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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MAPA DOS OSSOS / James Rollins
O MAPA DOS OSSOS / James Rollins

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Março de 1162

Os soldados do arcebispo desapareceram nas sombras do vale lá embaixo. Atrás deles, no alto do desfiladeiro glacial, cavalos guinchavam, alvejados e trespassados por flechas. Homens gritavam, berravam, urravam. O estrépito de aço soava tão claro quanto os sinos de uma capela.

Mas não era a obra de Deus que se fazia ali.

A retaguarda tem de agüentar-se firme.

Frei Joachim segurou as rédeas de sua égua enquanto ela escorregava de an­cas pela íngreme ladeira. A carroça com a carga havia chegado em segurança ao fundo do vale. Mas a verdadeira segurança ainda estava a uma légua de distância.

Se ao menos conseguissem alcançá-la...

Com as mãos cerradas nas rédeas, Joachim instigou sua cambaleante égua até o fundo do vale. Atravessou chapinhando um riacho gélido e arriscou uma olhadela para trás.

Apesar de a primavera ter-se anunciado, o inverno ainda prevalecia nos lugares mais altos. Os picos dos montes brilhavam intensamente ao sol poente. A neve refletia a luz, enquanto a geada se derramava dos picos escanhoados num turbilhão denso. Porém, ali nos desfiladeiros encobertos pelas sombras, a neve derretida transformara o chão da floresta num lodaçal. Os cavalos moviam-se com dificuldade até os machinhos e a cada passo corriam o risco de fraturar um osso. A frente, a carroça estava atolada quase até os eixos.

Joachim açoitou sua égua a fim de juntar-se aos soldados próximos à carroça.

Outra parelha de cavalos havia sido atada na frente. Homens empurravam atrás. Eles tinham de alcançar a trilha que atravessava a cadeia de montanhas seguinte.

-        Eia! - gritou o condutor da carroça, fazendo estalar o chicote.

O cavalo-guia jogou a cabeça para trás e em seguida ergueu-se de encontro à cangalha. Nada aconteceu. Correntes retesaram-se, cavalos resfolegaram, ex­pelindo pelas narinas fumaça branca no ar frio, e homens gritaram palavras obscenas.

Devagar, bem devagar, a carroça saiu do atoleiro com o som de sucção de uma ferida aberta no peito. Afinal, ela se movia de novo. Cada atraso cobrara seu preço em sangue. Os moribundos gemiam no desfiladeiro atrás deles.

A retaguarda deve agüentar-se firme um pouco mais.

A carroça seguiu em frente, subindo de novo. Os três grandes sarcófagos de pedra na plataforma aberta da carroça deslizaram contra as cordas que os man­tinham presos no lugar.

Se alguma delas rebentasse...

Frei Joachim alcançou a carroça que atolara.

Seu irmão de ordem, Franz, aproximou-se em seu cavalo.

- A trilha à nossa frente está livre.

- As relíquias não podem ser levadas de volta para Roma. Precisamos che­gar à fronteira alemã.

Franz inclinou ligeiramente a cabeça, em sinal de compreensão. As relíquias já não estavam seguras em solo italiano, não com o verdadeiro papa exilado na França e o falso residindo em Roma.

A carroça subia mais rápido agora, encontrando terreno mais firme a cada movimento. Todavia, ela não avançava mais depressa do que um homem era capaz de andar. Joachim continuou a observar a serra distante, olhando fixa­mente por sobre a parte traseira de sua montaria.

Os sons de batalha haviam-se reduzido a gemidos e soluços, ecoando sinis­tramente pelo vale. O ruído de espadas havia cessado por completo, indicando a derrota da retaguarda.

Joachim esquadrinhou o vale, mas sombras densas impregnavam as altu­ras. A barreira de pinheiros negros ocultava tudo.

Em seguida, ele avistou um clarão prateado.

Uma figura solitária apareceu, iluminada por uma nesga da luz do sol, a armadura cintilando.

Joachim não precisou ver o dragão vermelho pintado no peitoral do homem para reconhecer o lugar-tenente do papa negro. O profano sarraceno adotara o nome de batismo Ferrabrás, em homenagem a um dos paladinos de Carlos Magno. Ele era pelo menos um palmo mais alto do que todos os seus homens. Um verdadeiro gigante. Sangue cristão manchava suas mãos mais do que as de qualquer outro homem. Batizado no ano anterior, o sarraceno agora era aliado do cardeal Otaviano, o papa negro que adotara o nome de Vítor IV.

Ferrabrás permaneceu na nesga da luz do sol, sem fazer qualquer tentativa de acossá-los.

O sarraceno sabia que havia chegado tarde demais.

A carroça afinal galgou a crista da serra e chegou à trilha ressequida e cheia de sulcos lá no alto. Eles agora avançariam rapidamente. O solo alemão estava apenas a uma légua dali. A emboscada do sarraceno fracassara.

Um movimento chamou a atenção de Joachim.

Ferrabrás tirou um arco enorme de um dos ombros, negro como as som­bras. Pôs lentamente a flecha na corda, encaixou-a, e em seguida inclinou-se para trás e puxou-a com toda a força.

Joachim franziu o cenho. O que ele esperava ganhar com uma flecha emplumada?

O arco vergou-se, e a flecha voou, descrevendo uma curva sobre o vale, perdida por um momento à luz do sol acima da cadeia de montanhas. Joachim, tenso, perscrutou o céu. Em seguida, tão silenciosa quanto um falcão que mer­gulha, a flecha acertou o alvo, despedaçando-se no sarcófago do meio.

Inacreditavelmente, a tampa do sarcófago partiu-se com um estrondo. As cordas desprenderam-se quando o sarcófago rachou, espalhando fragmentos ao redor. Agora soltos, todos os três sarcófagos deslizaram em direção à trasei­ra aberta da carroça.

Homens avançaram, tentando impedir que os sarcófagos de pedra se espa­tifassem no chão. Mãos estenderam-se. A carroça parou. No entanto, um dos sarcófagos inclinou-se demais. Caiu e esmagou um soldado, fraturando sua perna e pélvis. Os gritos estridentes do pobre homem retumbaram no ar.

Franz aproximou-se às pressas, apeando do cavalo. Ele juntou-se aos ho­mens na tentativa de tirar o sarcófago de pedra de cima do soldado - e, mais importante ainda, colocá-lo de volta na carroça.

O sarcófago foi erguido, o homem viu-se livre, mas o sarcófago era pesado demais para ser levantado até a altura da carroça.

-        Cordas! - gritou Franz. - Precisamos de cordas!

Um dos homens que seguravam o sarcófago escorregou. Este tornou a cair, dessa vez de lado, e a tampa de pedra abriu-se.

O som do tropel de animais ergueu-se atrás deles. Na trilha. Chegando rá­pido. Joachim olhou para trás, sabendo o que encontraria. Cavalos, espuman­do e luzindo ao sol, precipitavam-se sobre eles. Embora distantes um quarto de légua, era evidente que todos os cavaleiros usavam trajes negros. Mais homens do sarraceno. Era a segunda emboscada.

Joachim simplesmente continuou montado. Não havia como escapar.

Franz ofegou - não por causa do apuro em que se encontravam, mas por causa do conteúdo do sarcófago que caíra. Ou, antes, pela falta dele.

-        Vazio! - exclamou o jovem frade. - Ele está vazio.

O choque fez Franz erguer-se de um salto. Ele subiu o assoalho da carroça e fitou com os olhos arregalados o interior do sarcófago despedaçado pela flecha do sarraceno.

-        Nada outra vez - disse Franz, caindo de joelhos. - As relíquias? Que des­graça é esta?

O jovem frade olhou nos olhos de Joachim e entendeu a falta de surpresa.

-        Você sabia.

Joachim olhava fixamente para trás, na direção dos cavalos que se aproxi­mavam numa carreira desabalada. A caravana deles fora um ardil, uma mano­bra para enganar os homens do papa negro. O verdadeiro portador partira um dia antes, com uma parelha de mulas, levando as relíquias legítimas envoltas num pano grosso e escondidas num feixe de feno.

Joachim virou-se para olhar para Ferrabrás no outro lado do vale. O sarraceno poderia sentir o cheiro de sangue nesse dia, mas o papa negro nunca teria as relíquias.

Nunca.

 

 

 

 

Época atual

22 de julho, 23:46h

Colônia, Alemanha

À medida que a meia-noite se aproximava, Jason passou seu iPod para Mandy.

- Ouça, é o novo single do Godsmack. Ainda não foi lançado nos Estados Unidos. Não é o máximo?

A reação não foi a que Jason esperava. Mandy deu de ombros, inexpressiva, porém pegou os fones de ouvido que ele lhe oferecia. Ela escovou para trás as pontas dos cabelos negros, tingidas de rosa, e ajustou os fones aos ouvidos. O movimento fez sua jaqueta abrir o suficiente para revelar a marca de seus seios, do tamanho de uma maçã, pressionados contra a camiseta preta com estampa dos Pixies.

Jason olhou fixamente.

- Não estou ouvindo nada - disse Mandy com um suspiro cansado, arquean­do uma sobrancelha para ele.

Oh! Jason voltou a se concentrar no seu iPod e apertou a tecla Play.

Ele inclinou-se para trás apoiando-se nas mãos. Os dois estavam sentados numa relva fina que emoldurava a praça de pedestres, chamada Domvorplatz. Ela circundava a imponente catedral gótica, o Kölner Dom. Situada na Colina da Catedral, dela se avistava toda a cidade.

Jason contemplou a extensão das flechas gêmeas, decoradas com figuras de pedra, esculpidas em fileiras de relevos de mármore que iam do religioso ao arcano. Agora, iluminada à noite, a catedral dava a estranha sensação de algo antigo que se erguia das entranhas da terra, de algo que não era deste mundo.

Enquanto ouvia a música que escapava do iPod, Jason observava Mandy. Alunos do Boston College, ambos estavam em férias de verão e viajavam de mochila pela Alemanha e pela Áustria. Com eles viajavam dois outros amigos, Brenda e Karl, mais interessados nos bares da cidade do que em assistir à missa da meia-noite. Contudo, Mandy fora educada como católica romana. As mis­sas à meia-noite na catedral restringiam-se a alguns dias santos seletos, e o próprio arcebispo de Colônia participava delas, como a da Festa dos Três Reis Magos dessa noite. Mandy não queria perdê-la.

Embora Jason fosse protestante, concordara em acompanhá-la.

Enquanto eles esperavam a chegada da meia-noite, a cabeça de Mandy movia-se ligeiramente ao som da música. Jason gostava do modo como as me­chas de cabelo caídas na testa dela oscilavam de um lado para outro, do modo como o lábio inferior dela se projetava num beicinho enquanto ela se concen­trava na música. Subitamente, ele sentiu um toque em sua mão. Mandy havia chegado o braço mais para perto, roçando de leve a mão sobre a dele. Os olhos dela, no entanto, permaneciam fixos na catedral.

Jason prendeu a respiração.

Nos últimos dez dias, ambos deram-se conta de que saíam juntos cada vez com mais freqüência. Antes da viagem, não passavam de conhecidos. Mandy era a melhor amiga de Brenda desde o ginásio, e Karl era colega de quarto de Jason. Os respectivos amigos deles, namorados recentes, não queriam viajar sozinhos, caso seu relacionamento incipiente azedasse durante a viagem.

Não azedara.

Por isso Jason e Mandy muitas vezes acabavam passeando sozinhos.

Não que Jason se importasse. Ele estudava história da arte na faculdade. Mandy especializava-se em estudos europeus. Ali seus estéreis compêndios acadêmicos adquiriam materialidade e contornos, peso e solidez. Por terem em comum um entusiasmo semelhante pela descoberta, um achava que o outro era uma companhia de viagem descomplicada.

Jason manteve os olhos desviados do toque dela, mas um de seus dedos aproximou-se dos de Mandy. Será que a noite acabara de ficar um pouco mais animada?

Infelizmente, a canção logo chegou ao fim. Mandy sentou-se mais ereta, afastando a mão para tirar os fones de ouvido.

- Nós deveríamos entrar - sussurrou ela, apontando com a cabeça para a fila de pessoas que entravam pela porta da catedral. Ela levantou-se e abotoou a jaqueta - um casaco sóbrio - por sobre a camiseta chamativa.

Jason ficou junto de Mandy enquanto ela alisava a saia, que ia até os torno­zelos, e penteava para trás das orelhas as pontas cor-de-rosa dos cabelos. Num piscar de olhos, ela se transformou de uma estudante universitária meio punk numa colegial católica séria.

Jason ficou embasbacado com a súbita transformação. De jeans pretos e jaqueta clara, ele de repente sentiu-se malvestido para assistir a um serviço religioso.

Você está ótimo - disse Mandy, parecendo adivinhar a preocupação dele.

Obrigado - murmurou ele.

Eles pegaram seus pertences, jogaram as latas de Coca-Cola vazias numa lixeira próxima e atravessaram a pavimentada Domvorplatz.

- Guten Abend - saudou-os à porta um diácono de batina preta -Willkommen.

- Danké - murmurou Mandy enquanto eles subiam as escadas.

Adiante, a luz de velas irradiava-se através da entrada da catedral, bruxulean­do sobre os degraus de pedra, o que aumentava a sensação de tempo e antigüi­dade. Um pouco mais cedo nesse dia, enquanto visitava a catedral, Jason ficara sabendo que a pedra fundamental da catedral fora lançada no século XIII. Era difícil compreender essa amplitude de tempo.

Banhado pela luz de velas, ele alcançou as maciças portas lavradas e seguiu Mandy até o vestíbulo da frente. Ela umedeceu levemente os dedos na água benta de uma pia e fez o sinal-da-cruz. Jason sentiu-se repentinamente desconfortável, com uma aguda consciência de que aquela não era a sua fé. Ele era um intruso, um transgressor. Receava dar um passo em falso, ficar embara­çado e, por sua vez, deixar Mandy embaraçada.

-        Me acompanhe - disse Mandy. - Eu quero conseguir um bom lugar, mas não muito perto.

Jason a seguiu. Quando ele entrou na igreja propriamente dita, o mal-estar logo deu lugar ao espanto. Apesar de já ter estado no interior da catedral e aprendido muitas coisas sobre a história e a arte da construção, ele ficou im­pressionado pela mera imponência do espaço. A longa nave central estendia-se por 120 metros à sua frente, seccionada ao meio por um transepto de noventa metros, formando uma cruz com o altar no centro.

No entanto, não eram nem o comprimento nem a largura da catedral que prendiam sua atenção, mas sua altura impossível. Seus olhos erguiam-se cada vez mais, guiados por ogivas, por longas colunas e pelo teto abobadado. Milha­res de velas deixavam um rastro de finas espirais de fumaça, que subiam em direção ao céu, tremulando das paredes, que recendiam a incenso.

Mandy conduziu-o em direção ao altar. Adiante, as áreas do transepto em cada lado do altar haviam sido isoladas com cordas, mas havia muitos lugares vazios na nave central.

- O que você acha daqui? - disse ela, parando no meio do corredor. Ela deu um breve sorriso, meio de agradecimento, meio de timidez.

Ele assentiu com a cabeça, emudecido pela beleza natural dela, uma Madona de preto.

Mandy segurou a mão dele e puxou-o até o fim do banco, junto à parede. Ele acomodou-se no assento, satisfeito com a relativa privacidade.

Ela continuou a segurar a mão de Jason, que sentia o calor de sua palma. A noite sem dúvida estava ficando animada.

Por fim, uma sineta tocou e um coro começou a cantar. Era o começo da missa. Jason seguiu o exemplo de Mandy: ficando de pé, ajoelhando-se e sen­tando-se numa elaborada coreografia de fé. Ele não entendia nada daquilo, mas descobriu-se fascinado, ficando absorto na pompa: os padres de batina balançando turíbulos de incenso, o hino cantado na procissão que acompa­nhou a chegada do arcebispo com sua mitra alta e vestimentas guarnecidas de dourado, os cânticos entoados pelo coro e pelos paroquianos, a iluminação das velas da festa.

E por toda a parte a arte se transformava num componente da cerimónia tanto quanto os participantes. Uma escultura de madeira de Maria com o me­nino Jesus, chamada de Madona de Milão, irradiava antigüidade e graça. No outro lado do corredor, uma estátua de mármore de São Cristóvão sustentava nos braços uma criancinha com um sorriso beatífico. E elevando-se acima de tudo estavam os maciços vitrais bávaros, agora escuros, mas ainda resplande­centes com a luz de velas refletida, criando jóias a partir do vidro comum.

Mas nenhuma obra de arte era mais espetacular do que o sarcófago de ouro atrás do altar, trancado em vidro e metal. Embora fosse apenas do tamanho de uma arca grande e tivesse sido construído na forma de uma igreja em miniatura, o relicário era o objeto mais importante da catedral, o motivo para a construção de um templo tão imponente, o ponto focal da fé e da arte. Ele protegia a mais sagrada das relíquias da igreja. De ouro maciço, o relicário fora feito muito antes de começar a construção da catedral. Desenhado por Nicolas de Verdun no século XIII, o sarcófago era considerado o melhor exemplo de obra em ouro medieval existente.

Enquanto Jason continuava seu exame cuidadoso, a missa foi-se aproxi­mando aos poucos do fim, marcada por sinetas e orações. Chegou afinal a hora da comunhão, a fração do pão eucarístico. Os paroquianos lentamente saíram em fila de seus bancos e percorreram os corredores para receber o corpo e o sangue de Jesus Cristo.

Quando chegou a vez de Mandy, ela ergueu-se junto com as outras pessoas que estavam em seu banco, tirando de mansinho a mão da de Jason.

- Eu volto já - sussurrou ela.

Jason olhou para seu banco vazio e para a lenta procissão que seguia rumo ao altar. Ansioso pela volta de Mandy, levantou-se para esticar as pernas. Apro­veitou esse momento para observar cuidadosamente as estátuas que flanqueavam um confessionário. Agora de pé, também se arrependeu de ter consumido a terceira lata de Coca-Cola. Olhou para trás, para o vestíbulo da catedral. Havia um toalete público fora da nave.

Olhando ansiosamente para trás, ele foi o primeiro a avistar um grupo de monges entrando pelos fundos da catedral, marchando em fila através de todas as portas dos fundos. Conquanto usassem batinas pretas completas, capuzes e faixas à cintura, Jason percebeu de imediato que havia algo de estranho. Eles se moviam depressa demais, com uma convicta precisão militar, deslizando furti­vamente para as sombras.

Seria a última parte da pompa?

Uma olhadela pela Catedral revelou mais figuras encobertas junto a outras portas, até mesmo além do transepto isolado com cordas ao lado do altar. Em­bora mantivessem a cabeça curvada numa atitude pia, parecia que estavam de guarda.

O que estava acontecendo?

Ele avistou Mandy perto do altar no instante em que ela recebia a comunhão. Havia apenas um punhado de paroquianos atrás dela. O corpo e o sangue de Cristo, Jason quase conseguia entender as palavras pelo movimento dos lábios.

Amém, ele mesmo respondeu.

A comunhão terminou. Os últimos paroquianos voltaram para seus luga­res, inclusive Mandy. Jason acenou-lhe com a mão, a fim de que ela se acomo­dasse no banco, e em seguida sentou-se ao lado dela.

- O que significam todos estes monges? - perguntou, inclinando-se para a frente.

Ela se ajoelhara com a cabeça curvada. Sua única resposta foi um som para fazê-lo silenciar-se. Ele voltou a sentar-se. A maioria dos paroquianos também estava ajoelhada, com a cabeça inclinada. Só uns poucos como Jason, os que não haviam comungado, permaneceram sentados. À frente, o padre terminou de arrumar tudo, enquanto o idoso arcebispo estava sentado no alto de seu estrado elevado, o queixo de encontro ao peito, meio adormecido.

O mistério e a pompa haviam-se extinguido no coração de Jason. Talvez fosse apenas a pressão da bexiga, mas tudo o que ele queria era sair dali. Chegou a estender a mão para o cotovelo de Mandy, a fim de insistir com ela para saírem.

A movimentação adiante o deteve. Os monges em cada lado do altar saca­ram armas de sob as dobras do tecido. O cinza metálico brilhou com o óleo à luz das velas, Uzis de cano curto, equipadas com longos silenciadores pretos.

O som dos disparos, menos ruidoso do que a tosse em staccato de um fu­mante inveterado, difundiu-se pelo altar. Cabeças ergueram-se ao longo dos bancos. Atrás do altar, o padre, vestido de branco, dançou sob os impactos. Parecia que estava sendo bombardeado por cápsulas de tinta - cápsulas de tin­ta carmesim. Ele tombou sobre o altar, derramando o cálice de vinho junto com seu próprio sangue.

Após um silêncio atordoante, os paroquianos começaram a gritar. As pes­soas levantaram-se bruscamente. O idoso arcebispo tropeçou no seu tablado, erguendo-se horrorizado. O movimento repentino arremessou sua mitra no chão.

Monges precipitaram-se pelos corredores... por trás e pelos lados, gritando ordens e vociferando em alemão, francês e inglês.

Bleiben Sie in Ihren Sitzen... Ne bouge pas...

As vozes eram abafadas, os rostos sob os capuzes estavam obscurecidos por meias de seda preta usadas como máscaras. Mas as armas em punho enfatizavam suas ordens.

Continuem sentados senão vocês morrem!

Mandy voltou a sentar-se com Jason e estendeu-lhe a mão. Ele apertou os dedos dela e olhou ao redor, incapaz de piscar. Todas as portas estavam fecha­das, guardadas.

O que estava acontecendo?

Dentre o bando de monges armados próximos à entrada principal surgiu uma figura, vestida como os outros, apenas mais alta, dando a impressão de levantar-se como se houvesse sido chamada. Seu manto parecia-se mais com uma capa. Sem dúvida um líder, ele não portava armas quando andou a passos largos e com audácia pelo corredor central da nave.

Ele encontrou-se com o arcebispo no altar. Seguiu-se uma acalorada dis­cussão. Jason logo percebeu que eles falavam em latim. O arcebispo de repente recuou horrorizado.

O líder deu um passo para o lado. Dois homens aproximaram-se. As armas reluziram. O objetivo não era matar. Eles atiraram contra a placa que lacrava o relicário de ouro. O vidro trincou e encheu-se de buracos, mas resistiu. A pro­va de balas.

- Ladrões... - sussurrou Jason. Tratava-se de um roubo elaborado.

O arcebispo parecia extrair força da obstinação do vidro, tornando-se mais confiante. O líder dos monges estendeu a mão, ainda falando em latim. O arce­bispo meneou a cabeça.

-        Lassen Sie dann das Blut Ihrer Schafe Ihre Hände beflecken - disse o ho­mem, falando agora em alemão.

Deixe o sangue de suas ovelhas manchar suas mãos.

O líder acenou para dois monges na frente. Eles flanquearam o receptáculo lacrado e ergueram grandes discos de metal em cada lado da estrutura. O efeito foi instantâneo.

O debilitado vidro à prova de balas explodiu de dentro para fora como se impelido por algum vento despercebido. À bruxuleante luz de velas, o sarcófago tremeluziu. Jason sentiu uma pressão súbita, um estalido interno nos ouvidos, como se as paredes da catedral repentinamente houvessem sido empurradas para dentro, esmagando tudo. A pressão fez ensurdecer seus ouvidos; sua visão se comprimiu.

Ele virou-se para Mandy.

A mão dela ainda apertava com força a sua, mas seu pescoço estava arquea­do para trás, a boca escancarada.

- Mandy...

Do canto dos olhos, ele viu outros paroquianos fixos na mesma posição desoladora. A mão dela começou a tremer na sua, vibrando como o tweeter de um alto-falante. Lágrimas escorriam pelo rosto dela, tornando-se sanguino­lentas enquanto ele observava. Ela não respirava. Seu corpo então teve uma contração espasmódica e enrijeceu, deixando livre a mão dele, porém não an­tes de ele sentir um choque elétrico das pontas dos dedos dela para os seus.

Ele ficou de pé, horrorizado demais para sentar-se.

Um fino rastro de fumaça erguia-se da boca de Mandy.

Os olhos dela estavam revirados e já começavam a enegrecer nos cantos.

Morta.

Jason, mudo de terror, esquadrinhou a catedral. O mesmo estava aconte­cendo em toda a parte. Apenas alguns fiéis haviam escapado: duas crianças pequenas, imprensadas entre os pais, choravam e gritavam de desespero. Jason reconheceu os não afetados. Aqueles que não haviam comungado.

Como ele.

Ele recuou para as sombras junto à parede. Seu movimento passara mo­mentaneamente despercebido. Suas costas encontraram uma porta que não estava sendo guardada pelos monges. Não uma porta de verdade.

Jason abriu-a o suficiente para entrar de mansinho no confessionário.

Ele caiu de joelhos, agachando-se e abraçando a si mesmo.

Preces vieram-lhe aos lábios.

Então, também de maneira súbita, terminou. Ele o sentiu na cabeça. Um estalido. Um alívio da pressão. As paredes da catedral suspirando de volta. Ele chorava. Lágrimas frias desciam-lhe pelo rosto.

Ele arriscou-se a dar uma espiada por um orifício na porta do confessionário.

Jason olhou fixamente, obtendo uma visão clara da nave e do altar. O ar recendia a cabelos queimados. Gritos e lamentos ainda ecoavam, mas agora o coro vinha de algumas gargantas apenas. Dos que estavam vivos. Um vulto, a julgar por seus trajes esfarrapados um sem-teto, saiu aos tropeços de um banco e desceu correndo pela nave lateral. Antes de dar dez passos, foi atingido na parte de trás da cabeça. Um único disparo. Seu corpo estatelou-se no chão.

Oh! meu Deus... oh! meu Deus...

Reprimindo os soluços, Jason continuou com os olhos fixos no altar.

Quatro monges ergueram o sarcófago de ouro de seu estojo estilhaçado. O corpo do padre assassinado foi empurrado do altar com os pés e substituído pelo relicário. O líder tirou um grande saco de tecido de sob o seu manto. Os monges abriram a tampa do relicário e puseram o conteúdo em pé no saco. Depois de esvaziado, o sarcófago inestimável foi jogado no chão e abandonado com um estrondo.

O líder pendurou sua carga no ombro e dirigiu-se ao corredor central com as relíquias roubadas.

O arcebispo gritou com ele. De novo em latim. Parecia uma maldição. A única reação do homem foi um aceno de braço.

Outro monge aproximou-se por trás do arcebispo e apontou uma pistola para a parte de trás da cabeça dele.

Jason abaixou-se para não ver mais nada.

Ele fechou os olhos. Outros disparos soaram pela catedral. Esporádicos. Os gritos de repente cessaram. A morte espalhou-se silenciosamente pela catedral quando os monges massacraram os poucos sobreviventes.

Jason manteve os olhos fechados e rezou.

Pouco antes, ele avistara o escudo de armas sobre o manto do líder. A capa negra do homem rasgou-se quando ele levantou o braço, revelando um dese­nho vermelho por baixo: um dragão enroscado, a cauda em volta do próprio pescoço. Jason não conhecia o símbolo, mas este possuía um toque exótico, mais oriental do que europeu.

Além da porta do confessionário, um silêncio de pedra abateu-se sobre a catedral.

O som de passos com botas aproximou-se de seu esconderijo. Jason apertou ainda mais os olhos, contra o horror, contra a impossibilida­de, contra o sacrilégio.

Tudo por um saco de ossos.

E, embora a catedral houvesse sido construída em torno desses ossos, e inú­meros reis houvessem se curvado diante deles, e até mesmo aquela missa fosse uma festa em homenagem àqueles homens há muito mortos - a Festa dos Três Reis Magos -, uma pergunta aflorou antes de tudo à mente de Jason.

Por quê?

Por toda a catedral havia imagens dos Três Reis Magos - de pedra, vidro e ouro. Num painel, eles conduziam camelos através de um deserto, guiados pela Estrela de Belém. Noutro, era representada a adoração do Cristo menino, exi­bindo figuras ajoelhadas ofertando os presentes de ouro, incenso e mirra.

Mas Jason fechou a mente a tudo aquilo. Tudo o que ele conseguia imaginar era o último sorriso de Mandy. O toque suave dela.

Tudo acabado.

As botas pararam do lado de fora da porta do confessionário.

Ele clamou em silêncio por uma resposta para toda aquela carnificina.

Por quê?

Por que roubar os ossos dos Reis Magos?

 

O sabotador havia chegado.

Grayson Pierce avançou devagar em sua motocicleta por entre os edifícios escuros que formavam o coração do Forte Detrick. Ele manteve a moto em mar­cha lenta. O ruído do motor elétrico era mais baixo do que o de uma geladeira. As luvas pretas que ele usava combinavam com a tinta da moto, um composto de níquel-fósforo chamado NPL Super Black. Essa tinta absorvia uma quantidade maior da luz visível, fazendo com que o preto comum parecesse simplesmente cintilante. Seu macacão de tecido e seu capacete rígido também eram escuros.

Curvado sobre a moto, ele se aproximou do fim da aléia. Adiante abria-se um pátio, um vazio escuro emoldurado pelos edifícios de alvenaria que com­punham o Instituto Nacional do Câncer, um anexo do Instituto de Pesquisa Médica de Doenças Infecciosas do Exército americano (USAMRIID na sigla em inglês). Ali a guerra do país contra o bioterrorismo era travada em 5.500m de laboratórios de contenção máxima.

Gray desligou o motor mas continuou sentado, o joelho esquerdo apoiado na sacola. Ali dentro estavam os setenta mil dólares. Ele permaneceu na aléia, evitando o pátio aberto. Preferia a escuridão. Já fazia bastante tempo que a Lua havia se posto, e só dali a 22 minutos o Sol nasceria. Até mesmo as estrelas permaneciam encobertas pelos indícios remanescentes da tempestade de ve­rão da noite anterior.

Será que seu estratagema daria certo?

Ele subvocalizou ao microfone que trazia à garganta.

Mula para Águia. Cheguei ao lugar do encontro. Vou continuar a pé.

Recebido e entendido. Estamos acompanhando você por satélite.

Gray resistiu ao impulso de olhar para cima e acenar. Ele detestava ser ob­servado, vigiado, mas esse negócio era importante demais. Conseguira obter uma concessão: ir ao encontro sozinho. Seu contato era desconfiado. Foram necessários seis meses para amaciá-lo, para arrumar intermediários na Líbia e no Sudão. Não fora nada fácil. O dinheiro não comprava muita confiança. Es­pecialmente nesse negócio.

Ele pegou a sacola com o dinheiro e pendurou-a no ombro. Cauteloso, em­purrou a moto para um canto abrigado da luz no outro lado, estacionou-a e passou uma perna por cima do assento.

Desceu a aléia.

Àquela hora, poucos olhos estavam alertas, e a maioria deles eram apenas eletrônicos. Todos os seus documentos de identificação haviam sido inspecionados no Portão da Fazenda Velha, a entrada de serviço da base. E agora ele tinha de confiar em que seu subterfúgio durasse o tempo necessário para escapar à vigilância eletrônica.

Ele deu uma olhadela no mostrador fosforescente de seu relógio de mergu­lhador Breitling: 04:45h. O encontro estava marcado para dali a 15 minutos. Muita coisa dependia de seu êxito ali.

Gray chegou a seu destino, o Edifício 470, deserto àquele hora, aguardando demolição no mês seguinte. Com segurança precária, o edifício era perfeito para o encontro, embora a escolha do lugar também fosse singularmente irôni­ca. Na década de 1960, esporos de antraz haviam sido produzidos no interior do edifício, em cubas e tanques imensos, fermentando cepas de morte bacteriana, até a cervejaria tóxica ser desativada em 1971. Desde então, o edifí­cio fora abandonado, transformando-se num depósito gigantesco do Instituto Nacional do Câncer.

Porém, mais uma vez, o negócio do antraz seria conduzido sob aquele teto. Ele olhou para cima. Todas as janelas estavam escuras. Ele tinha de encontrar o vendedor no quarto andar.

Chegando à porta lateral, abriu a fechadura com um cartão eletrônico forne­cido pelo seu contato na base. No ombro, trazia a segunda parte do pagamento do homem; a primeira parte fora transferida um mês antes para a conta bancá­ria dele. Gray também carregava um punhal de plástico carbonizado, de trinta centímetros de comprimento, numa bainha de pulso oculta.

Sua única arma.

Ele não poderia correr o risco de entrar com qualquer outra coisa pelo portão de segurança.

Gray fechou a porta e dirigiu-se ao poço da escada, situado à direita. A única luz na escada provinha do sinal de SAÍDA vermelho. Ele estendeu a mão para o seu capacete de motociclista e acionou o modo de visão noturna. O inundo iluminou-se em tons de verde e prata. Ele subiu rapidamente a escada até o quarto andar.

No alto, empurrou a porta na plataforma e entrou.

Ele não fazia a menor idéia de onde deveria encontrar-se com o seu contato. Apenas que teria de aguardar o sinal do homem. Parou para tomar fôlego junto à porta, inspecionando o espaço à sua frente. Ele não gostava daquilo.

O poço da escada abria-se no canto do edifício. Um corredor estendia-se bem em frente; o outro dobrava à esquerda. Portas de escritório de vidro fosco revestiam as paredes internas; janelas rasgavam a externa. Ele continuou sem­pre em frente, a passos lentos, alerta a qualquer sinal de movimento.

Uma torrente de luz atravessou uma das janelas, derramando-se sobre ele.

Ofuscado pela visão noturna, ele encostou-se à parede, voltando para a es­curidão. Será que o tinham visto? O fluxo de luz penetrou nas outras janelas, uma após a outra, indo até o saguão diante dele.

Encostado à parede, ele olhou através de uma das janelas. Ela dava para o amplo pátio em frente do edifício. No outro lado do caminho, observou um Humvee descer lentamente a rua. Seu holofote varria o pátio.

Uma patrulha.

Será que a vigilância assustaria seu contato?

Praguejando em silêncio, Gray esperou que o jipe terminasse sua ronda. A patrulha desapareceu por um momento, passando por trás de uma estrutura volumosa que se elevava do meio do pátio lá embaixo. Ela se parecia com uma nave espacial enferrujada, mas na verdade era uma esfera de contenção de aço de um milhão de litros, com a altura de três andares, apoiada numa dezena de pernas que lhe serviam de pedestal. Escadas e plataformas circundavam a es­trutura enquanto ela era reformada, uma tentativa de devolvê-la à sua antiga glória, quando era uma instalação de pesquisas para a Guerra Fria. Até mesmo o passadiço de aço que outrora rodeara o equador da esfera fora reposto.

Gray sabia o apelido da esfera gigante na base.

Bola Oito.

Um sorriso sem graça vincou seus lábios quando ele se deu conta de sua situação desfavorável.

Encurralado atrás da bola oito...

A patrulha por fim reapareceu além da estrutura, cruzou lentamente a par­te da frente do pátio e afastou-se.

Satisfeito, Gray prosseguiu em direção ao fim do corredor. Um conjunto de portas de vaivém duplas bloqueava a passagem, mas suas vidraças finas revela­vam uma sala maior além. Ele avistou alguns tanques altos e esguios de metal e vidro. Um dos antigos laboratórios. Sem janelas e às escuras.

Deviam ter percebido sua aproximação.

Uma luz diferente tremeluzia lá dentro, incandescente, forte o bastante para que Gray desligasse sua visão noturna. O clarão de uma lanterna. Piscou três vezes.

Um sinal.

Ele se encaminhou para a porta de vaivém, abriu um dos lados com um dedo do pé e esgueirou-se pela abertura estreita.

- Aqui - disse com calma uma voz.

Era a primeira vez que Gray ouvia a voz de seu contato. Antes, o som dela sempre fora amortecido eletronicamente, um nível paranóico de anonimato.

Era uma voz feminina. A revelação aguçou sua cautela. Ele não gostava de surpresas.

Seguiu através de um labirinto de mesas com cadeiras empilhadas em cima. Ela estava sentada a uma das mesas, sobre a qual outras cadeiras ainda estavam amontoadas. Exceto uma. No lado oposto da mesa. A cadeira moveu-se quan­do a mulher chutou uma de suas pernas.

- Sente-se.

Gray supusera que fosse encontrar um cientista nervoso, alguém que tencio­nava receber um salário extra. Traição por dinheiro estava se tornando cada vez mais comum entre as mais destacadas instituições de pesquisa.

O USAMRIID não era exceção... só que mil vezes mais letal. Cada frasco à venda, se fosse adequadamente aerossolizado numa estação do metrô ou num terminal de ônibus, era capaz de matar milhares de pessoas.

E ela estava vendendo 15 deles.

Ele acomodou-se na cadeira, pondo a sacola com o dinheiro sobre a mesa.

A mulher era asiática... não, ewrasiática. Seus olhos eram mais abertos e sua pele tinha um profundo e belo bronzeado. Ela usava um macacão de gola alta, não muito diferente do dele, apertando um corpo esbelto e gracioso. Um pin­gente de prata pendia de seu pescoço, reluzente contra o macacão, exibindo um minúsculo amuleto com um dragão enroscado. Gray observou-a atenta­mente. As feições da Dama do Dragão, em vez de tensas e circunspectas como as dele, pareciam entediadas.

É claro que a Sig Sauer de 9mm apontada para o peito dele e equipada com um silenciador poderia ser a fonte da confiança dela. Mas as palavras que ela proferiu em seguida é que na verdade fizeram seu sangue gelar.

- Boa-noite, comandante Pierce.

Ele sobressaltou-se ao ouvir seu nome. Se ela sabia que...

Ele já estava em movimento... mas era tarde demais. A arma disparou à queima-roupa.

O impacto projetou seu corpo para trás, levando junto a cadeira. Ele caiu de costas, embaraçado nas pernas da cadeira. A dor comprimiu seu peito, tornan­do impossível respirar. Ele sentiu o gosto de sangue na língua.

Traído...

Ela contornou a mesa e debruçou-se sobre a sua forma estatelada, a arma ainda apontada, não lhe deixando nenhuma chance. O pingente de prata com o dragão balançava e cintilava intensamente.

- Suspeito que você esteja gravando tudo isto através do seu capacete, co­mandante Pierce. Talvez até transmitindo para Washington... para a Sigma. Você não se incomoda se eu tomar emprestado um pouco do tempo de trans­missão, não é mesmo?

Ele não estava em condições de objetar.

A mulher inclinou-se um pouco mais sobre ele.

- Nos próximos dez minutos, a Guilda fechará todo o Forte Detrick. Con­taminará a base inteira com antraz. É o troco pela interferência da Sigma na nossa operação em Omã. Mas devo a seu diretor, Painter Crowe, algo mais. Algo pessoal. Isto é pela minha companheira de ação, Cassandra Sanchez.

A arma deslocou-se para a viseira do capacete dele.

- Sangue por sangue.

Ela puxou o gatilho.

 

A setenta quilômetros de distância, a alimentação do satélite extinguiu-se.

- Onde está a câmera de reserva dele? - Painter Crowe manteve a voz firme, reprimindo uma litania de imprecações. O pânico de nada lhes adiantaria.

- Continua desligada há dez minutos.

- Você pode restabelecer a conexão?

O técnico fez que não com a cabeça.

- Perdemos a alimentação principal da câmera no capacete dele. Mas ainda temos a vista aérea da base transmitida pelo satélite NRO.

O rapaz indicou outro monitor. Ele exibia uma imagem em preto e branco do Forte Detrick, filmada de cima, focalizando um pátio quadrangular rodeado por edifícios.

Painter andava de um lado para outro diante da sucessão de monitores. Tudo fora uma armadilha, direcionada contra a Sigma e visando a ele em particular.

Alertem a segurança do Forte Detrick.

Senhor?

A pergunta era do vice-diretor, Logan Gregory.

Painter entendeu a hesitação de Logan. Apenas um pequeno número de pes­soas no poder sabia da Sigma e dos agentes que nela trabalhavam: o presidente, os chefes da junta e seus supervisores imediatos na DARPA. Depois do estre­mecimento entre os membros da alta administração no ano anterior, a organi­zação estava sob intensa vigilância. Erros não seriam tolerados.

Eu não poria um agente em risco - disse Painter. - Chame-os de volta.

Sim, senhor.

Logan dirigiu-se a um telefone no outro lado da sala. O homem parecia mais um surfista da Califórnia do que um importante estrategista: cabelos lou­ros, bronzeado, em boa forma, mas começando a ficar com a barriga meio llácida. Painter era sua sombra mais escura, meio indígena americano, cabelos pretos, olhos azuis. Mas não era bronzeado. Ele não sabia quando vira o sol pela última vez.

Painter precisava sentar-se, baixar a cabeça até os joelhos. Ele havia assumi­do o controle da organização apenas oito meses atrás. E a maior parte desse lempo fora gasta na reestruturação e no reforço da segurança depois da infil­tração do grupo por um cartel internacional conhecido como Guilda. Fora impossível dizer quais informações haviam sido recolhidas, vendidas ou disse­minadas durante esse tempo, de modo que tudo teve de ser expurgado e reconstruído a partir do zero. Até o comando central deles havia sido transferido de Arlington para um labirinto subterrâneo em Washington.

Na verdade, Painter chegara cedo naquela manhã, a fim de desembalar cai­xas em seu novo escritório, quando recebeu a chamada de emergência do reco­nhecimento por satélite.

Ele observou com atenção o monitor do satélite NRO.

Uma cilada.

Ele sabia o que a Guilda andava fazendo. Quatro semanas antes, ele havia começado a pôr agentes secretos em campo de novo, os primeiros em mais de um ano. Foi um teste experimental. Duas equipes. Uma em Los Alamos, investigando o desaparecimento de um banco de dados nucleares... e a outra em seu próprio quintal, no Forte Detrick, apenas a uma hora de Washington.

O ataque da Guilda procurava abalar a Sigma e seu líder. Para provar que a Guilda ainda tinha conhecimentos para arruinar aos poucos a Sigma. Era um artifício para obrigar a Sigma a recuar novamente, a se reorganizar, talvez a se dissolver. Com o grupo de Painter fora de ação, a Guilda tinha maior chance de operar com impunidade.

Isso não devia acontecer.

Painter parou de andar de um lado para outro e voltou-se para o vice-diretor, a pergunta inteligível em seu rosto.

- Eu continuo tendo interrupções - disse Logan, apontando para os fones de ouvido. - Estão ocorrendo interrupções de comunicação intermitentes em toda a base.

Sem dúvida, obra da Guilda também...

Frustrado, Painter debruçou-se sobre o console e olhou fixamente para o dossiê da missão. No alto do arquivo de papel-manilha, estava impressa uma única letra grega.

 

                       ∑

 

Em matemática, sigma representava "a soma de todas as partes", a unifica­ção de conjuntos díspares num todo. Também simbolizava a organização que Painter dirigia: a Força Sigma.

Operando sob os auspícios do DARPA - o setor de pesquisa e desenvolvi­mento do Departamento de Defesa -, a Sigma servia de braço armado secreto da agência no mundo, desenvolvida para salvaguardar, adquirir ou neutralizar tecnologias vitais à segurança dos Estados Unidos. Os membros de sua equipe eram um quadro ultra-secreto de ex-soldados das Forças Especiais que haviam sido escolhidos a dedo e matriculados em rigorosos programas de doutoramento de curta duração, abrangendo uma vasta gama de disciplinas científicas, constituindo uma equipe militarizada de agentes secretos com formação técnica.

Ou, em termos mais simples, cientistas assassinos.

Painter abriu o dossiê à sua frente. A ficha do líder da equipe era a primeira do arquivo.

Dr. e comandante Grayson Pierce.

A fotografia do agente encarava-o do canto superior direito. Tratava-se de uma foto do rosto do homem tirada durante seu ano de prisão em Leavenworth. Cabelos escuros cortados bem curtos à navalha, olhos azuis sempre zangados. Sua herança galesa era evidente nos ossos malares pronunciados, nos olhos arregalados e na mandíbula forte. Mas sua tez corada era inteiramente texana, queimada pelo sol que pairava acima das áridas colinas do Condado de Brown.

Painter não se deu o trabalho de correr os olhos pela ficha de mais de 2,5 centímetros de espessura. Ele conhecia os detalhes. Gray Pierce entrara para o Exército aos 18 anos, para os Rangers aos 21, e servira com distinção em cam­po e fora dele. Então, aos 23 anos, foi submetido à corte marcial por agredir um oficial superior. Painter conhecia os detalhes e os antecedentes dos dois na Bósnia. E, levando os acontecimentos em consideração, ele talvez tivesse feito o mesmo. No entanto, as regras eram duras nas Forças Armadas. O condecora­do soldado passou um ano em Leavenworth.

Porém, Gray Pierce era valioso demais para ser posto de lado para sempre.

Seu treinamento e suas habilidades não poderiam ser desperdiçados.

A Sigma o recrutara três anos antes, logo após sair da prisão.

Agora Gray era um joguete entre a Guilda e a Sigma.

Alguém prestes a ser esmagado.

Consegui entrar em contato com a segurança da base! - exclamou Logan, o alívio soando em sua voz.

Entenda-se com eles...

Senhor! - O técnico levantou-se de um salto, ainda preso a seu console pelo fio dos fones de ouvido. Ele olhou para Painter. - Diretor Crowe, eu estou captando um sinal de alimentação de áudio.

O quê...? - Painter aproximou-se do técnico. Ele ergueu uma das mãos para manter Logan a distância.

O técnico aumentou o volume da alimentação nos alto-falantes. Uma voz metálica chegou até eles, embora a alimentação de vídeo continuasse funcionando mal.

Formou-se uma palavra.

"Váparaoinfernosuafilhadaputademerda.."

 

Gray libertou um calcanhar, acertando a mulher no diafragma. Ele sentiu um agradável baque de carne, mas não ouviu nada. Seus ouvidos zuniam por causa do impacto da bala contra seu capacete de Kevlar. O tiro havia trans­formado a viseira numa teia de aranha. Seu ouvido esquerdo ardeu quando o painel eletrônico entrou em curto-circuito com uma explosão de estática. Ele ignorou tudo isso.

Erguendo-se, tirou furtivamente o punhal carbonizado da bainha de pulso e mergulhou sob uma fila de mesas próxima. Outro disparo, com o som de um tossido alto, reverberou em seus ouvidos. Lascas de madeira desprenderam-se do canto da mesa.

Ele limpou a outra extremidade e ficou agachado em alerta enquanto es­quadrinhava a sala. Seu chute havia derrubado a lanterna da mulher, que rolou no chão, espalhando sombras por toda a parte. Ele passou os dedos pelo peito. O impacto no corpo causado pelo primeiro disparo da assassina ainda queimava e doía.

Mas não havia sangue.

A mulher gritou-lhe das sombras.

- Colete de proteção líquido.

Gray abaixou-se ainda mais, tentando localizar a mulher. O mergulho sob a mesa havia danificado o visor frontal interno de seu capacete. Suas imagens holográficas oscilavam de maneira incoerente pelo interior da viseira do capa­cete, interferindo em suas linhas de visão, mas ele não ousou tirar o capacete. Este oferecia a melhor proteção contra a arma que a mulher ainda empunhava.

O capacete e seu macacão.

A assassina tinha razão. Colete de proteção líquido. Desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisas do Exército americano em 2003. O tecido de seu macacão fora impregnado com um fluido espessante ao corte - micropartículas duras de sílica suspensas numa solução de polietilenoglicol. Durante o movi­mento normal, ele agia como um líquido, mas, ao ser atingido por uma bala, o material solidifica-se num escudo rígido, evitando a penetração. O macacão acabara de salvar a sua vida.

Pelo menos por ora.

A mulher voltou a falar, com uma calma fria, enquanto dava a volta lenta­mente em direção à porta.

- Eu preparei o edifício com C4 e TNT. Foi bastante fácil, porque a estru­tura vai ser demolida. O Exército foi muito legal em ter instalado os fios elétri­cos com antecedência. Foi necessário apenas fazer uma pequena alteração no detonador para transformar a implosão do edifício numa explosão que causará uma corrente de ar ascendente.

Gray imaginou a resultante coluna de fumaça e os escombros erguendo-se bem alto no céu matinal.

Os frascos de antraz... - murmurou, mas alto o suficiente para que ela ouvisse.

Parecia adequado usar a própria demolição da base como um sistema de descarga tóxica.

Deus do céu, ela havia transformado o edifício inteiro numa bomba biológica.

Com os ventos fortes, não era só a base que corria perigo, mas toda a cidade de Frederick, nas imediações.

Gray mexeu-se. Ela precisava ser detida. Mas onde ela estava?

Ele então andou devagar em direção à porta, atento à arma dela, mas não poderia deixar isso detê-lo. Havia muita coisa em jogo. Ele tentou ligar o modo de visão noturna, porém tudo o que obteve foi o estalido de outra centelha próximo ao ouvido. O visor do campo visual prosseguia com sua errática pro­dução de lampejos, ofuscação e perturbação dos olhos.

Merda.

Ele abriu o fecho com o polegar e puxou o capacete.

A recente corrente de ar cheirava a mofo e a anti-séptico ao mesmo tempo. Permanecendo abaixado, ele segurou o capacete numa das mãos e o punhal na outra. Alcançou a parede de trás e precipitou-se para a porta. Conseguia ver bastante bem para perceber que a porta de vaivém não havia se mexido. A assassina ainda estava na sala.

Mas onde?

E o que poderia fazer para detê-la? Ele apertou o cabo do punhal. Arma de fogo contra punhal. As chances não eram nada boas.

Sem o capacete, ele divisou um deslocamento de sombras perto da porta. Parou, ficando completamente imóvel. Ela estava agachada a um metro da porta, protegida por uma mesa.

Uma luz aquosa filtrava-se do saguão, irradiando-se através das vidraças das portas de vaivém. A aurora aproximava-se, iluminando a passagem além. A assassina teria de se expor para fugir. Por enquanto, ela aferrava-se às sombras do laboratório sem janelas, sem saber se o seu oponente estava armado ou não.

Gray tinha de parar de fazer o jogo da Dama do Dragão.

Com um gesto largo, jogou seu capacete no lado oposto do laboratório. Este caiu no chão com um estrondo e tinido de vidro, despedaçando um dos velhos tanques.

Ele correu em direção ao lugar onde ela estava. Só dispunha de segundos.

A mulher saiu de seu esconderijo e girou para disparar na direção do baru­lho. Ao mesmo tempo, saltou graciosamente em direção à porta, parecendo usar o coice de sua arma para impulsioná-la.

Gray não pôde deixar de ficar impressionado - mas não o bastante para que isso o retardasse.

Com o braço já erguido, arremessou o punhal no ar. Com peso e equilíbrio perfeitos, a lâmina carbonizada voou com precisão certeira. Ele atingiu a mulher bem na concavidade da garganta. Gray continuou seu ataque impetuoso. Só então é que se deu conta de seu erro.

O punhal ricocheteou inofensivamente e caiu no chão com um estardalhaço. Colete de proteção líquido.

Não era de admirar que a Dama do Dragão soubesse a respeito do macacão dele. Ela também usava um igual.

Todavia, o ataque frustrou o salto. Ela caiu com um meio estrondo, torcen­do claramente um joelho. Mas sempre a assassina experiente, jamais perdia seu alvo de vista.

A um passo de distância, apontou a Sig Sauer para o rosto de Gray.

E dessa vez ele não estava de capacete.

 

Perdemos contato de novo - disse o técnico desnecessariamente. Painter ouvira o ruído da queda um momento antes, e então tudo ficou em completo silêncio na alimentação do satélite.

- Eu ainda estou em contato com a segurança da base - disse o vice-diretor pelo telefone.

Painter tentou juntar os fragmentos da cacofonia que ouvira pela linha.

-        Ele arremessou seu capacete.

Os outros dois homens o encararam.

Painter observou o dossiê aberto diante de si. Grayson Pierce não era tolo. Além de sua destreza militar, o homem antes de tudo chamara a atenção da Sigma por causa de seus testes de aptidão e inteligência. Ele sem dúvida estava acima da média, muito acima, mas havia soldados com escores ainda mais altos. O fator decisivo que levou a recrutá-lo havia sido seu comportamento es­tranho enquanto esteve preso em Leavenworth. Apesar dos trabalhos forçados do campo, Grayson iniciara um rigoroso regime de estudo: em química avan­çada e taoísmo. Essa disparidade na escolha de seus objetos de estudo desper­tara a curiosidade de Painter e do ex-diretor da Sigma, o Dr. Sean McKnight.

De muitas formas, ele se revelou uma contradição ambulante: um galês que vivia no Texas, um estudante do taoísmo que ainda trazia consigo um rosário, um soldado que estudava química na prisão. Essa singularidade de seu espírito é que lhe havia assegurado admissão na Sigma.

Mas essas características distintivas tinham seu preço.

Grayson Pierce não trabalhava bem com outras pessoas. Tinha profunda aversão ao trabalho de equipe.

Como agora. Fazendo o trabalho sozinho. Contra o protocolo.

Senhor? - insistiu o vice-diretor. Painter respirou fundo.

Só mais dois minutos.

 

O primeiro tiro passou assobiando por sua orelha.

Gray teve sorte. A assassina disparara depressa demais, antes de estar devi­damente pronta. Gray, ainda fazendo sua investida, conseguiu sair do cami­nho. Um tiro na cabeça não era tão fácil quanto os filmes faziam parecer.

Ele atracou-se com a mulher e imprensou a arma dela entre os dois. Mesmo que ela disparasse, ele ainda teria uma boa probabilidade de sobreviver.

Só que doeria pra diabo.

Ela disparou, comprovando este último ponto de vista.

A bala atingiu a coxa esquerda dele. Parecia o golpe de um martelo, ferindo até a medula. Ele gritou. E por que diabos não haveria de gritar? Doía pra caralho. Porém, ele não largou a Dama do Dragão. Usou sua ira para dar uma cotovelada na garganta dela. Mas o colete de proteção enrijeceu, protegendo-a.

Maldição.

Ela tornou a apertar o gatilho. Ele era mais pesado do que ela, mais muscu­loso do que ela, mas ela não precisava da força de punhos e joelhos. Tinha à sua disposição o poder da artilharia moderna. O impacto inesperado da bala se fez sentir nas suas entranhas. Com a dor espicaçando-o até a espinha dorsal, ele acabou perdendo o fôlego. Ela movia lentamente a arma para cima.

A Sig Sauer tinha um pente de 15 cartuchos. Quantos disparos ela havia feito? Com certeza, ainda tinha o suficiente para esmagá-lo.

Ele precisava pôr um fim àquilo.

Inclinou a cabeça para trás e acertou o rosto dela com a testa. Mas ela não era nenhuma novata em pancadaria. Virou a cabeça, recebendo o golpe no lado do crânio. No entanto, isso deu a ele tempo suficiente para chutar um fio que pendia da mesa próxima. A luminária de leitura presa a ela espatifou-se no chão. A cúpula de vidro verde estilhaçou-se.

Abraçando com força a mulher, ele a rolou sobre a luminária. Era esperar demais que o vidro penetrasse no macacão dela. Mas não era esse o objetivo dele.

Ele ouviu o estalido da lâmpada da luminária sob o peso de ambos.

Ótimo.

Flexionando as pernas sob o próprio corpo, Gray pulou para fora. Era uma tentativa arriscada. Ele voou em direção ao interruptor ao lado da porta de vaivém.

Um tossido da pistola acompanhou uma pancada na região dorsal de sua coluna.

Seu pescoço arqueou-se violentamente para trás. Seu corpo chocou-se com a parede. Quando ele ricocheteou, sua mão tocou o quadro de luz e, com um movimento rápido, ligou o interruptor. Luzes bruxulearam pelo laboratório, instáveis. Instalação elétrica ruim.

Ele voltou em direção à assassina.

Não tinha a expectativa de eletrocutar sua adversária. Isso também só acon­tecia nos filmes. Não era esse o seu objetivo. Em vez disso, ele esperava que a última pessoa que usara a escrivaninha houvesse deixado a luminária ligada.

Mantendo-se de pé, ele virou-se.

A Dama do Dragão estava sentada sobre a luminária quebrada, o braço estendido para ele, a arma fazendo mira. Ela puxou o gatilho, mas errou o alvo. Uma das vidraças da porta de vaivém estilhaçou-se.

Gray afastou-se para o lado, ficando fora de alcance. A mulher não po­dia seguir seu rastro. Ela estava rigidamente paralisada no lugar, incapaz de mover-se.

- Colete de proteção líquido - disse ele, repetindo as palavras que ela pro­nunciara antes. - O líquido é adequado para um macacão flexível, mas tam­bém possui uma desvantagem.

Ele aproximou-se dela todo empertigado e tomou-lhe a arma.

- O polietilenoglicol é um álcool, um bom condutor de eletricidade. Mes­mo uma pequena descarga, como a da lâmpada quebrada, flui em segundos sobre um macacão. E, como no caso de qualquer ataque, o macacão reage.

Ele chutou-lhe a canela. O macacão estava duro feito uma rocha.

- Ele enrijece no corpo.

O próprio macacão dela transformara-se em sua prisão.

Ele a revistou rapidamente quando ela fez menção de fugir. Com esforço, ela poderia avançar devagar, mas não mais do que o Homem de Lata enferruja­do de O Mágico de Oz.

Ela entregou os pontos. Seu rosto estava ruborizado pelo esforço.

- Você não vai encontrar nenhum detonador. Está tudo num cronômetro. Ajustado para... - Os olhos dela baixaram para o relógio de pulso. - ...daqui a dois minutos. Você jamais desativará todas as cargas.

Gray observou o número no relógio dela cair abaixo de 02:00h.

A vida dela também estava presa àquele número. Ele vislumbrou o medo em seus olhos - assassina ou não, ela também era humana e temia sua própria mortalidade, mas todo o seu rosto endureceu-se, harmonizando com seu macacão rígido.

- Onde você escondeu os frascos?

Ele sabia que ela não lhe diria. Mas prestou atenção aos olhos dela. Por um momento, as pupilas moveram-se ligeiramente para cima, depois o focalizaram.

O teto.

Fazia sentido. Ele não precisava de nenhuma outra confirmação. O antraz - Bacillus anthracis - era sensível ao calor. Se ela quisesse que o fluxo de esporos tóxicos se disseminasse para fora em virtude da explosão, os frascos teriam de estar num lugar bem alto, para serem pegos pelo violento deslocamento inicial de ar e lançados em direção ao céu. Ela não poderia correr o risco de que o calor da explosão incinerasse a bactéria transformada em arma.

Antes que ele se movesse, ela cuspiu nele, acertando-o na bochecha.

Ele não se deu o trabalho de limpar o rosto.

Não tinha tempo.

01:48.

Ele empertigou-se e correu para a porta.

- Você jamais vai conseguir! - ela gritou atrás dele.

De algum modo, ela sabia que ele estava indo atrás da bomba biológica, e não fugindo para salvar a própria vida. E, por alguma razão, isso o irritava. Provavelmente, ela o conhecia bem o bastante para fazer aquela suposição.

Ele desceu a toda o corredor externo e deslizou para o poço da escada. Su­biu às pressas os dois lances para chegar à porta que dava para o teto. A saída fora modificada para se enquadrar aos padrões da OSHA. Uma barra de emer­gência bloqueava a porta, que servia para uma rápida evacuação, sem causar pânico, no caso de incêndio.

Pânico definia muito bem aquele momento.

