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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NASCER DO DIA / Adam Williams
O NASCER DO DIA / Adam Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Palácio dos Prazeres Celestiais

O NASCER DO DIA

1º Volume / 1º Parte

 

           NOTA ACERCA DOS NOMES CHINESES

Na transliteração dos sons da língua chinesa usei, sempre que me foi possível, o sistema moderno chinês Pinyin em vez do sistema Wade Giles, que era corrente em 1900.

Todavia, para os nomes de locais muito conhecidos e de personagens históricas, usei a grafia usada na época. Por conseguinte, a capital chinesa é Pequim e não Beijing. Situei a origem dos Boxers na província de Shantung em vez da moderna Shandong. O ministro reformista chinês é Li Hung-chang em vez de Li Hongzhang (como aparece, actualmente, nos compêndios de História chineses). Empreguei a palavra Ching para a dinastia chinesa, em vez do moderno Qing.

Na China, o apelido vem antes dos nomes próprios. Assim, Fan Yimei é Miss Fan e não Miss Yimei. E, tal como acontecia entre nós há cem anos, os amigos tendem a tratar-se pelo apelido e não pelo nome de baptismo. O título vem depois do apelido. Por exemplo, se usarmos os termos para mister (Xiansheng, literalmente “primogénito”), miss (Xiaojie, literalmente “irmã pequena”) ou mestre (de um ofício: Shifu), “Mr. Lu” seria “Lu Xiansheng”; “Mandarim Liu” seria “Liu Da Ren” (“Liu, o Grande”); “Mestre Zhao” seria “Zhao Shifu”; “Tia Ma” (criada de Frank) seria “Ma Ayi”. As mesmas regras se aplicam às alcunhas: por exemplo, a proprietária do bordel, “Mãe Liu”, é “Liu Mama”, em chinês.

Os Chineses tendem também a indicar intimidade e respeito por meio de um epíteto descritivo, antes ou depois do apelido. O porteiro trata Fan Yimei por “Fan Jiejie”, ou seja, “Irmã mais Velha Fan”. Um amigo mais velho poderia chamar-lhe “Xiao Fan”, ou “Pequena Fan”, o que não é, de forma alguma, um tratamento depreciativo nem, tão-pouco, o seu oposto: “Lao Fan” ou “Velha Fan” poderia ser usado por um amigo mais novo ao dirigir-se a uma pessoa mais velha. Por vezes, todavia, pode haver um significado diferente, se o adjectivo for colocado depois do nome de família, em vez de ser colocado antes. O camareiro é tratado usualmente por “Jin Lao”, literalmente “Jin, o Velho”, mas, posto o adjectivo desta maneira, na realidade significa ”Venerável Jin” e é uma demonstração de grande respeito de um inferior para com um superior; chamar-lhe ”Lao Jin” seria um tratamento demasiado familiar.

 

 

         LEGAÇÃO BRITÂNICA, PEQUIM, JULHO DE 1899

Os livros de geografia dir-vos-ão que as tempestades de areia de Verão, se bem que raras, são, em regra, violentas.

Assim foi naquele Verão.

 

Ventos fortes da Sibéria varreram a bacia sobreaquecida da planície do Norte da China, desprotegida após três anos de seca, levantando, sem dificuldade, a areia do deserto de Gobi e o loesse poeirento das margens escarpadas do rio Amarelo, e inundando as terras gretadas com uma espessa nuvem cor de âmbar.

 

A tempestade de areia avançou como uma horda de bárbaros - ou como uma dessas insurreições de camponeses que, de tempos a tempos, ao longo da história da China, surgiram do nada e acabaram por derrotar as tropas decadentes que tentaram, em vão, barrar-lhes o caminho. Tal como os Turbantes Amarelos, os Taipings ou o Lotus Branco, como todas essas revoltas com as quais chefes de bandidos sonharam (e por vezes conseguiram) ascender ao Trono do Dragão, a tempestade de areia, agigantando-se com as suas vitórias, cresceu, em tamanho e furor, até as suas tropas serem suficientemente fortes para escalar as altas muralhas e as portas fortificadas da capital imperial, espalhar-se pelas ruelas mais estreitas, infiltrar-se até nos pátios da Cidade Proibida, onde um imperador fraco ainda detinha o Mandato do Céu nas suas mãos débeis. Foi assim que aquela tempestade de areia, numa noite de Verão do último ano do velho século, invadiu as ruas de Pequim, com a sua miríade de soldados vitoriosos à solta, pilhando a cidade acabada de conquistar. Demónios de poeira gritaram o seu trilho devastador por entre os butongs, destruindo violentamente os cartazes das fachadas ornamentadas das lojas, despedaçando os portões dos pátios, cortando a pele dos raros temerários que se aventuraram a sair e a enfrentar os dardos de areia que voavam de todos os lados.

 

Foi um dia sem crepúsculo: o Sol pálido desvanecera-se depois de atingir o zénite. A escuridão sobrenatural do meio-dia fundiu-se imperceptivelmente com as trevas de uma noite sem estrelas. Os habitantes de Pequim, refugiados no calor das suas casas, mantinham-se agachados para se protegerem dos uivos do vento que corria lá fora; era uma daquelas noites em que o mal espreita em toda a parte.

 

Nessa noite, não houve festas no Bairro das Legações: nenhum candelabro brilhava nas salas de baile. Landaus e caleches ficaram fechados nos estábulos, juntamente com os cavalos, e as janelas foram protegidas por tábuas de madeira. Os guardas que tiveram a infelicidade de estar de sentinela cobriram o rosto e protegeram-se da areia o melhor que puderam; quanto aos ministros e respectivas esposas, resolveram deitar-se mais cedo.

 

Nas noites de Verão, a Legação Britânica ostentar uma iluminação feérica propiciada pelas lanternas dos pátios. Lady MacDonald, castelã de um palácio que outrora pertencera à nobreza Manchu, dava azo à sua predilecção pela chinoiserie. Fingia não ouvir os comentários dos poucos verdadeiros orientalistas da Legação, para quem as decorações de Lady MacDonald, inspiradas na opereta Mikado, eram, de certa forma, supérfluas (ou, como diriam os Chineses, o mesmo que “pintar pernas a uma serpente”). Como primeira anfitriã de Pequim, sabia exactamente o que agradava aos representantes das potências estrangeiras que frequentavam as suas festas: mais valia dar uma imagem idealizada da China do que revelar a sórdida realidade que exsudava das sarjetas e dos esgotos, para lá dos muros da Legação. Lady MacDonald não hesitava em recorrer à opereta de Gilbert e Sullivan para favorecer uma civilização três vezes milenar.

 

Nessa noite, contudo, todo o ouropel fora retirado: os pavilhões chineses e as arcadas ornamentais, com os seus pilares e os telhados recurvados, submetiam-se, desprotegidos, à tempestade de areia, tal como todos os outros edifícios da cidade. Violentas rajadas de vento fustigavam as varandas e faziam bater as tábuas pregadas às janelas para proteger as vidraças importadas. Os gincos sacudiam os ramos em todas as direcções, quais espíritos dementes, agitando freneticamente as folhas em forma de leque, como se tentassem travar a areia que voava em todas as direcções. Os velhos edifícios, vultos cinzentos e escuros destacando-se num céu ainda mais escuro, pareciam curvar-se perante aquela investida. Era como se houvessem voltado ao estado de decrepitude em que se encontravam até os Ingleses chegarem e os renovarem. As silhuetas dos telhados semelhantes aos dos templos, recortadas na noite, lembravam os santuários desertos que povoam a literatura popular chinesa, assombrados por espíritos e demónios. O jardim de Lady MacDonald não era naquele momento mais do que um terreno baldio e inóspito, onde as tenebrosas aparições dos anteriores residentes podiam vaguear, bem como as numerosas criaturas do folclore chinês - fadas-raposas, deuses-serpentes, espectros esfaimados - e outras inquietantes criações da superstição que, segundo a tradição, surgem em noites como aquela.

 

No entanto, Sir Claude e Lady MacDonald não estavam preocupados com o temporal, nem tão-pouco reparavam nos seus efeitos devastadores. Ambos dormiam profundamente, debaixo dos mosquiteiros das suas camas, na Residência Principal, outrora, o Pátio Ancestral.

 

Um único oficial da Legação estava acordado e se revelava sensível aos perigos da noite. A sua lamparina brilhava debilmente num dos andares altos, atrás de uma janela de um dos edifícios menos imponentes, situado numa das extremidades do complexo - em tempos um armazém onde os duques guardavam o seu tesouro. Ali ficava o quarto do intérprete, um jovem inglês recém-chegado à Legação. Em mangas de camisa, estava debruçado sobre uma pequena secretária, onde vacilava a chama da lamparina. A sua luz revelava paredes de madeira, uma cama de hospital e estantes apinhadas de livros, na sua maioria em chinês. O jovem redigia um despacho fora da chancelaria, fora do horário normal de trabalho, a meio de uma noite de tempestade - por conseguinte, não podia tratar-se de algo que dissesse respeito aos assuntos oficiais da Legação. Além do mais, os seus modos furtivos bastavam para indicar que se tratava de um assunto confidencial. Transpirava, o cansaço vincava-lhe os traços do rosto magro e os seus olhos avermelhados esbugalhavam-se ao menor ruído. De tempos a tempos, interrompia-se, pousava a pena e ia até à porta para perscrutar a escuridão dos corredores que conduziam ao seu quarto. Depois, voltava para o seu manuscrito, só parando para molhar a pena no tinteiro. Escrevia apressadamente mas com uma caligrafia nítida.

 

Vossa Senhoria está ao corrente das actividades dos Alemães em Shantung. Fomos informados de que eles instauraram um governo colonial, que já se encontra em funcionamento na concessão de que se apoderaram no ano transacto, em Chiao-chou. Continua a ser preocupante a conduta ditatorial dos seus missionários, cuja “defesa” das comunidades cristãs é frequentemente apoiada pelas tropas alemãs: as reparações exigidas por alegados ataques a solo cristão têm sido exorbitantes. Essa conduta é potencialmente perigosa numa província com um historial de rebeliões e de banditismo e que, além do mais, abriga numerosas seitas que praticam artes marciais e sociedades secretas, que florescem numa região pobre como aquela.

 

Um estrondo ecoou, vindo do andar inferior. O jovem parou de escrever e fitou a porta. O estrondo ecoou de novo.

 

- Raios partam as persianas e o vento e tudo o resto... resmungou, entre dentes, continuando a escrever.

 

Mais alarmantes ainda são as actividades dos Russos no Nordeste. Uma grande parte da Manchúria é já um protectorado russo, se não oficialmente, pelo menos na prática. As intenções dos Russos já eram, aliás, evidentes desde 1896, quando pressionaram o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Li Hung-chang, a assinar uma alegada “aliança defensiva”, concedendo à Rússia o direito de prolongar a linha do transiberiano para leste, atravessando o Heilongjiang. Logo após se terem apoderado, no ano passado, da península de Liaotung, reclamaram concessões para construir uma linha norte-sul, desde Harbin até Port Arthur. Apesar dos nossos protestos, as concessões foram-lhes atribuídas. É verdade que, após a queda em desgraça de Li Hung-chang, e o subsequente golpe de Estado conservador, no Verão passado, o novo governo, mais reaccionário, mostrou-se menos inclinado em aceder às exigências estrangeiras, mas isso não altera o facto de a construção do caminho-de-ferro russo avançar rapidamente. Uma importante rede cobre já o Norte da Manchúria e, assim que tiver ligação ao mar, será difícil conter o avanço dos interesses económicos (e, de facto, militares) da Rússia. A perspectiva de uma anexação por parte dos Russos torna-se uma preocupação real.

 

Até há pouco tempo, o nosso único objectivo era conseguir financiar a criação de uma linha de caminho-de-ferro de propriedade chinesa entre Pequim e Mukden. A linha principal para Mukden está quase concluída. A ideia de lhe acrescentar uma ramificação a norte, indo de Jinzhou a Shishan, e mesmo mais longe, até ao lago Lião, também obteve a aprovação do conselho de administração. Há sólidos argumentos comerciais para este projecto: facilitaria o transporte dos grãos de soja desde as zonas ocidentais dessas províncias para os portos do Sul. Há também razões estratégicas nunca mencionadas: se isto puder constituir o princípio de uma rede de caminho-de-ferro paralela à rede russa, neutralizará, em parte, a vantagem militar que os Russos tenham alcançado. A dada altura, receámos que o presidente honorário da companhia, que, por obra do acaso, é o mesmo Li Hung-chang que outorgou as concessões à Rússia, pudesse opor-se a esta parte do projecto, mas, por ironia do destino, defendeu-a; talvez tenha aprendido com os seus erros passados. Contudo, a construção do caminho-de-ferro não poderá solucionar, só por si, os nossos problemas. Até agora, os trabalhos avançaram lentamente, apesar de todos os esforços dos engenheiros ingleses e alemães encarregados do projecto. É tempo de...

 

Uma pesada gota de suor caiu-lhe da testa sobre a folha de papel, esborratando a tinta fresca do manuscrito; com cuidado, o jovem colocou o mata-borrão sobre a mancha, recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Estava cansado, muito cansado... Se pudesse dormir apenas por alguns minutos, isso seria... Despertou, sobressaltado, e levantou-se com dificuldade. A sua mão alcançou uma das estantes e pegou numa garrafa meia de brande, que levou aos lábios. Ouviu um ruído abafado. Parecia vir do patamar. O jovem estacou antes de avançar para a Porta. Desta vez, passaram-se cinco minutos antes que regressasse à secretária.

 

É tempo de pensar noutras estratégias. Tenho plena consciência da relutância de Vossa Senhoria perante a ideia de investir mais fundos ou recursos numa região considerada exterior à esfera dos interesses ingleses. Pediu-me que sondasse as intenções dos Japoneses, e tenho o prazer de informar Vossa Senhoria de que as suspeitas deles se intensificaram no que diz respeito às actividades dos Russos. Existe agora no exército imperial uma facção “avançada”, que defende acções ofensivas para conter os Russos na Mancharia. O nosso agente no Alto Comando em Hokkaido - Vossa Senhoria sabe a quem me refiro - informou-me que simulações de um ataque a Port Arthur fazem parte dos exercícios de campo regulares do exército e da marinha; também me disse que, na messe, os oficiais fazem abertamente brindes ao dia em que a bandeira do sol nascente flutuará sobre o porto de Dairen. Há muito quem acredite que uma guerra entre as duas potências eclodirá dentro de poucos anos e que o vencedor anexará as províncias manchus na sua totalidade. Se tal acontecer, será do nosso interesse que esse vencedor seja o Japão e não a Rússia.

 

Sobressaltou-se com uma espécie de raspar na porta, logo seguido por um ruído que não conseguiu identificar: um gemido, que pareceu sobrepor-se ao fragor da tempestade e ao bater de uma persiana no andar inferior. Era um som humano, agudo, que tanto podia ser um queixume como um grito de desespero. O jovem levantou-se de um salto, atirando a cadeira ao chão, e agarrou num bastão de críquete, à falta de melhor arma. Brandindo-a por cima da cabeça, pronto a atacar, abriu a porta.

 

- Quem está aí? - perguntou, com uma voz esganiçada.

- Quem está aí? - repetiu, num tom mais enérgico.

 

Tanto de um lado como do outro, estendiam-se os corredores sombrios e desertos; a pequena chama da sua vela reflectiu-se, vacilante, na madeira polida das paredes.

 

- Apareça, quem estiver aí! - gritou. - Não tenho medo!

 

Voltou a chamar, desta vez em chinês:

 

- Ni shi shei? Ni shi shei? Chulaiba! Wo bu pá.

 

Não obteve resposta; apenas o insistente bater das persianas, no andar inferior.

 

- Não tenho medo! - rosnou. Então, soltou uma risada e acrescentou: - Mostrem-se, suas bruxas negras e furtivas da meia-noite! Crêem realmente que um inglês pode ter medo de uma fada-raposa?

 

Baixando o bastão de críquete, enxugou a testa com a outra mão e murmurou:

 

- Enlouqueceste... Estás louco de todo. Meu Deus, o que eu não dava para poder dormir...

 

Fechou a porta em silêncio e regressou à secretária, mas ainda precisou de vários minutos e de mais um copo de brande antes de voltar a pegar na pena.

 

Entre o Norte da Mancharia e Harbin existe um vasto território que se mantém sob controlo, ainda que precário, do governo chinês. Sabemos que os Russos lançam mão de todos os estratagemas para aumentar a sua influência junto dos funcionários locais e dos comandantes do exército, e mesmo junto dos bandidos mais poderosos. Desconfiamos que armas provenientes do arsenal do lago Baical, a leste da Sibéria, estejam a ser entregues a funcionários locais (em troca de dinheiro). Seria do interesse dos japoneses retomar para si esse “tráfico de influências”. Creio que nos encontramos em posição de os ajudar discretamente.

 

Ponderei qual o melhor local para concentrarmos os nossos esforços e sou a favor de Shishan. Vossa Senhoria notará, se consultar um mapa, que a cidade ocupa uma posição estratégica na zona fronteiriça, entre os centros russo e chinês de construção do caminho-de-ferro. É, também um dos raros sítios fáceis de defender por ter sido construída nas únicas colinas de uma região quase totalmente plana. Asseguram-me que uma tropa bem armada podia defender as colinas Negras de um exército: é, sem dúvida, a razão pela qual, ao longo da história, Shishan sempre foi uma cidade de guarnição e um ponto de paragem seguro para as caravanas.

 

Procedeu, então, a uma breve descrição de Shishan, da respectiva população e actividades económicas. Acrescentou o que sabia sobre o mandarim e descreveu, também, os estrangeiros que viviam na cidade: os engenheiros do acampamento do caminho-de-ferro, o representante da Babbit e Brenner, uma empresa de produtos químicos, e o excêntrico médico e missionário, o Dr. Airton, em quem depositava grandes esperanças. Seriam justificadas? Lembrava-se de um estranho jantar que o chefe da Chancelaria oferecera em honra de Airton, aquando de uma das deslocações do médico a Pequim. Sir Claude, que tinha por princípio nunca jantar com missionários, delegara-lhe a tarefa de reforçar o número de convivas do jantar. Ficara surpreendido pela grande simpatia que o médico lhe inspirara, com o seu bom-senso, sentido de humor e um estranho fascínio pela literatura de cordel e pelas histórias de cobóis. Um missionário muito pouco convencional. Seria de confiança? De qualquer modo, de momento, não havia mais ninguém. Continuou:

 

A amizade entre Airton e o mandarim, com quem se encontra regularmente, para falar de filosofia e de política, poderia proporcionar-nos a apresentação de que precisamos.

 

Terminara, ou quase. Mal conseguia manter os olhos abertos. Ao menos, o ruído lá fora diminuíra um pouco, e não houvera mais sons estranhos provenientes do corredor. Em que raio havia ele pensado! Fadas-raposas! E, no entanto, tinham-no avisado do perigo, antes de partir de Londres. “Apesar da sua aparente cultura”, disseram-lhe, “são tão primitivos como todos os outros com quem temos de lidar no Império. Por detrás das suas belas cerimónias do chá, têm uma infinidade de estranhas crenças, geralmente perigosas. Para além do seu trabalho político, deverá investigar os seus cultos e sociedades secretas, porque pensamos que daí possam advir potenciais perigos; mas, cuidado, não se torne um nativo, ouviu bem?” Seguiram-se seguido muitas gargalhadas, no porto, enquanto ele se ficara por um sorriso cortês - pensando que sabia mais do que os seus superiores, devido ao seu doutoramento em línguas orientais.

 

Espero que Vossa Senhoria concorde com as minhas propostas. Estou cada vez mais convencido de que o mandarim de Shishan pode tornar-se a peça-chave do poder político nesta região, e um agente ao nosso serviço para travar a influência russa. Possui bastantes qualidades a seu favor: um passado militar recomendável, uma reputação de administrador poderoso e independente; é cruel, impiedoso e completamente corrupto. E ambicioso. Recentemente, tentou treinar a sua pequena guarnição segundo os modernos métodos marciais. Se Vossa Senhoria aprovar, e com a ajuda do exército imperial japonês - e das suas armas -, creio que poderemos reforçar, sem qualquer dificuldade, a posição do mandarim. De qualquer forma, poderemos vir a ter, na pessoa de Sua Excelência, o mandarim Liu Daguang, um senhor da guerra que nos seja leal...

 

A cabeça tombou-lhe sobre os braços; pouco depois, dormia. Antes de adormecer, entreviu uma imagem com vestes esvoaçantes, cabelos sedosos e belos olhos castanhos, lábios vermelhos entreabertos, pequenos dentes pontiagudos e uma cauda que ondulava lentamente, bem como garras, presas...

 

Já um raio de sol tingia de vermelho as paredes de madeira; lá fora, a tempestade de areia dissipara-se com a alvorada. Os pátios de Lady MacDonald haviam recuperado a sua tranquilidade. As criaturas da noite - se é que existiam - haviam regressado ao reino imaginário de onde tinham surgido. O jovem intérprete mexeu-se enquanto dormia e a longa carta - que a seu modo também era, ela própria, fantástica, no arquitectar de esquemas e de conspirações desse outro mundo imaginado da política - caiu ao chão, folha após folha.

 

OS BANDIDOS VIERAM DE NOITE E ROUBARAM A NOSSA MULA. COMO TRANSPORTAREMOS AS COLHEITAS, NA ALTURA DA CEIFA?

 

O Dr. Airton contava ao mandarim as proezas do bando do Buraco no Muro.

 

- Mister Butch Cassidy talvez seja um fora-da-lei, mas não é um homem ignorante - explicou, enquanto procurava nos bolsos do colete um fósforo e o seu cachimbo de raiz de urze-branca. O mandarim, reclinado no kang (já tinha fumado dois cachimbos de ópio e sentia-se agradavelmente saciado, depois de um almoço leve e de uma hora com a sua terceira, e favorita, concubina), fitava com complacência o estrangeiro de casaca, sentado num tamborete a seu lado. Com um farfalhar de seda e um tilintar de jóias, uma criada debruçou-se por cima do seu ombro e, com todo o cuidado, despejou o chá nas chávenas de porcelana. Depois, com movimentos delicados, colocou de novo o bule na cesta de vime que o mantinha quente e saiu do gabinete, fazendo uma reverência.

 

- Obrigado, minha querida - agradeceu o Dr. Airton, inclinando a cabeça na direcção da graciosa silhueta. Volutas de fumo elevaram-se e concentraram-se em volta da sua cabeça. - Talvez fique admirado por saber que o Butch Cassidy provém de uma boa família inglesa - retomou. - O pai, apesar de ser mórmon, nasceu em Accrington, no Lancashire. O jovem Butch talvez não tenha tido a sorte de frequentar as melhores escolas da costa leste, mas era instruído. Aliás, são necessárias certas capacidades mentais para planear e executar assaltos a comboios tão bem-sucedidos.

 

As suas últimas palavras foram abafadas pela altercação vinda do pátio contíguo ao gabinete de trabalho do mandarim; duas vozes exaltadas gritavam, fazendo-se ouvir através das vidraças ensolaradas da janela. Eram a cozinheira e a criada de quarto, que mais uma vez discutiam, pensou o médico. espantava-o que meros criados, na casa de um magistrado, tomassem a liberdade de discutir tão ruidosamente na presença do amo; não conseguia imaginar um tal comportamento na residência de um juiz inglês. Quanto ao mandarim, não parecia particularmente irritado, esperando pacientemente que o ruído das vozes se dissipasse.

 

- Então, é difícil assaltar um comboio? - murmurou.

 

- Oh, sim! - respondeu o médico. - Exige um planeamento cuidado: conhecer os horários, ter espiões na estação, colocar um obstáculo convincente na via-férrea, dispor de dinamite, ser habilidoso com o laço e ter um bom plano de fuga. E, também, manter uma certa disciplina no bando. Os cobóis são, em geral, um pouco rebeldes.

 

- Terei de ensinar os meus soldados a fazer frente a esse tipo de assaltantes, assim que o caminho-de-ferro estiver concluído - comentou o mandarim.

 

O Dr. Airton riu-se; a ideia de um bando de chineses, com os seus rabichos, ataviados com máscaras e sombreros, a brandir pistolas e a galopar atrás de um comboio, parecia-lhe tão estranha quanto cómica.

 

- Não creio que corra o risco de deparar com esse tipo de problemas, Da Ren. - Empregava o título de cortesia reservado aos mandarins, literalmente “Grande Homem”. Mesmo depois de se tornarem amigos, o médico insistia em empregar os termos apropriados, sempre que se dirigia aos notáveis de Shishan. Em troca, esperava que o tratassem por Yisheng, “Médico”, ou Daifu, “Doutor”. Sabia que, na cidade, usavam uma expressão menos lisonjeira para o descrever, mas ainda nunca ninguém lhe havia chamado, cara a cara, Chi Laoshu, “Devorador de Ratos”. Aliás, orgulhava-se daquela alcunha que ganhara havia quatro anos, durante a epidemia de peste bubónica que o levara, pela primeira vez, a Shishan. Pouco depois da sua chegada, mandara pregoeiros anunciar pelas ruas que pagaria a soma principesca de dez sapecas por cada rato morto ou vivo que lhe trouxessem. Isso granjeara-lhe uma reputação de excêntrico e convencera aqueles que não o achavam já de que os estrangeiros eram malucos; no entanto, a caça aos roedores que se seguira dizimara a população de Rattus rattus portadores da doença, contribuindo para a erradicação da epidemia. O monumento que o mandarim mandara erigir em honra do médico, assim como o rumor de que o grande imperador Ch’ing lhe havia atribuído uma medalha pelos seus extraordinários dotes de curandeiro, haviam alicerçado a sua reputação. Todavia, a alcunha ficara e era ainda frequente ser interceptado na rua por camponeses com cestos de ratos mortos que tinham esperança de atrair as suas preferências gastronómicas.

 

O mandarim inclinou-se para a frente e sorveu delicadamente o seu chá. Descontraído, no seu gabinete, optara por roupas confortáveis: o rabicho grisalho enrolava-se à volta do pescoço e as calças de fino tecido branco, muito largas, estavam arregaçadas até aos joelhos. O seu traje oficial e o gorro, com um botão de jade, achavam-se cuidadosamente pendurados num caixilho de madeira, num dos lados do gabinete. Por cima do kang ficava a biblioteca, que subia até ao tecto pintado e esculpido, com cada uma das estantes protegida por cortinas de seda amarela. Todas elas continham cópias de clássicos da literatura chinesa mas também obras mais populares e uma variedade de rolos de papel. O Dr. Airton sabia que estes incluíam uma colecção muito valiosa de estampas pornográficas. O mandarim mostrara-lhe certo dia as impudicas imagens e rira-se a bom rir do embaraço do médico.

 

Por baixo do kang, o chão de pedra estava coberto por um tapete de Tientsin, azul e branco, parcialmente iluminado pelo sol que procurava infiltrar-se no gabinete. Atrás, na penumbra, perfilavam-se mesas e cadeiras, no estilo depurado Ming, e uma escrivaninha desarrumada, sobre a qual havia papel, uma pedra de tinta e pincéis, em potes de porcelana. Vários rolos caligrafados estavam pendurados na parede do fundo presentes de professores, pintores e outros notáveis. Um relógio de pêndulo tiquetaqueava ruidosamente, a um canto; finos raios de luz, filtrados pelas portas e janelas, incidiam nas volutas de fumo azul que se enrolavam, quais dragões, em volta do cachimbo do médico, tecendo, através das partículas em suspensão no ar, uma fina camada de pó que cobria todas as superfícies. O cheiro a tabaco misturava-se a um ténue odor de incenso, perfume velho, mofo e sujidade. Era uma divisão pequena, que fazia lembrar ao Dr. Airton a cabina de um navio, mas gostava daquela atmosfera abafada e aconchegante. Além disso, o facto de o mandarim o convidar para beber chá com ele nos aposentos privados do yamen era sinal inequívoco da intimidade que crescera entre os dois homens.

 

Se bem que o mandarim fosse baixo e com tendência para a obesidade, o rosto largo e o corpo musculoso conferiam-lhe uma presença que fazia esquecer a sua estatura.

 

- Os ombros de um jogador de râguebi - assim o descrevera o Dr. Airton, certo dia, à esposa - e as mãos de um carniceiro. Imagina-o, no seu traje oficial, no yamen, de sobrolho franzido, com o carrasco atrás, a rir-se, e os pobres criminosos, nas suas cangas, a lamber a poeira, à frente dele, enquanto se interrogam se receberão cem chicotadas ou se lhes vão cortar a cabeça. Oh, é um tártaro, minha querida, com um olhar frio e inflexível e um coração sanguinário. Um dos mais temíveis patifes que é possível encontrar por aqui, mas, por outro lado, tem sido muito amável comigo.

 

- Mas, Edward, não me disseste que era um homem velho? - perguntara Nellie, nervosamente.

 

- Aye, sim, é velho. Tanto pode ter sessenta como oitenta anos, pelo pouco que sei, mas está muito bem conservado, e é forte como um marinheiro, apesar da barriga descaída e do duplo queixo. Um homem poderoso em todos os sentidos. Continua a caçar a cavalo, a praticar a pontaria com o arco e, certo dia, em que cheguei mais cedo, vi-o a fazer exercícios com uma espada. Uma espécie de grande cutelo, que ele fazia rodopiar por cima da cabeça como uma pluma, enquanto movia os pés e o corpo como um acrobata. Suponho que era o tai-chi - já deves ter visto pessoas a fazer esse género de exercícios, de manhã, perto do rio, mas eu ainda não vira ninguém brandir uma peça de ferro tão grande. Ele estendeu-ma, depois de acabar, e mal consegui levantá-la. Explicou-me que era a espada de um general dos Taipings que ele matara, quando jovem; tem um punho magnífico, incrustado de jade, e o seu fio é tão afiado como o de uma navalha. Pergunto a mim próprio quantas cabeças terá ele cortado na juventude...

 

- Deves ter mais cuidado - pedira-lhe a mulher. - Sei que te diverte contar coisas para nos assustar, a mim e às crianças. É o teu estilo de humor, que não finjo sequer compreender, mas esse mandarim parece um homem terrível, Edward, e não gosto que...

 

- Ele é meu amigo, Nellie - rematara o médico.

 

E acreditava sinceramente nisso. Os dois homens tinham o mesmo espírito filosófico; eram ambos cultos. A isso devia acrescentar-se o inesgotável interesse que o mandarim parecia ter por tudo o que dizia respeito ao mundo exterior; e ele, o médico, podia dar-lhe informações sobre a Inglaterra, o Império e a Europa, sobre o equilíbrio dos poderes, os progressos da ciência e da tecnologia, e até sobre armamento. Não havia quaisquer dúvidas de que aquelas conversas contribuíam para uma melhor compreensão e uma melhor cooperação; eram benéficas para a China, para a Grã-Bretanha, para o mundo inteiro. Para já não falar do êxito que tinha no hospital. E no caminho-de-ferro. Agora que se tornara médico oficial da companhia ferroviária, era seu dever granjear o apoio das autoridades locais, que tanto podiam favorecer esse projecto tão útil, como para prejudicá-lo.

 

O Dr. Airton suspirou. Tinha consciência de que deixara a sua mente vaguear. Acontecia-lhe com frequência durante as longas pausas meditativas que entrecortavam as suas conversas com o mandarim. De que estavam a conversar, ele e o mandarim? Do caminho-de-ferro, claro; referira-se ao bando do Buraco no Muro, que fora tema dum folhetim sensacionalista de que ele era assinante, e que chegava, uma vez por mês, vindo da sede da missão, em Edimburgo, com o abastecimento médico, as revistas, os jornais ingleses, a revista Blackwood’s e os artigos domésticos destinados à sua mulher. Ficara contente por o mandarim o ter questionado acerca das grandes obras ferroviárias que estavam a chegar ao fim no continente americano. Dera-lhe a deixa para abordar o assunto dos bandidos, que, naquele momento, era um dos seus principais focos de interesse. Sentiu que os olhos de pálpebras descaídas do mandarim o observavam com complacência.

 

- Estou admirado por ver um sábio como o senhor, meu caro Daifu, falar de um bandido com um certo tom de admiração e dizer que é um homem instruído. O caminho do saber conduz à virtude e não encontro nenhuma na pilhagem de um comboio, por muito habilidoso que o assalto possa ser. Não posso pensar bem de um país que atribui mérito aos seus criminosos, apesar de a América ser ainda um país jovem, como me disse.

 

- No entanto, na China existem certamente lendas acerca de bandidos e de salteadores famosos... De reis dos piratas, talvez? Na semana passada, na praça do mercado, vi com grande prazer uma trupe de teatro ambulante representar cenas do vosso grande clássico Na Margem da Agua. Fatos magníficos, acrobacias espantosas, mas a história é a do Robin dos Bosques. Heróis exilados que se insurgem, em nome do povo, contra a injustiça e a tirania. Não é uma excelente história para um grande romance?

 

- Eu decapito os bandidos e os piratas - respondeu o mandarim. - Quanto ao povo, sou eu que o protejo.

 

- Claro, claro, nem pensar em deixar escapar os ladrões e os criminosos... - atalhou o médico. - No entanto, o homem comum gosta de um pouco de cor na sua vida, e, frequentemente, é este género de heróis, de foras-da-lei, que lhes confere esse colorido. Não creio que já tenha tido oportunidade de ler um romance de Sir Walter Scott...

 

O mandarim sacudiu a cabeça, cortesmente.

 

- Gostaria de lhe traduzir o Rob Roy...

 

- Seria uma experiência exótica, meu caro Daifu, mas se é algo do género de Na Margem da Agua, eu pensaria duas vezes antes de autorizar uma tradução. Tem razão quando afirma que o homem comum experimenta sensações fortes com as proezas dos heróis. É algo de inofensivo se inspirar apenas contos para crianças e belos cenários para a ópera, mas é dever de um administrador certificar-se de que o povo canaliza a sua admiração para causas mais justas. Nunca deve encorajar-se seja quem for a imitar aquele que viola a lei. Imagino que, até mesmo na América, os mandarins de lá estejam preocupados com os indevidos louvores feitos a esse vaqueiro que, segundo me contou, assalta comboios.

 

- De facto, incomodou bastante Mister Harriman e a direcção da Union Pacific Railroad - replicou Airton. - Mas, como acaba de dizer, Da Ren, a América é um país jovem e selvagem. Espero que a linha Pequim-Mukden, quando a sua ramificação até Shishan estiver concluída, não depare com esse tipo de problema. E que não tenhamos nada a recear de pessoas como o Homem de Ferro Wang e o seu bando.

 

Um trejeito de desagrado perturbou os traços sempre impávidos do rosto do mandarim, como uma rajada de vento num charco de águas paradas.

 

- Pergunto a mim próprio, meu caro Daifu, por que razão continua a sentir-se fascinado por esse tal Homem de Ferro Wang. Já lhe disse, em muitas outras ocasiões, que tal homem, se existir, não passa de um desses pequenos bandidos que vivem nas grutas e aborrecem os nossos mercadores que forem suficientemente tolos para percorrer as rotas comerciais de noite. Nada tem a temer de tal criatura.

 

- Não duvido, Da Ren. Se o mencionei mais uma vez, foi apenas porque a criadagem da cidade fala dele. Histórias com certeza muito exageradas...

 

- Histórias exageradas de mercadores, que passam o tempo a queixar-se, inventando que foram roubados por bandidos, apenas para esconder as suas riquezas dos meus cobradores de impostos.

 

- Sem dúvida - respondeu o médico, prudente. Mas, mesmo assim, todos nós ficámos muito felizes, os engenheiros do caminho-de-ferro e o meu amigo, o Mister Delamere...

 

- O negociante de sabão?

 

- De álcali, Da Ren. Ele fabrica cristais de álcali. Ficámos todos muito contentes por saber que o major Lin vai partir em breve com as suas tropas para o que parece ser uma expedição contra os bandidos das colinas Negras.

 

- O major Lin organiza todo o tipo de exercícios e treinos para os nossos soldados imperiais. Por vezes, pode tratar-se, de facto, de incursões nas colinas Negras. Se porventura o Major Lin e as suas tropas encontrassem criminosos no seu caminho, estou certo de que cumpririam o seu dever e os prenderiam, mas não é concebível a hipótese de uma expedição contra um único bandido. Eu só autorizaria tal coisa se houvesse um problema de banditismo, e não há, como já lhe assegurei.

 

- E o ataque contra a caravana de mulas de Mister Delamere, em Abril...

 

- Foi um infeliz incidente. Um acto de selvagens, de bandidos, que muito me embaraçou. Ordenei que se investigasse o caso e descobrimos e punimos vários criminosos, entre os aldeões.

 

- Sim, houve uma decapitação.

 

- E fez-se justiça. Mas não foi obra de um qualquer lendário Homem de Ferro Wang.

 

Os olhos do mandarim mexeram-se e a sua boca abriu-se num sorriso aberto. O Dr. Airton pegou no cachimbo; o mandarim riu-se e inclinou-se para lhe dar uma palmada afável na coxa.

 

- Não se preocupe, meu caro Daifu. Você e os seus amigos são meus hóspedes, e do imperador e da grande imperatriz viúva. Não falemos mais de bandidos e de assaltos a comboios. Diga-me, que novidades me traz acerca do caminho-de-ferro? Os trabalhos estão a avançar a bom ritmo?

 

Airton sentiu o peso da gorda mão pousada na parte interna da sua coxa e o frio do anel de jade atravessando o tecido das calças. Aquele gesto não o perturbava. Sabia que o contacto físico era uma manifestação de intimidade para os Chineses, uma marca de amizade entre cavalheiros. Lembrou-se dos ferozes soldados de Lin a andar na rua de mãos dadas, fora das horas de serviço ou até mesmo quando faziam patrulhas. Alguns dos colegas missionários de Airton eram muito rápidos a condenar a mais inocente marca de afecto como origem da lascívia. Pensava que seria mais fácil propagar a verdadeira fé se os seus praticantes se mostrassem um pouco menos intransigentes. Não se julgava dotado de uma sensualidade desenfreada; gostava de pensar que era tolerante e humano. Como médico, compreendia a fraqueza da carne e não condenava severamente os seus semelhantes pelos seus hábitos nem pelos seus pecadilhos. Por outro lado, como escocês, teria preferido que o mandarim houvesse mantido as mãos afastadas da sua perna. Por haver tratado de várias das concubinas do seu anfitrião, teve uma visão indigna de outras coxas - mais rechonchudas e certamente mais atraentes do que a sua - que aquela mesma mão havia apertado. Teve de fazer um esforço para trazer a conversa de volta à mente.

 

- O caminho-de-ferro, Da Ren? Terá, como é evidente, um relatório mais completo de Herr Fischer, que se encontra no acampamento, mas posso dizer-lhe que, quando fui até lá, há alguns dias, parecia uma colmeia em plena actividade. Neste preciso instante, estão a colocar os alicerces da ponte no leito do rio e creio que uma das equipas de vistoria procura já o melhor local para abrir um túnel nas colinas Negras.

 

- E quando ficará concluída a junção com a linha principal para Tientsin?

 

- Daqui a alguns meses. Herr Fischer disse-me que estava agradecido pela sua ajuda e que há muito poucos problemas com os camponeses a quem teve de comprar as terras para fazer passar a via-férrea. Espero que tenham recebido já a devida recompensa...

 

- Sim, a vossa companhia tem-se revelado muito generosa.

 

- Fico contente por sabê-lo. Disseram-me que, por vezes, os camponeses podem revelar-se muito supersticiosos acerca de certos aspectos do progresso que estamos a trazer-lhes, tais como os apitos, os ruídos, os vagões que cospem fogo e os estranhos zunidos que se ouvem nos carris. Estou errado, Da Ren?

 

O mandarim riu-se - um estranho cacarejo estridente para um homem tão corpulento. Tirou a mão da perna do médico e agitou-a em frente do rosto.

 

- Primeiro, bandidos, e agora, fantasmas! Pobre Daifu, em que mundo tão perigoso você vive! Meu caro doutor, devemos realmente preocupar-nos com os disparates em que acredita a populaça ignorante? Beba um pouco de chá e pense antes na riqueza e na prosperidade que as maravilhas da sua civilização vão trazer.

 

O médico também se riu.

 

- Desculpe, Da Ren, mas é verdade que me preocupo, de tempos a tempos. É por causa dos rumores que correm. Deve perdoar-me. Somos estrangeiros num país desconhecido e sentimo-nos inquietos, quando ouvimos falar de...

 

- De bandidos e de fantasmas!

 

- Sim, de bandidos e de fantasmas, mas também de praticantes de artes marciais, que se reúnem nas aldeias, e de sociedades secretas, que despertam as superstições dos ignorantes. Tenho a certeza de que não passam de disparates, mas a verdade é que houve motins, em que estrangeiros foram mortos. Aquelas freiras em Tientsin...

 

- Isso foi há vinte anos - replicou o mandarim. Deixara de rir. - E o ministro Li Hung-chang, de acordo com o nosso governo, concedeu indemnizações às vossas potências.

 

O médico detectou na última palavra uma nota de sarcasmo, invulgar no seu interlocutor.

 

- Nem todos são tão esclarecidos como o senhor, Da Ren - replicou, atrapalhado, - e receio que nós, os estrangeiros, nem sempre sejamos bem-vindos neste país.

 

O mandarim recostou-se na almofada.

 

- Daifu - continuou -, não sou homem para ocultar a verdade por detrás de um véu de banalidades reconfortantes. O meu país passa por tempos difíceis e há entre os meus compatriotas quem se sinta apreensivo com o que os estrangeiros trazem. Você fala-me de medos e de superstições. Mesmo entre os meus colegas, no mandarinato, há quem não aprecie as actividades dos vossos missionários. Conheço-o há já muitos anos e sei que é um médico que se preocupa com o meu povo. Mas existem outros missionários, e temos um nesta cidade, cujas motivações são menos claras. O povo receia que, quando as vossas missões levam os seus filhos...

 

- São meninas que, de outra forma, seriam abandonadas...

 

- O abandono de filhas não desejadas é um costume muito antigo. Talvez não seja um bom costume, mas é nosso, Daifu. Compreendo que agem por caridade, quando recolhem essas criaturas, mas os nossos camponeses ouvem histórias segundo as quais as meninas servem para estranhos ritos da vossa religião. Fala-se de comer carne humana...

 

- Um autêntico disparate.

 

- Claro que é um disparate. Mas o senhor já mostrou ser uma daquelas pessoas que dá ouvidos aos rumores e às histórias dos ignorantes. Não estávamos nós a falar de bandidos e de fantasmas? Nada sei sobre sociedades secretas. Crê que eu permitiria que elas existissem, se soubesse alguma coisa? Claro que não. Pelo contrário; sempre acolhi bem os estrangeiros. O senhor, Daifu, Herr Fischer, o engenheiro, e até aquele grande comerciante de sabão, o Delamere, têm tanta coisa para nos ensinar. O grande império Ching é fraco perante toda a vossa tecnologia. Deram-na aos anões bárbaros que vivem do outro lado do mar e, há cinco anos, eles declararam-nos guerra, destruíram a nossa frota e roubaram territórios que nos pertencem. Sim, estou a falar dos Japoneses. E, agora, outros abutres estrangeiros vêm até cá, para deitar as garras às concessões, segundo a vossa expressão. Os Russos, a oeste e a norte, os Alemães, em Shantung, e vocês, os Ingleses, um pouco por toda a parte. Ali um porto, acolá uma ilha ou um pedaço de terra. No nosso governo e até mesmo na corte imperial muitas pessoas, perguntam: “Quando acabará tudo isto?” E gostariam de expulsar os abutres estrangeiros do nosso país.

 

“Eu não, Daifu. Não quero que partam. Dou-vos as boas-vindas. Se o nosso império é fraco, então, temos de fortalecê-lo. Devemos aprender o que faz a força de uma nação moderna. E, em boa parte, o seu armamento. Eu próprio combati contra as tropas estrangeiras e vi arder o palácio de Verão dos nossos imperadores... Não passava de um rapaz, na altura. Éramos corajosos, hábeis no manuseio da lança e do arco, mas vocês tinham melhores armas. Agora, o major Lin não pára de reclamar: ”Dêem-me espingardas!” Mas não se trata somente de espingardas. Vocês possuem a riqueza e também a tecnologia e as invenções. Têm medicamentos modernos, Daifu. Sabem curar tão bem como matar. Se a China quer voltar um dia a ser forte, se o imperador quer sentar-se confortavelmente no trono, então, devemos saber o que vocês sabem.

 

“É por isso que estou contente por o ter aqui, Daifu, e é por isso, também, que lhe asseguro a minha protecção.

 

O mandarim riu-se de novo, e Airton voltou a sentir a mão na sua coxa.

 

- Protegê-lo-ei dos bandidos, dos fantasmas e das sociedades secretas.

 

O mandarim inclinou-se para a frente, de forma a que o olhar do Dr. Airton se fixasse directamente nos seus olhos velados, e acrescentou num murmúrio:

 

- É por isso que gosto das nossas pequenas conversas, Daifu. Ensinam-me o que quero saber.

 

Soltou outro cacarejo estridente e deu uma palmada rápida no joelho de Airton. Com surpreendente agilidade, pôs-se de pé e apertou vigorosamente as duas mãos do médico, que mal tivera tempo de se levantar.

 

- Então, até à próxima. É sempre um prazer falar consigo, Daifu. Bandidos e fantasmas. Ah, ah!

 

A audiência terminara. Com uma amável cortesia, o mandarim entregou ao médico a bengala e o chapéu e acompanhou-o à porta, com o braço por cima do seu ombro.

 

- Um destes dias irei ao acampamento do caminho-de-ferro para ver o andamento das obras. Queira transmitir os meus cumprimentos a Herr Fischer e à sua equipa.

 

- Não me esquecerei, Da Ren. Sabe que ele vai ter em breve um novo assistente? Um inglês?

 

- Já mo disseram - respondeu o mandarim. - Será bem-vindo. São todos bem-vindos, em Shishan.

