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O MUNDO DE ONTEM / Stefan Zweig
O MUNDO DE ONTEM / Stefan Zweig

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MUNDO DE ONTEM

Primeira Parte

 

Nunca me seduziu a idéia de contar a outros a história da minha vida, porque nunca me julguei digno dessa importância. Foi preciso darem-se muitas coisas, infinitamente muitas mais do que é vulgar verificarem-se numa só geração - acontecimentos, catástrofes e privações-para me decidir a escrever um livro que tem a minha pessoa como protagonista ou, melhor dizendo, como seu ponto central. Mas, ao fazê-lo, nada mais longe de mim que a intenção de me evidenciar, a não ser no desempenho de um papel semelhante ao de um narrador numa sessão cinematográfica. O tempo fornece as imagens e eu atribuo-lhes as legendas respectivas. O que vou contar não será bem propriamente a minha vida, mas a de toda uma geração: da nossa extraordinária geração, que, quase como nenhuma outra no decurso da História, foi submetida a tão dura prova. Cada um de nós, até o mais humilde e insignificante, foi abalado no mais íntimo de sua existência pelos terramotos que, quase sem interrupção, têm assolado o nosso continente europeu; e eu, no meio da incontável multidão dos que assistiram a tais cataclismos, não me arrogo outra importância que não seja esta: a de, como austríaco, como judeu e como escritor humanista e pacifista, ter estado sempre precisamente nesses mesmos lugares onde os cataclismos com mais violência se fizeram sentir.

Por três vezes, eles destruíram-me a casa e a vida, arrancaram-me a todo o meu passado e, com uma veemência dramática, atiraram comigo ao vácuo, a esse "não sei para onde", já tão meu conhecido.

Mas nem por isso me lamento. O indivíduo que não tem pátria liberta-se num sentido novo, e só aquele que já nada tem a perder pode agir livremente. Espero, assim, poder satisfazer, pelo menos, essa condição essencial a que deve obedecer toda a verdadeira descrição de uma época: sinceridade e objectividade.

Realmente, como eu me encontro, desprendido de todas as raízes e até da própria terra que as alimentou, há-de ser difícil ter estado outra pessoa em qualquer época. Nasci em 1881, numa nação grande e poderosa, na monarquia dos Habsburgos; mas não a procurem no mapa, que ela desapareceu sem deixar rasto.

Cresci em Viena, nessa metrópole bimilenária e cosmopolita, e fui obrigado a abandoná-la como um criminoso, antes de a condenarem à degradação, fazendo dela uma simples cidade de província alemã. A minha obra literária, na sua língua original, reduziram-na a cinzas, precisamente na mesma terra onde os meus livros tinham feito de milhões de leitores outros tantos amigos.

Não sou pois de nenhuma terra: sou, onde quer que me encontre, um estrangeiro, e, no melhor dos casos, serei um hóspede; até a minha pátria propriamente dita, a eleita do meu coração, a Europa, até essa eu perdi, a partir do momento em que ela, pela segunda vez, se despedaçou numa guerra fratricida, que eqüivale ao seu suicídio.

Fui, sem o querer, testemunha dessa horrível derrota da razão e do triunfo mais selvagem da brutalidade de que rezam as crônicas de todos os tempos nunca, e não registo isso de medo algum com orgulho, mas antes com vergonha, nunca, dizia, uma geração sofreu uma tal queda moral de tão elevada altura como a nossa. Nesse pequeno intervalo de tempo que veio do despontar da minha barba até que ela começou a encanecer, nesse meio século, operaram-se transformações e mudanças mais radicais do que de ordinário em dez gerações; e todos nós sentimos que elas foram quase em demasia. É tão diferente o meu hoje de qualquer dos meus ontens, tais foram as minhas subidas e as minhas quedas, que muitas vezes me parece ter vivido não só uma, mas várias vidas, e todas elas diferentes umas das outras.

Não raro me acontece, portanto, ao pensar na minha vida, perguntar logo instintivamente a mim próprio: "Mas que minha vida?" A de antes da Grande Guerra, a anterior à primeira ou à segunda Grande Guerra, ou a de hoje Depois, se acontece falar de "a minha casa", volto a surpreender-me, porque, de momento, não sou capaz de saber de qual delas falei, se da que tinha em Bath, se da de Salzburgo, ou se da casa dos meus pais, em Viena. Ou, se sucede ainda dizer "entre nós", fico aflito, porque logo me assalta a idéia horrível de que os indivíduos da minha pátria consideram-me tão pouco pertencente a ela como qualquer inglês ou americano me julgaria seu compatriota. Aquela já não estou ligado orgânicamente e por sua vez na do inglês ou na do americano nunca estive bem integrado. Sinto que o mundo em que cresci e o dos nossos dias e o de ontem se diferenciam cada vez mais, tornando-se mundos completamente diferentes uns dos outros. Em conversa com amigos mais novos, e de todas as vezes que lhes conto qualquer episódio da época anterior à da primeira Grande Guerra, noto pelas suas perguntas cheias de espanto que aquilo que para mim

é ainda natural realidade se tornou para eles histórica ou incompreensível. E, dentro de mim, há como que um instinto misterioso que lhes dá razão: todas as pontes que existiam entre o nosso hoje, o nosso ontem e o nosso anteontem estão destruídas. Eu, pessoalmente, não posso deixar de me admirar da quantidade

e da multiplicidade dos sacrifícios por que tivemos de passar no curto espaço de uma vida, em verdade extraordinariamente incômoda e cheia de perigos; mas a minha admiração aumenta muito mais ainda quando comparo a nossa vida com a dos meus antepassados.

O meu pai ou o meu avô, que viram eles? Cada um viveu a sua vida de monotonia, uma vida de poucas comoções e de mudanças imperceptíveis, sempre a mesma desde que começava até que acabava, sem altos nem baixos, sem abalos nem perigos. Sempre no mesmo ritmo, a onda do tempo levava-os, tranqüilos e sossegados, do berço à sepultura. Mantinham-se na mesma terra, na mesma cidade e, quase sempre até, na mesma casa; o que se passava por esse mundo fora, passava-se só no jornal e não vinha nunca bater-lhes à porta do quarto. É certo que, em seus dias, houvera algures uma guerra, melhor, uma guerrazinha comparada com as dimensões das de hoje, e essa mesma desenrolava-se muito longe das suas fronteiras; não se ouvia o troar dos canhões e, passado meio ano, a vida velha de sempre recomeçava.

A guerra estava já acabada e esquecida: era mais uma folha ressequida da História.

Mas de tudo o que nós vivemos nada mais volta; do que era antes, nada ficou. Foi tudo e nada reapareceu.

Estava reservado a nós o máximo de participação naquilo que de costume a História parcimoniosamente distribuía por cada terra e por cada século. Em qualquer dos casos, uma geração tinha participado de uma revolução, outra de um golpe de Estado, uma terceira de uma guerra, uma quarta tinha sofrido a fome, uma quinta a bancarrota nacional-e muitas terras abençoadas e muitas abençoadas gerações não chegaram a sofrer sequer nem uma só de todas essas coisas. Mas nós, os que estamos hoje nos sessenta anos, e que devemos ter algum tempo à nossa frente, que não temos nós visto, sofrido e presenciado?

Percorremos o catálogo das catástrofes todas que se possam imaginar, de uma ponta à outra (e não estamos na última folha). Só eu fui contemporâneo das duas maiores guerras da humanidade e, em cada uma delas, estive até em diversas frentes: numa, na frente alemã, noutra na frente antialemã.

No período anteguerra, conheci a liberdade individual no seu mais elevado grau e no período a seguir a ele no seu estádio mais baixo de que há memória há séculos: fui livre e escravo, rico e pobre. Todos os cavaleiros do Apocalipse passaram em galope pela minha vida fora: a revolução e a fome, a desvalorização do dinheiro e o terror, as epidemias e a emigração1; vi, com os meus olhos, crescerem e expandirem-se as grandes ideologias das massas: o Fascismo na Itália, o Nacional-Socialismo na Alemanha, o Bolchevismo na Rússia e, sobretudo, essa epidemia de Nacionalismo exacerbado que envenenou a flor da nossa cultura européia.

Tive de ser testemunha inerme e impotente do fantástico retrocesso do mundo a um estado miserável de barbárie com todo o seu dogma de anti-humanidade consciente e pragmático e já há muito abandonado.

Volveram-se séculos e estava-nos reservado a nós voltar a ver guerras sem prévias declarações, campos de concentração, torturas, pilhagens em massa, ataques aéreos a cidades indefesas, tudo actos de hostilidade desconhecidos já das últimas cinqüenta gerações e os quais, Deus o permita, as futuras jamais consintam.

Mas, por paradoxal que isso pareça, eu vi também essa mesma humanidade realizar, durante esse mesmo espaço de tempo em que o nosso mundo retrocedia moralmente cerca de um milênio, no campo da técnica e do espírito, feitos surpreendentes, que ultrapassavam num só vôo tudo o que se fizera em milhões de anos a conquista dos ares pelo avião, a transmissão da palavra no mesmo segundo através do globo terrestre, e, desse modo, a vitória sobre o espaço universal, a desintegração do átomo, o triunfo sobre as doenças infecciosas, o tornar possível, quase diário, o que era ontem impossível. Até aos nossos dias, jamais a humanidade, no seu conjunto, degenerou tão diabòlicamente e jamais produziu coisas tão divinais.

Parece-me um dever depor sobre a nossa vida tão dramática, porque, repito-o, todos foram testemunhas dessas extraordinárias transformações, todos foram obrigados a ser suas testemunhas.

O evitar ou o pôr-se à margem dos acontecimentos, coisas possíveis ainda nas gerações anteriores, são impossíveis na nossa geração. Em virtude da nossa nova organização, passamos a estar permanentemente incorporados no tempo. Se algumas casas fossem destruídas por bombas em Xangai, sabê-lo-íamos dentro do nosso quarto, na Europa, ainda antes que os feridos pudessem ter sido retirados delas. Parecer-me-ia estar a ver em imagem o que realmente se passava a mil milhas de distância de nós, no ultramar. Era-se constantemente posto ao facto dos acontecimentos e constantemente arrastado por eles, sem nada haver que nos pusesse ao abrigo disso ou o evitasse.

Não havia terra nenhuma onde nos conseguíssemos refugiar, nem sossego que se pudesse comprar, porque, onde quer que nos encontrássemos, a mão do destino agarrava-nos e arrastava-nos consigo para o seu insaciável espectáculo.

Tínhamos de nos submeter sempre às leis do Estado, de nos entregar como vítimas da mais estúpida das políticas, de nos conformar com todas as modificações, as mais fantásticas, e, por mais que, indignados, o quiséssemos evitar, estávamos sempre acorrentados ao comum. Éramos fatalmente arrebatados por ele. Quem quer que tenha passado por esta época, ou melhor, quem quer que, durante ela, tenha sido perseguido e acossado - nós próprios poucos momentos de descanso tivemos - assistiu a uma porção de História maior do que qualquer dos seus antepassados. Também hoje encontramo-nos numa nova viragem, num terminus, e numa nova partida. Não é, portanto, de modo algum sem intenção que eu, provisoriamente, faço terminar esta retrospecção da minha vida numa data determinada; porque esse dia de Setembro de 1939 traça, sobre a época que nos formou e educou a nós, os dos sessenta anos, o risco final e definitivo. Mas a nossa acção não terá sido vã, se, com o nosso testemunho, transmitirmos à geração vindoira uma só parcela que seja da verdade dessa época em decomposição.

Tenho consciência das circunstâncias desfavoráveis, bem características dos nossos tempos, em que procuro dar forma a estas minhas memórias.

Estou a escrevê-las em plena guerra, em terra estranha e sem o menor auxiliar da memória. Não disponho no meu quarto, num hotel, nem de um só exemplar dos meus livros, nem de quaisquer notas ou cartas de amigos.

Não posso obter informações em nenhuma parte, porque as comunicações postais entre os diferentes países estão por todo o mundo interrompidas ou sujeitas à censura.

Vivemos tão isolados uns dos outros como há séculos, quando o vapor, os caminhos de ferro, o avião e o correio não tinham ainda sido descobertos.

De todo o meu passado só o que se mantém no meu cérebro se encontra ainda à minha disposição. Tudo o mais está, de momento, ou perdido ou fora do meu alcance. Mas a nossa geração aprendeu, e bem, a arte de não chorar o perdido e talvez até a falta de documentação redunde em vantagem para este meu livro. É que não considero a nossa memória apenas como elemento que só casualmente retém uma coisa ou só casualmente perde outra, mas como uma força que ordena com saber e elimina com prudência.

Tudo quanto esquecemos da nossa própria vida, havia já muito tempo que, por instinto íntimo, estava realmente condenado ao esquecimento.

Somente aquilo que quer conservar-se a si mesmo adquire o direito de ser conservado para os outros.

Falai e escolhei, portanto, vós, minhas memórias, falai e escolhei por mim e dai um reflexo da minha vida, antes que ela se suma nas trevas.

 

 

Slill and eng und ruhig auferzogen Wirft man ans aaf einmal in die Welt, Uns umspülen hunderltausend Wogen, Alies reizl uns, mancherlei gefãlll Mancherlei verdrissl uns und von

Siund'zu Stunden

Schwankl das leichlunruhige Gefühl; Wir empfinden, und was wir empfunden Spüll hinweg das bunle Wellgewühl.

         GOETH.

 

             O Mundo da Segurança

Se eu tentasse encontrar uma fórmula precisa para definir a época em que nasci, a anterior à primeira Grande Guerra, creio que seria exacto se dissesse que ela foi a idade áurea da segurança. Na nossa quase milenária monarquia austríaca tudo parecia ter sido criado para perdurar. O próprio Estado era considerado como a suprema garantia dessa imutabilidade. Os direitos que ele assegurava aos cidadãos eram ratificados pelo Parlamento, pela representação nacional, escolhida livremente.

Toda a obrigação era definida precisamente. A nossa moeda, a coroa austríaca, circulava em peças de oiro reluzente, o que assegurava a sua estabilidade. Todos sabiam quanto possuíam ou quanto tinham de receber, o que podiam ou não podiam fazer. Tudo se fazia com regra e a cada coisa correspondia exactâmente a sua medida e o seu peso. Quem tinha fortuna podia calcular antecipadamente a renda anual que ela produzia, e o funcionário público e o oficial do exército sabiam com exactidão quando chegaria o momento da promoção ou da reforma.

Cada família" podia estabelecer o seu orçamento com toda a segurança, pois sabia de quanto necessitava para fazer face às despesas de habitação, sustento, vilegiatura, e de representação, e não deixava nunca de reservar pequenas disponibilidades para outras necessidades imprevistas, e para possíveis doenças e médico. Quem possuía uma casa estava absolutamente seguro de que ela seria também a morada de seus filhos e de seus netos, pois o lar paterno e a profissão transmitiam-se de pais a filhos. Ainda a criança estava no berço e se encontrava no período da amamentação, e já se havia depositado no mealheiro ou na caixa econômica o primeiro óbulo para a sua jornada na vida uma pequena reserva para o futuro.

Nesse grande império tudo se encontrava no seu lugar e sòlidamente estabelecido, sob a égide suprema do velho imperador. Se ele morresse - sabia-se ou, pelo menos, assim se pensava - outro lhe sucederia, e o facto não alteraria de nenhum modo ritmo da ordem assegurada. Ninguém acreditava em guerra, revolução ou subversão. Tudo o que significasse radicalismo ou violência parecia não ser já possível numa época em que o bom senso havia triunfado.

Este sentimento de segurança era a maior riqueza de milhões de homens e o ideal colectivo de existência. Só assim se concebia que a vida fosse digna de ser vivida; todos aspiravam a comparticipar nesse desejado bem.

No começo, só as classes mais ricas da sociedade gozavam essas regalias da segurança, mas, pouco a pouco, as grandes massas surgiram também, reclamando idêntico direito. O século da segurança transformou-se, assim, na idade exuberante da previdência. Cada qual segurava a sua casa contra o perigo de incêndio e contra assaltos, segurava a propriedade agrícola contra as intempéries, segurava-se a si mesmo contra desastres e contra a doença, contra a inabilidade e, enfim, no berço da filha colocava-se uma apólice que garantia o seu futuro dote. Por fim, os próprios operários organizavam-se, obtendo salários fixos e mutualidade os criados economizavam para a velhice e contribuíam para caixas funerárias, pagando assim, antecipadamente, o seu enterro.

Só desta maneira, olhando sem receio para o futuro, cada qual sentia que podia viver em paz o seu presente.

Nesta íntima certeza que cada indivíduo possuía de poder proteger-se até ao mais pequeno pormenor contra qualquer fatalidade do destino, havia, apesar do bem ordenado e modesto conceito da vida, uma grande e perigosa pretensão.

O Século XIX tinha-se sinceramente convencido de que, com o seu ideal do liberalismo, se encontrava no único e verdadeiro caminho que conduzia ao "melhor de todos os mundos". Encarava-se com desdém o passado, com todas as suas guerras, crises de fome e revoluções, como quem olha para uma época em que a humanidade estava ainda na sua menoridade e insuficientemente esclarecida. Agora, porém, dentro de poucos decênios, acabar-se-ia definitivamente com a última dor e a última violência. Essa crença no progresso constante tinha então assumido aspectos de verdadeira religião. á à acreditava mais no "Progresso" do que na Bíblia, tanto mais que o evangelho do primeiro era plenamente confirmado pelos milagres que a ciência e a técnica realizavam diariamente. Essa ascensão era, no último quartel desse século, cada vez mais segura, mais evidente, mais rápida e multiforme. Nas ruas a luz pálida dos candeeiros públicos havia sido substituída pelo brilho da lâmpada eléctrica e as casas comerciais foram estendendo- o esplendor das grandes artérias citadinas até às ruas mais distantes dos subúrbios. Graças ao telefone, já os homens podiam falar entre si, apesar das distâncias que os separassem. Conquistavam novas velocidades em carros sem cavalos e, por fim, realizando o sonho de Ícaro, elevavam-se no espaço. O conforto deixou de ser o privilégio de alguns ricos e penetrou na maioria das casas. Já não era necessário ir buscar água ao poço ou ao fontenário, nem acender penosamente o lume na lareira. A higiene difundiu-se e a imundície desapareceu. O ser humano, robustecido pelo desporto, tornou-se mais belo, mais forte e mais saudável, e os deformados, aleijados e depauperados desapareceram, a pouco e pouco, das ruas. Tais milagres deviam-se à ciência - esse anjo do progresso.

No ponto de vista social, também a situação melhorou muito; de ano para ano, adquiria o indivíduo novos direitos e o conceito da justiça tornava-se mais simples e mais humano. Até o problema máximo de todos os tempos, o da miséria, parecia não ser já um problema insolúvel. O sufrágio universal ia alargando a sua esfera de acção, tornando possível que grupos de homens cada vez mais numerosos pudessem defender legalmente os seus interesses, enquanto que sociólogos e professores rivalizavam na tarefa de tornarem a vida do proletariado mais saudável e mais feliz. Que admira, pois, que esse século se orgulhasse intimamente da sua obra e estivesse convencido de que cada década que terminara era apenas o preliminar que anunciava a aproximação de outra melhor? Já se acreditava menos no regresso aos tempos bárbaros das guerras entre os povos europeus que em feiticeiras e fantasmas. Os nossos avós tinham confiança absoluta na acção e na infalível eficácia da tolerância e da reconciliação. Supunham sinceramente que as fronteiras e as divergências entre os povos se iriam diluindo nos universais sentimentos humanitários, então nascentes, e que, desse modo, a paz e a segurança, esses dois supremos bens, seriam proporcionados à humanidade.

Hoje, nós, todos aqueles que desde há muito banimos do nosso vocabulário, como se fosse um espectro, a palavra "segurança", podemos sorrir da louca e optimista ilusão dessa geração idealista, que acreditava que o progresso originaria necessariamente, uma evolução moral paralela.

Hoje, no nosso século, nós, forçados a não nos admirarmos já de mais nenhuma explosão colectiva de brutalidade e que esperamos que o dia de amanhã nos traga ainda mais desilusões que o de ontem, somos muito mais cépticos acerca das possibilidades de evolução moral da humanidade. Tivemos de dar razão a Freud, que via apenas na nossa cultura, na nossa civilização, uma frágil estrutura que a cada momento podia ser aniquilada pela violenta erupção de forças destruidoras, provenientes do nosso subconsciente. E, pouco a pouco, fomo-nos habituando a viver em constante desequilíbrio, sem liberdade, sem segurança. Há já muito tempo que renunciámos, para norma da nossa vida, à religião dos nossos antepassados, à sua crença num rápido e constante aperfeiçoamento da humanidade. - Sabemos agora quanto era vago e ilusório o seu optimismo, nós, os que adquirimos a cruel experiência de termos sido projectados para a escuridão de um passado distante, pela primeira arremetida de uma catástrofe, que zombava de milhares de anos de preocupações humanitárias. Contudo, ainda que esse optimismo tivesse sido uma ilusão, era uma ilusão magnífica, plena de nobreza, que foi útil aos nossos pais e era mais humana e mais fecunda que os lemas do nosso tenpo. E, apesar de todas as experiências vividas e de todas as desilusões, há ainda qualquer coisa desse doce optimismo que se mantém serenamente no meu espírito. Não se elimina nunca completamente aquilo que cada ser humano, quando criança, recebe do ambiente que o cerca. Sinto, que a crença da minha juventude se mantém inabalável e que, apesar de todas as contrariedades e privações sofridas por mim como por muitos dos meus companheiros, apesar de tudo o que de trágico chega ao meu conhecimento, melhores dias esperam a humanidade. Mesmo das profundidades deste abismo de crueldade que, com a alma dilacerada e aflita, tacteamos semicegos, eu dirijo novamente o meu olhar para aquelas longínquas constelações que cintilaram na minha juventude, e adquiro assim a consolação e a certeza, com a confiança herdada dos meus antepassados, de que o retrocesso moral que hoje se observa será apenas um pequeno interregno no ritmo da evolução eterna da humanidade.

Sabemos, hoje, perfeitamente, desde que a tempestade desabou, que o mundo de segurança dos nossos antepassados era apenas um magnífico castelo no ar, mas nem por isso os meus pais deixaram de viver nele como se fosse uma verdadeira casa de pedra e cal. Jamais uma tormenta, ou até mesmo uma simples corrente de ar mais forte, perturbou a sua existência agradável, amena e calma. É verdade que dispunham de uma especial protecção contra todas essas contrariedades: - eram daquelas pessoas abastadas que enriquecem lenta mas seguramente e até chegam a enriquecer muito. E esse facto permitia-lhes, naquele tempo, a possibilidade de se poderem preservar de quaisquer intempéries, atapetando convenientemente todas as paredes e janelas. A sua maneira de viver era tão idêntica àquela que se convencionou chamar a da "boa burguesia judaica", a qual tantos valores deu à cultura vienense e que em paga disso foi tão implacavelmente exterminada, que, narrando a sua existência confortável e pacata, tenho a impressão de que verdadeiramente, narro qualquer coisa de impessoal, pois, como meus pais, havia em Viena, nesse século tranqüilo e seguro, dez ou vinte mil famílias.

A família de meu pai era oriunda da Morávia. Ali, em pequenas localidades rurais, existiam comunidades judaicas, cujos membros viviam em perfeita harmonia com os camponeses e com a pequena burguesia; assim, estavam isentas daquele sentimento de servilismo e de sôfrega inquietação, tão características dos judeus da Galícia, dos judeus do Oriente. Fortes e robustos, graças à vida em plena natureza, trilhavam, confiantes e tranqüilos, o caminho da sua existência, do mesmo modo que os camponeses da região o faziam, cultivando a terra.

Desde longa data emancipados da acção dos religiosos ortodoxos, eram apaixonados adeptos da religião do seu tempo - "o Progresso" - e foram eles que, na era política do liberalismo, deram ao parlamento os seus mais célebres deputados. Quando esses judeus deixavam a terra e vinham para a cidade, assimilavam com incrível rapidez os mais altos graus da cultura, e essa adaptação pessoal integrava-os orgãnicamente no ritmo geral da evolução da época. A transição da minha família foi, também, nesse particular, bem característica. Meu avô paterno era negociante de tecidos. Começara, porém, então, na segunda metade do século, na Áustria, a concentração industrial; os teares mecânicos, importados da Inglaterra, originavam, pela racionalização da produção, um extraordinário barateamento dos produtos fabricados por esse processo, em relação aos que anteriormente se teciam manualmente, e foram os comerciantes judeus, na Áustria, os primeiros que, com o seu agudo sentido comercial e com a sua clara visão dos acontecimentos internacionais, reconheceram a necessidade e a vantagem de se adaptarem ao método da produção industrial. Primeiramente, com pequenos capitais, fundaram algumas fábricas, movidas apenas por energia hidráulica, as quais, pouco a pouco porém, se transformaram na poderosa indústria têxtil da Boêmia, cuja influência se foi fazendo sentir em toda a Áustria e nos Bálcãs.

Enquanto meu avô, como digno representante da sua época, se dedicava apenas à revenda de produtos fabricados por outros, meu pai, pelo contrário, acompanhando decididamente o ritmo dos novos tempos, fundava, aos trinta anos de idade, no norte da Boêmia, uma pequena fábrica de tecidos, que, lenta e previdentemente, se foi desenvolvendo, até se transformar numa importante empresa.

Esse lento e cauteloso desenvolvimento, apesar das possibilidades favoráveis e sedutoras, era um sinal do tempo, e correspondia também à natureza circunspecta de meu pai, absolutamente desprovida de egoísmo. Ficara fiel ao credo da sua época, safety fírst. Era para ele muito mais importante possuir uma fábrica "sólida" - era esta uma palavra bem estimada naquele tempo - assente apenas no seu capital, do que desenvolvê-la enormemente à custa de créditos bancários ou de hipotecas. Um dos seus maiores motivos de orgulho, durante toda a vida, era o de saber que jamais alguém havia visto a sua assinatura num documento de dívida ou numa letra não liquidada, e que todas as suas operações financeiras eram baseadas em depósitos no banco - o qual era, evidentemente, o mais forte de todos, o "Kreditanstalt" de Rothschild. Tinha animadversão a qualquer lucro que resultasse de uma operação arriscada e durante toda a vida nunca se ocupou de outro negócio que não fosse o seu. Foi por esta razão que, apesar de ter enriquecido lentamente, mas cada vez mais, não deveu esse facto a especulações ousadas ou a operações de muita perspicácia, mas sim à sua constante adaptação ao método seguido em geral naquela época demasiado previdente, e que consistia em despender apenas uma modesta parte da receita e adicionar ao capital quantias que, de ano para ano, aumentavam de importância.

Meu pai, como a maioria dos homens da época, considerava insensato perdulário todo aquele que "sem pensar no futuro" - esta era também uma expressão bem corrente nessa era de segurança - gastasse mais de metade dos seus proventos. Tanto mais que o Estado contentava-se apenas com um imposto muito reduzido que, mesmo sobre as grandes fortunas, não ia além de uns tantos por cento. Os valores do Estado e os da indústria davam então, também, juros muito elevados. Era, na verdade, uma época bendita, porque, então, não se roubavam aqueles que eram econômicos, não se enganavam os honestos e eram precisamente os que não especulavam que auferiam os melhores lucros. Foi devido a uma constante atitude de coerência com os hábitos geralmente seguidos na sua época que meu pai, aos cinqüenta anos, era já, mesmo até fora do seu país, considerado muito rico.

Graças a esse economizar constante, tornar-se cada vez mais rico era, nessa época de prosperidade, para os abastados, apenas um problema de continuidade, um esforço quase passivo.

Porém, apesar desta rápida ascensão para a grande fortuna, só muito lentamente a minha família ia melhorando as condições da sua existência. As comodidades que nos oferecíamos vinham pouco a pouco. Deixámos de viver numa casa modesta, passando para outra melhor, e na Primavera alugávamos uma carruagem para os nossos passeios. Quando utilizávamos o caminho de ferro, tomávamos lugar numa carruagem-cama de segunda classe. Só aos cinqüenta anos meu pai se ofereceu o luxo de ir passar um mês em Nice, no Inverno, com minha mãe. No fundo, continuava a ser fiel aos seus princípios gozar da sua fortuna, sem ter a preocupação de a ostentar. Já meu pai era milionário e nunca havia fumado tabaco estrangeiro, pois contentava-se - como o imperador Francisco José com o seu simples Virgínia - com o nosso nacional e modesto "Trabuco", e quando jogava cartas só o fazia com pequenas quantias. Gostava da vida ordenada e confortável, mas discreta. Sendo mais apresentável e instruído do que a maioria dos seus colegas - tocava impecàvelmente piano, escrevia bem e falava francês e inglês - recusou sempre, apesar de tudo isso, todas as honras e lugares honoríficos, todas as dignidades que, em vista da sua situação de grande industrial, lhe eram freqüentemente oferecidas.

Estimava muito mais o orgulho íntimo de nunca ter importunado alguém com pedidos e de jamais haver utilizado o "faz favor" ou o "muito obrigado". Para ele, isso era muito mais importante do que todas as grandezas exteriores.

Há por vezes momentos na nossa vida em que sentimos desabrochar em nós sentimentos idênticos aos dos nossos pais. E é assim que agora se começa a desenvolver em mim, de ano para ano, apesar de estar em contradição com a minha vida profissional, que, naturalmente, não pode deixar de dar certa notoriedade ao nome e à pessoa, aquela intima inclinação de meu pai para a vida calma e anônima. É ainda obedecendo ao constante desejo de recatada independência, que herdei de meu pai, que tenho recusado sempre qualquer forma decorativa de honrarias exteriores, pois nunca aceitei títulos nem condecorações, nunca tomei a presidência de qualquer sociedade e nunca fiz parte de uma Academia, de uma directoria ou de um júri. Até mesmo tomar parte numa festa constitui já para mim motivo de contrariedade, e só o pensamento de que devo solicitar alguma coisa a alguém - mesmo quando o meu pedido diga apenas respeito a uma terceira pessoa - me seca -os lábios antes de proferir a primeira palavra. Sei perfeitamente como esta maneira de proceder está em desacordo com os hábitos de uma época em que o indivíduo só se pode manter livre se for astucioso ou ostensivo, num mundo em que, como sabiamente dizia o grande Goeth.

"Orden und Títel manchen Puff abhalten im Gedrânge" De facto é ainda e sempre o espírito de meu pai que, transmitindo-me o seu culto pela independência, me mantém firme. Considero que não

 

"Condecorações e títulos vencem muitos obstáculos."

 

lhe devo opor resistência, porque a ele devo a única coisa que talvez possua verdadeiramente: o sentimento da minha íntima liberdade.

Minha mãe, cujo nome de família era Brettauer, era de outra linhagem mais internacional. Nascera no sul da Itália. em Ancona, e na sua infância tanto falava o italiano como o alemão. Quando queria dizer alguma coisa às suas irmãs ou à minha avó e se era necessário que os criados não compreendessem, fazia-o sempre em italiano. O "risotto" e a alcachofra, especialidades da cozinha ocidental e ainda nesse tempo quase ignoradas entre nós, são alimentos que conheço desde a primeira infância. Assim, sempre que, mais tarde, partia de viagem para Itália, sentia-me ali, desde os primeiros momentos, como se estivesse em minha própria casa. A família de minha mãe não era, Contudo, verdadeiramente italiana. Poder-se-ia dizer que era internacional. Os Brettauer possuíam, a exemplo das grandes famílias de banqueiros judeus, mas em dimensões muito mais limitadas, um estabelecimento bancário; desde muito cedo, porém, que, partindo de Hohenems, pequeno burgo situado junto da fronteira suíça, se espalharam pelo mundo. Uns foram para St. Gallen, outro para Viena e para Paris; meu avô foi para Itália e um tio para Nova Iorque. Este dilatado contacto com o mundo deu-lhes uma cultura vasta, uma mais larga visão dos acontecimentos e, além disso, um bem marcado orgulho de família.

Era uma família em que já não havia pequenos comerciantes e nenhum corretor, mas sim banqueiros, directores, professores, advogados e médicos, uma família em que cada membro falava várias línguas. Lembro-me ainda da extrema facilidade com que, em casa de minha tia, em Paris, à mesa, passávamos de um idioma para outro. A família procurava manter o alto nível que havia atingido. Quando alguma jovem chegava à idade do casamento e era oriunda dos ramos mais pobres, então todos os parentes se cotizavam para lhe oferecer um bom dote, procurando impedir, assim, a possibilidade de um casamento que significasse declínio. Meu pai, na sua qualidade de grande industrial, fora sempre respeitado pelos Brettauer, mas minha mãe, apesar de estar unida a ele pelos laços do mais feliz matrimônio, não teria suportado nunca que a família de meu pai fosse colocada em situação de igualdade com a dela. Este orgulho de descender de uma "boa" família era uma inalienável faceta do caracter de todos os Brettauer, de tal modo que, quando um dia, mais tarde, um deles quis testemunhar-me especial deferência, disse-me, condescendentemente:

- "Tu és, de facto, um verdadeiro Brettauer", como se com isso quisesse dizer apenas "É entre nós, no nosso seio, que estás no teu lugar".

Esta espécie de nobreza que muitas famílias judaicas de moto próprio a si mesmas se atribuíam, era para mim e meu irmão, quando ainda crianças, motivo de prazer e de contrariedade. Ouvíamos sempre dizer que umas pessoas eram "finas" e outras não. Acerca de cada amigo, procurava-se sempre saber se ele era de "boa família" e qual a natureza e a origem da sua fortuna, não só no que a ele dizia respeito, mas também no que se referia aos seus parentes mais afastados. Esta constante classificação de pessoas, que constituía, naquele tempo, o objecto principal de conversação em casa e na sociedade, aparecia-nos então como extremamente ridícula e pretensiosa, porque a única verdadeira e fundamental diferença que se encontrava entre todas as famílias judaicas residia no facto de umas terem saído do ghetto há cinqüenta anos e outras há cem. Só muito mais tarde compreendi que este conceito de "boa família", que a nós, quando crianças, nos aparecia como a farsa caricata de uma pseudo-aristocracia artificial, revelava, na verdade, uma das mais íntimas e profundas tendências do caracter judaico. De um modo geral, considera-se que o principal objectivo que o judeu tem na vida é o de enriquecer. Nada há, porém, mais falso do que esse critério. A Conquista da fortuna é, para o judeu, apenas um meio e não um fim. O seu verdadeiro objectivo, a sua aspiração constante, o seu ideal é a ascensão para um grau de vida mais espiritual, para um nível de cultura mais requintada.

Essa supremacia das aspirações espirituais sobre as materiais é já bem manifesta no mundo judeu ortodoxo do Oriente, nesse mundo em que as fraquezas e superioridades de toda a raça mais plenamente se afirmam: o religioso, o erudito que conhece a Bíblia, vale, para a comunidade, mil vezes mais que o rico. Isto é de tal modo verdade que até o indivíduo mais abastado preferirá dar a sua filha em casamento a um intelectual paupérrimo que a um comerciante. Esta preferência dos judeus por tudo o que é intelectual revela-se em todas as classes: o mais pobre vendedor ambulante, aquele que penosamente arrasta o seu fardo sob a acção das intempéries, até esse mesmo procurará, fazendo os maiores sacrifícios, que um dos seus filhos, pelo menos, tenha estudos superiores. Ter alguém na família com verdadeiro valor intelectual, um professor, um sábio ou um músico, é uma honra que todos apreciam.

Toda a família se sente enobrecida com a acção desse intelectual. Há em todo o judeu uma tendência quase intuitiva que o incita a evitar tudo o que há de duvidoso em relação à moral e tudo o que é desagradável, mesquinho e grosseiro na vida, uma tendência para fugir de tudo o que possui cunho marcadamente comercial, para se elevar às não mercantelistas e mais puras esferas da vida intelectual. É como se o judeu quisesse-parafraseando Wagner-libertar-se a si e a toda a sua raça da maldição do dinheiro. É por esta razão que, no judaísmo, o grande desejo de enriquecer se dilui em duas, e, quando muito, em três gerações da mesma família. É por isso que os descendentes das mais ilustres famílias se encontram por vezes sem vontade para dirigir os bancos e as fábricas ou continuar os negócios dos seus antepassados, já organizados, e em plena actividade. Não foi por mero acaso que um Lorde Rothschild se fez ornitologista, um Warburg historiador de arte, um Cassirer filósofo e um Sassoon poeta todos eles obedeceram ao íntimo impulso, dimanado do subconsciente, de se libertarem de tudo o que torna medíocre o judaísmo, do vulgar ganhar dinheiro, e talvez, até, esse facto fosse também a exteriorização de um secreto desejo de, pela ascensão para o intelectualismo, se libertarem do que é apenas judaico, permitindo-lhes integrarem-se no que é profunda e simplesmente humano.

Uma "boa" família significa, pois, muito mais do que aquilo que socialmente ela, nesse capítulo, se atribui a si mesma significa coerência com umjudaísmo que, adaptando-se a uma forma de cultura superior e tanto quanto possível a uma cultura universal, já se libertou ou começa a libertar-se de todos os defeitos, limitações e insuficiências que lhe foram impostas pelo ghetto. Essa tendência para o intelectualismo, em contraste com as de outrora, mais marcadamente materiais, é, certamente, um dos eternos paradoxos do destino dos judeus.

Em nenhuma outra cidade da Europa foi tão ardente a paixão pela cultura como em Viena. O facto justifica-se porque, não tendo tido a monarquia austríaca, durante os últimos séculos, ambições de caracter político, e não tendo tido também muitos êxitos nas suas acções militares, o sentimento nacional fora mais decididamente compelido para o desejo de adquirir supremacia na arte. Do antigo império dos Habsburgos, que outrora dominara a Europa, já há muito se haviam separado importantes e valiosas províncias alemãs e italianas, flamengas e vaJónicas; mas a capital permanecera com o antigo esplendor, continuava a ser o coração da corte, a depositária de uma tradição milenária. Foram os Romanos que assentaram as primeiras pedras dessa cidade, que consideravam como um "castrum", posto avançado destinado a proteger a civilização latina das incursões dos bárbaros. Foi contra essa muralha que, mais de mil anos depois, se aniquilou o ataque dos Turcos contra o Ocidente. Nessa cidade haviam andado os Nibelungos e foi dela que cintilaram sobre o mundo os sete eternos astros da música Gluck, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms e João Strauss, e para ela convergiram todas as correntes da cultura européia; o que era alemão estava na corte, na nobreza e no povo, intimamente ligado ao que era eslavo, húngaro, espanhol, italiano, francês e flamengo, e o incomparável mérito dessa grande cidade da música foi o de ter sabido fundir harmoniosamente todas essas múltiplas tonalidades num novo e característico estilo essencialmente seu: no austríaco, no vienense.

Extremamente acolhedora e com um especial sentido de assimilação, essa cidade soube atrair a si as forças mais díspares, ordenando-as, aperfeiçoando-as ou atenuando as suas dissonâncias, Era bem agradável viver aí nessa atmosfera de conciliação, onde os habitantes eram educados num ambiente de cosmopolitismo que verdadeiramente os tornava cidadãos do mundo.

Esse sentido de harmonia, de transições lentas e suaves, era já mesmo visível na própria fisionomia da cidade.

De facto, Viena, que se desenvolveu muito lentamente, durante uma evolução que durou séculos e partira de um primeiro núcleo central, era uma cidade que, sendo bastante populosa - dois milhões de habitantes-para poder proporcionar todo o luxo e todo o conforto de um grande centro, não o era contudo de tal modo que se encontrasse tão divorciada da natureza como Londres ou Nova Iorque.

Muitas das suas moradias dos arrabaldes exteriores espalhavam-se no imenso curso do Danúbio, ou olhavam para a extrema planície, perdendo-se outras entre jardins e campos ou alvejando em suaves colinas, derradeiras e verdejantes faldas dos Alpes. Quase não se notava onde começava a cidade e onde surgia a natureza; as duas confundiam-se intimamente sem bruscas transições. Vista do interior, pressentia-se também que a cidade se havia desenvolvido gradualmente do mesmo modo que uma árvore toma corpo-: criando à sua volta novas camadas. E o seu coração, em vez de estar protegido por altas muralhas, era circundado pelos sumptuosos edifícios da Ríngstrasse.

Cada um dos velhos palácios da corte e da nobreza era uma página de imperecível história gravada na pedra: aqui, era a casa dos Lichnowsky, onde Beethoven havia tocado; além, era a dos Esterhazy, de quem Haydn fora hóspede, e, acolá, na velha Universidade, fora ouvida, pela primeira vez, a Criação, de Haydn depois era o Palácio Imperial, por onde tinham passado gerações de imperadores, e Schônbrunn, que vira Napoleão. Fora ainda, ali, na catedral de Santo Estêvão, que se haviam ajoelhado os príncipes da Cristandade, rendendo graças a Deus por ter salvo a Europa do perigo otomano. Mais além, a Universidade, cujas paredes contemplaram os mais altos expoentes da ciência. Emoldurando este antigo esplendor, erguia-se a nova arquitectura, altiva e sumptuosa, com as suas magníficas avenidas e as suas brilhantes casas comerciais. Mas esta arte nova confundia-se tanto com a antiga como a pedra trabalhada se confunde com a natureza virgem. Era encantador viver nessa cidade, que acolhia amàvelmente todo o estrangeiro e se entregava com prazer; no seu ambiente agradável e risonho, como o de Paris, podia gozar-se a vida mais naturalmente. Viena, toda a gente o sabe, era uma cidade de prazer. Mas não é o fim da cultura, precisamente, o de, pela arte e pelo amor, nos fazer apreciar tudo quanto a vida pode conter de subtil, de delicado e fino O vienense não era apenas requintado em gostos culinários, apreciador de bom vinho, boa cerveja e pastelaria; era, também, muito exigente em prazeres da mais elevada natureza.

A música, a dança, o teatro, a conversação e a delicadeza, eram assim, em Viena, cultivados com esmero. Não era a vida militar, política ou comercial o que mais interessava aos vienenses. O seu primeiro olhar para o jornal matutino não se dirigia aos relatos das discussões no parlamento, nem às notícias mundiais, mas sim àquilo que nas outras cidades quase não tinha importância social digna de nota - a crônica. O Teatro Imperial, o "Burgtheater", significava para o vienense, para o austríaco, mais do que um simples palco em que o actor representava; era o pequeno mundo onde o universo se reflectia, o espelho colorido onde a sociedade a si própria se contemplava, o único e verdadeiro cortigiano do bom gosto. No actor do Teatro Imperial via o espectador como devia vestir, como devia entrar numa sala e como conversar, e quais as palavras que, como homem de boa educação, tinha de empregar ou evitar.

O palco não era, pois, apenas um simples divertimento, mas sim uma guia falada e plástica de civilidade e de pronúncia correcta. Uma auréola de respeito e de profunda veneração envolvia tudo o que, ainda que indirectamente, estivesse ligado ao teatro.

O presidente do ministério ou o mais rico magnate podiam passar pelas ruas da cidade sem que alguém se voltasse para os observar; mas um actor do Teatro Imperial ou uma cantora da Ópera seriam logo reconhecidos por qualquer vendedora ou qualquer cocheiro. Era com verdadeiro orgulho que nós, quando rapazes, contávamos uns aos outros que havíamos visto alguns desses actores, cujos autógrafos e fotografias todos coleccionávamos. Esse culto quase religioso atingia tão alto grau que ia até ao ponto de se estender às pessoas de intimidade desses artistas; o cabeleireiro de Sonnenthal e o cocheiro de José Kainz eram criaturas respeitáveis, que muitos secretamente invejávamos, e havia até jovens elegantes que se orgulhavam de ser clientes do mesmo alfaiate que servia essas personagens.

Dava-se mais importância ao jubileu ou ao funeral de um grande actor do que a um acontecimento político, e o mais elevado desejo de cada escritor vienense seria que as suas obras fossem representadas no Teatro Imperial. Esse facto conferia uma espécie de nobreza vitalícia e algumas atenções especiais, tais como entrada permanente no teatro e convite para todas as festas oficiais. O autor tornava-se, assim, convidado de uma casa imperial. Ainda me lembro da maneira solene como fui admitido no número desses autores privilegiados. Uma manhã fui convidado pelo director do teatro a visitá-lo no seu gabinete, Depois de me ter dado antecipados parabéns, comunicou-me que o meu drama havia sido aceite, Na mesma tarde, ao chegar a casa, já lá encontrei o seu cartão de visita. O director havia-me retribuído, a mim, jovem de vinte e seis anos, a visita que lhe fizera... É que, pelo simples facto da minha admissão no número dos autores do Teatro Imperial, havia-me imediatamente transformado num gentleman, a quem o director de uma instituição imperial tinha de tratar como igual.

Os acontecimentos que se produziram nesse teatro interessavam sempre a todas as pessoas, ainda que com ele não estivessem directamente relacionadas. Lembro-me de que, por exemplo, quando eu era ainda criança, a nossa cozinheira entrou certo dia apressadamente no nosso quarto, e, banhada em lágrimas, disse-nos que acabavam de lhe dar a notícia de que Carlota Walter, a mais célebre actriz do Burgtheater, falecera.

O que, porém, havia de extraordinário na espontaneidade dessa tristeza era que esta velha e quase analfabeta cozinheira nunca fora ao Teatro Imperial, e jamais havia visto Carlota Walter, nem no palco, nem fora dele; mas, em Viena, uma grande artista nacional fazia tão intimamente parte do sentimento colectivo de toda a cidade, que até a pessoa menos ligada com ela sentia a sua morte como se fosse uma verdadeira catástrofe. A perda de um cantor de mérito ou de um artista estimado transformava-se sempre num motivo de luto nacional.

Quando se iniciou a demolição do velho Burgtheater, no qual se realizara a primeira representação da obra de Mozart As Bodas de Fígaro, toda a boa sociedade de Viena se reuniu nos seus salões, solene e comovidamente, como se assistisse a um funeral. Mal acabara de cair o pano, todos os assistentes correram para o palco, a fim de apanharem pedacinhos das tábuas sobre as quais os seus queridos artistas haviam trabalhado. Esses bocados de madeira, verdadeiras relíquias, ainda se viam em várias casas, muito tempo depois, guardados em preciosos escrínios, do mesmo modo que nas igrejas se guardam os fragmentos da Santa Cruz.

Nós mesmo não procedemos muito mais razoavelmente quando o chamado Salão Bôsendorf foi demolido. E, contudo, esse salão estava destinado simplesmente à música de câmara e não era mais do que um edifício sem importância e sem arte, que antes havia sido escola de equitação do príncipe de Lichtenstein e que, apenas com um simples revestimento de madeira, havia sido modestamente adaptado para fins musicais. Mas a sua sala de concertos tinha a ressonância de um velho violino, e era lugar sagrado para os amantes da música, porque ali haviam dado concertos Chopín, Brahms, Liszt e Rubinstein e ali se tinham ouvido pela primeira vez os mais célebres quartetos.

E era esse santuário que ia ser demolido, substituído por outro edifício destinado a outros fins. O facto era inconcebível para aqueles que ali havíamos vivido horas inolvidáveis.

Então, quando no último espectáculo dado nessa casa se fizeram ouvir as derradeiras notas de Beethoven, tocadas mais admiràvelmente que nunca pelo quarteto Rose, ninguém abandonou o seu lugar. Fazíamos ruído e aplaudíamos, e muitas senhoras soluçavam, pois nenhum de nós queria acreditar que fosse a última despedida. Por fim, apagaram as luzes do salão, para nos obrigarem a retirar, Mas foi inútil. Nenhum dos quatrocentos ou quinhentos- fanáticos saiu do seu lugar. Continuámos ainda ali meia hora, uma hora, como se com a nossa presença pudéssemos fazer que o venerado santuário fosse salvo. E quanto lutámos. ós, os estudantes, com petições, demonstrações e exposições para que a casa onde morrera Beethoven não fosse demolida! Arrasar cada uma dessas casas históricas de Viena era como que arrancar-nos pedaços da nossa própria alma.

Esse fanatismo pela arte, e, em especial, pela arte teatral, atingia todas as esferas sociais. Viena era intrinsecamente, pelas suas tradições seculares, uma cidade estratificada, e era, também - como já tive ocasião de o escrever algures-, ao mesmo tempo, uma cidade maravilhosamente orquestral.

A regência da orquestra continuava a ser a Casa Imperial, pois a corte era o centro da nação, não só no que ao espaço se referia, mas no que dizia respeito ao sentido universal e cultural da Monarquia. O seu primeiro sedimento era constituído pelos palácios da alta nobreza austríaca, polaca, checa e húngara, que rodeavam o Palácio Imperial, Em segundo lugar, vinha a "boa sociedade", constituída pela pequena nobreza, altos funcionários do Estado, grandes industriais e "famílias antigas". Depois, vinha a pequena burguesia e, por fim, o proletariado.

Cada uma destas camadas tinha a sua esfera de acção própria: a alta nobreza possuía a dos seus palácios, no coração da cidade; a diplomacia tinha a da terceira zona; os industriais e os comerciantes situavam-se nas proximidades da Ringstrasse, e a pequena burguesia vivia nas zonas internas. A zona do proletariado era a da periferia. Todos se reuniam, porém, no teatro e nas grandes festas, como na da batalha de flores, no "Prater", em que trezentas mil pessoas aclamavam as "famílias poderosas", que ali compareciam com as suas carruagens magnificamente engalanadas.

Tudo, o que fosse colorido e musical era estimado: procissões, como a de Corpo de Deus paradas militares; os concertos da banda da corte e até as cerimônias funerárias eram sempre muito concorridos. Um dos grandes desejos do verdadeiro vienense era o de, pela sua morte, poder levar "um bonito enterro" com grande pompa e acompanhamento. O vienense queria que a sua própria morte significasse ainda, para os que ficavam, um acontecimento digno de ser contemplado. A unanimidade de sentimentos de todos os habitantes da cidade era perfeita neste caso, pois todos tinham tendência para tudo o que era colorido, sonante e festivo, para o que era espectacular, para a intensa alegria de observar a existência pelas variadas facetas de um prisma, pouco importando que a acção se passasse na vida real ou no palco.

Não é muito difícil zombar dessa "teatromania" tão generalizada, do vienense, pois, com efeito, a sua constante preocupação de dar extraordinária importância aos mais insignificantes aspectos da vida dos seus artistas preferidos tornava-se por vezes risível. A sua ânsia de prazeres e ao seu desmedido amor pela arte, podia atribuir-se a indolência austríaca na política e o atraso econômico em que a nação se encontrava, sobretudo se se comparasse com o seu enérgico vizinho, o império alemão. Mas também é certo que esta sobrestimação dos valores artísticos dava origem a uma disposição cultural verdadeiramente incomparável: - uma extraordinária veneração por todas as produções de arte.

O ambiente onde o artista se sente melhor é aquele onde é mais estimado e, até, mais extraordinariamente admirado. É aí que ele se torna mais perfeito, porque a arte atinge sempre as culminâncias onde um povo inteiro lhe dá a energia vital da sua dedicação. Foi assim em Florença e em Roma, cidades que sabiam atrair e dar celebridade aos seus artistas, os quais, para manter o prestígio, necessitavam de se superar a si próprios e aos outros. Como eles, também os músicos e os autores de Viena conheciam a extrema importância que a cidade lhes atribuía.

Nada se perdoava, nem na Ópera, nem no Teatro Imperial: - uma nota falsa era imediatamente notada, e uma entrada incorrecta, um lapso ou uma imprecisão constituíam motivo de censura. Essa crítica não era apenas obra de profissionais, nas primeiras representações. Fazia-a também toda a assistência, dia a dia, pela comparação e pelo seu fino sentido auditivo. O público que em referência a assuntos de caracter político, ético ou administrativo, mantinha certa tendência para desculpar anormalidades, e até extrema indulgência e tolerância para com muitos desleixos e incúrias, não admitia, porém, perdão para as deficiências que se observassem no mundo da arte, porque elas punham em cheque a honra da cidade.

Qualquer cantor ou actor tinha de realizar o máximo das suas possibilidades. Se o não fizesse, estava perdido. Era magnífico ser"se artista querido da cidade, mas não era fácil obter-se essa suprema distinção. A certeza de que era constantemente submetido a uma crítica implacável forçava o artista a ter a preocupação permanente da perfeição, e conduzia ao alto nível atingido por todo o conjunto.

Essa formação cultural da nossa juventude legou-nos um critério seguro na apreciação de todos os valores artísticos. Quem conheceu a Ópera sob a inflexível disciplina de Gustavo Mahler e a naturalidade com que os elementos da orquestra sabiam unir a suma beleza da idéia ao impecável rigorismo da execução, só muito raramente admirará as realizações teatrais ou musicais de hoje.

Nem só em relação aos outros éramos rigorosos, mas também no que se referia a nós próprios. Fora-nos legado um sentido da estética que só muito raramente se atribuía noutras cidades do mundo aos artistas em formação. Esse mesmo sentido do ritmo e do belo também se achava largamente difundido entre as classes menos cultas. Quando o pequeno burguês visitava as suas tabernas preferidas, não exigia apenas bom vinho do proprietário, mas também boa música de orquestra. O povo, no "Prater", sabia distinguir perfeitamente qual a banda militar que tocava com mais talento, se era a do "Deutschmeister" ou a dos Húngaros. Pode dizer-se que cada cidadão que vivia em Viena recebia do ambiente que o circundava o sentido do ritmo.

Entre nós, os escritores, este manifestava-se por uma prosa impecável, mas todas as outras pessoas o sentiam à sua maneira, pois ele reinava, soberano, na vida diária da cidade. Não se concebia nunca que pudesse existir um vienense de "boa sociedade" sem compreensão da arte e da elegância.

Até mesmo o último dos pobres, o que se encontrava no mais baixo degrau na escada social, também, esse recebia da paisagem, da natureza e do convívio, com aqueles para quem a vida era mais risonha, um notável anseio de beleza. Pode dizer-se que não era verdadeiramente vienense quem não tivesse amor pela cultura, inclinação simultânea para contemplar e para ruir o belo, a mais sagrada sublimação da vida.

A adaptação dos judeus ao meio em que se encontram corresponde, não apenas a uma medida exterior de defesa, mas também a uma profunda necessidade íntima. O seu anseio de pátria, de sossego, de paz, de segurança e o de não serem eternamente estrangeiros impele-os a integrarem-se com entusiasmo nas características fundamentais do ambiente em que vivem. Se exceptuarmos a Espanha no século XV, dificilmente se encontraria um país onde essa integração tivesse sido tão feliz e tão fecunda como na Áustria.

Quando, há já mais de duzentos anos, os judeus se fixaram em Viena, encontraram ali um ambiente de indiferença e de tolerância. Porém, sob essa aparente despreocupação, encontrava-se uma profunda tendência para os valores estéticos e espirituais, valores que eram, para os judeus, elementos de fundamental importância. E encontraram também, sobretudo, nessa cidade, uma honrosa missão a cumprir, que correspondia absolutamente à sua maneira de ser, ao seu temperamento.

Desde os últimos séculos que a arte na Áustria havia perdido os seus protectores tradicionais: a Casa Imperial e a aristocracia. Enquanto que Maria Teresa no século XVIII, fazia que suas filhas aprendessem música cem Gluck, José II, como verdadeiro entendido, discutia com Mozart acerca das suas óperas, e Leopoldo III chegava até a compor, nenhum interesse mostraram pela arte os imperadores que vieram posteriormente a Francisco II e Fernando, e o nosso imperador Francisco José, que aos 80 anos de idade não havia lido nem pegado noutro livro que não fosse o seu tratado militar, mostrava até franca antipatia pela música.

A alta nobreza tinha também esquecido a sua antiga inclinação pelas artes. Já haviam desaparecido os gloriosos tempos em que os Esterhazy hospedavam um Haydn os Lobkowitz, os Kinsky e os Waldstein rivalizavam para que se dessem nos seus palácios as primeiras audições das obras de Beethoven e em que uma condessa Thun se lançara aos pés do grande gênio, suplicando-lhe que não retirasse Fidéléo da Ópera.

Mesmo Wagner, Brahms e João Strauss não encontram já nenhum apoio entre a alta aristocracia. Se o ritmo dos concertos musicais se mantinha ainda e se os pintores e os escultores encontravam condições favoráveis era devido à acção da burguesia. Foi ela, e particularmente a burguesia judaica, que se manteve sempre no primeiro plano para conservar bem alto o esplendor da cultura vienense. Esse é o seu justo orgulho e um dos grandes títulos a enobrecê-la.

Desde a sua fixação na cidade que os judeus procuraram sinceramente adaptar-se aos usos e costumes nela existentes, mas foi só depois de se dedicarem à arte citadina que eles compreenderam que haviam adquirido os direitos de cidadania, e que, desde então, Se podiam considerar verdadeiros vienenses.

Nas outras esferas da vida social da cidade, exerciam os judeus influência muito limitada. O fausto da Casa Imperial eclipsava o poder das fortunas particulares, os altos cargos do Estado eram ocupados por membros de algumas famílias escolhidas, a diplomacia pertencia à aristocracia e os altos postos do exército eram reservados à mais antiga nobreza. Os judeus nem sequer procuravam penetrar nesses círculos privilegiados, pois consideravam muito compreensíveis essas prerrogativas tradicionais, respeitando-as discretamente.

Nesse sentido, lembro-me ainda duma bem significativa atitude de meu pai: durante todla a sua vida evitou sempre tomar refeições no "Sacher", não por economia, porque não havia notável diferença entre os preços deste e os dos outros grandes hotéis, mas por espontâneo sentimento de respeito pelas distâncias que a tradição mantinha, pois parecer-lhe-ia indiscreto ou inconveniente tomar lugar junto de uma mesa onde estivesse o príncipe de Schwarzenberg ou um Lobko-witz.

Havia apenas um sector onde todos se consideravam com iguais direitos: a arte.

A dedicação pela arte era considerada em Viena um dever que a todos abrangia e, neste capítulo, / muito importante a acção desenvolvida pela burguesia judaica, fomentando e protegendo todas as formas da cultura. Os judeus constituíam o verdadeiro público - enchiam os teatros e as salas de concertos, compravam os livros, os quadros, visitavam as exposições e, precisamente porque se encontravam menos submetidos à influência da tradição, tornavam-se os arautos de tudo que era novo.

Quase todas as grandes colecções do século XIX foram formadas pelos judeus e foi só graças a eles que se tornaram possíveis quase todas as grandes tentativas artísticas. Sem o constante estímulo da burguesia judaica, Viena, devido à indolência da corte, da aristocracia e dos milionários cristãos, que preferiam as corridas de cavalos e a caça, teria ficado tão atrasada na arte, relativamente a Berlim, como a Áustria o estava politicamente, comparada com o Império Alemão.