Ele golpeou a barra, fazendo disparar um alarme Klaxon, e saiu para o cinza-escuro do alvorecer. O teto era de alcatrão e papel. Areia rangia sob seus pés. Ele sondou a área. Havia muitos lugares para esconder os frascos: respiradouros, canos de exaustão, antenas de satélite.

Onde?

Seu tempo esgotava-se.

 

Ele está no teto! - exclamou o técnico, espetando um dedo no monitor do satélite NRO.

Painter inclinou-se um pouco mais e viu uma figura minúscula apare­cer na tela. O que Grayson estava fazendo no teto? Painter esquadrinhou a área próxima.

Algum sinal de perseguição?

Nenhum que eu possa detectar, senhor.

Logan falou pelo telefone.

A segurança da base relata um alarme de incêndio no Edifício 470.

Ele deve ter disparado o alarme de evacuação - interpôs o técnico.

Você pode chegar mais perto? - perguntou Painter.

O técnico fez que sim com a cabeça e acionou um interruptor. A imagem deu um zoom em Grayson Pierce. Ele estava sem o capacete. Sua orelha esquer­da parecia manchada, ensangüentada. Ele permanecia de pé junto à entrada.

O que ele está fazendo? - perguntou o técnico.

A segurança da base está começando a agir - informou Logan. Painter balançou a cabeça, mas uma fria certeza o congelou.

- Diga à segurança da base que é para ficar de fora. Mande-os evacuar qual­quer pessoa próxima àquele edifício.

Senhor?

Faça o que eu mandei.

 

Gray perscrutou o teto mais uma vez. O Klaxon de emergência continuava a gemer. Ele o ignorou, seguindo em frente. Tinha de pensar como sua presa.

Agachou-se. Havia chovido na noite anterior. Ele imaginou que só recente­mente a mulher havia plantado os frascos, após o aguaceiro. Olhou com bas­tante atenção e notou onde a areia que a chuva afofara se interrompia. Não era muito difícil, porque ele sabia que ela havia passado por aquela porta. Era o único acesso ao teto.

Ele seguiu as pegadas dela.

Elas conduziam através do teto até um exaustor coberto. Lógico.

O cano do exaustor serviria como a chaminé perfeita para expelir os esporos quando os andares inferiores do edifício explodissem, criando uma zarabatana tóxica.

Ajoelhando-se, ele viu onde ela havia mexido na tampa, desfazendo uma antiga camada de ferrugem. Ele não tinha tempo para procurar armadilhas. Puxou o exaustor com um grunhido.

A bomba estava dentro do cano. Os 15 frascos de vidro estavam dispostos em raios ao redor de uma pelota central de C4, suficiente para estilhaçar os recipientes. Ele olhou fixamente para o pó branco que enchia cada tubo. Mor­dendo o lábio inferior, estendeu a mão e, com extremo cuidado, tirou a bomba da abertura estreita do cano. Um cronômetro fazia a contagem regressiva.

00:54.

00:53.

00:52.

Livre do cano do exaustor, Gray empertigou-se. Checou rapidamente a bomba. Fora montada de uma forma que tornava impossível sua violação. Ele não tinha tempo para decifrar os fios e os componentes eletrônicos. A bomba ia explodir. Ele tinha de afastá-la do edifício, afastá-la da zona de explosão, de preferência, afastá-la de si.

00:41.

Uma única chance.

Ele colocou a bomba num bolso de náilon sobre um dos ombros e cami­nhou até a fachada do edifício. Holofotes convergiam para o edifício, atraídos pelo alarme. A segurança da base jamais chegaria ali a tempo.

Ele não tinha escolha.

Precisava livrar-se daquilo... a sua própria vida não importava.

Recuando vários passos da beira do teto, respirou fundo, em seguida correu a toda a velocidade em direção à fachada do edifício. Chegando à beira do teto, deu um longo salto, projetando-se por sobre o parapeito de tijolos.

Ele voou de uma altura de seis andares.

 

Deus do céu! - exclamou Logan quando Grayson pulou do teto.

Ele é doido de pedra - acrescentou o técnico, ficando de pé de um salto.

Painter simplesmente observou a manobra suicida do homem.

Ele está fazendo o que deve fazer.

 

Gray manteve as pernas sob o corpo, os braços estendidos em busca de equilíbrio. Ele mergulhava em direção ao solo. Recitou as leis da física: veloci­dade, trajetória e análise de vetores não o traíam.

Ele preparou-se para o impacto.

Dois andares abaixo e a 18 metros de distância, o teto esférico da Bola Oito erguia-se ao seu encontro. A esfera de contenção de um milhão de litros cinti­lava com o orvalho da manhã.

Ele girou no ar, fazendo um esforço violento para cair em pé.

Então o tempo acelerou. Ou ele.

Seus pés calçados com botas tocaram a superfície da esfera. O colete de proteção líquido cimentou em torno de seus calcanhares, protegendo-o contra uma fratura. O ímpeto projetou-o para a frente, de bruços, com os braços e as pernas estendidos. Porém, ele não atingira o centro do teto da esfera, apenas a curva da estrutura mais próxima do Edifício 470.

Seus dedos arranharam a superfície, mas não havia como agarrar-se, ne­nhuma tração.

Seu corpo deslizou pelo aço orvalhado, ficando ligeiramente oblíquo. Ele abriu as pernas, os dedos dos pés movendo-se em busca de fricção. Então pas­sou do ponto sem retorno, em queda livre pelo lado escarpado.

Com a face pressionada contra o aço, não viu o passadiço até atingi-lo. Sua perna esquerda colidiu com ele, em seguida seu corpo tombou atrás dela. Ele caiu apoiado nas mãos e nos joelhos no alto do andaime de metal construído em volta do equador do globo de aço. Ficou em pé, as pernas trêmulas pelo esforço e pelo terror.

Ele não conseguia acreditar que ainda estivesse vivo.

Esquadrinhou a curva da esfera enquanto tirava a bomba biológica do bol­so. A superfície da esfera de contenção era repleta de portinholas, outrora usa­das pelos cientistas para observar seus experimentos biológicos no interior. Em todos os anos de uso regular, nenhum agente patogênico jamais escapara.

Gray rezou para que o mesmo acontecesse naquela manhã.

Ele olhou de relance para a bomba em sua mão: 00:18.

Sem tempo para xingar, correu ao longo do passadiço externo, à procura de uma portinhola. Encontrou-a a meio hemisfério de distância. Uma porta de aço com uma portinhola. Precipitou-se para ela, agarrou a maçaneta e puxou-a com força.

Ela recusou-se a mover-se.

Trancada.

 

Painter observou Grayson puxar com força a portinhola da esfera gigante. Notou o esforço frenético, reconheceu e entendeu a urgência. Ele vira o disposi­tivo explosivo ser recuperado do cano do exaustor. Sabia o objetivo da missão da equipe de Grayson: servir de isca para uma pessoa suspeita de traficar agentes patogênicos usados como armas.

Painter não tinha dúvidas sobre a forma de morte dentro da bomba. Antraz.

Era evidente que Grayson não conseguira desativar o dispositivo e procu­rava desfazer-se dele de uma maneira segura. Ele não estava tendo sorte. De quanto tempo dispunha?

 

00:18

Grayson voltou a correr. Talvez houvesse outra portinhola. Ele avançou pesadamente ao redor do passadiço. Tinha a impressão de que corria com bo­tas de esquiar, os calcanhares ainda cimentados no macacão.

Contornou outro meio hemisfério.        

Outra portinhola surgiu adiante.

- EI, VOCÊ! PARADO AÍ!

A segurança da base.

A veemência e o rugido do megafone quase o fizeram obedecer.

Quase.

Ele continuou correndo. A luz de um holofote espalhou-se sobre ele.

- PARE, SENÃO VAMOS ATIRAR!

Ele estava sem tempo para negociar.

Ouviu-se um barulho ensurdecedor de tiros do lado da esfera, alguns zu­nindo longe do passadiço. Nenhum perto dele. Tiros de advertência.

Ele alcançou a segunda portinhola, agarrou a maçaneta, girou-a e puxou-a com força.

Ela emperrou por um instante, em seguida abriu-se com um estalido. Ele suspirou de alívio.

Arremessou o dispositivo no interior oco da esfera, bateu a porta, trancando-a, apoiou as costas contra ela e foi deslizando até sentar-se.

- EI, VOCÊ AÍ! FIQUE ONDE ESTÁ!

Ele não tinha intenção de ir a lugar algum. Estava feliz onde estava. Sentiu um pequeno solavanco nas costas. A esfera soou como um sino badalando. O dispositivo explodira no interior, contido de maneira segura.

Mas era apenas o início de coisas piores que estavam por vir. Como o embate de deuses titânicos, uma série de explosões dissonantes sacudiu o chão.

Bum... bum... bum...

Em seqüência, cronometradas, orquestradas.

Era a demolição programada do Edifício 470.

Mesmo insulado no outro lado da esfera, Gray sentiu a ligeira sucção do ar, depois um forte assobio de deslocamento quando o edifício inspirou pela últi­ma vez, para logo expirar. Uma densa parede de poeira e detritos arremessou-se para fora quando o edifício desabou. Gray olhou para o alto a tempo de ver uma possante nuvem de fumaça e poeira surgir repentinamente acima, cres­cendo e espalhando-se ao vento.

Mas a morte não viajava nessa brisa.

Uma última explosão ressoou do edifício agonizante. Ouviu-se um estron­do de tijolos e brita, uma avalanche de pedras. O solo agitou-se embaixo dele... e então ele ouviu um novo som.

O guincho de metal.

Sacudidas pelas explosões, com os alicerces abalados, duas das pernas que sustentavam a Bola Oito estalaram e curvaram-se, como se a esfera estivesse tentando ajoelhar-se. Toda a estrutura pendeu do edifício, em direção à rua.

Mais pernas estalaram.

E, uma vez iniciado, não havia como parar aquilo.

A esfera de contenção de um milhão de litros tombou em direção à fila de jipes da segurança.

Com Gray bem embaixo dela.

Ele tomou impulso e subiu com dificuldade pelo passadiço que se inclina­va, esforçando-se para escapar ao impacto. Percorreu vários degraus, mas o caminho logo ficou íngreme demais, à medida que a esfera continuava a cair verticalmente. O passadiço transformou-se numa escada. Ele cravou os dedos na estrutura de metal e golpeou com as pernas o suporte das grades. Lutou para sair de sob a sombra do peso esmagador da esfera.

Fez uma última e desesperada investida, segurando firme, sem ceder um centímetro sequer.

A Bola Oito atingiu o gramado da frente do pátio e bateu na terra gredosa encharcada pela chuva. O impacto fez o passadiço voar, arremessando Gray de seu poleiro. Ele foi projetado por vários metros e caiu de costas na grama ma­cia. Estivera a apenas poucos metros do solo.

Sentou-se e apoiou-se num dos cotovelos.

A fileira de jipes da segurança recuou quando a esfera caiu na direção deles.

Mas eles não permaneceriam afastados. E ele não deveria ser pego.

Gray levantou-se com um gemido e tropeçou rumo à nuvem de fumaça do edifício que desabara. Só então ele ouviu os alarmes soando por toda a base. Livrou-se do macacão enquanto caminhava, passando o crachá de identifica­ção para seus trajes civis por baixo. Correu para o outro lado do pátio, para o edifício mais próximo, para onde deixara a motocicleta.

Encontrou-a intacta.

Jogando uma perna sobre o assento, girou a chave na ignição. O motor ron­ronou alegremente de volta à vida. Ele estendeu a mão para o acelerador, em seguida parou. Alguma coisa fora pendurada no guidom. Libertou o objeto, olhou-o por um momento e então o enfiou num dos bolsos.

Maldição...

Ele reduziu a velocidade do motor e avançou devagar em sua moto para um beco próximo. O caminho parecia livre no momento. Ele curvou-se, acelerou rapidamente e disparou por entre os edifícios escuros. Ao chegar à Rua Porter, fez uma curva fechada à esquerda, mudando rápido de direção, inclinando o joelho esquerdo para fora a fim de manter o equilíbrio. Apenas alguns carros dividiam a rua com ele. Nenhum deles parecia ser um veículo da Polícia Militar.

Gray ziguezagueou por entre eles e partiu a toda a velocidade em direção à parte mais rural da base que circundava Nallin Pond, uma região de pastagens com colinas de ondulações suaves e trechos cobertos com floresta de madeira de lei.

Ele esperaria o pior do tumulto passar e depois se mandaria. Por ora, estava seguro. Todavia, sentiu no bolso o peso do objeto, deixado como ornamento em sua moto.

Um cordão de prata... com um pingente exibindo um dragão.

 

Painter afastou-se do console do satélite. O técnico havia vislumbrado a fuga de Grayson de motocicleta quando ele surgiu do meio da nuvem de fumaça e poeira. Logan ainda estava ao telefone, transmitindo a informação através de uma série de canais secretos, dando o sinal de fim de alerta. Encoberto de cima, o problema na base seria atribuído a falha de comunicação, instalação elétrica defeituosa, equipamento em deterioração.

A Força Sigma jamais seria mencionada.

O técnico em satélites mantinha seu fone de ouvido no lugar.

Senhor, há um telefonema do diretor da DARPA.

Transfira-o para cá.

Painter pegou outro auscultador. Ele ouviu quando a comunicação desordenada foi desviada.

O técnico fez um aceno de cabeça para ele quando o silêncio na linha pare­ceu adquirir vida. Embora ninguém falasse, Painter quase podia sentir seu mentor e comandante.

- Diretor McKnight? - disse ele, suspeitando de que o homem estivesse telefonando para fazer um interrogatório após o término da missão.

Sua suspeita estava errada.

Ele percebeu o estresse na voz do outro homem.

Painter, acabei de receber algumas informações secretas da Alemanha. Mor­tes estranhas numa catedral. Precisamos de uma equipe no local ao anoitecer.

Tão rápido?

Os detalhes seguirão dentro de 15 minutos. Mas vamos precisar do seu melhor agente para chefiar essa equipe.

Painter olhou para o monitor do satélite. Observou a motocicleta deslizar pelas colinas, tremeluzindo através do esparso abrigo de árvores.

Talvez eu tenha esse homem. Mas posso perguntar a razão da urgência?

Recebi um telefonema hoje de manhã solicitando que a Sigma investigas­se o assunto na Alemanha. O seu grupo foi especificamente convocado.

Convocado? Por quem?

Para fazer com que o Dr. McKnight perdesse o sangue-frio, tinha de ser alguém da importância do presidente. Porém, mais uma vez, a suposição de Painter estava errada.

O diretor explicou.

-        Pelo Vaticano.

 

O almoço que ela combinara havia furado.

A tenente Rachel Verona desceu a escada estreita que conduzia ao subsolo da Basílica de São Clemente. A escavação sob a igreja vinha sendo feita havia dois meses, supervisionada por uma pequena equipe de arqueólogos da Uni­versidade de Nápoles.

- Lasciate ogni Speranza... - murmurou Rachel.

Sua guia, a professora Lena Giovanna, líder do projeto, virou-se, olhando-a de relance. Era uma mulher alta, de pouco mais de 50 anos, mas sua corcunda a fazia parecer mais velha e mais baixa. Deu a Rachel um sorriso cansado.

- Quer dizer então que a senhora conhece Dante Alighieri. Lasciate ogni Speranza, voi ch’entrate! Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais.

Rachel sentiu uma pontada de embaraço. De acordo com Dante, essas pala­vras estavam escritas nos portões do Inferno. Ela não tivera a intenção de que suas palavras fossem ouvidas, mas a acústica ali embaixo quase não permitia privacidade.

-        Não queria ofendê-la, professora.

Um riso abafado foi a resposta.

- Não me ofendi, tenente. Só fiquei surpresa de encontrar alguém na polí­cia militar versado na Divina Comédia, de Dante. Mesmo alguém que trabalhe para a Tutela Patrimônio Culturale dos Carabinieri.

Rachel entendeu o equívoco. Era bastante comum julgar como farinha do mesmo saco todos os membros do Corpo de Carabinieri. A maioria dos civis apenas via os homens e as mulheres uniformizados vigiando ruas e edifícios, armados com fuzis. Porém, ela ingressara nos carabinieri não como policial militar, mas com pós-graduação em psicologia e história da arte. Fora recruta­da para o Corpo de Carabinieri logo após sair da universidade e passou mais dois anos estudando direito internacional na escola de formação de oficiais. Fora escolhida a dedo pelo general Rende, diretor da unidade especial respon­sável pela investigação de roubos de obras de arte e antigüidades, a Tutela Patrimônio Culturale.

Chegando ao fim da escada, Rachel pisou numa poça de lama. A tempesta­de dos últimos dias havia inundado o nível subterrâneo. Ela olhou para baixo irritada. Pelo menos, a poça só chegava até os calcanhares.

Ela usava um par de galochas emprestadas grandes demais, próprias para um homem. Carregava na mão esquerda seus novos escarpins Ferragamo, pre­sente de aniversário da mãe. Não se atreveu a deixá-los na escada. Sempre ha­via ladrões por perto. Se ela perdesse os sapatos ou eles ficassem enlameados, sua mãe sempre voltaria a tocar no assunto.

A professora Giovanna, por outro lado, usava um macacão prático, um tra­je mais adequado para explorar ruínas alagadas do que a calça azul-marinho e a blusa de seda com estampa florida. Mas quando o pager de Rachel disparou 15 minutos antes, ela estava indo encontrar-se com a mãe e a irmã para almo­çarem juntas. Não tivera tempo de voltar a seu apartamento e vestir o uniforme dos carabinieri. Ela tampouco acalentava a esperança de ainda participar da­quele almoço.

Por isso seguira direto para ali, onde se encontrou com alguns carabinieri. Deixou os policiais militares na basílica enquanto começava a investigar o roubo.

Em alguns aspectos, Rachel estava contente pelo adiamento temporário. Ela protelara por muito tempo a comunicação à mãe de que ela e Gino haviam terminado. Na verdade, seu ex-namorado se mudara havia mais de um mês. Rachel já podia imaginar a deliberada decepção nos olhos da mãe, seguida pelos ruídos costumeiros, que significavam: Eu lhe avisei, sem dizer em voz alta o que pensava. E sua irmã mais velha, casada havia três anos, ficaria girando intencionalmente no dedo a aliança de diamantes e sacudindo a cabeça de maneira circunspecta.

Nenhuma delas ficara satisfeita com a escolha profissional de Rachel.

- Como é que você vai prender um marido, sua maluca? - dissera sua mãe, erguendo os braços. - Você corta seus lindos cabelos curtos demais e dorme com uma arma. Nenhum homem pode competir com isso.

For causa disso, Rachel raras vezes saía de Roma para visitar a família em (Pastel Gandolfo, na zona rural, onde esta se estabelecera após a Segunda Guer­ra Mundial, à sombra da residência de verão do papa. Só a sua avó é que a compreendia. Ambas tinham o mesmo amor por antigüidades e armas de fogo. Enquanto crescia, Rachel ouvira avidamente suas histórias sobre a guerra: re­latos horripilantes misturados com humor negro. Sua nonna até mantinha uma Luger P-08 nazista na mesa-de-cabeceira, untada e polida, uma relíquia furta­da de um guarda de fronteira durante a fuga de sua família. Para aquela mulher idosa não havia sapatinhos de bebê de tricô.

- É logo ali em frente - disse a professora. Fia chapinhou em direção a uma entrada reluzente. - Meus alunos estão tomando conta do sítio.

Rachel foi atrás de sua guia, chegou à entrada baixa e, curvando-se, entrou. Aprumou-se numa sala parecida com uma caverna. Iluminada por lanternas elétricas e de carbureto, a abóbada do telhado descrevia um arco acima, cons­truída de blocos talhados de tufo vulcânico presos grosseiramente com arga­massa. Uma gruta feita por mãos humanas. Sem dúvida, um templo romano.

Enquanto chapinhava na sala, Rachel também estava muito cônscia da im­portância da basílica acima. Dedicada a São Clemente no século XII, a igreja fora erguida sobre uma basílica mais antiga, cuja construção remontava ao século IV. Mas mesmo essa igreja antiga ocultava um mistério mais profundo: as ruínas de um pátio de edifícios romanos do século I, incluindo aquele tem­plo pagão. Esse tipo de sobreposição de construções não era raro, uma religião soterrando outra, uma estratificação da história romana.

Ela sentiu um arrepio familiar percorrê-la, sofrendo a pressão do tempo de forma tão concreta quanto o peso das pedras. Embora um século soterrasse outro, ele ainda estava ali. A história primitiva da humanidade preservada em pedra e silêncio. Ali havia uma catedral tão rica quanto a que se erguia acima.

- Estes são meus dois alunos da universidade - disse a professora. - Tia e Roberto.

Na penumbra, Rachel seguiu o olhar da professora e olhou para baixo, des­cobrindo as formas agachadas do rapaz e da moça, ambos de cabelos pretos e também vestindo macacões sujos de lama. Eles estavam identificando com eti­quetas fragmentos de cerâmica e agora se erguiam para cumprimentá-las. Ain­da segurando os sapatos numa das mãos, Rachel apertou-lhes a mão. Embora tivessem idade para estar na universidade, pareciam ter pouco mais de 15 anos.

Por outro lado, talvez fosse porque ela tivesse acabado de comemorar seu 30º. aniversário e todos parecessem estar rejuvenescendo, menos ela.

Por aqui - disse a professora, e conduziu Rachel a um vão na parede do outro lado. - Os ladrões devem ter agido durante a tempestade da noite passada.

A professora Giovanna apontou a lanterna para uma figura de mármore de pé num nicho distante. A estátua tinha um metro de altura - ou teria, se não estivesse faltando a cabeça. Restavam apenas um torso, pernas e um falo de pedra ereto. Um deus da fertilidade romano.

A professora balançou a cabeça, desolada.

- Uma tragédia. Era a única peça de estatuária intacta descoberta aqui.

Rachel entendeu a frustração da mulher. Estendendo a mão livre, ela desli­zou-a sobre o coto do pescoço da estátua. Seus dedos sentiram uma aspereza familiar.

- Serra para metal - murmurou.

Era a ferramenta dos ladrões de sepulturas modernos, fácil de esconder e de manejar. Com um instrumento simples como aquele, ladrões haviam furtado, danificado e destruído obras de arte por toda Roma. O roubo acontecia em questão de segundos, muitas vezes à vista de todos, enquanto o curador estava de costas. E a recompensa valia o risco. O tráfico de antigüidades roubadas revelara-se um negócio lucrativo, superado apenas pelo tráfico de drogas, pela lavagem de dinheiro e pelo comércio de armas. A tal ponto que, em 1992, os militares criaram o Comando Carabinieri Tutela Patrimônio Culturale, a Polí­cia do Legado Cultural. Trabalhando ao lado da Interpol, eles procuravam de­ter essa onda.

Rachel agachou-se diante da estátua e sentiu uma ardência familiar na boca do estômago. Aos poucos, a história romana estava sendo apagada. Era um crime contra o próprio tempo.

Ars longa, vita brevis - sussurrou, uma citação de Hipócrates. Uma de suas prediletas. A arte é longa, a vida é breve.

É mesmo - disse a professora com a voz cheia de dor. - Era um achado magnífico. A cinzelagem, o detalhe sutil, a obra de um mestre artesão. Desfigurá-la de uma forma tão selvagem...

Por que os sacanas não roubaram a estátua inteira? - perguntou Tia. - Pelo menos ela teria sido preservada intacta.

Rachel bateu de leve na protuberância fálica da estátua com um de seus sapatos.

Apesar deste cabo, o objeto é grande demais. O ladrão já deve ter um comprador internacional. Seria mais fácil contrabandear apenas a cabeça atra­vés da fronteira.

Existe alguma esperança de recuperá-la? - perguntou a professora Giovanna.

Rachel não fazia falsas promessas. Das seis mil peças de antigüidade rouba­das no ano anterior, apenas umas poucas haviam sido recuperadas.

Vou precisar de fotografias da estátua intacta para informar a Interpol, de preferência as que dêem destaque à cabeça.

Temos um banco de dados digital - disse a professora Giovanna. - Posso enviar fotos por e-mail.

Rachel fez um sinal afirmativo com a cabeça e permaneceu concentrada na estátua decapitada.

- Ou Roberto simplesmente poderia nos dizer o que fez com a cabeça.

Os olhos da professora voaram para o rapaz.

Roberto recuou.

- O qu-quê?

Seu olhar pasmado percorreu a sala, pousando de novo em sua professora.

- Professore... creia-me, eu não sei de nada. Isto é loucura.

Rachel continuou a examinar atentamente a estátua decapitada - e a única pista de que dispunha. Ela havia pesado a vantagem de usar seus trunfos agora ou na delegacia. Mas isso implicaria entrevistar todo o mundo, tomar depoi­mentos, uma montanha de papéis. Ela fechou os olhos, pensando no almoço, para o qual já estava atrasada. Além disso, se tinha qualquer esperança de rea­ver a peça, a rapidez poderia revelar-se essencial.

Abrindo os olhos, falou com a estátua.

- Você sabia que 64% dos roubos arqueológicos têm como cúmplices pes­soas que trabalham no sítio?

Ela voltou-se para o trio.

A professora Giovanna franziu o cenho.

A senhora não acha mesmo que Roberto...

Quando vocês descobriram a estátua? - perguntou Rachel.

Há dois dias. Mas eu divulguei nossa descoberta no website da Universi­dade de Nápoles. Muitas pessoas sabiam.

Mas quantas pessoas sabiam que o sítio ficaria desprotegido durante a tempestade da noite passada? - Rachel continuava concentrada numa pessoa. - Roberto, você tem algo a dizer?

O rosto dele era uma máscara congelada de incredulidade.

- Eu... não... eu não tenho nada a ver com isto.

Rachel desprendeu seu rádio do cinto.

- Então você não se importa se revistarmos seus aposentos. Talvez para encontrarmos uma serra de metal, algo com bastantes vestígios de mármore em seus dentes para combinar com esta estátua.

Um olhar selvagem familiar penetrou nos olhos dele.

- Eu... eu...

A pena mínima é de cinco anos de prisão - ela pressionou. - Obbligatorio.

À luz da lanterna, ele empalideceu visivelmente.

Isto é, a menos que você coopere. Pode-se obter clemência. Ele meneou a cabeça, mas não estava claro o que negava.

Você teve sua chance.

Ela aproximou o rádio dos lábios. O chiado da estática ecoou ruidosamente no espaço abobadado quando ela apertou o botão.

- Não!

Roberto ergueu a mão, interrompendo-a, como ela suspeitou que ele faria. Ele baixou o olhar para o chão.

Fez-se um longo silêncio. Rachel não o quebrou. Deixou o ambiente ficar pesado.

Por fim, Roberto deixou escapar um leve soluço.

- Eu... tinha dívidas... dívidas de jogo. Eu não tive escolha.

- Dio mio - disse a professora, levando uma das mãos à testa. - Ah, Rober­to, como é que você pôde?

O estudante não tinha resposta.

Rachel conhecia a pressão exercida sobre o rapaz. Não era incomum. Ele era apenas um broto insignificante numa organização muito maior, tão amplamente difundida e entranhada que jamais poderia ser extirpada por completo. O máxi­mo que Rachel poderia esperar era continuar arrancando as ervas daninhas.

Ela levou o rádio aos lábios.

Carabiniere Gerard, estou indo para aí com alguém que tem informações extras.

- ... capitò, Tenente...

Ela desligou o rádio. Roberto estava de pé com as mãos encobrindo o rosto, a carreira arruinada.

- Como a senhora soube? - perguntou a professora.

Rachel não se deu o trabalho de explicar que não era raro membros do crime organizado assediarem, solicitarem ou forçarem a cooperação de pessoas que trabalhavam em sítios arqueológicos. Essa corrupção era indiscriminada, pegando desprevenidos os que de nada suspeitavam, os ingênuos.

Ela afastou-se de Roberto. Com freqüência, era apenas uma questão de discernir quem era o ponto fraco na equipe de pesquisa. Com o rapaz, ela fize­ra uma suposição com base na experiência e depois exercera pressão a fim de ver se estava certa. Fora um risco usar seus trunfos cedo demais. E se tivesse sido Tia em vez de Roberto? Durante o tempo que Rachel teria gastado seguin­do pistas falsas, Tia poderia ter advertido seus compradores. Ou, e se tivesse sido a professora Giovanna, aumentando seu salário na universidade venden­do sua própria descoberta? Havia tantas maneiras pelas quais tudo poderia ter dado errado. Porém, Rachel havia aprendido que era preciso correr riscos para obter recompensa.

A professora Giovanna continuava a encará-la com a mesma pergunta nos olhos. Como ela soubera, para acusar Roberto?

Rachel deu uma olhadela para o falo de pedra da estátua. Só havia uma pista - mas uma pista e tanto.

- Não é apenas a cabeça de cima que vende bem no mercado negro. Existe uma imensa demanda de arte antiga de natureza erótica. Ela vende quase qua­tro vezes mais do que as peças mais conservadoras. Suspeito que nenhuma de vocês duas teria tido qualquer problema em serrar esse apêndice proeminente, mas, por algum motivo, os homens são relutantes. Eles encaram isso de uma maneira muito pessoal.

Rachel balançou a cabeça e se dirigiu à escada que conduzia à basílica.

- Eles nem ao menos castram seus próprios cães.

 

Ainda assim, atrasadíssima...

Dando uma olhada no relógio, Rachel cruzou às pressas a praça com calça­mento de pedras em frente à Basílica de São Clemente. Ela tropeçou numa pedra solta, deu alguns passos tropeçando, mas conseguiu manter o equilíbrio. Olhou de relance para trás, para a pedra, como se ela fosse culpada, e em segui­da para os dedos dos pés.

Merda!

Um arranhão enorme danificara a borda externa de seu sapato.

Erguendo os olhos para o céu, perguntou-se qual santo ofendera. Àquela altura, elas deviam estar na fila para pegar um número.

Ela continuou a cruzar a praça, esquivando-se de um grupo de ciclistas que se dispersavam em torno dela como pombos assustados. Andava com mais cautela, lembrando-se das sábias palavras do imperador Augusto.

Festina lente. Apressa-te devagar.

Só que o imperador Augusto não teve uma mãe que vivia enchendo o saco dele.

Ela afinal alcançou seu Mini Cooper estacionado no canto da praça. O sol a pino fazia-o refletir um prateado ofuscante. Ela deu um sorriso, o primeiro do dia. O carro era outro presente de aniversário. Que ela dera a si mesma. As pessoas só faziam 30 anos uma vez na vida. Foi um pouco extravagante, sobretudo a opção pelo estofamento de couro e pelo modelo seda conversível.

Mas era a alegria de sua vida.

Essa poderia ser uma das razões por que Gino a abandonara um mês atrás. O carro a inspirava muito mais do que o homem com quem ela dividia sua cama. Fora um bom negócio. O carro estava mais disponível emocionalmente.

Além do mais... era conversível. Ela era uma mulher que gostava de flexibi­lidade - se não podia obtê-la de seu homem, obtê-la-ia de seu carro.

Se bem que hoje estava quente demais para fazer topless.

Uma pena.

Ela abriu a porta, mas, antes de entrar no veículo, o telefone celular tocou no seu cinto.

O que seria agora?

Provavelmente era o carabiniere Gerard, em cujos cuidados ela acabara de deixar Roberto. O estudante estava a caminho da Delegacia Parioli para ser interrogado. Ela deu uma olhada no número de telefone no visor do aparelho. Reconheceu o código de discagem internacional - 3906 -, mas não o número.

Por que alguém do Vaticano estava lhe telefonando?

Rachel levou o aparelho ao ouvido.

- Aqui quem fala é a tenente Verona.

Uma voz familiar respondeu.

- Como a minha sobrinha predileta está passando hoje... além de irritar a mãe dela?

- Tio Vigor?

Ela sorriu. Seu tio, mais conhecido como monsenhor Vigor Verona, era di­retor do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã. Mas ele não estava ligando de seu gabinete na universidade.

- Telefonei para a sua mãe, pensando que você estivesse com ela. Mas pare­ce que um carabiniere não tem horário fixo de trabalho. Um fato, creio, do qual a sua querida mãe não gosta.

- Estou indo para o restaurante neste momento.

Ou iria... se eu não tivesse telefonado.

Rachel apoiou uma das mãos no carro.

Tio Vigor, o que você está...

- Já transmiti seu pedido de desculpas à sua mãe. Em vez do almoço, ela e sua irmã vão se encontrar com você para um jantar no início da noite. No Il Matriciano. Você vai pagar, é claro, por causa do transtorno.

É claro que Rachel pagaria - e de muitas outras formas do que apenas em euros.

O que significa tudo isto, tio?

Preciso que você venha me encontrar no Vaticano. Imediatamente. Um passe estará à sua espera na Porta de Sant’Ana.

Ela deu uma olhada no relógio. Teria de cruzar meia Roma.

Tenho de me encontrar com o general Rende na minha delegacia para acompanhar uma investigação já iniciada.

Já falei com o seu comandante. Ele aprovou a sua vinda aqui. Na verdade, você vai ficar à minha disposição uma semana inteira.

Uma semana?

- Ou mais. Eu lhe explicarei quando você chegar aqui.

Ele lhe deu instruções sobre o local onde queria que ela o encontrasse. O cenho dela franziu-se, mas, antes que ela pudesse fazer mais perguntas, seu tio se despediu.

- Ciao, mia bambina.

Sacudindo a cabeça, ela entrou no carro.

Uma semana ou mais?

Parecia que, quando o Vaticano falava, até os militares lhe davam ouvidos. Além do mais, o general Rende era amigo da família havia duas gerações. Ele e o tio Vigor eram próximos como irmãos. Não foi por mero acaso que Rachel chamara a atenção do general e fora recrutada ao sair da Universidade de Roma. Seu tio vinha cuidando dela desde a morte de seu pai num acidente de ônibus 15 anos antes.

Sob a tutela dele, ela passara muitos verões explorando os museus de Roma, hospedando-se na companhia das freiras de Santa Brígida, não muito distante da Universidade Gregoriana, mais conhecida como il Greg, onde o tio Vigor havia estudado e ainda lecionava. E, embora seu tio pudesse ter preferido que ela entrasse para o convento e seguisse seu exemplo, ele reconhecera que ela era en­diabrada demais para uma profissão tão pia e a encorajara a seguir sua paixão. Ele também instilara nela outro veneno durante aqueles longos verões: o respeito e o amor pela história e pela arte, em que as maiores expressões da humanidade estavam cimentadas em mármore e granito, óleo e tela, vidro e bronze.

E agora parecia que seu tio ainda tinha algo para ela.

Pondo às pressas um par de óculos de sol de lentes azuis, ela entrou na Via Labicano e seguiu em direção ao maciço Coliseu. O tráfego engarrafou nas proximidades desse ponto turístico, mas ela ziguezagueou através de algumas ruelas estreitas e repletas de veículos estacionados de forma irregular. Ia à grande velocidade, engatando as marchas com a perícia de um piloto de Grande Prê­mio. Reduziu a marcha quando se aproximou da entrada de uma praça circular onde cinco ruas convergiam num círculo insensato. Os visitantes consideravam os motoristas de Roma rabugentos, sem paciência e lentos. Rachel achava-os indolentes.

Ela se meteu entre um caminhão com carroceria aberta e excesso de carga e um utilitário Mercedes G500 quadrado. Seu Mini Cooper parecia um pardal adejando entre dois elefantes. Numa manobra rápida, ela ultrapassou o Mercedes, preencheu o espaço exíguo à frente dele, levou uma buzinada, mas estava longe. Ela contornou rapidamente a praça e entrou na artéria princi­pal que conduzia em direção ao rio Tibre.

Enquanto descia a toda a velocidade a ampla rua, ela mantinha um olho lixo no fluxo de veículos em todos os lados. Mover-se com segurança pelas ruas de Roma exigia menos cautela do que planejamento estratégico. Em con­seqüência desse cuidado, Rachel prestou atenção à sua traseira.

O sedã preto BMW entrou de novo em posição, cinco carros atrás.

Quem a estava seguindo... e por quê?

 

Quinze minutos mais tarde, Rachel entrou num estacionamento subterrâ­neo fora dos muros do Vaticano. Enquanto descia, ela esquadrinhou a rua atrás de si. O BMW preto desaparecera pouco depois de ela ter cruzado o rio Tibre. Ainda não havia nenhum sinal dele.

Obrigada - disse ao telefone celular. - O carro foi embora.

Você tem certeza?

Era o suboficial de sua delegacia. Ela havia telefonado enquanto era seguida e mantido o telefone ligado.

Acho que sim.

Quer que enviemos uma patrulha?

- Não é preciso. Há carabinieri de guarda na praça. Eu estarei bem a partir daqui. Ciao.

Ela não sentia o menor embaraço por ter dado um alarme falso. Não seria ridicularizada. O Corpo de Carabinieri encorajava certo grau de paranóia sau­dável entre seus membros de ambos os sexos.

Rachel encontrou uma vaga para estacionar, desceu do carro e trancou a porta. Todavia, ela manteve o telefone celular na mão. Teria preferido a 9mm.

No alto da rampa, ela saiu do estacionamento e tomou o rumo da Praça de São Pedro. Embora se aproximasse de uma das obras-primas arquitetônicas do mundo, ficou de olho nas ruas e becos próximos.

Não havia nenhum sinal do BMW.

Talvez os ocupantes do carro fossem apenas turistas examinando os pontos turísticos da cidade num automóvel de luxo com ar-condicionado e não a pé, no calor intenso do meio-dia. O verão era a alta temporada, e todos os visitan­tes acabavam indo ao Vaticano. Era muito provável que fosse esse o motivo por que ela pensou estar sendo seguida. Não foi dito que todos os caminhos condu­zem a Roma?

Ou, pelo menos nesse caso, todo o tráfego.

Satisfeita, ela pôs o telefone celular no bolso e cruzou a Praça de São Pedro em direção ao outro lado.

Como de costume, seus olhos percorreram toda a extensão da praça. No outro lado da Praça de Travertino, erguia-se a Basílica de São Pedro, construí­da sobre o túmulo do santo martirizado. Sua cúpula, projetada por Michelangelo, era o ponto mais alto de toda a Roma. Em cada lado, a colunata dupla de Bernini estendia-se em dois arcos amplos, emoldurando a praça em forma de buraco de fechadura situada no meio. De acordo com Bernini, a colunata representava os braços de São Pedro estendendo-se para acolher os fiéis na congregação. No alto desses braços, 140 santos de pedra empoleiravam-se e contemplavam o espetáculo embaixo.

E que espetáculo.

O que antes fora o circo de Nero continuava a ser um circo.

Ao redor, vozes tagarelavam em francês, árabe, polonês, hebraico, holan­dês, chinês. Grupos de turistas aglomeravam-se em ilhas em torno de guias; excursionistas de pé, com braços em torno dos ombros, davam sorrisos força­dos ao posarem para fotografias; alguns devotos estavam de pé ao sol, com a Bíblia aberta nas mãos, a cabeça curvada em orações. Um minúsculo grupo de suplicantes coreanos ajoelhava-se nas pedras, todos trajando amarelo. Por toda a praça, ambulantes convenciam a multidão, vendendo moedas papais, rosários perfumados e crucifixos abençoados.

Rachel chegou gratamente ao outro lado da praça e aproximou-se de uma das cinco entradas do complexo principal: a Porta de Sant’Ana. A porta mais próxima de seu destino.

Ela se dirigiu a um dos membros da Guarda Suíça. Como era tradicional naquela porta, ele trajava um uniforme azul-escuro com colarinho branco, com­pletado por uma boina preta. Ele perguntou o nome dela, verificou seus docu­mentos de identificação e olhou de alto a baixo seu corpo esguio como se não acreditasse que ela fosse uma tenente dos Carabinieri. Depois de satisfeito, ele mecanicamente a conduziu para o lado, a alguém da Vigilanza, a Polícia do Vaticano, onde lhe entregaram um crachá plastificado.

- Mantenha-o sempre consigo - advertiu o policial.

Munida do crachá, ela seguiu a fila de visitantes pela porta e pela Via del Pellegrino.

A maior parte da cidade-estado era interditada ao público. Os únicos espa­ços públicos eram a Basílica de São Pedro, os Museus do Vaticano e os Jardins. Não se tinha acesso ao resto dos cem acres sem permissão especial.

Mas um setor era verdadeiramente território proibido a todos, com exce­ção de uns poucos.

O Palácio Apostólico, residência do papa.

O destino dela.

Rachel marchou entre os alojamentos de tijolos amarelos da Guarda Suíça e as paredes de rocha cinza da Igreja de Sant’Ana. Nada havia ali da majestade do mais sagrado dos estados sagrados, apenas uma calçada abarrotada e uma fila de carros congestionada, um engarrafamento dentro da Cidade do Vaticano. Passando pela tipografia pontifícia e pelo correio, ela se dirigiu à entrada do Palácio Apostólico.

À medida que se aproximava, ela examinou a estrutura de tijolos cinzentos. Mais parecia um edifício governamental utilitário do que a sede da Santa Sé. E seu aspecto era enganador. Até mesmo o telhado. Parecia sem vida e monótono, quase banal. Porém, ela sabia que no alto do Palácio Apostólico havia um jardim oculto, com chafarizes, caminhos cobertos de caramanchões e arbustos podados com esmero. Tudo ficava camuflado atrás de um teto falso, protegen­do Sua Santidade do olhar fortuito lá embaixo e da mira possante de qualquer assassino lá fora na cidade.

Para ela, o Palácio Apostólico representava o Vaticano em geral: misterioso, secreto, até mesmo ligeiramente paranóico, mas no fundo um lugar de beleza simples e devoção.

E talvez se pudesse dizer o mesmo dela. Apesar de ser, no geral, uma católica relapsa, que só ia à missa nos dias santos, ela ainda tinha uma essência de fé que permanecia inalterável.

Ao chegar ao posto de segurança diante do palácio, Rachel mostrou o cra­chá mais três vezes aos membros da Guarda Suíça. Enquanto o fazia, ela se perguntou se aquilo era algum sinal de reconhecimento que remontava à tripla negação de Cristo por Pedro antes de o galo cantar.

Afinal, ela ingressou no palácio propriamente dito. Um guia a esperava, um seminarista americano chamado Jacob. Ele era um homem rijo de vinte e pou­cos anos, com os cabelos louros já rareando, e vestia calça preta de linho e camisa branca, abotoada em cima.

Por favor, siga-me. Recebi instruções para conduzi-la ao monsenhor Verona. - Ele teve uma cômica reação tardia ao ver o passe de visitante dela e gaguejou com surpresa. - Tenente Verona? A senhora... a senhora é parenta do monsenhor?

Ele é meu tio.

Um rápido aceno de cabeça enquanto ele se refazia.

- Desculpe-me. Só me disseram que esperasse uma oficial dos Carabinieri. - Ele fez um sinal com a mão para que ela o seguisse. - Sou aluno e assistente do monsenhor Verona na Greg.

Ela acenou com a cabeça. A maioria dos alunos de seu tio o reverenciava. Ele era profundamente devotado à Igreja, mas ainda conservava um forte pon­to de vista científico. Na porta de seu gabinete na universidade, havia até uma placa com a mesma inscrição que um dia adornou a porta de Platão: Não deixeis que entre quem não souber geometria.

Rachel foi conduzida através da entrada do palácio. Ela logo se perdeu. Estivera ali antes apenas uma vez, quando seu tio estava sendo promovido a diretor do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã. Ela havia participado da audiência privada do papa. Mas o lugar era gigantesco, com 1.500 cômodos, milhares de escadas e vinte pátios. E agora, em vez de subirem em direção à residência do papa no último andar, eles estavam descendo.

Ela não entendia por que seu tio lhe pedira que o encontrasse ali, e não em seu gabinete na universidade. Teria ocorrido um roubo? Se era isso, por que ele não lhe contou por telefone? Por outro lado, ela sabia muito bem do rígido Código de Silêncio do Vaticano. Ele constava do direito canônico. A Santa Sé sabia guardar seus segredos.

Eles afinal chegaram a uma porta pequena, indefinida.

Jacob abriu-a para ela.

Rachel entrou numa estranha câmara kafkiana. Com uma iluminação esté­ril, a câmara era comprida e estreita, mas o teto era alto. Encostados às paredes, arquivos e gavetas de aço cinza iam do chão ao teto. Uma escada alta de biblioteca necessária para alcançar as gavetas mais altas, estava encostada numa parede. Embora perfeitamente limpo, o espaço cheirava a poeira e velhice.

- Rachel! - seu tio chamou de um canto. Ele estava de pé próximo a um padre sentado a uma escrivaninha num canto. Acenou para que ela se aproxi­masse. - Você veio rápido, minha querida. Também, pudera, eu já andei de carro com você antes. Algum acidente?

Ela sorriu para ele e aproximou-se da escrivaninha. Notou que o tio não estava usando os trajes costumeiros - jeans, camiseta e cardigã -, e sim roupas mais formais, condizentes com o seu posto: uma batina preta com debruns e botões purpúreos. Ele chegou a passar óleo nos cachos de cabelos grisalhos e aparara bem curto o cavanhaque.

- Este é o padre Torres - apresentou seu tio -, o zelador oficial dos ossos. O ancião levantou-se. Era baixo e atarracado, todo vestido de preto, com um colarinho romano. Um leve sorriso insinuou-se em seu rosto.

- Prefiro o título de "reitor das relíquias".

Rachel observou a altíssima parede de arquivos. Ela ouvira falar daquele lugar, o depósito de relíquias do Vaticano, mas jamais estivera ali antes. Ela rechaçou um calafrio de repulsa. Catalogados e armazenados em todas as ga­vetas e prateleiras estavam fragmentos de santos e mártires: ossos dos dedos, mechas de cabelos, frascos com cinzas, pedaços de vestimentas, pele mumifi­cada, fragmentos de unhas, sangue. Poucas pessoas sabem que, pelo direito canônico, todo e qualquer altar católico deve conter uma relíquia sagrada. E, com novas igrejas e capelas sendo erguidas regularmente no mundo inteiro, a função daquele padre era embalar e enviar por FedEx pedaços de ossos ou outros restos terrenos de vários santos.

Ela jamais entendera a obsessão da Igreja por relíquias. Isso simplesmente a deixava arrepiada. Mas Roma estava repleta delas. Algumas das mais espetacu­lares e incomuns encontravam-se ali: o pé de Maria Madalena, as cordas vocais de Santo Antônio, a língua de São João Nepomuceno, os cálculos biliares de Santa Clara. Até mesmo o corpo inteiro de São Pio X, ex-papa, jazia na Basílica de São Pedro, numa urna de bronze. A mais desconcertante de todas, no entan­to, era uma relíquia preservada num santuário em Calcata: o suposto prepúcio de Jesus Cristo.

Ela recobrou a fala.

- Roubaram alguma coisa aqui?

O tio Vigor ergueu um braço para seu aluno.

Jacob, você poderia nos trazer alguns cappuccinos?

É claro, monsenhor.

O tio Vigor esperou Jacob sair e fechou a porta. Seu olhos então pousaram em Rachel.

- Você soube do massacre em Colônia?

A pergunta a pegou desprevenida. Ela havia corrido o dia todo e tivera pou­cas oportunidades de assistir ao noticiário, mas fora impossível não saber dos assassinatos à meia-noite na Alemanha na noite anterior. Os detalhes continua­vam vagos.

- Apenas o que foi noticiado no rádio - respondeu.

Ele acenou com a cabeça.

- A Cúria aqui vem recebendo antecipadamente informações secretas do que está sendo divulgado. Oitenta e quatro pessoas foram mortas, entre elas o arcebispo de Colônia. Mas a forma como elas morreram está sendo mantida longe do público por enquanto.

- O que você quer dizer?

- Algumas foram executadas a tiros, mas a grande maioria parece ter sido eletrocutada.

- Eletrocutada?

- Essa é a análise provisória. Ainda não dispomos dos resultados das autópsias. Alguns corpos ainda estavam fumegando quando as autoridades chegaram.

- Santo Deus! Como...?

- Essa resposta terá de esperar. A catedral está fervilhando de investigado­res de todo tipo: criminologistas, detetives, legistas, até eletricistas. Há equipes da BKA alemã, especialistas em terrorismo da Interpol e agentes da Europol. Porém, como o crime ocorreu numa catedral católica romana, território santi­ficado, o Vaticano invocou sua Omerta.

- O Código de Silêncio.

Ele confirmou com um grunhido.

- A Igreja está cooperando com as autoridades alemãs, mas também está limitando o acesso, tentando evitar que a cena se transforme num circo.

Rachel balançou a cabeça.

Mas o que tudo isso tem a ver com o fato de você ter me chamado aqui?

Pela investigação inicial, parece existir apenas um motivo. O relicário de ouro da catedral foi arrombado.

Eles roubaram o relicário.

Não, esse é que é o problema. Deixaram para trás o estojo de ouro maciço. Um objeto inestimável. Roubaram apenas seu conteúdo. Suas relíquias.

O padre Torres aparteou:

E não apenas quaisquer relíquias, mas os ossos dos Reis Magos bíblicos.

Reis Magos... os Três Reis Magos da Bíblia? - a voz de Rachel não conse­guiu disfarçar sua incredulidade. - Eles roubam os ossos, mas deixam o estojo de ouro. Com certeza o relicário alcançaria melhor preço no mercado negro do que os ossos.

O tio Vigor suspirou.

- Por solicitação do secretário de Estado, vim aqui para avaliar a procedên­cia dessas relíquias. Elas têm um passado ilustre. Os ossos vieram para a Europa por causa do entusiasmo de Santa Helena, mãe do imperador Constantino, pela coleta de relíquias. Na condição de primeiro imperador cristão, Constantino enviara sua mãe em peregrinações para coletar relíquias sagradas. A mais fa­mosa, é claro, é a Cruz Verdadeira de Cristo.

Rachel havia visitado a Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, na Colina de Latrão. Numa sala nos fundos, protegidas por vidro, estavam as relíquias mais famosas coletadas por Santa Helena: uma trave da Cruz Verdadeira, um cravo usado para crucificar Jesus e dois espinhos de sua dolorosa coroa. Ainda havia muita controvérsia quanto à autenticidade dessas relíquias. A maioria acredi­tava que Santa Helena havia sido enganada.

Seu tio prosseguiu:

Mas também não se sabe que a rainha Helena viajou além de Jerusalém, regressando sob circunstâncias misteriosas com um grande sarcófago de pedra e dizendo ter recuperado os corpos dos Três Reis Magos. As relíquias foram conservadas numa igreja em Constantinopla, mas, depois da morte de Constantino, foram transferidas para Milão e enterradas numa basílica.

Mas eu pensei que você houvesse dito Alemanha...

O tio Vigor ergueu uma das mãos.

-        No século XII, o imperador Frederico Barba-Roxa da Alemanha saqueou Milão e roubou as relíquias. As circunstâncias em torno disso estão envoltas numa confusão de boatos. Mas todas as histórias terminam com as relíquias em Colônia.

- Até ontem à noite - acrescentou Rachel.

O tio Vigor fez que sim com a cabeça.

Rachel fechou os olhos. Ninguém falou, o que lhe permitiu pensar. Ela ou­viu a porta do depósito abrir-se. Manteve os olhos fechados, não querendo perder sua linha de raciocínio.

- E os assassinos? - disse. - Por que não roubaram os ossos quando a igreja estava vazia? A ação deve ter sido planejada como um ataque direto à Igreja. A violência contra os fiéis indica um motivo secundário de vingança - não apenas roubo.

- Muito bem.

Uma voz diferente soou da entrada.

Sobressaltada, Rachel abriu os olhos. Ela imediatamente reconheceu os tra­jes usados pelo recém-chegado: a batina preta com uma capa curta nos om­bros, a faixa larga ao redor dos quadris, escarlate para combinar com o solidéu. Também reconheceu o homem nesses trajes.

- Cardeal Spera - disse, inclinando a cabeça.

Ele acenou para que ela se erguesse, seu anel de ouro faiscando. O anel o distinguia como cardeal, mas ele também usava um segundo anel, igual ao primeiro, na outra mão, que representava seu posto como secretário de Estado do Vaticano. Ele era siciliano, de cabelos e tez escuros. Também era jovem para um cargo tão respeitado, nem sequer completara 50 anos de idade.

Ele deu um sorriso caloroso.

Monsenhor Verona, vejo que você não estava errado a respeito da sua sobrinha.

Teria sido inadequado da minha parte mentir para um cardeal, especial­mente para um que também é o braço direito do papa. - O tio dela aproximou-se e, em vez de castamente beijar ambos os anéis do homem, deu-lhe um forte abraço. - Como Sua Santidade está lidando com a notícia?

O rosto do cardeal contraiu-se com um meneio de cabeça.

- Depois do nosso encontro esta manhã, entrei em contato com Sua Emi­nência em São Petersburgo. Ele tomará um avião de volta amanhã de manhã.

Depois do nosso encontro... Agora Rachel entendia por que seu tio estava usando roupas formais. Ele estivera em reunião com o secretário de Estado. O cardeal Spera prosseguiu:

- Eu vou providenciar a resposta oficial do papa com o Sínodo de Bispos e o Colégio de Cardeais. Em seguida, tenho de me preparar para o serviço memorial de amanhã, que será celebrado ao pôr-do-sol.

Rachel sentiu-se oprimida. Embora o papa fosse o chefe do Vaticano, seu monarca absoluto, o verdadeiro poder do Estado estava nas mãos daquele único homem, seu primeiro-ministro oficial. Ela notou o seu olhar de fadiga, o modo como mantinha os ombros tensos demais. Era evidente que ele estava exausto.

E a sua pesquisa trouxe alguma coisa à tona aqui? - perguntou o cardeal.

Sim, trouxe - respondeu o tio Vigor sombriamente. - Os ladrões não estão de posse de todos os ossos.

Rachel perturbou-se.

- Ainda há mais?

O tio virou-se para ela.

Foi por isso que viemos aqui averiguar. Parece que a cidade de Milão, após o saque dos ossos por Barba-Roxa, passou os últimos séculos reivindican­do sua volta. Para se pôr um ponto final à questão, alguns dos ossos dos Reis Magos foram enviados de volta a Milão em 1906, para a Basílica de Santo Eustórgio.

Graças a Deus - disse o cardeal Spera. - Então eles não estão de todo perdidos.

O padre Torres disse em voz alta:

Devíamos providenciar para que eles fossem enviados imediatamente para cá. Guardados em segurança no depósito.

Até que possamos providenciar isso, mandarei reforçar a segurança na basílica - disse o cardeal. Ele gesticulou para o tio Vigor. - Na sua viagem de volta de Colônia, quero que você faça uma escala em Milão e recolha os ossos.

O tio Vigor concordou com a cabeça.

- Ah, eu também consegui marcar um vôo mais cedo - continuou o cardeal. - O helicóptero levará ambos ao aeroporto daqui a três horas.

Ambos?

Tanto melhor. - O tio Vigor virou-se para Rachel. - Parece que vamos ter de desapontar sua mãe mais uma vez. Tudo indica que não vai haver nenhum jantar em família.

Eu vou... nós vamos a Colônia?

Como núncios do Vaticano - respondeu o tio.

Rachel tentou manter o raciocínio. Núncios eram os embaixadores do Vaticano no exterior.

Núncios de emergência - corrigiu o cardeal Spera. - Temporários, cui­dando desta tragédia específica. Vocês estão sendo apresentados como obser­vadores passivos, para representarem os interesses do Vaticano e nos mante­rem informados. Eu preciso de olhos aguçados lá. Alguém familiarizado com roubos de antigüidades. - Ele acenou com a cabeça para Rachel. - E alguém com um vasto conhecimento dessas antigüidades.

De qualquer modo, esse é o nosso disfarce - disse o tio Vigor.

Disfarce?

O cardeal Spera franziu o cenho, um tom de advertência insinuando-se em sua voz.

- Vigor...

O tio dela voltou-se para o secretário de Estado.

Ela tem o direito de saber. Eu pensei que isso já tivesse sido decidido.

Você decidiu.

Os dois homens olharam fixamente um para o outro. Por fim, o cardeal Spera suspirou e, com o aceno de um braço, abrandou-se. O tio Vigor virou-se para Rachel.

- A nomeação como núncios é apenas uma cortina de fumaça.

- Então o que nós...?

Ele contou a ela.

 

Ainda aturdida, Rachel esperou que seu tio terminasse uma breve conversa particular com o cardeal Spera do lado de fora. Ao lado, o padre Torres punha nas prateleiras vários volumes que haviam sido empilhados em sua escrivaninha.

Finalmente, seu tio voltou.

- Eu esperava comer um brioche com você, mas, como o tempo é exíguo, nós temos de nos aprontar. Você deve trazer uma maleta para viagens curtas, seu passaporte e o que mais possa precisar para um ou dois dias no exterior.

Rachel manteve-se firme.

- Espiões do Vaticano? Vamos investigar como espiões do Vaticano? O tio Vigor ergueu as sobrancelhas.

Você está mesmo tão surpresa assim? O Vaticano, um país soberano, sem­pre teve um serviço secreto, com funcionários e agentes em tempo integral. Eles têm sido usados para se infiltrarem em grupos que disseminam o ódio, em sociedades secretas, em países hostis, onde quer que os interesses do Vaticano estejam ameaçados. Walter Ciszek, um padre que servia sob o codinome Vladimir Lipinski, brincou de gato e rato com a KGB por anos a fio, antes de ser capturado e passar mais de vinte anos numa prisão soviética.

E nós acabamos de ser recrutados para esse serviço?

Você foi recrutada. Eu trabalho há mais de 15 anos para o serviço secreto.

O quê?

Rachel quase engasgou com as palavras.

- Existe melhor disfarce para um agente do que um arqueólogo respeitado e culto prestando um humilde serviço ao Vaticano? - O tio acenou para que ela saísse. - Venha. Vamos tratar de pôr tudo em ordem.

Rachel saiu tropeçando atrás do tio, tentando vê-lo com novos olhos.

Nós vamos nos encontrar com um grupo de cientistas americanos. Como nós, eles também vão investigar o ataque em segredo, concentrando-se mais nas mortes, deixando-nos encarregados do roubo das relíquias.

Eu não estou compreendendo. - Aquilo era uma atenuação e tanto da verdade. - Por que todo este subterfúgio?

O tio parou e a puxou para dentro de uma capelinha lateral. Ela era pouco maior do que um closet, o ar recendendo a incenso velho.

Apenas umas poucas pessoas sabem disto - disse ele. - Mas uma pessoa sobreviveu ao ataque. Um rapaz. Ele ainda está em estado de choque, mas se recuperando aos poucos. Está internado num hospital em Colônia, sob guarda.

Ele testemunhou o ataque?

Um aceno afirmativo de cabeça foi a resposta.

- O que ele descreveu pareceu loucura, mas não pôde ser ignorado. Todas as mortes - ou melhor, a morte dos que sucumbiram à eletrocução - ocorre­ram num único momento. Os moribundos tombaram onde estavam sentados ou ajoelhados. O rapaz não soube explicar como isso aconteceu, mas foi infle­xível em relação a quem.

- A quem matou os paroquianos?

- Não, a quem sucumbiu, que membros da congregação tiveram uma mor­te tão horrível.

Rachel esperou uma resposta.

- Os eletrocutados, por falta de uma palavra mais adequada, foram apenas aqueles que receberam a Santa Eucaristia durante a comunhão.

O quê?

Foi a hóstia da comunhão que os matou.