 

Jin Zhijian, o velho camareiro, esperava ao pé dos leões de pedra, ao fundo da escada que conduzia ao gabinete do mandarim. Tinha as mãos entrelaçadas por debaixo das mangas da túnica, de um azul deslavado, e usava o chapéu branco cónico dos funcionários subalternos. Os seus olhos remelentos sorriam, vincando de rugas um rosto de asceta.

 

- Jin Lao vai acompanhá-lo até ao portão - disse o mandarim. - Até ao nosso próximo encontro.

 

- Adeus, Da Ren, e que a sua família goze de boa saúde. Lady Fan tem tomado o seu remédio?

 

- Já não sofre de dores de estômago, obrigado.

 

O mandarim seguiu com os olhos o médico, enquanto este atravessou o pátio, atrás da figura alta de Jin Lao e, depois, transpôs as portas vermelhas que se abriam para os recintos exteriores do yamen.

 

Que roupas estranhas e pesadas usavam aqueles estrangeiros no pino do Verão... Não conseguia compreender por que motivo achavam que casacas pretas e cartolas eram a indumentária adequada para visitar um magistrado. Durante alguns segundos, o mandarim apreciou particularmente a frescura da seda da sua própria roupa. Olhou as folhas verdes do ginco e as sombras negras e delicadas, como que caligrafadas, que os seus ramos desenhavam nas lajes brancas do chão, iluminadas pelo sol. Estendeu os braços até lhe doerem os ombros e inalou longas lufadas de ar húmido e perfumado. Da varanda dos aposentos, ao lado, chegavam-lhe os murmúrios da família e criadagem. Uma torrente de vozes agudas. Novamente discussões? Não; uma risada ressoou, seguindo-se o suave som de um instrumento musical. Sorriu, enquanto pensava na sua pequena Moth, de dedos brancos com unhas finas despontando, travessos, da manga de brocado vermelho, percorrendo o seu ventre, os olhos desafiando-o a rir, enquanto a mão dela começava a descer...

 

Que devia pensar das perguntas do médico? Haviam sido astutas, como sempre. Bem informadas, mas também ingénuas. Não deixava de o surpreender que os estrangeiros, com todos os seus conhecimentos, o seu saber e as suas extraordinárias capacidades técnicas, pudessem simultaneamente revelar-se tão tolos, quando se tratava de compreender as regras básicas da vida. Eram como crianças espertas que assistiam, pela primeira vez, ao Festival das Lanternas - guinchando, encantadas, por haver deslindado o primeiro enigma de um dos poemas, mas sem compreender que o poeta escondera outros níveis de significação sob os jogos de palavras mais evidentes. Quando o médico lhe falara do Homem de Ferro Wang e de sociedades secretas, houvera um outro significado escondido nas suas palavras? Desconfiaria ele do seu envolvimento nas conspirações secretas? O mandarim duvidava. Era um fenómeno curioso - e também desconcertante, para muitos dos seus compatriotas, e, consequentemente, causa de vános mal-entendidos - que, em geral, os estrangeiros falassem apenas do que os preocupava acima de tudo o resto. Quem Procurasse subtileza na conversa de um bárbaro rapidamente Se yia enredado numa teia tecida pela sua própria imaginação.

 

Não havia dúvidas de que o médico ouvira rumores - havia sempre rumores, e até se devia encorajá-los, porque podiam servir tanto para confundir como para revelar certas coisas -, mas era impossível que soubesse algo sobre os movimentos das sociedades de patriotas; não podia escutar o avanço silencioso do caruncho, roendo as cornijas do palácio, nem a agitação das larvas de moscas varejeiras nos montes de estrume das terras; não podia saber que o Mandato do Céu estava prestes a passar para as mãos de uma nova dinastia. Havia aspectos da China que nenhum estrangeiro alguma vez compreenderia, apesar do domínio que possuíam sobre o mundo físico. No entanto, o mandarim devia ser ainda mais vigilante. Era perigoso que um bárbaro estrangeiro pudesse reparar nos fios do grande brocado, mesmo que fosse incapaz de discernir o tecido no seu todo.

 

Dissera ao médico que assistira ao incendiar do palácio de Verão. Teria falado de mais? Não lhe parecia. O médico apreciaria essa confissão como mais uma marca da intimidade entre eles, a que parecia dar tanta importância. Em todo o caso, fora sincero quando afirmara ao médico que ficara impressionado com o poder do Ocidente. Ainda se lembrava do vão ataque das forças do seu país às linhas francesas. Revia os galhardetes que adejavam, a púrpura e o bronze das armaduras, os reflexos do sol nas dez mil lanças do seu invencível exército. Não era a sua primeira batalha. Ganhara o seu rabicho, alguns anos antes, com o general Zheng Guofan e os seus bravos Hunan contra a ralé dos Taipings; mas era a primeira vez que combatia os bárbaros vindos do outro lado do oceano. Ainda sentia o pó da planície do Norte, o odor acre dos cavalos, o cheiro agridoce do suor e do medo. O inimigo estava entrincheirado na margem de um rio. Seria fácil: investir contra os franceses através dos campos de milho-miúdo espezinhados. Enquanto o seu pónei retesava nervosamente as rédeas, os arreios estalavam de todos os lados e a fila de porta-bandeiras esperava a ordem para avançar, pensara, confiante, que tudo acabaria rapidamente. E assim fora. Tudo terminara no que lhe parecia, agora, haver sido apenas um breve momento fixado na eternidade. Já não se recordava do barulho, mas o ribombar das espingardas devia ter sido ensurdecedor. Não se lembrava de haver feito o menor movimento, muito menos de investir contra o inimigo, nem do momento em que o seu cavalo caíra sob o peso do seu corpo. Apenas se lembrava de ficar de pé, imóvel, enquanto o exército chinês morria à sua volta - lembrava-se dos cavaleiros e dos cavalos que se empinavam para cair, uns atrás dos outros, da terra que voava, dos braços e pernas arrancados e dos disparos. Experimentara então um sentimento de pasmo, de júbilo de invencibilidade por haver sobrevivido ao que sabia ser uma viragem decisiva na história do seu país. Nada voltaria a ser como dantes.

 

Não sentia animosidade para com os soldados estrangeiros. Eram homens como os outros. Tinha morto um, naquela mesma noite, quando fugira para norte; era um jovem soldado que entrara na casa onde ele se escondera para pilhar. O rapaz choramingara, gorgolejando quando ele lhe cortara a garganta. Tirara-lhe a espingarda e os cartuchos, sentindo o poder e a beleza de uma arma tão eficaz. Tão-pouco sentira ira quando, mais tarde, se escondera numa mata, em frente do palácio em chamas, do outro lado do lago, e vira arder os símbolos da dinastia Manchu. Se algum sentimento o dominara, fora, de novo, o de júbilo. O Mandato do Céu havia sido retirado àquela dinastia e um novo poder iria dominar o país. Fora nesse dia que decidira fazer parte do novo poder.

 

Nos dias difíceis que se seguiram à guerra, a ideia esmorecera, mas não totalmente. Continuara a sua carreira de soldado, dedicando-se ao serviço do novo general, em ascensão na época, Li Hung-chang. Participara nas novas expedições contra os Taipings, assim como contra os rebeldes Nien, e soubera despertar a atenção do general. Fora este que pessoalmente se ocupara de o mandar fazer os exames imperiais. Mais tarde, revelara ser um magistrado eficiente, um homem competente Para efectuar o trabalho sujo do general Li, e depois disso traçara uma carreira política na corte imperial. Enquanto mandarim, continuara a tirar proveito da ligação que mantinha com o general. Agora, nos últimos anos de vida, era o único governante de Shishan e de todo um condado. Havia feito fortuna, era temido - mas, para sua grande surpresa, a dinastia, mesmo fragilizada, mantinha-se ainda no trono. Contudo, a sua queda seria uma questão de tempo, como o mandarim bem sabia. Os Ch’ing tinham perdido o mandato no dia em que as suas tropas haviam sido dizimadas nas planícies de Chih-li. Os estrangeiros faziam parte do processo que precipitaria a inevitável queda. Tinham-lhe surripiado alguns territórios, mas jamais dominariam o Império do Meio. Entretanto, quem tivesse sabido equipar-se com a ciência e o saber dos estrangeiros tiraria grande proveito da queda do Grande Ch’ing. Inevitavelmente, seguir-se-ia o caos e só sobreviveria aquele que tivesse adquirido o poder no seu próprio domínio.

 

O mandarim suspirou e, de seguida, bocejou. Depois de um último olhar ao ginco, regressou para a penumbra do seu gabinete e sentou-se à mesa, onde uma folha de papel em branco esperava os seus traços de pincel.

 

O sorriso de Jin Lao parecia esculpido a cinzel no seu rosto da cor do papel de arroz, enquanto conduzia o médico bárbaro pelo pátio exterior. Os guardas e os criados que encontraram no caminho curvavam-se a seus pés mas Jin Lao, muito direito, não desviava o olhar. Não sabia por que motivo Liu Da Ren passava longas horas fechado a falar com aquele estrangeiro baixo, de bigode, cara de rato, e que, coisa espantosa, falava chinês; supunha, porém, que o mandarim lá teria os seus subtis motivos para passar horas intermináveis com ele. Jin Lao estava ao serviço do mandarim havia mais de vinte anos, e aprendera a nunca questionar a sabedoria do amo. Aliás, tirara grande proveito da sua generosidade por saber manter-se calado.

 

O guarda empurrou os grandes portões de madeira com esteios de bronze. Jin Lao voltou-se para o seu acompanhante e fez uma vénia, que o médico retribuiu.

 

- Obrigado, Jin Lao, como sempre. E a sua saúde? Espero que esteja melhor...

 

- Infelizmente, ainda padeço das minhas dores de cabeça. - Uma mão branca e comprida saiu da sua manga e, num gesto lânguido, esfregou a têmpora rapada. - É, certamente, da idade...

 

Fico triste por sabê-lo - replicou o médico. – Talvez estes comprimidos o possam ajudar?

 

É muita bondade sua - respondeu Jin Lao, pegando no pequeno pacote que o médico tirara do bolso do colete; a sua mão desapareceu de novo dentro da manga com o embrulho.

 

O médico sorriu. Era já um ritual. Duvidava de que o velho camareiro alguma vez houvesse tido uma dor de cabeça, mas sabia que os pacotes de medicamentos ocidentais se vendiam por preços altos no mercado. Não que aquele remédio fosse eficaz para uma doença séria: não passava de uma mistura de sódio com bicarbonato, que tinha o hábito de dar aos filhos para as suas maleitas imaginárias.

 

- Tome dois comprimidos de manhã, e dois à noite, até se sentir bom - recomendou, em tom jovial. - Adeus, meu caro Jin Lao.

 

Depois de tirar o chapéu, voltou-se e avançou, com passos enérgicos, para a escada de pedra que serpenteava, colina abaixo, até à cidade. Ouviu os portões fecharem-se atrás de si. Chegado ao topo da escadaria, deteve-se para contemplar a vista. Lufadas de uma brisa fresca acariciaram-lhe o rosto. Já começara a transpirar, sob o calor opressivo do meio do Verão. Dos dois lados do caminho, os grilos cantavam nos pinheiros.

 

A seus pés estendiam-se os telhados cinzentos de Shishan. Daquela altura (o yamen fora construído no topo de uma pequena colina, no extremo norte da cidade), mal podia discernir as ruas mais estreitas, mas os principais pontos de referência eram claramente visíveis, naquela tarde cheia de sol.

 

As muralhas definiam os limites da cidade. As antigas fortificações recortadas por ameias eram agora muralhas em ruínas e, em certas partes, a alvenaria fora cedendo, deixando um outeiro de terra batida no topo, onde cresciam árvores, e encostas onde se aninhavam casas de artesãos; apesar disso, as quatro grandes torres, a cada canto, haviam sobrevivido às devastações do tempo e a porta, na muralha sul, estava intacta.

 

ameias e barbacãs, encimadas por telhados sobrepostos e queados, evocavam ao médico visões de exércitos e de cercos medievais. Era guardada por uma pequena guarnição, incumbida de fechar os espessos portões de madeira ao pôr do Sol e de controlar a variegada torrente de seres humanos com mulas e camelos carregados que entravam e saíam da cidade durante o dia. O médico entrevia apenas os dois velhos canhões instalados nos muros de cada lado da porta da cidade, e que eram o grande orgulho do major Lin.

 

A cena era pacífica e pitoresca, uma aquarela como as das ilustrações da grande colecção com capas de couro das histórias de viajantes que ele vira, quando criança, na biblioteca do avô. As andorinhas tinham feito os ninhos sob os beirais de madeira das torres, e voavam em círculos, no sol luminoso. Atrás, estendia-se a planície da Mancharia, reluzente e dourada, que continuava, sem qualquer interrupção, por centenas de quilómetros para norte, até às fronteiras florestadas da Rússia e, para leste, até à Coreia. O médico olhou para lá da torre sudoeste mas naquele dia o acampamento do caminho-de-ferro, na margem do rio, estava invisível devido ao nevoeiro. Contudo, podia lobrigar a linha azul das colinas Negras, a sudoeste, e o pagode do mosteiro do lama, numa colina mais pequena, perto da cidade. Por cima da sua cabeça, faixas estreitas de cirros flutuavam na cúpula azul do céu.

 

O ponto de referência dominante, no centro da cidade, era o templo de Confúcio fronteiro à praça do mercado. Àquela distância, as suas telhas verdes, vermelhas e cor de laranja e os beirais revirados pareciam imponentes. Contudo, ao nível da rua, era menos imponente; na sua última visita, o médico ficara chocado ao ver a tinta dos pilares a cair, bem como o aspecto de desleixo e mau estado, com uma variedade de estátuas douradas a espreitar por entre a penumbra enegrecida pelo fumo, onde monges e habitantes da cidade vagueavam sem rumo por entre os braseiros acesos, e homens de todas as classes ajoelhavam, numa ocasional prece no meio da confusão, ou, mais frequentemente, tagarelavam e vendiam os seus produtos e mercadorias. Aparentemente, a presença no templo de homens que emprestavam dinheiro era aceite, em mais uma prova do abrangente eclectismo da devoção chinesa - se é que podia chamar-se-lhe devoção. Airton pensou com carinho na pequena igreja imaculada, que deixara em Dumfries.

 

Em redor do templo viam-se as casas dos comerciantes, construções de dois ou três andares, arquitectonicamente indistintas, como a maioria das casas chinesas, mas que dispunham de varandas decoradas com vasos de flores, bonsais minúsculos e gaiolas de pássaros, e as telhas cinzentas dos seus telhados apresentavam-se limpas e em bom estado. Os andares inferiores eram destinados às lojas, que davam para a rua. Algumas das fachadas eram muito belas, com esculturas de madeira e filigrana de ouro. As ruas tinham o nome de um determinado ofício; havia as ruas dos sapateiros e dos oleiros e outras dos alfaiates, dos farmacêuticos e dos vendedores de porcelana. A verde-pálida e a magnífica azul e branca de Jindezhen eram importadas do Sul. O médico gostava do ritual que envolvia as compras: o tilintar das cortinas de contas, quando passava pela porta, o dono a precipitar-se para a mesa pequena, a fim de, com todas as mesuras, lhe servir chá, a melíflua apresentação de rolos da mais fina seda, uns após os outros, o regatear, os elogios, os suspiros, os protestos, e, por fim, a aceitação, com um sorriso, de um preço justo para ambas as partes. Gostava também de passar horas nas livrarias e nas lojas de artefactos. Os mercadores mais ricos - como os negociantes de sal e de cereais, ou o amigo de Delamere, Lu Jincai, o rei do álcali; Tang Dexin, que detinha o monopólio do estanho e era proprietário de minas nas colinas Negras; Jin Shangui, negociante de várias mercadorias - possuíam vivendas de pátios luxuosos, para além das suas lojas e armazéns. O médico podia ver pedaços de relva verde na parte sul da cidade, perto da muralha, onde se situava a maioria das mansões mais ricas, por vezes, um negociante convidava os membros da comunidade estrangeira para um banquete na sua casa, por ocasião de um casamento ou quando um sobrinho obtinha notas elevadas nos exames imperiais. O átrio ancestral era ornamentado Por panos de seda vermelha, e dispunham-se mesas por entre flores e jardins ornamentais, com carreiros de seixos. Nellie adoptava sempre uma expressão severa e sofredora, enquanto se resignava a comer pepino-do-mar, escorpiões assados, sopa de ninho de andorinha, pequenos pássaros cozinhados inteiros, ocasionalmente pata de urso ou bossa de camelo, ou qualquer outro estranho pitéu que, para seu tormento, lhe davam a provar. Ao evocar essa recordação, Airton sorriu. Pobre Nellie.

 

A sua mente regressou à conversa que acabara de ter com o mandarim e que servira para o tranquilizar. Airton estava ansioso por dizer a Frank Delamere que não havia qualquer fundamento para os rumores de revoltas eminentes, o que o levou a concluir que Delamere era um homem demasiado crédulo. Apesar de toda a experiência que tinham daquele país, alguns dos membros mais antigos das comunidades estrangeiras acreditavam nas mentiras mais descaradas. A verdade é que Delamere andava em más companhias. Bebia de mais e passava o tempo na pândega, naquela horrorosa casa de má fama, o Palácio dos Prazeres Celestiais. Que pena que a comunidade estrangeira em Shishan fosse tão pequena e não houvesse um clube decente onde um cavalheiro pudesse passar os serões. Todavia, não queria censurá-lo. Afinal, Delamere, além de viúvo, já não era novo. Parecia lamentável que um homem com tanto encanto e capacidades inquestionáveis tivesse acabado sozinho numa terra isolada como Shishan. Agradeceu à Providência por ele próprio ter sido abençoado com uma mulher e uma família. “Nunca estariam aqui se não fosse graças a Deus”, pensou alegremente, e, com passos apressados, começou a descer o caminho para a cidade.

 

Por coincidência, quando alcançou o sopé da colina, uma das primeiras pessoas que encontrou foi Frank Delamere. O médico sucumbira à tentação de parar e descansava perto de uma pequena ponte que atravessava o fosso da Torre do Tambor. Sentira muito calor na descida, pois envergava o seu pesado fato de sarja, e destilava suor. Despira a casaca e o colete, e abanava-se com o lenço. Tratava-se de um local sossegado, recatado, e sobressaltou-se, ao ser interpelado em mangas de camisa. Era típico de Delamere apanhá-lo de surpresa, deixando-o sempre constrangido. Aliás, Delamere tinha o irritante condão de ser capaz de dizer ou de fazer a coisa errada em qualquer altura. Ao olhar para a figura sorridente e aperaltada, de casaco e calças brancos, que tirara o chapéu de palha para o cumprimentar, fitando os olhos castanhos e zombeteiros por cima do bigode farfalhudo, sentiu o cheiro a conhaque e a charuto. Ao que tudo indicava, Delamere tivera mais um lauto almoço.

 

Vestiu o seu fato domingueiro, Airton? – exclamou Delamere, num tom de voz possante. - Não me parece que seja a estação adequada para o usar. Foi fazer uma visita ao Grande Manda-Chuva, não é assim? Que tem ele para nos dizer?

 

- Que surpresa, Delamere! - replicou o médico. Não esperava encontrá-lo nesta parte da cidade.

 

- O Velho Lu quis que eu deitasse uma vista de olhos ao seu novo armazém, que fica ali atrás. Airton, tenho notícias maravilhosas. Sabe que mais? A minha filha vem aí!

 

- Filha? Onde?

 

- Aqui! A pequena Helen Francês. Não a vejo desde que era deste tamanho, assim... Agora, é uma jovem que deve ter dezoito anos. Quem havia de dizer? Vem até à China para ver o velho pai! Desculpe, meu caro... Quer que o ajude a vestir o colete?

 

- Eu consigo vesti-lo sozinho, obrigado - respondeu Airton, algo empertigado. Só depois assimilou o que Delamere acabara de lhe dizer. - Mas, meu caro amigo, isso é uma notícia maravilhosa! Não sabia que tinha uma filha.

 

- Foi um segredo bem guardado, hem? Se for parecida com a mãe, digo-lhe desde já que é uma beldade. Não a vejo praticamente desde que a mãe morreu de cólera, em Assam, em oitenta e dois. Levei-a, ainda bebé, para casa da tia, no Sussex. Era melhor que crescesse lá do que com um velho depravado como eu. Não voltei a casar... - Uma invulgar nuvem de melancolia pareceu ensombrar o rosto de Delamere. - Mas isso agora não importa - rematou, mais animado. - Ela vem ai Airton! A minha menina vem até Shishan! A companhia entregou-me a carta dela esta manhã.

 

Airton sorriu perante a evidente felicidade do companheiro.

 

- É motivo de celebração! A Nellie vai ficar encantada com a notícia. Por que caminho segue, Delamere? Tem de me contar tudo.

 

Os dois homens começaram a andar, lado a lado. O médico conhecia um atalho através de uma ruela ladeada por casas com muros de lama seca. Os dois homens viviam em Shishan havia tanto tempo que ambos estavam habituados ao fedor dos esgotos ao ar livre e, sem sequer pensar já nisso, desviavam os pés de restos de comida, excrementos de animais e poças de líquidos não identificados que transformavam um passeio pelos bairros mais pobres numa autêntica provação. Pouco tempo depois, estavam na rua principal, e os seus sentidos foram momentaneamente entorpecidos pelo cheiro e pela confusão do dia-a-dia de Shishan. Caravanas de mulas carregadas com enormes fardos de tecidos ou sacas de cereais trotavam pelo meio da estrada enlameada, sob as chicotadas dos muleteiros, que haviam tirado as túnicas castanhas acolchoadas para atá-las à volta da cintura, embora mantivessem na cabeça, mesmo no Verão, os característicos chapéus de pele. Em sentido contrário passavam carroças apinhadas com legumes, gansos com as patas atadas ou mercadorias que os camponeses tentariam impingir. Os carroceiros gritavam uns aos outros, amaldiçoando-se mutuamente, enquanto os cules abriam caminho por entre a confusão, carregando aos ombros baldes pendurados nas extremidades de varas ou avançando penosamente vergados sob o peso de mobílias. Um deles cambaleava debaixo de três cadeiras, uma mesa e um candeeiro de pé alto, formando uma pirâmide sobre as suas costas curvadas. A mulher de um negociante, sentada numa cadeirinha transportada por dois robustos carregadores, pusera as suas trouxas de mercadorias nos joelhos e tapara o nariz com um lenço para se defender da poeira. Vendedores de legumes e bufarinheiros apregoavam as suas mercadorias, colocadas em tapetes nas bermas da estrada. Crianças com roupas esfarrapadas atormentavam um mendigo cego. Um barbeiro escanhoava tranquilamente as patilhas de um jovem letrado sentado num banco com o rabicho enrolado à volta do pescoço, e que aproximara um livro o mais possível do rosto para poder lê-lo melhor. Tal como o médico estrangeiro e o mercador de álcali, absortos na sua conversa, parecia alheio ao barulho e ao caos que reinava à sua volta.

 

Frank Delamere falou mais alto para se fazer ouvir no meio da algazarra. Explicou ao médico que a visita da filha não podia calhar em melhor altura. A sua irmã acrescentara uma nota à carta arrebatada de Helen Francês, para lhe dizer que a rapariga, desde que deixara a escola, a pressionava a levá-la até à China para ver o pai. Ela ainda se preparara para a viagem, apesar da sua artrite e do seu mal de mer, mas ficara aliviada quando, ao contactar a sede da companhia, em Londres, descobrira que um assistente iria partir de Inglaterra para se juntar a Frank na China. Mais tarde, quando conhecera o assistente, que descrevia como um jovem calmo, maduro e excelente jogador de críquete, tivera a certeza de que ele seria o acompanhante perfeito para a sobrinha, durante a viagem.

 

- Não foi uma feliz coincidência? - exclamou Delamere.

 

- Um rapaz como acompanhante? - admirou-se o médico, erguendo as sobrancelhas.

 

- É perfeitamente aceitável - replicou Delamere. O meu amigo não deve ser um velho retrógrado, nos tempos que correm... Afinal, estamos no fim do velho século... De qualquer maneira, a Rosemary sabe julgar o carácter das pessoas e só ouvi dizer bem do jovem Cabot. Será a sua segunda viagem à China. Esteve anteriormente em Nanchang e o velho Jarvis teceu-lhe rasgados elogios. Disse-me que o Cabot tinha a cabeça assente nos ombros, e que amadurecera, antes de alcançar a idade adulta, se é que me faço entender. Por outras palavras, é digno de toda a confiança. Nada do género de se envolver em sarilhos de saias ou de ter um comportamento menos próprio.

 

Puxou o médico pelo braço para evitar uma fila de camelos à solta que avançavam, a todo o galope, conduzidos por um pastor risonho, montado num pónei.

 

- Cambada de loucos... - resmungou. - De qualquer forma - continuou, soltando uma gargalhada estrondosa e dando uma valente palmada nas costas de Airton -, vou voltar a ver a minha menina em breve! Depois de seis longos anos!

 

Assim parece - comentou o médico. - Nunca me disse que ia pedir um assistente.

 

- Não? Ah, a idade não perdoa e é chegada a altura de eu começar a preparar o meu sucessor. Quem sabe? Talvez desista de tudo isto, daqui a alguns anos, e regresse a Inglaterra, antes que o meu fígado deixe de funcionar de vez.

 

- O estado do seu fígado não é assunto para piadas disse o médico, sorrindo. - Deixe-me ver as suas mãos. Veja estas manchas acastanhadas.

 

- Vá lá, doutor, não me pregue um sermão. Hoje é um dia feliz. Sabe, ela estará aqui muito em breve. A sua carta tinha a data de... quando?, de há dois meses e meio, e o navio onde ela viajava partia dali a poucos dias. Neste momento, a minha filha deve estar no oceano Índico ou até mesmo perto da China. Pergunto a mim próprio com quem se parecerá. Alguma vez lhe disse que a mãe dela era uma beldade?

 

- Sim, ainda há um minuto.

 

- Bom, a Clarissa era filha de um plantador de chá e eu não passava de um humilde administrador da propriedade. Casámo-nos em mil oitocentos e oitenta. Não sei o que foi que ela viu em mim... Ela era tão... tão bela, tão voluntariosa e tão cheia de vida! Quando o pai tentou chicotear-me, ela gritou-lhe, calando-o. Nunca me esquecerei desse momento, ela parada, no alto da escada, com as faces enrubescidas, atirando o cabelo para trás. Tão imperiosa! O pai não conseguiu resistir-lhe. Ninguém conseguia. Eu não conseguia. Obrigou-nos, a mim e ao pai, a trocarmos um aperto de mãos e a sermos amigos. Um ano mais tarde, chorávamos, juntos, no seu leito de morte... - Delamere fungou ruidosamente. - Desculpe. Há muito tempo que não me permito pensar nisso. Não foi uma época feliz. O pai e a mãe dela também morreram vitimados pela cólera, e eu fiquei sozinho, numa grande casa, com um bebé, e os criados, de olhos muito brancos nos seus rostos sombrios, a olhar para mim e a perguntar-me o que deviam fazer dos cadáveres... Eu não conseguia olhar para a menina, porque me fazia lembrar... Cuidado, meu velho, com essa carroça! Importa-se que não falemos mais sobre o meu passado? Em certas passagens, sinto-me mais sentimental... Porque não me conta o que lhe disse o mandarim?

 

Airton nunca vira Delamere tão comovido. O avantajado homem sorria-lhe, com os olhos humedecidos e um fio brilhante a correr-lhe no rosto tisnado pelo sol. Por momentos, pareceu muito nobre e estranhamente dócil, ali parado, no meio de uma rua apinhada de pessoas onde o caos era total.

 

O médico contou-lhe então a conversa que tivera no yamen.

 

Delamere ia acenando, fungando ou franzindo as sobrancelhas, demonstrando grande atenção ao que ouvia.

 

- Então - comentou por fim -, o velhote nega que exista qualquer espécie de sociedade secreta. Devo, por conseguinte, supor que a minha caravana foi atacada por um velho fazendeiro e não pelo Homem de Ferro Wang, e que o major Lin vai embrenhar-se nas colinas Negras para colher framboesas?

 

- Não poria as coisas dessa forma, mas o que é certo é que o mandarim procurou tranquilizar-me. Não acredita nele?

 

- Só Deus sabe. Você é que é o homem que se relaciona com os poderosos da cidade. Se me diz que corre tudo às mil maravilhas, então, por mim, está tudo bem. Limitei-me a repetir os rumores que o velho Lu apregoava, por cima das suas chávenas de chá, no outro dia, mas ele tem sempre algum boato para contar. Quem pode saber o que anda um chinês a conspirar, de qualquer maneira? Por mim, tanto me faz. A minha filha vai chegar.

 

O médico encolheu-se, à espera de outra palmada nas costas. Não sabia o que preferia: um Delamere eufórico ou um Delamere bêbedo, mergulhado em grande melancolia. Desta vez, contudo, foi poupado a outras manifestações de exuberância, porque o companheiro estacou, de súbito, apontando Para a frente.

 

- Falai no mal...! - exclamou, rindo-se. - Penso que vamos assistir a uma parada do Exército Celeste. É o major com os seus corajosos granadeiros!

 

Pelo amor de Deus, não volte a fazer a continência!

 

O médico corou ao lembrar-se do seu embaraço da última vez que estivera com Delamere, quando Lin passara por eles e da forma como tentara depois explicar o comportamento de Delamere ao mandarim. Este achara o incidente divertido, mas o médico duvidava de que o major Lin pudesse perdoar alguma vez os risos e comentários jocosos da multidão, quando um Delamere bêbedo começara a marchar atrás deles, como um sargento tirado de uma opereta cómica de Gilbert e Sullivan. Não é que uma opereta da famosa parceria fosse muito diferente da realidade: havia, de facto, qualquer coisa de ridículo nos esforços de Lin para transformar a sua milícia heteróclita na ideia que fazia de um exército moderno.

 

Os muleteiros praguejaram e resmungaram, por terem de afastar os seus animais para as bermas do caminho. O major Lin conduzia a sua pequena coluna, montado num pónei mongol branco. Não envergava o seu habitual traje de porta-bandeira, mas antes um uniforme bastante garrido que ele próprio desenhara, com elaboradas dragonas e um tufo de plumas brancas a sair da pala do seu shako. As esporas de prata brilhavam sobre as reluzentes botas pretas. Os uniformes dos seus homens consistiam numa túnica azul com botões de cobre e barretes cinzentos. O efeito era contrabalançado pelas tradicionais calças brancas chinesas e sapatos de pano, e pelo pára-sol que cada um dos granadeiros havia atado à mochila. A primeira companhia, de vinte homens, carregava carabinas já modernas, fabricadas no arsenal chinês de Chiangnan, em Xangai, mas os outros ainda estavam armados com mosquetes e velhas armas de carregar pela boca, que deviam vir das Guerras do Ópio. Apesar de toda aquela exuberância algo ridícula, o médico sentia-se impressionado pela seriedade e entusiasmo com que aqueles homens faziam as suas manobras. Balançavam os braços e pernas energicamente, apesar da falta de coordenação do grupo. Um cabo ordenava, com voz severa:

 

- Yi! Er! Yi! Um! Dois! Um! Dois!

 

Quanto ao major Lin, mantinha-se muito direito, com uma expressão feroz no seu rosto magro e atraente. O médico sabia pelo mandarim que Lin fora feito prisioneiro na fronteira coreana, durante a recente guerra sino-japonesa, e que desenvolvera grande admiração pelos métodos e técnicas militares dos seus captores. Mau grado toda a cómica aparência das suas tropas, Lin não estava a brincar aos soldados.

 

Olhe para eles - comentou Delamere. - Admita-o, Airton. Os termos “celeste” e “soldado” são contraditórios.

 

- Comporte-se! - sibilou o médico.

 

Naquele mesmo instante, o major Lin passou em frente dos dois homens. Virou a cabeça e lançou-lhes um olhar frio. Os olhos estreitos e as maçãs do rosto alto conferiam-lhe o aspecto de um falcão. Tinha cerca de trinta e cinco anos, mas havia algo de juvenil no seu rosto, apesar de, na boca, se desenhar um sorriso cruel que, de certa forma, realçava o carácter impiedoso do major. O médico tirou o chapéu. Lin inclinou a cabeça para a frente e esporeou o cavalo. A coluna passou, em marcha arrastada.

 

- Um fulano de aparência sinistra, não acha? - perguntou Delamere, quando retomaram o caminho. - Uma das raparigas da Mãe Liu disse-me que ele espanca as suas mulheres. Oh, desculpe! - riu-se. - Não gosta que eu lhe fale do Palácio dos Prazeres Celestiais, não é verdade?

 

- Não, não gosto - replicou o médico, - e, com uma filha prestes a chegar, você devia começar a pensar em mudar alguns dos seus maus hábitos, e não me refiro apenas à bebida...

 

- Não vou negar que tem razão. Não quero que a Helen Francês pense que o velho pai dela é um libertino. As responsabilidades de ser pai e tudo o resto... Acha que conseguirei emendar-me?

 

- Duvido - ripostou o médico.

 

- Também eu. Bom, só espero que, para além da beleza, ela não tenha herdado o feitio da mãe.

 

Caminharam em silêncio. Entretanto, o caos regressara à rua. Pouco depois, alcançaram a praça do mercado. Junto ao templo, uma multidão agrupara-se para assistir a um espectáculo. Artesãos com as típicas roupas de fino tecido de algodão riam e gesticulavam. Cavalheiros de túnicas castanhas e coletes pretos espreitavam, levados pela curiosidade. Sobre os gritos, as risadas, e a barulheira, Delamere e o médico puderam ouvir um trombone tocar as notas familiares de Onward Christian Soldiers1. Por entre as cabeças dos que interrompiam o espectáculo com comentários zombeteiros, reconheceram um homem louro e alto que parecia conduzir a cantoria de uma mulher e várias crianças.

 

- Desculpe, meu velho, mas tenho de ir andando. A última coisa que hoje quero é dar de caras com aqueles malditos Millward a tentar converter os pagãos.

 

- Não o fazem com grande eficácia - concordou o médico. - Envergonha-me dizê-lo, mas concordo consigo no que diz respeito aos Millward; no entanto, devemos ser caridosos.

 

- Pois seja você caridoso, porque eu penso que eles são uma desgraça para a raça humana.

 

- Para a dignidade do homem branco, talvez - rectificou Airton -, mas a sua intenção é nobre. Delamere, antes que se vá embora, quero dizer-lhe que fiquei realmente feliz com a notícia que me deu, e estou certo de que a Nellie ficará encantada por conhecer a sua filha. Haverá trabalho para ela no hospital, se assim o desejar. Deixe-me organizar um jantar em sua honra, e do Cabot... Não é esse o nome do jovem?

 

- Sim. Tom Cabot.

 

- A Nellie poderá tocar piano e pedirei a Herr Fischer que traga o seu violino. Passaremos um serão alegre. Que me diz? É nosso dever dar as boas-vindas aos recém-chegados.

 

- Obrigado, Airton. Terei todo o gosto - Delamere voltou-se para se afastar. Então, o seu rosto iluminou-se num sorriso rasgado. - Sabe que ainda não consigo acreditar? A minha filha vai mesmo chegar!

 

E o médico sentiu a respiração entrecortada por nova valente palmada nas costas.

 

Não sem alguma relutância, aproximou-se dos Millward. Como médico missionário, preocupava-o mais a salvação dos corpos do que a das almas, mas sentia certas obrigações para com os seus colegas evangélicos, mesmo que pertencessem a

 

1 Hino de carácter religioso, com letra de Arthur Sullivan, membro da famosa parceria Gilbert e Sullivan, celebrados autores de operetas. (N. do E.)

 

uma missão diferente. Os Millward eram congregacionistas americanos, chegados de Nova Jérsi, havia três anos, sem qualquer preparação ou qualificação para aquele tipo de actividade. Pelo menos, era essa a opinião do Dr. Airton. Nem sequer sabia bem a que sociedade missionária os Millward pertenciam. Não tinham grandes apoios, porque pareciam nunca receber correspondência ou dinheiro. Tanto quanto Airton podia perceber, subsistiam graças às esmolas do mosteiro budista, o que era uma situação muito embaraçosa.

 

O que lhes faltava em profissionalismo, contudo, era largamente compensado por um idealismo absurdo e uma fé cega. Septimus Millward, de trinta e muitos anos, era um homem alto, de pernas e braços compridos, com um rosto de traços estreitos e severos e pequenos óculos redondos, de lentes grossas. Na realidade, os óculos de armação redonda pareciam ser a imagem de marca dos Millward. A mulher de Septimus, Laetitia, e três dos seus oito filhos também usavam óculos - e quanto mais pequenas eram as crianças mais espessas eram as lentes. Para o médico, eram justamente aquelas lentes grossas que davam o retoque final à estranha aparência dos Millward. Quando chegara, Septimus Millward, levado pela ideia de que a sua família seria mais bem aceite se se vestissem como os Chineses, queimara todas as suas roupas ocidentais, até mesmo as botas, e vestira toda a família com túnicas almofadadas chinesas. Rapara também a parte da frente da cabeça e prendera o cabelo louro e fino num rabicho - conseguindo assim um aspecto de total incongruência, porque mantivera a barba ocidental.

 

O filho mais velho, um rapaz de catorze ou quinze anos e expressão mal-humorada, chamado Hiram, também usava rabicho. Airton reparou que era Hiram que tocava trombone, até não muito mal, mas, a avaliar pela sua expressão carrancuda, parecia desejar estar muito longe dali. Quem podia criticá-lo, com um pai daqueles? Não obstante, Airton ficara impressionado com a inteligência do rapaz. Falava fluentemente chinês, o que já não se podia dizer dos pais, cujo pídn indecifrável, quando pregavam, era causa de embaraço. O médico vira-o, em certas ocasiões, a brincar com alguns dos mais brutos miúdos de rua. Admirara-se por o rapaz não se sentir tentado a fugir do ninho familiar. E que ninho aquele! Airton visitara certa vez o local onde a família vivia. Qualquer camponês nativo teria ficado envergonhado com a imundície e a pobreza do pequeno telheiro; no entanto, era ali que os Millward criavam os filhos e era também para ali que levavam bebés abandonados. Airton sabia que isso causava desconfiança aos Chineses, mas não podia impedir os Millward de salvar vidas. Ele e Nellie ajudavam-nos o melhor que podiam. Nellie, que se preocupava com as crianças, levava-lhes por vezes refeições quentes. Septimus Millward encarava aquela caridade como algo que lhe era devido. Certo dia, Nellie perguntara a Laetitia se ela não gostaria de ter um emprego no hospital. Fora o marido que respondera por ela, alegando que não havia tempo - enquanto continuava a obra de Deus, com tantas almas para salvar - para tratar das indulgências e dos padecimentos do corpo.

 

Aquilo fora demais, até mesmo para Nellie, que ficara furiosa e lho dissera. Não que tivesse servido de alguma coisa. Septimus mandara ajoelhar toda a família à sua volta para rezar pela alma de Nellie.

 

O hino chegou a um final triunfante no momento em que Airton alcançava a primeira fila da assistência. A voz esganiçada e desafinada de Laetitia ainda ecoou após o trombone parar, como que acometido por uma tosse metálica. Septimus iniciou o seu sermão, e por momentos os espectadores ficaram em silêncio, enquanto tentavam compreender o que ele dizia. Normalmente, Septimus tinha uma voz grave, não desagradável de todo, se bem que algo autoritária. Contudo, quando falava em chinês, adoptava uma voz de falsete que tornava irritantes os timbres da língua, como se fosse um violino desafinado. Tinha um vocabulário incorrecto, a sua gramática era arbitrária e, quando tentava, corajosamente, pronunciar a entoação certa, quase sempre saía-lhe a errada. Uma vez que no chinês as entoações regem o significado, pronunciava e juntava as palavras mais incongruentes. O doutor esforçou-se por entender o sentido do que Millward dizia.

 

- Irmão mais velho e irmã mais nova de Jesus – começou Septimus. Provavelmente, queria dizer: “Irmãos e irmãs em Jesus.” - Trago-vos boas perguntas. Vão todos morrer. Mas Jesus tem vinho velho para vocês. Sim, é verdade. Ele levar-vos-á aos porcos de Deus. Mas, primeiro, têm de dizer desculpa aos vossos ladrões. A Bíblia diz que vocês são bons, e, por isso, devem deixar a casa da tinta!

 

Com uma expressão austera, virou-se e indicou o templo atrás dele, onde dois anafados bonzos, monges budistas, nas suas túnicas cor de açafrão, lhe sorriram, por detrás dos portões.

 

- Ali! - gritou Septimus. - Ali é a casa da tinta! Mo Shufí Tinta? Airton estava perplexo. Só depois se deu conta de que Septimus queria dizer Mo Gui, demónio. - Mas eu vou ensinar-vos a comer os corações das criancinhas. E Jesus beberá o vosso vinho! Cuidado, o preço do ladrão é seda!

 

A maioria dos espectadores sorria, bem-humorada, mas Airton reparou que havia também expressões hostis entre a multidão. Septimus estava a dizer disparates, mas a sua intenção era bem clara. O seu posicionamento em frente do templo e os gestos encolerizados que fazia na direcção dos monges eram suficientemente explícitos. O doutor desejou mais uma vez que os Millward adoptassem uma abordagem menos radical. O mandarim de Septimus Millward era cómico mas algumas das suas expressões esquisitas podiam ser mal interpretadas. “Comer os corações das criancinhas” era particularmente infeliz.

 

- Houve um homem chamado Sansão - entoava Septimus. - Deus fê-lo comprido. Ele matou os soldados do rei com os dentes de um veado. Comeu carne de leão com mel. Deram-lhe muito trabalho e levaram-no ao templo mau onde o ataram a uma árvore. Depois, ele caiu do telhado. Sim insistia Septimus. - Ele caiu do telhado. Louvado seja Deus!

 

Um jovem artesão, em tronco nu por causa do calor, e com o seu longo rabicho a cair-lhe pelas costas, aproximou-se, dançando, de Septimus e começou a imitar os seus gestos e a sua forma de falar.

 

- Gilly gooloo gilly gooloo gilly gooloo gilly gooloo! - gritou-lhe.

 

Septimus desviou-se. O jovem brincalhão seguiu-o.

 

- Gilly gooloo! Gilly gooloo!

 

Com o rosto a transpirar de cólera, Septimus ergueu o tom de voz. O jovem, piscando o olho aos amigos que tinha entre a assistência, gritou ainda mais alto:

 

- Gilly gooloo!

 

A multidão desatou a rir ruidosamente. Uma mulher de idade que estava ao lado de Airton caiu ao chão, com os olhos rasos de lágrimas de tanto rir. Ele próprio tinha dificuldade em conter o riso, embora uma outra parte de si sentisse pena. Num gesto protector, Laetitia Millward reuniu os seus três filhos mais novos à volta das saias. Mildred, uma das filhas mais velhas, estava visivelmente assustada e, por detrás dos seus óculos redondos, assistia à cena com olhos esbugalhados. Por outro lado, o rosto do jovem Hiram tornara-se mais carrancudo do que nunca. Os seus ombros tremiam. Incapaz de se controlar por mais tempo, também ele começou a rir do próprio pai, com um riso estridente e sibilante. O trombone escorregou-lhe das mãos e caiu ao chão.

 

Septimus, com os olhos muito brilhantes, desistiu do seu sermão e voltou-se, enraivecido, para o filho.

 

- Descendente de Satanás! Como te atreves a zombar de quem é mais velho do que tu, quando faz a obra do Senhor? Esbofeteou uma das faces de Hiram e, depois, na outra, com força. - De joelhos! - vociferou. - Reza para que te seja concedido o perdão!

 

Hiram, soluçando, manteve-se de pé. A multidão calou-se. Laetitia ajoelhou-se, com os filhos, e, formando um semicírculo em volta do marido, todos adoptaram uma exagerada posição de prece, com as cabeças tombadas para a frente e as mãos entrecruzadas junto às testas.

 

- Reza, rapaz! Reza! - ordenou Septimus.

 

Depois, ele próprio se ajoelhou, de braços abertos. Com os olhos levantados para o céu, começou a recitar o pai-nosso. O jovem brincalhão que saíra de entre a multidão vagueou, durante algum tempo, até que escarrou para o chão e regressou calmamente para junto dos amigos. Foi recebido com risos, comentários jocosos e palmadas nas costas.

 

Pai nosso, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome...

 

- Odeio-o! - gritou Hiram, por entre lágrimas.

 

-... Perdoai-nos as nossas ofensas e não nos deixeis cair em tentação...

 

- Vou deixá-lo, pai - A voz de Hiram reduzira-se a um coaxar de pânico. - Vou-me embora. Sim, é isso que vou fazer.

 

-... pois Vosso é o reino, o poder e a glória... Hiram deixou escapar um último soluço de desespero. Então, estendendo um braço magro para o pai, gritou:

 

- Que Deus o amaldiçoe! Nunca mais voltarei! E, correndo, embrenhou-se na multidão.

 

- ... para todo o sempre. Ámén - entoaram os Millward.

 

- Hiram! Hiram! - chamou o médico, mas precisou de algum tempo para passar pela massa de pessoas estupefactas; algumas haviam começado a dispersar, repugnadas com o que se passara. Quando chegara à parte deserta da praça, o rapaz virara a esquina de um pailou, enfiara por uma ruela entre duas casas altas e desaparecera.

 

Estranhamente, Airton sentiu-se humilhado com aquele incidente. Para além de se preocupar com o rapaz e se sentir responsável pelo que pudesse acontecer-lhe, estava furioso com Septimus Millward. O homem constituía uma ameaça - as suas excentricidades tinham um efeito negativo, talvez mesmo perigoso, para a reputação dos cristãos da cidade e também para a permanência da comunidade estrangeira. Aos olhos do povo, Millward era um louco, mas, para alguns, os seus discursos quase incompreensíveis eram bruxaria. A sua crueldade para com a própria família era execrável e o poder que exercia sobre esta, pouco natural. O médico perguntou a si próprio se Millward sofreria de alguma perturbação mental. Os Millward continuavam ajoelhados, a rezar. A multidão perdera o interesse- O espectáculo terminara, e só ali estavam duas ou três pessoas; alguém atirara um ovo a Septimus e a sua barba mostrava-se pegajosa e manchada pela gema do ovo.

