre demonstrado tão pouca fé em si, especialmente quando, horas antes da sua morte, o encorajara a procurar obter o cargo.

- Devia seguir as palavras dele - disse a De Roquefort.

- Não passam de conselhos de um homem fraco.

Alguém bateu à porta.

- Mestre, está aí?

A menos que os irmãos planeassem arrombar a porta, não havia grande perigo de as pesadas trancas serem forçadas. De Roquefort olhou-o.

- Responda - ordenou o senescal.

- Estou bem. Afastem-se.

Geoffrey deslocou-se até à janela e observou a queda de água que dividia o desfiladeiro.

De Roquefort cruzou as pernas e recostou-se na cadeira.

- O que pretendem? Isto é ridículo.

- Cale-se - advertiu o senescal, embora se perguntasse a mesma coisa.

- O mestre deixou mais palavras - disse Geoffrey do outro extremo do quarto.

Ele e De Roquefort voltaram-se para o homem mais jovem e este meteu a mão no bolso da sotaina, e retirou um envelope.

- Esta é a sua derradeira mensagem.

- Dê-me isso imediatamente - ordenou De Roquefort, levantando-se da cadeira.

Geoffrey apontou-lhe a arma.

- Sente-se.

De Roquefort permaneceu de pé e Geoffrey pressionou o gatilho e apontou para as pernas do novo mestre.

- O colete não lhe servirá de nada.

- Seria capaz de me matar?

- Coloco-o numa cadeira de rodas.

De Roquefort sentou-se.

- O seu compatriota é muito corajoso - disse ele para o senescal.

- É um irmão do Templo.

- É uma pena que nunca venha a fazer o voto.

Se com aquelas palavras pretendia provocar Geoffrey, não conseguiu.

- Não vão conseguir sair daqui - disse De Roquefort.

O senescal observou o seu aliado. Geoffrey olhava pela janela, como se esperasse por alguma coisa.

- Vai ser um prazer castigar-vos - comentou De Roquefort.

- Já lhe disse para estar calado - ordenou o senescal.

- O vosso mestre achava-se muito esperto, mas não era.

Pressentia que De Roquefort tinha algo mais para contar.

- Muito bem, diga o que tem para dizer. O que é?

- O Grande Legado. Foi o que o consumiu e aos outros mestres. Todos queriam encontrá-lo, mas nenhum foi capaz. O vosso mestre passou muito tempo a pesquisar o assunto e o seu amigo ali ajudou-o. O senescal olhou de soslaio para Geoffrey, mas este não se desviou da janela.

- Pensei que estivesse perto de o encontrar. Foi o que disse no conclave.

- E estou.

O senescal não acreditou naquelas palavras.

- O seu jovem amigo e o falecido mestre fizeram uma bela equipa. Fiquei a saber que recentemente vasculharam os nossos registos com um entusiasmo reforçado, o que suscitou o meu interesse.

Geoffrey virou-se e atravessou o quarto furioso, enquanto voltava a guardar o envelope na sotaina.

- Não vai saber de nada. - Quase que gritava. - O que houver para encontrar não será para si.

- A sério? - perguntou De Roquefort. - E o que vão encontrar?

- O triunfo não pertencerá a pessoas como o senhor. O mestre tinha razão. A sua alma está repleta de ódio e ébria de poder.

De Roquefort observou Geoffrey com uma expressão séria.

- Tu e o mestre descobriram qualquer coisa, não foi? Eu sei que enviaram duas encomendas pelo correio e até sei para quem. Já tratei de um dos destinatários e em breve tratarei do outro. Não tardarei a saber aquilo que tu e ele sabiam.

Geoffrey bateu com a coronha da arma na cabeça de De Roquefort. O mestre estremeceu, rolou os olhos para cima e depois caiu inanimado no chão.

- Isso era mesmo necessário? - perguntou o senescal.

- Ele devia ficar contente por não o ter matado, mas o mestre fez-me prometer que não fazia mal a este palerma.

- Tu e eu temos de ter uma conversa séria.

- Com certeza, mas agora temos de sair daqui.

- Não creio que os irmãos do outro lado da porta nos permitam sair.

- Não temos de nos preocupar com eles.

- Conheces outra saída? - questionou o senescal, pressentindo qualquer coisa.

Geoffrey sorriu.

- O mestre explicou-me tudo.

 

Abba des Fontaines, 14 h 05 m

De Roquefort abriu os olhos. Doía-lhe a cabeça e jurou que Geoffrey pagaria por tudo aquilo. Levantou-se do chão e esperou que o quarto parasse de rodopiar. Escutou gritos do outro lado da porta. Limpou a têmpora com a manga e viu que sangrava.'Arrastou-se até à casa de banho e lavou a ferida com um pouco de água.

Respirou fundo e endireitou-se. Tinha de parecer forte e no comando da situação. Atravessou o quarto lentamente e abriu a porta.

- Mestre, está bem? - perguntou o seu novo marechal.

- Entra - pediu ele.

Os outros quatro irmãos ficaram no corredor. Sabiam bem que não deviam entrar nos aposentos do mestre sem autorização.

- Fecha a porta.

O marechal obedeceu.

- Deixaram-me inconsciente. Há quanto tempo eles saíram?

- Já há uns bons vinte minutos que não se ouve nada aqui dentro. Foi isso que nos fez temer o pior.

- O que queres dizer com isso? O marechal olhou-o espantado.

- Silêncio. Nada.

- Para onde foram o senescal e o irmão Geoffrey?

- Mestre, eles estavam aqui consigo. Nós estávamos lá fora.

- Olha em volta. Já aqui não estão. Quando saíram?

Encolheu os ombros.

- Não passaram por nós.

- Estás a dizer-me que aqueles dois não saíram pela porta?

- Se o tivessem feito, nós teríamos disparado, tal como tinha ordenado.

A cabeça começou-lhe novamente a doer. Interrogou-se o que levara Geoffrey a escolher aquela sala, da qual parecia não terem saída.

- Chegaram informações de Rennes-le-Château - disse o marechal.

Essa revelação aguçou-lhe o interesse.

- Os nossos dois irmãos mostraram-se e Malone, tal como previsto, deixou-os para trás na estrada.

Deduzira que a melhor maneira de seguir Stephanie Nelle e Cotton Malone era fazendo-os acreditar que estavam livres dos seus perseguidores.

- E o atirador no cemitério a noite passada?

- A pessoa fugiu numa mota. Os nossos homens viram Malone persegui-la. Esse incidente e o ataque aos nossos irmãos em Copenhaga estão por certo relacionados.

De Roquefort concordava.

- Fazem ideia de quem era?

- Ainda não.

Aquela resposta não lhe agradou.

- E hoje? Malone e Stephanie foram onde?

- O dispositivo electrónico que colocámos no automóvel de Malone funcionou na perfeição. Continuaram até Avinhão e acabaram de deixar o sanatório onde Royce Claridon está internado.

Conhecia bem Claridon e não acreditava nem por um instante que o homem fosse doente mental, razão pela qual arranjara um informador no interior do sanatório. Há um mês, quando o mestre enviara Geoffrey a Avinhão para despachar a encomenda para Stephanie Nelle, pensara que podia ter havido algum contacto, mas Geoffrey não entrara no sanatório. Suspeitava que a segunda encomenda, enviada a Ernst Scoville em Rennes e sobre a qual pouco sabia, fora o que levara Stephanie Nelle e Malone a visitar Claridon. Uma coisa era certa, Lars Nelle e Claridon tinham trabalhado em conjunto e quando o filho resolveu prosseguir a missão do pai, após a sua morte, Claridon também o auxiliara. O mestre descobrira tudo e agora a viúva de Lars Nelle também o procurara. Estava na altura de resolver aquele problema.

- Partirei para Avinhão daqui a trinta minutos. Prepara um contingente de quatro irmãos. Mantenham a vigilância electrónica e digam aos nossos homens para se manterem afastados. O equipamento tem um raio de acção Alargado, tirem partido disso.

No entanto, havia ainda um outro assunto por resolver. Olhou em redor do quarto e disse:

- Podes sair.

O marechal fez uma vénia e retirou-se.

De Roquefort levantou-se, ainda meio zonzo, e estudou a divisão. Duas das paredes eram de pedra e as restantes duas estavam revestidas por painéis de madeira de bordo colocados simetricamente. Havia um armário decorativo e um aparador, uma arca e uma mesa com cadeiras. Contudo, o seu olhar dirigiu-se para a lareira. Parecia o lugar mais lógico. Sabia que em tempos antigos poucos eram os quartos que possuíam apenas uma entrada e uma saída. Aquele quarto em particular servia como aposento dos mestres desde o século XVI e, se a memória não lhe falhava, a lareira era um acrescento do século XVII que viera substituir um antigo fogão de pedra.