Ela sentiu um calafrio. Caso se difundisse a informação de que as hóstias de algum modo eram culpadas, poderia haver repercussões em todo o mundo. O santo sacramento inteiro poderia ficar ameaçado.

- As hóstias foram envenenadas, contaminadas de alguma forma?

- Ainda não sabemos. Mas o Vaticano quer respostas imediatamente. E a Santa Sé as quer primeiro. E sem os recursos necessários para este nível de investigação clandestina, especialmente em solo estrangeiro, eu cobrei uma pequena dívida a um amigo que trabalha no serviço secreto militar dos Esta­dos Unidos, alguém em quem eu tenho plena confiança. Hoje à noite uma equipe dele estará no local.

Rachel pôde apenas acenar com a cabeça, emudecida pelas revelações das últimas horas.

- Acho que você estava certa, Rachel - disse o tio Vigor. - Os assassinatos em Colônia foram um ataque direto à Igreja. Mas eu creio que este é apenas um movimento inicial num jogo muito maior. Mas que jogo está sendo jogado?

Ela acenou com a cabeça.

- E o que os ossos dos Reis Magos têm a ver com isto?

- Exatamente. Enquanto você junta suas coisas, eu vou às bibliotecas e aos arquivos. Já tenho uma equipe de eruditos examinando minuciosamente todas as referências aos Três Reis Magos. Quando o helicóptero decolar, terei um dossiê completo sobre eles.

O tio Vigor aproximou-se dela, deu-lhe um forte abraço e sussurrou ao seu ouvido:

- Você ainda pode recusar. Eu não teria menos consideração por você.

Rachel balançou a cabeça, recuando.

Como diz o adágio, fortes fortuna adiuvat.

A fortuna de fato ajuda os corajosos. Ele a beijou gentilmente no rosto.

Se eu tivesse uma filha como você...

Você seria excomungado. - Ela beijou-lhe a outra face. - Agora vamos. O tio conduziu-a para fora do Palácio Apostólico, e então seus caminhos se

separaram: ele seguiu para as Bibliotecas e ela, para a Porta de Sant’Ana.

Pouco depois, quase sem se dar conta da passagem do tempo, Rachel foi até seu Mini Cooper, estacionado na garagem subterrânea, e entrou no veículo. Saiu a toda do estacionamento, dobrou uma esquina estreita com os pneus cantando e entrou no tráfego. Checou tudo o que precisaria, enquanto tentava manter a um mínimo qualquer especulação.

Ela cruzou o rio Tibre e seguiu em direção ao centro da cidade. Com a mente distraída, ela não notou quando seu perseguidor voltou. Apenas que ele estava de volta.

Seus batimentos cardíacos aceleraram-se.

O BMW preto estava cinco carros atrás dela, acompanhando cada um de seus movimentos em torno de carros mais lentos e de pedestres ainda mais lentos. Ela deu algumas guinadas rápidas, não o bastante para alertar seu per­seguidor de que ele havia sido descoberto, apenas sua costumeira imprudência controlada. Ela precisava ter certeza.

O BMW manteve a velocidade.

Agora ela sabia.

Maldição.

Rachel cortou caminho pelas travessas e becos mais estreitos. As ruas esta­vam congestionadas. A coisa virou uma perseguição de carro em câmera lenta.

Ela subiu numa calçada a fim de passar comprimindo-se por um trecho em que o tráfego havia parado. Avançando devagar para a próxima rua transversal, uma via de pedestres, dobrou nela. Pedestres assustados saíram aos pulos de seu caminho. Carrinhos de compras tombaram. Palavras obscenas voaram. Uma fatia de pão acertou seu pára-brisa traseiro, atirada por uma matrona particu­larmente enfurecida.

Na próxima rua de tráfego intenso, ela engatou a segunda e percorreu a toda um quarteirão, deu outra guinada e mais outra. Aquela parte de Roma era um labirinto de becos. Seu perseguidor não tinha como segui-la.

Saindo na Via Aldrovandi, ela contornou o Jardim Zoológico Giardino. Ela ficou de olhos nos espelhos retrovisores. Escapara à perseguição... pelo menos por ora.

Deixando livre uma das mãos, ela pegou o telefone celular. Apertou a tecla de discagem rápida para a Delegacia Parioli. Precisava de reforços.

Enquanto o telefone chamava, Rachel saiu da artéria principal e entrou de novo nas ruelas, evitando correr riscos. Quem ela havia irritado? Como mem­bro da Polícia do Legado Cultural, ela possuía muitos inimigos entre as facções do crime organizado que traficavam antigüidades roubadas.

A linha telefônica deu uns estalidos, zumbiu, e então tudo o que ela ouviu foi o silêncio. Ela verificou o visor do telefone. Estava numa área em que o sinal era fraco. As sete colinas de Roma e seus cânions de mármore e tijolos prejudi­cavam a intensidade do sinal.

Ela pressionou o botão Redial.

Enquanto orava ao santo padroeiro da recepção dos sinais de telefonia ce­lular, ela usou o tempo para refletir se deveria voltar para casa, mas decidiu o contrário.

Ela estaria mais segura no Vaticano até partir para a Alemanha. Entrando na Via Salaria, a antiga Estrada do Sal, uma das principais artérias de Roma, ela afinal ouviu a ligação completar-se. - Delegacia Parioli, boa-tarde.

Antes que pudesse responder, Rachel avistou um vulto preto. O BMW apareceu de repente ao lado do Mini Cooper. Um segundo carro surgiu no outro lado. Idêntico, exceto que esse era branco.

Não fora apenas um perseguidor, mas dois. Concentrada no conspícuo car­ro preto, ela deixara de notar o branco. Um erro fatal.

Os dois carros aproximaram-se súbita e impetuosamente dela, imprensando-a entre eles com um guincho de metal e tinta. As janelas traseiras deles já haviam sido baixadas. Os canos grossos de submetralhadoras projetaram-se para fora.

Ela pisou nos freios, metal guinchou, mas ela estava entalada. Não havia escapatória.

 

Ele tinha de sair dali.

No vestiário do ginásio, Grayson Pierce vestiu um par de shorts de ciclista e em seguida deslizou pela cabeça uma camisa de futebol folgada. Ele estava sen­tado no banco e amarrava seus tênis.

Atrás dele, a porta do vestiário abriu-se. Ele olhou para trás enquanto Monk Kokkalis entrava, uma bola de basquete embaixo de um braço e um boné de beisebol com a aba para trás. Com apenas 1,60 metros de altura, Monk parecia um pit bull usando um blusão de moletom. Todavia, ele se revelou um jogador impetuoso e ágil. A maioria das pessoas subestimava-o, mas ele tinha um ta­lento incomum para entender um adversário, para ludibriar a defesa, e quase nunca perdia um arremesso da bola.

Monk jogou a bola de basquete na caixa do equipamento - tornando a fazer um arremesso perfeito - e em seguida foi até seu armário. Ele tirou o blusão de moletom, enrolou-o e atirou-o no armário.

Ele olhou para Gray.

É isso o que você está usando para se encontrar com o comandante Crowe? Gray ficou de pé.

Estou indo visitar a minha família.

- Eu pensei que o gerente de operações havia nos dito que era para não sairmos daqui.

- Esqueça isso.

Monk ergueu uma sobrancelha. As sobrancelhas espessas eram os únicos pêlos em sua cabeça raspada. Ele preferia manter o visual que lhe fora inspirado pelos Green Berets. O homem também tinha outros atributos de sua vida militar pregressa: cicatrizes enrugadas de ferimentos causados por balas, três delas, no ombro, na coxa e no tórax. Era o único de sua equipe que sobrevivera a uma emboscada no Afeganistão. Durante sua convalescença nos Estados Unidos, a Sigma o recrutara por causa de seu QI de gênio e o submetera a uma reciclagem profissional por meio de um programa de doutorado em medicina legal.

Você já foi liberado pelos médicos? - perguntou Monk.

Apenas contusões e algumas costelas feridas.

Junto com o ego ferido, ele acrescentou em silêncio, apontando com o dedo a mancha dolorida abaixo da sétima costela.

Gray já dera seu depoimento, gravado em videoteipe. Ele conseguira a bom­ba, mas não a Dama do Dragão. A única pista de um importante esquema de tráfico de armas biológicas havia escapado. Ele havia enviado o pingente dela com o amuleto em forma de dragão para os legistas, a fim de detectarem vestí­gios de impressões digitais. Ele não esperava que encontrassem alguma coisa.

Ele pegou sua mochila do banco.

Vou levar meu bipe comigo. Estou apenas a 15 minutos daqui de metrô.

E você vai deixar o diretor esperando?

Gray deu de ombros. Ele estava farto: o depoimento após a missão, o exame médico minucioso, e agora essa misteriosa convocação pelo diretor Crowe. Ele sabia que merecia uma reprimenda. Não deveria ter entrado sozinho no Forte Detrick. Tinha sido uma decisão errada. Ele sabia disso.

Mas ainda flutuando na onda de adrenalina do quase desastre daquela ma­nhã, Gray não poderia sentar-se ocioso e simplesmente esperar. O diretor Crowe fora a uma reunião no quartel-general da DARPA em Arlington. Ninguém soubera informar quando ele estaria de volta. Nesse ínterim, Gray precisava mover-se, descarregar um pouco de energia.

Ele pendurou nas costas sua pequena mochila de ciclista.

- Você soube quem mais foi convocado para a reunião com o diretor? -perguntou Monk.

- Quem?

- Kat Bryant.

É mesmo?

Um aceno de cabeça.

Fazia apenas dez meses que a capitã Kathryn Bryant ingressara na Sigma, porém já concluíra um programa de curta duração em geologia. Havia boatos de que ela também estava terminando de cursar uma disciplina de engenharia. Fia seria apenas o segundo agente com dois cursos de doutoramento. Grayson era o primeiro.

Então não pode ser uma designação para uma missão - disse Gray. - Eles não mandariam alguém tão inexperiente para o campo.

Nenhum de nós é assim tão inexperiente. - Monk pegou uma toalha e foi em direção aos chuveiros. - Ela veio do serviço secreto da Marinha. Serviço sujo, é o que dizem.

- Dizem um monte de coisas - Gray murmurou e dirigiu-se à saída.

Apesar do número de QI’s altos, a Sigma era um antro de fofocas como qualquer outra empresa. Até mesmo as convocações daquela manhã tinham sido acompanhadas de uma torrente de memorandos e uma nova chamada dos agentes. É claro que parte daquela atividade era o resultado direto da mis­são de Gray. A Guilda havia atacado um de seus membros. As especulações abundavam. Houve um novo vazamento, ou a emboscada havia sido planejada com base em informações secretas antigas, antes da transferência da Sigma do quartel-general da DARPA em Arlington para Washington e do expurgo de suas operações lá?

De qualquer forma, outro boato persistia nos corredores da Sigma: uma nova missão estava sendo planejada, comandada por um chefão, uma missão de vital interesse nacional. Além disso, não parecia que ele iria a qualquer lugar em breve. Ficaria esquentando o banco por algum tempo.

Portanto, ele poderia com igual razão cumprir seus outros compromissos.

Saindo do ginásio, Gray seguiu a passos largos através do labirinto de corre­dores até o hall dos elevadores. O espaço ainda recendia a tinta fresca e cimen­to velho.

A fortaleza subterrânea do comando central da Sigma fora outrora um bunker e um abrigo nuclear. Fora um lugar onde um importante conselho con­sultivo se abrigara durante a Segunda Guerra Mundial, mas fazia muito tempo que fora abandonado e fechado. Poucos sabiam de sua existência, enterrado sob a meca da comunidade científica de Washington: a área onde estavam os museus e os laboratórios que formavam a Smithsonian Institution.

Agora o labirinto subterrâneo tinha novos inquilinos. Para o mundo em geral, era apenas outro lugar onde se reunia um conselho consultivo. Muitos de seus membros trabalhavam nos laboratórios da Smithsonian Institution, fa­zendo pesquisas e utilizando os recursos à mão. O novo local para a sede da Sigma fora escolhido por causa de sua proximidade de todos os laboratórios de pesquisa, que cobriam uma vasta gama de disciplinas. Teria sido caro demais duplicar todas as várias instalações. Assim, a Sigma fora enterrada no coração da comunidade científica de Washington. A Smithsonian Institution transfor­mou-se num recurso e num disfarce.

Gray pressionou a mão contra a placa de segurança da porta do elevador. Uma linha azul escaneou as impressões de sua palma. As portas abriram-se com um assobio. Ele entrou e pressionou o botão de cima, no qual estava ins­crito TÉRREO. O elevador subiu silenciosamente a partir do quarto andar.

Ele mal sentia o escaneamento sobre o seu corpo, uma busca privativa de dados eletrônicos ocultos. Ele ajudava na prevenção do furto de informações do centro de comando. Mas tinha suas desvantagens. Durante a primeira se­mana ali, Monk fizera disparar um alerta geral do sistema depois de entrar distraidamente com um MP3 player digital após uma corrida à tarde.

As portas se abriram numa área de recepção com uma aparência comum, na qual havia dois guardas armados e uma recepcionista. Poderia passar pelo saguão de um banco. Mas a quantidade de vigilância e de contramedidas mais avançadas rivalizava com as do Forte Knox. Uma segunda entrada do bunker, um grande acesso de serviço, igualmente guardado, ficava oculta num complexo de oficinas privadas, a oitocentos metros de distância. Sua motocicleta estava sendo consertada lá. Por isso ele estava indo a pé para a estação do metrô, onde deixava uma bicicleta guardada para emergências.

Bom-dia, Dr. Pierce - disse a recepcionista.

Olá, Melody.

A moça não sabia o que na verdade havia lá embaixo, acreditando na histó­ria inventada sobre o conselho consultivo, também chamada Sigma. Apenas os guardas sabiam a verdade. Eles acenaram com a cabeça para Gray.

O senhor vai ficar fora o dia todo? - perguntou Melody.

Apenas uma hora, mais ou menos.

Ele introduziu sua carteira de identidade holográfica na leitora junto ao balcão, em seguida pressionou o polegar contra a tela, registrando sua saída do centro de comando. Ele sempre achara que as contramedidas de segurança ali eram excessivas. Já não eram.

A fechadura da porta externa desengatou.

Um dos guardas abriu a porta, saiu e a manteve aberta para Gray.

- Bom-dia, senhor - disse o guarda enquanto Gray saía.

Bom dificilmente descrevia seu dia até então.

Um longo corredor apainelado estendia-se à frente, seguido por um único lance de escada que conduzia às áreas públicas do edifício. Entrando num grande saguão, ele passou por um grupo de turistas japoneses guiados por um tradu­tor e guia. Nenhum deles lançou-lhe um segundo olhar.

Fale sobre esconder-se à vista de todos.

Enquanto cruzava o chão de ladrilhos, ele ouviu o discurso do guia de tu­rismo, pronunciado maquinalmente, repetido milhares de vezes.

- O Castelo Smithsonian foi terminado em 1855, e a pedra fundamental foi lançada pelo presidente James Polk. É a maior e a mais antiga das construções que compõem a Instituição e antigamente abrigava o museu de ciências e os laboratórios de pesquisa originais, mas hoje serve de escritório administrativo e Centro de Informações para os 15 museus da Instituição, para o Zoológico Nacional e para muitos locais de pesquisa e galerias. Sigam-me, por favor. Em seguida...

Gray chegou às portas externas, uma saída lateral do Castelo Smithsonian, e avançou para a liberdade. Ele apertou os olhos, protegendo-os do sol forte. Quando ergueu o braço, sentiu uma ferroada de protesto de suas costelas. O efeito do Tylenol com codeína devia estar passando.

Atingindo a extremidade dos jardins muito bem-cuidados, ele voltou o olhar para o castelo. Apelidado por causa de seus parapeitos, torrinhas, agulhas e torres de tijolos vermelhos, era considerado uma das melhores estruturas da revivescência do gótico nos Estados Unidos e formava o coração da Smithsonian Institution. O bunker havia sido escavado embaixo dele, construído quando a torre sudoeste foi completamente destruída por um incêndio em 1866, exigindo sua reconstrução a partir do chão. O labirinto secreto havia sido acrescentado na reforma e acabou se transformando no abrigo nuclear subterrâneo, destinado a proteger os cérebros mais brilhantes de sua geração... ou pelo menos os de Washington, D.C.

Ele agora ocultava o comando central da Sigma.

Com uma última olhadela para a bandeira americana tremulando acima da torre mais alta, Gray seguiu pelo passeio arborizado rumo à estação do metrô. Ele tinha outras responsabilidades além de manter os Estados Unidos seguros. Algo que negligenciara por muito tempo.

 

Os dois BMW’s continuavam a imprensar o Mini Cooper. Por mais que Rachel lutasse, não conseguia se libertar.

As armas nos bancos traseiros moveram-se para a frente.

Antes que os agressores pudessem abrir fogo, Rachel tentou forçar o carro a parar e puxou o freio de mão. O carro deu um solavanco com um guincho de metal dilacerando-se. O espelho retrovisor estilhaçou-se. O esforço fez os pistoleiros perderem a mira, mas não foi suficiente para libertar o carro, preso entre os outros dois.

Os BMWs continuavam a arrastar seu carro para a frente.

Com o Mini Cooper agora transformado em peso morto, Rachel mergu­lhou para o assoalho do veículo, apoiando o lado esquerdo do corpo na alavan­ca de mudança de marcha. Uma saraivada de balas estilhaçou a janela do lado do motorista, atravessando o banco no qual ela estivera sentada.

Ela não teria tanta sorte uma segunda vez.

A medida que a velocidade se reduzia, Rachel acionou os controles do teto conversível. As janelas começaram a baixar e o teto de tecido dobrou-se para trás. O vento assobiava dentro do carro.

Ela rezou para que a distração momentânea lhe desse o tempo de que preci­sava. Juntando as pernas sob o corpo, pulou o console central e usou a borda da porta do carona para passar através do teto semi-aberto. O sedã branco ainda estava comprimido contra o lado do carona. Ela subiu para o teto e ficou meio agachada.

Àquela altura, a velocidade reduzira-se a menos de 30km/h. Balas assobiavam vindas de baixo.

Ela atirou-se do teto, voando em direção a uma fila de carros estacionados na beira da rua. Atingiu o longo teto de um Jaguar, deslizou de barriga pela lateral do veículo e caiu numa cambalhota estridente no outro lado.

Atordoada, ela ficou deitada imóvel. A grande quantidade de carros estacio­nados a protegia da rua aberta. À meio quarteirão de distância, incapazes de frear com bastante rapidez, os BMWs de repente rugiram e, com o cantar de pneus, saíram a toda a velocidade.

À distância, Rachel ouviu o uó-uó das sirenes da polícia.

Ficando de costas, ela tateou o cinto à procura do telefone celular. A capa estava vazia. Ela estava telefonando quando os atacantes investiram contra ela.

Oh! meu Deus...

Ela esforçou-se para levantar-se. Não receava que os assassinos voltassem. Mui­tos carros já estavam parando, bloqueados pelo seu Mini Cooper parado na rua.

Rachel tinha uma preocupação maior. Ao contrário da primeira vez, ela conseguira vislumbrar a placa do BMW preto.

SCV 03681.

Ela não precisava fazer uma busca nos registros para saber a origem do carro. As placas especiais eram emitidas por apenas uma agência. SCV significava Stato delia Città del Vaticano. Estado da Cidade do Vaticano.

Ela fez mais um esforço para levantar-se, a cabeça doendo. Sentiu o gosto de sangue de um lábio rachado. Não tinha importância. Se foi atacada por al­guém com relações com o Vaticano...

Ficou de pé com o coração esmagado. Um medo impulsionador a fez recu­perar as forças. Outro alvo estava com certeza em perigo.

- Tio Vigor...

 

Gray! É você?

Grayson Pierce enganchou sua bicicleta num ombro e subiu os degraus da varanda da casa de seus pais, um bangalô com uma varanda de madeira e um amplo e saliente telhado de duas águas.

Ele gritou através da porta de tela aberta.

- Sim, mamãe!

Ele encostou a bicicleta no balaústre da varanda, recebendo um protesto de suas costelas. Telefonara para casa da estação do metrô, avisando a mãe a tem­po de sua chegada. Ele mantinha uma mountain bike Trek trancada na estação local para ocasiões como aquela.

O almoço está quase pronto.

O quê? Você está cozinhando? - Ele abriu a porta de tela, cujas dobradi­ças soltaram um grito de dor. Ela se fechou com um estalo atrás dele. - Será que os milagres nunca cessam?

Não me venha com suas impertinências, meu rapaz. Eu sou inteiramente capaz de fazer sanduíches. Presunto e queijo.

Ele passou pela sala de estar com seus móveis de carvalho Craftsman, uma mistura de bom gosto do moderno com o antigo. Não deixou de notar a fina camada de poeira. Sua mãe nunca fora muito chegada ao serviço domésti­co, passando a maior parte do tempo lecionando, primeiro num ginásio jesuíta no Texas e agora como professora assistente de ciências biológicas na Universi­dade George Washington. Fazia três anos que seus pais haviam-se mudado para Washington, para o tranqüilo bairro histórico de Takoma Park, com suas gra­ciosas casas vitorianas e cabanas mais antigas cobertas com telhas de madeira. Gray tinha um apartamento a alguns quilômetros de distância, na Piney Branch Road. Ele queria estar perto de seus pais, para ajudar sempre que possível.

Sobretudo agora.

- Onde está papai? - perguntou ele ao entrar na cozinha e ver que seu pai não estava em casa.

Sua mãe fechou a porta da geladeira, uma jarra de leite na mão.

Lá fora na garagem. Fazendo outra casa de pássaros.

Não, mais uma?

Ela franziu o cenho para ele.

- Ele gosta disso. Isso o mantém longe de encrenca. Seu terapeuta diz que é bom para ele ter um hobby.

Ela passou com duas bandejas de sanduíches.

Sua mãe viera direto do gabinete na universidade. Ela ainda usava o blazer azul sobre uma blusa branca, os cabelos louro-acinzentados puxados para trás e presos com grampos. Bem-cuidados, professorais. Mas Gray notou o canto macilento dos olhos dela. Ela parecia mais cansada, mais magra.

Ele pegou as bandejas.

- O trabalho em madeira de papai pode ajudá-lo, mas tem de ser sempre casas de pássaros? Há pássaros demais em Maryland.

Ela sorriu.

Coma os seus sanduíches. Você quer um pouco de picles?

Não.

Eles eram sempre assim. Conversas banais para evitarem os assuntos mais graves. Mas certas coisas não podiam ser adiadas para sempre.

- Onde o encontraram?

- Lá perto da 7-Eleven em Cedar. Ele ficou confuso. Acabou pegando a estrada errada. Mas teve bastante presença de espírito para telefonar para John e Suz.

Os vizinhos deviam ter então ligado para a mãe de Gray, e ela por sua vez lhe telefonara, preocupada, quase em pânico. Porém, cinco minutos mais tar­de, ela voltara a telefonar. O pai dele estava em casa e bem. No entanto, Gray sabia que era melhor dar um pulo até lá para uma breve visita.

- Ele ainda está tomando seu Aricept? - perguntou. E claro.

Eu verifico se ele o toma todas as manhãs.

Seu pai recebera o diagnóstico de mal de Alzheimer, nos estágios mais pre­coces, pouco depois de seus pais terem-se mudado para lá. Havia começado com pequenos lapsos de memória: o lugar onde havia colocado as chaves, nú­meros de telefone, os nomes dos vizinhos. Os médicos disseram que a mudan­ça do Texas podia ter provocado sintomas que tinham estado latentes. A mente dele passara por um período difícil catalogando todas as novas informações após a mudança de um lado a outro do país. Mas cabeçudo e determinado, ele se recusara a voltar. De vez em quando, junto com o esquecimento vinham discussões banais por causa da raiva frustrada. Não que alguma vez tivesse sido difícil para seu pai cruzar essa linha.

- Por que você não leva a bandeja dele? - perguntou a mãe. - Eu tenho de dar um telefonema para o gabinete.

Gray estendeu a mão e pegou os sanduíches, deixando-a pousar sobre a dela por um instante.

- Talvez nós tenhamos de conversar sobre aquela enfermeira que dorme no emprego.

Ela meneou a cabeça - não só negando a necessidade, mas também sim­plesmente recusando-se a discuti-la. Ela tirou a mão da dele. Gray já deparara com aquela resistência antes. Seu pai não admitiria isso, e sua mãe achava que era responsabilidade dela cuidar dele. Mas isso estava repercutindo nas ativi­dades domésticas, em sua mãe, na família inteira.

- Quando Kenny esteve aqui da última vez? - perguntou ele.

Seu irmão mais novo administrava uma loja de computadores recém-inaugurada na Virgínia, logo após a divisa, seguindo o exemplo do pai como engenheiro – porém, elétrico, não de indústria petrolífera.

- Você conhece o Kenny... - sua mãe disse. - Deixe-me dar-lhe um pouco de picles para o seu pai.

Gray sacudiu a cabeça. Ultimamente Kenny vinha falando em se mudar para Cupertino, na Califórnia. Ele tinha desculpas para a necessidade da mu­dança, mas, por baixo de tudo, Gray sabia a verdade. Seu irmão simplesmente queria fugir, dar o fora. Pelo menos Gray compreendia aquele sentimento. Ele fizera a mesma coisa, entrando para o Exército. Devia ser um traço de caráter da família Pierce.

Sua mãe passou-lhe o vidro de picles para abrir.

Como vão as coisas no laboratório?

Bem - respondeu.

Ele abriu a tampa, tirou um pepino condimentado com endro e colocou-o na bandeja.

Eu estive lendo sobre um monte de cortes no orçamento da DARPA.

Meu emprego não está em risco - assegurou-lhe.

Nenhum de seus parentes sabia de seu papel na Sigma. Eles achavam que ele simplesmente fazia pesquisa de baixo nível para as Forças Armadas. Ele não tinha autorização para contar-lhes a verdade.

Com a bandeja na mão, Gray dirigiu-se para a porta dos fundos.

Sua mãe observou-o.

- Ele vai ficar contente de ver você.

Se ao menos eu pudesse dizer o mesmo...

Gray encaminhou-se para a garagem lá nos fundos. Ele ouviu os sons estri­dentes de uma emissora de country music saindo pela porta aberta. Isso trouxe de volta lembranças de line dancing em Muleshoes. E outras recordações me­nos agradáveis.

Ele ficou de pé à entrada da garagem. Seu pai estava curvado sobre um peda­ço de madeira preso no torno, desbastando uma quina com a plaina manual.

- Pai - disse.

Seu pai empertigou-se e virou-se. Ele tinha a mesma altura de Grayson, porém era mais atarracado, com ombros e costas mais largos. Trabalhara nas jazidas de petróleo enquanto terminava a faculdade, obtendo um utilíssimo diploma em engenharia de indústria de petróleo. Tudo correra bem até que um acidente de trabalho num poço cortou sua perna esquerda na altura do joelho. O acordo feito com a empresa e a incapacidade permitiram-lhe aposentar-se aos 47 anos.

Fazia 15 anos que isso acontecera.

Metade da vida de Grayson. A metade ruim.

Seu pai virou-se para ele.

- Gray? - Ele removeu o suor da testa, cobrindo-a de pó de serra. O cenho franziu-se. - Não havia necessidade de percorrer todo o caminho até aqui.

De que outra forma estes sanduíches chegariam até você?

Ele ergueu a bandeja.

Foi sua mãe quem os fez?

Você conhece a mamãe. Ela se esforçou ao máximo.

Então é melhor eu comê-los. Não posso censurar o hábito.

Ele saiu da bancada e mancou com a perna rígida por causa da prótese até uma geladeira nos fundos.

Cerveja?

Daqui a pouco eu tenho de voltar para o trabalho.

- Uma cerveja não vai matar você. Tenho algumas garrafas daquela droga de Sam Adams de que você gosta.

Seu pai era mais chegado à Budweiser e à Coors. Porém, o fato de ter esto­cado sua geladeira com Sam Adams equivalia mais ou menos a um tapinha nas costas. Talvez até a um abraço.

Ele não pôde recusar.

Gray pegou a garrafa e usou o abridor embutido na extremidade da banca­da para abri-la. Seu pai andou de lado e apoiou um quadril num banco. Ele ergueu sua própria garrafa, uma Budweiser, num brinde.

É uma merda ficar velho..., mas sempre há cerveja.

É verdade.

Gray tomou um gole profundo. Ele não tinha certeza se devia misturar codeína com álcool - de mais a mais, fora uma manhã muito longa.

Seu pai encarou-o. O silêncio ameaçava tornar-se rapidamente incômodo.

Quer dizer então - disse Gray - que você não consegue mais achar o caminho para casa.

Foda-se - respondeu ele afetando raiva, amenizada por um sorriso largo e um aceno de cabeça. Seu pai gostava de conversa franca. Ir direto ao assunto, como ele costumava dizer. - Pelo menos eu não fui um maldito delinqüente.

Você não consegue esquecer minha prisão em Leavenworth. Disso você continua a se lembrar.

Seu pai apontou a garrafa de cerveja para ele.

- Eu vou me lembrar enquanto puder.

Seus olhos se encontraram. Ele viu algo cintilar por trás da zombaria de seu pai, algo que ele raras vezes tinha visto antes. Medo.

O relacionamento deles nunca fora fácil. Seu pai passara a beber muito de­pois do acidente e a ter graves crises de depressão. Era difícil para um enge­nheiro de indústria petrolífera do Texas transformar-se de repente em dona de casa, criando dois meninos enquanto a esposa ia trabalhar. Em compensação, ele administrava a casa como um campo de instrução. E Gray sempre gostou de experimentar seus limites, um rebelde inato.

Até que, aos 18 anos, Gray simplesmente fizera as malas e entrara para o Exército, partindo no meio da noite.

Depois disso, os dois não se falaram por dois anos.

Aos poucos, a mãe dele conseguira reconciliá-los. Todavia, restara uma ten­são desconfortável. Uma vez ela dissera:

- Vocês dois são mais parecidos do que diferentes.

Grayson não ouvira palavras mais assustadoras.

- Esta cerveja é uma merda - seu pai disse suavemente, quebrando o silêncio.

- A Budweiser com certeza é - Grayson ergueu sua garrafa de cerveja. - É por isso que eu só bebo Sam Adams.

Seu pai deu um sorriso largo.

Você é um filho-da-puta.

Foi você quem me criou.

E eu suponho que é preciso um para reconhecer outro.

Eu nunca disse isso. Seu pai virou os olhos.

Por que você se dá o trabalho de vir aqui?

Porque eu não sei até quando você vai se lembrar de mim, pensou, mas não ousou dizê-lo em voz alta. Restara um aperto em seu peito, um ressentimento antigo que ele não conseguia esquecer por completo. Havia palavras que queria dizer, queria ouvir... e uma parte dele sabia que o tempo estava se esgotando.

- Onde você arrumou estes sanduíches? - seu pai perguntou, dando uma mordida e falando com a boca cheia. - Eles estão ótimos.

Gray manteve o rosto impassível.

- Mamãe os fez.

Seguiu-se um estremecimento de confusão.

- Ah... é?

Seus olhos voltaram a encontrar-se. O medo brilhou com mais intensidade no olhar de seu pai... e a vergonha. Ele perdera parte de sua virilidade 15 anos atrás e agora se defrontava com a perda de sua humanidade.

Pai... eu...

Beba a sua cerveja.

Gray ouviu um tom áspero de raiva familiar e recuou.

Ele bebeu sua cerveja sentado em silêncio, nenhum deles capaz de falar. Talvez sua mãe tivesse razão. Eles eram parecidos demais.

Seu bipe afinal tocou na sua cintura. Gray pegou-o rapidamente e viu o número da Sigma.

É do escritório - murmurou Gray. - Eu... eu tenho uma reunião à tarde.

Seu pai acenou com a cabeça.

Eu tenho de voltar a me ocupar desta maldita casa de pássaros.

Eles deram um aperto de mão, dois adversários constrangidos que não ad­mitiam competição.

Gray retornou à casa, despediu-se da mãe e pegou sua bicicleta. Ele montou e saiu pedalando rapidamente em direção à estação do metrô. O número de telefone no seu bipe fora seguido por um código alfanumérico.

 

                     ∑911.

                     Uma emergência.

                     Graças a Deus.

 

A busca da verdade por trás dos Três Reis Magos havia-se transformado numa trabalhosa escavação arqueológica - porém, em vez de desenterrarem sujeira e rocha, o monsenhor Vigor Verona e sua equipe de arquivistas pesquisavam em livros e pergaminhos que se despedaçavam. A equipe de scrittori havia feito o minucioso trabalho preliminar na biblioteca principal do Vaticano; agora Vigor esquadrinhava à procura de pistas dos Reis Magos uma das áreas mais guardadas da Santa Sé: o Archivio Segretto Vaticano, os infames Arquivos Secretos do Vaticano.

Vigor desceu a passos largos o longo corredor subterrâneo. Cada lâmpada se acendia quando ele se aproximava e apagava-se quando ele passava, man­tendo uma poça de luz em torno dele e de seu jovem aluno, Jacob. Eles cruza­ram todo o Depósito de Manuscritos principal, apelidado de carbonile, ou bunker. Construído em 1980, o salão de concreto tinha a altura de dois anda­res, com cada piso separado por um assoalho de metal reticulado, ligado um ao outro por escadas íngremes. De cada lado, quilômetros de prateleiras de aço continham vários regestra de arquivos: resmas de documentos e pergaminhos amarrados. Na parede oposta erguiam-se as mesmas prateleiras de metal, só que lacradas e trancadas por trás de portas de arame, que protegiam material mais sensível.

Havia um ditado sobre a Santa Sé: o Vaticano tinha segredos demais..., mas não o bastante. Vigor duvidou da última parte do ditado à medida que andava a passos largos pelo imenso depósito. Ele guardava segredos demais, até de si mesmo.

Jacob carregava um laptop com um banco de dados sobre o tema pesquisado.

- Quer dizer então que não havia apenas três Reis Magos? - perguntou en­quanto eles se encaminhavam para a saída do bunker.

Eles haviam ido até ali a fim de digitalizar uma fotografia de um vaso agora guardado no Kircher Museum. Ela representava não três, mas oito reis. Porém, mesmo esse número variava. Uma pintura no cemitério de São Pedro mostra­va dois, e uma numa cripta em Domitilla exibia quatro.

Os Evangelhos nunca foram precisos em relação ao número de Reis Ma­gos - disse Vigor, sentindo o cansaço do longo dia manifestar-se. Ele achava útil debater grande parte de seus pensamentos, pois acreditava firmemente no método socrático. - Apenas o Evangelho de Mateus se refere diretamente a eles, e mesmo assim de maneira vaga. A suposição comum de três origina-se do número de presentes que os Reis Magos traziam: ouro, incenso e mirra. Na verdade, talvez eles nem sequer fossem reis. A palavra magos vem do grego magoi, ou "feiticeiros".

Eles eram feiticeiros?

Não como poderíamos pensar. A conotação de magoi não implica feitiça­ria, e sim a prática da sabedoria oculta. A maioria dos estudiosos da Bíblia, hoje, acredita que eles eram astrólogos zoroastrianos da Pérsia ou da Babilônia. Eles interpretaram as estrelas e previram a vinda de um rei para o Ocidente, pressagiada pelo nascimento de um único corpo celeste.

- A Estrela de Belém.

Ele assentiu.     

- Apesar de todas as pinturas, a estrela não foi um evento particularmente insólito. De acordo com a Bíblia, ninguém em Jerusalém sequer a notou. Não até os Reis Magos procurarem Herodes e chamarem sua atenção para ela. Os Reis Magos haviam imaginado que um rei recém-nascido, conforme anuncia­do pelas estrelas, devia ser filho da realeza. Mas o rei Herodes ficou chocado ao ouvir essa notícia e lhes perguntou quando eles tinham visto a estrela nascer. Ele então usou livros hebraicos sagrados de profecia para indicar onde esse rei poderia ter nascido. Ele mandou os Reis Magos para Belém.

- Então Herodes lhes disse aonde ir.

- Sim, disse, e os mandou como espiões. Apenas a caminho de Belém, de acordo com Mateus, a estrela reapareceu e guiou os Reis Magos até a criança. Em seguida, advertidos por um anjo, eles partiram sem dizer a Herodes quem era a criança ou onde ela estava. A partir daí começou a matança dos inocentes.

Jacob apressou-se para manter o passo.

Mas Maria, José e o recém-nascido já tinham fugido para o Egito, adver­tidos também por um anjo. O que aconteceu aos Reis Magos?

O quê, na verdade?

Vigor havia passado a maior parte da última hora procurando textos gnósticos e apócrifos com referências aos Reis Magos, do Proto-Evangelho de Tiago ao Livro de Sete. Se os ossos tinham sido roubados, havia alguma moti­vação além do lucro puro e simples? O conhecimento poderia revelar-se a me­lhor arma deles nesse caso.

Vigor deu uma olhada no relógio. Seu tempo estava se esgotando, mas o Prefeito dos Arquivos continuaria a busca, criando o banco de dados com Jacob, que transmitiria as descobertas deles por e-mail.

E quanto aos nomes históricos dos Reis Magos? - perguntou Jacob. -Gaspar, Melquior e Baltazar?

Mera suposição. Os nomes apareceram pela primeira vez na Excerpta Latina Barbari, no século VI. Outras referências se seguem a essa, mas creio que se trata mais de contos de fadas do que de relatos factuais; no entanto, talvez valha a pena segui-las. Vou deixar isso para você e o Preffetlo Alberto pesquisarem.

Farei o melhor possível.

Vigor franziu o cenho. Era uma tarefa desanimadora. Além disso, aquilo de fato tinha importância? Por que roubar os ossos dos Reis Magos?

A resposta lhe escapava. E Vigor não tinha certeza se a verdade seria encon­trada em meio aos cinqüenta quilômetros de prateleiras que formavam os Ar­quivos Secretos. Mas um consenso começara a se formar a partir de todas as pistas. Factuais ou não, as histórias dos Reis Magos sugeriam uma vasta rique­za de conhecimentos ocultos, que só certa seita de magos conhecia.

Mas quem foram eles realmente?

Mágicos, astrólogos ou sacerdotes?

Vigor passou pela Sala dos Pergaminhos, recebendo um bafo fresco de in­seticida e fungicida. Os zeladores deviam ter acabado de borrifá-los. Ele sabia que alguns dos documentos raros na Sala dos Pergaminhos estavam ficando roxos, sucumbindo a um fungo roxo resistente, o que os deixava em sério peri­go de se perderem para sempre.

Tantas outras coisas ali também estavam ameaçadas... e não apenas pelo fogo, por fungos ou por negligência, mas pelo mero volume. Apenas metade do material armazenado ali havia sido catalogada. E a cada ano mais material era acrescentado, enviado em grande quantidade pelos embaixadores do Vaticano, pelas sés metropolitanas e pelas paróquias.

Era impossível manter tudo em boas condições.

Os próprios Arquivos Secretos haviam-se disseminado como um tumor maligno, criando metástases a partir de suas salas originais para velhos sótãos, criptas subterrâneas e celas vazias nas torres. Vigor passara seis meses pesquisando os arquivos de espiões do Vaticano anteriores - os que tinham vindo antes dele, agentes colocados em posições governamentais no mundo inteiro —, muitos escritos em código, fazendo um relato oficial de intriga política abarcando mil anos.

Vigor sabia que o Vaticano era tanto uma entidade política quanto uma entidade espiritual. E inimigos de ambas procuravam solapar a Santa Sé. Mes­mo hoje em dia. Padres como Vigor é que serviam de mediadores entre o Vaticano e o mundo. Guerreiros secretos, que se mantinham firmes. E, embora ele talvez não concordasse com tudo o que fora feito no passado ou mesmo no presente, sua fé permanecia sólida... como o próprio Vaticano.

Ele sentia orgulho do serviço que prestava ao papado.

Impérios podiam ascender e cair. Filosofias podiam ir e vir. Mas, no fim, o Vaticano persistia, subsistia, continuava impassível e inabalável. Ele era histó­ria, tempo e fé preservados em pedra.

Exatamente ali, muitos dos maiores tesouros do mundo estavam protegi­dos, trancados nas caixas-fortes subterrâneas, nos cofres, nos cubículos e nos armários de madeira escura - chamados armadi - dos Arquivos. Numa gaveta estava uma carta de Mary Stuart no dia anterior à sua decapitação; noutra, as cartas de amor entre o rei Henrique VIII e Ana Bolena. Havia documentos relacionados com a Inquisição, com os julgamentos de bruxas, com as Cruza­das, com cartas de um cã da Pérsia e de uma imperatriz Ming.

Porém, o que Vigor procurava agora não estava tão guardado.

Exigia apenas uma longa subida.

Havia mais uma pista que ele queria investigar antes de ir para a Alemanha com Rachel.

Vigor chegou ao pequeno elevador de acesso às salas superiores dos Arqui­vos, chamadas de piani nobli, ou andares nobres. Segurou a porta para Jacob, fechou-a e pressionou o botão. Com um estremecimento e um solavanco, o pequeno elevador subiu.

Aonde estamos indo agora? - perguntou o rapaz.

À Torre dei Venti.

A Torre dos Ventos? Por quê?

- Um antigo documento é conservado lá. Um exemplar da Descrição do Mundo do século XVI.

- O livro de Marco Polo?

Ele fez que sim com a cabeça enquanto o elevador estremecia e parava. Eles saíram num longo corredor.

Jacob apressou-se para acompanhar o passo.

- O que as aventuras de Marco Polo têm a ver com os Reis Magos?

- Nesse livro, ele relata mitos da antiga Pérsia relacionados com os Reis Magos e com o que aconteceu a eles. Tudo converge para um presente que lhes foi dado pelo Cristo menino. Uma pedra de grande poder. Em torno dessa pedra, os Reis Magos supostamente fundaram uma fraternidade mística de sabedoria arcana. Eu gostaria de pesquisar esse mito.

O corredor terminava na Torre dos Ventos. As salas vazias dessa torre haviam sido incorporadas aos Arquivos Secretos. Infelizmente, a sala que Vigor procu­rava situava-se bem no alto. Ele amaldiçoou a inexistência de elevadores e começou a subir a escada escura.

Ele interrompeu a preleção, economizando o fôlego para a longa subida. A escada em espiral dava voltas e mais voltas. Eles prosseguiram em silêncio até os degraus afinal darem numa das câmaras mais singulares e extraordinárias do Vaticano.

A Sala da Meridiana.

Jacob esticou o pescoço para contemplar os afrescos que adornavam as pare­des e os tetos circulares, descrevendo cenas da Bíblia com querubins e nuvens acima. Um único feixe de luz, que entrava através de um buraco de cerca de cinqüenta centímetros na parede, atravessava o ar poeirento e incidia sobre o assoalho de mármore da sala, gravado com os signos do zodíaco. Uma linha demarcando o meridiano estendia-se de um lado ao outro do assoalho. A sala era o observatório solar do século XVI usado para se criar o calendário gregoriano e onde Galileu tentara provar sua tese de que a Terra girava em torno do Sol.

Infelizmente, ele fracassara - sem dúvida, um momento deplorável entre a Igreja Católica e a comunidade científica. Desde então, a Igreja vinha tentando compensar sua miopia.

Vigor parou por um instante para recuperar o fôlego após a longa subida. Removeu o suor da testa e encaminhou Jacob a uma câmara adjacente à Sala da Meridiana. Uma estante maciça cobria a parede dos fundos, apinhada de livros e regestra encadernados.

- De acordo com o índice principal, o livro que procuramos deve estar na terceira prateleira.

Jacob avançou, tropeçando no fio que se estendia de um lado ao outro da soleira.

Vigor ouviu o fio retesando-se, mas não teve tempo de avisá-lo.

O dispositivo incendiário explodiu, projetando o corpo de Jacob para fora, de encontro a Vigor.

Eles caíram de costas enquanto um muro de chamas rugia para fora, rolan­do sobre eles, como o hálito de enxofre de um dragão.

 

A missão recebera prioridade carmesim, designação negra e protocolos de segurança cor de prata. O diretor Painter Crowe balançou a cabeça diante do código de cores. Algum burocrata havia visitado muitas vezes uma loja da Sherwin-Williams.

Todas as designações reduziam-se a uma conclusão: Não fracassem. Quan­do questões de segurança nacional estavam envolvidas, não havia segundo lu­gar, nenhuma medalha de prata, nenhum segundo colocado.

Painter sentou-se à sua mesa de trabalho e reviu o relatório de seu gerente de operações. Tudo parecia em ordem. Credenciais conferidas, códigos de se­gurança atualizados, checagem do equipamento concluída, horários do satélite coordenados e milhares de outros detalhes providenciados. Ele correu um dedo pela análise de custos projetada. Na semana seguinte, tinha uma reunião com os chefes da junta.

Ele esfregou os olhos. Aquilo se transformara na sua vida: montanhas de papéis, planilhas eletrônicas e estresse. O dia estava sendo estafante. Primeiro a emboscada da Guilda, agora uma operação internacional a ser deslanchada. Todavia, uma parte dele excitava-se com os novos desafios e responsabilidades. Ele herdara a Sigma de seu fundador, Sean McKnight, agora diretor-geral da DARPA. Painter não queria decepcionar seu mentor. A manhã inteira ambos haviam discutido a emboscada no Forte Detrick e a missão prestes a ter início, elaborando estratégias como nos velhos tempos. Sean ficara surpreso com a escolha do líder da equipe por Painter, mas essa decisão cabia a ele.

Portanto, a missão estava planejada.

Restava apenas instruir os agentes. O vôo tinha sido marcado para as duas da tarde. Não havia muito tempo. Um jato particular já estava sendo abasteci­do e carregado em Dulles, cortesia da Kensington Oil, um disfarce perfeito. O próprio Painter providenciara o transporte, pedindo um favor à Sra. Kara Kensington. Ela ficara contente em ajudar a Sigma de novo.

- Vocês, americanos, não conseguem fazer nada sozinhos? - ela o repreendera.

O intercomunicador tocou na sua mesa.

Ele apertou o botão.

Pode falar.

Diretor Crowe, os Drs. Kokkalis e Bryant estão aqui.

Mande-os entrar.

Uma campainha soou na porta quando a fechadura se abriu. Monk Kokkalis entrou primeiro, mas segurou a porta para Kathryn Bryant. A mulher era pelo menos um palmo mais alta do que o atarracado ex-Green Beret. Ela se movia com a graça de uma leoa de força reprimida. Seus cabelos castanho-avermelhados, batendo nos ombros, estavam trançados e eram tão sóbrios quanto seus trajes: tailleur azul-marinho, blusa branca, escarpins de couro. Seu único lampejo de cor era um alfinete na lapela adornado com pedras preciosas, um sapo minús­culo. Ouro esmaltado de esmeralda. Algo que combinava com o lampejo de seus olhos verdes.

Painter sabia por que ela usava o alfinete de ouro. O sapinho fora um pre­sente de uma equipe anfíbia de que ela participara durante uma operação de reconhecimento dos fuzileiros navais para o serviço secreto da Marinha. Ela salvara dois homens, demonstrando sua perícia com um punhal. Mas um colega de equipe jamais voltou. Ela usava o alfinete em memória dele. Painter acreditava que havia mais coisas nessa história, mas a ficha dela não fornecia mais detalhes.

- Por favor, sentem-se - disse Painter, cumprimentando ambos com um aceno de cabeça. - Onde está o comandante Pierce?

Monk mexeu-se na cadeira.

-        Gray... o comandante Pierce teve uma emergência na família. Ele acabou de chegar. Ele estará aqui num instante.

Dando-lhe cobertura, Painter pensou. Ótimo. Era um dos motivos por que ele escolhera Monk Kokkalis para aquela missão, colocando-o como parceiro de Grayson Pierce. As habilidades de um complementavam as do outro - porém, mais importante ainda, as personalidades de ambos combinavam. Monk podia ser um pouco sério, agir de acordo com o regulamento, enquanto Grayson era mais reacionário. No entanto, Grayson prestava atenção a Monk, muito mais do que a qualquer outro membro da Sigma. Ele temperava o aço em Gray. Monk tinha uma forma de fazer piadas e de ser indulgente que se revelara tão convincente quanto qualquer argumento bem debatido. Eles formavam uma boa dupla.

Por outro lado...

Painter observou como Kat Bryant estava sentada rígida, ainda alerta. Ela não estava nervosa, e sim cautelosa, com um quê de excitação. Emanava confian­ça. Talvez demais. Ele havia decidido incluí-la naquela missão mais por causa de sua experiência na área de inteligência do que por estar estudando engenharia no momento. Ela possuía experiência com protocolos na União Européia, em particular na região do Mediterrâneo. Conhecia vigilância microeletrônica e contra-espionagem. Porém, mais importante ainda, tinha relações com um dos agentes do Vaticano que estariam supervisionando a investigação em conjun­to, o monsenhor Verona. Os dois haviam trabalhado juntos na investigação de uma quadrilha internacional especializada no roubo de objetos de arte.

- Nós bem que podíamos tirar esta papelada do caminho enquanto aguar­damos o comandante Pierce.

Painter passou dois volumosos dossiês numa pasta preta, um para Bryant e o outro para Kokkalis. Um terceiro estava à espera de Pierce.

Monk olhou de relance para o ∑ prateado gravado na pasta.

- Isto completará todos os detalhes mais sutis desta operação.

Painter bateu de leve na tela sensível ao toque embutida no tampo de sua mesa de trabalho. As três telas planas Sony - uma atrás de seu ombro, uma à esquerda e outra à direita - mudaram de vistas panorâmicas de paisagens monta­nhosas reproduzidas em alta definição para o mesmo ∑ prateado. - Eu mesmo vou dar as instruções da missão, em vez do gerente de operações de costume.

- Compartimentar as informações secretas - disse Kat suavemente, o sota­que sulista suavizando a aspereza das consoantes. Painter sabia que ela podia fazer todos os vestígios de seu sotaque desaparecerem quando necessário. - Por causa da emboscada.

Painter acenou afirmativamente com a cabeça.

As informações estão sendo restringidas antes de uma checagem sistemá­tica dos nossos protocolos de segurança.

E mesmo assim vamos partir para uma nova missão? - perguntou Monk.

Não temos escolha. Ordem do...

O zumbido do intercomunicador interrompeu-o. Painter apertou o botão.

Diretor Crowe - anunciou sua secretária -, o Dr. Pierce chegou.

Mande-o entrar.

A porta abriu-se, fazendo soar a campainha, e Grayson Pierce entrou a passos largos. Ele usava uma calça Levis, sapatos pretos de couro e uma camisa branca engomada. Seus cabelos estavam escorridos, ainda molhados após o banho.

- Sinto muito - disse Grayson, parando entre os dois outros agentes. Certa dureza em seus olhos desmentia qualquer arrependimento sincero. Ele mante­ve uma postura rígida, pronto para uma reprimenda.

E ele bem que a merecia. Após a violação da segurança, agora não era hora de dar uma banana ao comando. Contudo, certo grau de insubordinação sem­pre fora tolerado no comando da Sigma. Aqueles homens e mulheres eram os melhores entre os melhores. Não se podia pedir a eles que agissem com autonomia em campo e depois esperar que se curvassem à autoridade totalitária ali dentro. Era necessário uma mão hábil para equilibrar as duas coisas.

Painter encarou Grayson. Com a segurança intensificada, ele sabia muito bem que o homem havia recebido um telefonema urgente de sua mãe e saído do centro de comando. Por trás do olhar firme e impassível do outro, Painter notou uma fadiga embaciada. Seria devido à emboscada ou à situação em casa? Será que ele estava apto para esta nova missão?

Grayson não interrompeu o contato visual. Simplesmente esperou.

O motivo da reunião ia além do fornecimento de instruções. Era também um teste.

Painter apontou para uma cadeira.

A família é importante - disse ele, liberando o homem. - Mas não deixe o seu atraso se tornar um hábito.

Não, senhor.

Grayson dirigiu-se à cadeira e sentou-se, mas seus olhos moveram-se rapi­damente dos monitores de tela plana com o logotipo da Sigma para os dossiês no colo de seus colegas. Uma ruga formou-se entre suas sobrancelhas. A falta de reprimenda havia-o perturbado. Ótimo.

Painter empurrou a quarta pasta na direção de Grayson.

- Estávamos começando as instruções sobre a missão.

Ele pegou a pasta. Um olhar de cautelosa perplexidade estreitou seus olhos, mas ele ficou em silêncio.

Painter inclinou-se para trás e tocou de leve na tela em sua mesa de traba­lho. Uma catedral gótica apareceu na tela esquerda, uma foto do exterior. Uma vista do interior apareceu à direita. Corpos jaziam estatelados por toda a parte. Por trás de seu ombro, ele sabia que a foto de um contorno de giz demarcava um altar, ainda manchado de sangue, delineando a posição escarrapachada de um padre assassinado. Padre Georg Breitman.

Painter observou os olhares dos agentes percorrerem as imagens.

- O massacre em Colônia - disse Kat Bryant.

Painter fez que sim com a cabeça.

Ele ocorreu quase no fim de uma missa de meia-noite em comemoração do dia da festa dos Três Reis Magos bíblicos. Oitenta e cinco pessoas foram mortas. O motivo parece ser um simples roubo. O inestimável relicário da catedral foi arrombado. - Painter exibiu rapidamente outras imagens do sarcófago de ouro e dos restos estilhaçados de seu receptáculo de segurança. - O único objeto rouba­do foi o conteúdo do relicário. Os supostos ossos dos Reis Magos bíblicos.

- Ossos? - perguntou Monk. - Deixam para trás um estojo de ouro maciço e levam um punhado de ossos? Quem faria uma coisa dessas?

Ainda não se sabe. Só uma pessoa sobreviveu ao massacre. - Painter exi­biu uma imagem de um rapaz sendo levado para fora numa padiola, outra do mesmo rapaz num leito de hospital, os olhos abertos, mas vidrados de choque. - Jason Pendleton. Americano. Vinte e dois anos. Foi encontrado escondido num confessionário. Quando ele foi descoberto, o que dizia quase não fazia sentido, mas, após um regime de sedativos, foi capaz de fornecer um relato provisório. O grupo envolvido usava batinas e mantos como os monges. Ele não conseguiu ver nenhum rosto. Eles tomaram a catedral de assalto. Armados com fuzis. Várias pessoas foram fuziladas, entre elas o padre e o arcebispo.

Mais fotos moveram-se rapidamente através das telas: ferimentos à bala, mais demarcações a giz, uma teia de fios vermelhos marcando a trajetória dos tiros. Parecia uma típica cena de um crime, apenas com um pano de fundo incomum.

- E como isto envolve a Sigma? - perguntou Kat.

- Houve outras mortes. Mortes inexplicáveis. Para arrombarem o receptáculo de segurança, os assaltantes utilizaram um dispositivo que não só estilha­çou os vidros à prova de metal e de balas, mas também, pelo menos de acordo com o sobrevivente, desencadeou uma onda de morte pela catedral.

Painter estendeu a mão e apertou uma tecla. Nas três telas apareceram fotos de vários cadáveres. A expressão dos agentes continuou impassível. Todos eles já tinham visto sua cota de morte. Os corpos estavam contorcidos, as cabeças jogadas para trás. Uma imagem era um close-up de um dos rostos. Os olhos estavam abertos, as córneas haviam ficado opacas, enquanto rastros negros de lágrimas sanguinolentas filtravam-se dos cantos. Os lábios estavam contraí­dos, congelados num ricto de agonia, os dentes à mostra, as gengivas sangran­do. A língua estava inchada, rachada, enegrecida dos lados.

Monk, com seus conhecimentos de medicina em geral e de medicina legal em particular, ficou mais ereto, os olhos apertados. Ele podia fazer o papel do palhaço distraído, mas era um observador perspicaz, sua maior vantagem.

- Nas suas pastas estão os laudos cadavéricos completos - disse Painter. - A conclusão inicial dos legistas é a de que as mortes foram devidas a algum tipo de ataque epileptiforme. Um evento convulsivo extremo combinado com hipertermia severa, interferindo na temperatura central e resultando numa liqüefação total das superfícies externas do cérebro. Todos morreram com o coração contraído, espremido com tal intensidade que não se pôde achar san­gue nas cavidades. O marca-passo de um homem explodiu no peito dele. Uma mulher com um pino de metal num fêmur foi encontrada horas mais tarde com a perna ainda em chamas, ardendo de dentro para fora.

Os agentes mantiveram o rosto estóico, mas Monk estreitou um olho e a tez de Kat parecia ter empalidecido. Até mesmo Grayson olhava um pouco fixa­mente demais para as imagens, sem piscar.

Mas Gray foi o primeiro a falar.

E nós estamos seguros de que as mortes estão relacionadas com o disposi­tivo utilizado pelos ladrões.

Tão seguros quanto podemos estar. O sobrevivente relatou que sentiu uma intensa pressão na cabeça quando o dispositivo foi acionado. Ele a descre­veu como a sensação que se tem num avião que está descendo. Sentiu-a nos ouvidos. As mortes ocorreram nesse momento.

Mas Jason sobreviveu - disse Kat, respirando fundo.

- Algumas outras pessoas também. Mas as que não haviam sido afetadas foram fuziladas em seguida pelos criminosos. Assassinadas a sangue-frio.

Monk piscou.

Quer dizer então que algumas pessoas sucumbiram, outras não. Por quê? Havia alguma coisa em comum entre as vítimas dos ataques?

Só uma. Um fato observado até por Jason Pendleton. Os únicos que sofre­ram ôs ataques parecem ter sido os que receberam a comunhão.

Monk piscou.

Foi por esse motivo que o Vaticano entrou em contato com as autoridades americanas. E o pessoal do comando passou esse abacaxi para nós.

O Vaticano - disse Kat.

Painter decifrou a compreensão nos olhos dela. Ela agora entendia por que fora escolhida a dedo para aquela missão, interrompendo seu programa de doutoramento em engenharia.

Ele prosseguiu.

O Vaticano receia as repercussões, caso se torne de conhecimento geral que algum grupo pode estar visando ao serviço de comunhão. Talvez envene­nando as hóstias. Eles querem respostas o mais breve possível, mesmo que isso signifique submeter-se ao direito internacional. A equipe de vocês vai traba­lhar com dois agentes secretos ligados à Santa Sé. O objetivo deles é descobrir por que toda essa matança parecia ter o propósito de encobrir o roubo dos ossos dos Reis Magos. Será que foi um gesto puramente simbólico? Ou havia mais a ser roubado?

E qual a nossa meta final? - perguntou Kat.

Descobrir as pessoas que cometeram o crime e que dispositivo elas utili­zaram. Se ele pôde matar de uma maneira tão específica e direcionada, temos de saber com o que estamos lidando e quem controla isso.

Grayson permanecera quieto, fitando as imagens horripilantes com um olhar mais do que clínico.

- Veneno binário - murmurou afinal.

Painter olhou para ele. Seus olhos encontraram-se, refletindo-se uns nos outros, ambos de um azul tempestuoso.

O que foi que você disse? - perguntou Monk.

As mortes - respondeu Grayson, voltando-se para ele. - Elas não foram desencadeadas por um único evento. A causa tinha de ser dupla, exigindo um fator intrínseco e um fator extrínseco. O dispositivo - o fator extrínseco - desencadeou a convulsão em massa. Mas só os que comungaram é que reagiram. Portanto, deve haver um fator intrínseco até agora desconhecido.