 

Millward! - chamou o médico. - Escute, homem!

 

Era como se Septimus não o tivesse ouvido.

 

- Millward! - gritou de novo. - Recomponha-se! O que vai fazer quanto ao seu filho?

 

Septimus abriu os olhos azuis e deitou um olhar inexpressivo a Airton.

 

- “Se o teu olho te ofende, arranca-o e atira-o para longe de ti” - sentenciou, friamente. - Rezarei por ele.

 

- Pelo amor de Deus, homem, seja racional! O Hiram não passa de um menino.

 

- Deixou a casa de Deus, doutor Airton. Se voltar e se mostrar arrependido, então, recebê-lo-ei de braços abertos e festejarei o regresso do filho pródigo. Até lá, não é meu filho.

 

- Pelo amor de Deus!

 

O homem perdera o juízo. O médico apelou então à mulher de Septimus:

 

- Mistress Millward! Laetitia!

 

Se bem que as lágrimas lhe embaciassem as lentes dos óculos, falou Laetitia Millward. Fê-lo com voz serena:

- O meu marido já lhe respondeu, doutor Airton, e acatarei a sua decisão. Também rezarei para que o Diabo liberte o meu filho.

 

As suas últimas palavras foram abafadas por um soluço trémulo. Mildred pôs os braços à volta da mãe, num gesto protector, e lançou um olhar fulminante ao médico.

 

- Deixe-nos entregues ao nosso desgosto, doutor - retomou Septimus. - Nada pode fazer aqui.

 

- Posso, ao menos, tentar encontrar o vosso filho - ripostou Airton. Voltou-se, encolerizado, mas encarou novamente Septimus e ainda abriu a boca para falar, mas as palavras não lhe saíram dos lábios. - Quando o encontrar, levá-lo-ei para o meu hospital - acabou por dizer, sem grande convicção. - Por favor, reconsiderem os vossos deveres de pais.

 

Por fim, deixou-os, concentrados nas suas preces.

 

O jovem artesão que tinha troçado de Septimus ainda se encontrava na praça, com os amigos. Quando o médico passou por ele, esboçou uma careta e riu-se. Airton lançou-lhe um olhar furioso.

 

- Não me vai desrespeitar, seu filho escabroso de uma tartaruga bastarda! Saia da minha frente, seu descendente fedorento de uma mula e de uma serpente cega!

 

O jovem sorriu, encantado com o desfiar fluente de expressões injuriosas chinesas.

 

Ta made! - praguejou. - Afinal, um deles sabe falar língua de gente!

 

E Airton passou pela humilhação de receber, pela terceira vez naquele dia, uma palmada nas costas. Furioso, afastou o rapaz, avançou até ao pailou na extremidade sul da praça, e desceu a rua principal em direcção à grande porta da cidade e à sua casa.

 

O hospital e a casa do Dr. Airton ficavam a três quilómetros da cidade, fora das muralhas, num pequeno promontório que dava para campos de trigo. O médico comprara o complexo, que havia sido a casa de um próspero fazendeiro, durante o ano da peste bubônica, no intuito de a transformar num centro de convalescença provisório, longe das emanações venenosas da cidade. Depois, passara a estar sempre aberto como hospital da missão. Com o passar dos anos, o médico convertera as habitações, feitas com lama seca e caniços, em casas modestas de tijolo, em volta dos três pátios que comunicavam entre si, ao estilo chinês. Substituíra os telhados de colmo por telhas cinzentas, alargara as janelas e mandara colocar painéis de vidro claro nos caixilhos vermelhos de madeira, enquanto Nellie plantara árvores e flores nos pátios. Na Primavera, as abelhas zuniam à volta das adáleas e das cerejeiras e no Verão os pardais chilreavam e os grilos cantavam nas folhas dos plátanos que davam sombra ao pátio. Durante todo o ano, o complexo transmitia a reconfortante sensação de ser um retiro sossegado e rural. Nas casas, os quartos eram arejados e muito limpos, com soalhos de pinho e paredes caiadas. A irmã Caterina, uma das duas freiras que trabalhavam para Airton, dizia que o pequeno hospital lhe fazia lembrar o convento da sua terra natal, na Toscana.

 

Nos edifícios que davam para o primeiro pátio havia um armazém, a farmácia e o consultório onde Airton atendia os Pacientes externos. Todas as manhãs, às sete horas, o seu principal assistente chinês, Zhang Erhao, abria o portão e os doentes formavam uma fila para se irem sentar nos bancos, junto ao pinheiro-anão favorito de Nellie, ou, no Inverno, para se reunirem em volta do fogão a carvão, numa parte do armazém. Não vinham só pessoas da cidade, com os seus furúnculos, as suas dores de dentes e as suas ciáticas, mas também camponeses, de muito longe. Era frequente caminharem durante toda a noite pelos campos de cultivo até chegar ali, ou então, se estavam demasiado doentes ou feridos para andar, os familiares transportavam-nos em carrinhos de mão. Aqueles camponeses, de braços e pernas compridos, com os rostos largos e tisnados pelo vento característicos das gentes do Norte, ficavam sentados, durante horas, estoicamente, fosse qual fosse a intensidade das suas dores, à espera dos breves instantes que iam passar com o médico estrangeiro. A reputação e a competência de Airton era tal que aquelas pessoas raramente partiam descontentes, apesar de o médico ter plena consciência do pouco que podia fazer com os seus parcos medicamentos e ligaduras, e de saber que a única doença para a qual não havia qualquer esperança de cura era a pobreza.

 

O edifício principal, em frente do portão, albergava a capela. Todas as tardes, às seis e meia, a pequena comunidade reunia-se ali para as orações da noite, entoando os hinos que haviam sido traduzidos para mandarim pela Sociedade Missionária. O pátio que ficava atrás da capela era a “propriedade privada” das duas freiras italianas, as irmãs Caterina e Elena, cujas figuras, envoltas pelos hábitos brancos, podiam ser vistas a movimentar-se energicamente pelas três enfermarias que davam para o jardim. As freiras católicas haviam tomado para si, desde o início, a responsabilidade de tratar os doentes acamados, e até mesmo Nellie raramente intervinha no seu pequeno reino. As duas mulheres tinham quase trinta anos. Haviam chegado a Shishan para ajudar o padre Adolphus, um santo homem, um sábio jesuíta, de barba grisalha, que vivia em Shishan havia muito tempo, mas a chegada das duas freiras coincidira tragicamente com o início da epidemia de peste bubônica, que fizera do padre Adolphus uma das suas primeiras vítimas. Airton encontrara as duas freiras numa das zonas mais atingidas, cuidando dos órfãos das famílias que haviam perecido. Contratara-as imediatamente como enfermeiras e ajudantes. Passada a epidemia, escrevera à sede da missão católica, em Roma, elogiando a coragem e abnegação das freiras e pedindo que, enquanto não se encontrasse um substituto para o padre Adolphus, elas ficassem com ele em Shishan. E estavam ali desde essa altura. Uma vez por ano, durante a Páscoa, viajavam até Tientsin para se confessarem e comungarem, mas, fora isso, viviam com os Airton como se fizessem parte da família, partilhando todas as actividades da missão a que o médico pertencia, chegando mesmo a ajudá-lo nos serviços religiosos da capela. Eram ambas oriundas de famílias de camponeses italianos e eram almas simples e alegres. O riso jovial da irmã Elena fazia já parte do hospital, tanto quanto o cheiro a fénico e a iodo nas enfermarias. Viviam numa ala do terceiro pátio, que também servia como dormitório e escola dos vários órfãos que haviam recolhido durante a epidemia; algumas dessas crianças eram agora já suficientemente crescidas para as ajudar no hospital, em regime de voluntariado.

 

Airton, Nellie, os filhos e os criados - Ah Lee e Ah Sun, um casal de cantoneses que se ocupara do médico desde que ele chegara à China, havia quinze anos - viviam num bangaló ligado ao hospital por um curto carreiro. Era um edifício comprido, rodeado por um relvado bem cuidado e por uma vedação de madeira. As salas de estar e de jantar não destoariam na Edimburgo natal do médico. Às suas próprias custas, mandara trazer mobiliário, retratos de família, papel de parede, faqueiros de Sheffield, cortinas, o piano de Nellie, e para grande alegria e orgulho da mulher - um fogão moderno, de ferro fundido, importado de Birmingham, que mantinha a casa aquecida no Inverno e permitia que houvesse água quente a qualquer hora do dia. O médico gostava muito da sua casa; apreciava o cheiro dos soalhos de madeira polidos, o aroma do bacon e das torradas com manteiga pela manhã, a tagarelice das crianças no quarto de brincar, o sossego do seu gabinete - mas havia já um ano que os compridos corredores brancos lhe pareciam vazios. Sentia muito a falta dos seus filhos mais velhos, Edmund, de catorze anos, e Mary, três anos mais nova; haviam sido enviados para a Escócia, no Verão anterior, sob a guarda dos Gillespie, seus amigos e missionários em Tientsin, e frequentavam agora um colégio interno em Dundee. Nellie e Airton sabiam que um dia também os seus filhos mais novos, Jenny e George, de dez e oito anos, respectivamente, fariam a mesma viagem. Por enquanto, a sua idade permitia-lhes frequentar a escola do hospital, juntamente com os órfãos chineses. Uma das piadas do médico, repetida pelas duas freiras, era que Nellie, apesar do afecto que tinha pela irmã Caterina e pela irmã Elena, estava convencida de que os filhos se iriam tornar papistas sob a sua tutela, pelo que insistia em estar presente sempre que as freiras davam aulas bíblicas às crianças. Nellie sorria, mas era um sorriso reservado; havia uma ponta de verdade naquela aparente brincadeira.

 

Jenny e George receberam com grande algazarra o pai, quando este transpôs a porta. Sentia-se cansado, irritado e suado, devido ao calor, e estava ansioso por tomar um banho. Fora uma tarde frustrante. Assim que chegara ao hospital, depois de regressar da cidade, dera instruções a Zhang Erhao e a outros assistentes para que fossem procurar Hiram. Zhang mostrara-se deliberadamente obtuso, e só após muita persuasão por parte do médico partira, não sem relutância. Depois, a irmã Elena aparecera, queixando-se, histérica, de que as traças haviam roído o novo carregamento de ligaduras de algodão, e o médico precisara de vários minutos para acalmá-la. Em seguida, tivera de proceder a uma cirurgia complicada, a fim de operar um carroceiro, cuja perna fora esmagada pela colisão de duas carroças. Finalmente, ao crepúsculo, Zhang Erhao regressara com a informação de que Hiram havia desaparecido. Fora visto a deixar a cidade com alguns dos miúdos de rua seus amigos, em direcção às colinas Negras.

 

Zhang meneara a cabeça tristemente, enquanto fazia um gesto para imitar uma garganta a ser cortada.

 

- O Homem de Ferro Wang... - sussurrara. - Muito mau...

 

Perante a recusa de Airton em aceitar aquela ridícula conclusão, Zhang sorrira.

 

- Talvez haja primeiro um pedido de resgate. Só depois ele lhe cortará a garganta!

 

Airton ordenara-lhe que arranjasse uma lanterna e prosseguisse a busca, durante toda a noite, se necessário. Zhang saíra, rindo-se em silêncio, por saber que conseguira irritar o amo. Aquele triunfo menor compensava, de certa forma, a tarefa de que fora incumbido.

 

Airton enterrou-se na poltrona e recebeu, agradecido, um copo de uísque que Ah Lee lhe estendeu. Nellie cosia, sentada em frente da sua mesa, mas sorriu-lhe, com um fio entre os dentes. Ele retribuiu-lhe o sorriso. Era uma bonita mulher, com o cabelo castanho apanhado no alto de uma testa larga, o queixo de contornos firmes e os olhos azuis tão serenos... Começava a revelar alguns sinais da idade, com alguns fios grisalhos nas têmporas, um ligeiro avermelhar das faces e da ponta do nariz, talvez até um acentuar dos vincos de preocupação em volta da boca, mas os seus movimentos eram ágeis e a postura, direita. Graças à sua alta estatura e aos ombros largos possuía uma imponência natural. O médico estendeu a mão para pegar no colete e dele tirar o relógio. Ainda tinha meia hora para descansar, antes de se dirigirem à capela. Sabia que devia contar a Nellie o que acontecera a Hiram. Ia ficar mais perturbada do que o marido. Mas, por ora, não queria pensar em coisas desagradáveis. Em vez disso, falou-lhe do seu encontro com Frank Delamere e da chegada iminente de Helen Francês.

 

- Espero que ela não seja uma dessas jovens modernas comentou Nellie.

 

- Oh, mostra-te contente - suspirou o médico. – É a única boa notícia que tive, neste dia terrível.

 

- Meu pobre querido, pensei que gostavas dos dias em que vais conversar com esse velho assassino que é o mandarim.

 

Airton não tinha, porém, qualquer desejo de explicar a razão do seu mau humor. Bebericou o uísque, taciturno, perguntando a si próprio o que diria na capela, dali a meia hora.

 

Pensou no horrível sermão de Septimus e na sua ridícula referência à história de Sansão, e começou a rir-se baixinho.

 

- Ele caiu do telhado!

 

- O quê, querido?

 

- Nada, meu amor. Estava apenas a pensar no texto que podemos usar para leitura desta tarde. E que tal um excerto do Livro dos Juizes? Talvez a história de Sansão. “Do que come carne veio mais carne, e do forte, veio a doçura.”

 

- Se estás a pensar em Mister Delamere e na filha, penso que é totalmente inadequado. Não me parece que possa sair grande doçura de um velho leão malvado como ele, por muito bonita que seja a jovem Helen Francês.

 

- Oh, Nellie, como és cruel! - exclamou Airton. Nem sequer conheceste ainda a rapariga!

 

Ambos se riram. Nellie aproximou-se do marido e deu-lhe um beijo na face. Então, a porta abriu-se de rompante; as crianças entraram e, no momento seguinte, toda a família Airton brincava no sofá, numa confusão de pernas, braços e almofadas.

 

REZAMOS NO TEMPLO PARA QUE CHOVA, MAS O SOL AINDA BATE NOS CAMPOS RESSEQUIDOS

 

A Legação Britânica organizava um piquenique nas colinas Ocidentais. A cavalgada de carros fechados, carruagens, palanquins e cavaleiros partira às seis da manhã, escoltada por uma tropa de criados a cavalo. Sir Claude MacDonald, ministro da rainha Vitória na corte imperial, decano da comunidade diplomática e principal porta-voz das nações ocidentais, incluindo o Japão e os EUA, com forte influência oficial na China, saíra de Pequim na noite anterior. Naquele momento, ele e a mulher esperavam os convidados no templo taoísta que haviam transformado em casa de fim-de-semana.

 

Era fácil converter templos em casas de férias de diplomatas. Se nada se podia fazer quanto aos telhados verdes e às complexas vigas de madeira, nem quanto aos painéis incrustados com dragões esculpidos e largos pilares vermelhos feitos de sólidos troncos de árvores, por serem parte da estrutura do edifício, já muito se conseguia realizar com papel de parede importado e uma boa iluminação. Alguns sofás e espreguiçadeiras, uma mesa de jantar de mogno maciço e um piano, belos quadros nas paredes, uma cópia de um Veado Moribundo, de Landseer, e um retrato do avô de Lady MacDonald, em uniforme, durante a Batalha de Waterloo, ligavam bem com o biombo de laca, as lanternas e as cadeiras da dinastia Ming. Era uma mistura encantadora do chique urbano moderno com a chinoiserie de bom gosto. As duas janelas que fora preciso abrir de cada lado da Sala de Adoração original forneciam a luz necessária, e Lady MacDonald escolhera elegantes cortinas amarelas para compensar a profanação que cometera. Em geral, os estrangeiros respeitavam as sensibilidades dos autóctones - afinal, eram locais de culto que haviam requisitado para as suas necessidades - e era considerada uma falta de boas maneiras destruir quaisquer pinturas, esculturas e outras obras de arte sacra que pudessem encontrar-se nas paredes. Fora aí que o papel de parede inglês se mostrara muito útil. Lady MacDonald lembrava-se de como se sobressaltara, na primeira noite que havia passado ali, ao ver os rostos escamados de antigos demónios e de bodisatvas sorrindo maquiavelicamente, à luz das velas, numa pintura do século XV que cobria a parede do fundo. Uma camada de papel de parede desenhado por William Morris fizera toda a diferença e, melhor ainda, o padrão florido condizia na perfeição com os tapetes persas.

 

Ficara orgulhosa com a decoração do interior da casa, mas mais ainda com o jardim que havia criado no pátio. Mandara derrubar o muro exterior e um dos santuários, plantara um relvado, que se estendia até à margem do penhasco, mandara colocar canteiros de flores e rebordos de plantas herbáceas e, com as cadeiras e as mesas de jardim brancas, o balouço e o rolo de jardim, sabia que, se a casa se mantinha chinesa, o jardim era inequivocamente do Surrey.

 

Era precisamente no jardim que os criados, de uniforme, com os seus rabichos compridos a cair-lhes sobre as costas, se atarefavam a alinhar os cristais no aparador e a colocar os últimos talheres de prata nas quatro mesas compridas protegidas pela sombra dos salgueiros e espaçadas meticulosamente entre si. O branco das suas casacas e das toalhas de mesa engomadas resplandecia no cenário de fundo constituído pelo verde do relvado e das encostas cobertas de abetos. Se bem que trabalhassem eficazmente, em silêncio, tinham consciência do olhar vigilante de Lady MacDonald, que procedia aos últimos retoques nos arranjos florais. Usava um chapéu de abas largas, ornado com plumas, e um vestido de tafetá cingido na cintura, de um violeta subtil que a favorecia; só destoava a tesoura muito grande que segurava nas mãos, enluvadas ao gosto do último grito da moda. Por seu lado, Sir Claude, de blazer, calças brancas e chapéu de palha, era a imagem do mais completo à-vontade, enquanto fumava um longo charuto, olhando ociosamente para a planície amarela ao fundo do penhasco.

 

Muito admirado pelos seus colegas europeus mais temperamentais, pelo seu feitio imperturbável, pelas suas análises prudentes por detrás de comentários breves e enigmáticos e pelo seu autoritarismo subtil mas natural - um típico procônsul, mais mandarim do que os próprios mandarins -, Sir Claude era, na verdade, um homem reservado, cuja profunda timidez passava frequentemente por indiferença ou arrogância. Os seus subordinados da Legação Britânica respeitavam-no mais do que gostavam dele. À beira dos cinquenta anos, tinha a tez de um jovem, uma farta cabeleira loura e faces avermelhadas e ossudas. Um bigode louro, de pontas finas e enceradas, estendia-se até às orelhas, de cada lado do seu rosto estreito e sardento. O bigode balouçava sempre que Sir Claude se movia, parecendo estranhamente separado do rosto, como se um morcego amarelo houvesse decidido pendurar-se por cima dos seus lábios. Sobrancelhas finas franziam-se por cima dos olhos azuis e penetrantes. Homem alto, caminhava com as costas ligeiramente curvadas, mas, mesmo com roupas informais como as que usava naquele dia, os seus movimentos conferiam-lhe uma aura de solenidade e de grandeza. Sob a direcção de Sir Claude, a Legação funcionava no mais puro estilo imperial, que se manifestava até nos piqueniques que organizava.

 

Sir Claude nunca fora homem de se gabar dos seus feitos, mas tinha sido responsável por vários êxitos diplomáticos, no exercício das suas funções, como as negociações que tinham aumentado dramaticamente a influência e os territórios britânicos na China. Havia sido ele a força motriz por detrás da concessão de Wei Hai Wei como uma nova colónia e, quase de seguida, pela aquisição dos Novos Territórios, em Hong Kong; também assegurara que o governo chinês reconhecesse o vale do Yangtse como área de influência britânica. Contrariara habilmente as tentativas de expansão de outras potências, durante a competência renhida que se seguira à inesperada derrota da China perante o Japão, em 1895. Agora, Sir Claude mantinha um olhar desconfiado sobre as actividades dos Alemães em Shantung e dos Russos ao longo de toda a fronteira. Ainda na véspera recebera um telegrama preocupante do seu cônsul, no remoto posto avançado de Kashgar, que lhe relatava movimentos suspeitos de tropas nos desfiladeiros que conduziam à índia. Havia convidado o ministro russo para o piquenique e escolheria discretamente o momento adequado para lhe fazer um aviso velado. Não fazia o género de Sir Claude procurar o confronto quando uma calma troca de palavras nos bastidores podia mitigar a tensão.

 

Descobrira que o seu método de diplomacia se harmonizava com o dos Chineses e pusera em prática uma relação de trabalho com os oficiais do Tsungli Yamen, o equivalente chinês ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Juntos, haviam resolvido algumas questões bicudas. Sir Claude orgulhava-se da sua intervenção no Outono anterior, depois de a imperatriz viúva Tzu Hsi, o verdadeiro poder por detrás do trono, haver deposto o imperador, no golpe palaciano despontado pelo fracasso do movimento reformista dos cem dias, levado a cabo pelo jovem. Seguira-se uma vaga de execuções dos funcionários e conselheiros do imperador, e as legações, que conheciam a reputação da imperatriz viúva, temeram pelo que podia acontecer ao sobrinho. Os receios dos diplomatas pareceram confirmar-se quando o palácio emitira um comunicado anunciando que o imperador estava doente e que “todos os tratamentos médicos se revelaram ineficazes”. Fora então que Sir Claude entregara uma nota ao Tsungli Yamen, instando o palácio a encontrar um medicamento que curasse o imperador, uma vez que a sua morte, em tal conjuntura, teria um efeito desastroso para a China junto das potências estrangeiras. Como resultado, o imperador recuperara totalmente, embora sempre confinado ao Palácio de Verão. Sir Claude, contudo, tivera o prazer de o ver aparecer na recepção que a imperatriz viúva organizara em Dezembro, como forma de demonstrar à comunidade estrangeira que havia seguido o seu conselho, pelo menos no que dizia respeito à prevenção de um assassínio.

 

A ocasião em si abrira um precedente em muitos aspectos, já que, pela primeira vez, a velha senhora pedira que lhe fossem apresentadas as esposas dos ministros de cada legação. Sir Claude não sabia o que mais o espantara: se o recatado chá entre a mítica imperatriz-dragão e as respeitáveis matronas espartilhadas da comunidade estrangeira, se o murmúrio repetido pela velha tirana: “Uma família. Uma família.” Havia diferentes interpretações para aquele enigmático reparo. Pessoalmente, Sir Claude sentira-se encorajado, acreditando que a imperatriz, enquanto reprimia as reformas, estava, ao menos, convencida da necessidade de um compromisso com as potências estrangeiras. Por conseguinte, Sir Claude mostrava-se inclinado a não dar importância aos rumores da existência de sociedades de artes marciais que eram contra os estrangeiros e se reuniam no campo, nem à convicção emotiva dos seus colegas de que um movimento xenófobo ganhava força no palácio. Ainda teria de ouvir um relato, devidamente comprovado, acerca desse “movimento Boxer”, como lhe haviam começado a chamar, que o convencesse de que reflectia algo mais do que o habitual descontentamento dos camponeses, normal em qualquer pessoa que vivesse na China. Sem ser complacente para com os problemas com que o país se confrontava, Sir Claude sentia ter razões para expor, no relatório que enviara recentemente ao seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, que havia fundamento para um optimismo cauteloso quanto à influência e à expansão comercial da Grã-Bretanha, que não se veriam comprometidas nos anos vindouros.

 

A poeira levantada pela cavalgada era visível ao fundo da colina. Levar-lhe-ia vinte minutos a percorrer o caminho sinuoso que conduzia à sua casa. Saboreando uma última baforada do seu charuto, Sir Claude encaminhou-se para o portão, pronto a acolher os mais selectos membros da comunidade estrangeira de Pequim.

 

Helen Francês bebericou cuidadosamente o champanhe, enquanto observava, com olhos muito abertos, os outros convidados. Nunca estivera numa recepção em que fossem faladas tantas línguas estrangeiras ao mesmo tempo e por tão imponente variedade de pessoas. Quando Tom lhe dissera que haviam sido convidados para um piquenique, pensara em algo Parecido com os que fizera com a tia em Ashdown Forest. Imaginara um pequeno grupo informal de amigos, reunidos em volta de uma manta estendida sobre a relva, a comer coxas de galinha, ovos cozidos e sanduíches, e depois talvez uma Pequena corrida a meio-galope, ou um passeio até um dos templos que, segundo Tom lhe dissera, podiam ser encontrados nas colinas Ocidentais. Nunca imaginara que o local do piquenique fosse ele próprio um templo transformado numa mansão luxuosa repleta de mobílias exóticas. Nem esperara uma refeição completa num jardim cuidadosamente tratado, com arranjos mais requintados do que os da sala de jantar do Hotel de Pequim ou os da mesa do comandante no transatlântico que a trouxera até à China. E nunca esperara que todos os convidados se apresentassem tão magnificamente vestidos.

 

Era verdade que alguns homens, incluindo o anfitrião, usavam roupa informal e confortável, mas, naquelas circunstâncias, era uma informalidade exagerada. Muitos dos diplomatas europeus haviam-se apresentado de casaca e cartola. O ministro russo ostentava as suas medalhas. O pacato ministro japonês, acompanhado pela sua pequenina mulher, de quimono, parecia envergar o seu trajo da corte. Mesmo assim, os homens tinham um ar deselegante, em comparação com as esposas, que tanto podiam estar em Ascot como a assistir à regata de Henley. Helen Francês fitou, maravilhada, a condessa Esterhazy, convidada da Legação Austríaca, envolta em organdi azul e plumas de pavão, rindo do bon mot do janota adido militar francês, que seguia atrás dela. Chapéus de abas largas ornados de grandes plumas flutuavam como uma brisa por entre campos de algodoeiros em flor ou campos de mostarda. Algumas senhoras usavam fatos de montar, como a própria Helen Francês; a diferença era que os fatos das outras senhoras podiam muito bem ter sido confeccionados para a Caçada de Windsor, com saias elegantes de veludo, chapéus pretos brilhantes com faixas azuis de seda transparente e casacos cingidos na cintura para revelar a magnificência das formas femininas. Helen Francês, no seu fato de viagem castanho e com o seu robusto chapéu de coco, sentia-se tão deslocada como uma preceptora num baile.

 

Implorara a Tom que não a deixasse sozinha, mas, assim que chegaram, ele fora chamado para uma partida de rounders1, que um grupo de jovens jogava no fundo do jardim.

 

1 Rounders: desporto inglês semelhante ao basebol

 

Observou Tom durante algum tempo, a jogar à defesa; viu-o saltar e apanhar a bola, gritando com os outros, quando levantou bem alto o trofeu. O seu rosto afogueado abria-se num largo sorriso de satisfação, enquanto os cabelos estavam em completo desalinho. Helen sentira ternura e orgulho, quando Tom olhara para ela, do fundo do jardim, e lhe sorrira. Foi então que Lady MacDonald lhe pegou pelo braço para a apresentar a Madame Pinchon, a esposa do ministro francês, que testou, até ao limite, o francês que Helen aprendera na escola. Após alguns comentários de circunstância sobre o tempo, concordaram que a Grande Muralha da China era, efectivamente, muito comprida; Madame Pinchon retorquiu, algo mordazmente, que talvez fosse esse o motivo porque se chamava Grande Muralha, e depois, felizmente, a sua atenção foi desviada para outra conversa mais interessante, deixando uma atrapalhada Helen Francês sozinha, com o seu champanhe. Por ora, sentia-se contente por a ignorarem.

 

Deu consigo a escutar a conversa de um pequeno grupo de homens reunidos em volta do Dr. Morrison, o famoso viajante e correspondente do Times, que Tom lhe havia indicado no hotel. A atenção de Helen foi atraída por um jovem que se encontrava ao lado de Morrison. Homem de rara beleza, com cabelo preto, ombros largos, braços e pernas fortes, tinha um corpo poderoso e, ao mesmo tempo, descontraído, revestido por um fato de tweed, de corte impecável. Fez-lhe lembrar uma pantera que vira certa vez no Jardim Zoológico de Londres - um animal indolente, sonolento, mas cheio de energia e de músculos, com a sua força contida por trás da pelagem macia, sempre pronta para o ataque. Helen reparara no jovem durante a viagem até ali, quando ultrapassara a carruagem onde ela seguia. Vira-o virar-se na sela, sem qualquer dificuldade, Para lançar um chiste a um dos seus amigos, enquanto se equilibrava com uma mão pousada no pescoço do cavalo. Os olhos, por breves instantes, haviam-se cruzado com os dela> quando ele se voltara de novo. Depois, puxara as rédeas e o cavalo lançara-se a galope, desaparecendo numa nuvem de poeira. A imagem das suas costas direitas, da sua postura militar, havia ficado na memória de Helen. Na carruagem, não se atrevera a perguntar a Mr. e Mrs. Dawson, os representantes em Pequim da empresa para a qual Tom trabalhava, quem era aquele homem. Por um motivo que não sabia explicar, teria parecido uma deslealdade para com Tom. Sentiu uma súbita ansiedade ante a possibilidade de o jovem erguer o olhar e de a surpreender a fitá-lo, enquanto uma outra parte de si desejava ardentemente que ele o fizesse.

 

- Sim, levo os Boxers a sério - dizia o Dr. Morrison, num tom de voz calmo que contrastava com os seus traços rudes e determinados. Helen Francês detectou uma leve pronúncia colonial no seu discurso. Tom havia-lhe dito que o Dr. Morrison era australiano.

 

- Só pode estar a brincar! Espíritos de soldados a surgirem do nada. Feitiços contra balas de prata e outras superstições! Não estamos em África!

 

O homem que falara era um jovem ruivo, entroncado, com uma voz áspera. Helen Francês lembrou-se de que ele era um dos cavaleiros com quem o atraente jovem de cabelo preto fizera a corrida naquela manhã, e pensou que seria provavelmente um dos funcionários da Alfândega de quem Tom falara em tom depreciativo.

 

- Não, de facto, não estamos em África, Mister Simpson - replicou Morrison. - Esta civilização já possuía uma história quando os seus antepassados ainda dançavam em círculos à volta de uma fogueira. A superstição não é exclusiva das raças que nós tão altivamente consideramos como indígenas. Quando foi a última vez que se desviou para não passar por baixo de uma escada, ou que bateu na madeira para afastar o azar?

 

- Histórias para crianças. Por certo, não...

 

- Efectivamente, são histórias para crianças, mas estão profundamente enraizadas na nossa cultura. Admito que, nos últimos cem anos, nós, as nações ocidentais, talvez tenhamos trepado alguns degraus na escada da razão e da ciência, mas no tempo de Shakespeare, e isso corresponde a um piscar de olhos no que respeita à história da China, acreditávamos em duendes, fadas e fogos-fátuos. Tomemos, como exemplo, um fazendeiro chinês. Não passou por uma revolução agrícola muito menos, por uma revolução industrial. Rege a sua vida pelas estações do ano e pelas colheitas e, se o céu se zanga, terá as suas colheitas destruídas por uma enchente ou por uma trovoada. Claro que acredita em deuses, deusas e poderes mágicos, porque é a única protecção que tem. Coloque-se no lugar dele, Mr. Simpson. Imagine que é um camponês chinês.

 

Helen viu que o jovem de cabelo preto sorria com a atrapalhação do amigo, que, sentindo que estavam a troçar dele, olhava irritado para o copo de vinho.

 

Morrison, contudo, mostrou-se implacável.

 

- Imagine-se um chinês no meio do nada, a chapinhar no seu próprio campo de arroz. O que seria mais fantástico para si? Um poder mágico ou uma máquina a vapor?

 

O Dr. Morrison aguardou, com uma expressão severa. Simpson limitou-se a esboçar um sorriso imbecil.

 

- Nesse caso, compreendeu o meu ponto de vista. Para essa gente, a superstição é real e potencialmente perigosa. Não creio que se tenha esquecido da devastação que os Taipings causaram neste país, há menos de cinquenta anos. Consegue recordar-se em que acreditavam os Taipings?

 

- No cristianismo, não é assim? - replicou Simpson. Ou, pelo menos, numa espécie de cristianismo algo pervertido. Na vinda à terra do irmão mais novo de Cristo e não sei que mais.

 

- Disse cristianismo? Matou vinte milhões de pessoas! E isso não o deixa nervoso, Mr. Simpson? Penso que é bastante para provar que tenho razão!

 

O jovem de cabelo preto riu-se. Helen Francês viu uma fileira de dentes brancos no seu rosto bronzeado. Não compreendera totalmente o teor da conversa. Sugerira o Dr. Morrison que o cristianismo também era uma espécie de superstição? Já ouvira falar dos Boxers, mas quem eram os Taipings?

 

Tom nunca lhe falava de política, provavelmente, por querer protegê-la. Apreciava essa qualidade de Tom, mas aqueles assuntos despertavam a sua curiosidade e, por vezes, sentia-se frustrada por ele reduzir a maior parte das suas conversas a banalidades.

 

Herbert Squiers, um diplomata americano de rosto escanhoado, a quem havia sido apresentada numa paragem da sua viagem até ali, retomou a conversa.

 

- Não duvido do poder da superstição, doutor Morrison, mas receio concordar com o nosso amigo e duvidar de que haja algum perigo nesses Boxers. É verdade que recebemos cartas de missionários com algumas raras histórias, acerca de reuniões à meia-noite e de incitações à revolta das multidões, histórias que investigámos. Contudo, nada encontrámos de sólido. Nada que possamos incluir nos relatórios para os nossos superiores na América. Os camponeses revoltam-se num dia, para, no dia seguinte, estarem felizes por regressarem aos campos. E, tanto quanto sei, nunca houve feridos, nem deitaram fogo a nenhuma missão. Tudo não passa de conversa de pessoas nervosas... Loucura típica do Verão... Pela nossa parte, estamos a aconselhar os nossos missionários a manter a calma.

 

- E o que acontecerá quando a primeira missão for incendiada? Continuará a aconselhá-los a manter a calma?

- Acredita realmente que é isso que vai acontecer?

- Não sei, Squiers - respondeu Morrison. - Quem me; dera sabê-lo. Talvez não passe, efectivamente, de uma loucura típica do Verão. No entanto, posso dizer-lhe o seguinte: o descontentamento, esse, é real. Muitos foram aqueles que depositaram grandes esperanças no movimento reformista do ano passado e, muito embora o mandarinato possa estar feliz por Tzu Hsi haver restaurado o status quo, graças ao seu golpe palaciano, toda a classe mercantil e muitos homens cultos não estão nada contentes. Deus nos valha se houver más colheitas.

 

- Os Boxers não são sábios nem mercadores.

 

- Claro que não. Mas quem provocou a Jacquerie, durante a Revolução Francesa? Intelectuais como Robespierre e Danton. Não se ria. Não existem provas de que o movimento dos Boxers tenha qualquer ligação com os reformistas ou com o palácio. A questão é que, na China, há rodas dentro de outras rodas. E as sociedades secretas são isso mesmo.

 

- O quê?

 

- Secretas. Repare no termo “boxer”. O que significa? Os Punhos da Justa Harmonia. Deveras imponente, não lhe parece? E não me diga que foi um camponês que se lembrou de tal designação!

 

- Então, quem foi?

 

Não sei, mas as sociedades secretas são uma parte integrante deste país. As tríades. Os Tongs. São irmandades de criminosos, mas também há nelas algo de respeitável. Autodenominam-se sociedades patrióticas. Protectoras do povo contra dinastias corruptas. O Nenúfar Branco era composto por heróis que se insurgiram contra os Mongóis e entregaram o poder aos Ming. Mais tarde, criticaram os Ming, quando estes começaram a tornar-se corruptos. Ainda existem, tal como a seita dos Oito Trigramas, os Punhos Vermelhos, os Grandes Espadas, os Grandes Facas, os Paus Negros. Existem centenas de sociedades, e quem sabe quantos tentáculos têm em todas as classes sociais da China? Todos nós precisamos de protecção. Era capaz de apostar em como esse Boxers têm ligações com uma dessas sociedades secretas, ou até com mais do que uma.

 

- E esta, hem, Simpson?

 

Helen sobressaltou-se, ao ouvir a voz do jovem de cabelo preto elevar-se num tom lânguido e arrastado.

 

- Nunca pensei que a China fosse tão emocionante! Devo então concluir, cavalheiro - continuou, dirigindo-se ao Dr. Morrison -, que colocarei a minha vida e os meus braços e pernas em risco, quando deixar a segurança e a protecção que me é oferecida pela comunidade diplomática - e acenou com a mão, num gesto sardónico, para a festa que prosseguia a sua volta - e me aventurar no campo?

 

- Você é o Manners, não é assim? - perguntou Morrison, lançando-lhe um olhar frio. - Disseram-me que viria. Não, jovem, não estou a sugerir nada disso, por ora. Os Boxers constituem um fenómeno inquietante mas, até ao momento, não atacaram nenhum homem branco. De qualquer maneira, estou certo, por tudo o que ouvi dizer sobre a sua pessoa, que saberá cuidar de si.

 

- Vejo que a minha reputação me precedeu...

 

- Conselheiro do exército japonês. Sim, ouvi falar de si e agora, deduzo que tenha deixado tudo isso e arranjado um trabalho no caminho-de-ferro. Onde vão colocá-lo?

 

Helen sentiu o sangue subir-lhe à cabeça quando ouviu o jovem responder:

 

- Em Shishan.

 

Não teve oportunidade, contudo, de ouvir o resto, porque um Tom transpirado e feliz se achava já a seu lado, dizendo-lhe que a sua equipa ganhara a partida de rounders; e porque estava ela ali, sozinha e abandonada? Devia voltar a encher a taça com champanhe e ir conhecer os seus amigos da Legação. Quando se afastou, Helen virou a cabeça e viu que os olhos azuis de Manners olhavam, divertidos, na sua direcção.

 

Durante o almoço, à sombra das árvores, ficou sentada entre um reservado intérprete da Legação, chamado Pritchett, e o ministro francês, Monsieur Pinchon. Após alguns gracejos, Monsieur Pinchon ignorou-a, passando a falar em voz alta, por cima da cabeça da esposa do ministro japonês, com Sir Claude, que estava à cabeceira da mesa. Tom ficara sentado do outro lado, fora do alcance da conversa. Por conseguinte, Helen Francês ficou entregue à companhia de Pritchett e, uma vez que este parecia atacado por um caso agudo de timidez, foi-lhe difícil manter a conversa. Os olhos dela começaram a vaguear pelas outras mesas. Lady MacDonald encarregava-se de Sir Robert Hart, um homem de barba branca, director dos Serviços Alfandegários da China, o mais velho residente de Pequim e, aparentemente, também o mais sensato. Os olhos de Helen demoraram-se no traje magnífico da condessa Esterhazy, que parecia embrenhada numa conversa íntima com o convidado que se achava sentado à sua esquerda. Não conseguia ver quem era porque estava tapado pela parte de trás da grande cabeça de Mr. Squiers. Foi então que este se mexeu e ela viu Manners. Reconhecendo-o, apressou-se a desviar o olhar.

 

- Mister Pritchett - perguntou, num tom de voz doce, conhece todos os convidados?

 

- Conheço a maioria. A comunidade de Pequim é pequena. Não conheço alguns dos visitantes. Mas porquê?

 

- Por nada. Apenas por curiosidade. É que vi excelentes cavaleiros, esta manhã, quando me dirigia para cá, e alguns estavam envolvidos numa corrida.

 

- Ah, sim, devem ter sido os rapazes da Alfândega a exibirem-se... Desculpe, não era minha intenção...

 

- Mas eles estavam, de facto, a exibir-se. Não se preocupe riu-se Helen. - Havia um, em particular... Não estou certa do seu nome... Manners, parece-me... É um excelente cavaleiro.

 

- Lamento, Miss Delamere, mas não sou um entendido na arte de montar a cavalo

 

- Adoro montar - replicou ela. - Fazem caçadas à raposa, aqui?

 

- Penso que se organizam caçadas com raposas de papel, de tempos a tempos. E também há o Jockey Club. Eu não monto.

 

- Mister Manners deve ser um dos membros mais importantes do Jockey Club.

 

- Henry Manners? O filho do membro do parlamento? Não, Miss Delamere, ele está de visita a Pequim. Recebemos na Legação um telegrama a seu respeito.

 

- A sério? Isso é muito interessante.

 

- Nem por isso. Era um telegrama de rotina. Sir Claude está a ajudá-lo a arranjar emprego no caminho-de-ferro chinês, algures no Norte. É um favor que presta ao pai, Lorde Beverley, que parece ser uma pessoa importante junto do governo inglês.

 

- Então, Mister Manners é engenheiro?

 

O intérprete, que até então havia evitado olhar para o rosto de Helen, ergueu de súbito os olhos pesarosos e encarou-a, com as sobrancelhas levantadas pelo espanto.

 

- Segundo creio, foi em tempos oficial dos Royal Engineers e serviu na índia. Pelo que sei, Mister Manners foi muitas coisas ao mesmo tempo. Uma personalidade bastante exuberante, Miss Delamere. Mais recentemente, esteve no Japão. Posso perguntar porque se mostra tão interessada nele? Quero dizer: para além de ser um excelente cavaleiro?

 

Helen irritou-se por sentir aflorar-lhe às faces um rubor, que tentou ocultar com uma risada divertida, mas que saiu mais estridente do que pretendia. Esperava não ter bebido champanhe em demasia.

 

- Está a ser malicioso, Mister Pritchett. Não estou minimamente interessada em Mister Manners. Que quis dizer?

 

Foi a vez de Pritchett se sentir embaraçado, e também ele corou.

 

- Peço-lhe desculpa, Miss Delamere, se me exprimi mal. Esboçou um sorriso triste. - Muitas vezes desconfio de que sou mais fluente em línguas orientais do que em inglês. - Vendo que Helen Francês lhe sorria, ganhou coragem e continuou: A propósito, Mister Manners é também um linguista. Fala bem japonês e melhorou muito o seu chinês, durante os meses que aqui esteve.

 

- Parece conhecê-lo bem.

 

- Pequim é uma cidade pequena, Miss Delamere. Não o vejo com frequência. Ele tende a preferir uma sociedade mais mundana do que a torre de marfim onde eu próprio vivo.

 

- Está a referir-se aos rapazes da Alfândega? Pritchett riu-se baixinho. O embaraço que ambos haviam sentido, poucos minutos antes, parecera deixá-lo mais à vontade.

 

- São conhecidos como um grupo que gosta de aproveitar a vida. O Simpson e os colegas e ainda alguns dos adidos militares.

 

- Não me atrevo a perguntar o que fazem eles...

 

- Nem eu me atreveria a responder-lhe, mesmo que soubesse.

 

- Devo deduzir que Mister Manners é um homem atrevido, Mister Pritchett?

 

- Creio haver dito que tem uma personalidade exuberante, Miss Delamere. - Recostou-se na cadeira para deixar um criado levantar o primeiro prato, a lagosta que ele mal provara. - Posso perguntar-lhe para onde Mister Cabot...

 

- O meu noivo?

 

- Exacto. Posso perguntar-lhe para onde vão, quando deixarem Pequim? Segundo julgo saber, o seu pai está no ramo dos químicos, algures no Norte...

 

- Trabalha numa cidade chamada Shishan e é para lá que vamos.

 

- Ah, Shishan - comentou Pritchett. Um brilho de divertimento raiado por uma certa melancolia passou pelos seus olhos. - E disse que foram as qualidades de cavaleiro de Mister Manners que lhe despertaram o interesse?

 

Desta vez, Helen deu consigo a rir com naturalidade.

 

Apanhou-me em flagrante, Mister Pritchett. Sim, ouvi hoje que Mister Manners também vai para Shishan e tentava sondá-lo a respeito do carácter dele. Pode perdoar-me?

 

- Revelou-se muito habilidosa. Só espero não haver dito nada que a faça antipatizar com o seu novo vizinho.

 

- Pelo contrário. Parece-me uma personagem intrigante. Terei muito prazer em conhecer alguém tão.... exuberante.

 

“E sedutor”, disse para si própria. Que pensamento tão pecaminoso. Não devia beber mais vinho. Quando o criado colocou o prato principal à sua frente - rosbife e pudim de Yorkshire -, olhou de soslaio na direcção de Manners. Tinha a cabeça inclinada para trás e ria, às gargalhadas, de um reparo da condessa Esterhazy, os dentes brancos a brilhar por baixo do bigode fino. Depois, olhou para o afável e honesto Tom, que parecia jogar uma nova partida de rounders com o saleiro e o pimenteiro. Um dos amigos de Tom alinhara na brincadeira, contribuindo para a táctica com alguns pãezinhos, enquanto a esposa de um dos oficiais da Legação, que estava sentada entre os dois jovens, parecia manifestamente aborrecida. “Bom velho Tom”, pensou, enternecida.

 

- Se vai para Shishan, Miss Delamere - dizia Pritchett posso atrever-me a dar-lhe um conselho?

 

- Acerca de Mister Manners? - perguntou ela, surpreendida.

 

- Nunca pensaria em fazer tal coisa. Não quero alarmá-la, mas já ouviu falar dos Boxers?

 

- Parece que ninguém fala de outra coisa - replicou ela -, mas Mister Squiers dizia, ainda há pouco, que a sua Legação os considera uma mera paranóia típica do Verão.

 

- Essa também é a posição oficial da nossa Legação e espero não estarmos enganados. Mas eu tenho amigos chineses que tendem a assumir uma opinião diferente. Shishan fica muito longe daqui e ainda não tem comboio. Apenas lhe darei um conselho: mantenha os olhos bem abertos e, se ouvir falar de algo inquietante, não pense ser uma desonra partir de imediato e aconselhar Mister Cabot e o seu pai a fazerem o mesmo. Sentir-me-ia privilegiado se me escrevesse, de tempos a tempos, e me pusesse a par da situação em Shishan. Pronto. Era tudo o que queria dizer-lhe.