Agora raramente era utilizada, desde que tinham instalado aquecimento central por toda a abadia.

Aproximou-se da armação de madeira e estudou os seus desenhos, depois examinou cuidadosamente a boca da lareira, reparando numas linhas brancas que se estendiam na perpendicular em direcção à parede.

Agachou-se e olhou a soleira escura. Com a mão em concha apalpou a chaminé.

E encontrou.

Uma maçaneta de vidro.

Tentou rodá-la, mas nada se mexeu. Empurrou para cima depois para baixo e nada. Foi então que resolveu puxar e a maçaneta cedeu. Não muito, apenas alguns centímetros, e ouviu um estalido mecânico. Largou-a e sentiu os dedos escorregadios. Óleo. Alguém pensara em todos os detalhes.

Olhou para a lareira com atenção.

Havia uma fenda da altura da parede. De Roquefort empurrou e o painel de pedra oscilou para dentro. A abertura era suficientemente larga para permitir a entrada e ele agachou-se e avançou. Para lá do portal ficava uma passagem com a altura de um homem.

Ergueu-se.

O estreito corredor levava a uma escada de pedra em caracol. Não fazia ideia onde ia dar. Não tinha dúvidas que existiam outras entradas e saídas espalhadas pela abadia. Apesar de ocupar o cargo de marechal há vinte e dois anos, nunca soubera de nenhuma passagem secreta.

Porém, o mestre conhecia a sua localização e fora assim que Geoffrey também soubera.

Bateu com o punho na parede e libertou a raiva que sentia. Tinha de encontrar o Grande Legado. Toda a sua capacidade de governar dependia desse achado. O mestre guardara consigo o diário de Lars Nelle, e De Roquefort sempre soubera desse facto, porém nunca o conseguira obter. Pensara que com a morte do velho a sua oportunidade acabaria por chegar, mas o mestre antecipara a sua jogada e enviara o manuscrito a terceiros. Agora a viúva de Lars Nelle e um antigo empregado - um agente governamental

- haviam-se aliado a Royce Claridon e ele não iria beneficiar com essa associação.

Acalmou-se.

Trabalhara durante anos na sombra do mestre. Agora era ele o mestre e não ia deixar que um fantasma ditasse os seus caminhos.

Respirou fundo umas quantas vezes e pensou no início da Ordem. Corria o ano de 1118, a Terra Santa havia finalmente sido ganha aos sarracenos e os reinos cristãos começavam a estabelecer-se. No entanto, havia ainda um outro perigo. Nove cavaleiros resolveram então juntar-se e prometer ao novo rei cristão de Jerusalém que o caminho para a Terra Santa seria seguro para os peregrinos. Mas como haviam conseguido nove homens de meia-idade, votados à pobreza, proteger a extensa e perigosa estrada de Jaffa para Jerusalém? Ainda mais estranhos tinham sido os primeiros dez anos da irmandade. As Crónicas não registavam a entrada de mais nenhum cavaleiro e não falavam de ajudas a peregrinos. Em vez disso, os nove irmãos ocuparam o tempo com uma tarefa mais importante. O seu quartel-general situava-se por baixo do antigo templo, numa área que em tempos fora ocupada pelos estábulos do rei Salomão. Era uma câmara com incontáveis arcos e abóbadas, tão grande que chegara a albergar dois mil animais. No seu interior descobriram passagens subterrâneas abertas na rocha, muitas das quais continham rolos de pergaminhos com escrituras, tratados e escritos sobre arte e ciência. Para já não falar da mais importante das descobertas.

As escavações absorveram toda a atenção e dedicação dos nove cavaleiros. Mais tarde, em 1127, colocaram a sua preciosa carga em barcos e zarparam para França. Aquilo que encontraram trouxe-lhes fama, riqueza e poderosas alianças. Muitos queriam fazer parte do seu movimento e, em 1128, dez anos após a sua fundação, os templários conseguiram do papa uma autonomia legal sem precedentes em todo o mundo ocidental.

E tudo por causa do que sabiam.

Todavia, sempre foram cuidadosos com esse conhecimento e apenas aqueles que ascendiam ao mais alto dos cargos tinham o privilégio de se tornar seus possuidores. Há séculos, o dever do mestre era passar esse conhecimento ao próximo antes de falecer. Porém, isso acontecera antes da Expulsão. Após essa época, todos os mestres o haviam procurado sem sucesso.

Voltou a bater com o punho na parede.

Os templários tinham traçado o seu destino em cavernas escuras e com a determinação de quem acreditava na sua causa. Ele faria o mesmo. O Grande Legado estava escondido algures e ele estava perto de o conseguir. Sentia-o. E todas as respostas residiam em Avinhão.

 

Avinhão, 17 h 00 m

Malone parou o carro. Royce Claridon estava à espera na beira da estrada, a sul do sanatório, tal como garantira. A barba mal cortada desaparecera, assim como as calças e a camisola manchadas de tinta. Tinha o rosto barbeado e as unhas arranjadas. Vestia umas calças de ganga e uma camisa. O seu cabelo comprido estava penteado para trás e apanhado num rabo-de-cavalo e havia vigor na sua passada.

- Sabe bem não ter aquela barba mal amanhada - confessou ele, ao entrar para o banco traseiro. - Para fazer de conta que sou um templário, tenho de me parecer com um. Eles não tomavam banho. A Regra não permitia. Não podia haver nudez entre os irmãos. Deviam ser um grupo muito malcheiroso.

Malone engatou a primeira e seguiu em direcção à estrada principal. Nuvens de trovoada começavam a amontoar-se. Pelos vistos, o tempo que fazia em Rennes-le-Château estava a chegar ali. Ao longe os relâmpagos rasgavam o céu, seguidos por trovões. Ainda não chovia, mas não iria demorar muito. Trocou um olhar rápido com Stephanie e ela percebeu que o homem sentado atrás de si ainda tinha de responder a muitas perguntas.

Ela voltou-se para trás.

- Sr. Claridon...

- Por favor, chame-me Royce, madame.

- Muito bem, Royce. Pode contar-nos mais sobre o que Lars pensava de tudo isto? Era importante saber.

- A senhora não sabe?

- Lars e eu não trocámos muitas palavras nos anos anteriores à sua morte. Mas li recentemente os seus livros e o diário.

- Posso então perguntar o que faz aqui? Ele já morreu há muito tempo.

- Digamos que gosto de pensar que Lars ficaria feliz por ver o seu trabalho terminado.

- Isso é bem verdade. O seu marido era um académico brilhante. As suas teorias estavam bem fundamentadas e acredito que teria tido sucesso, caso não tivesse morrido.

- Fale-me dessas teorias.

- Ele estava a seguir a pista de Saunière. O padre era esperto. Por um lado, não queria que ninguém descobrisse o que sabia, por outro, fartou-se de deixar pistas. - Claridon abanou a cabeça. - Diz-se que contou tudo à amante, mas ela faleceu sem nunca revelar uma única pista. Antes de morrer, Lars pensou que tinha finalmente feito alguns progressos. Conhece a história toda? A verdadeira?

- Lamento dizer que o que sei desse assunto está limitado ao que Lars escreveu nos seus livros. Mas havia muitas referências interessantes no seu diário que nunca foram publicadas.

- Posso ver essas páginas?

Stephanie folheou o caderno de apontamentos e estendeu-o a Claridon. Malone observou pelo espelho retrovisor enquanto o homem lia com interesse as páginas que ela lhe indicara.

- Que maravilha - disse Claridon.

- Pode explicar? - pediu Stephanie.

- Com certeza. Como disse esta tarde, a ficção que Nõël Corbu e outros arquitectaram sobre Saunière era misteriosa e excitante. Todavia, para mim e para Lars, a verdade era bem mais mirabolante.

Saunière admirou o novo altar da sua igreja, satisfeito com a restauração. A outra monstruosidade de mármore jazia agora amontoada nas traseiras e os pilares seriam reutilizados. O novo altar era de uma beleza ímpar. Há três meses, em Junho, organizara uma elaborada comemoração. Os homens da aldeia haviam transportado uma estátua da Virgem numa procissão solene através de Rennes, terminando esta na igreja onde a estátua fora colocada sobre um dos pilares descartados no cemitério. Para comemorar a ocasião, mandara esculpir PENITENCE, PENITENCE numa das faces do pilar - para recordar aos seus paroquianos a importância da humildade - e MISSION 1891 para imortalizar o ano do seu sucesso colectivo.