Grayson virou-se para Painter.

- Serviram vinho durante o serviço?

Só a alguns paroquianos. Mas eles também receberam a hóstia. - Painter esperou, observando a estranha rapidez de raciocínio do homem, vendo-o che­gar a uma conclusão que os peritos tinham levado muito mais tempo para alcançar. Havia um motivo além de músculos e reflexos por que Grayson havia atraído a atenção de Painter.

- As hóstias devem ter sido envenenadas - disse Grayson. - Não existe outra explicação. Alguma coisa foi intrinsecamente plantada nas vítimas através do consumo das hóstias. Uma vez contaminadas, elas estavam suscetíveis seja a que força gerada pelo dispositivo. - Os olhos de Grayson voltaram a encontrar-se com os de Painter. - As hóstias foram examinadas a fim de se saber se estavam contaminadas?

Não havia no conteúdo do estômago das vítimas o suficiente para uma análise adequada, mas sobraram hóstias do serviço. Elas foram enviadas a la­boratórios em toda a União Européia.

- E?

Àquela altura, a fadiga embaciada havia desaparecido dos olhos do homem, substituída por uma atenção precisa como o laser. Ele sem dúvida ainda estava apto para o serviço. Mas o teste ainda não terminara.

- Nada foi encontrado - prosseguiu Painter. - As análises não revelaram nada além de farinha de trigo, água e os ingredientes usuais para se fazerem hóstias não levedadas.

A ruga aprofundou-se entre as sobrancelhas de Grayson.

- Isso é impossível.

Painter ouviu a obstinada rispidez da voz dele, quase beligerante. O homem continuava firmemente confiante em sua avaliação.

- Deve haver alguma coisa - Grayson insistiu.

Os laboratórios da DARPA também foram consultados. Os resultados deles foram os mesmos.

- Eles estavam errados.

Monk estendeu um braço para acalmá-lo.

Kat cruzou os braços, encerrando a discussão.

- Então deve haver outra explicação para...

- Besteira - disse Grayson, interrompendo-a. - Todos os laboratórios esta­vam errados.

Painter refreou um sorriso. Ali estava o líder esperando para revelar-se no homem: com raciocínio agudo, obstinadamente confiante, disposto a ouvir, mas que não mudava com facilidade de opinião uma vez que metia algo na cabeça.

- Você tem razão - disse Painter afinal.

Enquanto os olhos de Monk e de Kat se arregalavam de surpresa, Grayson simplesmente recostou-se em seu assento.

- Nossos laboratórios aqui de fato encontraram algo.

- O quê?

- Eles calcinaram completamente a amostra, reduzindo-a a seus compo­nentes, e separaram todos os componentes orgânicos. Em seguida, removeram cada oligoelemento à medida que o espectrómetro de massa o media. Mas, depois que tudo foi separado, ainda havia em suas balanças um quarto do peso seco do que restara da hóstia. Um pó seco esbranquiçado.

- Não estou entendendo - disse Monk. Grayson explicou.

- O pó que restou não pôde ser detectado pelo equipamento de análise.

- Ele estava nas balanças, mas os aparelhos diziam aos técnicos que ali não havia nada.

- Isso é impossível - disse Monk. - Nós temos aqui o melhor equipamento do mundo.

- Mas mesmo assim ele não pôde detectá-lo.

- A substância na forma de pó deve ser totalmente inerte - disse Grayson.

Painter acenou afirmativamente com a cabeça.

- Por isso os rapazes do nosso laboratório continuaram a testá-la. Eles a aqueceram até o ponto de fusão, 1.160 graus. Ela fundiu-se e formou um líqui­do cristalino que, quando a temperatura baixava, endurecia, formando um vi­dro âmbar transparente. Quando o vidro era triturado num almofariz, ele tor­nava a formar o pó branco. Mas em cada estágio ele permanecia inerte, incapaz de ser detectado pelo equipamento moderno.

- O que pode fazer isso? - perguntou Kat.

- Algo que todos nós conhecemos, mas num estado que só foi descoberto nas últimas décadas. - Painter passou para a foto seguinte. Ela mostrava um eletrodo de carbono numa câmara de gás inerte. - Um dos técnicos trabalhou na Universidade de Cornell, onde esse teste foi desenvolvido. Eles realizaram uma vaporização fracional do pó combinada com espectroscopia de emissão. Usando uma técnica de eletrogalvanização, eles foram capazes de fazer com que o pó fosse recozido de volta ao seu estado mais comum.

Ele exibiu a última foto. Era um close-up do eletrodo preto, só quê ele não era mais preto.

- Eles foram capazes de fazer com que a substância convertida aderisse ao eletrodo de carbono.

- O eletrodo preto, agora galvanizado, reluziu sob a luminária, esplêndido e inconfundível.

Grayson inclinou-se para a frente na cadeira.

- Ouro.

 

A sirene do carro uivou nos ouvidos de Rachel. Ela estava sentada no banco do carona da patrulha dos Carabinieri, contundida, dolorida, a cabeça latejan­do. Porém, tudo o que conseguia sentir era uma certeza gélida de que o tio Vigor estava morto. O medo ameaçava estrangulá-la, encurtando sua respira­ção e estreitando sua visão.

Ela meio que ouvia o patrulheiro falando em seu rádio. O veículo dele tinha sido o primeiro na cena de sua emboscada nas ruas. Ela recusara os cuidados médicos e usara sua autoridade como tenente para ordenar ao homem que a levasse ao Vaticano.

O carro chegou à ponte sobre o rio Tibre. Rachel continuava a olhar fixa­mente em direção ao seu destino. No outro lado do canal, a cúpula brilhante da Basílica de São Pedro apareceu, erguendo-se acima de tudo mais. O sol poente irradiava-se nela em tons de prata e ouro. Porém, o que ela viu erguendo-se atrás da basílica a fez erguer-se do assento. Suas mãos cravaram-se na beira do painel de instrumentos.

Uma coluna fuliginosa de fumaça negra subia em espiral no céu cor de anil.

- Tio Vigor...

Rachel ouviu o som de outras sirenes ecoando rio acima. Carros de bom­beiros e outros veículos de emergência.

Ela agarrou o braço do patrulheiro. Teve vontade de empurrar o homem para o lado e dirigir ela mesma. Mas ainda estava abalada.

- Você pode ir mais rápido?

O carabiniere Norre fez que sim com a cabeça. Ele era jovem, novato na força. Usava o uniforme preto com a listra vermelha nas pernas e uma faixa prateada no peito. Ele deu uma guinada no volante e subiu numa calçada para transpor um nó no trânsito. Quanto mais eles se aproximavam do Vaticano, pior se tornava o congestionamento. O afluxo de veículos de emergência havia emaranhado todo o tráfego na área.

- Siga para a Porta de Sant’Ana - ordenou ela.

Ele deu uma guinada no volante e conseguiu cortar caminho por uma ruela para saírem a três quadras da Porta de Sant’Ana. Bem à frente, a origem do incêndio tornou-se clara. Além dos muros do Vaticano, a Torre dos Ventos era o segundo ponto mais alto da Cidade do Vaticano. Seus andares superiores ardiam em chamas, transformando-se numa tocha de pedras.

Oh! não...

A torre abrigava uma parte dos Arquivos do Vaticano. Ela sabia que seu tio estivera pesquisando nas bibliotecas da Santa Sé. Após o ataque de que ela fora vítima, o incêndio não podia ser um mero acidente.

O carro de repente deu uma freada brusca, projetando Rachel para a frente, presa ao seu assento. Os olhos dela desviaram-se da torre em chamas.

Todo o tráfego a partir dali estava bloqueado.

Rachel não podia esperar mais. Ela puxou a maçaneta da porta e come­çou a sair.

Dedos apertaram seu ombro, retendo-a.

- Tenente Verona - disse o carabiniere Norre. - Aqui. A senhora pode pre­cisar disto.

Rachel olhou para baixo, para a pistola preta, uma Beretta 92, a arma de serviço do homem. Ela a pegou, agradecendo com um aceno de cabeça.

- Alerte a delegacia. Informe ao general Rende, da Tutela Patrimônio Culturale, que voltei para o Vaticano. Ele pode entrar em contato comigo através do Escritório da Secretaria.

Ele inclinou a cabeça num sinal afirmativo.

- Tome cuidado, tenente.

Com sirenes uivando de todas as direções, Rachel seguiu a pé. Ela meteu a pistola no cós de seu cinto e puxou a blusa para fora, de modo que ela se esten­desse, ocultando a Beretta. Sem uniforme, não seria bom ser vista correndo em direção a uma situação de emergência com uma arma exposta.

Multidões abarrotavam as calçadas. Rachel ziguezagueou entre os carros parados nas ruas e até deslizou pelo capô de um deles para seguir em frente. Ela avistou adiante um carro de bombeiros municipal entrando devagar pela Porta de Sant’Ana. Era uma situação difícil. Um contingente de soldados da Guarda Suíça formava uma barricada de cada lado, em alerta máximo. Nada de alabardas cerimoniais. Cada homem tinha na mão um rifle de assalto.

Rachel avançou em direção à fileira de guardas.

- Tenente Verona do Corpo de Carabinieri! - gritou ela, com os braços para o alto, o documento de identificação na mão. - Eu preciso falar com o cardeal Spera!

As expressões continuaram duras, inflexíveis. Era óbvio que eles haviam recebido ordens para bloquear todos os acessos à Santa Sé, fechando-a para todos, exceto para o pessoal de emergência. Uma tenente dos Carabinieri não tinha autoridade sobre os soldados da Guarda Suíça.

Porém, de trás da linha, um único guarda avançou, em trajes azul-escuros. Rachel o reconheceu como o mesmo guarda com quem havia falado mais cedo. Ele abriu caminho através da linha e encontrou-se com ela.

- Tenente Verona - disse ele. - Recebi ordens para escoltá-la até lá dentro. Venha comigo.

Ele girou num calcanhar e seguiu na frente.

Ela apressou-se para manter o passo enquanto eles passavam pela porta.

- Meu tio... o monsenhor Verona...

- Não sei de nada a não ser que devo escoltá-la até o heliporto. - Ele a levou até um carrinho elétrico usado pelos jardineiros e estacionado logo depois da porta. - Ordens do cardeal Spera.

Rachel entrou no veículo. O carro de bombeiros que atravancava a passa­gem seguia adiante deles e entrou no amplo pátio em frente aos Museus do Vaticano. Juntou-se aos outros veículos de emergência, incluindo dois veículos militares equipados com submetralhadoras.

Com a pista agora livre, o guarda virou o carrinho à direita, contornando o engarrafamento do tráfego de emergência em frente aos museus. Acima, a tor­re continuava a arder. De algum lugar no outro lado, um jato d’água explodiu para cima, tentando atingir os andares de cima. Chamas projetavam-se das janelas dos três últimos andares. Nuvens de fumaça negra subiam em rolos e revolviam-se no ar. A torre era altamente inflamável, alimentada por massas de livros e pergaminhos.

Era um desastre de grandes proporções. O que o fogo não havia destruído, água e fumaça arruinariam. Séculos de arquivos, que mapeavam a história do Ocidente, perdidos.

Todavia, todos os temores de Rachel tinham uma única preocupação.

O tio Vigor.

O carro passou sibilando pela oficina da cidade e continuou rumo a uma rua pavimentada. Ela era paralela à Muralha Leonina, a paliçada de pedras e argamassa que circundava a Cidade do Vaticano. Eles deram a volta ao com­plexo de museus e chegaram aos vastos jardins que cobriam a parte de trás da cidade-estado. Chafarizes dançavam a distância. O mundo estava pintado em tons de verde. Parecia bucólico demais para a paisagem infernal, atrás deles, de fumaça, fogo e uivos de sirenes.

Eles prosseguiram em silêncio para a parte mais afastada do terreno.

O destino deles surgiu adiante. Oculto num recinto murado estava o heliporto do Vaticano. Construído no lugar de antigas quadras de tênis, não passava de um vasto campo de concreto e alguns anexos.

Na pista alcatroada, um único helicóptero repousava em seus patins, isolado do tumulto. Suas hélices começaram a girar lentamente, adquirindo velocidade. O motor gemeu. Rachel conhecia a sólida aeronave branca. Era o helicóptero particular do papa, apelidado de "Holycopter".

Ela também reconheceu a batina preta e a faixa vermelha do cardeal Spera. Ele estava de pé junto à porta aberta do compartimento de passageiros, ligeira­mente curvado para esquivar-se às hélices que giravam. Uma de suas mãos segurava o solidéu escarlate no lugar.

Ele virou-se, atraído pelo movimento do carrinho, e ergueu um braço em saudação. O carrinho freou a curta distância. Rachel mal esperou que ele pa­rasse e pulou para fora. Correu em direção ao cardeal.

Se alguém conhecia o destino de seu tio, era o cardeal.

Ou alguma outra pessoa...

Uma pessoa desceu da parte de trás do helicóptero e correu em sua direção. Ela também correu ao encontro dela e deu-lhe um abraço apertado sob as hé­lices turbilhonantes do helicóptero.

- Tio Vigor...

Lágrimas escorreram pelo rosto dela, quentes, derretendo o gelo em volta de seu coração. Ele afastou-a.

Você está atrasada, criança.

Eu fui atacada - ela respondeu.

- Foi o que eu soube. O general Rende me informou sobre esse ataque. Rachel olhou para trás, para a torre em chamas. Ela sentiu o cheiro de fu­maça nos cabelos dele. As sobrancelhas dele estavam chamuscadas.

- Parece que eu não fui a única a sofrer um ataque. Graças a Deus o senhor está bem.

O rosto de seu tio ficou sombrio, sua voz apertou-se.

Infelizmente, nem tudo foi tão abençoado. Ela o olhou nos olhos.

Jacob morreu na explosão. Seu corpo protegeu o meu, me salvou.

Ela sentiu a angústia em suas palavras, mesmo acima do rugido do helicóptero.

- Venha, temos de partir.

Ele a conduziu ao helicóptero.

O cardeal Spera acenou com a cabeça para o tio dela.

- Eles têm de ser detidos - disse ele de maneira enigmática.

Rachel seguiu seu tio para o interior do helicóptero. Eles apertaram os cintos enquanto a porta era fechada. O material isolante espesso amortecia uma boa parte do barulho do motor do helicóptero, mas Rachel ouviu sua rotação au­mentar. Ele imediatamente ergueu-se de seus patins e subiu com suavidade no ar.

O tio Vigor acomodou-se de encontro ao encosto de seu assento, a cabeça curvada, os olhos fechados. Seus lábios tremiam, pronunciando uma prece si­lenciosa. Por Jacob... talvez por eles mesmos.

Rachel esperou até ele abrir os olhos. Àquela altura, eles estavam afastando-se do Vaticano e sobrevoando o Tibre.

- Os atacantes - Rachel começou - ...eles estavam dirigindo veículos com placas do Vaticano.

Seu tio acenou afirmativamente com a cabeça, sem demonstrar surpresa.

- Parece que o Vaticano não só tem espiões no exterior, mas também que é espionado em seu próprio seio.

- Quem...?

Com um grunhido, o tio Vigor a interrompeu. Ele empertigou-se, enfiou a mão no paletó, retirou um pedaço de papel dobrado e passou-o para ela.

- O sobrevivente do massacre de Colônia fez esta descrição para um dese­nhista. Ele viu isto bordado no peito de um dos atacantes.

Rachel desdobrou o pedaço de papel. Nele estava desenhada com detalhes surpreendentes a figura enroscada de um dragão vermelho, asas resplandecen­tes, cauda torcida e sinuosa, enrolada em torno do próprio pescoço.

Ela baixou o desenho e olhou para o tio.

- Um símbolo antigo - ele disse. - Ele remonta ao século XIV.

- Símbolo de quê?

- Da Corte do Dragão.

Rachel balançou a cabeça, não reconhecendo o nome.

- Trata-se de um culto alquímico medieval criado por um cisma na Igreja primitiva, o mesmo cisma que viu a ascensão de papas e antipapas.

Rachel estava familiarizada com o reinado de antipapas do Vaticano, ho­mens que se sentavam como chefes da Igreja Católica, mas cuja eleição era mais tarde declarada não-canônica. Eles ascendiam ao trono pontifício por vários motivos, e o mais comum era a usurpação e o exílio do papa legitima­mente eleito, em geral por uma facção militante apoiada por um rei ou impera­dor. Do século III ao século XV, quarenta antipapas haviam sido elevados ao trono pontifício. A era mais tumultuosa, contudo, foi durante o século XIV, quando o papado legítimo foi expulso de Roma para a França. Por setenta anos, os papas reinaram no exílio, enquanto Roma era governada por uma série de antipapas corruptos.

- O que esse culto antigo tem a ver com a situação agora? - perguntou ela.

- A Corte do Dragão ainda está ativa hoje. Sua soberania é até reconhecida pela União Européia, análoga à dos Cavaleiros de Malta, que possuem o status de observadores nas Nações Unidas. A sombria Corte do Dragão esteve ligada no Conselho Europeu dos Príncipes, aos Cavaleiros Templários e aos Rosa-Cruzes. A Corte do Dragão também admite abertamente que possui membros dentro da Igreja Católica. Até mesmo aqui no Vaticano.

- Aqui?

Rachel não conseguiu disfarçar o choque em sua voz. Ela e seu tio tinham sido visados. Por alguém de dentro do Vaticano.

- Poucos anos atrás, quase houve um escândalo - o tio Vigor continuou. -Um ex-jesuíta, o padre Malachi Martin, escreveu sobre uma "igreja secreta" dentro da Igreja. Ele era um erudito que falava 17 línguas, autor de muitos textos eruditos e um colaborador próximo do papa João XXIII. Ele trabalhou vinte anos aqui no Vaticano. Seu último livro, escrito pouco antes de ele mor­rer, discorria sobre um culto alquímico no seio do próprio Vaticano que execu­tava rituais secretos.

Rachel sentiu um embrulho no estômago que não tinha relação alguma com a inclinação lateral do helicóptero ao descrever uma curva na direção do aeroporto internacional em Fiumicino, nas proximidades.

- Uma igreja secreta no interior da Igreja. É isto que talvez esteja envolvido no massacre de Colônia? Por quê? Qual é o objetivo deles?

- Para roubarem os ossos dos Reis Magos? Não tenho nenhuma pista. Rachel deixou essa revelação filtrar-se através de sua mente. Para pegar um criminoso era preciso primeiro conhecê-lo. A determinação do motivo muitas vezes revelava-se mais informativa do que provas materiais.

- O que mais você sabe sobre a Corte? - perguntou ela.

- Apesar de sua longa história, não muito. No século VIII, o imperador Carlos Magno conquistou a Europa antiga em nome da Santa Igreja, esmagando religiões pagãs de culto à natureza e substituindo suas crenças pelo catolicismo.

Rachel acenou com a cabeça, pois conhecia bem os métodos brutais de Carlos Magno.

- Mas as coisas tomaram um novo rumo - prosseguiu o tio Vigor. - O que antes estava fora de moda voltou a entrar na moda. No século XII, começou a ocorrer um ressurgimento da crença gnóstica ou mística, adotada em segredo pelos mesmos imperadores que um dia a haviam esmagado. Aos poucos foi-se formando um cisma, à medida que a Igreja se movia em direção ao catolicismo que conhecemos hoje, enquanto os imperadores prosseguiam com suas práticas gnósticas. O cisma chegou ao auge no fim do século XIV. O papado exilado na França acabara de regressar. Para promover a paz, o sacro imperador romano Sigismundo de Luxemburgo deu apoio político ao Vaticano, até mesmo apa­rentemente abolindo as práticas gnósticas entre as classes inferiores.

- Apenas entre as classes inferiores?

- A aristocracia foi poupada. Embora o imperador tivesse esmagado as cren­ças místicas entre os plebeus, ele criou uma sociedade secreta entre as famílias reais da Europa, uma sociedade dedicada a atividades alquímicas e místicas. A Ordinis Draconis. A Corte Imperial Real do Dragão. Ela continua até hoje. Mas existem muitas seitas em diferentes países; algumas são inofensivas, mera­mente cerimoniais ou fraternas, mas surgiram outras chefiadas por líderes vi­rulentos. Eu aposto que, se a Corte do Dragão está envolvida, é uma dessas subseitas fanáticas.

Rachel passou instintivamente para o modo interrogativo. Conheça seu inimigo.

- E qual é o objetivo dessas seitas mais malignas?

- Como um culto da aristocracia, esses líderes extremistas acreditam que eles e seus membros são os governantes legítimos e eleitos da humanidade. Que nasceram para governar pela pureza do seu sangue.

- A síndrome da raça superior de Hitler.

Um aceno afirmativo de cabeça.

- Mas eles buscam mais. Não apenas a realeza. Eles buscam todas as formas de conhecimento antigo para promover sua causa de domínio e apocalipse.

- Para irem até onde o próprio Hitler teve medo de ir - murmurou Rachel.

- Na maioria das vezes, eles mantêm um ar austero de superioridade en­quanto manipulam a política por trás de uma cortina de segredo e ritual, tra­balhando com grupos de elite como a Caveira e Ossos nos Estados Unidos e o conselho consultivo Bilderburg na Europa. Mas agora alguém está revelan­do a verdadeira intenção deles, de uma forma descarada, sangrenta.

- O que isso significa?

O tio Vigor sacudiu a cabeça.

- Receio que essa seita tenha descoberto algo de suma importância, algo que a tira da clandestinidade para a notoriedade.

- E as mortes?

- Uma advertência à Igreja. Como os ataques a nós mesmos. As tentativas simultâneas de assassinato hoje não poderiam ser coincidência. Devem ter sido ordenadas pela Corte do Dragão para nos retardar, para nos assustar. Não po­deriam ser coincidência. Essa Corte específica está tentando nos intimidar, rosnando para que a Igreja recue, fazendo-a mudar a pele que vem usando há séculos.

- Mas com que objetivo?

O tio Vigor recostou-se com um suspiro.

- Alcançar a meta de todos os loucos.

Rachel continuou a encará-lo.

Ele respondeu com uma única palavra.

- Armagedom.

 

Gray agitou seu copo, fazendo o gelo tinir.

De sua poltrona, Kat Bryant correu os olhos pela cabine luxuosa do jato particular. Nada disse, mas sua testa vincada dizia tudo. Estivera se concen­trando no dossiê da missão - pela segunda vez. Gray já o tinha lido de cabo a rabo. Ele não via nenhuma necessidade de examiná-lo de novo. Em vez disso, estivera observando a superfície azul-acinzentada do oceano Atlântico, ten­tando imaginar por que fora designado líder da missão. A 13.500 metros de altitude, ainda não encontrara resposta.

Girando sua poltrona, ele se levantou e foi até o bar de mogno antigo na parte de trás da cabine. Tornou a balançar a cabeça diante da opulência ali: cristal Waterford, nogueira sem nós, assentos de couro. Parecia um pub inglês exclusivo.

Mas pelo menos ele conhecia o barman.

- Outra Coca? - perguntou Monk. Gray colocou o copo sobre o bar.

- Acho que atingi meu limite.

- Bundão - murmurou seu amigo.

Gray voltou-se e contemplou a cabine. Seu pai uma vez lhe dissera que re­presentar o papel era meio caminho andado para se transformar no papel. É claro que ele estava se referindo às tarefas de Gray como trabalhador braçal numa plataforma de perfuração de uma jazida de petróleo, supervisionadas pelo pai engenheiro. Ele tinha apenas 16 anos e passava o verão ao sol quente do Leste do Texas. Encarava um trabalho brutal, enquanto outros colegas seus do ginásio veraneavam nas praias de South Padre Island. O conselho de seu pai ainda soava em sua cabeça. Para ser um homem, você primeiro tem de agir como um homem.

Talvez se pudesse dizer o mesmo a respeito de ser um líder.

- Okay, chega de folhear os livros - disse ele, atraindo o olhar de Kat. Ele olhou de relance para Monk. - E eu acho que você já explorou a profundidade desse armário de bebidas voador por tempo suficiente.

Monk deu de ombros e foi para a área principal da cabine.

- Temos menos de quatro horas de vôo à nossa frente - disse Gray. Com o jato deles, um Citation X fabricado sob encomenda, viajando um pouco abaixo da velocidade do som, eles aterrissariam às duas da manhã, hora da Alemanha, no meio da noite. - Sugiro que todos nós tentemos dormir um pouco. Come­çaremos a todo o vapor assim que chegarmos lá.

Monk bocejou.

- Você não terá de me dizer duas vezes, comandante.

- Mas primeiro vamos trocar umas idéias. Jogaram uma grande responsa­bilidade nas nossas costas.

Gray apontou para as poltronas. Monk desabou numa delas. Gray juntou-se a eles, ficando de frente para Kat no outro lado de uma mesa.

Enquanto Gray conhecia Monk desde que ingressara na Sigma, a capitã Kathryn Bryant continuava sendo uma relativa desconhecida. Ela estava tão mergulhada nos estudos que poucos na Sigma a conheciam bem. Era geral­mente definida por sua reputação desde que fora recrutada. Um agente a descrevera como um computador ambulante. Mas sua reputação também era manchada por seu papel anterior como agente do serviço de inteligência. Supervisionando o trabalho sujo, era o boato que corria. Mas ninguém tinha certeza. Seu passado estava além da classificação até mesmo de seus colegas na Sigma. Esse segredo apenas a isolava ainda mais de homens e mulheres que haviam subido por seus próprios méritos em unidades, equipes e pelotões.

Gray tinha seus próprios problemas com o passado dela. Ele tinha motivos pessoais para não gostar dos que trabalhavam na área de inteligência. Eles ope­ravam a distância, longe do campo de batalha, mais longe até do que pilotos de bombardeiros, mas de uma maneira mais mortífera. Gray trazia as mãos man­chadas de sangue por causa de informações secretas insuficientes. Sangue ino­cente. Ele não conseguia livrar-se de certo grau de suspeita.

Ele encarou Kat. Os olhos verdes dela eram duros. Todo o corpo dela pare­cia engomado. Ele repeliu o passado dela. Ela agora era sua colega de equipe.

Ele respirou fundo. Era o chefe dela.

Interprete o papel...

Ele pigarreou. Hora de ir ao que interessava. Ergueu um dedo.

- Okay, em primeiro lugar, o que sabemos? Monk respondeu, o rosto seríssimo.

- Não muito.

Kat manteve uma expressão fixa.

- Sabemos que os criminosos estão de algum modo envolvidos com a seita conhecida como a Corte Real do Dragão.

- Isso é quase o mesmo que dizer que eles estão envolvidos com Hare Krishnas - contrapôs Monk. - O grupo é tão obscuro e imprestável quanto o capim-das-hortas. Nós não temos uma pista de quem está verdadeiramente por trás de tudo isto.

Gray fez um aceno de cabeça. Eles haviam recebido essa informação por fax enquanto estavam a caminho. Porém, ainda mais perturbador era o fato de terem recebido a notícia de um ataque a seus homólogos no Vaticano. Tinha de ser obra da Corte do Dragão de novo. Mas por quê? Para que espécie de zona de guerra clandestina eles estavam voando? Ele precisava de respostas.

- Então analisemos a situação - disse ele, dando-se conta de que estava se parecendo com o diretor Crowe. Os outros dois olharam esperançosos para ele. Gray pigarreou. - Voltemos ao essencial. Meios, motivos e oportunidade.

-        Eles tiveram muita oportunidade - disse Monk. - Atacando depois da meia-noite. Quando a maioria das ruas estava vazia. Mas por que não espera­ram até que a catedral também estivesse vazia?

- Para mandar um recado - respondeu Kat. - Um golpe contra a Igreja Católica.

- Não podemos fazer essa suposição - disse Monk. - Examine a questão de uma forma mais ampla. Talvez tudo tenha sido escamoteação. Com o objetivo de confundir. De cometer um crime tão sangrento que toda a atenção seria desviada do roubo quase insignificante de alguns ossos poeirentos.

Kat não parecia convencida, mas ela era difícil de decifrar, misteriosa. Como fora treinada.

Gray resolveu a questão.

- De qualquer modo, por ora, explorar a oportunidade não oferece uma idéia de quem cometeu o massacre. Passemos para o motivo.

- Por que roubar ossos? - disse Monk com um meneio de cabeça e voltou a sentar-se. - Pode ser que eles queiram exigir resgate à Igreja Católica para tê-los de volta.

Kat balançou a cabeça em negativa.

- Se quisessem apenas dinheiro, eles teriam roubado o relicário de ouro. Portanto, deve haver alguma outra coisa relacionada com os ossos. Alguma coisa da qual não temos nenhuma pista. Por isso talvez seja melhor deixarmos esse assunto para os nossos contatos no Vaticano.

Gray franziu o cenho. Ele ainda se sentia desconfortável trabalhando em parceria com uma organização como o Vaticano, uma instituição baseada em segredos e dogmas religiosos. Ele fora criado como católico romano e, con­quanto ainda sentisse fortes arroubos de fé, também havia estudado outras reli­giões e filosofias: budismo, taoísmo, judaísmo. Aprendera muito, mas nunca pôde responder a uma pergunta com base em seus estudos: O que estava buscando?

Gray sacudiu negativamente a cabeça.

- Por ora, vamos marcar a motivação desse crime com outro grande ponto de interrogação. Vamos nos ocupar disso mais a fundo quando nos encontrar­mos com os outros. Isso deixa apenas os meios para discutirmos.

- O que nos faz voltar à discussão dos aspectos financeiros - disse Monk. - Essa operação foi bem planejada e rapidamente executada. Somente pelo empre­go do potencial humano, foi uma operação cara. O dinheiro apoiou esse roubo.

-        O dinheiro e um nível de tecnologia que nós não entendemos - disse Kat.

Monk acenou afirmativamente com a cabeça.

Mas o que é que vocês acham daquele ouro misterioso nas hóstias?

- Ouro monoatômico - murmurou Kat, com vincos formando-se em torno dos lábios.

Gray imaginou o eletrodo folheado a ouro. No dossiê que eles haviam rece­bido havia uma profusão de dados sobre aquele ouro estranho, colhidos de laboratórios em todo o mundo: British Aerospace, Argonne National Laboratories, Laboratórios da Boeing em Seattle, Instituto Niels Bohr em Co­penhague.

O pó não era ouro em pó comum, a forma em flocos do ouro metálico. Era um estado elementar do ouro inteiramente novo, classificado como estado m. Em vez de sua matriz metálica usual, o pó branco era ouro decomposto em átomos isolados. Monoatômico, ou estado m. Até recentemente, os cientistas não sabiam que o ouro podia transmudar, tanto por meios naturais quanto artificiais, na forma de um pó branco inerte.

Mas o que aquilo tudo significava?

- Okay - disse Gray -, todos nós já lemos os arquivos. Vamos debater esse tópico. Vejamos se ele leva a algum lugar.

Monk disse em voz alta:

- Em primeiro lugar, não é apenas o ouro que faz isso. Não devíamos nos esquecer disto. Parece que qualquer um dos metais do grupo de transição da tabela periódica - platina, ródio, irídio e outros - também pode dissolver-se num pó.

- Dissolver-se não - disse Kat. - Ela deu uma olhada no dossiê com seus artigos fotocopiados de Platinum Metals Review, de Scientific American e até mesmo de Jane’s Defense Weekly, o boletim do Ministério da Defesa do Reino Unido. Parecia que estava ansiosa para abrir a pasta.

- O termo é desagregar-se - continuou ela. - Esses metais no estado m de­compõem-se tanto em átomos isolados quanto em microagregados. Do ponto de vista da física, esse estado surge quando elétrons do inverso do tempo e elétrons adiante do tempo se fundem em torno do núcleo do átomo, fazendo com que cada átomo perca sua reatividade química para o seu vizinho.

- Você quer dizer que eles param de se agarrar uns aos outros.

Os olhos de Monk dançaram um pouco com deleite.

- Sim, se usarmos uma linguagem grosseira - disse Kat com um suspiro. - Essa falta de reatividade química é que faz o metal perder seu aspecto metálico e desagregar-se num pó. Um pó que não é detectado pelo equipamento de la­boratório comum.

- Ah... - murmurou Monk.

Gray franziu o cenho para Monk. Ele deu de ombros. Gray sabia que seu amigo estava se fazendo de tolo.

- Eu acho - prosseguiu Kat, sem notar a reprimenda - que os criminosos sabiam dessa falta de reatividade química e acreditavam que ouro em pó ja­mais seria descoberto. Foi o segundo erro deles.

- O segundo? - perguntou Monk.

- Eles deixaram uma testemunha viva. O rapaz. Jason Pendleton. - Kat abriu sua pasta com o dossiê. Parecia que ela não conseguia resistir à tentação afinal de contas. - Voltemos à questão do ouro. O que me dizem deste artigo sobre supercondutividade?

Gray fez um aceno de cabeça afirmativo. Ele tinha de dar crédito a Kat. Ela havia concentrado a atenção no aspecto mais intrigante dos metais no estado m. Até mesmo Monk sentava-se mais empertigado agora.

Kat continuou:

- Embora o pó pareça inerte ao equipamento de análise, o estado atômico está longe do estado de baixa energia. Era como se cada átomo tirasse toda a energia que usava para reagir com o seu vizinho e se voltasse para dentro de si mesmo. A energia deformava o núcleo do átomo, fazendo-o assumir uma for­ma alongada, conhecida como... - Ela esquadrinhou o artigo com as pontas dos dedos. Gray notou que ele fora marcado com um marca-texto amarelo.

- Como estado assimétrico de alta rotação - disse ela. - Os físicos sabem que esses átomos de alta rotação podem transferir energia de um átomo para o próximo sem perda líquida de energia.

- Supercondutividade - disse Monk sem dissimulação.

- A energia transferida para um supercondutor continuava a fluir através do material sem perda de força. Um supercondutor perfeito permitiria que essa energia fluísse indefinidamente, até o fim dos tempos.

O silêncio abateu-se sobre eles enquanto todos avaliavam os muitos quebra-cabeças àquela altura.

Monk finalmente reclinou-se.

- Ótimo. Nós reduzimos o mistério ao nível do núcleo atômico. Voltemos à vaca-fria. O que é que isto tem a ver com os assassinatos na catedral? Por que envenenar as hóstias com esse ouro em pó misterioso? Como o pó matou?

Todas essas perguntas eram procedentes. Kat fechou seu dossiê, reconhe­cendo que nenhuma resposta seria encontrada ali.

Gray estava começando a entender por que o diretor lhe dera aqueles dois parceiros. Ia além da experiência deles como uma especialista em inteligência e um perito em medicina legal. Kat tinha uma capacidade extraordinária de se concentrar em minúcias, de perceber detalhes que outros talvez não percebes­sem. Mas Monk, não menos sagaz, era mais capaz de ter uma visão mais abrangente dos fatos, reconhecendo tendências de modo mais amplo.

Mas onde é que aquilo o deixava?

- Parece que ainda temos muito que investigar - ele concluiu pouco con­vincente.

Monk ergueu uma sobrancelha.

- Como eu disse no começo, nós não temos muitas informações para se­guirmos em frente.

- Essa é a razão por que fomos convocados. Para solucionar o impossível. - Gray deu uma olhada no relógio, reprimindo um bocejo. - E, para fazermos isso, nós deveríamos aproveitar o tempo ocioso para relaxar o máximo possí­vel até aterrissarmos na Alemanha.

Os outros dois concordaram com um aceno de cabeça. Gray levantou-se e dirigiu-se a uma poltrona a pouca distância. Monk pegou travesseiros e mantas. Kat fechou os anteparos nas janelas, obscurecendo parcialmente a cabine. Gray os observou.

Sua equipe. Sua responsabilidade.

Para ser um homem, você primeiro tem de agir como um homem.

Gray recebeu seu travesseiro e sentou-se. Ele não reclinou a poltrona. Ape­sar da exaustão, não esperava dormir muito. Monk apagou as luzes acima. A cabine mergulhou na escuridão.

- Boa-noite, comandante - disse Kat do outro lado da cabine. Enquanto os outros se acomodavam, Gray sentou-se na escuridão, perguntando-se como havia chegado até ali. O tempo se alongava. Os motores roncavam. No entanto, qualquer indício de sono lhe escapava.

Na privacidade do momento, ele enfiou a mão no bolso de seu jeans. Tirou um rosário, segurando o crucifixo na extremidade, com força suficiente para machucar a palma da mão. Fora um presente de formatura do avô, que morreu apenas dois meses mais tarde. Gray estava num campo de instrução e não pôde comparecer ao funeral. Ele recostou-se. Depois das instruções de hoje, telefo­nara para a família, mentindo sobre uma viagem de negócios de última hora para justificar sua ausência. Fugindo de novo...

Seus dedos percorreram as duras contas do rosário.

Mas ele não rezou.

 

O château Sauvage debruçava-se no desfiladeiro dos Alpes da Savóia como um gigante de pedra. As ameias tinham três metros de espessura. A única torre quadrangular encimava seus muros. O único acesso aos portões era através de uma ponte de pedra sobre o desfiladeiro. Embora não fosse o maior castelo do cantão suíço, era certamente um dos mais antigos, construído no século XII. Suas origens eram ainda mais antigas. As ameias haviam sido construídas sobre as ruínas de uma castra romana, uma antiga fortificação militar do século I.

Também era um dos castelos privados mais antigos, pertencendo à família Sauvage desde o século XV, quando o exército bernes arrebatou o controle de Lausanne dos decadentes bispos durante a Reforma. Seus parapeitos tinham vista para o lago de Genebra lá embaixo e para a bela cidade de Lausanne, localizada no topo e nas encostas de uma colina, outrora uma aldeia de pesca­dores, hoje uma cidade cosmopolita com parques à beira do lago, museus, resorts, clubes e cafés.

O atual proprietário do castelo, o barão Raoul de Sauvage, ignorou a visão das luzes artificiais da cidade escura e desceu a escada que conduzia à parte inferior do castelo. Ele fora convocado. Atrás dele, um imenso cão felpudo, pesando maciços setenta quilos, seguia seus passos. A espessa pelagem preta e marrom do Bernese mountain dog varria os antigos degraus de pedra.

Raoul também tinha um canil de cães de combate, maciços brutamontes de cem quilos oriundos da Grande Canária, de pêlo curto, pescoço grosso, tor­turados até o limite da selvageria. Ele criava campeões para o esporte sangrento.

Mas naquele momento Raoul tinha assuntos ainda mais sangrentos para resolver.

Ele passou pelo patamar do castelo onde ficavam as cavernas de pedra que antes serviam de masmorras. As celas agora abrigavam sua extensa coleção de vinhos, uma adega perfeita, mas uma seção relembrava os velhos tempos. Quatro celas de pedra haviam sido modernizadas com portas de aço inoxidável, fecha­duras eletrônicas e circuito interno de TV. Próximo às celas, uma grande sala ainda abrigava antigos instrumentos de tortura... e alguns modernos. Sua fa­mília havia ajudado vários líderes nazistas a fugir da Áustria após a Segunda Guerra Mundial, famílias com vínculos com os Habsburgos. Eles tinham fica­do escondidos ali embaixo. Como pagamento, o avô de Raoul havia recebido sua parte, seu "tributo", como ele a chamava, que ajudara a manter o castelo nas mãos da família.

Mas agora, aos 33 anos, Raoul superaria o avô. Filho bastardo de seu pai, ele recebera o direito à herança e à linhagem aos 16 anos, quando da morte do pai. Era o único descendente vivo do sexo masculino. E, no seio da família Sauvage, os laços genéticos tinham precedência sobre os do casamento. Até mesmo seu nascimento fora arranjado.

Outro dos tributos de seu avô.

O barão de Sauvage desceu ainda mais pelo lado da montanha, passando curvado sob o teto, seguido por seu cão. Uma fileira de lâmpadas elétricas desprotegidas iluminava seu caminho.

Os degraus de pedra transformaram-se em rocha natural talhada. Legioná­rios romanos haviam trilhado aquele mesmo caminho em tempos antigos, com freqüência conduzindo um touro ou bode sacrificial à caverna situada embaixo. A câmara havia sido convertida num mithraeum pelos romanos, um templo do deus Mitra, um deus-sol importado da Pérsia e levado muito a sério pelos soldados do império. O mitraísmo era anterior ao cristianismo, e no entanto possuía estranhas semelhanças. O aniversário de Mitra era comemorado no dia 25 de dezembro. O culto do deus envolvia o batismo e o consumo de uma refeição sagrada que consistia em pão e vinho. Mitra também teve 12 discípulos, considerava o domingo sagrado e descreveu um céu e um inferno. Ao morrer, também foi enterrado num sepulcro e renasceu três dias depois.

Com base nisso, alguns eruditos afirmavam que o cristianismo havia incor­porado a mitologia mitraica em seu próprio ritual. Não era diferente daquele castelo, o novo erguendo-se sobre o velho, o forte sobrepujando o fraco. Raoul não via aí nada de errado, até respeitava isso.

Era a ordem natural.

Ele desceu os últimos degraus e entrou na ampla gruta subterrânea. O teto da caverna era um domo de pedra natural, grosseiramente esculpido com es­trelas e um sol estilizado. Um antigo altar mitraico, onde touros jovens haviam sido sacrificados, erguia-se no outro lado. Além dele, fluía uma nascente fria e profunda, um riacho. Raoul imaginava que os corpos sacrificados haviam sido jogados ali para serem levados embora. Ele também se desfizera de alguns dos seus daquela forma... aqueles que não haviam servido de alimento para seus cães.

À entrada, Raoul tirou seu casaco de couro. Por baixo, usava uma camisa velha de tecido grosseiro bordada com o dragão enroscado, o símbolo da Ordinis Draconis, seu direito de primogenitura que remontava a gerações.

- Pare, Drakko - ordenou ao cão.

O animal sentou-se. Ele sabia que era melhor não desobedecer. Como o dono do cão...

Raoul cumprimentou o ocupante da caverna com uma meia-mesura e se­guiu em frente.

O Soberano Grande Imperador da Corte aguardava-o diante do altar, usan­do os trajes de couro preto de um motociclista. Embora fosse vinte anos mais velho do que Raoul, o homem era tão alto e tinha os ombros tão largos quanto ele. Não demonstrava sinais de envelhecimento e seus músculos continuavam fortes e firmes. Usava um capacete com a viseira baixada.

O líder havia entrado na Gruta pela porta secreta nos fundos... acompanha­do de uma estranha.

Era proibido a qualquer pessoa que não fizesse parte da Corte ver o rosto do Imperador. Os olhos da estranha tinham sido vendados como uma precau­ção extra.

Raoul também notou os cinco guarda-costas nos fundos da caverna, todos portando armas automáticas, a guarda de elite do Imperador.

Ele avançou a passos largos, o braço direito cruzado no peito, e ajoelhou-se diante do Imperador. Raoul era chefe da abominável adepti exempti da Corte, a ordem militar, uma honra que remontava a Vlad, o Empalador, um antigo ancestral da família Sauvage. Mas todos curvavam-se ao Imperador. Um cargo que o próprio Raoul esperava um dia assumir.

- Levante-se - ordenou o homem. Raoul ergueu-se.

- Os americanos já estão a caminho - disse o Imperador. Sua voz, apesar de abafada pelo capacete, estava cheia de autoridade. - Os seus homens estão prontos?

- Sim, senhor. Escolhi a dedo 12 homens. Estamos apenas aguardando suas ordens.

- Muito bem. Nossos aliados nos cederam alguém para ajudar nesta opera­ção. Alguém que conhece esses agentes americanos.

Raoul fez uma careta. Ele não precisava de ajuda.

- Isto é um problema para você?

- Não, senhor.

- Um avião está à sua espera e de seus homens no aeroporto de Yverdon. O fracasso não será tolerado uma segunda vez.

Raoul encolheu-se de medo no íntimo. Ele chefiara a missão para roubar os ossos em Colônia, mas não conseguira expurgar o santuário. Restara um so­brevivente. Um que apontara na direção deles. Raoul caíra em desgraça.

- Eu não vou fracassar - assegurou ele a seu líder.

O Imperador encarou-o, lançando-lhe um olhar amedrontador através da viseira baixada.

- Você conhece o seu dever.

Um último aceno de cabeça.

O Imperador avançou pomposamente, passando por Raoul, acompanhado por seus guarda-costas. Ele seguiu para o castelo, assumindo o controle ali até que a última partida do jogo tivesse acabado. Mas primeiro Raoul tinha de terminar de arrumar a bagunça que deixara para trás.

Isso significava outra viagem à Alemanha.

Ele esperou o Imperador sair. Drakko seguiu trotando atrás dos homens, como se farejasse o verdadeiro poder ali. Também, pudera, o líder tinha visita­do o castelo com freqüência nos últimos dez anos, quando as chaves da danação e da salvação caíram do céu.

Tudo devido a uma descoberta fortuita no Museu do Cairo.

Eles agora estavam tão perto.

Depois que seu líder saiu, Raoul finalmente encarou a estranha. Achou de­ficiente o que viu, e sua carranca demonstrava isso. Mas pelo menos a roupa da estranha, toda preta, combinava com ela.

E também o pequeno adorno de prata.

Do pingente da mulher, um dragão de prata oscilava.

 

Para Gray, as igrejas à noite sempre tinham algo de assustador. Mas nenhu­ma mais do que aquela. Com os assassinatos recentes, a construção gótica exsudava um terror palpável.

Enquanto sua equipe atravessava a praça, ele observou atentamente a Cate­dral de Colônia, ou Kölner Dom, como era chamada pelos alemães. Ela estava iluminada por refletores externos que a envolviam em prata e sombra. A maior parte da fachada oeste eram apenas duas torres maciças. As flechas gêmeas erguiam-se muito próximas, projetando-se de cada lado da porta principal, separadas apenas por alguns metros na maior parte de sua extensão, até se afilarem em pontas com cruzes minúsculas na extremidade. Cada fileira das estruturas de 150 metros havia sido decorada com relevos intrincados. Janelas em arco subiam pelas torres, todas apontando para o céu noturno e para a lua bem no alto.

- Parece que deixaram as luzes acesas para nós - disse Monk, embasbacando-se diante da catedral iluminada e pendurando a mochila mais alto no ombro.

Todos usavam trajes civis escuros, a fim de não chamarem atenção. Porém, por baixo, cada um deles usava um colete de proteção líquido aderente ao cor­po. Suas mochilas pretas Arcteryx estavam repletas de instrumentos do ofício, incluindo armas fornecidas por um contato da CIA que os encontrara no aero­porto: pistolas compactas Glock M-27, com câmaras para projéteis ocos cali­bre 40 e equipadas com miras noturnas de trítio.

Monk também tinha uma espingarda de combate, presa com uma correia à coxa esquerda e oculta por uma jaqueta comprida. A arma, fabricada especial­mente para aquele tipo de serviço, tinha o cano curto e era compacta como o próprio Monk, com um sistema de mira ghost ring para precisão semelhante à de um rifle sob pouca luz. Kat recorrera a uma tecnologia menos avançada. Ela conseguira esconder oito punhais no corpo. Uma lâmina estava sempre ao alcance da mão, independentemente da posição dela.

Gray consultou seu relógio Breitling de mergulho. Os mostradores indi­cavam duas e quinze da manhã. Eles haviam viajado mais rápido do que o esperado.

Atravessaram a praça. Gray esquadrinhou as esquinas escuras à procura de algo suspeito. Tudo parecia tranqüilo. Àquela hora, num dia útil, o lugar estava quase deserto. Apenas alguns vagabundos. E a maioria deles trocava o passo - os bares já tinham fechado. Mas havia sinais de multidões que haviam estado ali mais cedo. Pilhas de flores de pessoas enlutadas espalhavam-se pelos cantos da praça, junto com garrafas de cerveja que palermas haviam jogado fora. Montículos de velas de cera derretidas marcavam os santuários em memória dos mortos, alguns com fotos de parentes falecidos. Algumas velas ainda quei­mavam, minúsculas chamas tremeluzentes na noite, solitárias e abandonadas.

Numa igreja próxima, fazia-se uma vigília inteiramente à luz de velas, um serviço celebrado a noite toda em memória dos mortos, com uma mensagem do papa transmitida ao vivo. Ela fora organizada a fim de esvaziar a praça naquela noite.

Todavia, Gray observou que seus colegas de equipe observavam os arredo­res com cautela. Eles não queriam correr riscos.

Um furgão estava estacionado em frente à catedral, com o logotipo da Polizei municipal na lateral. Ele servira de principal base de operações para as equipes de legistas. Ao aterrissar, Gray fora informado pelo superintendente de opera­ções da missão, Logan Gregory, vice-diretor da Sigma, que as equipes de inves­tigadores locais haviam ido embora por volta da meia-noite e retornariam de manhã. Às seis. Até lá, a igreja era só deles.

Bem, não inteiramente deles.

Uma das portas laterais da catedral abriu-se enquanto eles se aproximavam. Uma figura alta e magra delineou-se contra a luz no interior. Um braço ergueu-se.

- Monsenhor Verona - disse Kat num sussurro, confirmando a identidade. O sacerdote foi até o cordão de isolamento da polícia que fora colocado em volta da catedral. Ele falou com um dos dois guardas de serviço, ali postados para manterem os curiosos afastados da cena do crime, e em seguida acenou para que o trio transpusesse a barreira. Eles o seguiram até a porta aberta.

- Capitã Bryant - disse o monsenhor, com um sorriso caloroso. - Apesar das circunstâncias trágicas, é maravilhoso rever você.

Obrigada, professor - disse Kat, retribuindo com um sorriso largo e cari­nhoso. Suas feições abrandaram-se com amizade sincera.

- Por favor, me chame de Vigor.

Eles entraram no vestíbulo da frente da catedral. O monsenhor puxou a porta e trancou-a. Ele examinou minuciosamente os dois companheiros de Kat.

Gray sentiu o peso de seu exame. O homem tinha quase a sua altura, porém era mais rijo. Seus cabelos grisalhos haviam sido penteados para trás, encaracolando-se em ondas. Ele usava um cavanhaque bem aparado e seus trajes eram informais: jeans azul-escuro e suéter preto com gola em V, revelando o colarinho romano de seu cargo.

Mas foi a fixidez de seu olhar que mais impressionou Gray. Apesar de seu jeito acolhedor, havia um quê de frieza no homem. Até Monk aprumou os ombros sob o escrutínio do padre.

- Entrem - disse Vigor. - Devemos começar o mais rápido possível.

O monsenhor foi até as portas fechadas da nave, abriu-as e acenou para que o grupo entrasse.

Quando Gray penetrou no coração da igreja, duas coisas imediatamente o impressionaram. Primeiro o cheiro. Embora o ar ainda recendesse a incenso, também tinha um mau cheiro quase imperceptível de algo queimado.

No entanto, não foi apenas isso que chamou a atenção dele. Uma mulher ergueu-se de um banco para cumprimentá-los. Ela se parecia com Audrey Hepburn quando jovem: pele alva, cabelos curtos e negros partidos ao meio e presos atrás das orelhas, olhos cor de caramelo. Ela não sorriu. Seu olhar percorreu os recém-chegados, detendo-se por um tempo mais longo em Gray.

Ele reconheceu a semelhança familiar entre ela e o monsenhor, mais pela intensidade de seu escrutínio do que pelas características físicas.

- Minha sobrinha - apresentou Vigor. - Tenente Rachel Verona.

As apresentações logo chegaram ao fim. E, conquanto não houvesse nenhu­ma animosidade visível, os dois campos ainda permaneciam separados. Rachel mantinha uma distância cautelosa, como que pronta a sacar a arma se necessário. Gray notara uma pistola no coldre sob o colete aberto. Uma Beretta 9mm.

- Devemos começar - disse Vigor. - O Vaticano conseguiu nos assegurar certa privacidade, exigindo tempo para santificar e abençoar a nave após a re­moção do último corpo.

O monsenhor conduziu-os pelo corredor central.

Gray observou que algumas seções dos bancos haviam sido demarcadas com fita-crepe. Cartões marcando os lugares haviam sido afixados em cada uma delas com os nomes dos mortos. Ele contornou as demarcações a giz no chão. O sangue havia sido removido, mas a mancha havia penetrado na argamassa do piso de pedra. Marcadores de plástico amarelo determinavam as po­sições das cápsulas deflagradas, há muito enviadas para os peritos legistas.

Ele correu os olhos pela nave, imaginando como deveria ter sido seu as­pecto para os que haviam entrado ali primeiro. Corpos estatelados em toda a parte; o cheiro de sangue queimado, mais penetrante. Ele quase podia sentir um eco da dor, que penetrara na pedra tanto quanto o mau cheiro. Sentiu a pele arrepiar-se. Ainda era católico romano o suficiente para achar que um assassinato como aquele ia além da violência pura e simples. Era uma afronta a Deus. Satânico.

Será que isso fora parte da motivação?

Transformar uma festa religiosa numa Missa Negra.

O monsenhor falou, atraindo de novo sua atenção.

- Foi ali que o rapaz foi encontrado escondido.

Ele apontou para um confessionário encostado na parede norte, a meio caminho da longa nave.

Jason Pendleton. O único sobrevivente.

Gray sentiu certa satisfação sinistra de que nem todos houvessem morrido naquela noite sangrenta. Os agressores haviam cometido um erro. Eram falíveis. Humanos. Ele se concentrou nesse pensamento. Embora o ato fosse demoníaco,

a mão que o cometera era humana como qualquer outra. Não que não houves­se demônios em forma humana.

Mas os humanos podiam ser pegos e punidos.

Eles chegaram ao santuário elevado, com o altar de lajes de mármore e a cathedra de encosto alto, a cadeira do bispo. Vigor e sua sobrinha fizeram o sinal-da-cruz. Vigor dobrou rapidamente um joelho e em seguida ergueu-se. Ele os conduziu através de um portão na grade do coro. Além da grade, o altar também estava marcado com giz, o mármore travertino cheio de manchas, fitas de isolamento da polícia demarcavam uma seção à direita.

No chão, no qual fizera rachar uma laje de pedra, um sarcófago dourado estava caído de lado. Sua tampa encontrava-se dois degraus abaixo. Gray tirou a mochila do ombro e abaixou-se, apoiando-se num joelho.

Completo, o relicário dourado tinha a forma de uma igreja em miniatura, esculpida com janelas em arco e cenas gravadas a ouro, rubis e esmeraldas, descrevendo a vida de Cristo, desde a adoração pelos Reis Magos até o flagelo e a crucificação.

Gray calçou um par de luvas de borracha.

- Era neste relicário que estavam os ossos? Vigor fez que sim com a cabeça.

- Desde o século XIII.

Kat juntou-se a Gray.

- Estou vendo que já espalharam pó no relicário à procura de impressões digitais - disse ela, apontando para o pó branco fino aderido a rachaduras nos relevos.

- Não foram encontradas impressões digitais - disse Rachel. Monk correu os olhos pela catedral.

- Não levaram mais nada?

- Foi feito um inventário completo - prosseguiu Rachel. - Nós já tivemos oportunidade de interrogar todo o pessoal, incluindo os padres.

- Talvez eu queira falar com eles - murmurou Gray, ainda examinando a caixa.

Os aposentos deles ficam no outro lado do átrio dos claustros - respon­deu Rachel, a voz endurecendo. - Ninguém ouviu ou viu nada. Mas, se você quiser perder o seu tempo, esteja à vontade.

Gray olhou-a de relance.

- Eu apenas disse que talvez queira falar com eles. Ela o fitou nos olhos sem hesitar.

- E eu tinha a impressão de que esta investigação era um esforço conjunto. Se checarmos de novo o trabalho uns dos outros a cada passo, não chegaremos a lugar nenhum.

Gray respirou fundo para controlar-se. Mal começara a investigação e já tropeçara no problema de jurisdição. Ele deveria ter interpretado a precaução anterior dela e tido um pouco mais de tato.

Vigor pousou uma das mãos no ombro da sobrinha.

- Eu lhe asseguro que o interrogatório foi minucioso. Entre meus colegas, cuja prudência da língua com freqüência supera o bom senso, duvido que o senhor consiga mais detalhes, sobretudo quando se é entrevistado por alguém que não pertença ao clero.

Monk disse em voz alta:

- Muito bem. Mas podemos voltar à minha pergunta? - Todos os olhares voltaram-se para ele, que exibia um sorriso torto. - Eu acho que perguntei se não haviam levado mais nada.

Gray sentiu a atenção desviar-se dele. Como de costume, Monk atraíra de novo a atenção para si. Um diplomata usando colete de proteção líquido.

Rachel fitou Monk com seu olhar inflexível.

- Eu disse que nada foi...

- Sim, obrigado, tenente. Mas eu queria saber se outras relíquias são con­servadas aqui na catedral. Relíquias que os ladrões não levaram.

Rachel franziu o cenho, confusa.

- Eu imaginei - explicou Monk - que aquilo que os ladrões não levaram pudesse ser tão informativo quanto o que eles levaram.

Ele deu de ombros.

O rosto da mulher relaxou um pouco, refletindo sobre aquele ponto de vista. A raiva passou.

Gray, no íntimo, balançou a cabeça. Como é que Monk fazia aquilo?

O monsenhor respondeu a Monk.

- Há uma câmara do tesouro fora da nave. Ela contém os relicários da igreja românica original que um dia existiu aqui: o báculo e os grilhões de São Pedro, junto com alguns fragmentos da cruz de Cristo. E também um báculo gótico de bispo, do século XIV, e uma espada de eleitor, ornada de jóias, do século XV.

- E nada foi roubado da câmara do tesouro.

- Tudo foi inventariado - respondeu Rachel. Seus olhos continuavam estreitados em concentração. - Nada mais foi roubado.

Kat agachou-se com Gray, mas seus olhos ainda estavam fixos nas pessoas ainda em pé.

- Quer dizer então que apenas os ossos foram roubados. Por quê?

Gray voltou sua atenção para o sarcófago aberto. Ele tirou uma lanterna da mochila, deixada ao alcance da mão, e examinou o interior dele. Não era forrado. Apenas superfícies planas de ouro. Ele notou um pouco de pó branco espalha­do no fundo do relicário. Mais pó não detectado? Cinzas de ossos?

Só havia uma maneira de descobrir isso.

Ele virou-se para a mochila e tirou um kit de coleta. Usou um pequeno aspirador à pilha para aspirar um pouco do pó num tubo de ensaio esterilizado.

- O que você está fazendo? - perguntou Rachel.

- Se isto for pó de ossos, poderá responder a algumas perguntas.

- De que tipo?

Ele reclinou-se e examinou o tubo de ensaio. Havia pouco mais do que al­guns gramas de pó cinzento.

- Poderíamos testar o pó para determinar sua idade. Descobrir se os ossos roubados eram de alguém que viveu na época de Cristo. Ou não. Talvez o obje­tivo do crime fosse recuperar os ossos da família de alguém da Corte do Dragão. Algum lorde ou príncipe antigo.

Gray lacrou o tubo de ensaio e guardou a amostra.

- Eu também gostaria de obter amostras de cacos de vidro do receptáculo de segurança. Elas talvez nos forneçam algumas respostas sobre como o dispo­sitivo estilhaçou o vidro à prova de balas. Nossos laboratórios podem exami­nar a microestrutura cristalina em busca de padrões de fraturas.

- Vou cuidar disso - afirmou Monk, tirando a mochila do ombro.

- E a obra de cantaria? - perguntou Rachel. - Ou outros materiais no inte­rior da catedral?

- O que você quer dizer? - perguntou Gray.