 

E brindou-a de novo com o seu sorriso triste.

 

- Mas que gentil da sua parte, Mister Pritchett! Claro que eu... levarei muito a sério o que me disse e será um prazer escrever-lhe - “Que homenzinho tristonho e esquisito”, pensou. - Mas agora não falemos mais nesses terríveis Boxers.

 

Após o terceiro prato, um ambicioso pudim de limão, as senhoras deixaram os cavalheiros a saborear os seus conhaques. A única excepção fora a condessa Esterhazy que, para ultraje de algumas esposas dos funcionários da Legação, não só insistira em ficar com os homens como exigira que lhe dessem um charuto, que fora aceso, não sem algum humor, por Sir Claude, como sempre um anfitrião perfeito. Durante o café, a conversa na sala de estar de Lady MacDonald centrou-se inevitavelmente nas numerosas relações amorosas que a condessa supostamente tivera com personalidades importantes das cortes russa e austríaca. Corriam rumores de que, durante a sua curta estadia em Pequim, não havia desencorajado os seus admiradores. Madame Pinchon, sem dúvida ansiosa por preservar a reputação do adido militar da Legação Francesa, comentara que havia inclusivamente um jovem inglês que parecia não ser indiferente aos encantos da condessa. Pois durante o almoço, ainda há pouco... Nesse momento uma graciosa Lady MacDonald perguntara a Mrs. Dawson se ela e a sua jovem amiga não estavam cansadas, após os esforços físicos daquele dia; e Mrs. Dawson, trocando olhares cúmplices com a anfitriã, respondera que sim, que se sentia um pouco fatigada. E fora por isso que Mrs. Dawson e uma frustrada Helen Francês haviam sido conduzidas a um pequeno quarto mobiliado, nas traseiras do templo, onde lhes haviam dito que podiam deitar-se e dormir a sesta.

 

Enquanto Mrs. Dawson ressonava a seu lado, Helen, acordada e estendida sobre a cama de ferro, pensou na discussão acerca dos Boxers, na sua conversa com Pritchett, em Manners e na condessa Esterhazy. Em especial, em Manners, virando-se na sela, com os seus olhos azuis, os dentes brancos e o cabelo negro e sedoso. Que havia dito o Dr. Morrison? Que Manners fora conselheiro do exército japonês? E ainda algo acerca do caminho-de-ferro. Iria realmente Manners viver com eles, em Shishan? Era tão diferente de Tom. O querido Tom, com o seu peito largo, os seus braços fortes, sorriso travesso e riso grave. Imperceptivelmente, contudo, a imagem de Tom começou a fundir-se à de Manners até que, por fim, ficou apenas a imagem muito nítida de Manners, com os seus ombros largos, corpo ágil e bigode fino, à moda. Um homem perigoso como uma pantera negra, em busca da presa. E Tom? O que era? Um leão? Não, um cão grande e de pêlo comprido. Uma pantera em busca de presa e um colite farfalhudo e dócil.

 

Acordou com dor de cabeça. Era o que dava beber tanto champanhe, pensou. Seguiu timidamente Mrs. Dawson até ao jardim e encontrou Tom ao lado de Henry Manners.

 

- Minha querida, aconteceu uma coisa maravilhosa. Sabes que mais? Este amigo também foi colocado em Shishan! Apresento-te Henry Manners. Esta é a minha noiva, Helen Francês Delamere. Poderemos viajar os três juntos! Não é simplesmente fantástico?

 

- Muito prazer - cumprimentou Manners, levando aos lábios a mão de Helen, que sentiu o bigode roçar-lhe nos dedos e os olhos, enrugados por uma expressão divertida, fixarem-se nos seus.

 

- O Manners vai para o Norte a fim de ajudar na construção do caminho-de-ferro. Ficará no acampamento, mas, como este está situado muito perto da cidade, poderemos ver-nos com frequência. E, quando eu estiver ausente, em viagem pela província, poderás ir andar a cavalo com ele. Ao que parece, é uma zona muito boa para a prática da equitação, e até há algumas caçadas.

 

- Pelo menos, foi o que me disseram - acrescentou Manners -, mas creio que se trata mais de caça ao urso. E também de alguns veados.

 

- Vi-o a cavalo esta manhã - disse Helen Francês, sem Pensar.

 

- A sério? - exclamou Tom. - Viste a corrida? Não foi espectacular? Eu e o Manners vamos tentar fazer uma corrida a galope, na viagem de regresso a Pequim, não é verdade? Isto se ainda houver luz suficiente. Não é espantoso, minha querida? Sabes, eu estava um pouco preocupado, nunca te disse nada, claro, com a ideia de ficarmos sozinhos em Shishan, onde as únicas companhias agradáveis seriam as do teu pai e do velho médico. Mas, agora, com o Manners, tudo muda de figura.

 

Helen foi poupada à obrigação de responder ao noivo, quando Sir Claude MacDonald surgiu a seu lado.

 

- Manners - saudou o ministro britânico.

 

- Foi um piquenique grandioso, Sir Claude - replicou o jovem.

 

- Foi só uma pequena insignificância. Faz tudo parte das actividades regulares da diplomacia. Fico muito contente por vocês os três se terem conhecido. Suponho que partirão para Shishan juntos?

 

- Assim parece. Não podia ser uma coincidência mais feliz.

 

- Aye. Nos tempos que correm, fico mais descansado quando as pessoas viajam em grupo. Como é sabido, não concordo nada com todos esses disparates acerca dos Boxers, mas têm havido alguns casos de banditismo e é melhor tomar certas precauções. Espero que partam armados. Não se esqueçam; de que em Shishan poderão contar com o Airton, um homem de personalidade muito sólida e que conhece bem o mandarim. Estarão seguros em Shishan.

 

- Nesse caso, estou ansioso por conhecer esse tal Airton, Sir Claude.

 

- É um homem bastante inteligente, jovem Henry. Escute-o, é o conselho que lhe dou. - Sir Claude olhou fixamente para Manners como que para sublinhar o que acabara de dizer. O jovem sorriu e baixou o olhar. Sir Claude voltou-se então para Tom e Helen. - Não conheço o seu pai, Miss Delamere, mas o Dawson diz-me que ele está a sair-se bem com a sua empresa, por aquelas bandas. A propósito, pelo que julgo ter compreendido, devo dar-vos os parabéns. Estão noivos, não é assim?

 

- Ainda não, pelo menos oficialmente. Digamos que é, mais um acordo entre nós.

 

Ainda precisa de obter a permissão do pai. Compreendo. Mas estou certo de que ele acederá. Você é um homem de sorte. Se bem percebi, vai para Shishan como assistente de Mister Delamere, não é verdade?

 

Assim é, e mal posso esperar por começar.

 

Óptimo, óptimo. Bom, não vos empato mais. Têm uma longa viagem de regresso à vossa espera. Obrigado a todos por terem vindo. Tomem cuidado convosco em Shishan. E você, Manners, não se esqueça do conselho que lhe dei.

 

- É impressão minha - comentou Tom, quando os três se encaminharam para os cavalos e as carruagens -, ou foi como se eu tivesse sido levado novamente à presença do velho reitor da escola?

 

- Velho tonto - resmungou Manners. - Tem a cabeça nas nuvens. Não se apercebe do que está a passar-se.

 

- Que conselho lhe deu ele? Pareceu-me muito insistente.

 

- Conselho? Pareceu-me mais o velho Polónio1: “Não sejais nem um homem que empresta dinheiro nem um que pede.” Sente que é seu dever para com o meu pai manter-me na linha. Na verdade, foi algo descarado, isso sim.

 

- Nesse caso, devo pressupor que tenciona tornar-se a ovelha negra da sua família, Mister Manners? - perguntou Helen Francês.

 

- Caramba, HF! Não deves dizer coisas dessas!

 

Tom olhou ansiosamente para o seu novo amigo, mas Manners riu-se.

 

- Já sou a ovelha negra da família, Miss Delamere - replicou, enquanto subia para o cavalo. - A propósito, eu também a vi esta manhã. A sua figura, a escutar, com a cabeça inclinada, avivou a pavorosa homilia do Morrison. Sir Claude tem razão, Cabot. Você é um homem com sorte. Vemo-nos depois da corrida.

 

Helen observou Manners, enquanto este conduzia habilmente o seu cavalo por entre as carruagens paradas no parque

 

Polonio pai de Ofélia e Laertes, personagem de Hamlet, de William Shakespeare.

 

para se juntar a Simpson e aos outros cavaleiros que já haviam montado. Ela e Tom passaram por entre a reluzente colecção de caleches, landaus e carruagens, junto dos quais se viam criados de uniforme e chapéus cónicos, até alcançarem a carruagem de Mrs. Dawson.

 

- Simpatizas com o Henrry Manners, Tom? - perguntou Helen docilmente, dando-lhe a mão.

 

- Sim. Ele é formidável. Um grande desportista. Mas porque perguntas isso?

 

- É que ele parece ser tão diferente de ti.

 

- Queres dizer mais mundano? - replicou Tom, sorrindo. - Bom, ele já viajou bastante e fez uma série de coisas interessantes.

 

- Era o que eu queria dizer, em parte - replicou Helen Francês. - Ao que parece, ele goza de uma certa reputação.

 

- E muito bem merecida, na minha opinião. Foi soldado nos Royal Engineers... Viveu na índia, nas índias Ocidentais e no Japão. Provavelmente, deve ter boas histórias para nos contar, à volta da fogueira do acampamento, durante o trajecto para Shishan. Não te importas que ele viaje connosco, pois não? Tenho a certeza de que não nos incomodará.

 

- Não, claro que não me importo, se isso te deixa feliz, Tom. - Abraçou-o e deu-lhe um rápido beijo numa das faces. - És um homem muito bondoso, sabias?

 

- Calma, minha querida... Alguém pode ver-nos.. - sussurrou Tom, mas os seus olhos brilhavam de felicidade e de orgulho, quando, rindo baixinho, ela voltou a beijá-lo. Helen pousou então a cabeça sobre o seu peito, e assim ficaram, timidamente abraçados, por entre um carro fechado e um landau, sob o olhar desinteressado de um criado chinês. Quando ouviram vozes, apressaram-se a afastar-se um do outro e voltaram-se, sorrindo inocentemente a Mr. e Mrs. Dawson, que vinham buscar Helen Francês para a levarem na sua carruagem de regresso a Pequim.

 

- Quem é a poldra? - perguntou Simpson, enquanto Manners cavalgava a seu lado.

 

- O seu nome é Helen Francês Delamere - respondeu
Manners, em voz arrastada. - Ao que parece, vai ser minha companheira de viagem durante a jornada até Shishan.

 

- Que sorte a tua. Não há nada como uma ruiva enérgica para acalmar uma mente preocupada.

 

É capaz de se revelar um desafio, porque está noiva.

 

- O quê? Ela está noiva do Tom do críquete? Isso não deve constituir um empecilho para ti, meu velho.

 

- É verdade que torna a perspectiva da estada em Shishan mais interessante. Bom, mas qual vai ser a aposta, desta vez?

 

- Vinte guinéus em como chego à muralha da cidade antes de ti. Não... Dobramos a parada e, se eu ganhar, tenho direito a uma hora com aquela nova rapariga mongol com quem te tens divertido, na casa da Mãe Zhou.

 

- Ela nem sequer vai dignar-se olhar para ti, mas está bem. Aceito. Aumenta a parada para cinquenta guinéus. Ficarás a dever-mos antes de o Sol se pôr...

 

- Cavalga a todo o galope, meu velho!... - gritou Simpson, com uma gargalhada áspera.

 

- Cavalgo sempre a todo o galope - rematou Manners. E chicoteou o cavalo, que, de imediato, começou a galopar.

 

Sir Claude estava no seu local favorito, que dominava a planície, com um charuto nos lábios e as mãos cruzadas atrás das costas. Ao longe, podia entrever as nuvens de poeira levantadas pelos carros dos seus convidados, no seu regresso à cidade. Mal conseguia discernir, no horizonte, as torres e a muralha, por entre a neblina. O Sol começava a desaparecer por detrás das árvores. Fora um dia cansativo mas gratificante. Falara durante meia hora com o ministro russo e, tal como já esperava, os protestos iniciais haviam dado lugar a frases feitas acerca da harmonia existente entre os impérios que ambos representavam e sobre o seu objectivo comum de civilizar a Ásia. Claude tinha a certeza de que, naquela mesma noite, a Delegação Russa ia enviar um telegrama e de que ele receberia em breve uma confirmação por parte de Kashgar. Também tivera Uma conversa proveitosa com o ministro japonês, que, para sua grande satisfação, parecia partilhar a opinião de Sir Claude a propósito da situação da China. Nunca se sabia o que ia na cabeça dos Japoneses, mas Sir Claude ficara contente por ter o Japão como aliado no que prometia ser um novo confronto com Monsieur Pinchon, durante o Conselho de Ministros na próxima terça-feira. Qual era a ideia de Pinchon? Armar as legações? Que provocação!

 

Atrás dele, os criados levantavam as mesas, enquanto os jardineiros, munidos de vassouras, retiravam as pontas de charutos do relvado. Lady MacDonald mandara preparar um banho e descansava, desde que terminara o piquenique. Quanto a Sir Claude, ansiava por um serão sossegado, com um livro de Trollope e um ou dois copos de bom uísque de malte.

 

Ouviu alguém tossir e, virando-se, ficou admirado por deparar com Pritchett, com ar constrangido.

 

- Que está a fazer aqui, homem de Deus? Já partiram todos, há muito tempo.

 

- Peço-lhe perdão. Eu parti com os outros, mas depois decidi que isto não podia esperar até segunda-feira, e por isso voltei...

 

Sir Claude nutria uma admiração sincera pelas capacidades profissionais de Pritchett. Cumpria na perfeição o seu papel oficial de intérprete. Era um excelente orientalista. Era também muito competente no seu outro papel de obter informações secretas para a Legação Britânica. O único problema é que o homem revelava uma timidez exasperante.

 

- Podia ter-me puxado para um canto, durante o piquenique...

 

- Sim, senhor.

 

- Vamos, continue! Do que se trata?

 

- Recebemos outra carta, Sir Claude.

 

- Novamente os Boxers?

 

- Sim, senhor.

 

- Ah, Pritchett, Pritchett, você e os seus Boxers... O que é, desta vez?

 

- É uma carta do nosso agente em Fuxin. Fica na Manchúria, a oeste de Mukden, nos limites do território chinês, muito perto das regiões mongóis.

 

- Sei muito bem onde fica Fuxin. Prossiga.

 

- Bom, o nosso agente relata que houve um tumulto em puxin provocado pelos Boxers, ao que parece logo após a chegada de um padre mendicante. Não é a primeira vez que ouvimos falar desse padre, Sir Claude...

 

- Nem de outros como ele. Existem milhares de charlatães na China, e todos revoltam as populações, de uma maneira ou de outra.

 

- Sim, senhor. Se é ou não o mesmo padre pode não ser importante. O que distingue este incidente dos anteriores é que houve uma morte... Um assassínio...

 

- Um assassínio? De um padre? De um branco?

 

- Não, senhor. Havia missionários em Fuxin, Mister e Mistress Henderson, da Sociedade Missionária Escocesa. Viveram momentos de grande terror, cercados em sua casa por uma multidão em fúria, mas não sofreram quaisquer ferimentos. Como é óbvio, ficaram muito assustados e deixaram Fuxin. Suponho que venham neste momento a caminho de Pequim.

 

- Isso pode provocar uma onda de pânico. É conveniente interceptá-los antes que comecem a falar para os jornais. Mas disse que alguém foi assassinado?

 

- Sim. Um cristão chinês. Um negociante muito conhecido que lidava com várias das nossas empresas. Ele foi... espancado até à morte.

 

- Pelos Boxers?

 

- Sim, senhor.

 

- Essa informação é fidedigna? Tem a certeza de que ele foi assassinado pelos Boxers porque era cristão e tinha ligações com os estrangeiros?

 

- O nosso agente não o diz claramente.

 

- Mas é o que você presume? Ou o que o seu agente presume?

 

- Sim, senhor.

 

- E agora? Como está a situação em Fuxin?

 

- As autoridades locais enviaram soldados e dispersaram o motim. Vários líderes foram presos, incluindo os assassinos ao negociante. O padre mendicante desapareceu. Agora, parece que tudo voltou à normalidade. Vai haver um julgamento no yatnen local e, provavelmente, algumas execuções.

 

- Bom, nesse caso, tudo indica que se trata de um assunto interno chinês.

 

- Desculpe?

 

- É uma questão de respeito pela lei, homem! Tratou-se de um motim de cidadãos, independentemente do motivo, mas as autoridades recuperaram o controlo. Como sabe se esse tal chinês cristão não era uma pessoa corrupta e odiada na cidade e um alvo natural da violência popular? Ou até que tenha sido ele a desencadear o motim?

 

- Ele era cristão.

 

- Isso não é garantia seja do que for. Conheci alguns cristãos muito corruptos. Esse homem podia estar a armazenar cereais ou outra coisa qualquer. Não, nada há de significativo nisso tudo. Tratou-se de um vulgar motim, como há muitos.

 

- O meu agente fala nos Boxers. E houve uma morte. A primeira.

 

- Hoje em dia, toda a gente fala dos Boxers. Não, Pritchett, parece-me que seria uma irresponsabilidade da nossa parte atribuir muita importância a esse incidente. Esqueça o que aconteceu, homem. Aproveite o fim-de-semana ou o que resta dele. Voltaremos a falar disso na segunda-feira.

 

- Não podemos proceder a uma investigação mais pormenorizada do incidente? Pode revelar-se importante.

 

- Pritchett, você está completamente obcecado pelos Boxers. O que sugere?

 

- Bom, o Manners vai passar por aquela região, na viagem para Shishan. Não fica muito fora do caminho, e talvez pudéssemos pedir-lhe que nos enviasse um relatório independente.

 

- Não partilho da sua confiança no jovem Manners. É demasiado amigo dos Japoneses para o meu gosto... Isto para não falar das mulheres. Ele tem má reputação, Pritchett. Só o ajudei porque o pai dele mo pediu, e por você pensar que era boa ideia, mas a verdade é que tenho grandes reticências quanto ao jovem Manners. Além do mais, não aprovo esse extraordinário plano de contrabando de armas que você e Londres arquitectaram nas minhas costas. Vai acabar por explodir-vos na cara... Não se esqueça do que eu lhe digo.
- Mas para combater a influência russa na Manchúria...

 

Sim, sim, eu li o seu relatório. A ideia continua a não lhe agradar, e agora, quando afirma que vai confiar logo no jovem Manners...

 

- Pensámos que os seus contactos com os Japoneses pudessem ser-nos particularmente úteis.

 

- Faça como muito bem entender, Pritchett. Quanto ao incidente em Fuxin, diga ao Manners que nos envie um relatório. Mas um relatório confidencial. A posição oficial continuará a ser a de que se tratou de um motim sem importância.

 

- Sim, senhor. Obrigado.

 

- E certifique-se de que eu possa receber os Henderson, logo que eles cheguem a Pequim.

 

- Sim, senhor.

 

- E nada de espalhar notícias alarmantes acerca dos Boxers.

 

- Sim, senhor.

 

- Muito bem, Pritchett, agora, vá-se embora, porque o espera uma longa viagem até à cidade. - Parecia que era tudo, mas acrescentou ainda: - E, Pritchett, obrigado. Você é um bom homem.

 

Sir Claude suspirou. Se bem que ainda houvesse vestígios de um sol pálido na planície, o crepúsculo começara a descer pelas colinas. Na mansão, já se haviam acendido os primeiros candeeiros e o brilho amarelo por detrás das janelas gradeadas era convidativo. O seu charuto apagara-se. Sir Claude remexeu no bolso, à procura de fósforos, mas a caixa estava vazia. Um mosquito zuniu, voando à volta do seu ouvido.

 

- Raios - resmungou baixinho, antes de se voltar para entrar na mansão.

 

A locomotiva cuspia fumo branco para o céu azul-pálido enquanto Tom Cabot e Helen Francês aguardavam, junto ao amontoado de baús e de embrulhos, na improvisada plataforma de madeira. Henry Manners partira antes e, por aquela altura, já devia ter arranjado os cavalos, as mulas e a escolta que os levariam até Shishan, mas, por enquanto, nem sinais dele. areciam estar perdidos no meio do nada. Só havia uma aldeia miserável, com paredes de lama seca, ao fundo de um desfiladeiro, a uns cem metros dali. Uma fina espiral de fumo elevando-se de um telhado plano revelava a Helen que era uma casa habitada, mas o único sinal de vida além desse que detectara fora um cão a roer um osso de borrego no solo árido. Atrás da locomotiva que arrefecia, já se havia terraplenado o solo para a passagem da via-férrea e a linha de terra preto-acastanhada serpenteava em direcção ao horizonte até se perder de vista. Contudo, não havia instalado ainda nem os carris de aço nem as chulipas, e o percurso terminava ali. Enquanto Tom andava impacientemente de um lado para o outro na plataforma, preocupado por Manners não aparecer, Helen sentia uma grande excitação. Um vento forte soprava, levando-lhe às narinas um odor perfumado de erva, e experimentava uma deliciosa sensação de abandono naquela planície deserta.

 

Também gostara da viagem de comboio de três dias, desde Pequim até ali. A carruagem, com sala de estar e compartimentos de dormir privados, cozinha e sala de jantar, e uma dúzia de criados e cozinheiros para os servir, ostentava um luxo que ela nunca poderia imaginar. Manners arranjara aquela carruagem particular graças ao cargo que desempenhava na companhia de caminho-de-ferro, conseguindo que fosse atrelada ao comboio regular para Tientsin. Chegados ali, fora disponibilizada uma locomotiva para levar a carruagem até ao fim da linha. Helen nunca recebera um tratamento tão majestoso em toda a sua vida. Ela e Tom haviam jogado intermináveis partidas de ludo e de halma1, durante o dia, na sala de estar, e à noite jantado como príncipes, servidos por criados que lhes traziam as refeições em bandejas de prata. A paisagem fora, na sua maioria, plana e monótona, mas no segundo dia a excitação foi grande quando passaram lentamente ao longo da Grande Muralha, com o que restava das suas ameias a estender-se, em ângulos inconcebíveis, pelas encostas escarpadas das montanhas. Depois, a carruagem havia descido até à costa,

 

1 Popular jogo de tabuleiro inventado em 1883 por um cirurgião inglês chamado Howard Monks.

 

onde a via-férrea circundava o golfo de Chih-li. O mar azul e os pequenos pinheiros, nos promontórios, formavam belos quadros emoldurados pelas cortinas das janelas.

 

Tom mostrara-se encantador e atencioso, não parando de a divertir com uma torrente de piadas e de histórias engraçadas. Na verdade, era a primeira vez que ficava realmente a sós com ele, mas Tom havia sido muito respeitoso e gentil, quando, depois de a acompanhar até à porta do compartimento de dormir, selara o dia com um abraço e um beijo decoroso. Não tentara nada mais, o que não a surpreendera. Para Tom, as suas responsabilidades e a honra da noiva eram tão importantes como a própria vida. Dera consigo a perguntar a si própria como teria sido viajar, no meio daquele luxo, sozinha com Henry Manners. Ter-se-ia ele revelado também um cavalheiro? Uma jovem sozinha e indefesa... A pantera negra e a sua presa. Não sabia por que motivo Manners optara por não viajar com eles, durante a primeira etapa da jornada. Lembrou-se dos boatos que corriam em Pequim sobre Henry Manners e os seus amigos, os rapazes da Alfândega, e aquilo a que ela mesma chamara os seus haréns de mulheres de má fama. Sabia que Manners também arranjara para si uma carruagem privada. Então, ocorrera-lhe o pecaminoso pensamento de que, afinal, talvez ele não viajasse sozinho. Teria feito entrar clandestinamente uma exótica cortesã chinesa, de roupão de seda azul, alfinetes de jade nos cabelos sedosos, unhas compridas pintadas de vermelho e pés pequenos? Podia imaginar uma espécie de boneca sentada sobre os joelhos de Manners, enquanto ele a fitava, ironicamente, com a camisa desabotoada e um charuto nos lábios, fazendo girar na mão um cálice de conhaque. Mas, ao fitar o rosto franco e jovial de Tom, absorto na leitura de uma das aventuras publicadas na revista Blackwood’s, sacudira a cabeça e corara de vergonha por ter uma imaginação tão indecorosa.

 

Sabia que estava apaixonada por Tom, desde aquela noite, em pleno oceano Índico, quando, ao sair do baile de máscaras, tinham ficado durante algum tempo, no convés superior, Debaixo de um céu estrelado. A longínqua música da orquestra confundia-se com o marulhar das ondas e as trevas da noite envolviam-nos, enquanto à volta se estendia o halo fosforescente do mar. O baile tivera por tema as personagens de Shakespeare: Helen escolhera Otelo e Desdémona. Sugerira, com alguma ousadia, e Tom aceitara, que invertessem os papéis; assim, ela aparecera com umas calças pretas muito justas, gibão e o rosto coberto de graxa, encarnando um baixinho mas encantador Otelo, enquanto o alto Tom, num vestido feito de uma cortina e devidamente almofadado no peito, com a parte de baixo de uma esfregona na cabeça, à laia de cabeleira, e a boca esborratada de batom vermelho-vivo, como um palhaço francês, fora o alvo das atenções com a sua espantosa caricatura da bela Desdémona. Não só haviam ganho o primeiro prémio como Tom também conquistara o coração de Helen, que não se surpreendera quando, nessa mesma noite, no convés, ele, muito atrapalhado, a pedira em casamento. Ela fitara os seus olhos ansiosos, por baixo da pintura de palhaço, e, invadida por uma vaga de ternura, aceitara. Então, ele beijara-a, ficando com o rosto manchado de graxa. Os dois sentaram-se e, de mãos dadas, desataram a rir até não poderem mais.

 

No dia seguinte, como não podia deixar de ser, Tom mostrara-se consumido pela culpa e pela ansiedade, perguntando a si próprio o que pensariam o pai e a tia de Helen de tudo aquilo. Ele aceitara a missão de a escoltar durante a viagem. Teria traído a confiança que haviam depositado nele? Aproveitara-se da situação? Ela respondera-lhe que sim, e que isso a deixava muito feliz. Tal resposta só fizera aumentar o sentimento de culpa de Tom e ela rira-se alegremente da situação difícil do noivo. Com o passar das semanas, contudo, Tom recuperara a jovialidade e agora parecia feliz com a perspectiva de pedir oficialmente a mão da jovem ao pai. Por seu lado, Helen nunca sentira qualquer angústia. Desde o momento em que o transatlântico deixara o cais, em Southampton, envolto numa nuvem de gaivotas e de borrifos de chuva, era como se toda a sua vida até àquele dia fosse diminuindo para por fim atingir o tamanho da imagem da tia a acenar do cais, antes de se desvanecer por completo da sua memória. A realidade, agora, eram as sensações que cada novo dia lhe trazia, durante aquela longa viagem. Mesmo as primeiras semanas, tão excitantes – as borrascas no golfo da Biscaia, o estranho rochedo de Gibraltar emergindo na bruma, os golfinhos e os peixes-voadores no Mediterrâneo, as silhuetas dos camelos perfilando-se no deserto, que viram ao atravessar o canal do Suez, o mercado de especiarias em Adem, imagens e sons que, na altura, tanto haviam electrizado todos os seus sentidos -, tudo parecia agora pertencer a um passado vago e longínquo, pois tanto acontecera desde então. Bombaim, Colombo, Penang. As ilhas Molucas, sob o dourado sol-poente. Hong Kong, Xangai, Tientsin, Pequim. Vivia cada dia num presente perpétuo e apaixonante, e Tom fazia parte desse presente. Por conseguinte, era normal, quase inevitável, que o amasse. Quanto ao pai, Helen Francês não tinha qualquer receio. Lembrava-se vagamente do pai, quando tinha doze anos e ele chegara à vivenda da tia, exuberante, carregado de prendas para a filha. Fora a primeira vez que vira um adulto chorar. O pai abraçara-a, rindo e chorando ao mesmo tempo, com as grossas lágrimas salgadas a correr-lhe pelo rosto avermelhado até à ponta do largo nariz, desaparecendo no espesso bigode, enquanto a sua voz portentosa se fazia ouvir junto ao ouvido de Helen: “Minha filha, minha querida filha.” Partira poucos dias depois, mas ela recordava-o como uma presença afável, carinhosa, reconfortante, que cheirava a carne de vaca cozida e a tabaco. Quando o pai partira, fora a vez de ela chorar, inconsolável. Sim, tinha a certeza de que o pai ia gostar de Tom ou de que conseguiria fazer com que o pai gostasse dele. Mas isso pertencia a um futuro distante. Por enquanto, estava feliz por se achar numa plataforma de madeira, no meio de uma planície deserta, à espera que Henry Manners chegasse com os cavalos. Era essa a excitante realidade do presente.

 

Mas não conseguia afastar uma preocupação, enquanto Tom caminhava de um lado para o outro da plataforma e o vento lhe ecoava nos ouvidos. Nunca tivera acerca de Tom o tipo de fantasias que tinha em relação a Henry Manners. Era verdade que Tom sempre se portara como um cavalheiro. Além dos seus raros - mas ternos, beijos e abraços e embora ela gostasse de se aninhar nos seus braços, nunca se colocara sequer a hipótese de quaisquer outros contactos físicos entre eles antes do casamento. Helen Francês sabia o que aconteceria quando se casassem, e aguardava-o impaciente ou pelo menos, assim julgava. Na verdade, nunca perdera muito tempo a pensar no acto em si até ver os músculos de Henry Manners, por baixo do casaco de tweed, e as suas coxas a apertar o lombo do cavalo, na planície de Pequim. E agora, em particular quando estava sozinha, ficava com a ideia de que só pensava nisso.

 

Não era ingénua. No passado, explorara o seu corpo, no colégio, e sentira um intenso calor e prazer no baixo-ventre; mas aquela sensação fora puramente mecânica e aprendera a resistir à tentação por lhe parecer um acto impróprio, se não mesmo contranatural; aliás, não gostava de se juntar às outras raparigas, que entre sussurros e risinhos abafados, à noite, no dormitório, faziam o mesmo umas às outras - e ela não podia deixar de ouvi-las, mesmo depois de pôr a almofada por cima da cabeça. Contudo, desde aquele sábado do piquenique, acordava todas as noites com o mesmo calor e a mesma humidade entre as pernas, que lhe faziam lembrar o colégio, mas também uma espécie de ardor no baixo-ventre e nos seios. Tentava convencer-se de que era o seu inconsciente a antecipar as sensações da noite de núpcias, mas, quando fechava os olhos, era o rosto de Henry Manners que ela via. Então, ficava estendida na escuridão, tentando desesperadamente sobrepor a imagem de Tom àquela outra, tão perturbadora. Dizia a si mesma que nem sequer simpatizava com Henry Manners. Era má rês, para se servir de uma expressão tola que Tom empregava. Um mulherengo, um homem com um passado obscuro. Desejou ser mais experiente e conhecedora dos factos da vida. Custava-lhe a crer que uma mulher tão segura de si como a condessa Esterhazy tivesse aquele tipo de dúvidas. Mas, por mais que tentasse, nunca conseguia tirar Manners do pensamento. “Quanto mais depressa te casares, rapariga, melhor”, disse a si própria, imitando o pouco que se lembrava da voz do pai.

 

- O que foi que disseste? - perguntou Tom.

 

- Nada. Estava a falar sozinha.

 

- Toma cuidado... É o primeiro sintoma da loucura.

 

Raios, mas onde se meteu ele? Nunca me passou pela cabeça que um tipo como o Manners não fosse digno de confiança.

 

- Claro que não. Até porque ele é um modelo de virtude...

 

- O que se passa contigo, HF? Por vezes, tenho a impressão de que não gostas do Manners. Seja como for, dependemos dele.

 

- Não te preocupes, Tom. Ele vai aparecer. Os modelos de virtude aparecem sempre.

 

- Lá estás tu outra vez...

 

- Mister Manners é um cavalheiro, Tom. Só tenho pena de que nós os dois não possamos mais estar a sós. Gostei de estar contigo nestes últimos três dias. Vou sentir saudades...

 

- Oh, meu docinho - enterneceu-se Tom -, vem cá para eu te beijar...

 

E foi quando se abraçavam, na plataforma, que Manners apareceu com a caravana de mulas a galope, envolto numa nuvem de pó cinzento. Helen ergueu a cabeça, que pousara sobre o ombro de Tom, e fitou aqueles olhos azuis e risonhos. Manners ergueu o chapéu no ar, num gesto irónico, enquanto, com a outra mão, imobilizava o cavalo.

 

Adaptaram-se rapidamente ao ritmo da caravana. Um cordão de oito mulas de carga transportava as bagagens, bem como as provisões para a viagem. Manners contratara seis carregadores, todos com as suas próprias montadas; estavam armados e também serviam de guardas. Helen achara-os assustadores, quando os vira pela primeira vez; tinham caras enrugadas pelas intempéries, bigodes espessos e olhos rasgados e ferozes, por cima das maçãs do rosto salientes e queimadas pelo sol. Usavam casacos acolchoados, que lhes desciam até aos joelhos, botas de couro e gorros de pele, e traziam espingardas compridas penduradas às costas e facas nos cintos. Os seus rabichos eram alisados com gordura animal; usavam-nos enrolados, por baixo dos gorros ou, por vezes, à volta do pescoço. Confidenciara a Tom que aqueles homens lhe faziam lembrar os ladrões de Ali-Babá. Contudo, assim que os conhecera melhor, ficara impressionada com a sua docilidade e humor. Via-os, todas as noites, sentados em volta da fogueira, a passar entre si uma garrafa que continha um licor branco, fumando os seus longos cachimbos ou entoando canções lúgubres, cuja melodia tinha qualquer coisa de obsessivo. Lao Zhao, o chefe do grupo, nomeara-se a si próprio guarda e criado pessoal de Helen. Em cada paragem, ajudava-a a montar e a desmontar (não que ela precisasse de ajuda, porque os póneis mongóis eram de baixa estatura), dava-lhe porções suplementares de massa e de carne de carneiro, descarregava-lhe a bagagem em cada etapa, montava-lhe a tenda ou, ainda, colocava-lhe uma manta sobre os ombros quando se levantava um vento mais frio. E, durante todo esse tempo, Lao Zhao não parava de tagarelar e de rir, enquanto o seu rosto se distorcia nas caretas mais esquisitas e nas expressões mais cómicas. Helen Francês não percebia uma só palavra do que ele dizia, mas sabia que era amigável e, após o primeiro dia de jornada, sentira-se confortada pela sua amabilidade.

 

Durante dois dias, atravessaram planícies e charcos de água salgada, vendo raros vestígios de casas habitadas. Por vezes, passavam por um pastor, rodeado pelo seu rebanho de cabras ou carneiros, dispersos na imensa planície. Lao Zhao chamava-o e seguia-se uma demorada sessão de regateio, finda a qual regressava com um carneiro ou um borrego para o jantar. Manners e Tom, que cavalgam à frente, mantinham-se atentos a qualquer caça que pudesse aparecer. Manners caçara uma abetarda, sem sair da sela, tirando a pistola do coldre, fazendo pontaria e atirando para o céu, num só movimento ligeiro. Numa outra ocasião, reconhecera pegadas de veados selvagens. Tom, ele e um dos carregadores haviam partido a galope até, desaparecerem de vista, para regressar três horas mais tarde com uma pequena cabra estendida sobre a sela de Manners.

 

Tom e Manners haviam desenvolvido uma sólida amizade. Cavalgavam lado a lado e Tom escutava, fascinado, enquanto Manners relatava as suas caçadas no Decão e nos sopés do Himalaia. Por vezes, lançavam-se numa corrida e ela via, ao longe, o rosto esbaforido e entusiasmado de Tom, procurando ultrapassar o companheiro. Quanto a ela, sentia-se contente por cavalgar lentamente com a caravana, sentir o vento no rosto, contemplar fascinada a infindável extensão de erva à sua volta, sob um céu límpido, ou escutar a melopeia selvagem dos carregadores.

 

A noite, quando se sentavam à volta da fogueira, Henry Manners revelava-se um excelente companheiro, para surpresa de Helen. Tom não se enganara: ele tinha histórias maravilhosas para contar sobre templos hindus apinhados de macacos e de lianas, que havia descoberto na selva indiana, sobre esculturas nas rochas de deuses aterradores e do culto tugue, que ainda se podia encontrar, segundo ele, nas montanhas e nas florestas mais remotas. Descrevia os magníficos palácios de Deli e de Agra, as expedições contra as tribos selvagens da fronteira do Noroeste, a ridícula vida social em Simla, modesta aldeia numa colina, que se vira completamente transformada quando o vice-rei e a sua corte ali se haviam refugiado para fugir ao calor estival. Falava também dos anos em que vivera no Japão. Nunca se espraiava sobre os pormenores do seu papel de conselheiro do exército do Meiji, mas falava dos jardins e dos templos, do Buda em Kamakura, do parque de cervos em Nara, da beleza da rota costeira que bordejava o mar Interior, do monte Fuji e dos estranhos rituais da corte japonesa. Discorria acerca daqueles locais estranhos com um entusiasmo e uma tolerância que contrastavam com os modos cínicos e mundanos que ostentara em Pequim. No entanto, infiltravam-se nas suas recordações referências a alguns dos seus conhecidos, cujos nomes Helen só conhecia por os ler nos jornais - políticos como George Curzon e Arthur Balfour, escritores como Bernard Shaw e Max Beerbohm, vedetas do teatro como Sarah Bernhardt, Ellen Terry e Beerbohm Tree -, o que indicava que Manners estava habituado a mover-se num meio social muito mais selecto do que o seu. Julgara mesmo perceber que ele fora a certas recepções reais na companhia do príncipe de Gales - Bertie, como ele lhe chamava -, antes da sua misteriosa transferência dos Guards para os Royal Engineers, quando fora destacado para a índia, no início dos anos noventa.

 

Para Helen Francês, aquele mundo aristocrático inglês era tão exótico como o brilho das estrelas da noite asiática, mas muito mais intimidante. Todavia, nem uma só vez Manners se gabara ou demonstrara qualquer sentimento de superioridade. Na realidade, ela começava a perguntar-se se a reputação dele, de um predador que seduzia as mulheres, não era fruto da sua imaginação, quando o vira pela primeira vez em Pequim. Manners era tão encantador para com ela, tão atencioso e tão educado para com Tom. Mas este último - que devia ser apenas alguns anos mais novo do que Manners - parecia um colegial trapalhão ao lado do seu novo amigo. Em particular quando lhe pedia, com uma curiosidade ávida e quase servil, que contasse mais histórias acerca do seu passado para, depois, beber maravilhado cada palavra.

 

Na tarde do terceiro dia, a imensa planície dera lugar a pequenas colinas; pouco depois, atravessaram pomares de macieiras e quintas de campos cultivados. As formas familiares das azinheiras e dos olmeiros multiplicavam-se em pequenos bosques nas encostas. Camponeses vestidos de azul ceifavam campos de milho-miúdo ou conduziam carroças puxadas por burros ao longo dos sulcos do solo. As aldeias também se multiplicavam. Naquela noite e na seguinte, os carregadores decidiram pernoitar nos albergues de caravanas, especialmente construídos para viajantes e para as suas montadas. Os três europeus, que não queriam dormir nas divisões nubladas pelo fumo e onde os muleteiros se deitavam nos seus kangs sebentos, tinham mandado montar as suas tendas no pátio exterior; todavia, cientes das histórias que continuavam a correr sobre bandidos e ladrões, sentiam-se contentes pela ilusória protecção oferecida pelos espessos muros de lama seca contra eventuais ameaças que pudessem vir da aldeia vizinha. Para Helen era fascinante estar sentada, à luz das estrelas, por entre as caravanas. No interior do albergue, via os vultos gigantescos dos muleteiros a mover-se por detrás das janelas de papel encerado, enquanto os acordes plangentes de um instrumento de cordas lhe chegavam aos ouvidos. Lembrava-lhe a cena do albergue de Dom Quixote ou um dos romances medievais que lera em criança.

 

Fascinavam-na todos os aspectos da ancestral vida no campo que via à sua volta, e sentiu um grande entusiasmo quando Manners lhe disse, no quinto dia, que em breve chegariam à primeira cidade fortificada do seu trajecto, Fuxin. Explicou-lhe também que o fundador da nação manchu, Nurhachi, estabelecera naquela cidade um posto avançado ocidental; era ainda em Fuxin que um dos seus sobrinhos, um duque, estava enterrado. Além do mais, Shishan assemelhava-se muito a Fuxin.

 

As torres das muralhas surgiram ao longe pouco depois. Era uma pequena cidade edificada numa colina. As muralhas pareciam-se com as que contornavam Pequim, mas em escala reduzida. Um antigo pagode erigia-se numa pequena elevação, a oeste. Tom e Helen falavam, entusiasmados, das compras que fariam no mercado. À medida que se aproximavam da gigantesca porta, a estrada apinhava-se de pessoas. Manners partira à frente nessa manhã com Lao Zhao, a fim de tratar das provisões e do alojamento dos companheiros antes da sua chegada. Ficaram por isso admirados quando o viram sair pela porta, a todo o galope, na sua direcção, afastando as pessoas à sua passagem. Então, de súbito, a atenção deles foi atraída por um tumulto de vozes que gritavam à sua esquerda. Ali, numa pequena praça de armas, situada entre eles e Manners, que se aproximava rapidamente, um ror de pessoas agrupara-se em volta de um espaço vazio. Do alto das suas montadas entreviram, por cima das cabeças da multidão, o que se passava no interior do círculo. Perplexa, Helen não compreendeu o que estava a acontecer. Dez ou doze homens encontravam-se ajoelhados no chão, com os braços puxados para trás por outros homens corpulentos e em tronco nu. Um outro grupo de homens estava em frente das figuras ajoelhadas, puxando-lhes os rabichos para a frente, de maneira a que as suas nucas ficassem a descoberto. Um homem de cabelos grisalhos e túnica azul rodeado de oficiais, que também envergavam túnicas, lia um texto escrito num rolo, com voz estridente e trémula. Depois fez sinal e um grupo de indivíduos muito altos, despidos até à cintura e empunhando espadas de lâminas curvas avançou, e cada um deles foi postar-se ao lado dos homens ajoelhados.

 

- Oh, meu Deus! - gritou Tom. - Não olhes, HF!

 

Mas a jovem não conseguia desviar o olhar da cena. O homem de cabelos grisalhos ergueu a mão e as lâminas das espadas elevaram-se no ar. “Chie-e!”, gritou o homem da túnica azul, e as lâminas desceram, descrevendo arcos perfeitos. Onze cabeças pareceram saltar dos corpos, que caíram, enquanto as cabeças rolaram na areia até se imobilizarem. Um grande clamor de satisfação elevou-se da multidão. O sangue esguichava, em grandes jorros, dos corpos decapitados. Atordoada pelo que acabava de ver, Helen, com os olhos humedecidos pelas lágrimas, conseguiu finalmente virar a cabeça. Viu os seus próprios carregadores, com os pescoços esticados para não perder o espectáculo, a rir e a trocar sorrisos entre eles. Dominada pelo pânico - tinha de fazer tudo ao seu alcance para fugir dali - puxou as rédeas do pónei e conduziu-o, num galope desenfreado, pela estrada, ignorando os gritos de Tom.

 

Foi nesse instante que Manners os alcançou. Preparava-se para parar, quando viu Helen fugir; esporeou o cavalo, galopando atrás dela até conseguir pegar nas rédeas do pónei, que pendiam, soltas. Durante alguns minutos, os dois cavalos galoparam furiosamente, lado a lado, até que Manners conseguiu fazê-los parar. Segurando com firmeza as rédeas dos dois animais, debruçou-se da sua montada e, com a outra mão, agarrou em Helen e fê-la desmontar. A jovem arfava, devido ao estado de histeria em que se encontrava. Manners procurou acalmá-la, apertando-a nos braços e acariciando-lhe o cabelo, enquanto murmurava:

 

- Está tudo bem. Está a salvo. Está tudo bem.

 

Tom, que assistira a. tudo, com olhos esbugalhados e uma expressão de angústia no rosto, aproximou-se deles, mas hesitou, por não saber o que fazer.

 

- Vamos, homem, pegue nela - disse-lhe Manners. Abrace-a. Ela ainda está sob o efeito do choque.

 

Passou com todo o cuidado Helen para a sela de Tom, e esta sentiu-se aninhada nos braços sólidos do noivo. Todo o seu corpo tremia e não conseguia controlá-lo. Tentou libertar-se, arranhando Tom nas costas, mas acabou por deixar de resistir. Lentamente, a sua respiração tornou-se mais regular.

 

- Tentei tudo para chegar a tempo de vos avisar. É melhor não nos demorarmos mais aqui, Cabot. Façamo-nos à estrada.

 

- Neste momento, os estrangeiros não são propriamente bem-vindos em Fuxin.

 

- Quem eram aqueles homens, Manners? O que aconteceu?

 

- Conto-lhe mais tarde. É melhor partirmos imediatamente. Consegue mantê-la na sela, enquanto você vai na garupa, durante algum tempo? Óptimo. Aí vem o Lao Zhao com as provisões. É melhor metermo-nos já a caminho.

 

Os carregadores haviam dado meia volta à caravana e serenado os cavalos. Manners e Lao Zhao ergueram Helen com toda a gentileza, para a colocar na sela de Tom, que passou um braço protector à volta da cintura da noiva. A estrada estava bordejada de cada lado por uma multidão silenciosa. Aqueles que tinham assistido à execução haviam visto também os estrangeiros, agrupando-se agora à volta deles de maneira ameaçadora.

 

- Bom, partamos com calma - disse Manners. - Lao Zhao, zoule!

 

Lao Zhao fez estalar as rédeas, ao mesmo tempo que estugava a mula da frente com o bastão. A caravana recomeçou ruidosamente a marchar na direcção de onde tinha vindo, deixando para trás a população hostil e silenciosa de Fuxin.