Quando alguém procurava realizar algum novo empreendimento, ou quando qualquer recém-chegado a Viena pretendia ser compreendido e conquistar público, era necessário que contasse com essa burguesia. E quando, no período do anti-semitismo, pela primeira vez se tentou fundar um então chamado "Teatro Nacional", não se encontraram autores, nem actores, nem público para ele. Alguns meses depois, esse "Teatro Nacional" desabava lamentavelmente, facto que provava, à evidência, que nove décimos daquilo que o mundo julgava ser apenas a cultura vienense era, de facto, uma cultura favorecida, alimentada e até, em muitos casos, criada pela população judaica de Viena.

Precisamente nos últimos anos - estabelecendo paralelismos com o que já acontecera em Espanha antes do seu também trágico declínio - as produções artísticas dos judeus de Viena haviam-se desenvolvido muito. Contudo, não se poderia dizer que essa arte fosse especificamente judaica. Era uma arte que, pelo milagre de uma íntima compreensão, era capaz de dar a mais intensa expressão ao que era austríaco, ao que era vienense.

Goldmark, Gustavo MaMer e Schõnberg tornaram-se na música fecundas figuras de valor mundial; Oscar Strauss, Leo Fali e Kéhnan deram um novo impulso à tradição da valsa e da opereta; Hofmannsfchal, Artur Schnitzler, Beer Hofmann e Pedro Altenberg elevaram a literatura vienense à categoria de literatura européia, estádio até então por ela jamais atingido, nem no tempo de Grillparzer e Stifter; Sonnental e Max Reinhardt deram novo brilho à fama da cidade do teatro por todo o mundo e Freud e os grandes valores da ciência despertaram a atenção geral para a velha e célebre Universidade de Viena.

Nessa época, conquistaram os judeus as mais altas posições na vida cultural da cidade, como professores, músicos talentosos, pintores, ensaístas, arquitectos e jornalistas. O seu amor imenso pela cidade e o desejo de serem iguais aos vienenses tinham-lhes permitido que se adaptassem maravilhosamente ao ambiente, sentindo-se felizes por saberem que contribuíam para a glória da Áustria.

Fazer parte da comunidade austríaca significava para esses judeus ter uma missão a realizar perante o mundlo. E deve dizer-se, por amor à verdade, que uma parte, talvez a maior, de tudo o que a Europa e a América de hoje admiram como sendo a expressão de um renascimento da cultura austríaca na música, na literatura, no teatro, nas artes plásticas, foi obra dos judeus de Viena, os quais tiveram a oportunidade de conseguir nesta cidade o mais alto nível de realização das suas aspirações milenárias, sempre inclinadas para a vida intelectual.

Uma energia intelectual, que há séculos não encontrava possibilidade de aplicação, fundiu-se em Viena com os caracteres de uma tradição já um tanto cristalizada, alimentando-a, revigorando-a, transmitindo-lhe novas forças e novo dinamismo, por intermédio de uma infatigável actividade.

Só o próprio tempo poderá comprovar a enormidade do crime que se pretendeu praticar com Viena cuja ascensão espiritual fora possível apenas devido à sua natureza heterogênea e ao sentido internacional da sua cultura - forçando-a violentamente a aceitar os imperativos do nacionalismo e do provincianismo.

Viena, cujo gênio era intimamente musical, tivera desde sempre a preocupação de harmonizar no seu seio todos os antagonismos. A sua cultura era uma síntese de todas as culturas do Ocidente e quem vivesse nessa cidade sentia-se livre de constrangimentos e de preconceitos. Em nenhuma outra parte do mundo era mais fácil ser cidadão da Europa. Pelo que a mim se refere, sei que devo, em grande parte, a Viena - essa cidade que já no tempo de Marco Aurélio defendia o espírito romano, universal -, o ter desde muito cedo aprendido a amar a idéia da universalidade, como a mais elevada do meu coração.

ViVia-se bem, facilmente e sem preocupações, nessa Viena de então. Os germanos do norte olhavam para nós, seus vizinhos das margens do Danúbio, mal-humorados e um pouco desdenhosamente. Consideravam que não éramos suficientemente "inteligentes" e que, em vez de mantermos rigorosa ordem na nossa maneira de ver, nos permitíamos uma vida de prazer: comíamos bem, divertíamo-nos melhor em festas e teatros e, além disso, tocávamos excelente música. Em vez da "inteligência" alemã, que afinal só tem perturbado e amargurado a existência dos outros povos, em vez da alucinante tendência alemã para suplantar todos os outros e para avançar continuamente, preferíamos nós a conversa agradável e amena e um tanto afável, deixando que, num espírito de bondosa tolerância que talvez tivesse um pouco de negligência, cada qual vivesse à sua maneira.

"Viver e deixar viver os outros" era o constante princípio de todos os vienenses, princípio que ainda hoje considero muito mais humano do que todos os outros imperativos categóricos, e que reinava sem oposição em todas as camadas sociais da cidade.

Ricos e pobres, checos e alemães, judeus e cristãos, todos viviam em paz, apesar de algumas eventuais e pequenas divergências. Na Áustria, até os próprios movimentos políticos e sociais estavam isentos daquele ódio brutal que só mais tarde, como resíduo venenoso da primeira Grande Guerra, havia de penetrar nos hábitos e nos costumes da época.

Os austríacos não tinham perdido o sentido de quanto se deve à dignidade humana. Nos jornais e no parlamento, por vezes, assistia-se a disputas, mas isso não obstava a que, depois desses duelos de oratória, os próprios deputados que se haviam invectivado se sentassem amigavelmente à mesma mesa para tomarem café ou cerveja. Mesmo quando Lueger, chefe do partido anti-semita, ascendeu a burgomestre da cidade, esse facto não teve a mínima influência nas relações particulares dos indivíduos e eu devo mesmo reconhecer que, pessoalmente, pelo facto de ser judeu, nunca fui vítima de qualquer inibição ou falta de consideração na escola, na Universidade ou na literatura. Nesse tempo, ainda o ódio entre países, povos e indivíduos não tinha saído da sua forma literária para nos assaltar diariamente e separar os homens de facto. Ainda o sentimento de subserviência e de subordinação ao imperativo das grandes multidões anônimas não era tão repugnantemente poderoso na vida pública como hoje. A liberdade - hoje já quase inconcebível - de cada qual na sua vida privada poder fazer o que muito bem lhe parecesse, era, então, perfeitamente compreensível. Nesse tempo ainda a tolerância não era tratada como uma doença, uma debilidade, mas sim elogiada e considerada grande força moral.

O século em que nasci e fui educado não foi, de nenhum modo, um século de paixões. Era um mundo ordenado, com a sua estrutura bem definida e lentas transições. Era um mundo sem precipitações. O novo sentido da velocidade, patente no automóvel no telefone, na rádio e no avião, não havia sido transmitido ao homem. A medida para a idade e para o tempo ainda era outra.

Procurava-se viver comodamente. Quando desejo recordar-me do aspecto físico dos adultos que viviam na minha infância, fico com a impressão de que muitos deles se tornavam um pouco precocemente obesos. Aos quarenta anos, já meu pai, meus tios, meus professores, os caixeiros das casas comerciais, os chefes de orquestra eram pessoas fortes e "respeitáveis". Andavam lentamente, falavam com discrição e, durante a conversa, afagavam a barba, impecàvelmente tratada, algumas vezes já grisalha. Mas o cabelo branco era então um novo motivo de dignidade e o homem "sensato" evitava conscientemente os gestos e a irreflexão da juventude, que considerava inconveniências.

Mesmo na minha primeira infância, quando meu pai ainda não tinha quarenta anos, não posso recordar-me nunca de havê-lo visto subir ou descer apressadamente uma escada, ou de ter feito qualquer coisa de maneira visivelmente brusca.

A pressa era uma indelicadeza, nessa época, e, verdadeiramente, também não era necessária, pois, nesse mundo burguês e estável, onde tudo se mantinha previsto, seguro e garantido, nunca sucedia nada inesperadamente. Os ecos das catástrofes que ocorriam longe, na periferia do mundo, não chegavam a atravessar as paredes revestidas da nossa existência "bem protegida".

A guerra do Transvaal, a russo-japonesa e até mesmo a guerra balcânica não tiveram a mínima influência na vida de meus pais. Liam nos jornais as notícias referentes a essas batalhas com tanta calma como as que se referiam aos desportos. E, verdadeiramente, porque se deviam preocupar com o que se passava fora da Áustria e de nenhum modo alterava a sua vida?

Na Áustria tranqüila e calma desse tempo não havia revoluções nem desequilíbrios financeiros. Se alguma vez na Bolsa o valor dos títulos baixava quatro ou cinco por cento, logo o facto atingia as proporções de uma falência, e os interessados, com a testa franzida, falavam já em "catástrofe".

Havia quem se queixasse, mais por hábito do que por verdadeira convicção, contra os "elevados" impostos, que, porém, comparados com os do após-guerra, significavam apenas uma espécie de pequena gratificação que o cidadão dava ao Estado,

Era o tempo em que o indivíduo previa no seu testamento, com todo o rigor, as modalidades que salvaguardassem os seus netos e bisnetos de qualquer perda nos bens que lhes legava, como se um simples documento fosse garantia da eterna inamobilidade dos valores. E, entretanto, ia vivendo tranqüilamente a sua existência, acariciando as suas pequenas preocupações como quem afaga bons e obedientes animais domésticos, que, verdadeiramente, nenhum receio infundiam.

Agora devo sorrir-me involuntariamente, quando o acaso faz deparar-se-me um jornal dessa época e leia apaixonados artigos acerca de uma simples eleição municipal, as insigmificâncias que surgiam à volta das representações no Burgtheater, ou a desmedida exaltação das nossas conversas juvenis sobre assuntos que não mereciam sequer discussão.

Como eram liliputianas todas essas preocupações, como era feliz e calma essa época

As gerações de meus pais e meus avós foram muito mais felizes. Percorreram o caminho da existência, desde um ao outro extremo, numa doce e imperturbável serenidade, Mas não sei, contudo, se lhes devo invejar essa sorte. É certo que eles mal tiveram uma vaga e distante idéia da verdadeira amargura, da malícia e da crueldade do destino. É certo que viveram como que à margem de todas as crises e de todos os problemas que enchem de angústia o coração, mas que, ao mesmo tempo, também o dilatam magnificamente!

Encontrando-se na posse daquilo de que precisavam e vivendo com a certeza de que sempre disporiam do que era seu com comodidade, ignoravam que a vida também pode ser contínua tensão, surpresa permanente, a negação do êxtase eterno.

com o seu mavioso liberalismo e optimismo, ignoravam que cada dia que surge pode despedaçar toda a nossa felicidade!

Nas suas noites mais negras não conseguiam nunca supor como o destino do homem se pode tornar triste, mas também não adivinharam nunca quanta força, quant@ energia ele é capaz de criar para dominar todos os perigos e resistir a todas as provações

Nós, porém, batidos pelas tempestades da vida, desprendidos de todas as raízes que nos ligavam ao nosso meio, forçados a um eterno recomeçar sempre que julgamos haver atingido um fim, nós, vítimas e apesar de tudo servidores espontâneos de desconhecidas forças misteriosas, nós, para quem a comodidade se tornou uma lenda e a tranqüilidade um sonho infantil, nós sentimos no mais íntimo de todo o nosso ser interminável tensão, o estremecimento de tudo o que este eterno recomeçar origina. Cada uma das horas da nossa vida estava intimamente ligada ao destino do mundo. Plenos de sofrimento, mas também trasbordando de alegria, tivemos de assistir, na curva da História e do tempo, a acontecimentos que ultrapassaram muitíssimo o horizonte estreito da nossa existência. Os nossos antepassados, porém, limitavam a sua vida a si próprios. E é por esta razão que até mesmo o homem mais obscuro da nossa geração sabe hoje mil vezes mais acerca da realidade da vida do que os mais sábios dos nossos antepassados. Mas nada nos foi dado de graça, pois, pela sabedoria assim adquirida, pagamos nós o seu justo e pleno vlalor!

 

           A Escola no século passado

Depois de ter freqüentado a escola primária, fui enviado para o liceu, o que é bem compreensível, pois uma das principais preocupações de todas as boas famílias era a de ter filhos "cultos".

Aprendíamos francês e inglês e familiarizávamo-nos com a música. A princípio, tínhamos preceptoras e, depois, professores particulares, que iniciavam a nossa educação. Contudo, naquela época de liberalismo esclarecido, só a formação acadêmica, que conduzia à Universidade, conferia ao indivíduo toda a sua importância.

Era por essa razão que as "boas famílias" desejavam que, pelo menos, um dos seus filhos pudesse antepor ao seu nome um título de doutor.

O caminho que conduzia à Universidade era, porém, um pouco longo e de nenhum modo florido. Passavam-se primeiro cinco anos nos bancos duros da escola primári-a e depois oito nos do liceu. Eram cinco e seis horas de estudo, diariamente, não contando com o tempo empregado nos exercícios escolares que se faziam em casa. Depois disso, tínhamos ainda o estudo das matérias especiais, que uma "cultura geral" exigia Francês, Inglês e Italiano, as chamadas "línguas vivas", e, ainda, o Grego e o Latim, línguas clássicas - isto é, cinco línguas, além da Geometria e da Física e das outras matérias escolares.

Verdadeiramente, tanto estudo era muito mais do que o necessário, pois quase ficávamos sem tempo para educação física, desporto e passeios e, sobretudo, nada ficava para as alegrias e divertimentos próprios da nossa idade.

Ainda tenho vagamente presente na minha memória as notas de uma melodia que nós aos sete anos devíamos decorar e cantar em coro. Era uma cançãozinha ingênua e simples: "Frohlichen, selígen Kínderzeit" (1). seu texto, porém, já nesse tempo dificilmente me aflorava aos lábios e de nenhum modo penetrara como íntima convicção no meu coração. Ê que, para ser franco, devo dizer que toda a minha vida escolar não foi mais do que um permanente tédio, que aumentava, de ano para ano, à medida que mais me impacientava por me libertar da sua opressão.

Não posso lembrar-me de nenhum momento "alegre e ditoso" durante toda essa monótona, severa e fria actividade escolar, a qual apenas nos encheu de tristeza a mais bela e a mais despreocupada época da vida. Ainda hoje, quase não posso impedir-me de ver con certa sensação de inveja como a infância do século actual se pode desenvolver e é mais livre e mais feliz. Quase não acredito estar em presença da realidade, quando vejo a forma como as crianças de hoje falam com os seus professores. Dão a impressão de que tratam com pessoas da sua categoria. E quando vão para a escola, não o fazem, como nós então o fazíamos, com um sentimento de receio e de inferioridade. As crianças de hoje podem livremente expor os seus desejos, manifestar as inclinações da sua alma juvenil, tanto na escola como em casa - são seres livres, independentes e respeitados.

 

(1) Infância alegre e ditosa.

 

Mas as crianças do meu tempo, logo que entravam em casa ou na escola, sentiam-se retraídas e humilhadas no ambiente de opressão que sempre as rodeava.

A escola para nós significava constrangimento, tédio e enfado. Era um lugar onde tínhamos de digerir a "ciência do que é necessário que se saiba", um lugar onde nos serviam, impecàvelmente doseadas, todas as matérias escolásticas ou como tal consideradas, e que nós intimamente compreendíamos nada terem que ver com a vida real e que nenhuma virtude poderiam encerrar para o nosso interesse pessoal.

As desagradáveis e obtusas matérias que o velho critério pedagógico nos forçava a estudar não tinham em vista a nossa preparação para a vida. Estudava-se por uma rotina, apenas. Não admira, pois, que o único momento deveras agradável e feliz que eu devo à escola seja precisamente aquele em que as suas portas se fecharam para mim.

Não quero com isto dizer que as escolas austríacas fossem más. Pelo contrário. O seu chamado "plano de estudos", pacientemente elaborado segundo a experiência de alguns séculos, poderia ser susceptível de nos facilitar a aquisição de uma cultura útil e quase universal. Era, porém, necessário que fosse conscientemente aplicado, despertasse o nosso interesse. Mas era precisamente no seu demasiado metodismo e na aridez da sua estrutura que residia o seu principal defeito, pois o estudo tornava-se horrivelmente monótono, sem vida. Era uma engrenagem fria que não tinha em atenção o indivíduo e só o considerava como se ele não fosse mais que um simples autômato, através das notas "bom, suficiente e mau". Eram estas cifras, apenas, que indicavam o grau em que cada estudante havia correspondido às "exigências do plano". Porém, esta falta de atenção pelo que é humano, este automatismo onde a personalidade do ser desaparecia por completo e o modo severo como nos tratavam, era o que particularmente nos infundia a instintiva animadversão que a escola suscitava.

Tínhamos de estudar as nossas lições, e examinavam-nos para que se verificasse o que havíamos aprendido. Mas nem uma única vez, durante oito anos, um só professor se informou das nossas preferências pessoais e, assim, o estímulo que todos os jovens tão ardentemente desejavam obter nunca nos foi concedido.

Este desagradável ambiente que nos circundava começava a notar-se logo no próprio edifício da nossa escola, cuja construção datava de há cinqüenta anos e não reunia os requisitos indispensáveis, com os seus frios e mal caiados corredores, as suas aulas acanhadas, em cujas paredes não havia um quadro ou um único ornamento que alegrasse a vista, com suas retretes de onde se exalavam emanações que se espalhavam por toda a parte esse edifício era, verdadeiramente, apenas uma caserna onde se leccionava. Tinha aquela qualquer coisa de estranho que sentimos quando nos encontramos em frente de velhos móveis de hotel que muitas pessoas já utilizaram antes de nós, e muitas outras voltarão a utilizar com a mesma indiferença ou repugnância.

Ainda não me esqueci do bolor da irrespirável atmosfera dessa escola, onde pairava, como em todas as dependências oficiais, na Áustria, aquele característico cheiro a bafio que era conhecido entre nós como "cheiro de repartição pública", conseqüência de um ambiente de dem'asiado aquecimento em salas onde há muita gente e onde a ventilação é deficiente, e que começava por nos impregnar as vestes, e depois a alma.

Do mesmo modo que os forçados nas galés, também nós na escola nos sentávamos dois a dois em bancos de madeira muito baixos. Nessa posição éramos obrigados a curvar a espinha dorsal: ainda que os ossos nos doessem ou não, tínhamos de continuar sentados.

Durante o Inverno tremeluzia sobre os nossos livros a chama azulada do gás da iluminação pública e no Verão baixavam-se hermèticamente todas as persianas das janelas para que o nosso olhar não se distraísse com a visão de um pequeno quadrilátero de céu azul. Esse século ainda não havia descoberto que o nosso corpo em formação necessitava de ar e de movimento.

Nesse tempo, considerava-se que dez minutos de recreio num frio e estreito corredor eram suficientes para compensar quatro ou cinco horas de imobilidade, e, em relação a cultura física, éramos levados para a sala de ginástica, duas vezes por semana, onde, com todas -as janelas cuidadosamente fechadas, nos agitávamos sem nexo, levantando, a cada passo, nuvens de poeira, das tábuas do pavimento. com tudo isso se satisfazia a higiene e o próprio Estado ficava cônscio de que havia cumprido o seu "dever", procurando que em nós se realizasse o velho preceito "mens sana en corpore sano".

O sentimento de antipatia que essa escola me deixou era de tal modo grande que, mais tarde, quando passava em frente desse casarão lúgubre e sombrio, logo de mim se apoderava uma alegria imensa por não mais ter sido forçado a entrar nesse cárcere da nossa infância. Alguns anos depois, quando, por ocasião do cinqüentenário da fundação desse estabelecimento, fui convidado a tomar parte na festa que então ali se realizou e, como antigo aluno de distinção, incumbido de proferir o discurso inaugural perante o ministro e o burgomestre, cortêsmente declinei o convite. Nada devia a essa escola, e qualquer palavra de gratidão teria sido mentirosa.

Não se julgue, porém, que os nossos professores eram culpados do ambiente desconsolador que na escola se observava. Na verdade, eles não eram bons nem maus. É certo que não eram de nenhum modo tiranos, mas também não eram amigos dedIcados. No fundo, eram apenas pobres diabos, escravos amarrados ao plano de ensino que lhes impunham, e que tinham, como nós, um dever a cumprir e - percebíamos perfeitamente ser assim - se sentiam tão felizes como nós, quando ecoava a sineta, que, anunciando o fim dos trabalhos escolares, nos dava a todos a tão desejada liberdade.

Esses professores não nos estimavam nem nos odiavam. Também não tinham motivo nem para uma coisa nem para outra, pois de nós quase nada conheciam. Após alguns anos de contacto connosco, por vezes mal sabiam como nos chamávamos, pois o método pedagógico então usado considerava que tudo estava feito quando o professor sabia quantos erros o "aluno" havia cometido nos últimos exercícios.

As nossas mútuas relações obedeciam a uma norma inflexível: os professores estavam em cima, sentados na cátedra e nós em baixo. Formulavam-nos perguntas, e nós devíamos responder-lhes. A isso se limitavam as relações entre professor e aluno, pois entre a cátedra e o banco, entre a realidade que estava em cima e a realidade que estava em baixo, pairava a invisível mas dominadora barreira da "autoridade", que as separava.

O professor de então não considerava o aluno uma pessoa que merecesse dele especial atenção e dedicação. Realizar observações ou redigir estudos sobre a maneira de ser do estudante, como hoje já é costume fazer-se, era então uma missão que excedia as capacidades e o dever do professor. Por outro lado, nunca este teria consentido em uma conversa particular com um discípulo, porque esse facto seria considerado como susceptível de diminuir a sua "autoridade", pois teria colocado o "aluno" no mesmo plano em que ele se encontrava - ele, o "superior".

O que, quanto a mim, prova bem a total indiferença moral e espiritual que existia entre nós e os nossos professores é o facto de eu ter esquecido o nome e a fisionomia de todos eles.

Ainda hoje guardam toda a sua primitiva nitidez na minha memória as imagens da cátedra e do livro de registos, para o qual olhávamos com temor, porque nele se encontravam as nossas notas e também ainda não se apagaram as imagens do pequeno livro vermelho, onde primeiramente se faziam as classificações, e a do pequeno lápis preto com que o professor escrevia as cifras. Vejo ainda, também, os meus cadernos de exercícios com as inúmeras correcções que nele faziam com tinta vermelha, mas já não tenho presente a fisionomia de nenhum dos meus professores. Apagaram-se todas da minha memória - talvez porque quando estávamos diante deles baixávamos os olhos, humilde ou indiferentemente.

Essa antipatia pela escola não era resultado de uma disposição particular, limitadte apenas à minha pessoa. Não consigo lembrar-me de nenhum dos meus condiscípulos que não sentisse pela escola profunda animadversão e que não tivesse a impressão de que nela apenas se procurava desoladamente reprimir os nossos desejos e as nossas tendências.

Só muito mais tarde, porém, eu havia de adquirir a convicção de que o ríspido e frio método pedagógico que nesse tempo se empregava para a formação da juventude não era o resultado de incompetência ou de incúria de esferas oficiais, mas correspondia a um objectivo, que com todo o cuidado e atenção se procurava atingir.

Essa época, cujo ídolo supremo era a preocupação constante de segurança, não estimava a mocidade melhor ainda: tinha contra ela um'a permanente desconfiança. Orgulhosa do seu "progresso" sistemático e da sua ordem, a sociedade burguesa proclamava que a moderação e a paciência eram as verdadeiras virtudes eficazes em todas as manifestações de actividade da vida do homem. Por isso, tudo quanto contribuísse para o nosso rápido desenvolvimento era sistematicamente evitado.

A Áustria era então um país antigo, regido por um imperador que já tinha cabelos brancos, governado por velhos ministros; uma nação sem ambições, cujo desejo essencial consistia em manter a sua integridade na Europa, evitando todos os embates e transformações radicais. E, como a juventude aspira por natureza a evoluções rápidas, era considerada por essa sociedade um elemento perigoso, que convinha manter à margem tanto tempo quanto possível ou até mesmo reprimir.

Não havia, pois, razão que incitasse essa sociedade a tornar agradável a nossa vida escolar. Tínhamos de adquirir a nossa formação de uma maneira lenta e à custa de muita paciência. Nesse tempo, ainda as diferentes fases da idade escolar não tinham a mesma importância que hoje têm. Um ser de dezoito anos de idade, aluno do liceu, ainda era tratado como se fosse uma simples criança; - seria castigado se fosse surpreendido com um cigarro, e tinha de levantar docemente a mão dando sinal que desejaria erguer-se do seu banco e sair da aula para satisfazer qualquer necessidade natural. Mas também um homem de trinta anos era julgado como um ser sem experiência, e até um homem de quarenta ainda não era considerado suficientemente maduro para ocupar um cargo de responsabilidade.

Recordo-me ainda perfeitamente do assombro e da admiração que causou em Viena a nomeação de Gustavo Ma'hler, quando este contava apenas trinta e oito anos, para o cargo de director da Ópera Imperial. Era incompreensível que a direcção do mais importante centro do país fosse confiada a uma pessoa "tão jovem". Os vienemses haviam-se esquecido de que Mozart e Schubert, aos trinta e seis e aos trinta e um anos de idade, respectivamente, já haviam terminado as obras que os imortalizaram. É que a impressão de que nenhum jovem merecia "completa confianç/a" imperava então em todos os sectores da sociedade.

Meu pai não teria nunca admitido um jovem nos seus negócios e todo aquele que tivesse a infelicidade de aparentar menos idade do que aquela que realmente tinha, estava sujeito a sofrer muitas contrariedades. Acontecia, então, o que hoje quase se não concebe - o facto de ser jovem constituía um impedimento para a obtenção de qualquer boa posição. Só os velhos eram preferidos.

Hoje, porém, está tudo mudado. Os homens de quarenta anos fazem tudo o que lhes é possível para darem a impressão de que têm apenas trinta e os que têm sessenta desejam aparentar apenas quarenta. Enquanto que hoje juventude, energia, dinamismo e confiança em si próprio são qualidades recomendáveis e até indispensáveis, naquela idade de segurança qualquer indivíduo que quisesse triunfar na vida tinha de utilizar todos os disfarces imagináveis que lhe permitissem parecer mais velho.

Os jornais da época recomendavam preparados que facilitavam o precoce crescimento da barba, e jovens médicos de vinte e quatro ou vinte e cinco anos de idade, que recentemente haviam concluído os seus cursos, já usavam longas barbas e óculos de ouro, ainda que os seus olhos não tivessem necessidade deles. Procuravam, assim, fazer despertar nos seus primeiros doentes a impressão de que já eram homens maduros, que já tinham "experiência". Para dar forma à gravidade exterior que então se julgava indispensável, usavam-se compridas sobrecasacas pretas e tomara-se o hábito de andar cerimoniosamente; o ideal seria ainda que o indivíduo fosse levemente obeso. Quem queria triunfar devia renunciar, pelo menos exteriormente, à juventude, pois ela era considerada como sinônimo de incapacidade. Este sentimento estava de tal modo generalizado que até os alunos do sexto ou sétimo ano do liceu procuravam, para não serem reconhecidos, usar pastas diferentes das que eram geralmente usadas pelos estudantes.

Tudo o que hoje é venerado, a vivacidade, a consciência íntima do saber e do valor, a curiosidade e a grande e juvenil alegria de viver, tudo isso era nessa época, em que só o que era ponderado e sóbrio' tinha aceitação, considerado com profunda antipatia.

É compreensível, pois, que, num ambiente desta natureza, o Estado considerasse que a Escola era simplesmente um instrumento posto ao serviço da continuidade da política de autoridade geralmente admitida.

O fim que a nossa formação tinha em vista era, pois, o de nos incutir o respeito por tudo o que existia, como se tudo tivesse atingido já o máximo grau da perfeição: a lição do professor era infalível, o conselho do pai era irrefutável; a organização política do Estado correspondia eterna e absolutamente a todas as necessidades da nação.

Paralelamente a este critério pedagógico fundamental, existia também outro, não menos importante, cujos efeitos se faziam sentir, não apenas na escola, mas também na família, e que consistia no princípio de que a juventude não devia ter uma existência demasiado cômoda.

Dizia-se aos jovens que, aintes de lhes serem concedidos direitos, tinham deveres a cumprir, e, sobretudo, o dever da mais rigorosa obediência. Faziam-nos compreender, assim, desde o começo, que, não tendo nós ainda feito nada na vida, e não tendo ainda experiência de nenhuma natureza, só tínhamos de agradecer tudo o que nos era concedido; não nos assistia ainda o direito de inquirir ou o de solicitar.

Desde a mais tenra infância que a criança da minha época era submetida ao inqualificável método de atemorização constante. As criadas e as mães ignorantes começavam logo a assustar as crianças quando apenas tinham três ou quatro anos de idade, dizendo-lhes que chamariam "o polícia" se não deixassem imediatamente de ser más.

Aos que frequentávamos o liceu, quando obtínhamos alguma classificação considerada insuficiente em qualquer matéria escolar sem grande importância, logo nos ameaçavam, dizendo-nos que não continuaríamos os nossos estudos e que, como castigo, nos mandariam aprender um ofício. Essa era a mais grave ameaça que se podia fazer a um membro da classe burguesa, pois significava o retrocesso ao proletariado,

Este era o método geralmente seguido, tanto no lar como na escola e nas repartições oficiais. Um jovem, guiado pelo mais salutar desejo de aprender, não podia então dirigir-se a uma pessoa mais velha, pedindo-lhe explicações acerca de problemas delicados, sem que ela o repelisse e lhe dissesse do alto da sua arrogância: "ainda estás muito novo para te interessares por estas coisas"

Em toda a parte se procurava infatigàvelmente dar a compreender ao jovem que ele ainda não estava apto para a vida, e que o seu único dever era aprender, ouvir e calar. Por esta razão também na escola o pobre diabo do professor, sentado lá em cima, na cátedra, devia permanecer caricatamente inacessível, regulando apenas toda a nossa maneira de ser pelas normas impostas pelo seu "plano de ensino".

O professor não procurava saber se nos sentíamos bem ou mal na escola. Essa não era, de resto, a sua missão; consistia muito mais em procurar refrear as nossas tendências do que em desenvolvê-las. O seu fim essencial não era aperfeiçoar o nosso espírito, mas sim manietá-lo, contrariando, na medida do possível, toda a nossa resistência às normas do seu plano. Não procurava desenvolver-nos as energias, mas sim discipliná-las.

Um sistema psicológico desta natureza - verdadeiramente deve dizer-se: um sistema tão-pouco psicológico - só podia ter dois efeitos sobre a juventude entorpecer ou excitar.

Consultando os trabalhos dos psicanalistas, observa-se a desgraçada influência desse método absurdo de cultura na formação de "complexos de inferioridade". E talvez não seja pura casualidade que essas doenças mentais tivessem sido precisamente descobertas por homens que passaram pelas nossas antigas escolas austríacas.

Creio ser a um desses efeitos que devo esta paixão que desde muito cedo em mim se manifestou e entre a juventude de hoje não é conhecida com o mesmo grau de intensidade o grande amor à minha liberdade, e o ódio contra tudo o que signifique autoritarismo, contra tudo o que signifique "falar com ar de superioridade".

Este ódio tem-se manifestado em toda a minha existência, mas, durante muito tempo, essa animadversão contra o dogma e o absolutismo tomara a forma de um sentimento instintivo, cuja origem já havia esquecido. Porém, quando uma vez, durante um ciclo de conferências, fui convidado a proferir uma delas na sala de sessões da Universidade e descobri que devia falar do alto de uma cátedra para um auditório que se encontrava no plano inferior, sentado em bancos, que devia ouvir, sem falar e sem replicar, perfeita imagem do que se passava na escola nos meus tempos de colegial, fui invadido por um súbito sentimento de contrariedade.

Lembrei-me, então, de quanto havia sofrido durante toda a minha vida escolar com os aborrecidos, autoritários e dogmáticos discursos que nos vinham de cima, e apoderou-se de mim um receio de que também eu, falando de uma cátedra, fosse tão incaracterístico e tivesse tão pouca influência no auditório como outrora os nossos professores.

Em virtude desse sentimento, creio que essa conferência foi a pior de todas as que realizei durante a minha vida.

Enquanto tínhamos apenas catorze ou quinze anos de idade, ainda a escola conseguia prender-nos a atenção. Gracejávamos acerca dos professores e estudávamos as lições com fria curiosidade. Depressa chegava, porém, a hora em que ela se tornava mais antipática e mais nos oprimia. Verificava-se então um fenômeno curioso, cuja gestação se havia operado lenta e silenciosamente: tendo dado entrada no liceu aos dez anos de idade, quase crianças ainda, logo nos primeiros quatro anos, dos oito que constituíam o curso completo, ultrapassávamos a preparação intelectual que nesse estabelecimento de ensino se adquiria. Compreendíamos perfeitamente que, desde esse momento, nada de mais importante nos poderia oferecer, pois até se dava -o caso de que algumas matérias, cujo estudo ainda nos poderia interessar, já as conhecíamos melhor do que os nossos pobres professores, os quais, terminada a sua formação, nunca mais haviam tido a preocupação pessoal de folhear um livro.

O sentimento de que já não estávamos no nosso lugar desenvolvia-se cada vez com mais intensidade, pois sabíamos que, enquanto na escola nada de novo ouvíamos o, nada nos davam para estudar que encerrasse verdadeiramente algum valor, lá fora havia uma cidade imensa cheia de atracções e que cada dia que passava trazia noves surpresas, com os seus teatros, museus, livrarias, Universidades, música, etc.

Esse sentimento apartava-nos irremediavelmente da escola, pois toda a nossa ânsia de saber, ali mal refreada, toda a nossa curiosidade intelectual e artística, todo o nosso imenso desejo de viver não encontrava nela nenhuma espécie de alento. E foi assim que ela se nos tornou estranha e nos lançou apaixonadamente para tudo o que corria fora da sua órbita. Primeiramente, eram apenas dois ou três alunos que começavam por manifestar tendência para a arte, para a literatura e para música, depois era uma dúzia e, por fim, quase todos.

Não admira que assim sucedesse, pois o entusiasmo é um fenômeno contagioso entre a juventude. Propaga-se a toda uma aula. de um Indivíduo a outro, como o sarampo ou a escarlatina. Os neófitos, na sua ardência infantil pelo saber e ambicionando superar-se rapidamente uns aos outros, impelem-se mútuamente sempre avante. A direcção desse irresistível movimento está apenas subordinada a factores acidentais. Se, por exemplo, numa aula há um aluno que aprecia a filatelia, logo, em pouco tempo, junta à sua volta uma dúzia de condiscípulos que se preocupam com a mesma matéria, e quando três alunos se apaixonam por dançarinas, é quase certo que todos os outros se postarão diariamente à entrada da porta que dá acesso ao palco da Ópera. Depois da nossa turma, três anos mais tarde, houve outra que se entusiasmou inteiramente pelo futebol e antes da nossa houvera outra que se apaixonara pelo socialismo e pelas doutrinas de Tolstoi.

O facto, aliás casual, de eu ter feito os meus estudos num curso onde se encontravam tantos apaixonados pela arte foi, talvez, um factor decisivo para toda a minha vida.

Esta dedicação pela arte, pela literatura e pelo teatro era, em Viena, absolutamente compreensível e natural. Os jornais citadinos consagravam-lhes uma especial atenção, e em toda a parte para onde nos dirigíssemos, para a direita ou para a esquerda, ouvíamos sempre os adultos discutir acerca da Ópera ou do Teatro Imperial. Em todas as montras das casas comerciais da especialidade viam-se retratos dos mais célebres actores.

Nessa época, ainda o desporto era considerado uma brutalidade mais imprópria do que digna de um estudante e o cinema não havia atingido o seu poder atractivo, com o ideal das grandes massas. Por outro lado, da família nada tínhamos a recear, porque o gosto pelo teatro e pela literatura faziam parte - ao contrário do que sucedia com o jogo e com as paixões amorosas - das inclinações então consideradas "inocentes". O meu próprio pai também havia sido na sua juventude um apaixonado pelo teatro - todos os pais em Viena tinham essa paixão - e assistira com tanto entusiasmo à representação do Lahengrin, sob a regência de Wagner, como nós mais tarde assistiríamos às de Ricardo Strauss e Gerhart Hauptmamn.

Era bem justificável o desejo de assistirmos a todas as primeiras representações, porque, se o não fizéssemos, como não nos haveríamos de envergonhar diante de outros condiscípulos mais felizes, quando, na manhã seguinte, não pudéssemos, como eles, dar notícia de todos os seus pormenores

Se os nossos professores não fossem tão indiferentes, teriam notado que em todas as tardes que antecediam uma primeira representação - para a qual já às três horas devíamos procurar conseguir lugares sem direito a assento, os únicos que nos eram acessíveis - dois terços dos alunos adoeciam misteriosamente. Se tivessem sido também mais observadores, teriam descoberto que nas capas das nossas gramáticas de latim metíamos poesias de Rilke, e utilizávamos os nossos cadernos de matemática para neles copiarmos, de livros emprestados, as mais belas poesias. Inventávamos constantemente novos processos de dedicar às nossas leituras preferidas as longas e monótonas horas das aulas, e era assim que, enquanto o professor nos fazia uma insípida prelecção sobre a ingênua e sentimental poesia de Schiller, nós, por detrás da carteira, líamos Nietzsche e Strindberg, nomes que o bom velho jamais ouvira pronunciar.

Éramos devorados pela febre de tudo saber, de conhecer tudo o que se passava nos domínios da Arte e da Ciência de tarde, metíamo-nos entre os estudantes da Universidade para assistirmos às leituras nos seus cursos, visitáramos as exposições de arte e frequentávamos as salas de anatomia para presenciarmos as dissecações. Em toda a parte queria penetrar o nosso espírito observador e curioso. Procurávamos ir sempre aos ensaios das orquestras, revolvíamos tudo nos alfarrabistas e todos os dias passávamos em revista as montras das livrarias para sabermos o que, desde a véspera, tinha aparecido de novo.

Sobretudo, líamos muito, incansavelmente; líamos tudo o que nos chegava às mãos. Procurávamos livros nas bibliotecas públicas e emprestávamos uns aos outros aqueles que podíamos obter; porém, o grande centro onde obtínhamos todas as novidades que interessavam à nossa cultura era o "café".

Para se compreender a razão da influência que o "café" tinha na nossa vida, é preciso que se saiba como ele era em Viena uma instituição sem outra no mundo que se lhe pudesse comparar. Era, simplesmente, um verdadeiro clube democrático, onde, pela modicidade do preço que custava uma xícara de café, cada cliente podia estar sentado horas inteiras, discutir, escrever, jogar, receber correspondência, e sobretudo ler um grande número de jornais e de revistas. Num bom "café" havia não somente toda a imprensa da cidade, mas também jornais alemães, franceses, ingleses e americanos, e bem assim importantes revistas literárias e artísticas, tais como "Mercure de Ffance'", "Neue JRundschau", "Studio" e "Burlington Magazine".

Era no "café" que, dispondo de todos esses elementos, sabíamos directamente o que se passava no mundo, tínhamos notícia de quando aparecia um novo livro e quando se realizava uma representação teatral, e comparávamos as críticas que saíam em todos os jornais. Estamos convencidos de que nada contribuiu tanto para a mobilidade intelectual e para a orientação internacional do austríaco como a possibilidade que ele tinha de poder documentar-se amplamente no "café", sobre todos os acontecimentos que ocorriam no mundo e de os discutir depois com os amigos.

Todos os dias passávamos aíi horas inteiras e nada escapava ao nosso conhecimento, pois, graças à identificação das nossas preocupações e desejos, seguíamos o orbis pictus dos acontecimentos artísticos, não com dois, mas sim com vinte ou quarenta olhos. O que um de nós apenas vislumbrava, logo outro o aprofundava, pois, como éramos dominados por uma emulação quase infantil e por um desejo de mútua competição na nossa ânsia de tomar conhecimento do que era novo e também do que era novíssimo, sempre encontrávamos entre nós uma permanente disposição de espírito sedenta de sensações.

Lembro-me de que, quando discutíamos as idéias de Nietzsche, que então ainda não havia alcançado a plenitude do seu prestígio, um de nós disse subitamente com fingida convicção: "na doutrina do egotismo, Kierkegaard é superior a ele".

- Mas quem é esse Kierkegaard, que X conhece e nós não - pensou cada um intimamente. E no dia seguinte corremos a uma biblioteca, a fim de obtermos os livros desse filósofo dinamarquês esquecido, pois entendíamos ser uma inferioridade desconhecermos algo de exótico que outro conhecia. A nossa paixão, à qual durante muito tempo também estive completamente submetido, era a de descobrir precisamente o mais novo, o mais original, o que ninguém havia adoptado e sobretudo aquilo de que os jornais diários ainda se não haviam ocupado; queríamos, enfim, estar permanentemente na vanguarda.

O que despertava o nosso constante interesse era tudo o que ainda não era do conhecimento geral, tudo o que era dificilmente acessível, o que estava demasiado elevado, o que era novidade e o que era radical. Por essa razão, nada havia tão escondido ou isolado que nossa curiosidade colectiva, movida por um constante desejo de superação, não descobrisse.

As obras de Stefan George ou as de Rilke, por exemplo, cujas edições, durante o período em que éramos estudantes do liceu, não iam além de duzentos ou trezentos exemplares, e dos quais apenas três ou quatro, quando muito, chegavam até Viena e, por isso, não se encontravam em nenhuma livraria, já eram de nós conhecidas, mesmo antes de os críticos oficiais haverem pronunciado o nome de Rilke. Era, graças ao milagre da nossa vontade, que no nosso círculo se conheciam já todos os versos e todos os poetas. Nós constituíamos, precisamente nós, que ainda éramos rapazes imberbes, os que ainda não havíamos atingido a plenitude e que ainda devíamos ficar todos os dias sentados longas horas nos bancos da escola, nós éramos, de facto, o público ideal de que um jovem poeta necessita para poder triunfar; éramos um público que desejava saber, judicioso na crítica e entusiasta.

A nossa capacidade de entusiasmo pela cultura não tinha limites. Nas aulas ou no caminho da escola, no regresso ou no "café", no teatro ou nos nossos passeios, nós, os que ainda nos encontrávamos em formação, não fazíamos outra coisa mais do que discutir sobre música, pintura e filosofia. Quem tivesse actividade pública, fosse actor ou maestro, publicasse um livro ou escrevesse num jornal, era uma estrela no nosso firmamento. Quase que fiquei vivamente impressionado quando, alguns anos mais tarde, encontrei na narração da juventude de Balzac esta frase que sintetizava tão bem aquilo que havíamos sentido: "Les gens célebres étaient pour mói comme dês dieux qui ne parlaient pás, ne marchaient pás, ne mangeaient pás comme les autres hommes".

Para nós também assim era, pois, quando algum tinha visto na rua Gustavo Mahler, logo o facto tomava foros de grande acontecimento, que no dia seguinte orgulhosamente se contava aos condiscípulos como um triunfo pessoal. Recordo-me de que uma vez, ainda pequeno, fui apresentado a João Brahms, e, como ele me tivesse batido afàvelmente nos ombros, fiquei durante alguns dias impressionado com o prodigioso acontecimento. Nesse tempo, com os meus doze anos, eu só muito imprecisamente conhecia Brahms, mas fora suficiente a sua fama e a aura que envolvia as suas criações para me comover profundamente.

A simples notícia da primeira representação de uma obra de Gerthart Hauptmann exaltava já toda a nossa classe, muitas semanas antes de se iniciarem os ensaios. Aproximávamo-nos então de actores e comparsas de menos nomeada a fim de obtermos em primeiro lugar notícias sobre o enredo e a distribuição dos papéis. Chegávamos a ir cortar o cabelo ao cabeleireiro do Burgtheater - não receio falar também nos nossos exageros -, apenas com o propósito de colhermos informações da vida íntima de Wolter ou de Sonnenthal. Tratávamos com toda a solicitude um condiscípulo de uma classe inferior e procurávamos conquistar com atenções especiais a sua estima, nós, que éramos mais velhos, só porque ele era sobrinho de um inspector dos serviços de iluminação na Ópera, e porque nós, por seu intermédio, havíamos às vezes conseguido penetrar sorrateiramente nos bastidores, para assistir aos ensaios. Pisar esse palco fazia-nos estremecer mais do que estremeceu Dante quando subiu às regiões sagradas do Paraíso.

O poder da irradiação da fama era tão forte que, apesar de, por vezes, chegar até nós só depois de atravessar múltiplos ambientes, ainda nos infundia profundo respeito. Era assim que uma pobre velhinha nos aparecia como se fosse um ser sobrenatural, somente porque ainda era sobrinha em segundo grau de Schubert, e, quando o criado de quarto de Kainz passava na rua, olhávamos para ele com profunda admiração só porque tinha a felicidade de viver na intimidade desse grande actor, o mais querido e genial de todos.

Compreendo perfeitamente quanto havia de absurdo nesse desenfreado entusiasmo, nesse desejo de emulação, nesse prazer que talvez já fosse uma tendência para a competição, nessa pueril vaidade de, por intermédio da nossa dedicação à Arte, termos a petulante pretensão e nos julgarmos superiores ao meio, sem sentido artístico, constituído pelos nossos professores e pela nossa família. Mas, por outro lado, ainda hoje me assombro quando me lembro de que a esse desmedido entusiasmo pela cultura, a esse constante discutir e dissecar, devíamos a precoce aquisição da nossa capacidade crítica. Aos dezoito anos, já eu conhecia, não só todas as poesias de Baudelaire ou de Walt Whítmann, mas até sabia de memória as principais, e creio que nunca mais voltei a ler com tanta intensidade como durante a minha vida de aluno do liceu e da Universidade. Já então nos eram familiares nomes de autores, que só um decênio mais tarde se tornariam conhecidos do público, e até as obras literárias de valor muito efêmero ficavam também gravadas na nossa memória, por serem lidas com tanto zelo.

Recordo-me de que uma vez, contando eu ao meu venerado amigo Paul Valéry como era velha a estima literária que tinha por ele, porque - dizia-lhe havia já trinta anos que lera versos seus, que muito me agradaram, respondeu-me o poeta com sorridente bonomia:

- Não me engane, meu bom amigo! Os meus versos só em 1916 foram publicados.

Quando, porém, lhe fiz uma descrição exacta das características da pequena revista literária na qual, em 1898, encontrara os seus primeiros versos, ficou muito admirado e respondeu-me

- Mas se em Paris quase ninguém conheceu essa revista, como a viu o senhor em Viena

- Exactamente pela mesma razão por que o senhor, sendo apenas ainda estudante de liceu, na sua cidade de província, conseguiu ler as poesias de Mallarmé, as quais também ainda a literatura oficial não conhecia ripostei eu. E Paul Valéry, concordando, continuou:

- À mocidade descobre os seus poetas, porque se quer descobrir a si própria.

Na realidade, adivinhávamos a aproximação do vento antes mesmo que ele tivesse atravessado a fronteira, porque as nossas narinas estavam sempre infatígàvelmente dilatadas. Encontrávamos o que era novo, porque assim o desejávamos, porque tínhamos sede de qualquer coisa que correspondesse à nossa maneira de ser e só a nós pertencesse, ao nosso mundo e não ao dos nossos pais. A juventude possui, como certos animais, um magnífico instinto que pressente as mudanças atmosféricas, e era por isso que a nossa geração sabia que estava em início uma revolução ou pelo menos uma alteração na escala dos valores, se bem que os nossos professores e as Universidades ainda não suspeitassem que, com o velho século que se extinguia, também morreriam alguns dos seus conceitos sobre Arte.

Os bons e respeitáveis mestres da época dos nossos pais - Gottfried Keller na literatura, Ibsen na dramaturgia, Brahms na música, Leibe na pintura e Eduardo von Hartmann na filosofia - encerravam as virtudes do mundo da segurança, mas, apesar do seu incontestável valor intelectual e espiritual, já não nos satisfaziam. Compreendíamos instintivamente que o seu impecável ritmo não se coadunava com o do nosso sangue inquieto e que também já não correspondia ao novo sentido dinâmico da nossa época.

Nessa altura vivia então em Viena Hermann Bahr, o espírito mais ousado da nova geração alemã, intelectual que apaixonadamente se agitava a favor de tudo o que no domínio da cultura se encontrava em gestação, Foi com o seu auxílio que se abriu em Viena a "Sezessico" onde se expunham, perante a indignação dos fiéis à velha escola, os trabalhos dos impressionistas e pontilhistas de Paris as obras de Munch, da Noruega e as de Rops, da Bélgica e, além disso, as de muitos outros extremistas, abrindo-se também, simultaneamente, com esse movimento, novas perspectivas aos seus predecessores desprezados Grünewald, Greco e Goya. Iniciava-se subitamente um novo sentido da estética na pintura e, também, noutros sectores da vida intelectual:

- na música surgiram, graças a Mussorgsky, Debussy, Strauss e Schônberg, novos ritmos e tonalidades na literatura nascia o realismo, com Zola, Strindberg e Hauptmann com Dostoiewsky irrompia o demonismo eslavo e o lirismo da palavra atingia, com Verlaine, Rimbaud e Mallarmé, uma elegância e uma sublimação, até então desconhecidas. Nietzsche revolucionava a filosofia, e uma arquitectura audaciosa mas livre proclamava, contra o excesso da ornamentação clássica, a supremacia da construção sóbria.

Todos os valores até então considerados infalíveis foram postos em dúvida, a ordem e o antigo conceito do «esteticamente belo» (Hanslick) foram subitamente perturbados. Enquanto os «respeitáveis» jornais burgueses se indignavam contra essas experiências audaciosas, procurando obter a irreprimível avalancha com os condenatórios epítetos de «decadente e «anárquico», a juventude lança-se entusiasticamente na ressaca, acorrendo aos pontos onde mais violentamente espumava. Tínhamos a certeza de que surgia uma nova época, a nossa, enfim, na qual a juventude afirmava os seus direitos.

As nossas inquietações adquiriram, assim, subitamente, novo sentido; nós, os jovens, que ainda frequentávamos a escola, já podíamos tomar parte nas grandes e por vezes furiosas batalhas de arte nova.

Era certo que, onde se tentasse uma experiência, como, por exemplo, uma representação de Wedekind, uma audição de nova lírica, estaríamos indefectivelmente presentes, não apenas com todo o ardor da nossa alma, mas também com toda a força das nossas mãos; eu mesmo tive ocasião de presenciar, numa primeira representação de uma das primeiras obras atonais de Arnold Schõnberg, a maneira como o meu amigo Busòhbeck deu, a um cavalheiro que apupou e assobiou fortemente, uma não menos forte bofetada. Nós constituíamos a tropa de choque, a vanguarda de todas as manifestações do novo conceito da arte. E agíamos assim, simplesmente, porque essa arte era nova e queria preparar o mundo para aqueles a quem chegava a vez de viverem a sua vida, para nós, porque sentíamos nostra rés agitur.

Havia ainda outra razão que nos prendia de uma maneira intensa e fascinante a essa arte nova: é que ela era quase exclusivamente cultivada pela juventude. Na época dos nossos pais, um músico ou um poeta só podia adquirir celebridade depois de haver dado «provas do seu valor e de se haver adaptado às tendências e aos hábitos firmemente estabelecidos da sociedade burguesa. Todos os homens desse tempo que nos ensinaram a estimar tinham uma apresentação e um porte que inspiravam realmente respeito. Alguns, como Wilbrandt, Ebers, Felix Dahn, Paul Heyse e Lenbach, então muito venerados e hoje já quase esquecidos, usavam belas barbas grisalhas que caíam sobre os seus poéticos casacos de veludo, deixavam-se fotografar com o olhar pensativo e sempre em pose "digna" e "poética", viviam com os conselheiros da corte e os dignitários e, como eles, recebiam também condecorações. Mas os poetas, os pintores ou os músicos jovens eram, na melhor das hipóteses, classificados como "talentos em perspectiva" e provisoriamente colocados em disponibilidade, situação na qual se mantinham enquanto não dessem positivas provas do seu valor. Essa época previdente não gostava de conceder mercês senão àquele que as tivesse merecido como conseqüência do seu "irrefutável" valor, durante muitos anos manifestado.

O caso era, porém, diferente com a nova geração, pois os seus poetas, músicos e pintores pertenciam ainda à juventude. Gerhlart Hauptmann, que surgira subitamente do anonimato, já aos trinta anos dominava a cena alemã. Stefan George e Rainer Maria Rilke já aos vinte e três anos - por conseqüência antes da idade em que, segundo a lei austríaca, o indivíduo atinge a maioridade-tinham alcançado renome literário e contavam com decididos e apaixonados defensores. Na nossa própria cidade, surgiu quase que inopinadamente o grupo "lungen Wien (1). Dele faziam parte Artur Schnitzler, Hermann Bahr, Richard Beer-Hofmann e Peter Altenberg, com os quais a cultura especificamente austríaca, pelo refinamento de todos os seus elementos, atingiu pela primeira vez a sua expressão de cultura européia. Mas foi sobretudo em Hugo von Hofenannsthal, poeta quase da nossa idade, nessa figura que nos fascinou, encantou e maravilhou, nesse

 

(1) Jovem Viena.

 

fenômeno jamais reproduzido, que a mocidade da minha geração viu materializarem-se, não só todas as suas mais altas ambições, mas também a absoluta perfeição poética.

O jovem Hofmannsthal é um exemplo notável de maravilhosa e prematura perfeição atingida pelo espírito. com excepção de Keats e Rimbaud, não conheço em toda a literatura mundial ninguém que, em tão tenra idade, tivesse afirmado tão completo domínio da língua, tal limpidez de pensamento e tanta facilidade de transmitir até à última linha a expressão e o sentido da poesia, como este extraordinário e genial poeta que, aos dezasseis anos, com os seus versos imperecíveis e a sua prosa, até hoje ainda não superada, ligou o nome às páginas eternas da língua alemã. O seu dealbar, que coincide quase com o momento em que atinge a perfeição, é fenômeno que só muito dificilmente se manifesta e se repete numa inesma geração. Não admira, pois, que aqueles que sabiam da existência de tal poeta, apenas pelo facto de ouvirem falar nele, se tornassem cépticos em presença de um acontecimento que adquiria foros de verdadeira sobrenaturalidade. Muitas vezes Hermann Bahr me falou da admiração que o invadiu quando um dia recebeu de Viena, para a sua revista, um artigo assinado por um certo "Loris", que ele desconhecia completamente - nesse tempo não era permitido a um estudante publicar artigos com o seu verdadeiro nome

- e que, dizia, era dos mais raros e perfeitos trabalhos, de entre a muita colaboração que recebia de todas as partes do mundo; nenhum se encontrava redigido numa linguagem tão elevada e tão nobre e com tal riqueza de pensamentos.

- Quem seria, pois, esse "Loris", quem seria esse desconhecido - perguntou a si próprio. Certamente

um velho, que, durante anos, acumulara silenciosamente os conhecimentos e em misterioso isolamento preparara as mais sublimes essências do pensamento para uma magia deliciosa. E um sábio dessa natureza, um poeta tão abençoado vivia ali, na mesma cidade, sem que tivesse jamais ouvido falar nele! E Bahr escreveu imediatamente ao desconhecido, convidando-o para um encontro num "café" - no célebre "café" Griensteidl, quartel-general da moderna literatura.

À hora aprazada, avançou para a mesa onde Bahr se encontrava um estudante de calção, esbel-to, ainda imberbe. O seu passo era rápido e leve. Inclinou-se ligeiramente e com voz aguda, ainda não bem segura, disse, decididamente:

- Sou Hofmannsthal, o Loris.

Alguns anos depois, ainda Bahr se comovia quando se lembrava da perplexidade que o invadira nesse momento. A princípio não podia acreditar que aquele jovem fosse realmente o Loris. Como admitir que um estudante, que quase se podia dizer que ainda não havia vivido, já possuísse tal sentido da arte, espírito tão perscrutador e tão profunda e tão maravilhosa experiência da vida?

Um encontro quase idêntico se verificou noutra ocasião com Artur Schnitzler, segundo me contou ele próprio. Era Schnitzler então ainda médico, pois os seus primeiros trabalhos literários não eram de molde a garantirem-lhe a existência. Contudo, já era considerado o chefe do grupo "Jovem Viena" e os mais novos do que ele procuravam-no para lhe pedir conselhos e opiniões. Um dia, tendo encontrado o esbelto estudante em casa de pessoas que casualmente Conhecera, logo a sua atenção notara a inteligência extraordinária do jovem poeta, e, tendo-lhe este manifestado o desejo de lhe mostrar uma pequena peça de teatro em verso, Schnitzler convidou-o com prazer a visitar a casa onde passava a sua existência de celibatário. Acedera ao desejo, de resto, sem grande expectativa, pois-pensava-trata-se, naturalmente, da obra sentimental e pseudo-clássica de um estudante.

Convidou alguns amigos Hofmannsthal apareceu de calção, um pouco nervoso e embaraçado, e pouco depois começou a leitura. "Após alguns minutos", disse-me Schnitzler, "começámos a prestar grande atenção ao que ouvíamos e a trocar olhares de admiração e quase de espanto. Nunca havíamos ouvido, de nenhum poeta que ainda fosse vivo, versos com tanta perfeição, de uma impecabilidade plástica tão grande e de tanta musicalidade. Julgávamos até que, depois de Goethe, seria quase impossível que voltassem a aparecer. Mas o que ainda era muito mais digno de admiração, o que mais encantava não era somente esta incomparável perfeição plástica-e que depois ninguém mais conseguiu obter na língua alemã-era, sobretudo, a sua profunda experiência da vida, que só podia porvir de uma intuição verdadeiramente mágica, visto que Hofmannsthal era apenas um jovem ainda em idade escolar.

"Quando o poeta terminou a leitura, continuámos estáticos, e tive então a íntima convicção", asseverou-me Schnitzler, "de que pela primeira vez na minha vida havia encontrado um gênio nato. Jamais tive depois ocasião de experimentar sentimento tão veemente". Quem começava assim aos dezasseis anos ou, melhor, quem já era perfeito desde inicio, não poderia deixar de vir a ser um irmão de Goethe e de Shakespeare. com efeito, a sua perfeição sublimava-se cada vez mais. Depois dessa obra em verso intitulada - Gesfern (1), surgiu o grandioso fragmento Tod dês Tizian (2), no qual a língua alemã atingiu a sonoridade da italiana, e apareceram as poesias, cada uma das quais era para nós um acontecimento e que eu hoje, depois de tantos anos decorridos, ainda sei de cor, verso por verso. Depois vieram ainda os pequenos dramas e aquelas

 

(1) Ontem.

(2) A morte de Ticiano.