- O que quer que tenha desencadeado as mortes entre os paroquianos tal­vez tenha afetado pedra, mármore, madeira, plástico. Alguma coisa que não pudesse ser vista a olho nu.

Ele não havia pensado nisso. Mas deveria. Monk olhou-o nos olhos e ar­queou as sobrancelhas. A tenente dos Carabinieri estava se revelando mais do que um rostinho e um corpinho bonitos.

Gray voltou-se para Kat, a fim de organizar uma metodologia de coleta. Mas ela parecia absorta. Do canto do olho, ele notara o interesse dela no relicá­rio, quase enfiando a cabeça nele para investigar. Ela agora estava agachada no piso de mármore, curvada sobre algo em que estava trabalhando.

- Kat...?

Ela segurava uma minúscula escova de pêlo de marta.

- Um momento.

Na outra mão, segurava uma pequena pistola-isqueiro de butano. Ela pu­xou o gatilho e uma minúscula chama azul assobiou da extremidade. Aplicou a chama a um montículo do pó que removera do relicário com a escova.

Após alguns segundos, o pó cinzento fundiu-se, borbulhando e espuman­do até transformar-se num líquido âmbar translúcido. Ele escoou sobre o mármore frio e solidificou-se em vidro. O brilho contra o mármore branco era inconfundível.

- Ouro - disse Monk.

Todos os olhares tinham sido atraídos pela experiência.

Kat reclinou-se, apagando a chama.

- O pó residual no relicário... é o mesmo das hóstias contaminadas. Ouro monoatômico ou no estado m.

Gray lembrou-se da descrição dos testes laboratoriais pelo diretor Crowe, de como o pó poderia ser fundido até transformar-se em vidro escoriáceo. Um vidro feito de ouro maciço.

- Isso é ouro? - perguntou Rachel. - O metal precioso?

A Sigma havia fornecido ao Vaticano informações superficiais sobre as hós­tias contaminadas, de modo que suas padarias e estoques pudessem ser exami­nados a fim de se identificarem novas adulterações. Seus dois espiões também haviam sido informados, mas era óbvio que tinham suas dúvidas.

- Você tem certeza? - perguntou Rachel.

Kat já estava ocupada com a comprovação do que acabara de afirmar. Ti­nha um conta-gotas na mão e pingou seu conteúdo sobre o vidro. Gray sabia o que havia no conta-gotas. Todos eles tinham recebido a substância dos labora­tórios da Sigma para aquele objetivo. Um composto de cianeto. Fazia anos que os mineiros vinham usando um processo chamado recuperação do cianeto na extração de metais por lixiviação para dissolver o ouro de velhos resíduos.

Onde a gota batia, o vidro era corroído como se tivesse sido queimado por ácido. Porém, em vez de deixar o vidro fosco, o cianeto abria uma trilha de ouro puro, um veio do metal no vidro. Não restava dúvida.

O monsenhor Verona olhava fixamente, sem piscar, uma das mãos apal­pando o colarinho clerical. Ele murmurou:

- E as ruas da Nova Jerusalém são de ouro puro, como vidro transparente.

Gray olhou zombeteiramente para o padre.

Vigor sacudiu a cabeça.

-        Do Apocalipse... desculpem-me.

Mas Gray viu o modo como o homem se retraiu, quase recusando-se a ver, perdido em pensamentos mais profundos. Será que ele sabia mais? Gray sentiu que o padre não apenas estava ocultando alguma informação, como também necessitava de tempo para refletir sobre alguma coisa.

Kat interrompeu. Ela estivera debruçada sobre a amostra com uma lente de aumento e uma lâmpada ultravioleta.

- Eu acho que pode haver mais do que ouro aqui. Estou reconhecendo mi­núsculas poças prateadas no ouro.

Gray aproximou-se. Kat deixou-o examinar através da lente, protegendo o vidro com a mão, a fim de que o brilho azul da luz ultravioleta iluminasse melhor a amostra. Os veios de ouro metálico de fato pareciam conter impure­zas prateadas.

- Talvez seja platina - disse Kat. - Lembre-se de que o estado monoatômico não ocorre somente no ouro, mas em qualquer metal do grupo de transição da tabela periódica. Inclusive a platina.

Gray assentiu.

- O pó talvez não seja ouro puro, mas uma mistura de vários elementos da série da platina. Um amálgama de vários metais no estado m.

Rachel continuava a olhar fixamente para o vidro corroído.

- O pó não poderia simplesmente provir do desgaste do velho sarcófago? O ouro se esboroando pela idade ou algo assim?

Gray sacudiu negativamente a cabeça.

- O processo de transformação do ouro metálico em seu estado m é com­plicado. A idade apenas não faria isso.

- Mas a tenente pode ter percebido alguma coisa - disse Kat. - Talvez o dispositivo tenha afetado o ouro do relicário e feito com que parte dele transmudasse. Nós ainda não temos idéia de por meio de qual mecanismo o dispositivo...

- Eu acho que tenho uma pista - disse Monk, interrompendo-a.

Ele estava de pé junto ao estojo de segurança estilhaçado, onde estivera co­letando cacos de vidro. Caminhou até uma pesada cruz de ferro apoiada sobre um suporte perto do estojo.

- Parece que um dos nossos peritos legistas não viu uma cápsula - afirmou. Ele estendeu a mão e tirou uma cápsula de sob os pés da figura do Cristo crucificado. Recuou um passo, segurando a cápsula voltada para a cruz, e soltou-a. Ela deu um pequeno vôo e, com um zunido, grudou-se de novo à cruz.

- Ela está magnetizada - disse Monk.

Ouviu-se outro zunido. Mais alto. Mais agudo. A cruz deu meia-volta em seu suporte.

Por uma fração de segundo, Gray não compreendeu o que havia acontecido.

Monk mergulhou em direção ao altar.

- Abaixem-se! - gritou. Outros tiros ecoaram.

Gray sentiu um golpe no ombro, fazendo-o perder o equilíbrio, mas seu colete de proteção líquido o salvou de um ferimento de verdade. Rachel segu­rou no braço dele e puxou-o para uma fileira de bancos. Balas mastigavam a madeira, produziam faíscas no mármore e na pedra.

Kat abaixou-se rapidamente com o monsenhor, protegendo-o com o corpo. Ela levou um tiro de raspão na coxa e quase desmaiou, mas eles caíram atrás do altar com Monk.

Gray tivera apenas um rápido vislumbre de seus agressores.

Homens usando mantos com capuzes.

Um estalo agudo soou. Gray olhou para cima e viu um objeto negro do tamanho de um punho descrever um arco através da largura da catedral.

- Granada! - gritou.

Ele apanhou a mochila e empurrou Rachel para baixo do banco. Eles move­ram-se rapidamente, abaixados, e correram em direção à parede sul.

 

Monk mal teve tempo de reagir quando Gray gritou. Ele pegou Kat e o monsenhor e comprimiu-se contra eles atrás do altar de pedra.

A granada atingiu o outro lado e explodiu com o som da explosão de um morteiro. Uma cascata de fragmentos de mármore projetou-se para cima e para fora, atingindo os bancos de madeira. Rolos de fumaça subiram num turbilhão.

Meio ensurdecido pela explosão, Monk simplesmente ajudou Kat e Vigor a se levantarem.

- Sigam-me!

Era morte certa ficarem ali expostos. Se uma granada fosse lançada atrás do altar, todos virariam hambúrguer. Eles precisavam de uma posição mais defensível.

Monk precipitou-se para a parede norte. Atrás dele, o tiroteio continuava vio­lento. Gray avançava rápido para a parede oposta. Assim estava ótimo. Uma vez em posição, eles poderiam iniciar um fogo cruzado através do centro da igreja.

Tendo saído de trás do altar, Monk correu pelo santuário. Seu objetivo era alcançar o abrigo mais próximo, depois de ter avistado uma porta larga de madeira. Os pistoleiros por fim notaram a fuga deles. Tiros atingiram o piso de mármore, ricochetearam numa coluna e despedaçaram alguns bancos. Os disparos vinham de todas as direções agora. Mais agressores haviam-se posicionado no fundo da igreja, entrando por outras portas, impedindo a fuga, cercando-os.

Eles precisavam de abrigo.

Monk puxou sua própria arma das tiras que a prendiam. A espingarda de combate de cano curto. Sem se deter, ergueu o cano até a dobra do cotovelo esquerdo e puxou o gatilho, junto com a explosão, ouviu um grunhido agudo vindo de vários bancos de distância. Precisão não era necessariamente a qualidade de uma espingarda.

Empurrando o cano para a frente, ele mirou de maneira descuidada a ma­çaneta da porta. Era esperar demais que ela fosse uma saída para o lado de fora, mas pelo menos os faria sair da nave central. A alguns passos de distância, ele puxou o gatilho enquanto ouvia um protesto tímido do monsenhor Verona.

Mas não havia tempo para contestação.

A explosão abriu um buraco do tamanho de um punho na porta, levando consigo a maçaneta e a fechadura. Ainda correndo, Monk golpeou a porta, que se abriu com um estrondo sob o impacto de seu ombro. Ele caiu lá dentro, seguido por Kat e pelo monsenhor. Kat virou-se, mancando, e fechou a porta com um empurrão.

- Não! - exclamou o padre.

Monk agora entendia o motivo do protesto dele.

A sala abobadada era do tamanho de uma garagem para um só carro. Ele olhou para as vitrines de vidro com batinas e insígnias antigas, fragmentos de esculturas. Ouro reluzia de algumas das vitrines.

Era a câmara do tesouro da catedral.

Não havia saída.

Encurralados.

Kat tomou posição, a Glock na mão, e olhou pelo buraco causado pela explosão.

- Eles estão vindo.

 

Rachel alcançou o fim do banco, sem fôlego, o coração retumbando nos ouvidos. Tiros continuavam a ser disparados contra a posição deles, vindos de todos os lados, arrancando grossos pedaços de madeira dos bancos que os flanqueavam.

A explosão da granada ainda ecoava na cabeça dela, mas sua audição estava voltando. Decerto os padres e os funcionários na reitoria tinham ouvido a explosão e chamado a polícia.

O tiroteio abrandou momentaneamente, enquanto os agressores de batina se reposicionavam, bloqueando o corredor central.

- Dirija-se para aquela parede - exortou Gray. - Atrás das colunas. Vou lhe dar cobertura.

Rachel avistou a série de pilonos que sustentavam o teto abobadado. Que oferecia melhor abrigo do que ficar imprensado entre uma fileira de assentos. Ela olhou para o americano.

- Ao meu sinal - disse ele, agachando-se.

Seus olhares encontraram-se. Ela viu um vestígio de medo saudável, mas também uma concentração determinada. Ele fez um aceno de cabeça para ela, mudou de posição, preparou-se e então gritou:

- Corra!

Rachel levantou-se depressa no fim do banco enquanto tiros explodiam atrás dela, mais altos do que os de seus agressores. As armas do comandante não tinham silenciadores.

Ela alcançou o piso de mármore e rolou para trás do trio de colunas. Ficou de pé imediatamente, atrás da coluna gigantesca. Espiando com cuidado do canto da curva, ela viu o comandante Pierce correndo de costas em sua dire­ção, descarregando ambas as pistolas.

Um homem de batina no outro lado do mesmo banco caiu para trás, atingi­do pelos impactos. Outro no corredor central gritou e agarrou o pescoço en­quanto um jorro vermelho dele saía, descrevendo um arco. Os outros haviam escapado do ataque do americano. No outro lado da igreja, Rachel divisou cin­co ou seis homens convergindo para a porta da Câmara do Tesouro da cate­dral, atirando quase sem cessar.

Quando o comandante Pierce alcançou ofegante a posição dela, Rachel vi­rou-se a fim de verificar o outro lado da coluna, esquadrinhando a parede. Até então ninguém ainda havia cercado aquele caminho. Porém, ela pressupôs que eles logo o fariam.

- E agora? - perguntou ela, tirando a pistola de um coldre no ombro, a Beretta que o motorista dos Carabinieri lhe dera em Roma.

- Esta fileira de colunas é paralela à parede. Nós vamos ficar juntos para nos proteger. Atire contra qualquer coisa que se mexer.

- E a nossa meta?

- Dar o fora desta arapuca mortal.

Rachel franziu o cenho. E os outros?

O americano deve ter notado a preocupação dela.

- Nós vamos nos mandar para a rua, atraindo para fora o maior número possível destes filhos-da-puta.

Ela assentiu com a cabeça. Eles iam servir de chamariz.

- Vamos.

As colunas ao longo da parede sul ficavam separadas apenas dois metros uma da outra. Eles avançaram rapidamente, permanecendo abaixados, usando as filas de bancos próximas à nave como proteção extra. O comandante Pierce atirava alto, enquanto Rachel desencorajava qualquer agressor de entrar no corredor entre a parede e as colunas, alvejando qualquer sombra que se mexesse.

A manobra deu certo. Mais tiros foram disparados na direção deles. Mas a manobra também os retardou, expondo-os ao risco de um segundo ataque de granada. Eles haviam percorrido apenas metade da nave, e tornou-se impossí­vel pular de uma coluna para outra.

O americano recebeu um golpe nas costas que o fez estatelar-se no chão. Rachel sobressaltou-se. Mas ajudou-o a levantar-se.

Ela desceu o corredor encostada à parede, apontando a arma para a frente e para trás. Com a concentração fixa no lado de fora, ela cometeu o mesmo erro que os agressores haviam cometido na noite anterior.

A porta do confessionário abriu-se atrás dela. Antes que ela pudesse mover-se, um braço estendeu-se bruscamente e deu-lhe uma gravata. Sua arma foi ar­rancada de seus dedos. O aço frio do cano de uma arma pressionou seu pescoço.

- Não se mexa! - ordenou uma voz grave enquanto o comandante dava a volta. O braço do agressor parecia o tronco de uma árvore, sufocando-a. Ele era alto, um gigante, e praticamente ergueu-a do chão. - Baixe as armas.

O tiroteio cessou. Agora estava claro por que uma segunda granada não fora lançada contra eles. Enquanto os dois pensavam que estavam escapando, os pistoleiros simplesmente estavam impelindo-os para aquela armadilha.

- Eu faria o que ele disse - afirmou uma nova voz, sedosa, vinda da cabine penitencial próxima ao confessionário. A porta abriu-se e uma segunda figura saiu, trajando roupas de couro preto.

Não se tratava de um monge, mas de uma mulher. Esguia, eurasiana.

Ela ergueu a pistola, uma Sig Sauer preta e apontou-a para o rosto de Gray.

- Déjà vu, comandante Pierce?

 

A porta era um problema. Com a fechadura destruída pela explosão, cada disparo ameaçava abri-la. E eles não ousavam mantê-la fechada com os ombros. A maioria dos tiros era detida pelas tábuas, mas alguns ainda encontravam pontos fracos e atravessavam a madeira, transformando a porta num queijo suíço.

Monk mantinha uma bota contra o marco da porta, escorando-a com o calcanhar, porém com o corpo afastado para o lado. Balas golpeavam a porta, os impactos faziam sua perna chocalhar até a altura do joelho.

- Rápido, para trás - exortou ele.

Ele apontou a espingarda para fora do buraco na porta e abriu fogo às cegas. A cápsula enfumaçada foi expelida da câmara da arma, atingiu uma das longas vitrines com tesouros e ricocheteou. Além da porta, os disparos da espingarda mantinham os agressores cautelosos, atirando de longe. Parecia que os atacan­tes sabiam que sua presa estava encurralada.

Portanto, o que estavam esperando?

Monk supôs que uma granada seria lançada contra a porta a qualquer mo­mento. Ele rezou para que o isolamento da parede de pedra o mantivesse vivo. Mas, e daí? Com a porta mandada pelos ares, eles não tinham a menor chance ali dentro.

E o resgate era improvável. Monk ouvira a trepidação da arma de Gray eco­ar pela igreja. Parecia que ele estava recuando em direção à porta principal. Monk sabia que o comandante estava ajudando a desviar os tiros do lugar onde eles estavam. Era a única razão de ainda estarem vivos.

Mas agora a arma de Gray silenciara.

Eles estavam entregues à própria sorte.

Uma nova descarga atingiu a porta, sacudindo o marco, fazendo vibrar a perna que ele usava para escorá-la. Sua coxa queimava devido ao esforço e começara a tremer.

- Pessoal, é agora ou nunca!

O ruído de chaves atraiu seus olhos. O monsenhor Verona estivera lutando com um chaveiro que lhe fora entregue pelo zelador da catedral. Ele esforçou-se para abrir a terceira vitrine à prova de balas. Afinal, com um grito de alívio, encontrou a chave certa, e a parte da frente da vitrine abriu-se como um portão.

Kat estendeu a mão por sobre o ombro dele e pegou uma longa espada da vitrine. Uma arma decorativa do século XV com o punho de ouro e jóias. Mas a lâmina, com cerca de um metro de comprimento, era de aço polido. Ela tirou-a da vitrine e arrastou-a pela câmara. Mantendo-se fora da linha direta de fogo, cravou a espada entre a porta e o marco, pressionando e escorando a porta.

Monk afastou a perna, esfregando o joelho dolorido.

- Já não era sem tempo.

Ele tornou a enfiar a espingarda no buraco da porta e abriu fogo - mais por irritação do que com a esperança de acertar alguém.

Com a dispersão do tiro fazendo os agressores recuar, Monk arriscou uma olhadela para fora. Um dos agressores estava estatelado de costas, a cabeça semidestruída, o sangue empoçado. Um de seus tiros às cegas atingira um alvo.

Mas agora os agressores tinham parado de atirar a esmo.

Um abacaxi preto e liso quicou no banco, indo direto para a porta deles. Monk retesou-se com rapidez contra a pedra.

- Fogo na toca!

 

A explosão na igreja atraiu todos os olhares, exceto o de Gray. Ele não podia fazer nada pelos outros.

Um sorriso sinistro vincou o rosto do homenzarrão.

- Parece que os seus amigos...

Rachel mexeu-se. Com a distração momentânea, seu captor deve ter afrou­xado a gravata, talvez subestimando a mulher magra. Rachel libertou a cabeça e inclinou-a rapidamente para trás, golpeando o maxilar inferior do homem com força suficiente para ouvir os dentes dele trincarem uns contra os outros.

Movendo-se a uma velocidade surpreendente, ela atingiu com a parte pos­terior da mão o braço que a cingia e abaixou-se ao mesmo tempo. Desferiu com o cotovelo um forte golpe no diafragma do agressor, em seguida girou e deu um soco na entreperna do homem.

Gray moveu sua pistola em direção à Dama do Dragão. Mas a mulher foi mais rápida, recuando e colocando a arma entre os olhos dele, a poucos centí­metros de distância.

Ao lado, o homenzarrão dobrou-se na cintura e caiu apoiado num joelho. Rachel chutou a arma dele para o lado.

- Corra! - disse Gray para ela, com os olhos fixos na Dama do Dragão.

A agente da Guilda fitou-o nos olhos e então fez uma coisa estranhíssima. Ela fez um rápido movimento com a boca de sua arma na direção da saída e acenou com a cabeça.

Ela estava deixando-o ir.

Ele recuou. Ela não atirou, mas o manteve sob a mira da arma, pronta para o caso de ele tentar fazer um movimento contra ela.

Em vez de refletir sobre o impossível, Gray girou e disparou contra os mon­ges mais próximos, abatendo os dois que estavam mais perto dele. Eles tinham sido distraídos pela explosão da granada e deixado de perceber a rapidíssima mudança de poder ali.

Gray segurou Rachel pelo braço e puxou-a em direção à saída.

Um disparo de pistola soou bem atrás dele. Ele foi atingido no braço e sen­tiu uma ligeira tontura, perdendo o equilíbrio. A pistola da Dama do Dragão fumegava. Ela atirou contra Gray enquanto ajudava o homenzarrão a levantar-se. O sangue escorria pelo rosto dela. Um ferimento infligido a si mesma, para encobrir seu subterfúgio. Ela errara o alvo de propósito.

Rachel ajudou-o a equilibrar-se e escondeu-se depressa atrás da última coluna. A porta do vestíbulo externo ficava bem em frente. O caminho estava livre.

Gray arriscou uma olhadela para o tiroteio no fundo da catedral. Uma nu­vem de fumaça saía da porta destruída pela explosão. O punhado de pistoleiros disparava sem cessar através da abertura, assegurando-se de que ninguém es­capasse daquela vez. Então um dos homens lançou uma segunda granada - precisamente através da porta destruída pela explosão.

Os outros pistoleiros abaixaram-se depressa quando ela explodiu.

Fumaça e detritos foram lançados para fora.

Gray virou-se. Rachel também testemunhara o ataque. Lágrimas afloraram aos seus olhos. Ele sentiu-a tombar de encontro a ele, as pernas enfraquecendo. Algo no seu íntimo doeu com o pesar dela. Ele perdera colegas de equipe no passado. Fora treinado para prantear depois.

Mas ela perdera um membro da família.

- Continue andando - disse ele rispidamente. Era tudo o que podia fazer. Tinha de pô-la em segurança.

Ela olhou para ele e pareceu cobrar força de sua expressão dura. Era o que ela precisava. Não compaixão. Força. Ele já vira aquilo antes em campo, ho­mens debaixo de fogo. Ela empertigou-se.

Ele apertou o braço dela.

Ela assentiu com a cabeça. Pronta.

Eles correram juntos e saíram impetuosamente pelas portas externas.

Dois assassinos montavam guarda no vestíbulo, postados sobre os cadáve­res de dois homens com uniformes da polícia alemã. Os guardas que estavam junto ao cordão de isolamento. Os dois monges não foram pegos de surpresa. Um deles abriu fogo imediatamente, fazendo Rachel e Gray recuarem para o lado. Eles não se dirigiriam para as portas externas, mas havia outra porta bem à esquerda.

Sem opção, eles fugiram através dela. O segundo homem ergueu a arma. Uma muralha de fogo cascateou na direção deles. Ele tinha um maldito lança-chamas. Gray bateu a porta com força, mas as chamas lamberam por baixo do batente. Ela não tinha tranca.

Ele deu uma olhadela para trás.

Degraus subiam numa espiral.

- A escadaria da torre - disse Rachel.

Tiros atingiram a porta.

- Vamos, suba - disse ele.

Ele empurrou Rachel à sua frente, e eles fugiram escada acima, dando vol­tas e mais voltas. Atrás e embaixo, a porta abriu-se com um estrondo. Ele ouviu uma voz familiar, gritando em alemão:

- Peguem esses filhos-da-puta! Queimem eles vivos!

Era o homenzarrão, o líder dos monges.

Passos golpearam os degraus de pedra.

A escadaria em espiral impedia que um grupo tivesse uma visão nítida do outro, mas mesmo assim seus perseguidores estavam em vantagem. Enquanto Gray e Rachel corriam, um chafariz de chamas os perseguia, crepitando atrás deles, avançando rapidamente nas voltas da escadaria da torre.

Eles corriam em círculo. Os degraus iam-se estreitando à medida que gal­gavam a abertura cada vez mais contraída da torre que se projetava em ponta. Vitrais altos pontilhavam o caminho, mas eram estreitos demais para que se pudesse passar através deles, pouco mais do que ranhuras numa flecha.

Por fim os degraus atingiram o campanário da torre. Um sino maciço, que oscilava livremente, pendia sobre o poço da torre, o qual era protegido por grades de aço. Um deck rodeava o sino.

Pelo menos ali as janelas eram largas o bastante para se passar através delas e não possuíam vidros para abafar os potentes repiques do sino - mas estavam lacradas por barras de ferro.

- Um terraço de observação aberto ao público - disse Rachel. Ela mantinha uma arma, que Gray lhe emprestara, apontada para a abertura da escadaria.

Gray correu ao redor. Não havia outra saída. A vista da cidade abria-se em torno dele: o rio Reno cintilava, ligado de uma margem à outra pela ponte Hohenzollern com seus arcos; o Ludwig Museum estava intensamente ilumi­nado, bem como as lonas azuis do Musical Dome de Colônia. Mas não havia saída para as ruas lá embaixo.

Ele ouviu sirenes da polícia a distância, um uivo desesperado e assustado­ramente estranho.

Gray ergueu os olhos, calculando.

Rachel deu um grito. Gray virou-se quando um jato de chamas foi expelido do poço da escada. Ela recuou, juntando-se a ele. O tempo deles esgotara-se.

 

Embaixo, na catedral, Yaeger Grell entrou na câmara destruída pela explo­são, a arma na mão. Ele havia esperado até que a fumaça da segunda granada tivesse se dissipado. Seus dois parceiros tinham ido juntar-se aos outros na montagem das bombas incendiárias derradeiras próximo à entrada da igreja.

Ele se juntaria a eles - mas primeiro queria ver o estrago causado naqueles que haviam matado Renard, seu irmão de armas. Ele entrou, preparando-se para o mau cheiro de carne ensangüentada e vísceras expostas, dilaceradas.

Os restos da porta tornavam cada passo traiçoeiro. Ele se orientava com a arma. Quando deu o segundo passo, alguma coisa atingiu seu braço. Ele re­cuou, aturdido, sem compreender. Olhou para baixo, para o coto de seu punho amputado, enquanto o sangue esguichava. Não sentia dor.

Ergueu os olhos para cima a tempo de ver uma espada - uma espada! - vibrando no ar. Ela alcançou seu pescoço antes de a surpresa desvanecer-se de seu rosto. Ele nada sentiu quando seu corpo foi arremessado para a frente, a cabeça inacreditavelmente jogada para trás.

Em seguida ele foi caindo, caindo, caindo... enquanto o mundo enegrecia.

 

Kat recuou e baixou a espada cravejada de jóias. Ela curvou-se, segurou um braço e arrastou o corpo, deixando-o fora da visão direta da entrada. Sua cabe­ça ainda zumbia por causa da explosão da granada.

Ela sussurrou para Monk - ou pelo menos esperava ter sussurrado. Ela não conseguia sequer ouvir as próprias palavras.

- Ajude o monsenhor.

Monk olhou do corpo decapitado para a espada ensangüentada na mão dela, os olhos dele arregalados de espanto, mas também com um respeito relutante. Ele se dirigiu a uma das vitrines com tesouros e tirou o monsenhor de dentro dela. Todos três haviam-se escondido dentro de uma vitrine à prova de balas após a explosão da primeira granada, sabendo que uma segunda granada viria.

E tinha vindo.

Mas as vitrines de segurança haviam cumprido seu objetivo, protegendo o tesouro mais valioso de todos: suas vidas. Os estilhaços da granada haviam atravessado por completo a sala, porém, abrigados atrás do vidro à prova de balas, eles haviam sobrevivido.

A idéia fora dela.

Em seguida, com a concussão ainda ecoando na cabeça, Kat saíra de sua vitrine e encontrara a espada cravejada de jóias no chão. Esta revelou-se uma arma mais discreta do que sua pistola. Ela não queria que uma explosão alertasse os outros pistoleiros.

No entanto, sua mão tremia. Seu corpo lembrava-se da última luta de pu­nhais que ela tivera em... e a conseqüência dela. Ela apertou com mais força o punho da espada, extraindo força do aço duro.

Atrás dela, o monsenhor Verona cambaleava. Ele deu uma olhadela em seus membros, como que surpreso de ainda encontrá-los presos ao corpo.

Kat voltou para a porta. A não ser pelo companheiro morto, nenhum dos outros pistoleiros parecia estar prestando atenção. Eles estavam aglomerados à entrada.

- Temos de dar o fora.

Kat gesticulou para que saíssem. Grudando-se à parede, ela os conduziu para longe das saídas da frente, para longe dos guardas. Ela alcançou o canto onde a nave se cruzava com o transepto. Acenou-lhes do canto da interseção.

Assim que ficou fora da visão direta dos pistoleiros, o monsenhor apontou para a extensão do transepto.

- Por ali - sussurrou ele.

Havia outro conjunto de portas lá atrás. Outra saída. Sem guardas.

Com a espada do século XV presa ao punho, Kat os fez avançar depressa. Eles haviam sobrevivido.

Mas, e os outros?

 

Rachel disparou sua arma em direção à abertura da escadaria em espiral, contando as balas no segundo pente. Nove projéteis. Eles tinham mais muni­ção, mas não tempo para carregar outro pente. O comandante Pierce estava ocupado demais.

Sem outro recurso, ela atirava às cegas, esporadicamente, mantendo os agressores acuados. Descargas de chamas continuavam a importuná-la, lam­bendo tudo à frente como a língua de um dragão.

O beco sem saída não poderia durar por muito mais tempo.

- Gray - gritou ela, deixando de lado as formalidades da hierarquia.

- Só um instante - respondeu ele do outro lado do sino.

Quando as chamas recuaram no poço da escada, Rachel mirou e puxou o gatilho. Tinha de mantê-los a distância. A bala acertou a parede de pedra e ricocheteou na escada.

Em seguida, a corrediça de sua pistola abriu-se.

Sem balas.

Ela recuou e contornou o sino até o outro lado.

Gray abrira a mochila e prendera uma corda em volta de uma das barras da janela. A outra extremidade estava enrolada na sua cintura e a parte solta, num de seus braços. Ele usara um macaco de mão de um kit de ferramentas para afastar duas barras da janela o suficiente para passar através delas.

- Segure a parte solta - disse ele.

Ela pegou a corda de náilon, com cerca de cinco metros de comprimento. Atrás dela um novo jorro de chamas projetou-se do poço da escada. Os outros estavam testando de novo, avançando.

Gray pegou a mochila e espremeu-se por entre as barras. Uma vez do lado de fora, no parapeito de pedra, ele pendurou a mochila nas costas e voltou-se para ela.

- A corda.

Ela passou-a para ele.

Tenha cuidado.

Um pouco tarde para isso.

Ele olhou para baixo por entre os pés. Um decisão nem um pouco sensata, pensou Rachel. A descida de cem metros enfraqueceria os joelhos de qualquer um... e pernas fortes eram a coisa mais importante agora.

Gray avançou pelo parapeito da flecha sul da catedral.

A quatro metros de distância, a uma altura fatal, erguia-se a torre norte, gêmea daquela. Por não ser franqueada ao público, não havia barras na janela do outro lado. Mas também não havia esperança de pular de uma janela para outra, não de uma posição fixa. Em vez disso, Gray planejava mergulhar imediatamente e agarrar-se a qualquer suporte ao qual fosse possível prender-se na fachada decorada da torre oposta.

O risco era grande, mas eles não tinham outro recurso.

Eles tinham de abandonar o barco.

Gray dobrou os joelhos. Rachel reteve a respiração, uma das mãos seguran­do com força a concavidade do pescoço.

Sem um segundo de hesitação, ele simplesmente inclinou-se para fora e pulou, arqueando o corpo, arremessando o rolo de corda solta. Ele voou atra­vés do espaço entre as torres e chocou-se com a estrutura pouco abaixo do parapeito da janela. Fez um esforço com ambos os braços e tentou agarrar o parapeito, conseguindo-o por milagre. Mas o impacto o fez voltar. Seus braços não puderam retê-lo. Ele começou a cair.

- Seu pé esquerdo! - ela gritou para ele.

Ele a ouviu. Seu pé esquerdo moveu-se freneticamente contra a superfície de pedra e encontrou a gárgula com cara de demônio na fileira inferior. Ele fincou o pé na cabeça dela.

Com o fim do mergulho, ele conseguiu segurar-se no parapeito acima e encontrou apoio precário para a perna direita, grudando-se como uma mosca a uma parede. Respirou fundo, recuperando o equilíbrio, então subiu e entrou pela janela.

Rachel arriscou uma olhadela para trás, abaixando-se para perscrutar por baixo do sino. As chamas haviam cessado. Ela sabia que os outros entendiam o significado de seu súbito cessar-fogo.

Ela não podia mais esperar. Passou rapidamente pelas barras. O parapeito estava escorregadio por causa das fezes de pombos, os ventos eram traiçoeiros e sopravam em fortes rajadas.

No outro lado do espaço vazio, Gray havia amarrado sua extremidade da corda, formando uma ponte.

- Rápido! Eu seguro você.

Ela fitou os olhos dele no outro lado do espaço vazio e encontrou uma fir­me convicção.

- Eu seguro você - repetiu ele.

Engolindo em seco, ela estendeu o braço. Não olhe para baixo, pensou, e segurou a corda. De mão em mão. Era tudo o que precisava fazer.

Ela inclinou-se para fora, ambos os punhos presos tensamente à corda, os pés ainda no parapeito. Ela ouviu o sino soar atrás dela. Atônita, olhou de re­lance por cima de um ombro e viu um cilindro prateado em forma de haltere quicar no deck de pedra.

Ela não sabia o que era - mas com certeza não era coisa boa.

Sem precisar de nenhum outro encorajamento, Rachel pendurou-se na cor­da e rapidamente moveu-se pela ponte, de mão em mão, as pernas agitando-se. Gray segurou-a pela cintura.

- Bomba - disse ela arfante, jogando a cabeça para trás a fim de indicar a outra torre.

- O quê...?

A explosão interrompeu quaisquer outras palavras. Atingida por trás, Rachel foi impelida através do batente e de encontro ao peito de Gray. Ambos caíram emaranhados no chão da torre do sino. Uma muralha de chamas azuis rolou sobre eles pela janela, quente como uma fornalha.

Gray abraçou-a com força, protegendo-a com o próprio corpo.

Mas as chamas foram rapidamente dissipadas pelas rajadas de vento.

Gray rolou para o lado enquanto Rachel se erguia apoiada nos cotovelos. Ela olhou para trás, em direção à torre sul. A flecha ardia em chamas, que se projeta­vam e agitavam das quatro janelas. O sino soou em meio ao grande incêndio.

Gray juntou-se a ela. Ele puxou a corda. O nó na outra extremidade havia queimado por completo, rompendo a ponte. No outro lado do espaço vazio, as barras da janela irradiavam um vermelho ígneo.

- Dispositivo incendiário - disse ele.

As chamas ondularam nos fortes ventos, como velas na noite. Uma última homenagem aos que haviam sido mortos, tanto na noite anterior quanto na­quela noite. Rachel imaginou o sorriso jovial do tio. Morto. Ela sentiu um grande pesar... junto com algo mais quente e mais agudo. Ela cambaleou para trás, mas Gray segurou-a.

Sirenes da polícia uivavam pela cidade, ecoando até eles.

- Temos de ir - disse ele.

Ela fez que sim com a cabeça.

- Eles vão pensar que estamos mortos. Vamos deixar as coisas como estão. Ela deixou-se conduzir ao poço da escada. Eles desceram às pressas, dando voltas e mais voltas. O uivo das sirenes era cada vez mais alto - porém, mais perto, um motor tossiu de volta à vida, a rotação soando guturalmente, segui­do por outro.

Gray deu uma olhada pela janela.

- Eles estão fugindo.

Rachel olhou para fora. Três andares abaixo, dois furgões pretos afastaram-se, saindo em disparada pela praça de pedestres.

- Vamos - disse Gray. - Eu tenho um mau pressentimento em relação a isto. Ele desceu às pressas, pulando degraus. Rachel precipitou-se atrás dele, con­fiando no instinto daquele homem.

Eles chegaram ao vestíbulo num piscar de olhos. Uma das portas da nave tinha ficado entreaberta. Rachel deu uma espiada dentro da igreja - em dire­ção ao lugar onde seu tio fora morto. Mas alguma coisa atraiu seu olhar, mais perto, no chão, disposta no corredor central.

Halteres prateados.

Uma dúzia ou mais. Ligados por fios vermelhos.

- Corra! - gritou ela, girando nos calcanhares.

Eles chegaram juntos às portas principais e correram para a praça.

Sem dizer uma palavra, fugiram em direção ao único abrigo. O furgão da polícia alemã estacionado na praça. Ocultaram-se atrás dele no momento exa­to em que os dispositivos explodiram.

Parecia que eram fogos de artifício, um atrás do outro.

Seguiu-se um estilhaçar de vidro, alto o bastante para ser ouvido acima das explosões que pipocavam. Rachel olhou para o alto. O imenso vitral bávaro acima da porta principal, datando da Idade Média, explodiu numa cascata bri­lhante de fogo e vidro adornado com jóias.

Ela comprimiu-se rijamente contra o caminhão enquanto uma profusão de vidro caía na praça ao redor deles numa chuva letal.

Alguma coisa atingiu o outro lado do caminhão com um grande estrondo. Rachel curvou-se e olhou para além dos pneus. No outro lado, uma das portas de madeira maciça da catedral estava caída na rua, em chamas.

Em seguida, um novo ruído se impôs. Vozes surpresas. Abafadas. Vindas do interior do caminhão. Rachel olhou de relance para Gray. Ele de repente tinha uma faca na mão, que surgira como se num passe de mágica.

Eles deram a volta pela traseira do furgão.

Antes que pudessem tocar a maçaneta, a porta abriu-se.

Rachel olhou incrédula quando o membro atarracado da equipe de Gray saiu aos tropeços, seguido por sua colega, que segurava uma longa espada numa das mãos. E, finalmente, por uma figura familiar, querida.

- Tio Vigor! - Rachel estreitou-o num forte abraço.

Ele retribuiu.

- Por que será - perguntou ele - que todo o mundo parece determinado a me mandar pelos ares?

 

Uma hora mais tarde, Gray andava de um lado para outro no quarto do hotel, ainda agitado, os nervos à flor da pele. Eles haviam se hospedado ali usando documentos falsos, depois de terem decidido que era melhor sair das ruas o mais rápido possível. O Hotel Cristall, na Ursulaplatz, ficava a menos de oito­centos metros da catedral, um pequeno estabelecimento com uma decoração peculiarmente escandinava de cores primárias.

Eles tinham saído de circulação para reagrupar-se, estabelecer um plano de ação.

Mas primeiro precisavam de mais informações do serviço de inteligência.

Ouviu-se o ruído de chave na fechadura da porta. Gray pousou a mão em sua pistola. Ele não ia arriscar-se. Mas era apenas o monsenhor Verona regres­sando de uma expedição de reconhecimento.

Vigor entrou no quarto. Sua expressão tornara-se muito sombria.

O que houve?

O rapaz está morto - disse o monsenhor. Os outros se aproximaram.

Vigor explicou:

- Jason Pendleton. O rapaz que sobreviveu ao massacre. A BBC acabou de dar a notícia. Ele foi morto na enfermaria do hospital. Ainda não se sabe a causa da morte, mas suspeita-se muito de jogo sujo. Coincidindo especialmen­te com o ataque por bombas incendiárias na catedral.

Rachel sacudiu a cabeça tristemente.

Mais cedo, Gray sentira alívio ao encontrar todos vivos, apenas contundi­dos e abalados. Ele não pensara no sobrevivente do primeiro massacre. Mas isso fazia certo sentido, um sentido horrível. O ataque à catedral fora obvia­mente uma operação para encobrimento de faltas, para apagar qualquer pista residual. E, é claro, isso incluía silenciar a única testemunha.

- O senhor ficou sabendo de mais alguma coisa? - perguntou Gray.

Ele havia enviado o monsenhor ao saguão, depois de eles terem-se registra­do no hotel, a fim de investigar a situação na catedral. O monsenhor era mais adequado. Ele falava alemão fluentemente, e seu colarinho clerical o colocaria acima de qualquer suspeita.

Mesmo àquela hora, Klaxons e sirenes uivavam pela cidade. Da janela, eles avistavam a Colina da Catedral. Um pequeno grupo de carros de bombeiros e de outros veículos de emergência reunira-se ali, refletindo seus azuis e verme­lhos. A fumaça toldava o céu noturno. As ruas estavam repletas de espectadores e novos furgões.

Não fiquei sabendo de mais nada além do que já sabemos - disse Vigor. - O fogo ainda está assolando o interior da igreja. Ele não se espalhou. Eu vi uma entrevista com um dos padres da reitoria. Ninguém foi ferido. Mas eles estão preocupados com o meu paradeiro e o de minha sobrinha.

Ótimo - disse Gray, atraindo o olhar de Rachel. - Como eu disse antes, por ora eles acham que nós fomos eliminados. Devemos manter esse estratagema enquanto pudermos. Enquanto eles não souberem que nós estamos vivos, será menos provável que fiquem em estado de alerta.

- E menos provável que abram fogo contra nós. - disse Monk. - Eu particu­larmente gosto dessa parte.

Kat estava trabalhando num laptop conectado a uma câmera digital.

- Eu estou fazendo o upload das fotos agora - afirmou ela.

Gray levantou-se e foi até a escrivaninha. Monk e os outros haviam procu­rado não só um esconderijo no furgão após a fuga, mas também uma posição vantajosa para tirarem algumas fotografias dos agressores. Gray ficou impres­sionado com a engenhosidade deles.

Imagens em thumbnail em preto e branco encheram a tela.

- Olhem aí - disse Rachel, apontando para um homem. - Esse é o cara que me agarrou.

- O líder do grupo - disse Gray.

Kat clicou duas vezes na imagem e a tela exibiu uma foto de corpo inteiro. Ele foi congelado no meio de um passo largo quando saía da catedral. Tinha cabelos escuros, longos, quase até os ombros. Nenhum pêlo no rosto. Feições aquilinas. Duras e inexpressivas. Mesmo na foto, ele emanava um ar de superioridade.

- Olhem para esse sacana presunçoso - disse Monk. - Parece até que tem o rei na barriga.

- Alguém o reconhece? - perguntou Gray.

Todos balançaram a cabeça em negativa.

Eu posso acionar o link para o software de reconhecimento facial da Sigma - disse Kat.

Ainda não - disse Gray. Ele respondeu ao cenho franzido dela. - Nós precisamos continuar sem manter contato.

Ele correu os olhos pelo quarto. Embora normalmente preferisse operar sozi­nho, sem o Grande Irmão olhando por cima de seu ombro, ele já não poderia continuar bancando o lobo solitário. Agora tinha uma equipe, uma responsabili­dade que ia além de sua própria pele. Seus olhos encontraram Vigor e Rachel. E já não era apenas uma responsabilidade para com sua própria equipe. Todos olhavam para ele, que de repente se sentiu esmagado. Ele só queria bater o ponto na Sigma, consultar o diretor Crowe, livrar-se de sua responsabilidade.

Mas ele não podia... pelo menos, ainda não.

Gray recolheu seus pensamentos e sua decisão e pigarreou.

- Alguém sabia que estávamos sozinhos na catedral. Ou eles já estavam espionando a igreja ou receberam informações secretas com antecedência.

- Um vazamento - disse Vigor, esfregando a barba abaixo do lábio inferior.

- É possível. Mas eu não posso dizer com certeza a origem dele - Gray olhou de relance para Vigor. - Se do nosso lado ou se do lado de vocês.

Vigor suspirou e inclinou a cabeça.

Receio que a culpa seja nossa. A Corte do Dragão sempre afirmou ter membros dentro do Vaticano. E, com a emboscada aqui ocorrendo logo atrás dos ataques contra mim e Rachel, não posso deixar de pensar que o problema pode estar na própria Santa Sé.

Não necessariamente - retrucou Gray. - Ele voltou-se para o laptop e apontou para outra foto em thumbnail. - Amplie essa foto.

Kat clicou duas vezes. A imagem de uma mulher esguia entrando na parte traseira de um dos dois furgões aumentou na tela do monitor. Via-se apenas a silhueta de seu rosto.

Gray olhou para os outros.

- Alguém a conhece?

Mais acenos de cabeça negativos. Monk inclinou-se mais para perto.

Mas eu bem que gostaria de conhecê-la.

Essa é a mulher que me atacou no Forte Detrick.

Monk recuou, repentinamente achando a mulher menos atraente.

- A agente da Guilda?

As expressões de Vigor e Rachel eram confusas. Gray não tinha tempo de explicar toda a história da Guilda, mas lhes disse em linhas gerais o que era a organização: sua estrutura de células terroristas, seus vínculos com a máfia russa e seu interesse em novas tecnologias.

Quando ele terminou, Kat perguntou:

- Quer dizer então que você pensa que o problema pode estar no nosso lado?

- Depois do que aconteceu no Forte Detrick...? - Gray franziu o cenho. - Quem pode dizer onde está o vazamento de informações da segurança? Mas como a Guilda está aqui, operando ao lado da Corte do Dragão, eu não posso deixar de pensar que eles foram atraídos por causa do nosso envolvimento. Mas eu acho que eles estão tão atrasados para o jogo quanto nós.

Por que você está dizendo isso? - perguntou Rachel.

Gray apontou para a tela.

A Dama do Dragão me deixou escapar.

Seguiu-se um silêncio atordoante.

Você tem certeza? - perguntou Monk.

Absoluta.

Gray esfregou o braço contundido na parte que ela atingira enquanto ele fugia.

- Por que ela faria isso? - perguntou Rachel.

- Porque ela está jogando contra a Corte do Dragão. Como eu disse, eu acho que o único motivo por que a Guilda foi convidada a participar desta aventura é o envolvimento da Sigma. A Corte queria a ajuda da Guilda para nos capturar ou eliminar.

Kat acenou com a cabeça.

E, se nós estivéssemos mortos, a Guilda não seria mais necessária. A par­ceria terminaria, e a Guilda jamais descobriria o que a Corte do Dragão sabe.

Mas agora a Corte pensa que fomos mortos - disse Rachel.

Exatamente. E esse é outro motivo para mantermos este estratagema en­quanto pudermos. Se estivermos mortos, a Corte romperá seus laços com a Guilda.

Um adversário a menos - disse Monk.

Gray acenou afirmativamente com a cabeça.

O que faremos em seguida? - perguntou Kat.

Isso era um mistério. Eles não tinham pistas... exceto uma. Gray olhou para sua mochila.

- O pó que coletamos do relicário. Ele deve conter a chave de tudo isto. Mas eu não sei em que fechadura ela se encaixa. E se nós não podemos enviá-lo à Sigma para ser testado...

Vigor falou em voz alta:

- Eu acho que o senhor tem razão. A resposta está no pó. Mas uma pergun­ta melhor do que "O que é..."

O monsenhor de repente parou, os olhos estreitados. Ele pôs uma das mãos na testa.

O que é... - sussurrou ele.

Tio? - perguntou Rachel preocupada.

Alguma coisa... está bem aqui, em alguma parte do meu cérebro.

Gray lembrou-se de uma expressão de intensa concentração interior quan­do o monsenhor citou um versículo do Apocalipse. O padre fechou um dos punhos.

- Eu não consigo juntar as peças. É como tentar pegar uma bolha de sabão na palma da mão. - Ele sacudiu a cabeça. - Talvez eu esteja cansado demais.

Gray sentiu que o homem estava sendo sincero... a maior parte do tempo. Mas ele estava ocultando alguma coisa, alguma coisa desencadeada pelas pala­vras o que é. Por um breve instante, Gray viu o medo transparecer por trás da confusão.

- Então, qual é a melhor pergunta? - indagou Monk, voltando ao raciocí­nio original. - O senhor começou a dizer alguma coisa a respeito de uma per­gunta melhor do que a pergunta sobre o que o pó poderia ser.

Vigor sacudiu a cabeça, voltando a se concentrar.

- Certo. Talvez devêssemos perguntar como o pó foi parar ali. De tempos em tempos, os ossos são cuidadosamente tirados do relicário e o sarcófago é limpo. Tenho certeza de que espanam o interior e passam um pano nele.

Kat sentou-se mais empertigada.

- Antes do ataque, nós nos perguntávamos se o dispositivo de alguma for­ma alterou o ouro do sarcófago, se transmudou o revestimento no pó branco.

- Foi assim que ele foi parar lá? - perguntou Rachel.

- Poderia ser - disse Monk. - Lembre-se da cruz magnetizada na igreja. Algo estranho aconteceu ali dentro e afetou metais. Portanto, por que não o ouro também?

Gray gostaria de ter tido mais tempo para coletar amostras, a fim de reali­zar mais testes. Mas com a catedral sendo atacada por bombas incendiárias...

- Não - disse Kat, suspirando exasperada. - Lembre-se. O pó não era só ouro. Nós também descobrimos outros elementos. Talvez platina ou alguma outra coisa naquele grupo de metais de transição que também pode se desagre­gar numa forma de pó no estado m.

Gray concordou lentamente com um aceno de cabeça, lembrando-se das inclusões prateadas no ouro derretido.

- Eu não acho que o ouro veio do sarcófago - disse Kat.

Monk franziu o cenho.

- Mas se ele não veio do ouro do estojo e se o estojo é esvaziado e limpo de tempos em tempos... então, de onde mais ele poderia ter vindo?

Os olhos de Gray arregalaram-se com a compreensão. Ele entendeu a cons­ternação de Kat.

- Ele veio dos ossos.

- Não existe outra explicação - concordou Kat. Monk torceu o nariz, sacudindo a cabeça.

- Isso é fácil de dizer. Nós não temos nenhum osso para testarmos a sua hipótese. Eles têm todos os ossos.

Rachel e Vigor trocaram um olhar repentino.

- O que foi? - perguntou Gray.

Rachel olhou-o nos olhos. Ele interpretou a excitação na expressão dela.

- Eles não têm todos os ossos.

A testa de Gray encheu-se de sulcos.

Onde...?

Em Milão - respondeu Vigor.

 

Gray e os outros desceram do Mercedes sedan E55 alugado e seguiram para a praça de pedestres da cidade de Como, à beira do lago. Pessoas que faziam seu passeio matinal ou que olhavam vitrines espalhavam-se pela praça de pedras redondas que dava num passeio público que margeava as tranqüilas águas azuis.

Kat bocejou e espreguiçou-se, uma gata despertando lentamente. Ela con­sultou o relógio.

- Três países em quatro horas.

Eles haviam viajado a noite inteira. Cruzaram a Alemanha até a Suíça, de onde seguiram pelos Alpes até a Itália. Haviam viajado de carro, em vez de trem ou avião, para manterem o anonimato, cruzando as fronteiras com docu­mentos falsos. Não queriam alertar ninguém de que haviam sobrevivido ao ataque em Colônia.

Gray tencionava entrar em contato com o comando da Sigma após eles te­rem pego os ossos na basílica em Milão e chegado ao Vaticano. Uma vez escon­didos em Roma, eles se reagrupariam e elaborariam novas estratégias com seus respectivos superiores. Apesar do risco de vazamento, Gray precisava fornecer a Washington um relato dos acontecimentos em Colônia, a fim de reavaliar os parâmetros da missão.

Enquanto isso, o plano era fazer um rodízio de motoristas durante a viagem de Colônia a Milão, a fim de que cada um pudesse dormir um pouco. As coisas não haviam dado certo daquele jeito.

Saindo do carro, Monk deteve-se no canto da praça e curvou-se, as mãos apoiadas nos joelhos, o rosto ligeiramente esverdeado.

- É asssim que ela dirige - disse Vigor, dando um tapinha nas costas de Monk. - Ela corre muito.

- Eu já estive em aviões de combate, fazendo piruetas terríveis - grunhiu ele. - Mas isto... Isto foi pior.

Rachel saiu do assento do motorista e fechou a porta do carro alugado. Ela havia dirigido durante todo o percurso a uma velocidade vertiginosa, voando pelas auto-estradas alemãs e fazendo as curvas fechadas das estradas alpinas a velocidades que desafiavam as leis da física.

Ela empurrou os óculos de lentes azuis para o alto da cabeça.

- Você precisa apenas de um café-da-manhã - afirmou ela a Monk. - Eu conheço um excelente bistrô na Piazza Cavour.

Apesar de algumas reservas, Gray concordara em parar para comerem al­guma coisa. Eles precisavam de combustível, e o lugar era remoto. E, com o ataque tendo ocorrido apenas seis horas atrás, a confusão ainda reinava em Colônia. Quando fosse divulgado que os corpos deles não estavam entre os mortos na catedral, eles estariam em Roma. Em mais algumas horas, a necessi­dade de manter o estratagema de suas mortes estaria terminado.

Nesse meio-tempo, todos estavam fartos da estrada e famintos.

Rachel cruzou a praça em direção às margens do lago. Gray seguiu-a com os olhos. Apesar de ter dirigido a noite inteira, ela movia-se sem nenhum sinal de fadiga. Ela parecia antes animada pela corrida através dos Alpes, como se fosse a sua forma de ioga. A expressão apavorada em seus olhos resultante da noite de terror havia-se desvanecido a cada quilômetro que passava.

Ele notou que estava aliviado pela rápida capacidade de recuperação dela, mas também um pouco desapontado. Lembrou-se da mão dela apertando a sua enquanto corriam. Da preocupação nos olhos dela quando ela se escarranchou no parapeito da torre da catedral. Do modo como os olhos dela o fixaram naquele momento, confiando nele, necessitando dele.

Aquela mulher desaparecera.

Adiante, a vista se abriu, atraindo seu olhar. O lago era uma jóia azul encastoada nos picos verdes acidentados dos Alpes inferiores. Os cumes de algumas das montanhas ainda estavam cobertos de neve, que se refletia nas águas plácidas.

- Lago di Como - disse Vigor, andando a passos largos ao lado de Gray. -Virgílio uma vez o descreveu como o maior lago do mundo.

Eles chegaram a um passeio público ajardinado. O caminho era guarnecido por grandes quantidades de camélias, azaléias, rododendros e magnólias. A aléia, revestida de pedras redondas, continuava ao longo da margem do lago, ladeada por castanheiras, ciprestes italianos e loureiros de casca branca. Nas águas, minúsculos veleiros deslizavam à brisa suave da manhã. Nas colinas verdejantes, aglomerados de casas equilibravam-se precariamente no alto dos penhascos, que adquiriam gradativamente matizes de creme, ouro e terracota.

Gray observou que a beleza e o ar fresco pareciam estar revigorando Monk, ou pelo menos o terreno firme. Os olhos de Kat também contemplavam a paisagem.

Ristorante Imbarcadero - disse Rachel, apontando para o outro lado da praça.

Um restaurante drive-through teria sido ótimo - disse Gray, consultando o relógio.

- Talvez para você - disse Monk duramente.

Vigor caminhava ao lado dele.

- Viajamos a uma boa velocidade. Levaremos mais uma hora para chegar­mos a Milão.

- Mas os ossos...

Vigor o fez calar-se franzindo o cenho.

Comandante, o Vaticano está muito ciente do risco a que estão expostas as relíquias na Basílica de Santo Eustórgio. Eu já havia recebido ordens para parar em Milão a fim de recolhê-los na volta a Roma. Enquanto isto, o Vaticano guardou os ossos no cofre da basílica, a igreja foi trancada e a polícia da cidade, alertada.

Isso não vai deter necessariamente a Corte do Dragão - disse Gray, lembrando-se da devastação em Colônia.

Duvido que eles ataquem em plena luz do dia. O grupo se esconde nas sombras e na escuridão. E nós estaremos em Milão antes do meio-dia.

Kat acrescentou:

- Não vai nos atrasar muito pedirmos nossos pratos para viagem e voltar­mos à estrada.

Embora nem um pouco satisfeito, Gray cedeu. O grupo precisava reabaste­cer-se tanto quanto seu automóvel.

Chegando ao restaurante, Rachel abriu um portão para um terraço enfeita­do com buganvílias e com vista para o lago.

O Imbarcadero serve os melhores pratos da culinária local. Vocês deveriam experimentar o risotto con persico.

Perca dourada com risoto - traduziu Vigor. - É uma delícia aqui. Os filés são passados em farinha de trigo e sálvia, fritos superficialmente e servidos crocantes numa generosa porção de risoto, com molho de manteiga.

Rachel conduziu-os a uma mesa.

Um pouco abrandado, Gray permitiu-se apreciar o entusiasmo de Rachel. Ela falou rapidamente em italiano com um homem mais velho de avental que saíra para cumprimentá-los. Ela deu um sorriso suave e disse algo trivial. De­pois eles se abraçaram.

Rachel voltou e acenou para que eles se sentassem.

- Se vocês quiserem alguma coisa mais leve, experimentem as flores de abobrinha recheadas com pão e verdura. Mas não deixem de comer uma pequena porção de agnolotti.

Vigor aprovou com a cabeça.

- Ravióli com berinjela e mussarela de búfala.

Ele beijou as pontas dos dedos em aprovação.

- Portanto, eu suponho que vocês comeram aqui algumas vezes - disse Monk, caindo pesadamente numa cadeira. Ele olhou para Gray.

O anonimato já era.

Vigor deu um tapinha no ombro de Monk.

- Os proprietários são amigos da nossa família há três gerações. Podem ficar tranqüilos, eles sabem ser discretos.

Ele acenou para um garçom gorducho.

- Ciao, Mario! Bianco Secco di Montecchia, per favore!

- É pra já, padre! Eu também tenho um excelente Chiaretto de Bellagio. Chegou de barca ontem à noite.

Perfetto! Então nos traga uma garrafa de cada um enquanto esperamos!

Antepastos?

É claro, Mario. Nós não somos bárbaros.

O pedido deles foi feito com muita fanfarronada e risadas: salada de salmão com vinagre de maçã, sopa de cevada, vitela à milanesa, tagliatelle com coregono-branco e alguma coisa chamada pappardelle.

Mario trouxe uma bandeja do tamanho da mesa, repleta de azeitonas e uma variedade de antepastos... junto com duas garrafas de vinho, uma de vinho tinto e a outra de vinho branco.

- Buon appetito! - disse ele em voz alta.

Parecia que os italianos transformavam cada refeição numa festa - até mes­mo pedidos de pratos para viagem. O vinho jorrou. Copos ergueram-se. Peda­ços de salame e queijo foram passados ao redor.

- Salute, Mario! - saudou Rachel quando eles terminaram de comer os antepastos.

Monk reclinou-se, tentando reprimir um arroto, mas não conseguiu.

- Só isso já fez o tanque transbordar.

Kat também havia comido muito, mas agora examinava o menu de sobre­mesas com a mesma intensidade com que lera o dossiê da missão.

Signorina? - perguntou Mario, notando o interesse dela.

Ela apontou para o menu.

Macedonia con panna.

Monk soltou um gemido.

- É apenas salada de frutas com creme. - Ela olhou de relance para os ou­tros, os olhos arregalados. - É leve.

Gray reclinou-se. Ele não conteve a fanfarronada. Sentia que todos precisa­vam daquele descanso momentâneo. Quando estivessem a caminho, o dia se­ria uma incógnita. Eles chegariam a Milão, pegariam os ossos e em seguida tomariam um dos trens de alta velocidade que saíam de hora em hora para Roma, aonde chegariam antes do anoitecer.

Ele também havia aproveitado o tempo para estudar Vigor Verona. Apesar do ambiente festivo, o monsenhor parecia perdido de novo em pensamentos. Gray podia ver as engrenagens agitarem-se na cabeça do homem.

Vigor de repente concentrou-se nele e o encarou, afastando-se da mesa.

- Comandante Pierce, enquanto esperamos a comida, eu gostaria de con­versar com o senhor em particular. Talvez pudéssemos esticar as pernas no passeio público.

Gray pousou seu copo sobre a mesa e levantou-se. Os outros lançaram-lhes um olhar de curiosidade, mas Gray acenou com a cabeça para que permane­cessem ali.

Vigor atravessou o tei raço e seguiu até o passeio público principal, à mar­rem do lago.

Tem uma coisa que eu gostaria de discutir com o senhor e talvez obter sua opinião.

Pois não.

Eles desceram um quarteirão, e Vigor dirigiu-se a um parapeito de pedra que terminava num cais vazio. Ali tinham privacidade.

Vigor contemplou o lago, batendo com o punho no parapeito.