 

Percorrido um quilómetro, saíram da estrada para fazer um desvio, atravessando os campos de milho-miúdo, passando assim o mais longe possível da cidade. Helen acalmara-se o suficiente para que Manners a aconselhasse a voltar a montar o pónei, para maior segurança de todos. Cavalgaram durante muito tempo, até o Sol se pôr, e nessa noite acamparam na berma do caminho. A jovem retirou-se cedo para a sua tenda, deixando Tom e Manners a fumar charutos em volta da fogueira.

 

- É uma rapariga corajosa, Cabot! comentou Manners- Como já lhe disse, você é um homem de sorte.

 

- Mas o que foi aquilo? Já tinha assistido a execuções. Não é um espectáculo bonito, mas nunca deparei com uma tal atmosfera.

 

- Houve um motim na cidade, há pouco tempo. Um mercador foi assassinado. Um cristão, ao que parece. As autoridades reagiram duramente. Alguns dos homens hoje executados eram figuras populares na cidade. Talvez culpem os estrangeiros, de uma maneira ou de outra. A culpa é dos cristãos ou qualquer coisa parecida...

 

- Meu Deus, Manners. Não eram os Boxers, pois não?

 

- Os Boxers? Quem pode saber? O que é um boxer? As pessoas desta região têm motivos de sobra para se sentirem infelizes, e são perfeitamente capazes de se insurgir por iniciativa própria. Ao que parece, o tal mercador assassinado enganava as pessoas, adicionando ao milho cereais para os animais. Um exemplo entre tantos outros da corrupção geral que grassa na China. Mas por vezes esses vigaristas não se safam...

 

- Meu Deus, que vamos dizer à HF?

 

- Nada. Se ela viver algum tempo na China, assistirá à sua quota-parte de execuções. A primeira vez é sempre um choque, mas vai recompor-se. Diga-lhe apenas que foi uma questão de ordem pública, como o meu amigo Sir Claude tanto gosta de proclamar.

 

- Estamos em segurança, ao menos?

 

- Sim. Afinal, temo-las connosco, não é verdade? Manners deu uma palmadinha na espingarda que estava apoiada à sela, a seu lado. - Estamos sempre em segurança com Mister Remington...

 

No dia seguinte choveu. A estrada não tardou a ficar lamacenta e tiveram de abrandar a velocidade. Helen ainda estava pálida, mas recuperara o bastante para se desculpar perante os dois homens acerca daquilo a que chamou a sua conduta patética da véspera. De tarde, pareceu recobrar o seu bom humor habitual, mas a chuva e as nuvens pesadas oprimiram os ânimos, e todos se sentiram felizes por parar e montar acampamento. O solo começava a elevar-se. Haviam atingido as vertentes inferiores das colinas Negras.

Amanhã, deveremos entrar na floresta - explicou Manners. - Depois, mais um dia de viagem e estaremos em Shishan.

 

Helen passou uma noite agitada. Uma chuva fina batia na tela da tenda. Havia ultrapassado o horror inicial da cena que presenciara na véspera, tentando convencer-se de que era apenas uma das aventuras que desejara impacientemente viver quando deixara o Sussex. “O que esperavas?”, perguntou a si própria, imitando a voz do pai, que sempre lhe parecia tranquilizadora. Tinha apenas uma vaga lembrança do que se passara depois de as espadas haverem descido. Lembrava-se de partir a galope e também do alívio que sentira quando Manners lhe pegara e tentara acalmá-la. Também se recordava de que ele lhe havia acariciado o cabelo. Fora tão meigo. Não lhe havia beijado apressadamente a testa? Não se conseguia lembrar. Como era estranho que houvesse entrado em pânico assim que se achara nos braços de Tom. “Dorme, Helen Francês, dorme”, disse a si mesma, imaginando que era o pai que lhe falava. E acabou por adormecer.

 

Acordou cedo. Os pássaros cantavam e o sol matinal reflectia-se no tecto da tenda. Por querer aliviar-se antes que os outros acordassem, pôs um xaile à volta dos ombros, desatou a pala e saiu, com passos arrastados, para a relva molhada. Só depois ergueu o olhar e gritou.

 

A menos de dez passos, um homem encontrava-se parado, perto dos arbustos. Estava vestido como um padre, com a cabeça calva, as polainas brancas, o bastão e a gamela que ela aprendera a reconhecer como o hábito característico dos padres mendicantes. Contudo, não usava o hábito castanho ou cor de açafrão. O seu era multicolor, ornamentado com estrelas, sóis e caracteres de um vermelho cor de sangue, tecidos à volta de um desenho geral que representava romãs. Mas o que mais a chocou foi o seu rosto pálido, flácido, de idade indefinida, sem rugas. Parecia olhá-la fixamente, mas quando ela lhe procurou os olhos, descobriu que não tinham pupilas - eram apenas duas cavidades brancas. Os seus lábios estavam abertos num sorriso malévolo, sem dentes nem língua. Parecia não haver nada no interior do crânio do homem. Sem fazer barulho, ele recuou, embrenhando-se nos arbustos, e desapareceu.

 

Manners foi o primeiro a sair da tenda, com um revólver na mão, logo seguido por Tom e pelos muleteiros. Vasculharam exaustivamente os arbustos e o bosque que se achava mais longe, mas não encontraram qualquer vestígio do padre.

 

- Eu vi-o, Tom! Eu vi-o, a sério! - exclamava Helen.

 

- Claro que viste, minha querida. Claro que viste.

 

- É melhor sairmos daqui - interveio Manners. - Tomaremos o pequeno-almoço mais à frente.

 

Apressaram-se a levantar o acampamento e seguiram pelo trilho sombrio que se embrenhava na floresta, em direcção às colinas Negras.

 

LAO TlAN DIZ QUE OS TRILHOS DE FOGO ACABARAM COM TODOS OS NEGÓCIOS DOS CANAIS E QUE JÁ NÃO HÁ MAIS SERVIÇOS DE TRANSPORTE PARA EFECTUAR

 

O Tian Lê Yuan, ou Palácio dos Prazeres Celestiais, não era o único bordel de Shishan, mas era o melhor. As raparigas eram belas e versadas em todas as artes, não apenas nas do amor: sabiam cantar, dançar, recitar poesia e tocar pipal, cítara e flauta. Os cozinheiros eram criativos e a comida, famosa; havia os banhos, os quartos de vapor, os jardins em miniatura e até mesmo uma biblioteca. Servia-se ópio da melhor qualidade na sala de fumo; mas, acima de tudo, os clientes sabiam que podiam contar com a discrição de Mãe Liu.

 

Visto da praça do mercado, pouco ou nada distinguia o estabelecimento das outras casas alinhadas na mesma rua, do lado oposto ao do templo. Havia um cartaz com três caracteres dourados pintados na placa azul, mas podia muito bem reportar-se ao restaurante que ocupava o piso térreo. O filho de Mãe Liu, Ren Ren, dirigia o restaurante, uma ramificação do negócio principal da família. Era uma casa de chá muito movimentada, aberta a todo o tipo de público, e que servia pastéis de carne, bolinhos de massa e outras especialidades típicas do Norte. A casa de chá era relativamente próspera e muito conveniente para Ren Ren, porque servia de esconderijo ao seu bando de miúdos de rua, que podia encontrar-se ali, longe de olhares indiscretos. Corriam rumores, entre as pessoas bem informadas de Shishan, que Ren Ren, apesar da sua pouca idade e dos seus modos pouco simpáticos, tinha a tarefa de cobrar os impostos de protecção contra os bandidos exigidos pela Sociedade do Bastão Negro. Por conseguinte, os clientes da casa da mãe tinham tendência a tratá-lo com todo o respeito e uma certa circunspecção. Um grupo restrito desses clientes sabia ainda da perversidade e sadismo do jovem, e evitava-o a

 

Instrumento tradicional chinês de cordas.

 

todo o custo. Um privilégio que não era permitido às raparigas e aos rapazes que trabalhavam no Palácio dos Prazeres Celestiais.

 

A sala de chá estava isolada das divisões onde se exercia a actividade principal da casa. O estabelecimento de Mãe Liu, do qual Ren Ren era sócio minoritário, situava-se nos andares superiores, bem como no labirinto de pátios e de pavilhões que se estendia nas traseiras. Para ter acesso ao Palácio dos Prazeres Celestiais, passava-se por uma entrada muito mais discreta, a um quarteirão de distância, situada numa viela estreita e sombria, entre um muro alto de pedra e casebres de artesãos. Uma vela brilhava debilmente numa lanterna, por cima da porta vermelha, com a tinta estalada e ladeada por duas estátuas de leões envelhecidas pelo tempo. Quando se batia à porta, abria-se um postigo, que permitia ao porteiro inspeccionar o visitante; só se o reconhecia ou se o visitante lhe dava a senha certa, o deixava entrar. O visitante passava então, primeiro, pelo cubículo do porteiro, onde dois guardas corpulentos se encontravam invariavelmente debruçados sobre um tabuleiro de xadrez. Depois, o feliz cliente entrava no pátio dos fundos, onde ficava fascinado por uma verdadeira fantasia de lanternas encarnadas, penduradas por cima de uma ponte ornamental. Uma criada sempre muito sorridente conduzia-o por uma aléa de salgueiros, em direcção ao paraíso que havia no interior do edifício principal.

 

Naquele dia, Mãe Liu em pessoa esperava ao fundo da ponte. Era uma mulher alta, que se aproximava dos cinquenta anos e que devia ter sido bonita. Agora, não se poupava a esforços para preservar a aparência. O seu cabelo, cuidadosamente enrolado num carrapito, era tingido de preto para eliminar quaisquer vestígios dos fios grisalhos: o seu rosto comprido, de expressão desdenhosa, era coberto por uma espessa camada de pó-de-arroz e de maquilhagem.

 

Usava um modesto vestido de seda castanha, mas, ao deslocar-se, com os seus pequenos pés ligados, a luz das lanternas revelou os caros brocados entretecidos de ouro com que o vestido era ornado e fez brilhar os seus colares de pérolas. Estremecendo, porque a noite estava fria, apesar de o Outono mal haver começado, apertou o xaile de lã preta à volta dos ombros estreitos.

 

Examinou o jardim com olhar crítico, reparando nas folhas que não haviam sido varridas da aléa. Sempre fora muito exigente com o seu pessoal e punia severamente qualquer falta. Dirigir uma casa como a sua exigia ordem e disciplina. Só daquela forma podia manter a excelente reputação de que gozava. Precisara de quinze longos anos para edificar o prestígio do Palácio dos Prazeres Celestiais. Fora difícil. Estivera ligada àquele meio toda a vida. Aos treze anos, fora vendida a um bordel de Shenyang, depois de o pai, um negociante, ter caído na penúria. Fora violada, espancada, acorrentada nua num celeiro gélido, até o seu espírito ser domado. Sofrera muito, mas a seu favor possuía beleza, numa personalidade forte e determinação em sobreviver.

 

Aos vinte anos, um negociante relativamente rico comprara-a ao bordel para a tornar a sua terceira concubina. Sofrera mais em casa dele do que no bordel. Passado tanto tempo, ainda sentia ódio pela sogra e pelas outras duas concubinas. Esse ódio era como um pedaço de carvão que mantinha aceso no coração; nunca mais se deixaria humilhar daquela forma. Quando dera um filho ao mercador, a inveja das outras concubinas e os seus tormentos haviam aumentado, mas tivera a sua vingança quando uma epidemia de cólera atingiu a aldeia onde viviam. Morreram todos: o mercador, a mãe dele e as duas concubinas. Na altura, parece estranho que apenas ela, o filho e duas das filhas do marido houvessem sobrevivido, mas apesar de se ter procedido a um inquérito, nada se provou contra ela. A cólera dizimara a aldeia e muitos outros lares foram atingidos. Ela e o filho herdaram a fortuna do negociante. Mãe Liu tivera o prazer de vender as duas filhas do marido ao mesmo bordel onde ele a comprara. Depois, partira com o filho para Shishan, onde adquirira, com o dinheiro do marido, a casa que se tornara o Palácio dos Prazeres Celestiais.

 

A princípio, tentara montar um negócio de têxteis, mas não dera resultado. Descobriu que lhe era mais proveitoso regressar ao seu ramo; primeiro, por sua conta - pendurara discretamente o seu retrato na porta -, e depois, como dona do estabelecimento. A Sociedade do Bastão Negro obrigara-a a pagar uma verdadeira fortuna em troca da sua independência, mas também se sentia grata pela clientela que lhe fora angariada. Agora, tinha um negócio próspero, um grupo de raparigas e rapazes talentosos e clientes assíduos. O filho, Ren Ren, possuía uma espantosa habilidade para domar as raparigas novas, apesar de os seus gostos pessoais não o inclinarem para esse lado. A penetração por trás valia tanto para as raparigas como para os rapazes, com a vantagem de manter a virgindade das raparigas, que, depois, podia ser vendida como mais-valia. Não havia, tão-pouco, o menor risco de que Ren Ren alguma vez revelasse clemência para com uma nova rapariga, por muito atraente ou encantadora que fosse. Desprezava-as a todas. Mãe Liu sorriu. Na realidade, não havia qualquer risco de que Ren Ren se mostrasse clemente para com quem quer que fosse. Educara-o como devia ser. “A vida é boa”, pensou. Os três princípios por que se regia - negócio gerido com prudência, disciplina severa e modestos pagamentos a quem lhe garantia protecção e segurança - haviam-lhe sido muito úteis. Decidiu que, naquela noite, acenderia um pau de incenso para agradecer à Providência. Naquele momento, porém, doíam-lhe os pés, e perguntou a si própria se o seu visitante se atrasara.

 

Não teve de esperar muito mais tempo. Distinguiu o som de uma cadeirinha que os carregadores pousaram no chão, lá fora, na rua, e depois uma pancada leve na porta e uma breve troca de palavras com o porteiro. Por fim, um vulto curvado para a frente e envolto numa grande capa surgiu do cubículo do porteiro.

 

- Excelência - cumprimentou Mãe Liu, inclinando a cabeça, numa vénia cerimoniosa. - Sentimo-nos muito honrados, como sempre, por receber a visita de uma pessoa tão importante na nossa humilde casa.

 

- O prazer é meu, Liu Mama - murmurou o visitante.

 

- Fico feliz por vê-la de boa saúde. Mas não devia ter esperado cá fora numa noite tão fria. Talvez seja melhor conversarmos lá dentro.

 

- Vamos, então. Mandei preparar uma refeição leve.

 

- Revela-se, como sempre, muito solícita para com um homem já velho.

 

Mau grado os seus pés ligados, Mãe Liu atravessou a ponte com passos rápidos, à frente do homem envolto na capa. Conduziu-o por um segundo pátio interior. Num dos lados, luzes brilhavam num pavilhão, e puderam ouvir as notas cristalinas de uma cítara chinesa, um chin, que faziam ecoar uma antiga canção popular.

 

- O major Lin honrou-nos com a sua visita esta noite comentou Mãe Liu, lançando um olhar malicioso ao seu convidado.

 

- Ah, então esta bela música é-nos com certeza proporcionada pela encantadora Fan Yimei. Ela toca muito bem. Devo felicitá-la pelo seu talento.

 

- Receio que não passe de uma principiante desastrada, mas é muito amável da sua parte elogiá-la. A propósito, tenho de lhe fazer uma pergunta acerca do major Lin e da rapariga.

 

- Mais tarde, quando estivermos no interior - atalhou o homem envolto na capa.

 

Atravessaram mais um jardim e entraram no edifício principal, através de dois lanços de uma escada de madeira pouco segura. Mãe Liu teve alguma dificuldade em subir e o homem que a seguia segurou-a por um braço. Podiam ouvir, no piso térreo, risos e vozes masculinas, uma mais portentosa do que as outras.

 

- São os negociantes Lu Jincai e Jin Shangui - explicou Mãe Liu, em tom reprovador. - Estão a banquetear-se com o bárbaro gordo, De Falang - acrescentou, usando o nome chinês de Frank Delamere. - Estão todos bêbedos, como de costume.

 

- A sua casa está realmente aberta a todo o tipo de pessoas - comentou o homem da capa.

 

- Ofereço os meus serviços a todos aqueles que os paguem. Não faria o mesmo?

 

- Sim, claro que sim.

 

Seguiram por um corredor ladeado por uma série de portas fechadas. Por trás de algumas ouviam-se sons - uma flauta, uma conversa, vozes masculinas e femininas -, enquanto que de outras ecoavam estalidos e suspiros, por vezes de prazer, por vezes de dor.

 

Mãe Liu parou junto de uma das portas, fez deslizar para o lado um rolo decorativo, rodou um pequeno painel e mostrou ao visitante um postigo habilmente escondido.

 

- Quer observar?

 

- Mais tarde. Falemos primeiro.

 

- Então, é melhor passarmos à minha sala.

 

- Como queira.

 

O homem seguiu-a até ao fim do corredor e depois ao longo de um outro, que parecia conduzir a uma parede, parcialmente coberta por um grande rolo pintado, que representava um palácio imperial com os seus numerosos pátios interiores; nas varandas dos quartos, se se observasse com atenção os pormenores, viam-se concubinas e eunucos, dando-se prazer mutuamente, de mil e uma maneiras diferentes e imaginativas. Mãe Liu levantou o rolo, premiu um painel e uma pequena porta abriu-se. Um curto lanço de degraus levava a outro corredor, este sem tapetes nem decorações nas paredes de madeira. Tirando um molho de chaves do bolso, destrancou uma porta e afastou-se para deixar o homem entrar.

 

Era uma divisão pequena, luxuosamente decorada com tapetes e pinturas murais, dominada ao centro por uma grande cama, rodeada de cortinas, onde dormia um cão pequinês, enrolado sobre si mesmo. A um canto via-se um altar, com estátuas de Guang Gong e de outros deuses domésticos. Duas velas ardiam e o cheiro a incenso pairava na sala. Sobre uma mesa baixa, entre duas cadeiras de madeira, achava-se uma taça com fruta, uma cesta para o chá e alguns recipientes de vime, concebidos para manter os alimentos à temperatura ideal.

 

- Bem-vindo aos meus humildes aposentos - disse Mãe Liu, dispondo sobre a mesa pratos de guloseimas e de legumes com vinagre. - Deseja beber um pouco de vinho?

 

- Chá, por favor - respondeu Jin Lao, o camareiro do mandarim, enquanto tirava a capa e a pousava, dobrada, sobre um tamborete. - É muita amabilidade sua mostrar-se tão hospitaleira. Não é necessário, asseguro-lhe.

 

- Como diz o poeta, “mil chávenas seriam muito poucas para se beber com um amigo íntimo”.

 

Sim, é verdade que somos velhos amigos e também sócios de longa data. Aliás, creio que temos de falar de certo assunto, esta noite.

 

E também usufruir de um momento de prazer. Penso haver-lhe dito que lhe preparei algo que vai despertar-lhe o interesse e os sentidos...

 

- Primeiro, os negócios, Liu Mama. É assim que devemos proceder, na minha opinião. Tenho deveres para com o meu amo.

 

- O mandarim está de boa saúde?

 

- De perfeita saúde, Liu Mama, de perfeita saúde. Obrigado. A sua prosperidade é “como uma estrela afortunada em ascensão que conduz a maré alta da fortuna”. É precisamente sobre um assunto respeitante à sua prosperidade que gostaria de falar consigo. Há uma pequena taxa por pagar de... quatrocentos taéis? Talvez mais, este mês? O seu estabelecimento parece ter muita actividade.

 

- Não mais, certamente. Os negócios foram muito maus - respondeu Mãe Liu, meneando a cabeça.

 

- Os negócios nunca são tão bons como o desejaríamos. “Ilimitado é o oceano dos problemas. O homem anda à deriva neste mundo como se fosse um sonho” - Jin Lao sorriu, ao citar o provérbio. - Devemos estar gratos por nenhuma infelicidade se haver abatido jamais sobre esta casa. Graças à sua boa direcção, claro, mas também, em parte, graças à solicitude e à protecção contínua dos seus amigos.

 

- Sou sempre muito grata ao mandarim pela sua protecção paternal, que é para mim um apoio permanente nas minhas tribulações.

 

- Tribulações? Oh, estou certo de que não passa por tribulações, pois não?

 

- Não faz ideia, Jin Lao. Hoje em dia, os clientes são tão discriminatórios, sempre à procura de algo de novo ou de diferente. E as únicas raparigas que conseguimos encontrar ou tem a tez morena, ou são anãs, ou simples de espírito, ou desprovidas de qualquer talento. Nenhuma cantora de Yangzhou, nenhuma dançarina de Suzhou. Muito menos uma virgem! Sabe quanto custa trazer uma virgem para aqui? Ou formar uma jovem em todas as artes? As minhas meninas são como crianças, e trato-as com todas as atenções. É necessário para a reputação da casa, Jin Lao. Para a nossa reputação. Mas tudo isso custa muito dinheiro.

 

- Estou certo de que investe o seu dinheiro com sensatez e prudência, cara Liu Mama. E que os seus investimentos lhe trazem bons lucros. Não me parece que tenha falta de clientes, esta noite.

 

- Há ainda as outras despesas. Sabe a que ponto a Sociedade do Bastão Negro se tornou gananciosa, nestes últimos tempos? Faz ideia dos favores que somos forçados a prestar aos seus homens? Não quero que pense que pago com má vontade ao mandarim, que sempre foi como um pai para mim, mas os Tongs...

 

- O seu filho não é um membro proeminente do Bastão Negro? Não que eu queira saber muito sobre o que, noutras circunstâncias, talvez tivesse de condenar como uma organização de criminosos. Tenho a certeza de que tomou as medidas necessárias.

 

- Mas tudo isso tem um preço, Jin Lao. Sou uma pobre viúva e preciso de protecção; só que não podem esperar de mim que pague a mesma quantia a todos os meus protectores.

 

- Como sabe, Liu Da Ren é um homem de uma infinita generosidade. Tenho a certeza de que ele não se negaria a conceder um ou dois taéis de desconto a uma velha associada que passa por dificuldades.

 

- Trezentos taéis - negociou Mãe Liu.

 

- Trezentos e noventa - foi a resposta de Jin Lao.

 

- Se ao menos todos os nossos clientes fossem bons pagadores seria mais fácil... Mas não imagina quantas pessoas, e pessoas respeitáveis, vêm à minha casa, jantam, bebem vinho, fazem tudo o resto e partem sem pagar. Os meus devedores são numerosos, Jin Lao.

 

- Não é por isso mesmo que paga aos seus protectores? Pensava que o Bastão Negro a ajudaria facilmente a resolver esse tipo de problema.

 

- Não em todos os casos, Jin Lao. Há determinados maus devedores... Bom, um, em particular, que parece usufruir de especial protecção.

 

Está a referir-se a quem, ao certo?

 

Ao major Lin. Como lhe disse, queria falar-lhe de determinado assunto... Não estou a insinuar que ele não é bem-vindo aqui... O major honra esta casa com a sua visita. É um jovem íntegro, arrojado.. Além do mais, é um belo homem. É um herói. Todos nós gostamos muito dele, mas a verdade é que há meses que deixou de pagar.

 

- E pediu-lhe que o fizesse?

 

- Dei-lho a entender. Só que recebi instruções...

 

- Que instruções?

 

- Instruções suas, Jin Lao. Disse-me que eu lhe desse tudo o que ele pedisse.

 

- A satisfação do major Lin é uma questão que interessa especialmente o mandarim. O major Lin é muito importante para nós. É ele que está a treinar as nossas tropas.

 

- Mas acesso gratuito ao meu estabelecimento, Jin Lao?

 

- Se eu lhe disser trezentos e oitenta taéis, isso tornará as coisas mais fáceis para si?

 

- Trezentos e vinte. Deixe-me dar-lhe trezentos e vinte. É razoável.

 

- Trezentos e oitenta é mais do que razoável.

 

- Ainda há o problema de Fan Yimei, a amiga particular do major Lin.

 

- Que se passa com Fan Yimei? Ele não está contente com ela?

 

- Está, sim. Está mesmo quase apaixonado por ela. O problema é esse. Insiste em tê-la só para si. Não a deixa ir com mais ninguém, nem mesmo tocar chin para os outros, durante o jantar. Levei anos a formá-la, e isso custou-me muito dinheiro. Ela é a fénix do nosso pequeno ninho. Todos os clientes a querem, e todas as noites tenho de arranjar novos Pretextos. Não posso dizer-lhes que ela pertence ao major, Un...

 

- Porque não?

 

- Ela é verdadeiramente propriedade dele? Eu teria de cobrar uma fortuna se fosse forçada a dispensá-la.

 

- Quanto?

 

- Trezentos taéis, no mínimo... - Mãe Liu fez uma pausa para observar a reacção de Jin Lao, que não manifestou nenhuma. - Claro que não estou a pedir essa quantia -. prosseguiu. - Fico feliz em prestar um favor ao mandarim. Mas estou a perder dinheiro com a rapariga. Isso ainda seria o menos... Só que há outro problema... O major Lin insiste em que eu reserve um pavilhão inteiro só para eles os dois. O seu pequeno ninho de amor exclusivo. Imagine como isso tornou Fan Yimei arrogante e como as outras raparigas têm inveja dela. Está a tornar-se incontrolável. Além de que o major Lin gosta de lhe bater. Se ele encontra o seu prazer assim, tanto melhor, mas marca o corpo dela e diminui-lhe o valor. O próprio major Lin, por vezes, é imprevisível. No outro dia fez uma cena, quando viu De Falang, o bárbaro, aqui. Não quer que os estrangeiros se deitem com chinesas. Tudo isto é difícil, Jin Lao, muito difícil.

 

- Trezentos e setenta taéis.

 

- Baixemos, pelo menos, até aos trezentos e cinquenta, o que representa quase todos os meus lucros do mês passado.

 

Regatearam ainda durante algum tempo até acabarem por fixar a quantia em trezentos e sessenta taéis. Mãe Liu ajoelhou-se ao pé da cama e, tacteando debaixo desta, puxou para fora um baú com um cadeado. Era muito pesado e Jin Lao ajudou-a a levantá-lo. Ofegante por causa do esforço, desaferrolhou o baú e levantou a tampa. Contou com cuidado sete “sapatos” de prata, que pousou sobre um pano para que Jin Lao, por sua vez, pudesse contá-los; acrescentou depois à pilha dez taéis de prata, em moeda, que tirou de uma bolsa de seda bordada. Por fim, fechou o baú e trancou o cadeado. Enquanto estava de costas viradas, Jin Lao tirou calmamente um dos “sapatos” e enfiou-o, através de uma fenda da túnica, num bolso interior; depois, dobrou o pano a toda a volta da pilha de dinheiro e deu um nó. Já havia informado o mandarim de que o pagamento daquele mês seria de trezentos taéis; portanto, não sentia quaisquer remorsos em subtrair os sessenta taéis como uma recompensa pessoal. Ajudou Mãe Li a enfiar o pesado baú debaixo da cama.

 

- O dinheiro estará em segurança neste quarto até se ir embora - disse-lhe Mãe Liu, quando recobrou o fôlego.

 

Trouxe o número habitual de guardas para a viagem de regresso? Não quero que seja assaltado, como já aconteceu com tantos outros...

 

Não é por acaso que lhe chamam Liu, “a língua afiada. - replicou Jin Lao, com uma risada asmática. - Gosto muito de fazer negócio consigo. Antes de passarmos a assuntos mais agradáveis, diga-me: o major Lin constitui realmente um problema para si?

 

- Como já lhe expliquei, é para mim um prazer prestar um favor ao mandarim. Só por si, isso já é uma recompensa.

 

- Se o major Lin algum dia lhe der problemas, diga-me. Ele é útil ao mandarim, é um favorito, mas também tem os seus inimigos, e ninguém é indispensável. Estou certo de que me compreende.

 

Mãe Liu acenou, em sinal de aquiescência.

 

- Gostaria de ter assistido à cena com o estrangeiro continuou Jin Lao. - Eles chegaram a vias de facto?

 

- Oh, não, nada disso, mas o De Falang é um grande bêbedo e um imbecil... Paga o dobro do preço normal e nunca se dá conta de que lhe cobramos mais do que o devido. Shen Ping é a mais feia e menos talentosa das nossas raparigas, mas ele considera-a uma deusa. É a única que vai com aquele animal hirsuto.

 

Ambos sorriram. Certa vez, Mãe Liu levara Jin Lao até um postigo escondido, para lhe mostrar Delamere com uma rapariga. Jin Lao esboçou uma careta ao lembrar-se daquele homem, deitado de costas, com a rapariga, franzina, ajoelhada entre as suas pernas; ele rugia de prazer, enquanto ela passava sabiamente a boca ao longo do seu gigantesco órgão. Parecia um grande macaco peludo, com o rosto avermelhado e todos aqueles pêlos pretos e frisados nos braços, nas pernas, no peito e nos ombros. Involuntariamente, Jin Lao estremeceu perante aquela recordação. Devia ser horrível ter de se roçar contra um corpo como aquele. Não ousava sequer imaginar que odor exalava. Não fora algo bonito de se ver.

 

- Consegue imaginar tal coisa? - continuou Mãe Liu. e está realmente apaixonado por ela. A sério. Quer falar comigo, ainda esta noite, para negociar a libertação de Shen Ping.

 

- Que comovente. Vai vender-lha?

 

- Claro que não. Como faria eu para rentabilizar o meu negócio, se os meus clientes começassem a apaixonar-se por todas as minhas meninas? Diga-me, Jin Lao, já que falamos de bárbaros... Agradar-lhe-ia a ideia de fazer amor com um deles?

 

O rosto de Jin Lao, sempre impassível, deixou transparecer perplexidade, por breves segundos.

 

- Espero que esteja a brincar - respondeu. - Não pode estar a referir-se ao De Falang!

 

- Não, claro que não - retorquiu Mãe Liu, sorvendo um gole de chá e sorrindo-lhe por cima do rebordo da chávena. - Falo de alguém muito mais interessante e atraente.

 

- Um bárbaro atraente? Aí está um conceito interessante. E temos algum, aqui em Shishan?

 

- Venha comigo e eu mostrar-lhe-ei.

 

Saídos do seu quarto, Mãe Liu fechou a porta à chave, apesar de irem percorrer apenas alguns passos no corredor. Pararam em frente de uma das outras portas. Mãe Liu levantou a aldraba, que se achava a um dos lados, para revelar o pequeno postigo.

 

- Veja - disse, rindo. - Penso que gostará... Ansioso, Jin Lao ajoelhou-se. Mãe Liu sorriu, quando o viu abrir mais os olhos e molhar os lábios finos com a ponta da língua.

 

- Oh, sim! - sussurrou. - Sim!

 

Era um dos quartos com banhos de vapor. A um canto ardia carvão, com um balde de água e uma concha ao lado. O ar estava saturado de vapor, mas Jin Lao podia ver claramente as duas silhuetas dentro da grande tina de madeira, no centro do quarto. Um era Ren Ren, o filho de Mãe Liu; o outro era um adolescente. Tratava-se inequivocamente de um rapaz estrangeiro, apesar de o seu cabelo louro estar apanhado à maneira chinesa. Aparentemente, ambos dormiam, e a cabeça do rapaz repousava sobre o peito de Ren Ren, que passara o braço em volta do ombro dele. A sua pele era muito branca, comparada com a de Ren Ren -, e Jin Lao podia ver-lhe as costelas desenharem-se por baixo do peito estreito.

 

Pode fazer com que ele se levante? - sussurrou.

 

Mãe Liu, ao de leve, bateu à porta. O rapaz nem sequer ouviu, mas Ren Ren abriu os olhos. Fez sinal com a cabeça na direcção do postigo. Então, lentamente, tirou o braço que pousara sobre o ombro do rapaz. Depois, acordou-o, sacudindo-o com toda a delicadeza. Jin Lao reparou nos olhos verdes e espantados, no rosto magro e assustado. Ren Ren sorriu, beliscou-lhe uma das faces e o rapaz sorriu-lhe. Então, Ren Ren pôs-se de pé e fez o rapaz levantar-se também. Estavam os dois nus.

 

- O seu filho também é um homem atraente - murmurou Jin Lao, com os olhos colados ao postigo.

 

- Tenho a certeza de que, se eu lhe pedisse, ele ficaria honrado em...

 

- Não, Liu Mama. O rapaz estrangeiro. O rapaz estrangeiro é... é deveras interessante, como me disse.

 

Jin Lao viu que o rapaz tremia, depois do banho de imersão. Ren Ren mergulhou uma mão na água, de onde tirou um sabão. Servindo-se da concha, deitou água sobre a cabeça do rapaz, e começou a deslizar-lhe o sabão pelo peito, descendo pelo ventre magro, enquanto sorria na direcção do postigo. O rapaz esboçava um sorriso indeciso enquanto o outro o ensaboava, abrindo obedientemente as pernas para permitir que Ren Ren lhe espalhasse a espuma de sabão em volta dos órgãos genitais e das nádegas. Gentilmente, Ren Ren fê-lo voltar-se, para que Jin Lao pudesse ver as costas, o traseiro e as ancas estreitas do rapaz; voltando depois a colocá-lo de frente para o postigo. Continuou a esfregar-lhe o baixo-ventre, sempre a descer, e Jin Lao sentiu-se excitado por ver o início de uma pequena erecção. Mãe Liu fechou o postigo e Jin Lao suspirou.

 

- Deve conservar as suas energias - disse-lhe. - Mas espero que tenha ficado satisfeito.

 

- Não só estou satisfeito como estou intrigado, Liu Mama. Só você sabe agradar a um velho homem.

 

- Mandei preparar um quarto, e o Ren Ren levar-lhe-á o rapaz, daqui a pouco. Pode recolher-se de imediato, a fim de descansar um pouco, ou terei todo o gosto em que beba um chá comigo até eles estarem prontos. A menos que queira que lhe preparem um cachimbo de ópio?

 

- O chá refrescar-me-ia, dadas as circunstâncias, porque ardo em curiosidade. Onde o encontrou?

 

Mãe Liu levou-o novamente até à sua sala e serviu-lhe chá.

 

- Não devia revelar-lho, mas sei que posso contar com a sua discrição. É o filho do missionário tresloucado.

 

- Eu devia ter adivinhado - suspirou Jin Lao. - Claro, claro, o rapaz que desapareceu há várias semanas... Aquele de que o velho médico devorador de ratos andava à procura. Então, era você que o tinha durante todo este tempo. Espero que não o tenha raptado. Seria difícil aprovar tal acto.

 

- Como se eu fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Foi o Ren Ren que encontrou o rapaz. Estava com um dos bandos de rua do meu filho, que o trouxe para aqui, para o proteger. Como sabe, o Ren Ren é um bom protector. O rapaz ficou-lhe muito reconhecido, como pôde ver.

 

- De facto... Mas não se preocupou com as consequências? O filho de um estrangeiro... Sabe que o velho médico foi ver o mandarim por causa do rapaz? E lhe disse que tinham visto o jovem estrangeiro a dirigir-se para as colinas Negras?

 

- O Ren Ren não foi astucioso ao inventar essa história? O Zhang Erhao, o criado do médico, é um Bastão Negro; portanto, foi fácil convencê-lo. De qualquer forma, o médico era o único a interessar-se pelo rapaz. A sua própria família pareceu contente por se ver livre dele. Detestaria que o rapaz tivesse realmente de desaparecer, depois de todos estes esforços, mas, se isso for necessário, não é conveniente dispor do Homem de Ferro Wang, a quem podemos culpar?

 

- Você e o seu filho são muito práticos - comentou Jin Lao, depois de beber um gole de chá. - Tem razão. E, dentro de algum tempo, mais ninguém se preocupará com o rapaz, especialmente se ele gostar de trabalhar aqui. Suponho que está disposto a tornar-se um dos seus rapazinhos. Ou será apenas um caso de amor com o seu filho?

 

- Sabê-lo-emos depois desta noite. Você será o seu primeiro cliente pagante, Jin Lao, e tenho a certeza de que saberá ser muito persuasivo.

 

- Cliente pagante?

 

Perdoe-me. Saiu-me sem que pensasse no que dizia.

 

- Mas não concorda que a experiência vale, pelo menos, dez taéis?

 

Sim, se tivesse dez taéis para lhe dar. Mas, como sabe, os salários dos funcionários do yamen...

 

- Eu estava a provocá-lo, Jin Lao. Você faz parte da família e nem se coloca a questão de me pagar. Não se preocupe com o rapaz. Tenho a certeza de que o Ren Ren o preparou devidamente, como sempre faz. E, se houver algum problema, temos sempre a desculpa do Homem de Ferro Wang, não é verdade?

 

- Isso seria uma pena. O rapaz é tão belo. Um achado raro. Quase não parece um bárbaro. “Raparigas escravas de Yueh, esguias, de carnes alvas. Rapazes criados de Hsi, de olhos e sobrancelhas brilhantes...” Conhece? Ou lembra-se dos versos de Li He? “O rapaz ocidental, de cabelo encaracolado e olhos de íris verdes / Na torre alta, no silêncio da noite, sopra calmamente o bambu transversal...” Como é generosa para com um pobre velho, Liu Mama...

 

- Faço sempre o meu melhor para lhe agradar. Se, ao menos, pudesse um dia fazer o mesmo em relação ao mandarim... Seria uma honra para a nossa casa.

 

- O mandarim já tem muitas concubinas e todas muito bonitas. E, tanto quanto sei, os rapazes não lhe interessam, mesmo os estrangeiros.

 

- E as raparigas estrangeiras?

 

- Onde encontraria uma, Liu Mama?

 

- Encontrei um rapaz.

 

- Encontre primeiro uma rapariga. Depois, voltaremos a falar.

 

- O mandarim poderia estar interessado?

 

- Sim, estou certo de que isso poderia interessá-lo. Mas não conseguirá encontrar uma rapariga estrangeira, pelo menos em Shishan.

 

- Mas talvez possa encontrá-la em Xangai.

 

- Primeiro encontre-a, e depois logo se vê.

 

Foi então que Ren Ren entrou, com passos arrastados, e se sentou na cama.

 

- Ele está pronto - anunciou, e deu uma dentada na maçã que tirara da taça de fruta.

 

Mãe e filho escoltaram o velho homem até ao quarto de dormir que havia sido preparado ao lado do quarto de vapor. Mãe Liu esperou junto do postigo. Ren Ren assegurara-lhe que o rapaz não levantaria nenhum problema a Jin Lao, mas ela queria ver com os seus próprios olhos. Ren Ren impacientou-se.

 

- Já te disse que ele está pronto, Mama. É uma coisa natural nele. Nem sequer tive de lhe bater. Ele fá-lo por mim, porque me ama. De qualquer forma, enchi-o de ópio, e não criará problemas.

 

- Espera mais um pouco. O Jin Lao é importante para nós.

 

- O Jin Lao não passa de um velho nojento que gosta de chupar pilas. Para que precisamos do mandarim? Temos a Sociedade.

 

- E, na tua opinião, quem dirige a Sociedade? Ocupas um lugar demasiado insignificante na hierarquia para saberes...

 

- Não acredito! Ta made.

 

Contudo, Ren Ren ficou junto da mãe. Acocorou-se, mal humorado, ao lado dela, enquanto Mãe Liu levantava a aldraba e espreitava pelo postigo.

 

Hiram estava enroscado na ponta da cama. Jin Lao tirara a túnica, ficando em roupa interior branca, e sentara-se numa poltrona. Contemplava o rapaz. Depois, levantou-se e deitou-se na cama, ao lado de Hiram. Estendeu as suas mãos compridas até tocar nos ombros do rapaz e fê-las deslizar, sob o pijama de seda verde, para acariciar a sua pele. Hiram esboçou um sorriso lívido. Jin Lao, com os olhos fechados, percorreu com as mãos o corpo do rapaz em direcção aos seus órgãos genitais. Hiram começou a tremer violentamente, choramingando, em inglês: “Não, não, eu não quero...” Tentou empurrar Jin Lao, primeiro debilmente, depois com mais força, e acabou por fazê-lo perder o equilíbrio. Jin Lao levantou-se e, por duas vezes, esbofeteou o rapaz, que gemeu. Depois, contudo, os seus ombros curvaram-se, recuperou o sorriso lívido, e Jin Lao começou de novo a acariciá-lo.

 

Mãe Liu emitiu um grunhido de satisfação.

 

Vai correr tudo bem - murmurou, fechando o postigo.

 

- Eu tinha-te dito. Quando foi que houve algum problema? replicou Ren Ren, irritado. - Que mais precisas que eu faça esta noite?

 

Temos de falar com o bárbaro, o De Falang, acerca da Shen Ping - Ele quer comprá-la.

 

- Manda-o foder-se - rosnou Ren Ren, cujos olhos se estreitaram sob o efeito da cólera. - Vou começar por dar uma sova àquela cabra.

 

- Não farás tal coisa. É a única que aceita deitar-se com o bárbaro, e isso rende-nos muito dinheiro.

 

- Qualquer uma dessas cabras foderia um burro, se eu lhes ordenasse que o fizessem. Quero lá saber do dinheiro!

 

- Acalma-te, acalma-te. Não há problema. Quero que me acompanhes, mas promete-me que te portarás bem. É só para o caso de ele armar confusão, mas tenho a certeza de que será razoável. Não queremos perder um cliente como ele.

 

- A mim, pouco me importa. De qualquer forma, são muitos aqueles que não gostam de ver esses bárbaros vindos do oceano na nossa casa. Não ouviste falar do que está a passar-se no país? Do que os Punhos Harmoniosos fizeram em Fuxin? Um dia, livrar-nos-emos para sempre de todos os bárbaros.

 

- Pois bem, se isso tiver de acontecer, acontecerá. Por ora, De Falang é um cliente e não permitirei que o afugentes.

 

Frank Delamere esperava pacientemente, com Shen Ping, na sala de banquetes. Os companheiros com quem jantara já haviam partido. Ele e Shen Ping estavam sentados, lado a lado, num sofá, com todo o decoro, como se aquela fosse a sala de espera de uma estação de caminho-de-ferro e eles tivessem acabado de se conhecer. Delamere levantou-se quando a Mãe e o filho entraram, balouçando nervosamente os braços compridos e sacudindo a cabeça, da esquerda para a direita, desejoso de parecer agradável, porque há muito receava aquela conversa.

 

- Estimada Madame Liu! - exclamou. - Que prazer, que prazer!

 

Mãe Liu sentou-se, com toda a elegância, numa das poltronas da sala.

 

- De Falang Xiansheng - disse, com um sorriso amável.

- Sentimo-nos sempre honrados quando decide visitar-nos. Em que posso ser-lhe útil, hoje? Espero que não esteja descontente com o serviço e que as minhas meninas não o tenham cansado com as suas frívolas tagarelices. - Inclinou gentilmente a cabeça na direcção de Shen Ping, uma rapariga baixa, de rosto redondo, que olhava em frente com uma expressão aterrorizada.

 

- Não, Madame Liu, de forma alguma. O serviço não podia ser melhor.

 

- Nesse caso, o que posso fazer pelo senhor? Mas sente-se, por favor.

 

- Bom, é acerca da Shen Ping - disse, colocando uma das suas pesadas mãos sobre as da rapariga, que se empertigou.

 

- Ela desagradou-lhe de alguma forma? Prefere uma outra rapariga?

 

- Não, muito pelo contrário! Ela é um amor, em todos os sentidos. Gosto muito dela.

 

- Fico contente por sabê-lo.

 

- E penso que ela também gosta de mim.

 

- Todos nós gostamos de si, De Falang Xiansheng. Delamere agitou-se no sofá.

 

- Sentir-se-ia mais à vontade, De Falang Xiansheng, se pedíssemos à Xiao Shen que nos deixasse a sós durante alguns minutos? Como é acerca dela que me quer falar...

 

- Talvez não seja má ideia... Não te importas, Shen Ping?

 

Ren Ren, que permanecera encostado à porta, fez um sinal brusco com o queixo a Shen Ping e a rapariga apressou-se a sair, evitando olhar para ele. Frank Delamere uniu as mãos, respirou fundo e, por fim, como se tivesse acabado de tomar uma decisão, fitou Mãe Liu olhos nos olhos.

 

- A verdade é que quero comprar-lha para que vá viver comigo.

 

Receio não ter compreendido. A Shen Ping trabalha aqui.

 

Sim, eu sei. Mas ouvi dizer que, se propusermos o preço adequado, um preço elevado, como é óbvio, podemos comprar as raparigas-flores e, de certa forma, libertá-las. Terei todo o gosto em pagar a quantia necessária.

 

- Bem vejo - murmurou Mãe Liu. - É uma demonstração muito lisonjeira para com a Shen Ping. Ela deve agradar-lhe muito.

 

- É uma jovem encantadora. Sei que não sou bonito, longe disso, e que estou a envelhecer. Um maldito demónio do oceano, não é verdade? Mas gosto muito dela, e creio que posso encarregar-me do seu bem-estar...

 

- É uma pena.

 

- É uma pena? Não compreendo.

 

- Sabe, a Shen Ping tem muitas outras obrigações. Muitos outros clientes, que ficariam francamente desiludidos se ela tivesse de nos deixar...

 

- Muitos outros clientes? Foi o que disse?

 

O rosto já corado de Delamere tornara-se purpúreo.

 

- Oh, sim, é uma das nossas raparigas mais talentosas. É muito, mas muito solicitada. Sabe, por certo, quanto ela é hábil, sobretudo na cama. Seria indelicado da minha parte relembrar-lhe todas as técnicas que ela é capaz de dominar. É perita na arte do amor, e por isso é muito popular. Tem muitos encontros, todos os dias.

 

- Todos os dias?

 

- Sim, de manhã, à tarde, por vezes, o senhor, à noite, por vezes outros clientes. Há sempre alguém que a escolhe. Temos muito orgulho nela e muitas vezes receamos que se sinta exausta. Não é verdade, Ren Ren?

 

O filho limitou-se a resmungar, baixinho.

 

- Portanto, De Falang Xiansheng, percebe agora qual é o meu problema. Não se trata de uma questão de dinheiro. Tenho de pensar nos outros clientes. Se ela nos deixasse para ir viver com o senhor, teria de voltar, de manhã e à tarde, para cumprir as suas obrigações aqui. E penso que isso não seria muito conveniente para o senhor...