O telhado da igreja já remendado e as paredes exteriores escoradas. O antigo púlpito seguira o mesmo caminho do altar e um novo estava já a ser construído. Em breve seria instalado um chão de ladrilhos e depois novos bancos. Todavia, antes de tudo isso, a subestrutura do chão necessitava de obras. A água que durante anos pingara do telhado tinha desgastado muitos dos pilares de base. Alguns puderam ser restaurados, mas outros teriam de ser substituídos.

Lá fora espreitava uma manhã de Setembro molhada e cinzenta, e graças ao mau tempo conseguira reunir a ajuda de meia dúzia de locais. O seu trabalho consistia em partir as lajes e colocar outras novas antes de os ladrilhadores chegarem daí a duas semanas. Tinha homens a trabalhar em três zonas separadas da igreja e ele próprio estava a tentar consertar uma pedra empenada imediatamente antes dos degraus do altar, pedra essa que sempre oscilara.

Continuava intrigado com o frasco de vidro que encontrara no início do ano. Quando derreteu a cera que o selava e retirou o papel enrolado, descobriu não uma mensagem, mas uma grelha com duzentos e sessenta quadrados com letras e símbolos. Ao mostrar o seu achado ao abade Gélis, o padre de uma aldeia vizinha, este disse-lhe que se tratava de um criptograma e que algures por entre o caos de letras se encontrava uma mensagem. Tudo o que precisava era da chave matemática para a decifrar. Contudo, após meses de tentativas não tivera qualquer sucesso. Queria saber não apenas o seu significado, mas também por que razão havia sido escondida ali. Era óbvio que a mensagem devia ser de grande importância e ele tinha de ser paciente. Era isso que dizia a si mesmo todas as noites, sempre que não conseguia descobrir a resposta para aquele enigma.

Pegou num martelo de cabo curto e decidiu experimentar se a grossa pedra do chão podia ser partida. Quanto mais pequenos fossem os pedaços, mais fácil seria transportá-los. Ajoelhou-se e aplicou três golpes fortes numa das pontas da pedra que de imediato se rachou. Mais umas pancadas e começou a partir.

Colocou o martelo de lado e agarrou numa barra de ferro para soltar os pedaços. Encaixou uma das pontas numa fenda mais larga, fez força e arrancou um bocado que empurrou para o lado com o pé.

Foi então que reparou em algo.

Deitou a barra de ferro para o chão e aproximou o candeeiro a petróleo do achado. Agachou-se, afastou o entulho e reparou que estava na presença de uma dobradiça. Aproximou-se mais e limpou os restantes pedaços, expondo mais ferro ferrugento.

A forma tornou-se cada vez mais clara.

Era uma porta.

E dava acesso a um subterrâneo.

O que haveria lá em baixo?

Olhou em redor. Os outros homens continuavam atarefados, a falarem entre si. Colocou o candeeiro no chão e voltou a tapar a cavidade com as pedras.

- O abade não queria que ninguém soubesse da sua descoberta - disse Claridon. - Primeiro o frasco de vidro e agora a porta. Aquela igreja estava repleta de mistérios.

- Mas uma porta para onde? - perguntou Stephanie.

- Essa é a parte interessante. Lars nunca me contou tudo, mas depois de ler o diário começo a entender.

Saunière retirou o último dos pedaços de pedra que deixara a tapar a porta no chão. O Sol já se pusera há algumas horas e a igreja encontrava-se fechada. Tinha passado o dia a pensar no que estaria para lá daquela porta, mas não dissera uma palavra sobre o assunto aos trabalhadores. Limitara-se a agradecer-lhes pela ajuda e explicara que iria precisar de uns dias de descanso e que por isso só voltaria a precisar deles na próxima semana. Não confiara sequer na amante, dizendo-lhe apenas que queria inspeccionar a igreja antes de se deitar. A chuva batia forte no telhado.

À luz do candeeiro a petróleo avaliou que a porta de ferro devia ter cerca de um metro de altura por um metro de largura e não possuía fechadura. Felizmente, a moldura era de pedra, mas as dobradiças preocupavam-no e fora por isso que trouxera um frasco com óleo. Não era o melhor dos lubrificantes, mas foi o que conseguiu arranjar em tão pouco tempo.

Molhou as dobradiças com o óleo e esperou que o tempo soltasse o que há muito segurava. Depois encaixou a ponta da barra de ferro numa das esquinas da porta e puxou para cima.

A porta não se mexeu.

Aplicou um pouco mais de força e as dobradiças começaram a ceder.

Utilizou a barra de ferro como alavanca e depois recorreu a mais um pouco de óleo. Após várias tentativas, as dobradiças chiaram e a porta abriu-se, virada para o tecto.

Com o candeeiro a petróleo iluminou a abertura.

Uma escada de pedra com cinco metros terminava num tosco chão de pedra.

Saunière sentiu-se invadido por uma sensação de ansiedade e excitação. Já ouvira outros padres falarem sobre os seus achados. A maior parte provinha da época da Revolução, quando os párocos escondiam as suas relíquias, ícones religiosos e decorações valiosas das pilhagens dos republicanos. Muitas das igrejas do Languedoc tinham sido vítimas dessa catástrofe. Todavia, a igreja de Rennes-le-Château estava num estado tal de degradação que não havia nada para pilhar.

Talvez nenhum deles tivesse razão.

Testou o primeiro degrau e concluiu que tinham sido talhados na mesma rocha das fundações da igreja. Com o candeeiro na mão, desceu, enquanto olhava para um espaço rectangular também ele escavado na rocha. Uma arcada dividia a sala em duas. Não demorou a ver os ossos. Nas paredes havia pequenos nichos, cada um contendo um esqueleto com o que lhes restava de roupas, sapatos e espadas.

Aproximou a luz de alguns dos túmulos e viu que possuíam o nome gravado na pedra. Eram todos d'Hautpoul. As datas iam do século XVI ao século XVIII. Contou vinte e três esqueletos. Sabia muito bem de quem se tratava. Eram os senhores de Rennes.

Do outro lado do arco central, uma arca colocada ao lado de um pote de ferro chamou-lhe a atenção.

Com o candeeiro na frente a iluminar o caminho, aproximou-se e ficou espantado ao reparar que algo brilhava. A princípio pensou que talvez estivesse a ver mal, mas não tardou a aperceber-se que aquela visão era real.

Agachou-se.

O pote de ferro estava cheio de moedas. Retirou uma e viu que eram de ouro e francesas, muitas com a data de 1768. Pouco sabia do seu verdadeiro valor, mas devia ser razoável. Era difícil avaliar quantas estariam ali, porém quando tentou levantar o pote este não se mexeu nem um centímetro.

Virou a sua atenção para a arca e constatou que não se encontrava trancada. Empurrou a tampa para trás e viu que estava cheia. De um lado havia livros com capas de couro e do outro algo embrulhado num tecido impermeável. Tocou-lhe com a ponta do dedo e determinou que, o que quer que estivesse ali dentro, era pequeno, duro e parecia ser algo em grande quantidade. Pousou o candeeiro no chão e afastou uma das pontas do tecido.

Algo voltou a brilhar.

Diamante.

Abriu o resto do tecido e ficou de boca escancarada. Eram jóias.

Não tinha dúvidas, os republicanos haviam revelado a sua idiotice ao deixarem para trás a decadente igreja de Rennes-le-Château. Ou talvez a pessoa, ou pessoas, que tinham escolhido aquele esconderijo teriam sido demasiado espertas.

- A cripta existia - afirmou Claridon. - No diário que aí tem, diz que Lars encontrou um registo paroquial, dos anos de 1694 a 1726, que menciona a cripta, no entanto não faz qualquer referência à entrada. Saunière anotou no seu diário que descobrira um túmulo. Depois escreveu numa outra entrada: «O ano de 1891 representa o ponto mais alto daquilo de que se fala.» Lars sempre achou essa entrada importante.

Malone parou o automóvel na berma da estrada e voltou-se para Claridon.

- Então o ouro e as jóias foram a fonte de rendimentos de Saunière. Foi isso que ele utilizou para financiar as obras de restauração da igreja?

Claridon soltou uma gargalhada.

- Ao princípio, sim, mas a história é mais longa.

Saunière ergueu-se.

Nunca antes vira tanta riqueza junta. Contudo, precisava de transportar tudo aquilo dali sem levantar suspeitas e, para o fazer, necessitava de tempo. Mais ninguém podia descobrir a cripta.