 

curtas composições de algumas dezenas de páginas, onde o autor sabia sintetizar admiràvelmente a sua mágica e imensa visão do mundo, ritmo em que a sua incomparável inteligência de grande artista plenamente se manifestava. Tudo o que saía da pena deste jovem estudante era magnificamente cristalino. O verso e a prosa adquiriam nas suas mãos a elasticidade da cera perfumada do Himeto, e toda a sua obra obedecia a um ritmo de equilíbrio absolutamente perfeito. Dir-se-ia que era guiado por forças imponderáveis na sua maravilhosa ascensão para regiões, até então nunca atingidas. Era de tal modo extraordinário esse jovem que nós, cuja cultura nos induzia ao cepticismo, fomos profundamente fascinados por ele. Que poderia uma geração juvenil desejar mais do que saber que tinha no seu seio o poeta nato, puro e sublime, o poeta que até então apenas havia vivido nas lendas de Hõlderlin, Keats e Leopardi, o artista inatingível, já quase visão e sonho?

Recordo-me ainda perfeitamente do dia em que pela primeira vez vi Hofmannsthal. Tinha eu então dezasseis anos. Como tudo o que esse nosso mentor espiritual fazia nos interessava sempre, tomei nota de uma pequena notícia onde se comunicara que Hofmannsthal pronunciaria uma conferência sobre Goethe no "Wissenschafüichen Klub" (1). O facto contrariou-me vivamente, pois não podia conceber que um gênio daquela natureza falasse num local tão modesto. O nosso culto de colegiais esperava que a mais importante sala da cidade ficasse repleta se um Hofmannsthal condescendesse em se apresentar em público. E foi então que tive ocasião de observar que a nossa visão dos valores, apesar de sermos simples estudantes, já era mais perfeita do que a da crítica oficial e a do grande público, o que mais tarde se deveria verificar, novamente, repetidas vezes. Na pequena sala havia pouco mais de uma centena de pessoas, e foi inutilmente que na minha

 

(1) Clube Científico.

 

impaciência lá cheguei meia hora mais cedo com o decidido propósito de reservar o meu lugar. Depois de esperarmos algum tempo, chegou um jovem elegante, que nada de extraordinário revelava na aparência, subiu para o estrado e iniciou tão rapidamente a conferência que mal tive tempo de o observar. Era Hofmannsthal, que, com o seu bigodinho e a sua figura flexível, parecia ainda mais novo do que eu havia imaginado. O seu rosto era moreno e o perfil severo denotava nervosismo, expressão que ainda se tornava mais patente na agitação dos seus olhos escuros e aveludados, mas muito míopes. De um só gesto entrou Hoffmannsthal confiadamente no assunto, com a agilidade e certeza de um nadador que conhece bem o elemento em que se encontra. Quanto mais perorava, mais fluente era a sua palavra e mais segura a sua atitude. De súbito, foi tomado de uma admirável facilidade de expressão e grande entusiasmo, como sucede sempre com os oradores inspirados, depois dos embaraços dos primeiros momentos, característica que tive ocasião de notar também mais tarde, quando com ele conversava. Logo nas suas primeiras frases, notei, porém, que a sua voz não era bonita, que por vezes se aproximava de falsete e com freqüência perdia o ritmo, mas o seu discurso empolgava-nos de tal modo que quase já não lhe notávamos a voz nem lhe víamos a fisionomia. Falava sem manuscrito, sem notas e talvez sem mesmo se haver previamente preparado com cuidado, mas, graças ao mágico sentido da forma que o seu espírito possuía, todo o discurso era perfeitamente modelado.

Os mais deslumbrantes conceitos fluíam da sua oração e as mais ousadas antíteses surgiam para depois se resolverem claramente nas mais inesperadas soluções. Ficávamos com a impressão de que tudo o que ele nos dizia não eram senão fragmentos colhidos ao acaso de um todo muito mais vasto e que a sua erudição lhe permitia falar assim, durante horas sucessivas, sem perder originalidade, sem baixar de nível.

Esse poder mágico também eu havia de observar mais tarde, quando conversava com Hofmannsthal, esse "inventor de hinos retumbantes e de ligeiros e faíscantes diálogos", como foi classificado por Stefen George. Não era nada fácil o contacto com ele, pois era inquieto, supra-sensível e facilmente impressionável pelas mais leves alterações do meio ambiente, chegando por vezes a ser impertinente e implicando com os que o rodeavam. Se um problema o interessasse vivamente, era certo que logo o arrebatava com paixão, com rara subtilidade e firmeza na discussão, para a esfera onde só ele, ele apenas, inteiramente pontificava. Se exceptuar a conversação de Paul Valéry, que pensava de maneira mais comedida e mais cristalina, e da conversação impetuosa de Keyserling, não conheço outra do nível intelectual atingido por Hofmannsthal. Quando se encontrava nos seus momentos de lúcida inspiração, sabia a sua prodigiosa memória encontrar, na altura absolutamente precisa, todos os elementos de que necessitava: livros que lera, quadros que vira, paisagens que contemplara. As suas metáforas uniam-se tão naturalmente como uma mão pode apertar a outra, e por detrás dos horizontes onde se julgava que já nada poderia surgir, fazia ainda erguerem-se cenários instantâneos de novas perspectivas. Nessa sua conferência adquiri pela primeira vez a convicção-que depois se confirmou plenamente nas minhas relações posteriores com ele - que Hofmannsthal era animado pelo misterioso e vivificante sopro do Incomensurável, fenômeno que a inteligência não sabia inteiramente compreender.

Pode, contudo, dizer-se que, num determinado sentido, nunca mais Hofmannsthal voltou a superar a maravilha única que ele foi dos dezasseis aos vinte e quatro anos. A minha admiração pelas suas obras posteriores continuava a ser imensa e em especial pelo seu fragmento "Andreas-", essa obra-prima, talvez o mais belo romance de língua alemã, e por alguns trechos dos seus dramas; mas desde que ele se ligara mais fortemente ao teatro realista e às preocupações da época, desde que os seus planos e as suas ambições começaram a tomar forma com mais nitidez, foram desaparecendo a magnífica intuição e a inspiração que tornaram fecundas as suas primeiras produções e extasiavam e inebriavam a nossa mocidade. Sabíamos bem, com esse magnífico poder de intuição que anima os adolescentes, que essa maravilha da nossa juventude seria única e nunca mais se repetiria durante toda a nossa vida.

De forma íncomparável mostrou Balzac como o exemplo de Napoleão electrizou em França toda uma geração. O escritor considerava que a fulgurante ascensão de um simples tenente Bonaparte a imperador do mundo não significava apenas o triunfo de uma pessoa, mas sim a vitória do espírito juvenil.

O tenente Bonaparte exaltou os cérebros da mocidade inteira, incutiu-lhe o sentido de uma grande ambição. Muitas centenas de indivíduos deixaram as suas modestas profissões e as suas cidades de província, quando viram não ser necessário já nascer príncipe para conseguir rapidamente o poder e que se podia descender de família modesta e até pobre e, apesar disso, ser general aos vinte e quatro anos, soberano da França aos trinta e por fim imperador do mundo.

Foi Bonaparte quem criou os generais da Grande Armée e os heróis e arrivistas da Comédie Humaine. Pelo simples facto de atingir rapidamente o que até então era considerado inacessível, encoraja um jovem, pelo seu triunfo, em qualquer domínio onde se manifeste, toda a mocidade que o circunde. Assim haviam sido para nós Hofmannsthal e Rilke. Éramos mais novos do que eles, mas os seus exemplos foram um extraordinário estímulo para as nossas energias, ainda não suficientemente excitadas. Sem esperarmos que nos fosse dado repetir o milagre de Hofmannsthal, fomos contudo influenciados pela sua obra e pela certeza de que ele existia realmente como ser humano. Era ela que nos provava, de maneira bem evidente, que também na nossa época, na nossa cidade e no nosso meio podiam existir poetas.

O pai de Hofmannsthal era director de um banco e provinha, afinal, da mesma camada burguesa e judaica a que nós pertencíamos. O gênero desenvolvera-se-lhe numa casa semelhante à nossa, onde havia móveis iguais aos nossos; fora educado no ambiente moral das famílias da nossa classe; freqüentara um liceu tão estéril como o nosso; estudara nos mesmos livros e estivera sentado durante oito anos nos mesmos bancos de madeira; e, como nós, também vivera sedento e apaixonado por todos os valores espirituais. E eis que esse jovem, mesmo quando ainda era obrigado a coçar os calções nos bancos da escola e a marchar sem nexo na sala de ginástica, já possuía a virtude, pela audácia da sua ascensão para o infinito, de saber sobrepor-se ao imperativo do tempo e das limitações, da cidade e da família. Hofmannsthal provava-nos que na nossa cidade e até na atmosfera prisional de um liceu austríaco era igualmente possível fazer-se obra poética e até mesmo obra poética perfeita, e que até era possível - magnífica sedução para o espírito juvenil! - ser-se célebre, ver impressos os seus livros, ser-se elogiado, quando ainda não se era mais do que um adolescente, um ser sem importância no lar e na escola.

O estímulo que nos proporcionava Rilke era, porém, de outra natureza. Poder-se-ia dizer que completara de maneira inquietadora aquilo que nos fora dado por Hofmannsthal, pois não se poderia pensar em rivalizar com ele, o que seria considerado mesmo entre os mais audazes de nós como verdadeira blasfêmia. Hofmannsthal era um milagre de perfeição prematura que não poderia voltar a produzir-se. Quando comparávamos os versos que então escrevíamos - tínhamos dezoito anos - com aqueles já célebres que ele escrevera na mesma idade, éramos forçados a corar de vergonha. Compreendíamos que o nosso saber era bem ínfimo, quando o comparávamos com o altíssimo vôo com que ele, simples aluno do liceu, singrara no espaço da vida intelectual.

Rilke havia igualmente começado muito cedo

- aos dezasseis ou dezassete anos - a escrever e a publicar versos. Porém estes, comparados com os de Hofmannsthal, e mesmo considerados de modo absoluto, eram mais imperfeitos, infantis e ingênuos. Só com indulgência se poderiam descobrir neles alguns indícios de talento. A formação desse poeta tão admirado e tão sinceramente por nós estimado fora muito lenta. Só aos vinte e três ou vinte e quatro anos de idade adquiriu realmente personalidade própria. A verificação desse facto foi para nós motivo de grande confiança, pois víamos que para triunfar não era absolutamente necessário que, a exemplo do que se passara com Hofmannsthal, fôssemos perfeitos desde os bancos do liceu. Podíamos, como Rilke, tactear, experimentar, modelar-nos a nós próprios, evolucionar. Por ele, adquiríamos a convicção de que não havia motivo para desânimos se os nossos escritos ainda eram deficientes e imperfeitos, pois poderíamos repetir em nós, em vez do milagre de Hofmanssthal, a ascensão mais tranqüila e normal de Rilke.

Era natural que tivéssemos desde muito cedo começado a escrever ou a versejar, a tocar música ou a recitar, pois as atitudes ou paixões puramente passivas não são naturais na juventude, a qual não deseja apenas receber impressões, mas sente também a imperiosa necessidade de as retribuir, já com o indelével cunho da sua personalidade.

Ter gosto pelo teatro significa para um jovem, pelo menos, desejar ou aspirar a dedicar-se à cena ou a trabalhar de qualquer outro modo para o teatro. E em todo o êxtase juvenil pelas multiformes modalidades do talento encerra-se sempre o íntimo desejo de que cada jovem descubra em si próprio, no seu ser ainda em formação ou na sua alma ainda embaciada, indícios ou vestígios dessa essência preciosa. Não admira, pois, que, de acordo com a atmosfera de Viena e as condições da época, a nossa tendência para a arte tivesse chegado até a tomar caracter francamente epidêmico. Cada qual procurou em si mesmo um talento e fez todo o possível para o desenvolver.

Quatro ou cinco de nós quiseram ser actores. Imitavam a dicção dos actores de Burgtheater, recitavam e declamavam sem cessar, estudavam em segredo a arte dramática e chegavam a representar, à hora do recreio, cenas inteiras dos clássicos, para as quais não constituíamos apenas uma assistência curiosa, mas também extremamente severa na crítica'.

Dois ou três eram excelentes músicos, mas ainda não haviam decidido se seriam compositores, virtuosos QU maestros. A eles devo os primeiros conhecimentos de música moderna que adquiri, música que as esferas oficiais ainda condenavam severamente. Para as suas canções e para os seus coros obtinham eles de nós os textos desejados.

Um outro condiscípulo, filho de um artista pintor, então muito célebre, enchia os nossos cadernos escolares com os seus desenhos, durante as lições, e fazia o retrato dos futuros gênios da nossa aula.

A tendência literária era, contudo, a que maior número de adeptos conseguia. Como conseqüência de um estímulo recíproco para o aperfeiçoamento constante e de uma critica mútua, exercida sobre todos os nossos trabalhos, conseguíamos nós, aos dezassete anos, adquirir um grau de cultura que muito nos distanciava do diletantismo, chegando alguns, até, a produzir obras que se aproximavam muito das que tinham real valor. Provava-o o facto de que as nossas produções não saíam apenas em obscuras e pequenas revistas da província, mas eram também publicadas nas principais revistas que orientavam o movimento da nova geração e - o que constitui a incontestável prova do seu valor "- algumas delas eram mesmo remuneradas. Um dos meus camaradas, Ph. A. que eu considerava um verdadeiro gênio, brilhava em primeiro plano na grande revista de luxo Pan, ao lado de Dehmel e de Rilke. Um outro, A. M. sob o pseudônimo de Àugust Oehler, chegara a ser admitido na mais inacessível e mais eclética de todas as revistas alemãs, na Blàtter fiir dte Kunst, que Stefan George reservava exclusivamente para o seu sete vezes depurado e santificado círculo.

Um terceiro condiscípulo, encorajado por Hofmannsthal, escreveu um drama sobre Napoleão, um quarto fora o autor de uma nova teoria sobre estética e de importantes sonetos, e eu mesmo fora admitido a colaborar na Gesellschaft, principal revista orientadora do movimento modernista, e na Zukunft, de Maximiliano Harden, semanário de extraordinária importância nos sectores da história política e cultural da Alemanha moderna.

Quando hoje passo em revista o passado, sou obrigado a reconhecer que a soma dos nossos conhecimentos, o aperfeiçoamento atingido pela nossa técnica literária e o nosso nível artístico eram, para rapazes de dezassete anos, verdadeiramente magníficos e só explicáveis pelo estímulo que em nós exercera o exemplo da fantástica precocidade intelectual de Hofmannsthal, exemplo, que nos incitava a um apaixonado esforço para o máximo, a fim de podermos manter o ritmo da nossa mútua ascensão,

Dominávamos todas as subtilezas, audácias e ousadias da palavra, e tínhamos experimentado todas as formas da técnica da poesia e todos os estilos, desde os pathos de Pindaro até à dicção da canção popular. com a nossa crítica, que incidia mutuamente sobre todos os trabalhos, os quais emprestávamos uns aos outros, tomávamos nota das mais leves dissonâncias e discutíamos todas as particularidades da métrica. Enquanto isto se passava, ainda os nossos bizarros professores, ignorando toda a nossa actividade, assinalavam com tinta vermelha as vírgulas que faltavam nos nossos exercícios escolares, não sabendo que nos criticávamos mutuamente com mais severidade, mais arte e mais erudição do que qualquer dos bonzos oficiais da literatura dos grandes jornais diários em suas críticas das obras-primas clássicas. É que, verdadeiramente, graças ao esforço dos últimos anos do nosso período liceal, havíamos adquirido capacidade literária para a apreciação da idéia e da forma que suplantava a dos críticos, já então célebres, desses jornais.

Esta descrição verdadeiramente fiel do desabrochar precoce das nossas tendências literárias poderia deixar supor que havíamos feito parte de um curso excepcional. Mas, realmente, não foi assim. Em muitas outras escolas de Viena também se manifestava a mesma tendência e o mesmo despertar fulgurante. Era um fenômeno que, certamente, não se operava por pura casualidade. Uma atmosfera particularmente feliz o originava, resultante do meio artístico da cidade, da época sem preocupações políticas, do impulso das constelações que orientavam espiritual e literàriamente o ocaso deste século. Nesse ambiente encontrávamos estímulo para, o nosso imanente desejo de produzir, desejo bem compreensível e natural nessa fase da existência.

O sentido da poesia, a atracção para tudo o que é poético constitui preocupação que anima todos os jovens, mas não é, quase sempre, mais do que uma onda fugaz, porque, sendo apenas emanação da juventude, só muito raramente lhe sobrevive. E foi por isso, talvez, que dos nossos cinco actores escolares nenhum mais tarde seguiu a carreira teatral, e que os poetas da revista Pan e da Blâtíer für die Kunst, depois dessa primeira admirável ascensão, se contentaram em ser advogados ou funcionários, que hoje talvez sorriam melancólica ou ironicamente dessas suas ambições de outrora. Eu fui, de todos os meus condiscípulos, o único em que o culto pela arte se manteve perene, o único em quem ela se transformou no objectivo e no fulcro permanente da vida. Mas, com que gratidão me recordo ainda dessa bela camaradagem! Como ela me ajudou

Como aquelas discussões calorosas, aquelas constantes ânsias de superação, aquela recíproca admiração e crítica por todos os nossos trabalhos tornaram possível o desabrochar prematuro das nossas faculdades, nos deram uma dilatada visão da vida espiritual e nos elevaram muito acima da solidão e da monotonia da escola!

Sempre que ouço as notas da imortal canção de Schubert - "Arte querida, em quantas horas de tristeza..." vejo, numa espécie de visão plástica, como nós estávamos sentados, cabisbaixos e tristes, nos míseros bancos escolares e, depois, ao sair da escola, como caminhávamos para casa, radiantes e felizes, recitando e criticando poesias, esquecendo com fervor os constrangimentos e as limitações impostas pelo espaço e pelo tempo, deslumbrados pelo encanto de "um mundo melhor".

A nossa monotonia e exagerada tendência para a vida intelectual, a nossa excessiva preocupação, por vezes levada até ao absurdo, pela estética, só poderia subsistir em detrimento das necessidades físicas naturais da idade. Quando hoje me interrogo a mim próprio, perguntando como nos era possível ler tantos livros, tendo nós já quase todo o dia ocupado com as nossas lições particulares, não posso deixar de chegar à conclusão de que só o poderíamos fazer sacrificando as horas do sono, e, portanto, atentando contra a saúde.

Embora tivesse de me levantar às sete horas da manhã, nunca abandonava as minhas leituras antes da uma ou das duas da madrugada, hábito que então adquiri e nunca mais havia de deixar, e que consistia em ler uma ou duas horas seguidas durante a alta noite. E, assim, não me lembro nunca de haver saído para a escola senão no último minuto, sem haver dormido suficientemente, mal lavado, e acabando de engolir pelo caminho a fatia de pão com manteiga.

Não era, pois, de admirar, que, com toda a nossa intelectualidade, nós fôssemos magros e pálidos como frutos raquíticos e extemporâneos, e bastante descuidados com o vestuário. Todas as economias eram para o teatro, para concertos ou para comprar livros. Preocupados como estávamos em ascender para círculos superiores, não nos animava o desejo de parecer bem ao mundo feminino. com a nossa pretensão de intelectuais, não queríamos gastar o nosso precioso tempo em conversas inúteis, e, como julgávamos o outro sexo inferior em possibilidades intelectuais, não nos agradavam os passeios com as raparigas da nossa idade.

Não seria fácil fazer compreender a um jovem de hoje como tínhamos então uma animadversão profunda e até desprezo por tudo o que significasse desporto.

É verdade que nesse tempo ainda a mania do desporto não penetrara no nosso continente, vinda de Inglaterra. Não havia ainda estádios onde cem mil pessoas deliram de entusiasmo quando um pugilista aplica um soco no maxilar do outro. os jornais não enviavam repórteres aos desafios de hóquei, para que estes relatassem em termos grandiloqüentes, que ocupam colunas inteiras, os aspectos do jogo. Na nossa época ainda a luta greco-romana, torneios atléticos e outros desportos pesados não tinham adquirido direitos de franca cidadania. O seu público limitava-se quase apenas a magarefes e descarregadores. Quando muito conseguia o mais nobre, o mais aristocrático desporto das corridas de cavalos atrair, algumas vezes por ano, a "boa sociedade" para os hipódromos, mas não a nós, pois considerávamos toda a actividade desportiva como inútil perda de tempo.

Aos treze anos de idade, quando fui contaminado por aquela infecção intelectual-literária, abandonei a patinagem e comecei a gastar em livros o dinheiro que meus pais me davam para freqüentar uma aula de dança. Aos dezoito anos não sabia nadar, nem dançar, nem jogar o tênis, e ainda hoje não sei andar de bicicleta, nem conduzir um automóvel. Em matéria de desporto, qualquer criança de dez anos de idade me pode envergonhar. Hoje mesmo, em 1941, ainda me ê extremamente obscura a diferença entre basquetebol, futebol, hóquei e pólo; as secções desportivas de um jornal, com as suas expressões para mim incompreensíveis, dão-me a impressão de que estão redigidas em chinês.

Em relação aos torneios desportivos de velocidade e de habilidade, aceitei sempre o critério daquele xá da Pérsia, que, quando foi convidado a assistir a uma corrida de cavalos, respondeu, com a peculiar sabedoria dos orientais

- Para quê Eu já sei que um cavalo pode correr mais do que outro, e pouco me interessa saber qual é o que corre mais.

Também o jogo nos parecia ocupação tão desprezível como a cultura física. Havia apenas um que merecia da nossa parte alguma simpatia, porque requeria certo esforço mental - o xadrez. O que era mais absurdo ainda é que, sentindo-nos já poetas, ou almejando vir a sê-lo, chegávamos até a afastar-nos da própria Natureza, de tal modo que, durante os primeiros vinte anos da minha vida, quase não contemplei nenhuma das maravilhas naturais que circundam Viena. Mesmo nos mais belos e cálidos dias de Verão, quando a cidade quase ficava deserta, ainda nós encontrávamos nela uma particular tentação era então que podíamos ler, no nosso "café", mais fácil e completamente o maior número de jornais.

Só ao cabo de alguns anos e mesmo de alguns decênios consegui moderar essa ansiosa exaltação infantil, procurando de qualquer modo corrigir a minha inevitável inabilidade física. Contudo, de certo modo, nunca me arrependi dessa intensa vida cerebral, dessa preocupação de viver apenas o mundo in mente, através dos olhos e dos nervos, que exaltou a minha existência de colegial. Foi precisamente essa exaltação que fez nascer em mim a paixão pela vida do espírito, paixão que não desejaria nunca perder. Tudo aquilo que desde então vi e aprendi assenta sobre os sólidos fundamentos formados nesses anos da minha infância. Considero que o que um indivíduo não pôde oportunamente fazer para o seu desenvolvimento físico, ainda pode tentar fazê-lo, com possibilidades de recuperar o que perdeu mas outro tanto não sucede em relação ao desenvolvimento do espírito, que só ê possível nos decisivos anos da nossa formação. Só quem aprendeu cedo a desenvolver amplamente as faculdades da alma, consegue mais tarde sentir em si próprio a imensidade do Universo.

A mocidade do nosso tempo tinha a convicção de que algo de novo na arte ia acontecer, e que esta se tornaria mais apaixonada, mais profunda e mais complexa do que fora no tempo dos nossos pais. Contudo, fascinados apenas pelo que se passava nesse sector da aetividade humana, não notávamos que essas alterações estéticas significavam somente o prelúdio de mais profundas e extensas modificações que perturbariam primeiro, e, depois, até destruiriam a ordem em que os nossos pais viviam, a sua época de segurança.

Na velha e indolente Áustria de então, começaram a desenhar-se estranhas alterações nas diferentes camadas sociais que a compunham. As grandes massas que durante decênios haviam, silenciosa e docemente, permitido que a burguesia liberal marcasse a sua supremacia na vida pública, agitaram-se subitamente, organizaram-se e começaram a reclamar os seus direitos. E foi então, já na última década do século, que o vendaval da política irrompeu com violência na calmaria da vida amena. O novo século queria outra ordem, anunciava uma era nova.

O primeiro destes grandes movimentos de massas que surgiu na Áustria foi o movimento socialista. Até essa data, o direito de voto, falsamente considerado como "universal", era apenas concedido aos ricos, aos que pagavam determinada cifra de impostos. Os eleitos por essa minoria privilegiada, advogados e grandes proprietários, acreditavam sinceramente que eram no Parlamento os verdadeiros representantes do "povo". O facto enchia-os de orgulho e, como eram pessoas cultas e até geralmente com formação acadêmica, revestiam-se de dignidade, tinham maneiras delicadas e usavam uma linguagem impecável. As sessões do Parlamento eram, por isso, tão dignas como as amenas discussões de um serão, nas salas de um clube de primeira categoria. Julgavam esses burgueses democratas, sinceros crentes na serena evolução do mundo pela tolerância mútua e pelo bom senso, que, com as suas concessões e lentos aperfeiçoamentos, poderiam proporcionar da melhor maneira possível o bem-estar a todos os habitantes do pais. Esqueciam-se, porém, de que só representavam verdadeiramente as cinqüenta ou cem mil pessoas que gozavam de uma vida desafogada nas grandes cidades, e não as centenas de milhar e até os milhões de habitantes de todo o país.

Entretanto, a máquina ia concentrando, à volta das grandes indústrias, as massas proletárias, até então disseminadas. E foi neste ambiente que, sob a chefia de um homem eminente, o Dr. Victor Adler, se formou na Áustria o partido socialista, cujo fim era realizar as aspirações do proletariado, o qual reclamava uma verdadeira aplicação do sufrágio universal, igual para todos. Assim que essa reclamação foi atendida, ou, melhor, obtida pela força, verificou-se como o liberalismo era superficial e frágil; apesar do grande valor da obra que realizara, com o seu declínio desapareceu da vida política a tolerância, os interesses entraram em conflito e, assim, se iniciou a batalha.

Lembro-me ainda perfeitamente do dia em que, estando ainda na primeira infância, se registou o acontecimento decisivo que permitiu uma rápida ascensão do partido socialista austríaco. Estávamos então no dia primeiro de Maio. Os trabalhadores, a fim de, pela primeira vez, patentearam a sua força, haviam decidido que esse dia seria o seu, e resolveram fazer uma grande demonstração no Prater, na principal artéria, a bela e larga avenida dos castanheiros, onde, então, só quase passeava a aristocracia e a alia burguesia, nas suas carruagens.

Quando a burguesia liberal teve conhecimento do intento do proletariado, ficou indignada, pois o vocábulo "socialista" tinha na Alemanha e na Áustria desses dias, um marcado hálito de sangue e de terror, como acontecera antes com o de jacobino e, mais tarde, com o de bolchevista. Não podia compreender que essas turbas vermelhas dos subúrbios fizessem a marcha sem incendiar moradias, pilhar casas comerciais e cometer todas as violências imaginárias.

Apoderou-se então dessa burguesia um pânico imenso. Toda a polícia da cidade e a das circunvizinhanças foi concentrada no Prater e o exército ficou de prevenção. Nenhuma carruagem particular e nenhum trem de praça se aproximou nesse dia do Prater e os comerciantes baixaram as portas onduladas das suas casas comerciais, e lembro-me até que, nesse dia terrível, em que se supunha que Viena poderia ser pasto das chamas, os nossos pais nos proibiram terminantemente de sairmos de casa.

Porém, afinal, tudo decorreu com calma. Os trabalhadores, acompanhados das mulheres e dos filhos, avançaram para o Prater, em compactas filas de quatro pessoas, numa ordem e disciplina verdadeiramente modelares. Cada qual levava na lapela o distintivo do partido - o cravo vermelho.

Durante a marcha entoaram a "Internacional", mas pouco depois os seus filhos cantavam, no belo quadro da verdura da "Nobelalleo, que pela primeira vez se tornava verdadeiramente pública, as suas ingênuas e pacíficas canções escolares. Ninguém foi injuriado, ninguém foi agredido e não se cerraram os purihos. por fim, até os polícias e os soldados acabaram por sorrir, sem animadversão, para esses trabalhadores.

Graças à irrepreensível atitude dos operários, já não foi possível por muito mais tempo que a burguesia continuasse a classificar o proletariado com o estigma de "turba revolucionária".

Depois, como sempre havia sucedido na velha e sábia Áustria, fizeram-se mútuas concessões, pois, nessa época, ainda não se havia inventado o sistema hediondo de solucionar os problemas pela força bruta e pelo extermínio de um dos litigantes. É certo que os sentimentos de humanidade já então empalideciam, mas, contudo, ainda os chefes dos partidos os respeitavam.

Logo que o cravo vermelho foi elevado à categoria de distintivo, apareceu subitamente outra flor nas lapelas-o cravo branco, insígnia do partido social-cristão. Não é bem característico que nessa época ainda os partidos usassem flores como distintivos, em vez de botas, punhais e caveiras

o partido social-cristão surgira apenas como natural reacção da pequena burguesia contra o movimento do proletariado, e era também o resultado da expansão e do triunfo da máquina sobre o trabalho manual. As concentrações industriais não só davam ao proletariado mais força e influência social, como constituíam ao mesmo tempo uma séria ameaça para a pequena indústria manual. A industrialização da produção e a tendência para a concentração comercial que já então se observava nas grandes casas comerciais, não podia deixar de conduzir à ruína a classe média e os pequenos artífices.

Este descontentamento e preocupação da pequena burguesia foi canalizado por um chefe hábil e popular, o Dr. Carlos Lueger, o qual, sob o lema "é preciso amparar a classe média", conseguiu arrastar consigo toda a pequena burguesia descontente, cuja inveja para com os ricos era imensamente menor que o receio de ser forçada a abandonar o seu burguesismo e cair no proletariado.

Foi essa classe média atemorizada que Adolfo Hitler reuniu mais tarde à sua volta. Ela seria a sua primeira grande massa e Carlos Lueger foi também o seu modelo, ainda que não exactamente da mesma maneira. Foi ele quem mostrou a Hitler a extrema eficiência do lema anti-semítico, o qual, enquanto por um lado permitia apontar visivelmente um inimigo à pequena burguesia descontente, desviava do seu alvo, por outro lado, quase imperceptivelmente, o ódio que em geral se manifestava contra os latifundiários e os grandes senhores feudais. Contudo, do confronto dessas duas figuras, obtém-se a certeza de quanto se tornou desprezível e brutal, de quanto se tornou horrendo o retrocesso político do século actual.

Carlos Lueger, a quem o povo chamava o "belo Carlos", tinha uma aparência imponente, com a sua abundante barba loura, que o aureolava de ternura. Tinha cultura universitária e não fora em vão que havia sido educado numa época que, acima de tudo, prezava a elevação espiritual. Sabia falar para o povo, era veemente e subtil, mas, mesmo até nos seus discursos violentos "- ou que, nesse tempo, assim eram considerados - nunca saía das regras da decência, e procurava cuidadosamente conter os excessos do partidário mais entusiasta, um tal Schneider, mecânico de ofício, que por vezes invocava histórias rocambolescas ou vulgaridades semelhantes.

Mesmo contra os seus adversários, sabia Carlos Lueger manter certa nobreza. A sua vida particular era modesta e inatacável e o seu anti-semitismo oficial nunca o impediu de continuar a ser amável e delicado para com os antigos amigos judeus, e, finalmente, quando o partido ganhou as eleições para a Câmara Municipal de Viena, e Lueger, após duas recusas de beneplácito do imperador Francisco José, que era contrário ao anti-semitismo, foi eleito burg-omestre da cidade, soube manter uma política administrativa irrepreensível e exemplarmente democrática. Os judeus, que tanto haviam receado o triunfo desse partido, continuaram a viver como até então, com iguais direitos e igual estima. Mas, nessa época, ainda o veneno do ódio e a fúria da destruição não haviam penetrado na humanidade. Mas eis que surgia uma terceira flor, azul, o lóio, flor predilecta de Bismarck e insígnia do partido nacional alemão, o qual, ainda que então assim não parecesse, era um partido nitidamente revolucionário, que desenvolvia uma acção violenta para a destruição da monarquia austro-húngara e para a constituição da Grande Germânia - objectivo que antes de Hitler já outros haviam sonhado - sob a égide prussiana e protestante. Enquanto o partido social cristão tinha a sua influência em Viena e nas zonas agrícolas, e o partido socialista operava nos centros industriais, o partido nacional alemão só quase na Boêmia e nos territórios limítrofes da zona alpina encontrava partidários. Este último era um partido extremamente fraco, mas essa fraqueza era compensada pela feroz agressividade e ilimitada brutalidade dos métodos. Os seus dois ou três deputados tornaram-se o terror e a vergonha - tornando estes conceitos no seu antigo valor - do Parlamento austríaco. Foram essas idéias e esses métodos que Hitler, que também era austríaco da zona fronteiriça, mais tarde desenvolveu. Jorge Schônerer forneceu-lhe o lema: "Livremo-nos da influência romana!" Foi segundo esse lema - de acordo com a proverbial obediência alemã-que milhares de membros do partido nacional alemão, para contrariarem o Imperador e a Igreja, passaram do catolicismo para o protestantismo. Foi ainda desse seu ilustre modelo que Hitler tomou a teoria racial anti-semita, segundo o anátema de Schônerer-"Dessa raça vem tudo o que é imundo". Hitler havia de copiar dele sobretudo o método do emprego de tropas de choque, que não recuam ante nada e agridem barbaramente, que põem em prática o princípio de que um pequeno grupo pode, pelo terror e pela violência, dominar a maioria, imensamente superior em número e mais passiva, porque mais humana.

O que pelo nazismo fizeram os membros da S. A., dissolvendo violentamente reuniões, assaltando e espancando, pela calada da noite, os adversários, também o fizeram pelo nacionalismo alemão certas organizações específicas de estudantes que, protegidos pela imunidade universitária, inauguraram uma época de terror e de violência, que não tem nenhuma outra com que se possa comparar. Quando se dirigiam para as suas acções de terror político, marchavam enquadrados militarmente, obedecendo às ordens e excitações dos chefes. Eram eles que aterrorizavam as aulas ?- esses membros de «Burschenschaften» - alguns dos quais já mostravam cicatrizes nas fisionomias e se embriagavam e eram brutais - somente porque não usavam, como os outros condiscípulos, apenas fitas e bonés, mas também pesados bengalões. Umas vezes provocavam e espancavam os estudantes eslavos; outras vezes eram os judeus que sofriam as suas arremetidas, os católicos ou os italianos. Os indefesos eram violentamente expulsos da Universidade e em todos os «Bummel» .assim se chamava ao desfile dos estudantes, aos sábados, pela tarde - corria sempre sangue. A polícia, impossibilitada de penetrar no recinto da Universidade, graças aos velhos privilégios de que esta gozava, tinha de assistir indiferente às cenas de brutalidade cometidas por esses cobardes desordeiros, limitando-se a sua acção apenas a fazer retirar dali os feridos, que os provocadores do nacionalismo exacerbado atiravam para a rua, ensanguentados, fazendo-os rolar pelas escadarias.

Onde quer que os nacionais alemães quisessem atingir qualquer objectivo, na Áustria, enviavam sempre à frente os seus pelotões de assalto constituídos por estudantes. Foi assim que esse punhado de jovens excitados se concentrou em atitude hostil na Ringstrasse, quando o conde Radeni, com a aprovação do Imperador e do Parlamento, apresentou uma solução que traria a paz aos povos que compunham a Nação austríaca e talvez até tivesse prolongado por mais algumas décadas a vida da monarquia. A cavalaria foi então forçada a intervir e houve espadeirada e tiroteio. Mas, naquela época, tão tragicamente débil e tão comovedoramente humana e liberal, era tão profunda a animadversão por tudo o que significasse tumulto violento e derramamento do sangue, que o governo cedeu às provocações dos nacionais-alemães. O presidente do ministério demitiu-se e a solução que apresentara, cujos benefícios seriam incalculáveis para a Nação, foi simplesmente posta de parte.

O triunfo da brutalidade, como norma de acção política, marcava então a sua primeira vitória. Subitamente, todos os desníveis e fossos que separavam as raças e as classes, e que a Época da Tolerância tão pacientemente havia procurado eliminar, irromperam violentamente, transformando-se em abismos e precipícios.

Verdadeiramente foi nos últimos momentos desse século moribundo, ao qual se sucederia o presente, que teve início na Áustria a guerra de todos contra todos.

Entretanto, nós, inteiramente dedicados a preocupações culturais, quase não notávamos as perigosas perturbações que assaltavam a Pátria: - vivíamos apenas para os nossos livros e para os nossos quadros.

De nenhum modo nos interessando os problemas políticos e as questões sociais, que poderiam, pois, significar para nós essas contendas furiosas? Se, durante as eleições, a cidade se excitava, íamos para as bibliotecas, e, enquanto as massas se agitavam, escrevíamos versos e discutíamos sobre poesia. Como outrora o rei Baltasar, não víamos na parede os sinais reveladores. Não nos preocupávamos com o futuro, rodeados como estávamos pelas preciosas iguarias da cultura. Só mais tarde havíamos de compreender, quando o telhado e as paredes desabaram sobre nós, que os fundamentos do edifício social havia muito tempo estavam minados e que, com o novo século, tivera início também, simultaneamente, na Europa, o ocaso da liberdade individual.

 

               Eros matütinus

Foi precisamente durante os oito anos da nossa vida liceal que em cada um de nós se operou um fenômeno de transcendental importância: "- de criança de dez anos de idade ascendemos aos dezasseis, dezassete e dezoito e, havendo entrado na puberdade, começara a Natureza a reclamar os seus direitos. Mas parecia que o jovem devia ser abandonado a si próprio, pois o despertar da puberdade era um problema de tal forma íntimo que de nenhum modo se aceitava qualquer discussão pública sobre ele. Porém, para a nossa geração, essa crise não se localizou apenas na órbita que lhe estava adstrita, pois determinou, também, o nosso despertar para outra realidade - o de aprendermos, pela primeira vez, a observar com mais atenção o mundo onde nos havíamos desenvolvido e as suas convenções.

De um modo geral, as crianças, e até os adultos, têm uma tendência natural para se adaptarem às leis e hábitos do meio em que vivem. Contudo, o seu respeito e a sua adaptação às convenções só se manifestam plenamente na medida em que elas verificam que todas as outras pessoas respeitam fielmente, também, essas leis e esses hábitos. Uma única falta cometida pelos pais ou pelos professores cria no espírito do jovem uma evidente desconfiança para com todos os que com ele convivem. Ora, não nos foi necessário muito tempo para descobrirmos que, em relação ao problema sexual, não procediam sinceramente as pessoas em quem, até então, havíamos depositado toda a nossa confiança e não compreendíamos que essas mesmas pessoas, a escola, a família e a moral pública exigissem da nossa parte sinceridade e segredo.

É que, há trinta ou quarenta anos apenas, o problema sexual não era observado do mesmo modo que hoje. Pode dizer-se que - graças a uma série de factores, entre os quais se encontram o desenvolvimento das doutrinas de Freud, a emancipação da mulher, a cultura física e a conquista de mais independência pela juventude - em nenhum outro sector da vida social se manifestou uma transformação tão completa como no domínio das relações entre o homem e a mulher. Se procurássemos notar em que consiste a diferença que separa a moral do século XIX, que era essencialmente vitoriana, da moral que hoje impera, indiscutivelmente mais livre e mais isenta de preconceitos, julgamos não estar muito longe da verdade se dissermos que aquela época, levada por um sentimento de íntima incerteza, procurava insensatamente ignorar o problema sexual.

Houve épocas nas quais imperava ainda um mais sincero espírito religioso, em especial nas severamente puritanas, que procuravam solucionar o problema sexual de um modo mais fácil. Estando convencidas de que o desejo sexual era puro malefício do Diabo e os prazeres da carne uma indignidade e um pecado, atacavam de frente o problema sexual, estabelecendo uma moral severa que o não admitia e, principalmente na Genebra calvinista, impondo-a por meio de cruéis mortificações. Mas o nosso século, menos intolerante e, sobretudo, tendo de há muito perdido a crença na acção do Diabo e não acreditando muito nas virtudes divinas, não teve a coragem de adoptar esse anátema radical. Considerou simplesmente a sexualidade como um elemento dissolvente que a moral condenava a não aparecer à superfície da realidade social, visto que qualquer forma de relações amorosas extramatrimoniais atentava contra a "decência". Colocada ante este dilema, optou por encontrar uma solução ambígua: - a sua moral não proibia abertamente que o jovem acedesse aos imperativos da vita sexualis, mas exigia que o fizesse de modo que a satisfação dessas melindrosas e desagradáveis necessidades tivessem caracter marcadamente velado. Assim, se a sexualidade não era um fenômeno que se pudesse eliminar totalmente, não aparecia em conflito com a moral, devido a que toda a sua acção se passava fora da órbita das realidades visíveis da vida do mundo. Por decisão tácita, pois, tanto na escola, como na família ou em sociedade, todos procuravam ignorar a existência do indesejável complexo.

Sabemos hoje como era ingênua e infantil - sobretudo desde que Freud provou que o simples facto da repressão consciente dos imperativos dimanados do instinto não elimina a sua acção, mas simplesmente a desvia perigosamente para o subconsciente - a ignorância que revelava esse método de procurar iludir os fenômenos da vida sexual. Mas o século XIX estava plenamente convencido de que a inteligência podia solucionar todos os conflitos e que quanto mais se obscurecessem os imperativos da Natureza tanto mais facilmente se dominariam os seus elementos indesejáveis. Julgava essa época que o facto de se impedir que a juventude fosse iniciada nos estudos dos problemas sexuais seria suficiente para que esta se esquecesse da sua própria sexualidade.

Todos os factores sociais estavam ao serviço desse silêncio forçado que se impunha à juventude sobre a vida sexual, pois todos consideravam que a melhor maneira de solucionar os problemas que essa vida levantaria era ignorar a sua existência, envolvendo-a num mutismo hermético. Por essa razão, a escola e a Igreja, a justiça, o jornal, o livro e a conferência, a moda e o hábito faziam tudo o que lhes era possível para não ver esse problema, e até a própria ciência, cujo verdadeiro dever seria o de procurar esclarecer sem subterfúgios todas as questões, adoptou confusamente o espírito desta sentença: - "naturalia sunt turpía". Também ela capitulava, sob o pretexto de que a dignidade da ciência a impedia de se preocupar com problemas tão escabrosos.

E é assim que, quaisquer que sejam os livros dessa época que se consultem, Filosofia, Direito e até mesmo Medicina, notar-se-á que toda a discussão referente ao problema sexual é sempre habilmente contornada. Quando os criminalistas discutiam, nos seus congressos, os métodos de humanização da vida nas prisões e procuravam evitar as perturbações morais causadas pela vida prisional, procuravam em toda a prudência desviar-se de qualquer alusão a esse tão importante tema sexual. Os próprios especialistas de doenças nervosas não ousaram tirar da observação dos factos as ilações que estes justificavam, apesar de muitos neurologistas terem conhecimento da verdadeira etilogia das perturbações de origem histérica. Freud cita até o facto de Charcot, o seu muito venerado mestre, lhe confiar que conhecia a origem do histerismo, mas nunca o dissera publicamente.

Por outro lado, nunca a literatura da época

- então considerada como "bela" - teria ousado entrar decididamente em profundidade no assunto, pois o seu âmbito circunscrevia-se apenas ao que era esteticamente belo. Em épocas passadas, ainda o escritor relatava com toda a sinceridade e realismo as diversas facetas da vida, dos hábitos e dos costumes do seu tempo, como Defoe, o abade Prévost, Fielding e Rétif de la Bretonne, mas outro tanto não sucedia com a nossa, pois esta considerava que a sua função era apenas focar o "delicado" e o "sublime" e ignorar o desagradável e o real. Não admira, pois, que, em toda a literatura do século XIX, se não observem senão ligeiras referências aos perigos, contrariedades e dificuldades que se encontravam na vida da juventude das grandes cidades.

Quando algum escritor ousadamente abordava o tema da prostituição, sentia a necessidade de a enobrecer e estilizar a personagem que descrevia, classificando-a de Dama das Camélias. Encontramo-nos, hoje, pois, em presença do facto verdadeiramente estranho de que, se um jovem deseja documentar-se sobre a vida da juventude da penúltima e da antepenúltima geração, e -se, para esse fim, consulta as obras dos mais célebres escritores desses tempos, Dickens e Thackeray, Gottfried Keller e Bjõrnson, Flaubert e Anatole France - exceptuando Dostoyewski e Tolstoi que, como russos, estavam à margem do pseudo-idealismo europeu - só encontra relatos sublimes e equilibrados. A pressão da época exercia-se de tal modo sobre toda a sua geração que a descrição verdadeiramente livre não era possível.

Há um facto que prova de maneira bem concludente quanto era anormal e quase histérica a moral dos nossos antepassados, e como era estranha a sua maneira de ser, hoje, para nós, já quase dificilmente compreensível: - é que todas as suas reservas e limitações literárias ainda não eram suficientes, pois, por vezes, chegava-se a outros extremos. Quem conceberia agora que um romance tão eminentemente verdadeiro como Madame Bovary fosse proibido por um tribunal francês, que o considerou indecente, e que as obras de Zola fossem, ainda no tempo da minha juventude, tidas como pornográficas, e que um épico tão suave e tão clássico como Tomás Hardy desencadeasse tempestades de indignação na Inglaterra e na América do Norte? Compreende-se, porém, que, por muito comedidos que esses autores fossem, tinham, contudo, penetrado demasiadamente no íntimo da realidade.

Foi num ambiente dessa natureza, doentio, abafado, monótono e perfumado que nos desenvolvemos. O pesadelo constante da nossa juventude foi uma moral hipócrita, que desconhecia as leis mais elementares da psicologia, uma moral que optava pelo silêncio ou pelo rodeio, quando se encontrava em presença dos mais delicados problemas da juventude. É, sem dúvida, devido a esse silêncio que hoje nos é extremamente difícil reconstituir os hábitos e os costumes de uma época que se tornou inverosímil, pois carecemos da documentação indispensável. Contudo, ainda podemos dispor, para esse fim, de um elemento importante - a moda. Ela revela, de certa forma, também, a moral do tempo, através das impressões estéticas que caracterizaram a sua época.

Não é pela simples razão de se encontrar em frente de exotismos que o público de todas as cidades e de todas as aldeias da Europa e da América irrompe em franca hilaridade quando hoje, em 1940, aparecem nas fitas cinematográficas artistas com vestuários da época de 1900. Mesmo as pessoas mais modestas não deixam de considerar desfavoràvelmente esses hábitos, de lamentar uma época em que a moral transformava o ser humano numa espécie de paranóico, obrigando-o a vestir-se de uma maneira absurda, incómoda e anti-higiênica. E até aqueles que, como nós, também na sua juventude usaram vestuários ridículos e viram como as suas mães, as suas tias e as senhoras da sua amizade se vestiam, não podem deixar de admirar como foi possível que uma geração inteira se tivesse adaptado sem protesto a moda tão insensata.

Já hoje nos causa espanto o costume que obrigava os homens dessa época a usar colarinhos altos. -'esses cruéis torturadores dos nossos pais - que impediam ridiculamente qualquer movimento espontâneo, longas sobrecasacas pretas e a célebre cartola alta, que fazia lembrar o cano de uma chaminé; mas o que sobretudo nos causa hoje verdadeira hilaridade é a "dama" de então, oprimida e apertada numa indumentária que em todos os seus pormenores violentava as leis da natureza.

A sua cintura parecia simplesmente a de uma vespa, comprimida como estava dentro de um espartilho de barbatanas duras, enquanto que, pelo contrário, a parte inferior do corpo era meticulosamente encerrada num bloco de roupas, que tomava a aparência de um sino descomunal. O pescoço era coberto até ao mento e os pés envolviam-se até às pontas dos dedos. O cabelo elevava-se em carrapitos e desdobrava-se em caracóis e tranças e sobre ele pontificava um majestoso chapéu, que oscilava caricatamente. As mãos, mesmo nos dias quentes de Verão, escondiam-se sempre nas luvas e, assim, esse ser que, desde há muito tempo, se tornou histórico, a "dama", dá a impressão de haver sido uma pobre infeliz, uma vítima digna de compaixão, apesar das essências perfumadas que dela se evolavam, das jóias que a adornavam, das pregas e dos berloques.

Não é necessária muita perspicácia para se compreender que uma senhora, encerrada como um cavaleiro antigo dentro da armadura, tinha os movimentos tolhidos e que, por conseqüência, toda a sua graça e todos os seus gestos deviam ser extremamente difíceis, artificiais, antinaturais. Por outro lado, e independentemente do que ao problema da sua educação social se refere, o facto da encenação da indumentária da "dama" requeria já uma atenção e um esforço complicadíssimo, que não podia ser realizado sem o auxílio de outra pessoa.

Em primeiro lugar, era necessário atacar, na parte posterior do busto, infinidade de colchetes e apertar o espartilho, operação esta que requeria toda a força da criada de quarto. O cabelo - e recordo neste particular que, há trinta anos, todas as senhoras da Europa tinham o cabelo tão comprido que lhes chegava aos quadris, exceptuando apenas algumas dezenas de estudantes russas. -exigia cuidados especiais, que ficavam a cargo de uma artista, chamada diariamente, que, depois de o escovar, acetinar, encaracolar e pentear, o enrolava e elevava em forma de torre, servindo-se de uma legião de ganchos, presilhas e pentes. A paciente era depois embrulhada, envolvida em camisas, saias brancas, camisolas, casacos e casaquinhos, até se obter o desvanecimento total das suas formas femininas.

Esse tremendo disparate obedecia, no entanto, a um objectivo que se tinha bem em vista atingir, e que consistia em ocultar tão rigorosamente as linhas da estética feminina que nem o próprio noivo pudesse saber, mesmo na hora da boda nupcial, se a mulher que ia ser a companheira de toda a sua vida era direita ou torta, gorda ou magra, ou se tinha as pernas curtas, compridas ou arqueadas. Mas o que revelava ainda a sinceridade dessa época "moralista" é que não era então considerado indignidade o uso de artificialismos que aumentassem o volume de certas partes do corpo, como sejam os seios, cabelo, etc. pois essas hipocrisias facilitavam uma adaptação ao ideal geral da beleza então admitido. A moda da época concentrava toda a atenção em esconder ou em encobrir. O seu fim primordial, em obediência aos princípios de moral geralmente admitidos, era esse. Uma senhora, quanto mais desejasse dar a impressão de que era realmente uma "dama", tanto mais deveria velar os contornos do corpo.

Essa moral virtuosa ignorava, porém, que, quando se fecha a porta ao Diabo, este quase sempre consegue entrar pela chaminé ou pelo buraco da fechadura. O que particularmente estranhamos nessa moral não é bem o facto de que quisesse ser decente ou desejasse atenuar, escondendo todos os vestígios de pele feminina, a intensidade da atracção sexual, mas sim, pelo contrário, o quanto ela a multiplicava, tornando-a mesmo desagradàvelmente provocadora. Enquanto que o jovem e a jovem da época actual facilmente se adaptam a uma convivência quase fraternal, aliás facilitada pelo aspecto exterior, pois ambos são geralmente altos, esbeltos, imberbes e usam os cabelos curtos, o mesmo não sucedia com os da época passada, pois distinguiam-se entre si tanto quanto lhes era possível. Os homens usavam barba comprida, ou, pelo menos, abundante bigode de pontas retorcidas e marcialmente erguidas, como atributo, visível de longe, da sua masculinidade; ao passo que, na mulher, o espartilho fazia evidenciar ostensivamente a nota característica da sua feminilidade os seios.

O chamado sexo forte diferenciava-se do sexo frágil ainda sob outros aspectos: - o homem era forte, cavalheiresco, agressivo; a mulher tímida, frágil e passiva. Pareciam o caçador e a presa, e não dois seres iguais em direitos. Essa antítese exterior, tão antinatural, não podia deixar de agravar também a tensão entre os pólos da vida erótica. Dessa maneira, uma sociedade que julgava a hipocrisia o caminho mais curto para a virtude colheu, precisamente porque adoptou este último critério, o contrário daquilo que mais desejava. Farejando o imortal em todas as manifestações da vida, na arte, na literatura e na indumentária, preocupada com uma incessante ânsia de virtude e de seriedade, por vezes por pura afectação, era forçada a pensar constantemente na imoralidade. Em toda a parte se julgava que poderiam surgir indignidades, o que provocava um permanente estado de alerta. Cada palavra e cada gesto parecia sugerirem a essa época que a moral estava ameaçada.

Talvez ainda se possa conceber que, então, o facto de uma mulher usar calças de homem, quando participava em qualquer actividade desportiva, fosse considerado um crime. Mas como classificar a afectação histérica do moralismo de uma época que não permitia sequer que a palavra "calças" aflorasse aos lábios de uma senhora, a qual, sempre que queria referir-se a uma peça de vestuário tão perigosa para a sexualidade como eram as calças de homem, devia procurar ambigüidades ou utilizar uma expressão menos susceptível, especialmente inventada para esse fim - as "indizíveis "...

Também nunca essa época teria permitido que dois jovens da mesma classe social, mas de sexo diferente, passeassem juntos, sem serem atentamente vigiados, porque se supunha logo que nesse passeio sem vigilantes poderia "acontecer" alguma coisa. Qualquer encontro só seria permitido, quando muito, se tivesse lugar na presença de mães ou de governantas, e se estas pudessem seguir todos os gestos e passos dos jovens. Se alguma rapariga se atrevesse, mesmo nos mais cálidos dias de Verão, a jogar o tênis com vestidos um pouco mais curtos ou até, simplesmente, com os braços nus, logo o facto seria classificado de escandaloso. Se uma senhora de boa sociedade ousava, numa reunião íntima, cruzar as pernas, logo a "decência" considerava o facto horrivelmente ofensivo, porque, dessa maneira, poderiam os tornozelos aflorar sob a orla dos vestidos.

Mas isso ainda não era suficiente, pois que até aos próprios elementos da Natureza, ao Sol, à água e ao ar se lhes proibia que tocassem uma epiderme feminina. Em pleno mar, as jovens só podiam nadar com trajes incômodos, que as cobriam dos calcanhares ao pescoço e lhes dificultavam penosa e lamentavelmente todos os movimentos; nos pensionatos e nos conventos, deviam elas, a fim de esquecer que também possuíam corpo, tomar inclusivamente o seu banho privado vestidas com uma longa camisa branca. Não há, de nenhuma maneira, exagero quando se diz que havia então mulheres que morriam velhas sem que, à excepção da parteira, do esposo e da pessoa encarregada de vestir os cadáveres, ninguém mais lhes houvesse visto sequer a linha das espáduas ou os joelhos. Hoje, porém, passados apenas quarenta anos, tudo isso já nos parece realmente fábula ou exagero humorístico.

O receio de tudo o que era corporal e material penetrara profundamente em todas as camadas da população, atingindo por vezes o paroxismo de uma verdadeira nevrose, que originava exageros, hoje mal imagináveis, como o dos camponeses que apedrejavam, nos fins do século passado, as primeiras mulheres que se atreveram a montar a cavalo como os homens ou a andar de bicicleta. Recordo que, sendo ainda estudante, faziam os jornais de Viena grande celeuma à volta da inovação, então proposta, e considerada como indecência, de as bailarinas da Ópera Imperial dançarem sem meias de malha. Também Isadora Duncan, a excepcional artista que tão magnificamente sabia interpretar a dança clássica, provocou uma estranha sensação de espanto quando, dançando, em vez de sapatinhos de cetim, afloravam no extremo inferior da sua túnica branca, felizmente muito longa, os seus pés nus.

Pode-se imaginar facilmente como essa época, pretensamente severa e rigorosa, havia de aparecer ridícula aos olhares da juventude, quando esta descobrisse que o manto diáfano da sua moral, com o qual a sociedade procurava misteriosamente envolver todos os aspectos da vida que não lhe agradavam, era, afinal, muito frágil e já estava cheio de rasgões e esburacado. Não era difícil encontrar um ou outro dos cinqüenta alunos da nossa aula que tivesse visto algum dos nossos professores em qualquer rua suspeita, e também não se podia evitar que soubéssemos, no seio da nossa família, que esta ou aquela pessoa, diante de nós revestida de toda a dignidade, não estava realmente tão isenta de pecados como queria deixar supor.

A verdade é que nada aumentava e despertava tanto a nossa curiosidade como aquele hábito de procurar desviar-nos a atenção de certos fenômenos. Não permitindo que o natural e inevitável se manifesljasse livremente e seguisse o seu curso normal, essa moral hipócrita forçava a curiosidade a criar derivativos artificiais, nem sempre muito dignos. E era assim que a mocidade de todas as classes sociais se debatia numa misteriosa insatisfação permanente, causada pela repressão dos imperativos da sua natureza, insatisfação que, por vezes, procurava alívios de uma maneira pueril e vã. Dificilmente se encontraria então um muro, as paredes de um recanto, ou as de uma retrete onde não se encontrassem palavras e desenhos obscenos, e nas casas de banho em que havia paredes de madeira que ligavam com os compartimentos destinados às senhoras, apareciam sempre orifícios por onde se podia espreitar. Havia também uma série de indústrias secretas, hoje já quase totalmente desaparecidas, devido à maior sinceridade dos costumes, que floresciam estranhamente, em particular a da fotografia do nu, cujos exemplares vendedores ambulantes ofereciam em segredo aos rapazes. Outra indústria desse tempo era a da literatura pornográfica, a da mais perigosa espécie, a dos livros "sous lê manteau", impressos em papel ordinário e escritos em linguagem vulgaríssima - em contraste flagrante com a literatura digna, que era obrigada a estilizar-se e a superar-se continuamente- mas que, apesar disso, eram muito procurados, o mesmo sucedendo com as chamadas revistas "picantes", tão desagradáveis e excitantes e que hoje, felizmente, já não existem. Ao lado do Teatro da Corte, expoente máximo do ideal da época, templo onde se rendia homenagem a tudo o que era nobre e puro, levantavam-se teatros e outros lugares de diversão, onde os mais baixos sentimentos se estadeavam. Em toda a parte se conseguiam rodeios, subterfúgios e expedientes que permitiam manifestar-se completamente o que a moral proibia.

Como o fruto proibido é sempre o mais desejado e a concupiscência tanto mais intensa quanto mais hipócrita é a moral que procura impedir o convívio sincero entre os jovens dos dois sexos, resulta que aquela geração era imensamente mais predisposta para a vida erótica do que a mocidade de hoje, com a sua liberdade de amar e viver. Quanto mais se procurava manter a ignorância ou se velavam as realidades, quanto menos se permitia que os olhos vissem e os ouvidos ouvissem, tanto mais os cérebros fantasiavam. Quanto mais o corpo se afastava do ar, da luz do Sol, tanto mais facilmente despertava o sentido genésico.

Pode dizer-se que os resultados obtidos pelos métodos de educação postos em prática por essa época foram absolutamente negativos, pois, em vez de uma moral mais elevada, só conseguiam despertar na juventude relutância e desconfiança. Desde os primeiros momentos do alvorecer da nossa consciência, começámos a ter a sensação quase instintiva de que essa moral desonesta apenas procurava, com as hipocrisias, o silêncio e os rodeios, impedir-nos de entrar na posse de qualquer coisa que de direito já pertencia à nossa idade, sacrificando o nosso desejo de verdade a uma convenção, que desde há muito tempo se tornara mentirosa.