- Eu compreendo que o papel do Vaticano nesta história esteja centrado no roubo das relíquias. E, assim que regressarmos a Roma, suspeito que o senhor planeje romper nossos laços e perseguir a Corte do Dragão por conta própria.

Gray pensou em hesitar, mas o homem merecia uma resposta sincera. Ele não poderia correr o risco de expor ainda mais ao perigo aquele homem e sua sobrinha.

Eu acho que é melhor - disse. - E tenho certeza de que tanto os meus superiores quanto os seus vão concordar.

Mas eu não.

Havia um quê de veemência nas palavras dele.

Gray franziu o cenho.

- Se a sua suposição de que os ossos são a origem do estranho amálgama em pó estiver correta, então creio que os nossos papéis neste caso estão mais profundamente entrelaçados do que qualquer organização poderia suspeitar.

- Não vejo como.

Vigor tornou a olhá-lo com aquela intensidade concentrada que parecia ser uma característica da família Verona.

Então me deixe convencer o senhor. Em primeiro lugar, nós sabemos que a Corte do Dragão é uma sociedade aristocrática envolvida na busca de conhe­cimento secreto ou perdido. Eles se concentraram em antigos textos gnósticos e em outros arcanos.

Pura mistificação.

Vigor virou-se para ele, erguendo a cabeça.

- Comandante Pierce, eu creio que o senhor estudou outras religiões e filo­sofias. Do taoísmo a alguns dos cultos hindus.

Gray enrubesceu. Era fácil esquecer que o monsenhor era um experiente agente de campo do serviço de inteligência do Vaticano. Sem dúvida, haviam reunido um dossiê sobre ele.

A busca da verdade espiritual jamais está errada - prosseguiu o monsenhor. - Não importa o caminho. Na realidade, a definição de gnose é "buscar a ver­dade, encontrar Deus". Eu nem sequer posso censurar a Corte do Dragão por essa busca. O gnosticismo tem sido parte da Igreja Católica desde o começo. É até anterior a ela.

Muito bem - disse Gray, sem conseguir esconder certa irritação na voz. - O que é que isso tem a ver com o massacre em Colônia?

O monsenhor suspirou.

- De alguma forma, o ataque de hoje poderia remontar a um conflito entre dois apóstolos. Tomé e João.

Gray sacudiu a cabeça.

Sobre o quê o senhor está falando?

No início, o cristianismo era uma religião ilegal. Uma fé presunçosa como nenhuma outra em sua época. Ao contrário de outras religiões, que coletavam tributos como parte necessária de sua fé, a jovem família cristã contribuía voluntariamente com dinheiro. Os fundos destinavam-se a alimentar e dar abri­go a órfãos, comprar alimentos e remédios para os enfermos, pagar caixões para os pobres. Esse apoio aos oprimidos atraía grande número de pessoas, apesar dos riscos de se pertencer a uma religião ilegal.

Sim, eu sei. Boas obras cristãs e tudo mais. No entanto, o que...?

O monsenhor Verona ergueu a mão, interrompendo Gray.

Se o senhor permitir que eu continue, talvez aprenda algo.

Gray empertigou-se, mas continuou em silêncio. Além de ser um espião do Vaticano, Vigor também era professor universitário. Era óbvio que ele não gos­tava que suas preleções fossem interrompidas.

- Nos primórdios da Igreja, o segredo era de suma importância, exigindo reuniões clandestinas em cavernas e criptas. Isso fez com que diferentes grupos fossem separados uns dos outros. Primeiro, pela distância, com as principais seitas em Alexandria, Antioquia, Cartago e Roma. Depois, com esse isolamen­to, as práticas de cada grupo começaram a divergir, junto com diferentes filo­sofias. Evangelhos surgiam de repente em toda a parte. Na Bíblia foram reunidos os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas também havia outros. O Evangelho Secreto de Tiago, o de Maria Madalena, o de Filipe. O Evangelho da Verdade. O Apocalipse de Pedro. E muitos outros. Diferentes seitas começaram a desenvolver-se em torno de todos esses evangelhos. A jovem Igreja começou a fragmentar-se.

Gray assentiu com a cabeça. Ele freqüentara o ginásio jesuíta onde sua mãe lecionara e conhecia parte daquela história.

Mas no século II - prosseguiu Vigor - o bispo de Lyon, Santo Irineu, escreveu cinco volumes sob o título Adversus Haereses. Contra as Heresias. O título completo da obra era Refutação e Desmascaramento do Falsamente Cha­mado Conhecimento. Foi o momento em que todas as crenças gnósticas primi­tivas foram peneiradas da religião cristã, criando o cânone do Evangelho em quatro partes, limitando os Evangelhos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Todos os outros foram considerados heréticos. Parafraseando Irineu, assim como há quatro regiões no universo, e quatro ventos principais, a Igreja precisava ape­nas de quatro pilares.

Mas por que escolheram esses quatro evangelhos entre todos os demais?

Por que, na verdade? É aí que reside a minha preocupação.

Gray percebeu que estava prestando mais atenção. Apesar da irritação por estar recebendo uma preleção, ele estava curioso em saber aonde aquilo o esta­va conduzindo.

Vigor fixou o olhar no outro lado do lago.

Três dos Evangelhos - Mateus, Marcos e Lucas - contam a mesma histó­ria. Mas o Evangelho de João relata uma história muito diferente, até mesmo os eventos na vida de Cristo não correspondem à cronologia nos outros. Mas houve uma razão mais fundamental para a sua inclusão na Bíblia padrão.

Qual?

Seu colega, o apóstolo Tomé.

O apóstolo incrédulo?

Gray conhecia bem a história do único apóstolo que se recusou a acreditar que Cristo ressuscitara enquanto não pôde ver com seus próprios olhos.

Vigor fez um aceno afirmativo de cabeça.

- Mas o senhor sabia que apenas o Evangelho de João conta a história de Tomé? Apenas João descreve Tomé como um discípulo estúpido e sem fé. Os outros Evangelhos o reverenciam. O senhor sabe por que João faz esse relato depreciativo?

Gray negou com a cabeça. Em todos aqueles anos como católico romano, ele nunca havia notado esse desequilíbrio de pontos de vista.

João procurou desacreditar Tomé, ou, mais especificamente, os seguidores de Tomé, que eram numerosos naquela época. Mesmo hoje em dia pode-se en­contrar uma grande quantidade de cristãos seguidores de Tomé na índia. Mas na Igreja primitiva houve um cisma fundamental entre os evangelhos de Tomé e João. Eles eram tão diferentes que apenas um evangelho poderia sobreviver.

O que o senhor quer dizer? Em que medida eles poderiam ser diferentes?

Isso remonta aos primórdios da Bíblia, ao Gênesis, ao primeiro versículo: "Haja luz". Tanto João quanto Tomé identificavam Jesus com essa luz primor­dial, a luz da criação. Mas, a partir daí, as interpretações deles divergem amplamente. De acordo com Tomé, a luz não só deu origem ao universo, mas ainda existe dentro de todas as coisas, especialmente dentro do homem, que foi feito à imagem e semelhança de Deus. A luz está oculta dentro de cada pessoa, espe­rando apenas ser descoberta.

E João?

Bem, João teve uma concepção totalmente diferente dessas questões. Como Tomé, ele acreditava que Cristo corporificava a luz primordial, mas João decla­rou que apenas Cristo possuía essa luz. O resto do mundo permanecia para sempre em trevas, inclusive o homem. E o caminho de volta a essa luz, de volta à salvação e a Deus, só poderia ser encontrado mediante a adoração do Cristo divino.

Um ponto de vista muito mais estreito.

E mais pragmático para a jovem Igreja. João oferecia um método mais ortodoxo para a salvação, para se chegar à luz. Apenas por meio da adoração de Cristo. Essa simplicidade e franqueza agradou aos líderes da Igreja durante aquele período caótico. Tomé, ao contrário, afirmava que todos tinham uma capacidade inata de encontrar Deus ao procurarem dentro de si mesmos, sem necessidade de culto.

E isso tinha de ser esmagado.

A resposta foi um dar de ombros.

Mas qual deles está certo? Vigor deu um largo sorriso.

- Quem é que sabe? Eu não tenho todas as respostas. Como disse Jesus, "Procura e acharás".

Gray franziu o cenho. Aquela linha lhe parecia bastante gnóstica. Ele olhou para o lago, observando os veleiros serem impelidos pelo vento. A luz refletia-se intensamente nas águas. Procura e acharás. Será que era aquele o caminho que ale trilhara sozinho ao estudar tantas filosofias? Se era, ele não havia encontra­do respostas satisfatórias.

E por falar em respostas insatisfatórias...

Gray virou-se para Vigor, dando-se conta de como eles haviam-se desviado do assunto.

O que tudo isto tem a ver com o massacre em Colônia?

Deixe-me explicar-lhe. - Ele ergueu um dedo. - Primeiro, eu acho que esse ataque remonta ao conflito antiquíssimo entre a fé ortodoxa de João e a antiga tradição gnóstica de Tomé.

Com a Igreja Católica de um lado e a Corte do Dragão do outro?

Não, é exatamente este o ponto. Eu pensei nisto a noite inteira. Embora a Corte do Dragão busque o conhecimento através dos mistérios gnósticos, ela não busca necessariamente Deus, apenas poder. Eles querem uma nova ordem mundial, um retorno ao feudalismo, com eles mesmos no governo, seguros de que são geneticamente superiores para liderar a humanidade. Por isso eu não acho que a Corte do Dragão representa o lado gnóstico deste conflito antigo. Eu acho que eles o pervertem, que são carniceiros com fome de poder. Mas eles indiscutivelmente têm raízes que remontam a essa tradição.

Gray cedeu a contragosto, mas estava longe de mudar de opinião. Vigor deve ter percebido isso. Ele ergueu o segundo dedo.

- Ponto número dois. No Evangelho de Tomé, uma história conta que um dia Jesus chamou Tomé a um canto e lhe disse três coisas em segredo. Quando os outros apóstolos lhe perguntaram o que lhe fora dito, ele respondeu: "Se eu vos contar uma das coisas que seja, vós pegareis pedras e atirá-las-eis contra mim; e um fogo sairá das pedras e vos consumirá."

Vigor olhou fixamente para Gray, como se estivesse submetendo-o a um teste.

Gray refletiu a respeito.

- Um fogo que sai de pedras e queima. Como o que aconteceu com os paro­quianos na igreja.

Ele confirmou com a cabeça.

Tenho pensado nessa citação desde que soube dos assassinatos.

Essa relação é muito deficiente - disse Gray, sem se convencer.

- Talvez fosse, se eu não tivesse um terceiro comentário histórico a fazer. Vigor ergueu o terceiro dedo.

Gray sentiu-se como um boi a caminho do matadouro.

- De acordo com os textos históricos - explicou Vigor -, Tomé foi evangelizar no Oriente, indo até a Índia. Ele batizou milhares de pessoas, construiu igrejas, difundiu a fé e acabou morrendo lá. Mas naquela região ele era mais famoso por um ato, um ato de batismo.

Gray esperou.

Vigor concluiu com grande ênfase.

- Tomé batizou os Três Reis Magos.

Os olhos de Gray arregalaram-se. Sua mente turbilhonou com os encadea­mentos daquela história: São Tomé e sua tradição gnóstica, segredos sussurra­dos por Cristo, fogo mortal lançado de pedras, e tudo isso relacionado com os Reis Magos de novo. Será que a relação ia além? Ele lembrou-se das fotografias dos mortos na Alemanha. Os corpos destruídos. E o laudo dos legistas a respei­to da liqüefação das camadas externas dos cérebros das vítimas. Ele também se lembrou do cheiro de carne queimada na catedral.

De algum modo os ossos estavam ligados àquelas mortes.

Mas de que modo?

Se havia uma trilha histórica que levava a pistas, segui-la estava além do alcance de sua experiência e de seus conhecimentos. Ele reconheceu isso e en­carou o monsenhor.

Vigor falou, confiante em sua argumentação.

- Como eu disse no início, eu acho que há mais coisas envolvidas nas mor­tes na catedral além de tecnologia. Eu acho que o que quer que tenha aconteci­do está intimamente entrelaçado com a Igreja Católica, sua história primitiva, e talvez até com algo anterior à sua fundação. E eu tenho certeza de que posso ser um trunfo permanente para esta investigação.

Gray baixou a cabeça pensativo, e lentamente foi persuadido.

- Mas não a minha sobrinha - concluiu Vigor, revelando por fim por que chamara Gray para uma conversa particular. Ele estendeu a mão. - Assim que regressarmos a Roma, vou mandá-la de volta para os Carabinieri. Não vou expô-la ao perigo de novo.

Gray estendeu a mão e apertou a do monsenhor.

Finalmente alguma coisa com a qual ambos podiam concordar.

 

Rachel ouviu um passo atrás de si e esperou que fosse Mario voltando com 0 pedido deles. Olhou para cima e quase caiu da cadeira quando seu olhar se lixou na mulher idosa de pé ali, apoiada numa bengala, trajando calça azul-marinho e uma túnica estampada com narcisos. Os cabelos brancos dela eram cacheados e seus olhos brilhavam de divertimento.

Mario postou-se atrás da visitante, um sorriso largo no rosto.

- Que surpresa, hein?

Rachel levantou-se enquanto os dois parceiros de Gray observavam.

- Nonna? O que você está fazendo aqui?

A avó de Rachel deu-lhe um tapinha numa bochecha, falando em italiano.

A sua mãe louca! - Ela agitou os dedos no ar. - Ela vai visitar você em Roma e me deixa sozinha com aquele Signor Barbari para cuidar de mim. Como se eu precisasse de cuidado. Além do mais, ele sempre cheira a queijo.

Nonna...

Um aceno de mão a fez calar-se.

Por isso eu venho para a nossa villa. De trem. Então Mario me telefona para me informar que você e Viggie estão aqui. Eu digo a ele que é para não lhe contar.

É uma boa surpresa, não é? - repetiu Mario, inchado de orgulho. Ele de­via ter mordido a língua o tempo todo para não dizer nada.

 

Onde estão seus amigos? - perguntou sua nonna.

Rachel apresentou-a a eles.

Esta é a minha avó.

Ela apertou a mão de cada um deles e passou a falar em inglês.

- Me chamem de Camilla. Ela olhou Monk de alto a baixo. - Por que você raspou a cabeça? Uma pena. Mas você tem belos olhos. Você é italiano?

- Não, grego.

Ela fez um aceno solene de cabeça.

Não é tão mau assim.

Ela virou-se para Kat.

O Signor Monk é seu namorado? Kat franziu a testa em surpresa.

Não - disse ela um pouco ácida demais. - É claro que não.

Ei - interpôs Monk.

- Vocês formam um casal simpático - declarou Nonna Camilla, como se isso fosse a coisa mais óbvia. Em seguida, virou-se para Mario. - Um copo daquele maravilhoso Chiaretto, per favore, Mario.

Ele saiu rapidamente, ainda exultante.

Rachel acomodou-se na cadeira e avistou Gray e seu tio retornando do encontro particular. Quando eles avançaram em sua direção, ela notou que Gray não a olhou nos olhos. Ela sabia por que seu tio havia se afastado com o coman­dante Pierce. E, pelo jeito esquivo do homem, ela podia imaginar o resultado.

Ela de repente perdeu o interesse pelo seu vinho.

O tio Vigor notou a outra convidada à mesa deles. O choque dissipou sua expressão sombria.

A surpresa foi explicada outra vez, junto com novas apresentações.

Quando Gray Pierce foi apresentado, a avó de Rachel olhou de esguelha para ela, uma sobrancelha erguida, antes de fixar o olhar no americano. Era evidente que gostou do que viu: queixo escuro com a barba por fazer, olhos de um azul tempestuoso, cabelos pretos lisos. Rachel sabia que sua avó tinha uma forte veia casamenteira, um traço genético em todas as matronas italianas.

A avó de Rachel inclinou-se para ela.

Vejo bebês belíssimos - sussurrou ela, os olhos ainda pousados em Gray. - Bellissimi bambini.

Nonna - advertiu ela.

A avó dela deu de ombros e ergueu a voz.

Signor Pierce, o senhor é italiano?

Não, não sou.

- O senhor gostaria de ser? Minha neta...

Rachel interrompeu-a.

- Nonna, nós não temos muito tempo. - Ela fez menção de consultar o relógio. - Nós temos um compromisso em Milão.

A avó iluminou-se.

Trabalho de carabinieri. Investigando obras de arte roubadas? - Ela olhou para o tio Vigor. - Alguma coisa levada de uma igreja?

É mais ou menos isso, Nonna. Mas nós não podemos falar sobre uma investigação em andamento.

A avó de Rachel fez o sinal-da-cruz.

- Uma coisa horrível roubar de uma igreja. Eu li a respeito dos assassina­tos lá na Alemanha. Terríveis, simplesmente terríveis.

Ela correu os olhos ao redor da mesa, abrangendo os estrangeiros. Seus olhos estreitaram-se um pouco mais, pousando em Rachel.

Rachel notou a perspicaz compreensão no olhar da avó. Apesar da aparên­cia superficial, nada escapava à sua nonna. O roubo dos ossos dos Reis Magos estava em todos os jornais. E eles estavam viajando com um grupo de america­nos, quase na fronteira da Suíça, voltando para a Itália. Será que sua nonna adivinhara o verdadeiro objetivo deles?

- Terríveis - repetiu a avó de Rachel.

Um garçom chegou com duas pesadas sacolas de comida. Um pão se proje­tava de cada uma delas como um par de mastros em forma de baguete. Monk ergueu-se para receber a carga com um sorriso largo.

O tio Vigor falou, inclinando-se para a frente a fim de beijá-la em ambas as faces.

- Mamãe, nós a visitaremos em casa, em Gandolfo, daqui a alguns dias. Assim que esta história terminar.

Quando Gray passou por ela, Nonna Camilla pegou a mão dele e puxou-o para perto de si.

Tome conta da minha neta. Gray olhou para Rachel.

Vou tomar, mas ela cuida muito bem de si mesma.

Rachel sentiu uma súbita onda de calor quando os olhos dele encontraram os seus. Sentindo-se ridícula, ela desviou o olhar. Ela não era uma colegial. Longe disso.

A avó dela deu uma beijoca no rosto de Gray.

Nós, as Veronas, sempre cuidamos de nós mesmas. Lembre-se disto.

Gray sorriu.

Eu me lembrarei.

Ela deu-lhe um tapinha nas costas quando ele se afastou.

- Ragazzo buono.

Quando os outros se encaminharam para fora, a avó de Rachel acenou para que ela ficasse. Ela então estendeu a mão, virou a aba do colete aberto da neta e expôs o coldre vazio.

- Você perdeu alguma coisa, não é mesmo?

Rachel esquecera-se de que ainda estava usando o coldre vazio preso ao om­bro. Ela esquecera a Beretta emprestada na catedral. Mas sua nonna percebera.

- Uma mulher jamais deveria sair nua de casa. - Camilla estendeu o braço para baixo e pegou sua bolsa. Abriu-a e puxou o cabo preto fosco de sua esti­mada Luger nazista P-08. - Leve a minha.

- Nonna! Você não deveria andar com isso por aí.

A avó de Rachel descartou a preocupação dela com um aceno.

- Os trens não são muito seguros para uma mulher sozinha. Há muitos ciganos. Mas eu acho que você talvez precise disto mais do que eu.

O olhar da avó pousou intensamente em Rachel, deixando claro que ela entendia o perigo da missão dela.

Rachel estendeu o braço e fechou a bolsa da avó com um estalido.

- Não, obrigada, Nonna. Mas eu estarei bem sem ela.

A avó deu de ombros.

- Uma coisa terrível lá na Alemanha - disse ela, girando os olhos de forma significativa. - É melhor tomar cuidado.

- Eu tomarei, Nonna.

Rachel começou a afastar-se, mas Camilla segurou-lhe o pulso.

Ele gosta de você - disse a avó. - O Signor Pierce.

Nonna.

Vocês fariam bellissimi bambini.

Rachel suspirou. Mesmo com a ameaça de perigo, sua avó sabia como man­ter o foco. Bebês. Os verdadeiros tesouros das nonni em toda a parte.

Ela foi salva pela chegada de Mario com a conta. Afastou-se para o lado e pagou em dinheiro, deixando o suficiente para cobrir as despesas do almoço de sua nonna. Em seguida, reuniu suas coisas, beijou a avó e saiu para a praça, a fim de juntar-se aos outros.

Mas ela trazia consigo a fibra da avó. As Veronas decerto sabiam cuidar de si mesmas. Ela encontrou o tio e os outros junto do carro e olhou fixamente para Gray com seu olhar mais venenoso.

- Se você está pensando que vai me deixar de fora desta investigação, pode ir andando até Roma.

Com as chaves na mão, ela contornou o Mercedes, satisfeita com a expres­são de surpresa no rosto do homem quando ele olhou para o tio Vigor.

Ela havia sido alvo de uma emboscada, de tiros e de bombas incendiárias. E não estava disposta a ser posta para escanteio.

Rachel abriu sua porta, mas deixou as outras trancadas.

E isso também vale para você, tio Vigor.

Rachel... - ele tentou argumentar.

Ela escorregou para o assento do motorista, bateu a porta e ligou a ignição.

- Rachel!

Seu tio bateu à janela. Ela engatou a marcha.

Va bene! - gritou-lhe o tio acima do possantíssimo motor, concordando. - Nós vamos ficar juntos.

Prometa - gritou ela em resposta, mantendo a palma da mão na maçaneta da alavanca de marcha.

Dio mio... - Ele ergueu os olhos para o céu. - E você se pergunta por que eu me tornei padre...

Ela acelerou o carro.

O tio Vigor apoiou uma palma na janela.

- Eu me submeto. Eu juro. Eu jamais deveria ter tentado ir contra uma Verona.

Rachel virou-se e deteve os olhos em Gray. Ele permanecera calado, o rosto duro. Parecia disposto a fazer uma ligação clandestina num carro e se mandar sozinho. Será que ela havia exagerado? Porém, ela sentia que precisava opor uma forte resistência agora.

Lentamente, os olhos azuis de Gray deslocaram-se com uma frieza glacial para o tio dela e em seguida de volta para Rachel. Quando um encarou o outro, naquele momento, ela sentiu quão profundamente queria continuar, até a me­dula óssea. Talvez ele entendesse. Gray assentiu muito devagar com a cabeça, um movimento quase imperceptível.

A concessão era suficiente.

Ela destrancou as portas e os outros entraram.

Monk foi o último.

- Seria ótimo fazer uma caminhada.

 

Do banco traseiro, Gray observava Rachel.

Ela havia posto os óculos de lentes azuis, o que tornava sua expressão quase indecifrável. Contudo, ela apertava os lábios com força. Os músculos de seu longo pescoço permaneciam tensos como cordas de arco enquanto ela olhava ao redor, atenta ao tráfego. Apesar de eles terem abrandado, ela ainda estava zangada.

Como Rachel soubera o que fora decidido entre seu tio e ele? A capacidade intuitiva dela era impressionante, junto com sua maneira pragmática de encarar o conflito. Mas ele também se lembrou da vulnerabilidade dela na torre, os olhos dela encontrando os seus do outro lado do espaço entre as duas flechas. No en­tanto, mesmo então, em meio às balas e às chamas, ela não entregou os pontos.

Por um instante, ele teve um vislumbre de Rachel no espelho retrovisor, os olhos dela protegidos pelos óculos. Todavia, ele sabia que ela o estava estudando. Cônscio demais do escrutínio, desviou o olhar.

Ele deu um soco no joelho devido à sua reação.

Gray jamais conhecera uma mulher que o deixasse tão confuso. Ele tivera namoradas antes, mas nada que durasse mais de seis meses, e mesmo esse rela­cionamento fora no ginásio. Ele fora impetuoso demais na juventude, depois dedicado demais à sua carreira nas Forças Armadas, primeiro no Exército, em seguida nos Rangers. Jamais chamava um lugar de lar por mais de seis meses, por isso seus romances quase nunca passavam de uma licença de fim de sema­na. Porém, em todos os seus namoricos, ele jamais conhecera uma mulher que fosse tão frustrante quanto era intrigante: uma mulher que risse com facilidade durante um almoço, mas que pudesse tornar-se tão dura como um brilhante.

Ele recostou-se à medida que o campo passava como um relâmpago. Eles haviam deixado para trás a região dos lagos do Norte da Itália e desciam os contrafortes dos Alpes. Era uma viagem curta: Milão ficava a apenas 45 minu­tos de carro.

Gray conhecia-se o bastante para entender parte de sua atração por Rachel. Ele nunca foi fascinado pelo comum, pelo mundano, pelo indeciso. Mas tam­bém não gostava de extremos: o arrogante, o estridente, o discordante. Ele pre­feria a harmonia, uma fusão de extremos em que o equilíbrio era alcançado, mas a singularidade não era perdida.

Basicamente, a concepção taoísta do cosmos ao yin e yang.

Até mesmo sua carreira refletia isso: o cientista e o soldado. Seu campo de disciplinas procurava incorporar a biologia e a física. Uma vez ele descrevera essa escolha a Painter Crowe: "Toda a química, a biologia e a matemática se reduzem ao positivo e ao negativo, ao zero e ao um, à luz e às trevas."

Ele percebeu sua atenção voltar a se concentrar em Rachel. Ali estava essa mesma filosofia em forma de carne.

Ele observou Rachel erguer uma das mãos e massagear a dobra do pescoço. Os lábios dela estavam ligeiramente entreabertos quando ela encontrou o atraente ponto e o esfregou. Ele se perguntou que gosto teriam aqueles lábios.

Antes que ele deixasse seu pensamento vaguear ainda mais, ela deu uma guinada brusca no Mercedes numa curva fechada, jogando Gray contra a por­ta. Ela baixou a mão, reduziu a marcha, pisou fundo no acelerador e fez a curva, ainda mais rápido.

Gray segurou-se. Monk gemeu.

Rachel exibiu apenas o vislumbre de um sorriso.

Quem não ficaria fascinado por aquela mulher?

 

Oito horas e nenhuma notícia.

Painter andava de um lado para outro em seu escritório. Ele estava ali desde as dez horas da noite anterior - assim que recebeu a notícia da explosão na Cate­dral de Colônia. Desde então, as informações vinham filtrando-se devagar.

Devagar demais.

A origem da incineração: bombas cheias de pólvora negra, fósforo branco e óleo incendiário LA-60. Havia levado três horas para que o fogo fosse contido o suficiente para tentarem entrar. Mas o interior era uma carcaça fumacenta e tóxica, queimada totalmente das paredes aos assoalhos de pedra. Foram desco­bertos restos de esqueletos carbonizados.

Seriam de sua equipe?

Passaram-se mais duas horas até chegar a informação de que os restos escoriáceos de armas haviam sido encontrados com dois dos corpos. Rifles de assalto não identificados. Nenhuma dessas armas havia sido fornecida à sua equipe. Então, pelo menos alguns dos corpos eram de agressores desconhecidos. Mas, e os outros?

O reconhecimento pelo radar da NRO revelara-se inútil. Àquela hora não havia olhos no céu fazendo um levantamento da área. No solo, escritórios co­merciais e repartições públicas municipais nas vizinhanças ainda estavam sen­do investigados. Eram poucas as testemunhas oculares. Um sem-teto que dormia perto da Colina da Catedral disse ter visto algumas pessoas fugindo da catedral em chamas. Mas o nível de álcool em sua corrente sangüínea era de mais de 150mg/dl. Bêbado feito uma porca.

Tudo mais era silêncio. O esconderijo em Colônia não fora estourado. E até então nenhuma notícia do campo.

Nada.

Painter não podia deixar de temer o pior.

Uma batida à porta entreaberta interrompeu-o.

Ele virou-se e acenou para que Logan Gregory entrasse. O vice-diretor ti­nha pilhas de papel embaixo do braço e profundas olheiras. Logan recusara-se a ir para casa, ficando ao lado dele a noite inteira.

Painter olhou para ele na expectativa de uma boa notícia.

Logan sacudiu a cabeça.

- Ainda não se descobriu nenhum de seus codinomes.

Eles vinham checando aeroportos, estações de trem e linhas de ônibus de hora em hora.

- Travessias de fronteiras?

- Nada. Mas a União Européia é como um coador aberto. Eles poderiam ter deixado a Alemanha por qualquer um de vários caminhos.

E o Vaticano ainda não soube de nada?

Ele tornou a sacudir a cabeça.

Eu falei com o cardeal Spera há dez minutos.

O computador de Painter emitiu um som agudo. Ele contornou a mesa, apertou a tecla para iniciar a videoconferência e voltou-se para a tela de plasma pendurada na parede esquerda. Surgiu uma imagem pixelada de seu chefe, o diretor da DARPA.

O Dr. Sean McKnight estava em seu escritório em Arlington. Ele havia tira­do o costumeiro paletó e dobrado as mangas da camisa. Não usava gravata. Passou uma das mãos pelos cabelos ruivos meio grisalhos, um gesto familiar de cansaço.

- Eu recebi a sua solicitação - começou o chefe.

Painter empertigou-se de onde estivera apoiado em sua mesa. Logan havia se afastado para a porta, ficando fora do alcance da camera. Fez menção de sair, para que Painter tivesse privacidade, mas este acenou para que ele ficasse. A solicitação dele não era uma questão de segurança.

Sean sacudiu a cabeça.

- Eu não posso concedê-la.

Painter franziu o cenho. Ele havia solicitado um passaporte de emergência para ir ao local. Para estar presente na Alemanha durante a investigação. Pode­ria haver pistas que outros não haviam percebido. Seus dedos fecharam-se num punho em frustração.

- Logan pode supervisionar as coisas aqui - argumentou Painter. - Eu pos­so ficar em comunicação constante com o comando.

O ar de Sean endureceu-se.

Painter, você é o comando agora.

Mas...

Você não é mais um agente de campo.

O pesar deve ter sido evidente em sua expressão.

Sean suspirou.

- Você sabe quantas vezes eu fiquei sentado no meu escritório à espera de notícias suas? E a sua última operação em Omã? Eu pensei que você estivesse morto.

Painter baixou o olhar para sua mesa. Elásticos e papéis estavam empilhados em toda a parte. Eles não ofereciam nenhum alívio. Ele jamais suspeitara como esse trabalho fora angustiante para seu chefe. Painter sacudiu a cabeça.

- Só existe uma forma de lidar com problemas como este - disse o chefe. - E, acredite-me, eles acontecerão com regularidade.

Painter olhou para a tela. Uma dor havia se instalado no seu esterno, latejante e quente.

- Você tem de confiar nos seus agentes. Você os coloca em campo, mas, assim que eles entram em ação, você tem que ter confiança. Você escolheu com cuidado o líder da equipe para esta operação e o pessoal de apoio dele. Você acha que eles são capazes de lidar com uma situação hostil?

Painter pensou em Grayson Pierce, Monk Kokkalis e Kat Bryant. Eles eram alguns dos melhores e dos mais brilhantes na força. Se alguém podia sobreviver... Painter lentamente fez um aceno de cabeça positivo. Ele confiava neles.

Então deixe-os jogar o jogo deles. Como eu fiz com você. Um cavalo corre melhor apenas com um levíssimo toque das rédeas. - Sean inclinou-se para a frente. - Tudo o que você pode fazer agora é esperar que eles entrem em conta­to. Essa é a sua responsabilidade para com eles. Estar pronto para responder. E não se mandar para a Alemanha.

Eu compreendo - disse ele, mas isso não ofereceu muito alívio. A dor continuava dentro de seu peito.

Você recebeu o pacote que eu lhe enviei na semana passada?

Painter olhou para cima com um meio-sorriso desenhando-se no rosto. Ele havia recebido de seu diretor um pacote com medicamentos. Um caixote com pastilhas antiácidas Tums. Ele havia pensado que o presente fosse uma goza­ção, mas agora não tinha tanta certeza.

Sean reclinou-se em sua poltrona.

- Esse é todo o alívio que você terá neste negócio.

Painter reconheceu a verdade nas palavras de seu mentor. Ali estava o ver­dadeiro ônus da liderança.

Era mais fácil no campo - ele finalmente murmurou.

Nem sempre - lembrou-o Sean. - Nem sempre, sem sombra de dúvida.

 

Trancada a sete chaves - afirmou Monk. - Como o monsenhor disse.

Gray não pôde argumentar. Tudo parecia em ordem. Ele estava ansioso para entrar, pegar os ossos e sair dali.

Eles estavam numa calçada sombreada que limitava com a fachada da Basílica de Santo Eustórgio, perto de uma das portas laterais. A frente era de despretensiosos tijolos vermelhos decorados; atrás dela erguia-se a torre do relógio, a única, encimada por uma cruz. A pracinha batida pelo sol estava vazia àquela hora.

Poucos minutos antes, passara um carro de patrulha municipal, o qual dera uma volta em torno da praça, indo devagar, vigiando. Tudo parecia calmo.

Seguindo a recomendação de Kat, eles haviam esquadrinhado toda a peri­feria da igreja de uma distância cautelosa. Gray também usara um conjunto de lentes telescópicas para perscrutar discretamente através de várias janelas. As cinco capelas laterais e a nave central pareciam desertas.

A luz do sol refletia-se da calçada. O dia esquentara.

Mas Gray ainda sentia frio, sentia-se inseguro.

Ele seria menos cauteloso se estivesse sozinho?

- Vamos cuidar disto - disse ele.

Vigor encaminhou-se para a porta lateral e estendeu a mão para a grande aldrava de ferro, um aro com uma cruz simples. Gray deteve a mão dele.

- Não. Nós chegamos sem estardalhaço. Vamos continuar assim. - Ele virou-se para Kat e apontou para a fechadura. - Você consegue abri-la?

Kat abaixou-se, apoiando-se num joelho. Monk e Gray protegeram o traba­lho dela com seus corpos. Enquanto Kat examinava a fechadura, seus dedos tiravam da mochila um kit para arrombamento. Com a habilidade meticulosa de um cirurgião, ela começou a trabalhar.

- Comandante - disse Vigor -, violar uma igreja...

- Se o senhor já foi convidado a entrar pelo Vaticano, não é nenhuma violação. O estalido de um trinco encerrou a questão. A porta abriu alguns centímetros. Kat ficou em pé e pendurou a mochila no ombro.

Gray acenou para que os outros se afastassem.

- Monk e eu vamos entrar sozinhos. Explorem o terreno. - Ele estendeu a mão para o colarinho e pôs um fone de ouvido no lugar. - Vamos manter o rádio ligado enquanto nos arriscamos. Kat, fique aqui com Rachel e Vigor.

Ele prendeu à garganta um microfone para subvocalização.

Vigor avançou.

- Como eu disse antes, é mais provável que padres falem com alguém usan­do um colarinho clerical. Eu vou com vocês.

Gray hesitou - mas o monsenhor tinha razão.

- Fiquem atrás de nós o tempo todo.

Kat não protestou por ter sido deixada esperando à porta, mas os olhos de Rachel faiscaram.

- Nós precisamos de alguém para cobrir a nossa retaguarda se a situação se complicar - explicou ele, falando diretamente com Rachel.

Ela contraiu os lábios, mas concordou com um aceno de cabeça.

Satisfeito, ele virou-se e abriu a porta o suficiente para esgueirar-se por ela. O saguão escuro estava tranqüilo. As portas da nave estavam fechadas. Ele não viu nada de errado. A calma do santuário era pesada, como se estivessem em­baixo d'água.

Monk fechou a porta externa e sacudiu sua longa jaqueta para o lado a fim de pousar a mão na espingarda. Vigor acatou as instruções dele e o seguiu de perto.

Gray encaminhou-se à porta central da nave interna. Abriu-a com a palma da mão enquanto segurava a Glock na outra.

A nave era mais luminosa do que o saguão, repleta de luz natural que pene­trava através das janelas da basílica. O piso de mármore polido refletia a luminosidade, parecendo quase molhado. A basílica era muito menor do que a Catedral de Colônia. Em vez de ter a forma de cruz, era apenas um único salão comprido, uma nave reta que terminava no altar.

Gray ficou imóvel e espreitou à procura de movimento. Apesar da luz abun­dante, havia muitos lugares onde as pessoas poderiam esconder-se. Uma fileira de colunas sustentava o teto abobadado. Cinco capelinhas projetavam-se da parede direita, abrigando os túmulos de mártires e santos.

Nada se moveu. O único barulho era o distante ruído do trânsito, que soava como se viesse de outro mundo.

Gray entrou e avançou para o centro da nave, a pistola em punho.

Monk avançou a passos largos e tomou posição para manter toda a nave sob a mira de sua arma. Eles atravessaram o saguão em silêncio. Não havia nenhum sinal do pessoal da igreja.

Talvez eles tenham saído mais tarde para almoçar - subvocalizou Monk em seu rádio.

Kat, você está me ouvindo? - perguntou Gray.

- Com toda a clareza, comandante.

Eles chegaram ao fim da nave.

Vigor apontou para a direita, para a capela mais próxima do altar. Comprimido no canto da capela, um sarcófago imenso jazia meio em som­bra. Como o relicário de Colônia, o Santuário dos Reis Magos ali tinha a forma de igreja, porém, em vez de ouro e jóias, o sarcófago fora esculpido num único bloco de mármore de Proconnesio.

Gray caminhou na direção dele.

O relicário tinha 3,6 metros de altura, da base até a tampa oblíqua, 2,10 metros de largura e 3,6 metros de comprimento. O único acesso ao interior era através de uma pequena janela gradeada na parte inferior da face frontal.

- Finestra confessionis - sussurrou Vigor, apontando para a janela. - Assim uma pessoa pode observar as relíquias estando ajoelhada.

Gray aproximou-se. Monk montou guarda. Ele ainda não gostava daquela situação. Abaixou-se e olhou através da janelinha. Por trás do vidro, abria-se uma pequena câmara revestida de seda.

Os ossos tinham sido removidos, exatamente como o monsenhor havia descrito. O Vaticano não estava correndo riscos. E ele tampouco correria.

- A reitoria fica em frente ao lado esquerdo da igreja - disse Vigor, um pouco alto demais. - É lá que estão os escritórios e os apartamentos. O acesso é pela sacristia. - Ele apontou para o outro lado da igreja.

Como se respondendo ao seu sinal, uma porta abriu-se no outro lado da nave. Gray abaixou-se, apoiando-se num joelho. Monk puxou o monsenhor para trás de uma coluna, erguendo a espingarda.

Uma única figura saiu, para alívio dos intrusos.

Era um rapaz de roupas pretas com um colarinho clerical.

Um padre.

Ele estava sozinho. Cruzou a nave e começou a acender uma série de velas no outro lado do altar.

Gray esperou até que o homem estivesse a apenas dois metros de distância. Todavia, não apareceu mais ninguém. Ele levantou-se devagar e surgiu diante dele.

O padre congelou quando avistou Gray, o braço semi-erguido para acen­der outra vela. Ele assumiu uma expressão de choque quando viu a pistola na mão de Gray.

- Chi sei?

Todavia, Gray hesitou.

Vigor saiu do esconderijo.

- Padre...

O padre deu um pulo, e seus olhos voltaram-se para o monsenhor. Ele ime­diatamente notou o colarinho igual ao seu; a confusão suplantou o medo.

- Eu sou o monsenhor Verona - apresentou-se Vigor, avançando. - Não tenha medo.

- Monsenhor Verona?

A preocupação marcou profundamente as feições do homem. Ele recuou.

O que há de errado? - perguntou Gray em italiano.

O padre sacudiu a cabeça.

O senhor não pode ser o monsenhor Verona.

Vigor deu um passo à frente e mostrou-lhe sua carteira de identidade do Vaticano.

O homem olhou para ela e depois para Vigor.

- Mas um... um homem veio aqui hoje de manhã, pouco depois do amanhe­cer. Um homem alto. Altíssimo. Identificou-se como monsenhor Verona e apre­sentou documentos com selos característicos do Vaticano. Veio buscar os ossos.

Gray trocou um olhar com o monsenhor. Já lhes tinham passado a perna. Em vez de usar a força bruta, a Corte do Dragão tinha entrado mais de mansi­nho dessa vez, com mais astúcia. Por necessidade. Por causa da segurança re­forçada. Como se supunha que o verdadeiro monsenhor Verona estivesse mor­to, a Corte havia assumido o papel dele. Como tudo mais, eles deviam saber a usado a inteligência para fazer os últimos ossos passarem despercebidos pela segurança intensificada ali.

Gray balançou a cabeça. Eles continuavam um passo atrás.

- Maldição! - exclamou Monk.

O padre franziu o cenho para ele. Sem dúvida, ele entendia inglês o sufi­ciente para encontrar afronta na linguagem do homem numa casa de Deus.

- Scusi - respondeu Monk.

Gray compreendeu a frustração de Monk, em dobro como líder da missão. Ele reprimiu sua própria imprecação. Eles tinham-se movido devagar demais, jogado com cautela demais.

Seu rádio zumbiu.

Era Kat. Ela devia ter ouvido por acaso boa parte da conversação.

- Tudo tranqüilo, comandante?

- Tranqüilo... e tarde demais - respondeu ele mal-humorado. Kat e Rachel juntaram-se a eles. Vigor apresentou os outros.

- Quer dizer então que os ossos se foram - disse Rachel.

O padre fez um aceno de cabeça afirmativo.

Monsenhor Verona, se o senhor quiser ver a papelada, ela está num cofre na sacristia. Talvez isso possa ajudar.

Nós poderíamos checá-la em busca de impressões digitais - disse Rachel cansadamente, a exaustão afinal afetando-a. - Talvez eles tenham sido des­cuidados. Não esperavam que estivéssemos no encalço deles. Isso poderia instigar quem quer que nos tenha traído no Vaticano. Poderia ser nosso único novo indício.

Gray concordou com um aceno de cabeça.

- Guarde-a. Vejamos o que podemos encontrar aqui.

Rachel e o monsenhor Verona foram para o outro lado da nave.

Gray virou-se e dirigiu-se a passos largos para o sarcófago.

- Alguma idéia? - perguntou Monk.

- Nós ainda temos o pó cinzento que coletamos do relicário de ouro - disse ele. - Nós vamos nos reagrupar no Vaticano, alertar a todos do que aconteceu e testar o pó de maneira mais minuciosa.

Quando a porta da sacristia se fechou, Gray ajoelhou-se outra vez junto à janelinha, perguntando-se se rezar ajudaria.

- Nós deveríamos aspirar o interior - disse ele, lutando para manter-se objetivo. - Ver se conseguimos confirmar a presença do amálgama em pó aqui também.

Ele inclinou-se mais para perto, aprumou-se, sem saber o que procurava. Mas encontrou-o de qualquer modo. Uma marca no teto revestido de seda da câmara do relicário. Um selo vermelho pressionado contra a seda branca. Um minúsculo dragão enroscado. A tinta parecia fresca... fresca demais.

Mas não era tinta...

Era sangue.

Uma advertência deixada pela Dama do Dragão. Gray empertigou-se, subitamente sabendo a verdade.

 

Já no interior da sacristia, o padre fechou a porta de acesso a ela. Era a câmara onde os clérigos e os coroinhas se paramentavam antes da missa.

Rachel ouviu a fechadura dar um estalido atrás dela.

Ela deu meia-volta e deparou com uma pistola apontada para seu peito. Empunhada pelo padre. Os olhos dele tinham ficado tão frios e duros quanto mármore polido.

- Não se mexam - disse ele com firmeza.

Rachel recuou. Vigor levantou as mãos devagar.

Em cada lado havia armários onde estavam pendurados os trajes e os para­mentos usados diariamente pelos padres na celebração da missa. Numa mesa via-se uma fileira de cálices de prata, dispostos ao acaso para o mesmo fim. Um grande crucifixo de prata dourada, preso a uma vara de ferro batido e usado à frente das procissões, estava encostado a um canto.

A porta no outro lado da sacristia abriu-se.

Um homem enorme e familiar entrou, ocupando toda a entrada. Era o ho­mem que a havia atacado em Colônia. Ele trazia uma faca comprida numa das mãos, a lâmina molhada e ensangüentada. Entrou na câmara e usou uma esto­la abençoada pendurada num armário para limpá-la.

Rachel sentiu Vigor estremecer junto dela.

O sangue. Os padres ausentes. Oh! Meu Deus...

O homenzarrão já não usava os trajes de monge, e sim roupas informais, calça de brim cinza-escura, camiseta preta e paletó escuro. Embaixo do paletó, ele carregava uma pistola num coldre preso ao ombro e trazia um fone para comunicação por rádio sobre um ouvido, o microfone preso à garganta.

- Quer dizer então que vocês dois sobreviveram ao ataque em Colônia - disse ele, os olhos percorrendo o corpo de Rachel de alto a baixo, como se avaliando uma novilha premiada numa feira de pecuária. - Que coisa mais auspiciosa. Agora nós podemos nos conhecer melhor.

Ele virou o microfone para cima e disse:

- Limpem a igreja.

Atrás dela, Rachel ouviu as portas se abrirem na nave. Gray e os outros seriam pegos desprevenidos. Ela esperou por uma descarga de armas de fogo ou pela explosão de uma granada. Mas tudo o que ouviu foi o ruído de botas no mármore. A igreja permanecia em silêncio.

O captor deles devia ter percebido a mesma coisa.

- Relate - ordenou ele pelo microfone.

Rachel não ouviu a resposta, mas, pelo obscurecimento do rosto dele, sou­be que a notícia não era boa.

Ele avançou, passando entre Vigor e Rachel.

- Vigie-os - rosnou ele para o falso padre. Um segundo pistoleiro havia se posicionado na saída de trás da sacristia.

O captor deles abriu a porta de acesso à nave. Uma figura armada aproxi­mou-se dele a passos largos, acompanhada pela mulher eurasiana, que segura­va a pistola Sig Sauer ao lado do corpo.

- Não tem ninguém aqui - informou o homem.

Rachel avistou outros pistoleiros esquadrinhando a nave principal e as ca­pelas laterais.

Todas as saídas foram vigiadas.

Sim, senhor.

O tempo todo.

Sim, senhor.

Os olhos do gigante pousaram na asiática.

Ela deu de ombros.

- Eles devem ter encontrado uma janela aberta.

Com um resmungo, ele esquadrinhou a basílica pela última vez e em segui­da virou-se com um movimento majestoso do paletó.

- Continuem procurando. Enviem três homens para investigar o lado de fora. Eles não podem ter ido longe.

Quando o gigante virou-se, Rachel entrou em ação.

Estendendo o braço atrás de si, ela agarrou a vara cerimonial com o crucifixo de prata e bateu com a sua base quadrangular bem no plexo solar do homem. Ele deu um grunhido e recuou de encontro ao padre. Ela tornou a empurrar a vara, passando-a sob o cotovelo, e bateu a extremidade da cruz contra o rosto do pistoleiro atrás dela.

A pistola dele disparou, mas o tiro saiu a esmo, enquanto ele recuava porta afora.

Rachel seguiu-o, saindo pela porta de trás num estreito corredor, o tio bem atrás dela. Ela bateu a porta e a escorou com a vara de ferro, calcando-a com força contra a outra parede do corredor.

Ao lado dela, o tio Vigor esmagou com o calcanhar a mão do pistoleiro caído. Ossos estalaram. Em seguida, ele chutou o rosto do homem. A cabeça dele quicou contra o piso de pedra com um ruído surdo, e em seguida ele per­deu os sentidos.

Rachel agachou-se e pegou a pistola dele.

Agachada, ela esquadrinhou ambos os caminhos do corredor sem janelas. Não havia mais nenhum homem por perto. As forças extras deviam ter sido mobilizadas para emboscar Gray e sua equipe. Um forte golpe fez a porta cho­calhar no marco. O Touro estava tentando transpô-la.

Ela jogou-se no chão e esquadrinhou por baixo do batente. Observou o jogo de luz e sombra, apontou em direção à escuridão e disparou.

A bala produziu faíscas no piso de mármore, mas ela ouviu um satisfatório berro de surpresa. Um pé um pouco chamuscado retardaria o Touro.

Ela ergueu-se. O tio Vigor havia dado alguns passos pelo corredor.

Estou ouvindo alguém gemer - sussurrou ele. - Ali atrás.

Nós não temos tempo.

Ignorando-a, o tio Vigor continuou a descer o corredor, seguido por Rachel. Sem um sistema de coordenadas, um caminho não era pior do que o outro. Eles chegaram a uma porta arrombada. Rachel ouviu um gemido vindo do interior.

Ela empurrou a porta com o ombro e entrou, a arma em punho.

A sala fora outrora um pequeno refeitório. Mas agora era um abatedouro. Um padre jazia de bruços no chão, numa poça de sangue, a parte posterior de sua cabeça uma massa de cérebro, ossos e cabelos. Outra figura de batina preta jazia estatelada numa das mesas, com os braços e as pernas abertos, amarrada às pernas do banco. Um padre mais velho. Sua batina tinha sido baixada até a cintura. Seu peito era uma poça de sangue. Suas orelhas tinham sido decepa­das. Sentia-se também o cheiro de carne queimada.

Torturados.

Até a morte.

Ouviu-se um lamento soluçante à esquerda. No chão, mãos e pés atados, amordaçado, estava um rapaz de cuecas samba-canção. Ele tinha um olho roxo e o sangue escorria de ambas as narinas. Pelo seu corpo seminu, era óbvio de onde viera a batina do falso padre.

Vigor contornou a mesa. Quando o avistou, o rapaz se debateu, seus olhos ficaram selvagens e ele espumou através da mordaça.

Rachel se deteve.

- Está tudo bem - acalmou-o Vigor.

Os olhos do rapaz fixaram-se no colarinho de Vigor. Ele parou de se deba­ter, mas ainda soluçava muito. Vigor estendeu a mão para soltar a mordaça. O rapaz sacudiu-se e a expeliu. Lágrimas escorreram-lhe pelas faces.

- Molti... grazie - disse ele, a voz fraca devido ao choque.

Vigor cortou os cordões de plástico com uma faca.

Enquanto ele trabalhava, Rachel trancou a porta do refeitório e ainda colo­cou uma cadeira sob a maçaneta. Não havia janelas, apenas uma porta que conduzia à reitoria. Ela manteve a arma apontada naquela direção e foi até um telefone na parede. Sem sinal de discagem. Haviam cortado os fios dos telefones.

Ela pegou o telefone celular de Gray e discou 112, o número de emergência em toda a União Européia. Assim que atenderam, identificou-se como tenente dos Carabinieri, mas não informou seu nome, e solicitou a ação imediata de médicos, policiais e militares.

Tendo dado o alarme, ela guardou o telefone.

Derrotada, era tudo o que ela podia fazer.

Por si mesma... e pelos outros.

 

O som de passos aproximou-se do esconderijo de Gray. Ele permaneceu em silêncio absoluto, sem respirar. Os passos pararam ali perto. Ele esforçou-se para ouvir.

Um homem falou. Uma voz familiar, zangada. Era o líder dos monges.

- As autoridades de Milão foram alertadas.

Não houve resposta, mas Gray tinha certeza de que dois homens haviam se aproximado.

- Seichan? - perguntou o homem. - Você me ouviu?

Uma voz entediada respondeu. Também era reconhecível. A Dama do Dra­gão. Mas agora tinha um nome. Seichan.

Eles devem ter saído por uma janela, Raoul - disse ela, retribuindo o favor e chamando o líder pelo nome. - A Sigma é escorregadia. Eu o adverti tanto. Nós conseguimos os ossos restantes. Deveríamos ir antes de a Sigma voltar com reforços. A polícia já pode estar a caminho.

Mas aquela piranha...

Você pode fazer um acerto de contas com ela mais tarde.

O som dos passos afastou-se. Parecia que o mais pesado dos dois estava mancando. Todavia, as palavras da Dama do Dragão permaneceram com Gray.

Você pode fazer um acerto de contas com ela mais tarde.

Será que isso significava que Rachel havia escapado?

Gray ficou surpreso com a intensidade de seu alívio.

Uma porta bateu no outro lado da igreja. Quando o eco do som se desvane­ceu, Gray apurou os ouvidos. Ele não ouviu mais passos, nenhum som de bo­tas, nenhuma voz.

Por precaução, esperou mais um minuto.

Com a igreja em silêncio, cutucou Monk, que se encolhera junto dele. Kat estava comprimida no outro lado de Monk. Eles rolaram com um ruído repug­nante de ossos dessecados esmigalhando-se, estenderam a mão para cima e juntos moveram a tampa de pedra do sepulcro.

A luz derramou-se dentro do túmulo, seu bunker improvisado.

Depois de ver a advertência feita com sangue pela Dama do Dragão, Gray soube que tinham caído numa armadilha. Todas as saídas estariam vigiadas. E, como Rachel e seu tio haviam desaparecido na sacristia, ele nada podia fazer para ajudar.

Por isso Gray havia conduzido os outros para a capela próxima, onde um enorme sepulcro de mármore estava apoiado sobre colunas góticas espiraladas. Eles haviam afastado a tampa o suficiente para entrarem, em seguida puxaram-na de volta acima deles no momento exato em que portas se abriram com um estrondo por toda a igreja.

Com a busca encerrada, Monk saiu, a espingarda na mão, e sacudiu o corpo com um resmungo de nojo. O pó de ossos voou de suas roupas.

- Não vamos fazer isso de novo.

Gray mantinha a pistola empunhada.

Ele viu um objeto no piso de mármore, a alguns passos de distância de onde eles tinham estado escondidos. Uma moeda de cobre. Fácil de perder. Ele apa­nhou-a. Era um jen chinês, ou penny.

- O que é isso? - perguntou Monk.

Ele fechou os dedos sobre a moeda e levantou-se, guardando-a no bolso.

- Nada. Vamos.

Ele cruzou a nave em direção à sacristia, mas voltou os olhos para a cripta. Seichan sabia.

 

Rachel montou guarda enquanto Vigor ajudava o padre a levantar-se.

- Eles... eles mataram todos - disse o rapaz. Ele precisava apoiar-se no bra­ço de Vigor para manter-se de pé. Seus olhos evitaram a figura ensangüentada sobre a mesa. Ele cobriu o rosto com uma das mãos e gemeu.

Padre Belcarro...

O que aconteceu? - perguntou Vigor.

- Eles chegaram há uma hora. Eles tinham selos e documentos pontifícios, identificação. Mas o padre Belcarro havia recebido uma foto por fax. - Os olhos do padre arregalaram-se. - Do senhor. Enviada pelo Vaticano. O padre Belcarro soube imediatamente da mentira. Mas àquela altura os monstros já estavam aqui. Os fios dos telefones foram cortados. Nós fomos trancados aqui dentro, isolados. Eles queriam a combinação do cofre do padre Belcarro.

O rapaz desviou-se da forma ensangüentada, sentindo-se culpado.

- Eles o torturaram. Ele não falou. Mas então eles fizeram coisas piores... muito piores. E me obrigaram a assistir.

O jovem padre segurou no cotovelo do tio dela.

Eu não pude deixar aquilo continuar. Eu... eu disse a eles.

E eles tiraram os ossos do cofre?

O padre fez um aceno de cabeça afirmativo.

Então tudo está perdido - disse Vigor.

No entanto, eles queriam ter certeza - prosseguiu o padre, aparentemente surdo, balbuciante. Ele olhou de relance para a figura torturada, sabendo que aquele também teria sido seu destino. - Então vocês chegaram. Eles me despi­ram e me amordaçaram.

Rachel pensou no falso padre que usara a batina do rapaz. O subterfúgio deve ter sido planejado para atrair Rachel e Kat da rua para dentro da igreja.

O padre aproximou-se aos tropeços do corpo do padre Belcarro. Ele suspen­deu a batina do homem mais velho, cobrindo o rosto mutilado como se escon­desse sua própria vergonha. Em seguida o padre enfiou uma das mãos num bol­so da batina ensangüentada e tirou um maço de cigarros. Parecia que o idoso padre não havia largado todos os seus vícios... e tampouco o jovem padre.

Com os dedos tremendo, o rapaz destacou a parte de cima e despejou o conteúdo. Seis cigarros - e um toco de giz quebrado. O rapaz deixou cair os cigarros e estendeu o pedacinho ocre.

Vigor pegou-o.

Não era giz, mas osso.

- O padre Belcarro receava enviar todas as relíquias sagradas - explicou o jovem padre. - Por precaução, caso alguma coisa acontecesse. Por isso ele re­servou um pouco. Para a igreja.

Rachel se perguntou até que ponto esse subterfúgio era motivado por um desejo desinteressado de preservar as relíquias e até que ponto se devia ao or­gulho e à lembrança da última vez que os ossos foram roubados de Milão. Remo­vidos à força para Colônia. Grande parte da fama da basílica concentrava-se naqueles poucos ossos. Mas, de qualquer modo, o padre Belcarro morrera como um mártir. Torturado enquanto escondia as relíquias sagradas no próprio corpo.

O som alto de uma detonação os fez sobressaltar-se.

O padre caiu no chão.

Mas Rachel reconheceu o calibre da arma.

- A espingarda de Monk... - disse, os olhos arregalando-se de esperança.

 

Gray enfiou o braço pelo buraco fumegante na porta da sacristia.

Monk pendurou a espingarda no ombro.

- Eu vou ficar devendo à Igreja Católica um mês de salário para os conser­tos de carpintaria.

Gray removeu a vara de ferro que bloqueava o caminho e abriu a porta. Após a detonação da espingarda, não havia mais necessidade de subterfúgio.

- Rachel! Vigor! - gritou ao entrar na sala da reitoria.

Além da sala ouviu-se o som de passos arrastados. Uma porta abriu-se. Rachel saiu com a pistola na mão.

- Por aqui! - instou ela.

O tio Vigor conduzia um rapaz seminu para o corredor. O rapaz tinha uma aparência pálida e aterrorizada, mas parecia recobrar as forças na presença deles. Ou talvez do som das sirenes cada vez mais próximas.

Padre Justin Mennelli - disse Vigor, apresentando-o.

Eles trocaram algumas idéias rapidamente.

Então nós temos um dos ossos - disse Gray surpreso.

- Eu sugiro que levemos a relíquia de volta para Roma o mais rápido possí­vel - disse Vigor. - Eles não sabem que nós a temos, e eu quero estar atrás das Muralhas Leoninas do Vaticano antes deles.

Rachel concordou com um aceno de cabeça.

O padre Mennelli informará às autoridades o que aconteceu aqui. Ele omitirá os detalhes da nossa presença... e, é claro, da relíquia que nós temos.

Daqui a dez minutos parte um trem ETR para Roma. - Vigor consultou o relógio. - Podemos estar lá por volta das seis horas.

Gray fez um aceno de cabeça afirmativo. Quanto mais eles operassem clan­destinamente, melhor.

- Vamos.

Eles encaminharam-se para a saída. O padre Mennelli conduziu-os a uma saída lateral perto de onde eles haviam estacionado o carro. Rachel sentou-se ao volante como de costume. Saíram a toda a velocidade enquanto as sirenes convergiam.

Quando se acomodou, Gray tocou com os dedos a moeda chinesa em seu bolso. Ele tinha a sensação de que deixara escapar alguma coisa.

Alguma coisa importante. Mas o quê?

 

Uma hora depois, Rachel foi do banheiro para o compartimento de primei­ra classe no trem ETR 500. Kat acompanhava-a. Decidiu-se que ninguém dei­xaria o grupo sozinho. Rachel lavara o rosto, penteara os cabelos e escovara os dentes enquanto Kat aguardava do lado de fora.