 

Frank Delamere pigarreou.

 

- De facto, não era propriamente assim que eu via as coisas. Esperava usufruir de uma certa exclusividade. Na realidade, julgava mesmo que tinha esse exclusivo, que havia um acordo entre nós.

 

- Não, De Falang Xiansheng. Não há qualquer exclusivo. Isto é uma casa onde se trabalha muito. As nossas meninas estão ao dispor de todos os nossos clientes.

 

- Mas eu sempre lhe paguei muito acima da tarifa, que diabo! Pensava que a Shen Ping era...

 

- ... Só para si? Não. Mas ela sente-se muito feliz em ocupar-se do senhor, sempre que vem visitar-nos. Nenhuma das nossas meninas fornece um serviço exclusivo.

 

- E o major Lin e a Fan Yimei? Ela parece ser exclusiva dele.

 

- A Fan Yimei? Está interessado na Fan Yimei, De Falang Xiansheng? Vou ver o que posso fazer.

 

- Não estou interessado coisa nenhuma. Eu... Tudo o que eu queria era levar a Shen Ping para longe daqui, porque pensava que... Ela disse-me que não tinha outros amantes. Ou muito poucos. Eu.... Eu tenho plena noção do tipo de casa de que é proprietária, não nasci ontem, mas ela... ela dizia que eu era... especial. Que era gentil para com ela.

 

A voz de Frank Delamere reduzira-se a uma espécie de coaxar, por via do embaraço que sentia.

 

- Oh, uma rapariga diz qualquer coisa para fazer um homem feliz - comentou Mãe Liu, com uma gargalhada estridente. - Faz parte do seu trabalho e do seu talento. Há sempre uma certa dissimulação na arte de amar. A Shen Ping tem muitos amantes. É muito experiente e traz boa reputação à casa. Também é, obviamente, muito conscienciosa. Contou-me, por mais de uma vez, quais os prazeres que o senhor mais aprecia, em especial Tocar Flauta enquanto Bebe da Fonte de Jade, a Rã Saltitando por entre os Charcos, os Patos Selvagens Voando às Arrecuas, a Fénix Que Se Diverte na Gruta de Cinábrio, as Cigarras Unidas, os Dragões Enroscados, os Bichos-da-Seda Enredados. Será preciso continuar, De Falang Xiansheng? O senhor é um homem muito exigente e enérgico, não é verdade?

 

Como é evidente, eu aconselhei-a a praticar tudo isso com os outros clientes, para que a sua técnica se tornasse ainda melhor para o senhor...

 

Ela contou-lhe isso? - murmurou Frank, num tom de voz quase inaudível.

 

Claro que contou. Passamos muito tempo a falar na melhor maneira de lhe dar prazer, De Falang Xiansheng. É um cliente muito estimado por nós. Também falamos dessa encantadora ideia de levá-la daqui. Encorajei-a a concordar com o senhor. Não se zangue; asseguro-lhe que tudo o que ela lhe disse foi na melhor das intenções: para aumentar o seu prazer e a sua felicidade.

 

- Eu acreditei nela. Meu Deus, que idiota fui...

 

Mãe Liu sabia quando devia ficar calada. Ren Ren bocejou e escarrou para o chão. Frank mantinha-se sentado, com ar miserável. Tossiu e esforçou-se por sorrir.

 

- Bom, parece-me que fiz figura de parvo, Madame Liu. O melhor que tenho a fazer é ir-me embora.

 

- Quer que a Shen Ping espere por si no quarto?

 

- Não. Sinto-me um pouco cansado, esta noite. De qualquer forma, obrigado. Eu... penso que vou voltar para casa, se não se importar. Já paguei o jantar. Boa noite.

 

Mãe Liu pôs-se de pé.

 

- É sempre um prazer, De Falang Xiansheng. Espero voltar a vê-lo em breve. Um criado vai acompanhá-lo.

 

Mãe Liu ficou a vê-lo tirar o chapéu do cabide e, com os ombros curvados, dirigir-se para a porta. Quando ele saiu, Ren Ren deixou-se cair numa cadeira.

 

- Foi uma ideia brilhante, mãe - comentou, rindo. Acho que o afugentaste de vez.

 

- Ele vai voltar. Voltam sempre. Estou com dor de cabeça - acrescentou, colocando uma mão na testa. - Foi um dia longo. Talvez ele não queira mais a Shen Ping. De qualquer forma, é melhor preparares uma outra rapariga para o macaco peludo.

 

- A Fan Yimei?

 

- Ela pertence ao major Lin e tu sabe-lo. Tenta a Chen Meina, que não presta para nada - acrescentou, bocejando. Ren Ren?

 

- Sim?

 

- Mudei de opinião. É melhor dares uma boa sova à Shen Ping. E, desta vez, tanto se me faz que fique com marcas. Faz sofrer a cabra.

 

- Com prazer, mamã - respondeu Ren Ren. Bocejou, espreguiçou-se e, cantarolando um trecho musical da ópera de Pequim, saiu indolentemente da sala. A sua voz roufenha foi-se tornando menos audível à medida que percorria o corredor. Sozinha, Mãe Liu pegou num palito que estava sobre a mesa e, com expressão absorta, começou a palitar os dentes.

 

O major Lin estava deitado de lado sobre a colcha amarrotada. Incapaz de dormir, Fan Yimei, deitada de costas, escutava o som abafado dos seus roncos. Uma brisa fresca fazia oscilar as cortinas de seda e farfalhar as folhas dos salgueiros, lá fora. Ergueu o olhar para os seus dois reflexos no espelho fixado na parte superior da cama de dossel. O major Lin achava-se na penumbra, mas ela estava exposta ao luar, que chegava através da janela aberta para iluminar os móveis e conferir uma tonalidade de marfim ao seu corpo nu. A imagem de si própria, reflectida no espelho, parecia estranhamente irreal, como um fantasma que flutuasse por cima dela, ou um cadáver. O rosto era de um oval branco e brilhante, por entre a mancha de cabelo negro que se espalhava pela almofada e se enrolava sobre os seus ombros e os seus braços. Contemplou com indolência os contornos daquele corpo separado, que pairava acima dela, observando com olhar objectivo os traços mais admirados pelos clientes: as curvas dos seios e do ventre, o poço sombrio abrindo-se entre a pele alva das suas coxas, as pernas esguias e afuniladas, que terminavam nos cotos de seda que constituíam os pés ligados - mas a pele daquela imagem espectral era pálida e sem vida. Perguntou a si própria se seria aquele o seu aspecto quando morresse e fosse colocada na Casa dos Mortos. Uma massa de carne inanimada. Um naco de porco num balcão do mercado. Enquanto aquele pensamento lhe passava pela mente, viu que a imagem do cadáver por cima dela sorria. Fan Yimei sabia que também estava a sorrir, mas era uma brincadeira algo lúgubre. Talvez a imagem reflectida no espelho fosse a verdadeira Fan Yimei, enquanto o que quer que repousava na cama, em baixo, não passasse de uma bela imitação, treinada mecanicamente para a arte de fazer amor. Afinal, se o coração e a alma estavam já mortos, porque não haveria de o estar também o corpo? Ela sempre pensara que a sua vida terminara no dia em que o pai fora enterrado e em que a haviam levado para ali. Por conseguinte, aquela criatura sem vida, no espelho, aparecera para lhe recordar a realidade? Veio-lhe à mente o poema de Li Po acerca de Chuang Peng: “Terá Chuang Chou sonhado que era a borboleta, ou a borboleta que era Chuang Chou?” Correspondia a realidade a uma Fan Yimei há muito morta, agora um cadáver no espelho, sonhando com uma prostituta que continuava a fazer o que os vivos faziam, no Palácio dos Prazeres Celestiais? Uma nuvem sobrepôs-se à Lua e a imagem do espelho desvaneceu-se. Na cama, a imitação suspirou e estremeceu. O frio, esse, era real. Fan Yimei vestiu um roupão de seda. Ficou algum tempo de pé junto à cama, a contemplar o major Lin. Tinha um rosto belo, mas, mesmo em repouso, as sobrancelhas mantinham um ângulo altivo, e a boca, um esgar arrogante, o que lhe conferiu a aparência de um homem cruel. Aquela expressão ajudava-o, sem dúvida, na sua carreira militar, mas não reflectia como era realmente o homem - ou, antes, o rapaz, como, por vezes, ela o via. Teve pena do major Lin. Era tão orgulhoso. Talvez fosse ela a única a reconhecer a fragilidade e as incertezas que se escondiam por detrás daquela máscara. Delicadamente, para não o acordar, tapou-lhe as pernas com o lençol. Ele mexeu-se e resmungou algo, no sono, mas, poucos segundos depois, recomeçou a ressonar. Nos últimos dias, bebera em excesso. Não que Fan Yimei se importasse. Quando estava bêbedo, o major Lin tornava-se quase sempre violento, mas também se despachava mais rapidamente, para adormecer logo de seguida. Fan Yimei preferia isso às noites em que ele Queria mostrar-lhe toda a sua força viril e em que precisava de longas horas até atingir finalmente as nuvens e a chuva. Por vezes, as nuvens e a chuva não chegavam, e ela tinha de açoitá-lo com uma vara de salgueiro até ele se sentir preparado para tentar novamente. Fan Yimei ignorava por que razão Mãe Liu fazia correr o rumor de que o major Lin a chicoteava. As outras raparigas riam-se, nas suas costas, sabendo que ela as ouvia. Na realidade, era sempre ela que manipulava o ramo de salgueiro. Perguntou a si própria se a dor que o major Lin queria que ela lhe infligisse não seria apenas uma forma de compensar um secreto sentimento de vergonha. Era-lhe indiferente. Já tivera de fazer coisas muito piores com outros clientes, sem falar do horrível Ren Ren. Era fácil lidar com o major Lin, mesmo com os seus estados de espírito temperamentais.

 

Fan Yimei supunha que devia considerar-se afortunada por ter o major como seu protector. Era uma suspensão do suplício por que passava no bordel, mas não tinha quaisquer ilusões. Apesar do seu carácter possessivo e do afecto que demonstrava ter por si, chegaria o dia em que se cansaria dela. Então, ela ficaria indefesa perante a irritação de Mãe Liu e o despeito das outras raparigas. Inevitavelmente, Ren Ren executaria a vingança. Fan Yimei já ouvira os gritos que saíam da cabana ao fundo do último pátio onde ele fechava as raparigas a quem queria castigar. Fan Yimei tinha muito medo dos suplícios a que seria submetida e, sempre que pensava nisso, sentia o corpo enregelar-se. No entanto, resignara-se ao seu infortúnio e, no fundo de si mesma, pouco lhe importava. Aprendera a nada esperar da vida.

 

Havia alturas em que ela era fraca. Por vezes, como naquela noite, quando olhava quase com inveja para o corpo no espelho, acima dela, ansiava pelo esquecimento que a morte trazia. Certa noite, após uma cena desagradável com um major Lin bêbedo, que se apiedara de si próprio e chorara, para depois lhe bater e a acusar de lhe ser infiel (ela não conseguia compreender por que motivo Mãe Liu inventava aquelas histórias), Fan Yimei esperara que ele adormecesse. Então, convencida de que ele a abandonaria no dia seguinte, e incapaz de encarar a perspectiva das torturas de Ren Ren, subira para um tamborete e lançara o cinto do seu roupão por cima da trave do tecto, no intuito de se enforcar. Mas os seus pés ligados tinham escorregado no tamborete antes de ela conseguir fazer um nó e caíra, com as pernas viradas para cima. O major Lim acordara e, ensonado, chamara-a para que ela se deitasse na cama. Fizera amor com doçura, murmurando-lhe palavras ternas e enquanto se achava deitada sob o corpo dele, soluçando em silêncio, tivera a impressão de que a menina que fora em tempos a chamara, do vazio da sua alma.

 

Ultimamente, pensava muito no pai, sobretudo quando estava sozinha no pavilhão. Durante anos, tentara enterrar dentro de si todas as recordações da sua vida anterior. Mãe Liu, impedida pelo acordo que tinha com o major de a ter ao dispor dos outros clientes, fora engenhosa e atribuíra-lhe os trabalhos mais humilhantes, quando Lin se ausentava. Fan Yimei passava a maior parte do dia a a catar os baldes de dejectos das latrinas para os enterrar na fossa, a varrer as folhas do jardim ou a limpar as cozinhas. Mas isso não lhe ocupava o dia todo, e as horas que passava sozinha na semiobscuridade do pavilhão, a tocar chin ou a contemplar pela janela o jardim de salgueiros, haviam-se tornado momentos em que se deixava invadir pela nostalgia. Lembrava-se muito bem das tardes soalheiras em que o pai lhe ensinara pacientemente a tocar aquele mesmo instrumento, rindo-se com gentileza quando ela se enganava, ou acompanhando-a, orgulhoso, à flauta, quando ela já dominava os acordes de uma melodia. Mais tarde, tocava para o pai, na sua pequena oficina, enquanto ele se mantinha de pé, em frente da mesa de trabalho, com um pincel na mão, a pintar belas estampas de pequenos pássaros ou de flores. Sempre a tratara como o filho que não tivera. Fan Yimei mal se lembrava da mãe, e o pai não voltara a casar-se nem sequer arranjara uma concubina depois da morte da mulher. Ensinara a filha a ler, quando ela fizera seis anos, e gostava de lhe recitar, em voz alta, os textos clássicos, ou de guiar a sua mão, aquando das primeiras pinceladas para desenhar a caligrafia. Fan Yimei sabia que eles eram pobres e que viviam de mesadas que os seus tios ricos lhe davam, a contragosto, mas nunca se apercebera do menosprezo que sentiam pelo pai, um intelectual sensível, que não conseguira passar nos exames imperiais nem revelara qualquer aptidão para o negócio da família. Fan Yimei vivera uma infância feliz na companhia do pai. Ele estava sempre a cantar. Quando a filha ainda era criança, o pai levava-a quase todas as manhãs ao jardim do templo para lançar papagaios de papel. Lembrava-se do pai a correr nas aléas floridas, com o grande papagaio em forma de dragão, aos saltos, atrás dele. Ou, ainda, sentado a seu lado na cama, a ler-lhe histórias. E lembrava-se da felicidade que brilhava sempre nos seus olhos.

 

Quando a peste chegara a Shishan, eles não se haviam apercebido do perigo, perdidos no seu pequeno mundo. O pai não ao dera grande importância à febre baixa nem à protuberância na sua axila, que, no entanto, se tornara cada vez maior até que um dia Fan Yimei fora encontrá-lo deitado na cama, a delirar, incapaz de a reconhecer. Ela ouvira falar de um médico estrangeiro que chegara à cidade e tinha fama de fazer milagres. Haviam-lhe mesmo contado a estranha história de que o médico só queria ratos como pagamento. Assim, passara uma manhã terrível à caça de roedores, por trás dos lambris das paredes e por baixo dos soalhos. Por fim, pensara em ir até à lixeira, onde descobrira o cadáver de um rato preto, coberto de pulgas. Dominando o medo, enrolara-o num lenço e correra toda a cidade à procura do médico. Só o encontrara após o pôr do Sol. Era a primeira vez que via um diabo do oceano. De estatura baixa e bigode esquisito, fazia-lhe lembrar um rato encarquilhado, mas os seus olhos eram gentis e o sorriso era bondoso. Fan Yimei desembrulhara a sua oferta e o médico rira-se. Deixara-a conduzi-lo, dando-lhe a mão, até à casa do pai, que, no leito, gemia e tinha o corpo empapado em suor. O médico enxugara-o delicadamente com um pano molhado em água quente. Passado algum tempo, uma mulher estrangeira, de aspecto estranho, juntara-se a eles. Usava um trajo preto com um capuz branco, mas o seu rosto era alegre, com faces redondas e vermelhas como maçãs, apesar de os olhos, tal como os do médico, estarem ensombrados pelo cansaço. O médico partira, mas a mulher ficara sentada toda a noite ao lado do pai de Fan Yimei, lavando-lhe o corpo, de hora a hora, e, por vezes, ajoelhando-se no chão com as mãos em frente do rosto. Fan Yimei julgava que a mulher invocava os espíritos estrangeiros para que a ajudassem. O médico regressara ao nascer do dia, mas o pai de Fan Yimei deixara de mexer. O médico examinara-o rapidamente, voltara-se para ela com uma expressão triste, tomara-a nos braços e Fan Yimei soluçara no seu ombro.

 

Mas eu levei-lhe o rato! - gritara, inconsolável – Eu levei-lhe o rato!

 

- Eu sei. Eu sei - repetira o médico, acariciando-lhe o cabelo. Ela olhara-o nos olhos e vira neles uma infinita tristeza.

 

Depois, o médico pedira a um vizinho que fosse buscar o tio de Fan Yimei e explicara a Fan Yimei, pacientemente, que ia ter de deixá-la, porque tinha de tratar de muitos doentes na cidade. Contudo, a mulher, de seu nome Caterina, ficaria com ela até à chegada do tio. Tinha uma vaga lembrança dos dois dias que se haviam seguido. Lembrava-se apenas de trajes brancos, que ela e todos os seus tios usavam, quando haviam seguido a carroça funerária municipal até sair das portas da cidade. Não havia funerais privados naqueles tempos terríveis. Lembrava-se dos gemidos, do fumo e do cheiro nauseabundo a cal. Fora então que a haviam levado directamente da fossa comum ao Palácio dos Prazeres Celestiais. Mãe Liu fora bondosa para com ela, dando-lhe rebuçados, enquanto o tio negociava o seu preço. Nessa mesma noite, Ren Ren fora até ao seu quarto. Tudo se passara quatro dias antes de ela completar dezasseis anos.

 

Fan Yimei suspirou e apoiou-se ao peitoril da janela, olhando para os salgueiros. Podia ouvir atrás de si a respiração ritmada de Lin. O jardim estava branco, à luz do luar. Apetecia-lhe dedilhar o chin, mas não se atrevia a acordar o major. Trauteou mentalmente as melodias. Os clientes haviam-lhe ensinado canções populares, mas o major Lin gostava das canções mais arrebatadoras e relacionadas com a guerra e a conquista. No entanto, quando ficava a sós, ela preferia recitar poemas obsessivos e melancólicos da Dama Li Ching’chao, a poetisa da dinastia Song cuja vida fora tão solitária como a sua.

 

Deixo o incenso arrefecer

 

no queimador. A minha colcha

 

de brocado está tão revolta

 

quanto as ondas do mar. Indolente

 

desde que acordei, negligencio

 

o meu cabelo. O meu toucador

 

está por abrir. Deixo as cortinas

 

baixadas até que o sol brilhe

 

por cima das argolas das cortinas.

 

Esta separação deixa-me prostrada.

 

A distância aterroriza-me.

 

Anseio falar com ele mais uma vez.

 

Doravante, só haverá

 

o silêncio eterno.

 

Estou magra, mas

 

não por doença, nem pelo vinho,

 

nem pelo Outono.

 

Tudo acabou para sempre.

 

Entoo, vezes sem conta,

 

a melodia “Adeus para sempre”.

 

Esqueço-me das palavras.

 

A minha mente está longe, em Wu Ling.

 

O meu corpo é como um prisioneiro

 

neste quarto por cima do rio nublado.

 

O rio verde de jade,

 

o único companheiro

 

dos meus dias infindáveis. Sigo, com o olhar,

 

o rio até desaguar, ao longe.

 

Olho para lá do horizonte.

 

Os meus olhos apenas encontram

 

a minha própria tristeza.

 

Viu dois vultos atravessar lentamente o jardim. Mãe Liu coxeava, à frente, seguida por um homem alto, com o rosto encoberto por uma capa preta. Era sem dúvida um cliente importante, que acabara de saciar o seu apetite à custa da infelicidade de uma das suas colegas. Fan Yimei sabia que as outras raparigas não gostavam dela. A maioria tinha inveja. Excepto Shen Ping. A feia e tagarela Shen Ping, que amava e era amada por um bárbaro - um bárbaro que era bom para ela. Fan Yimei sabia que, naquela noite, o amante da amiga iria propor comprar a sua liberdade, e esperava ardentemente que Mãe Liu iu aceitasse o preço. Já houvera precedentes. Shen Ping fora é-la, de tarde, com os olhos a brilhar de alegria. Fan Yimei felicitara-a, sentindo um aperto no coração com a ideia de perder a amiga, mas, ao mesmo tempo, feliz pela sua boa sorte. Haviam chorado por breves instantes nos ombros uma da outra; para Shen Ping, eram lágrimas de felicidade, para Fan Yimei, de felicidade também, mas mescladas com tristeza por se ir separar dela. Por fim, Shen Ping partira, por recear que a vissem.

 

Uma nuvem obscureceu a lua. Fan Yimei bocejou. Sentia-se cansada, muito cansada.

 

Ouviu um choro abafado e viu o vulto de Ren Ren atravessar rapidamente o pátio, arrastando qualquer coisa atrás de si. Era Shen Ping. O rapaz puxava-a pelos cabelos e a rapariga tropeçava, soluçando de dor e de medo. Fan Yimei sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Só havia um local para onde Ren Ren a podia levar, àquela hora. Dali a pouco, ecoariam gritos, mas longe de mais para que os convidados da casa os pudessem ouvir.

 

Fan Yimei permaneceu em silêncio à janela, uma figura alva à luz do luar. O seu espírito estava de novo entorpecido, os seus sentimentos enterrados no mais fundo de si própria. Ao fim de uma hora, regressou lentamente à cama e deitou-se ao lado do major Lin. A Lua voltou a sair de detrás das nuvens, e Fan Yimei contemplou, com olhar vazio, o cadáver que flutuava por cima dela.

 

Frank Delamere passara a maior parte da noite com uma garrafa de uísque. Quando acordou, estirado na poltrona, o sol entrava pelas janelas e Ma Ayi, a sua criada, limpava o pó dos aposentos. Como era de esperar, estava com uma ressaca. Sentia a língua saburrosa, a garganta e a boca secas e as têmporas a latejar. Precisou de algum tempo para se adaptar a um estado semi-inconsciente. Só então os seus olhos se focaram no relógio que havia sobre o peitoril da janela. Soltou um gemido. Estava atrasado para o encontro com Mr. Ding, o tintureiro têxtil de Tsitsihar. Era a última pessoa no mundo que queria ver naquela manhã, e não estava com paciência para entrar em explicações pormenorizadas sobre o processo de fabrico dos cristais de sabão; todavia, nunca falhara nos seus deveres para com a empresa que representava. O seu amigo e sócio, Lu Jincai, estava convencido de que Mr. Ding ia ser a peça-chave de uma nova expansão para o seu próprio álcali, assim como para os cristais de soda de Frank, no Noroeste da Manchúria até Hailar, como prometera. Por isso tudo, não podia faltar ao encontro. Pelo bom nome da Babbit e Brenner, Frank pôs de parte a vaga sensação de que o seu coração se despedaçara, algures por entre os cinzeiros cheios e as garrafas vazias em volta da poltrona; depois, parecendo uma morsa sonâmbula e amarfanhada, avançou para a porta, conseguindo de passagem dizer algumas palavras simpáticas a uma Ma Ayi que o fitava com expressão reprovadora.

 

Frank arrendara o pátio interior de um pequeno hotel que possuía o seu próprio restaurante, lavandaria e a maior parte das comodidades de que um homem solteiro precisa. Com o tempo, o pessoal aprendera a conhecer os seus hábitos. Uma chávena de café a escaldar esperava-o, e um criado fora buscar o cavalo aos estábulos. Enquanto o líquido fervente e açucarado se lhe espalhava pelo corpo (Frank precisara de muitos meses e de muita paciência para lhes ensinar a fazer o café como ele gostava), a sua mente pareceu recuperar um funcionamento quase normal. E, à medida que os pensamentos se iam tornando mais claros, a recordação da humilhante conversa com Mãe Liu também lhe veio à memória, trazendo-lhe uma sensação de tristeza e de arrependimento. Esse sentimento acompanhou-o quando montou no cavalo, penosamente, e seguiu por uma fiada de ruas paralelas até à avenida principal, transpondo por fim a porta da cidade. O local do encontro era o entreposto da Babbit e Brenner, perto da futura estação ferroviária, para que Mr. Ding pudesse ver o processo de fabrico dos cristais. Era uma longa viagem pelo campo, mas Frank revelou-se indiferente às belezas da paisagem rural, à debulha do milho-miúdo e ao avermelhar das folhas dos áceres que ladeavam a estrada. Estava encerrado nas recriminações pesadas que fazia a si próprio.

Convencera-se realmente de que ela o amava. Era essa a tragédia. Que idiota havia sido. Que imbecil, cego e louco. Sabia bem que aquilo que lhe propusera não tinha qualquer dignidade. Havia sempre algo de imoral quando um homem de meia-idade montava casa a uma jovem, ainda por cima uma prostituta convertida. Pelos vistos, muito menos convertida do que ele julgara, pensou, com vivo azedume. De qualquer forma, ter-lhe-ia sido muito difícil lidar com a situação, depois da chegada de Helen, daí a um mês. Encontrara uma casa conveniente, que pensara comprar para Shen Ping, e era sua intenção que os dois vivessem separados até ele conseguir que Helen se habituasse à ideia. Como o conseguiria ao certo era algo em que nem sequer havia reflectido devidamente. Agora, já não precisava de convencer a filha fosse do que fosse. E talvez fosse melhor assim. Que sonhador fora! Chegara a imaginar que Helen e Shen Ping, que tinham aproximadamente a mesma idade, se tornariam as melhores amigas do mundo. Que iriam fazer um piquenique os três. Um piquenique!

 

Como conseguira ela enganá-lo com tanta habilidade? Devia ter percebido. Que havia ele dito a Mãe Liu? Que não nascera ontem? Estúpido! Não passava de um bebé de colo. Lu Jincai e os outros deviam desprezá-lo por ser tamanho idiota. Talvez não Lu Jincai, que sempre fora compreensivo para com ele e um verdadeiro amigo. Mas, mesmo assim, que humilhação, que patética humilhação! Que dissera Mãe Liu? “Há sempre uma certa dissimulação na arte de amar.” Pois ele deixara-se levar por esse fingimento. Devia ter desconfiado, devia ter percebido. Jin Shangui explicara-lhe tudo em pormenor, antes da sua primeira visita ao Palácio dos Prazeres Celestiais. Ainda se lembrava perfeitamente da conversa.

 

Estavam no gabinete de contabilidade de Jin, a beber chá. Debruçara-se para a frente, com os olhos a piscar por detrás dos óculos, um grande sorriso no rosto bochechudo, e dissera:

 

- É um estabelecimento de primeira classe. Não é apenas um vulgar bordel, como os que vocês têm na Europa, pelo que me disseram. É preciso fazer a corte às raparigas. Elas não se irão deitar consigo na primeira vez, nem na segunda, nem mesmo na terceira ou na quarta. Sabe, é um jogo. Elas lisonjeiam-no e você lisonjeia-as. Oferece-lhes prendas. Tem de cortejá-las.

 

- Mas qual o interesse nisso tudo? Afinal, é ou não é um bordel?

 

- Claro que é um bordel. Mas onde está o prazer em nos limitarmos a comprar um naco de carne? São raparigas-flores. São artistas com talento. São fadas. Sabem cantar, dançar, tocar música, recitar poemas.

 

- Um chorrilho de poesia chinesa. Não há dúvida de que parece ser fascinante...

 

- Se pensa assim, pode sempre ouvir música. Repare, De Falang, se tudo o que quer é mergulhar a sua haste de jade no barco das orquídeas, então posso levá-lo a qualquer hora do dia a um desses locais que encontramos atrás do templo. Mas o que as raparigas-flores lhe dão é a ilusão do amor. E, tal como para o que há de melhor no amor, é difícil conquistar essa ilusão. Quando a sua corte for bem-sucedida, quando a rapariga acabar por aceitar submeter-se às suas vontades e lhe permitir que prove a sua flor, imagine até onde irá o seu prazer e o seu êxtase! É a longa espera que faz com que o resultado final seja um verdadeiro paraíso. Depois, formarão um casal e ela ser-lhe-á reservada, sempre que a visitar. Como um marido e uma mulher.

 

- Não quero ir até lá para me casar... - replicara Frank.

 

- É um jogo, como já lhe disse. Quando se cansar da rapariga, pode sempre falar com Liu Mama; ela apresentar-lhe-á outra e você poderá recomeçar o delicioso processo de fazer a corte.

 

- Parece-me um tanto laborioso - respondeu Frank, rindo-se -, mas “em Roma, sê romano”. Vou tentar.

 

E, claro, deixara-se cativar por aquele jogo, de corpo e alma. Conhecera Shen Ping na primeira noite. Era mais baixa e menos bonita do que as outras, mas tinha um rosto engraçado e risonho, e era tagarela até mais não. Tinham bebido e brincado toda a noite. A rapariga fingira sentir-se aterrorizada pelo grande bigode e tecera comentários jocosos acerca do seu nariz grande e avermelhado, perguntando-lhe se as outras partes do corpo eram assim tão grandes; depois, por trás das mãos fechadas, rira-se baixinho da sua própria temeridade. Frank ficara encantado e regressara a casa completamente bêbedo, rindo-se, deleitado, só de pensar nela.

 

Precisara de um mês e de dez visitas. Jin Shangui tinha razão. O jogo de cortejar uma rapariga, em si, não só lhe havia parecido bastante natural, como lhe proporcionara grande prazer. Era como se o peso dos anos se tivesse desvanecido. Voltara a ser um jovem pretendente tímido e pudico. Estranhamente, a expectativa do momento em que se deitaria com ela, o coroar de tudo aquilo, tornara-se cada vez menos importante. Frank apreciava a companhia de Shen Ping, por si só, o som da sua voz levemente rouca e a forma como lhe puxava o bigode ou os pêlos das mãos, enquanto se ria baixinho. Frank gostava de lhe ensinar a tocar canções populares inglesas à flauta, com resultados de tal modo desastrados que lhes provocava ataques de riso. Dera-se conta de que podia falar-lhe da sua vida, da sua filha que vivia em Inglaterra, até dos seus negócios, facilmente e quase sem pensar, porque ela o escutava atentamente. Na maior parte das vezes, contudo, Frank contentava-se em sorrir paternalmente, enquanto Shen Ping tagarelava sem parar, contando-lhe as histórias que corriam sobre as outras raparigas, descrevendo-lhe gulosamente os seus pratos favoritos ou falando-lhe dos animais da quinta onde passara a infância. Como fora hábil, concluiu com azedume. Como soubera manipulá-lo.

 

Certa noite, não a encontrara à sua espera na pequena sala onde costumavam encontrar-se. Era Mãe Liu que se achava no lugar da rapariga, sorrindo com uma expressão maliciosa e chamando-lhe demónio felizardo, dizendo que era um homem poderoso, sedutor e irresistível, e tecendo outros subentendidos vulgares. Com crescente expectativa, ele seguira-a até ao terceiro andar do edifício, numa parte do estabelecimento onde nunca entrara; Mãe Liu abriu uma das várias portas que havia de cada lado de um longo corredor, decorado com cores garridas. Shen Ping já se encontrava na cama. A sua cabeça Pequena despontava dos lençóis e o cabelo estava solto e estendia-se sobre a almofada. Compreendera de imediato que ela estava nua debaixo dos lençóis. Ficara espantado por ver que tinha um olho negro, como se tivesse levado um murro mas ela explicara-lhe que não era nada de grave. Escorregara e caíra da escada. Tentara rematar a explicação com um riso forçado. Parecia estar tão nervosa quanto ele. Frank perguntara a si próprio se, apesar das muitas horas que haviam passado juntos, ela sentia alguma relutância ou até repugnância em se encontrar naquela situação íntima com um estrangeiro - ele próprio se dera conta, de súbito, de como era gordo e feio -., mas entretanto ela estendera-lhe a mão e, a meia voz, chamara-o. Frank acedera e sentara-se na beira da cama, entrelaçando os dedos nos dela. Os olhos castanhos e húmidos da jovem haviam mergulhado nos seus com ar sério. Havia no rosto dela uma expressão triste, quase interrogadora. Frank pensara na sua noite de núpcias, muitos anos antes. Lembrava-se de ver a mesma expressão nervosa no rosto da sua jovem mulher, um misto de desejo e de temor. Não podia acreditar que Shen Ping fosse virgem. Não era com certeza, a trabalhar ali. Todavia, a atmosfera tornara-se, de súbito, a de um quarto nupcial. Naquela noite, sentira-se como um jovem recém-casado com Shen Ping, a sua virginal noiva. Claro que ela não era imaculada, mas houvera a mesma impressão de uma descoberta, a mesma magia de dois amantes, explorando juntos, pela primeira vez, sensações e sentimentos novos. Só agora percebia que tudo não passara de uma farsa. Depois da sua conversa na noite anterior com Mãe Liu, só lhe restava felicitar Shen Ping pela forma hábil com que conseguira criar tal ilusão. Na noite em que haviam estado juntos pela primeira vez, Frank sentira ternura e afecto pela jovem e acreditara que era correspondido. Shen Ping permitira que ele a guiasse, enquanto faziam amor, suspirando quando haviam alcançado o clímax, abraçando-o depois com força, quase com um mudo desespero, até ambos adormecerem.

 

Mãe Liu humilhara-o na véspera, provavelmente de propósito - e ele estava-lhe grato, porque precisava daquele brutal despertar -, quando enunciara as diferentes posições que ele e Shen Ping haviam explorado juntos, ao longo do ano anterior.

 

Ele acreditara que fora uma descoberta mútua, um prazer partilhado. O seu pequeno mundo secreto de paixão. Agora dava-se conta de que Shen Ping se limitara a seguir o manual, depois de consultar a proprietária da casa. Fora-lhe difícil aceitar uma tal humilhação, mas esse não fora o golpe mais doloroso de todos os que recebera na véspera. Para Frank não era fazer amor o que mais contava. Não era o sexo que o atraía em Shen Ping. Era a sua amizade. E uma vez que a dissimulação dela se estendia à amizade, Frank sentia-se traído.

 

Que idiota. Que idiota! Nem sequer podia culpá-la. Continuava a sentir um grande afecto por Shen Ping, que, guiando-se pelos seus próprios critérios, o tratara muito bem. Conscienciosamente, como dissera Mãe Liu. E como Shen Ping fora conscienciosa! Que excelente profissional!

 

Nas suas últimas visitas, raramente haviam feito amor. Tinham ficado sentados, de mãos dadas, a falar da vida que levariam juntos, quando Shen Ping fosse livre. Ele falara-lhe em levá-la a Londres, e ela fizera-lhe um ror de perguntas sobre onde viveriam e o que fariam. Tinham-se beijado e abraçado, Depois, ele acariciara-lhe os pequenos pés ligados. A princípio, havia-os achado estranhos e até mesmo repulsivos, mas agora via-os como uma parte de Shen Ping, tanto quanto as rugas que ela tinha em volta dos olhos, e de que ele gostava. Fora tão convincente... Parecera curiosa, impaciente, entusiasmada com o mundo que iria descobrir fora do bordel. Evidentemente, tudo não passara de mais um pormenor da sua técnica aprimorada, como chupar a haste de jade e todos os outros truques.

 

“Não há pior tolo que um velho tolo”, pensou. De futuro, seria mais sensato. Contudo, mesmo depois da terrível descoberta, uma parte de si apenas desejava correr para o Palácio dos Prazeres Celestiais para estar com ela. Levaria muito tempo a recompor-se daquela desilusão. Talvez nunca o conseguisse.

 

A sua frente, viu as barracas que formavam o entreposto da Babbit e Brenner. Lu Jincai e Mr. Ding estavam em frente do portão. Ambos usavam túnicas azuis e os barretes e os casacos de seda preta dos negociantes. Mr. Ding tinha óculos redondos, de lentes tingidas. Os dois círculos negros conferiam-lhe ao rosto um aspecto mais espectral do que habitualmente. Lu Jincai, um homem de aspecto juvenil, mas que devia estar perto dos quarenta anos, acenou ao amigo.

 

- De Falang Xiansheng, está atrasado hoje. Suponho que passou uma noite muito agradável no Palácio dos Prazeres Celestiais.

 

Lu Jincai e Mr. Ding riram-se. Pareciam estar de muito bom humor, o que deprimiu Frank ainda mais. Desmontou pesadamente e Lu colocou a mão sobre o seu ombro, num gesto amigável.

 

- Eu e Mister Ding estamos impacientes por saber como foi a sua conversa com a Dama Dragão. A encantadora Miss Shen já foi libertada? Mister Ding, eu disse-lhe como é irresistível o nosso De Falang Xiansheng. Agora, temos de felicitá-lo por haver ganho a mais bela rapariga de Shishan!

 

- Mudei de ideias - replicou Frank. - Pensei melhor no assunto. - Tentou encontrar uma maneira de conduzir a conversa em tom casual. Era o último assunto de que queria falar, mas tinha de salvar as aparências junto dos amigos. O rosto de Lu Jincai já revelava preocupação. Frank riu-se, tão alegremente quanto lhe foi possível. - Sou muito novo para me casar novamente. Vocês não andavam sempre a aconselhar-me para que fizesse amor com várias raparigas? Eu estava prestes a dar o salto, mas decidi seguir o vosso conselho, antes que fosse tarde de mais. Quem é que quer enforcar-se, com tantas raparigas por aí, cada uma mais bela que a outra? Ah, ah! Não, a partir de agora, só quero experiências sempre novas.

 

Mr. Ding sorriu alegremente, enquanto Li se contentou em emitir um riso de cortesia.

 

- Miss Shen deve ter ficado muito desiludida - comentou, observando atentamente o rosto de Frank.

 

- Não se pode ganhar sempre - respondeu Frank, e sentiu um aperto no coração. - No amor e na guerra, vale tudo. Além do mais, quem quer prender-se a um velho bárbaro peludo? Há muitos peixes no mar...

 

- S-sim - concordou Mr. Ding, que gaguejava um pouco e que parecia estar a gostar daquela conversa maliciosa. Qu-quando for a Tsitsihar, levá-lo-ei à pesca c-c-comigo. M,n-não sabe o que é pescar, enquanto não t-tiver apanhado uma das nossas beldades m-mongóis.

 

- Era isso o que eu queria ouvir! - comentou Frank, conseguindo empregar um tom de voz jovial. - Sempre soube que o senhor era um homem inteligente, Mister Ding. Agora, sim, tenho a certeza absoluta de que a nossa parceria será um êxito.

 

- Não será só um êxito. Far-nos-á ganhar fortunas respondeu Lu, tendo o cuidado de mudar de assunto. - Mister Ding está ansioso por vê-lo fazer a demonstração do processo de fabrico dos cristais de soda, De Falang Xiansheng.

 

- Nada me daria mais prazer - respondeu Frank, colocando o braço em volta do sorridente Mr. Ding e conduzindo-o até ao interior do entreposto.

 

Durante as duas horas que se seguiram, concentrou-se na complexidade do fabrico de soda, explicando como se obtinha a consistência do álcali na água - adicionava-se um picu de água a ferver a meio picu de cinza de soda -, como se devia manter-se a solução ao lume, como era preciso agitá-la, em que altura devia ser vertida, já dissolvida, em vasilhas de ferro frias e repletas de licor para ajudar ao processo da formação dos cristais, e como havia que separar estes do líquido. Mr. Ding seguia atrás deles, espreitando para vasilhas espalhadas pelo pátio, sem parar de tirar notas. Frank fez então uma demonstração daquele método de lavagem, comparando os seus cristais de soda em pó a álcali não tratado para provar a eficácia da nova fórmula. Por fim, enquanto bebiam chá, falaram das contra-indicações do uso daquele método, porque poderia afectar os processos de tinturaria usados por Mr. Ding. Este pareceu satisfeito e falaram na hipótese de os carregamentos começarem no Outono seguinte. Frank disse-lhe que, por essa altura, já teria o seu jovem assistente, que provavelmente poderia acompanhar a primeira caravana de mulas.

 

- Não será o senhor a acompanhar a c-caravana, D-De ralang X-Xiansheng? L-Lembre-se das raparigas m-mongóis!

 

Frank, que conseguira entorpecer a mente nas últimas duas horas, sentiu a sua depressão regressar, ainda com mais força, mas Lu Jincai, francamente preocupado com o sócio, já desconfiava de que algo de grave se passara e, mais uma vez conseguiu mudar o rumo da conversa e voltar à cinza de soda. Ele e Mr. Ding partiram pouco depois, de modo a estar de volta à cidade antes da hora do almoço, deixando Frank sozinho com os seus pensamentos sombrios.

 

Sentou-se no gabinete, e tentou encarregar-se da papelada, mas não foi capaz de se concentrar. Tudo o que conseguia ver, por cima das pilhas de cartas e de relatórios, era o rosto sorridente de Shen Ping. Começou a andar de um lado para o outro, inconsolável, enquanto a ressaca lhe fazia latejar toda a cabeça. Tinha de sair dali, fazer qualquer coisa, ou então enlouqueceria. Tomando uma decisão repentina, saiu apressadamente do gabinete e pediu que lhe selassem o cavalo. Iria até ao acampamento do caminho-de-ferro, a um quilómetro e meio do entreposto, para saber junto de Fischer se este recebera notícias acerca da chegada do grupo que partira de Pequim.

 

Era evidente que a sua relação com Shen Ping nunca poderia resultar. Devia estar louco ao pensar que Helen aceitaria semelhante coisa. Provavelmente, partiria para Inglaterra no primeiro barco e nunca mais voltaria a falar com o pai. Nellie Airton, essa, nunca aprovaria uma tal relação. Aliás, Frank desconfiava que ela reprovava o seu modo de vida e não conseguia imaginar Nellie a tomar chá com Shen Ping e as freiras. Seria uma situação muito embaraçosa. Só lucrara em se livrar a tempo de maiores embaraços. Tudo se resolvera pelo melhor.

 

Não podia voltar a ver Shen Ping. Nunca o suportaria, sobretudo agora, dado o que sabia acerca dela. Não que a culpa fosse da rapariga. O único responsável de tudo o que se passara fora ele, por ser tão idiota. Esperava que Shen Ping não se importasse de perder um cliente. Ele iria tomar a atitude correcta. Enviar-lhe uma prenda, como prémio, ou talvez dinheiro. Ou mesmo uma carta. Teria de perguntar a Lu Jincai o que era mais adequado naquelas circunstâncias. Segundo o que a Mãe Liu dissera, Shen Ping não tinha falta de clientes.

 

Ao que parecia, era muito popular. E ele, melhor do que ninguém, sabia porquê. Com a única diferença de que os outros clientes não deviam ser tão ingénuos e tolos como ele. A menos que a rapariga se tivesse especializado em românticos incuráveis. Tê-lo-ia ela desprezado? Teria falado dele com as outras raparigas-flores? Ter-se-ia rido dele, nas suas costas? Se fosse esse o caso, ele merecera-o.

 

Sabia que havia de regressar ao Palácio dos Prazeres Celestiais. Não havia como evitá-lo. Todas as semanas, Lu, Tang, ou um dos outros organizava lá um banquete. Fazia parte das relações comerciais em Shishan. Mas ninguém era obrigado a provar as flores. O Dr. Airton sempre o aconselhara a mudar de comportamento. Talvez fosse chegada a altura de Frank, um velho mulherengo, entrar na linha? A ideia de iniciar uma relação com outra rapariga não lhe dizia nada, por enquanto, mas, por outro lado, conhecia as suas fraquezas. Talvez um dia, se conseguisse esquecer Shen Ping, viesse a tentar com outra rapariga. Quando esse dia chegasse, porém, nada de ilusões. Alinharia no jogo tão cinicamente como todas elas. A dada altura, Mãe Liu parecera sugerir-lhe Fan Yimei. Era uma beldade. Demasiado bela para ele, pensou. E porque não? Mãe Liu dera a entender que todas as raparigas estavam ao dispor dos clientes. A ideia de se envolver em disputa com o major não lhe agradava, mas talvez se ele alguma vez se fartasse da rapariga...

 

Mas em que estava ele a pensar? A imagem de Shen Ping a dormir voltou-lhe repentinamente ao espírito. O seu nariz pequeno, um sorriso nos lábios, mesmo em pleno sono. Uma madeixa de cabelo solta na testa. Enquanto cavalgava pelos campos de milho-miúdo, Frank apercebeu-se da dimensão da perda que sofrera. Lágrimas quentes começaram a correr-lhe pelas faces, enquanto soluços pesados lhe apertavam o peito. Teve de parar o cavalo, a curta distância do acampamento do caminho-de-ferro, para se recompor e recuperar o aspecto de sempre, antes de se encontrar com Herr Fischer.

 

Enquanto atravessava o estaleiro, Frank não pôde deixar de reparar que a via-férrea avançara bastante, desde a última vez em que ali estivera. Seis semanas antes, apenas os primeiros pilares da ponte haviam sido implantados no leito do rio. Agora, o tabuleiro avançava a olhos vistos. Um exército Je cules trepava pelas estruturas ou içava com roldanas as tábuas e as grandes vigas trazidas pelas barcas. A base da linha já havia sido escavada e estendia-se até perder de vista, em direcção às colinas Negras, lá ao longe, onde outra equipa abria um túnel com recurso a dinamite. Assim que o túnel estivesse concluído, aquela parte da via faria a junção com o trecho principal, vindo de Tientsin, do outro lado da montanha. Depois, era apenas uma questão de colocar as chulipas e os carris, e as primeiras locomotivas fumegantes começariam a chegar a Shishan. Frank acompanhara com muita atenção todas as fases do projecto. Uma linha de caminho-de-ferro entre Tientsin e o porto de Ta-ku baixaria consideravelmente os custos dos seus produtos, além de reduzir os prazos das entregas. Naquele dia, contudo, mesmo registando o progresso da obra, faltava-lhe o entusiasmo habitual.