Dobrou-se, pegou no candeeiro e decidiu que o melhor seria começar naquela noite. Podia remover o ouro e as jóias, e esconder ambos no presbitério. Pensaria depois na melhor forma de os converter em dinheiro. Dirigiu-se às escadas e observou o lugar mais uma vez.

Um dos túmulos chamou-lhe a atenção.

Deslocou-se até lá e constatou que o nicho continha uma mulher. O vestido tapava apenas ossos. Aproximou o candeeiro e leu a inscrição:

MARIE D'HAWPOUL DE BLANCHEFORT

Já ouvira falar da condessa. Era a última herdeira dos d'Hautpoul. Quando falecera, em 1781, o controlo da aldeia e das terras circundantes deixara de pertencer à família-A Revolução, que chegaria uma dúzia de anos mais tarde, iria acabar com todos os domínios da aristocracia.

No entanto, havia um problema.

Subiu rapidamente para o piso térreo. No exterior, trancou as portas da igreja e, sob a chuva torrencial, correu até ao cemitério e contornou as campas.

Parou junto àquela que procurava e com a ajuda do candeeiro leu a inscrição.

- Marie d'Hautpoul de Blanchefort também estava sepultada no exterior da igreja - esclareceu Claridon.

- Duas sepulturas para a mesma mulher? - questionou Stephanie.

- Pelos vistos. Todavia, o corpo encontrava-se na cripta.

Malone recordou-se da história que Stephanie lhe contara no dia anterior sobre Saunière e a amante terem remexido nas campas do cemitério e depois apagado a inscrição na lápide da condessa.

- Então Saunière abriu a campa no cemitério.

- Lars acreditava que sim.

- E estava vazia?

- Nunca saberemos, mas Lars era dessa opinião. A história também parece apoiar essa conclusão. Uma mulher da importância da condessa nunca teria sido enterrada, mas sim colocada numa cripta, lugar onde o corpo foi de facto encontrado. A campa exterior era algo muito diferente.

- A lápide continha uma mensagem - explicou Stephanie.

- Sabemos disso. É por isso que o livro de Eugène Stüblein é tão importante.

- Exacto, mas a menos que se conheça a história da cripta, a campa no cemitério não passa de outro memorial. O abade Bigou era um homem esperto. Escondeu a mensagem à vista de todos.

- E Saunière descobriu-a? - perguntou Malone.

- Lars achava que sim.

Malone voltou a pôr o carro em andamento. Dirigiram-se para o último troço da estrada, e depois viraram para oeste e atravessaram o Ródano. Ao fundo erguiam-se as muralhas fortificadas de Avinhão e o palácio papal. Malone entrou na antiga cidade, e passou pela mesma praça que albergava a feira do livro que tinham visitado ao início do dia. Seguiu em direcção ao palácio e estacionou no mesmo parque subterrâneo.

- Tenho uma pergunta idiota - confessou Malone. - Mas por que razão é que ninguém escava por baixo da igreja de Rennes ou se utiliza um qualquer meio electrónico para estudar a cripta?

- As autoridades locais não o permitem. Veja bem, se nada lá for encontrado o que acontecerá a todo o mistério? Rennes vive da lenda de Saunière e toda a região do Languedoc beneficia disso. A última coisa que eles querem é provas seja do que for. O mito é a sua fonte de riqueza.

Malone meteu a mão por baixo do banco e tirou a arma que retirara ao seu perseguidor na noite anterior.

- Isso é mesmo necessário? - questionou Claridon.

- Sinto-me muito melhor com ela.

Abriu a porta e saiu, escondendo-a por baixo do casaco.

- Por que motivo vamos ao Palácio dos Papas? - perguntou Stephanie.

- É onde está a informação.

- Não se importa de explicar?

Claridon abriu a porta.

- Eu mostro-vos.

 

Lavelanet, França, 19 h 00 m

O senescal parou o carro no centro da vila. Já há cinco horas que ele e Geoffrey viajavam em direcção a norte por uma estrada sinuosa. Haviam intencionalmente evitado os maiores centros habitacionais de Foix, Quillan e Limoux, e optaram por fazer uma paragem num pequeno vilarejo aninhado num vale e visitado por alguns turistas.

Depois de terem deixado os aposentos do mestre, tinham saído por uma passagem secreta junto à cozinha principal, estando o portal escondido numa parede de tijolos. Geoffrey contara-lhe como o mestre lhe ensinara os caminhos, outrora utilizados para fugas. Nas últimas centenas de anos esse conhecimento pertencera apenas aos mestres e fora pouco utilizado.

Assim que chegaram ao exterior, dirigiram-se à garagem e apropriaram-se de um dos vários automóveis da abadia - aproveitando o facto de os irmãos que guardavam o local se encontrarem nas orações do meio-dia. Com De Roquefort inconsciente no quarto e os seus homens à espera que alguém lhes abrisse a porta, tinham conseguido um bom e sólido avanço.

- Chegou a altura de falarmos - disse o senescal. O seu tom de voz deixou claro que não haveria mais adiamentos.

- Estou preparado.

Saíram do carro e caminharam até um café onde uma clientela mais velha enchia a esplanada. Os hábitos tinham sido substituídos por roupas mundanas compradas há uma hora. O empregado veio anotar o pedido. A tarde estava amena e agradável.

- Tem noção do que fizemos? - perguntou. - Ferimos dois irmãos.

- O mestre avisou-me que a violência seria inevitável.

- Sei do que fugimos, mas não faço ideia do que procuramos. Geoffrey levou a mão ao bolso e tirou do interior o envelope que mostrara a De Roquefort.

- O mestre pediu-me para lhe entregar isto assim que estivéssemos livres.

O senescal aceitou o envelope e abriu-o com um misto de nervosismo e ansiedade.

Meu filho, e muitas vezes pensei em ti dessa forma, sabia que De Roquefort iria sair vitorioso do conclave, mas era importante que o desafiasses. Os irmãos irão recordar-se disso quando o teu tempo chegar. Por agora, o teu destino encontra-se noutro lugar. O irmão Geoffrey será o teu companheiro.

Acredito que antes da fuga tenhas conseguido ir buscar os dois volumes que durante os últimos anos prenderam a tua atenção. Sim, apercebi-me do teu interesse e também eu os li há muitos anos. O roubo de propriedade da Ordem é uma violação grave da Regra, mas pensemos nesse acto como um empréstimo, pois tenho a certeza que os irás devolver. A informação neles contida, juntamente com aquilo que já sabes, é de grande importância. Infelizmente, não é suficiente para resolver o enigma. Há muitas mais pistas para descobrir e essa é agora a tua missão. Ao contrário do que possas pensar, eu não possuo a resposta para o mistério. Todavia, é imprescindível que De Roquefort não encontre o Grande Legado. Ele é detentor de muita informação, incluindo tudo aquilo que conseguiste extrair dos nossos registos, por isso não subestimes a sua determinação.

Era importante que deixasses a segurança da vida monástica. Há muita coisa lá fora à tua espera. Embora escreva estas linhas nas minhas últimas semanas de vida, antevejo que a tua saída da abadia não irá ocorrer sem violência. Faz o que for necessário para completares a tua missão. Durante séculos, os mestres têm deixado pistas aos seus sucessores, o meu antecessor não foi excepção. De todos os que vieram antes de mim, só tu possuis as peças suficientes para completares o quebra-cabeças. Gostaria de ter atingido esse objectivo durante o meu tempo de vida, mas infelizmente isso não aconteceu. De Roquefort nunca teria permitido o nosso sucesso. Com a ajuda do irmão Geoffrey podes agora consegui-lo. Desejo-te boa sorte. Tem cuidado contigo e toma conta de Geoffrey. Sê paciente com o rapaz pois ele faz apenas aquilo que lhe pedi.

O senescal olhou para Geoffrey e perguntou curioso:

- Que idade tens?

- Vinte e nove anos.

- És muito novo para tanta responsabilidade.

- Senti medo quando o mestre me disse o que esperava de mim e não queria aceitar a tarefa.

- Mas por que não me contou ele isto tudo directamente?

Geoffrey não respondeu de imediato.

- O mestre disse que o senescal não gostava de controvérsias e evitava os confrontos. Eu acho que ainda não conhece as suas verdadeiras capacidades.

Ficou um pouco magoado com a observação, mas o olhar de inocência e sinceridade de Geoffrey tornou as suas palavras ainda mais importantes. E eram verdadeiras. Nunca procurara um confronto e evitava todos aqueles que os pudessem provocar.

Porém, esses tempos tinham terminado.