Essa "moral social", que apenas de maneira discreta admitia o realismo da sexualidade e o seu curso natural, pois na vida pública se recusava terminantemente a reconhecê-la, era uma moral duplamente falaz. Em referência aos jovens ainda ela fechava um olho e piscava o outro, como que para lhes dar a entender que podiam procurar "eliminar os maus humores", como se dizia então em família, ironicamente, na linguagem vulgar da época. Porém, quando o assunto se relacionava com a mulher, então essa mesma moral fechava medrosamente os dois olhos - ficava cega.

A mentira convencional tolerava ainda que o homem pudesse ter instintos e até os sentisse realmente, mas admitir que a mulher estava sujeita às mesmas leis, conceber que a criação, nos seus desígnios eternos, também lhe tivesse dado idêntica sensibilidade, isso nunca o poderia ela aceitar porque seria ofender o seu conceito da "santidade da mulher". O axioma de que ela nunca teria desejos sexuais, enquanto o homem não lhos tivesse despertado, fazia, pois, lei na época que antecedeu Freud. E como até o ar, nessa época de moralismo, particularmente em Viena, estava impregnado de miasmas eróticos, era necessário que as jovens de bom tom, desde o berço ao dia em que já com o esposo deixavam o altar, vivessem uma atmosfera rigorosamente esterilizada.

com o fim de as proteger não lhes era nunca permitido que estivessem sozinhas. A governanta era a pessoa encarregada de as vigiar constantemente, de seguir todos os seus passos. Sob nenhum pretexto podiam sair à rua sem serem acompanhadas; eram conduzidas à escola, à aula de dança e de música, e voltavam novamente a ser conduzidas a casa. Todos os livros de leitura eram previamente examinados e procurava-se que as jovens estivessem continuamente ocupadas, para as desviar de possíveis maus pensamentos. Deviam aprender a tocar piano, cantar e desenhar, e estudavam línguas estrangeiras, história da arte e da literatura enfim, eram instruídas e superinstruídas. Porém, essa instrução, que a sociedade exigia que fosse tão perfeita como se pudesse imaginar, não abrangia todos os sectores da cultura, pois eram mantidas numa estreita ignorância - que hoje quase não sabemos já conceber - acerca dos fenômenos mais naturais da vida.

Uma rapariga de boa família não devia possuir nenhuma idéia da conformação do corpo masculino nem saber como as crianças nascem, pois o anjo devia manter-se absolutamente "puro" até ao dia do matrimônio, não só apenas corporal, mas também espiritualmente. Quando se dizia, nessa época, que uma jovem era "bem educada", significava-se que se encontrava bem à margem das leis da Natureza, E, muitas vezes, esse viver fora da realidade durava toda uma existência. Ainda não me esqueci da grotesca história de uma tia minha, que, na noite do casamento, apareceu novamente em casa dos pais, à uma hora da madrugada, gritando, ofendida, que nunca mais voltaria a ver o hediondo indivíduo com quem a haviam casado, porque ele era um louco, um monstro que insistentemente a quisera convencer a despir-se. Só com grande esforço, dizia ela, conseguira evitar a consumação de um desejo tão anormal.

Não posso, contudo, deixar de considerar que essa ignorância dava às jovens de então um misterioso atractivo, pois, suspeitando elas que fora da órbita do seu mundo outro existiria, do qual porém nada sabiam, nem deveriam saber, tornavam-se atraentemente curiosas, anelantes e apaixonadas. Quando cumprimentadas na rua, ruborizavam-se-lhes as faces - haverá ainda hoje raparigas que se ruborizem?-"e quando se reuniam umas com as outras, tinham o hábito de rir, ora baixinho, ora mais alto, e comunicavam entre si íntimos segredinhos, dando a impressão de que estavam leve e encantadoramente embriagadas. Cheias de saudade por esse mundo desconhecido que pressentiam, sonhavam com uma vida plena de enlevo, mas ao mesmo tempo coravam de vergonha ao pensar que alguém podia descobrir que os seus corpos estavam sedentos de carícias, de cuja natureza, de resto, elas não tinham nenhuma idéia clara.

Quase todos os seus gestos traduziam uma íntima apreensão, e a sua maneira de andar era bem diferente da das jovens de hoje, cujo corpo, revigorizado pelo desporto, é muito mais ágil, o que lhes permite movimentarem-se tão desembaraçada e rapidamente como os rapazes. Naquela época, já a grande distância de mil passos se podia distinguir, unicamente pelo andar e pelas maneiras, uma mulher solteira da casada. As jovens de outrora eram mais meninas que as de hoje e também menos mulheres. Tinham a delicadeza exótica das plantas raras que se cultivam nas estufas, viviam numa atmosfera artificial, ao abrigo de todas as intempéries - eram o desejado produto obtido com esmero de um determinado conceito de educação e de certo grau de civilização.

Mas era assim mesmo que essa sociedade desejava que a mulher fosse. -ingênua e inexperiente, bem educada e curiosa, casta e pusilânime. Era dessa maneira que ela era excessivamente educada, à margem das grandes realidades da vida e sem vontade própria, para que, quando se casasse, o marido a pudesse inteiramente dominar e conduzir. Dir-se-ia que a moral de então queria que a mulher fosse o símbolo mais alto do seu ideal, o símbolo da pureza e da virgindade, o símbolo de qualquer coisa que já não era bem deste mundo.

Mas em que tragédia imensa não se transformava a vida da mulher, quando, tendo já vinte e cinco ou trinta anos, ainda não se casara As convenções sociais continuavam a exigir da mulher solteira, mesmo quando esta já tivesse quarenta anos - em nome da "moralidade" e da honra da família" - a mesma candidez e ingenuidade da juventude, qualidades que desde há muito já não conseguia manter na sua idade. E sucedia então, quase sempre, que toda essa hipocrisia forçada a transformava numa pessoa cruelmente burlesca - a "solteirona", a "menina", a "tia". A pobre tornava-se, assim, o alvo da ironia desenfreada das revistas humorísticas. Um testemunho das grosseiras incongruências que nessa época se lançavam contra a "tia", ainda se pode hoje observar nos exemplares da revista de então Fliegende Blâtter ou em qualquer outro jornal humorístico do tempo. Nas suas páginas se encontram as mais insolentes diatribes contra a solteira que ia envelhecendo e que, com o sistema nervoso perturbado, não podia contudo ocultar o seu natural desejo de amor. Em vez de se reconhecer a tragédia imensa que consumia essas existências que, em nome da moral e da família, realizavam o supremo dom da renúncia ao amor e à maternidade, reprimindo em si mesmas as exigências da Natureza, zombava-se do seu sacrifício com uma incompreensão que hoje nos causa indignação viva e sincera. Mas a sociedade que estabelecia uma moral que injuriava a Natureza, guardava todo o seu rancor contra aquela que, não sabendo ou não podendo ser absolutamente hipócrita, era apenas afinal, uma vítima do ambiente em que fora educada.

As convenções morais e sociais dessa época mantinham convulsivamente a ficção de que uma mulher de "boa família" não possuía, nem devia possuir sexualidaide, enquanto não fosse casada. Qualquer desvio a esta norma colocava a mulher na situação de "pessoa imoral", a quem a família baniria do seu seio. Outro tanto não sucedia com o homem, pois a sociedade era forçada a admitir que este tinha realmente sexualidade e, como a experiência demonstrasse ser inteiramente impossível evitar que um jovem na idade da puberdade não tivesse actividades sexuais, não podia ela impedir o facto e limitava o seu veto a impor que esses prazeres indignos se realizassem "extra muros" da santa realidade. E, assim, da mesma maneira que, sob as avenidas e os magníficos edifícios de uma grande cidade, se ocultam os canais subterrâneos por onde se escoa a imundície das cloacas, também a sociedade exige que a vida sexual da juventude tivesse lugar em segredo, no subsolo invisível da moral estabelecida. Os perigos a que os jovens se expunham nas esferas sociais inferiores com as quais deviam entrar em contacto eram problemas que não mereciam então nenhuma atenção. Ninguém, nem na escola nem na família, lhes dava sobre o assunto o mais pequeno esclarecimento. Apenas, muito raramente, e isto só se verificou nos últimos anos, alguns pais mais previdentes ou, como então se dizia, "mais esclarecidos", procuravam ajudar os filhos, desde que os primeiros sintomas da puberdade apareciam. Era então chamado o médico da família que, aproveitando qualquer ensejo, comunicava ao jovem que lhe desejava falar particularmente. Principiava o facultativo por retirar e limpar cerimoniosamente as lunetas e depois iniciava uma prelecção sobre o perigo das doenças venéreas, demonstrando ao rapaz quão prudente seria que ele - esse jovem que, habitualmente, já desde há muito se instruíra a si próprio sobre a matéria - fosse moderado e não deixasse de tomar certas medidas de precaução. Outros pais adoptavam, porém, um método muito mais estranho e que consistia em admitir ao serviço doméstico uma criada bonita, sobre quem recaía a tarefa de instruir praticamente o menino. Parecia-lhes mais conveniente que o filho praticasse esse acto aborrecido no próprio lar paterno, pois dessa maneira conseguia-se salvaguardar a facíhada exterior da moral e evitava-se o perigo de que o jovem caísse nas mãos de alguma "indecente". Mas o único método possível e digno, o do estudo sincero e aberto dos problemas sexuais esse era proibido.

O problema sexual não tinha para as classes sociais consideradas inferiores a mesma acuidade que revelava, para o filho do mundo burguês. Nas zonas rurais, o criado, aos dezassete anos de idade, já dormia com a criada, e, se dessas intimi/dades resultavam conseqüências, não tinha o facto grande importância. Na maior parte das nossas aldeias alpinas, o número de filhos ilegítimos era muito superior ao dos legítimos. No proletariado, também o operário, antes de se poder casar, podia viver em mancebia com uma operária. Entre os judeus ortodoxos da Galícia havia o hábito de dar noiva ao rapaz que atingia a idade de dezassete anos, isto é, quando um rapaz se encontrava apenas no limiar da puberdade. Assim, aos quarenta anos já podia ser avô.

Mas a nossa sociedade burguesa estava longe de admitir semelhante critério. O único remédio que podia significar um lenitivo para o mal que apontámos - o casamento precoce - não era admitido, pois nenhum pai de família confiaria a sua filha a homem de vinte ou de vinte e dois anos porque, então, um indivíduo dessa idade, tão "novo", ainda não estava suficientemente "maduro". Era um hábito que mais uma vez revelava o absurdo critério que a burguesia havia estabelecido, pois o seu calendário estava em completo desacordo com "o da Natureza; enquanto que, para esta, o indivíduo atinge a puberdade aos dezasseis ou aos dezassete anos, a sociedade supunha que esse fenômeno só se dava quando o jovem conseguia obter uma "posição social", isto é, quase nunca antes dos vinte e cinco ou dos vinte e seis anos" de idade. Dessa maneira, existia entre a puberdade natural e a social um artifício de seis, oito ou dez anos, lapso de tempo durante o qual era obrigado a procurar, fora do círculo da sua classe social, as suas "aventuras".

Mas as possibilidades que nesse sentido a sociedade lhe oferecia eram muito limitadas. Eram poucos os que podiam oferecer-se o luxo de "manter" uma amante, isto é pôr-lhe a casa e satisfazer-lhe todas as necessidades da existência. Só os muito ricos o podiam fazer.

Por outro lado, também eram muito poucos os felizardos que conseguiam realizar o ideal amoroso e romântico da época, o único que era permitido abordar na literatura daquele tempo-as relações com uma mulher casada. Os outros, a maioria, limitavam-se quase sempre a pequenas aventuras com modestas empregadas ou criadas, facto que pouca satisfação íntima lhes proporcionava, pois naquele tempo, em que a mulher ainda não tinha obtido a emancipação e não participava de um modo activo no trabalho fora do lar, só raparigas das mais pobres camadas proletárias dispunham de alguma liberdade e suficiente falta de escrúpulo para aceitar essas relações fugazes sem sérias preocupações matrimoniais. Mal vestidas, fatigadas por um trabalho diário de doze horas miseravelmente pago, ignorando quase as regras da higiene nessa época uma casa de banho era privilégio de famílias ricas - e habituadas a um ambiente deficiente e limitado, estavam colocadas num nível de vida tão inferior ao dos amantes que estes quase sempre sentiam repugnância em aparecer com elas em público.

Para esta escrupulosidade, porém, havia a moral convencional previdentemente inventado derivativos especiais-os gabinetes reservados. Era aí que, ao abrigo de olhares indiscretos, se podia jantar tranqüilamente em companhia de uma jovem, encontro cuja última fase terminava sempre no quarto de um desses pequenos hotéis, em ruas escuras e pouco freqüentadas, expressamente montados para este fim.

Todas essas aventuras eram, porém, necessariamente vulgares, dominadas quase somente pelo materialismo do desejo, pois todo o abandono amoroso ou beleza lhes estava vedado. Eram rápidos encontros dificilmente toleráveis e, por isso mesmo, plenos de mistério e intranqüilidade.

Havia ainda, é certo, a possibilidade de outras aventuras com algum daqueles seres anfíbios que viviam simultaneamente, no seio e à margem da sociedade: actrizes e bailarinas, artistas que eram, naquele tempo, as únicas mulheres "emancipadas".

Exceptuando a vida matrimonial, a prostituição era, de um modo geral, o grande alicerce da vida erótica daquela época ela era a grande abóbada subterrânea sobre a qual se erguia, com a sua imaculada e deslumbrante frontaria, o faustoso edifício da sociedade burguesa.

A presente geração mal pode fazer idéia da expansão que a prostituição havia tomado até à guerra de 1914. Ao passo que nas artérias das grandes cidades de hoje é tão raro encontrar uma prostituta como um veículo hipomóvel, naquele tempo as ruas estavam tão pejadas de mulheres que se ofereciam à venda que era mais difícil evitá-las do que encontrá-las. A juntar a esta abundância de mulheres que percorriam a via pública, havia ainda as que se encontravam nas "casas reservadas", nos locais nocturnos do prazer, cafés ou tabernas elegantes, salões de baile com dançarinas e cantoras e cervejarias onde havia raparigas atraentes. A mercadoria feminina oferecia-se publicamente a qualquer hora e por qualquer preço. O homem tinha tanta facilidade em comprar uma mulher por um quarto de hora, uma hora ou uma noite, como em adquirir um maço de cigarros ou um jornal.

O que, quanto a mim, parece ser prova da maior sinceridade e naturalidade adquirida pelos costumes contemporâneos é precisamente o facto de que a juventude de hoje quase inteiramente repudia uma instituição, outrora considerada absolutamente indispensável. E o que mais sintomático se torna ainda é que a diminuição da prostituição não se deve de nenhum modo à acção da lei ou da polícia, mas sim ao facto deveras animador de que esse produto mórbido de uma moral hipócrita quase se extingue por falta de quem dele se queira utilizar.

A posição oficial do Estado e da sua moral nunca foi muito honesta em referência a esse comércio indigno, pois, se, publicamente, não se queria admitir que a mulher tivesse o direito de vender o corpo, não se deixava contudo de aceitar a prostituição como uma necessidade visto que ela satisfazia as indesejáveis mas inevitáveis necessidades sexuais dos que não faziam vida matrimonial.

Em presença desse dilema, resolvera o Estado tomar uma atitude ambígua, estabelecendo distinção entre prostituição clandestina, combatida como imoral e perigosa, e prostituição regulamentada, permitida mediante uma espécie de autorização especial e tributada. Quando uma rapariga decidia prostituir-se, devia inscrever-se nos registos policiais especiais e recebia então um livro de registo, que operava como licença. Submetendo-se à fiscalização policial e, duas vezes por semana, à visita médica, obtinha então o direito de alugar o corpo pelo preço que julgasse conveniente.

A prostituição era reconhecida como profissão entre muitas profissões, mas não de modo absoluto era aqui que surgia, então, o paradoxo e a incoerência da moral - pois se uma prostituta vendia a sua mercadoria, isto é, o seu corpo, a um homem, e este depois se recusasse a pagar o preço combinado, não tinha ela o direito de se queixar contra ele, porque a sua demanda tornar-se-ia subitamente imoral, ob turpem causam - assim o declarava a lei - não merecendo a vítima, portanto, o apoio das autoridades.

O facto significava, em si mesmo, pura e simplesmente, uma manifesta incoerência, pois, havendo essas mulheres sido admitidas a desempenhar uma profissão que o próprio Estado reconhecia, não se compreendia que fossem colocadas fora da acção do direito público. Mas o que revelava ainda mais a evidente duplicidade dessa moral hipócrita era a certeza de que essas severidades e limitações abrangiam apenas as prostitutas das classes mais pobres.

Uma bailarina, que nas ruas de Viena podia ser adquirida por duzentas coroas, a qualquer hora e por qualquer homem, e tão facilmente como podia ser adquirida a prostituta vulgar que se vendia por duas coroas, não precisava, naturalmente, de obter licença policial. E as mundanas de alta estirpe viam os nomes no noticiário da imprensa entre os das pessoas de categoria, nos relatos da assistência elegante às corridas de cavalos, pois eram consideradas pessoas de "sociedade". Da mesma maneira, eram consideradas algumas das distintas senhoras que serviam de intermediárias na preparação de encontros amorosos, as quais facilitavam à corte, à aristocracia e à alta burguesia, a aquisição de luxuosa mercadoria. Essas senhoras actuavam sob a protecção da lei, a qual guardava todo o rigor para as mulheres pobres que, como elas, se dedicavam também ao lenocínio.

A disciplina severa, a vigilância cruel e a prescrição social eram medidas que só se empregavam contra o exército de milhares e milhares de desgraçadas que, com a alma humilhada, ofereciam o corpo em holocausto a uma moral caduca e já então moribunda, que se negava a aceitar um conceito de amor mais livre e mais natural.

Este formidável exército da prostituição estava dividido - do mesmo modo que o exército verdadeiro, que se compõe de diferentes especialidades, cavalaria, infantaria, artilharia pesada e ligeira - em diversas categorias.

A artilharia pesada da prostituição correspondia ao grupo que, como se fosse o seu aquartelamento, ocupava determinada área da cidade, na maior parte dos casos constituída pelas zonas onde outrora, na Idade Média, se erguera o patíbulo, estivera uma leprosaria ou um cemitério. Era aí que se acobertavam os sem lei, os verdugos e os prescritos e, portanto, eram zonas onde a burguesia desde há muito tempo tinha relutância em se domiciliar. Nalgumas das ruas tolerava a polícia que se instalasse o mercado do amor. Em pleno século XX ainda nesses mercados, como em loshiowara, no Japão, ou na praça do peixe, no Cairo, se viam duzentas ou quinhentas mulheres sentadas às janelas das suas moradias de rés-do-chão, quase juntas umas às outras, porta sim, porta não, expondo-se e oferecendo-se por uma ridicularia, num comércio constante, com os seus turnos especiais para o dia e para a noite.

A cavalaria e a infantaria da prostituição eram constituídas pelas legiões de mulheres que procuravam clientes nas ruas. Em Viena chamavam-lhes as "mulheres do ponto", porque a polícia não autorizava que elas ultrapassassem certas partes dos passeios onde deambulavam para fazerem as suas conquistas. De dia e de noite, até altas horas da madrugada, a todas as intempéries, passeavam elas a sua falsa elegância, dificilmente adquirida, forçadas a dirigir constantemente, muitas vezes já fatigadas e mal-humoradas, sorrisos sedutores aos transeuntes"

Como me parecem mais belas e mais dignas as cidades de hoje, desde que esses bandos de mulheres famintas e infelizes não mais se vêem nas ruas, essas mulheres que sem prazer ofereciam prazer aos outros e que, no interminável vaivém de uma para outra esquina, seguiam, afinal, pelo caminho que conduzia sempre ao mesmo inevitável fim - o hospital.

Mas essas legiões ainda não satisfaziam as necessidades do mercado. Alguns clientes preferiam aventuras mais cómodas e mais discretas, pois não lhes agradava terem de seguir em plena rua esses morcegos levianos, essas tristes aves-do-paraíso queriam amor mais confortável, amor com luz e amenidade, com música, com dança, com tonalidades de luxo. Para esses existiam as "casas reservadas", espécie de prostíbulos discretos e elegantes onde, numa "sala" montada com requintes de luxo, que nada tinha de verdadeiro, se juntavam raparigas que pelo trajo procuravam aparentar damas e outras cujo vestuário era estranhamente negligente. Havia música, dançava-se, bebia-se e conversava-se, e depois os pares retiravam-se discretamente para os quartos.

Em alguns desses prostíbulos mais distintos, particularmente em Paris e em Milão, onde alguns gozavam de certo renome internacional, poderiam até alguns espíritos ingênuos alimentar a ilusão de que haviam sido convidados para uma reunião em qualquer casa particular, em que havia simplesmente senhoras de "sociedade", demasiadamente alegres.

As pensionistas destes prostíbulos especiais viviam em melhores condições do que as raparigas que tinham de procurar os clientes na rua, pois não se expunham às intempéries, viviam em aposentos aquecidos, recebiam bons vestidos, comiam bem e, sobretudo, bebiam ainda muito melhor. Mas esse relativo bem-estar era adquirido por bom preço, pois ficavam para sempre virtualmente prisioneiras da proprietária do estabelecimento sendo esta quem lhes fornecia os vestidos e as alimentava, arranjava tais artifícios e engenhos com as contas que mesmo as pensionistas mais esforçadas e perseverantes não conseguiam nunca libertar-se de uma espécie de prisão perpétua ocasionada pelas suas intermináveis dívidas. Assim, na realidade, nunca podiam sair das casas onde se encontravam, mesmo que o desejassem fazer.

Seria muito importante, como elemento de contribuição para o estudo de uma época, fazer a história de algumas dessas casas misteriosas, onde se vivia estranhamente e que possuíam os segredos mais originais, aliás perfeitamente conhecidos das autoridades que, noutros domínios, manifestavam sempre muita escrupulosidade. Ali existiam portas secretas e escadas especiais por onde os membros da mais alta sociedade - e até os da corte, como se murmurava - podiam entrar para as suas visitas, sem serem notados pelos outros mortais. Havia quartos especiais revestidos de espelhos e havia também outros de onde se podia assistir às cenas que nos quartos contíguos faziam os pares que se divertiam, ignorando que estavam sendo observados. Muitas dessas casas dispunham de trajes singulares, guardados com extremo sigilo, desde o hábito de freira até ao vestido de bailarina, com os quais se realizavam os mais raros disfarces exigidos pelos feiticistas.

E era um mundo assim que se indignava quando uma rapariga andava de bicicleta e considerava uma profanação à dignidade da ciência as verdades tão serena e eloqüentemente estabelecidas por Freud, pela simples razão de que essas verdades desagradavam à sua moral. Essa sociedade, que tão pateticamente defendia a pureza da mulher, era a mesma que tolerava a infâmia de que a mulher se vendesse a si própria, e era até ela que organizava esse indigno comércio e dele auferia lucros.

Essa época, apesar dos seus romances e novelas sentimentais - não devemos formular um juízo crítico apenas fundamentados em tal literatura - foi infeliz para a mocidade. As jovens, submetidas à cerrada e hermética vigilância da família, tinham uma existência que as colocava à margem da vida, impossibilitando-as de se desenvolverem física e espiritualmente, e, quanto aos rapazes, uma moral absurda e caduca forçava-os a uma vida de subterfúgios e de indignidade.

Só muito poucos eram aqueles que podiam amar abertamente, seguindo os seus impulsos, os únicos que, de acordo com as leis da Natureza, lhes poderiam proporcionar prazer e felicidade. Os que nasceram nessa época e que se recordem de suas primeiras aventuras amorosas, lembrar-se-ão certamente que em nenhuma delas encontraram um prazer verdadeiramente completo, pois, além da tirania da moral social que obrigava o jovem a tomar atitudes de cautelosa e extrema reserva, havia ainda, naquele tempo, durante e após os momentos de mais ternura, uma cruel inquietação que lhes angustiava a alma - o receio da infecção.

A mocidade de outrora era, neste capítulo, muito mais infeliz do que a de hoje. Há quarenta anos as doenças venéreas estavam cem vezes mais difundidas e, sobretudo, eram cem vezes mais perigosas e difíceis de tratar, porque a medicina ainda não sabia dominá-las completamente. Então, ainda não existiam as imensas possibilidades científicas da nossa época, que permitem curar rápida e radicalmente essas doenças, transformando-as, por isso, quase que num simples acidente sem grande importância.

Hoje, graças aos trabalhos de Paulo Ehrlich, passam-se, por vezes, muitas semanas sem que os catedraticos das clínicas universitárias - por muito modestas ou importantes que as respectivas universidades sejam - possam apresentar aos seus alunos um caso de infecção sifilítica recente. Porém, as estatísticas militares ou as das grandes cidades provavam que, naquela época, entre dez jovens havia pelo menos dois que já haviam sofrido de doenças venéreas. Nas "ruas de Viena, qualquer transeunte podia observar, de seis em seis, ou de sete em sete prédios, placas onde se lia: "médico especialista de doenças de pele e venéreas".

Mas não era só a própria doença em si que causava pavor, eram também os repugnantes métodos de cura que então se seguiam, hoje quase ignorados. Uma pessoa que havia contraído a sífilis devia submeter-se então a um moroso tratamento que durava semanas inteiras, durante as quais o corpo do paciente era friccionado com pomada mercurial, o que com freqüência originava a queda dos dentes e outras perturbações orgânicas. Dessa maneira, o pobre infeliz que tivesse tido a infelicidade de um mau encontro ficava com o corpo e com a alma envenenados para toda a vida, pois, mesmo depois de se haver submetido ao tratamento que existia na época, ficava ainda na dolorosa expectativa de que oterrivel vírus pudesse despertar da sua letargia e, atacando-lhe a medula, transformá-lo num paralítico ou produzir-lhe o amolecimento do cérebro. Não admira que, assim, muitos jovens, logo que o diagnóstico indicava que haviam contraído a sífilis, e achando insuportável o sentimento de que desde então passariam a ser, no seu foro íntimo e para as pessoas das suas relações, criaturas irremediavelmente perdidas, preferissem a solução dramática do revólver.

A juventude dessa época pseudomoralista tinha uma existência muito mais dolorosa e também muito mais impura, mais trágica e mais inquieta do que o que se pede depreender da leitura dos romances e peças teatrais dos mais célebres poetas e escritores de então. Se procuro recordar-me fielmente desse tempo, quase não me lembro de um camarada da minha juventude que não fosse pálido e não estivesse triste:-o primeiro, porque estava doente ou porque receava ficar doente; o segundo, porque, por causa de um aborto, lhe exigiam uma exorbitância o terceiro, porque não tinha o dinheiro necessário para fazer um tratamento que a família devia ignorar; o quarto, porque não sabia como pagar a alimentação de uma criança, cuja mãe, pequena empregada, dizia ser ele o pai; o quinto, porque num lupanar lhe haviam tirado a carteira e ele não ousava apresentar queixa. E era sempre assim, pois uma vida sexual, que apenas se podia desenrolar na sombra, só conseguia trazer constantes inquietações. O que sucedia na escola e no lar - repetia-se também na vida amorosa dessa juventude; quase nunca se lhe dava a liberdade e a felicidade, próprias da sua vida.

necessário fixar bem estes aspectos da vida de então, ao fazer a análise sincera dessa época, pois com muita freqüência, quando converso com amigos pertencentes à geração do após-guerra, sou forçado quase a tomar um ar de violência para os convencer de que a nossa mocidade de nenhum modo foi mais feliz que a mocidade actual. É certo que, como cidadãos, usufruíamos então mais liberdade, pois não estávamos presos aos serviços obrigatórios do trabalho, nem éramos forçados a aceitar violentamente ideologias de multidões ignaras, nem estávamos expostos, sem defesa possível, ao despotismo dos absurdos da política mundial.

A nossa vida individual e particular era mais respeitada e havia mais possibilidades de que cada qual seguisse as inclinações do seu espírito ou se dedicasse às suas preferências artísticas. Éramos mais cosmopolitas, porque o mundo inteiro estava à nossa disposição, pois, não só se podia viajar sem passaporte e sem vistos especiais, como ninguém nos perguntava de onde vínhamos e para onde íamos, de que nação éramos e a que religião pertencíamos. É evidente que tínhamos então muito mais liberdade - de nenhum modo o desejo negar - a qual nós não nos limitávamos apenas a estimar, mas também a usufruíamos.

Porém, a verdade é que, como com extrema elegância disse algures Frederico Hebbel:-"Quando não nos falta o vinho... falta-nos o copo". Dificilmente uma geração consegue viver plenamente a sua existência, pois quando a moral consente mais liberdade ao homem, logo o Estado surge e tenta manietá-lo, e se é o Estado quem lhe outorga a liberdade, então aparece a moral a oprimi-lo.

A nossa geração tinha mais possibilidades de abranger tudo o que era mundial, mas a juventude de hoje vive, certamente, uma existência íntima mais plena e mais consciente. Quando vejo a maneira altiva, alegre e risonha como os novos de hoje saem das escolas e dos colégios; quando contemplo a franca camaradagem que hoje existe entre rapazes e raparigas; quando os vejo juntos, sem timidez nem hipocrisia, no estudo e no desporto quando assisto às suas competições sobre a neve, correndo nos skis, ou os vejo nas provas de natação, desfrutando em conjunto uma liberdade quase paradisíaca quando os vejo na vertigem dos automóveis, atravessando as paisagens da Natureza, vivendo uma existência aberta, sã, francamente irmanados, libertos de toda a hipocrisia e de toda a pressão que nos rodeava, devo então confessar ter a impressão de que essa juventude não está apenas separada da nossa por um curto espaço de quarenta anos, mas, pelo contrário, por um abismo de mil, pois a nossa realidade era, nesse aspecto da vida juvenil, mistério, sombra e receio.

É com imensa satisfação que reconheço a grande revolução moral que se operou em relação aos hábitos e aos costumes da juventude da presente geração. É com grande alegria que vejo que ela conquistou um sentido mais amplo e mais humano da liberdade e do amor e como, com estas conquistas, alcançou um equilíbrio físico e espiritual mais acentuado. Até as mulheres me parecem mais belas, agora que podem livremente exteriorizar a graça da sua estética, desde que têm o andar mais nobre, o olhar mais puro e desde que falam com mais naturalidade

Como é mais ditosa a juventude da época presente, essa juventude que adquiriu já um consciente sentido de responsabilidade e conquistou um mais vasto horizonte de realizações, que pode pensar e agir à sua maneira e se libertou da aturada e minuciosa vigilância das mães e dos pais, das tias e dos professores

Essa mocidade ignora hoje quanto nós sofremos e como tínhamos de vencer obstáculos e intimidações, iludir vigilâncias e suportar vexames, actuar com hipocrisia e com astúcia para podermos adquirir - como fruto proibido-aquilo que ela hoje obtém facilmente, porque considera, e com razão, que o faz no uso de um direito próprio. A mocidade de agora é muito mais feliz, pois pode desfrutar da andência, da espontaneidade e da imensa alegria de viver próprias de sua idade. Mas a sua mais cara e risonha felicidade é, sem dúvida, a liberdade que tem de poder viver sem hipocrisia, sem mentira e sem engano, essa liberdade que lhe permite ser sincera, e que não a impede de exteriorizar os sentimentos e satisfazer os desejos naturais.

É possível que a juventude de hoje, devido à facilidade com que trilha o caminho da vida, não tenha a mesma veneração que nós tivemos por tudo o que é espiritual. É talvez certo, também, que o amor tivesse perdido aquele algo de misterioso que o envolvia, aquele misto de ternura e de carinho que dele se exalava, precisamente porque era quase inacessível, pois é certo que aquilo que se obtém sem luta quase sempre perde o encanto do que é enigmático. E talvez até a juventude de hoje ignore o desejo da posse. Contudo, considero que tudo isso é quase insignificante em presença da transformação redentora que libertou a juventude do jugo da opressão e do temor, transformação que lhe permite usufruir plenamente aquilo a que nós nos fora negado - liberdade e confiança no próprio destino.

 

                Universilas Vilas

Por fim, chegou o momento tão longamente desejado em que, no último ano do século, pudemos deixar para sempre o antipático liceu. Quando terminaram os exames, que, aliás, não foram nada fáceis, o director honrou-nos com um cerimonioso discurso. Para o ouvir, tivemos de envergar solenemente sobrecasacas estilizadas. Anunciou-nos que já éramos homens e deveríamos pôr a nossa actividade e o nosso saber ao serviço da Pátria. E foi assim que terminou uma camaradagem que durara oito anos, Separámo-nos de tal modo que só raramente tive depois ocasião de ver alguns daqueles que durante esse tempo foram meus condiscípulos. Uma grande parte ingressou nas Universidades, sob o olhar invejoso dos que, tendo de dedicar-se a outras actividades, os não podiam imitar. Compreende-se facilmente que assim fosse, visto que, nesses tempos já distantes, a vida universitária tinha, na Áustria, características que lhe outorgavam uma auréola especial; os estudantes universitários gozavam então de certos privilégios que os colocavam numa evidente situação de superioridade. Merece a pena focar alguns deles, já que são quase desconhecidos fora dos países de língua alemã. As nossas Universidades foram quase todas fundadas em plena Idade Media, isto é. numa época em que o estudo das ciências era considerado uma ocupação verdadeiramente extraordinária. Assim, para atrair os estudantes, foi necessário conceder-lhes prerrogativas especiais, as quais, por exemplo, determinavam que um estudante universitário não podia ser julgado em tribunais comuns, gozava do privilégio de extraterritorialidade, tinha o direito de se bater em duelo, usava uma indumentária própria e, enfim, era como que membro de uma organização particular, regida por leis especiais, com usos e costumes privativos. Esta situação foi-se modificando lentamente em toda a Europa, pela evolução e democratização dos costumes: as Universidades austríacas e alemãs conseguiram manter, porém, apesar de tudo, esses privilégios de classe, chegando até a codificá-los, não obstante o evidente absurdo que significavam. Este facto só foi possível numa região da Europa onde o espírito de classe teve sempre a primazia sobre o colettivo. O estudante alemão criara para uso privativo um conceito especial de "honra" que fazia dele uma espécie de personagem à parte e superior. Era uma honra tipicamente acadêmica. Quem ousasse ofendê-lo era obrigado a dar-lhe "explicações", mas estas só podiam ser dadas por quem tivesse "categoria" para o fazer. Nem todas as pessoas, portanto, poderiam ter a honra de se bater em duelo com um estudante. Um tal critério de presunção não atribuía "categoria" suficiente a muitas pessoas, tais como um banqueiro ou um comerciante, por exemplo. Só eram dignos dessa honra especial aqueles que freqüentavam uma Universidade ou um militar graduado. Todos os outros, isto é, milhões de homens, não tinham suficiente "categoria" para cruzar a lâmina de uma espada em duelo com qualquer desses enfatuados criançolas. Por outro lado, a categoria suficiente só se adquiria à força de provas especiais. Um rapaz só era realmente digno da prosápia de verdadeiro estudante depois de se submeter a uma série de provas que lhe dessem direito a essa honra. Uma das condições essenciais era a de se bater freqüentemente e sobretudo a de trazer bem gravados no rosto os estigmas das façanhas. Uma cara sem cicatrizes e um nariz incólume não era uma face digna de um jovem e varonil universitário alemão. Para os incitar à batalha permanente que os tornasse fortes e superiores, dividiam-se em grupos que se diferençavam por distintivos e fitas que cada rapaz usava. O fim em vista era estabelecer uma contínua batalha campal entre todos, provocando constantes diatribes que originavam necessariamente os duelos desejados. Esses grupos encarregavam-se não só de estabelecer pugnas entre os membros, mas também de provocar os estudantes ponderados e pacíficos: Cada um desses "cenáculos" tinha salas de esgrima, onde o neófito era iniciado nos meandros da confraria. Desde que penetrava no seu seio, era imediatamente entregue a um veterano, a quem devia obediência cega. Este ficava sendo o seu professor. Uma das lições que imediatamente se ensinavam consistia em fazer-lhes beber um grande copo de cerveja de um só trago, para mostrar não ser indolente. Depois, iniciava-o na prática de extravagâncias gloriosas, que consistiam em marchar em fila indiana durante a noite, cantando, fazendo algazarra e provocando os agentes da autoridade. Era com façanhas desta natureza que o jovem iniciado se tornava "forte" e digno e adquiria "categoria". Era uma actividade universitária caracteristicamente "alemã". Quando passeavam pelas ruas das cidades, estadeando a parva ostentação da sua prosápia de fitas e fitinhas, barretes coloridos e gestos marciais, estavam realmente convencidos de que eram a fina flor da juventude intelectual e, assim, do seu Olimpo enfatuado olhavam para os outros mortais com arrogância e caricato desplante. Uma grande parte dos jovens que dos liceus da província vinham freqüentar a Universidade de Viena achavam prazer nesta barafunda, considerando-a talvez muito sedutora e romântica. Por isso, inúmeros advogados e médicos, mesmo já depois de atingirem uma idade madura, usavam ainda com orgulho os distintivos gloriosos da sua vida universitária, ou, quando um pouco alegres pelos vapores do álcool, olhavam com saudade para as espadas que, nas paredes das suas casas de aldeia, atestavam um passado bélico ao serviço da confraria intelectual onde haviam militado.

Mas nós, cujo supremo bem consistia na verdade do indivíduo, já então olhávamos com animadversão para essas demonstrações de orgulhosa insensatez e brutalidade. E quando nos parecia que iríamos assistir à passagem de um desses cortejos pedantes, logo tomávamos a salutar precaução de nos eclipsarmos pela primeira esquina que nos aparecesse, pois já então observávamos compungidos que o gosto pela brutalidade e pelo servilismo gregário era o que havia de mais ardente e perigoso na mentalidade alemã. E não ignorávamos também que por detrás dessas estratificações de horda e do orgulho cuidadosamente mantido, se enccontravam os mais inconfessáveis interesses. O facto de ser membro de uma dessas confrarias grotescas garantia ao estudante a certeza de uma "ajuda" na sua carreira futura, visto que os "antigos veteranos", que tinham conquistado grandes lugares na burocracia ou na política, não se esqueciam dos que seguiam caminho idêntico ao que eles próprios haviam trilhado.

Quase todos os candidatos à carreira diplomática na Alemanha vinham dos "Borussen" de Bonn. Na Áustria, as grossas prebendas que o Partido Social-Cristão podia oferecer, visto ser o que então governava, reservavam-se para os membros das citadas confrarias de jovens estudantes duelistas. E era assim que uma grande parte desses "heróis" sabia que as fitinhas e as cicatrizes garantiam o acesso às culminâncias do funcionalismo. Eram o atestado indispensável e seguro para adquirir um bom emprego. Valia mais uma cicatriz na fronte do que o que porventura estivesse encerrado na caixa craniana. Em presença desses bandos de brutos provocadores, perdi logo o entusiasmo pelas aulas, confesso. E os estudantes aplicados, os que realmente freqüentavam a Universidade para se ilustrarem, esses condenavam a balbúrdia e o despropósito. Para evitar contactos ou encontros com os "heróis" da cultura superior, procuravam não permanecer no átrio ou nos vestíbulos universitários, entrando ou saindo discretamente.

A minha família tinha decidido que eu deveria freqüentar a Universidade. Não havendo optado por nenhuma faculdade, deixaram a escolha à minha vontade. Meu irmão mais velho estava colocado na empresa de meu pai e, assim, não havia urgente necessidade de estabelecer um plano de trabalho imediato em relação à minha pessoa. No fundo e em substância: era preciso que eu conquistasse qualquer título de doutor. Exigia-o o bom nome da família. O curioso do caso é que eu também não sabia realmente qual seria a faculdade que deveria escolher. com profunda inclinação pela literatura, não me sentia atraído por qualquer ramo de ciência profissional. Por outro lado, devo confessar que sempre tive uma espécie de animadversão, ainda hoje não completamente dissipada, pelos estudos escolásticos. Aceitava e aceito ainda, firmemente, a lição de Emerson, segundo a qual os bons livros que se estudam com vontade valem mais que os melhores cursos universitários, feitos sem interesse. Creio ainda hoje que se pode ser competente filósofo, historiador, filólogo, jurista ou conhecedor de qualquer outra matéria, sem necessidade de formação universitária ou liceal.

Tenho verificado freqüentemente não ser raro que um simples alfarrabista possua mais conhecimentos acerca de dada matéria do que certos letrados doutos na mesma, e tenho observado que há simples comerciantes que negoceiam em objectos de arte, com um sentido muito mais profundo de estética do que certos eruditos. E não ignoro que a grande parte das maiores descobertas que revolucionam o mundo são obra de homens que não possuem títulos. É possível que a cultura universitária seja de utilidade para as pessoas vulgares, mas considero-a dispensável, senão prejudicial, para as naturezas excepcionais. com referência ao meu caso e à Universidade de Viena, não havia um único homem de ciência que atraísse particularmente a minha atenção. Pelo contrário, sentia uma espécie de inelutável indisposição por esse ambiente universitário vetusto, frio e protocolar, onde se comprimiam seis ou sete mil estudantes e onde a desejável afinidade, o útil contacto pessoal entre o professor e o aluno quase não podia existir. De acordo com esta íntima disposição, procurei matricular-me, não na faculdade onde pudesse aprender mais, mas, pelo contrário, naquela que me proporcionasse mais tempo e mais liberdade para me dedicar às actividades que realmente me atraíam. Por fim, decidi-me pela filosofia, ou, melhor, pela filosofia "exacta", que era como no meu tempo e no meu país se designavam esses estudos. Mas esta minha decisão não obedeceu nem sequer a uma inclinação, pois as minhas tendências para as pesquisas subjectivas são relativamente limitadas. O meu pensamento elabora-se e flui em presença e em contacto com as coisas e os seres. Tudo o que fique fora desse realismo sensível escapa à minha percepção. A principal razão que fundamentara a minha escolha residia, pois, no facto de que as aulas de filosofia "exacta" eram as menos exigentes e as que mais facilmente toleravam uma freqüência irregular. A única coisa que realmente se exigia era a apresentação de uma tese no fim do oitavo semestre de estudo, e a submissão do candidato a um exame. Em presença dessa tentadora realidade, tomei imediatamente as seguintes disposições: durante três anos não me incomodaria com o meu curso universitário, No quarto ano, porém, faria um esforço decidido para estudar e dominar as matérias que nele se leccionavam, apresentando depois uma tese sobre qualquer tema. Dessa maneira, conseguia obter da minha Universidade a única coisa que realmente desejava que ela me concedesse: - alguns anos de inteira liberdade para dedicar à minha vida e aos problemas intelectuais que me atraíam. Essa foi realmente a minha Universitas vitee.

Quando passo em revista a minha existência, lembro-me com saudade da época feliz em que fui universitário sem Universidade. Era novo e então não tinha ainda a preocupação, que só depois surgiu, de realizar uma obra perfeita. Era livre, enfim. O dia tinha vinte e quatro horas e eu podia dispor de todas elas. Lia e fazia o que me agradava. A nuvem que a tese e o exame constituíam ainda não perturbava o azul diáfano do horizonte. Como três anos eram um grande espaço de tempo, vividos por quem tinha apenas dezanove, por quem acalentava a doce esperança de os cumular de acontecimentos, surpresas e magnificências!

O meu primeiro pensamento foi reunir imeditamente todas as minhas poesias numa colectânea impecável, segundo pensava então. Não tenho relutância em confessar que o adolescente que eu era, e que

acabara apenas de terminar os estudos liceais, gostava mais do cheiro acre da tinta de imprimir do que dos mais delicados perfumes deste mundo, mesmo que se tratasse do das rosas de Schiras. Uma poesia minha que aparecesse publicada em qualquer jornal - era um incentivo, era um elo que vinha fortalecer em mim a certeza de que tinha algum valor, certeza que, aliás, nunca foi muito forte. Não teria chegado o momento -pensava-de tentar um empreendimento audacioso e decisivo, fazendo editar os meus versos Os meus amigos, que acreditavam mais no meu talento do que eu, acabaram por vencer as minhas relutâncias. Decidi enviar o manuscrito à editorial mais em voga, à casa chuster 6 Lôffler, que se dedicava especialmente à poesia moderna e editava as obras de Liliencron, Dehmel, Bierbaum, Mombert e de todos os novos talentos que, como Rilke e Hofmannsthal, marcavam os contornos na poesia que a nova geração criava.

E sucedeu então o deslumbramento único, o êxtase que nunca mais se repete na vida de um escritor, mesmo nas horas dos triunfes máximos: - recebi um belo dia uma carta, vinda da editorial à qual enviara o manuscrito. A sua procedência estava bem patente no sobrescrito. Não posso descrever a comoção que se apoderou de todo o meu ser. Sei apenas que fiquei indeciso com a missiva na mão, incapaz de a abrir. Por fim, decidi-me. O coração pulsava doidamente. Abri o sobrescrito e recebi a feliz notícia de que a casa editora publicava a minha obra e tomara a decisão de reservar idêntico acolhimento a todos os meus futuros trabalhos. Depois, um dia, chegou a primeira prova, e a minha emoção em presença desse meu primeiro trabalho foi realmente indescritível. Era ainda um embrião, mas que suscitava em mim constante curiosidade. Quando, algumas semanas depois, recebi o primeiro exemplar do livro, não me cansava de o contemplar, num êxtase em que via todos os seus pormenores, comparava e tomava nota de todas as suas minudências. Era a época em que um deslumbramento dava lugar a outro. Depois do provocado pelo recebimento do primeiro exemplar, surgiu logo o que resultou da infantil visita às vitrinas das livrarias citadinas, procurando ver se a obra estava bem exposta, no lugar de honra, ou se tinha sido negligentemente abandonada a um canto. Nasceu então a natural ansiedade pelas primeiras cartas e pelas primeiras críticas, primeiros vagidos de um desconhecido imponderável, encantador e inquietante. Eram, enfim, as contínuas séries de emoções, que agitam o escritor quando lança a público o seu primeiro livro, e das quais ainda hoje tenho saudades. Mas devo confessar que o meu encanto era apenas o resultado de uma íntima satisfação, e nunca atingiu a vaidade ou o orgulho. A prova desse facto está precisamente em que nunca mais fiz nova edição desses meus primeiros e um tanto prematuros versos. Nenhuma das poesias de Silbernen Sainten (1)- era esse o título da minha estreia - foi incluída na minha Colectânea de Poesias. Sempre considerei que esses versos não eram bem o resultado da minha própria sensibilidade e da minha experiência. Poderia defini-los como pressentimentos, onde havia muita influência estranha ao meu caracter, onde palpitavam, enfim, os meus primeiros, mas ainda imprecisos, acordes literários. Apesar disso, tinham suficiente originalidade para merecerem a atenção da crítica. Devo mesmo dizer que os incentivos não se fizeram esperar, Liliencron e Dehmel, os mais notáveis poetas da época, não hesitaram em enviar ao jovem neófito que eu era então, as suas cordiais e já quase fraternais saudações, e Rilke, que tão sinceramente venerava, respondeu à oferta que lhe fizera de um exemplar da obra, mandando-me um exemplar da edição especial das suas últimas poesias, com uma dedicatória de agradecimento pelo meu "notável" trabalho. Essa lembrança ficou sendo uma das mais perenes da minha juventude e foi com grande prazer que levei esse livro para Inglaterra, salvando-o da derrocada da Áustria. Onde estará ele agora Tinha por ele verdadeira estima, pois fora o presente que Rilke me fizera, há quarenta anos, e na sua dedicatória via sempre depois, como que um doce encómio que o saudoso poeta me enviava do além. A surpresa mais inesperada foi, porém, a que me deu Max Reger, que era, com Ricardo Strauss, um dos mais célebres compositores daquele tempo. Pedia-me licença para compor música para seis poesias da minha obra. E quantas vezes não me foi dado depois o grande prazer de ouvir essa

 

(1) Cordas de Prata.

 

música, com a qual o grande mestre eternizara, na lira de uma arte fraterna, os versos que eu já havia esquecido.

Estes tão inesperados incentivos, sem esquecer a opinião favorável da crítica, publicamente manifestada, terminaram por me dar o ânimo que me faltava. A pouca confiança no meu valor parecia ser um estado de espírito endêmico. Porém, desde aquele momento, sentia-"me disposto a dar um passo que, sem esses encómios, nunca teria dado, pelo menos tão cedo. Quando, simples estudante de liceu, tinha já publicado várias novelas e artigos em revistas, que faziam. parte do chamado movimento "modernista". Jamais tivera, porém, a coragem de enviar qualquer desses trabalhos literários a um jornal de grande circulação e importância. com essas características, pode dizer-se que em Viena só havia um - a Neue Freie Presse, jornal cuja seriedade, denodada dedicação pela cultura e prestígio político, lhe davam em todo o país o mesmo lugar de relevo que o Times possui na Inglaterra e Lê Temps em França. Na própria Alemanha, não havia outro jornal que fizesse tantos esforços para se superar e adquirir importância cultural. Era seu director um homem verdadeiramente genial, Moritz Benedikt, espírito de inesgotáveis recursos e de incomparável capacidade de organização. O seu objectivo constante, a sua preocupação permanente consistia em querer que o jornal estivesse sempre na vanguarda cultural e literária de toda a imprensa alemã. Para atingir esse fim, gastava o dinheiro que fosse preciso. Se julgava que era necessário obter a colaboração de certo escritor, mandava-lhe dez telegramas ou vinte e concedia-lhe, sem relutância, os onorários mais exigentes. As suas edições especiais do Natal e do Ano Novo eram verdadeiras enciclopédias, onde colaboravam os escritores mais ilustres do século: Anatole France, Gerhart Hauptmam, Ibsen, Zola, Strindberg e Shaw. Os seus escritos apareciam simultaneamente nas páginas de uma mesma edição desse jornal, que realizou, evidentemente, um grande esforço em prol da cultura e da orientação intelectual de Viena e da Áustria. Pode dizer-se que era, com o seu caracter liberal e progressivo, um dos mais genuínos representantes do elevado sentido cultural da Áustria de outrora.

Nesse verdadeiro templo, em que se prestava culto e homenagem ao "progresso", havia ainda um relicário, uma secção especial, onde, a exemplo do que se fazia em Lê Temps e no Journal dês Débats, se publicavam os trabalhos importantes, a quinta-essência sobre literatura e todas as formas da Arte. Era um lugar de honra, nitidamente distinto do facto vulgar, da simples notícia efêmera. Compreende-se, assim, que os seus colaboradores fossem apenas escritores consagrados pelo saber e pela experiência. Era neste púlpito que o insigne estilista Ludwig SpeLdel e Eduardo Hanslick exerciam uma autoridade suprema nos domínios da Arte, particularmente do Teatro e da Música, poder que apenas se podia comparar ao de Saint Beuve, em Paris, nos seus Lundis. A opinião desses dois eruditos tinha foros de irrevogável decisão, e era deles que dependia, em Viena, o êxito de uma obra literária ou teatral e, por isso mesmo, dependia dessa opinião, muitas vezes, o próprio futuro de um artista. Os trabalhos que apareciam nessa secção literária especial constituíam o motivo de todas as atenções dos círculos mais ilustres, sendo intensamente aplaudidos, analisados ou criticados. Era uma cátedra de tal modo importante que o aparecimento de um seu novo colaborador atingia foros de desusado acontecimento. Dos novos escritores, apenas Hotmannsthal conseguia às vezes alcançar a honra de ser admitido, com algum dos seus invulgares escritos, nesse cenáculo consagrado. Era uma excepção, podia-se dizer, pois escrever na primeira página desse jornal era, então, um verdadeiro privilégio que outorgava, a quem o podia fazer, um nimbo imorredoiro. Os que ainda não tinham renome deviam contentar-se modesta e discretamente com uma colaboração nas páginas interiores.

O que verdadeiramente hoje me espanta é como eu tive a audácia de oferecer um artigo à Neue Freie Presse, esse supremo depositário da aristocracia intelectual e o mais venerado e tradicional paladino de toda a imprensa austríaca. É certo que uma recusa formal seria a única coisa que me poderia suceder. O director da secção literária especial a que me refiro apenas recebia visitas uma vez por semana, das duas às três horas da tarde. Tendo colaboradores permanentes e notórios, poucas possibilidades ficavam para a admissão dos escritos de um desconhecido. Mas a minha decisão estava tomada e não foi sem íntima e verdadeira apreensão que subi a escada de caracol que conduzia ao andar onde estavam instalados os serviços redactoriais. Fiz anunciar a minha visita e poucos minutos depois vieram comunicar-me que o director estava à minha espera. E em seguida penetrei na pequena sala onde ele se encontrava.

Teodoro Herzl, o director da secção literária especial da Neue Freie Presse, era o primeiro homem de envergadura com quem eu falava, se bem que então ainda eu nem sequer vislumbrasse a extraordinária influência que ele havia de ter mais tarde nos destinos do povo hebreu e no curso da história do nosso tempo. Quando o conheci, ainda a sua personalidade não estava plenamente definida. Começara a sua vida pública com alguns trabalhos poéticos, revelando-se imediatamente um jornalista talentoso, que grande parte dos habitantes da capital teve ocasião de admirar nas correspondências que ele enviava de Paris, e depois nos seus escritos como colaborador da secção literária especial da Neue Frete Ptesse. A extraordinária elevação dos seus trabalhos e a perspicácia e a agudeza das suas observações ainda hoje encantam e são patentes. Pode dizer-se que a sua pena era uma das mais nobres que contava o jornalismo, onde o cavalheirismo inato de Herzl mantinha sempre, mesmo nos escritos mais vulgares, a nota distinta da sua delicadeza. E estas características não podiam deixar de conquistar o coração de uma cidade que sempre tivera encendrado culto pelo que é delicado e fino. O êxito também lhe sorrira no próprio Burgtheater, onde uma peça da sua autoria foi representada, Herzl era, enfim, nessa altura, um homem que a juventude admirava, e que os nossos pais respeitavam. Gozava de indiscutível e geral estima. Porém, um dia, deu-se um acontecimento que ninguém podia prever. O destino veio bater à sua porta, indicando-lhe imperativos insuspeitados.

Sendo ainda correspondente em Paris, teve ocasião de assistir ao compungente drama da pública degradação de Alfredo Dreyfus. No momento supremo em que lhe arrancavam as divisas e em que o pobre infeliz gritava: "estou inocente!" Herzl adquirira a firme e inabalável convicção de que Dreyfus não era um criminoso e que a terrível acusação que lhe faziam só tomara consistência por ser judeu. Foi um momento decisivo na vida de Herzl, tanto mais que desde estudante já o seu indomável dinamismo racial o fizera procurar soluções para o eterno problema hebreu. Dir-se-ia que no seu cérebro germinavam e tomavam corpo as velhas e endêmicas ânsias redentoras que animam os judeus, numa época em que tais inquietações não eram perigosas para quem as defendesse. A verdade é que Herzl sentia-se predestinado para redentor. De resto, o seu aspecto imponente, a sua vasta cultura e a sua extrema delicadeza pareciam justificar a sua paixão. E concebeu então o inacreditável projecto de resolver, de maneira definitiva, o velho drama do judaísmo, propondo que os judeus se unissem espontaneamente com os cristãos, por intermédio de uma solene cerimônia de baptismo colectivo. Dramático, antevia, na sua imaginação fulgurante, uma procissão de milhares de judeus avançando para a igreja de Santo Estêvão, para aí, na magia de um simbolismo ritual, conquistar a liberdade do velho povo sem Pátria, oprimido e vilipendiado. Mas em breve havia de verificar que o seu magnífico sonho era simplesmente irrealizável. E durante muito tempo, preocupado com outros problemas, que surgiram posteriormente, relegou para segundo plano o magno problema que constituía a razão de ser da sua vida.

Mas eis que Dreyfus o chamava novamente à realidade do drama doloroso e cíclico do seu povo. Dir-se-ia que o grito do inocente fora o punhal que rasgara novamente as entranhas do messias. Herzl ergue-se novamente sobre si mesmo e desperta outra vez para a luta, pensando que, se o ostracismo do povo hebreu era inelutável, que fosse, então, um ostracismo absoluto. Se o seu destino era viver eternamente oprimido e vilipendiado, então, era preferível que os judeus se levantassem e criassem eles próprios a Pátria que o mundo lhes negava E foi assim que lançou à publicidade uma obra intitulada Der ludenstaat (1), onde, depois de verificar que o seu sonho de fusão entre cristãos e judeus fora vão e de reconhecer que o seu povo não podia albergar a esperança de ser tratado com respeito, proclamava a necessidade de que os judeus fundassem na terra dos seus antepassados, na Palestina, a sua Pátria redentora!

Recordo-me ainda, perfeitamente, da extraordinária celeuma que essa pequena brochura levantou. Dir-se-ia um trovão inesperado. Estava eu ainda nos bancos do liceu, mas tenho presente a indignação que a idéia de Herzl provocou entre os judeus da classe média de Viena. Que tem esse homem, sempre

 

(1) O Estado judaico.

 

tão comedido, tão culto, tão ponderado Que idéias são essas que aparece agora a defender Por que razão devemos ir para a Palestina - exclamavam e perguntavam, intempestivos, esses bons judeus. -Não estamos perfeitamente nesta nossa bela Áustria? Não é a língua alemã a nossa língua e não nos encontramos contentes e satisfeitos sob a lei do bom imperador Francisco José? Não temos direitos iguais aos de todos os outros cidadãos e não somos nós filhos desta nossa querida Viena de Áustria? De resto - prosseguiam - a verdade é que vivemos numa época de evidente progresso e podemos ter a certeza de que dentro de poucos anos não haverá mais preconceitos religiosos. Não se explica, pois, que Herzl, judeu, querendo sacrificar-se pela nossa causa, seja o primeiro a dar razão aos nossos figadais inimigos e procure desviar-nos da esfera germânica, em que cada vez nos sentimos mais à vontade. E a tempestade contra Herzl desencadeou-se. Os rabinos lançavam anátemas dos púlpitos e o director da Neue Freie Presse deu ordens terminantes para que no seu "progressivo" jornal nem sequer se mencionasse o vocábulo sionismo. Karl Kraus, estilista mordaz e cáustico, espécie de Tersites da literatura vienense, ripostou com um opúsculo, que apareceu sob o título Êine Krone für Zion (1) e, quando Teodoro Herzl entrava no teatro, ouviam-se murmúrios zombeteiros: "Acaba de chegar Sua Majestade ".

Herzl tinha realmente razões para se julgar incompreendido, visto que a sua própria Viena, a cidade onde se tornara estimado e popular, o abandonava com desdém. Mas eis que, de repente, sucedeu uma coisa verdadeiramente paradoxal, uma espécie de irrupção violentíssima, que não deixou de causar inquietação ao próprio que a suscitara - a resposta ao seu apelo. Era um brado que vinha de longe, tão forte que Herzl não acreditava que a meia dúzia de páginas

 

(1) O Rei do Sião.