 

O gabinete de Herr Fischer era numa pequena tenda, montada no centro do acampamento. Quando Frank chegou, Fischer e o seu jovem assistente, Charlie Zhang, reviam os planos do túnel à luz dos resultados de uma sondagem geológica recentemente efectuada. Hermann Fischer, o engenheiro, era um homem baixo, de cabelos grisalhos, vindo de Berlim. Luterano convicto e homem simples, passava a maior parte dos seus tempos livres a ler a Bíblia. Frank gostava dele porque estava sempre bem-disposto, ainda que o seu sentido de humor se revelasse um tanto árido. Quanto a Zhang Dongren, ou Charlie, como ele gostava que lhe chamassem, tinha aprendido os rudimentos do mister de engenheiro em Xangai e fora enviado para o acampamento pelo conselho de administração em Pequim. Dependia directamente do director, Mr. Li Tsoi Chee, e dizia-se que beneficiava da protecção do ministro Li Hung-chang em pessoa. Na realidade, o estadista sempre se interessara pessoalmente por aquele projecto, além de ser presidente honorário do conselho de administração. Para Frank, Zhang era um jovem humilde, de carácter jovial, com modos algo atrevidos mas que lhe agradavam. O jovem Charlie sabia que era competente e podia ganhar a confiança dos operários em condições de trabalho muitas vezes adversas. Frank aprendera a conhecê-lo bem e concordava com Herr Fischer, que confiava nele. Charlie era o género de homem que podia levar a China à modernização e ao século XX. Frank gostaria de ter colaboradores do mesmo calibre na Babbit e Brenner. Charlie usava rabicho e vestia-se à chinesa, mas Frank pensava, não raras vezes, que o jovem tinha a mentalidade de um europeu. Zhang e Fischer brindaram-no com um sorriso caloroso.

 

- Meu caro Mister Delamere! Meu caro Mister Delamerei - exclamou Herr Fischer, largando os mapas. - Que boa surpresa vê-lo! Receava que se tivesse esquecido de nós.

 

- De forma alguma. São os meus amigos que estão muito ocupados. Meu Deus, como a ponte avançou... Fizeram um excelente trabalho.

 

- Um dia tem de ir ver o túnel - disse Zhang, sorrindo, no seu inglês fluente, com uma pronúncia típica da classe alta. - Um dia destes vamos começar a usar a dinamite. Talvez possamos celebrar isso com um piquenique? Gosto dos seus piqueniques, Mister Delamere. Bons queijos e vinhos franceses.

 

- Mister Zhang, Charlie, onde estão as suas boas maneiras? - interveio Herr Fischer. - Temos de oferecer-lhe um pouco desse café americano que Mister Delamere tanto aprecia. Conhecemos as suas manias, Mister Delamere. Ah, que prazer rever velhos amigos! Sente-se e dê-nos notícias. Agora, nunca vou à cidade, porque tenho muito trabalho aqui.

 

- Que eu saiba, não se passou nada de muito importante - respondeu Frank, bloqueando a triste resposta que lhe ocupava a mente. - Talvez venha a ter um novo parceiro comercial no Noroeste da Manchúria, o que é deveras interessante.

 

- É, de facto, muito interessante - replicou Fischer.

 

- Os meus parabéns. Veja bem, Charlie, estes ricos negociantes estão sempre a ganhar mais dinheiro, enquanto nós, engenheiros, vivemos nas nossas miseráveis tendas e nos matamos a trabalhar por uma ninharia!

 

Zhang riu a bom rir, enquanto pousava as chávenas de café na mesa.

 

- Mister Delamere é o rei dos comerciantes!

 

- Pelo contrário; não passo de pau para toda a obra.

 

O seu estado de espírito começava a melhorar, graças ao acolhimento e à conversa entusiástica dos amigos. - Na realidade, eu é que vim até aqui para ter notícias. Pensei que podiam saber algo mais acerca de Mister Manners e do seu grupo. A propósito, estou muito contente por o vosso colaborador trazer a minha filha e o meu novo assistente até cá.

 

-Já, já, claro - retorquiu Fischer. - A companhia do caminho-de-ferro da China está ao dispor do nosso amigo Mister Delamere, em especial da sua bonita filha. Charlie, quais são as últimas notícias?

 

- Pouca coisa, desde a primeira carta que lhe enviei, Mister Delamere. Recebi uma mensagem referindo que viajaram todos juntos, como já lhe disse. Já devem ter saído de Tientsin há uns dez dias. Na minha opinião, devem estar a chegar por estes dias.

 

- Por estes dias? Isso já é alguma coisa! Não sei porquê, mas julgava que demorariam muito mais tempo.

 

- Não. As nossas caravanas de mulas são rápidas - explicou Fischer. - Escolhemos um bom grupo de muleteiros. Não é uma maravilha? A vinda da sua filha? Vai ser uma grande mudança! Pelo menos, no meio social. O doutor Airton disse-me que eu devia treinar o violino. E você, Charlie, tem de aprender as danças ocidentais, jaí. A valsa, a polca...

 

- Também estou muito contente por ir ter um assistente - atalhou Frank. - Assim não serei forçado a viajar tanto pelo campo como até aqui.

 

- Nós também vamos ter um assistente. Mister Henry Manners. Uma espécie de Junker, jaí - Frank não pôde deixar de reparar na troca de olhares entre Zhang e Fischer. - Não restam dúvidas de que precisamos da sua experiência - prosseguiu o engenheiro. - Vai ajudar-nos nas relações políticas. Deve haver certamente pessoas muito sábias, na sede da companhia, que lá sabem porque precisamos nós de um assistente para as relações políticas.

 

- Relações políticas? Julgava que o doutor Airton era o vosso intermediário junto do mandarim.

 

- Pois bem, agora ainda ficaremos mais bem representados, com dois intermediários. Vale mais dois do que um, não é verdade? E como está o café? Ao seu gosto?

 

- O Charlie é um verdadeiro mestre - comentou Frank, sorvendo um gole da mistela de sabor insípido. - Uma delícia...

 

Zhang empertigou-se. Sentindo que Manners era um assunto delicado, Frank apressou-se a fazer perguntas acerca dos mais recentes progressos do caminho-de-ferro. Pouco depois, estavam os três embrenhados num amontoado cada vez maior de mapas e de cartas, com os dois técnicos a descrever orgulhosamente a sua obra, não esquecendo quaisquer pormenores do grandioso projecto. Passado algum tempo, Frank reparou que um cule se postara à entrada da tenda. Zhang não tinha qualquer vontade de ser interrompido no meio da sua explanação, mas acabou por ir falar com ele; quando regressou, um largo sorriso iluminava-lhe o rosto.

 

- Mister Delamere, não podia ter agendado melhor a sua visita. Acaba de chegar um mensageiro vindo do estaleiro do túnel nas colinas Negras. A sua filha e o grupo que a acompanha passaram por lá e neste momento dirigem-se para aqui. Devem estar connosco, dentro de uma hora.

 

A primeira reacção de Frank foi de choque. Eram muitas coisas que lhe aconteciam num só dia. Ainda não estava preparado para receber Helen. Não tinha nada pronto. Meu Deus, nem sequer fizera a barba! E ainda tinha de arranjar quartos na pensão. Depois, havia toda a história de Shen Ping... Contudo, depressa se sentiu invadido por uma grande alegria; a sua filhinha ia chegar dali a uma hora. E apercebeu-se de que ia começar novamente a chorar.

 

Quando Helen Francês avistou o pai, lançou o cavalo a galope até ao local onde Frank Delamere a esperava. Ele quisera ser o primeiro a cumprimentar os viajantes, mas olhava, com ar distraído, na direcção errada. Helen Francês desmontou do cavalo e lançou-se nos braços do pai. Reconheceu de imediato o cheiro familiar a carne de vaca cozida e a tabaco e sentiu as lágrimas correrem-lhe pelas faces até desaparecerem no bigode do pai.

 

- Minha filha - chorava ele. - És mesmo tu?

 

- Sim, papá, sou eu, sou eu... - respondeu a jovem, a voz embargada pela emoção. Também chorava e abraçou o pai com força.

 

Um Frank ainda atordoado perguntava a si próprio se estaria a sonhar. A rapariga que se apeara do cavalo e lhe beijava as faces era o retrato fiel da esposa, falecida havia muitos anos. Ao fim do que lhe pareceu uma feliz eternidade, afrouxou o abraço e ergueu os olhos para dois jovens, ainda montados a cavalo, que o fitavam, sorridentes. Um deles era um homem magro, moreno, de bigode; o outro, louro, alto, rosto avermelhado, de aspecto simplório.

 

- Papá, este é o Henry Manners, que nos trouxe até aqui. Foi muito corajoso. Houve Boxers e decapitações. - As palavras ainda saíam em torrente da boca de Helen. “Boxers? Decapitações”, pensou Frank, perplexo. - E nas colinas Negras, pensámos que íamos enfrentar bandidos, mas afastaram-se quando Mister Manners disparou a sua espingarda.

 

- Mister Delamere, prazer em conhecê-lo. A sua filha está a exagerar bastante - cumprimentou Manners, sorrindo.

 

- E este é o Tom, papá - continuou Helen, empurrando o pai na direcção do outro jovem. - O Tom trouxe-me da Inglaterra até aqui. Vai trabalhar contigo, papá, e estamos noivos.

 

Frank ainda se encontrava demasiado atordoado para compreender exactamente o que a filha lhe dizia.

 

- Noivos? - repetiu. - Noivos de quem?

 

- Noivos um do outro, claro! - retorquiu Helen Francês, rindo-se. - Queremos casar-nos!

 

- Com a sua permissão, Mister Delamere - acrescentou Tom.

 

Frank estava ainda sob o efeito do choque e da surpresa; a sua dor regressara com renovado vigor. Abriu a boca, mas voltou a fechá-la, logo de seguida.

 

- Mas, eu... eu... Vocês... Quem...?

 

Herr Fischer pareceu surgir do nada, com um grande sorriso nos lábios.

 

Um noivado! - exclamava, muito excitado. - É uma maravilha! Não me tinha dito nada, seu malandro! - acrescentou, dando uma valente palmada nas costas de Frank. Charlie! O schnapps O schnapps

 

Um minuto depois, um Charlie Zhang de sorriso radioso colocava copos nas mãos de todos.

 

ESCAVAMOS OS CAMPOS E SÓ ENCONTRAMOS CASCAS DE SEMENTES ENEGRECIDAS

 

A notícia do noivado dos jovens e do descontentamento de Frank Delamere não tardou a espalhar-se por toda a cidade. Passados dois dias, enquanto tomava o pequeno-almoço, Nellie Airton, preocupada com o jantar que devia oferecer em honra dos recém-chegados, achou que o marido devia ir até ao hotel de Delamere a fim de descobrir o que estava a passar-se.

 

Ela sabia que, dois dias antes, os três - Delamere, a filha e o jovem Cabot - tinham partido para o hotel, depois de Frank haver armado uma cena no acampamento do caminho-de-ferro. Desde então, ninguém os vira, mas corriam rumores na cidade, sobretudo entre os comerciantes e os criados chineses. Nellie ouvira histórias cada vez mais alarmantes: que De Falang trancara a filha no quarto; que houvera uma discussão entre ele e o namorado da filha; que os dois homens haviam lutado e que os outros hóspedes se sentiam aterrorizados com a contínua torrente de imprecações e de insultos que vinham do pátio onde ficavam os aposentos de Delamere; que De Falang bebia uísque de manhã à noite; que levara uma navalha para a banheira e pensava suicidar-se, ou, noutra variante, que mandara um homem ao entreposto para que lhe trouxesse uma pistola... O último boato dava conta de que a filha de De Falang se enforcara servindo-se das cortinas do quarto. O amanuense de Frank, Liu Haowen, reclamava para si o crédito daquela última notícia sensacionalista. Soubera-a por um dos criados do hotel, que vira um vestido castanho e um par de botas dependurados de uma janela. Liu contara a história a Wang Puching, secretário do comerciante Jin Shangui, com quem se cruzara de madrugada, enquanto comprava couves no mercado de legumes. Por sua vez, Wang transmitira a notícia ao seu amigo do hospital, Zhang Erhao, durante a partida matinal de xadrez na casa de chá de Ren Ren. Zhang levara a notícia até à missão, e fora assim que Ah Sun ficara ao corrente, quando saíra da casa do Dr. Airton para ir buscar a roupa das enfermarias. Como não podia deixar de ser, contara a história, entretanto já muito adulterada e com mais e mais pormenores, ao marido, Ah Lee, quando regressara à cozinha. E fora um triunfante Ah Lee que, por fim, fizera um relato sangrento a Nellie e às crianças, enquanto servia um pequeno-almoço de ovos mexidos com bacon. Jenny e George ficaram encantados com pormenores como a língua enegrecida e inchada e os olhos arroxeados e vítreos. Oo estilo narrativo de Ah Lee era teatral; fez uma pirueta sobre os sapatos de tecido, enquanto, com uma mão, apertava a própria garganta e imitava a vítima enforcada, e, com a outra, mantinha em equilíbrio, um verdadeiro milagre!, a bandeja do chá). Para Nellie fora a gota de água. Mal o marido regressara a casa, depois de efectuar a sua primeira operação da manhã e antes mesmo de se sentar para beber um gole de chá, já Nellie insistia para que ele fosse imediatamente ao hotel a fim de se inteirar do que se passava.

 

- Devem estar a descansar da viagem - resmungara Airton - e com certeza não querem ser incomodados. Além do mais, não nos diz respeito.

 

- Enganas-te. Diz-nos respeito se tenho de preparar um jantar para toda a gente, daqui a dois dias. E depois, quem é o coscuvilheiro da família? Estás mortinho por ir até lá e saber tudo.

 

- Estás a ofender-me, Nellie - protestara Airton, defendendo a sua dignidade. - Estás a ofender-me e muito.

 

- É verdade que todo o nosso corpo fica azul quando nos enforcamos, mamã? - quis saber George.

 

- Posso ir ver o cadáver com o papá? - perguntou Jenny.

 

- O que podem é ir imediatamente para os vossos quartos sem mais uma palavra! - ordenou Nellie. - Só te digo isto, Edward: se não te encarregares do assunto, encarrego-me eu. Tudo isto está a tornar-se um verdadeiro circo - Só então reparou em Ah Lee, que, com os seus olhos remelentos, sorria, enquanto esperava, ao lado do bufete. - E deixa de sorrir como um idiota, meu instigador de discórdia! Como te atreves a contar histórias tão horríveis aos meus filhos?

 

Fingindo não perceber uma só palavra do que a patroa lhe dizia, Ah Lee sorriu e acenou alegremente.

 

- Um pouco mais de bacon, Missy? Ou de pão torrado?

 

Por fim, Airton lá acedeu em visitar Frank Delamere à hora do almoço, uma vez terminadas as consultas externas.

 

Foi com alguma inquietação que seguiu pelas ruas estreitas até ao hotel. A última coisa que queria era ter de se ocupar de outro imbróglio doméstico. O desaparecimento de Hiram Millward já lhe dera muito que fazer nas últimas semanas. As visitas ao yamen de nada serviram. O mandarim mostrara-se compadecido, mas não podia agir oficialmente sem ter uma petição do pai do rapaz. Explicara que os direitos extraterritoriais conferidos aos missionários o deixavam de pés e mãos atados. Sem uma queixa formal ou a prova de que houvera um crime, cometido por um chinês e que exigia a sua intervenção, tratava-se de um assunto a que era alheio, porque, tanto quanto se sabia, o rapaz abandonara a família por vontade própria e, segundo parecia, com a concordância do pai. Airton argumentara que o rapaz era menor de idade e que precisava de protecção. O mandarim replicara que os costumes eram diferentes na China. Aos quinze anos, ele próprio havia deixado a casa familiar e tornara-se um soldado, em luta contra os Taiping. A idade pouco importava. De qualquer maneira, a autoridade final competia sempre ao pai. Ele que trouxesse provas de que fora cometido um crime e o mandarim actuaria, usando de todo o poder que lhe era conferido pelo yamen.

 

O Dr. Airton sentira-se igualmente frustrado nas suas tentativas de chamar à razão Septimus. A princípio, ainda pensara que as suas palavras haviam surtido efeito, quando, ao exprimir a sua preocupação pela segurança do rapaz, o rosto de Septimus Millward se contraíra de agonia e inquietação. Airton aproveitara esse momento para acrescentar que todas as buscas na cidade se haviam revelado infrutíferas. Começava a recear que os primeiros rumores, segundo os quais Hiram fora procurar os bandidos das colinas Negras, pudessem ser verdadeiros. Septimus escutara-o atentamente. Por vezes, baixara a cabeça e parecera chorar. Era um homem diminuído, muito diferente do pregador que recitava disparates na praça. Emagrecera e a barba e o rabicho pendiam-lhe do rosto encovado. Sentado ali, rodeado pela família silenciosa do missionário americano, Airton tivera a sensação de estar numa vigília, e sentira-se ele próprio invadido pela tristeza que reinava na sala. Parecia manifesto que a primeira impressão com que ficara dos Millward era errada. Amavam profundamente o filho e o seu desaparecimento constituía uma triste perda para cada um deles. A sua infelicidade era quase palpável. Contudo, por mais que tentasse, não conseguira convencer Septimus a redigir a petição que lhe permitiria obter a ajuda do mandarim.

 

- “A César o que é de César,” - citara Septimus, num tom de voz inexpressivo - “a Deus o que é de Deus.” Foi o Diabo que me tirou o meu filho, doutor Airton e só pela graça do Senhor ele nos será devolvido. Não há nada que eu ou o senhor possamos fazer.

 

- Mas este é um caso em que César pode ajudá-lo - argumentara Airton, com o tom de voz paciente que se costuma usar quando se fala com alguém de compreensão lenta. E tudo o que tem a fazer é escrever uma carta.

 

Uma expressão de ansiedade passara pelos olhos avermelhados de Septimus, mas este não alterara a sua decisão.

 

- “Não deposite a sua confiança em príncipes,” doutor, “nem em nenhum filho de homens, pois eles não o podem ajudar.” Sei que age com a melhor das intenções, mas quem sou eu para ir contra a vontade de Deus?

 

Apesar daquelas palavras implacáveis, a sua voz era quase suplicante. Airton podia imaginar as emoções contraditórias que pesavam no peito daquele homem.

 

- Não pode acreditar que foi por vontade de Deus que o seu filho se perdeu e que talvez até corra perigo. Então e o que me diz de “Ajuda-te que Deus te ajudará”? Do que precisamos é de uma expedição de socorro a cavalo que vá até às colinas Negras.

 

- Doutor, dava a minha vida para ter o meu filho Hiram, o meu querido filho, de volta ao seio da sua família e a percorrer de novo o caminho de Deus. Mas Ele põe à prova os Seus servos, doutor. O Todo-Poderoso tem desígnios misteriosos. Ainda não foi revelado, mas há um desígnio nisto tudo. “Apenas vemos através de um vidro, obscuramente”, como disse o apóstolo. Mas Ele escolheu-nos, entre os pagãos, para sermos soldados ao Seu serviço, e, seja qual for o resultado da batalha, temos de aguardar e obedecer às Suas ordens.

 

- Amén - rematara Laetitia, imitada pelos filhos.

 

O homem era louco, pensara o Dr. Airton. Eram todos loucos. Ouvira falar de cultos estranhos que pareciam enraizar-se facilmente nos Estados Unidos: os extraordinários mórmones, com os seus haréns de mulheres, os curandeiros, os pregadores em muitas línguas. Estava mais convencido do que nunca de que os Millward não faziam parte de uma instituição missionária comum. Encontrara-se com vários representantes da Fundação Oberlin e de outras missões americanas que operavam no Norte da China. Eram na sua maioria congregacionistas, um pouco fervorosos e evangélicos demais para o seu gosto, mas respeitáveis; homens severos que haviam assumido um compromisso racional e empenhado de pregar o Evangelho, e que, tanto quanto ele sabia, estavam a fazer um bom trabalho. Os Millward, por outro lado, eram fanáticos, encontrando-se muito além de qualquer poder de persuasão. Perguntou a si próprio que estranho impulso, que se sobrepusera a tudo o resto, levara a excêntrica família a atravessar os mares até à China, e em particular até Shishan. Pareciam viver num mundo à parte, só deles, povoado de anjos e demónios. Airton sabia que resposta esperar de Millward, se lho perguntasse: Deus enviara-o. O médico duvidava que a intervenção divina o ajudasse a encontrar Hiram.

 

Já não sabia o que fazer. Desesperado, dera algum dinheiro a Jin Lao, o camareiro do mandarim. Se as autoridades não podiam agir, talvez a corrupção pudesse. Por fim, na semana anterior, o major Lin enviara um dos seus tenentes com meia dúzia de homens para uma muito aguardada expedição às colinas Negras. Jin Lao explicara-lhe que talvez conseguisse convencer os soldados a procurar o rapaz, enquanto estivessem naquelas paragens. Não que o médico tivesse qualquer esperança em relação ao resultado. Já se haviam passado seis semanas, desde que Hiram desaparecera. Imaginara todo o tipo de tristes destinos para o rapaz: morrera à fome, de frio, fora atacado por lobos, ursos ou tigres. Nem se atrevia a pensar no que o Homem de Ferro Wang podia ter feito ao rapaz, se o houvesse descoberto, e, intimamente, começara a perder a esperança.

 

E agora Nellie exigia-lhe que interviesse nos problemas de outra família. Frank Delamere, por si só, já lhe causava muitas dores de cabeça. Os seus estados de espírito eram imprevisíveis. Bebia imenso. Tinha um temperamento incerto. Se o médico dissesse a palavra errada, arriscava-se a ser posto no olho da rua. Airton mordeu os lábios, irritado. Tudo aquilo era muito característico de Delamere. Só ele podia transformar uma ocasião feliz, como era o reencontro com a filha, numa teia de complicações que dera naquilo. Não deixou de se admirar por as outras pessoas não conseguirem levar as suas vidas com a mesma ordem e a mesma certeza com que ele regulava a sua.

 

Não que se sentisse orgulhoso disso, ou se achasse superior. Pensava, antes, que a sua própria existência, comparada com a dos outros, era o mais banal possível. Estava longe de ser um Jesse James ou um Wyatt Earp, pensou, ao acorrerem-lhe à mente as histórias de cordel sobre o Oeste e outras aventuras que gostava de ler à noite, antes de dormir. No entanto, considerava uma dádiva do Céu ver a sua vida pautada pelo contentamento e pela previsibilidade. Se calhar tinha sorte pela vida que lhe fora proporcionada. Crescera em Dumfriesshire e em Edimburgo, no seio de uma família numerosa e unida. Haviam-lhe incutido desde a mais tenra idade uma fé simples e uma noção vincada do certo e do errado. Viver com um grupo de irmãs e irmãos indisciplinados ensinara-o, apelando a um mero instinto de sobrevivência, a pôr os sentimentos dos outros à frente dos seus, e a aceitar as fraquezas dos outros como eles aceitavam as suas. Quando pensava objectivamente nos Dez Mandamentos e nas Beatitudes, pareciam-lhe ser o manual perfeito para que qualquer homem tivesse uma vida feliz numa casa grande e bem dirigida. O maior de todos os méritos do cristianismo, para ele, era a sua simplicidade e o seu aspecto prático. Um homem cristão era um homem ordeiro.

 

Os dogmas de Confúcio, que ele também admirava, não deixavam de assentar em princípios de comportamento equilibrado idênticos aos dos cânones cristãos - com a ressalva de que lhes faltava o conforto espiritual que o Evangelho também prometia, a salvação no fim de um árduo dia de labuta. Sentia-se grato por, ainda muito novo, haver aprendido a língua chinesa e poder ler os clássicos. Acreditava que fora a sua identificação com o espírito dos Sábios que o levara a ir trabalhar para a China. Não tinha quaisquer dúvidas de que, um dia, aquela nação tão inteligente veria as vantagens espirituais que a cristandade também oferecia e as enxertaria facilmente na sua própria cultura. Ao contrário de alguns dos seus colegas evangelistas, sentia-se contente por ser tolerante e esperava que o resultado dos trabalhos das missões surtisse, a seu tempo, o efeito desejado. A paciência era outra das virtudes muito negligenciadas por alguns dos seus irmãos mais entusiastas. Levaria tempo, mas o Templo de Deus não se construíra num só dia. Entretanto, estava convencido de que o que fazia era útil. Era seu dever como ser humano, e ainda mais como missionário, aliviar o sofrimento de uma raça ancestral reduzida aos inenarráveis horrores da pobreza e da doença. A sua infância, a sua fé, a sua educação, os anos em que estudara Medicina na Universidade de Edimburgo e o início da sua vida adulta, em que exercera nos vales febris do Sul da China, tudo isso em conjunto o conduzira ao seu trabalho actual, culminar natural de uma existência guiada pela razão. Tinha em Nellie uma esposa perfeita, e nenhum homem recebera maiores bênçãos que os filhos que tinha. Na realidade, para ele, tudo fora muito fácil, um progresso lógico baseado nos firmes princípios que aprendera desde muito novo.

 

Frank Delamere não deixava de o surpreender. Airton não conseguia imaginar que estrela caótica aquele homem seguia na vida e que o fazia tropeçar e saltar de confusão em confusão. Não fazia sequer ideia de como abordar o assunto. Pouco sabia sobre o amor entre os jovens, para lá do que lera nas obras de Shakespeare e em diversos outros romances. Ele próprio casara com uma amiga de infância, de quem a sua família muito gostava e que acolhera de braços abertos. O seu casamento parecia ter sido tão predestinado quanto os exames finais na universidade. Um ponto de viragem decisivo no mapa da sua vida. Sentia-se inclinado para aconselhar Delamere a não desempenhar o papel do pater, da família dos Capuletos. Pelo que Delamere lhe contara, o jovem Cabot era um rapaz honrado e sério. Ele e a filha de Delamere haviam-se afeiçoado um ao outro. Além disso, o bom-senso ditava que não era conveniente opor-se a algo que não podia evitar-se. Quando as suas filhas, Mary e Jenny, atingissem a idade de casar, ele, tal como Delamere, sentiria sem dúvida os ciúmes e as emoções de um pai prestes a perder uma filha; mas estava confiante de que a razão, que até ali tão bem o servira, acabaria por prevalecer, evitando que se tornasse num tirano. Mas como convencer de tal coisa um homem tão instável como Frank Delamere? O êxito da sua intervenção ia depender em grande parte, deu-se conta entristecido, da quantidade de álcool que Delamere tivesse consumido nas últimas vinte e quatro horas. Airton sentia-se entre a espada e a parede, com um louco varrido como Millward de um lado e um bêbedo como Delamere do outro. Atravessou o mercado de peixe como um homem a caminho do cadafalso.

 

Foi por isso, com alguma surpresa que, ao entrar no pátio do hotel, o primeiro som que ouviu foi uma gargalhada poderosa de Delamere vinda do restaurante. Acompanhou-a a voz aguda de alguém que também ria. Cheio de curiosidade, o médico levantou a pesada cortina da porta e viu Delamere sentado a uma mesa com um homem novo e uma rapariga. Os três bebiam café e conversavam animadamente. Airton ficou de imediato fascinado pela beleza da jovem. Teve a impressão de vislumbrar uma cabeleira flamejante brilhando em redor de um rosto muito branco, salpicado de sardas, com olhos verdes fulgurantes e um sorriso radioso. Lançara a cabeça para trás ao rir-se, e o médico reparou num medalhão ornado por um rubi que a rapariga usava ao pescoço. O jovem, um rapaz enorme, com o cabelo louro em desalinho, estava Acostado na cadeira, com ar satisfeito; um sorriso matreiro abria-se-lhe no rosto largo, sincero, enquanto os seus olhos azuis piscavam, bem-humorados. O único pormenor que destoava naquela cena alegre era que tanto Frank Delamere como o rapaz, que Airton supunha ser Tom Cabot, tinham os olhos pisados.

 

Ao avistar o médico, Delamere levantou-se de um salto, derrubando a cadeira. Esboçou um largo sorriso de boas-vindas, deixando a descoberto um dente partido, que condizia com o olho negro.

 

- É o doutor Airton! - exclamou. - Que maravilha! Entre! Quero apresentar-lhe a minha encantadora filha, Helen Francês, e o meu futuro genro, Tom Cabot.

 

- Mas que grande reviravolta! - comentou o médico, sorrindo. - É que corria por toda a cidade o boato de que ia por aqui um pandemónio...

 

Delamere soltou uma gargalhada possante, voltou-se para Tom, que também sorria, e indicou os olhos pisados de ambos.

 

- Bom, foi necessário um certo número de conversas muito sérias para eu me habituar à ideia. Sabe como eu sou, um velho casmurro... Mas o Tom defendeu a sua causa energicamente.

 

- Já tinha reparado... - replicou Airton. - Estou a ver que tenho de fazer alguma coisa quanto a isso. Deve ter sido uma bela discussão. Minha querida - continuou, virando-se para Helen -, tenho muito prazer em conhecê-la finalmente. O seu pai falou-me muito de si, mas a realidade ultrapassa toda e qualquer descrição.

 

- Ela é ou não é uma beldade? - interrompeu um orgulhoso Delamere. - Boa de mais para este pateta alegre, mas o que é que se há-de fazer? - Ele e Tom riram-se. Helen sorriu. - Puxe uma cadeira, Airton. Puxe uma cadeira! Rapaz! Mais café. Kwai kwai kwai!

 

Servido o café, Airton dirigiu-se a Helen.

 

- Receio que, assim que conhecer melhor Shishan, minha querida, se aperceba de que na nossa pequena comunidade os boatos se propagam tão depressa quanto fogo em palha seca. Estávamos todos muito preocupados com o que tínha ouvido acerca das... conversas entre o seu pai e o seu noivo. Fico muito contente por ver que acabaram por se entender. Permita-me que seja o primeiro a felicitá-la.

 

O sorriso de Helen era tão contagiante quanto o seu riso cheio de vivacidade.

 

Obrigada, doutor Airton - agradeceu, com uma voz ligeiramente rouca mas nem por isso menos agradável. Não se preocupe com o papá e o Tom. Asseguro-lhe que são sociáveis. Na verdade, a minha única dificuldade é decidir qual deles é o mais infantil... Se o meu pai, se o meu noivo...

 

- Que descaramento, HF! - fingiu indignar-se Tom, sorrindo. - Já pode imaginar que tipo de casamento será o meu! Não faltará muito para que comecem a chamar-me Tom Pau-Mandado! Doutor, é para mim uma honra conhecê-lo - saudou, estendendo a mão enorme. - Sir Claude MacDonald falou-nos de si.

 

- É um jovem cheio de sorte, Mister Cabot. Já marcaram a data do feliz evento? - perguntou Airton, puxando a sua mão do torno que constituía o aperto de Tom.

 

Delamere apressou-se a intervir:

 

- Pensei que seria melhor esperarmos alguns meses para que todos nos possamos conhecer melhor. O Tom tem de viajar bastante por causa do seu novo emprego e gostava de passar uns meses com a minha filha antes de a entregar de vez a este verdadeiro pugilista. Temos muito tempo. Não há pressa. Até porque não vamos separar-nos assim tanto até lá, pois não, Tom?

 

- Tem toda a razão - concordou o jovem, algo aborrecido.

 

- Uma decisão muito sensata - comentou o médico -, mas isso não nos impede por certo de celebrar o noivado. Uma coisa tão importante como esta não acontece todos os dias em Shishan. Como já vos disse, a Nellie e eu gostaríamos de vos oferecer um jantar de boas-vindas. Seria uma honra para nós se pudéssemos conjugá-lo com uma festa de noivado.

 

Helen virou-se para o noivo e, para saber a sua resposta, chutou-o e colocou a mão sobre a dele.

 

- Que te parece, Tom?

 

- Por mim, está bem. Parece uma ideia genial. É muita generosidade sua, doutor.

 

- Então, fica combinado! - replicou Airton. - Que tal na próxima sexta-feira? Convidaremos todos os estrangeiros residentes em Shishan e faremos uma grande festa.

 

- Todos menos os malditos Millward - resmungou Delamere. - Não queremos uma missa.

 

- Sim, talvez seja melhor não convidar os Millward. Não se dão bem com as freiras e, neste momento, não constituem uma companhia alegre. Sabe que ainda não encontraram o filho deles que fugiu?

 

Helen quis conhecer todos os pormenores e, durante a meia hora seguinte, o médico conversou com o alegre trio, respondendo às inesgotáveis perguntas da rapariga acerca da vida em Shishan. Estava tão impressionado como encantado pela inteligência e vivacidade da jovem. Também simpatizara com Tom, apesar de este parecer ter acabado de sair de um campo de râguebi.

 

Helen contava os incidentes da sua viagem desde que saíra de Pequim, quando Delamere consultou o relógio de bolso.

 

- Desculpem ter de vos interromper - explicou -, mas o Tom e eu vamos almoçar com o velho Lu e os outros comerciantes. Será bem-vindo se quiser juntar-se a nós, Airton. Desculpa, minha querida - acrescentou, dirigindo-se à filha -, mas vou ter de te deixar sozinha por uma hora ou duas. São os negócios. Tom, seja bom rapaz e traga os presentes que eu embrulhei. Estão no meu quarto.

 

- Eu vou com ele - ofereceu-se Helen. - Ainda tenho muito que tirar das malas. Adeus, doutor. Foi um prazer falar consigo. Estou ansiosa por conhecer Mistress Airton, na sexta-feira.

 

- Tem a certeza de que me quer nesse seu almoço? perguntou Airton, assim que o casal se afastou. - É uma reunião de negócios, segundo creio.

 

- Na verdade, é apenas para apresentar o Tom aos comerciantes. Para que ele se torne amigo dos Celestes. Então, o que achou da minha menina? Não é uma beleza? É igual à pobre mãe.

 

Achei que era encantadora - respondeu o médico. - E também gostei do Cabot.

 

- É bom rapaz - concordou Delamere. - Sabia que o batedor da equipa do Middlesex? Em noventa e dois. Cervez, saiu do campo devido a um lançamento de W. G. Grace em pessoa. Espantoso, não acha?

 

O médico fitou os olhos injectados de sangue e o rosto macilento de Delamere. Apesar do seu aparente bom humor, detectou uma ponta de melancolia na voz do amigo.

 

- Então, acabou por se habituar à ideia? - quis saber. É que a Nellie me mandou até cá para vos ajudar a fazer as pazes.

 

- Eu calculei logo. Tem uma mulher bondosa, Airton. Quer saber como eu me sinto? Digamos que não me sinto propriamente eufórico. Receber a minha filha para a ver ser-me tirada de imediato é como uma punhalada que vai directa ao coração. Um golpe no meu orgulho, para lhe ser sincero, como se me tivessem pregado uma partida. Mas eu gosto do Tom. Parece ser dos meus. Não podemos antipatizar com um homem que está disposto a esmurrar o olho do futuro sogro. Isso só revela que leva a vida a sério, não concorda?

 

- Tenho a certeza de que não foi o Tom o primeiro a dar um murro.

 

- Agora que me fala nisso, não creio que tenha sido ele, de facto... Não me tenho comportado lá muito bem, pois não?

 

- Herr Fischer ficou assustado quando lhe lançou à cabeça a garrafa de schnapps. O schnapps é sagrado para ele, mas estou certo de que não vai guardar-lhe rancor por isso. Todos compreenderam que deve ter sido um choque para si receber a notícia do noivado da sua filha depois de não a ver há tanto tempo. O Fischer saberá desculpá-lo.

 

- Fico contente por ouvir isso! A minha vida não tem sido propriamente um mar de rosas, ultimamente.

 

- Ah, não?

 

Delamere pareceu mais embaraçado do que era habitual nele.

 

- Nada de muito grave. Foi uma indiscrição da minha Parte mencioná-lo. São as vicissitudes da vida e nada mais...

 

- Se é algo relacionado com as suas visitas àquele hediondo Palácio dos Prazeres, então, não quero saber de nada A não ser que você me consulte a nível profissional. Não seri a primeira vez que me procuraria, baixando as calças para levar com uma dose de mercúrio...

 

- Deus me livre! Não é nada desse género. Você sabe como deixar um homem atrapalhado, não é assim? Houve certas complicações. Nada mais. Portei-me como um tolo. Mas já me recompus. Na realidade, estou a pensar redimir-me.

 

- Fico contente por ouvir isso, e diria que veio mesmo a calhar, com a chegada da sua filha e tudo.

 

- Meu Deus, Airton, você devia ter ido para pregador! Mas tem razão. Tenho pensado muito, nestes últimos dias.

 

Se Delamere queria desabafar com o médico, teria de ficar para outra altura, porque Tom apareceu, com os presentes debaixo do braço, e os três dirigiram-se para o restaurante da rua principal que Delamere escolhera para o almoço. Atravessaram a sala de jantar apinhada do piso térreo e subiram para o andar seguinte, onde Lu Jincai, Tang Dexin e Jin Shangui os esperavam numa sala privada.

 

O médico conhecia-os a todos bem. Gostava de Lu Jincai, que, apesar da sua aparência juvenil, era um homem sério, de carácter sólido, e que irradiava honestidade. “De uma rectidão a toda a prova”, pensou. Para um homem ainda relativamente novo, possuía já uma circunspecção impressionante - embora atenuada por um tacto natural e um malicioso mas generoso humor. Tang Dexin, o rei do estanho, gostava de boatos e era um fala-barato, com prelecções constante acerca da sua dieta e, sobretudo quando em presença de senhoras, sobre os benefícios de uma vida sexual saudável para uma maior longevidade. E quanto a isso saíra-se bem. Pelos cálculos do médico, Tang Dexin devia ter pelo menos oitenta anos. Era um homem baixo, escanzelado, com a pele encarquilhada num rosto alegre e vincado por rugas. Fazia lembrar a Airton um duende brincalhão. O terceiro convidado, Jin Shangui, era um indivíduo gordo, de rosto macilento, que devia andar perto dos cinquenta anos. Estava sempre a rir-se, com os olhos reduzidos a duas fendas por detrás dos óculos, lóbulos das orelhas carnudos e lábios grossos e húmidos que tremiam quando ria. Na conversa, tendia aos elogios exagerados que roçavam falsidade. Negociava em tudo aquilo que pudesse. O médico não confiava nele. Jin Shangui era demasiado melífluo e lisongeiro para inspirar confiança. Naquele dia, contudo, os três homens revelaram-se uma alegre companhia e mostraram-se até excessivos nas suas boas-vindas a Delamere e ao seu novo assistente.

 

Delamere não poupara dinheiro na ementa. Pouco depois, a mesa estava coberta de suculentos pratos do Norte - guisados gordurosos, pés de porco, peixe-mandarim ao vapor, pata de urso e bossa de camelo, tudo acompanhado por uma montanha de massa e de pão cozido no vapor, pratos de couves e uma espécie de tiras de massa, grossas e transparentes, que boiavam num molho escuro de vinagre. Assim que Delamere anunciou o noivado da filha, os mercadores insistiram em abrir uma garrafa de vinho gaoliang. O médico argumentou que não podia beber porque tinha de efectuar uma operação à tarde. Detestava o travo amargo e áspero daquela bebida, e sabia que se aceitasse uma taça seria forçado, segundo o ritual, a beber mais. Delamere, por seu lado, não tinha quaisquer problemas em beber à tarde, nem em qualquer outra altura do dia, aliás, e, pouco depois, todos os convivas faziam brindes, com voz roufenha, tecendo elogios cada vez mais floreados e disparatados, à medida que esvaziavam taça atrás de taça. Airton reparou que Tom aguentava bem a bebida. O seu chinês não era tão fluente quanto o de Delamere nem quanto o dele próprio, mas era adequado para a ocasião, e o jovem parecera haver estabelecido rapidamente uma ligação com Lu Jincai, que lhe falava calmamente sobre a sua próxima visita a Tsitsihar. Esperava que Tom o acompanhasse, assim que tivesse a sua vida organizada em Shishan.

 

- O Tom é o homem indicado, Mister Lu - sorriu Delamere. - Conhece o processo do fabrico de cristais melhor do que eu. Não tenho quaisquer dúvidas de que vai impressionar o velho Ding.

 

- Já expliquei a Mister Tom que devíamos partir quanto antes - replicou Lu. - É uma longa viagem e devemos chegar ao nosso destino antes dos primeiros nevões.

 

- A primeira remessa deverá ficar pronta daqui a três semanas. Por essa altura, já o Tom estará preparado, não é verdade, meu velho?

 

- Estou ansioso por me pôr a caminho, Mister Delamere - respondeu o jovem.

 

Jin Shangui propôs então um brinde à nova sociedade comercial. O queixo tremeu-lhe quando se pôs de pé. Tentando manter o equilíbrio, ergueu a taça.

 

Ao De Falang Xiansheng, príncipe dos negociantes estrangeiros, e a todos os seus esforços comerciais! E a Lao Lu, nosso velho amigo! Que juntos possam conquistar todo o Noroeste da China! E que tragam felicidade aos seus descendentes durante dez mil anos!

 

- Dez mil anos! - gritou Tang Dexin, mostrando as gengivas num sorriso matreiro. - E ao assistente do De Falang, este jovem garanhão que vai casar com a filha dele! E que, quando as suas sementes se misturarem, que ela lhe possa fazer o mais gordo dos netos e que ele cresça forte e próspero como De Falang! - rematou, batendo com a mão ossuda no joelho de Tom.

 

- Ganhei! Ganhei! - vociferou Delamere, emborcando de seguida a taça. - Vamos, Tom, beba tudo de uma vez! Eles estão a brindar aos netos que vocês me darão!

 

Corando, o jovem esvaziou também a sua taça.

 

- Ele é muito forte! - comentou Tang, acenando em sinal de aprovação para Delamere, enquanto apertava a perna de Tom. - A sua filha fará netos grandes. Netos muito grandes e gordos! - E lançou a cabeça para trás com uma risada estridente. Então, de súbito, como costuma acontecer com as pessoas de idade avançada, a cabeça tombou-lhe sobre o peito e, ainda com um sorriso estampado no rosto, adormeceu, debruçado para a frente como um pardal encolhido no poleiro.

 

Jin Shangui retomou o assunto do carregamento de álcali.

 

- Não está preocupado, Lao Lu? - perguntou. - Uma mercadoria tão valiosa a atravessar, primeiro, as colinas Negras e, depois, ao longo da província... Os bandidos estão a tornar-se cada vez mais ousados. Se o Homem de Ferro Wang souber...

 

- O Tom já enxotou um grupo de bandidos, não é verdade, Tom? - Delamere olhou, orgulhoso, para o futuro genro - Foi durante a viagem até cá. Conte-lhes como foi que os afugentou.

 

Oh, eu ouvi falar disso - interveio o médico. – Foi nas colinas Negras, não é assim? O mandarim está sempre a dizer para não me preocupar, mas esse tipo de incidentes ocorre com tanta frequência...

 

Tom sorriu.

 

- Bom, doutor, a HF, quero dizer, Miss Delamere ficou convencida de que caímos numa armadilha armada pelo Rei dos Ladrões em pessoa. Na realidade, estávamos todos um pouco enervados, depois de assistirmos às execuções de Fuxin, de ouvirmos as histórias sobre os Boxers e tudo o resto. Assim, quando deparámos com aqueles homens que seguiam à nossa frente, com espingardas às costas... Foi naquele desfiladeiro escarpado, com as cataratas, numa abertura por entre as florestas de abetos. Eram uns seis homens e, quando saíram de detrás dos troncos das árvores, formavam um grupo assustador, o que talvez nos tenha levado a tirar conclusões precipitadas. Com a escuridão e a chuva iminente, ficámos todos assustados. De qualquer maneira, o Henry, quero dizer, Mister Manners, pegou na espingarda e disparou para o ar. Os homens, fossem quem fossem, desapareceram como fantasmas. E lançámos as nossas mulas e os nossos cavalos a trote, para sair dali tão depressa quanto possível. Muito provavelmente, eles eram inofensivos e não passavam de caçadores ou viajantes como nós. Não eram assim tão ameaçadores, apesar de o Henry ter agido de forma decisiva, forçando-nos a ficar de vigia durante toda a noite. E foi tudo. Não é uma grande história, quando contada à luz do dia.

 

- Ah, Mister Tom é tão modesto! - exclamou Jin Shangui. - Isso merece certamente um brinde! À sua conduta heróica! Ganhei! E à sua filha, De Falang! Novamente Ganhei! Que experiência aterrorizadora! Verdadeiramente aterrorizadora! - repetiu, piscando os olhos por detrás dos óculos. - Ao que chegou a lei e a ordem pública, quando um homem, para tratar dos seus negócios, não pode viajar sem medo! E ainda pretende percorrer de novo esse caminho com Lao Lu? Em direcção a Tsitsihar, não foi o que disse? Pois admiro a sua coragem! Quando disse que partia?

 

- Quando pensamos partir? - repetiu Delamere.

 

Bom, diria que...

 

- Ainda não marcámos nenhuma data - interveio Lu calmamente. - Não é nosso desejo encorajar os mexericos ou tentar a Providência. Até porque já reparei - acrescentou, lançando um olhar sardónico a Delamere - que os assaltos às caravanas se seguem à publicidade que alguém faz acerca do dia em que elas iniciam a viagem.

 

- De facto... - resmungou Delamere, envergonhado. O segredo é a alma do negócio

 

- Tem toda a razão - concordou Jin. - Dizem que o Homem de Ferro Wang tem espiões por toda a cidade. Isto é apenas uma conversa entre amigos. Portanto, pode falar em segurança aqui mas tem boas razões para se mostrar cauteloso. De Falang, deve seguir o sábio conselho de Mister Lu e manter a discrição.

 

- Neste caso, não há grandes motivos para preocupações - replicou Lu -, mesmo que o Homem de Ferro Wang estivesse aqui e nos ouvisse. Estamos somente a desenvolver o nosso negócio e não transportaremos nada que seja valioso para ele. Fico-lhe agradecido pelo seu cuidado, Lao Jin, mas apenas levaremos amostras e alguns cristais sem qualquer valor, e na viagem de regresso nem sequer traremos um pagamento em dinheiro.

 

- É verdade - corroborou Frank. - Não voltaremos carregados com sacas de dinheiro. Só começaremos a efectuar os primeiros carregamentos depois da Primavera. Nessa altura, sim, haverá um ou dois taéis no cofre. Meu Deus - exclamou, olhando para Lu, que o fitava com um sorriso irónico - fui novamente indiscreto?

 

Lu Jincai riu-se e ergueu a taça.

 

- De Falang Xiansheng é uma montanha de tacto e de discrição e estou orgulhoso por tê-lo como amigo e como sócio! Deixe-me também brindar à felicidade da sua filha e do seu futuro genro, que tive a honra de conhecer.

 

Brindaram e esvaziaram as taças. O velho Mr. Tang despertou da sesta e os seus olhos estreitaram-se numa expressão de malícia.

 

A sua filha tem ancas largas, De Falang Xiansheng?

 

Deve ter ancas largas para fazer filhos grandes e gordos. E você jovem, não deve ter demasiada pressa em desaguar a essência da sua virilidade, quando fizerem as nuvens e a chuva. Faça durar o prazer dela, durante tanto tempo quanto conseguir. Quanto mais lhe der prazer, mais os vossos filhos serão fortes.

 

- Obrigado pelo conselho - agradeceu Tom. - Pode estar certo de que não me esquecerei.

 

As criadas trouxeram fruta - maçãs, dióspiros e pêras e pouco depois o grupo saía. Jin Shangui ajudou Tang Dexin, que parecia ser o mais embriagado, a passar pela porta da sala e a descer a escada até à cadeirinha que o esperava, ladeada pelos carregadores. Os outros seguiram-no. Houve mais congratulações, todas feitas em voz alta: Jin Shangui propôs-se dar um grande banquete de casamento ao jovem casal; o velho Mr. Tang, por sua vez, ofereceu-se para contratar uma trupe da ópera para a ocasião, e Frank tentava oferecer um charuto a todos aqueles com quem se cruzava. Lu agarrou o braço do amigo.

 

- Posso dar-lhe uma palavra, a sós, De Falang Xiansheng?

 

- E o Tom? E o médico?

 

- Desceram a escada com os outros e estão a conversar animadamente.

 

- Eu sei, eu sei. Vai pregar-me um sermão por eu ter falado de mais sobre o nosso negócio em Tsitsihar. Peço imensa desculpa mas supunha que estávamos entre amigos...

 

- Não é prudente revelar seja o que for mesmo aos nossos amigos. O senhor não conhece a China assim tão bem. Existem diversos tipos de lealdade e vários conflitos que fazem com que a amizade seja uma mercadoria de valor flutuante, mesmo que a valorizemos mais do que ninguém. Por favor, Peço-lhe que não fale mais com Mister Jin Shangui sobre as datas de partida das nossas caravanas de mulas.

 

- O velho Jin? Não pode desconfiar que o Jin fosse capaz...

 

- Não acha estranho que as caravanas dele tenham sido assaltadas várias vezes mas que nunca lhe tenham roubado nada?

 

- Isso deveu-se certamente ao facto de ele ter bons guardas que afugentaram os ladrões, tal como o Tom fez.

 

- É provável - sorriu Lu. - E também nós devemos armar as nossas caravanas. A data da partida será mantida em segredo. Em segredo, De Falang. - Os olhos de Lu brilhavam com uma expressão de afecto bem-humorado. - Mas não quero falar consigo só de negócios - as suas sobrancelhas espessas uniram-se, num esgar de preocupação. - Recebi o recado que me enviou acerca da sua amiga do Palácio dos Prazeres Celestiais, e preparei um presente e uma carta que serão adequados para ela. Não, não me agradeça, mas pense bem, De Falang. Deseja realmente pôr um ponto final na relação?

 

Frank suspirou.

 

- Provavelmente, é melhor para todos - respondeu, em voz sumida. - Ouça, meu velho, a Mãe Liu foi tão explícita acerca dos factos da vida que até mesmo um bárbaro imbecil como eu pode compreender. Não havia futuro naquilo. Ela é uma prostituta e eu um velho idiota.

 

- Aconselho-o a nem sempre se fiar nas palavras de uma mulher como Mãe Liu. Não consegui encontrar a Shen Ping, quando fui visitá-la ontem à noite...

 

- Provavelmente, estava a divertir-se com outro homem, nos andares superiores. Ou melhor, a tocar uma flauta de jade qualquer... - retorquiu Frank, com patente azedume.

 

- Disseram-me que ela estava doente, indisposta. Reagiram de forma estranha quando perguntei por ela. Mas hei-de ficar a saber mais coisas... Entretanto, acho que está a ser demasiado severo para com a rapariga. Pelo que compreendi, estava ansiosa por sair dali para ir viver consigo.

 

- Para que pudesse continuar a exercer a sua profissão, nos meus aposentos? Para que, em vez da Mãe Liu, fosse eu o seu proxeneta? Então, Lu, as pessoas não mudam assim. Ela fez o que quis de mim, mas agora acabou-se.

 

Lu encolheu os ombros.

 

- Como queira. Entregar-lhe-ei o seu presente e a sua carta, ou incumbirei alguém de o fazer...

 

Frank apertou ambas as mãos do sócio.

 

- Obrigado, meu velho. Que seria de mim sem você?

 

- Agora, tem novamente a sua filha consigo, e um bom genro. É um homem de sorte.

 

Sim, penso que sim, penso que sim – retorquiu Frank.

 

Às sete da tarde de sexta-feira, os Airton já haviam ocupado os seus lugares na sala de estar, e estavam prontos para receber os convidados. Nellie deitara os filhos, Jenny e George, uma hora antes, mas assim que apagara o candeeiro e saíra do quarto duas figuras em camisa de dormir tinham saído das respectivas camas e descido a escada, escondendo-se na penumbra, para não serem descobertas. Naquele momento, estavam ambos escondidos atrás do bengaleiro, junto à porta de entrada, mal contendo a excitação. Ansiavam por ver a senhora enforcada que ressuscitara milagrosamente. A mãe insistira, como não podia deixar de ser, que a história de Ah Lee não passava de uma mentira pegada e que Miss Delamere sempre estivera viva e de boa saúde. Contudo, os dois irmãos já dispunham de suficiente experiência de lidar com os adultos para saber que a verdade era composta por várias camadas e que nunca se devia acreditar totalmente no que se ouvia à primeira.

 

Além disso, tanto Jenny como George não tinham grande confiança na sinceridade dos pais, desde a morte prematura de Archie, o cão de raça chow do pai. Quando Archie fora atropelado por uma carroça, Ah Lee sentara-os de imediato na cozinha e contara-lhes todos os pormenores, mesmo os mais sangrentos. Descrevera como o pai olhara para a espinha e as patas partidas do animal e, ali mesmo, lhe partira o pescoço, Para que ele não sofresse mais. As crianças compreendiam por que motivo o pai fizera aquilo: nas histórias que o médico gostava de lhes ler, os cobóis estavam sempre a enfiar balas nas cabeças dos seus bravos cavalos feridos. Os dois irmãos ficaram chocados com a história que os pais lhes haviam contado nessa mesma tarde, durante o chá. Na sua versão adocicada dos acontecimentos, Archie sofria, havia muito, de uma doença incurável O que era estranho, porque parecia em plena forma quando brincara com as crianças naquela mesma manhã. Deus decidira aliviá-lo do seu sofrimento; ele morrera calmamente, a dormir, dando um último latido e uma última lambidela ao dono, antes de rolar para o lado, e agora estava no paraíso dos cães. Fora uma versão sentimental e inverossímil, e que envergonhara Jenny e George. Supunham que o choque pela morte de Archie fora tão grande para os pais que nenhum deles queria encarar a realidade e que tentavam reconfortar-se com aquela mentira. Eram demasiado educados para contradizer o pai, quando ele lhes começara a falar da sepultura que ia fazer para Archie na encosta. Evitaram deixá-lo ainda mais desgostoso revelando que tinham visto Ah Lee levar o corpo de Archie para a cozinha e enfiá-lo numa panela para fazer um guisado.

 

Por conseguinte, naquela noite, ao julgar as probabilidades de Miss Delamere se ter ou não enforcado, George e Jenny sentiam-se inclinados a dar o benefício da dúvida a Ah Lee, que consideravam um homem sincero e duro, mas, acima de tudo, uma testemunha de confiança. A descrição de Ah Lee da senhora enforcada fora muito convincente. O facto de o cadáver voltar a viver e de ir jantar a casa deles fora uma surpresa, mas os dois irmãos já tinham ouvido falar de coisas mais estranhas. Sabiam que o campo estava cheio de fantasmas, de vampiros e de fadas-raposas. AhLee contava-lhes histórias arrepiantes, à tarde, quando eles se sentavam na cozinha para o ver arear as pratas ou engraxar os sapatos. Certa vez, Ah Sun entrara, muito perturbada, dizendo que vira o fantasma de um dos doentes por entre os arbustos do jardim. As duas crianças haviam-se habituado a aceitar que aconteciam coisas estranhas para lá da propriedade em que viviam. George, aliás, era da opinião que, se Miss Delamere se enforcara realmente, então o mais lógico era que se tivesse transformado numa fada-raposa. Assim, era-lhe perfeitamente possível ir jantar a casa deles com a sua anterior aparência. Toda a gente sabia que as fadas-raposas eram raparigas bonitas que esperavam nas bermas da estrada, à noite, atraindo estudantes inocentes para as suas casas, onde lhes davam a beber vinho para depois lhes rasgarem as gargantas, quando eles adormeciam. Mas AhLee também dissera que, na maior parte das vezes, eram os fantasmas de mulheres que se haviam enforcado, depois de serem rejeitadas pelos namorados.

 

Tal como Miss Delamere - concluíra George.

 

- Mas o namorado não a rejeitou - contrapusera Jenny. - O pai é que não queria deixar que ela se casasse.

 

- Vai dar ao mesmo - teimara George. - Ela não podia casar-se e foi por isso que se matou.

 

- Mas eles vão casar-se, afinal. Não é uma festa de noivado que vamos ter em casa, esta noite? Ora, se ela vai casar-se, não pode ter-se suicidado, pois não?

 

- Está bem. Mas quem te diz que é a verdadeira Miss Delamere? Talvez eles não saibam que ela se enforcou e se tornou uma fada-raposa. E se Mister Delamere agora autoriza o casamento é porque foi hipnotizado pelos poderes mágicos dela.

 

- Talvez - anuíra Jenny, algo desconfiada. - Vamos ter de ver se ela tem marcas no pescoço. A corda deve ter deixado nódoas negras.

 

Agachados atrás do bengaleiro, viam Ah Lee a acompanhar os convidados até à sala. Os primeiros a aparecer foram os homens que trabalhavam no caminho-de-ferro: o Dr. Fischer e o seu engraçado assistente, Charlie Zhang, sempre sorridente e tagarela, com a sua túnica de seda. Jenny ficava sempre contente quando Mr. Charlie os visitava. Era o chinês menos chinês que ela jamais conhecera, e ansiava pelos presentes - sobrescritos encarnados cheios de dinheiro, guloseimas e, certa vez, uma boneca vestida de camponesa - que lhe anienhava nas mãos, com um piscar de olho e um sorriso, numa altura em que a mãe estivesse de costas voltadas. Sabia que ele devia ter-lhe trazido um novo presente mas, tal como George, preferiu permanecer no esconderijo até à chegada da misteriosa senhora. Ao contrário do irmão, só em parte acreditava que Miss Delamere pudesse ser uma fada-raposa, mas, mesmo assim, estava excitada e, ao mesmo tempo, assustada. George tocou-lhe na mão.

 

- Jen, Jen, olha! Ela chegou! - sussurrou-lhe. - Caramba! E usa uma gargantilha!

 

Uma jovem lindíssima despia o casaco. Tinha braços muito brancos, pintalgados de sardas, e cabelo ruivo, cujos reflexos, à luz das velas, iam da cor de avelã, à da cereja e à do âmbar. Usava um vestido de noite comprido, de tafetá purpúreo, adornado com renda, e tinha os olhos verdes de um gato. Fazia lembrar a Jenny uma das princesas do seu livro de histórias celtas de encantar. À volta do pescoço, trazia uma fita espessa e preta, da qual pendia um grande medalhão com uma ametista. Atrás dela, entregando os chapéus a Ah Lee, estavam Mr. Delamere e um homem enorme, de cabelo louro e rosto bondoso.

 

- Temos a prova! - exclamou George, muito animado. Ela escondeu as marcas do pescoço!

 

- Mas é linda... - sussurrou Jenny.

 

- Claro que é. Todas as fadas-raposas são lindas. É por isso que são tão perigosas.

 

- Pois eu acho que ela está viva e vou prová-lo! Enchendo-se de coragem, Jenny saiu do esconderijo e fez uma pequena vénia.

 

- Olá! - exclamou o homem muito alto. - Como te chamas?

 

- Eu sei. Deves ser a Jenny - disse a senhora, com uma voz doce. - Eu chamo-me Helen Francês e tenho muito prazer em conhecer-te - Jenny estacou, assustada. Como sabia aquela senhora o nome dela? Seria, afinal, uma fada? Sentiu um leve perfume e uma madeixa de cabelo ruivo roçar-lhe na face, quando Miss Delamere se inclinou para a frente e a beijou ao de leve. A pequenita fechou os olhos, em parte com medo, em parte por se sentir encantada.

 

Quando voltou a abri-los, o grupo dos Delamere, incluindo a bela senhora, já tinha atravessado o corredor que conduzia à sala de estar, onde os pais aguardavam para cumprimentar os convidados. Um outro homem estava agora à sua frente, e olhava para ela com uma expressão divertida. Jenny nunca tinha visto alguém tão bem vestido nem tão elegante. Usava um fato de gala preto, por baixo de uma capa vermelha, e guardava as luvas brancas no interior da manga. Tinha um bigode curto e risonhos olhos azuis. Jenny achou que devia ser um príncipe ou, no mínimo, um duque.

 

- Olá - cumprimentou-a. - O meu nome é Manners. És a minha bonita anfitriã? Vou dizer-te uma coisa, minha querida: mantém essa tez alva de pêssego e garanto-te que, daqui a dez anos, serás a rapariga mais popular de todo o St. James’s.

 

E também o belo homem se debruçou e a beijou na testa.

 

Jenny petrificou. Só quando ficou sozinha e George, que entretanto saíra de detrás do bengaleiro, a puxou pela manga, se atreveu a abrir os olhos.

 

- Viste alguma marca ou cicatriz? - perguntou-lhe o irmão.

 

- Não. Ela é linda. Parece um anjo.

 

- É o que dizem todas as vítimas das fadas-raposas sentenciou George. - Então, não ficou nada provado. Também não gostei daquele homem moreno. Achas que é ele o namorado?

 

Jenny mal conseguia falar.

 

- Vá lá, Jen - insistiu George. - Ela não te mordeu, pois não? Estás em transe? É melhor voltarmos para o quarto, antes que a mamã ou o papá nos apanhem.

 

Porém, Jenny, deixou-se ficar onde estava, ainda enlevada, olhando para a porta da sala de estar, de onde vinha o burburinho das conversas.

 

- Ah, quem me dera ser crescida, poder ir até ali e estar com eles - disse por fim, com um suspiro. - E ouvir o que eles dizem. Não achas que são as pessoas mais excitantes que alguma vez conhecemos?

 

“Excitante” não seria a primeira palavra que ocorreria a Helen Francês. Ao olhar à sua volta para os rostos daqueles desconhecidos, sentiu-se deslocada. Quando sonhava em juntar-se ao pai, as suas fantasias de colegial formavam sempre uma imagem de Shishan como um local misterioso, em que pulsava uma vida exótica, sombria, cheia de perigos e de mil encantos. Nunca imaginara que poucos dias após a sua chegada estaria a jantar numa réplica exacta de casa inglesa da classe média que julgava haver deixado para trás. A sala de jantar, de paredes forradas com painéis de madeira, não era muito diferente da sala de jantar da sua tia, em Crowborough. Nem que os seus anfitriões fossem tão convencionais como o eram o Dr. Airton e a esposa.

 

Sabia que estava a ser ingénua. De que outra forma se comportariam os Ingleses em solo estrangeiro? Seria realmente de espantar que longos exílios conduzissem ao desejo de recriar o ambiente reconfortante dos lares da terra natal? Poderia ela esperar que Mr. e Mrs. Airton vivessem num palácio? Apesar de tudo, não conseguia evitar alguma desilusão. O que desejava acima de tudo era deparar com o exótico e experimentar novas sensações. Sentira-se maravilhada durante a viagem. O que vira e vivera havia aumentado as suas expectativas e imaginara Shishan, o destino mágico que colorira os sonhos da sua infância, como uma Xanadu de todas as delícias. No entanto, até àquele momento, tudo o que vira resumia-se a uma cidade quase em ruínas, nauseabunda, com ruas poeirentas e habitantes estranhos, quase repugnantes. Agora, encontrava-se novamente na monótona normalidade da qual, ao longo da sua curta existência, tanto desejara sair.

 

Com crescente desânimo e desinteresse, escutou Mrs. Airton e Herr Fischer, o homem que conhecera ao chegar ao acampamento, a conversar sobre o tempo. Nada tinha contra Herr Fischer, mas tudo nele era lúgubre. A cabeça saía-lhe, como a de uma foca, de uma casaca fora de moda. Com o cabelo cortado à escovinha, no estilo prussiano, o rosto bronzeado, um bigode grisalho e mãos manchadas e calejadas, parecia trazer consigo uma aura de fuligem e de poeira do acampamento. Os seus olhos pálidos piscavam como os de uma ratazana afável, enquanto inundava Helen de elogios laboriosos e excessivamente floreados. Lembrava-lhe um dos comerciantes em cuja loja a tia fazia compras.

 

Evidentemente, as duas freiras italianas, com os seus hábitos negros, teriam sido a nota discordante num jantar no Sussex. E não havia nada de convencional no chinês de rabicho e túnica de seda que tagarelava alegremente num inglês algo pedante, enquanto levava a colher de sopa à boca ou bebia um gole de vinho, revirando os olhos, explicando muito sério as freiras, por entre garfadas de comida, porque preferia o camembert e o brie franceses aos queijos suíços e holandeses. No entanto, o exotismo de Charlie Zhang num cenário tão comum vinha apenas confirmar a desilusão de Helen, por ser a excepção à regra. Charlie Zhang era como que uma paródia, em traje de cerimónia, do exotismo que ela esperara encontrar em Shishan, o estrangeiro excêntrico que fora convidado para o chá e em relação ao qual as raparigas de fino trato, como ela, tinham aprendido a ser particularmente educadas, por modo a não ferir a sua susceptibilidade. Ao fim de uma hora ou mais de um embaraço cortês, mandar-se-ia chamar um carro, e tudo voltaria à normalidade no típico lar inglês.

 

À medida que a noite avançada, Helen experimentava uma sensação gradual de futilidade e enfado. Era como se uma armadilha se fechasse à sua volta. Apetecia-lhe gritar ou fazer uma cena, ou responder a palavras de cortesia e a banalidades com algo tão ultrajante ou chocante que provocasse olhares indignados. Quando se apercebeu de que aquelas pessoas seriam a sua única companhia durante os próximos meses e anos, sentiu-se invadir pelo pânico. Até mesmo o médico, de quem gostava, lhe parecia ridículo naquele momento. Com o seu bigode farfalhudo e descorado, os seus olhos curiosos, os seus modos amáveis e ligeiramente trapalhões, podia ter saído das páginas de As Aventuras Extraordinárias do Sr. Pickwick; o certo é que não havia um papel que pudesse desempenhar no género de romance de aventuras que idealizara descobrir na China. Desanimada, observou o médico quando este, com os polegares enfiados por baixo do colete, olhou para os copos de vinho, certificando-se de que nenhum estava vazio, escoltou os convidados até aos seus lugares e insistiu para que se servissem do primeiro prato, como se essa actividade, por si só, pudesse de alguma forma converter o jantar num êxito. Quanto ao pai, embora gostasse muito dele, com a sua gravata branca e a casaca que lhe assentava mal, o cabelo alisado com brilhantina e os bigodes revirados, parecia-lhe uma caricatura inqualificável. Prometera-lhe portar-se dignamente, mas o seu rosto corado e as gargalhadas estrondosas traziam consigo a atmosfera dos pubs e do music hall.

 

Desejava ter despertado a atenção de Tom, como fizera na mesa do comandante, no paquete, para poder partilhar com ele, por meio de uma troca de olhares, o ridículo daquela cena, mas Tom estava embrenhado a conversar com Mrs. Airton. Em vez disso, Helen deu consigo a olhar para Henry Manners, que, pela sua elegância, em traje de gala, e a sua postura lânguida, era a figura mais incongruente do jantar. Os seus modos revelavam que estava habituado a um mundo mais cosmopolita. Imaginou que ele podia ter saído, um minuto antes, de um jantar no Reform Club ou no White’s, para ir ocupar o seu lugar naquela mesa provinciana. Julgou detectar-lhe uma curva de enfado nos lábios, enquanto escutava a anfitriã, com aparente concentração e uma cortesia irrepreensível. No entanto, não a enganava. De súbito, Manners virou os olhos azuis na sua direcção e moveu a cabeça, quase imperceptivelmente, dando a entender que sabia que ela o estava a observar. Sem se dar conta, ela sorriu e, sentindo que ia começar a rir-se, apressou-se a beber um copo de água. Os olhos de Henry Manners enrugaram-se, divertidos, e abriu a boca num sorriso, fazendo brilhar os dentes. Aquele entendimento tácito entre ambos durou até ao fim do jantar.

 

Depois do primeiro prato, o médico fez tilintar ao de leve o copo e levantou-se para proferir o discurso de boas-vindas aos recém-chegados. As duas freiras bateram palmas, com os olhos brilhantes de excitação, quando Airton anunciou o noivado de Tom Cabot e de Helen Francês. Se os seus convidados o permitissem, adoptaria o costume chinês de fazer os discursos antes do prato principal.

 

- Os negócios antes do prazer, como vocês, os negociantes, dizem - comentou, virando a cabeça para Delamere.

 

Helen sentia-se estranhamente indiferente. Reparou na expressão irónica de Manners, erguendo o copo na direcção dela, e quis sorrir, mas corou, o que proporcionou a Herr Fischer um comentário pomposo acerca da modéstia virginal. Tom levantou-se, sempre com os seus modos desajeitados, e fez um discurso no mais puro estilo universitário, em que quase pedia desculpa pelos seus defeitos em comparação com as muitas qualidades da noiva. O pai mostrou-se mais sentimental e falou da sua menina. Felizmente, as formalidades depressa acabaram e o médico dirigiu-se ao aparador para trinchar o carneiro.

 

Helen tinha de admitir que todos eram muito afáveis para com ela. Herr Fischer descrevera-se como um solteirão empedernido, apenas porque, na sua juventude, nunca conhecera uma rapariga tão bonita e encantadora como ela. Se tal tivesse sucedido, afirmou, então, por Deus, ter-se-ia batido em duelo com todos os estudantes de Heidelberga, a fim de conquistar a sua mão. A irmã Caterina, com as maçãs do rosto coradas ao fim do primeiro copo de vinho, oferecera-se para fazer o vestido de noiva, quando se aproximasse o feliz dia. A irmã Elena, de tez mais morena, quisera saber todos os pormenores acerca de como os noivos se haviam conhecido e apaixonado. Tom descrevera então a viagem e o baile de máscaras, e todos se riram ao imaginá-lo vestido de Desdémona. Depois, a irmã Caterina perguntara a Mrs. Airton se um dia poderiam organizar um baile de máscaras na missão. Nellie esboçara um sorriso forçado e respondera:

 

- Veremos.

 

Helen não sabia o que pensar acerca de Nellie Airton. Admirava a sua beleza escultural, mas sentia-se intimidada pela sua severidade. Fingira sentir-se lisonjeada quando Nellie lhe perguntara se gostaria de trabalhar no hospital, mas receava haver ofendido a anfitriã respondendo com evasivas. A verdade era que, por enquanto, nada podia interessar-lhe menos. Não fizera uma longa viagem até ali para trabalhar num hospital ocidental e viver numa casa que podia muito bem ter sido construída no Surrey. A ideia de passar os dias dentro de Uma enfermaria com aquelas alegres freiras provoca-lhe uma sensação de claustrofobia e trazia-lhe à memória imagens do convento de que acabara de sair.

 

- Não é minha intenção pressioná-la, minha querida continuou Nellie, em resposta às suas desculpas esfarrapadas. - Estava apenas a pensar no que é melhor para si. Com Mister Cabot e o seu pai todo o dia no entreposto ou em viagem, vai com certeza ter dificuldade em passar o tempo. Fazemos um bom trabalho na missão e uma ajuda extra é sempre bem-vinda.

 

- Deixa a pobre rapariga em paz, Nellie - interveio Airton, rindo da cabeceira da mesa. - Dá-lhe tempo. Primeiro, ela tem de se habituar a Shishan, ao noivado e a nós. Que há-de a rapariga pensar, desterrada da sua casa na Inglaterra e acabada de chegar a um local estranho como este, que há-de ela pensar de um bando de diabretes excêntricos como nós que a põem imediatamente a engomar e a esvaziar arrastadeiras?

 

- Penso que a Helen será uma excelente enfermeira, não concorda, Tom? - exclamou Frank, que percebera o que o médico acabara de dizer.

 

- Fráulein Delamere - Herr Fischer tentava ser galante -, se algum dia eu vier a sofrer de uma doença, não posso pensar num anjo do céu mais gracioso para me tratar.

 

- É muito fácil dizeres que devemos esperar, Edward persistiu Nellie -, mas sabes como temos falta de ajudantes, e Miss Delamere não há-de querer ficar sozinha nos seus aposentos todo o dia. Nem seria saudável para si, minha querida, não é verdade? Parece-me ser uma rapariga enérgica e detestaria vê-la presa aqui sem ter nada que fazer.

 

Helen apercebeu-se de que se achava entre a espada e a parede. Sentiu-se aliviada quando Henry Manners veio em seu auxílio.

 

- Posso ser sincero, Mistress Airton? - exclamou, com um sorriso. - Penso que a sua proposta é muito generosa e estou certo de que um dia Miss Delamere se tornará uma verdadeira Florence Nightingale no vosso hospital, Mas sendo eu também um recém-chegado, concordo com o doutor. Dê-lhe algum tempo, e vou explicar-lhe porquê numa só palavra: Shishan.

 

Nellie pareceu intrigada, sem perceber aonde Manners queria chegar.

 

Não creio estar a compreendê-lo, Mister Manners.

 

O que quer dizer com “Shishan”?

 

- Bom, como talvez já saiba, viajei pelo mundo e vi muitas coisas. Pois deixe-me que lhe diga que, do pouco que me foi dado ver desta cidade, é um dos mais fascinantes locais onde jamais estive.

 

- A mim parece-me bastante banal, Mister Manners.

 

- Porque já vive na China há muitos anos, Mistress Airton. Ora, eu e Miss Delamere acabámos de chegar. Posso mesmo atrever-me a afirmar que para ela, como para mim, esta cidade, com as suas muralhas e torres, os seus templos e mercados, é mais misteriosa e romântica do que alguma vez imaginámos que fosse Catai, desde os tempos em que líamos as histórias de Marco Polo, na nossa infância. Confesso que fiquei perplexo e fascinado com esta cidade, e pretendo explorar-lhe todos os recantos.

 

- Que homem tão romântico que você é, Mister Manners, mas uma jovem não pode sair à rua sozinha para visitar uma cidade chinesa. Seria perigoso.

 

- Bom, eis o que me proponho fazer, com a autorização de Mister Delamere e de Mister Cabot, claro. Os meus deveres profissionais no caminho-de-ferro não são muitos neste momento e tenho algum tempo livre. Não é assim, Herr Fischer?

 

O engenheiro encolheu os ombros.

 

-Já. Já mo disse. Você é patrão de si próprio.

 

- Nesse caso, sugiro que todas as tardes, durante os próximos dois ou três meses, Miss Delamere e eu nos tornemos turistas e descubramos Shishan juntos. Os mosteiros, os templos, os passeios a cavalo. Depois disso, ela decidirá se quer ou não trabalhar no hospital, e eu voltarei ao caminho-de-ferro.

 

Fez-se silêncio à mesa. Henry recostou-se, sorrindo. Helen sentia as faces em fogo. O médico replicou:

 

- Não sei o que pensar da sua sugestão, Mister Manners. No meu tempo, seria considerado arrojado, para não dizer chocante, uma rapariga que está noiva dum homem andar a passear sozinha com outro.

 

- Estou a falar de visitas turísticas, doutor, e de passeios a cavalo no campo. Não estaremos sós. Teremos connosco os nossos mafus, os moços de estrebaria. Não percebo porque a minha ideia lhe parece tão chocante.

 

Novo silêncio. Helen podia ouvir o tiquetaque do relógio de pêndulo no vestíbulo.

 

- Foi apenas uma sugestão - acrescentou Manners. Tom, com o rosto mais corado do que o habitual, inclinou-se para a frente.

 

- Se é o que queres, então acho que é uma excelente ideia. A sério. Fico em dívida para consigo, Henry. Só desejava ter mais tempo para ir com vocês. Suponho que não se opõe, Mister Delamere?

 

- Eu? Não - respondeu o pai de Helen. - Vivamos no século vinte, é o meu lema.

 

- Então, está combinado - decidiu Tom. - Obrigado. Henry. Fico-lhe muito grato.

 

Helen achou que devia acrescentar algo para aliviar a tensão que, sem querer, parecia haver provocado.

 

- Eu... Eu fico grata a todos por se preocuparem comigo. Mistress Airton, estou verdadeiramente interessada em ajudar a missão, se me aceitar. Mas, como Mister Manners disse, gostava muito de ver Shishan, e se... se...

 

O Dr. Airton pousou uma mão na dela.

 

- Não diga mais nada, minha querida. É assunto encerrado. Quem devia sentir-se embaraçado sou eu, por ser um velho antiquado. Como é evidente, deve aceitar a sugestão de Mister Manners. Mais tarde, se quiser trabalhar no hospital, terá sempre um emprego ao seu dispor. Aliás... Porque não a levo amanhã a conhecer a missão, para lhe mostrar o nosso trabalho? Seria o primeiro ponto do seu itinerário turístico. Que me dizes, Nellie?

 

- Decide tu, Edward. Eu tenho de ir tratar da sobremesa.

 

- Ah, queijo! - exclamou, com um sorriso de alívio, Charlie Zhang, que achara a conversa deveras desconcertante.

 

- É pudim - anunciou Nellie, em tom glacial.

 

- Mas haverá também queijo? - perguntou o marido, desesperado, tentando recuperar uma atmosfera harmoniosa para o jantar.

 

Se houver queijo - replicou Nellie, e saiu porta fora.

 

Mas nem mesmo o pudim conseguiu restabelecer o tom festivo que precedera a intervenção de Henry Manners. A vaga e muda acusação de inconveniência parecia pairar por cima da mesa.

 

As senhoras deixaram os homens com os seus cálices de vinho do Porto (e um queijo parmesão bolorento que Ah Lee conseguira descobrir para satisfazer Charlie Zhang) e passaram à sala de estar. Nellie mostrou-se distante, embora educada para com Helen; sentiram-se ambas aliviadas por as duas freiras tomarem a seu cargo as despesas da conversa, falando dos pacientes das enfermarias.

 

Na sala de jantar, o médico pediu a Henry Manners e a Tom que falassem mais sobre as aventuras durante a viagem até Shishan. Frank explicou aos dois jovens que a notícia das execuções em Fuxin causara grande inquietação nos seus amigos negociantes, mas, como de costume, o médico recusou-se a associá-las aos Boxers, repetindo o que o mandarim lhe assegurara. Tom falou do estranho encontro de Helen com o padre cego e foi então que Charlie Zhang, até ali concentrado no queijo, ergueu o olhar.

 

- Ele esteve no nosso acampamento ontem - comentou. Os outros fitaram-no, sem compreender.

 

- Quem é que esteve no acampamento, Charlie? - perguntou Manners, com voz arrastada, suspendendo o gesto de acender um charuto.

 

- O padre cego, claro.

 

- Não me disse nada - admirou-se Herr Fischer.

 

- Não pensei que fosse importante - justificou-se Charlie. - De qualquer maneira, expulsei-o. É um sujeito estranho. Estava a perturbar os operários. Este queijo é muito bom, doutor.

 

- Que estava ele a fazer? - quis saber Manners.

 

- A bem dizer, nada de especial. Além de cego, é surdo-muudo. Portanto, não podia dizer grande coisa. Limitou-se a ficar ali, fazendo parar todo o trabalho na ponte, com os homens a fitá-lo. Estavam assustados, como se temessem que ele lhes lançasse um feitiço. Não era o típico charlatão que aparece para proferir discursos sobre os espíritos malignos que existem nas vias-férreas. Não percebi do que tinham os operários medo. Suponho que fosse algo relacionado com uma superstição de camponeses. É esse o mal do meu país. Bom, mas eu dei-lhe dinheiro, um dólar mexicano de prata. Sabem o que foi que ele fez? Meteu-o na boca e engoliu-o. Pensei que os operários desatassem a rir, mas ficaram ainda mais nervosos. Acabei por ter de conduzir o padre até à saída do acampamento e fiquei a vê-lo afastar-se na estrada. Os operários retomaram o trabalho, dei-lhes uma ração dupla de vinho gaoliang, e foi tudo. Mas porque estão tão interessados?

 

- Alguém parecido com esse padre foi visto pouco antes dos distúrbios em Fuxin - respondeu Manners. - Há quem afirme que foi ele que instigou os motins.

 

- Uma espécie de padre boxer? - perguntou Frank. É um pouco assustador, não concordam?

 

- É o que algumas pessoas pensam.

 

Uma corrente de ar frio atravessou a sala. Uma das velas crepitou, antes de a chama se apagar na cera derretida do coto.

 

- Oh, o meu país está cheio de lunáticos como o de ontem - disse Charlie, rindo-se. - Não devemos encorajar esse tipo de superstições. A China deve progredir. Não vamos ouvir Herr Fischer e Mistress Airton tocar para nós encantadores trechos musicais? É esse tipo de magia que o meu país deve conhecer.

 

- Bem achado! - concordou o Dr. Airton. - Já se disseram demasiados disparates acerca desses Boxers, o que só dificulta a digestão. O nosso Charlie parece ser o mais racional de todos nós, e é chinês. Vamos, as senhoras estão à nossa espera. Herr Fischer, trouxe o seu violino?

 

Enquanto atravessavam o corredor que conduzia à sala de estar, Manners dirigiu-se a Tom.

 

- Espero não ter sido inconveniente, meu velho. Não sei o que passou pela cabeça do doutor. Pareceu dar a entender que eu queria pôr em causa a reputação da Helen Francês ou coisa parecida...

 

- Como já disse, parece-me uma boa ideia - respondeu Tom, embora lançando a Manners um olhar algo frio. - Mas da próxima vez, pergunte-me primeiro, está bem? Pessoas como os Airton são um pouco antiquadas. Aliás, eu também sou assim.

 

- Vou desistir da ideia, meu velho. Por mim, tanto me faz.

 

Tom parou, suspirando. O seu rosto crispou-se, mas acabou por esboçar um sorriso.

 

- Então, Henry, somos amigos. Por favor, leve-a a passear. Irei ter convosco sempre que puder. Agora, vamos ouvir música.

 

Colocou o braço à volta dos ombros de Manners e conduziu-o à sala de estar.

 

Durante a hora seguinte, ouviram Nellie tocar piano, acompanhada ao violino por Herr Fischer. Convenceram Helen a cantar uma melodia, mas apenas Charlie Zhang se mostrou deleitado com as actuações, batendo palmas e gritando “Encore!”, como se estivesse numa sala de concertos. Não se dançou nem o fox-trot nem a polca. Os convidados partiram mais cedo do que o médico esperava. Acompanhou os seus últimos convidados, Herr Fischer e Charlie Zhang, até ao carreiro do jardim. Depois, parou em frente da porta da casa durante alguns instantes, para ganhar coragem e enfrentar o inevitável mau humor de Nellie. Claramente, a noite não fora um êxito.

 

O destacamento de soldados que o major Lin enviara às colinas Negras regressou a Shishan no dia seguinte, com três camponeses de roupas esfarrapadas que haviam capturado nas colinas. Levaram-nos para o yamen onde foram julgados por banditismo. O mandarim condenou-os a morte imediata e, nessa mesma tarde, uma multidão apinhou-se na praça do mercado para assistir às decapitações.

 

O mandarim tomou um almoço leve e fumou um cachimbo de ópio, antes de vestir o traje de magistrado e sair do gabinete. O major Lin e uma companhia de soldados esperavam, com os prisioneiros, num pátio exterior. Haviam-nos despido até à cintura e agrilhoado às grandes cangas de madeira, com buracos para a cabeça e para as mãos. Letreiros descrevendo os seus crimes adejavam por cima das cabeças dos três homens. Estavam encostados ao muro do yamen, com as costas vergadas pelo peso das cangas. Um atirador vigiava-os. Os prisioneiros ergueram o olhar quando o mandarim passou, mas não havia qualquer ponta de esperança nos seus olhos tristes, já sem vida. O mandarim ignorou-os e avançou para o palanquim, onde um subserviente Jin Lao mantinha a porta aberta. O mandarim dirigiu um breve aceno de cabeça ao camareiro e entrou. Jin Lao ocupou o lugar em frente. O palanquim estremeceu ligeiramente quando os oito carregadores ergueram os varais e os colocaram sobre os ombros. O major Lin montou o seu cavalo branco, enquanto o sargento vociferava uma ordem. Os condenados foram puxados até ficarem de pé e, ao rufar lento dum tambor e ao som plangente duma trombeta, o cortejo desceu lentamente a colina em direcção à cidade.

 

O mandarim reclinou-se, fechando os olhos.

 

- Talvez agora me possas dizer qual é o objectivo desta charada, Jin Lao, e porque perco eu uma tarde, gastando os fundos do Estado para executar três inofensivos camponeses.

 

- São bandidos, Da Ren. E são os raptores do rapaz estrangeiro, que foi brutalmente assassinado - respondeu Jin Lao, com um suspiro.

 

- Já tratámos disso esta manhã durante o julgamento replicou o mandarim. - Não acreditei em ti na altura e continuo a não acreditar.

 

O sorriso sereno de Jin Lao não se alterou.

 

- Temos as confissões deles, Da Ren, e mostraram aos soldados as sepulturas escondidas na floresta.

 

- Do rapaz assassinado e dos seus companheiros?

 

- Claro, Da Ren.

 

Os olhos velados do mandarim abriram-se por uma fracção de segundo, mas voltaram a fechar-se. Quando falou, a sua voz era um suave murmúrio:

 

- Não me faças perder o meu tempo, camareiro Jin. O rapaz assassinado está no bordel da Mãe Liu, para ser sodomizado por ti e pelo depravado do filho dela. Não me faças perder tempo nem tentes insultar a minha inteligência.

 

Se Jin ficara perturbado com o que o mandarim sabia, não o deixou transparecer.

 

- Tudo sabeis e compreendeis, mestre, com “olhos que vêem até milhares de quilómetros e ouvidos que captam o vento” - replicou.

 

O mandarim soltou um suspiro.

 

- Foi o Homem de Ferro Wang que te forneceu estas três vítimas?

 

Jin Lao inclinou a cabeça.

 

- Suponho que sejam daqueles devedores que compram a segurança das famílias com as próprias vidas.

 

- Sim, como de costume.

 

- Então, as dívidas desses maus pagadores são transferidas para mim e deduzidas aos impostos que ele me deve?

 

- Como antigamente, Da Ren.

 

- Antigamente, camareiro, se encenávamos as nossas pequenas execuções, era só depois de os meus mercadores serem vítimas de roubos significativos ou de grandes carregamentos de tesouros serem assaltados. Era nos momentos em que o povo se sentia enraivecido e com medo e o descontentamento varria a cidade. É meu dever assegurar que a lei e a ordem são mantidas. Só nessas alturas, e pelas boas graças da Sociedade do Bastão Negro, convenci o Homem de Ferro Wang a fornecer-nos um certo número de culpados. Uma pequena parte do que fora roubado era devolvido aos legítimos proprietários. Fazia-se justiça, todos ficavam contentes e mantinha-se a harmonia.

 

- Uma solução sensata e brilhante, digna de um grande mandarim - murmurou Jin Lao.

 

- Achas? Mesmo quando os condenados são inocentes?

 

- É gentalha comum e faz parte da classe dos criminosos. Não constitui grande perda - respondeu Jin Lao.

 

- E no entanto, eu ofereço a minha protecção a um criminoso muito maior, como é o Homem de Ferro Wang, e vou mesmo ao ponto de fazer acordos com ele. Porque pensas tu que fiz isso?

 

- Imagino, Da Ren, que tenha sido pelo facto de o Homem de Ferro Wang sempre vos ter pago o tributo devido a um homem da vossa posição e autoridade - murmurou Jin Lao.

 

- Para ti, há sempre uma justificação venal para tudo. Sim, Jin Lao, sou devidamente recompensado pelos nossos acordos, muito embora pudesse argumentar que me limito a receber, por intermédio do Homem de Ferro Wang, os impostos que os meus mercadores habilmente me ocultam nos seus livros de contas. No entanto, é-me repulsivo ter de lidar com tal verme. E estes assassínios judiciais, que tu aceitas com tanta indiferença, são muito desagradáveis para um homem de honra. Já te ocorreu que pode haver outros motivos, além do enriquecimento e da gratificação pessoais, para tamanha perfídia? Que podem estar envolvidos assuntos de Estado? Que o Homem de Ferro Wang e o seu exército de homens do pântano podem estar a servir uma causa mais elevada? Digamos que uma causa patriótica? Fazes a mínima ideia do que estou a falar? Tens a mais leve noção do que está em jogo?

 

O mandarim observou o semblante inexpressivo do camareiro, com o seu sorriso enigmático e os seus olhos remelentos.

 

- Não, não esperava que o compreendesses - continuou. - A ganância é curta de vista. Nem eu te contratei pelas tuas virtudes.

 

“O que espero que compreendas é que não quero perder o meu tempo. O que espero que compreendas é que não podes aproveitar-te da minha autoridade, camareiro, junto do Homem de Ferro Wang ou seja de quem for, para as tuas maquinações relativas ao teu prazer pessoal. Não sei que plano sujo tu e os donos do bordel engendram, ou porque precisam de inventar essa história da morte do rapaz estrangeiro. Talvez a vossa intenção seja fazê-lo desaparecer quando se tiverem cansado dele. Ou por recearem que o médico ou um dos outros estrangeiros descubram o esconderijo do rapaz. Só sei que isso não me diz respeito.

 

“O que estou a dizer-te é que o dinheiro, ensanguentado pela morte dos infelizes camponeses que vamos decapitar esta tarde, não sairá dos meus cofres. Desta vez, serás tu a pagar.

 

Tira-o das gratificações que me roubas com regularidade na cobrança dos impostos, ou de um dos teus outros subornos. não voltes, nunca mais, a colocar-me numa posição como esta. Caso contrário, não será a cabeça de um camponês a rolar pelo chão... Fiz-me entender, velho amigo? - perguntou, debruçando-se para a frente e dando uma palmada na perna do camareiro. - Fui suficientemente claro?

 

Jin Lao evitou os olhos de serpente do mandarim e, desta vez, o seu sorriso vacilou.

 

- Perfeitamente claro, Da Ren - murmurou, enquanto a sua mão magra saía da manga e enxugava uma gota de suor que se lhe formara na testa.

 

- Óptimo - sorriu o mandarim. - Sendo assim, podemos proceder às decapitações. - Parecia haver recuperado por completo o bom humor e a energia - Espero que o rapaz estrangeiro tenha valido tantas diligências da tua parte, meu amigo. Um dia, terás de me falar dele, embora não consiga compreender os teus gostos nesse domínio. Ao menos, prestaste-me um favor. Agora, que a morte do rapaz foi provada, o médico não me voltará a incomodar com esse assunto. A propósito, é melhor que tu e a Mãe Liu se certifiquem de que o miúdo permanece escondido. Não quero ter de investigar outro rapto ou assassínio.

 

- Não, Da Ren.

 

- Como é reconfortante para mim poder contar com a tua discrição, especialmente quando estão envolvidos os teus interesses pessoais. Anima-te! Nunca te vi com uma expressão dessas. Levanta a persiana e diz-me onde nos encontramos. Devemos estar perto da praça.

 

Jin Lao puxou o cordão e a persiana de bambu levantou-se para revelar a rua principal e a multidão apinhada de cada lado.

 

- Ora, ora, falámos do médico e ei-lo - disse o mandarim.

 

Airton procurava passar por entre a multidão. A sua aparência, habitualmente cuidada, era de desalinho, e lançava olhares reprovadores, quase furibundos, na direcção do cortejo e da patética fila de prisioneiros, a tropeçar constantemente sob o peso das cangas. Estava acompanhado por uma mulher estrangeira, bastante nova, reparou o mandarim. Como aqueles bárbaros podiam ser indecorosos, exibindo em público as suas mulheres, como se fossem suas iguais! O mandarim supunha que se tratava da filha do negociante de sabão, acabada de chegar à cidade. O médico colocara um braço protector em volta do seu ombro, tentando escudá-la contra a multidão que se dirigia apressada para a praça. Pareceu-lhe distinguir dois olhos verdes num rosto branco, e uma pira de cabelo ruivo flamejante. A estrangeira olhava para o cortejo dos condenados com espanto, bem patente na boca entreaberta. Era excitação que o mandarim detectava na atenção deslumbrada com que a estrangeira olhava para os condenados?

 

O palanquim ultrapassou-os, passou por baixo de um pailou, um arco comemorativo, e entrou na praça. A multidão, sedenta de sangue, rugiu quando os prisioneiros apareceram. O mandarim adoptou a expressão de enfado e desdém adequada a um alto oficial em tal ocasião. Ao fazê-lo, deu consigo a pensar como podiam os estrangeiros achar atraentes mulheres com aquela cor. A pele branca de um fantasma. Os olhos de uma civeta. O cabelo rubro de uma fada-raposa. Sentia-se intrigado.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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