Enfrentara De Roquefrot cara a cara e tê-lo-ia morto se o francês não se tivesse desviado a tempo. Desta vez planeava lutar. Pigarreou, tentou esconder a emoção, e perguntou:

- E o que devo fazer agora?

O empregado voltou com duas saladas, pão e queijo.

Geoffrey sorriu.

- Primeiro, comemos. Estou a morrer de fome.

Ele retribuiu o sorriso.

- E depois?

- Só o senescal pode dizer.

Abanou a cabeça ao ouvir aquele voto de fé, mas na verdade já pensara no próximo passo e sabia que só existia um lugar onde poderiam ir.

 

Avinhão, 17 h 30 m

Malone contemplou o Palácio dos Papas que se erguia em direcção ao céu. Ele, Stephanie e Claridon encontravam-se na esplanada de um café numa animada praça adjacente à entrada principal. Um vento norte - o mistral, como os locais lhe chamavam - soprava do Ródano e açoitava a cidade. Malone recordava-se de um provérbio medieval que falava dos cheiros fétidos que em tempos tinham povoado aquelas ruas. «A ventosa Avinhão, com vento repugnante, sem vento tóxica.» E o que chamara Petrarca àquele lugar? «O mais malcheiroso da terra.»

Através de um guia de viagens ficou a saber que o edifício à sua frente, em tempos palácio, fortaleza e santuário, era na realidade composto por dois edifícios - o palácio antigo fora mandado erigir em 1334 pelo papa Benedito XII e o novo por Clemente VI, terminado em 1352. Ambos reflectiam a personalidade dos seus criadores. O palácio antigo era de estilo românico, conservador e com poucos luxos, enquanto o novo exibia toda a imponência do estilo gótico. Infelizmente, ambos os palácios tinham sido consumidos pelo fogo e pilhados durante a Revolução Francesa. Em 1810, o palácio fora transformado em quartel e só em 1906 a cidade retomara o seu controlo. Todavia, os trabalhos de restauro só viriam a começar nos anos sessenta. Duas das alas eram agora um centro de convenções e o edifício era uma das maiores atracções turísticas da cidade, embora exibisse apenas um vislumbre da sua antiga glória.

- Está na hora - alertou Claridon. - A última visita começa daqui a dez minutos e temos de entrar com o grupo.

Malone levantou-se.

- O que vamos lá fazer?

Ao longe começaram a ouvir-se trovões.

- O abade Bigou, a quem Marie d'Hautpoul de Blanchefort revelou o grande segredo da família, vinha de vez em quando visitar o palácio e admirar os quadros. Isso foi antes da Revolução, quando ainda havia muitos em exposição. Lars conseguiu saber que existia um em particular que ele muito admirava. Quando Lars descobriu o criptograma, encontrou também uma referência a um quadro.

- Que tipo de referência? - questionou Malone.

- No dia em que fugiu de França para Espanha, em 1793, o abade Bigou fez uma última anotação no registo da paróquia de Rennes-le-Château que dizia, Lisez les Règles de Caridad.

Malone traduziu em silêncio. «Ler as Regras de Caridad.»

- Saunière encontrou essa entrada e escondeu-a. Felizmente, o registo nunca foi destruído e Lars acabou por encontrá-lo. Pelos vistos, Saunière soube que o abade Bigou visitava Avinhão com frequência. No tempo de Saunière, estamos a falar de finais do século XIX, o palácio não passava de uma casca sem conteúdo, mas o abade podia ter facilmente descoberto que na época de Bigou existia aqui um quadro de Juan de Valdés Leal chamado A Ler as Regras de Caridad.

- Presumo que o quadro ainda esteja em exposição lá dentro - afirmou Malone, e olhou através do extenso pátio em direcção ao Chapeau Galo, o portão central do palácio.

Claridon abanou a cabeça.

- Já não existe. Foi destruído pelas chamas há cinquenta anos. A trovoada continuava a rebentar.

- Então o que estamos aqui a fazer? - perguntou Stephanie. Malone colocou alguns euros sobre a mesa e olhou discretamente para a esplanada de outro café ali perto. Enquanto outros se levantavam em antecipação da chuva anunciada, uma mulher permanecia sentada sob um toldo a bebericar de uma chávena. O seu olhar demorou-se por mais um instante, o suficiente para reparar nas suas feições esguias, os olhos proeminentes, a pele da cor do café com leite e as maneiras delicadas. Já dera pela sua presença há cerca de dez minutos, logo após se terem sentado, e ficara desconfiado.

Agora era a hora do teste.

Agarrou num guardanapo de papel que estava sobre a mesa e amarrotou-o.

- No manuscrito não publicado - continuou Claridon -, aquele que vos disse que Noël Corbu escreveu sobre Saunière e Rennes e que Lars encontrou, Corbu falava do quadro e sabia que Bigou lhe fizera referência no registo da paróquia. Também tinha conhecimento da existência de uma litografia nos arquivos do palácio. Chegara até a vê-la. Na semana antes de falecer, Lars ficou a saber onde se encontrava exactamente nos arquivos. Combinámos ir até lá dar uma vista de olhos, mas ele nunca mais regressou a Avinhão.

- E não lhe disse onde estava? - interrogou Malone.

- Não, monsieur.

- No diário, não existe uma única menção a um quadro - explicou Malone. - Li-o de uma ponta à outra. Nem uma palavra sobre Avinhão.

- Se Lars não lhe revelou onde se encontrava a litografia, o que vamos fazer ao palácio? - perguntou Stephanie. - Não sabe onde procurar.

- Mas o seu filho sabia. Eu e ele íamos ao palácio procurar quando ele voltasse das montanhas, mas como a senhora sabe...

- Ele também nunca regressou.

Malone apercebeu:se que Stephanie tentava controlar as emoções. Era boa, mas não tão boa assim.

- E por que não foi o senhor?

- Achei que era mais importante ficar vivo. Por isso, refugiei-me no asilo.

- Mas o rapaz morreu numa avalanche - esclareceu Malone.

- Não foi assassinado.

- Não pode ter a certeza disso - argumentou Claridon. - Temos de nos apressar. São muito rigorosos com a hora da última visita. A maioria dos empregados é residente na cidade e muitos deles voluntários. Fecham as portas imperativamente às sete. Não existe nenhum sistema de segurança ou alarmes no interior do palácio. A verdade é que também já não há nada de valor lá exposto e as próprias paredes são a sua melhor segurança. Afastamo-nos do grupo e esperamos até que todos saiam.

Começaram a andar e gotas de chuva molharam a cabeça de Malone. De costas voltadas para a mulher, que ainda deveria estar sentada na esplanada a comer, abriu a mão e deixou que o mistral lhe soprasse o guardanapo amarrotado. Voltou-se e fez de conta que perseguia o papel que dançava pelas pedras do chão. Quando o apanhou, olhou de soslaio para o café.

A mulher já lá não se encontrava. Em vez disso, dirigia-se para o palácio.

De Roquefort baixou os binóculos. Encontrava-se no Rocher des Doms, o lugar mais pitoresco de Avinhão. Desde o Neolítico que os homens habitavam aquele cume calcário. Na época da ocupação papal, o rochedo servia como protecção natural contra o incessante mistral. Actualmente, o cume, adjacente ao palácio, estava incluído num parque com lagos, fontes, estátuas e grutas. A vista era esplendorosa. Visitara aquele lugar muitas vezes quando trabalhava no seminário ali perto, antes de entrar para a Ordem.

Em direcção a oeste e a sul, estendiam-se montes e vales. O veloz Ródano abrira caminho lá em baixo, passando sob a famosa ponte de Saint Bénézet que em tempos atravessara o rio, e fizera a ligação entre a cidade do papa e a do rei, do outro lado. Quando, durante a Cruzada Albigense, em 1226, Avinhão tomou o partido do conde de Toulouse contra Luís VIII, o rei francês mandou destruir a ponte. Esta acabou por ser reconstruída, e De Roquefort imaginou o século XIV quando os cardeais a atravessavam montados nas suas mulas rumo aos palácios em Villeneuve-les-Avignon. No século XVI, as chuvas e as cheias já a tinham reduzido a apenas quatro arcos que nunca mais se estenderam para o outro lado, e a ponte permanecera incompleta para sempre. Outro falhanço de Avinhão, sempre pensara De Roquefort. Uma cidade que parecia destinada a apenas meios sucessos.

- Dirigem-se para o palácio - comentou para o irmão que estava ao seu lado. Consultou o relógio. Quase seis da tarde. - Fecha daqui a uma hora.