 

da sua obra lhe tivesse dado origem, Não partia dos judeus da classe média do Ocidente, burguesia com uma situação econômica fácil e garantida, mas sim das grandes multidões famélicas dos judeus do Oriente, do proletariado dos ghettos da Galícia, da Polônia e da Rússia. Herzl nem sequer suspeitava que o seu brado fizera reanimar a seiva redentora do judaísmo, que desde há muito parecia adormecida e dispersa na estepe fria do estrangeiro. Era o milenário sonho da Terra Prometida que ressurgia, esperança que os Livros Sagrados confirmavam, e era, não apenas um dogma religioso, mas também o único encanto que pairava no horizonte de milhões de escravos, sedentos de justiça.

Sempre essas multidões acorreram ao chamamento de um profeta ou de um simples mistificador; porém, nunca o haviam feito daquele modo, durante os dois milênios de desdita em que o povo hebreu se debatia. Um único homem, escrevendo uma pequena brochura, formara subitamente, de uma multidão dispersa e amorfa, uma massa compacta e firme.

Enquanto a idéia não tomava consistência, tudo parecia fácil e esse lapso de tempo foi, certamente, o mais belo de toda a curta existência de Herzl. Quando, porém, foi necessário entrar em contacto com a realidade, Herzl viu-se forçado a verificar como o seu povo havia perdido muito dos caracteres essenciais, em conseqüência das influências recebidas dos diferentes meios em que vivera ou se fixara. Dividia-se e subdividia-se em vários grupos antagônicos que, falando línguas diversas, se combatiam acèrrimamente. De um lado estavam os ortodoxos e do outro juntavam-se os livres-pensadores. Num outro os socialistas e noutro ainda os capitalistas. No fundo, todos aceitavam com relutância a hipótese de se submeterem a uma única autoridade centralizadora. Naquele ano de 1901, quando o vi pela primeira vez, encontrava-se Herzl em plena efervescência e talvez até em luta consigo próprio. Ainda não julgara então prudente dedicar-se inteiramente à idéia redentora que o animava, não tendo decidido abandonar o jornalismo, onde granjeava o pão quotidiano para si e para a família. E quem me recebeu nessa altura foi ainda o jornalista Teodoro Herzl.

Quando Teodoro Herzl se levantou para me cumprimentar, tive a impressão de que a melíflua ironia do epíteto O Rei do Sião tinha certo fundamento. De facto, Herzl possuía um aspecto de verdadeira majestade, com a sua fisionomia bem desenhada, a fronte alta, a longa e preta barba patriarcal e os ternos olhos acastanhados. Os gestos, abertos e francos, não davam a idéia de atitude forçada, pelo contrário, dir-se-ia que irrompiam espontâneos, denotando nobreza inata. Em qualquer outro momento que não fora aquele, creio que me teria dado a mesma impressão, Vendo-o, pensava-se logo numa daquelas figuras lendárias dos grandes beduínos do deserto, é certo que estava junto de uma velha secretária repleta de papéis, numa pequena sala redactorial, e vestia um impecável fraque preto, de corte parisiense, mas adivinhava-se que seria capaz de envergar, com tanta elegância e facilidade, o branco e ondeante albornoz.

Depois de breves momentos de silêncio - espécie de cerimonial, peculiar nele, como tive depois ocasião de verificar, talvez por influências do Burgtheater - estendeu-me a mão com um gesto que parecia denotar condescendência, mas, contudo, acolhedor. Indicando-me a cadeira que estava a seu lado, sentou-se de novo dizendo: - "Tenho a impressão de que já li qualquer coisa a seu respeito. O seu nome não me é desconhecido. Poesias, não é verdade " Respondi afirmativamente.

Depois, tomou um ar de à-vontade e perguntou

- Muito bem! E agora, que nos traz

- Terei muito prazer em submeter à sua apreciação um manuscrito em prosa - respondi, entregando-lho. Herzl recebeu-o, leu o título e passou uma vista de olhos pelo texto, como que para adquirir uma rápida idéia da sua extensão e valor. Reclinou-se mais comodamente na cadeira e, com grande surpresa da minha parte, começou a ler lentamente o manuscrito. Ia voltando os linguados à medida que terminava a sua leitura, silenciosamente, sem um único comentário. Quando chegou ao fim, juntou, de novo, todas as rolhas, dobrou-as com cuidado, meteu-as num sobrescrito, escreveu sobre ele, com lápis azul, algumas linhas e, por fim, só depois deste mudo e indecifrável preâmbulo, que me manteve em estado de íntima tensão, se resolveu a falar, dirigindo-me a mirada nobre e doce dos seus belos olhos, e dizendo-me, solene:

- Tenho a honra e o prazer de lhe comunicar que o seu belo trabalho vai ser publicado na secção literária especial da Neue Freie Presse.

Era como se Napoleão, em plena batalha, tivesse colocado no peito de um jovem sargento a cruz de cavaleiro da Legião de Honra.

Poderia supor-se que não haveria realmente motivo para tanta exaltação da minha parte. Mas, para compreender todo o valor desse acontecimento, é preciso ser-se vienense e, sobretudo, vienense daquela época. De repente, aos dezanove anos de idade, encontrei-me na cúspide da actividade literária, pois Teodoro Herzl aproveitou o primeiro ensejo para declarar no seu jornal tudo indicar que o poder criador do pensamento da grande cidade não acusava decadência, visto que, ao lado de Hofmannsthal, existia agora uma plêiade de jovens talentosos em quem se podiam depositar as mais prometedoras esperanças. E entre os nomes citados aparecia o meu, em primeiro lugar. Foi para mim motivo de inesquecível prazer que a minha súbita ascensão fosse devida a um homem tão ilustre e de tão grande envergadura como Teodoro Herzl, que ocupava um lugar de tanta influência e, por isso mesmo, de tanta responsabilidade. Porém, a verdade é que o facto também me colocava numa posição bastante difícil e que até poderia parecer ingrata. Quero referir-me à minha relutância em participar activamente no seu movimento sionista, e em ser mesmo um dos seus chefes, como Herzl teria certamente desejado.

Não me sentia capaz de me dedicar a esse movimento. Desagradava-me aquela espécie de falta de atenção e de respeito - que já hoje nem sequer se concebe - com que os seus correligionários o tratavam. Os judeus do Oriente chegavam a insinuar que Herzl era um leigo em problemas do judaísmo e desconhecia até os hábitos, usos e costumes do povo hebraico. Outros acusavam-no de ser simplesmente um literato, e cada qual se julgava com o direito de lhe lançar invectivas, nem sempre muito delicadas. Era evidente que, nestas condições, Herzl tinha absoluta necessidade de partidários dedicados, sobretudo jovens. É possível que o meu culto por ele me tivesse aproximado do movimento, mas o caracter irrequieto e insubordinado dessa oposição sistemática afastava-me irremediavelmente.

Quando, certa vez, falámos sobre o assunto, manifestei-lhe a minha contrariedade pela falta de coesão que observava no movimento sionista. Herzl desenhou um pálido sorriso e explicou-me

- Não deve esquecer, meu amigo, que há muitos séculos que nós, os judeus, nos preocupamos apenas com ideais. Há dois milênios já que não damos ao mundo a nota de uma actividade colectiva bem marcada. Carecemos da experiência que só se adquire com a realidade e, assim, temos necessidade de estudar e de nos dedicar, de um modo especial, aos nossos problemas. Eu mesmo não me posso apresentar como modelo, porque ainda continuo a prender a atenção ao meu cantinho da Neue Freie Presse, quando o meu dever seria o de me preocupar apenas com a nossa causa, e não escrever uma única linha acerca de outra coisa. Porém, já estou a caminho da perfeição, acredite, e dentro de pouco espero dar o exemplo de uma dedicação constante. E é possível que os outros me imitem.

Estas palavras causaram uma profunda impressão no meu espírito. Havia quem não compreendesse porque não se decidira Herzl ainda a abandonar o emprego no jornal - muitos atribuíam o facto a razões de ordem econômica. Que essa hipótese era infundada soube-se mais tarde, quando se desvendou que Herzl havia sacrificado a sua fortuna à causa do judaísmo. Desde aquele dia, fiquei sabendo que a amargura também se instalara no seu espírito, opinião que depois havia de ver corroborada em muitas das notas das suas memórias.

Tive ainda ocasião de o encontrar várias vezes, mas, desses encontros, só um ficou bem gravado na minha memória, talvez por ser o último. Foi o caso que, tendo regressado do estrangeiro durante a minha ausência somente estivera ligado a Viena pela correspondência - vi-o certo dia no parque da cidade. Vinha da redacção, certamente. O seu passo havia perdido a elasticidade de outrora. Andava lentamente e até um pouco curvado. Cumprimentei-o com cortesia, sem parar, mas Herzl avançou para mim, estendeu-me a mão e disse-me: "Porque quer passar despercebido? Não tem necessidade de o fazer, creia". Conversámos e emitiu a opinião de que as viagens ao estrangeiro eram de grande importância. "É a nossa melhor escola. Quase todas as minhas lições foram aprendidas no estrangeiro. A distância dá-nos uma visão mais universal dos acontecimentos. Tenho a convicção de que, se nunca tivesse saído daqui, jamais teria chegado às conclusões a que cheguei. Poderiam destruir a minha idéia à nascença, ou talvez mesmo em embrião. Felizmente, só a puderam criticar, porque, quando a apresentei aqui, vinha já completamente desenvolvida" - disse-me.

Confessou-me depois que estava amargamente desiludido acerca de Viena onde encontrara os maiores obstáculos e contrariedades. Animavam-no ainda alguns impulsos que vinham do Oriente, e, ultimamente, da América. Sem eles já teria perdido por completo todas as esperanças. "A minha grande falta foi. sobretudo, de ter começado um pouco tarde. Vítor Adler já era chefe do partido Social Democrata aos trinta anos de idade, isto é, quando se encontrava na pujança e na plenitude da vida. E o mesmo exemplo nos deram as grandes figuras que a História regista. Não imagina como tenho pena dos anos perdidos. Deveria ter despertado muito mais cedo. Tudo estaria bem se o corpo fosse tão forte como a vontade, mas a verdade é que a juventude passada não volta mais". Quando chegámos à porta da sua casa, até onde o acompanhara, parámos. Então, Herzl estendeu-me a mão e, despedindo-se, disse-me: "Porque não vem visitar-me? Nunca tive o prazer de o receber em casa. Telefone e diga quando vem, para que arranje um momento livre para lhe dedicar". Prometi satisfazer o seu desejo, mas com o antecipado e firme propósito de não cumprir a promessa, pois, quanto mais venero uma pessoa, mais respeito a sua liberdade.

Contudo, fui forçado a ir à sua residência, alguns meses mais tarde. A doença prostrara-o, aquela doença que começara por o encurvar e que, por fim, o levou ao cemitério. Foi um acontecimento, um dia único. Estávamos em Julho. De repente, sem se saber como, começou a chegar a todas as estações de caminho de ferro de Viena um fluxo interminável. Desembarcavam judeus vindos de todos os pontos cardeais, da Rússia e da Turquia, das cidades, das aldeias e do campo. Lia-se em cada olhar uma consternação indizílvel, provocada pela infausta notícia da morte daquele que, então, todos reconheciam ser o grande chefe, o que só as questiúnculas efêmeras não permitiram compreender. O funeral tomou proporções extraordinárias. Viena tinha o pressentimento de que, levando Herzl ao cemitério, não ia apenas enterrar um poeta ou um escritor, mas um homem da envergadura daqueles que só muito raramente aparecem, e que, pelo pensamento criador, têm jus à estima e à admiração de todo um povo. À beira da sua sepultura desenrolaram-se cenas impressionantes. Um frenesi quase desaustinado apoderou-se de uma multidão comovida até às lágrimas e ao choro convulsivo, que se comprimia à volta do caixão, numa tentativa de suprema homenagem e de verdadeiro adeus. Nunca havia assistido a uma cena daquela natureza, e jamais vi outra semelhante; a dor era tão grande que fazia até esquecer os mais elementares sentimentos de prudência, perturbando a ordem em que a cerimônia se deveria realizar. E adivinhei, então, em presença do dramatismo que um milhão de almas espontaneamente patenteava, como havia sido grande a paixão e a esperança que o incompreendido que baixava à tumba havia feito germinar no mundo, unicamente pelo poder do seu pensamento criador.

Mas a modificação verdadeiramente capital que a minha admissão na Neue Frete Presse originou foi de caracter puramente particular, porque com ela adquiri um inesperado prestígio na família. Meus pais não se preocupavam demasiadamente com assuntos intelectuais. Para eles, a opinião da Neue Frete Presse era também a sua, porque era considerada a melhor, o que aliás sucedia com toda a burguesia de Viena. O que esse jornal dissesse, atacasse ou defendesse era o que a burguesia dizia, atacava ou defendia. A veracidade de tudo o que se escrevia na sua secção literária especial era indiscutível, visto que os seus colaboradores eram pessoas do máximo respeito e competência.

Imagine-se, pois, qual não foi o inacreditável espanto dessa respeitável família quando, certa manhã, ao passar a vista pela primeira página do seu jornal predilecto, descobriu nele a assinatura do rapazola quase imberbe que se sentava à sua mesa, esse mesmo que nunca manifestara grande aplicação nos estudos escolares e cujos escritos os professores classificavam, com ar de condescendência, de "mania infantil" preferível, de todos os modos, às jogatinas e aos namoricos. Foi um acontecimento, pois como poderia ela imaginar que esse jovem fosse admitido a emitir opiniões, ao lado dos escritores consagrados pela experiência e pela responsabilidade, tanto mais que, até então, nunca essa opinião fora muito considerada no seio da própria família?

Se eu tivesse escrito as mais belas poesias de Keats, Hôlderlin ou Schelley, creio que o êxito não teria sido maior. Tudo se modificou subitamente à minha volta, e a auréola era -tal que, quando ia ao teatro, a minha presença suscitava admiração. Havia quem se voltasse para contemplar o enigmático Benjamim que tão extraordinariamente havia penetrado no santuário onde só houvera lugar, até então, para venerandos e respeitáveis anciãos. E estive na desagradável iminência de me transformar também numa respeitável personagem citadina, visto que a minha colaboração no jornal se tornou freqüente. Mas tive o bom senso de evitar esse perigo, comunicando a meus pais a inesperada notícia de que desejava estudar em Berlim, no semestre seguinte. Minha família tinha demasiado respeito por mim, ou, melhor, pela Neue Freie Presse, sob cuja auréola me encontrava, para ousar não aceder ao meu desejo.

Era evidente que o fim da minha viagem a Berlim não era o "estudo", pois fui apenas duas vezes à Universidade, exactamente como em Viena. Primeiro, para me matricular e, depois, para obter um certificado da minha suposta assistência, O meu objectivo não era professores nem cursos, mas uma liberdade mais dilatada, visto que em Viena ainda estava fortemente ligado às influências do meio que me envolvia. Quase todos os meus condiscípulos eram filhos de famílias pertencentes à mesma burguesia judaica, de onde a minha era oriunda. No ambiente estreito das minhas relações, continuava, como sempre, a ser o eterno filho de "boa" família. Mas a verdade é que já me sentia realmente cansado da "boa" sociedade e até aspirava por outra, talvez por uma "má", por uma onde a existência não obedecesse à monotonia violenta que tudo determina, prevê e regula. E, assim, o que menos me preocupava era saber quem leccionava Filosofia na Universidade de Berlim. Bastava-me compreender que o movimento literário da nova geração era nessa cidade muito mais dinâmico do que em Viena, e que ali poderia entrar em relações com Dehmel e outros jovens poetas e, ainda, que em Berlim surgiam constantemente novas revistas, apareciam novos núcleos artísticos e, enfim, como era hábito dizer-se em Viena, "em Berlim havia sempre qualquer coisa de novo".

Devo esclarecer que a época da minha visita a Berlim foi uma das mais importantes para a sua história. É certo que, desde que esta cidade, em 1870, deixou de ser a pequena e vulgar capital da Prússia para se transformar na capital da Alemanha, tomou grande incremento o plácido burgo banhado pelo Spree. Contudo, Berlim não havia conseguido ser o verdadeiro centro artístico e intelectual da nação. Podia dizer-se que Munique, com os seus pintores e poetas, a suplantava, e que, em referência à Música, a Ópera de Dresde dominava. Por outro lado, havia ainda outras cidades que contavam no seu seio elementos muito apreciáveis. Mas a posição de maior relevo era ocupada por Viena, orgulhosa e forte da sua multissecular tradição artística e da sua quase espontânea tendência para as actividades do espírito.

com o extraordinário progresso industrial da Alemanha, a situação passara, porém, a modificar-se. Berlim começava a ser o centro econômico do país, onde se fixavam as grandes famílias e as grandes empresas. E, assim, um fluxo de nova seiva veio animar-lhe a vida, dando-lhe logo uma situação preponderante. A sua arquitectura desenvolveu-se enormemente e a acti-vidade artística multiplicou as possibilidades. Os museus engrandeceram-se muito, sob a protecção especial que lhes dedicava o imperador Guilherme e, a arte teatral encontrou em Otto Brahm um dedicado, entusiasta e incomparável paladino. E até aquilo que poderia parecer um mal, isto é, a falta de tradições artísticas, transformou-se, por fim, num novo elemento de progresso. As juventudes sentiam-se atraídas para a arte e não hesitavam nas grandes audácias realizadoras, visto que não se sentiam manietadas pelo grande peso da tradição. Neste capítulo, Viena mostrava-se muito mais prudente, pois o seu passado, em cuja contemplação se extasiava não lhe permitia inovações demasiado bruscas. E Berlim, que ascendia rapidamente e de um modo que aceitava ineditismos, atraía precisamente todos os que tinham sede de vida nova. Esse facto não podia deixar de seduzir a juventude. E foi assim que, de toda a Alemanha e até da Áustria, convergiram espíritos moços para a capital. Aqueles que realmente tinham talento viram os seus esforços coroados de êxito, como sucedeu com o vienense Max Reinhardt, que teria de esperar pacientemente durante vinte anos, se quisesse conquistar em Viena a posição de relevo que pôde obter em Berlim apenas em dois.

A minha chegada a esta cidade verificou-se precisamente no momento em que ela ascendia, de simples capital germânica, a cidade de envergadura mundial. Devo dizer, porém, que, sobretudo para quem vinha de Viena, cidade que encantava e seduzia, Berlim oferecia ainda uma nota que tinha algo de decepção. A cidade começava apenas a dilatar-se para oeste, onde a nova arquitectura substituiria a monotonia enfática dos prédios do Tiergarten, e, então, ainda Friedrichstrasse,com as suas edificações tristonhas, e a Leipzigerstrasse, cuja pompa parecia descabida, constituíam o centro da cidade. Nessa altura, só se podia ir de comboio aos arredores da cidade, a Wilmersdorf, Nicolassee e Steglitz. Uma visita aos belos e majestosos lagos que circundam a cidade tomava ainda aspectos que faziam lembrar uma espécie de expedição.

A única artéria digna de ser considerada centro era a vetusta Unter den Linden, que mesmo assim não se podia comparar com o nosso Am Graben. O velho hábito prussiano da economia patenteava-se por toda a parte, impedindo o desabrochar ou o culto pelo requinte. Notava-se falta de bom gosto nos vestidos que as senhoras levavam aos teatros. O corte e a manufactura tinham o ar de trabalhos feitos em casa e não se via aquele engenho gracioso que em Viena ou em Paris sabia dar a qualquer coisa sem valor uma nota agradável e fascinante. O critério fredericiano de poupar estava generalizado. Poupava-se no café, que, para se não gastar demasiado, era insípido e fraco. Sujeitava-se a comida ao mesmo sistema de simplicidade. Reinava a par disso uma ordem e uma meticulosidade que davam um aspecto de extrema seriedade a tudo, o que contrastava com o nosso proverbial à-vontade. Um exemplo bem frisante deste dualismo encontrava-se na diferença de procedimentos que distinguiam as duas senhoras de quem fora hóspede, em Viena e em Berlim. A austríaca era jovial e familiar e, não sendo rigorosamente meticulosa, dava provas de espontânea boa vontade e manifestava um constante desejo de agradar. Pelo contrário, a alemã era irrepreensível em tudo quanto fazia e um tanto cerimoniosa, mas nunca se esquecia de me apresentar mensalmente a nota de todos os débitos extraordinários. Em algarismos muito bem desenhados e ordenados encontrava sempre dívidas como esta três centavos por pregar um botão nas calças; vinte centavos por tirar uma mancha de tinta do tampo da mesa e, somando mais centavos, aparecia, por fim, a conta final de todos os extraordinàriozinhos, sob uma linha traçada com mão firme "- 67 centavos. Em presença destas minuciosidades, não pude deixar de sorrir, mas a verdade é que também fui pouco depois contaminado por este gosto tão prussiano da ordem, de tal modo que, pela primeira e última vez na minha vida, decidi fazer o meu meticuloso Deve-Haver.

Alguns dos meus amigos de Viena tinham-me dado cartas de recomendação para pessoas das suas relações em Berlim, mas devo confessar que nunca quis utilizar-me de nenhuma. Estava firmemente disposto a libertar-me da existência monótona e extremamente previdente do mundo em que vivera sempre. Queria manter -me abandonado a mim mesmo. Fora para isso, aliás, que eu saíra de Viena. Desejava" que as minhas relações fossem apenas devidas ao meu esforço e queria que elas correspondessem àquilo que me parecia mais aconselhável. Não se lê a Bahéme para não se sonhar viver da maneira que ela relata, sobretudo quando se tem vinte anos.

Não foi necessário muito trabalho para encontrar o ambiente irrequieto que desejava. Havia muito que colaborava, estando ainda em Viena, no principal órgão da corrente modernista de Berlim, e que, dir-se-ia por ironia, se intitulava Dhe Gesellschaft (1). Dirigia-o Ludwig Jacobowsky, jovem poeta que, pouco antes da sua prematura morte, fundara o clube Die Kommenden (2), cujo fascinante título atraía as atenções da gente moça. O irreverente cenáculo reunia uma vez por semana na sala do primeiro andar de um café da Praça Nollendorf. Juntavam-se ali, num ambiente que fazia lembrar a C/oserie dês Lilás, de Paris, as mais estranhas e paradoxais personagens'-arquitectos e poetas, diletantes e jornalistas, raparigas que se afirmavam artistas,

 

(1) Sociedade.

(2) Os recém-chegados.

 

estudantes russos e louras escandinavas que queriam aperfeiçoar-se no alemão. A própria Alemanha tinha ali representantes de todas as suas províncias - desde os vestefalianos ossudos e os bávaros indolentes, até aos judeus da Silésia. O à-vontade era lei geral e a discussão ordem do dia permanente. Algumas vezes, declamavam-se dramas ou poesias, mas a preocupação constante era estabelecer laços de íntima camaradagem. Entre esta ardente e juvenil multidão, para quem a vida boêmia era uma honra, destacava-se a veneranda figura de um septuagenário de olhos azuis e barba branca, espécie de lendário Pai Natal, que todos estimavam sinceramente, considerando-o verdadeiro exemplo de boêmio e de poeta - Pedro Híll. Sempre embrulhad-o num velho capote que escondia um fato que já não tinha por onde se lhe pegar e sob o qual jaziam roupas interiores oufrora brancas, contemplava com extrema condescendência e compreensão aquele revolutear de jovens irrequietos. Quando solicitado, acedia -de bom grado a ler alguns dos seus versos, tirando de uma das algibeiras do casaco um masso de velhas e quase ilegíveis folhas manuscritas. Tratava-se de poesias heterogêneas e sem pretensão, que abordavam diferentes assuntos e que ele improvisava a lápis, no café ou no eléctrico, mas às quais não faltava certo lirismo. com o tempo, as palavras sumiam-se e dificilmente se podiam ler entre as manchas e as nódoas que os manuscritos iam adquirindo, mas ele tinha necessidade da sua ajuda, porque quase sempre esquecia os versos, logo depois de escritos. Nunca tinha dinheiro, o que parecia não o incomodar. Era aquilo a que justamente se poderia chamar uma pessoa sem ambições e sem cuidados. Uma vez dormia em casa de Fulano, outra ia almoçar com Cicrano ou com Beltrano, Ninguém sabia quando e como é que esse avô lendário da floresta chegara à grande cidade germânica e o que procurava. Ê possível até que não procurasse nada. Desdenhando da celebridade e da glória, concentrado na imperturbável tranqüilidade do seu espírito poético, mantinha-se sereno e vivia sem preocupações. Nunca mais tive ocasião de encontrar outro homem assim. As discussões germinavam à sua volta, mas ele permanecia distante, mesmo no meio de acérrimas disputas. Nunca o vi exaltar-se. Algumas vezes dirigia uma saudação amigável a este ou àquele, levantando gentilmente o copo, mas logo voltava à sua atitude concentrada. Vendo-o, ficava-se com a convicção de que, mesmo no auge da barafunda onde se encontrava, aquele cérebro já cansado procurava, em vão, rimas para os seus versos.

A presença deste poeta estranho, hoje quase completamente ignorado, mesmo na própria Alemanha, fez que a minha atenção nem sempre se concentrasse na personalidade do presidente do clube Die Kommenden. Contudo, a influência que este homem teve na formação espiritual de muita gente havia de ser notável. Depois do meu contacto com Teodoro Herzl, ele era realmente outra grande personalidade que encontrava na minha vida e a quem o destino também parecia querer indicar como condutor de multidões. Refiro-me a Rodolfo Steiner, o fundador da Antroposofia, cujos discípulos criaram mais tarde inúmeros centros para propaganda e estudo das suas doutrinas. Steiner não tinha aspecto exterior tão naturalmente imponente como o de Herzl, mas era, certamente, mais sugestivo do que aquele. Dos seus olhos irradiava uma estranha chama que prendia e fascinava. Era de tal modo grande o seu poder de persuasão, que eu preferia não olhar para ele durante as conferências, para poder julgar e discernir com mais independência, visto que o seu semblante pálido e ascético, onde se espelhava uma grande paixão espiritual, era de molde a influenciar não apenas os olhares femininos.

Na altura em que o conheci, ainda Rodolfo Steiner se encontrava no período de preparação da sua doutrina. Não tendo encontrado as fórmulas definitivas, procurava e estudava. Recordo-me que num dia fez-nos uma prelecção sobre a teoria das cores que Goethe inventara. Ouvindo-o, ficava-se com a idéia de que havia nele alguma coisa de faustiano e paracelsista. As suas conferências deleitavam, porque a sua cultura era extraordinária e vasta, particularmente em relação à nossa, que não saía dos limites da literatura. Depois de ouvir as suas lições, públicas ou particulares, ficava sempre extremamente satisfeito, mas também um pouco perplexo. Devo, porém, confessar que naquela altura estava eu muito longe de poder profetizar a extraordinária influência filosófica e moral que Steiner deveria exercer um dia. Poderia esperar que o seu espírito analista fizesse maravilhas no campo da ciência e, assim, não me causaria admiração que aquele homem, genialmente intuitivo, realizasse qualquer descoberta física. Mas a minha estupefacção foi grande quando, alguns anos mais tarde, visitei em Dornach o imponente Goetheanum, essa "Escola da Sabedoria", espécie de Academia de estudos antroposóficos fundada pelos seus partidários. Confesso que fiquei atônito por ver que a influência de Steiner tinha enveredado por um caminho de tanta imponderabilidade, que, por vezes, chegava a atingir a vulgaridade.

Não tenho a pretensão de emitir um critério acerca da Antroposofía, doutrina que ainda não fui capaz de compreender, mas sou inclinado a admitir que muito daquilo que parecia constituir o seu valor intrínseco, era apenas reflexo do entusiasmo e do encanto que a personalidade de Steiner lhe imprimia. Isso não me impede de considerar que o meu encontro com Rodolfo Steiner foi para mim um acontecimento de grande importância, sobretudo porque as suas lições não tinham, de nenhum modo, um cunho de conformismo ou intolerância. A sua capacidade intelectual foi para todos nós uma revelação, para os que, tendo saído há pouco do liceu, se julgavam já na posse de uma sabedoria extraordinária. Steiner indicava-nos que uma cultura verdadeiramente profunda não se adquire apenas com leituras e discussões superficiais, mas que só pode ser o resultado de uma lenta, dedicada, sistemática e constante preparação.

Obtive então a certeza de que é mais fácil aprender com os que privam amigavelmente connosco e connosco vivem num ambiente de franca camaradagem do que com mestres que se colocam num plano de inatingível superioridade. Isso é possível sobretudo na idade juvenil e franca em que o homem ainda não tem o espírito envenenado pelas lutas políticas ou pelas diferenças sociais. Voltei a verificar como é útil o estímulo colectivo. Porém, agora, esse estímulo manifestava-se numa esfera mais vasta e mais complexa do que a de outrora no liceu.

Em Viena todos os meus amigos provinham da classe burguesa, especialmente da judaica, de modo que nos juntávamos, multiplicando apenas idênticas tendências, pensamentos e características. Porém, em Berlim, o caso era diferente, pois a juventude desse meu mundo novo vinha dos mais desencontrados e opostos sectores; este pertencia à aristocracia prussiana, enquanto aquele era filho de um grande comerciante de Hamburgo e aqueloutro descendia de camponeses de Vestefália. Jamais vivera num ambiente tão heterogéneo, em que existiam indivíduos verdadeiramente pobres, com fatos e calçado na última. Privava com alcoólicos, homossexuais e morfinómanos e era com grande satisfação que cumprimentava certo cavalheiro de indústria que já estivera preso e que, depois de publicar as suas memórias, tivera ensejo de ascender a escritor. Tudo aquilo que me havia parecido inverosímil nos romances era agora realidade nas tabernas e "cafés" por onde eu deambulava, e onde a minha curiosidade se comprazia em privar com individuos da pior espécie.

Esta tendência não era nova. Lembro-me de que já em Viena os meus amigos me criticavam severamente por não hesitar em relacionar-me - numa altura em que as conveniências sociais já me exigiam prudência - com indivíduos de moralidade duvidosa e cuja companhia era realmente comprometedora. Mas devo confessar que, instalado sem cuidados e sem preocupações numa esfera social onde tudo estava previsto e regulado, sentia uma espécie de fascinante admiração pelos que viviam ao deus-dará da sorte e olhavam com estóica indiferença para a vida, para o tempo e para o dinheiro, zombando da boa reputação e abandonando-se apenas à paixão de uma existência espontânea e livre.

Lendo as minhas obras, não é difícil notar nelas um gosto particular por estas personagens inquietas e arrebatadoras, que me fascinavam, porque, além de me revelarem o encanto do exótico e desconhecido, me ofereciam ainda incomparáveis elementos de estudo. O pintor e, M. Lilien, filho de um modesto torneiro ortodoxo, de Drohobycz, que foi, de facto, o primeiro judeu do Oriente que conheci, revelou-me, por exemplo, um judaísmo fanático e apaixonado, que eu ignorava totalmente. E um jovem russo traduziu-me as mais notáveis passagens de Os Irmãos Karamazow, obra então ainda desconhecida na Alemanha. Uma rapariga sueca despertou a minha atenção para os quadros de Munch, que eu ignorava. Tive a oportunidade de freqüentar estúdios de artistas, quase todos bastante medíocres, é certo, tomando nota das suas tendências e dos seus estilos.

Certo dia, tive até o ensejo de assistir a uma reunião espírita, aonde um adepto me levara. Pude, enfim, graças a esse mundo de relações exóticas, viver intensa e incansavelmente os mil aspectos de uma vida sempre diferente. Em Viena, no liceu, vivia o horizonte estreito das palavras e da subjectividade, mas eis que, em Berlim, fora colocado em presença da vida real. Relacionava-me com homens de todas as classes e temperamentos, que iam e vinham, sempre diferentes, e me encantavam, me aborreciam e até me pediam dinheiro emprestado e se esqueciam de mo devolver. Estou convencido de que estes simples seis meses de existência em Berlim, os primeiros que realmente gozava em absoluta liberdade, me proporcionaram mais emoções que antes tivera em dez anos.

Seria lógico esperar que este meu contacto com um mundo pletórico de realidades fosse como que um incentivo que excitasse o meu gosto pela actividade literária. Mas sucedeu precisamente o contrário, visto que estas múltiplas facetas da vida tiveram o condão de desvanecer a meus olhos a confiança que tinha no meu próprio valor, confiança que tomara corpo rapidamente, sob a acção estimulante dos meus companheiros de estudo liceal. Este sentimento era tão forte que, decorridos apenas quatro meses depois do aparecimento do meu primeiro livro, fiquei admirado de ter tido a coragem de fazer editar uma obra poética, que agora me parecia evidentemente inferior. É certo que esses versos ainda me encantavam e que o seu ritmo denotava certo valor, mas a verdade é que, porém, parecendo-me belos na forma, julgava-os agora deficientes na essência. Fora o desejo de sobressair que me impulsionara a lançá-los a público. Este contacto com a realidade indicava-me que os meus primeiros trabalhos tinham deficiências. Eram demasiado perfumados. Dir-se-ia que possuíam forma, mas que lhes faltava vida. Pareciam-me estranhos a mim mesmo. E de tal modo este sentimento de desdém pelo valor da minha sabedoria liceal se ancorou no meu espírito, que lancei ao braseiro do meu fogão um manuscrito que trouxera de Viena, e com o qual pensava encantar o meu editor. Tinha a íntima convicção de que a escola me afastara da vida, desta vida que ignorava e constitui a Realidade.

E tomei a decisão de não escrever mais nada. Só seis anos após a publicação do meu primeiro livro de versos editei outro, e a minha primeira novela só aparecia três ou quatro anos depois. Entretanto, seguira o útil conselho de Dehmel, que ainda hoje agradeço, e que consistia em fazer traduções. É um método que eu considero altamente interessante porque, além de outras vantagens, facilita ao novel poeta um conhecimento e um domínio mais profundo da riqueza da sua própria língua materna. E foi assim que traduzi as poesias de Baudelaire, algumas de Verlaine, Keats e William Morris, um pequeno drama de Carlos van Lerberghe e, pour me faire la main, um romance de Camilo Lemonnier. É certo que a tradução exige grande esforço e está eriçada de dificuldades, porque não é fácil verter numa língua expressões que são características peculiares de outra, mas é nessa dificuldade, precisamente, que reside o mérito do exercício, pois obriga-nos a uma compreensão profunda das subtilezas da língua estrangeira e a procurar na estrutura do nosso idioma a possibilidade de gravar nele as riquezas que se procuram traduzir. Foi um trabalho que sempre realizei com verdadeira satisfação e prazer artístico, pois, se bem que nem sempre se reconheça todo o seu valor, punha em acção a paciência e constância, virtudes que a monotonia e pouca atracção dos estudos liceais não me -permitiam exercer. E, pela primeira vez na minha vida, sentia então que, com esse simples e obscuro trabalho de participar na difusão das formas, superiores do pensamento, adquiria, enfim, a certeza de que não era um ser inútil. A minha existência justificava-se.

Berlim viera excitar o meu desejo de saber. Compreendi que o único caminho que devia seguir era o da observação e do estudo. Precisava de recomeçar Vi que era necessário observar o mundo, adquirir experiência, porque não devia oferecer-lhe livros superficiais.

E foi nesta firme disposição que escolhi o país que deveria visitar no Verão. Optei pela Bélgica, que revelara, então, nas últimas décadas do século, um extraordinário incremento artístico, que, de certo modo, pelo menos, a colocava em situação mais brilhante do que a França. Khopff e Rops evidenciavam-se na Pintura Constantino Meunier e Minne na Escultura Van der Velde na Gravura e Maeterlinck, Eckhoud e Lemonnier davam à Poesia, na Europa, as suas mais características expressões. Mas havia uma figura que sobretudo me fascinava, por haver dado novos valores à Poesia - Emílio Verhaeren. Nesse tempo ainda ele era completamente desconhecido na Alemanha, onde os escolásticos o confundiam com Verlaine, do mesmo modo que confundiam Rolland com Rostand. Pode dizer-se que o fui descobrir, o que realmente me encantou, pois, sendo o único a conhecê-lo e a amá-lo, amava-o mais devotadamente.

A verdade, porém, é que a nossa época é tão trepidante que se esquece rapidamente de grande parte dos seus acontecimentos. Assim, não sei se Emílio Verhaeren significa qualquer coisa, Não é, portanto, descabido mencionar que este poeta fora, de todos os que escreviam em francês, o primeiro que procurara criar na Europa o que Walt Whitman já criara na América - o culto pelos nossos valores da época e uma afirmação de confiança no futuro da humanidade. A maioria dos poetas tinha horror à Máquina e detestava os grandes centros industriais. Verhaeren, porém, cantava a excelência das audácias do mundo moderno e esforçava-se por lhe inculcar o gosto pela Poesia, vendo em cada invento um motivo que as letras podiam exaltar. Era um entusiasta da rara envergadura dos que se entusiasmam a si próprios, talvez conscientemente, para encontrarem nessa exaltação íntima a força onde a paixão se alimenta. As suas primeiras poesias transformaram-se a breve trecho em vrdadeiros hinos, onde perpassava um intenso e vibrante dinamismo. O seu lema para a Europa era Admiréz vous lês uns lês autres. Aquele encantador optimismo que caracterizou a nossa geração e hoje se ignora, e que até foi substituído pelo regresso ao gregansmo ancestral, encontrou na lira de Verhaeren um dedicado pioneiro. Algumas das suas mais belas poesias podem ainda mostrar à Europa e à Humanidade quais os anseios dos homens desse tempo.

Foi com o firme propósito de o conhecer que decidi realizar aquela viagem a Bruxelas. Imagine-se o meu desapontamento quando Camilo Lemonnier, o hoje quase desconhecido - aliás injustificadamente poeta de rara tempera, que escrevera o Mâíe e de quem eu traduzira um romance para a língua alemã, me comunicara que Verhaeren vivia numa pequena aldeia, que muito raras vezes vinha a Bruxelas e precisamente naquele momento não se encontrava na capital. Teve, porém, a gentileza de me apresentar a outros artistas belgas. Vi, em primeiro lugar, o talentoso e admirável Constantino Meunier, genial escultor que prestava sentida homenagem ao trabalho e, depois, Van der Stappen, de quem hoje já quase ninguém se lembra. Como era amável esse flamengo baixinho e rubicundo e como, com a sua esposa holandesa, alta, forte e jovial, cumularam de atenções o jovem imberbe que eu era então! Recebeu-me em sua casa, mostrou-me os seus trabalhos e conversámos demoradamente sobre arte e literatura. Foram tão amáveis comigo que, dentro em pouco, já o natural acanhamento dos primeiros momentos se desfazia, dando lugar a um à-vontade que me permitiu confessar-lhes francamente como tinha pena de não poder conhecer Verhaeren, tanto mais que fora com esse fim que decidira ir a Bruxelas.

Mal acabara de afirmar a minha tristeza, notei que um enigmático sorriso aflorara aos olhos de Van der Stappen e de sua esposa. Teria eu pronunciado alguma inconveniência Teria sido incorrecto O certo é que eu já não me sentia bem, pois notava que os dois tinham observado ou pensado alguma coisa a meu respeito. E, assim, manifestei o desejo de me retirar. Mas não acederam, insistindo para que eu almoçasse com eles, e voltaram novamente a trocar olhares sorridentes. Contudo, ainda que não adivinhasse o que esses sorrisos poderiam significar, tranquilizei-me, pensando que, se estava para surgir alguma surpresa, tinha a convicção de que não poderia ser desagradável. E desisti do passeio que pensava dar a Waterloo.

Dentro de pouco era meio-dia. Já estávamos na sala de jantar, no rés-do-chão - como é hábito na Bélgica. Os vidros coloridos deixavam ver a rua. Subitamente, apareceu um vulto, desenhado na parte exterior da janela e com a mão dava uma leve pancada na vidraça. Quase ao mesmo tempo soava a campainha. Lê voilà /. -'exclamou a senhora Van der Stappen, levantando-se. Eu não sabia quem ela queria anunciar, naturalmente, mas a porta abriu-se de súbito e eis que Verhaeren aparece calmo e imponente. Reconheci-o logo, pois já tinha visto a sua fotografia. Agora compreendia a razão dos sorrisos enigmáticos dos esposos Van der Stappen. Esperavam Verhaeren, visita habitual da casa, e, quando tomaram conhecimento do grande desejo que eu tinha em conhecê-lo pessoalmente, resolveram dar-me a agradável surpresa de me colocarem inesperadamente em frente dele. E ei-lo agora ali, diante de mim, rindo amàvelmente, da agradável partida que os Stappen me tinham pregado. E, pela primeira vez, senti o amplexo atraente da sua mão expressiva e forte e contemplei o seu olhar, onde se reflectia bondosa sinceridade.

Verhaeren tinha muito que contar, como sempre. E, mesmo durante o almoço, onde ele primava pelo apetite, não deixara de comunicar as últimas novidades. Anunciara que estivera em casa de uns conhecidos e numa exposição de pintura, e manifestava a profunda impressão que essas visitas lhe tinham causado. Era um homem extremamente amável e grande observador, que sentia prazer em notar tudo o que se passava à sua volta, velho hábito que o tornava invulgar na conversação, que dominava admiràvelmente, dando às palavras, por vezes, a nota delicada e convincente do gesto adequado. Sabia conquistar imediatamente as pessoas com quem falava, porque o seu espírito leal, aberto e acessível, estava sempre disposto a tomar em consideração todos os argumentos e todas as modalidades do pensamento. Esta impressão, que recebi logo na primeira vez que o vi, repetiu-se muitas outras vezes, ao observar a maneira decisiva e quase inelutável como sabia atrair, só pelo poder da irresistível força de persuasão que o caracterizava e que ele dominava com mestria. Poucos momentos depois de me ver, ignorando quase por completo ainda quem eu era, já me tratava com familiaridade e estima, simplesmente por ter ouvido dizer que eu era um admirador da sua obra.

Quando o almoço terminou, surgiu para mim a segunda agradável surpresa. Van der Stappen esculpia o busto do poeta, e naquele dia devia realizar-se a última "pose" de Verhaeren, Mas era preciso encontrar quem falasse com ele, durante a sessão, para que a fisionomia do poeta apresentasse os traços indeléveis que o caracterizavam quando conversava. A minha presença era verdadeiramente providencial, exclamava Van der Stappen. E foi assim que, durante cerca de duas horas, contemplei uma fisionomia que nunca mais esquecerei, aquela fisionomia morena de traços bem fortes e bem desenhados, onde pontificava uma fronte alta, sulcada de rugas veneráveis, aureolada por madeixas de tom acastanhado. O mento era saliente e sobre os lábios finos destacava-se a mancha do seu amplo e forte bigode à Vercingétorix. As suas mãos, onde se desenhavam nitidamente as linhas das veias, eram compridas, finas e delicadas, dando contudo uma invulgar nota de energia. Tudo aquilo que nele significava força e vontade estava representado no amplo tórax de camponês, entre cujos ombros a cabeça, nervosa e de circunvoluções nitentes, dava a impressão de ser demasiado pequena. O grande dinamismo que o animava era, porém, muito mais patente quando Varhaeren andava.

Ao contemplar esse busto não posso deixar de considerar como ele dá, de facto, uma fiel imagem da verdadeira personalidade do poeta. Creio bem que é a melhor obra de Van der Stappen, um imperecível documento que perpetua uma das mais ilustres figuras da poesia.

O culto e a amizade que sempre tive depois por Verhaeren estabeleceu-se logo nas três horas do nosso primeiro encontro. Era um homem extremamente cativante e completamente isento de vaidade pessoal. Era franco, leal e coerente com os seus princípios. Sabia reagir contra a tentação deletéria do dinheiro e toda a sua obra tinha um notável cunho de indiscutível independência. Preferia uma vida simples a alcançar benesses à custa de transigências que o seu caracter nobre e puro não podia admitir. O triunfo e a celebridade, que tantas vezes fazem vergar as temperas fortes, não conseguiram alterá-lo, quando, por fim, vieram ao encontro deste homem superior. Verhaeren manteve-se sempre digno, jovial, cativante, forte e extremamente cioso da sua liberdade. Amava a vida e transmitia esse amor a todos os que com ele privavam.

Imediatamente compreendi que estava em presença do verdadeiro poeta, do ser nobre e augusto que sonhara. E temei a decisão inabalável de me dedicar a esse homem e à sua obra. Não ignorava o que a minha decisão tinha de audacioso, visto que naquele tempo ainda o grande lírico europeu era pouco conhecido. Por outro lado, a tradução da sua vasta obra poética e dos seus três dramas em verso exigiriam dois ou três anos de trabalho, o que significava um interregno na preparação dos meus próprios escritos. Mas não hesitei, porque, pondo todo o meu saber e dedicação ao serviço da obra de um grande pensador, compreendi que encontrava para mim próprio uma missão altamente nobre e elevada, com a qual terminava a indecisão do meu espírito. Tinha em frente de mim um objectivo bem claro e bem definido, E se eu hoje tivesse de dar um conselho a um novel escritor que ainda não tivesse encontrado o seu próprio caminho, dir-lhe-ia que se dedicasse à obra de um pensador consagrado, expondo-a ou traduzindo-a. Esse dom supremo de si próprio é mais útil para um neófito do que os trabalhos que porventura fizesse, apenas fundamentado no seu saber, ainda inexperiente. Não é em vão que nos dedicamos sinceramente a uma obra superior.

Durante os dois anos que consagrei quase inteiramente à tradução das obras de Verhaeren e à preparação da sua biografia, tive ocasião de viajar muito, algumas vezes para realizar conferências. Dir-se-ia que a missão a que me dedicara seria ingrata porém, deu-se uma agradável e inesperada surpresa - o meu trabalho teve o condão de me expor à simpatia dos amigos que Verhaeren tinha no estrangeiro e que, a breve trecho, começaram também a dístinguir-me com a sua amizade. Relacionei-me com esse admirável e magnífico temperamento feminino que era Ellen Key, a dedicada sueca que se lançara decididamente na batalha em prol da emancipação da mulher, numa época em que o espírito rotineiro não via com bons olhos tese tão audaciosa. Já muito antes de Freud ela chamara a atenção do mundo para os complexos e delicadeza da alma das crianças, publicando o seu livro Das lahrhundert dês Kindes (1). Foi por intermédio de Ellen Key que conheci na Itália Giovanni Cena e o seu círculo poético e que tive a ocasião de encontrar um dedicado anvgo no norueguês João Bôjer.

A minha actividade despertou a atenção de Jorge Brandes, o mundialmente reputado escritor da História da Literatura, e, dentro de pouco, graças à minha obra, Verhaeren era mais conhecido na Alemanha do que no seu próprio país. Kainz, o incomparável actor,

 

(1) O Século da Criança.

 

e Moissi recitavam poesias que eu havia traduzido, e Max Reinhardt fazia subir à cena do teatro alemão Kloster, (1) uma das obras do poeta. Eu exultava, e tinha razão para isso.

Por fim, chegara o momento de me lembrar também de que, paralelamente ao de Verhaeren, tinha assumido ainda outro compromisso o de conquistar o meu diploma de doutor em Filosofia. Era preciso preparar-me para o exame universitário, assimilando rapidamente em dois ou três meses as matérias que os outros estudantes haviam levado quase cerca de quatro anos a estudar. Então, junto com Erwin Guido Kolbenheyer - que nessa época era meu camarada e condiscipulo e que talvez hoje não goste muito que lhe recorde esse tempo, pois se transformou num poeta e acadêmico da Alemanha hitleriana'- estudei afincadamente durante noites seguidas.

Não tive, porém, dificuldades de nenhuma natureza no exame. O professor, condescendente, e que, de resto, já conhecia o meu renome literário e, por isso mesmo, compreendia não ter o direito de me vexar com puerilidades, disse-me, numa pequena conversa que antes do exame tivera comigo, com um sorriso amável: "Suponho que não terá grande prazer em ser examinado em Filosofia". Depois conduziu prudente e delicadamente o interrogatório para as matérias que eu mais completamente dominava. Foi a primeira vez que obtive uma distinção num exame, e a última, segundo creio e desejo. Por fim alcancei a liberdade e, todos os meus momentos, desde essa data, têm sido empregados na batalha, cada vez mais árdua, para manter a minha independência.

 

(1) O Claustro.

 

               A eterna sedução de Paris

O melhor prêmio que poderia receber para festejar a conquista da minha liberdade seria o de passar um ano em Paris. E prometi a mim próprio esse prêmio. Dessa imensa cidade ficara-me apenas uma vaga idéia, adquirida em duas pequenas visitas que antes lhe fizera, mas sabia que um ano de juventude passada no seu seio significava para toda a vida um inesgotável sentimento de saudosa felicidade. Em cidade nenhuma do mundo se vive tão exuberantemente como em Paris, essa urbe que se entrega a todos e nunca ninguém consegue possuir inteiramente.

Sei bem, agora, na altura em que escrevo este livro, que o Paris de hoje já não é o Paris ditoso da minha mocidade. A graça infinda dessa grande cidade empalideceu, desde que o maior déspota da Terra lhe cravou o ferrete ignominioso da sua insensatez. Enquanto redigia estas linhas, os tanques e as tropas alemãs iam avançando em direcção à gloriosa cidade. Dir-se-ia um carreiro de monstruosas térmites serpenteando e arrasando tudo à sua passagem, e preparando-se para devorar os fundamentos, para sugar a seiva desse magnífico empório de beleza. E eis que terrível ameaça se converteu em dramática realidade:- a bandeira da Cruz Suástica flutua no alto da Torre Eiffel e as tropas de assalto das falanges hitlerianas desfilam provocadoramente nos napoleónicos Campos Elisios. E através da distância que me separa da grande cidade, sinto a dor que oprime o coração dos parisienses, adivinho a raiva surda com que esses cidadãos, outrora pacíficos e joviais, ouvem, nos seus lares, nos seus pacatos bistros ou cafés, o martelar insolente da bota dos conquistadores. A tragédia que se abateu sobre Paris encheu-me de verdadeira mágoa e desespero, porque Paris era uma cidade que seduzia quem a visitava. Será ela no futuro o mesmo que foi para nós:

- uma cidade que sabia dar a todos a alegria sem fim das suas tentações, sem contudo perder as características que a tornavam distinta e diferente de todas as outras e lhe permitiam manter-se sempre igual a si própria, apesar de evolucionar constantemente?

Eu bem sei que Paris não é a única cidade que sofre. Ainda demorará muito tempo antes que a Europa regresse ao viver calmo e doce que antecedeu a primeira Guerra Mundial, que deixou atrás de si uma nuvem de mútua desconfiança, que nunca se dissipou completamente. As hostilidades haviam terminado, é certo, mas uma espécie de veneno endêmico ficara instalado no corpo doente da Humanidade, minando-o e corrompendo-o. Por muito acentuados que tenham sido os progressos econômicos, sociais e políticos realizados pelas nações do Ocidente durante o quarto de século que mediou entre as duas grandes guerras, a verdade é que nenhuma regressou aos tempos felizes despreocupados e serenos de outrora. Ditosos tempos esses em que o povo italiano não perdia nunca o seu proverbial bom humor e em que, mesmo através das maiores dificuldades, cada cidadão tinha sempre um sorriso alegre ou a nota estridente de um sarcasmo para vituperar na rua, na taberna ou no café a acção criticável do governo. Hoje tudo mudou. Uma tristeza infinda apoderou-se de todos os italianos, que agora caminham apáticos, com os lábios cerrados e o coração angustiado.

E podemos nós agora imaginar sequer a existência daquela Áustria tolerante e calma, indulgente, prazenteira e piedosa, que venerava o imperador e dava graças a Deus pela vida sem cuidados que era a sua E outros povos, como os nossos. os alemães e os espanhóis, já perderam a noção da quantidade de liberdades e alegrias que o "Estado", o monstro moderno, lhes tem continuamente cerceado. Cada povo sente que sobre a sua cabeça paira hoje o espectro de uma angústia sem fim e sem nome. cuja natureza parece não saber definir. Mas nós, nós, os que somos do tempo da liberdade individual, do sagrado respeito que a pessoa humana merecia, sabemos que a Europa nem sempre viveu assim, e que outrora era feliz e livre, na plenitude e na variedade das suas imensas características. É com indizível mágoa que contemplámos um continente que cavou a sua própria desdita, se tornou desgraçado e mísero, mercê dessa furiosa alucinação suicida que o tortura e escraviza.

Mas nos tempos ditosos dessa liberdade, Paris distinguia-se particularmente de todas as outras cidades. A vida no seu seio era calma, despreocupada e, portanto, feliz, sem contudo deixar de ser digna e até elevada. Cidade eleita, pela sua graça incomparável, pelo clima, pela grande riqueza do seu patrimônio artístico, era bem o oásis predilecto, onde cada qual se sentia à vontade, vivia em paz e contribuía, assim, para a paz em que todos viviam. Homens oriundos dos mais distantes pontos, tinham a certeza de que, vindo a Paris, encontrariam nessa cidade uma segunda Pátria. Todos se sentiam bem no seu seio - chineses e escandinavos, espanhóis e gregos, brasileiros e canadianos. Havia liberdade de pensamento, e cada qual sentia que podia viver à sua maneira, sozinho ou acompanhado, simples ou complicadamente, como rico ou como pobre. Havia espaços para toda a gente e possibilidades para todos os gostos. Era a cidade dos restaurantes de luxo, com iguarias caríssimas, garrafas de champanhe que se pagavam por duzentos ou trezentos francos e conhaques, dos tempos de Marengo e de Waterloo, que custavam uma fortuna. Mas ao lado dessas casas luxuosas, havia também as mais modestas, onde se podia comer e beber quase tão bem e por muito menos dinheiro. Por dois sous, qualquer pessoa podia saborear delicados aperitivos nos sempre repletos restaurantes do Bairro Latino, especialmente freqüentados por estudantes, e depois, um magnífico bife, vinho, branco ou tinto, e uma deliciosa barra de louro pão de trigo. Cada qual tinha a liberdade de se vestir como melhor lhe parecia, sem receio de críticas.

Os estudantes passeavam com os característicos barretes do Boulevard Saint-Michel. Os rapins - pintores -, não hesitavam em aparecer em público com os grandes chapéus de aba larga e os casacos de veludo; os operários vinham com os fatos de ganga, ou até em mangas de camisa, às mais aristocráticas artérias citadinas as criadas saíam com as rendilhadas toucas de Bretanha e o taberneiro da esquina não desdenhava aparecer de avental azul. Nesse tempo qualquer par tinha a liberdade de dançar depois da meia-noite numa praça ou na rua da cidade, mesmo que não fosse precisamente na noite festiva do 4 de Julho, sob o olhar condescendente e até risonho do polícia, porque, então, a rua ainda pertencia ao povo Havia franqueza e ninguém molestava ou tinha receio de ser molestado. A mais bela rapariga não tinha relutância em andar de braço dado com um preto mais negro do que o carvão ou com um chinês de órbitas oblíquas e de entrar no petit hotel mais próximo. Quem ligava então importância, em Paris, a esses fantasmas divisores que só muito mais tarde apareceram, a esse papão que se chama origem racial? Cada qual andava, falava, comia e dormia com quem lhe apetecia e estava longe de se preocupar com as atitudes, os gestos ou as preocupações do vizinho.

"Ditoso Paris Amava-se tanto mais esta bela cidade, quanto mais se conhecia o que era a vida em Berlim, onde imperava o servilismo gregário, tão peculiar na Alemanha, e onde as pessoas se estratificavam em clans impenetráveis, que impediam que a mulher do oficial do exército tivesse relações com a do professor, e a deste com a do comerciante, e que a do comerciante falasse com a do simples operário.

Mas em Paris, pairava ainda no ambiente o sopro da Revolução. O operário sabia que era um cidadão com tantos direitos como o patrão e o criado de café cumprimentava familiarmente o general agaloado. As donas de casa, respeitáveis senhoras da classe média, não faziam cara feia quando por acaso encontravam no seu caminho uma mulher perdida, e os filhos tinham até a gentileza de lhe oferecer flores. Tenho ainda perfeitamente gravada na memória a cena a que assisti certo dia no elegante restaurante Larue, perto da Madaleine, onde entrou um grupo de ricos camponeses normandos que vinham de um baptizado. Trajavam à moda da terra e tinham posto tanta pomada no cabelo, que o cheiro que dele se evolava impregnava todo o ambiente. O ruído que faziam com os grossos sapatos dava a impressão de que traziam ferraduras. Conversavam animadamente, e a alegria e a conversação foi aumentando na razão directa do vinho que iam bebendo. Não tinham o pejo de gracejar publicamente com suas mulheres, e adivinhava-se que não estavam de nenhum modo envergonhados de, sendo camponeses, se encontrarem entre uma selecta assistência, em que abundavam estilizadas casacas e vestidos elegantes. O impecável criado não fez trejeitos de contrariedade em presença de tal clientela, como teria sucedido na Alemanha ou na Inglaterra. Foi tão esmerado e amável no serviço, como o teria sido se à mesa estivessem sentados ministros ou outras personagens de distinção. O próprio maitre d'hôtel não hesitou em ter a gentileza de vir pessoalmente cumprimentar aqueles camponeses exóticos.

Paris era assim. Respirava-se em toda a cidade um não sei quê de espontânea graça e de calma alegria. Não havia contrastes flagrantes, não havia abismos entre os homens, por muito modestos ou ricos que fossem. Na rua luxuosa ou na travessa estreita, o ambiente era sempre risonho. Nos bairros afastados, os músicos ambulantes espalhavam as notas doces da sua arte e ouvia-se a voz gentil da midinette cantando, enquanto trabalhava. Paris tinha um eterno sorriso e sabia ser perenemente afável. Se algumas vezes sucedia que dois cocheiros se injuriassem, reconciliavam-se imediatamente, e iam ao restaurante mais próximo beber um copo de vinho e saborear duas ostras, que eram, nesse tempo, quase de graça. Nessa cidade, tudo era simples, franco e puro. Nenhum homem tinha dificuldade em encontrar a mulher que lhe agradasse, pois para cada panela havia um testo e as raparigas não se envolviam no manto da hipocrisia.

Como era bela a vida em Paris, sobretudo para quem possuía a grande fortuna da juventude! Até um simples passeio dava já prazer e constituía muitas vezes uma possibilidade de estudo, pois qualquer pessoa podia entrar onde lhe parecesse, ver e apreciar. O livreiro nato se mostrava impertinente se alguém entrasse no estabelecimento e folheasse livros durante um quarto de hora podiam ver-se à vontade os quadros das exposições e os objectos das casas de antigüidades e ir passar momentos de ócio ao Hotel Drouot, para assistir ao espectáculo bizarro dos leilões. Ninguém reparava se uma pessoa conversava ou passeava com uma criada nos jardins. A rua tinha, então, um atractivo especial, que seduzia e encantava, revelando sempre constantes novidades. E se sucedia que o cansaço se apoderava de nós, havia dez mil cafés, em cujos terraços qualquer pessoa se podia sentar e até escrever cartas, sem a preocupação de comprar papel, que era gratuitamente cedido pelo proprietário. E, se lhe agradava, ouvia o zunzum amável dos vendedores ambulantes, enaltecendo o valor das mil bugigangas que ofereciam. Só uma coisa era difícil fazer em Paris: ficar em casa ou regressar a ela depois de ter saído, particularmente quando chegava a Primavera e os raios doirados do Sol cintilavam sobre as águas prateadas do Sena, as árvores das avenidas parisienses se revestiam de folhas verdes, e as raparigas traziam ao peito o raminho de violetas, comprado por um sou. Não era necessário, porém, que surgisse a Primavera, para que Paris oferecesse a nota agradável do seu bom humor.