Depois dos horrores em Milão, ela necessitara de um momento só para si no cubículo. Durante um minuto, simplesmente encarara sua imagem no es­pelho, oscilando entre a fúria e a necessidade de chorar. Nem uma nem outra venceu, por isso ela lavara o rosto.

Era tudo que podia fazer.

Mas isso a fez sentir-se melhor, uma absolvição particular.

Enquanto descia o corredor, ela mal sentia o tremor dos trilhos sob seus calcanhares. O Elettro Treno Rápido era o mais novo e mais rápido trem da Itália, ligando a uma velocidade extrema de 300km/h um corredor que se es­tendia de Milão a Nápoles.

Então, o que você tem para me contar sobre o seu comandante? - pergun­tou Rachel a Kat, tirando proveito do tempo a sós com a mulher. Além disso, fazia bem falar de um assunto sem relação com homicídios e ossos.

O que você quer dizer? - Kat nem sequer parou para pensar sobre o as­sunto.

Ele está envolvido com alguém nos Estados Unidos? Com uma namorada talvez?

A essa pergunta ela olhou de relance para Rachel.

Eu não vejo como a vida pessoal dele...

E quanto a você e Monk? - perguntou Rachel, interrompendo-a, perce­bendo a forma como a sua pergunta inicial soava. - Com todas as suas profis­sões, vocês têm tempo para a vida pessoal? E os riscos?

Rachel estava curiosa de saber como aquelas pessoas equilibravam suas vi­das comuns com intriga e espionagem. Para ela fora muito difícil encontrar um homem que pudesse lidar com o seu cargo de tenente do Corpo de Carabinieri.

Kat suspirou.

- É melhor não se envolver demais - disse ela. Seus dedos tinham se movi­do para uma minúscula rã esmaltada presa com alfinete à sua lapela. A voz dela ficou mais firme, mas soava mais como defesa do que como convicção. -Você faz amizades sempre que possível, mas não deveria deixar ir além disso. Assim é mais fácil.

Mais fácil para quem? Perguntou-se Rachel.

Ela mudou de assunto quando chegaram a seus compartimentos. A equipe havia reservado duas cabines. Uma era um compartimento para dormir, de modo que eles pudessem tirar breves cochilos em turnos. Mas ninguém estava dormindo ainda. Todos haviam-se reunido na outra cabine e sentado em cada lado de uma mesa. As persianas tinham sido baixadas nas janelas.

Rachel esgueirou-se para junto do tio, Kat para junto de seus colegas de equipe.

Gray havia desembalado um equipamento de análise compacto de sua mo­chila e o conectado a um laptop. Outros instrumentos estavam cuidadosamente alinhados à sua frente. No centro da mesa, numa bandeja de amostra de aço inoxidável, estava a relíquia de um dos Reis Magos.

Foi um golpe de sorte que este pedaço de osso da espessura de um dedo tenha escapado à ação deles - disse Monk.

A sorte não teve nada a ver com isso - indignou-se Rachel. - Isso custou a vida de homens bons. Se nós não tivéssemos chegado na hora em que chega­mos, suspeito que teríamos perdido este fragmento de osso também.

Sorte ou não - resmungou Gray -, nós temos o fragmento de osso. Veja­mos se ele pode solucionar alguns mistérios para nós.

Ele pôs um par de óculos equipado com uma lente de aumento de joalheiro e calçou um par de luvas de borracha. Com uma minúscula furadeira, tirou uma lasca fina do centro do osso, em seguida usou um gral e um pilão para triturar a amostra até virar pó.

Rachel observava seu trabalho meticuloso. Ele era o cientista no soldado. Ela estudou os movimentos dos dedos dele, eficientes, sem desperdiçar nenhum esforço. Os olhos dele estavam completamente concentrados na tarefa de que se ocupava. Duas linhas perfeitamente paralelas sulcavam sua testa, sem rela­xar. Ele respirava pelo nariz.

Ela jamais havia imaginado esse lado dele, do homem que saltava entre tor­res em chamas. Rachel teve um súbito impulso de erguer o queixo dele, de fazê-lo olhar para ela com a mesma intensidade e concentração. Como seria? Ela imaginou a profundidade de seus olhos azul-acinzentados. Lembrou-se de seu toque, a mão dele na sua, força e ternura, de certa forma, simultâneas.

O calor aumentou dentro dela. Ela sentiu as faces corarem e teve de desviar o olhar.

Kat olhava fixamente para ela, inexpressiva, mas ainda, de certo modo, fa­zendo-a sentir-se culpada, as palavras dela muito recentes. É melhor não se envolver demais. Assim é mais fácil.

Talvez a mulher tivesse razão...

- Com este espectrômetro de massa - murmurou Gray afinal, atraindo de novo a atenção dela - nós podemos determinar se há algum dos metais no estado m nos ossos. Uma tentativa de considerar, ou não, a possibilidade de os ossos dos Reis Magos serem a fonte do pó encontrado no relicário de ouro.

Ele misturou o pó com água destilada, em seguida aspirou o líquido sedimentado com uma pipeta e transferiu-o para um tubo de ensaio. Introdu­ziu o tubo com a amostra no espectrómetro compacto. Preparou um segundo tubo de ensaio com água destilada e ergueu-o.

- Isto é um padrão de aferição - explicou ele, colocando o tubo noutro orifício. Ele pressionou um botão verde e virou a tela do laptop para o grupo, a fim de que todos pudessem ver. Na tela apareceu um gráfico com uma linha horizontal de um lado ao outro. Algumas farpas minúsculas tremulavam na linha reta. - Isto é água. As pontas intermitentes são alguns traços de impure­zas. Mesmo a água destilada não é 100% pura.

Em seguida, moveu um ponteiro de modo que apontasse para o orifício com a amostra sedimentada. Ele apertou o botão verde.

- Esta é a análise do osso pulverizado.

O gráfico na tela apagou-se e reavivou com os novos dados. Parecia idêntico ao outro.

- Ele não mudou - disse Rachel.

Com o cenho franzido, Gray repetiu o teste, tirando o tubo do espectrómetro e agitando-o. O resultado foi o mesmo a cada vez. Uma linha horizontal.

- O resultado ainda está indicando água destilada - disse Kat.

- Não deveria disse Monk. - Mesmo que os velhos magos tivessem osteoporose, o cálcio no osso deveria estar varando o teto. Sem mencionar o carbono e um punhado de outros elementos.

Gray acenou com a cabeça, concordando.

- Kat, você tem um pouco daquela solução de cianeto?

Ela virou-se para sua mochila, enfiou a mão nela e tirou um frasco pequenino.

Gray embebeu um cotonete na solução, depois prendeu o osso entre seus dedos enluvados. Ele esfregou o cotonete ensopado no osso, pressionando com firmeza, esfregando como se estivesse polindo prata.

Mas não era prata.

Onde ele esfregou, o osso amarelo-amarronzado transformou-se em ouro puro. Gray olhou para o grupo.

- Isto não é osso.

Rachel não conseguiu evitar o espanto e o choque em sua voz.

- É ouro maciço.

 

Gray passou a metade da viagem de trem refutando a afirmação de Rachel. Havia mais do que apenas ouro naqueles ossos. Também não se tratava de ouro metálico pesado, mas daquele estranho vidro de ouro outra vez. Ele tentou ob­ter de maneira invertida a composição exata.

Enquanto trabalhava, também lutou com outro problema. Milão. Ele refle­tiu repetidamente sobre os acontecimentos na basílica. Havia conduzido sua equipe para uma armadilha. Ele poderia relevar a emboscada da noite anterior na Alemanha. Eles haviam sido apanhados de surpresa. Ninguém poderia ter previsto aquele ataque selvagem na Catedral de Colônia.

Mas o fato de terem se livrado por um triz em Milão não podia ser descar­tado tão facilmente. Eles haviam entrado preparados na basílica - porém, qua­se perderam tudo, inclusive as próprias vidas.

Portanto, onde estava o erro?

Gray sabia a resposta. Ele havia cometido um erro grave. Jamais deveria ter parado no lago de Como. Não deveria ter dado ouvidos às palavras de cautela de Kat e perdido tanto tempo examinando a basílica, expondo a si mesmos, dando à Corte tempo para descobri-los e preparar uma armadilha.

A culpa não era de Kat. A cautela era parte essencial do serviço de inteligência. Mas o trabalho de campo também exigia rapidez e certa ação, e não hesitação.

Especialmente do líder.

Até então, Gray havia seguido o regulamento, permanecendo cauteloso de­mais, sendo o líder que se esperava dele. Mas talvez fosse esse o erro. Hesitação e previsão não eram traços da família Pierce. Nem no pai, nem no filho. Mas onde estava a linha entre cautela e imprudência? Será que ele poderia alcançar esse equilíbrio?

O êxito da missão - e talvez suas vidas - dependia disso.

Terminada a análise, Gray recostou-se. Seu polegar estava cheio de bolhas e a cabine recendia a álcool metílico.

- Não é ouro puro - concluiu ele.

Os outros olharam para ele. Dois trabalhavam, dois cochilavam.

- O osso falso é uma mistura de elementos do grupo da platina - explicou ele. - Quem quer que tenha produzido isto, misturou um amálgama pulverulento de vários metais do grupo de transição e o fundiu em vidro. Quando ele es­friou, moldou o vidro e tornou as superfícies ásperas até assumirem um aspec­to branco como giz, fazendo-o parecer osso.

Gray começou a guardar seus instrumentos.

É composto predominantemente de ouro, mas também há um grande percentual de platina e quantidades menores de irídio e ródio, até mesmo de ósmio e paládio.

Uma miscelânea uniforme - disse Monk com um bocejo.

Mas uma miscelânea cuja receita exata pode ficar desconhecida para sem­pre - disse Gray, franzindo o cenho diante do maltratado fragmento de osso. Ele havia preservado três quartos do fragmento intactos e submetido o quarto restante à bateria de testes. - Com a obstinada falta de reatividade do pó no estado m, não creio que algum equipamento de análise possa nos informar a proporção exata dos metais. Até a testagem altera a proporção na amostra.

Como o Princípio da Incerteza de Heisenberg - disse Kat, os pés apoiados no banco oposto, o laptop no colo. Ela o explorava enquanto falava. - Até mes­mo o ato de olhar, muda a realidade do que está sendo observado.

Portanto, se ele não pode ser completamente analisado...

As palavras de Monk foram interrompidas por outro bocejo que escancarou sua boca.

Gray deu um tapinha no ombro de Monk.

- Nós estaremos em Roma daqui a uma hora. Por que você não tira uma soneca no compartimento ao lado?

Eu estou ótimo - disse ele, reprimindo outro bocejo.

É uma ordem.

Monk levantou-se e deu uma longa espreguiçada.

- Bem, se é uma ordem...

Ele esfregou os olhos e dirigiu-se à porta.

Mas parou no vão dela.

- Sabem de uma coisa? - disse ele com os olhos turvos. - Talvez eles te­nham entendido tudo errado. Talvez a história tenha interpretado erroneamente as palavras os ossos dos Reis Magos. Em vez de elas se referirem aos esqueletos desses caras, talvez signifiquem que os ossos foram feitos pelos Reis Magos. Como se pertencessem a eles. Os ossos dos Reis Magos.

Todos olharam fixamente para ele.

Sob o escrutínio combinado, ele deu de ombros e quase caiu porta afora.

- Diacho, o que é que eu sei? Eu mal consigo pensar direito.

A porta fechou-se.

- O colega de vocês talvez não esteja tão equivocado - disse Vigor quando o silêncio se instalou na cabine.

Rachel agitou-se. Gray olhou para cima. Até a recente especulação, Rachel permanecera encostada no tio e cochilara por um breve período. Gray a obser­vara respirar pelo canto do olho. Enquanto dormitava, todas as asperezas suavizavam-se na mulher. Ela parecia muito mais jovem.

Ela esticou um braço no ar.

- O que você quer dizer?

Vigor trabalhava no laptop de Monk. Como Kat, ele estava conectado à li­nha DSL embutida nas cabines da primeira classe do novo trem. Eles estavam tentando obter mais informações. Kat concentrava-se na ciência por trás do ouro branco, ao passo que Vigor procurava mais informações históricas vinculando os Reis Magos àquele amálgama.

Os olhos do monsenhor continuavam fixos na tela.

Alguém forjou aqueles ossos falsos. Alguém com uma habilidade dificil­mente reprodutível hoje em dia. Mas quem os forjou? E por que os esconderam no coração de uma catedral católica?

Poderia ser alguém ligado à Corte do Dragão? - perguntou Rachel. - O grupo deles remonta à Idade Média.

Ou alguém dentro da própria Igreja? - indagou Kat.

Não - disse Vigor com firmeza. - Eu acho que existe um terceiro grupo envolvido neste caso. Uma irmandade que existiu antes de ambos os grupos.

Como o senhor pode ter certeza? - perguntou Gray.

Em 1982, algumas das roupas com as quais os Reis Magos foram sepulta­dos foram testadas. Elas datavam do século II, muito antes de a Corte do Dra­gão ser fundada. Antes mesmo de a rainha Helena, mãe de Constantino, desco­brir os ossos em algum lugar no Oriente.

E ninguém testou os ossos? Vigor olhou para Gray.

A Igreja proibiu isso.

Por quê?

- É necessário uma dispensação pontifícia especial para permitir o teste de ossos, especialmente de relíquias. E as relíquias dos Reis Magos exigiriam uma dispensação extraordinária.

Rachel explicou:

- A Igreja não quer que seus tesouros mais preciosos sejam considerados uma fraude.

Vigor franziu o cenho para Rachel.

- A Igreja dá muito valor à fé. O mundo sem dúvida poderia fazer mais uso dela.

Ela deu de ombros, fechou os olhos e voltou a reclinar-se.

Então, se não foi nem a Igreja, nem a Corte, quem forjou os ossos? - Perguntou Gray

Eu acho que o seu amigo Monk estava certo. Eu acho que uma fraternidade de magos os fabricou. Um grupo que pode pré-datar o cristianismo, talvez re­montando aos tempos egípcios.

- Aos egípcios?

Vigor clicou o mouse de seu laptop, abrindo um arquivo.

Ouçam isto. Em 1450 a.C., o faraó Tutmés III reuniu seus melhores artífi­ces num grupo de 39 membros chamado a Grande Irmandade Branca - cujo nome derivava de seu estudo de um misterioso pó branco. De acordo com a descrição, o pó foi produzido a partir de ouro, porém recebeu a forma de bolos piramidais, chamados "pães brancos". Os bolos são representados no templo de Karnak como minúsculas pirâmides, às vezes difundindo raios de luz.

O que faziam com eles? - indagou Gray.

Eles eram preparados apenas para os faraós. Para serem consumidos. Su­postamente para aumentar a capacidade de percepção deles.

Kat sentou-se mais ereta, tirando os pés do banco oposto.

Gray virou-se para ela.

O que foi?

Eu estive lendo algumas das propriedades dos metais no estado de alta rotação. Especificamente, do ouro e da platina. A exposição por meio da ingestão pode estimular sistemas endócrinos, criando a sensação de expansão da cons­ciência. Você se lembra dos artigos sobre os supercondutores?

Gray fez que sim com a cabeça. Os átomos de alta rotação agiam como supercondutores perfeitos.

- O Laboratório de Pesquisas Navais dos Estados Unidos confirmou que a comunicação entre as células do cérebro não pode ser explicada pela pura trans­missão química através das sinapses. As células do cérebro se comunicam mui­to rápido. Eles chegaram à conclusão de que alguma forma de supercondutividade está envolvida, mas o mecanismo ainda está sendo pesquisado.

Gray franziu o cenho. É claro que ele havia estudado a supercondutividade no seu programa de doutoramento. Físicos destacados acreditavam que esse campo levaria aos próximos avanços importantes nas tecnologias globais, com aplicações gerais. Além disso, devido à sua dupla graduação em biologia, ele estava bastante familiarizado com as teorias atuais sobre o pensamento, a me­mória e o cérebro orgânico. Mas o que isso tinha a ver com ouro branco?

Kat inclinou-se para o seu laptop e abriu outro artigo.

- Aqui. Eu fiz uma busca dos metais do grupo da platina e seus usos. E eu encontrei um artigo sobre os cérebros de vitelas e porcos. Uma análise de metais nos cérebros de mamíferos mostra que 4% a 5% do peso seco é composto de ródio e irídio. - Ela acenou com a cabeça para a amostra na mesa de Gray. - Ródio e irídio em seu estado monoatômico.

- E você pensa que esses elementos no estado m poderiam ser a fonte da supercondutividade do cérebro? Sua via de comunicação? Que o consumo des­ses pós pelos faraós a excitava?

Kat deu de ombros.

É difícil dizer. O estudo da supercondutividade ainda está no começo.

No entanto, os egípcios sabiam a seu respeito - escarneceu Gray.

Não - opôs-se Vigor. - Mas talvez eles tenham aprendido alguma forma de explorá-la por tentativa e erro ou por acaso. Seja como for que isso tenha acontecido, esse interesse e essa experimentação com esses pós brancos de ouro aparecem ao longo da história, passados de uma civilização para a seguinte, ficando cada vez mais fortes.

Até que ponto à frente o senhor pode pesquisar isso?

Exatamente até aí - respondeu Vigor, apontando para o fragmento de osso na mesa de Gray.

Isso despertou o interesse dele.

É mesmo?

Vigor fez um aceno de cabeça positivo, disposto a encarar o desafio.

Como eu disse, tudo começou no Egito. Esse pó branco recebeu muitos nomes. O "pão branco" que eu mencionei, mas também "alimento branco" e "mfkzt". Mas seu nome mais antigo encontra-se no Livro dos Mortos egípcio. A substância é mencionada centenas de vezes junto com suas assombrosas pro­priedades. Ela é simplesmente chamada "o que é".

Gray lembrou-se do monsenhor tropeçando naquelas mesmas palavras an­tes, quando eles transformaram o pó em vidro pela primeira vez.

Mas, em hebraico - prosseguiu Vigor -, "o que é" é traduzido por Ma Na.

Maná - disse Kat.

Vigor fez que sim com a cabeça.

- O Pão Sagrado dos israelitas. De acordo com o Antigo Testamento, ele caiu do céu para alimentar os refugiados famintos que fugiam do Egito, lidera­dos por Moisés. - O monsenhor deixou aquilo penetrar no espírito deles e remexeu nos arquivos que reunira. - Durante o tempo que permaneceu no Egito, Moisés mostrou tanta sabedoria e habilidade que foi considerado um sucessor em potencial do trono egípcio. Tamanha consideração lhe dava direito de participar no nível mais profundo do misticismo egípcio.

O senhor está dizendo que Moisés roubou o segredo de fabricação desse pó? Do pão branco egípcio?

Na Bíblia, ele recebeu vários nomes. Maná. Pão Sagrado. Pão da Proposi­ção. Pão da Presença. Ele era tão precioso que foi armazenado na Arca da Alian­ça, junto com as tábuas dos Dez Mandamentos. Tudo guardado numa caixa de ouro.

Gray não deixou de perceber a sobrancelha do monsenhor erguer-se suges­tivamente, enfatizando a analogia com o fato de os ossos dos Reis Magos serem preservados num relicário de ouro.

- Parece uma interpretação forçada - murmurou Gray. - O nome "maná" poderia ser apenas coincidência.

- Quando foi a última vez que o senhor leu a Bíblia?

Gray não se deu o trabalho de responder.

- Muitas coisas têm deixado perplexos historiadores e teólogos no que concerne a esse misterioso maná. A Bíblia descreve que Moisés incendiou o bezerro de ouro. Mas, em vez de transformar-se em escória derretida, o ouro queimou até virar um pó... com o qual Moisés, então, alimentou os israelitas.

Gray franziu o cenho. Como o pão branco do faraó.

- Além disso, a quem Moisés pede para fazer esse Pão Sagrado, esse maná caído do céu? Na Bíblia, ele não pede a um padeiro para prepará-lo, e sim a Bezalel.

Gray ficou à espera de uma explicação. Ele não estava a par desses nomes bíblicos.

- Bezalel era o ourives dos israelitas. Era a mesma pessoa que construiu a Arca da Aliança. Por que pedir a um ourives para fazer pão a menos que se tratasse de outra coisa?

Gray franziu o cenho. Isso poderia ser verdade?

Textos extraídos da cabala judaica também fazem referência direta a um pó branco de ouro, declarando-o mágico, porém uma magia que poderia ser usada para o bem ou para o mal.

Mas o que foi feito desse conhecimento? - perguntou Gray.

De acordo com a maioria das fontes judaicas, ele se perdeu quando o Templo de Salomão foi destruído por Nabucodonosor no século VI a.C.

E onde ele foi parar depois disso?

Para encontrarmos alusões a ele, damos um salto de dois séculos para a frente, para outra personagem histórica famosa, que também passou grande parte de sua vida na Babilônia, estudando com cientistas e místicos. - Vigor fez uma pausa para dar ênfase. - Alexandre, o Grande.

Gray sentou-se mais ereto.

O rei macedônio?

Alexandre conquistou o Egito em 332 a.C., junto com uma vasta parte do mundo. O homem sempre se interessou pelo conhecimento esotérico. Por meio de suas conquistas, ele enviou a Aristóteles presentes científicos do mundo in­teiro. Ele também colecionou uma série de pergaminhos heliopolitanos relacio­nados com o conhecimento secreto e a magia do antigo Egito. Seu sucessor, Ptolomeu I, reuniu-os na Biblioteca de Alexandria após a morte dele. Mas um texto alexandrino relata uma história sobre um objeto chamado Pedra do Pa­raíso. Dizia-se que essa pedra possuía propriedades místicas. Quando sólida, ela podia ultrapassar seu próprio peso em ouro; todavia, quando triturada num pó, ela pesava menos do que uma pluma e podia flutuar.

- Levitação - disse Kat, interrompendo.

Gray virou-se para ela.

- Existe farta documentação dessa propriedade de material supercondutor. Os supercondutores flutuam em fortes campos magnéticos. Até mesmo esses pós no estado m demonstram levitação supercondutora. Em 1984, testes laboratoriais no Arizona e no Texas mostraram que o resfriamento rápido de pós monoatômicos podia aumentar em quatro vezes seu peso testado. Contu­do, se eles fossem aquecidos de novo, o peso se reduzia a menos de zero.

O que você quer dizer? Menos de zero?

O recipiente pesava mais sem a substância nele, como se estivesse levitando.

A Pedra do Paraíso redescoberta - declarou Vigor.

Gray começou a perceber a verdade. Um conhecimento secreto passado adiante através de gerações.

- Aonde a trilha desse pó leva em seguida?

- Ao tempo de Cristo - respondeu Vigor. - No Novo Testamento, continua a haver alusões a um ouro misterioso. No capítulo dois do Livro do Apocalipse, lê-se: "Ao vencedor darei do maná escondido, e lhe darei também uma pedrinha branca". Além disso, o livro do Apocalipse descreve as casas da Nova Jerusa­lém como sendo Construídas de "ouro puro, semelhante a um vidro límpido".

Gray lembrou-se de Vigor ter murmurado aquele versículo quando a poça ile vidro derretido endureceu no piso da Catedral de Colônia.

- Digam-me - continuou Vigor -, quando é que o ouro se parece com vi­dro? Isso não faz o menor sentido, a não ser que consideremos a possibilidade do ouro no estado m... esse "mais puro de todos os ouros" descrito na Bíblia.

Vigor apontou para a mesa.

- O que nos traz de volta aos Reis Magos bíblicos. A um conto da Pérsia relatado por Marco Polo. Ele conta a história dos Reis Magos recebendo um presente do menino Jesus, e isso provavelmente é alegórico, mas eu penso que é importante. Cristo deu aos Reis Magos uma pedra branca opaca, uma Pedra Sagrada. A história diz que ela representava um apelo aos Reis Magos para que permanecessem firmes em sua fé. Durante a viagem de volta para casa, a pedra começou a emitir um fogo que não podia ser extinto, uma chama eterna, que com freqüência simboliza sabedoria superior.

Vigor deve ter notado a confusão de Gray, mas prosseguiu:

- Na Mesopotâmia, onde essa história se originou, a expressão "pedra de fogo alto" é chamada shemanna. Ou abreviada apenas para "pedra de fogo"... manna.

Vigor recostou-se e cruzou os braços.

Gray lentamente aquiesceu com a cabeça.

Então nós fechamos o círculo. De volta ao maná e aos Reis Magos bíblicos.

De volta à era em que os ossos foram produzidos - disse Vigor com um aceno de cabeça na direção da mesa.

- E a história pára aí? - indagou Gray. Vigor sacudiu a cabeça.

- Eu preciso pesquisar mais, mas acho que ela continua além desse ponto. Eu acho que o que acabei de descrever não são redescobertas isoladas desse pó, e sim uma cadeia ininterrupta de pesquisas conduzidas por uma sociedade alquímica secreta que vem purificando esse processo através dos séculos. Para mim, só agora a corrente dominante da comunidade científica está começando a redescobri-lo.

Gray virou-se para Kat, o dispositivo de busca deles.

- O monsenhor tem razão. Estão sendo feitas descobertas incríveis sobre esses supercondutores no estado m. Da levitação à possibilidade de desloca­mento transdimensional. Mas aplicações mais práticas estão sendo exploradas no momento. A cis-platina e a platina-carbono já estão sendo usadas no trata­mento do câncer do testículo e do ovário. Eu espero que Monk, com sua for­mação em medicina legal, possa entrar mais em detalhes. Porém, nos últimos anos foram feitas descobertas ainda mais intrigantes.

Gray fez um sinal para que ela continuasse.

- A Bristol-Meyers Squibb relatou êxito com o rutênio monoatómico para corrigir células cancerosas. O mesmo com a platina e o irídio, de acordo com a Platinum Metals Review. Na verdade, esses átomos fazem o filamento de DNA corrigir-se a si mesmo, reconstruindo-se sem medicamentos ou radiação. Mos­trou-se que o irídio estimula a glândula pineal e parece livrar-se do "refugo do DNA", levando à possibilidade de aumento da longevidade e reabrindo as vias de envelhecimento no cérebro.

Kat inclinou-se para a frente.

Uma notícia de agosto de 2004. A Universidade de Purdue relata êxito no uso do ródio para destruir vírus com luz proveniente do interior de um corpo. Até mesmo o vírus do Nilo ocidental.

Luz? - perguntou Vigor, seus olhos estreitando-se.

Gray olhou para ele, notando o interesse intensificado do monsenhor.

Kat assentiu.

- Existe uma porção de artigos sobre esses átomos no estado mea luz. Da transformação do DNA em filamentos supercondutores... à comunicação por ondas luminosas entre as células... à pesquisa com energias zero de campo.

Rachel finalmente falou. Seus olhos ainda estavam fechados, mas ela estive­ra escutando o tempo todo, escutando às escondidas.

Isso faz a gente ter curiosidade de saber.

O quê? - Gray virou-se para ela.

Ela abriu os olhos lentamente. Eles estavam brilhantes e alerta.

- Vocês, cientistas, estão aqui falando sobre expansão da consciência, levi­tação, transmutação, curas milagrosas, antienvelhecimento. Parece uma lista de milagres dos tempos bíblicos. Isso me faz perguntar a mim mesma por que tantos milagres aconteciam naquela época, mas não hoje em dia. Nos séculos passados, éramos afortunados por vermos uma imagem da Virgem Maria numa tortilha. Todavia, agora a ciência está redescobrindo esses milagres mais im­portantes. E grande parte disso remonta a um pó branco, a uma substância que se conhecia melhor naquela época do que hoje. Esse conhecimento secreto poderia ter sido a origem da proliferação de milagres nos tempos bíblicos? Gray refletiu sobre isso, olhando-a nos olhos.

- E se esses antigos magos sabiam mais do que sabemos agora - extrapolou ela -, o que essa fraternidade perdida de sábios fez com esse conhecimento, a que grau eles o refinaram?

Rachel prosseguiu com o raciocínio.

Talvez seja isso o que a Corte do Dragão procura! Talvez eles tenham encontrado alguma pista, alguma coisa ligada aos ossos que poderia levá-los ao que quer que esse produto final purificado possa ser. Algum platô final alcançado pelos magos.

E, ao longo do caminho, a Corte aprendeu aquele truque assassino usado em Colônia, uma forma de usar o pó para matar - disse Gray.

Ele lembrou-se das palavras do monsenhor sobre a cabala judaica, de que o pó poderia ser usado para o bem ou para o mal. O rosto de Rachel tornou-se sóbrio.

- Se eles alcançassem ainda mais poder, obtendo acesso ao santuário desses sábios antigos, eles poderiam mudar o mundo, refazê-lo à sua própria imagem doentia.

Gray olhou fixamente para os outros. Kat exibia uma expressão cautelosa. Vigor parecia perdido em seus próprios pensamentos, mas notou o súbito silêncio.

Os olhos dele concentram-se de novo neles.

Gray encarou-o.

- O que o senhor acha?

- Eu acho que nós temos que detê-los. Mas, para fazermos isso, nós teremos que procurar pistas desses antigos alquimistas. Isso significa seguir as pegadas da Corte do Dragão.

Gray sacudiu a cabeça. Ele se lembrou de sua preocupação de que estives­sem agindo de maneira cautelosa demais, tímida demais.

- Pra mim chega de perseguir esses sacanas. Nós precisamos deixá-los para trás. Deixá-los comer nossa poeira para variar.

- Mas por onde começamos? - perguntou Rachel.

Antes que alguém pudesse responder, ouviu-se um aviso programado pelo sistema de intercomunicação do trem.

- Roma... Stazione termini... quindici minuti!

Gray consultou o relógio. Quinze minutos.

Os olhos de Rachel estavam fixos nele.

- Benvenuto a Roma - disse ela quando ele olhou para cima. - Lasci i giochi cominciare!

Gray traduziu, o vislumbre de um sorriso esboçando-se em seu rosto. Era como se ela tivesse lido sua mente. Bem-vindo a Roma... Que comecem os jogos!

 

Seichan pôs um par de óculos de sol Versace pretos e prateados.

Uma vez em Roma...

Ela desceu do ônibus expresso na Piazza Pia. Usava um vaporoso vestido branco de verão e nada mais, exceto um par de botas Harley-Davidson com salto agulha e fivelas prateadas, combinando com o colar.

O ônibus partiu. Atrás dela, carros obstruíam a rua, uma linha de trânsito com sons de buzina e de motores poluentes que avançava pela Via delia Conciliazone. O calor e o forte cheiro de gasolina atingiram-na ao mesmo tem­po. Ela virou-se para o oeste. No fim da rua, erguia-se a Basílica de São Pedro, cuja silhueta se desenhava contra o sol poente. A cúpula brilhava como ouro, uma obra-prima da arquitetura concebida por Michelangelo.

Sem impressionar-se, Seichan deu as costas à Cidade do Vaticano.

Não era sua meta.

Um pouco adiante ela se deteve numa construção que rivalizava com a magnífica Basílica de São Pedro. O imponente edifício em forma de tambor enchia a linha do horizonte, uma fortaleza que se debruçava sobre o rio Tibre. O Castelo de Santo Ângelo. Em seu teto, uma imensa estátua de bronze do Ar­canjo Miguel segurava uma espada desembainhada voltada para cima. A escul­tura brilhava ao sol. A estrutura de pedra embaixo estava enegrecida pela fuli­gem, que deixara uma torrente de manchas, como um fluxo de lágrimas negras.

Muito adequado, pensou Seichan.

O edifício fora construído no século II como mausoléu do imperador Adriano, mas pouco depois o papado se apropriara dele. Todavia, o castelo desenvolvera uma história ilustre e ignóbil. Sob domínio do Vaticano, servira de fortaleza, prisão, biblioteca e até de bordel. Também fora um ponto de en­contro secreto de alguns dos papas mais notórios, que mantinham concubinas e amantes dentro de seus muros, com freqüência aprisionadas ali.

Seichan achou divertido ter seu próprio encontro ali. Ela atravessou os jar­dins até a entrada e passou pelas muralhas de seis metros de espessura para entrar no andar térreo. Lá dentro estava escuro e frio. Àquela hora avançada do dia, os turistas começavam a escassear. Ela dirigiu-se para cima, subindo os largos degraus curvos românicos.

Saindo-se da escadaria principal, o castelo espalhava-se num labirinto de quartos e salões. Muitos visitantes se perdiam.

Mas Seichan só estava indo até o nível intermediário, a um restaurante num terraço com vista para o Tibre. Ela devia encontrar seu contato ali. Após o ataque com bombas incendiárias, considerou-se muito arriscado que eles se encontrassem no próprio Vaticano. Por isso o contato dela viria pelo Passetto del Borgo, uma passagem coberta no alto de um antigo aqueduto que ligava o Palácio Apostólico àquele castelo-fortaleza. A passagem secreta fora construí­da originalmente no século XIII como uma rota de fuga de emergência para o papa, porém, com o passar dos séculos, foi usada com mais freqüência para encontros amorosos.

Embora hoje nada houvesse de romântico naquele encontro.

Seichan seguiu as placas até o café no terraço e consultou o relógio. Estava dez minutos adiantada. Não fazia mal. Ela precisava dar um telefonema.

Ela pegou o telefone celular, pressionou o dispositivo embaralhador e digitou o código de discagem rápida. Um número particular, que não figurava na lista. Ela apoiou-se num quadril, levou o fone ao ouvido e esperou a chama­da internacional completar-se.

A linha zumbiu, estalou, e uma voz firme e direta respondeu.

- Comando da Sigma, boa-tarde.

 

Eu preciso de papel e caneta - disse Gray com o telefone por satélite na mão.

O grupo esperava numa trattoria com mesas na calçada no outro lado da estação ferroviária central de Roma. Assim que chegaram, Rachel pediu que dois veículos dos Carabinieri apanhassem a equipe e a escoltasse até a Cidade do Vaticano. Enquanto esperavam, Gray decidiu que era hora de romper o si­lêncio com o comando central. A ligação fora transferida imediatamente para o diretor Crowe.

Após um breve relato dos eventos em Colônia e Milão, o diretor tinha sua própria notícia surpreendente.

- Por que ela haveria de telefonar para o senhor? - perguntou Gray ao diretor enquanto Monk procurava um bloco de anotações e uma caneta em sua mochila.

Painter respondeu:

- Seichan está colocando nossos dois grupos um contra o outro para favo­recer o seu próprio objetivo. Ela nem sequer está tentando esconder isso. As informações secretas que ela nos passou foram roubadas do agente de campo da Corte do Dragão, um homem chamado Raoul.

Gray franziu o cenho, lembrando-se da obra do homem em Milão.

- Eu não acho que ela seja capaz de decifrar as informações secretas sem ajuda - prosseguiu Painter. - Por isso ela as passou para nós - para as decifrar­mos para ela e para mantermos vocês no encalço da Corte. Ela não é tola. Sua capacidade de manipulação deve ser magistral para ter sido escolhida pela Guilda para supervisionar esta operação... pelo menos, vocês dois têm um pas­sado. Apesar da ajuda dela em Colônia e Milão, não confie nela. Ela pode aca­bar virando-se contra você e tentar empatar o jogo.

Gray sentiu o peso da moeda de metal em seu bolso. Ele não precisava da advertência. A mulher era gelo e aço.

-        Okay - disse Gray já com caneta e papel na mão, prendendo o fone com o ombro. - Estou pronto.

À medida que Painter lhe passava a mensagem, Gray tomava nota dela.

E ela é dividida em estrofes, como um poema? - perguntou ele.

Exatamente.

O diretor continuou recitando enquanto Gray anotava apressadamente cada verso.

Quando terminou, Painter disse:

- Eu tenho decifradores de códigos trabalhando nela aqui e na Agência de Segurança Nacional.

Gray franziu o cenho ao olhar para o bloco de anotações.

Eu vou ver o que posso deduzir dela. Se usarmos alguns dos recursos do Vaticano, talvez possamos avançar um pouco aqui.

Enquanto isso, mantenha-se alerta - advertiu Painter. - Essa Seichan tal­vez seja mais perigosa do que a Corte inteira.

Gray não questionou essa última afirmação. Com algumas explicações fi­nais, ele desligou e guardou o telefone. Os outros olhavam em expectativa.

O que significa tudo isso? - perguntou Monk.

A Dama do Dragão telefonou para a Sigma. Ela passou um enigma para nós solucionarmos. Parece que ela não faz a menor idéia do que a Corte vai fazer em seguida, e, enquanto eles se preparam, ela quer que nós continuemos no encalço deles. Portanto, ela informou à Sigma uma passagem arcaica, uma coisa descoberta há dois meses no Egito pela Corte do Dragão. Seja qual for o seu conteúdo, ela disse que isso deu início à operação em curso.

Vigor levantou-se de uma das mesas ao ar livre da trattoria. Com uma mi­núscula xícara de café expresso equilibrada numa das mãos, ele inclinou-se para ler o trecho junto com os outros.

 

Quando a lua cheia se acasala com o sol,

Nasce o primogênito.

O que é?

Onde ele se asfixia,

Ele flutua na escuridão e fita o rei perdido.

O que é?

O Gêmeo espera por água,

Mas será queimado osso após osso no altar.

O que é?

 

- Oh, como isto ajuda - resmungou Monk. Kat sacudiu a cabeça.

- O que é que isto tem a ver com a Corte do Dragão, metais de alta rotação e alguma sociedade de alquimistas perdida?

Rachel correu os olhos pela rua.

- Os eruditos no Vaticano talvez possam ajudar. O cardeal Spera prometeu nos dar todo o seu apoio.

Gray notou que Vigor olhara apenas uma vez para a folha de papel e então se afastara, bebericando seu café.

Gray estava farto dos silêncios do homem. Ele se cansara do respeito polido pelos limites um do outro. Se Vigor queria ficar naquela equipe, estava mais do que na hora de agir com um de seus membros.

O senhor sabe alguma coisa - acusou Gray.

Os outros viraram-se para eles.

O senhor também deveria saber - respondeu Vigor.

O que o senhor quer dizer?

- Eu já descrevi isto no trem - Vigor virou-se e bateu de leve com um dedo no bloco. - A cadência deste trecho deveria ser familiar. Eu descrevi um livro com um padrão de texto semelhante. A repetição da frase "o que é".

Kat foi a primeira a lembrar-se.

Do Livro dos Mortos egípcio.

O Papiro de Ani, para ser exato - prosseguiu Vigor. - Ele está dividido em versos de descrição críptica seguidos por um verso repetido incessantemente: "o que é".

Ou, em hebraico, manna - disse Gray, lembrando-se.

Monk passou uma das mãos pelos fios de cabelo curtos que se espetavam de sua cabeça raspada.

Mas, se o trecho é de um livro egípcio conhecido, por que ele haveria de causar um rebuliço na Corte agora?

Os trechos não são do Livro dos Mortos - respondeu Vigor. - Eu estou bastante familiarizado com o Papiro de Ani para saber que esses trechos não se encontram entre os outros.

- Então qual é a origem deles? - Perguntou Rachel.

Vigor virou-se para Gray.

O senhor disse que a Corte do Dragão descobriu isto no Egito... há apenas alguns meses.

Exatamente.

Vigor dirigiu-se a Rachel.

- Tenho certeza de que, como membro da Tutela Patrimônio Culturale dos Carabinieri, você foi informada do recente caos no Museu Egípcio no Cairo. O museu enviou um alerta pela Interpol.

Rachel acenou afirmativamente com a cabeça e explicou aos outros.

O Conselho Supremo de Antigüidades do Egito começou em 2004 um trabalhoso processo de esvaziamento do porão do Museu Egípcio, antes da reforma. Mas, quando abriram o porão, eles descobriram mais de cem mil artefatos da época dos faraós e outros artefatos no seu labirinto de corredores, um depósito de lixo arqueológico quase esquecido.

Eles calculam que levarão cinco anos para catalogar tudo - disse Vigor. -Mas, como professor de arqueologia, eu soube de uma coisa excelente a respei­to das descobertas. Havia uma sala inteira de pergaminhos esboroantes que os estudiosos suspeitam que possam ter vindo da Biblioteca de Alexandria perdi­da, um importante bastião de estudos gnósticos.

Gray lembrou-se da discussão de Vigor sobre o gnosticismo e a busca de conhecimento secreto.

- Uma descoberta dessas com certeza atrairia a Corte do Dragão.

- Como a luz atrai as mariposas - disse Rachel.

Vigor continuou:

- Uma das peças catalogadas veio de uma coleção de Abd el-Latif, um concei­tuado médico e explorador egípcio do século XV que viveu no Cairo. Em sua coleção, preservada num cofre de bronze, estava uma cópia ilustrada do século XIV do Livro dos Mortos egípcio, uma reprodução na íntegra do Papiro de Ani. - Vigor olhou intensamente para Gray. - Ela foi roubada há quatro meses.

Gray sentiu seu pulso acelerar-se.

Pela Corte do Dragão.

Ou por alguém a serviço deles. Eles se intrometem em tudo em toda a parte.

Mas se o livro é apenas uma contrafação do original - disse Monk -, qual é a importância?

O Papiro de Ani tem centenas de estrofes. Eu aposto que alguém forjou essa cópia e ocultou essas estrofes específicas - Vigor bateu de leve no bloco de Gray - entre as mais antigas.

Nossos alquimistas perdidos - disse Kat.

- Escondendo agulhas num palheiro - afirmou Monk.

Gray fez que sim com a cabeça.

- Até que algum erudito da Corte do Dragão foi esperto o bastante para reconhecê-las, decifrar as pistas e guiar-se por elas. Mas onde é que isso nos deixa?

Vigor virou-se para a rua.

O senhor mencionou no trem o desejo de alcançar e ultrapassar a Corte do Dragão. Esta é a nossa chance.

Como assim?

Nós vamos decifrar o enigma.

Mas isso poderia levar dias.

Vigor deu uma olhadela por cima dos ombros dele.

- Não se eu já o tiver decifrado.

Ele pegou o bloco de papel e virou para uma nova página em branco.

- Deixem-me mostrar a vocês.

Ele então fez uma coisa estranhíssima. Molhou a ponta do dedo no café e umedeceu o fundo de sua xicrinha. Pressionou a xicrinha no papel, deixando um círculo de café perfeito na página em branco. Repetiu o gesto, aplicando um segundo círculo sobre o papel, círculo esse que se sobrepunha ao primeiro, produzindo mais ou menos a forma de um homem de neve.

A lua cheia acasalando-se com o sol.

O que isto prova? - indagou Gray.

Vesica Pisces - disse Rachel, a compreensão tornando-se clara em seu rosto.

Vigor deu um largo sorriso para ela.

Eu alguma vez lhes disse como tenho orgulho da minha sobrinha?

 

Rachel não queria abrir mão de sua escolta dos Carabinieri, porém enten­deu a excitação do tio Vigor. Ele insistira em que eles tomassem um transporte alternativo para investigar o novo indício.

Por isso ela telefonara para a delegacia e cancelara a solicitação dos carros de patrulha. Ela deixara uma mensagem em código para o general Rende de que todos eles tinham de cuidar de uma pequena missão. A mensagem fora uma sugestão de Gray. Ele achou melhor não divulgarem o destino deles. Não até que pudessem investigar mais.

Quanto menos pessoas soubessem da descoberta deles, melhor.

Por isso eles procuraram o transporte alternativo.

Rachel seguiu as costas largas de Gray até a traseira do ônibus público. Kat e Monk ocuparam uma fileira de poltronas vagas. O ar-condicionado tilintava, e o motor fazia as placas do assoalho chocalhar enquanto o ônibus se afastava do meio-fio e abria caminho no trânsito.

Rachel ocupou um assento com Gray. A fileira de poltronas deles ficava de frente para Monk, Kat e o tio Vigor. Kat parecia especialmente carrancuda. Ela argumentara a favor de prosseguirem para o Vaticano e assegurarem uma es­colta primeiro, mas Gray rejeitara sua argumentação. Ela parecia abalada por aquela decisão.

Rachel olhou para Gray ao lado dela. Alguma nova resolução parecia ter se solidificado nele. Isso a fez lembrar-se da atitude dele no alto da flecha em chamas em Colônia, uma conduta segura. Os olhos dele brilhavam com uma determinação que havia desaparecido após o primeiro ataque. Ela estava de volta agora... e a assustava um pouco, fazia seu coração bater mais rápido.

O ônibus avançava ruidosamente no trânsito.

- Okay - disse Gray -, eu confiei na sua palavra de que esta excursão secun­dária era necessária. Agora, que tal uma explicação pormenorizada?

O tio Vigor ergueu uma das mãos, concordando.

- Se eu tivesse entrado em detalhes, nós teríamos perdido nosso ônibus. Ele tornou a abrir o bloco.

- Esta forma de círculos sobrepostos pode ser vista em toda a cristandade. Em igrejas, catedrais e basílicas ao redor do mundo. Desta única forma, toda a geometria flui. Por exemplo. - Ele pôs a figura na posição horizontal e cobriu a parte inferior com o canto de sua palma. Em seguida, apontou para a interseção dos dois círculos. – Aqui vocês podem ver a forma geométrica da ogiva. Quase todas as janelas e arcadas góticas a exibem.

Ele dera a mesma preleção a Rachel na infância. Não era possível ter paren­tesco com um arqueólogo do Vaticano sem conhecer a importância daqueles dois círculos sobrepostos.

- Para mim ela ainda se parece com dois sonhos esmagados juntos - disse Monk.

Vigor tornou a endireitar a figura.

Ou com uma lua cheia acasalando-se com o sol - disse ele, trazendo à baila a estrofe do texto críptico. - Quanto mais eu penso nesses versos, mais camadas me vêm à mente, como se eu estivesse descascando uma cebola.

O que o senhor quer dizer? - indagou Gray.

Eles esconderam esta pista dentro do Livro dos Mortos egípcio, o primeiro livro a fazer referência ao maná. Textos egípcios posteriores começam a se re­ferir a ele como "pão branco" e coisas desse tipo. É como se, para encontrar o que quer que os alquimistas tenham ocultado, você tivesse de começar do co­meço. Todavia, a resposta a esta primeira pista também remonta à primeira era do cristianismo. Múltiplos começos. Até a resposta em si implica multiplica­ções. O um tornando-se muitos.

Rachel entendeu o que seu tio queria dizer.

- A multiplicação dos peixes.

Vigor fez um aceno de cabeça positivo.

- Alguém vai explicar isso a nós, aprendizes? - perguntou Monk.

- Esta combinação de círculos é chamada Vesica Pisces, ou Bexiga dos Peixes. Vigor inclinou-se e cobriu a interseção para revelar a forma semelhante a um peixe situada entre os dois círculos.

Gray examinou mais de perto.

É o símbolo do peixe que representa o cristianismo.

É o primeiro símbolo - disse Vigor. - "Quando a lua cheia se acasala com o sol, ele nasce." - O tio de Rachel bateu de leve no peixe. - Alguns estudiosos acreditam que o símbolo do peixe foi usado porque o termo grego para peixe, ICHTHYS, era um acrônimo para Iesous Christos Theou Yios Soter, ou Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador. Mas a verdade está aqui, entre estes círculos, entrelaçada na geometria sagrada. Estes círculos entrelaçados são encontrados com freqüência em pinturas antigas com o Cristo menino situado no centro da junção. Se a forma é virada de lado, o peixe se transforma numa representação dos órgãos genitais femininos e do útero de uma mulher, onde o menino Jesus está pintado.

- É por esse motivo que o peixe representa a fertilidade. Por ser fértil e multiplicar-se. - Vigor olhou para o grupo. - Como eu disse, existem camadas sobre camadas de significados aqui.

Gray recostou-se.

Mas como é que isto nos conduz a algum lugar?

Rachel também estava curiosa.

Há símbolos de peixe em toda Roma.

Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.

- Mas o segundo verso diz: "Nasce o primogênito". Ele está simplesmente nos guiando para a representação mais antiga do símbolo do peixe, que se en­contra na Cripta de Lucina, nas Catacumbas de São Calisto.

- É para lá que estamos indo? - perguntou Monk.

Vigor fez que sim com a cabeça.

Rachel notou que Gray não estava satisfeito.

- E se o senhor estiver errado? - perguntou ele.

- Não estou. As outras estrofes do texto também fazem alusão a ela... desde que você solucione o enigma da Vesica Pisces. Dê uma olhada no próximo ver­so: "Onde ele se asfixia, ele flutua na escuridão". Um peixe não pode asfixiar-se, não na água, mas pode asfixiar-se na terra. E a menção de sombras. Tudo isto aponta para uma cripta.

- Mas existem muitas criptas e catacumbas em toda Roma.

Mas não muitas com dois peixes, gêmeos um do outro - disse Vigor.

Os olhos de Gray brilharam de compreensão.

Outra pista, da última estrofe: "O Gêmeo espera por água". Vigor concordou com um aceno de cabeça.

- Todas as três estrofes apontam para um lugar: as Catacumbas de São Calisto.

Monk instalou-se de novo em sua poltrona.

- Pelo menos não é uma igreja desta vez. Eu estou cansado de tomar bala.

 

Vigor sentiu que eles estavam na pista certa.

Finalmente.

Ele guiou os outros através da Porta de São Sebastião, um dos portões mais admiráveis das muralhas da cidade. Ele também servia de entrada para as ravinas que circundavam a Via Ápia, uma parte preservada da famosa estrada romana antiga. Logo após os portões, contudo, havia uma série de oficinas mecânicas em ruínas.

Vigor tirou do pensamento a feiúra daqueles depósitos de ferro-velho, voltando a atenção para a frente. Numa bifurcação da estrada erguia-se uma igrejinha.

- A Capela de Domine Quo Vadis - disse ele.

A única pessoa que de fato o ouvia era Kat Bryant. Ela caminhava a passos largos ao lado dele. Kat e Gray pareciam ter-se desavindo. Os outros seguiam atrás. Era bom ter aquele momento com Kat. Já fazia três anos que eles tinham trabalhado juntos, reunindo provas contra um criminoso de guerra nazista que vivia na zona rural do estado de Nova York. O alvo da investigação vinha negociando com objetos de arte roubados em Bruxelas. Foi uma investigação longa e complicada, que exigiu subterfúgios de ambos. Vigor ficara impressionadíssimo com a capacidade da moça de assumir qualquer papel com a mesma facilidade com que trocava de sapatos.

Ele também sabia da dor pela qual ela passara recentemente. Embora ela fosse uma boa atriz, dissimulando bem seus sentimentos, Vigor passara bas­tante tempo servindo a seu rebanho como padre, confessor e conselheiro para reconhecer alguém que ainda sofria. Kat perdera uma pessoa muito querida e ainda não se recuperara.

Ele apontou para a igreja de pedra, sabendo que havia uma mensagem para Kat dentro daquelas paredes.

Esta capela foi construída no lugar onde São Pedro, fugindo à persegui­ção de Nero, teve uma visão de Jesus. Cristo seguia para Roma, enquanto Pedro fugia. Ele fez a famosa pergunta: Domine, quo vadis? "Senhor, aonde vais?" Cristo respondeu que estava indo para Roma para ser crucificado de novo. Pedro então voltou para encarar sua própria execução.

Histórias inverídicas - disse Kat sem malícia. - Ele deveria ter fugido.

Sempre pragmática, Kat. Mas você, entre todas as pessoas, deveria saber que às vezes a própria vida é menos importante do que a causa. Todos nós temos uma doença terminal. Nós não podemos escapar da morte. Mas, assim como as boas obras na nossa vida celebram o nosso tempo aqui, a nossa morte também pode fazê-lo. Oferecer a própria vida em sacrifício deveria ser honrado e lembrado.

Kat olhou para ele. Ela era perspicaz o suficiente para entender o rumo da conversa.

- O sacrifício é a última doação que nós, mortais, podemos fazer na vida. Nós não deveríamos desperdiçar uma doação tão generosa com consternação, mas com apreço respeitoso, até mesmo com alegria por uma vida vivida plena­mente até o fim.

Kat respirou profundamente. Eles cruzaram a rua diante da capelinha. Os olhos dela a examinaram, embora Vigor suspeitasse que ela olhasse atenta­mente para dentro.

- Pode haver lições até mesmo nas histórias inverídicas - encerrou Vigor, e guiou o grupo para a esquerda na bifurcação.

Ali a estrada transformava-se em pedras vulcânicas arredondadas. Embora as pedras não fossem as mesmas da estrada romana que outrora conduzia des­de os portões da cidade até a Grécia, tratava-se de uma aproximação romântica. O caminho foi-se expandindo devagar ao redor deles. A relva das encostas abria-se em pastagens, salpicadas de ovelhas ocasionais e abrigadas da luz por pinheiros-mansos.

Àquela hora, com a maioria das atrações turísticas fechada e o sol quase se pondo, a Via Ápia era só deles. Uma pessoa que fazia uma caminhada ou um ciclista ocasional faziam um aceno de cabeça para ele, notando seu colarinho. "Padre", murmuravam, e seguiam em frente, olhando de relance para trás, para o grupo de mochileiros cansados da estrada que ele guiava.

Vigor também notou algumas mulheres usando poucas roupas perambulando por alguns pontos à beira da estrada, junto com algumas figuras de aparência mais decente. Após o anoitecer, a Via Ápia tornava-se um abrigo para prostitu­tas e gente da mesma espécie, e com freqüência se mostrava perigosa para o turista comum. Ladrões e assaltantes ainda rondavam a antiga estrada, como faziam na Via Ápia original.

- Já estamos quase chegando - prometeu Vigor.

Ele seguiu através de uma área de vinhedos, videiras verdes presas a madei­ra e arame, que atravessavam as colinas de declive suave. Adiante surgiu a en­trada do pátio do destino deles: as Catacumbas de São Calisto.

- Comandante - perguntou Kat, ficando para trás -, nós não deveríamos pelo menos fazer uma exploração da área primeiro?

- Apenas mantenha os olhos abertos - respondeu ele. - Nada de mais atrasos. Vigor notou a firmeza na voz do homem. O comandante ouvia, mas parecia pouco disposto a ceder. Vigor não sabia se aquilo era bom ou ruim. Gray acenou para que eles seguissem em frente.

O cemitério subterrâneo havia fechado às cinco da tarde, mas Vigor havia telefonado para o zelador e providenciado aquela "excursão" especial. Um se­nhor baixo, de cabeleira branquíssima e macacão cinza, saiu de um vão de porta coberto. Mancou na direção deles usando um cajado de pastor como bengala. Vigor o conhecia bem. A família dele trabalhara como pastores da campagna ao redor por gerações. Um cachimbo estava firmemente preso entre seus dentes.

Monsenhor Verona - disse ele. - Come va?

Bene, grazie. E lei, Giuseppe?

Muito bem, padre. Grazie - Ele acenou na direção da pequena cabana que lhe servia de residência enquanto vigiava as catacumbas. - Eu tenho uma gar­rafa de grapa. Eu sei como o senhor gosta de um pouco das uvas destas colinas.

Noutra ocasião, Giuseppe. Está cada vez mais tarde e nós temos de cuidar do nosso assunto com muita urgência. Sinto muito.

O homem olhou para os outros como se eles fossem culpados da pressa, depois seus olhos pousaram em Rachel.

Não pode ser! Piccola Rachel... mas ela não é mais tão pequena.

Rachel sorriu, evidentemente encantada por ter sido lembrada. Ela não havia estado ali com Vigor desde os 9 anos de idade. Rachel rapidamente abraçou-o, beijando-lhe no rosto.

Ciao, Giuseppe.

Nós devemos erguer uma taça à piccola Rachel, não é?

Talvez quando terminarmos nosso trabalho lá embaixo - insistiu Vigor, sabendo que o homem, solitário em sua cabana, só queria um pouco de com­panhia.

Si... bene... - Ele apontou o cajado para a porta. - Está aberta. Eu vou fechá-la depois que vocês entrarem. Batam quando subirem, e eu ouvirei.

Vigor os conduziu à entrada das catacumbas. Ele puxou a porta, abrindo-a. Acenou para os outros do limiar, observando que Giuseppe deixara as lâmpa­das da gambiarra acesas. A escada descia adiante deles.

Quando Monk entrou com Rachel, ele voltou o olhar para o zelador.

- Você deveria apresentar esse cara à sua avó. Aposto que eles se dariam bem.

Rachel sorriu e entrou atrás do homem atarracado.

Vigor fechou a porta atrás de si e tomou a dianteira de novo, descendo a escada.

- Esta catacumba é uma das mais antigas de Roma. Em tempos passados, foi um cemitério cristão privado, mas expandiu-se quando alguns papas opta­ram por serem enterrados neste lugar. Ela agora abrange noventa acres e possui quatro níveis de profundidade.

Atrás de si, Vigor ouviu a porta ser trancada com um estalido. O ar tornava-se mais úmido à medida que eles desciam, penetrante devido ao cheiro de bar­ro e de água da chuva que se infiltrara. No fim da escada, eles chegaram a um vestíbulo com loculi abertos nas paredes, nichos horizontais para o sepulta-mento de corpos. Grafitos cobriam as paredes, mas não eram obra de vândalos modernos. Algumas das inscrições datavam do século XV: orações, lamentos, testemunhos.

- Até onde temos de penetrar? - perguntou Gray, caminhando ao lado de Vigor. Mal havia espaço para duas pessoas andarem lado a lado à medida que o caminho se estreitava a partir dali. O comandante olhou para os tetos baixos.

Ali dentro, mesmo aqueles que não sofriam de claustrofobia achavam enervantes aquelas necrópoles subterrâneas caindo aos pedaços. Em particular agora. Desertas e vazias.

- A Cripta de Lucina fica bem mais lá embaixo. Ela está localizada na área mais antiga da catacumba.

Galerias ramificavam-se a partir dali, mas Vigor conhecia o caminho e vi­rou à direita.

- Permaneçam próximos - advertiu ele. - É fácil perder-se aqui. O caminho estreitou-se ainda mais.

Gray virou-se.

Monk, fique de olho na nossa retaguarda. Dez passos. Permaneça à vista.

Eu vou-lhes dar cobertura - disse Monk, libertando sua espingarda.

À frente, abria-se uma câmara. Suas paredes estavam repletas de loculi e elaboradas arcsololia, túmulos em arco.

- A Cripta Papal - anunciou Vigor. - Dezesseis papas foram sepultados aqui, de Eutiquiano a Zefirino.

- De E a Z - murmurou Gray.

- Os corpos foram removidos - disse Vigor, penetrando cada vez mais fun­do, passando pela Cripta de Santa Cecília. - A partir de cerca do século V, os arredores de Roma foram saqueados por uma série de forças. Godos, vândalos, lombardos. Muitas das personagens mais importantes sepultadas aqui foram transferidas para igrejas e capelas no interior da cidade. Na verdade, as catacumbas foram tão esvaziadas e abandonadas que por volta do século XII estavam completamente esquecidas, e só no século XVI é que foram redescobertas.

Gray tossiu.

- Parece que a linha do tempo continua cruzando a si mesma. Vigor olhou para trás.

- Século XII - explicou Gray. - Também foi quando os ossos dos Reis Ma­gos foram levados da Itália para a Alemanha. Também foi, conforme o senhor mencionou, quando houve um ressurgimento da crença gnóstica, criando um cisma entre imperadores e o papado.

Vigor acenou lentamente com a cabeça, refletindo sobre aquele ponto de vista.