Voltou a espreitar pelos binóculos e observou a praça a quatrocentos metros dali. Quando saiu da abadia escolheu o caminho mais curto e já ali estava há quarenta minutos. A vigilância electrónica instalada no automóvel de Malone revelara uma ida a Villeneuve-les-Avignon e depois o regresso a Avinhão. Aparentemente, tinham ido buscar Claridon.

De Roquefort decidira esperar ali, no cume, que oferecia uma excelente vista sobre a cidade. A sorte sorriu-lhe quando Stephanie Nelle e os dois companheiros apareceram vindos do parque subterrâneo, e depois se sentaram na esplanada de um café.

Baixou os binóculos.

O mistral sacudiu-lhe as roupas. O vento norte soprava forte, agitava o rio e amontoava as nuvens.

- Devem planear ficar no interior do palácio após.o fecho das portas. Lars Nelle e Claridon já fizeram o mesmo. Ainda temos a chave da porta?

- O nosso irmão aqui na cidade é quem a guarda.

- Vai buscá-la.

Já há muito tempo que conseguira obter uma maneira de entrar no palácio pela catedral. Os arquivos no seu interior tinham chamado a atenção de Lars Nelle e, por isso, também lhe interessavam. Já por duas vezes enviara irmãos para o arquivo durante a noite, tentando perceber o que atraíra Lars. Porém, o volume de material era intimidante e nunca fora capaz de descobrir nada. Talvez naquela noite ficasse a saber mais.

Encostou mais uma vez os olhos aos binóculos. Um papel escapou da mão de Malone e ele observou-o a correr atrás dele. Depois, os três alvos desapareceram do seu alcance de visão.

 

21 h 00 m

Todas aquelas divisões quase nuas pareciam um pouco fantasmagóricas. A meio da visita guiada tinham conseguido separar-se do restante grupo e Claridon mostrara-lhes o caminho para um andar superior. Ali, esperaram numa torre, atrás de uma porta fechada, até às oito e trinta, altura em que as luzes se apagaram e já não se ouvia quaisquer movimentos. Claridon parecia estar familiarizado com o procedimento e ficara satisfeito ao constatar que a rotina dos empregados era a mesma passados cinco anos.

O labirinto de salões, corredores extensos e quartos nus encontrava-se agora iluminado apenas por feixes de luz isolados que entravam pelas janelas. Malone imaginou o interior daquelas divisões nos seus tempos áureos. As paredes cobertas por sumptuosos frescos e tapeçarias exibindo personagens em visita ao sumo pontífice: enviados de Genghis Khan, o imperador de Constantinopla e até o próprio Petrarca e Santa Catarina de Siena, a mulher que acabou por convencer o último papa de Avinhão a regressar a Roma, todos ali reunidos. A história fazia parte integrante daquele lugar, mas já poucos vestígios dela ali restavam.

No exterior, a chuva batia forte no telhado e a trovoada fazia estremecer os vidros.

- Este lugar foi em tempos tão grandioso quanto o Vaticano - sussurrou Claridon. - Tudo destruído por ignorância e inveja.

Malone não concordava.

- Há quem diga que foi a ignorância e a inveja que levaram à sua construção.

- Ah, Sr. Malone, é um estudioso de história?

- Li algumas coisas.

- Então deixe-me mostrar-lhe uma coisa.

Claridon conduziu-os através de uma série de portas e de salas identificadas por placas. Pararam numa divisão rectangular com o tecto abobadado à qual haviam dado o nome de Grand Tinel.

- Este era o salão de banquetes do papa e nele cabiam centenas de pessoas - explicou Claridon, a voz a ecoar. - Clemente VI mandou pendurar no tecto um tecido azul decorado com estrelas douradas, para criar um arco celestial. E havia frescos em todas as paredes. Tudo isto foi destruído pelo fogo em 1413.

- E ninguém substituiu nada? - perguntou Stephanie.

- Os papas de Avinhão já tinham desaparecido nessa altura e por isso o palácio já nada significava. - Claridon apontou para um dos extremos da sala. - O papa comia sozinho, ali, num trono com estrado, sob um dossel enfeitado com veludo e arminho. Os convidados sentavam-se em bancos de madeira encostados à parede, os cardeais a este e os restantes a oeste. As mesas formavam um U e a comida era servida a partir do centro. Tudo muito rígido e formal.

- Como este local - comentou Malone. - É como caminhar por uma cidade destruída. Um mundo fechado em si mesmo.

- Era mesmo essa a ideia. Os reis franceses queriam os seus papas afastados de toda a gente. Só eles controlavam o que o papa pensava e fazia, logo não era necessário que a sua residência fosse um lugar imaterial. Nunca nenhum desses papas alguma vez visitou Roma; os italianos tê-los-iam morto. Assim, os sete homens que aqui foram papas construíram a sua própria fortaleza e não questionaram o trono francês. Deviam a sua existência ao rei e viviam felizes neste lugar. O Papado de Avinhão ficou também conhecido como o Cativeiro de Avinhão.

A divisão seguinte já não era tão espaçosa, embora fosse aí que o papa e os cardeais se reuniam em consistórios secretos.

- Foi também aqui que a Rosa de Ouro foi apresentada - disse Claridon. - Um gesto de arrogância. No quarto domingo da Quaresma, o papa homenageava uma pessoa especial, habitualmente um soberano, oferecendo-lhe uma rosa de ouro.

- Não aprova o gesto? - perguntou Stephanie.

- Cristo nunca precisou de rosas de ouro. Porque haveriam os papas de precisar delas? É mais um exemplo dos muitos sacrilégios cometidos neste local. Clemente V comprou a cidade à rainha Joana I de Nápoles, em 1309, como parte de um acordo que a absolvia do envolvimento no assassínio do marido. Durante um século, criminosos, aventureiros, falsificadores e contrabandistas refugiavam-se na cidade para fugir à justiça, desde que pagassem a quantia certa ao papa.

Passando por outra câmara, entraram na Sala dos Cervos e Claridon acendeu algumas luzes. Malone deixou-se ficar à entrada o tempo suficiente para olhar para trás e reparar numa sombra que deslizava rapidamente na parede. Demorara-se o suficiente para se assegurar que não estavam sozinhos. Sabia de quem se tratava. Era uma mulher alta, atraente, atlética e de cor, como Claridon referira no carro. A mesma mulher que os seguira para o palácio.

- É aqui que o palácio antigo e o palácio novo se unem - explicava o francês. - O antigo atrás de nós e o novo fica depois daquela porta. Esta sala era o gabinete de Clemente VI.

Malone lera sobre Clemente VI no guia turístico. Um homem que apreciava pintura, poesia, música, animais exóticos e o amor palaciano. Teria afirmado, «Os meus antecessores não souberam o que era ser papa», razão pela qual teria transformado a antiga fortaleza de Bento num palácio luxuoso. Um exemplo perfeito dos gostos materiais do papa decorava as paredes em forma de frescos. Campos, bosques e riachos sob um céu azul. Homens com redes junto a um lago verde repleto de peixes. Cães de raça. Um jovem nobre e o seu falcão. Uma criança no cimo de uma árvore. Bambus, pássaros, banhistas. Os verdes e os castanhos predominavam, mas um casaco cor-de-laranja, um peixe azul e os frutos nas árvores acrescentavam pinceladas de cores fortes às cenas.

- Clemente mandou pintar estes frescos em 1344. Foram descobertos por baixo da cal que os soldados espalharam quando o palácio se transformou num quartel, no século XIX. Esta sala explica os papas de Avinhão, em especial Clemente VI. Havia quem lhe chamasse Clemente, o Magnífico. Não tinha qualquer vocação religiosa. A remissão dos pecados, a revogação da excomunhão e até o encurtamento dos anos no purgatório, tanto para mortos como para vivos, tudo estava à venda. Não notam a falta de qualquer coisa?

Malone voltou a apreciar os frescos. As cenas de caça e de divertimento saltavam à vista, mas nada ali lhe chamava particular atenção.

Só então lhe ocorreu.

- Onde está Deus?

- Bem visto, monsieur. - Claridon abriu os braços. - Em nenhuma parte desta sala existe um símbolo religioso. A omissão salta à vista. Este era o quarto de um rei, não de um papa, e era dessa forma que os prelados de Avinhão se viam. Foram estes homens que destruíram os templários. Começando em 1307 com Clemente V, cúmplice de Filipe, o Belo, e terminando com Gregório XI em 1378, estes indivíduos corruptos esmagaram a Ordem. Lars sempre acreditou, e eu concordo, que esta sala mostra o que aqueles homens valorizavam.