O Paris que conheci não oferecia ainda a nota hom'ogénea que só mais tarde adquiriu, graças aos transportes subterrâneos e ao automóvel. Nessa altura, dominava ainda a tracção animal. Confesso que era bem agradável descobrir Paris do plano superior de um lento "imperial", ou instalado num vulgar trem de praça. Nesse tempo não era muito fácil ir de Montmartre a Montparnasse e dizia-se que muitos parisienses ainda não haviam atravessado o Sena, o que, aliás, não tinha nenhuma relutância em acreditar, pois conhecia quanto o pequeno burguês citadino era avesso a deslocações. Afirmava-se que muitas crianças que brincavam no jardim do Luxemburgo nunca tinham ido às Tulherias ou ao Parque Monceau. Cada qual preferia ficar chez sói, criando, no grande Paris, a cidadezinha do seu encanto - a rua ou o bairro onde vivia, hábito que imprimia a cada conjunto urbano um tom particular. Essa diversidade de ambientes colocava o estrangeiro perante o problema nem sempre fácil de escolher o sector onde se deveria instalar.

O Bairro Latino deixara de me seduzir. Já o conhecia, pois correra para ele, logo ao saltar do comboio, numa das minhas primeiras e breves visitas a Paris, quando tinha vinte anos. Recordo-me de que fui então ao Café Vachette e pedi respeitosamente ao criado que me indicasse qual a mesa de mármore onde Verlaine, já embriagado, batia desabridamente com a bengala para impor respeito pela sua pessoa. E eu, antialcoólico inveterado, bebi à sua memória um copo de absinto. É certo que nem mesmo o tom esverdeado da bebida me atraía, mas sentia, na minha ingenuidade juvenil, que tinha a obrigação de prestar fervorosa e condigna homenagem, no Bairro Latino, ao grande poeta da França. Então, cheguei ainda a pensar que, para viver "de facto" a verdadeira existência lendária desse bairro intelectual, onde pontificava a Sorbonne, e que os livros me haviam revelado, deveria estabelecer domicilio numa das suas ruas e numa água-furtada.

Porém, cinco anos depois, já havia mudado de opinião. O Bairro Latino parecia-me demasiado internacional e muito pouco parisiense. Por outro lado, queria que a minha casa me desse o ambiente que julgava indispensável, ainda que não estivesse precisamente na zona intelectual que a tradição celebrizara. E pus-me em campo. Era preciso escolher.

Deixei imediatamente de parte os Campos Elísios, a artéria elegante da cidade, e o mesmo sucedeu às imediações do Café de La Paix, onde geralmente se juntavam os ricos estrangeiros que vinham da região dos Bálcãs e onde quase ninguém falava francês, exceptuando os criados. Teria preferido a tranqüilidade das ruas calmas de Saint Sulpice, com os seus conventos e igrejas, bairro que Rilke e Suarez haviam escolhido. A Isle de St. Louis encantara-me, porém, particularmente, pois estaria próximo das margens do Sena. Mas eis que consegui logo na primeira semana encontrar qualquer coisa muito mais interessante. Foi o caso que, passeando um dia pelas Galerias do Palais Royal, notei que um daqueles grandes casarões que o príncipe Égalité mandara edificar no século XVIII, e outrora fora um grande palácio, havia agora descido à categoria de pequeno e um tanto rústico hotel. Fui lá e pedi um quarto. A minha satisfação foi grande quando notei que tinha uma janela que dava para o jardim do Palais Royal, recinto que se fechava logo ao anoitecer. O ruído da cidade chegava ali já meio amortecido, como se fosse a cadência das ondas espraiando-se nalguma costa distante. Nas noites de luar as estátuas resplandeciam e, logo de manhã cedo, vinha das bandas do Halles (1) uma leve aragem com fragrâncias a verdura fresca. Foi nesse histórico quadrado do Palais Royal que viveram os mais célebres poetas e estadistas dos séculos XVIII e XIX. Aí se encontrava a casa em cuja água-furtada viveu a poetisa Marcelina Desbordes-Valmore, que tanto admiro, e Victor Hugo e Balzac tantas vezes visitaram, subindo os cem degraus da estreita escadaria que conduzia ao seu domicílio. Fora dali que Camille Desmoulins incitara o povo de Paris ao assalto à Bastilha e nas suas galerias tinha um dia o pobre e pequeno tenente Bonaparte procurado encontrar uma protectora, entre as damas não muito virtuosas que por ali passeavam. Em cada um dos blocos daquele palácio estava gravado um momento da História da França. Depois, não muito longe, era a Biblioteca Nacional, onde passava as minhas manhãs, o Museu do Louvre, com as suas riquezas artísticas, e as grandes artérias citadinas cheias de vida. Tinha encontrado, enfim, aquilo que mais desejava uma casa no verdadeiro coração da França, na zona secular em que a sua seiva palpitara, no ponto mais íntimo de Paris. Quando um dia recebi nessa casa a visita de André Gide, não pôde ele deixar de manifestar todo o seu encanto por aquele oásis, declarando-me: "É necessário que os estrangeiros venham a Paris para nos revelarem o que de mais típico e belo há na nossa cidade". E eu concordei, pois reconhecia que não poderia ter encontrado nada com uma nota mais inconfundivelmente parisiense, e ao mesmo tempo mais íntimo e agradável, do que esse romântico quarto de estudante, no coração da mais vibrante cidade do mondo.

 

(1) Mercado central

 

E como vivi então plenamente e me extasiei! Não me animava apenas o desejo de ver o Paris dos meus dias. Procurava vislumbrar o de Henrique IV e Luís XIV, o de Retif de la Bretonne e de Balzac, o de Zola e o de Carlos Luís Filipe, no ambiente característico das suas personagens e dos seus acontecimentos. Recebi então a agradávl surpresa de verificar aquilo que em mim era já íntima convicção, e consistia em acreditar que uma actividade literária fecunda e realista dá a um povo a nota perene da sua inconfundível e peculiar maneira de ser. com efeito, já conhecia Paris, por intermédio dos seus poetas, dos seus romancistas e dos seus historiadores. Devo confessar que fui encontrá-lo exactamente como esses artistas mo tinham feito antever. Era uma espécie de reconhecimento daquilo que já antes estava enraizado no meu espírito, reconhecimento que constitui, segundo Aristóteles, o mais intenso e profundo de todos os prazeres espirituais. Contudo, é necessário ver com os próprios olhos, pois um povo não se conhece totalmente, sobretudo no que tem de mais íntimo e característico, apenas através dos livros. É necessário também o contacto com os seus homens mais representativos, uma estreita comunhão com os valores reais que o caracterizam. Uma apreciação que não tenha este duplo fundamento é certamente muito imprecisa e incorrecta. A amizade dedicada e espiritual de alguns desses homens é extremamente importante.

Felizmente, pude dispor de algumas, entre as quais a de Léon Bazalgette foi a mais interessante. Tive a grande fortuna de não ser absorvido, como quase sempre sucedia com todos os estrangeiros, pelo sempre instável círculo de artistas e escritores internacionais que freqüentavam o "Café du Dome" e não se distinguiam dos artistas e escritores de Munique. Roma, Berlim ou qualquer outra cidade. Verhaeren, que visitava em S. Cloud, duas vezes por semana, relacionou-me com os pintores e poetas que tinham o bom senso de viver"-numa cidade que se divertia exuberantemente - na calma tranqüilidade dos seus oásis de trabalho fecundo. E foi assim que tive ocasião de ir ao estúdio de Renoir e aos dos seus melhores discípulos. A vida destes artistas, cujas obras se vendem hoje a dez mil dólares, em nada diferia da de qualquer modesto burguês que vivesse do seu pequeno emprego ou das suas rendas. Dispunham de uma pequena moradia, onde tinham o estúdio, modesta casa que estava muito longe de aparentar o luxo dos palacetes que Lenbach e outras personagens célebres possuíam em Munique, e de certo modo faziam pensar nos tempos distantes de Pompeia.

E, tão simplesmente como os pintores, viviam também os poetas, com os quais depois havia de me familiarizar, Uma grande parte deles tinha pequenos empregos oficiais, particularmente os que não podiam viver inteiramente de trabalhos literários. Eram ocupações pouco exigentes, que garantiam um ordenado e que, em França, onde toda a gente admira e estima tudo o que é intelectualismo, se lhes cedia de bom grado. Eram geralmente empregos de bibliotecários em qualquer ministério ou no Senado. E os senadores, que só muito raramente requisitavam livros, permitiam, assim, que o felizardo funcionário, instalado no velho e pomposo palácio, se sentasse em frente de qualquer janela que desse para o jardim de Luxemburgo e, sem mais cuidados nem preocupações, se entregasse às suas rimas.

Os que não eram funcionários dedicavam-se à medicina, como Duhamel e Durtain, outros vendiam quadros, como Carlos Vildrac, ou eram professores de liceu, como Romains e João Ricardo Bloch, e havia ainda os que, como Paul Valéry, trabalhavam na Agência Havas ou em editoriais. Nenhum deles tinha, porém, a insensata pretensão que mais tarde perturbaria muitos poetas e escritores, nascidos depois e que, obcecados pela ânsia da velocidade, julgavam que o triunfo se podia alcançar pelo primeiro livro ou soneto que escrevessem. O que esses intelectuais de outrora desejavam era, antes de mais nada, garantir, pelo pequeno emprego, a liberdade e independência que lhes permitissem dedicar-se sem preocupações econômicas à sua obra desprezando altivamente a venalidade da imprensa diária. Preferiam colaborar nas revistas que eles próprios mantinham com grande sacrifício ou apareciam com muita dificuldade, e não hesitavam em fazer lentamente o seu renome intelectual. As peças de muitos autores subiam primeiro à cena em pequenos teatros de amadores, cuja acção se limitava a círculos de iniciados. E foi assim que durante muito tempo os nomes de Claudel, Péguy, Rolland, Suarez e Valéry não ultrapassaram a órbita de restritos sectores intelectuais. Eram pensadores que, acima de tudo, pregavam a liberdade e independência, fugindo do bulício febril da cidade, dedicando-se de alma e coração às suas actividades criadoras. Preferiam uma existência quotidiana simples e discreta, desde que com ela pudessem viver para a arte ou para a literatura. Dispensavam criados, pois as suas esposas não tinham pejo em fazer os trabalhos domésticos. Nesses lares, onde às vezes se realizavam os nossos serões, respirava-se sempre um ambiente de franca e íntima camaradagem. As cadeiras em que cada qual se sentava eram vulgares, dispostas à volta de uma modesta mesa, coberta com um pano aos quadradinhos. Os vizinhos eram humildes operários, de vida tão simples como a desses intelectuais, que não tinham telefone nem máquinas de escrever, e dispensavam secretários e todo o complicado sistema de propaganda que hoje se faz à volta do livro. Os originais eram escritos à mão, como se fazia há mil anos. e até as grandes casas editoras, como o Mercure de France, por exemplo, tinham um sistema de actividade que excluía complicações.

Nesse tempo, ninguém se preocupava com as aparências.

Não eram apenas estes jovens intelectuais que prestavam culto à franqueza e sinceridade; podia dizer-se ser essa uma tendência quase generalizada em toda a França, onde o povo prezava, acima de tudo, a independência e a alegria de criar e de viver à sua maneira. Como o espírito de franqueza e de dedicação desses amigos modificaram em mim o desagradável conceito que tinha dos intelectuais franceses, conceito que Bourget e outros escritores do tempo tinham difundido, mostrando-nos um intelectualismo cujo único esteio era o salão E, verificando como viviam as suas mulheres, adquiri a certeza de que era injusta aquela idéia, bastante generalizada no estrangeiro, segundo a qual a francesa apenas se interessava por frivolidades Nunca vi donas de casa mais dignas de elogio, mais dedicadas e mais risonhas. Nesses círculos em que vivi fraternalmente, e onde conheci a verdadeira França, a mulher era a companheira leal, dedicada e inteligente, que sabia fazer de um lar modesto um pequeno mimo, que cuidava amorosamente dos filhos e ainda tinha tempo para se interessar pelos trabalhos intelectuais do marido.

Um exemplo perfeito de dedicação dava-o o magnífico Léon Bazalgette, cujo nome já está hoje quase esquecido, infelizmente. Era o que se poderia chamar o verdadeiro protótipo do "anvgo", o companheiro que se sacrificava pelos irmãos que mereciam a sua estima. Toda a sua energia e inteligência estavam ao di'spor dos jovens escritores que o cercavam e o seu melhor prazer era auxiliar franca e sinceramente, sem sequer esperar encómios e agradecimentos. A dedicação era uma faculdade natural do seu espírito, pois compreendia ser seu dever auxiliar os intelectuais que despertavam e cujas obras ele queria influenciar.

Era um homem de aspecto algo marcial, se bem que fosse antimilitarista apaixonado e extremamente compreensivo e delicado. A mais rigorosa honradez era para ele o mais constante e inabalável predicado, e, no afã de se sacrificar pelos outros, chegava quase a esquecer-se de si próprio. Não havia obstáculos que o impedissem de servir um amigo, e amigos tinha ele em todo o mundo, se bem que fizessem parte de um escol não muito numeroso, mas que se distinguia pelo valor. Levou dez anos a pelejar por Walt Whitman, procurando torná-lo conhecido em França, traduzindo todas as suas obras e escrevendo uma magnífica biografia do poeta. Era assim que este homem livre e honrado se dedicava, este homem que queria que os seus concidadãos fossem fortes e dignos, este homem que amava o Mundo e, com esforço e constância, queria chamar a atenção espiritual da França para a arte e pensamento de além-fronteiras. Era um francês digno e sincero, apesar de apaixonado inimigo dos nacionalismos exclusivistas.

Uma amizade íntima e fraternal surgiu imediatamente entre nós. Tínhamos tendências e predicados que se harmonizavam plenamente, pois, como ele, também eu era refractário aos nacionalismos exacerbados, prestava homenagem à cultura mundial, que servia sem preocupações de interesses mesquinhos, e, como Bazalgette, pensava que a liberdade e a independência espiritual são o primum et ultimam da vida. Foi ele que me revelou a existência de uma França que desconhecia. Quando mais tarde li em Rolland como Olivier encontrou o alemão João Cristóvão, não pude deixar de considerar que algo semelhante se havia passado também connosco. Mas o que de mais notável havia nas nossas relações e punha à prova a nossa amizade era que Bazalgette admirava-me pessoalmente, mas não gostava dos meus trabalhos literários. O facto teria sido suficiente para perturbar as relações e a estima entre outras pessoas. Mas a sua admiração por mim era tanta e o respeito que a minha dedicação por Verhaeren lhe incitava era tal que, quando parti de França, e tive depois ocasião de vir novamente a Paris, ele era sempre o primeiro a vir à estação, para me cumprimentar e me oferecer os seus préstimos. Sabia que podia contar sempre com ele.

Estávamos quase sempre de acordo e amávamo-nos mais sinceramente do que muitos irmãos, mas Bazalgette mantinha-se absolutamente irredutível em relação aos meus livros, poesias e novelas que Henri Guilbeaux

- que na Grande Guerra desempenhou importante papel como amigo de Lenine - traduzira para francês. Dizia ele que eu me encerrava numa esfera subjectiva de pensamento, que ele não admitia, que me afastava da realidade da vida e manifestava abertamente o desagrado que a minha tendência lhe merecia. Não sendo indulgente consigo, dizia também francamente aquilo que pensava acerca dos outros, pois detestava a hipocrisia.

A intangibilidade e nobreza do seu caracter manifestaram-se, por exemplo, certa vez, quando solicitou a minha colaboração para uma revista que ele dirigia. Mas a colaboração pedida era de natureza especial, pois consistia, não em escrever artigos, mas em encontrar na Alemanha quem os escrevesse, com mais competência do que eu, evidentemente, visto que de mim, seu amigo, nada solicitara e nada publicou. Contudo, esse facto não impediu que Bazalgette revisse a edição francesa de uma das minhas obras, que uma editorial lançara a público. E o seu trabalho foi simplesmente feito dentro de um espírito de franca cama'radagem, pois não ganhou com ele absolutamente nada.

Apesar das divergências que nos separavam, fomos sempre bons amigos e a fraternal estima que nos unia não teve uma única nuvem durante dez anos. E, quando, durante a primeira Guerra Mundial, decidi enveredar por caminhos diferentes daqueles que até então seguira, renunciando ao meu passado intelectual e adquirindo uma personalidade própria de escritor, foi com grande prazer que recebi, por esse facto, as saudações de Bazalgette. Estimava-as sinceramente, pois sabia que o franco "sim" com que recebia os meus novos livros, era tão sincero como o irredutível "não", que outrora pronunciara.

Se incluo neste capítulo o nome muito venerado de Rainer Maria Rilke, apesar de ser um poeta alemão e de eu aqui focar apenas aspectos da minha vida em Paris, é porque foi nesta cidade que nós nos vimos com mais freqüência, porque guardo desses encontros as melhores recordações e porque não posso pensar nele sem pensar em Paris, a cidade magnífica que Rilke tanto amou.

Recordando Rilke e outros mestres do pensamento que trabalharam a palavra com o mimo e a delicadeza com que os joalheiros tratam as jóias de raro valor; pensando nesses astros rutilantes que param no céu da minha mocidade; lembrando esses nomes queridos, não posso deixar de formular a mim próprio esta triste e desoladora pergunta: Será possível que o nosso século de violência e de agitação dê poetas tão puros e tão sublimes como eles foram? Dar-se-á o caso que essa geração de pensadores não tenha sucessão directa, que essa plêiade de espíritos superiores esteja irremediavelmente perdida? Poderão ainda aparecer pensadores que, neste século sacudido por todas as tempestades, amem apenas a arte e tenham, como outrora fizeram tantos, a coragem de desprezar as adulações da multidão ignara, sobrepondo-se a honrarias, ostentações e egoísmos, para se dedicarem ao trabalho lento e criador de burilar estrofe após estrofe, animados apenas pelo desejo de atingir a perfeição e o belo?

No murmúrio e no labirinto da vida, esses poetas davam a nota de uma existência quase monacal, fugindo da vulgaridade. Procuravam a harmonia e o seu encanto era indizível quando compunham uma rima impecável, que logo juntavam a outra tão perfeita e que, na singela maviosidade do seu ritmo, eram suficientes para despertar nas almas inefáveis riquezas espirituais.

E como o seu exemplo era reconfortante e enchia de esperança os nossos corações juvenis! Como era grande a devoção que em nós surgia por esses artistas da palavra, que com amor esculpiam maravilhas, viviam não apenas uma hora ou um dia, mas podiam resistir à eternidade

E quase dava pena ver a simplicidade que esses homens geniais mantinham. Este vivia bucòlicamente no campo; aquele trabalhava em qualquer mister sem importância e aqueloutro era um simples peregrino que dava a volta ao mundo. Viviam quase ignorados, mas eram amados com paixão pelos poucos que tinham a ventura de os conhecer. Um era alemão, outro francês, outro italiano, mas, de facto, eram cidadãos do mesmo mundo, porque a sua Pátria era a Poesia, que os irmanava e os colocava acima da vulgaridade do que é passageiro e efêmero.

A minha admiração por esses espíritos eleitos não tem limites, mas também não o tem a interrogadora inquietação das minhas dúvidas. Será possível que a vida trepidante do nosso século seja ainda um meio propício ao aparecimento de poetas dessa natureza, esta vida que impiedosamente nega ao homem o direito de se concentrar em si próprio, esta vida moderna que o expulsa da meditação tranqüila e da calma interior, com o incêndio das florestas expulsa dos mais recônditos esconderijos os animais apavorados, será hoje concebível, enfim, a existência de tais seres?

É certo que o milagre do aparecimento de um poeta genial é sempre possível, como muito bem canta Goethe nas estrofes que dedica a Lord Byron: "São uma dádiva da Terra, uma dádiva que perdurará". Esse milagre pode realmente dar-se pelo recomeçar constante que permite que até a época mais indigna receba o supremo dom de um gênio imortal. Contudo, cabe perguntar se tal fenômeno cíclico é verosímil, numa era em que não há lugar para a calma tranqüilidade da meditação, numa era em que o isolamento, permitido aos poetas de outrora, é agora completamente impossível. Que significam hoje as melodias de Valèry, de Verhaeren, de Rilke, de Pascoli e de Francis Jammes? que valor têm os seus versos para os ouvidos de uma geração que, em vez das doces harmonias musicais, vive no caos retumbante da propaganda dirigida, e já duas vezes foi submetida ao inferno retumbante dos canhões? Não sei o que o futuro reservará à Humanidade, mas posso afirmar, e tenho o supremo dever de o fazer, que a presença de alguns desses poetas na nossa geração foi, para nós, o maior título de glória. A lição que nos deram, pelo exemplo do seu amor ao Belo, foi simplesmente magnífica num período em que o mundo começava já a enveredar pelos caminhos trágicos do materialismo.

Contemplando o passado, posso afirmar que a minha maior felicidade foi a de ter sido precisamente contemporâneo desses homens, e de ter tido o privilégio de viver junto de alguns, aprendendo a amá-los sinceramente quando a admiração do primeiro contacto se transformou depois em verdadeira afinidade.

De todos esses poetas, Rilke era aquele que tinha uma existência mais calma e retirada, Mas o seu isolamento não correspondia senão a uma tendência que brotava espontaneamente do seu ser. Não tinha aquele aspecto de renúncia monástica e superficial que Stefan George seguia na Alemanha. Podia afirmar-se que a modéstia era uma característica essencial do seu espírito, e, assim, estava presente em qualquer parte onde o poeta aparecesse. O que dele se dizia, e até a fama que o aureolava - esse conjunto de paradoxos que se tecem à volta de um nome, como ele magnificamente o definia-só muito vagamente o influenciava. Referia-se apenas ao seu nome, e não a ele, afirmava. De resto, era extremamente difícil encontrá-lo, porque Rilke era um eterno viajante, sem domicílio certo, sem lar e sem emprego. Ele mesmo não saberia dizer onde se encontraria em tal ou qual época, porque o seu espírito demasiadamente melodioso e terno era refractário a decisões e a planos previamente estudados. Encontrá-lo era, pois, obra de puro acaso.

Estava-se em qualquer museu, por exemplo, e eis que, de repente, se ouvia junto de nós uma voz doce e amiga que já conhecíamos, sem que naquele momento nos recordássemos bem de quem fosse. E recebia-se a agradável surpresa de encontrar Rilke. Ele ali estava, modesto e ignorado. Quantos milhares de pessoas não teriam passado ao lado daquele jovem de aspecto vulgar, bigode louro recaído e olhos azuis, que, quando nos contemplavam, davam uma estranha luminosidade à sua fisionomia de traços levemente eslavos, sem adivinharem que tinham passado junto de um poeta, e, o que é mais, junto de um dos mais ilustres poetas do século?

A nota invulgar da sua maneira de ser só se revelava na intimidade, em que primava pela doçura e pela delicadeza. A voz era melodiosa. Quando entrava numa sala, fazia-o com tanta circunspecção que a sua chegada passava quase despercebida. Sentava-se, ouvia e, quando alguma passagem da conversa parecia interessar-lhe, levantava levemente a cabeça, num gesto espontâneo, e emitia modesta e naturalmente a sua opinião. A dicção era singela e meiga e fazia pensar numa mãe carinhosa contando lendas ao filhinho amado. Atraía e encantava sempre, pois a graça natural da sua palavra dava relevo ao tema mais simples. Quando notava, porém, que se havia tornado o centro de uma conversação, recolhia-se imediatamente à sua simplicidade, preferindo ouvir.

O gosto pela harmonia era patente em todos os seus gestos, e não havia nada mais desagradável para ele do que uma atitude grosseira ou indelicada. Detestava sobremaneira as pessoas que tomavam atitudes violentas na exposição de idéias. "Atiram-nos à cara o cuspo violento das paixões. E é por isso que eu gosto cada vez menos dos russos. Só os tolero em dose limitada, como sucede com os licores" - confessou-me. O sossego parecia ser o ambiente sem o qual não poderia viver, de tal modo que ficava doente se tomasse lugar num eléctrico demasiado cheio ou permanecesse num local onde houvesse barafunda.

Paralelamente a esta simplicidade e delicadeza, observava-se o seu gosto pela ordem, pelo asseio e pela metículosidade. Apesar dos seus limitados recursos, era extremamente exigente no vestuário, sabendo aliar a elegância com a sobriedade de um bom gosto que primava pelo esmero, em que punha sempre a nota particular de um cunho pessoal. Tinha prazer extremo em certas minudências deficadas, como, por exemplo, no uso de um pequeno fiozinho de prata à volta do pulso. Certo dia, estava preparando a mala de viagem. Quis ajudá-lo, mas Rilke recusou delicadamente a minha oferta, pois tinha gosto em colocar cada objecto no lugar que lhe havia destinado, operação que eu não poderia fazer. E reconheci que tinha razão, porque a mala ficou depois arrumada com a precisão de um tabuleiro harmonioso, onde havia um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar. Este sentido de ordem manifestava-se até nos mais pequenos pormenores da sua vida quotidiana. Na correspondência, por exemplo, utilizava sempre papel impecável, escrevia com suma perfeição, mantinha uma paginação esmerada e não admitia um borrão ou uma palavra riscada, mesmo que se tratasse de simples cartas sem importância. Quando uma palavra ou uma oração não lhe agradavam, tinha a estóica paciência de recomeçar novamente outra carta, pois nunca Rilke teria consentido em fazer qualquer coisa que não estivesse perfeita.

O seu exemplo era comunicativo, pois seria tão inconcebível admitir a hipótese de um Rilke violento e vulgar, como a de que houvesse alguém que estivesse na sua presença e não fosse imediatamente influenciado pelo respeito que emanava espontaneamente do seu aspecto ponderado e calmo. A personalidade moral de Rilke era uma força, perante a qual se curvavam a irreverência e o despropósito. Era impossível conversar com ele, sem se sentir o fluxo calmante da sua influência superior. Mas esse respeito mantinha, porém, naturalmente, certa distância entre o poeta e as pessoas que com ele tratavam. Por essa razão, creio serem raros aqueles que se podem ufanar de uma amizade íntima com Rilke.

Lendo as colecções das suas cartas, publicadas em seis tomos, nota-se que só muito excepcionalmente dá a alguém o título de amigo, e, em relação ao fraternal tratamento por tu, dir-se-ia que era hábito perdido já desde os bancos da escola. A delicadeza extremamente requintada do seu espírito não permitia familaridades demasiado íntimas, e os contactos rudes e bruscos causavam-lhe verdadeiro e evidente desagrado. Essa sua preferência pelas coisas delicadas, levava-o a aproximar-se de tudo o que era feminino e a evitar a masculinidade.

Escrever a uma senhora ou falar pessoalmente com ela era-lhe muito mais agradável do que escrever ou conversar com um homem. Suponho que esta preferência se fundava na maviosidade da palavra feminina, pois Rilke tinha horror pelos sons guturais.

Certo dia, tive ocasião de assistir à conversa que ele teve com um proeminente aristocrata, e posso afirmar que, durante ela, se manteve numa atitude de reverência e nem uma só vez levantou os olhos para o seu interlocutor. Não queria que o aristocrata descobrisse nas expressões da sua fisionomia o desagrado que a farsa lhe causava. Mas como Rilke era gentil e amável com as pessoas que estimava! Poderia ser ainda um tanto parcimonioso, mas a bondade do seu espírito tornava-se então realidade, conquistando e atraindo invencivelmente.

Sendo naturalmente retraído, Rilke sentia-se contudo mais à vontade em Paris, nessa imensa cidade cativante. Creio que o facto era devido a que, então, ainda o seu nome e a sua obra não eram bem conhecidos nesse grande centro. Sentia-se feliz com um anonimato que lhe permitia viver mais livremente. Tive ocasião de o visitar em dois diferentes quartos alugados em que viveu e, apesar de modestos, notava-se no seu ambiente a nota particular que o bom gosto do poeta lhes sabia imprimir. Eram dois oásis, onde reinavam o silêncio e a paz que tanto amava. Preferia um simples quarto onde pudesse viver à vontade. Não importava que não fosse faustoso, pois o fundamental era que o seu retiro não fosse perturbado por vizinhanças desagradáveis. Punha toda a atenção e carinho no arranjo interior da pequena moradia, que poderia não possuir móveis luxuosos, mas tinha sempre flores, oferecidas por dedicadas mãos femininas, ou, por vezes, levadas até pela requintada delicadeza do poeta. Outra nota que imediatamente se destacava era a dos livros, que, como amigos íntimos e silenciosos, mereciam a sua particular atenção e estima. Sobre a secretária alinhavam-se ordenadamente lápis e canetas, e repousava sempre um impecável bloco de folhas de papel branco. Um ícone russo e um crucifixo católico, imagens que, segundo creio, sempre o acompanhavam nas suas viagens, davam ao conjunto uma nota de religiosidade, muito embora Rilke não comungasse em nenhum credo particular. Todo o aposento denotava, enfim, uma preocupação de ordem e equilibrado bom gosto, características que se observavam também em todas as suas acções. Se alguém lhe emprestava um livro, era certo que, quando o devolvesse, havia de embrulhá-lo cuidadosamente em papel de seda, e, atá-lo com uma fitinha de cor, como geralmente se faz com os presentes. Não esqueci ainda o extremo carinho com que veio entregar-me- o manuscrito de Weise von Liebe und Tod (1) e ainda hoje tenho em meu poder a fita que o envolvia.

Rilke sabia descobrir o que havia de belo nas coisas mais simples e vulgares. Não me esqueço do encanto com que passeava com ele por Paris, onde a sua atenção se prendia nas mais pequenas minudências. Chegava a pronunciar em voz alta os dístico

 

(1) Do Amor e da Morte.

 

que se lhe deparavam, quando notava que encerravam harmonia. Interessava-lhe tudo o que dissesse respeito a Paris, cujos cantos e recantos queria ver e conhecer. Era quase uma paixão.

Certa ocasião, tendo-nos encontrado em casa de um amigo, disse-lhe que no dia anterior tinha acidentalmente visto o cemitério de Picpus, na velha Barrière. onde jaziam as últimas vítimas da guilhotina, entre as quais estava André Chénier. Descrevi-lhe a tristeza imensa que pairava sobre esse campo solitário em que reinava a morte, esse campo que quase nenhum turista visitava. Depois acabei por lhe contar que, no regresso, numa das ruas circunvizinhas, vislumbrara, através da porta de um convento, uma espécie de penitente rondando e contando as contas do rosário, numa atitude que já não pareça deste mundo, de tal modo o quadro era piedoso e dir-se-ia irreal. E eis que o poeta calmo e doce se sentiu subitamente preocupado, dizendo-me que queria visitar a sepultura de André Chénier e desejava ver esse convento perguntando-me se não estaria disposto a acompanhá-lo.

Acedi ao seu desejo, e fizemos a visita logo no dia seguinte. Em presença desse cemitério desolado e triste Rilke ficou numa atitude de místico êxtase, balbuciando que aquele era "o cemitério mais poético de Paris". Depois voltámos para trás, para ver o convento, mas, como a porta estivesse fechada, logo a persistência de Rilke, tão visível na sua obra como na sua vida, teve ocasião de se manifestar. "Esperemos" - disse ele "talvez consigamos ver alguma coisa, colocando-nos em posição de relancear a vista para dentro, no caso de o portão se abrir". Esperámos cerca de vinte minutos, mas ninguém entrava ou saía. De repente, surge na rua uma irmã de caridade, caminhando na nossa direcção. Tendo chegado ao convento, tocou à campainha, "É agora" - murmurou Rilke, baixinho. Mas dir-se-ia que a religiosa tinha adivinhado o seu intento - mencionei já que não era difícil ler-lhe no semblante os seus estados de espírito-'pois, voltando-se para ele, perguntou se estava à espera de alguma pessoa. Rilke sorriu, com aquela sua tão peculiar inocência que logo infundia simpatia, e confessou que teria imenso desejo em ver o claustro. A irmã respondeu com outro sorriso, dizendo que tinha muita pena mas que não lhe podia ser agradável. Aconselho-u-o, porém, a dirigir-se à casa do jardineiro, que se encontrava ali mesmo, ao lado, e de cujo segundo andar se via perfeitamente o convento. E desta vez conseguiu, como quase sempre sucedia, atingir os seus objectivos.

O destino ainda nos colocou depois, várias vezes, noutros pontos, em presença um do outro, mas, sempre que me lembro de Rilke, vejo-o em Paris, nessa cidade de cuja história ele teve a felicidade de não assistir à hora mais dolorosa.

O contacto com homens desta natureza tão extraordinária é, naturalmente, de suma importância para a formação da tempera de um espírito. Mas eu ainda não havia recebido a lição decisiva, aquela que o acaso me havia de oferecer e cujo efeito se fez sentir em toda a minha vida. Foi o caso que, tendo visitado Verhaeren, tomei parte numa discussão com um crítico de arte, o qual pretendia que a Escultura e a Pintura estavam em pleno declínio, Imediatamente manifestei a minha discordância com esse critério, apontando Rodin que, decerto, não era inferior aos artistas de outrora.

com a natural paixão dos que defendem afincadamente uma idéia que outros contrariam, enumerei, quase com despeito as obras do artista. Verhaeren, em cuja fisionomia se desenhara uma nota de íntima e intraduzível satisfação, disse, por fim: "Muito bem; mas, quem tem tanta admiração por Rodin, deveria conhecê-lo pessoalmente. Amanhã vou ao seu estúdio. Pode vir comigo, se não lhe desagrada".

Foi uma revelação, pois a expectativa de tal visita tirou-me até a vontade de dormir. Mas quando, no outro dia, me encontrei em frente do grande artista, devo confessar que fiquei simplesmente mudo. Dir-se-ia uma estátua entre estátuas. Mas parece que o meu acanhamento teve o condão de lhe agradar, porque, quando nos despedimos, o venerável ancião teve a gentileza de me perguntar se não seria da minha vontade visitar o seu estúdio de Meudon, o mais importante, terminando depois por me convidar para almoçar na sua companhia. E foi assim que recebi a perdurável lição de que os homens mais geniais são também os mais bondosos. Depois, recebi ainda outra lição, a segunda, a qual consistia em adquirir a certeza de que os homens superiores são também os mais modestos na intimidade. O exemplo oferecia-o Rodin, o gênio cuja fama dera a volta ao mundo e cuja obra suscitara o mais fervoroso aplauso da nossa geração. Vivia e alimentava-se tão simplesmente como qualquer pequeno camponês, pois o seu almoço constava de um bom prato de carne, azeitonas, muita fruta e um magnífico e delicioso vinho regional. Essa augusta simplicidade dispôs-me bem. Tornei-me loquaz, pois adquiri a impressão de que a nossa amizade já datava de há muito. Quando a refeição terminou, subimos ao estúdio, grande salão onde o mestre trabalhava e onde tinha os esboços ou cópias das suas obras e uma infinidade de pequenos estudos, quase todos em gesso - uma mão, uma orelha, um braço, as crinas de um cavalo, etc. Guardo uma impressão indelével dos agradáveis momentos que passei nesse salão, e necessitaria de muitas horas para poder descrever as emoções que ali vivi. Depois de um rápido relance, Rodin parou em frente de um pedestal. Era aí que estava o esboço da obra em que o artista naquela altura trabalhava. Ergueu as grandes mãos rústicas de camponês e retirou os panos húmidos que a envolviam, afastando-se depois um pouco. Era um busto de mulher. Contemplando-o, saiu imediatamente do meu peito um irreprimível: - Admirable!

Rodin, que parecia extasiado, limitou-se a responder ao meu vulgar encómio - que eu já lamentava ter proferido - com um simples N'estce pás

Continuava em frente do esboço e dir-se-ia hesitante, mas logo tomou uma súbita resolução. Tirou o casaco, vestiu a blusa branca e murmurou -"Dê-me licença... é só um momento. Precisa de um retoque no ombro". E, empunhando a espátula, alisou a epiderme delicada e fina daquele busto de mulher, que parecia arfar. Depois recuou um pouco, para observar o efeito do retoque, aproximou-se e recuou ainda, rectíficou aqui e além, girou e contemplou a figura num espelho fixando-se em pormenores de quase imperceptível delicadeza. Estava completamente absorto na obra, andando, girando, retocando, ao mesmo tempo que murmurava monossílabos ininteligíveis. Os olhos, que antes pareciam plácidos estavam agora fulgurantes, e dir-se-ia até que o êxtase em que o artista se encontrava lhe transmitia o fulgor de uma nova juventude. Dava-se inteiramente à obra, trabalhando-a com toda a dedicação da sua alma. Dir-se-ia que estava ausente, que os ouvidos não notavam o ruído que as tábuas do soalho faziam, rangendo sob a mole pesada do seu corpo, e que nem sequer via que, ali, embevecido, estava em silêncio um jovem gozando com a felicidade de poder contemplar a dedicação genial de um artista tão insigne. De facto, Rodin esquecera-se da minha presença. Naquele momento, ele só via a sua obra, só existia para ela, que visionava no nimbo da suprema perfeição. Rodin manteve-se assimm durante um quarto de hora, talvez meia hora. Nem sei bem, porque há momentos que não se podem medir com a bitola do tempo, O seu enlevo criador aumentava de intensidade, tornando-se quase numa alucinação febril. Ia e vinha, contemplava e alisava. Estava tão intimamente absorto no seu sonho criador que nem o ribombar de um trovão seria capaz de o despertar. Contudo, tendo atingido certo paroxismo, notei que as mãos perdiam agilidade. O seu ritmo decrescia, reconhecendo, talvez, que já nada mais tinha a fazer. Deu ainda mais alguns passos à volta da obra, contemplou-a num último relance, fez um gesto de assentamento, cobriu novamente o busto com a gentileza e o carinho com que se põe um xaile aos ombros de uma mulher amada e lançou um suspiro fundo. Voltara à realidade da vida física. Extinguira-se a chama criadora que o havia santificado.

E deu-se então aquilo que eu nunca poderia suspeitar, a outra grande lição: Rodin tirou a blusa, vestiu novamente o casaco e dirigiu-se para a porta. A exaltação artística em que estivera embevecido fora tão forte que já nem sequer se lembrava de que me havia convidado a visitar o seu estúdio e me estivera mostrando as suas obras, e que eu fora testemunha silenciosa, estátua entre estátuas, do seu arrebatamento criador! Mas eis que, de repente, quando já se preparava para fechar a porta, repara em mim. No seu semblante desenha-se um ar de espanto, de desagrado. Quem está aí - parece dizer consigo próprio. Então, desperta e, tornando-se quase suplicante, avança para mim e exclama! Pardon, monsieur! Ia justificar-se, mas impedi-o de o fazer, apertando-lhe a mão, essa mão que senti o sincero desejo de beijar. E, naquele momento solene e único na história de toda a minha vida, recebi a perdurável lição que me revelava o segredo eterno que dá vida às obras geniais - a dedicação suprema do artista pelo seu sonho, dedicação que o coloca fora do mundo da vida vulgar; a concentração de toda a sua energia na idéia que o anima. E foi uma lição que nunca mais esqueci.

Tinha decidido sair para Londres nos últimos dias de Maio. Mas um inesperado e desagradável acontecimento, que de resto me elucidara acerca da maneira de ser de algumas esferas sociais em França, forçara-me a apressar a minha anterior decisão e a abandonar o domicílio que tanto me encantara.

Foi o caso que, tendo aproveitado as festas do domingo e segunda-feira de Páscoa para ir visitar, na companhia de alguns amigos, a bela catedral de Chartres, que desconhecia, ausentei-me de casa. Quando regressei na terça-feira, quis mudar de roupa e não encontrei a minha mala, a qual, durante os vários meses da minha hospedagem, estivera arrumada a um canto do quarto.

Desci imediatamente para comunicar o caso ao proprietário, um marselhês rubicundo, gordo e baixo, que passava os dias sentado numa espécie de pequeno gabinete, junto da porta do hotel. Sempre ali havia alguém quando não estava ele, estava a esposa. Chegámos a adquirir alguma familiaridade, e lembro-me que até jogámos algumas partidas de trick-track, seu jogo predilecto, no café que ficava em frente. Logo que teve conhecimento do que ali me levava, ficou indignado, e, batendo com o punho em cima da mesa, exclamou "Era o que faltava! ", exclamação à qual eu não sabia que sentido atribuir. Começou então a explicar-me o que se havia passado, enquanto vestia apressadamente o casaco - estava quase sempre em mangas de camisa -, tirava os cômodos chinelos e calçava os sapatos.

Antes de relatar o que sucedera, convém mencionar um hábito geralmente seguido em Paris, em todos os pequenos hotéis, e até em muitas casas particulares, pois só assim se compreende o percalço de que fui vítima. Nesses hotéis, é o porteiro, o concierge. quem está encarregado de abrir ou fechar a porta da rua. Para o fazer, porém, não tem necessidade de se deslocar até à porta, pois esta abre-se, desde que ele accione um dispositivo especial que a faz abrir. O movimento de hóspedes é tão limitado que se não justifica a presença dum porteiro durante toda a noite. Assim, quando, por vezes já deitado, ouve, ainda meio sonolento, o clássico lê cordon you plait, põe o dispositivo em acção. Como quem sai tem de fazer esse pedido e quem entra deve dizer quem é, não é fácil que uma pessoa estranha possa entrar ou sair sem ser notada, pelo menos em princípio. O certo, porém, é que, na noite anterior e durante a minha ausência, alguém batera à porta às duas horas da madrugada e, entrando, pronunciara um nome que parecia ser o de um dos hóspedes. Agarrou na chave de um quarto, que pendia de um prego no quadro que para esse efeito se encontrava na portaria, e subiu.

É evidente que o Cérbero tinha o insofismável dever de identificar o noctâmbulo. Bastava para isso olhar através do vidro da porta do gabinete, mas não tomou essa precaução. Estava com muito sono, certamente. Mas quando, um pouco mais tarde, ouviu uma voz que da parte de dentro pedia: lê cordon, s'il vaus plait, foi então que caiu em si e achou o caso estranho, tanto mais que ainda há pouco abrira a porta e não era normal que um hóspede saísse de madrugada. Então, levantou-se e veio observar quem saíra. Estava com roupa ligeira e tinha enfiado à pressa os chinelos nos pés, mas ao ver que a pessoa que saíra levara uma mala, lançou-se no seu encalço, pois suspeitara de qualquer coisa de anormal. Ao dobrar a primeira esquina, essa pessoa entrou num pequeno hotel da Rue dês Petits Champs, e o bom do proprietário, julgando que de nenhum modo se poderia tratar de um malfeitor, voltou para trás e regressou de novo, tranqüilamente, aos seus lençóis.

O logro em que caíra revoltava-o. Acompanhou-me logo à esquadra mais próxima e dali pediram informações ao hotel da Rue dês Petits Champs, de onde comunicaram que a mala ainda ali estava, não sucedendo outro tanto com o ladrão, que acabara de sair para tomar o pequeno almoço em qualquer café circunvizinho, segundo julgavam. Imediatamente foram destacados dois agentes à paisana para o deterem, quando regressasse. De facto, foi o que sucedeu, quando o homem, que certamente estava longe de adivinhar a sorte que o esperava, chegou à porta do seu hotel, daí a meia hora.

Pouco depois, fomos chamados ao Governo Civil. Levaram-nos à presença de um corpulento funcionário, cujo ar jovial e descomunal bigode tinham qualquer coisa de estranho. Trazia o casaco desabotoado e estava sentado em frente de uma secretária que não primava pela ordem, pois abarrotava de documentos. A atmosfera do gabinete era irrespirável, empestada por odores e fumo de tabaco; e uma grande garrafa de vinho, bem à vista, provava que nos encontrávamos em presença de uma pessoa que não era abstêmia, evidentemente. Deu ordem para que trouxessem a mala, a fim de que eu a reconhecesse e visse se faltava alguma coisa. O único objecto que aparentemente poderia ter mais valor teria sido um cheque de dois mil francos. Contudo, após cinco meses de permanência em Paris, era um documento que já não estava muito bem conservado e, de resto, não podia ser utilizado por outra pessoa. Encontrei-o tal qual o deixara, no fundo da mala. Assinei então uma declaração, mencionando que a mala era minha e se encontrava intacta. Depois de haver satisfeito estes requisiitos, o funcionário deu ordem para que trouxessem o gatuno à nossa presença. Confesso que o esperei com verdadeira ansiedade. Como seria - perguntava a mim próprio, curioso.

Dentro de pouco, apareceu a estranha personagem um pobre diabo com cara de fome, cuja magreza parecia ainda mais lamentável, se a comparássemos com o aspecto hercúleo dos dois agentes que o custodiavam. Era, sem dúvida, um principiante. O fato estava no fio e não usava gravata. Um pequeno bigode punha uma nota escura na sua triste e desolada fisionomia. Era um esqueleto ambulante, um ladrão simplório. Se o não fosse, teria abandonado o hotel da Rue dês Petits Champs com a mala, logo de manhãzinha. E ei-lo agora, ali. envergonhado, de olhar baixo, temeroso do ditame da justiça.

Contemplando-o, notava que não era apenas dó o que ele me inspirava, mas sim, confesso, um pouco de qualquer coisa que talvez se pudesse chamar simpatia. Este sentimento dilatou-se ainda mais quando um guarda apresentou os singulares objectos que tinham encontrado na revista passada ao pobre desgraçado - um lenço, roto e muito sujo, uma argola com uma colecção de chaves falsas, gazuas e uma carteira velha. Não tinha armas, por fortuna, o que provava, pelo menos, que se estava em presença de um gatuno que agia com alguma técnica, mas de índole pacífica.

Quando viram o que a carteira continha, operação feita na nossa presença, todos os assistentes ficaram estupefactos, não porque encerrasse notas de mil francos, pois não as tinha de nenhum valor, mas porque guardava vinte e sete fotografias de dançarinas e actrizes em voga, seminuas, entre as quais se destacavam duas ou três sem "semi". A descoberta indicava que o pobretana não era insensível à beleza e que, visto não poder albergar a esperança de possuir verdadeiramente as estrelas que adorava, queria tê-las junto do coração, pelo menos em fotografia.

O funcionário policial passou em revista todas essas fotografias de mulheres nuas e quase nuas, com uma atitude de severidade gravada no rosto, como as circunstâncias exigiam. Notei, contudo, que não deixara de observar com certo espanto essa inclinação artística num delinqüente daquela natureza, tendência que também causara a minha admiração. Esta última circunstância aumentara em mim a simpatia que o pobre já me havia inspirado, de tal modo que foi com um rotundo não que respondi ao funcionário, quando este, empunhando a caneta, me perguntou se queria apresentar queixa contra quem me roubara a mala.

Devo abrir aqui um pequeno parêntesis para justificar a razão dessa pergunta. Na Áustria, como em muitos outros países, as conseqüências de um delito são inevitáveis, porque é o próprio Estado que se encarrega da aplicação da justiça, processando a pessoa

que prevarica. Em França, porém, não sucede assim, visto que o lesado tem liberdade de acção. Só se queixa se entender que o deve fazer. Tenho a impressão de que as regras de Direito que mantêm a possibilidade de opção tornam a lei mais justa e mais humana, pois deixam ao ofendido a liberdade de perdoar, o que, por exemplo, nunca pode suceder na Alemanha onde a esposa que, num acesso de ciúme, dispara um revólver contra o amado, é inexoravelmente processada, mesmo que a vitima interceda a seu favor e lhe perdoe. Apesar de todas as súplicas, o Estado considera-se com o direito de intervir, processa e lança a mulher na prisão, essa mesma mulher a quem o marido já perdoou e que talvez até ame mais depois da cena de paixão que a alucinou. Em França, num caso dessa natureza, ainda seria possível que os dois amantes voltassem para casa de braço dado, reconciliados, solucionando, sem mais delongas nem complicações, os seus pesares.

Mal acabara de pronunciar o bem firme e decidido "não", deu-se outro inesperada acontecimento. O acusado, que, entre os dois guardas, parecia completamente abatido, tomou subitânea coragem, ergueu a cabeça e dirigiu-me um olhar de agradecimento que nunca ma poderei esquecer.

O funcionário pareceu ficar contente com a minha decisão, que lhe evitava a maçada de escrevinhar, pois tomou um ar satisfeito e pôs logo a caneta em cima da secretária. Mas outro tanto não sucedeu com o proprietário do hotel que, irado, me desaprovava completamente, alegando que o meu procedimento era insensato, pois aquilo que a mim me parecia um gesto de clemência era apenas um incentivo. Barafustava, dizendo que eu nem sequer ima-ginava o mal que esses homens faziam, e não estava bem que uma pessoa honrada fosse obrigada a manter-se sempre alerta por causa deles e que quando apanhasse um o deixasse escapar. Era a mentalidade estreita de um pequeno burguês que irrompia, em cuja revolta havia um misto de sinceridade, honradez, e comodismo. Fora perturbado na monotonia da sua ordenada existência, e não estava disposto a ceder. Tornou-se mesmo impertinente, exigindo-me que mudasse de atitude. Mas a minha decisão estava tomada. Esclareci que havia encontrado a mala e que, por isso mesmo, não havia razão para queixa. O assunto estava liquidado, tanto mais que eu nunca entrara em litígios com ninguém e tinha grande satisfação em ir almoçar tranqüilamente o meu bife, sem ter de me lembrar que outra pessoa, por minha causa, teria de ir comer o rancho da prisão.

O hoteleiro mantinha-se contudo firme no seu propósito de vingança. A sua irascibilidade aumentava e quando o funcionário lhe comunicou que eu era a única pessoa que devia decidir, tomou uma atitude que manifestava plenamente como era grande a sua decepção - deu meia volta e, batendo violentamente com a porta, deixou o aposento. O funcionário teve um leve sorriso condescendente, levantou-se e, estendendo-me a mão, deu a entender que não lhe desagradava a maneira como o assunto fora liquidado, e que, assim, a sua missão tinha terminado.

E foi então que se deu um novo e extraordinário episódio. Quando me inclinei para tomar posse da minha mala e levá-la para o hotel, o gatuno aproximou-se humildemente de mim e murmurou Oh, non, monsieur. "Sou eu mesmo quem a vai levar ao seu hotel, se me dá licença". E foi assim que regressei ao meu quarto, gentilmente seguido pelo meu ladrão.

Poderia supor-se que um acontecimento tão desagradável tinha enfim terminado da melhor maneira possível e que o assunto da mala estava definitivamente liquidado. Mas tal não sucedeu, pois à sua volta nasceram ainda mais dois episódios, que muito contribuíram também para me elucidar acerca da bonomia de certos hábitos franceses.

Foi o caso que, quando, no dia seguinte, fui visitar Verhaeren, este recebeu-me com um sorriso levemente irônico, dizendo: "Tem aventuras, de facto, inacreditáveis em Paris. Depois, devo confessar-lhe que estava longe de o imaginar tão rico "

Fiquei na verdade, perplexo com o cumprimento e, ante o meu espanto, Verhaeren mostrou-me o jornal, onde, com todo o relevo, se relatava o acontecimento que eu já havia esquecido. Confesso, porém, que só muito dificilmente descobri que se tratava do caso da minha mala, pois a notícia apresentava os factos de tal modo que os transformava em rocambolesca aventura. Era realmente uma peça jornalística de invulgar habilidade! Um estrangeiro distinto - assim começava o relato, onde eu adquiria tonalidades de pessoa ilustre, para que o efeito fosse mais sensacional. -foi ontem, num hotel do centro da cidade, vítima de um audacioso roubo. Um hábil gatuno, operando com suma perfeição e que decerto conhecia os costumes da casa, conseguiu introduzir-se no hotel e levar dali uma mala que continha objectos insubstituíveis e de grande valor, entre os quais se encontrava um cheque no valor de vinte mil francos. (A notícia transformara dois mil francos em vinte mil, e classificava camisas e gravatas como objectos de grande e insubstituível valor). Depois afirmava-se que o caso seria difícil de investigar, visto que o gatuno tomara todas as precauções e não deixara vestígios. Contudo, graças à enérgica e rápida acção do senhor comissário Fulano de Tal, foram imediatamente tomadas todas as providências necessárias, que deram como resultado a imediata prisão do malfeitor. com uma simples ordem telefônica, o mencionado funcionário ordenou que fossem logo revistados certos hotéis e pensões da cidade, e a essa acertada medida se deve o bom êxito da operação, que mereceu os mais rasgados elogios das autoridades superiores da Polícia, que louvaram justamente o comissário senhor Fulano de Tal, visto, com a sua perícia, ter posto à prova a magnífica organização e eficácia dos serviços policiais de Paris.

Nada havia de verdadeiro nesta fabulosa notícia, pois o comissário nem sequer tivera o trabalho de se levantar da cadeira onde o fomos encontrar e podia até dizer-se que tanto o gatuno como a mala haviam também sido levados por nós à sua repartição. Contudo, o caso oferecera-lhe ocasião oportuna para fazer certa publicidade à volta do nome.

A única pessoa que perdeu com a aventura fui eu, afinal, pois, desde então, o proprietário do hotel, antes tão amável, fez tudo o que pôde para tornar indesejável a minha permanência na casa. Quando descia a escada e cumprimentava gentilmente a sua mulher, esta não correspondia à minha saudação, e virava grosseiramente a sua plácida cara de pessoa anafada, simulando não dar pela minha presença. O criado também já não fazia o serviço com a mesma dedicação e até as cartas se perdiam misteriosamente. Mas a atmosfera de antipatia não se limitava apenas ao hotel: chegara à tabacaria, onde sempre fora considerado "bom freguês", graças às minhas invülgares compras de artigos para fumador, e dilatara-se pela rua e até por todo o bairro. Notei que em toda a parte olhavam para mim com certa frieza. Era evidente que, não procedendo contra um ladrão, tinha ofendido a moral consagrada. compreendi, pois, que o único cam'nho que deveria seguir seria o de agarrar na minha mala e fugir dali, como se fosse eu o delinqüente. E foi o que fiz.

Vindo de Paris, recebi em Londres aquela impressão que se sente quando, num dia de grande calor, entramos subitamente numa zona de temperatura mais baixa: invade-nos uma espécie de calafrio de certa duração, mas em breve nos adaptamos e sentimos à vontade. Tinha-me imposto a obrigação de passar dois ou três meses na Inglaterra, primeiro porque era natural que quem desejasse conhecer o mundo começasse por estudar o país que há já alguns séculos o traz jungido às duas directrízes e, depois, porque desejava limar o meu tosco inglês, que, na verdade, nunca se tornou fluente, submetendo-o à prova da conversação e da convivência diária no ambiente britânico. Mas não era fácil atingir o fim em vista, pois, a exemplo do que sucede com quase todos os continentais, tinha um conhecimento muito superficial dos usos e costumes do país. Essas deficiências manifestaram-se imediatamente nas primeiras trocas de impressões e colóquios à hora do almoço ou em pequenos encontros na pensão onde me hospedara. Falava-se acerca da corte, das corridas de cavalos ou das reuniões elegantes, mas as minhas dificuldades de compreensão eram manifestas. O mesmo sucedia quando se discutiam assuntos políticos, pois eu não podia adivinhar que quando falavam de Joe se queriam referir a Chamberlain e falando dos Sirs tinham o hábito de só os designar pelos nomes próprios o que também não trazia facilidades. E nem vale a pena aludir ao cockney dos cocheiros, pois para essa linguagem tinha eu os ouvidos como que completamente obturados com cera. E eis porque os meus progressos ficaram muito aquém daquilo que eu poderia esperar.

Fui algumas vezes às igrejas para ouvir o inglês impecável dos sermões, duas ou três vezes ao tribunal e aos teatros, sempre em demanda de erudição. Mas só muito dificilmente podia encontrar aquilo que em Paris vinha a cada momento ao meu encontro: sociabilidade e franco espírito de camaradagem. Não encontrava sequer com quem discutir os assuntos que mais me interessavam, e é possível que os ingleses que me conheceram me achassem bizarro e de certo modo intratável. Para isso talvez contribuísse muito a minha decidida indiferença, para não dizer antipatia, pela política. Não tendo conseguido relacionar-me com pessoas do meu temperamento e não tendo encontrado um círculo de afinidades, passei em casa, trabalhando, ou no Museu Britânico, a maior parte do tempo que estive em Londres.

Nos primeiros oito dias palmilhei a cidade de lês a lês. Sentia-me com um desejo quase infantil de ver todas as curiosidades que a grande cidade oferece aos visitantes, desde Madame Tussaud ao Parlamento. Comecei a beber cerveja, e substituí os meus cigarros parisienses pelo clássico cachimbo. Enfim, fiz denodados esforços para me adaptar ao ambiente, mas confesso que nunca consegui penetrar realmente na vida íntima inglesa, nem na vida de sociedade, nem na puramente intelectual. Dir-se-ia que apenas me era dado observá-la de fora como estranho. Ora, quem vê a Inglaterra desta maneira conhece tanto a vida desse país como o transeunte que, passando pela City, julgasse que conhecia os riquíssimos Bancos e Companhias dessa artéria, somente porque tinha visto as suas tabuletas.

Se sucedia ser levado a um clube, recebia logo uma sensação de contrariedade. Ficava atônito, obnubilado. O conforto que ali se respirava parecia não ser feito para mim, e não estava tão cansado pelo esforço fisico que sentisse deleite em refestelar-me em magníficas poltronas. Dir-se-ia que Londres não tinha simpatia pelo simples diletante, pelo observador despreocupado, sobretudo se ele não era suficientemente rico para dar um cunho de nobreza ao seu diletantismo. Trazia o vácuo à sua volta, ao contrário do que sucedia em Paris, onde todas as portas se abriam para o receber.

Eu não fora perspicaz, era evidente. Cometi uma falta, que só conheci quando já era demasiadamente tarde. Teria aprendido alguma coisa se durante os dois anos que estive em Londres me tivesse dedicado a qualquer ocupação social, se tivesse sido, por exemplo, estagiário em qualquer casa comercial ou secretário na redacção de um jornal. Mas, colocado à margem, abandonado apenas à doce tranqüilidade do meu ócio, limitei imensamente o horizonte da minha visibilidade. Só muito mais tarde tive ocasião, durante a guerra, de ficar com uma idéia acerca da verdadeira Inglaterra.