Foi uma época muito tumultuada, com o papado saindo de Roma no fim do século XIII. Os alquimistas podem ter procurado proteger o que haviam aprendido, impelidos a um ocultamento mais profundo à medida que deixa­vam para trás pistas no caso da sua extinção, migalhas de pão para outros cren­tes gnósticos seguirem.

Como essa seita da Corte do Dragão.

Eu não acho que eles imaginaram que um grupo tão perverso fosse escla­recido o bastante para buscar verdades mais elevadas. Um erro de cálculo la­mentável. De qualquer modo, eu acho que o senhor tem razão. O senhor pode ter identificado a data em que essas pistas foram deixadas. Eu diria que em algum ponto do século XIII, no auge do conflito. Naquela época, poucos sabiam a respeito das catacumbas. Que melhor lugar para ocultar as pistas de uma sociedade secreta?

Refletindo sobre isso, Vigor os conduziu através de uma série sucessiva de galerias, criptas e cubicula.

- Não é longe. Pouco depois das Capelas Sacramentais.

Ele indicou com o braço uma galeria de seis câmaras. Afrescos escamados e desbotados exibiam intrincadas cenas bíblicas intercaladas com representações do batismo e da celebração das refeições eucarísticas. Eram tesouros da arte cristã primitiva.

Depois de avançarem por mais algumas galerias, a meta deles surgiu adiante. Uma cripta modesta. O teto estava pintado com um típico motivo cristão pri­mitivo: o Bom Pastor, Cristo carregando um cordeiro nos ombros.

Deixando o teto de lado, Vigor apontou para duas paredes próximas.

- Eis o que viemos descobrir.

 

Gray aproximou-se da parede mais próxima. Um afresco com um peixe fora pintado contra um fundo verde. Acima dele, via-se um cesto de pães que quase dava a impressão de estar sendo carregado nas costas do peixe. Ele dirigiu-se à segunda parede. Aquele afresco parecia uma imagem especular do primeiro, com a diferença de que no cesto também havia uma garrafa de vinho.

Tudo isto simboliza a refeição eucarística - disse Vigor. - Peixe, pão e vinho. Também representa o milagre dos peixes, quando Cristo multiplicou um único cesto de peixes e pães para alimentar a multidão de seguidores que tinha ido ouvir o seu sermão.

De novo o simbolismo da multiplicação - disse Kat. - Como a geometria da Vesica Pisces.

Mas aonde nós vamos a partir daqui? - perguntou Monk. Ele estava de pé com a espingarda no ombro, olhando para o interior da cripta.

Siga o enigma - respondeu Gray. - A segunda estrofe diz: "Onde ele se afoga, ele flutua na escuridão e fita o rei perdido". Nós encontramos o lugar onde ele flutua na escuridão, portanto vamos seguir para onde ele fita.

Ele apontou na direção em que o primeiro peixe estava voltado.

Ela conduzia ainda mais para dentro das galerias.

Gray caminhou a passos largos naquela direção, esquadrinhando o espaço a seu redor. Não demorou muito para que encontrasse uma representação cla­ra dos reis. Ele parou diante de um afresco que ilustrava a adoração dos Reis Magos. Estava desbotado, mas os detalhes eram bastante claros. A Virgem Maria sentava-se num trono com o Cristo menino no colo. Curvadas diante dela es­tavam três figuras de túnica, oferecendo presentes.

Os Três Reis - disse Kat. - Os Reis Magos novamente.

Nós continuamos correndo atrás desses caras - respondeu Monk alguns passos abaixo, na passagem.

Rachel franziu o cenho diante da parede.

- Mas o que isto significa? Por que nos conduziu até aqui? O que a Corte do Dragão aprendeu?

Gray deixou todos os acontecimentos do dia anterior passarem aos poucos pela sua cabeça. Ele não lutou em busca de ordem, simplesmente deixou sua mente vagar. Associações se formaram, dissolveram-se, reconfiguraram-se. Lentamente ele começou a entender.

- A verdadeira pergunta é por que esses antigos alquimistas nos conduzi­ram até aqui? - disse Gray. - A esta representação específica dos Reis Magos, como Monk mencionou, em cada esquina da Itália a gente dá de cara com esses reis. Portanto, por que este afresco em particular?

Ninguém sabia a resposta.

Rachel propôs um possível caminho a seguir.

- A Corte do Dragão foi atrás dos ossos dos Reis Magos. Talvez nós precise­mos olhar para este caso desta perspectiva.

Gray assentiu com a cabeça. Ele deveria ter pensado nisso. Eles não precisa­vam reinventar a roda. A Corte do Dragão já havia solucionado o enigma. Tudo o que eles tinham a fazer era seguir as pistas. Ele refletiu sobre isso e encontrou uma possível resposta.

- Talvez o peixe esteja olhando na direção desses reis específicos porque eles estão enterrados. Num cemitério. Embaixo da terra, onde um peixe pode­ria asfixiar-se. A resposta à pista não são os Reis Magos vivos, e sim os Reis Magos mortos e enterrados, numa cripta outrora repleta de ossos.

Vigor emitiu um leve som de surpresa.

Quer dizer então que a Corte do Dragão estava atrás dos ossos - disse Rachel.

Eu acho que a Corte do Dragão já sabia que os ossos não eram ossos -disse Gray. - Fazia séculos que eles vinham farejando essa pista. Eles deviam saber. Vejam o que aconteceu na catedral. Eles usaram o pó de ouro branco de alguma forma para matar. Eles estavam muito bem-informados.

- E eles querem mais poder - disse Rachel. - A solução final dos Reis Magos. Os olhos de Vigor estreitaram-se em concentração.

- E se o senhor estiver certo, comandante, a respeito do significado dos ossos dos Reis Magos sendo levados da Itália para a Alemanha, talvez a trans­ferência não tenha sido saque, conforme a história atesta, talvez tenha sido planejada. Para salvaguardar o amálgama.

Gray fez um aceno de cabeça afirmativo.

- E a Corte do Dragão deixou-os ficar em Colônia... em segurança, à vista de todos. Sabendo que eles eram importantes, mas sem saber o que fazer com eles.

- Até agora - disse Monk, a alguns passos de distância.

Mas, afinal - prosseguiu Gray -, para o que todas estas pistas apontam? No momento, apenas para relíquias numa igreja. Elas não nos dizem o que fazer com elas, para que são usadas.

Estamos esquecendo uma coisa - disse Kat. Ela permanecera calada o tempo todo, concentrada no afresco. - A estrofe da passagem diz que o peixe "fita o rei perdido". Não "reis", no plural. Há três reis aqui. Eu acho que nós não estamos percebendo outra camada de significado ou simbolismo. - Ela virou-se para os outros. - A que "rei perdido" a pista está aludindo?

Gray esforçou-se para obter uma resposta. Havia enigmas atrás de enigmas. Vigor havia segurado o queixo com a mão, concentrando-se.

Tem um afresco numa catacumba próxima. A Catacumba de Domitilla. No afresco estão pintados não três, mas quatro Reis Magos. Como a Bíblia jamais foi específica acerca do número de Reis Magos, artistas cristãos primiti­vos variavam o número. O rei perdido poderia significar outro Rei Mago, o que está faltando aqui.

Um quarto Rei Mago? - perguntou Gray.

Uma figura representativa do conhecimento perdido dos alquimistas. - Vigor acenou afirmativamente com a cabeça, erguendo-a em seguida. - A men­sagem da segunda estrofe dá a entender que os ossos dos Reis Magos podem ser usados para se encontrar esse quarto Rei Mago. Seja lá quem for.

Rachel sacudiu a cabeça, chamando a atenção de Gray e Vigor.

Não se esqueçam de que essa pista está enterrada numa cripta. Eu aposto que não é o quarto Rei Mago que devemos achar, mas seu túmulo. Um conjun­to de ossos usado para achar outro. Possivelmente outro depósito de amálgama.

Ou algo ainda mais importante. Isso com certeza entusiasmaria a Corte do Dragão.

Mas como os ossos dos Reis Magos podem ajudar a encontrar esse túmulo? - perguntou Monk.

Gray voltou para a Cripta de Lucina.

- A resposta tem que estar na terceira estrofe.

 

Painter Crowe acordou com uma batida à porta. Ele havia adormecido em sua poltrona, inclinado para trás. Maldita ergonomia... Ele pigarreou, removendo o sono da garganta.

- Entre.

Logan Gregory entrou. Seus cabelos estavam molhados e ele usava uma camisa e um paletó limpos. Parecia que tinha acabado de chegar ao trabalho, e não que estava ali 24 horas por dia, sete dias por semana.

Logan deve ter notado a atenção dele e passou uma das mãos pela camisa engomada.

- Eu fui correr um pouco no ginásio. Mantenho outra muda de roupa no meu armário.

Pasmado, Painter não respondeu. Juventude. Ele não achava que fosse ca­paz de sair da cadeira, quanto mais correr alguns quilômetros. Mas, por outro lado, Logan era apenas cinco anos mais jovem do que ele. Painter sabia que, mais do que a idade, era o estresse que o prostrava.

- Senhor - continuou Logan -, eu recebi notícias do general Rende, nossa ligação com o Corpo de Carabinieri em Roma. O comandante Pierce e os ou­tros entraram em ação de novo.

Painter inclinou-se para a frente.

Outro ataque? Eles deveriam estar no Vaticano agora.

Não, senhor. Depois do telefonema, eles dispensaram a escolta dos Carabinieri e foram embora por sua própria conta. O general Rende queria saber o que foi retransmitido a eles. Sua agente de campo, a tenente Rachel Verona, informou-o de que o senhor havia passado algumas informações se­cretas. O general Rende não gostou de não ter sido informado.

E o que você disse a ele?

Logan ergueu ambas as sobrancelhas.

- Nada, senhor. Essa é a política oficial da Sigma, não é? Nós não sabemos de nada.

Painter sorriu. Às vezes era assim.

- E quanto ao comandante Pierce, senhor? O que o senhor pretende fazer em seguida? Deveríamos fazer um alerta?

Painter lembrou-se da admoestação de Sean Mcknight mais cedo. Confie nos seus agentes.

- Nós vamos aguardar o próximo telefonema dele. Não existem indícios de jogo sujo. Vamos dar-lhe espaço para jogar o seu próprio jogo.

Logan não pareceu satisfeito com essa resposta.

O que o senhor quer que eu faça então?

Eu sugiro, Logan, que você descanse um pouco. Eu imagino que, quando o comandante Pierce entrar em ação, nós vamos dormir muito pouco por aqui.

Sim, senhor - disse Logan, dirigindo-se para a porta.

Painter recostou-se em sua poltrona e cobriu os olhos com o braço. Droga, mas aquela poltrona era confortável. Ele deixou-se levar, porém alguma coisa o perturbava, impedindo-o de dormir. Alguma coisa o aborrecia. Alguma coisa que Gray dissera. A respeito de não confiar na Sigma. Um vazamento.

Podia ser?

Só havia uma pessoa além dele, até então, que conhecia todas as informa­ções secretas sobre aquela operação. Nem mesmo Sean McKnight estava a par de tudo. Ele lentamente inclinou-se para a frente, os olhos abertos.

Não podia ser.

 

De volta à Cripta de Lucina, Gray postou-se junto ao segundo afresco com o peixe. Eles precisavam solucionar aquele terceiro enigma. Monk fez uma boa pergunta:

- Por que diabos a Corte do Dragão simplesmente não mandou estas catacumbas pelos ares com suas bombas incendiárias? Por que deixá-las para que outros as encontrassem?

Rachel estava ao lado dele.

- Com a cópia falsificada do Livro dos Mortos ainda em poder da Corte, o que eles teriam que temer? Se Seichan não tivesse roubado o mapa do enigma, ninguém teria como procurar aqui.

Kat acrescentou:

- Talvez a Corte não estivesse tão segura da sua interpretação. Talvez eles quisessem que essa história registrada em pedra fosse mantida intacta até eles terem certeza de que tinham a tradução correta.

Gray levou isso em consideração, sentindo uma maior pressão do tempo. Ele voltou-se para o afresco.

- Então vamos ver o que eles encontraram. Na terceira estrofe, o peixe espe­ra por água. Como o primeiro peixe, eu acho que devíamos seguir na direção em que ele está olhando.

Ele fez um gesto indicando uma galeria diferente, que se ramificava a partir da cripta. O segundo peixe apontava naquela direção.

Mas Vigor continuou seu exame dos dois peixes, olhando para um e depois para o outro, imagens especulares.

Gêmeos - murmurou.

O que foi?

Vigor fez um aceno de mão entre os dois peixes.

Quem quer que tenha concebido este jogo de enigmas adorava encobri-lo com camadas de simbolismo. Escolhendo estes dois peixes. De aparência quase idêntica. A referência a um segundo peixe como "gêmeo" não pode ser insignificante.

Eu não vejo a relação - disse Gray.

- O senhor simplesmente não sabe grego, comandante.

Gray franziu o cenho.

De forma bastante surpreendente, Monk concordou, provando que sua he­rança grega ia além de uma queda por ouzo e por dançar mal.

- "Gêmeo" é traduzido por didymus.

- Muito bem - disse Vigor. - E, em hebraico, "gêmeo" é traduzido por Tomé. Como em Tomé Dídimo. Um dos 12 apóstolos.

Gray lembrou-se da discussão com o monsenhor no lago de Como.

- Tomé era o apóstolo em conflito com João.

- E o que batizou os Reis Magos - Vigor os fez lembrar-se. - Tomé repre­sentava a crença gnóstica. Eu acho que o uso da palavra gêmeo neste caso é um tributo ao Evangelho de Tomé. Ao reconhecerem Tomé, eu me pergunto se esses alquimistas não poderiam ter sido cristãos seguidores de Tomé... devotos obedientes a Roma, mas que ainda continuavam com suas práticas gnósticas em segredo. Sempre houve boatos dessa igreja dentro da Igreja. Uma Igreja de Tomé oculta dentro e junto da Igreja canónica. Esta pode ser a prova. Gray ouviu a crescente excitação na voz do outro.

- Talvez essa sociedade de alquimistas, cujas origens remontam a Moisés e ao Egito, tenha se fundido com a Igreja Católica. Continuou a avançar na his­tória usando a cruz e dobrando um joelho perante a Igreja, encontrando con­senso entre aqueles que consideravam sagrado o Evangelho de Tomé secreto.

- Escondidos à vista de todos - disse Monk. Vigor fez um sinal de cabeça afirmativo.

Gray acompanhou essa linha de raciocínio. Talvez valesse a pena segui-la, mas, por ora, eles tinham outro enigma por solucionar. Ele apontou para a galeria um pouco mais abaixo.

- Quem quer que tenha deixado estas pistas, também nos deixou um ter­ceiro desafio.

O Gêmeo espera por água...

Gray seguiu até a nova galeria. Ele procurava algum afresco com represen­tação de água. Passou por várias cenas bíblicas, mas nenhuma representando água. Havia uma pintura de uma família reunida em torno de uma mesa, mas parecia que vinho estava sendo servido. Depois havia um afresco com quatro homens erguendo os braços para o céu. Nenhum deles segurava um frasco com água.

Vigor chamou-o e ele virou-se.

Os outros estavam reunidos próximo a um nicho. Ele juntou-se a eles. Já havia examinado aquele afresco, que exibia um homem de túnica batendo numa pedra com um bastão. Nem uma gota d'água sequer.

- Esta é uma ilustração de Moisés no deserto - disse Vigor.

Gray ficou à espera de detalhes.

- De acordo com a Bíblia, ele bateu numa pedra no deserto e uma fonte de água fresca jorrou para saciar a sede dos israelitas em fuga.

- Como o nosso velho peixe lá atrás - disse Monk.

- Este deve ser o afresco indicado pela estrofe - disse Vigor. - Lembrem-se, Moisés sabia a respeito do maná e desses milagrosos pós brancos. Seria ade­quado reconhecê-lo.

-        Então que pista esta pintura caindo aos pedaços contém? - perguntou Gray.

"O Gêmeo espera por água, mas será queimado osso após osso sobre o altar" - citou Vigor. "Queimado osso após osso." - Pensem em ordem inversa. Como Rachel recomendou antes. O que a Corte do Dragão fez em Colônia? Os paroquianos foram queimados de algum modo, uma tempestade elétrica ma­ciça no cérebro. E ela envolvia ouro branco. E talvez o amálgama nos ossos dos Reis Magos.

É essa a mensagem? - perguntou Rachel, parecendo pouco à vontade. - Matar? Amaldiçoar um altar, como em Colônia, com sangue e assassinato?

Não - respondeu Gray. - A Corte do Dragão pôs fogo aos ossos e, ao que parece, não aprendeu nada, pois eles continuaram na mesma trilha depois. Talvez Colônia tenha sido apenas um teste ou um ensaio. Talvez a Corte do Dragão não tivesse certeza da sua interpretação do enigma, como o seu tio afirmou. De qualquer modo, é óbvio que eles estavam cientes de alguns dos poderes do pó branco. Com o dispositivo deles, eles provaram que podem ativar e mani­pular de forma imperfeita a energia nesses supercondutores de alta rotação. Eles o usaram para matar. Mas eu não acho que era isso que os alquimistas originalmente tencionavam.

Rachel ainda parecia inquieta.

A verdadeira resposta está aqui - concluiu Gray. - Se a Corte do Dragão a encontrou, nós também podemos encontrá-la.

Mas eles tiveram meses depois de roubarem o texto no Cairo - disse Monk. - E eles conhecem este assunto muito mais do que nós.

Todos concordaram com um sensato aceno de cabeça. Tendo dormido pouquíssimo, todos estavam com a adrenalina em estado crítico. Os enigmas estavam esgotando a pouca reserva mental de que ainda dispunham, deixando pairar sobre eles uma nuvem de derrota.

Recusando-se a fraquejar, Gray fechou os olhos, concentrando-se. Ele refle­tiu sobre tudo o que aprendera. O amálgama era composto de muitos metais diferentes do grupo da platina e sua fórmula exata era impossível de determi­nar, mesmo com os testes de laboratório atuais. O amálgama foi então molda­do em ossos e guardados numa catedral.

Por quê? Será que os alquimistas pertenciam mesmo a uma igreja dentro da Igreja? Foi assim que eles conseguiram esconder os ossos naqueles tempos tu­multuados, uma era de antípodas e discórdia?

Fosse qual fosse a história, Gray tinha certeza de que o dispositivo da Corte do Dragão de algum modo estava relacionado com o amálgama no estado m. Talvez a contaminação das hóstias fosse apenas uma forma de testar a amplitu­de e o alcance daquele poder. Mas qual era o principal uso disso? Um instru­mento, uma arma?

Gray ruminou o código indecifrável de substâncias químicas, um código oculto por séculos, deixado para trás como uma série de pistas para uma pos­sível fonte de poder antigo.

Um código indecifrável...

Quando estava prestes a desistir, ele obteve a resposta, súbita e aguda, uma dor atrás dos olhos. Não um código.

- É uma chave - disse ele em voz alta, sabendo que era verdade. Ele encarou os outros. - O amálgama é uma chave química indecifrável, impossível de du­plicar. Na sua composição química única deve estar a capacidade de descobrir a localização do túmulo do quarto Rei Mago.

Vigor começou a falar, mas Gray o deteve com a mão.

- A Corte do Dragão sabe como ativar esse poder, como girar essa chave. Mas onde está a fechadura? Não em Colônia. A Corte do Dragão fracassou lá. Mas eles devem ter um excelente segundo palpite. A resposta está aqui. Neste afresco.

Ele correu os olhos pelo grupo.

Nós temos de solucionar isto - disse ele, virando-se e apontando para o afresco. - Moisés está golpeando uma rocha. Os altares em geral são feitos de pedra. Isso tem algum significado? Será que devemos ir ao deserto do Sinai e procurar a rocha de Moisés?

Não - disse Vigor, saindo do nevoeiro da derrota. Ele estendeu a mão e tocou a rocha pintada. - Lembrem-se das camadas de simbolismo no enigma. Esta não é a rocha de Moisés. Pelo menos, não só dele. Na verdade, o afresco é intitulado "Moisés-Pedro Ferindo a Rocha".

Gray franziu o cenho.

Por que dois nomes? Moisés e Pedro?

Por todas as catacumbas, a imagem de São Pedro era com freqüência so­breposta aos atos de Moisés. Era uma forma de glorificar o apóstolo.

Rachel olhou mais de perto para o rosto pintado.

E se esta for a rocha de São Pedro...?

"Rocha" em grego é petros - disse Vigor. - Foi por isso que o apóstolo Simão Barjona adotou o nome Pedro, posteriormente São Pedro. A origem está nas palavras de Cristo: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja".

Gray tentou juntar tudo aquilo.

- O senhor está insinuando que o altar mencionado neste enigma é o altar no interior da Basílica de São Pedro?

Rachel voltou-se subitamente.

Não. Nós temos o simbolismo às avessas. Na estrofe, é usada a palavra altar, mas a pintura a substitui pela palavra rocha. Não é um altar o que estamos procurando, e sim uma rocha.

Excelente - disse Monk. - Isso de fato reduz os nossos parâmetros de investigação.

Reduz, sim - disse Rachel. - Meu tio citou a passagem bíblica mais im­portante que associa Pedro a uma pedra. Pedro seria a pedra sobre a qual a Igreja seria edificada. Lembrem-se de onde estamos agora. Numa cripta. - Ela bateu de leve na pedra do afresco. - Uma pedra nas entranhas da terra.

Rachel encarou-os todos, os olhos tão excitados que quase brilhavam na escuridão.

- Sobre que sítio foi construída a Basílica de São Pedro? Que pedra está enterrada sob os alicerces da igreja?

Gray respondeu, os olhos arregalando-se.

O túmulo de São Pedro.

A Pedra da Igreja - repetiu Vigor.

Gray percebeu a verdade. Os ossos eram a chave; o túmulo, a fechadura. Rachel acenou afirmativamente com a cabeça.

É para lá que a Corte do Dragão irá em seguida. Nós temos de entrar em contato com o cardeal Spera imediatamente.

Ah! não... - retesou-se Vigor.

Qual é o problema? - perguntou Gray.

Hoje à noite... ao anoitecer... - Vigor consultou o relógio, o rosto cinzento. Ele virou-se e dirigiu-se para fora. - Nós temos que nos apressar.

Gray e os outros seguiram-no.

- O que aconteceu?

- Um serviço em memória das vítimas da tragédia em Colônia. A missa está marcada para o pôr-do-sol. Milhares de pessoas estarão presentes, inclusi­ve o papa.

Gray subitamente se deu conta do que Vigor temia. Ele imaginou o mas­sacre na Catedral de Colônia. Todos os olhos estariam desviados dos Scavi, a necrópole embaixo da Basílica de São Pedro, onde o túmulo do apóstolo fora escavado.

A Pedra da Igreja.

Se a Corte do Dragão pusesse fogo aos ossos dos Reis Magos lá embaixo... Ele imaginou a multidão comprimida dentro da igreja e aglomerada do lado de fora, na praça.

Oh! Deus.

 

O dia de verão era longo.

A noite começava a cair sobre a Via Appia quando Gray saiu das catacumbas. Ele protegeu os olhos com uma das mãos. Os raios oblíquos do sol poente o ofuscavam por ter passado tanto tempo na escuridão.

O zelador, Giuseppe, manteve a porta aberta para o grupo sair, em seguida fechou-a atrás de si, trancando-a.

- Está tudo bem, monsenhor?

O velho deve ter notado a tensão neles quando saíram porta afora. Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.

- Eu só preciso dar um telefonema.

Gray passou para Vigor seu telefone por satélite. Era preciso alertar o Vaticano e dar o alarme. Gray sabia que o monsenhor era a melhor pessoa para ter acesso a alguém com autoridade lá.

A um passo de distância, Rachel já estava com seu telefone celular na mão e ligava para sua delegacia.

O ruído surdo de uma bala os deteve. Ela acertou o calçamento de sílex do pátio, faiscando intensamente na escuridão que descia aos poucos.

Gray reagiu de imediato, não inteiramente surpreso.

- Vamos! - gritou ele, apontando para a cabana do zelador, a qual flanqueava um lado do pátio. Giuseppe deixara a porta de sua casa aberta.

Eles correram em direção ao abrigo. Gray e Rachel ajudaram o velho zela­dor, cada um apoiando-o de um lado.

Antes que eles pudessem alcançar a cabana, a porta explodiu com um jorro de chamas, arremessando-os para trás. Gray caiu amontoado com Giuseppe e Rachel. A porta coberta, arrancada das dobradiças pela explosão, deslizou pe­las pedras do pavimento. Vidros estilhaçaram-se no pátio.

Gray dobrou um joelho, protegendo Rachel e o zelador. Kat protegeu Vigor da mesma forma. Gray havia sacado a pistola e a apontava, mas não havia alvo. Nenhuma figura de manto se aproximou correndo.

A paisagem ao redor, de vinhedos e pinheiros-mansos, estava impregnada de sombras e escuridão. O silêncio era absoluto.

- Monk - disse Gray.

Seu parceiro já sacara a espingarda de combate e perscrutava através do dispositivo de visão noturna fixado no cano da arma.

- Eu não estou vendo nada - disse Monk.

Um telefone tocou. Todos os olhares deslocaram-se para Vigor. Ele estava agachado com o telefone de Gray, que voltou a tocar em suas mãos. Gray fez um sinal para ele, a fim de que atendesse. Vigor obedeceu, levando o aparelho ao ouvido.

- Pronto - disse ele, ouvindo por um momento; em seguida, abaixou-se e passou o telefone para Gray - É para o senhor.

Gray sabia que eles haviam sido encurralados de propósito. Não foram dis­parados outros tiros contra eles. Por quê? Ele pegou o aparelho. Antes que pudesse falar, uma voz o cumprimentou.

Alô, comandante Pierce.

Seichan.

- Estou vendo que o comando da Sigma lhe transmitiu a minha mensagem. De algum modo, Seichan descobrira os rastros deles, seguira-os e preparara

a emboscada. E ele sabia o motivo.

- O enigma...

- Pela maneira frenética com que você e os seus amigos saíram da catacumba, só posso supor que você tenha solucionado o mistério.

Gray permaneceu em silêncio.

- Raoul também não quis partilhar seu conhecimento - disse Seichan cal­mamente. - Parece que a Corte do Dragão quer manter a Guilda de fora, ape­nas jogando defensivamente. Isso não basta. Portanto, se você for bonzinho e partilhar o que aprendeu, eu deixarei todos vocês vivos.

Gray cobriu o fone.

- Monk?

- Nada ainda, comandante - sussurrou ele.

Seichan posicionara-se a grande distância, de onde tinha uma visão nítida do pátio. Os vinhedos, as árvores e as encostas sombreadas escondiam-na bem. Ela devia ter-se esgueirado até ali enquanto eles estavam nas catacumbas e pre­parado a cabana com uma carga explosiva, obrigando-os a ficar expostos.

Eles estavam à mercê dela.

- Pela sua urgência - disse Seichan -, o tempo deve ser um fator importan­te. E eu posso esperar a noite inteira, alvejando um de cada vez até você falar. - Para enfatizar isso, uma bala rachou uma pedra próxima aos pés dele, ferindo-o com os estilhaços. - Portanto, seja um bom menino.

Monk sussurrou ao seu lado.

- Ela deve estar usando um dispositivo de supressão de descarga no rifle. Eu nem ao menos avistei uma luz bruxuleante lá fora.

Encurralado, não lhe restava alternativa senão negociar.

O que você quer saber? - perguntou ele, procurando ganhar tempo.

A Corte do Dragão está se dirigindo a um alvo hoje à noite. E eu creio que você descobriu onde é. Diga-me e todos poderão ir embora.

Como eu posso saber que você vai manter sua palavra?

Oh, você não tem como saber. Você também não tem muita escolha. Eu pensei que isso fosse óbvio, Gray. Posso chamá-lo de Gray? - prosseguiu ela, sem rodeios. - Enquanto eu achar vocês úteis, eu os manterei por perto, mas é claro que eu não preciso de todos vocês por perto. Eu farei seus companheiros servirem de exemplo se for preciso.

Gray não tinha escolha.

Está bem. Sim, nós solucionamos o maldito enigma.

Onde a Corte do Dragão vai atacar?

Numa igreja - blefou ele. - Perto do Coliseu tem...

Um assobio passou em alta velocidade próximo à sua orelha esquerda ao mesmo tempo em que o zelador emitia um grito de espanto. Gray virou-se e viu o velho segurando o ombro. O sangue esvaía-se por entre seus dedos quando ele caiu sentado nas pedras. Rachel foi imediatamente em seu socorro.

- Monk, ajude-os - disse Gray, praguejando em silêncio.

Seu colega de equipe tinha um estojo de primeiros socorros e o conheci­mento necessário. No entanto, Monk hesitou, a espingarda já pronta, relutante em desistir de sua busca.

Gray acenou para ele de uma forma mais enérgica. Seichan não cometeria o erro de expor-se. Monk baixou a arma e foi ajudar o zelador.

- Você vai receber um passe livre - disse Seichan em seu ouvido. - Outra mentira vai lhe custar mais do que um pouco de sangue.

Os dedos de Gray apertaram com força o telefone.

- Eu disponho das minhas próprias informações secretas - continuou a mulher. - Portanto, eu saberei se a sua resposta faz sentido ou não.

Gray procurou alguma forma de despistá-la, mas os gemidos do zelador tornavam difícil concentrar-se numa estratégia. E ele não tinha tempo... nem escolha. Tinha de dizer a verdade a ela. Ela o havia mantido no jogo até então, e agora ele tinha de retribuir o favor. Quer ele gostasse, quer não, ele e a Guilda estavam no mesmo barco. Isso teria de ser resolvido noutra ocasião. E, para que isso acontecesse, eles tinham de viver.

- Se a sua agenda estiver certa - disse Gray -, a Corte do Dragão vai atacar o Vaticano hoje à noite.

- Onde?

Embaixo da basílica. No túmulo de São Pedro. - Gray forneceu-lhe um resumo da solução do enigma como prova da verdade.

Excelente trabalho - disse ela. - Eu sabia que havia um motivo para mantê-los por perto. Agora eu gostaria que todos vocês tivessem a bondade de se li­vrarem dos seus telefones celulares. Joguem-nos na cabana em chamas. E nada de gracinhas, comandante Gray. Não pense que eu não sei exatamente quantos telefones celulares você e sua equipe têm.

Gray obedeceu. Kat recolheu todos os telefones celulares e em seguida exibiu cada um deles, à medida que os jogava pela porta no incêndio que aumentava. Exceto o telefone encostado no ouvido de Gray.

- Arrivederci por enquanto, comandante Gray.

O telefone subitamente explodiu junto ao ouvido dele, arrancado violenta­mente de seus dedos, alvejado por um tiro disparado de longe. Seu ouvido zu­niu. O sangue escorreu pelo seu pescoço.

Gray ficou tenso, à espera de outro tiro de despedida. Em vez disso, ouviu um motor ser ligado com um ronco gutural, que em seguida se reduziu a um barulho surdo e contínuo. Uma motocicleta. Ela se afastou, permanecendo abaixo da linha das colinas. A Dama do Dragão estava indo embora com a informação de que necessitava.

Gray virou-se.

Monk havia cnlaixado o ombro do zelador.

- Só um ferimento de raspão. Por sorte.

Mas Gray sabia que a sorte não tinha nada a ver com aquilo. A mulher poderia ter metido uma bala no meio dos olhos de qualquer um deles.

- Como está o seu ouvido? - perguntou Monk.

Irritado, Gray sacudiu a cabeça.

Monk aproximou-se mesmo assim. Estendeu a mão, sem ser particular­mente delicado, e examinou o ferimento na orelha dele.

- Apenas um rasgão na pele. Fique quieto.

Ele esfregou de leve a ferida, a fim de limpá-la, e em seguida borrifou nela um spray contido num pequeno frasco.

Ardeu pra caralho.

- Atadura líquida - explicou Monk. - Ela seca em segundos. Seca ainda mais rápido se eu a soprar. Mas eu não quero que você fique excitado demais.

Atrás deles, Rachel e Vigor ajudaram o zelador a levantar-se. Kat recuperou o cajado do velho. Os olhos dele continuavam fixos em sua cabana. As chamas agora lambiam através das janelas estilhaçadas.

Vigor pôs uma das mãos no ombro do homem.

-        Mi dispiace... - desculpou-se ele.

O homem deu de ombros, a voz surpreendentemente firme.

Eu ainda tenho as minhas ovelhas. Casas podem ser reconstruídas.

Nós precisamos encontrar um telefone - disse Rachel suavemente a Gray. - O general Rende e o Vaticano têm de ser alertados.

Gray sabia que cortar as linhas de comunicação deles havia sido apenas uma tática para retardá-los, para dar à Corte do Dragão, e portanto à Guilda, um pouco mais de tempo. Ele olhou de relance para o céu ocidental.

O sol já havia se posto. Apenas um brilho rubro assinalava sua passagem.

Com certeza, a Corte do Dragão já estava a caminho.

Gray falou com o zelador.

- Giuseppe, você tem um automóvel?

O velho acenou lenta e afirmativamente com a cabeça.

- Ali atrás.

Ele seguiu na frente. Atrás da cabana em chamas, e separada dela, havia uma garagem sem porta, coberta de telhas de ardósia, mais um barracão.

Através da abertura, uma forma enchia o espaço, coberta por uma lona. Giuseppe agitou o cajado.

- As chaves estão dentro do carro. Eu abasteci o tanque na semana passada.

Monk e Kat foram na frente a fim de remover a coberta do carro. Eles puxa­ram juntos a lona para o lado, revelando um Maserati Sebring 66 clássico, preto como obsidiana. Ele fez Gray lembrar-se dos primeiros fastbacks do Ford Mustang. Capô longo, robusto, pneus de tala larga, criado para correr.

Vigor olhou de relance para Giuseppe. Ele deu de ombros.

- O carro da minha tia... com pouquíssimo uso.

Rachel caminhou na direção dele deslumbrada.

Eles embarcaram rapidamente. Giuseppe concordou em esperar o corpo de bombeiros, continuando com seu cargo de zelador das catacumbas.

Rachel sentou-se ao volante. Ela conhecia melhor as ruas de Roma. Mas nem todos ficaram contentes com a escolha da motorista.

Monk - disse Rachel enquanto girava a chave na ignição e o motor rugia.

O quê?

Talvez seja melhor você fechar os olhos.

 

Após uma curta parada próximo a uma série de telefones públicos, Rachel afastou-se do meio-fio. Ela entrou no trânsito a grande velocidade, recebendo uma buzinada de um motorista zangado. Qual era o problema dele? Entre o car­ro dela e o Fiat na sua traseira, havia um palmo de distância. Espaço de sobra...

Os faróis do Maserati furavam a escuridão à frente. A noite se fechara. Uma linha de luzes de freio serpenteava em direção ao centro da cidade. Ela corria ao redor e entre os outros carros, meros obstáculos, e às vezes invadia a pista de contramão. Era uma pena perder os trechos vazios no outro lado.

Um gemido ecoou do banco traseiro.

Ela pisou mais fundo no acelerador.

Ninguém emitiu uma queixa de verdade.

Quando eles pararam para telefonar, Rachel tentou contatar o general Ren­de, enquanto seu tio telefonava para o cardeal Spera. Nenhum dos dois teve êxito. Ambos os homens estavam no serviço em memória das vítimas da tragé­dia, que já estava sendo celebrado. O general Rende supervisionava pessoal­mente a força dos Carabinieri que montava guarda na Praça de São Pedro e o cardeal Spera participava da missa. Foram deixadas mensagens e o alarme fora dado. Mas teria sido a tempo?

Todos estavam na missa, a apenas alguns passos de onde a Corte do Dragão atacaria. As multidões dariam um disfarce perfeito.

- Ainda falta muito para chegarmos? - perguntou Gray do banco do carona.

Ele estava com a mochila aberta no colo e trabalhava rapidamente. Muito concentrada nas ruas por onde dirigia, ela não tinha tempo de ver o que ele estava fazendo.

Rachel passou a toda a velocidade pelo Mercado de Trajano, o equivalente a um shopping center na Roma antiga. O edifício semicircular caindo aos peda­ços ficava na Colina do Quirinal e era um bom ponto de referência.

- Pouco mais de três quilômetros - respondeu ela.

- Com as multidões presentes ao serviço, jamais chegaremos às entradas da frente - advertiu Vigor do banco traseiro, inclinando-se para a frente. - Nós deveríamos tentar a entrada da estrada de ferro no Vaticano. Siga para a Via Aurélia, ao longo da muralha sul. Nós podemos cruzar o terreno por trás da basílica. Pegue a entrada dos fundos.

Rachel concordou com um aceno de cabeça. O tráfego já congestionava à medida que o fluxo de veículos se afunilava em direção à ponte sobre o rio Tibre.

Conte-me sobre as escavações sob a basílica - disse Gray. - Existem ou­tras entradas?

Não - respondeu Vigor. - A região dos Scavi é independente. Apenas sob a Basílica de São Pedro situam-se as Grutas Sagradas, cujo acesso se dá pela basílica. Muitas das criptas e dos túmulos dos papas mais famosos estão ali. Mas, em 1939, operários sampietrini que cavavam um túmulo para o papa Pio XI descobriram outra camada sob as Grutas, uma necrópole imensa com mausoléus antigos que remontavam ao século I. Ela foi denominada simples­mente Scavi, ou Escavações.

Qual é a extensão da área? Qual é a configuração do terreno?

O senhor alguma vez já esteve na cidade subterrânea em Seattle? - per­guntou Vigor.

Gray olhou por cima do ombro para o monsenhor.

- Uma ocasião eu participei de uma conferência lá - explicou Vigor. - Em­baixo da moderna Seattle está o seu passado, uma cidade-fantasma do Oeste Selvagem, onde se podem ver lojas intactas, postes de iluminação pública, pas­seios de madeira. A necrópole é como essa cidade, um antigo cemitério roma­no enterrado sob as Grutas. Escavada por arqueólogos, é um labirinto de túmulos, santuários e ruas de pedra.

Rachel afinal chegou à ponte e abriu caminho à força para o outro lado do rio Tibre. Uma vez do outro lado, ela saiu do fluxo principal de tráfego, fez o contorno e afastou-se da Praça de São Pedro, seguindo para o sul.

Depois de algumas curvas serpenteantes, ela se viu dirigindo ao lado das Muralhas Leoninas do Vaticano. Era escuro ali, com poucos postes de luz.

- É um pouco mais à frente - disse Vigor, apontando um braço.

A estrada de ferro alcançava a rua através de uma ponte de pedra. Era ali que a linha férrea do Vaticano saía da Santa Sé e se juntava ao sistema ferroviá­rio de Roma. Há anos os papas viajavam de trem, partindo da estação do próprio Vaticano, no interior das muralhas do Estado Pontifício.

- Pegue aquela curva antes da ponte - disse Vigor.

Ela quase não a viu na escuridão. Rachel deu uma guinada no volante, saiu derrapando da avenida principal e entrou numa rua secundária coberta com cascalho que subia num aclive cada vez mais íngreme. Os pneus deixavam uma trilha de cascalho à medida que ela abria caminho à força até o alto. A estrada terminava na linha férrea.

- Por ali! - Vigor apontou para a esquerda.

Não havia nenhuma rua, apenas um gramado estreito, ervas daninhas e pedras grossas paralelas aos trilhos da ferrovia. Rachel deu uma guinada no volante, saiu aos solavancos da rua secundária e seguiu ao lado dos trilhos.

Ela mudou de marcha e continuou aos solavancos em direção à abertura em arco na Muralha Leonina. Os faróis eram sacudidos para cima e para baixo. Chegando à muralha, ela arremessou o Maserati pela abertura, cruzando o es­paço entre a muralha e os trilhos.

Adiante, os faróis projetaram-se na lateral de um furgão azul-escuro que bloqueava o caminho. Dois soldados da Guarda Suíça, de uniforme azul-escuro, flanqueavam o furgão. Seus rifles apontavam para o invasor.

Rachel freou, o braço já fora da janela, agitando sua identificação dos Carabinieri, e gritou:

- Tenente Rachel Verona! Com o monsenhor Verona! Trata-se de uma emergência!

Os guardas acenaram para que eles avançassem, mas um deles manteve o rifle no ombro, apontado para o rosto de Rachel.

Seu tio rapidamente mostrou seus próprios documentos do Vaticano.

- Nós temos de falar com o cardeal Spera.

A luz de um holofote varreu o carro, passando pelos outros ocupantes. Por sorte, todas as armas deles estavam fora da visão direta. Não era hora para perguntas.

- Eu me responsabilizo por eles - disse Vigor asperamente. - Como o car­deal Spera também se responsabilizará.

O furgão saiu do caminho, desimpedindo o acesso ao território do Vaticano.

Vigor ainda pôs a cabeça fora da janela.

- Vocês receberam a notícia de um possível ataque?

Os olhos do guarda arregalaram-se. Ele sacudiu a cabeça.

- Não, monsenhor.

Rachel olhou para Gray. Oh! não... Como eles haviam receado, com toda a confusão em torno do serviço memorial, as notícias estavam chegando muito devagar às cadeias de comando. A Igreja não era conhecida por sua pronta reação... a mudança ou emergência.

- Não deixe mais ninguém entrar por aqui - ordenou Vigor. - Tranque esta entrada.

O guarda reagiu ao comando na voz do monsenhor e acenou afirmativa­mente com a cabeça.

Vigor voltou a acomodar-se no carro e apontou.

- Pegue a primeira rua depois da estação.

Não era necessário dizer a Rachel que se apressasse. Ela varou o pequeno estacionamento em frente à graciosa estação de dois pavimentos e entrou na primeira rua à direita. Passou em frente ao Studio del Mosaico, o único estabe­lecimento industrial do Vaticano, depois cortou por entre o Palácio do Tribu­nal e o Palazzo San Carlo. Ali os edifícios iam ficando mais densos à medida que a cúpula da Basílica de São Pedro avultava diante deles.

- Estacione perto da Casa Santa Marta - ordenou seu tio.

Rachel encostou o carro no meio-fio. A Sacristia de São Pedro erguia-se à sua esquerda, ligada à gigantesca basílica. A casa pontifícia ficava à sua direita. Uma passagem coberta ligava a sacristia à casa. Rachel desligou o motor. Eles teriam de continuar a pé a partir dali.

O destino deles - a entrada dos Scavi - ficava do outro lado da sacristia.

Quando desceram do carro, um canto abafado chegou até eles. O Coro Pontifício cantando a "Ave-Maria". A missa já estava sendo celebrada.

- Sigam-me - disse o tio Vigor.

Ele seguiu na frente através da passagem em arco até o pátio aberto no ou­tro lado. O terreno estava estranhamente deserto. Toda a atenção e foco do Vaticano havia-se voltado para dentro do próprio Vaticano, para a basílica, para o papa. Rachel já testemunhara aquilo antes. Serviços importantes, como aquele memorial especial, podiam esvaziar toda a cidade-estado, deixando poucas pessoas perambulando de um lado para outro.

No outro lado da sacristia, um som baixo juntou-se ao canto do coro. Vinha de um pouco mais à frente, através do Arco dos Sinos, que conduzia à Praça de São Pedro. Era o murmúrio de milhares de vozes, erguendo-se da multidão reunida na praça. Através do estreito portão do arco, Rachel teve um vislumbre de velas brilhando em meio à aglomeração escura.

Por aqui - disse Vigor, pegando um grande molho de chaves. Ele os con­duziu a uma porta discreta na extremidade do minúsculo pátio. Aço maciço. - Este caminho leva até os Scavi.

Nenhum guarda - observou Gray.

A única segurança eram dois soldados da Guarda Suíça postados junto ao Arco dos Sinos. Estavam armados com rifles enquanto observavam a multi­dão. Nem sequer olharam para trás, para os recém-chegados.

Pelo menos ela está trancada - disse Vigor. - Talvez nós os tenhamos enganado afinal.

Não podemos contar com isso - advertiu Gray. - Nós sabemos que eles têm contatos dentro do Vaticano. Talvez tenham chaves.

- Apenas algumas pessoas têm estas chaves. Como diretor do Instituto Pontifício de Arqueologia, eu tenho um molho. - Ele virou-se para Rachel e estendeu duas outras chaves. - Estas abrem a porta de baixo... e o túmulo de São Pedro.

Rachel recusou-se a pegá-las.

- O quê...?

- Você conhece a configuração do terreno dos Scavi melhor do que ninguém. Eu preciso encontrar o cardeal Spera. O papa tem que ser posto em segurança e a basílica tem que ser esvaziada sem que haja pânico. - Ele tocou seu colarinho clerical. - Nenhuma outra pessoa consegue chegar lá rápido o bastante.

Rachel concordou e pegou as chaves. Era necessário alguém da importân­cia de seu tio para rapidamente obter uma audiência com o cardeal, sobretudo durante uma missa tão importante. Provavelmente, era por isso que o alarme ainda não fora dado. Barreiras e mais barreiras de procedimentos. Até mesmo o general Rende não tinha jurisdição em solo vaticano.

Vigor fitou Gray intensamente antes de afastar-se. Rachel interpretou o olhar do tio. Cuide da minha sobrinha.

Rachel fechou os dedos em torno das chaves. Pelo menos, seu tio não estava tentando mandá-la embora. Ele reconheceu o perigo. Milhares de vidas esta­vam em jogo.

Seu tio virou-se e dirigiu-se à porta principal da sacristia. Era o caminho mais rápido para se chegar ao coração da basílica.

Gray virou-se para o grupo e mandou todos ajustarem seus rádios, assegu­rou um extra para Rachel, prendeu ele mesmo o microfone à garganta dela e mostrou-lhe como se podia ouvir um mero sussurro. Subvocalização foi a pala­vra que ele usou. Era extraordinário, tão silencioso e, no entanto, perfeitamen­te compreensível.

Ela praticou quando Monk abriu a porta com um ruído. O caminho até o porão estava escuro.

- Tem um interruptor lá dentro - sussurrou ela, surpresa com a altura do audível fonocaptor no microfone.

- Nós vamos no escuro - disse Gray.

Monk e Kat assentiram com a cabeça. Eles protegeram os olhos com óculos especiais. Gray estendeu um par para Rachel. Visão noturna. Ela estava bastante familiarizada com eles devido ao treinamento militar. Ela os pôs, e o mundo resplandeceu em matizes de verde e prata.

Gray foi na frente; ela seguiu-o com Kat. Monk fechou a porta silenciosa­mente atrás de si. O caminho ficou escuro, mesmo com os dispositivos de visão noturna. A visão noturna requeria um pouco de luz. Gray acendeu uma lanter­na portátil, que brilhou intensamente na escuridão, e a prendeu abaixo de sua pistola.

Rachel ergueu seus óculos. O caminho adiante tornou-se de novo escuro como breu. A lanterna de Gray devia estar emitindo luz ultravioleta, visível apenas através dos dispositivos de visão noturna.

Ela tornou a pôr os óculos.

A luz sobrenatural iluminou uma ante-sala naquele nível. Algumas exposi­ções e maquetes espalhavam-se pelo espaço. Uma era uma maquete da primei­ra igreja de Constantino, construída naquele local em 324 a.C. A outra era uma maquete de uma edícula, um santuário para sepultamentos com a forma de um pequenino templo de dois andares. Foi aquele templo que assinalou o túmulo de São Pedro. De acordo com os historiadores, Constantino havia construído um cubo de mármore e pórfiro, uma pedra rara importada do Egito. Ele encer­rou no túmulo o santuário em forma de edícula e construiu sua igreja original em torno dele.

Pouco depois do início da escavação da necrópole, o cubo original de Constantino foi redescoberto e posicionado diretamente sob o principal altar papal da Basílica de São Pedro. Restou uma parede do templo original, rabiscada com grafitos cristãos, incluindo as letras gregas que formavam as palavras Petros eni, ou "Pedro está aqui dentro".

E, de fato, numa cavidade naquela parede grafitada, foram encontrados os­sos e vestimentas que condiziam com um homem da estatura e da idade de São Pedro. Agora eles estavam lacrados em caixas de plástico à prova de balas, fei­tas, por mais estranho que pareça, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos e guardadas de novo em segurança na cavidade na parede.

Aquela era a meta deles.

- Por aqui - sussurrou Rachel, apontando para uma escada íngreme em espiral que conduzia à parte de baixo. Gray tomou a dianteira.

Dando voltas e mais voltas, eles passaram pelo porão e desceram ainda mais.

Um calafrio penetrou através das roupas de Rachel, e ela sentiu-se quase nua. Os óculos de proteção estreitavam sua visão, causando uma sensação de claustrofobia.

No fim da escada, uma pequena porta bloqueava o caminho. Rachel espremeu-se junto a Gray, os corpos se tocando, e percebeu seu odor almiscarado antes de pegar a chave e destrancar a porta.

Ele segurou a mão dela, a fim de evitar que ela abrisse a porta, e com suavi­dade, porém com firmeza, empurrou-a para trás de si. Ele então puxou a porta, abrindo-a apenas alguns centímetros, e olhou pela fresta. Rachel e os outros aguardavam.

Tudo bem - disse ele. - Lá dentro está escuro como um túmulo.

Muito divertido - resmungou Monk. Gray abriu a porta.

Rachel preparou-se para uma explosão, um tiroteio ou algum tipo de ata­que, mas encontrou apenas silêncio.

Quando todos entraram, Gray virou-se para o grupo.

Eu acho que o monsenhor estava certo. Pela primeira vez, nós levamos vantagem sobre a Corte do Dragão. Já era hora de prepararmos uma emboscada.

Qual é o plano? - perguntou Monk.

Nada de riscos. Nós preparamos a armadilha e caímos fora daqui - Gray apontou para a porta. - Monk, fique de guarda junto à porta. É a única entrada ou saída. Proteja a nossa saída e a nossa retaguarda.

Isso não é problema.

Gray passou para Kat algo parecido com duas pequenas embalagens de ovos.

- Granadas sônicas e bombas luminosas. Espero que eles cheguem no escu­ro como nós, com as orelhas em pé. Vejamos se conseguimos cegá-los e ensurdecê-los. Distribua estas bombas enquanto vamos até o túmulo. Cober­tura total.

Kat fez um aceno de cabeça positivo.

Ele virou-se em seguida para Rachel.

- Me mostre o túmulo de São Pedro.

Ela entrou na necrópole escura, caminhando ao longo de uma antiga rua romana. Criptas e mausoléus de famílias, cada um com seis metros quadrados, ladeavam o caminho. As paredes eram revestidas de tijolos ultrafinos, um mate­rial de construção comum no século I. Afrescos e mosaicos decoravam muitos dos túmulos, mas esses detalhes eram obscuros sob a visão noturna. Restavam algumas estátuas, que pareciam mover-se na iluminação lúgubre. Os mortos voltando à vida.

Rachel mapeou o caminho até o centro da necróple. Uma passagem de metal conduzia a uma plataforma e a uma janela retangular. Ela apontou através dela.

- O túmulo de São Pedro.

 

Gray apontou sua pistola e iluminou o túmulo com sua lanterna de luz ultravioleta.

Três metros além da janela, uma parede de tijolos erguia-se ao lado de um cubo de mármore maciço. Havia uma abertura perto da base da parede. Abaixando-se, ele focalizou a luz da lanterna. Dentro da abertura, pôde ver uma caixa transparente com um montículo de material parecido com argila.

Ossos.

De São Pedro.

Gray sentiu os pêlos dos braços arrepiarem-se um pouco, um tremor de espanto e medo. Ele se sentia como um arqueólogo, sondando uma caverna escura, em algum continente perdido, e não a alguns pavimentos abaixo do coração da Igreja Católica Romana. Por outro lado, talvez ali fosse o verdadeiro coração dela.

- Comandante? - perguntou Kat. Ela juntou-se a eles de novo, depois de ter ficado um pouco para trás para plantar as bombas.

Gray empertigou-se.

- Podemos chegar mais perto? - ele indagou a Rachel.

Ela pegou a segunda chave que seu tio lhe dera e destrancou um portão que levava ao santuário.

- Nós temos de ser rápidos - disse Gray, sentindo que o tempo estava se esgotando.

Por outro lado, talvez não. Talvez a Corte do Dragão só atacasse depois da meia-noite, como em Colônia. Mas ele não queria correr riscos.

Ele tirou da mochila o equipamento que estivera calibrando a caminho. Perscrutou o espaço e encontrou um ponto imperceptível. Fixou a minúscula câmera de vídeo numa fenda de um mausoléu próximo e posicionou-a em direção ao túmulo de São Pedro. Pegou uma segunda câmera e virou-a na dire­ção oposta, certificando-se de que estava voltada para fora da janela, a fim de registrar a aproximação.

- O que você está fazendo? - perguntou Rachel.

Ao terminar de instalar as câmeras, Gray acenou para que eles se afastassem.

- Eu não quero ativar a armadilha cedo demais. Eu quero que eles se sintam à vontade aqui, que montem o seu dispositivo. Então nós atacaremos. Eu não quero que eles tenham espaço para detonar os ossos dos Reis Magos ou o dis­positivo deles.

Assim que eles saíram, Rachel tornou a trancar o portão.

Monk - disse Gray pelo rádio -, como estão as coisas por aí?

Tudo tranqüilo.

Ótimo.

Gray dirigiu-se a um mausoléu próximo, caindo aos pedaços, um mausoléu aberto na frente. Já fazia muito tempo que os ossos haviam sido removidos. Ele tirou o laptop da mochila e escondeu-o dentro do mausoléu, conectando um transmissor intensificador portátil à entrada USB dele. Uma luz verde acendeu-se, indicando que a conexão fora bem-sucedida. Ele moveu de leve uma chave, e o aparelho escureceu. Nenhuma luz brilhava no computador ou no transmissor. Ótimo.

Gray empertigou-se e explicou enquanto eles se dirigiam à saída.

- As câmeras de vídeo não são bastante potentes para transmitir muito longe. O laptop vai captar o sinal e intensificá-lo. O alcance dele será suficiente para chegar à superfície. Nós vamos monitorá-lo noutro laptop. Uma vez que a Cor­te esteja aqui embaixo, encurralada, nós os atordoamos com as bombas sônicas e luminosas, depois corremos para baixo com uma guarnição inteira de solda­dos da Guarda Suíça.

Kat acenou positivamente com a cabeça e olhou para ele.

- Se nós tivéssemos sido cautelosos demais nas catacumbas, demorado de­mais, não teríamos tido esta oportunidade.

Gray fez que sim com a cabeça.

Finalmente a sorte estava do lado deles. Um pouco de ousadia tinha...

As explosões interromperam seu pensamento. Não eram altas, antes mais abafadas, soando como bombas de profundidade explodindo embaixo d'água. Ecoaram por toda a necrópole, acompanhadas por um ruído mais alto de pedra espatifando-se.

Gray agachou-se enquanto pequenos buracos vazavam o teto acima. Pedra e terra explodiram para baixo, chocando-se contra os mausoléus e as criptas abaixo. Antes mesmo que os detritos tivessem assentado, cordas serpentearam através das aberturas fumegantes, seguidas de um homem atrás do outro.

Uma equipe de assalto completa.

Eles entraram na necrópole e desapareceram.

Gray imediatamente reconheceu o que estava acontecendo. A Corte do Dragão estava entrando pelo piso acima, pelas Grutas Sagradas. O acesso àquele nível era pelo interior da basílica. A Corte do Dragão devia ter vindo para o serviço memorial — depois, por intermédio de seu contato ali, os homens esgueiraram-se até as criptas dos papas nas Grutas Sagradas. O equipamento deles provavelmente fora levado clandestinamente para lá no período de alguns dias e ocultado entre os túmulos sombrios das Grutas. Então, aproveitando o serviço memorial como camuflagem, eles recuperaram seus instrumentos, abriram buracos com bombas especialmente preparadas e com toda a calma abriram caminho até ali.

A equipe de assalto escaparia da mesma forma, desaparecendo de novo em meio aos milhares de pessoas ali reunidas.

Isso não devia acontecer.

Kat — sussurrou Gray —, leve Rachel até o Monk. Não se envolva em combate. Volte lá para cima e encontre a Guarda Suíça.

Kat segurou no cotovelo de Rachel.

E você? — perguntou ela.

Ele já estava em movimento, voltando para o túmulo de São Pedro.

Eu vou ficar aqui e monitorar com o laptop. Retardá-los se necessário. Depois vou sinalizar para vocês pelo rádio assim que eu iniciar a emboscada.

Talvez nem tudo estivesse perdido ainda.

Monk comunicou-se pelo rádio. Mesmo subvocalizando, suas palavras eram tênues.

Nada se pode fazer aqui. Eles abriram um buraco com explosivos bem acima da saída. Quase racharam meu crânio com um fragmento de pedra. Os sacanas estão fechando a maldita porta com rebites.

Gray ouviu os estampidos de uma pistola de ar comprimido, semelhantes ao matraquear de uma metralhadora, ecoando na parte de trás da necrópole.

Não tem ninguém entrando ou saindo por aqui — Monk encerrou.

Kat?

Na escuta, comandante.

Abaixem-se todos — ordenou ele. — Esperem o meu sinal.

Gray agachou-se e correu pela rua do cemitério abaixo.

Eles estavam entregues à própria sorte.

 

 

                                                     CONTINUA

 

 

Vigor entrou na Basílica de São Pedro pela porta da sacristia, flanqueada por dois soldados da Guarda Suíça. Ele mostrara sua identificação três vezes para obter acesso. Mas pelo menos a notícia estava filtrando-se lentamente através dos exames e controles minuciosos. Talvez ele não fora convincente o bastante quando telefonou vinte minutos atrás, dizendo de forma vaga que não sabia ao certo quando a Corte do Dragão atacaria o túmulo.

Mas agora as coisas estavam seguindo na direção certa.

Vigor passou pelo monumento a Pio VII e entrou na nave quase no meio da igreja. A basílica tinha a forma de uma cruz gigantesca, abrangendo 25.000m2, tão grande que dois times de futebol poderiam disputar uma partida só nos limites da nave.

E agora ela estava cheia. Cada banco estava lotado, da nave até o transepto. O espaço brilhava intensamente com milhares de velas e a iluminação de oitocentos lustres. O Coro Pontifício já cantava pelo meio o Exaudi Deus, adequado para um memorial, mas amplificado e ecoando tão alto quanto qualquer concerto de rock.

 

 

 

 

Vigor apressou-se, mas forçou-se a não correr. O pânico seria letal. Havia apenas um número limitado de saídas. Ele fez um aceno para que os dois soldados da Guarda Suíça esquadrinhassem o espaço à direita e à esquerda e alertassem seus companheiros de armas. Vigor tinha primeiro de tirar o papa dali e alertar a comitiva clerical que presidia a cerimônia para que lentamente evacuasse os paroquianos.

Ao entrar na nave, ele teve uma visão nítida do altar papal.

No outro lado do altar, o cardeal Spera estava sentado com o papa. Os dois haviam tomado assento sob o baldaquim de bronze de Bernini, um dossel de bronze dourado que cobria o altar central. Ele tinha trinta metros de altura e era sustentado por quatro maciças colunas em espiral, decoradas com ramos de oliveira e de loureiro de ouro dourado. O dossel era encimado por uma esfera de ouro arrematada por uma cruz.

Vigor avançava sorrateiramente. Ele não dispunha de tempo para vestir roupas apropriadas e ainda por cima estava malvestido. Alguns paroquianos ricos olharam de relance para ele, franzindo o cenho, mas... 

 

                                                                                               

 

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