- Acha que os templários sobreviveram? - perguntou Stephanie.

- Oui. Estão por aí. Já os encontrei. O que são exactamente, isso não faço ideia, mas ainda existem.

Malone ficou sem perceber se aquela declaração era um facto ou apenas a suposição de um homem que via conspirações onde elas não existiam. Tudo o que sabia era que andava uma mulher a segui-los, hábil o suficiente para acertar um tiro mesmo por cima da sua cabeça, a quarenta metros de distância, à noite e com o vento a soprar a sessenta e cinco quilómetros por hora. Podia muito bem ter sido ela a salvá-lo em Copenhaga. E ela, sim, era bem real.

- Vamos continuar - sugeriu Malone.

Claridon apagou as luzes.

- Sigam-me.

Atravessaram o antigo palácio em direcção à ala norte e ao centro de congressos. Uma placa explicava que o local fora criado pela cidade como forma de angariar mais fundos para financiar os restauros. A antiga Sala do Conclave, o Quarto do Tesoureiro e a Adega tinham sido equipados com cadeiras, palcos e meios audiovisuais. Enquanto percorriam os corredores foram passando por efígies de outros papas de Avinhão.

Claridon acabou por parar frente a uma robusta porta de madeira. Experimentou o trinco e este abriu.

- Que bom. Continuara sem o fechar durante a noite.

- Não trancam as portas? - interrogou Malone.

- Não há nada de valor aqui dentro a não ser informação e poucos ladrões estão interessados nisso.

Entraram numa sala escura como breu.

- Foi em tempos a capela de Bento XII, o papa que concebeu e construiu o palácio antigo. Nos finais do século XIX, esta e a sala imediatamente acima foram convertidas nos arquivos distritais. É também aqui que o palácio guarda os seus registos.

A luz proveniente do corredor revelou um espaço em forma de torre com as paredes cobertas de prateleiras, fila após fila. Atrás das prateleiras erguiam-se janelas em arco cujas vidraças negras eram açoitadas pela tempestade.

- Quatro quilómetros de prateleiras - explicou Claridon. - Bastante informação.

- Mas sabe onde procurar? - perguntou Malone.

- Espero saber.

Claridon desceu até à nave central. Os seus dois acompanhantes esperaram até que uma luz se acendeu lá em baixo.

- Podem vir - chamou Claridon.

Malone fechou a porta e questionou-se de que modo a mulher planeava entrar ali sem que ninguém percebesse. Desceram em direcção à luz e encontraram o francês junto de uma mesa de leitura.

- Felizmente para a história - disse Claridon -, todos os artefactos do palácio foram inventariados no século XVIII. Depois, nos finais do século XIX, fizeram-se fotografias e desenhos de tudo aquilo que havia sobrevivido à Revolução. Lars e eu acabámos por ficar a conhecer bem esta colecção e a maneira como a informação estava organizada.

- E nunca mais cá voltou após a morte de Mark por temer que os Cavaleiros Templários o matassem? - indagou Malone.

- Já percebi que não acredita muito nisto, monsieur, todavia garanto-lhe que tomei a decisão mais acertada. Estes registos permaneceram aqui durante séculos, por isso pensei que podiam esperar um pouco mais. Ficar vivo pareceu-me bem mais importante.

- Então o que faz aqui agora? - Foi a vez de Stephanie questionar.

- Já passou muito tempo. - Claridon afastou-se da mesa.

- À nossa volta encontram-se os inventários do palácio. A minha busca é capaz de demorar alguns minutos, o melhor será sentarem-se um pouco. - Retirou uma lanterna do bolso. - Trouxe-a do asilo. Achei que podia ser útil.

Malone puxou de uma cadeira e Stephanie fez o mesmo. Claridon desapareceu na escuridão. Enquanto esperavam, ouviram o barulho de papéis e livros a serem remexidos e o foco da lanterna a dançar no tecto abobadado.

- Era isto que o meu marido fazia - murmurou ela. - Fechava-se em lugares escuros e esquecidos à procura de idiotices.

- Malone apercebeu-se do ressentimento presente no tom de voz dela. - Enquanto o nosso casamento se desmoronava. Enquanto eu trabalhava vinte horas por dia, era nisto que ele se ocupava.

Um trovão fê-los estremecer.

- Era importante para ele - argumentou Malone, também em voz baixa. - E pode ser que se descubra alguma coisa importante.

- Tipo o quê, Cotton? Um tesouro? Se Saunière descobriu aquelas jóias na cripta, tudo bem, sorte como essa não acontece a toda a gente. Mas não há mais nada para encontrar. Bigou, Saunière, Lars, Mark, Claridon não passam de sonhadores.

- Foram os sonhadores que em muitas ocasiões mudaram o mundo.

- Isto é procurar uma agulha num palheiro e a agulha nem sequer existe.

Claridon regressou da escuridão e colocou uma pasta poeirenta sobre a mesa. Lá dentro estava uma pilha de fotografias a preto e branco e desenhos a carvão.

- A apenas alguns metros do local que Mark indicara. É uma sorte que o velhote que trata deste local tenha feito poucas mudanças nestes últimos anos.

- E como foi que Mark o encontrou? - perguntou Stephanie.

- Procurava pistas aos fins-de-semana. Não era tão dedicado quanto o pai, mas vinha a Rennes e eu ajudava-o nas buscas. Também descobriu algumas informações sobre os arquivos de Avinhão na universidade em Toulouse. Juntou todas as peças e aqui temos a resposta.

Malone espalhou o conteúdo da pasta sobre a mesa.

- E estamos à procura do quê?

- Nunca vi o quadro. Esperemos que esteja identificado.

Começaram a observar as imagens.

- Está aqui! - exclamou Claridon, claramente entusiasmado. Malone contemplou uma das litografias, um desenho a preto e branco manchado pelo tempo e com as pontas enroladas. Na parte superior podia ler-se uma anotação. Dizia: DON MIGUEL DA MAÑARA A LER AS REGRAS DE CARIDAD.

A imagem representava um homem mais velho, com barba e bigode, sentado a uma mesa e envergando um hábito religioso. Numa das mangas, exibia um emblema que se estendia do ombro ao cotovelo. A mão esquerda tocava um livro colocado na vertical e a mão direita estava esticada, com a palma para cima, e apontava em direcção a uma criança com roupas de monge, sentada num banco baixo com os dedos encostados aos lábios, a pedir silêncio.

289

Ao colo da criança podia ver-se um livro aberto. O chão era aos quadrados como um tabuleiro de xadrez e havia uma inscrição no banco onde a criança estava sentada.

ACABOCE Aº DE 1687

- Que curioso - murmurou Claridon. - Veja isto.

Malone seguiu o dedo do francês e observou o canto superior esquerdo da imagem onde, na sombra atrás da criança, se via uma mesa e uma prateleira. Por cima estava uma caveira.

- O que significa tudo isto? - perguntou Malone a Claridon.

- Caridad significa caridade, que também pode ser sinónimo de amor. O hábito negro que o homem veste pertence à Ordem dos Cavaleiros de Calatrava, uma ordem religiosa espanhola devota de Jesus Cristo. É o que o emblema na manga mostra. Acaboce significa realização. O Aº pode ser uma referência ao alfa e ao ómega, a primeira e a última letras do alfabeto grego, o início e o fim. A caveira? Não faço ideia.

Malone recordou-se do que Bigou supostamente teria escrito no registo da paróquia de Rennes antes de fugir de França para Espanha. Ler as Regras de Caridad.

- Que regras devemos ler?

Claridon estudou o desenho sob a luz fraca.

- Repare na criança sentada no banquinho. Veja os sapatos. Os pés estão colocados nos quadrados negros do chão, em diagonal.

- O chão parece um tabuleiro de xadrez - notou Stephanie.

- E o bispo move-se na diagonal, tal como os seus pés indicam.

- Então a criança é um bispo? - perguntou ela.

- Não - respondeu Malone, compreendendo. - No xadrez francês, o bispo é o Tolo.

- É um conhecedor do jogo? - indagou Claridon.

- Joguei algumas vezes.

Claridon colocou o dedo sobre a criança.

- Este é o Sábio Tolo que aparentemente tem um segredo que inclui um alfa e um ómega.

- Também chamaram o mesmo a Cristo - recordou Malone.

- Oui. E quando se junta acaboce temos «realização de alfa e ómega». Realização de Cristo.

- Mas o que significa isso? - perguntou Stephanie.

- Posso ver o livro de Stüblein, madame?

Ela retirou-o da mala e estendeu-o a Claridon.