Dos poetas ingleses apenas tive ocasião de conhecer Artur Symons, o qual me convidou um dia para ir a casa de W. B. Yeats, cujas poesias eu admirava, tendo até traduzido parte do seu magnífico drama em verso The Shadowy Waters (1). Estava longe de supor que ia assistir a um pequeno sarau para o qual haviam sido convidadas apenas algumas pessoas mais íntimas. Contudo, como a sala era pequena, estávamos muito apertados, havendo até quem se sentasse em simples bancos ou mesmo no chão. Quando Yeats chegou, acendeu duas grandes velas idênticas às que se põem nos altares, colocando uma a cada lado de uma estante que, se não era preta, estava, pelo menos, forrada de negro. Depois apagaram-se todas as outras luzes do aposento e Yeats preparou-se para a leitura. Os traços bem expressivos da sua fisionomia e as madeixas do cabelo desenhavam-se estranhamente à luz trêmula dos círios,

A recitação estava impregnada de verdadeira solenidade. Yeats leu vagarosamente, num tom melodioso e profundo destacando as rimas, mas não chegando nunca à declamação. Foi realmente belo. à parte o cenário daquele fundo escuro e tremeluzente onde Yeats aparecia como uma espécie de sacerdote, e o incenso que parecia evolar-se das pálidas chamas das velas. Em vez de um sarau artístico, tratava-se com mais propriedade de uma cerimónia que fazia lembrar uma consagração, e que não deixava de me encantar, pelo que, para mim, encerrava de novidade. E insensivelmente veio-me à memória, pelo contraste que oferecia, a maneira bem diferente como Verhaeren procedia, lendo simplesmente as suas poesias, sem ritos, quase sempre em mangas de camisa, para ter mais liberdade de vincar com o gesto a cadênci'a do verso. E lembrava-me também de Rilke. que às vezes abria um livro e lia, sem ostentação, alguma poesia, dando apenas à palavra o lirismo que a rima exigia. Confesso que foi a primeira vez que assisti a um sarau poético tão cerimonioso, e, se é certo que, apesar da minha admiração

 

(1) "Águas Sombrias".

 

por Yeats, não gostei muito do ritual da sua festa, nem por isso deixei de agradecer a oportunidade de ter tomado parte nela.

Mas a mais notável descoberta que fiz em Londres, com referência à poesia foi a de William Blake, poeta que já não faz parte do número dos vivos e até estava já quase totalmente esquecido. Era um génio estranho, misantropo e enigmático. Fiquei tão seduzido pelas suas obras que, durante muito tempo, me dediquei ao estudo do labirinto e no entanto estranhamente grandioso das suas criaçõex tentando traduzir alguns desses versos para a língua alemã.

Imediatamente alimentei a esperança de poder adquirir alguns originais do artista, mas em breve reconhecia que o meu desejo não poderia transformar-se em realidade. Gostava de contemplar a figura estranha desse rei, dirigi'ndo-me da parede, olhando o quadro onde pendia, a mirada misteriosa do seu olhar. De tudo o que eu perdi ou de que estou forçadamente separado, nesta minha existência errante e solitária, lembro-me, freqüentemente, com saudade, desse magnífico desenho. É que Blake era, na verdade, o gênio que eu em vão procurava nas ruas de Londres e que subitamente me fora revelado, quando já havia perdido a esperança de o encontrar. Descobrira, enfim, outro motivo de admiração neste mundo.

 

               Na estrada do meu destino

Viajar era um prazer e, também, com certeza, uma forma de estudo. Vagueara por Paris, Inglaterra, Itália, Espanha, Bélgica e Holanda, num permanente estar e não estar.

Surge, porém, um momento em que sentimos a necessidade imperiosa de nos fixarmos em qualquer parte, e -" mais do que nunca o reconheço, agora, que as minhas viagens não são mais que uma odisséia migratória - de ter no mundo um ponto certo de onde partir e aonde regressar.

Precisava absolutamente de encontrar esse ponto de referência, tanto mais que, desde que saíra da escola, os livros, acumulados, constituíam já uma pequena biblioteca, à qual se juntavam quadros e outras recordações. Os meus manuscritos formavam montanha, e evidentemente a minha preciosa bagagem já era demasiado pesada para me acompanhar nas andanças pelo mundo. Tomei então a decisão de estabelecer residência em Viena, se bem que transitoriamente apenas. À minha casa séria só uma espécie de p'. edàterre (1).

 

(1) Casa onde se vive temporariamente.

 

expressão com que os franceses designam aquilo que eu, de facto, desejava ter. A idéia do provisório esteve sempre fortemente arreigada no meu espírito até à primeira Guerra Mundial. O que fazia tinha o caracter de simples tentativa ou experiência, em vista de um objectivo ulterior a atingir. Tudo era transitório, desde os meus trabalhos até às relações amorosas. Parecia-me ainda não ter atingido a plenitude, e este sentimento permitia-me encarar a minha mocidade com certa benevolência e liberdade de acção. Estava convenc. do de que, apesar de tudo ainda era bastante novo e tinha muito tempo diante de mim. E esta convicção originava a minha relutância em contrair responsabilidades e estabelecer situações definitivas, apesar de ter atingido a idade em que outros, já casados e com filhos, haviam conquistado boas posições na vida e procuravam pôr em acção toda a sua energia. Assim, do mesmo modo que toda a minha actividade era apenas o que se poderia chamar um tirocínio que me permitiria alcançar um dia a "verdadeira e definitiva maneira de ser", uma espécie de simples cartão de visita que anunciava ao mundo intelectual a minha existência, assim queria eu que o meu domicílio fosse também um simples endereço.

Animado desse propósito, escolhi uma casa pequena nos bairros mais afastados da cidade, com a vantagem de não custar demasiado caro. Também não a mobilei luxuosamente, pois não estava disposto a tratar dos meus móveis com o carinho habitual em casa de meus pais, onde cada poltrona tinha a sua respectiva capa, que só se retirava quando havia visitas. Estava firmemente disposto a não criar em Viena uma situação que fosse susceptível de despertar o meu afecto, concentrando-o apenas num determinado ponto. Cheguei a pensar, por vezes que esta minha tendência para estar sempre preparado para partir com facilidade não era decerto muito agradável, mas depois quando as circunstâncias me obrigaram, mais tarde, a fazer e a desfazer continuamente o lar, reconheci que esse meu primitivo desprendimento tinha criado em mim um estado de espírito que, então, tinha certo valor, pois permitia-me olhar com mais estoicismo para o drama que me obrigava a apartar-me das minhas coisas e a partir para o desconhecido.

Nesse meu primeiro lar ainda não havia muitas preciosidades, mas já ali estavam o célebre desenho de Blake, que adquirira em Londres, e uma das mais belas poesias de Goethe, nos seus complicados caracteres gráficos. Esse original era um dos elementos mais importantes da colecção de autógrafos que iniciara durante a vida liceal. com a mesma paixão com que nós, os estudantes do meu tempo e do meu ambiente, então nos dedicávamos à poesia, cultivávamos também o gosto pelas assinaturas de poetas e artistas ilustres. com o tempo, e com o fim da nossa actividade escolar, essa paixão foi diminuindo de intensidade, e as assinaturas e poemas passaram a segundo plano. Contudo, essa tendência não desapareceu em mim - tomou apenas forma mais dilatada. Não eram os simples autógrafos, as assinaturas de poetas célebres que me despertavam a atenção esta apenas se concentrava nos originais manuscritos, na fonte primeira onde e como haviam sido delineadas e formadas as grandes obres da poesia, pois o que mais me interessava era o estudo das suas origens éticas e psicológicas. Será possível encontrar noutro lado, senão no original primitivo, o lento progresso da materialização da idéia ainda imprecisa e vaga da poeta, e que no ardor e na impetuosidade do seu êxtase criador vai tomando forma e corpo através dos caracteres gráficos? Creio, como Goethe, que só conhecemos verdadeiramente um artista através da análise da gênese e evolução do seu pensamento, e não simplesmente, na contemplação da sua obra, sobretudo quando esta já está concluída. Sinto, assim, verdadeiro prazer quando contemplo o emaranhado labirinto de um manuscrito de Beethoven. pequeno esquema em que o gênio revela toda a assombrosa magnificênci a do seu poder criador, escrevendo e riscando, notando e rectificando, na luta pela perfeição. Contemplo um velho e enredado manuscrito dessa natureza com a mesma paixão e encanto com que outra pessoa pode admirar uma obra-prima. Quando vejo um original de Balzac, onde quase todas as frases estão mutiladas, limadas, corrigidas e estilizadas, e as margens dos linguados cheias de anotações, sinto-me como que em presença de um Vesúvio humano, irrompendo medonhamente. Sempre que tenho oportunidade de contemplar, no original primitivo, os primeiros vagidos de uma poesia que me encanta, confesso que sinto nascer em mim um sentimento de religioso respeito por essa relíquia.

Tinha um invencível desejo de possuir documentos dessa rara natureza, desejo tão grande que quase tomava foros de mania. Esquadrinhava-os nos catálogos e nos leilões literários e não tem conta a longa série de emoções e imprevistos que essa verdadeira paixão originou no meu espírito.

Umas vezes chegava demasiado tarde, e o manuscrito desejado já tinha desaparecido; outras sucedia que o que eu queria adquirir era falso e mais além surgia qualquer outro imprevisto. Dava-se o caso que tinha um pequeno manuscrito de Mozart, cuja posse me dava apenas um prazer parcial, visto lhe faltarem fragmentos. Porém, de repente, recebia-se a notícia de que esse fragmento, tirado por um dedicado vândalo há cinqüenta anos ou há um século, estava em Estocolmo e ia ser leiloado. E eis que, com a sua aquisição, se entrava na posse completa da composição original, que o mestre tinha feito há cento e cinqüenta anos. Nesse tempo ainda os proventos da minha actividade literária não me permitiam adquirir muitas raridades, mas o prazer de se possuir um objecto adquirido com sacrifício aumenta certamente a estima que sentimos por ele. Mas tinha ainda a possibilidade de pôr à prova a dedicação dos meus amigos. Rolland ofereceu-me um exemplar do Jean Christophe; Rilke presenteou-me cem Dx Weise von Liebe und Tod, a sua obra mais célebre; Claudel enviou-me Annonce falte à Mane; Gorki dedicou-me um longo estudo e Freud distinguiu-me com um tratado científico. Sabiam perfeitamente que nenhum museu guardaria os seus manuscritos com mais carinho e dedicação do que eu. Quantas dessas preciosidades não desapareceram já, junto com outras menos valiosas, no ciclone que as dispersou?

Um acaso verdadeiramente providencial permitiu-me descobrir que a mais venerável relíquia que eu poderia admirar não estava no meu lar, se bem que estivesse no mesmo prédio onde morava. No andar superior vivia uma senhora, já de certa idade, professora de piano. Um dia, encontrando-me na escada, manifestou-me delicadamente o pesar que sentia por eu ser obrigado a ouvir a desagradável monotonia dos exercícios musicais das alunas. Contudo, esperava que esse facto não fosse motivo de grande contrariedade para a necessária calma que os meus trabalhos requeriam.

No decorrer da pequena conversa que tivemos, vim a saber que a mãe daquela senhora, que vivia com ela e quase nunca saía do quarto, devido a estar quase cega, era a então octogenária filha do Dr. Vogel, médico de Goeth, e fora baptizada em 1830 na presença do próprio poeta, tendo sido madrinha do baptismo Ottilie von Goeth. Foi uma verdadeira revelação! Em 1910 existia ainda neste mundo uma pessoa sobre a qual o divino olhar de Goeth se tinha pousado?

Sempre notei em mim um espontâneo sentimento de adoração por tudo o que, de qualquer modo, me lembrasse a vida dos homens ilustres. Assim coleccionava, não apenas os seus manuscritos, mas desejava possuir objectos que lhes tivessem pertencido. Esse sentimento estava tão arreigado no meu espírito que, mais tarde, na época que eu poderia designar por minha «segunda vida» havia no meu lar uma sala especial para essas relíquias -? um santuário, poderia dizer.

Era nesse santuário que tinha a mesa de Beethoven, a pequena caixa onde ele guardara o dinheiro -- essa caixa de onde tirava, já no leito e com as mãos agitadas pelo sopro da morte, as quantias que entregava à criada ?- uma folha do seu diário de despesas e uma madeixa dos seus encanecidos cabelos. Era aí que guardava numa redoma de vidro, a pena de Goèthe, para fugir à tentação de a profanar com o ccontacto directo das minhas mãos indignas. Mas o que era tudo isso, que valor tinham essas relíquias inanimadas em comparação com aquele ser humano, que respirava e vivia? Dir-se-ia que essa occtogenária, doente e prestes a desaparecer deste mundo, era o fragilíssimo e a cada momento perecível traço de união entre a epopeia áurea e olímpica de Weimar e a modesta casa do n. 8 da Kochgasse!

Imediatamente solicitei licença para visitar Frau Demelius, a veneranda anciã, que teve a bondade de me receber amavelmente, mesurando-me depois algumas recordações de Goèthe, que lhe haviam sido oferecidas pela neta do poeta. sua amiga desde os tempos da infância. Foi em sua casa que vi os dois castiçais que o poeta tinha em cima da mesa e outras relíquias da casa do Frauenpian de Weimar. Mas não era Demel us em pessoa a maior de todas as relíquias essa adorável velhinha de angélica touca que lhe cobria os cabelos, de fisionomia sulcada por profundas rugas, essa velhinha que contava com deleite as recordações dos tempos de menina? Lembrava-se perfeitamente dos quinze anos que passara na casa de Goèthe, quando esta ainda não havia sido transformada em museu, e tudo ali havia ficado como no momento em que o maior de todos os poetas alemães a deixara quando a morte o levou deste mundo. Como todas as pessoas de certa idade, tinha presentes, com grande nitidez, muitos acontecimentos da sua meninice. Mostrava-se contrariada por se ter cometido a indiscrição de publicar "tão cedo" a correspondência amorosa da sua boa amiga Otillie von Goethe - a adorável velh nha dizia "tão cedo" porque parecia ter-se esquecido que Otillie falecera havia meio século! Mas talvez tivesse razão, porque, para ela, todo esse passado distante, que para nós já tinha entrado no domínio da lenda tinha ainda um não sei quê bem visível de realidade actual. A sua presença infundia-me místicc respeite. Eu morava numa casa moderna, tinha telefone, electricidade e máquina de escrever, e eis que, subindo apenas vinte e cinco degraus podia ver uma adorada velhinha que me punha em contacto com a atmosfera de há um século, com o mundo encantador de Goeth.

Depois deste encontro, tive ainda ocasião de conhecer outras veneráveis figuras dessa época maravilhosa. Vi Cisima Wagner, filha de Liszt austera e nobre, cujos gestos eram de uma extraordinária grandiosidade! Elisabeth Fõrster, irmã de Nietzsche, pequena graciosa e delicada; Olga Monod, filha de Alexandre Hertzen, que, quando menina, estivera ao colo de Tolstoi. Ouvi muitas vezes o velho Georg Brandes marcar os seus encontros com Walt Whitman, Flaubert e Dickens e de Ricardo Strauss ouvira eu também contar as impressões que recebeu quando encontrou Wagner pela primeira vez. Mas devo confessar que nunca tive uma impressão comovedora como a que experimentei em presença dessa velhinha, a última pessoa ainda viva que Goethe havia visto com os seus próprios olhos. E talvez eu me possa dizer também, hoje, a última pessoa que viu um ser humano, cuja cabeça Goethe afagou carinho-samente.

Essa casa em Viena era o meu ponto de referência, o lugar de repouso quando não viajava. Mas muito mais importante foi, certamente, o outro ponto de referência que então também encontrei-a editorial que havia de ser, durante cerca de trinta anos, a que protegeria e difundiria a minha obra. Não é este um assunto de somenos importância para um escritor, e devo confessar que, nesse particular, fui realmente bafejado pela sorte. Foi o caso que, alguns anos antes, Alfredo Walter Heymel, homem dotado de extraordinárias faculdades, espírito empreendedor e cultíssimo, decidira gastar a sua fortuna, não com cavalos de corridas, mas com uma obra intelectual de grande merecimento. -fundando na Alemanha uma editorial que não fosse animada por meros e mesquinhos interesses comerciais. Pondo de parte o lucro, fim primordial que quase todas as outras casas tinham em vista, preocupava-se apenas com o valor intelectual ou artístico das obras que decidisse editar. Não importava mesmo que a edição desse prejuízo, pois o essencial era que o trabalho apresentado fosse digno. Toda a vulgaridade, ainda que tivesse muito valor comercial, era inexoravelmente posta de parte. Assim as obras editadas por essa casa constituíam uma espécie de selecção primorosa, onde a arte e a suprema elegância do estilo eram predicados exigidos. Tornava-se evidente que um empreendimento dessa natureza só podia suscitar a admiração e o interesse de um núcleo muito limitado de pessoas de bom gosto. De resto, o propósito bem evidente que animava essa editorial estava patente no próprio nome que a designava - Die Insel (1) e que mais tarde se transformou em Inselverlag (2).

 

(1) A ilha.

(2) Editorial Ilha.

 

Os trabalhos editados nessa casa mereciam, portanto, uma atenção particular, e cada livro possuía características inconfundíveis, pois o tipo, o papel, a disposição gráfica e as capas eram sempre problemas que dependiam do sentido de estética que dimanava da própria obra. O esmero e a dedicação pela arte que se observavam nessa editorial estavam patentes em todas as produções, pois até um catálogo ou uma simples carta comercial eram submetidos a requisitos que os tornavam impecáveis. Não me lembro de ter encontrado nos meus livros, durante trinta anos, um único erro e nunca vi uma carta comercial dessa casa cem letras ou linhas rectificadas. Era o que se poderia chamar uma editorial verdadeiramente modelo.

O facto de a Inselverlag editar Hofmannsthal e Rilke provava sem discussão a sua excepcional importância e categoria. Imagine-se, pois, qual não seria o meu orgulho ao ser admitido, apenas com vinte e seis anos de idade, no círculo restrito dos cidadãos da Insel. Era realmente uma posição de incomparável relevo, mas que impunha o rigoroso dever de uma absoluta nobreza intelectual, à qual se não tolerava o mínimo deslize. Ser membro desse augusto reduto exigia uma autodisciplina permanente, uma perfeição constante, uma dignidade literária sem mácula, pois a marca da Inselverlag na capa de um livro era a certeza indiscutível de que se tratava de uma obra de valor intelectual e impecabilidade gráfica e artística. Assim o julgavam os seus milhares e mais tarde centenas de milhar de leitores.

É extremamente importante, creio, que a evolução Intelectual de um autor se faça à medida que evoluciona a editorial que dita as suas obras, pois esse paralelismo origina uma intimidade estreita entre o escritor, o livro e o mundo. Tenho ainda presente a grande amizade que a breve trecho havia de surgir entre mim e o director da Inselverlag, professor Kippenberg, amizade que se tornou ainda mais sólida pela circunstância de cada um de nós se dedicar apaixonadamente a coleccionar relíquias de grandes pensadores. Durante trinta anos de mútuo convívio enriquecemos lentamente as nossas colecções, de tal modo que a de ppenberg, referente a Goêthe, e a minha, de autografes, tomaram proporções, na verdade, extraordinárias. Trocávamos frequentemente impressões e foi com grande prazer que recebi muitas vezes os seus conselhos e opiniões, gentileza que retribuía com indicações sobre o vasto campo da literatura estrangeira, matéria que me prezava de conhecer. A própria Inselverlag, que sucedeu à primitiva Insel, foi o resultado de uma ideia exposta por mim, e foi graças a ela que o primeiro núcleo de isolados cuja editorial era, por assim dizer, uma espécie de «Torre de Marfim», se transformou na poderosa organização que, com as suas edições de milhões de exemplares foi depois a mais importante casa editora da Alemanha. Ao cabo de trinta anoS de actividade intelectual, a situação era bem d ferente do que fora no começo. Tudo se tinha desenvolvido .- a casa o seu renome, o seu raio de acção. O escritor cujas obras eram apenas lidas por um público limitado a pequenos círculos intelectuais foi depois um dos mais notáveis na Alemanha. E só a brutalidade sem fim da guerra, o desespero maligno do ódio foi capaz de destruir uma colaboração tão espontânea e tão agradável e que durara tanto tempo. Ter sido forçado a abandonar o lar e a Pátria não foi para mim uma dor tão grande como a que recebi por nunca mais ter visto a marca dessa respeitada editorial nos meus livros.

Percebi que aquilo que constituía a mais bela conquista da minha mocidade, a convivência com os homens mais ilustres do meu tempo, operava estranhamente como elemento retardador da minha capacidade criadora. O facto talvez se justificasse, pois, tendo estado em contacto com verdadeiros valores era natural que me sentisse um pouco parcimonioso. Não me julgava com coragem para grandes empreendimentos, e as obras que até então publicara, salvo as traduções, tinham um cunho de verdadeira modéstia, pois limitavam-se a poesias ou pequenas novelas. Só trinta anos mais tarde me senti com a energia suficiente para escrever um romance.

A minha primeira obra de certa importância foi um drama. Tendo recebido alguns incentivos, persisti e senti-me atraído por esse gênero literário. Foi no Verão de 1905 e 1906 que compus Tersites, que, segundo o gosto da época, era em verso e de estilo clássico. A minha opinião acerca desse drama está bem patente no facto de nunca mais o ter editado, procedimento que aliás adoptei com todos os livros que escrevi antes dos trinta e dois anos de idade.

Esse drama já revelava, porém, uma nota bem característica do meu temperamento que me incita sempre a tomar o partido do vencido, em vez de me colocar ao lado do vencedor. Em lugar de cantar o "herói", preferia dar realce ao drama trágico da vítima. Essa tendência manifesta-se posteriormente em todas as minhas obras, pois, desprezando o lado material do lucro ou da glória nada me preocupa com o fundo moral dos temas que apresento. E é assim que dignifico Erasmo e não Lutero; Maria Stuart e não Isabel Castélao e não Calvino. Então. também não glorificava Aquiles, mas erguia Tersites. o mais obscuro dos seus antagonistas - louvava o homem que sofre e não aquele que, por ter a superioridade da força e a certeza do triunfo, faz sofrer seu semelhante.

Tomei a salutar precaução de não mostrar esse drama a nenhum actor, excluindo até aqueles com quem mantinha relações, pois sabia perfeitamente que uma obra clássica e em verso branco, mesmo que fosse de Sófocles ou de Shakespeare, não teria aceitação no teatro, cujo objectivo primordial é o dinheiro que aflui à bilheteira. Por descargo de consciência, limitei-me apenas a enviar alguns exemplares aos principais teatros. E, com isso, esqueci o assunto.

A minha admiração foi, portanto, grande quando, três meses depois, recebi em minha casa uma carta enviada pelo "Kõnigfliches Schauspielhaus Berlin" )1). Fiquei realmente intrigado, pois estava longe de adivinhar o que desejaria da minha pessoa o Teatro Nacional prussiano. Era o director, Luís Barnay, um dos mais eminentes actores da Alemanha, que acusava a recepção do exemplar do meu Tersites, manifestando o agrado que a obra lhe suscitara, tanto maior quanto é certo que nela encontrava, na personagem de Aquiles, o papel que há tanto tempo desejava para Adalberto Matkowsky. Terminava declarando-se disposto a levar Tersites à cena no seu teatro.

O meu contentamento não tinha limites, pois eis que o próprio Matkowsky ia encarnar uma personagem que eu criara, e declamar os versos que eu escrevera, e o meu drama seria pela primeira vez representado no mais célebre teatro da capital do Império Alemão.

Naquela época, o teatro germânico tinha dois actores de incomparável mérito: Adalberto Matkowsky e José Kainz. O primeiro era um alemão do norte, cujo inimitável talento consistia numa veemência arrebatadora; o outro nascera em Viena, e encantava pelo dom natural da sua personalidade de esteta da palavra, à qual sabia imprimir todas as tonalidades que a tornam característica.

Tersites abria-me, enfim, horizontes para uma larga e prometedora actividade como autor dramático.

 

(1) Teatro Real de Berlim.

 

tanto mais extraordinário quanto é certo que não a procurara. Contudo, aprendi nessa ocasião a grande lição de que nunca devemos contar com a estreia da nossa obra, enquanto o pano da primeira representação não subir. Matkmvsky começara de facto com os ensaios, e os meus amigos informavam-me de que nunca o tinham visto tão eloqüente e arrebatador como na minha obra. Estava já tudo preparado para a minha partida para Berlim, e até já havia reservado lugar na carruagem-cama do "Expresso", quando, inesperadamente, à última hora, recebi o seguinte telegrama "Adiado motivo doença Matkcíwsky".

Era um pretexto, pensei imediatamente, uma daquelas desculpas vulgares nos meios teatrais, que sempre se encontram quando é preciso fazer frente a qualquer deficiência ou dificuldade. Mas eis que, oito dias depois, a imprensa noticiava a morte do grande artista. Os meus versos foram os últimos que o exímio Matkowsky pronunciou.

As minhas esperanças desabaram verticalmente, se bem que havia ainda dois teatros de renome que manifestavam desejo de levar Tersites à cena - o de Dresde e o de Cassei. Mas a verdade é que a minha decepção era imensa e, de resto, não podia conceber um Aquiles sem Matkowsky.

Estava nesta disposição quando um dia recebo a visita de um amigo que me traz a inesperada notícia de que fora enviado por Kainz, para me comunicar que o artista tinha visto o meu drama, casualmente, e encontrara nele um papel que lhe agradaria desempenhar. Não era o de Aquiles, que Matkowsky preferira, mas sim o do trágico Tersites.

Tendo Kainz falado do assunto ao director do Burgtheater (1), recebi pouco depois uma carta de Schlenther que, como pioneiro do Realismo, então em moda, fora expressamente de Berlim para Viena, para dirigir esse teatro, apesar da manifesta má vontade

 

(1) Teatro Municipal.

 

do público vienense. Comunicava-me que a minha obra tinha realmente valor, mas estava convencido de que, infelizmente, não poderia manter-se na cena além da primeira representação.

Era outro desabar vertical de todas estas minhas novamente renascidas esperanças, e desta vez era decisivo, pensava eu, sempre céptico em relação à minha pessoa e à minha obra. Mas Kainz não aceitou o facto de bom grado e imediatamente me convidou a ir visitá-lo.

E foi assim que, acedendo, me encontrei pela primeira vez em frente do ídolo da minha juventude, do artista a quem nós, quando estudantes, teríamos beijado a mão com toda a reverência.

Kainz teria então cerca de cinqüenta anos, mas o corpo possuía ainda a agilidade da juventude e a fisionomia era nobre, iluminada pelo fulgor de uns belos e enigmáticos olhos negros. Dava prazer ouvi-lo, pois era impecável na dicção. Todas as suas palavras eram cristalinas e pronunciadas com suma perfeição, não apenas quando declamava, mas até na simples conversação particular. O seu talento ficou de tal modo gravado no meu espírito, que, quando leio alguma poesia que ele recitou, logo acode à minha memória a recordação da sua maravilhosa euritmia, do seu magnífico poder de artista consumado na arte de bem dizer. Depois dele, nunca mais ouvi quem soubesse dar tanto relevo à língua alemã.

E era um homem dessa natureza, um artista superior que eu venerava sinceramente, que me tinha chamado à sua presença para me pedir desculpa - a mim, quase um principiante - de não ter podido conseguir que o meu drama se representasse. Apesar dessa contrariedade, manifestava-me a vontade de que as nossas relações se intensificassem e até desejava naquele momento formular-me um pedido. Quando o ouvi, não me foi possível deixar de sorrir intimamente, de tal modo era inconcebível que o grande Kainz tivesse alguma coisa a solicitar-me.

Precisava - disse ele - de uma peça em um acto para as suas tournées. Tinha apenas duas e desejaria ainda um monólogo em verso, uma daquelas torrentes líricas que empolgam e electrizam. Graças ao seu perfeito conhecimento da técnica da linguagem e às suas extraordinárias capacidades de dicção, Kainz tinha o raro condão de arrebatar declamando os versos com a límpida e cristalina cadência de um manulhar ininterrupto, que mantinha anelante o auditório. E era esse monólogo que me pedia que escrevesse.

Respondi prometendo-lhe fazer tudo o que me fosse possível para o satisfazer. Lembrava-me daquela sentença de Goeth que proclama: "a vontade também pode algumas vezes fazer qualquer coisa na Poesia". E lancei mãos à obra, traçando o plano de uma singela peça em um acto, estilo rococó, constituída por dois grandes monólogos lírico-dramáticos Der Verwandelte Komôdiant. (1)

Escrevi esse trabalho sob a constante influência da admiração que tinha por Kainz, tendo sempre presente no meu espírito a sua personalidade, o seu talento e a sua arte. E, talvez por isso mesmo, esse ensaio atingiu uma perfeição que era mais o resultado da paixão do que da habilidade criadora. Três semanas mais tarde, apresentava o original já quase suficientemente esboçado. Kainz ficou maravilhado; agarrou no manuscrito e começou a declamar "a torrente", e tanto engenho e arte empregou que, à segunda vez, já o fazia com perfeição. Kainz mostrava-se contudo impaciente. Era preciso que eu terminasse a obra. Tendo-lhe dito que só dentro de um mês lha poderia entregar, exclamou "Sim Está bem Perfeitamente " Era isso mesmo o que ele desejava, pois entretanto faria uma tournée pela Alemanha e, no regresso, começaria a ensaiar, pois o meu trabalho subiria à cena no Burgtheater. "E não é só isso – prosseguiu - pois garante-lhe que a sua obra fará parte do meu

 

(1) O Comediante Transmudado.

 

repertório permanente. Levá-la-ei sempre comigo, porque se ajusta bem à minha maneira de ser. Dir-se-ia umla luva que tivesse sido feita especialmente para mim!" - exclamou Kainz, apertando-me repetidas vezes a mão com grande entusiasmo.

Decerto, Kainz falara no Burgtheater a respeito da minha obra, mesmo antes da sua partida, pois, o director do teatro telefonou-me pessoalmente, pedindo-me que submetesse o original à sua apreciação, mesmo sem os retoques definitivos que pensava dar-lhe. E de tal modo lhe agradou que a aceitou logo. Era a esperança que renascia de novo, a risonha certeza do triunfo que corria ao meu encontro. O meu trabalho ia subir à cena do teatro que constituía um dos maiores ornamentos da cidade; ia ser representado por Kainz, o m'ais eminente actor da época, cujo renome apenas encontrava paralelo no excepcional talento da grande Duse. Era uma felicidade quase demasiado grande para um simples principiante. Por vezes, chegava a duvidar da sua verosimilhança, supondo que Kainz poderia mudar subitamente de opinião, quando eu lhe apresentasse a obra na sua forma definitiva, mas esse receio era certamente infundado. A impaciência agora era minha; por fim. os jornais noticiaram o regresso do artista. Não querendo incomodá-lo logo após a sua chegada, deixei passar dois dias. Ao terceiro, porém, enchi-me de coragem e tomei a decisão de o visitar. Fui ao Hotel Sacher, onde Kainz estava hospedado, e entreguei ao velho porteiro, que conhecia muito bem, o meu cartão de visita, dizendo-lhe: "Queira anunciar-me ao actor Kainz! "

O bom velhote dirigiu-me um olhar de espanto por cima das lunetas e exclamou "Mas então o senhor ainda não sabe que ele deu hoje entrada numa Casa de Saúde " Era verdade. Só então tomava conhecimento do facto. Kainz estava gravemente doente. Nos últimos dias da sua tournée fizera inauditos esforços para combater o mal que o devorava e cuja verdadeira gravidade desconhecia. Foi dominando a dor que pela última vez subiu à cena e representou.

No dia seguinte, foi submetido a uma operação de cancro. Os jornais publicavam boletins sobre, o seu estado, e, por eles, mantinha-se a esperança de que Kainz se salvasse. No entanto, quando o visitei, fiquei simplesmente consternado. Fui encontrá-lo exangue, desfigurado, abatido, com os grandes olhos ternos encovados. Os lábios, outrora fluentes, daquele homem que sabia declamar como nenhum outro, estavam agora flácidos e o bigode tinha encanecido. Naquele leito de dor, era apenas uma chama que se extinguia - um moribundo. Quando me viu, dirigiu-me um pálido sorriso e murmurou: "Permitirá Deus que eu recite o seu drama Seria a salvação! "

Algumas semanas depois, fui acompanhá-lo ao cemitério.

A minha relutância em dedicar-me ao teatro é compreensível em presença da fatalidade que fez que os dois mais célebres actores de língua alemã morressem estudando um original meu. Devo mesmo confessar que essa fatalidade me tornou um tanto supersticioso.

Só muito mais tarde tomei a decisão de me dedicar novamente ao teatro. Contudo, quando Alfredo Baron Berger, então novo director do Burgtheater e artista eminente e requintado, aceitou o trabalho que escrevera, consultei com viva preocupação o elenco que o havia de representar e, tendo adquirido a convicção de que não havia nele nenhum artista de primeira categoria, exultei. Não existia motivo para receio, graças a Deus, pois a desgraça não teria por onde escolher

Mas, desta vez também, sucedeu o que ninguém esperava, confirmando-se o velho adágio de que, quando fechamos a porta à tragédia, logo ela entra pela janela. De facto, pensara apenas nos actores, esquecendo-me totalmente do director, Alfredo Baron Berger, que se encarregara de dirigir pessoalmente a representação da minha tragédia Das Haus um meer (1). E eis que, quinze dias antes da data fixada para os ensaios, Berger morre.

Era a certeza de que a maldição que pesava sobre os meus trabalhos dramáticos ainda não havia desaparecido. E este pensamento ficou-me de tal modo enraizado no espírito que, dez anos depois, após a Guerra Mundial, quando já Jeremias e Volpone davam a volta ao mundo, traduzidos em muitas línguas, ainda não me sentia completamente à vontade.

A prova de que assim era estava bem vincada na atitude que tomei em 1931, com a peça que eu então escrevera Das Lamm cies Armen (2). Foi o caso que, tendo enviado o manuscrito dessa obra ao meu amigo Alexandre Moissi, recebi pouco depois um telegrama em que ele me manifestava o desejo de desempenhar o principal papel na primeira representação.

Moissi, que trouxera da Itália, sua pátria, uma rara cadência de expressão que o teatro germânico jamais conhecera, era, então, o verdadeiro sucessor de José Kainz. Artista de excepcional talento, de aspecto verdadeiramente imponente, inteligente e dedicadíssimo, sabia transmitir às personagens que interpretava o encanto maravilhoso que irradiava da sua pessoa. Era com certeza o melhor artista que poderia desejar para o protagonista da minha obra. Mas o drama de Matkowsky e de Kainz estava ainda indelèvelmente gravado no meu espirito e, por isso, tomei a decisão de, lutando contra o meu próprio interesse, não aceder ao desejo de Moissi, sem lhe dizer qual era a verdadeira razão da minha recusa, que fundamentara em qualquer pretexto.

Eu sabia que Moissi era nessa altura o detentor do anel de Iffland, que estivera na posse de Kainz e que

 

(1) A Casa à Beira-Mar.

(2) O Cordeiro do Pobre.

 

o mais notável actor do mundo germânico deixava sempre ao seu sucessor. E deveria Moissi herdar também a triste sina de Kainz? Não sabia qual seria o seu destino, mas não queria que, pela terceira vez, o meu nome ficasse de qualquer modo unido à desdita que porventura se abatesse sobre o maior actor da época. E foi assim que, por superstição e amizade, me privei voluntariamente do grande e decisivo realce que a inestimável colaboração de Moissi teria dado à minha obra. Mesmo assim, a minha renúncia à sua tão desejada colaboração e a decisão que então tomei de nunca mais enviar trabalhos meus à cena não obstaram a que a desgraça ainda lhe fosse bater à porta. Dir-se-ia que o destino me colocava sempre no caminho onde se cruzava a desdita alheia, apesar de nunca fazer nada que merecesse esse fatalismo.

Poderá supor-se que estou apenas a contar histórias, mas não é esse o caso, realmente. O que se passou com Matkowsky e com Kainz poderá ainda ser considerado cruel coincidência, mas o que depois havia de suceder com Moissi não deixa de ser realmente misterioso, pois, apesar da minha superstição e da minha amizade me forçarem a não aceitar a sua colaboração, e de, desde então, nunca mais ter escrito nada para o teatro, quis a fatalidade que ele tivesse fim idêntico ao dos dois anteriores artistas.

O caso passou-se da seguinte maneira: Muitos anos depois dos acontecimentos que acabo de relatar, encontrava-me veraneando tranqüilamente em Zurique, em 1935. Eis senão quando recebo um telegrama de Milão, enviado por Moissi, anunciando-me que precisava de falar comigo e que, para esse efeito, vinha a Zurique, onde chegaria na noite daquele, mesmo dia.

A notícia causou-me verdadeiro espanto, pois não sabia a que atribuí-la, tanto mais que me desinteressara completamente da vida teatral. A sua chegada dava-me, porém, verdadeiro prazer porque sempre tive por esse homem tão delicado e tão fino verdadeira e fraternal admiração. Fui esperá-lo à estação, abraçámo-nos com a efusão habitual dos italianos. Depois tomámos lugar num automóvel e Moissí aproveitou logo o primeiro ensejo, mesmo no trajecto entre a estação e o ponto aonde o automóvel nos levava, para me dizer, impaciente, que tinha um grande pedido a dirigir-me. Era o caso que Pirandello lhe havia dado a honra de o distinguir particularmente, encarregando-o da representação da sua nova peça Non si sá mai. Era um acontecimento teatral que atingia foros de acontecimento mundial, visto não se tratar da primeira representação em italiano, mas da estreia da obra no teatro alemão, em Viena. Pela primeira vez o insigne escritor italiano consentia em dar a primazia de uma obra sua a um país estrangeiro. Nunca tivera tal deferência, nem mesmo com Paris.

Era preciso, pois, traduzir a obra para alemão, mas Pirandello não estava disposto a encarregar dessa tradução um escritor sem mérito, pois receava que a harmonia do seu estilo fosse prejudicada. Conhecendo e apreciando a minha competência literária, queria confiar-ma, mas receava manifestar-me o desejo que o animava, por supor que eu não estivesse disposto a perder tempo com traduções. E foi então que Moissi tomou a decisão de vir pessoalmente comunicar-me a vontade de Pirandello.

De facto, havia já muito tempo que não fazia traduções, mas o meu culto por Pirandello, com quem tivera alguns encontros agradáveis, não era de molde a permitir-me recusar a satisfação do seu desejo. Por outro lado, não queria perder a oportunidade de ofeirecer ao meu grande amiigo Moissi uma prova de estima e dedicação. Pus de parte toda a minha própria actividade intelectual e dediquei-me à tradução, a qual, algumas semanas depois, estava pronta para ser apresentada em primeira representação em Viena, num ambiente verdadeiramente internacional e que, devido a circunstâncias políticas especiais, se revestiria de certa solenidade. Pirandello prometera assistir pessoalmente e, como nessa altura ainda Mussolini aparecia como pioneiro da independência da Áustria, todos os círculos oficiais, incluindo o próprio chanceler, anunciavam a sua presença num espectáculo que tomava aspectos de demonstração de amizade austro-italiana, amizade que, na verdade, era apenas uma espécie de protectorado italiano sobre a Áustria.

Estava tudo preparado e os ensaios iam começar. Eu próprio, encontrando-me acidentalmente em Viena, estava encantado por tornar a ver Pirandello e ouvir, na voz melodiosa de Moissi, a minha tradução. E foi então que, como há vinte e cinco anos, se repetiu a tragédia. Certa manhã, li no jornal que Moissi tinha regressado da Suíça, fortemente engripado. Devido a essa circunstância os ensaios foram adiados, mas não fiquei apreensivo, pois um ataque de gripe não era doença que inspirasse sérios cuidados. Apesar desse optimismo, confesso que o meu coração se sentia angustiado quando, tendo decidido visitar Moissi, me ia aproximando do hotel onde se hospedara e que, felizmente, não era o Sacher, -mas sim o Grande Hotel! Lembrava-me de Kainz e eis que, agora, se repetia o que vinte e cinco anos antes sucedera ao maior actor alemão daquele tempo. Moissi já estava delirante, de tal modo que não me foi permitido visitá-lo. E, dois dias depois, exactamente como outrora, em vez de assistir aos ensaios, assisti ao enterro de Moissi.

Este último acto da visível tragédia que sempre pareceu pairar sobre as minhas actividades teatrais liga acontecimentos separados por imenso lapso de tempo e que, apesar de estranhos, são talvez apenas obra cega do acaso. Contudo, não posso deixar de considerar que tiveram grande influência no curso da minha vida. Se Matkowsky, em Berlim, e Kainz, em Viena, tivessem transmitido então o brilho incomparável do seu gênio aos meus primeiros trabalhos dramáticos, gênio suficiente para dar realce a obras de somenos importância, é quase certo que o meu renome intelectual teria sido muito mais rápido e talvez mesmo imerecido, pois não teria adquirido a experiência que me foi facilitada por uma ascensão lenta e pelo conhecimento das realidades da vida e do mundo.

Imaginava-me, nesse tempo, com as desgraças de Matkowsky e de Kainz, perseguido por uma espécie de desdita, cruel, porque, tendo-se-me apresentado tão belas e inesperadas ocasiões de triunfar como autor dramático, acabava sempre por verificar que o acaso as fazia desabar verticalmente, à última hora. Mas essa crença no imperativo do acaso só é possível com a inexperiência da juventude, pois o tempo acaba por nos convencer de que a trajectória da nossa vida obedece a uma razão mais subtil, que é, em substância, a que nos conduz, através de todos os obstáculos e por vezes até contra os nossos desejos, para o nosso destino.

 

             Para além da Europa

Teria o tempo decorrido ontem mais velozmente do que hoje, este "hoje" pleno de acontecimentos que terão influência considerável, não apenas na superfície, mas também na estrutura íntima do mundo Ou dar-se-á o caso que a distância confusa em que já vejo sepultada a minha juventude - anterior à Guerra Mundial de 19 - seja apenas uma conseqüência de a ter vivido completamente dedicado a uma actividade cadenciada?

Os meus trabalhos intelectuais haviam já então adquirido certa notoriedade, não só na Alemanha, mas noutros países; tinha admiradores e até adversários. -o que, de resto, provava apenas que possuía, de facto, alguma personalidade. Passara o tempo em que enviava espontaneamente originais aos grandes diários; eram eles agora os primeiros a solicitar a minha colaboração. Creio, porém, que todo esse labor intelectual perdeu hoje grande parte do seu valor ou oportunidade, pois, comparando as inquietações morais e espirituais dos homens de outrora com as que animam os da presente geração, adquiro a certeza de que as nossas eram de uma simplicidade extraordinária.

Entre estes últimos, encontra-se Walter Rathenau, homem de extraordinária envergadura, que dirigiu o destino da Alemanha na hora mais sombria da sua história, onze anos antes de Hitler tomar o poder, e foi também a primeira vítima do ódio mortal do nazismo. As nossas relações eram afectuosas e vinham já de longa data, tendo começado de maneira tão singular que vale realmente a pena contá-la.

Maximiliano Harden era um dos raros homens a quem eu aos dezanove anos já devia favores, pois ajudara-me freqüentemente. Era director do Zukunfí. jornal que nos últimos decênios do reinado de Guilherme atingira notória influência política, pois Bismark, que o iniciara, utilizava-o como uma espécie de oculto lugar-tenente que levantava questões, como a de Eulenburg, suscitava problemas, fazia demitir ministros e causava semanais apreensões na corte com as suas revelações e críticas. Contudo, apesar dessa vasta actividade política, jamais Harden deixou de se interessar pela literatura e pelo teatro. Certo dia, apareceu no seu jornal uma série de aforismos, que chamou imediatamente a minha atenção Quem os assinava escondia-se num misterioso pseudônimo, que agora não tenho presente. A verdade é que os seus escritos revelavam invulgar e penejtrante sabedoria. Como colaborador habitual de Zukunft, senti-me no direito de escrever a Harden, pedindo-lhe me comunicasse quem era o autor de trabalho tão invulgar.

Quem me respondeu foi Walter Rathenau. Lendo a sua carta e por informações que também depois colhi, deduzi que se tratava do filho do magnate que dirigia a Companhia de Electricidade de Berlim, grande industrial e comerciante, e membro do conselho de administração de importantes companhias. Era, enfim, parafraseando uma expressão de Jean Pauis, um membro da plutocracia que governa o mundo. Comunicava-me a grande satisfação que a minha carta lhe havia dado, dizendo ser o primeiro aplauso que o seu trabalho lhe granjeara. Era, pelo menos, dez anos mais velho que eu, mas esse facto não o impedia de me confessar francamente que duvidava se deveria ou não compilar os seus pensamentos e aforismos para os editar, pois até então apenas dedicara toda a sua actividade a resolver problemas de caracter econômico. Respondi-lhe com um sincero incentivo, e assim iniciámos uma correspondência que se manteve. Quando fui depois a Berlim, telefonei-lhe. Respondeu-me uma voz titubeante, manifestando agrado pela minha presença, mas comunicando-me que no dia seguinte, às seis horas da manhã, partiria para a África do Sul. "Nesse caso interrompi eu - ver-nos-emos noutra ocasião". Mas a mesma voz retorquiu "Não. Vejamos se arranjo um momento. Tenho a tarde toda ocupada com várias entrevistas. Depois devo ir ao ministério e tenho de assistir a um jantar no clube. Não poderia vir a minha casa às onze e um quarto "

Concordei imediatamente, como era natural. Conversámos até às duas da madrugada e, às seis, Rathenau partia com destino à África, no desempenho de uma missão que - soube-o mais tarde - lhe fora confiada pelo imperador.

Menciono este facto porque revela bem uma das mais marcadas características de Rathenau, homem sempre extremamente ocupado, mas que sabia encontrar tempo para tudo, ordenando todas as suas actividades. Vi-o nos dias mais difíceis da guerra e nas vésperas da Conferência de Locarno; pouco antes do seu assassinio estive com ele no mesmo automóvel em que pereceu e passámos na mesma rua em que se verifiqou o trágico acontecimento que o vitimou. Era de extraordinária capacidade de trabalho e raro poder de organização. Dominava os assuntos mais complexos com a maior segurança. O seu cérebro, de uma lucidez invulgar, permitia-lhe passar rapidamente de um problema a outro sem que o facto parecesse causar-lhe dificuldades. Falava com grande facilidade e precisão. Dir-se-ia que lia as suas frases num manuscrito invisível, pois, se fossem estenografadas, ofereciam tal equilíbrio e espontânea clareza que se poderiam enviar imediatamente para a tipografia. Conhecia o francês, o inglês e o italiano tão bem como o alemão e possuía uma memória tão apurada que não necessitava de notações especiais para apoiar oportunamente as suas idéias ou os seus argumentos. Rathenau, com essas raras qualidades de trabalho e organização, irradiava de si uma evidente superioridade intelectual que todos os que com ele privavam eram forçados a reconhecer imediatamente. Havia, contudo, qualquer coisa de estranho e misterioso na alma desse homem invulgar, qualquer coisa que me deixava inquieto e perplexo. Em presença "da meticulosidade e excepcional poder do seu espírito, sentia-me tão estranhamente apreensivo como quando estava na sua casa ou no seu castelo "Rainha Maria Luísa", no Mark; aí, os móveis e o ambiente eram de tal forma requintados que lembravam um museu, no qual, apesar da ordem e da precisão, sentíamos como que um vago sentimento que não nos deixava estar perfeitamente à vontade. Havia, pode dizer-se, qualquer coisa de imponderável e misterioso nessa extraordinária limpidez do seu espírito, qualquer coisa que me deixava adivinhar os complexos de dúvida que jaziam no seu subconsciente. E nunca como em presença desse homem senti tão profundamente a odisséia trágica do paradoxal destino do judeu.

Verhaeren, Ellen Key e Bazalgette não tinham certamente a décima parte da sua capacidade de organização e estavam longe de possuir a sua experiência. Sentiam-se, contudo, muito mais senhores de si, mais tranqüilos, mais calmos. Rathenau sempre me deu a impressão de alguém que, apesar da sua grande e incomparável energia, compreendia que lhe faltava o terreno debaixo dos pés. Toda a sua vida fora um constante e permanente conflito, uma contradição sem tréguas. Herdara extraordinárias riquezas do pai, apesar de não ter querido ser seu herdeiro era comerciante e manifestava certa inclinação para a vida intelectual possuía milhões e tinha devaneios e pretensões socialistas e, apesar de judeu, sentia-se atraído para Jesus. Era um internacionalista e, no entanto, idolatrava o prussanismo. Sonhando com a democracia, vivia nas altas esferas imperiais, recebido e consultado por Guilherme, cujo orgulho e cujas fraquezas reconhecia, sem apesar disso, conseguir ser superior ao próprio orgulho. Tive por vezes a impressão de que o seu extraordinário dinamismo era um paliativo que operava como narcótico para suavizar o drama íntimo da inquietação espiritual que o dominava.

Mas, na hora decisiva, quando o exército alemão cedeu, foi então que o incomparável Rathenau se revelou plenamente e, assumindo, em 1919, a difícil tarefa de reconstruir a Pátria derrotada, uniu num esforço supremo todas as suas extraordinárias capacidades com uma vontade única e forte, e pô-las obstinadamente ao serviço da causa da salvação da Europa,

Devo a Rathenau, cuja conversação era tão brilhante e eloqüente como a de Hotmannsthal, Valéry ou a do conde Keyserling, a dilatação do meu horizonte, então limitado à simples acção literária, para as grandes realidades históricas da época. Entre outras perspectivas, devo-lhe também o primeiro incentivo para sair da órbita da Europa. "Nunca poderá ter uma idéia do que é a Inglaterra - disse-me - se apenas visitar as Ilhas Britânicas, e igualmente nunca conhecerá bem a Europa, se nunca tiver a possibilidade de a ver de longe. Aproveite a liberdade de que dispõe, a que lhe oferece a sua magnífica actividade intelectual, cujo bom êxito e triunfo exclui toda a idéia de extemporaneidade. Um ano mais ou um ano menos não tem importância, quando se trata de um livro de real valor. Porque não vai à índia e à América?"

Estas palavras despertaram a minha atenção, e decidi seguir o seu amável conselho, iniciando uma grande viagem.

Confesso que a índia me deixou uma impressão muito mais desolada e triste do que esperava. A monotonia imensa e por vezes agreste da paisagem, o olhar cansado, sofredor e grave das fisionomias e, sobretudo, as diferenças ou os abismos intransponíveis das classes e das raças, de cuja agudeza tivera já um reflexo a bordo, feriram a minha sensibilidade.

Notei que duas encantadoras raparigas de olhos fascinantes, esbeltas e evidentemente cultas, delicadas, elegantes e simultaneamente modestas, levavam no barco uma vida muito retraída. Logo no primeiro dia que as vi tive a impressão de que estavam separadas do convívio geral por uma barreira imponderável, mas que se adivinhava. Não conversavam com outros passageiros, não participavam nos divertimentos e não dançavam. Mantinham-se completamente -à parte, lendo livros franceses ou ingleses. O caso não deixou de me intrigar sobremaneira, mas só ao fim de dois ou três dias compreendi que não eram elas que se afastavam dos passageiros ingleses, mas sim estes, pelo contrário, que evitavam relacionar-se com elas, a quem consideravam halfcasts (1), muito embora fossem filhas de um grande comerciante parisiense e de uma francesa. Tinham estudado dois ou três anos num colégio em Lausana, freqüentado cursos superiores numa escola inglesa, e tanto num como noutra viveram sempre em situação idêntica à das suas condiscípulas européias, mas eis que, a caminho da índia, já a bordo, surgiam as convenções absurdas que as colocavam numa situação de inferioridade social, evidentemente ridícula e cruel. Ali estava uma prova da insensatez a que era capaz de conduzir o delírio racial que divide os homens, essa peste horrível, pior para a humanidade do que a verdadeira peste de outrora. Este primeiro contacto com essa calamidade social teve o condão de acicatar o meu poder de observação e de estudo.

Chegado à índia, notei imediatamente, penalizado, que o europeu era tido ali como uma espécie de homem superior - conceito que depois desapareceu naturalmente - uma espécie de senhor, cuja "categoria" exigia um séquito de doze ou catorze criados, quando empreendia alguma simples excursão, como a do monte Adão, por exemplo. Tive então o pressentimento de que as gerações vindouras haveriam de estigmatizar o que havia de indigno e inqualificável nossas distinções odiosas, que a Europa tranqüila e calma desse tempo quase ignorava e das quais tinha relutância em tomar

 

(1) Raça inferior.

 

nota. Preocupado com estes problemas, não admira que não visse a índia "romântica" e cor-de-rosa de Pierre Loti, mas uma índia que sofria e parecia querer despertar da sua letargia. O que então prendeu mais o meu espírito não foram as maravilhas dos palácios e as grandezas do Himalaia, mas a alma profunda dos homens, desses homens que pensavam e viviam de modo bem diferente daquele que os escritores europeus podiam observar na sua Europa. Viajar era, nesse tempo, ainda um problema difícil, só a raras pessoas concedido. As possibilidades eram menores e as grandes organizações de turismo ainda não haviam surgido. Sair da Europa constituía, pois, para quem o pudesse fazer, um verdadeiro acontecimento. E não era qualquer pessoa que o poderia fazer, evidentemente. Não era o merceeiro da esquina que se abalançava a atravessar o Atlântico, assim, simples e indiferentemente. Eram espíritos raros, escolhidos, audazes e empreendedores; grandes comerciantes, médicos ilustres, devotados ao estudo, escritores de cultura superior ou então, algum aventureiro sedento de fortuna, algum descendente dos conquistadores de outrora, cujo fim era o triunfo, apesar de todos os obstáculos e contrariedades. Não admira, pois, que eu tivesse aprendido mais nos longos dias e noites dessas viagens para além do continente europeu, falando naturalmente com as pessoas que me rodeavam - nessa época em que a obsessão da rádio ainda não existia - do que aprendi em centenas de livros. Elas davam-me uma noção mais nítida da verdade da vida e do mundo. À medida que nos afastamos da nossa terra, vamos alargando o horizonte dos nossos conhecimentos e criando diferentes pontos de referência. E, quando regressei, reduzi à mínima proporção certas minudências que antes me pareciam grandes e nunca mais considerei a Europa como centro vital do planeta.

Entre os homens que encontrei na minha viagem à índia, destaca-se um que exerceu papel de certa importância na vida política, se bem que a sua influência não tivesse sido abertamente notória. Era Carlos Haushofer, então nomeado adido mil'tar da Alemanha no Japão. Tendo subido com ele o Irawaddi, na minha viagem de Calcutá para a Indochina, conversávamos diariamente durante muitas horas, acompanhados por sua esposa. Era um homem de semblante ossudo e nariz aquilino. Imediatamente me revelou as extraordinárias capacidades e o grande espírito de autodisciplina que caracterizam os oficiais superiores do exército alemão. Não era a primeira vez, é certo, que mantinha relações com oficiais do exército, pois já em Vi'ena conhecera alguns, por certo muito amáveis e delicados, geralmente filhos de famílias cuja situação econômica não era desafogada e viam na carreira militar uma possibilidade de triunfo. Mas Haushofer não era um oficial dessa natureza, porque, filho de uma família ilustre e rica, possuía uma cultura que não se limitava a conhecimentos de caracter puramente militar. Seu pai chegara a publicar trabalhos poéticos e tinha sido, creio, professor universitário. Incumbido pelo governo alemão de seguir pessoalmente as fases da guerra russo-nipónica, dedicara-se, com sua esposa, ao estudo da língua japonesa, procurando mesmo familiarizar-se com a sua poesia. Era um homem que, enfim, me participava que no estudo de qualquer ramo de ciência, mesmo da que se circunscreve a assuntos militares, há sempre, para quem o estude animado de desejos nobres, uma possibilidade de desenvolver outros conhecimentos úteis e afins. Haushofer era um trabalhador incansável que, desde manhã à noite, lia, escrevia e observava, ora compondo relatórios, ora de binóculo em punho, tomando nota das particularidades que chamavam mais a sua atenção. Raramente tive ocasião de o encontrar inactivo. bom observador, sabia expor os assuntos com muita clareza e precisão e a ele devo muito do que aprendi acerca dos complicados assuntos do Oriente. O nosso encontro transformou-se em amizade mantivemos correspondência e, mais tarde, tivemos ainda ocasião de nos encontrarmos em Salzburgo e Munique. Uma grave doença pulmonar obrigou-o a passar cerca de um ano em Davos e em Arosa. Então, libertado de preocupações militares, aproveitou o ensejo para se dedicar exclusivamente a estudos de caracter científico. Tendo-se restabelecido, participou na Grande Guerra, onde obteve um posto de comando. Quando, mais tarde, em 1918, a derrota se desenhou, não pude deixar de me lembrar, com certa curiosidade, de como seria grande a dor desse homem, que trabalhara para o prestígio da Alemanha e até talvez tivesse colaborado na preparação da engrenagem bélica que tornou possível o conflito, ao verificar que o Japão, onde aliás contava muitos amigos, enfileirava ao lado dos que, enfim vitoriosos, estavam do lado oposto da barricada.

Mais tarde vim a saber que Haushofer fora um dos primeiros que afincadamente se dedicara à idéia do ressurgimento alemão. Fundou uma revista onde se debatiam idéias de caracter geopolítico e, como muitas vezes sucede, não descortinei claramente o fim que esse movimento nascente tinha em vista. Julgava tratar-se apenas de uma organização que se dedicasse ao estudo dos problemas políticos e geográficos que por vezes surgem, quase ciclicamente, no equilíbrio das nações. A sua expressão "Lebensraum" (1), que ele foi o primeiro a empregar, creio, colocava-a eu simplesmente, de acordo com Spengler, dentro da órbita natural das flutuações sempre relativas do dinamismo que anima ora um, ora outros povos. O postulado então defendido por Haushofer, preconizando o estabelecimento

 

(1) Espaço vital.

 

de uma organização que tivesse por fim o estudo científico das necessidades vitais dos povos, pareceu-me até suficientemente fundamentado, pois sempre julguei que esses estudos só poderiam servir para uma mais estreita e íntima colaboração entre- as nações. É até possível - é um problema que desconheço - que a preocupação inicial de Haushofer não escondesse um propôsito com determinado político a atingir. Assim, lia os seus livros com certo interesse - fui até citado num deles - porque não duvidava das suas intenções. As suas conferências mereciam os mais rasgados elcgios de pessoas de grande saber e ponderação e nunca chegou ao meu conhecimento que o acusassem de desejar fazer renascer na Alemanha idéias bélicas ou uma política de agressão. Dizia-se simplesmente que Haushofer procurava apenas consubstanciar, com postulados ideológicos inéditos, as velhas preocupações germânicas.

Imagine-se, pois, qual não foi o meu espanto, quando, certo dia, em Munique, ao falar no seu nome. me disseram imediatamente: "O quê O amigo de Hitler " Fiquei espantado, realmente, pois estava longe de supor tal afinidade. Tinha fortes razões para isso, pois a esposa de Haushofer não era um modelo de pureza ariana e os seus filhos "- por certo muito inteligentes e simpáticos - não podiam resistir aos imperativos anti-semitas de Nuremberga. Por outro lado era inacreditável que um homem extremamente culto e erudito tivesse qualquer afinidade espiritual com um vulgar agitador, que tomava por bandeira política aquilo que havia de mais grosseiro e brutal no germanismo. Essa coligação fora, porém, feita por Rudolfo Hess, um dos discípulos de Haushofer. Hitler não se deixa facilmente influenciar pelas idéias dos outros, mas tem contudo uma tendência quase instintiva para as utilizar, sempre que com elas atinja os fins que o animam. E foi assim que a geopolítica se transformou num elemento ao serviço do nazismo, doutrina formada de elementos paradoxais e heterogéneos, cujo fim úni'co, através de postulados mais ou menos flutuantes, era a exacerbação das paixões, a agressividade e o domínio. A facilidade com que o nazismo absorvia princípios e doutrinas díspares era verdadeiramente assombrosa, e eis que, a expressão "Espaço Vital" surgia precisamente no momento oportuno para dar ao movimento de Hitler um manto de aparente filosofia. Era realmente um imperativo ideal, pois, pela sua imprecisão e elasticidade, permitia todas as audácias e podia até dar certa base ética e étnica à política hitleriana de expansão territorial. Doutrina difícil de definir, tinha a vantagem de não parecer facciosa e de justificar todas as arbitrariedades.

E foi assim que o meu companheiro de viagem deu ao movimento hitleriano- não sei se voluntariamente-o impulso vital que havia de lançar o mundo na hecatombe. Hitler, que apenas se tornara o arauto da pureza racial e de um nacionalismo dentro das fronteiras da Alemanha, transformou-se sübitamente, e tomou a teoria do "Espaço Vital" como fundamento para a sua diatribe dominadora: "A Alemanha... e depois o Mundo! "

Era a História que se repetia, mais uma vez. Já outrora o poder estranho e mágico de um lema fascinante, o da "Soberania da Razão" dos enciclopedistas, degenerara precisamente naquilo que há de mais contrário à razão "- o Terror e a Paixão.

Apesar da grande influência que Haushofer exerceu no movimento hitleriano, creio que, contudo, nunca foi pessoa de relevo no partido nazi, e talvez até nem mesmo tivesse sido seu membro. Ao contrário do que supõem muitos jornalistas que julgam tudo saber, não vejo que Haushofer seja aquela misteriosa personagem que, no dédalo subterrâneo do nazismo, se encarrega do maquiavelismo dos planos do Führer. Porém, não há dúvida que as suas teorias deram ao nazismo o impulso que o lançou para fora da órbita estreita do seu primitivo nacionalismo. Nesse campo, a sua acção foi muito mais importante do que a dos mais exaltados conselheiros de Hitler. No entanto, creio que só o futuro poderá dar à personalidade de Haushofer o relevo que ela de facto merecer, pois terá à sua disposição, para esse fim, elementos mais completos do que aqueles de que nós dispomos.

À minha primeira grande viagem oceânica seguiu-se pouco depois outra, à América. O único desejo que me impelia era simplesmente o de ver o mundo e, sobretudo, o de vislumbrar o futuro para o qual a humanidade avança. Creio ter sido um dos raros escritores que não foram à América para ganhar dinheiro ou fazer reportagens, mas unicamente para pôr em confronto com a realidade as idéias imprecisas e vagas de então sobre a vida no continente americano.

Essas ideias eram - confesso - bastante românticas. A América era, para mim, Walt Whitman, o país da harmonia, a terra que via nascer a era da fraternidade universal. Recordo-me que voltei a ler, antes de embarcar, o lirismo arrebatador do grande Camerado e que, assim, quando cheguei a Manhattan, tinha a alma disposta para a fraternidade, pois não existia em mim o sentimento de superioridade vulgar nos europeus que lá desembarcavam. Uma das primeiras coisas que fiz foi perguntar ao porteiro do hotel onde me hospedara se sabia onde estava o túmulo de Walt Whitman, pois desejava visitá-lo. E coloquei o pobre italiano numa situação nada lisonjeira, pois, não me soube responder: nunca tinha ouvido falar em tal nome.

A primeira impressão que recebi de Nova Iorque foi realmente extraordinária, se bem que, nesse tempo, ainda a grande cidade não tivesse o fascinante encanto nocturno que se irradia das suas artérias, cuja luxuriante iluminação, emitida por nuvens de estrelas artificiais, eclipsa a majestade das verdadeiras estrelas da vastidão celeste. A sua arqirtectura estava também ainda nos princípios e o tráfico não tinha adquirido a sua posterior pujança. Delineavam-se os primeiros arranha-céus e os grandes estabelecimentos ainda não primavam pela magnificência das belas decorações e luxo incomparável das suas montras. Mas ir a Brooklyn Bridge, cujo tráfico era tão incessante que lhe imprimia uma leve mas constante vibração, e contemplar o porto ou então vaguear pelas avenidas, orladas de edifícios, constituía já um espectáculo encantador que proporcionava descobertas originais. Contudo, dois ou três dias depois, a exaltação do primeiro momento começou a desvanecer-se, dando lugar a uma vzga e apesar de tudo persistente sensação de isolamento. Para isso contribuía certamente o facto de não ter nada que fazer em Nova Iorque, que era nesse tempo uma cidade onde um homem desocupado muito dificilmente deixaria de se aborrecer, pois então ainda não existiam cinemas, em que qualquer pessoa se pudesse divertir e passar o tempo, nem os cômodos e atraentes bars. A actividade artística e intelectual da cidade era muito limitada e as bibliotecas e museus muito mais raros do que hoje. Verifica-se que, em relação aos problemas do espírito, a velha Europa caminhava ainda na vanguarda. Não admira, portanto, que, dois ou três dias depois, quando terminei de ver os museus e tudo o que de qualquer modo era digno de ser visitado, começasse a vaguear pelas ruas frias e agrestes da cidade, como se fosse um barco sem leme, navegando à mercê dos elementos. Esta situação desagradava-me profundamente e exigia, senão uma solução, pelo menos um lenitivo, ou objectivo que a justificasse.

E tomei a decisão de julgar que era simplesmente um daqueles muitos imigrantes que chegavam à América apenas com sete dólares na algibeira e se abandonam ao deus-dará do destino, que os obriga, três ou quatro dias depois da sua chegada, a procurar o trabalho que lhes dê o pão-nosso de cada dia. E se bem o pensei, melhor o fiz, seguindo o exemplo de todos os estrangeiros que não têm amigos nem recomendações. Comecei então a passear, mas já tinha encontrado um objectivo: - procurar emprego.

E desde esse dia passei a freqüentar as agências de colocações e a ler os anúncios em que se oferecia trabalho. Num lado pediam um padeiro, noutro precisavam de um praticante de escritório que soubesse francês e italiano, e mais além havia uma vaga para empregado de livraria. Esta última- perspectiva era a mais tentadora para o imaginário desempregado que eu era. Decidi-me, pois. Subi por uma escada de caracol até ao terceiro andar onde se encontrava a entidade que fizera o pedido, ofereci os meus serviços e fiz cálculos do que poderia fazer com o ordenado, tomando nota de quanto custava um quarto alugado em Bronx,

cujos anúncios e preços abundavam nos jornais. Dois

dias depois de ter iniciado as minhas actividades como

desempregado que procura trabalho, consegui encontrar cinco empregos, que me assegurariam uma pôssiblidade de existência. Este deambular com um

objectivo foi, evidentemente, mais útil para mim do que

o simples passear, pois adquiri com ele a firme convicção de que neste país florescente e novo existiam possibilidades para quem estivesse disposto a trabalhar. Foi uma bela lição.

Mas a minha peregrinação de agência em agência e de casa comercial em casa comercial revelara-me outra encantadora maravilha americana. -a liberdade.

Neste país magnífico ninguém me perguntava de onde

vinha ou para onde ia, qual era a minha nacionalidade e que religião professava. E até se dera um caso - absolutamente inconcebível para os tempos modernos, em que ninguém pode dar um passo sem "visto", sem licenças e até sem impressões digitais – A de que viajara sem passaporte. A América era um país novo onde o trabalho estava à espera do homem.

E essa certeza, naturalmente, facilitava as relações sociais, que se estabeleciam sem intervenções onerosas do Estado e sem complicações sindicais. As formalidades para a admissão de um empregado ou de um operário eram tão simples que se poderiam satisfazer num minuto. Graças à minha lembrança de me transformar num "desempregado", consegui ver e aprender mais, durante aqueles primeiros dias da minha chegada à América, do que mais tarde quando, como turista, visitei comodamente Filadélfia, Boston, Baltimore e Chicago. Então voltei novamente ao meu tradicional isolamento. Apenas em Boston tive ocasião de passar algumas horas agradáveis com Carlos Loeffler, que havia musicado poesias minhas.

Certo dia, porém, deu-se um inesperado acontecimento que verdadeiramente me chocou. Passeava eu então, despreocupadamente, por uma ampla avenida de Filadélfia. Tendo encontrado uma livraria, parei em frente da montra, para passar a vista pelas capas dos livros, procurando ver se conhecia o nome de algum dos seus autores. E eis que, de repente, descobri qualquer coisa que me assombrou. Nessa montra estavam, à esquerda, em baixo, seis ou sete livros alemães e, entre eles havia um da minha autoria. Foi uma revelação. Eu estava sozinho isolado nessa grande cidade; passeava por aquela grande avenida onde ninguém notava a minha presença e, contudo, eis que, antes de eu mesmo ali chegar, já ali estava qualquer coisa que fazia parte do meu próprio eu! Fora o livreiro que certamente incluíra o meu nome num pedido de livros que enviara à Europa, permitindo assim que uma obra minha fizesse uma viagem de dez dias através do oceano. E também, de súbito, perdi imediatamente a sensação de que estava sozinho em Filadélfia. O acontecimento ficou tão gravado na minha memória que, depois, quando há dois anos tive de novo oportunidade de visitar essa cidade, os meus passos me encaminharam quase instintivamente para essa livraria.

Não tive coragem para ir à Califórnia; Hollynood ainda não existia, mas, no entanto, pude contemplar o oceano Pacífico. O relato das viagens de circum-navegação fascinara desde criança o meu espírito e, por fim, pude ver esse mar imenso; mas, vio-o precisamente de um lugar que já não existe, de um lugar que os mortais nunca mais poderão ver - dos ultimos palmos de terra onde agora se abre o Canal do Panamá, então em construção. Seguira para ali num pequeno barco via Bermudas e Haiti. A nossa geração intelectual era induzida por Verhaeren a admirar as maravilhas da técnica com o mesmo entusiasmo que os nossos antepassados professavam pelas ruínas romanas, E o Canal do Panamá era, realmente, uma extraordinária afirmação do poder da técnica, esse canal que a máquina abria numa terra avermelhada, que não se podia contemplar sem tomar a precaução de proteger os olhos com lunetas escuras, esse canal que singrava por uma zona de peste em que pululavam nuvens de mosquitos, cujas vítimas jaziam nos intermináveis covais do cemitério. Quantos seres humanos não custou essa obra colossal que a Europa iniciou e só a América deveria terminar! Foram necessários trinta longos anos de esforços, catástrofes e derrocadas, mas o sonho ia transformar-se em realidade. Faltavam apenas as comportas, alguns meses de trabalho para os últimos retoques e, depois, a simples pressão de um dedo sobre um botão eléctrico faria unir as duas gigantescas massas oceânicas outrora separadas por um abisme durante milhares de anos. Eu, porém, era um dos últimos mortais que, plenamente consciente do significado histórico daquela hora, ainda via esses dois oceanos divididos. Foi realmente uma despedida inesquecível, essa minha visita ao mais genial empreendimento americano.

 

                 Esplendor e decadência da Europa

Vivera um decênio do novo século, vira a índia, uma parte da América e da África e começava a contemplar a Europa com melhor disposição e alegria. Nunca amara tanto o nosso velho continente como nos últimos anos que precederam a primeira Guerra Mundial, e nunca acreditei mais firmemente na paz e no entendimento dos povos da Europa do que nesse período em que julgávamos ver já no horizonte a aurora anunciadora de um futuro melhor. Mas o que víamos era apenas o clarão do pavoroso incêndio que ia subverter o Mundo.

Compreendo bem que não é tarefa fácil descrever à actual geração, que cresceu num ambiente de catástrofes e crises, e para a qual a guerra é um fantasma cujo aparecimento se tornou vulgar, como era profundo e confiante o optimismo da juventude de outrora. Quarenta anos de paz haviam dado consistência ao sistema econômico das nações, enquanto a técnica criava grandes desenvolvimentos e as conquistas da ciência atribuíam aos espíritos um sentimento de bem fundamentada superioridade. O progresso era evidente por toda a parte, atingindo quase simultâneamente todos os povos da Europa. As cidades tornavam-se cada vez mais belas e a sua densidade demográfica aumentava constantemente. Aquela cidade de Berlim, que eu visitara em 1901, já não era a mesma que via quatro anos depois; nesse lapso de tempo desenvolvera-se tanto que enfileirara ao lado das grandes capitais europeias. E os progressos que nela se observaram até 1910 foram ainda mais notáveis e eloqüentes. O mesmo rápido e constante progresso se observava em Viena, Milão, Paris, Londres e Amsterdão. onde a cada momento surgiam surpresas. As ruas adquiriam mais amplitude, os edifícios públicos tornavam-se mais imponentes e as casas de comércio multiplicavam-se e apareciam com um cunho de mais aperfeiçoado bom gosto e requintada estética. O mundo enriquecia e os indícios desse indiscutível progresso estavam presentes em toda a parte - os próprios escritores eram testemunhas do facto. pois verificávamos que, no curto lapso de um decênio, as edições dos nossos livros triplicavam, quintuplicavam e chegavam a decuplicar.

Fundavam-se novos teatros, museus e bibliotecas e as comodidades que outrora eram apenas privilégio de uma pequena minoria, como, por exemplo, casa de banho e telefone, tornavam-se realidades ao alcance das classes mais modestas. O operário conseguira um horário de trabalho que lhe permitia mais tempo livre e, desde então, começara a despertar também e a melhorar as suas condições de vida. Havia na sociedade uma tendência geral para o aperfeiçoamento e o triunfo surgia a todos os espíritos empreendedores. Quem comprava uma casa, um livro ou um quadro sabia que havia realizado uma operação favorável. A tranquilidade da existência dimanava da certeza de que nada poderia impedir a ascensão constante da sociedade para novas fórmulas de progresso e de bem-estar social. A confiança era lei geral. Nunca a Europa foi tão forte, tão bela e tão rica. Só os decrépitos e os rotineiros sentiam saudades do passado, pois quase todos viviam o presente e acreditavam na possibilidade de um futuro ainda mais risonho.

O próprio organismo humano tornava-se mais belo e saudável, graças à higiene, ao desporto, à alimentação mais abundante e sã, aos horários de trabalho e a um contacto mais íntimo com a Natureza, Descobrira-se que o Inverno, que antes fora uma estação aborrecida, durante a qual se passavam as horas de ócio jogando as cartas no ambiente deletério de salas artificialmente aquecidas, oferecia a rara possibilidade de uma cura selar nas altitudes, onde se tonificavam os pulmões e o sangue se enriquecia. Aos domingos, milhares e milhares de pessoas partiam para a montanha e abandonavam-se ao prazer salutar dos desportos na neve. A bicicleta, o automóvel e o combóio-eléctrico tinham diminuído as distâncias e, assim, a serra, o rio ou o mar já não eram tão inacessíveis. Inauguravam-se templos de cultura física e era precisamente nas piscinas de natação que o novo conceito da beleza e da força se tornava mais evidente, pois os jovens atletas primavam pela elegância da forma e, ágeis e tostados pelos raios vivificadores do Sol, abandonavam-se alegremente às suas competições, que faziam lembrar os clássicos torneios gregos e romanos. Ficava longe a época em que, como na minha infância, um homem bem desenvolvido e proporcionado destoava num ambiente em que predominavam obesos, pescoços disformes e costas arqueadas.

O gosto pela cultura física e o culto pela Natureza penetravam em todos os corações. Aos domingos, exceptuando os doentes ou os decrépitos, ninguém ficava em casa. Toda a juventude corria, lutava ou caminhava abandonada ao prazer do seu desporto favorito. No tempo das férias, já ninguém se limitava a instalar-se nos arredores da cidade ou, quando muito, a ir até Salzkammergiut (1), como quando eu era criança. Havia um grande desejo de ver e conhecer o

 

(1) Região pitoresca nos Alpes austríacos.

 

mundo, de saber como ele era aqui e além, de descobrir todos os encantos. As viagens ao estrangeiro tornaram-se mais fáceis, pois de simples privilégios para alguns, como outrora, passavam a ser acessíveis a núcleos de pequenos funcionários e operários especializados que já podiam ir à França ou à Itália. Isso era possível não somente porque havia mais facilidades, mas porque o homem se tornara mais consciente de si próprio, mais confiante e mais forte. Ser jovem, ao contrário do que sucedia na minha infância, constituía um motivo de orgulho e prazer. E eis que, por isso, se assistiu subitamente ao declínio da barba. A cara rapada e juvenil começou a entrar nos domínios da moda, imposta pela juventude, e até os velhos a adoptaram, para não parecerem velhos. O ar de severidade que até então o homem gostava de aparentar foi substituído pela alegria intensa, pelo grande prazer de prolongar a mocidade, que passou a ser o supremo bem e o lema constante. Esse movimento renovador atraiu a mulher e foi assim que a tortura deformadora do espartilho, o véu e a sombrinha se transformaram em velharias. Já não temia o ar e o Sol, e, como despertava também para a alegria do desporto, tivera de encurtar as saias - imperativo categórico do tênis, que exigia agilidade. Sob o império da moda, foi-se operando uma profunda e salutar transformação nos usos e nos costumes. O homem teve a coragem de aparecer em público de calções e a mulher praticava equitação, montando como qualquer cavaleiro. Havia, enfim, menos hipocrisia e mistério entre eles. A humanidade não era apenas melhor-era também mais livre. A geração que veio depois da minha conquistou mais liberdade, porque tinha mais saúde e mais confiança no seu próprio valor. As raparigas já podiam participar em excursões ou nos desportos sem a vigilância das preceptoras. Podiam confraternizar franca e sinceramente com rapazes, pois adquiriam consciência da sua personalidade, sobrepondo-se ao receio e à timidez que até aí as isolara. Muitas ingressaram na carreira profissional, e ganhavam a vida como empregadas, o que, de certo modo, neutralizara a influência coerciva da família, e lhes assegurava o direito de traçar normas e planos para uso próprio. E notava-se que, como conseqüência de um conceito mais são da liberdade, a prostituição, esse cancro social do passado, tendia a tornar-se uma chaga menos virulenta. A virtude hipócrita, a moral enfatuada, perdia influência, tornara-se anacrônica. As separações, que em certos balneários impediam severa e rigorosamente que os banhistas masculinos vissem os femininos, e eis que cada qual aparecia à luz da realidade, sem vergonha de se mostrar como havia nascido. Em dez anos conquistara-se mais liberdade do que -outrora num século.

É que o ritmo da vida era já outro. No curto espaço de um ano, quantos inesperados acontecimentos se não produziam? As descobertas e os inventos sucediam-se numa escala contínua, enriquecendo o patrimônio colectivo e sob esta influência, os povos tornavam-se mais solidários, adquirindo, pela primeira vez, o sentido da mútua interdependência. Tenho ainda presente um facto de que fui testemunha e que é, nesse sentido bastante significativo. Quando do primeiro vôo do Zeppelin, encontrava-me eu acidentalmente em Estrasburgo, a caminho da Bélgica. Vi como a multidão delirava quando a aeronave, engenho maravilhoso, mas frágil, descreveu um círculo em torno da catedral milenária, como que desafiando-a.

E quando, nessa mesma noite, já na Bélgica, em casa

de Verhaeren, chegou a notícia do desastre de Echterdingen, a emoção do poeta foi tão grande que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Não era um cidadão

belga que sofria com a catástrofe alemã, não: era

um europeu, um cidadão do mundo que se congratulava com a vitória que o invento significava sobre os elementos, e que também comparticipava da dor colectiva pela perda do Zeppelin. E foi também sob influência dessa admiração por tudo o que era de interesse comum que nós, em Viena, saudámos Blériot. com o mesmo entusiasmo que teríamos com um herói filho da nossa Pátria, quando ele voou sobre o Canal da Mancha. A Ciência e a Técnica, cujas revelações eram constantes, lançaram os fundamentos de uma irmandade européia, de uma nascente consciência colectiva que abrangia todos os habitantes do continente. Como são pueris e caricatas as fronteiras, se um avião as pode cruzar rápida e impunemente - dizíamos nós - como são anacrônicas as barreiras alfandegárias numa época que caminha inexoravelmente para a união e para a fraternidade universal!

Esse vôo magnífico do nosso ideal não era menos maravilhoso do que o do avião. E tenho realmente pena dos que, tendo vivido nessa época, não se sentiram tocados por esse sonho belo que pairava no ambiente que nos envolvia nesses últimos anos do século da tranqüilidade e do progresso. Era essa atmosfera que impregnava o nosso espírito de confiança e dinamismo criador que se manifestavam na nossa geração; éramos apenas, como não podia deixar de ser, um reflexo imediato e evidente do nosso tempo. O entusiasmo e o optimismo do indivíduo nasciam do entusiasmo e optimismo da colectividade. É possível até que - ingratos como todos os homens - não soubéssemos então apreciar devidamente a enorme influência que o meio exercia sobre nós. Mas só os que viveram nesse tempo de concórdia e fraternidade sabem que, depois dele, a humanidade retrocedeu.

Essa seiva vivificadora, que alentava o nosso espirito, vinha de todos os pontos da Europa. Mas com a própria felicidade avançava também, sem que o suspeitássemos, o germe da tragédia. Grossas nuvens começavam a toldar o horizonte. Dir-se-ia que a ascensão fora demasiado rápida e que o homem que adquire facilmente um bem, como as nações, de resto, tem sempre tendência para o sobreexaltar ou desbaratar.

A França estava riquíssima: queria, porém, mais colônias, se bem que não tivesse população suficiente para colonizar as que já possuía. E por pouco não rebentou a guerra, a pretexto de Marrocos. A Itália reclamava a Cirenaica, e a Áustria anexava a Bósnia. A Sérvia e a Bulgária voltavam-se contra a Turquia. A Alemanha mantinha-se ainda calma, mas preparava-se já para o grande salto decisivo. Tinha-se a impressão de que um súbito ataque febril perturbara o quietismo das nações, parecendo que o bem-estar de cada uma despertava desejos de atropelar o vizinho. Desencadeava-se uma luta que parecia propagar-se rapidamente, como que por contágio.

Os grandes magnates da indústria da França e da Alemanha, cujos proventos eram fabulosos, entravam na luta aberta da concorrência. Krupp e Sehneider-Creusot queriam fabricar mais canhões. Por outro lado, apesar dos seus formidáveis dividendos, as grandes companhias de navegação de Hamburgo rivalizavam com as suas congêneres de Southampton, enquanto os proprietários agrícolas da Hungria se erguiam contra os da Sérvia. De todos os pontos começava a soprar um vento de loucura. Uma excessiva ânsia de ganhar mais dinheiro nascia subitamente num mundo que, até então, vivera em paz e abundância.

Analisando com serenidade quais as razões que lançaram a Europa de 1914 na voragem da guerra, verifica-se que não havia nenhuma suficientemente forte. Não existiam idéias em luta e quase nem sequer havia problemas de fronteiras, a solucionar. Não encontro outra justificação para esse drama senão a de ter sido a própria força acumulada por aquele extraordinário dinamismo de quarenta anos de paz que teve necessidade de uma válvula de escape. De repente, um determinado país começou a observar que era forte, mas esquecia-se de que os outros também faziam idênticas reflexões. E esboçou-se uma geral vontade de expansão, à custa dos vizinhos, naturalmente. O mais lamentável é que aquilo que constituía o nosso maior título de glória, o sentimento da nossa solidariedade colectiva, foi precisamente o que mais nos traiu. Cada país pensava que as pugnas nunca conduziriam à guerra, porque julgavam que, à última hora, o vizinho cederia, apavorado. A diplomacia tentou então urdir os seus bluffs, como, de facto, sucedeu em Agadir, nos Bálcãs e na Albânia. A situação geral complicava-se, porém, e o ambiente bélico tornava-se cada vez mais denso. Na Alemanha, em plena paz, lançava-se um imposto de guerra. A França aumentava a duração do serviço militar. O conflito ia eclodir. A força acumulada ia irromper. Do lado dos Bálcãs soprava o vento que arrastava as nuvens anuncia doras da tempestade que em breve deflagrara.

Não havia ainda motivo para pânico, mas entre os povos começava a sentir-se um claro indício de receio, que se tornava mais forte à medida que se acentuavam as desinteligências na região balcânica. Seria possível que, sem saber porquê nem como, o mundo fosse lançado na guerra - perguntava-se. As forças pacifistas, na dúvida, só muito lentamente-'que trágica lentidão - se iam organizando. Destacavam-se os milhões de socialistas que, disseminando-se pelo orbe, incluíam no seu programa a luta contra a guerra; grandes sectores da opinião católica, chefiada pelo Papa; diferentes agrupamentos internacionais e alguns homens de Estado clarividentes e sensatos. Também nós, os intelectuais, éramos decididamente contra a guerra, mas, como era notório, cada qual vivia na torre de marfim do seu individualismo. Éramos inimigos da guerra, mas, graças ao nosso optimismo, mantínhamos uma lamentável atitude de passividade perante um problema que, até então, nem sequer entrara no domínio das nossas preocupações literárias. Os mais eminentes escritores da época não focavam esses assuntos, e nenhum lançou ao mundo a nota da sua advertência decidida. Julgávamos suficiente o sentimento da consciência universalista que nos animava, prelúdio de uma fraternidade pan-europeia que, limitada aos nossos círculos, apenas muito vagamente influenciara         a realidade de um mundo dividido por fronteiras e idiomas.

Esse sentimento de europeísmo atraía sobretudo a atenção da juventude. Em Pans, por exemplo, reunia-se à volta do meu amigo Bazalgette um núcleo de jovens que, ao contrário do que sucedera nas gerações anteriores, se levantava contra o nacionalismo exclusivista, o imperialismo agressivo. E Jules Romains, que depois havia de escrever um poema dedicado à Europa em guerra, Jorge Duhamel, Carlos Vildrac, Durtain René Arcos e João Ricardo Bloch, primeiro na Abbaye e depois no Effort libre, tornaram-se os dedicados pioneiros do sonho da Federação Européia e os decididos e irredutíveis adversários do militarismo, como depois provaram com o exemplo, quando chegou o momento oportuno. Creio poder afirmar que jamais a França tivera uma juventude tão digna e tão sinceramente disposta a lutar por idéias generosas de justiça e fraternidade. Na Alemanha também se notava semelhante movimento à volta de Werfel, que no seu núcleo Weltfreund (1) atribuía certo lirismo às idéias da fraternidade, e René Schickele, que, como alsaciano, estava colocado entre as duas nações, também se consagrava afincadamente ao ideal da concórdia. Da Itália, G. A. Borgese enviou-nos fraternais saudações, e da Escandinávia e dos países eslavos recebíamos incitamentos. Um grande escritor russo escrevia-me, dizendo: "Coloca-te decididamente ao nosso lado! Demonstra aos pan-eslavistas, que nos querem lançar na hecatombe fratricida, que vós, os austríacos, não quereis a guerra "

Oh como nós trasbordávamos de puro idealismo, como nós amávamos o belo sonho da fraternidade

 

(1) Amigo do Mundo.

 

européia Mas foi precisamente esse amor e a nossa confiança na certeza do triunfo final da razão que nos perderam. Fomos, certamente, demasiado imprevidentes. Não sabemos decifrar os enigmas que estavam diante de nós. Mas, afinal, não é a crença, e não a dúvida, uma das mais naturais características da idade juvenil?

Acreditámos em Jaurés e na Internacional Socialista; pensávamos que os ferroviários preferiam fazer saltar as linhas, a transportar para a frente da batalha a carne de canhão dos seus irmãos soldados e julgávamos que as mulheres se recusariam a entregar os filhos e os maridos à gula sinistra do Moloch. Tínhamos a convicção íntima de que as forças morais e espirituais da Europa acabariam por triunfar. Essa convicção, que dimanava do nosso ideal comum de paz e de justiça, fundamentado no progresso geral da época, impediu-nos de reconhecer um perigo que também era geral e comum.

A verdade é que estávamos dispersos e não aparecia um chefe, um organizador que aglutinasse as nossas forças. Contudo, havia entre nós um homem extraordinário que reunia as condições para ser esse animador indispensável, mas, o que é mais paradoxal, passava despercebido no nosso seio. Ignorávamos que o destino o havia indicado para nosso guia. Descobri-lo foi, realmente, para mim, um grande prazer, se bem que só o tivesse podido fazer à última hora e com grande dificuldade, pois, apesar de viver no coração de Paris, estava muito afastado da foire sar Ia place (1).

Era na verdade, estranho que os poetas mais ilustres dessa geração fossem precisamente os que levavam vida mais obscura. É um facto que quem escreve a história da Literatura francesa do alvorecer do século XX deve ponderar. Nesse tempo, qualquer jornal apresentava ou elogiava o primeiro poeta que aparecesse, mas pouco se dizia acerca dos três que mais se salientavam, e por vezes até o quase nada que se dizia

 

(1) Do bulício.

 

não estava isento de facciosismo. Recordo-me bem de que, tanto no Figaro como no Matin, de 1900 a 19hII, nunca vi nas suas colunas o nome de Paul Valéry como poeta. Marcel Proust era considerado um diletante de salão e Romain Rolland aparecia como notável erudito dedicado à arte musical. Já qualquer deles tinha cerca de cinqüenta anos quando os primeiros raios da glória começaram a aureolar os seus nomes, pois, na Cidade da Luz, a obra desses gênios fora realizada nas trevas.

Devo ao acaso a oportuna descoberta de Romain Rolland. Uma escultora russa convidara-me a tomar chá em sua casa, em Florença, a pretexto de me mostrar os seus trabalhos e tentar fazer um esboço do meu busto. Cheguei pontualmente à hora aprazada, às quatro esquecera-me de que ela era russa e que, assim, não se preocupava demasiadamente com o factor tempo. Recebeu-me uma velha aia que, segundo depois me disseram, já havia sido ama da mãe da escultora, e conduziu-me ao estúdio, onde o que mais artisticamente sobressaía era a desordem em que tudo se encontrava. Pediu-me que esperasse ali pela senhora. Em dois minutos vi as quatro esculturas que tinha na minha frente. Depois, para não perder o tempo, agarrei num livro, ou, melhor, em dois amarelecidos folhetos que descortinei. Eram dois exemplares da revista Cahiers de la Qumzame. Recordava-me vagamente de ter ouvido dizer qualquer coisa acerca dela em Paris, mas quem podia conhecer todas as revistas que surgiam aqui e além e que, como prematuras e frágeis flores da Idéia, quase sempre nasciam para morrer imediatamente? Comecei a folheá-los e a minha atenção foi despertada para um trabalho de Romain Rolland UAube.

Quem seria esse francês, que tão perfeitamente conhecia a Alemanha - perguntei a mim próprio.

Estava lealmente admirado e até já bendizia a falta de pontualidade da amável senhora russa. Por fim ela chegou e as minhas primeiras palavras foram "Quem é este Romain Rolland?" A sua resposta foi pouco clara, e só quando consegui ler os outros números da revista, cuja publicação continuava, descobri ter enfim encontrado uma obra que não estava apenas ao serviço da nação, mas servia a causa de todas, visto que defendia o entendimento fraternal dos povos da Europa. Romain Rolland revelava-se-me como o escritor de esclarecida visão que seria capaz de dar dinamismo criador às forças espirituais do homem, pois declarava que estas deviam ser norteadas pelo mútuo desejo de saber e da evolução que respeita, da vontade sincera de servir e da crença firme na alta missão evangelizadora da arte. Enquanto nós havíamos perdido o nosso tempo com acções perecíveis, dedicara-se Romain Rolland pacientemente àquela missão de mostrar aos homens aquilo que neles havia de mais digno e de mais respeitável. LiAube era, na verdade, o primeiro trabalho literário que aparecia com caracter bem marcadamente europeu. Era o primeiro verdadeiro apelo à compreensão fraternal dos povos da Europa, muito mais eficiente do que os poemas de Verhaeren, pois abrangia círculos mais dilatados, e também muito mais perdurável e consistente do que os protestos ou panfletos. Rolland dera forma, dera vida, àquilo que todos nós sentiam os que fazia falta. E agira silenciosa e persistentemente.

Tendo ido depois a Paris e lembrando-me da lição de Goethe: Er hat gelernt, er kann uns lehren. (1) procurei informar-me de quem era Rolland. Verhaeren tinha uma vaga idéia do drama que ele escrevera Die Wolf (2), representado no socialista Théátre du Peuple. Bazalgette dissera-me ter a impressão de que se tratava de um musicólogo, que escrevera qualquer coisa sobre Beethoven. Tomei a decisão de ir à Biblioteca

 

(1) Ele sabe; portanto, pode dar-nos lições.

(2) Os lobos.

 

Nacional e consultando o catálogo, encontrei algumas obras de Rolland uma dúzia de trabalhos sobre música clássica ou moderna, e sete ou oito dramas lançados por pequenas casas editoras ou publicados na revista Cahiers de la Quinzaine. Depois disto, enviei-lhe uma espécie de emissário que tinha o fim de estabelecer relações entre nós - um dos meus livros. Em resposta, recebi uma carta, na qual Rolland me convidava a visitá-lo. E assim se iniciou uma amizade que, como a de Freud e a de Verhaeren, se tornou muito íntima e teve, por vezes, influência decisiva na minha vida.

Nem todos os dias são iguais. Uns esquecem-se, outros ficam-nos perenemente gravados na memória. Lembro-me bem daquele em que fiz a minha primeira visita a Rolland. Subi cinco lanços da estreita escada de um modesto prédio das proximidades do Boulevard Montparnasse e, tendo chegado à porta da casa do escritor, recebi subitamente a impressão de que um estranho e profundo silêncio envolvia todas as coises. O ruído da cidade chegava ali já tão amortecido que não era maior do que o gemido do vento nas árvores do jardim de um antigo convento, que eu via através das janelas. Rolland recebera-me e levara-me para a saleta, onde havia livros por todos os lados. E, pela primeira vez, vi os magníficos e luminosos olhos azuis do insigne mestre, esses olhos incomparáveis que revelavam inteligência e bondade e exprimiam todas as gradações do sentimento nostálgicos na tristeza, cintilantes na alegria. Infundiam respeito e profunda admiração. Davam, contudo, certa idéia de cansaço, revelado pelo tom levemente avermelhado das pálpebras. A primeira impressão que recebi, logo que o contemplei, foi quase de pena, pois julguei-o doente. Se bem que alto e bem formado, estava extremamente pálido e um pouco curvado. Adivinhava-se que passara horas inteiras à mesa de trabalho, inclinado para os meus escritos. Falava baixinho e parecia dedicar extremos cuidados à saúde. Só muito raramente saía de casa, não fumava nem tomava bebidas alcoólicas, era muito parcimonioso na comida. Levava uma vida de asceta e, no entanto, tive depois ocasião de admirar o extraordinário dinamismo criador daquele homem que, à primeira vista, dava certa impressão de debilidade física. Quando se sentava á mesa de trabalho, sempre repleta de manuscritos, era para escrever horas sem fim. Lia no leito, contentando-se apenas com quatro ou cinco horas de sono. A sua vida de constante actividade tinha um prazer único - a música. Era um virtuose delicado, um exímio pianista; afagava amorosamente as teclas, como que desejando desencantarno-las e não arrancá-las. Tive ocasião de ouvir alguns virtuosi, entre outros Max Reger, Busoni e Bruno Walter, mas nunca nenhum deles me comunicou tanto encanto espiritual como Rolland.

A sua erudição era imensa. Absolutamente dedicado ao seu mundo intelectual, dominava a literatura, a filosofia e a história e conhecia os principais problemas dos povos e das épocas. Além disso, era um musicólogo consumado; os seus conhecimentos eram vastíssimos neste capítulo. As obras menos difundidas não lhe eram estranhas, como as de Galuppi e de Telemann, e o mesmo sucedia com as de autores de sexta ou sétima categoria. Mas esta exuberância de conhecimentos e constante actividade espiritual não o impediam de consagrar decidida atenção aos acontecimentos mais graves do século. Aquela cela de monge solitário era como que a objectiva que focava a alma do mundo. Rolland conhecera os grandes génios da sua época; fora discípulo de Rénan, estivera em casa de Wagner, tinha sido amigo de Jaurés e recebera de Tolstoi aquela célebre carta que constitui um dos documentos mais claros e reveladores do seu humanismo.

Descobri em Rolland uma superior elevação espiritual - qualidade que sempre encontrava com prazer - e um íntimo e forte sentimento de confiança do valor próprio, isento, contudo, de orgulho, como era natural numa alma nobre. Vendo-o, adquiri imediatamente a convicção de que estava na presença do homem que, na hora suprema, seria capaz de despertar a consciência moral da Europa. O tempo, depois, daria razão ao meu vaticínio. Tendo falado acerca da sua obra Jean Christophe, revelou-me que, com ela, tivera em vista três objectivos primordiais: enaltecer o valor espiritual da música, proclamar a sua confiança na fraternidade dos povos da Europa e, por fim, incutir ponderação e ânimo. Disse-me que era necessário unir todos os homens de boa vontade e que cada qual deveria participar na obra de redenção, em qualquer ponto em que se encontrasse. Era preciso redobrar de energia, porque os que semeavam o ódio e a discórdia eram demasiadamente poderosos, manifestando-se mais empreendedores e activos que os que lutavam pela paz e pela concórdia. Havia forças ocultas que os apoiavam, interesses inconfessáveis que procuravam medrar, não hesitando nos meios a empregar para atingir os fins em vista. Era preciso, pois, que os intelectuais saíssem do seu isolamento e cooperassem decididamente na luta para salvar a humanidade. Adivinhava a tristeza imensa que a fragilidade de tudo o que é humano lançava na alma de Rolland, e o obrigava a declarar, a ele, cuja obra era um hino constante à supremacia dos valores espirituais : «A Arte é para nós um doce refúgio, mas devemos confessar que, só por si, é bem ineficaz contra as vicissitudes da realidade».

Estávamos, então, em 1913. Rolland revelara-me, logo no primeiro encontro que tive com ele, que todos nós tínhamos o dever de procurar impedir que a hipótese de uma guerra europeia se transformasse numa realidade.

E quando o momento decisivo chegou, o prestigio moral que impunha Rolland à nossa estima foi certamente favorecido pelo facto de o eminente artista já ter tido anteriormente ocasião de retemperar a alma pelo esforço e pela dedicação.

Também eu procurava realizar alguma coisa. Fizera traduções de obras dos poetas dos países vizinhos e em 1912 acompanhara Verhaeren numa sér'e de conferências que ele pronunciara através da Alemanha, e que tomarem o aspecto de uma manifestação de amizade franco-alemã. Quando Verhaeren se encontrou com Dehmel em Hamburgo, os dois grandes poetas líricos das línguas francesa e alemã abraçaram-se em público, efusivamente. A actividade em prol do entendimento era fecunda, tanto de um lado como do outro da fronteira. Sob a minha influência, Reinhardt interessara-se pelo último drama de Verhaeren e a nossa satisfação e entusiasmo eram ilimitados, por albergarmos a doce esperança de que tínhamos enfim indicado ao mundo o verdadeiro caminho da harmonia, a salvação.

Mas a verdade é que o mundo que nós procurávamos salvar ficara indiferente perante essas manifestações de fraternidade intelectual e marchava descuidado para o seu trágico destino. O ambiente estava saturado de indícios que revelavam o próximo desencadear da tempestade. Por vezes, ziguezagueavam faíscas - a questão de Zabern. os acontecimentos da Albânia, uma entrevista infeliz ou inoportuna - que bem poderiam lançar fogo à pólvora armazenada nos corações.

Na Áustria, tínhamos o sentimento de que nos achávamos em plena zona nevrálgica. Francisco José ultrapassara em 1910 os oitenta. Era uma relíquia que não podia durar muito tempo, e o povo pressentia que, com a sua morte, o processo da desagregação da monarquia multisecular não poderia ser evitado. Havia evidentes prenuncios de crise interna no choque de interesses e paixões das minorias que compunham o Império. Entretanto, no exterior, a Itália, a Sérvia, a Romênia e até mesmo a própria Alemanha, esperavam o momento oportuno da partilha dos seus despojos. A guerra balcânica levava-nos para o torvelinho fatal, essa guerra em que Krupp e Schne:. der-Creusot experimentavam o efeito dos seus canhões, semeando a morte e a ruína em países estrangeiros, como depois o fizeram também os alemães e os italianos, com a experiência mortífera dos seus aviões na guerra civil de Espanha. Cada faísca que ziguezagueava punha o nosso coração em sobressalto, mas, depois, como a pólvora não explodira, cada qual murmurava, contente: "Ainda não foi desta vez, felizmente E oxalá não seja nunca"

A experência prova que é muito mais fácil reconstituir os acontecimentos de uma época do que as causas ou o ambiente que os determínaram. Para nos elucidar não bastam apenas as opiniões oficiais e, por vezes, há até pequenos casos pessoais mais reveladores da verdade do que elas. Disse já que houve um tempo em que eu não acreditava na possibilidade da guerra, mas, contudo, em duas ocasiões fiquei seriamente sobressaltado e apavorado com o seu espectro. Uma delas foi quando se deu o "caso do coronel Redl", que como todos os de espionagem, não é suficiente e perfeitamente conhecido.

Certo dia conheci esse coronel, personagem implicada num dos mais misteriosos dramas da luta secreta entre nações. Morava não muito longe de minha casa e foi-me apresentado num café, onde estava a fumar tranqüila e despreoccupadamente um charuto pelo meu amigo procurador. Desde então, sempre nos cumprimentámos, mas só o acaso me revelou mais tarde, como há certas existências misteriosas e como, em geral, conhecemos muito pouco acerca das pessoas que nos rodeiam. Este oficial, que, à primeira impressão, pelo menos exteriormente, parecia ser como todos os outros, era pessoa de confiança do príncipe imperial e fora encarregado do cargo extremamente importante de chefe dos Serviços Secretos do Exército. Ora, em 1912, quando a Rússia e a Áustria mobilizaram as suas tropas preparando-se para se atacarem mutuamente, descobrira-se que o inestimável e valiosíssimo documento secreto da Aufmarschplan (1) fora vendido à Rússia. Se a guerra tivesse rebentado nessa altura, a catástrofe teria sido espantosa para a Áustria, pois os russos, possuindo esse documento, conheciam de antemão as disposições do exército austríaco. Não se descreve o pânico que a descoberta dessa traição causou no Estado-Maior. E, naturalmente, o coronel Redl era a pessoa indicada para descobrir o traidor que, evidentemente, se encontrava nas altas esferas militares. Contudo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, não confiando muito na acção investigadora dos Serviços Secretos do Exército - era uma nota flagrante da rivalidade que por vezes existia entre os diferentes organismos do Estado - ordenou que se fizessem investigações especiais por sua conta e risco, sem comunicar o facto ao Estado-Maior. Entre as disposições tomadas, figurava a de se vigiar, sem considerações nem excepções de nenhuma espécie, toda a correspondência que do estrangeiro viesse para a Posta-Restante.

Ora sucedeu que, certo dia, apareceu no correio uma carta vinda para um tal "Opernball", proveniente de Podwoloczyska, na fronteira russa. O endereço era evidentemente suposto. Tendo-se procedido à abertura do envelope, não se encontrou dentro nenhuma carta, mas sim seis ou oito magníficas notas de mil coroas austríacas. A polícia encarregou-se imediatamente do estranho caso e tomaram-se disposições para deter a pessoa que viesse à Posta-Restante reclamar a carta.

E foi então que começou a desenrolar-se o drama

 

(1) Plano de ataque.

 

que, por pouco, esteve prestes a redundar numa comédia de tom marcadamente vienense. A carta fora reclamada por um cavalheiro desconhecido, que se apresentara ao funcionário da Posta-Restante e pedira correspondência para "Opernbalb. Aquele imediatamente dera o sinal combinado para advertir o agente secreto, que, segundo fora determinado, deveria proceder à sua detenção. Mas naquele momento o agente sentara-se para ir ao café da esquina tomar um refresco. Quando regressou, pôde apenas tomar conhecimento de que o cavalheiro já se tinha retirado num trem de praça.

Ignorava-se a direcção que a carruagem tomara. Contudo, o segundo acto da quase comédia ia começar. Naquele tempo, os trens de praça eram magníficas carruagens puxadas a dois cavalos, e o cocheiro considerava-se personagem demasiado importante para consentir em tratar dos animais e lavar o carro. Assim, nos pontos onde estacionavam os trens, havia sempre um Wasserer, espécie de ajudante cuja missão consistia em prestar esses serviços. Ora dera-se a feliz casualidade de que um desses ajudantes de cocheiro tinha notado o número do trem que acabara de partir. Um quarto de hora depois, toda a polícia estava alerta e o trem foi facilmente encontrado. O cocheiro, interrogado, deu os sinais do passageiro e comunicou que o deixara no Café Kaiserhof, precisamente aquele onde eu sempre encontrava o coronel Redl. Outro pormenor interessante consistia em que o desconhecido deixara na carruagem o canivete com que abrira o sobrescrito. Os agentes investigadores dirigiram-se imediatamente ao mencionado café e ali disseram-Lhes os criados que a pessoa que procuravam, e que entretanto já se havia retirado, não era outra, segundo os sinais que davam, senão um conceituado freqüentador da casa, o coronel Redl, que acabara de sair naquele momento e se dirigira ao Hotel Klomser.

Era inacreditável! Estava descoberto o enigma! O coronel Redl, chefe supremo dos Serviços Secretos do exército austríaco, era simultaneamente um espião ao serviço do Estado-Maior russo. Adivinhava-se que não havia apenas vendido o plano secreto, mas que também, por sua culpa, os espiões que ele próprio durante os últimos tempos enviara em missão à Rússia eram invariavelmente presos e processados. O telefone começou a funcionar febrilmente, e uma testemunha ocular contou-me que Conrad von Hôtzendorf, chefe do Estado-Maior do exército austríaco, ficou aterrado quando lhe comunicaram a notícia. A corte fora posta ao corrente da situação e realizavam-se intermináveis conferências acerca da atitude que se deveria assumir. Entretanto, a polícia tomava disposições para impedir a fuga do coronel. Assim, quando este se preparava para sair do Hotel Klomser e dava instruções ao porteiro, aproximou-se dele um funcionário da polícia, discretamente, e, com toda a delicadeza, mostrando-lhe o ca"nivete, perguntou "Não teria V. Ex.a, senhor coronel, deixado este canivete esquecido no trem?"

Redl compreendeu imediatamente que estava perdido. Para qualquer parte onde fosse, era certo encontrar na sua frente as caras bem conhecidas dos agentes da policia secreta. Quando regressou novamente ao hotel, dois oficiais acompanharam-no até aos seus aposentos e fizeram-lhe entrega de um revólver, pois entretanto fora decidido na corte abafar, de maneira decisiva mas discreta, aquele vergonhoso incidente, que manchava a honra do exército. Os oficiais não abandonaram a porta do quarto de Redl no Hotel Klomser. Estiveram ali até às duas horas da madrugada, quando ecoou uma detonação no interior do aposento.

No dia seguinte, os jornais anunciavam o inesperado falecimento do dedicado coronel Redl. Mas o número de pessoas envolvidas no caso não permitia segredos. com o tempo foram-se revelando outros pormenores bastante elucidativos. Descobrira-se que o coronel Redl era homossexual, apesar de os seus chefes e colegas jamais terem suspeitado disso, e veio a averiguar-se que desde há muito tempo se encontrava sob a contínua ameaça de concussionários. Fora para satisfazer as suas exigências que o coronel resvaíra para a traição. O exército ficou alarmado com estas revelações. Era evidente que, em caso de guerra, um simples homem teria ocasionado a morte de milhares e milhares de pessoas e, cem esse desastre, a própria nação terá sido levada à beira do abismo. E só então tivemos, na Áustria, a íntima convicção de que, já no ano anterior, estivéramos na iminência da guerra.

Daquela vez, fiquei realmente desapontado: alguns dias depois, encontrei casualmente Berta von Suttner, a dedicada e generosa Cassandra da nossa época. Descendente de uma das mais ilustres famílias da aristocracia, vira, perto do castelo dos seus antepassados, na Boêmia, quando ainda pequenina, os horrores da guerra de 1866. A sua grande paixão, para a qual vivia com o fervor de uma Florença Nightingale, era obstar ao desencadeamento de outro conflito, era, enfim, banir a idéia da guerra, desterrá-la. Foi com esse fim que escreveu o livro Die Waffen nleder, (1) que obteve grande êxito, e organizou conferências pacifistas. Mas o seu maior titulo de glória foi ter conseguido que Alfredo Nobel, o inventor da dinamite, instituísse o seu famoso prêmio para recompensar os esforços dos homens que mais se distinguissem na luta pela paz, legando assim ao mundo uma dádiva amorosa, que de qualquer modo poderia absolvê-lo do horror da sua invenção.

Logo que me viu, avançou para mim, extremamente excitada, ela, tão ponderada e calma, e quase

 

(1) Abaixo as Armas.

 

gritou, em plena rua: "Não tendes a noção exacta dos acontecimentos. Estivemos à beira do abismo. A guerra estava já à nossa porta, e, apesar disso, o povo não sabia nada do que se passava. E a juventude onde está Porque não lutais contra a guerra Não sois vós os mais indicados para isso Defendei-vos! Uni-vos! Não permitais que essa luta seja apenas empreendida por algumas mulheres já velhas, cujo grito de alarme ninguém ouve!" Respondi-lhe que pensava ir a Paris e talvez fosse possível organizar uma demonstração internacional em defesa da paz.

"O que é isso " - exclamou ela, subitamente. - "Que significa essa expressão Talvez seja possível Não temos tempo a perder. A guerra está em marcha. O conflito pode estalar quando menos se espere. "

Só com muita dificuldade me foi possível tranqüilizá-la, pois devo confessar que eu também me sentia verdadeiramente inquieto.

Quando cheguei a França, pude observar o segundo indício revelador, e que vinha provar-me como tinha razão aquela venerável mulher, que em Viena quase ninguém queria ouvir, e como os seus vaticínios e expressões eram fundamentados. Foi um episódio vulgar, mas altamente impressionante. Na Primavera de 1914 fora à Touraine, com uma amiga de Paris, visitar o túmulo de Leonardo da Vinci. Passearmos durante algumas horas pelas margens risonhas e luminosas do Loire e, quando chegou a tarde, estávamos realmente um pouco cansados. Ficámos em Tours, cidade tranqüila e amena, onde já estivera antes para visitar a casa de Balzac, e, à noite, decidimos ir ao cinema, pequena casa de espectáculos que se erguia nas ruas mais afastadas do centro da cidade. Era uma simples sala adaptada a cinema e estava cheia de gente modesta daquilo a que verdadeiramente se podia chamar o povo-operários, soldados, vendedores, etc. Palrava-se familiarmente e, apesar de ser proibido fumar, cada qual sentia-se com o direito de tornar irrespirável o ambiente lançando grossas baforadas de fumo azul dos seus cigarros tipo "Sca/er/afi" ou "Capora/". Por fim, iniciou-se a representação com o filme "Actualidades mundiais". A primeira parte, que mostrava uma corrida de baixos na Inglaterra, despertou pouca atenção, pois a assistência conversava e ria; a segunda apresentava uma parada militar em França, e recebeu quase idêntico acolhimento. Depois surgiu no pano o título da terceira novidade - "O Imperador da Alemanha visita o Imperador da Áustria". Via-se a bem conhecida e nada extraordinária gare da estação do Oeste, em Viena, onde as autoridades esperavam o comboio especial. O velho imperador Francisco José passava em revista a guarda de honra dirigindo-se ao encontro do visitante. Francisco José, que caminhava um pouco curvado e com passo lento, suscitou o sorriso bondoso da assistência, enternecida pela figura daquele ancião de suíças brancas. Por fim, apareceu a locomotiva e imediatamente após a primeira, a segunda e a terceira carruagens. De súbito, abriu-se a purtinhola da carruagem-salão, e o imperador Guilherme II apeou-se, envergando uniforme de general do exército austríaco, bem retorcidas e erectas as pontas do seu clássico bigode.

A vista do imperador da Alemanha fizera desencadear na obscuridade da sala uma tremenda e espontânea descarga de assobios e pateada. Dir-se-ia que toda a assistência havia sido subitamente ofendida, pois toda ela-homens, mulheres e crianças-participava na manifestação tumultuosa. Aqueles bons e simpáticos habitantes de Tours, que da política e do inundo conheciam apenas o que liam nos jornais, tinham enlouquecido subitamente.

E a verdade é que fiquei profundamente pasmado com aquela explosão de indignação popular, pois ela advertia-me de que o veneno da propaganda fratricida já havia penetrado, bem fundo, nos corações, de tal modo que os pacíficos civis e soldados que vi viam numa pequena cidade se levantavam, em uníssono, contra a Alemanha, contra o seu imperador, simplesmente porque a imagem deste tinha aparecido num filme. Embora a expressão duraxa apenas um momento, porque, pouco depois, a mesma multidão ria, alegremente, em presença das peripécias de uma qualquer fita cômica. Mas, contudo, fora um momento revelador, pois provara-me como seria fácil excitar os ânimos dos povos num momento dado, apesar de todos os nossos desejos de fraternidade, apesar de todas as nossas tentativas e esforços para realizar a concórdia e manter a paz.

Fiquei de tal modo apavorado que naquela noite não pude dormir. Se tivesse presenciado um incidente daquela natureza em Paris, teria ficado admirado, é certo, mas não aterrado, pois agora sabia que o ódio já havia alastrado, já penetrara nas cidades da província e conquistara os corações ingênuos e simples dos seus modestos habitantes.

Dias depois, contei as minhas apreensões aos meus amigos, alguns dos quais trataram imediatamente de me acalmar, dizendo-me: "Tu não conheces os franceses, meu caro. Não ligam muita importância à política. Zombámos muito, nós, os franceses, da obesidade da rainha Vitória, mas isso não impediu que, dois anos depois, fizéssemos uma aliança com Inglaterra!"

Rolland tinha outro critério, pois opinava que "quanto mais ingênuo é o povo, tanto mais facilmente se deixa influenciar. com a vitória de Poincaré, a situação tornou-se mais crítica. E é de esperar que a sua viagem a Sampetersburgo não seja um simples passeio". A nossa atenção concentrou-se no Congresso Internacional Socialista, aprazado para o próximo Verão, em Viena, mas, neste caso, também Rolland se mostrou mais céptico do que os outros, declarando: "Quantos serão capazes de resistir, afinal, à ordem de mobilização? Não vos esqueçais de que vivemos numa época em que triunfam os instintos gregários, em que impera o histerismo avassalador da multidão. E a força desse instinto é ainda insuspeitada, se um dia surgir a realidade da guerra".

Apesar destes momentos dramáticos, em breve os nossos espíritos se acalmaram. Encarávamos a possibilidade da guerra, mas pensávamos nela como qualquer homem pensava na hipótese da morte - como um acontecimento remotíssimo. Depois, Paris era tão encantador naqueles dias, e nós éramos ainda tão novos e tão felizes! Precisamente numa daquelas tardes tivera Jules Romains a idéia de parodiar a coroação do prince dês poetes, festa que os estudantes haviam realizado, arrastando um simplório qualquer até junto do monumento de Rodin em frente do Panthéon e coroando-o. Romains, ripostando, ideara a coroação do prince dês penscurs, reunindo-nos todos num fraternal banquete, onde demos largas à jovialidade sem fim da nossa alegria- juvenil. De resto, o ambiente da cidade era acolhedor, atraente. As árvores começavam a florir. Pouco admirava, pois, que, nessa atmosfera de calma, os pensamentos trágicos se eclipsassem. Os amigos tornavam-se cada vez mais íntimos e até conquistava outros, naquele país que era "inimigo" do meu. Paris estava mais tranqüilo e calmo do que nunca, e, como todos também me sentia tranqüilo e calmo, agradecia e amava aquela tranqüilidade.

Por fim, acompanhei Verhaeren a Ruão, onde ele foi realizar uma conferência, alguns dias antes da minha partida. Admirámos a bela catedral, cujas flechas, apontadas para o céu, fulguravam na magia sem fim do luar. Pertenceriam tais maravilhas apenas a uma pátria ou eram realmente patrimônio da humanidade?

Depois despedimo-nos, naquela mesma estação onde, dois anos mais tarde, Verhaeren havia de ser trucidado por uma daquelas máquinas que ele tanto exaltara. Abraçando-me, exclamava: "Espero-o em minha casa de Cailou qui bique, no primeiro de Agosto" Prometi aceder ao seu desejo, pois essa visita tornara-se já um hábito. Visitava-o todos os anos aí, onde, num ambiente da mais estreita camaradagem, traduzíamos os seus últimos versos. Despedi-me também alegremente de todos os outros meus amigos e de Paris, com aquele estado de espírito de quem sai do seu próprio lar com a íntima convicção de que, dentro de algumas semanas, regressará novamente a ele.

O meu plano para os próximos meses estava traçado. Retirar-me-ia para o campo, na Áustria, e terminaria o meu trabalho sobre Dostoiewski e com ele o livro Drei Meister (1), Só cinco anos mais tarde poderia realizar o meu desejo. Era um estudo que me permitia focar uma das nações mais importantes do mundo, através do seu romancista mais eminente. Depois, visitaria Verhaeren e no Inverno talvez realizasse a viagem que há já muito tempo projectara à Rússia, para organizar nesse país um núcleo que comungasse nas nossas preocupações espirituais. O horizonte aparecia límpido ao meu olhar. Então, tinha eu trinta e dois anos de idade, e o mundo, nesse Verão luminoso, era como que um fruto prometedor que se oferecia ao meu encanto. E eu amava-o sinceramente, não apenas pelo seu presente, mas pelo futuro, que antevia mais belo.

Mas eis que, subitamente, soou o tiro de Serajevo, esse tiro que fez voar em mil pedaços, como se fora frágil e uma redoma, o mundo tranqüilo, luminoso e calmo em que havíamos nascido, crescido e vivido. Estávamos a 28 de Junho de 1914.

 

(1) Três Mestres.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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