- O melhor será vermos de novo a lápide, afinal está relacionada com o quadro. Não nos podemos esquecer que foi o abade Bigou quem deixou ambas as pistas - explicou ele, colocando o livro sobre a mesa. - É preciso saber a história para compreender: esta lápide. A família d'Hautpoul remonta à França do século XII. Marie casou com François d'Hautpoul, o último marquês, em 1732. Um dos antepassados d'Hautpoul escreveu um testamento em 1644, que registou e entregou a um notário em Espéraza. Todavia, quando o antepassado faleceu foi impossível encontrar o testamento. Depois, mais de cem anos após a sua morte, o testamento aparece misteriosamente. Quando François d'Hautpoul foi reclamá-lo, foi-lhe dito pelo notário que «não seria sensato da sua parte separar-se de um documento tão importante.» François faleceu em 1753 e em 1780 o testamento foi por fim entregue à sua viúva, Marie. Porquê? Ninguém sabe. Talvez por já ser a única d'Hautpoul ainda viva. No entanto, Marie viria a falecer no ano seguinte e diz-se que terá entregue o testamento, e qualquer informação que continha, ao abade Bigou como parte do grande segredo da família.

- E foi isso que Saunière encontrou na cripta? Para além do dinheiro e das jóias?

Claridon assentiu.

- Mas a cripta estava escondida. Por isso, Lars sempre acreditou que era a campa falsa de Marie, no cemitério, que continha a verdadeira pista. Bigou deve ter pensado que o segredo era demasiado importante para não o contar. Como ia fugir do país para nunca mais voltar, deixou um quebra-cabeças que mostrava o caminho. No carro, quando me mostrou o desenho da lápide, cheguei a algumas conclusões. - Pegou num bloco de folhas em branco e numa caneta que estavam sobre a mesa. - Sei agora que contém muita informação.

Malone observou as letras e os símbolos das lápides.

 

CT GIT NOBLe M

ARIE DE NEGRE

DARLES DAME

D'HAUPOUL DE BLANCHEFORT

AGEE DE SOIX

ANTE-SEPT ANS

DECEDEE LE

XVII JANVIER

MDC0LXXXI

REQUIES CATIN

PACE

REDDIS

RÉGIS

CELLIS

ARCIS

 

- A pedra da direita estava deitada sobre a campa de Marie e não contém o tipo de inscrições que normalmente se encontram nas campas. A coluna da esquerda está escrita em latim. - Claridon escreveu ET IN PAX no bloco. - Isto significa «e em paz», mas tem erros. Pax é o nominativo de paz e o caso está incorrectamente utilizado depois da preposição in. A coluna da direita está escrita em grego e não passa de uma algaraviada incompreensível. No entanto, estive a pensar sobre isso e acho que tenho a solução. A inscrição está toda em latim, mas escrita com o alfabeto grego. Quando se traduz para o alfabeto romano, o E, T, I, N e A estão bem, mas o P é um R e o X um K, e...

- «E em Arcádia eu» - disse Malone, a traduzir do latim. - Não faz sentido.

- Pois não - concordou Claridon. - O que me leva a pensar que as palavras escondem mais qualquer coisa.

Malone compreendeu.

- Um anagrama?

- Eram bastante comuns no tempo de Bigou. Afinal, não era provável que o abade deixasse uma mensagem fácil de decifrar.

- E as palavras no centro?

Claridon anotou-as no bloco.

REDDIS RÉGIS CÉLLIS ARCIS

- Reddis significa devolver, restituir ou recuperar, mas também é a palavra latina para Rennes. Regis deriva de rex, ou seja, rei. Cella diz respeito a uma arrecadação. Arcis provém de arx, que quer dizer fortaleza, cidadela. Cada uma das palavras significa muita coisa, mas juntas não fazem qualquer sentido. Depois há a seta que liga p-s com prae-cum. Não conheço o significado de p-s, mas prae-cum quer dizer «reza para que chegue».

- E o que é esse símbolo na parte de baixo? - perguntou Stephanie. - Parece um polvo.

Claridon abanou a cabeça.

- É uma aranha, madame. Mas o seu significado escapa-me.

- E a outra pedra?

- A da esquerda, colocada na vertical sobre a campa, era a mais visível. Não podemos esquecer que o abade Bigou foi o confessor de Marie d'Hautpoul durante muitos anos. Era-lhe muito leal e dedicado, e levou dois anos a fazer a sua lápide. Todavia, se repararem há erros em todas as linhas. Os pedreiros naquela época davam erros, mas tantos? O abade nunca teria permitido que fosse colocada assim.

- Isso quer dizer que os erros fazem parte da mensagem - concluiu Malone.

- Tudo leva a crer que assim é. O nome dela está errado. Não se chamava Marie de Negre d'Arles dame d'Hautpoul, mas sim Marie de Negri d'Ables d'Hautpoul. Muitas das outras palavras também estão erradas e há letras maiúsculas e minúsculas sem razão. Mas repare na data.

Malone olhou para os números romanos.

MDC0LXXXI

- Supostamente é o ano da sua morte, 1681. E isso descontando o O, uma vez que não existe o zero na numeração romana e a letra O não representava nenhum número. Mas a verdade é que está ali. Além disso, Marie faleceu em 1781 e não em 1681. A letra O está ali para deixar claro que Bigou sabia que a data estava errada. E a idade também não está correcta. Ela tinha sessenta e oito anos e não sessenta e sete, como escrito.

Malone apontou para o desenho da pedra da direita e para a numeração romana no canto inferior direito. LIXLIXL.

- Cinquenta. Nove. Cinquenta. Nove. Cinquenta.

- Muito estranho - disse Claridon. Malone voltou a olhar para a litografia.

- Não vejo qual a relação desta imagem com as pedras.

- É um quebra-cabeças, monsieur. E a solução não é fácil.

- Ainda assim, gostava de saber a resposta a este enigma - disse uma voz masculina vinda da escuridão.

 

 

                                                              CONTINUA

 

 

Malone já estava à espera que a mulher se desse a conhecer, mas aquela não era a voz dela. Pegou na arma.

- Não se mexa, Sr. Malone. Está na mira de uma arma.

- É o homem da catedral - revelou Stephanie.

- Eu disse-lhe que voltaríamos a encontrar-nos. E o senhor, monsieur Claridon, não era assim tão convincente no asilo. Doido? O senhor? Difícil de acreditar.

Malone tentou perceber que surpresas lhe revelava a escuridão. A dimensão da sala já por si produzia uma confusão de barulhos, mas apercebeu-se da presença de outras pessoas por cima deles, antes da última fila de prateleiras junto ao corrimão de madeira.

Contou quatro pessoas.

- Estou, no entanto, impressionado com os seus conhecimentos, monsieur Claridon. As suas conclusões sobre as pedras tumulares parecem-me deveras lógicas. Sempre acreditei que continham muita informação. Também eu já pesquisei estes arquivos. Uma tarefa hercúlea. Tanta coisa para ler e ver. Agradeço-lhe por ter abreviado as minhas buscas. A Ler as Regras de Caridad. Quem haveria de dizer...

Claridon fez o sinal da cruz e Malone viu medo a inundar-lhe os olhos.

- Que Deus nos proteja.

 

 

 

 

- Então, monsieur Claridon - disse a voz na escuridão -, temos mesmo de envolver Deus neste assunto?

- Os senhores são os Seus guerreiros? - argumentou Claridon com a voz a tremer.

- E o que o leva a dizer tal coisa?

- Quem mais poderiam ser?

- Podemos ser polícias. Não, não acreditaria nisso. Ou talvez sejamos aventureiros, investigadores, como o senhor. Mas não. Para simplificar as coisas, digamos que somos os Seus guerreiros. E de que modo podem vocês os três ajudar a nossa causa?

Ninguém respondeu.

- A Sr.ª Nelle possui o diário do marido e o livro do leilão. Essa será a sua contribuição.

- Vá-se lixar - gritou ela.

Um estalido, semelhante ao rebentar de um balão, soou mais alto que a chuva e uma bala atingiu a mesa a apenas alguns centímetros de Stephanie.

- Resposta errada - informou a voz.

- Faça o que ele pediu - disse Malone. Stephanie fitou-o de olhos esbugalhados. - Se ele voltar a disparar é para a matar.

- Como sabe? - perguntou a voz.

- Era o que eu faria.

Ouviram uma risada.

- Gosto de si, Sr. Malone. É um profissional.

Stephanie levou a mão à mala e retirou o livro e o diário.

- Atire-os em direcção à porta - pediu a voz. Ela obedeceu... 

 

                                                                  Steve Berry

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades