«Se um único homem consegue manifestar tanto ódio, imagine-se o amor que todos juntos podemos expressar.»
Tinham pensado remodelar a casa para aliviar a dor. Nenhum dos dois sabia ao certo se seria um bom plano, mas não tinham outro. A alternativa era desistir de tudo e deixarem-se definhar.
Ebba passava o raspador pela parede exterior da casa. A tinta saía facilmente. Já havia começado a soltar-se em grandes lascas, por isso, tudo o que ela tinha de fazer era dar uma ajuda. O sol de julho estava tão quente que tinha a franja colada à testa, húmida de suor, e o braço doía-lhe porque era o terceiro dia consecutivo que se dedicava àquele movimento repetitivo: para cima e para baixo, para cima e para baixo. Mas a dor física era bem-vinda. Quanto mais intensa, mais calava a ferida no seu coração, pelo menos temporariamente.
Virou-se e olhou para Tobias, a trabalhar no relvado à frente da casa, a serrar tábuas. Ele pareceu pressentir que ela olhava para ele, porque ergueu os olhos e levantou a mão numa saudação, como se ela fosse uma conhecida que acabara de encontrar na rua. Ebba deu por si a responder-lhe com o mesmo gesto estranho.
Haviam decorrido mais de seis meses desde que a vida de ambos fora devastada, mas continuavam sem saber como reagir um com o outro. Deitavam-se todas as noites na cama de casal, de costas voltadas, com medo de que algum toque involuntário pudesse desencadear algo com que não saberiam lidar. Era como se o desgosto os preenchesse a ponto de não deixar espaço a outros sentimentos: amor, carinho, empatia.
A culpa, pesada e calada, separava-os. Tudo teria sido mais fácil se pudessem tê-la conseguido definir e remeter para onde pertencia. Mas continuava a ir e a vir, mudando de intensidade e de forma, mudando constantemente o flanco de ataque.
Ebba virou-se de novo para a casa e recomeçou a raspar a parede. Sob as mãos, a tinta branca saía em grandes tiras, revelando as pranchas de madeira por baixo. Afagou a madeira com a mão livre. Aquela casa parecia ter alma. Nunca sentira isso em qualquer outro lugar. A pequena casa geminada em Gotemburgo era praticamente nova quando ela e Tobias a compraram. Nessa época, Ebba adorara o facto de toda a casa parecer brilhar, de ter tido tão pouco uso. Agora, todas essas sensações de novidade pertenciam ao passado e esta casa antiga, com todos os seus defeitos, adequava-se mais à presente situação. Pensou novamente no telhado com goteiras, na caldeira que precisava regularmente de um bom pontapé para funcionar e nas correntes de ar que se infiltravam pelas janelas e tornavam impossível manter uma vela acesa no peitoril. A chuva e o vento também lhe varriam a alma sem piedade, apagando as velas que aí tentava acender.
Talvez a sua alma se pudesse curar aqui em Valö. Não tinha memórias deste lugar, contudo era como se se conhecessem mutuamente, ela e esta ilha que se encontrava mesmo em frente de Fjällbacka. Se fosse até ao cais podia ver a pequena cidade costeira a espraiar-se do outro lado do mar. Na base do penhasco de granito íngreme, os pequenos edifícios brancos e as cabanas de pesca vermelhas alinhavam-se como um colar de pérolas. A vista era tão bela que quase doía.
O suor escorria-lhe da testa, os olhos ardiam-lhe. Limpou o rosto à T-shirt e olhou para o Sol. No céu, as gaivotas esvoaçavam em círculos. As aves chamavam-se umas às outras com os seus grasnidos. Os seus apelos misturavam-se com o ruído das lanchas que se deslocavam no estreito. Ebba fechou os olhos e deixou que aqueles sons a levassem para longe. Para longe de si, para longe de...
– Que tal fazermos uma pausa para irmos nadar um bocado?
A voz de Tobias quebrou o ruído de fundo, sobressaltando-a. Ebba abanou a cabeça, confusa, mas depois concordou.
– Claro, vamos a isso – disse, saltando do andaime.
Os fatos de banho estavam pendurados, a secar nas traseiras da casa. Ebba despiu as roupas de trabalho suadas para vestir um biquíni.
Tobias foi mais rápido e esperava-a com impaciência.
– Estás pronta? – perguntou, começando a descer o caminho que levava à praia. A ilha era grande e menos árida do que outras mais pequenas do arquipélago de Bohuslän. O caminho era ladeado por árvores frondosas e ervas altas, e Ebba pisava o chão com força enquanto seguia o marido. Tinha pavor de cobras, pavor que se intensificara há alguns dias quando vira uma víbora a aquecer-se ao sol.
Quando começaram a descer a encosta em direção à água, Ebba não conseguiu deixar de pensar em todos os pés de crianças que tinham percorrido aquele caminho ao longo dos anos. Ainda chamavam ao local «colónia balnear», embora não fosse utilizado como tal desde os anos 30.
– Tem cuidado, vê onde pões os pés – disse Tobias, apontando para umas raízes de árvores que despontavam do chão.
A preocupação de Tobias, que deveria tê-la comovido, pareceu-lhe quase sufocante, e ela fez um esforço redobrado para evitar as raízes. Alguns metros adiante, sentiu areia áspera sob os pés. As ondas açoitavam a orla marítima e ela largou a toalha na areia e dirigiu-se para a água salgada. As algas roçaram-lhe as pernas e o frio repentino deixou-a a arfar em busca de ar, mas depressa se adaptou à temperatura. Nas suas costas, ouviu Tobias a chamá-la. Fingindo não ouvir, continuou a avançar mar adentro. Quando deixou de ter pé começou a nadar e, com apenas algumas braçadas, atingiu a plataforma de mergulho ancorada a poucos metros da praia.
– Ebba! – gritou Tobias da praia, mas ela continuou a ignorá-lo e agarrou a escada. Precisava de um tempo para si. Se se deitasse e fechasse os olhos, podia imaginar-se a naufragar em alto mar. Sozinha. Sem necessidade de prestar atenção a mais ninguém.
Ouviu-o a nadar cada vez mais perto. A plataforma agitou-se quando Tobias a alcançou e ela fechou os olhos com força para o manter afastado por mais um instante. Queria ficar sozinha. Não queria continuar a partilhar a solidão com Tobias, como acontecia nos últimos tempos. Porque, apesar de estarem juntos, estavam ambos sozinhos. Relutante, Ebba abriu os olhos.
Erica estava sentada à mesa na sala de estar. Parecia que uma bomba tinha explodido e espalhado brinquedos por toda a divisão. Carros, bonecas, animais de peluche e roupas de brincar. Três crianças, todas com menos de quatro anos, eram a principal razão de a casa se encontrar naquele estado. Mas agora que Erica tinha algum tempo para si, sem os filhos, resolvera, como de costume, dar prioridade à escrita e não à arrumação.
Quando ouviu a porta da rua a abrir-se, olhou de relance por cima do computador e viu o marido.
– Olá. O que estás a fazer aqui? Não ias visitar a Kristina?
– Para variar, a minha mãe não estava em casa. Devia ter ligado antes – disse Patrik, descalçando as Crocs.
– Tens mesmo de usar essas coisas? Como é que consegues conduzir com isso? – Erica apontou para o horrível calçado que, como se não bastasse, era verde fluorescente. A irmã de Erica, Anna, oferecera-as a Patrik por graça, mas agora ele recusava-se a usar outra coisa.
Patrik aproximou-se dela e deu-lhe um beijo.
– És tão bonita – disse, dirigindo-se depois à cozinha. – É verdade, a tua editora conseguiu falar contigo? Devia ser importante, até me ligaram para o telemóvel.
– Queriam saber se vou à feira do livro este ano, como prometi. Mas ainda não me decidi.
– Claro que vais. Eu tomo conta dos miúdos nesse fim de semana. Já tratei de tudo para tirar esses dias de folga.
– Obrigada – respondeu Erica. Porém, no fundo, ficou irritada consigo mesma por se sentir grata ao marido. Afinal de contas, não era ela que assumia sempre o comando cada vez que ele era chamado de urgência para ir trabalhar, ou quando os fins de semana, feriados e noites eram interrompidos porque o trabalho não podia esperar? Amava Patrik mais do que tudo, mas às vezes parecia que ele nem reparava que era sobre os seus ombros que recaía a maior parte das responsabilidades com a casa e com os filhos. Erica também tinha uma carreira, que por acaso até era muito bem-sucedida.
Ouvia muitas vezes as pessoas comentarem que devia ser incrível ganhar a vida como escritora. Ser responsável pela sua própria agenda, ser chefe de si própria. Ficava sempre um pouco irritada com estas observações. Por mais que adorasse o seu trabalho e se sentisse uma felizarda, não era tão fácil como todos pareciam pensar. Liberdade não era uma palavra que se pudesse associar ao trabalho de um escritor. Pelo contrário, quando se dedicava à escrita, trabalhava vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Às vezes invejava as pessoas que iam para os seus empregos, trabalhavam as oito horas da praxe e deixavam tudo para trás quando regressavam a casa. Erica nunca podia pôr o seu trabalho de lado e, com o sucesso, chegaram também as exigências e expetativas que era necessário conciliar com o seu papel de mãe de crianças pequenas.
Mas dificilmente podia argumentar que o seu trabalho era mais importante do que o de Patrik. O marido protegia pessoas, solucionava crimes e contribuía para que a sociedade funcionasse melhor, ao passo que Erica escrevia livros que eram lidos como entretenimento. Por isso conformava-se com o facto de ser ela quem habitualmente tirava a palha mais curta, embora por vezes isso lhe desse vontade de gritar.
Com um suspiro, levantou-se e foi ter com o marido à cozinha.
– Eles estão a dormir? – perguntou Patrik, tirando os ingredientes para a sua sanduíche preferida: pão de forma, manteiga, caviar e queijo.
Erica estremeceu, sabendo que o próximo passo do marido seria mergulhar a sanduíche numa chávena de chocolate quente.
– Sim, para variar, consegui que dormissem uma sesta ao mesmo tempo. Fartaram-se de brincar esta manhã, por isso estavam os três exaustos.
– Ótimo – disse Patrik, sentando-se à mesa para comer.
Erica regressou à sala de estar para escrever mais um pouco antes de os filhos acordarem. Horas roubadas. Atualmente, só podia contar com isso.
Estava a sonhar com fogo. Com o terror estampado no rosto, Vincent pressionava o nariz contra o vidro. Por detrás dele, Ebba via as chamas elevarem-se cada vez mais alto. Estavam a aproximar-se dele, chamuscando-lhe os caracóis louros enquanto Vincent gritava silenciosamente. Ebba queria atirar-se ao vidro, estilhaçá-lo para poder resgatá-lo das chamas que ameaçavam engoli-lo. Porém, por mais que tentasse, o corpo recusava-se a obedecer-lhe.
Depois ouviu a voz de Tobias. Recriminadora. Ele odiava-a porque ela não conseguia salvar Vincent, porque estava ali parada a observar enquanto ele era queimado vivo mesmo à frente deles.
– Ebba! Ebba!
A voz dele fê-la tentar novamente. Tinha de correr contra o vidro e parti-lo. Tinha de...
– Ebba! Acorda!
Alguém a puxava pelos ombros forçando-a a sentar-se. Lentamente, o sonho esfumou-se. Ebba queria agarrar-se a ele, atirar-se para as chamas e, talvez, por um momento, abraçar o pequeno corpo de Vincent antes de morrerem os dois.
– Tens de acordar. Há fogo!
De repente, Ebba estava totalmente desperta. O cheiro a fumo irritava-lhe as narinas, fazendo-a tossir tanto que até a garganta lhe doía. Quando olhou para cima viu o fumo ondulante a infiltrar-se no quarto através da porta.
– Temos de sair daqui! – gritou Tobias. – Rasteja por baixo do fumo. Eu vou atrás de ti. Vou ver se consigo apagar o fogo.
Ebba rebolou para fora da cama e caiu no chão. Podia sentir o calor das pranchas do soalho contra a face. Os pulmões ardiam-lhe e sentia-se terrivelmente cansada. Como é que ainda conseguia mover-se? Queria render-se, adormecer. Fechou os olhos e sentiu uma letargia pesada espalhar-se pelo corpo. Ia descansar ali por um momento. Dormir só um bocadinho.
– Levanta-te! Tens de levantar-te! – A voz de Tobias era estridente, despertando-a do seu torpor. Tobias não costumava ter medo de nada, mas estava a puxá-la com força pelo braço, obrigando-a a pôr-se de joelhos.
Relutante, Ebba começou a gatinhar para a frente e o medo apoderou-se dela. Cada vez que respirava sentia mais fumo a encher-lhe os pulmões, como um veneno de ação lenta. Mas preferia morrer por causa do fumo do que por causa do fogo. Imaginar a pele a queimar foi o suficiente para a fazer gatinhar mais depressa para fora do quarto.
De repente ficou confusa. Devia saber o caminho para as escadas, mas era como se o cérebro tivesse parado de funcionar. A única coisa que podia ver era uma espessa névoa cinzenta. Em pânico, recomeçou a gatinhar sempre em frente para, pelo menos, não ficar presa naquela fumaceira.
Quando alcançou as escadas, Tobias passou por ela a correr, empunhando um extintor. Desceu as escadas em três passadas e Ebba ficou a vê-lo afastar-se. Era como no sonho: o seu corpo parecia já não querer obedecer-lhe e as articulações recusavam-se a mexer-se. Desesperada, Ebba deixou-se ficar onde estava, de gatas, enquanto o fumo se tornava cada vez mais espesso. Estava outra vez a tossir. Um ataque de tosse atrás do outro. Lacrimejava e subitamente pensou em Tobias, mas não tinha energia para se preocupar com ele.
Sentiu novamente um impulso irresistível de desistir. De desaparecer, de se libertar da dor que lhe dilacerava o corpo e a alma. Pressentiu que estava prestes a desmaiar, por isso deitou-se, apoiou a cabeça nos braços, e fechou os olhos. Em seu redor era tudo suave e quente. Um enorme torpor abateu-se novamente sobre ela, acolhendo-a. Não lhe queria fazer mal, queria apenas recebê-la para a curar.
– Ebba! – Tobias puxava-lhe o braço, mas ela resistiu. Queria ser levada para aquele lugar bonito e tranquilo para onde se dirigia. Então sentiu uma bofetada na cara, um golpe que lhe deixou a cara a arder. Confusa, levantou-se e olhou para o rosto de Tobias. O marido tinha uma expressão simultaneamente preocupada e irritada.
– Já apaguei o fogo – disse. – Mas não podemos ficar aqui.
Fez uma tentativa para a levantar, mas Ebba empurrou-o. Ele tirara-lhe a única oportunidade que tivera para descansar desde há muito. Furiosa, Ebba bateu-lhe com os punhos no peito. Era um enorme alívio poder libertar toda a raiva e desilusão, por isso continuou a bater-lhe com quanta força tinha, até que, por fim, Tobias lhe agarrou os pulsos. Segurou-os com firmeza e puxou-a para ele. Pressionou-lhe o rosto contra o peito e abraçou-a. Ebba podia ouvir o coração dele a martelar-lhe o peito e aquele som fê-la chorar. Depois deixou que Tobias a ajudasse a levantar-se. Ele conduziu-a à rua e, quando o ar frio da noite lhe encheu os pulmões, Ebba soltou-se dos braços de Tobias e afundou-se num torpor.
FJÄLLBACKA, 1908
ELES CHEGARAM DE MANHÃ CEDO. A MÃE JÁ ESTAVA DE PÉ COM OS MAIS PEQUENOS, ENQUANTO DAGMAR PREGUIÇAVA NA CAMA, SABOREANDO O CALOR SOB AS COBERTAS. AQUELA ERA A DIFERENÇA ENTRE SER A FILHINHA DA MAMÃ OU UM DOS BASTARDOS DE QUEM A MÃE TOMAVA CONTA. DAGMAR ERA ESPECIAL.
– O QUE SE PASSA? – GRITOU O PAI DO QUARTO. TANTO ELE COMO DAGMAR TINHAM SIDO DESPERTADOS POR BATIDAS INSISTENTES NA PORTA.
– ABRAM! É A POLÍCIA!
ENTÃO, QUEM QUER QUE FOSSE, TINHA OBVIAMENTE PERDIDO A PACIÊNCIA, POIS A PORTA ABRIU-SE DE ROMPANTE E UM POLÍCIA FARDADO PRECIPITOU-SE PARA DENTRO DE CASA.
ASSUSTADA, DAGMAR PERMANECEU NA CAMA, TENTANDO ESCONDER-SE DEBAIXO DOS COBERTORES.
– A POLÍCIA? – O PAI ENTROU NA COZINHA, ABOTOANDO ATABALHOADAMENTE AS CALÇAS. O PEITO ENCOVADO PONTEADO COM PELOS GRISALHOS. – SE AO MENOS ME DEIXAREM VESTIR UMA CAMISA, TENHO A CERTEZA DE QUE POSSO ESCLARECER TUDO. DEVE HAVER ALGUM MAL-ENTENDIDO. ESTA É UMA CASA DE PESSOAS RESPEITÁVEIS.
– HELGA SVENSSON MORA AQUI? – PERGUNTOU O POLÍCIA. ATRÁS DELE ENCONTRAVAM-SE MAIS DOIS AGENTES. TINHAM DE FICAR MUITO JUNTOS, PORQUE A COZINHA ERA MINÚSCULA E ESTAVA CHEIA DE CAMAS. HAVIA CINCO CRIANÇAS PEQUENAS A VIVER LÁ EM CASA.
– CHAMO-ME ALBERT SVENSSON E HELGA É A MINHA MULHER – DISSE O PAI. JÁ TINHA VESTIDO A CAMISA E CRUZARA OS BRAÇOS.
– ONDE ESTÁ A SUA MULHER? – HAVIA UM TOM DE URGÊNCIA NA VOZ DO POLÍCIA.
DAGMAR VIU O SULCO DE PREOCUPAÇÃO A FORMAR-SE NA TESTA DO PAI. DEIXAVA-SE PERTURBAR COM MUITA FACILIDADE, COMO A MÃE ESTAVA SEMPRE A DIZER. NERVOS À FLOR DA PELE.
– A MAMÃ ESTÁ NO QUINTAL, NAS TRASEIRAS. COM AS CRIANÇAS – DISSE DAGMAR.
SÓ ENTÃO OS POLÍCIAS REPARARAM NELA.
– OBRIGADO – DISSE O AGENTE QUE TINHA FEITO TODAS AQUELAS PERGUNTAS. RODOU NOS CALCANHARES E SAIU.
O PAI SEGUIU-O DE PERTO.
– NÃO PODE ENTRAR ASSIM EM CASA DE GENTE DECENTE, E ASSUSTAR AS PESSOAS DESTA MANEIRA. TEM DE NOS DIZER O QUE SE ESTÁ A PASSAR.
DAGMAR AFASTOU A ROUPA DE CAMA, POUSOU OS PÉS NO CHÃO FRIO DA COZINHA E CORREU ATRÁS DELES, VESTINDO APENAS UMA CAMISA DE NOITE. PAROU ABRUPTAMENTE ATRÁS DOS HOMENS. DOIS AGENTES SEGURAVAM A MÃE PELOS BRAÇOS. ELA DEBATIA-SE PARA SE LIBERTAR E OS POLÍCIAS TINHAM DE FAZER UM ESFORÇO PARA A SEGURAR. AS CRIANÇAS GRITAVAM E A ROUPA QUE A MÃE TINHA ESTADO A PENDURAR NA CORDA CAÍRA NO CHÃO COM TODO AQUELE TUMULTO.
– MAMÃ! – GRITOU DAGMAR, CORRENDO PARA ELA.
DEPOIS ATIROU-SE ÀS PERNAS DE UM DOS POLÍCIAS E MORDEU-O NA COXA. ELE LARGOU HELGA A GRITAR, VIROU-SE E ESBOFETEOU DAGMAR COM TAL VIOLÊNCIA, QUE A ATIROU AO CHÃO. APANHADA DE SURPRESA, DAGMAR DEIXOU-SE FICAR NA RELVA, A MÃO CONTRA A FACE A ARDER. NOS SEUS OITO ANOS DE VIDA NUNCA NINGUÉM LHE BATERA. JÁ TINHA VISTO A MÃE DAR PALMADAS ÀS CRIANÇAS DE VEZ EM QUANDO, MAS NUNCA LHE LEVANTARA A MÃO A ELA. POR ESSA RAZÃO, O PAI TAMBÉM NUNCA SE ATREVERA A BATER-LHE.
– O QUE É QUE ESTÁ A FAZER?! A BATER NA MINHA FILHA? – HELGA PONTAPEAVA O HOMEM, FURIOSA.
– ISSO NÃO É NADA, COMPARADO COM O QUE A SENHORA FEZ! – O AGENTE AGARROU NOVAMENTE O BRAÇO DE HELGA. – É SUSPEITA DE TER MATADO UMA CRIANÇA E TEMOS O DIREITO DE REVISTAR A SUA CASA. E ACREDITE, PRETENDEMOS SER MINUCIOSOS NESSA TAREFA!
DAGMAR REPAROU QUE A MÃE PARECIA TER-SE DESMORONADO. A CARA AINDA LHE DOÍA COMO SE ESTIVESSE A PEGAR FOGO E O CORAÇÃO BATIA-LHE ACELERADAMENTE NO PEITO. À SUA VOLTA, AS CRIANÇAS GRITAVAM COMO SE FOSSE O DIA DO JUÍZO FINAL. E SE CALHAR ERA. PORQUE EMBORA DAGMAR NÃO CONSEGUISSE COMPREENDER O QUE ESTAVA A ACONTECER, A EXPRESSÃO NO ROSTO DA MÃE DIZIA-LHE QUE O SEU MUNDO TINHA RUÍDO.
– Patrik, podes dar um salto a Valö? Telefonaram por causa de um incêndio na ilha e suspeitam de mão criminosa.
– O quê? Desculpa, o que é que disseste?
Patrik já estava a saltar da cama, prendendo o telefone entre a orelha e o ombro enquanto vestia umas calças de ganga. Ainda ensonado, olhou para o relógio. 7h15. Por um segundo perguntou-se o que estaria Annika a fazer na esquadra àquelas horas.
– Houve um incêndio em Valö – repetiu pacientemente Annika. – Os bombeiros foram chamados de manhã bem cedo e suspeitam de que possa ser fogo posto.
– Em que sítio de Valö?
Erica virou-se na cama.
– O que é que se passa? – murmurou.
– Trabalho. Tenho de ir a Valö – sussurrou ele. Excecionalmente, já passava das seis e meia e os gémeos ainda dormiam, por isso não queria acordá-los.
– Na colónia balnear – respondeu Annika ao telefone.
– Okay. Levo o barco e dou lá um salto. Vou telefonar ao Martin. Também está de serviço hoje, não está?
– Exato. Até logo. Depois encontramo-nos todos na esquadra.
Patrik terminou a chamada e vestiu uma T-shirt.
– O que aconteceu? – perguntou Erica, sentando-se na cama.
– Os bombeiros suspeitam de que alguém pegou fogo à antiga colónia balnear.
– À colónia balnear? Alguém tentou incendiá-la? – Erica girou as pernas sobre a borda da cama.
– Prometo contar-te tudo mais tarde – disse Patrik com um sorriso. – Sei que é um dos teus projetos de estimação.
– Que estranha coincidência, tentarem pegar fogo à colónia logo agora que a Ebba voltou a morar lá.
Patrik abanou a cabeça. Sabia por experiência própria que a mulher gostava de se meter em assuntos que não lhe diziam respeito. Estava constantemente a tirar conclusões bizarras. Era verdade que, ocasionalmente, Erica acabava por ter razão, a maior parte das vezes, Patrik tinha de admiti-lo, mas por vezes também confundia tudo.
– A Annika disse-me que suspeitam de fogo posto. Por enquanto é tudo o que sabemos. Mas podemos vir a concluir que essa suspeita não tem fundamento.
– Mesmo assim – disse Erica. – É estranho que tenha acontecido agora. Posso ir contigo? De qualquer maneira tinha planeado ir lá para conversar com a Ebba.
– E quem toma conta dos miúdos? Já pensaste nisso? Acho que a Maja ainda é demasiado nova para aquecer o biberão aos irmãos.
Patrik beijou Erica no rosto e depois desceu apressadamente as escadas. Atrás de si, começou a ouvir os gémeos a chorar; mesmo na hora certa.
Patrik e Martin trocaram apenas algumas palavras a caminho de Valö. A sugestão de que podia tratar-se de fogo posto era ao mesmo tempo perturbadora e inverosímil. À medida que se aproximavam da ilha e avistavam aquele cenário idílico, parecia-lhes ainda mais improvável.
– Isto é lindíssimo! – exclamou Martin, admirando a ilha enquanto subiam o caminho desde o cais onde Patrik amarrara o barco.
– Já tinhas estado cá, não tinhas? – perguntou Patrik sem se virar. – Pelo menos naquele Natal.
Martin murmurou algo em resposta. Não queria que lhe recordassem aquele Natal fatídico em que tinha sido arrastado para um drama familiar na ilha.
Uma vastidão de relva estendia-se diante deles. Pararam para admirar a paisagem.
– Tenho algumas memórias maravilhosas desta ilha – disse Patrik. – Costumávamos vir aqui em visitas de estudo algumas vezes por ano e também no verão, quando frequentava o acampamento de vela. Fartei-me de jogar futebol neste relvado. E também joguei muitas vezes críquete.
– Eu sei. Quem é que não frequentou esses acampamentos? É estranho designarem-nos sempre por colónia balnear.
Patrik encolheu os ombros e começou a subir o caminho para a casa.
– Suponho que o nome pegou. Só foi um colégio interno durante pouco tempo e ninguém quis dar-lhe o nome do velho Von Schlesinger, que viveu aqui antes.
– Ah, pois é. Ouvi falar desse maluco – disse Martin, praguejando quando um ramo o atingiu no rosto. – Quem é agora o dono da ilha?
– Creio que agora pertence ao casal que cá mora. Depois do que aconteceu em 1974, tem sido administrado pela câmara municipal, tanto quanto sei. É pena que tenham deixado a casa degradar-se tanto, mas parece que estão a começar a recuperá-la.
Martin ergueu os olhos para o andaime que cobria toda a fachada do edifício.
– Parecem estar muito empenhados. Espero que o incêndio não tenha provocado muitos danos.
Percorreram o caminho até às escadas de pedra que conduziam à porta da frente. Os Bombeiros Voluntários de Fjällbacka estavam a recolher o equipamento, trabalhando de modo calmo e metódico. «Devem estar a suar brutalmente naqueles fatos pesados», pensou Patrik. O calor já era opressivo, apesar de ainda ser muito cedo.
– Olá! – Östen Ronander, o chefe dos bombeiros aproximou-se e cumprimentou-os com um aceno de cabeça. Tinha as mãos negras de fuligem.
– Olá, Östen. Então, o que aconteceu aqui? A Annika disse-me que suspeitam que o incêndio possa ter tido mão criminosa.
– É o que parece. Mas não estamos habilitados a tirar essas conclusões. Esperemos que o Torbjörn não demore.
– Telefonei-lhe quando vínhamos a caminho e contam estar aqui dentro de... – Patrik olhou para o relógio. – Cerca de meia hora.
– Ótimo. Entretanto, querem que vos mostre como isto ficou? Tentaremos não perturbar nada. O proprietário já tinha apagado as chamas com um extintor quando chegámos, por isso só tivemos de fazer o rescaldo, para nos certificarmos de que não há reacendimentos. Não havia muito mais a fazer. Olhem para ali...
Östen apontou para o vestíbulo. Do outro lado da soleira da porta, o soalho estava queimado num padrão estranho e irregular.
– Deve ter sido algum tipo de líquido inflamável, não te parece? – perguntou Martin, olhando para o chefe dos bombeiros.
Östen assentiu.
– Diria que alguém entornou o líquido por baixo da porta e depois pegou-lhe fogo. A julgar pelo cheiro, diria que foi gasolina, mas tenho a certeza de que o Torbjörn e os seus rapazes vão ser capazes de nos dizer o que aconteceu ao certo.
– Onde estão as pessoas que vivem aqui?
– Estão sentadas lá atrás à espera da equipa médica, que infelizmente está atrasada por causa de um acidente de viação. Ambos parecem estar em estado de choque e achei que seria bom dar-lhes um pouco de paz e sossego. Também pensei que era melhor não os deixar andar pela casa antes de vocês poderem recolher eventuais provas.
– Bem pensado. – Patrik deu-lhe uma palmadinha no ombro e, em seguida, virou-se para Martin: – Vamos falar com eles?
Sem esperar por uma resposta, Patrik dirigiu-se às traseiras da casa. Quando viraram a esquina, avistaram alguns móveis não muito longe. As cadeiras e a mesa estavam muito gastas, como se tivessem estado anos e anos ao sabor das intempéries. Sentados à mesa estavam um homem e uma mulher, ambos na casa dos trinta e ambos de olhar perdido. Quando o homem viu Patrik e Martin levantou-se e foi cumprimentá-los, estendendo a mão, que era forte e calejada, como se estivesse habituada a trabalhar com ferramentas.
– Tobias Stark.
Patrik e Martin apresentaram-se.
– Não percebemos o que aconteceu. Os bombeiros falaram em fogo posto. Será possível? – perguntou a mulher de Tobias, que se tinha aproximado e juntado ao marido. Era magra e baixa. Embora Patrik fosse apenas de estatura mediana, aquela mulher mal lhe chegava aos ombros. Parecia delicada e frágil e, apesar do calor, estava a tremer.
– Isso não é necessariamente verdade. Ainda não temos a certeza de nada – disse Patrik para os tranquilizar.
– Esta é a minha mulher, a Ebba – disse-lhes Tobias, que esfregou o rosto com a mão num gesto cansado.
– Que tal sentarmo-nos? – disse Martin. – Gostávamos que nos falassem um pouco mais do que aconteceu.
– Claro. Podemos sentar-nos ali – afirmou Tobias, apontando para a mesa e as cadeiras.
– Quem se apercebeu do fogo? – perguntou Patrik quando já estavam todos sentados. Observava Tobias, que tinha uma mancha escura na testa. Tal como Östen, tinha as mãos negras de fuligem.
Reparando na direção do olhar de Patrik, Tobias olhou para as mãos. Parecia ainda não se ter apercebido de como estavam sujas. Passou alguns momentos a limpá-las às calças antes de responder à pergunta.
– Fui eu. Acordei e senti um cheiro estranho. Assim que percebi que havia um incêndio no rés do chão, fui acordar a Ebba. Demorou alguns minutos, porque estava a dormir profundamente, mas depois acabei por conseguir tirá-la da cama. A seguir fui a correr buscar o extintor. Só pensava numa coisa: apagar o fogo. – Tobias falou tão depressa que ficou com falta de ar e teve de fazer uma pequena pausa.
– Pensei que ia morrer. Estava absolutamente convencida disso – afirmou Ebba, retirando uma cutícula de uma unha. Patrik lançou-lhe um olhar compassivo.
– Peguei no extintor e despejei-o sobre as chamas do vestíbulo como um louco – prosseguiu Tobias. – A princípio não aconteceu nada, mas continuei a vazar o extintor. De repente, as chamas apagaram-se. Mas ainda havia muito fumo. Havia fumo por toda a parte – mais uma vez, Tobias teve de parar para recuperar o fôlego.
– Porque é que alguém ia... Não percebo – disse Ebba com ar vago, e Patrik suspeitou que Östen tinha razão: aquela mulher estava em estado de choque. Isso também explicava porque é que tremia como se estivesse gelada. Quando os médicos chegassem, iam ter de prestar especial atenção a Ebba e também certificar-se de que nem ela nem Tobias sofriam os efeitos da inalação de fumo. Há muita gente que não percebe que o fumo pode ser mais mortífero do que o próprio fogo. Inspirar fumo profundamente pode ter consequências que só mais tarde se revelam.
– Porque é que os bombeiros acham que foi fogo posto? – perguntou Tobias, esfregando novamente o rosto. Patrik presumiu que o homem não tinha dormido muito.
– Como eu disse, de momento não temos certezas – respondeu evasivamente Patrik. – Mas há certos indícios. Não quero alongar-me mais antes de os técnicos poderem confirmar as nossas suspeitas. Algum dos dois ouviu algum barulho a meio da noite?
– Não. Como eu disse, quando acordei, o fogo já tinha começado.
Patrik apontou para uma casa a curta distância.
– Os vossos vizinhos estão em casa? Poderiam ter reparado em algo estranho?
– Estão de férias. Somos os únicos habitantes desta parte da ilha.
– Há alguém que possa querer fazer-vos mal? – perguntou Martin. Deixava frequentemente Patrik encarregar-se do interrogatório, mas ouvia atentamente e observava as reações das pessoas com quem falavam. E isso era tão importante quanto fazer as perguntas.
– Não, que eu saiba, não. – Ebba abanou a cabeça.
– Não vivemos cá há muito tempo. Apenas há dois meses – disse Tobias. – Esta casa pertencia aos pais da Ebba, mas esteve alugada durante muitos anos e a minha mulher nunca mais cá veio. Decidimos remodelar a casa, pô-la como deve ser.
Patrik e Martin trocaram um rápido olhar. A história daquela casa e da família de Ebba era bem conhecida na região, mas aquele não era o momento certo para lhe fazer referência. Patrik estava satisfeito por Erica não ter vindo com eles. Não teria sido capaz de conter-se.
– Onde moravam antes? – perguntou Patrik, embora tivesse um bom palpite, tendo em conta o sotaque característico de Tobias.
– Nascidos e criados em Gotemburgo – respondeu Tobias.
– E não há desavenças antigas por sanar com alguém de lá?
– Nunca tivemos quaisquer problemas com ninguém em Gotemburgo; nem em qualquer outro sítio, diga-se de passagem – respondeu secamente Tobias.
– Então porque decidiram mudar-se para cá? – perguntou Patrik.
Ebba olhou fixamente para a mesa enquanto tocava num pingente pendurado numa corrente em torno do pescoço. Um anjinho singelo de prata.
– O nosso filho morreu – afirmou, puxando com tanta força pelo anjo que a corrente lhe ficou marcada no pescoço. Precisávamos de mudar de cenário – disse Tobias. – Deixaram esta casa degradar-se e nunca mais ninguém se importou. Encarámos isso como uma oportunidade para começarmos de novo. Pertenço a uma família ligada à hotelaria, por isso pareceu-me natural montarmos o nosso próprio negócio e abrirmos uma pousada. Com o tempo, esperamos conseguir atrair pessoas que participam em conferências e coisas assim.
– Vão ter muito trabalho pela frente – disse Patrik, olhando para a casa grande com a pintura a descascar. Optou deliberadamente por não fazer perguntas sobre o filho morto. A dor nos rostos daquele casal era demasiado óbvia.
– Não temos medo de trabalhar no duro. E vamos continuar até aguentarmos. Se nos faltarem as forças, podemos sempre contratar alguém para ajudar, mas precisamos de poupar dinheiro. Já assim vai ser difícil começar a ter lucro.
– Portanto, não lhe ocorre que possa haver alguém a querer fazer-vos mal aos dois ou prejudicar o vosso negócio? – insistiu Martin.
– Negócio? Que negócio? – perguntou Tobias com uma risada sarcástica. – Mas não. Como já lhe disse, não conseguimos pensar numa única pessoa que pudesse ter feito uma coisa destas. Não somos de arranjar problemas. Somos perfeitamente normais.
Patrik pensou por um momento no passado de Ebba. Não havia muitas pessoas perfeitamente normais que tivessem um trágico mistério daqueles no seu passado. Corriam vários rumores em Fjällbacka sobre o que acontecera à família de Ebba.
– A não ser que... – Tobias lançou um olhar de relance inquisitivo a Ebba, que não pareceu entender o que o marido estava a insinuar. Com os olhos fixos nela, Tobias acrescentou: – A única coisa que me ocorre é o postal de parabéns.
– O postal de parabéns? – repetiu Martin.
– Desde pequena que, em cada aniversário, Ebba recebe um postal de alguém que simplesmente assina «G». Os pais adotivos nunca descobriram quem enviava os postais. Mas continuaram a chegar, mesmo depois de Ebba ter saído de casa dos pais.
– E a Ebba não faz ideia de quem possa ser? – perguntou Patrik antes de se aperceber de que estava a falar como se Ebba não estivesse presente. Virou-se para ela e repetiu a pergunta: – Não faz ideia de quem lhe anda a enviar esses postais?
– Não.
– E os seus pais adotivos? Tem a certeza de que não sabem de nada?
– Não fazem a mais pequena ideia.
– Esse tal «G» já tentou entrar em contacto consigo de alguma outra maneira? Já foi ameaçada?
– Não, nunca. Nada disso, pois não, Ebba? – Tobias estendeu a mão como se fosse tocar na mulher, mas em seguida deixou-a cair no colo.
Ebba abanou a cabeça.
– O Torbjörn já chegou – disse Martin, apontando para o caminho.
– Ótimo. Nesse caso, vamos parar por aqui e deixar-vos descansar. A equipa médica está a caminho e, se eles acharem que devem ir ao hospital, julgo que devem fazê-lo. Estas coisas têm de ser levadas a sério.
– Obrigado – disse Tobias, levantando-se. – Se descobrirem alguma coisa, digam-nos.
– Esteja descansado. – Patrik lançou novo olhar preocupado a Ebba. Ainda parecia estar envolta numa bolha. Patrik interrogou-se de que forma a tragédia que sofrera em criança a teria afetado, mas depois afastou o pensamento. Precisava de se concentrar no trabalho que tinha pela frente. E isso significava perceber se estavam ou não a lidar com um incendiário.
FJÄLLBACKA, 1912
DAGMAR AINDA NÃO COMPREENDIA COMO AQUILO PODIA TER ACONTECIDO. TINHAM-LHE TIRADO TUDO E ESTAVA COMPLETAMENTE SOZINHA. PARA ONDE QUER QUE FOSSE, OUVIA AS PESSOAS A SUSSURRAR PALAVRAS DESAGRADÁVEIS NAS SUAS COSTAS. ODIAVAM-NA POR CAUSA DO QUE A MÃE FIZERA.
POR VEZES, À NOITE, SENTIA TANTAS SAUDADES DOS PAIS QUE TINHA DE MORDER A ALMOFADA PARA NÃO SOLUÇAR MUITO ALTO. PORQUE SE O FIZESSE, A BRUXA HORRENDA COM QUEM VIVIA DAVA-LHE UMA TAREIA DE MORTE. MAS NEM SEMPRE CONSEGUIA CONTER OS GRITOS; POR VEZES OS PESADELOS ERAM TÃO MAUS QUE ACORDAVA ENCHARCADA EM SUOR. NOS SEUS SONHOS, DAGMAR VIA AS CABEÇAS DECEPADAS DOS PAIS. PORQUE HAVIAM SIDO AMBOS DECAPITADOS. DAGMAR NÃO ESTIVERA PRESENTE QUANDO ISSO ACONTECEU, MAS A IMAGEM FICARA-LHE GRAVADA NA MENTE.
OUTRAS VEZES, A IMAGEM DAS CRIANÇAS TAMBÉM LHE ASSOMBRAVA OS SONHOS. A POLÍCIA ENCONTROU OS CADÁVERES DE OITO BEBÉS QUANDO ESCAVOU O CHÃO DE TERRA DA ADEGA. ERA O QUE A BRUXA DIZIA. «OITO POBRES CRIANCINHAS», AFIRMAVA, ABANANDO A CABEÇA, SEMPRE QUE ALGUÉM A IA VISITAR. QUANDO OUVIAM AQUELAS PALAVRAS, OS AMIGOS VIRAVAM-SE PARA ELA. «DECERTO A RAPARIGA SABIA», DIZIAM. «APESAR DE SER TÃO NOVA, DE CERTEZA QUE SE APERCEBEU DO QUE OS PAIS ESTAVAM A FAZER, NÃO ACHA?»
DAGMAR RECUSAVA-SE A DEIXAR-SE INTIMIDAR. NÃO IMPORTAVA SE ERA VERDADE OU NÃO. A MAMÃ E O PAPÁ AMAVAM-NA E NINGUÉM QUERIA AQUELES FEDELHOS NOJENTOS SEMPRE A BERRAR. POR ISSO É QUE A MÃE TINHA FICADO COM ELES. DURANTE ANOS, TINHA-SE MATADO A TRABALHAR, MAS O ÚNICO AGRADECIMENTO QUE RECEBERA POR TER ACOLHIDO TODAS AQUELAS CRIANÇAS INDESEJADAS FORA A HUMILHAÇÃO POR PARTE DAS OUTRAS PESSOAS, O ESCÁRNIO. E, POR FIM, MATARAM-NA. O MESMO SE PASSARA COM O PAI. AJUDARA A MAMÃ A ENTERRAR AQUELAS CRIANÇAS E, POR ESSA RAZÃO, DISSERAM QUE TAMBÉM MERECIA MORRER.
DEPOIS DE A POLÍCIA TER PRENDIDO OS PAIS, LEVARAM-NA PARA CASA DA BRUXA. NINGUÉM QUERIA FICAR COM ELA, NEM A FAMÍLIA NEM OS AMIGOS. NINGUÉM QUERIA TER NADA QUE VER COM A SUA FAMÍLIA. «A FAZEDORA DE ANJOS DE FJÄLLBACKA» – FOI O QUE COMEÇARAM A CHAMAR À MÃE NO DIA EM QUE ENCONTRARAM AQUELES PEQUENOS ESQUELETOS. AGORA, AS PESSOAS ATÉ CANTAVAM BALADAS SOBRE ELA. SOBRE A ASSASSINA QUE AFOGARA AS CRIANÇAS NUMA BACIA E O SEU MARIDO, QUE AS ENTERRARA NA ADEGA. DAGMAR SABIA AS MÚSICAS DE COR. OS FILHOS PETULANTES DA MÃE ADOTIVA NÃO PERDIAM UMA OPORTUNIDADE DE AS CANTAR PARA QUE ELA OUVISSE.
MAS TUDO ISSO LHE ERA INDIFERENTE, PORQUE CONTINUAVA A SER A PRINCESINHA DOS PAIS E SABIA QUE FORA DESEJADA E AMADA. A ÚNICA COISA QUE A FAZIA TREMER DE MEDO ERA O RUÍDO DOS PASSOS DO PAI ADOTIVO A APROXIMAREM-SE. NESSES MOMENTOS, DAGMAR DESEJAVA PODER TER MORRIDO COM A MÃE E O PAI.
Josef passou nervosamente o polegar pela pedra que tinha na mão. Aquela reunião era importante e não estava disposto a permitir que Sebastian estragasse tudo.
– Aqui está. – Sebastian apontou para os desenhos que tinha pousado na mesa de conferências. – Esta é a nossa visão. Um projeto para a paz no nosso tempo1. – Sebastian dissera a última frase em inglês.
Josef suspirou para si. Não estava convencido de que o presidente e os vereadores da câmara municipal ficassem impressionados com frases pomposas em inglês.
– O que o meu sócio está a tentar dizer é que esta é uma oportunidade incrível para Tanum fazer alguma coisa pela paz. Uma iniciativa que dará grande prestígio à região.
– Claro, a paz na Terra é uma coisa excelente. E, financeiramente, também não é uma ideia descabida. A longo prazo fará crescer o turismo e criará novos postos de trabalho para os residentes, e todos sabem o que isso significa. – Sebastian ergueu a mão e esfregou o polegar no indicador. – Mais dinheiro para toda a região.
– Sim, mas acima de tudo é um projeto de paz com muito significado – disse Josef, resistindo à vontade de dar um pontapé na canela a Sebastian. Quando aceitou o dinheiro de Sebastian, soube que seria assim, mas não tivera alternativa.
Erling W. Larson assentiu. Após o escândalo em torno da remodelação do Hotel Badis, em Fjällbacka, mantivera-se na sombra durante algum tempo, mas agora estava outra vez envolvido na política local. Aquele projeto mostraria que ainda era uma força a ter em conta e Josef esperava que Erling percebesse isso.
– Parece-nos interessante – disse Erling. – Podem dar-nos uma visão mais abrangente do projeto?
Sebastian inspirou, preparando-se para falar, mas Josef antecipou-se.
– Este objeto é um pequeno pedaço da história – afirmou, estendendo a pedra. – Albert Speer comprou granito da pedreira de Bohuslan2 para o Reich alemão. Speer e Hitler tinham planos grandiosos para transformar Berlim, ou «Germania», na capital mundial e o granito deveria ser enviado para a Alemanha para ser utilizado como matéria-prima para os novos edifícios.
Josef levantou-se e começou a andar de um lado para o outro enquanto falava. No seu cérebro ressoava o martelar das botas dos soldados alemães. O ruído que os pais tantas vezes lhe descreveram com terror.
– Mas depois rebentou a guerra – prosseguiu. – Germania nunca evoluiu para além de um modelo sobre o qual Hitler fantasiou durante os seus últimos dias. Um sonho não realizado, uma visão de monumentos imponentes e edifícios cuja construção teria custado a vida a milhões de judeus.
– Que coisa horrível – disse Erling, mostrando-se no entanto pouco impressionado.
– Os carregamentos de granito nunca saíram de Tanum...
– E é aí que nós entramos – Sebastian interrompeu Josef. – Pensámos que, a partir daquele granito, podíamos fazer símbolos de paz que podiam ser vendidos. Se for feito como deve ser, renderá uma fortuna.
– Depois podíamos utilizar o dinheiro para construir um museu dedicado à história judaica e à relação da Suécia com o judaísmo. Incluindo a nossa posição supostamente neutra durante a guerra – acrescentou Josef.
Sentou-se e Sebastian pôs-lhe o braço em torno dos ombros. Josef teve de se conter para não o sacudir. Em vez disso, esboçou um sorriso tenso. Sentia-se tão falso quanto se sentira durante o tempo que passara em Valö. Mesmo nessa época não tinha nada em comum com Sebastian ou os seus outros pretensos amigos. Por mais que tentasse, sabia que nunca seria capaz de entrar no mundo da classe alta a que pertenciam John, Leon e Percy. Nem queria.
Porém, naquele momento, precisava de Sebastian. Era a sua única esperança de realizar o sonho que alimentara durante tantos anos: prestar homenagem à sua herança judaica e tornar público o que sabia sobre os abusos que foram cometidos, e que continuavam a ser, contra o povo judeu. Se isso implicasse a assinatura de um pacto com o diabo, fá-lo-ia. Esperava no futuro conseguir acabar com a sua parceria com Sebastian.
– Como o meu sócio estava a dizer – prosseguiu Sebastian –, vai ser um museu extraordinário, assim como um destino de peregrinação para turistas de todo o mundo. E, ao apoiar o projeto, todos os presentes obterão prestígio.
– Não me parece nada mal – disse Erling. – Que te parece? – perguntou, virando-se para Uno Brorsson, o vice-presidente. Apesar do calor, Uno vestia uma camisa de flanela axadrezada.
– Pode ser um projeto a considerar – murmurou. – Mas isso depende do valor do nosso contributo. Vivemos tempos difíceis.
Sebastian lançou-lhe um sorriso rasgado.
– Tenho a certeza de que podemos chegar a um acordo. O principal é haver interesse suficiente para seguirmos em frente. Eu, pessoalmente, estou a investir uma grande quantia neste projeto.
«Pois. Mas não vais propriamente dizer-lhes quais são as tuas condições», pensou Josef. Cerrou os maxilares. Tudo o que podia fazer era aceitar em silêncio o que era proposto e concentrar-se no objetivo. Inclinou-se para apertar a mão a Erling. Já não havia volta a dar.
Uma pequena marca na testa, cicatrizes no corpo e um ligeiro coxear eram os únicos sinais visíveis do acidente ocorrido há dezoito meses. O acidente em que perdera o bebé de Dan e em que quase perdera a vida.
Interiormente, era tudo bem diferente. Anna ainda se sentia destroçada.
Hesitou por um momento à entrada. Às vezes era difícil estar com Erica e constatar como tudo correra bem à irmã. O que tinha acontecido não deixara quaisquer cicatrizes em Erica, e a irmã não perdera nada. No entanto, fazia-lhe bem estar com ela. As feridas interiores de Anna provocavam-lhe pontadas de dor, mas o tempo que passava com Erica ajudava de alguma forma a sará-las.
Talvez tenha sido preferível que Anna não se tenha dado conta do tempo que estas feridas levavam a curar. Se fizesse a mais pequena ideia, talvez nunca tivesse conseguido emergir do estado de apatia em que mergulhara depois de a vida se ter quebrado em mil pedaços. Há pouco tempo, Anna dissera a Erica, em tom de brincadeira, que se sentia como uma daquelas ânforas antigas com que lidava quando trabalhou numa casa de leilões. Uma ânfora que tinha caído ao chão e se partira, e cujos pedaços tinham depois sido laboriosamente colados uns aos outros. Ao longe, parecia inteira, porém, à medida que nos aproximávamos, as rachas tornavam-se dolorosamente óbvias. Mas, quando tocou à campainha da casa de Erica, percebeu que não era brincadeira nenhuma. Era assim que se encontrava naquele momento. Uma ânfora partida.
– Entra! – gritou Erica algures de dentro da casa.
Anna entrou e descalçou-se.
– Já vou. Estou só a mudar a fralda aos gémeos.
Anna foi para a cozinha, que lhe era tão familiar. Aquela casa tinha pertencido aos pais e conhecia-lhe todos os cantos e recantos. Há vários anos, a casa desencadeara uma disputa entre elas, que quase destruíra a sua relação, mas isso acontecera num tempo diferente, num mundo diferente. Anna e Erica já podiam rir-se do assunto e falar da «VCL» e da «VDL» – a vida com Lucas e a vida depois de Lucas. Anna estremeceu. Tinha jurado pensar o mínimo possível no ex-marido, e no que ele tinha feito. Lucas já se fora. Só lhe restavam as únicas coisas boas que ele lhe tinha dado: os filhos, Emma e Adrian.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Erica quando entrou na cozinha com um gémeo empoleirado em cada anca. Os rostos das crianças iluminaram-se quando viram a tia. Quando Erica os pôs no chão, correram ambos para Anna e tentaram subir-lhe para o colo.
– Calma, há espaço suficiente para os dois – Anna pegou neles e, em seguida, olhou para Erica. – Depende do que aí houver – acrescentou, esticando o pescoço para ver o que Erica tinha para oferecer.
– Que tal bolo de ruibarbo da avó com massapão? – Erica estendeu-lhe um bolo coberto com película transparente.
– Estás a brincar? Quem é que ia recusar uma coisa dessas?
Erica cortou duas grandes fatias de bolo que colocou num tabuleiro sobre a mesa. Noel lançou-se imediatamente ao prato, mas Anna conseguiu puxá-lo na altura certa. Partiu um pedaço de bolo para cada um dos gémeos. Noel enfiou o seu pedaço inteiro na boca, satisfeitíssimo, enquanto Anton mordiscou cuidadosamente um canto enquanto lançava um sorriso rasgado à tia.
– São tão diferentes – disse Anna, mexendo vigorosamente no cabelo dos dois rapazes louros.
– Achas? – respondeu sarcasticamente Erica, abanando a cabeça.
Serviu o café e pousou a chávena de Anna na mesa, certificando-se, como de costume, de que estava fora do alcance dos gémeos.
– Consegues, ou queres que pegue num deles? – perguntou Erica, ao reparar que Anna tentava equilibrar as crianças, a chávena de café e o bolo ao mesmo tempo.
– Deixa, eu consigo. É muito bom tê-los assim chegados a mim – Anna acariciou a cabeça de Noel. – Onde está a Maja?
– Colada à televisão. O novo grande amor da vida dela é o Mojje. Está a ver Mimmi e Mojje nas Caraíbas. Acho que vomito se tiver de ouvir «Numa Linda Praia das Caraíbas» mais uma vez.
– O Adrian anda obcecado com os Pokémon e também ando a ficar maluca com aquilo – Anna bebericou o café com cuidado para não o derramar sobre as crianças de dezoito meses que se contorciam, sentadas no seu colo. – E o Patrik?
– Está a trabalhar. Suspeita de fogo posto em Valö.
– Em Valö? Em casa de quem?
Erica hesitou antes de responder.
– Na colónia balnear – disse, incapaz de ocultar a emoção.
– Oh, que horror. Fico sempre arrepiada quando penso nessa ilha e em como eles desapareceram sem deixar rasto.
– Eu sei. Já tenho feito umas pesquisas sobre isso. Pensei que podia transformar a história num livro se descobrisse alguma coisa. Mas não houve grandes desenvolvimentos. Até agora.
– Como assim? – Anna deu uma grande dentada numa fatia de bolo de ruibarbo. Também tinha a receita da avó, mas raramente fazia bolos. Quase nunca, na verdade.
– Ela voltou.
– Quem?
– Ebba Elvander. Mas agora o apelido dela é Stark.
– Estás a falar daquela miudinha? – Anna olhou fixamente para Erica.
– Exatamente. Ela e o marido mudaram-se para Valö e parece que estão a recuperar a casa. Ontem à noite, alguém tentou pegar-lhe fogo. Isso dá-me que pensar – Erica tinha desistido de tentar esconder o entusiasmo.
– Não pode ter sido uma coincidência?
– Claro que pode. Mas continuo a achar estranho. A Ebba regressa e, de repente, as coisas começam a acontecer.
– Só aconteceu uma coisa – objetou Anna. Sabia como a imaginação de Erica era rápida a tirar conclusões precipitadas. O facto de a irmã ter conseguido escrever uma série de livros com base em pesquisas sólidas e devidamente fundamentados parecia a Anna ao mesmo tempo um milagre e um mistério.
– Okay, okay, uma coisa – concedeu Erica, acenando desdenhosamente com a mão. – Estou mortinha por que o Patrik chegue. Por acaso até quis ir com ele, mas não tinha ninguém para ficar a tomar conta dos miúdos.
– Não achas que seria um pouco estranho apareceres lá com o Patrik?
Anton e Noel cansaram-se de estar sentados ao colo de Anna e saíram a correr para a sala de estar.
– Bem, estou a pensar ir lá falar com a Ebba um dia destes – disse Erica, voltando a encher as chávenas de café.
– O que será que aconteceu àquela família? – disse Anna, pensativa.
– Mamãaa! Tira-os daqui! – gritou estridentemente Maja da sala de estar. Erica levantou-se com um suspiro.
– Eu sabia que era bom de mais para ser verdade. Isto acontece o dia inteiro. Maja está constantemente a zangar-se com os irmãos. Não fazes ideia da quantidade de vezes que diariamente tenho de intervir.
– Hum... – disse Anna, observando Erica enquanto saía apressadamente da cozinha. Sentiu uma pontada no coração. Pessoalmente, não se importaria de ter um pouco menos de paz e sossego.
Fjällbacka nunca estivera tão radiosa. Do cais da cabana de pesca onde estava sentado com a mulher e os sogros, John podia ver toda a embocadura do porto. O tempo glorioso tinha atraído mais entusiastas da vela e turistas do que o habitual, e havia dezenas de barcos atracados, muito juntos, ao longo do pontão. John podia ouvir música e risos vindos do interior das embarcações e contemplava a animada cena com os olhos semicerrados por causa da luz do Sol.
– É pena que não se possa debater as coisas como deve ser na Suécia – John ergueu o copo de vinho e bebeu um gole de rosé bem frio. – As pessoas fartam-se de defender a democracia e de dizer que todos têm direito a ser ouvidos, mas não podemos expressar os nossos pontos de vista. É como se não existíssemos. O que toda a gente esquece é que fomos eleitos pelo povo. Uma percentagem considerável de suecos tem uma profunda desconfiança em relação ao modo como o país está a ser governado. As pessoas querem mudar e nós prometemos-lhes essa mudança.
John pousou o copo na mesa e recomeçou a descascar um camarão. Numa taça, muitos por descascar aguardavam a sua atenção.
– Eu sei. É terrível – disse o sogro, estendendo a mão para a taça de camarões e agarrando um punhado. – Se estamos verdadeiramente numa democracia, é preciso ouvir as pessoas.
– E toda a gente sabe que muitos imigrantes vêm para cá apenas para tirar proveito dos benefícios sociais – exclamou a sogra. – Não haveria problema se todos esses estrangeiros estivessem dispostos a trabalhar e a contribuir para a sociedade. Mas não tenho vontade de ver os meus impostos usados para apoiar esses parasitas – prosseguiu Barbro, que começava a arrastar a voz.
John suspirou. Que idiotas. Não faziam ideia do que estavam a dizer. E o mesmo acontecia com a maioria dos eleitores: não passavam de carneiros que simplificavam a situação e eram incapazes de ver o problema como um todo. Os sogros personificavam a ignorância que John detestava. No entanto, ali estava ele, forçado a aturá-los durante uma semana inteira.
Liv acariciou-lhe a coxa para tentar acalmá-lo. Sabia o que John pensava deles e, em larga medida, concordava com o marido. Mas Barbro e Kent eram os seus pais e não havia muito que pudesse fazer quanto a isso.
– O pior é que hoje em dia estão por todo o lado – disse Barbro. – Uma família acabou de se mudar para o nosso bairro. A mulher é sueca, mas o homem é árabe. Nem consigo imaginar como deve ser horrível para aquela pobre mulher. Porque os árabes tratam as mulheres muito mal. E tenho a certeza de que as crianças vão ser alvo de bullying na escola. Vão acabar por ter problemas com a polícia e a mulher vai acabar por lamentar não ter casado antes com um rapaz sueco.
– Tens toda a razão – disse Kent, tentando abocanhar uma enorme sanduíche de camarão.
– Podem deixar o John abstrair-se um bocado da política? – pediu Liv num tom levemente reprobatório. – Já passa tempo suficiente a tratar da questão dos imigrantes em Estocolmo. Não faz outra coisa. Acho que merece uma pausa enquanto aqui estiver.
John lançou-lhe um olhar de gratidão e fez uma pausa para admirar a mulher. Era perfeita. Cabelo louro e sedoso penteado para trás, feições clássicas e olhos azul-claros.
– Desculpa, minha querida. Nem pensámos nisso. É que estamos muito orgulhosos do que o John está a fazer e do cargo que alcançou. Mas está bem, vamos falar de outra coisa. Então, como vai o teu pequeno negócio?
Entusiasmada, Liv começou a falar das inúmeras dificuldades com que se estava a deparar na alfândega, que parecia determinada a complicar-lhe as transações. Estava constantemente a ter contratempos com as entregas dos objetos de decoração que importava de França e depois vendia na sua loja online. Mas John sabia que o interesse de Liv pela loja tinha vindo a diminuir. Dedicava cada vez mais tempo à política partidária. Tudo o resto parecia pouco importante quando comparado.
As gaivotas pairavam muito baixo sobre o cais e John pôs-se de pé.
– Devíamos levantar a mesa. Esta passarada está a aproximar-se demasiado para o meu gosto. – John pegou no prato, afastou-se até ao final do cais e lançou as cascas de camarão ao mar. As gaivotas aproximaram-se para apanhar o maior número possível. Os caranguejos encarregar-se-iam do resto.
John ficou ali por um momento e respirou fundo enquanto olhava fixamente para o horizonte. Como era habitual, deteve o olhar em Valö e, como de costume, a raiva começou a crescer dentro dele. Por sorte, os seus pensamentos foram interrompidos por um zumbido no bolso das calças. Sacou rapidamente o telemóvel, lançando um olhar ao ecrã antes de responder. Era uma chamada do primeiro-ministro.
– Diz-me o que pensas dos tais postais? – perguntou Patrik enquanto segurava a porta aberta para Martin. Era tão pesada que teve de dar-lhe um empurrão com o ombro. A esquadra de Tanum fora construída na década de 60 e, a primeira vez que Patrik pôs os pés naquela espécie de bunker, sentira-se esmagado pela aparência lúgubre do edifício. Com o passar do tempo, já se habituara tanto ao bege e ao amarelo-sujo da decoração que tinha deixado de notar a completa falta de conforto e de encanto do local.
– Parece-me tudo muito estranho. Quem é que iria mandar postais anónimos de parabéns todos os anos?
– Não são completamente anónimos. Estão assinados por esse tal «G».
– Bem, isso torna-os ainda mais estranhos – respondeu Martin, e Patrik riu-se.
– Qual é a graça? – perguntou Annika, olhando para os dois agentes através dos vidros da receção.
– Nada de especial – respondeu Martin.
Annika deslizou sobre a cadeira até à entrada do seu pequeno gabinete.
– Como correram as coisas na ilha?
– Temos de esperar para ver o que o Torbjörn consegue descobrir, mas parece que alguém tentou incendiar a casa.
– Vou fazer um café e depois conversamos – Annika avançou pelo corredor, enxotando Patrik e Martin à sua frente.
– Já contaste ao Mellberg? – perguntou Martin quando entraram na cozinha.
– Não. Achei que não era preciso dizer nada ao Bertil. Afinal de contas, está de folga este fim de semana. Não vale a pena estarmos a incomodar já o chefe.
– Tens razão – disse Martin, sentando-se numa cadeira à janela.
– Com que então todos aqui a conversar e a beber café e nem se lembraram de me convidar – Gösta estava parado na soleira da porta com ar mal-humorado.
– Estás cá? Mas hoje é o teu dia de folga. Porque é que não foste jogar golfe? – Patrik puxou a cadeira ao lado dele para que Gösta pudesse sentar-se.
– Está demasiado calor. Pensei que mais valia vir para cá adiantar alguns relatórios. Assim posso passar umas horas no campo de golfe noutro dia, quando não estiver tanto calor. Hoje podia-se estrelar um ovo no passeio. Onde estiveram? Annika falou em fogo posto.
– Exato. Parece que alguém despejou gasolina ou outro catalisador por baixo da porta e depois pegou-lhe fogo.
– Meu Deus! – Gösta pegou numa bolacha Ballerina e separou cuidadosamente as duas metades. – Onde foi que isso aconteceu?
– Em Valö. Na antiga colónia balnear – respondeu Martin.
Gösta sobressaltou-se.
– Na colónia balnear?
– Sim. É um bocado estranho. Não sei se já soubeste, mas a filha mais nova, a que ficou quando a família inteira desapareceu, regressou e tomou conta da casa.
– Sim, tenho ouvido muitos rumores sobre isso – afirmou Gösta sem levantar os olhos da mesa.
Patrik lançou-lhe um olhar perplexo.
– Tu estavas cá nessa altura, por isso deves ter trabalhado no caso, não?
– Sim, é verdade. É para verem como sou velho – disse Gösta. – Porque será que ela quis voltar para lá?
– Disse qualquer coisa sobre ter perdido um filho – afirmou Martin.
– A Ebba perdeu um filho? Quando? O que aconteceu?
– Não acrescentaram muito mais sobre o assunto. – Martin levantou-se para ir buscar leite ao frigorífico.
Patrik franziu a testa; Gösta não costumava mostrar-se tão preocupado. Mas já tinha visto aquilo acontecer. Cada polícia veterano tinha um caso não solucionado que não lhe saía da mente. Uma velha investigação sobre a qual estava constantemente a remoer, tentando resolver o mistério antes que fosse demasiado tarde.
– Quer dizer que esse é um caso especial para ti, não é?
– Sem dúvida. Dava qualquer coisa para saber o que aconteceu naquele sábado de Páscoa.
– Tenho a certeza de que não és o único – interrompeu Annika.
– E agora a Ebba regressou. – Gösta coçou o queixo. – E alguém tentou pegar fogo à casa.
– Não apenas à casa – disse Patrik. – Quem ateou o fogo sabia certamente, e até talvez tenha mesmo contado com isso, que a Ebba e o marido estavam a dormir lá dentro. Foi pura sorte o Tobias ter acordado e conseguido apagar o fogo.
– Uma coincidência bizarra, disso não há dúvida – comentou Martin, que deu um salto na cadeira porque Gösta bateu com o punho na mesa.
– Não é coincidência!
Os colegas olharam para Gösta, surpreendidos, e na cozinha fez-se um silêncio atordoado.
– Talvez devêssemos dar uma olhadela ao antigo caso – acabou por dizer Patrik. – Só para termos a certeza.
– Posso mostrar-te o que temos – disse Gösta. O rosto magro de perdigueiro tinha recuperado a sua expressão ansiosa. – De vez em quando vou consultar o processo, por isso sei perfeitamente onde está todo o material.
– Ótimo, então vai buscá-lo Depois ajudamos-te a rever os depoimentos. Talvez encontremos algo novo se abordarmos o caso com outros olhos. Annika, podes ir buscar tudo o que houver no arquivo sobre Ebba?
– É para já – disse a secretária, começando a levantar a mesa.
– Se calhar devíamos também verificar as finanças do casal Stark. E ver se a casa em Valö está no seguro – disse Martin, lançando uma olhadela cautelosa a Gösta.
– Estás a querer dizer que foram eles próprios a atear o fogo? Isso é a coisa mais estúpida que alguma vez ouvi. Eles estavam dentro de casa quando aquilo começou a arder e foi o marido da Ebba que apagou o fogo.
– Mesmo assim, vale a pena investigar. Quem sabe se não ateou o fogo e depois se arrependeu. Vou fazer algumas perguntas.
Gösta abriu a boca para falar, mas mudou de ideias e saiu pesadamente da cozinha.
Patrik levantou-se.
– Acho que a Erica também tem algumas informações.
– A Erica? Porquê? – Martin também ia a sair mas estacou.
– Há muito tempo que se interessa pelo caso. É uma história que toda a gente conhece em Fjällbacka e, tendo em conta o que ela escreve, é compreensível que esteja interessada.
– Então é melhor descobrires o que a Erica sabe. Quanto mais informações, melhor.
Patrik assentiu, embora estivesse um pouco hesitante. Sabia o que aconteceria se permitisse que Erica se envolvesse na investigação.
– Claro, vou ter uma conversa com ela – disse, na esperança de não ser uma decisão da qual se viesse a arrepender.
A mão de Percy tremeu ligeiramente quando serviu dois copos do seu melhor conhaque. Entregou um deles à mulher.
– Não consigo mesmo perceber qual é a ideia deles. – Pyttan sorveu rapidamente a bebida em poucas goladas.
– O avô até dava voltas no caixão se soubesse disto.
– Tens de arranjar alguma maneira de resolver isto, Percy. – Pyttan estendeu o copo e Percy não hesitou, voltando a enchê-lo. A tarde ainda estava a começar, mas em algum lugar do mundo já passava das cinco. E sem dúvida que um dia como aquele exigia bebidas fortes.
– Eu? Que raio hei de fazer? – a voz de Percy atingiu um tom de falsete. Estava a tremer tanto que entornou metade do conhaque para fora do copo de Pyttan.
A mulher retirou a mão.
– Toma atenção ao que estás a fazer, idiota!
– Desculpa. Peço imensa desculpa. – Percy afundou-se numa das grandes poltronas muito usadas da biblioteca. Ouviram o barulho de algo a rasgar-se e Percy apercebeu-se de que fora o estofo. – Maldição!
Percy levantou-se e começou a pontapear violentamente a poltrona. Tudo em redor deles estava a cair aos bocados. O palacete estava à beira de desmoronar-se, a sua herança fora gasta há muito tempo e agora aqueles sacanas da Autoridade Tributária queriam que pagasse uma quantia enorme, que não possuía, em impostos.
– Acalma-te – Pyttan limpou as mãos a um guardanapo. – Deve haver alguma maneira de resolver isto. Mas não percebo como é que todo aquele dinheiro desapareceu.
Percy virou-se para a encarar. Sabia quão assustador era aquele pensamento, mas tudo o que conseguia sentir por ela era desprezo.
– Como é que todo aquele dinheiro desapareceu? – gritou. – Será que fazes alguma ideia de quanto gastas por mês? Fazes ideia de quanto custam essas coisas todas? As viagens, os jantares, as roupas, as malas, os sapatos, as joias e sabe Deus que mais compras tu!
Não era costume Percy gritar daquela maneira e Pyttan encolheu-se, alarmada. Depois ficou a estudá-lo por um tempo. Percy conhecia-a suficientemente bem para saber que ela estava a ponderar as suas opções: a decidir se havia de dar-lhe luta ou tentar acalmá-lo. Quando a sua expressão de repente se suavizou, Percy concluiu que Pyttan se decidira pela segunda opção.
– Meu querido, não vamos começar a discutir por causa de uma coisa tão trivial como o dinheiro. – Pyttan compôs-lhe a gravata e, em seguida, prendeu-lhe a camisa nas calças. – Assim está melhor. Agora já pareces outra vez o meu elegante marido, o proprietário deste palacete.
Pyttan aproximou-se mais dele e Percy sentiu que começava a ceder. A mulher estava com o vestido Gucci e, como era costume, Percy tinha dificuldade em resistir-lhe.
– Vamos fazer o seguinte: tu telefonas ao contabilista e verificas outra vez os registos. As coisas não podem estar assim tão mal. Tenho a certeza de que vais ficar mais descansado depois de debater a situação com ele.
– Tenho de falar com o Sebastian – murmurou Percy.
– O Sebastian? – perguntou Pyttan, estremecendo como se tivesse engolido alguma coisa repugnante. Olhou para Percy. – Sabes que não gosto que te encontres com esse homem. Porque vou ter de entreter aquela mulher insípida dele. Aqueles dois pura e simplesmente não têm classe. Estou-me nas tintas que o Sebastian tenha muito dinheiro, é um patife da pior espécie. Ouvi dizer que a Inspeção das Atividades Económicas anda de olho nele há algum tempo. Só lhes falta fazer prova, mas é só uma questão de tempo. Não devíamos ter nada que ver com ele.
– O dinheiro dele é tão bom como o de qualquer outra pessoa – disse Percy.
Sabia o que o contabilista ia dizer. Já não havia dinheiro. Tinha-se ido todo e, para sair daquela armadilha e salvar Fygelsta, precisava de capital. Sebastian era a sua única esperança.
Tinham sido levados para o hospital de Uddevalla, mas tudo parecia estar bem: não havia sinais de fumo residual nos pulmões de Ebba e de Tobias. Agora que passara o choque inicial, Ebba sentia que acordara de um sonho estranho.
Sentada à secretária e dando por si a semicerrar os olhos na penumbra, ligou o candeeiro. Agora que era verão, o crepúsculo avançava lentamente e Ebba forçava invariavelmente os olhos durante algum tempo antes de se aperceber de que precisava de mais luz.
O anjo em que estava a trabalhar estava a revelar-se intratável e Ebba debatia-se para prender o laço. Tobias não conseguia compreender porque é que a mulher fazia as joias à mão em vez de mandá-las fabricar na Tailândia ou na China, sobretudo agora que chegavam muitas encomendas da loja online. Mas, nesse caso o trabalho não teria o mesmo significado para ela. Queria fazer cada peça à mão, pôr o mesmo amor em cada colar que enviava. Imbuir os anjos da sua própria tristeza e das suas próprias memórias. Além disso, descobrira que aquele género de trabalho, ao final da tarde, era reconfortante depois de passar um dia inteiro a pintar, a martelar e a serrar. Quando se levantava pela manhã, todos os músculos lhe doíam, porém, enquanto trabalhava nas suas joias, o corpo descontraía-se.
– Fechei a casa a sete chaves – disse Tobias.
Ebba sobressaltou-se. Não o ouvira entrar.
– Merda – praguejou ao ver que o laço se desfez depois de quase ter conseguido pô-lo no sítio.
– Não achas que devias parar um bocado com isso esta noite? – sugeriu cautelosamente Tobias, pondo-se por detrás da mulher.
Ebba podia senti-lo hesitar sobre a possibilidade de lhe pôr as mãos nos ombros. No passado, antes do que acontecera a Vincent, Tobias costumava massajar-lhe as costas, e Ebba adorava o seu toque firme mas suave. Agora mal podia suportar que lhe tocasse e corria o risco de sacudir instintivamente os ombros para lhe afastar as mãos, ferindo-lhe assim os sentimentos e aumentando ainda mais a distância entre eles.
Ebba tentou novamente apertar o laço e por fim conseguiu.
– Será que trancar ou não a casa é importante? – perguntou sem se virar. – As portas trancadas não parecem ter detido quem quer que tivesse tentado incendiar a casa ontem à noite.
– Que mais podemos fazer? – disse Tobias. – E tu podias ao menos olhar para mim quando estamos a falar. Isto é importante. Alguém tentou incendiar a maldita casa e não fazemos ideia de quem foi ou do motivo. Isso não te assusta?
Lentamente, Ebba virou-se e encarou-o.
– Porque é que haveria de estar assustada? O pior já aconteceu. Estou-me nas tintas para portas trancadas ou destrancadas.
– Não podemos continuar assim.
– Porque não? Eu fiz o que tu querias. Mudei-me para cá, concordei com os teus planos grandiosos de recuperar esta velha casa em ruínas e depois vivermos felizes para sempre na nossa ilha paradisíaca enquanto os convidados vêm e vão. Concordei com tudo. Que queres mais? – Ebba podia ouvir quão fria e implacável soava.
– Nada, Ebba. Não quero nada. – A voz de Tobias era tão fria quanto a dela. Virou-se e saiu.
1 Referência à célebre frase proferida pelo primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, a 30 de setembro de 1938, depois de ter regressado de Berlim, onde assinou um acordo de paz com Hitler. Cerca de um ano depois começava a Segunda Guerra Mundial. (N. do T.)
2 Província histórica sueca onde se situa Fjällbacka. (N. do T.)
FJÄLLBACKA, 1915
FINALMENTE ESTAVA LIVRE. TINHA ENCONTRADO TRABALHO COMO EMPREGADA DOMÉSTICA NUMA QUINTA EM HAMBURGSUND E PODIA ESTAR LONGE DA MÃE ADOTIVA E DOS SEUS FILHOS ODIOSOS. PARA NÃO FALAR DO PAI ADOTIVO. AS VISITAS NOTURNAS TINHAM-SE TORNADO MAIS FREQUENTES À MEDIDA QUE IA CRESCENDO E O CORPO SE DESENVOLVIA. DEPOIS DA PRIMEIRA MENSTRUAÇÃO, DAGMAR VIVIA CONSTANTEMENTE ATERRORIZADA, COM MEDO DE QUE UM BEBÉ COMEÇASSE A CRESCER DENTRO DELA. A ÚLTIMA COISA QUE QUERIA ERA UMA CRIANÇA. NÃO TENCIONAVA SER UMA DAQUELAS RAPARIGAS ASSUSTADAS, COM OS ROSTOS INCHADOS DE TANTO CHORAR, QUE IAM BATER À PORTA DA MÃE COM UM BEBÉ ENFAIXADO A GRITAR-LHE NOS BRAÇOS. DESDE MUITO NOVA QUE AS DESPREZAVA, A SUA FRAQUEZA, O SEU AR RESIGNADO.
DAGMAR EMBALOU OS PARCOS PERTENCES. NÃO TROUXERA NADA DE CASA DOS PAIS LEGÍTIMOS E ALI NÃO ADQUIRIRA NADA DE VALOR PARA LEVAR. MAS NÃO IA SAIR DE MÃOS A ABANAR. ESGUEIROU-SE ATÉ AO QUARTO DOS PAIS ADOTIVOS. NUMA CAIXA DEBAIXO DA CAMA, ENCOSTADA À PAREDE, ESTAVAM AS JOIAS QUE A MÃE ADOTIVA TINHA HERDADO. DAGMAR DEITOU-SE NO CHÃO E PUXOU A CAIXA. A MÃE ADOTIVA ESTAVA EM FJÄLLBACKA, E OS FILHOS ESTAVAM A BRINCAR NO QUINTAL, POR ISSO NÃO HAVIA NINGUÉM POR PERTO PARA A PERTURBAR.
ABRIU A TAMPA E SORRIU DE SATISFAÇÃO. HAVIA OBJETOS DE VALOR SUFICIENTES PARA LHE DAR ALGUMA SEGURANÇA DURANTE UNS TEMPOS E ELA FICOU CONTENTE: A BRUXA IA SOFRER COM A PERDA DAQUELAS JOIAS HERDADAS.
– QUE ESTÁS A FAZER AQUI? – EXIGIU SABER O PAI ADOTIVO DA ENTRADA DO QUARTO, FAZENDO-A ESTREMECER.
DAGMAR PENSAVA QUE O HOMEM ESTAVA LÁ FORA, NO CELEIRO. O CORAÇÃO BATEU-LHE FRENETICAMENTE NO PEITO POR UM MOMENTO, MAS DEPOIS SENTIU UMA GRANDE CALMA APODERAR-SE DELA. NADA IRIA ESTRAGAR-LHE OS PLANOS.
– QUE LHE PARECE QUE ESTOU A FAZER? – PERGUNTOU DAGMAR, TIRANDO TODAS AS JOIAS DA CAIXA E ENCHENDO O BOLSO DA SAIA COM ELAS.
– PERDESTE O JUÍZO, RAPARIGA? ESTÁS A ROUBAR AS JOIAS? – O PAI ADOTIVO AVANÇOU UM PASSO, MAS DAGMAR ERGUEU A MÃO.
– É ISSO MESMO. E ACONSELHO-O A NÃO TENTAR IMPEDIR-ME. PORQUE SE O FIZER VOU DIREITINHA AO XERIFE DO CONDADO E CONTO-LHE O QUE VOCÊ ME TEM FEITO.
– NÃO TINHAS CORAGEM! – EXCLAMOU O HOMEM. CERROU OS PUNHOS, MAS ENTÃO A CARRANCA QUE SE FORMARA NO SEU ROSTO RELAXOU. – ALÉM DISSO, QUEM É QUE IA ACREDITAR NA FILHA DA FAZEDORA DE ANJOS?
– EU CONSIGO SER MUITO CONVINCENTE. E OS RUMORES VÃO COMEÇAR A ESPALHAR-SE MAIS DEPRESSA DO QUE POSSA IMAGINAR.
O ROSTO DO HOMEM TOLDOU-SE NOVAMENTE. O PAI ADOTIVO PARECEU HESITAR, MAS DAGMAR DECIDIU AJUDÁ-LO.
– TENHO UMA SUGESTÃO. QUANDO A MINHA QUERIDA MÃE ADOTIVA DESCOBRIR QUE AS JOIAS DESAPARECERAM, VAI FAZER TUDO O QUE PUDER PARA ACALMÁ-LA E CONVENCÊ-LA A ESQUECER TUDO. SE ME PROMETER ISSO, DOU-LHE UMA PEQUENA RECOMPENSA EXTRA ANTES DE ME IR EMBORA DAQUI.
DAGMAR APROXIMOU-SE DO PAI ADOTIVO. LENTAMENTE, ERGUEU A MÃO, POUSOU-A NOS ÓRGÃOS GENITAIS DO HOMEM E COMEÇOU A ACARICIÁ-LOS. OS OLHOS DO AGRICULTOR NÃO TARDARAM A FICAR VIDRADOS E DAGMAR PERCEBEU QUE O TINHA EM SEU PODER.
– TEMOS ACORDO? – PERGUNTOU DAGMAR, DESABOTOANDO-LHE LENTAMENTE AS CALÇAS.
– TEMOS ACORDO – RESPONDEU O PAI ADOTIVO, PONDO-LHE A MÃO SOBRE A CABEÇA E PRESSIONANDO-A PARA BAIXO.
A torre de mergulho de Badholmen erguia-se contra o céu, majestosa como sempre. Erica afastou a imagem de um homem a balançar suavemente numa corda presa à torre; a última coisa que queria era recordar-se daquele terrível acontecimento. Como que a tentar o seu melhor para distraí-la de tais pensamentos negros, a pequena ilhota de Badholmen refulgia como uma joia no mar ao largo de Fjällbacka. A pousada da juventude que existia na ilha era muito popular e estava quase sempre cheia durante o verão, e Erica conseguia perceber porquê. A localização e o charme à moda antiga do edifício eram uma combinação irresistível. Mas, nesse dia, Erica não estava em condições de apreciar a vista.
– Estão todos aqui? – sentindo os seus níveis de stresse a aumentar, Erica olhou em redor, contando as crianças.
Três figuras indisciplinadas vestindo coletes salva-vidas cor de laranja brilhante saltitavam no cais.
– Patrik! Talvez me possas dar uma ajudinha – disse Erica, agarrando o grande colarinho do colete salva-vidas de Maja quando a filha passou por ela a correr, perigosamente perto da borda do cais.
– Então e quem é que vai pôr o motor a trabalhar? – Patrik abriu os braços, o rosto corado.
– Primeiro pões os miúdos no barco, antes que caiam à água, e depois podes pôr o motor a trabalhar.
Maja contorcia-se como um verme para tentar soltar-se, mas Erica estava a agarrar-lhe firmemente o colarinho e aguentou os puxões da filha. Com a outra mão agarrou Noel, que corria atrás de Anton sobre as suas pernas gordinhas. Pelo menos já só havia uma criança à solta.
– Anda, vem buscá-los. – Erica rebocou as crianças barulhentas até ao snipa de madeira amarrado no cais. Claramente irritado, Patrik subiu para o convés para pegar em Maja e em Noel. Então, Erica virou-se e correu atrás de Anton, que descolara na direção da pequena ponte de pedra entre Badholmen e o continente.
– Anton! Para! – gritou Erica, mas o filho continuou a correr sem lhe ligar nenhuma. Porém, apesar dos esforços de Anton, Erica acabou por conseguir apanhá-lo. Gritando histericamente, a criança debatia-se para se libertar enquanto a mãe o levava de volta ao barco.
– Meu Deus, porque é que eu achei que isto era boa ideia? – perguntou Erica enquanto entregava Anton, que estava lavado em lágrimas, a Patrik. Com o suor a escorrer-lhe pelo rosto, Erica desatou a amarra e saltou para dentro do barco.
– Vai correr melhor quando estivermos em alto mar – Patrik ligou a ignição e, para variar, o motor pegou à primeira. Inclinou-se para desatar a amarra da popa e utilizou a outra mão para manter o barco a uma distância segura da embarcação que estava atracada logo a seguir. Manobrar o snipa para fora do porto não era tarefa fácil. Os barcos estavam muito juntos e, se não tivessem defensas de borracha, nem a embarcação de Patrik e de Erica nem as vizinhas teriam sido capazes de escapar sem danos.
– Desculpa ter-me exaltado – disse Erica quando se sentou depois de ter conseguido instalar os filhos no chão do barco.
– Já nem estava a pensar nisso – gritou Patrik, empurrando lentamente a cana do leme, o que fez com que o barco virasse e ficasse com a popa voltada para o porto e a proa virada para Fjällbacka.
Estava uma manhã de domingo de uma beleza radiante, com um céu azul-claro e a água lisa como um espelho. Gaivotas a gritar circulavam por cima deles e, quando Erica olhou em redor, apercebeu-se de que as pessoas estavam a tomar o pequeno-almoço em vários dos barcos do porto. Sem dúvida que muitos ainda estavam na cama, a curar a ressaca do que tinham bebido na noite anterior. Os jovens visitantes entregavam-se sempre a grandes bebedeiras nas noites de sábado. «Ainda bem que esses dias já passaram», pensou e depois olhou de novo com ternura para as crianças que já se tinham acalmado e estavam sentadas em silêncio no barco.
Erica aproximou-se de Patrik e pôs-se ao seu lado, inclinando a cabeça para o seu ombro. Patrik pôs o braço em torno dela e beijou-a na face.
– É verdade – disse Patrik de repente. – Quando chegarmos lá, lembra-me para te fazer algumas perguntas sobre Valö e a colónia balnear.
– O que queres saber? – perguntou Erica com interesse.
– Digo-te mais tarde, quando tivermos um pouco de paz e sossego – respondeu Patrik, dando-lhe outro beijo.
Erica sabia que o marido estava a fazer aquilo para a provocar. Estava em pulgas para saber mais, mas controlou-se. Em silêncio, ergueu a mão para proteger os olhos enquanto contemplava Valö. À medida que passavam lentamente pela ilha, vislumbrou a grande casa branca. Será que alguma vez iam descobrir o que ali acontecera há tantos anos? Detestava livros e filmes que, no final, deixavam perguntas por responder e mal conseguia ler sobre homicídios não solucionados nos jornais. Quando começara a aprofundar o caso Valö, não descobrira nada de novo, apesar de pesquisar demoradamente em busca de uma explicação. A verdade estava tão escondida como a casa que estava agora oculta por detrás das árvores.
Martin ergueu a mão, mas deteve-a no ar por um momento antes de tocar à campainha. Não tardou a ouvir alguém aproximar-se no interior e teve de lutar contra o impulso de dar meia-volta e ir-se embora. A porta abriu-se, e Annika olhou fixamente para ele, surpreendida.
– Martin? Que estás aqui a fazer? Aconteceu alguma coisa?
Martin fez um sorriso forçado, mas Annika era a pessoa errada para tentar enganar e fora essencialmente por isso que tinha ido a casa dela. Desde que começara a trabalhar na esquadra que Annika era como uma mãe substituta e, naquele momento, era com ela que Martin queria falar.
– Bem, sabes, é que eu... – foi tudo o que conseguiu dizer.
– Entra – disse Annika. – Vamos para a cozinha tomar uma chávena de café. Já me contas o que está para aí a atormentar-te.
Martin entrou, descalçou-se e seguiu-a.
– Senta-te – disse Annika, que começou a colocar, com mão experiente, colheradas de café moído no filtro. – Onde estão a Pia e a Tuva?
– Estão em casa. Disse-lhes que ia dar um passeio, por isso não posso demorar-me. Estamos a pensar ir à praia.
– Ah! Parece-me bem. Leia também adora nadar. Já estivemos na praia de manhã cedo e quase não conseguimos tirá-la do mar quando decidimos voltar para casa. Adora a água, aquela menina. Lennart saiu um bocado com ela para eu poder fazer umas limpezas que já devia ter feito há mais tempo.
O rosto de Annika iluminou-se quando falou na filha. Já passara quase um ano desde que ela e o marido, Lennart, após muitos anos de tristeza e de mágoa, tinham conseguido trazer para a Suécia a filha adotiva chinesa. Agora, tudo nas suas vidas girava em torno de Leia.
Martin não podia imaginar melhor mãe do que Annika. Tinha um ar carinhoso e atencioso, e fazia-o sempre sentir-se seguro. Naquele preciso momento, o que mais teria gostado de fazer era aconchegar-se no ombro de Annika e soltar as lágrimas que ameaçavam libertar-se, mas conteve-se. Se começasse a chorar, podia nunca mais conseguir parar.
– Acho que vou aquecer uns bolos. – Annika pegou num saco do congelador e pôs dois bolos no micro-ondas. – Fi- los ontem e estava a pensar levar alguns para a esquadra.
– Espero que compreendas que não faz parte do teu trabalho alimentar-nos com guloseimas – disse Martin.
– Nisso acho que o Mellberg não ia concordar contigo. Se estudasse o meu contrato de trabalho com mais cuidado, tenho a certeza de que ia lá encontrar escrito em letras pequeninas: fornecer a esquadra de Tanum com produtos de padaria caseiros.
– Meu Deus, sem ti e a padaria, o Bertil não duraria um dia.
– Eu sei. Sobretudo desde que a Rita o pôs de dieta. Pelo que a Paula diz, nos últimos tempos, o Bertil só tem comido pão integral e legumes.
– Gostava de ver isso! – Martin deu uma gargalhada. Era bom rir e um pouco da tensão que sentia começou a diminuir.
O micro-ondas apitou. Annika pôs os bolos quentes num prato e, em seguida, colocou também duas chávenas de café sobre a mesa.
– Ora bem, serve-te e depois conta-me o que te anda a incomodar. No outro dia dei-me conta de que havia qualquer coisa que não estava bem, mas pensei que era melhor deixar-te falar sobre isso quando achasses conveniente.
– Pode não ser nada e não quero incomodar-te com os meus problemas, mas... – Martin apercebeu-se com frustração que os soluços já começavam a formar-se na garganta.
– Não sejas tonto. É para isso que estou aqui. Agora conta-me.
Martin respirou fundo.
– A Pia está doente – disse por fim, ouvindo como as palavras ecoavam nas paredes da cozinha.
Viu o rosto de Annika empalidecer. Provavelmente não estava à espera daquilo. Martin rodou a chávena de café entre as mãos e começou tudo de novo. De repente, as palavras jorraram.
– Há algum tempo que anda a sentir-se cansada. Por acaso foi desde que a Tuva nasceu, mas não dei importância ao assunto. Pareceu-me uma reação normal para quem teve um bebé. Mas a Tuva já tem quase dois anos e a Pia não tem melhorado. Na verdade está a ficar cada vez pior. Depois, ela reparou que tinha vários caroços no pescoço.
A mão de Annika voou para a boca, como se entendesse o sentido que aquela conversa estava a tomar.
– Há umas semanas fui com ela a um médico e percebi logo do que é que ele suspeitava. Encaminhou-a imediatamente para um especialista em Uddevalla e fomos lá para lhe fazerem exames. Tem uma consulta marcada com um oncologista amanhã à tarde para saber os resultados, mas já sabemos o que vai dizer. – As lágrimas começaram a rolar pelo rosto de Martin, que as limpou com irritação.
Annika entregou-lhe um guardanapo de papel.
– Chora à vontade. Chorar costuma ajudar.
– É tão injusto. A Pia só tem trinta e três anos e a Tuva ainda é uma bebé. Pesquisei as estatísticas e, se for o que pensamos, as hipóteses não são muito boas. Ela está a ser incrivelmente corajosa, mas eu sou um cobarde do caraças e não suporto falar com ela sobre isto. Mal consigo suportar vê-la com a Tuva ou olhá-la nos olhos. Sinto-me imensamente inútil! – Martin já não conseguia conter as lágrimas. Inclinou-se sobre a mesa, enterrou a cabeça nos braços e soluçou tanto que todo o corpo lhe tremia.
Annika pôs o braço em volta dos ombros do amigo e encostou a face à cara de Martin. Não disse uma palavra, limitando-se a afagar-lhe as costas. Pouco depois, Martin endireitou-se na cadeira, virou-se para Annika e aninhou-se nos seus braços. Annika embalou-o suavemente, como embalaria Leia se a filha se tivesse magoado.
Tinham tido a sorte de encontrar uma mesa no Café Bryggan. Toda a área ao ar livre estava cheia e Leon observou várias sanduíches de camarão a serem servidas. A localização do restaurante, perto da Praça Ingrid Bergman, era perfeita, com mesas ao longo de todo o cais e mesmo até à beira-mar.
– Acho que devíamos comprar a casa – disse Ia.
Leon virou-se para olhar embasbacado para a mulher.
– Dez milhões de coroas suecas3 não são propriamente uns trocos.
– E eu disse que eram? – Ia inclinou-se para a frente para endireitar a manta que ele tinha no colo.
– Para quieta com essa maldita manta. Estou a transpirar que nem um maluco.
– Não podes constipar-te. Sabes muito bem disso.
A empregada de mesa apareceu e Ia pediu um copo de vinho para si e água para Leon, que olhou para a jovem.
– Eu quero uma cerveja grande – disse.
Ia lançou-lhe um olhar de reprovação, mas Leon limitou-se a acenar com a cabeça à empregada de mesa. A rapariga reagiu da mesma maneira que toda a gente que olhava para ele reagia, com um esforço exagerado para não olhar para as cicatrizes resultantes das queimaduras. Quando a empregada de mesa se afastou, Leon contemplou o mar.
– O cheiro é o mesmo que recordo – disse Leon. As mãos, cobertas de grossas cicatrizes, descansavam no colo.
– Continuo a não gostar deste sítio. Mas vou aprender a gostar, se comprarmos a casa – disse Ia. – Não tenciono de todo viver num casebre qualquer e não quero passar aqui o verão inteiro. Umas duas semanas por ano devem ser suficientes.
– Não achas que não é muito razoável comprar uma casa por dez milhões para a usar apenas duas semanas por ano?
– Essas são as minhas condições – disse Ia. – Senão podes ficar aqui sozinho. E isso não vai resultar, ou vai?
– Não, sei bem que não consigo aguentar-me sozinho. E nas raras ocasiões em que me esqueço, posso sempre contar contigo para mo lembrar.
– Já pensaste em todos os sacrifícios que fiz por tua causa? Tenho de aturar os teus caprichos loucos e nunca te preocupas com os meus sentimentos. E agora queres vir para cá. Não estarás demasiado queimado para brincar com o fogo?
A empregada de mesa trouxe o vinho e a cerveja, pousando os copos na toalha de xadrez azul e branco. Leon deu vários goles e depois passou o polegar sobre o vidro frio.
– Okay, faz como quiseres. Liga para o tal agente imobiliário e diz-lhe que vamos comprar a casa. Mas quero mudar-me o mais depressa possível. Detesto ficar em hotéis.
– Ótimo – disse Ia sem entusiasmo. – Se conseguirmos essa casa, tenho a certeza de que aguento passar aqui duas semanas por ano.
– És muito corajosa, minha querida.
Ia lançou-lhe um olhar sombrio.
– Esperemos que não te arrependas desta decisão.
– Muita água passou debaixo da ponte – disse calmamente Leon.
Nesse momento ouviu alguém por detrás dele a exclamar com surpresa:
– Leon?
Encolheu-se. Não precisou de virar a cabeça para reconhecer aquela voz. Josef. Depois de todos aqueles anos, ali estava ele.
Paula contemplava o fiorde refulgente, desfrutando o calor. Pôs a mão na barriga e sorriu quando sentiu o pontapé.
– Bem, parece que está na hora de comermos um geladinho – disse Mellberg, levantando-se. Lançou uma olhadela a Paula e abanou o indicador na sua direção. – Não sabes que não é boa ideia expor a barriga à luz solar?
Paula olhou para Mellberg com espanto enquanto o superintendente se dirigia ao quiosque.
– Ele está a gozar comigo? – perguntou Paula, virando-se para a mãe.
Rita riu-se.
– O Bertil diz estas coisas com boa intenção.
Paula murmurou para si mesma, mas tirou um xaile de uma sacola e cobriu a barriga. Leo passou a correr, completamente nu. Johanna alcançou-o rapidamente.
– O Bertil tem razão – disse Rita. – Os raios ultravioleta podem causar alterações no pigmento da pele, por isso também devias pôr protetor solar na cara.
– Alterações no pigmento? – disse Paula. – Mas a minha pele já é tão morena.
Rita entregou-lhe um boião de protetor solar fator 30.
– Ganhei muitas manchas escuras na cara quando estava grávida de ti, por isso não discutas.
Paula obedeceu e Johanna esfregou um pouco de creme na sua própria pele clara.
– Bem, tu tens sorte – disse. – Pelo menos não apanhas escaldões.
– Só gostava que o Bertil levasse as coisas com mais calma – disse Paula, esmagando uma grande bolha de protetor solar na palma da mão. – Esta manhã apanhei-o a ler as minhas revistas para grávidas. E anteontem levou para casa um frasco de xarope com ómega 3 que comprou na ervanária. Leu numa revista que era bom para o desenvolvimento do cérebro do bebé.
– O Bertil está muito feliz com a tua gravidez. Deixa-o estar – disse Rita. Pela segunda vez, começou a espalhar protetor solar dos pés à cabeça de Leo. O rapazinho herdara a pele rosada e sardenta de Johanna e apanhava escaldões com facilidade. Paula perguntou-se distraidamente se o bebé teria a pele como a sua ou como a do doador desconhecido. Era-lhe indiferente. Leo era o filho de ambas – dela e de Johanna – e Paula quase nunca pensava que estivera outra pessoa envolvida. E o mesmo aconteceria com aquele bebé.
Os pensamentos de Paula foram interrompidos pelo brado de satisfação de Mellberg.
– Cá estão os gelados!
Rita fitou-o com olhar severo.
– Espero que não tenhas comprado um para ti.
– Só um pequeno Magnum. Tenho-me portado tão bem durante toda a semana... – Mellberg sorriu e piscou o olho a Rita, numa tentativa de levá-la a ceder.
– Nem pensar – disse Rita, tirando-lhe calmamente o gelado da mão e deitando-o no lixo.
Mellberg murmurou algo.
– O que é que disseste?
O superintendente engoliu em seco.
– Nada. Nem uma palavra.
– Sabes o que disse o médico. Estás em risco de sofrer de problemas cardíacos e diabetes.
– Um Magnum não ia fazer-me mal. Um homem tem de viver um pouco de vez em quando – disse Mellberg, distribuindo os outros gelados.
– Já só falta uma semana de férias – disse Paula, fechando os olhos por causa do sol enquanto comia o seu Cornetto.
– Acho que não devias voltar ao trabalho – disse Johanna. – Já falta pouco tempo para o bebé nascer. Tenho a certeza de que podias meter baixa se falasses com a obstetra. Precisas de descansar.
– Alto aí – disse Mellberg. – Ouvi o que disseste. Não te esqueças de que o chefe de Paula sou eu. – O superintendente coçou pensativamente os finos cabelos grisalhos. – Mas concordo. Também acho que não devias ir trabalhar.
– Já falámos sobre isso. Se ficar sentada em casa à espera, fico maluca. Além disso, tem estado tudo bastante calmo.
– Tem estado tudo bastante calmo? – Johanna olhou fixamente para a companheira. – Esta é a altura mais agitada do ano, com todas as bebedeiras que para aí há e tudo o mais.
– O que eu quis dizer é que não temos nenhuma grande investigação em andamento. Só habituais assaltos a casas de férias, etc. Consigo lidar com isso com uma perna às costas. E não preciso de andar a conduzir. Posso ficar na esquadra a tratar da papelada. Por isso, parem de preocupar-se. Estou grávida, não estou doente.
– Vamos ver como as coisas correm – disse Mellberg. – Mas numa coisa tens razão. Anda tudo realmente calmíssimo.
Era o seu aniversário de casamento e Gösta tinha levado um ramo de flores para pôr na campa de Maj-Britt, como fazia todos os anos. Tirando as flores, não tinha muito jeito para cuidar da campa, mas isso não tinha nada que ver com os seus sentimentos por Maj-Britt. Tinham vivido felizes muitos anos e não havia um dia em que não sentisse a falta dela. Claro que se habituara à vida de viúvo e os seus dias eram tão regrados que às vezes parecia um sonho distante ter em tempos partilhado a pequena casa com outra pessoa. Mas o facto de se ter habituado àquela vida não significava que gostasse dela.
Agachou-se e tocou nas letras gravadas na lápide, soletrando o nome do filho pequeno. Não havia fotografias dele. Tinham pensado que teriam todo o tempo do mundo para isso e não lhes ocorrera tirar fotografias logo após o nascimento. E, quando o bebé morreu, não ficou qualquer imagem dele. Nem uma única fotografia. Gösta sabia que, hoje em dia, as pessoas lidam com a morte de maneira diferente, mas naquele tempo era esquecer e andar com a vida para a frente.
Ter outro filho o mais depressa possível, foi o conselho que receberam quando deixaram o hospital em estado de choque. Mas isso não estava destinado a acontecer. A única criança que tiveram foi a rapariga. A miúda, como lhe chamavam. Talvez devessem ter-se esforçado mais para ficar com ela, mas a dor ainda era muito forte e pensaram que não seriam capazes de dar-lhe o que precisava, a não ser por um breve período de tempo.
Foi Maj-Britt quem por fim tomou a decisão. Gösta sugerira timidamente que deviam cuidar da menina, que deviam deixá-la ficar. Maj-Britt respondeu: «Ela precisa de irmãos.» E a menina partiu. Nunca voltaram a falar nela, mas Gösta não conseguira esquecê-la. Se lhe dessem uma coroa por cada vez que pensou nela desde então, seria agora um homem rico.
Gösta levantou-se. Arrancou algumas ervas daninhas da campa. O ramo de flores ficou lindo no vaso. Podia ouvir a voz de Maj-Britt muito claramente na sua mente: «Oh, Gösta, que disparate, a desperdiçares estas flores tão bonitas comigo.» A mulher não acreditava ser merecedora de tantas atenções e Gösta desejava não ter sido tão poupado e tê-la mimado mais vezes. Ter-lhe dado flores quando ela podia apreciá-las. Agora, apenas podia esperar que ela estivesse algures lá em cima, a olhar para baixo, e que aquelas lindas flores a fizessem feliz.
3 Cerca de um milhão e cem mil euros. Uma coroa sueca equivale a 0,108 euros. (N. do T.)
FJÄLLBACKA, 1919
OS SJÖLIN ESTAVAM A DAR OUTRA FESTA. DAGMAR AGRADECIA AS OCASIÕES QUE CELEBRAVAM COM UMA FESTA. PRECISAVA DO DINHEIRO EXTRA E ERA FANTÁSTICO TER A OPORTUNIDADE DE VER DE PERTO TODAS AQUELAS PESSOAS RICAS E BONITAS. VIVIAM VIDAS TÃO MARAVILHOSAS E DESPREOCUPADAS. COMIAM DO MELHOR QUE HAVIA E BEBIAM COPIOSAMENTE, DANÇAVAM, CANTAVAM E RIAM ATÉ AO AMANHECER. DAGMAR DESEJAVA QUE FOSSE ESTA A SUA VIDA, MAS POR ENQUANTO TERIA DE CONTENTAR-SE EM SERVIR AQUELAS PESSOAS MAIS AFORTUNADAS, DESFRUTANDO DA SUA PRESENÇA DURANTE ALGUM TEMPO.
AQUELA FESTA PARECIA SER ESPECIAL. DE MANHÃ BEM CEDO, DAGMAR E OS OUTROS CRIADOS FORAM TRANSPORTADOS PARA UMA ILHA AO LARGO DE FJÄLLBACKA E OS BARCOS NÃO PARARAM TODO O DIA, TRANSPORTANDO COMIDA, VINHO E CONVIDADOS.
– DAGMAR! TENS DE IR BUSCAR MAIS VINHO À ADEGA! – GRITOU A SR.A SJÖLIN, A MULHER DO MÉDICO. DAGMAR APRESSOU-SE A CUMPRIR A ORDEM.
ESTAVA ANSIOSA POR AGRADAR À SR.A SJÖLIN. A ÚLTIMA COISA QUE QUERIA ERA QUE ELA COMEÇASSE A ANDAR DE OLHO NELA. SE ISSO ACONTECESSE, A SR.A SJÖLIN NÃO TARDARIA A REPARAR NOS CONSTANTES OLHARES E BELISCÕES CARINHOSOS QUE O MARIDO LHE DAVA DURANTE AS FESTAS. ÀS VEZES IA AINDA MAIS LONGE, QUANDO A MULHER SE DESCULPAVA E SE RETIRAVA PARA O QUARTO. NESSAS ALTURAS, OS RESTANTES FOLIÕES ESTARIAM JÁ DEMASIADO BÊBADOS OU ENTREGUES À SUA PRÓPRIA ALEGRIA PARA SE PREOCUPAREM COM O QUE SE PASSAVA À SUA VOLTA. DEPOIS DESSAS OCASIÕES, QUANDO CHEGAVA A ALTURA DE PAGAR OS SALÁRIOS, O MÉDICO DAVA A DAGMAR UM POUCO MAIS DE DINHEIRO.
RETIROU RAPIDAMENTE QUATRO GARRAFAS DE VINHO DA ADEGA E CORREU ESCADAS ACIMA COM ELAS. SEGURAVA-AS JUNTO AO PEITO QUANDO CHOCOU COM ALGUÉM E AS GARRAFAS CAÍRAM NO CHÃO. DUAS PARTIRAM-SE E DAGMAR APERCEBEU-SE COM ANGÚSTIA DE QUE MUITO PROVAVELMENTE LHE SERIAM DEDUZIDAS NO SALÁRIO. AS LÁGRIMAS COMEÇARAM A ROLAR-LHE PELO ROSTO QUANDO OLHOU PARA O HOMEM QUE ESTAVA À SUA FRENTE.
– PEÇO PERDÃO! – DISSE O HOMEM, MAS AS PALAVRAS DINAMARQUESAS QUE PROFERIU SOARAM DE MODO ESTRANHO.
A ANGÚSTIA DE DAGMAR RAPIDAMENTE SE TRANSFORMOU EM RAIVA.
– JÁ VIU O QUE FEZ! NÃO SABE QUE NÃO PODE ESTAR À FRENTE DE UMA PORTA DESTAS?
– PERDOE-ME – REPETIU O HOMEM. – ICH VERSTEHE NICHT – DISSE EM ALEMÃO.
DE REPENTE, DAGMAR SOUBE QUEM ELE ERA. TINHA CHOCADO COM O CONVIDADO DE HONRA DAQUELA NOITE, O HERÓI ALEMÃO, O PILOTO QUE COMBATERA CORAJOSAMENTE DURANTE A GUERRA. DEPOIS DE DOLOROSA DERROTA DA ALEMANHA, GANHAVA A VIDA EM ESPETÁCULOS AÉREOS. AS PESSOAS TINHAM PASSADO O DIA A COCHICHAR SOBRE ELE. PARECIA QUE TINHA IDO VIVER PARA COPENHAGA, MAS HAVIA RUMORES DE QUE UM ESCÂNDALO O FORÇARA A VIR PARA A SUÉCIA.
DAGMAR OLHOU PARA ELE. ERA O HOMEM MAIS BONITO QUE ALGUMA VEZ VIRA. NÃO PARECIA ESTAR TÃO BÊBADO COMO MUITOS DOS OUTROS CONVIDADOS E O SEU OLHAR ERA FIRME QUANDO A OLHOU NOS OLHOS. FICARAM PARA ALI DURANTE UM LONGO MOMENTO, A OLHAR UM PARA O OUTRO. DAGMAR ERGUEU O QUEIXO. SABIA QUE ERA LINDA. TINHA-LHO SIDO CONFIRMADO MUITAS VEZES POR HOMENS QUE LHE PERCORRIAM O CORPO COM AS MÃOS E LHE DIZIAM PALAVRAS OFEGANTES AO OUVIDO. MAS DAGMAR ESTIVERA TÃO SATISFEITA COM A SUA PRÓPRIA BELEZA.
SEM TIRAR OS OLHOS DELA, O PILOTO ABAIXOU-SE E COMEÇOU A APANHAR OS PEDAÇOS DE VIDRO DAS GARRAFAS PARTIDAS. CUIDADOSAMENTE, LEVOU-OS ATÉ UNS ARBUSTOS E ATIROU-OS AO CHÃO. ENTÃO, LEVOU O DEDO AOS LÁBIOS, DESCEU À ADEGA E TROUXE MAIS DUAS GARRAFAS. DAGMAR SORRIU AGRADECIDA QUANDO SE APROXIMOU PARA LHE TIRAR AS GARRAFAS DAS MÃOS. QUANDO OLHOU DE RELANCE PARA AS MÃOS DELE PERCEBEU QUE O PILOTO ESTAVA A SANGRAR DE UM CORTE NO INDICADOR ESQUERDO.
DAGMAR FEZ UM GESTO PARA MOSTRAR QUE QUERIA OBSERVAR-LHE A MÃO, POR ISSO, O PILOTO POUSOU AS GARRAFAS NO CHÃO.
NÃO ERA UM CORTE PROFUNDO, MAS ESTAVA A SANGRAR MUITO. COM OS OLHOS FIXOS NOS DELE, DAGMAR LEVOU O DEDO À BOCA E SORVEU DELICADAMENTE O SANGUE. OS OLHOS DO PILOTO ARREGALARAM-SE E DAGMAR SENTIU UM OLHAR FAMILIAR QUANDO FICARAM VIDRADOS. AFASTOU-SE E PEGOU NAS GARRAFAS. QUANDO SE VIROU E SE DIRIGIU AOS CONVIDADOS, SENTIU OS OLHOS DO PILOTO A SEGUI-LA.
Patrik tinha reunido os colegas para debater o caso. Era importante que Mellberg ficasse ao corrente dos acontecimentos. Aclarou a garganta.
– O Bertil não estava cá no fim de semana, por isso não sei se ouviu falar do que aconteceu.
– Não, conte-me – exigiu Mellberg, olhando para Patrik.
– No sábado houve um incêndio na colónia balnear, em Valö. Há indícios de fogo posto.
– Fogo posto?
– Ainda não tivemos a confirmação. Estamos à espera do relatório do Torbjörn – disse Patrik. Hesitou por um momento antes de prosseguir. – Mas há indícios suficientes para que continuemos a trabalhar no caso.
Patrik apontou para Gösta, que estava junto ao quadro branco de marcador na mão.
– De vez em quando, o Gösta consulta o processo sobre a família que desapareceu em Valö. Ele... – começou a dizer Patrik antes de ser interrompido.
– Conheço o caso de que está a falar. Toda a gente conhece essa história antiga. Mas o que é que esse caso tem que ver com isto? – perguntou Mellberg. Inclinou-se para acariciar o cão, Ernst, que estava deitado debaixo da sua cadeira.
– Não temos a certeza. – Patrik já estava a sentir-se cansado. Tinha sempre de comunicar tudo a Mellberg, que era oficialmente o comandante da esquadra, embora na prática estivesse mais do que disposto a deixar Patrik assumir toda a responsabilidade. Desde que pudesse receber todos os louros quando o caso fosse solucionado. – Partimos para a investigação sem quaisquer noções preconcebidas. Mas parece muito estranho que isto aconteça quando o único membro sobrevivente da família, a filha, regressa à ilha pela primeira vez em trinta e cinco anos.
– O mais certo é terem sido eles próprios a pegar fogo à casa para receberem o dinheiro do seguro – disse Mellberg.
– Estou a investigar as finanças deles – afirmou Martin, que estava sentado ao lado de Annika. Parecia estranhamente deprimido. – Amanhã de manhã já devo ter alguma novidade.
– Ótimo. Tenho a certeza de que isso vai resolver o mistério. O mais provável é terem percebido que recuperar aquela velha monstruosidade ia sair-lhes caro e então decidiram que faria mais sentido incendiá-la. Vi muito disso durante os meus dias em Gotemburgo.
– Como eu disse, por enquanto não vamos ater-nos a nenhuma teoria específica – afirmou Patrik. – Agora parece-me que devíamos deixar o Gösta dizer-nos o que recorda.
Patrik sentou-se e acenou com a cabeça a Gösta para que o colega começasse. O que Erica lhe contara durante a viagem de barco pelo arquipélago era fascinante. Agora queria ouvir o que Gösta tinha para lhes contar sobre a antiga investigação.
– Tenho a certeza de que todos vocês estão familiarizados com o caso, mas se não se importam vou começar pelo princípio. – Gösta olhou em volta, e todos os colegas sentados à mesa assentiram.
– No dia 13 de abril de 1974, sábado de Páscoa, alguém telefonou para a esquadra de Tanum a pedir que a polícia se deslocasse ao colégio interno de Valö. A pessoa que fez a chamada desligou antes de explicar o que tinha acontecido. Quem atendeu o telefonema foi o chefe da polícia da altura e, de acordo com ele, era impossível dizer se o informador era homem ou mulher. – Gösta parou por um momento, como se a sua mente o estivesse a transportar até àquele momento no passado. – Mandaram-me a mim e ao meu colega, Henry Ljung, ir à ilha para saber o que estava a acontecer. Meia hora mais tarde chegámos ao local e deparámo-nos com algo estranho. A mesa da sala de jantar estava preparada para o almoço de Páscoa e havia sobras de comida nos pratos, embora não houvesse qualquer vestígio da família que lá morava. A única pessoa presente era uma menina de um ano, Ebba, que gatinhava pela sala. Era como se o resto da família se tivesse esfumado. Como se se tivessem levantado a meio da refeição e desaparecido.
– Puf! – disse Mellberg. Gösta lançou-lhe um olhar fulminante.
– Onde estavam os alunos? – perguntou Martin.
– Como eram as férias da Páscoa, a maior parte fora para casa da família. Só tinham ficado alguns em Valö e não se viam quando chegámos. Porém, passado pouco tempo, apareceram cinco rapazes num barco. Disseram que tinham ido pescar por umas horas. Durante as semanas seguintes, interrogámo-los insistentemente, mas nada sabiam sobre o que acontecera à família. Eu próprio conversei com eles e todos disseram a mesma coisa: não tinham sido convidados para o almoço de Páscoa da família, de modo que tinham ido à pesca. Quando deixaram a ilha, tudo estava perfeitamente normal.
– O barco da família ainda estava no cais? – perguntou Patrik.
– Sim. E vasculhámos a ilha de ponta a ponta, mas não havia nenhum vestígio deles. – Gösta abanou a cabeça.
– De quantas pessoas estamos a falar? – contra a sua vontade, a curiosidade de Mellberg tinha sido despertada e o superintendente estava inclinado para a frente para ouvir melhor.
– Havia dois adultos e quatro crianças na família. Uma das crianças era a pequena Ebba, claro. Portanto, desapareceram os adultos e três crianças. – Gösta virou-se para escrever no quadro. – O pai, Rune Elvander, era o diretor do colégio. Tinha sido militar e foi dele a ideia de fundar um colégio interno para rapazes cujos pais estabeleciam padrões de educação elevados, aliados a uma disciplina rigorosa. Ensino de primeira classe, regras para formar o caráter e atividades ao ar livre revigorantes para rapazes de boas famílias. Era assim que a escola era descrita no folheto, se bem me lembro.
– Jesus, isso parece saído dos anos vinte – disse Mellberg.
– Sempre houve pais a ansiar pelos bons velhos tempos e era exatamente isso que Rune Elvander oferecia – afirmou Gösta, retomando o seu relatório. – A mãe de Ebba chamava-se Inez. Tinha vinte e três anos à data do desaparecimento e era significativamente mais nova do que Rune, que estava na casa dos cinquenta. Rune também tinha três filhos de um casamento anterior: Claes, de dezanove anos; Annelie, de dezasseis; e Johan, com nove anos. A mãe deles, Carla, morreu um ano antes de Rune voltar a casar. De acordo com os cinco alunos, parecia haver uma série de problemas na família, mas foi tudo o que consegui sacar-lhes.
– Quantos alunos frequentavam o colégio interno durante os períodos letivos? – perguntou Martin.
– Variava um pouco, mas eram cerca de vinte. Além de Rune, havia dois outros professores, mas também tinham ido passar a Páscoa a casa.
– E suponho que tinham álibis para o momento em que a família desapareceu, certo? – perguntou Patrik, olhando para Gösta.
– Sim, tinham. Um deles fora passar a Páscoa a casa de uns familiares em Estocolmo. A princípio, ficámos um pouco desconfiados do outro professor, porque não parava de arranjar desculpas e não quis dizer-nos onde tinha estado. Mas descobriu-se que tinha ido de férias para um país soalheiro qualquer com o namorado, daí todo aquele secretismo. Não queria que ninguém descobrisse que era homossexual. Tinha tido o máximo cuidado em esconder o facto na escola.
– E os alunos que foram passar as férias a casa? Interrogaste-os a todos? – perguntou Patrik.
– Sem exceção. E as famílias confirmaram que os rapazes tinham passado a Páscoa em casa e nunca tinham estado sequer perto da ilha. A propósito, todos os pais pareciam satisfeitos com o efeito que o colégio estava a ter nos filhos. Estavam extremamente preocupados por não poderem voltar a frequentar o colégio interno. Fiquei com a impressão de que muitos dos pais consideravam que era um incómodo ter os rapazes em casa, mesmo durante as férias.
– Muito bem. E não encontraste nenhuma prova a indicar o que podia ter acontecido à família?
Gösta abanou a cabeça.
– Claro que não tínhamos o equipamento nem os conhecimentos que temos hoje em dia; por isso, a investigação forense foi feita com os meios de que dispúnhamos na altura. Mas todos deram o seu melhor e não havia nada. Ou melhor: não encontrámos nada. Mas fiquei sempre com a sensação de que nos estava a escapar alguma coisa, embora nunca tenha conseguido perceber o que era.
– O que aconteceu à miúda? – perguntou Annika, que ficava sempre preocupadíssima com qualquer criança em apuros.
– Não havia parentes vivos, de modo que a Ebba foi viver com uma família de acolhimento em Gotemburgo. Pelo que sei, acabaram por adotá-la – Gösta parou por um momento, olhando para baixo, para as mãos. – Tenho de dizer que fizemos um bom trabalho. Investigámos todas as pistas possíveis e tentámos estabelecer o motivo. Vasculhámos o passado de Rune, mas não encontrámos esqueletos no armário. Batemos a muitas portas em Fjällbacka, para saber se alguém tinha visto alguma coisa fora do comum. Abordámos o caso de todos os ângulos imagináveis, mas nunca fizemos nenhum progresso. Sem provas, era impossível descobrir se a família tinha sido assassinada, raptada ou se pura e simplesmente tinha partido voluntariamente.
– Fascinante – comentou Mellberg, aclarando a garganta. – Mas continuo sem perceber porque é que precisamos de relembrar este caso antigo. Não há nenhuma razão para complicar desnecessariamente as coisas. Ou essa tal Ebba e o marido pegaram fogo à própria casa ou então foram uns miúdos que se lembraram de lhes pregar uma partida.
– Não lhe parece que isto parece envolver um planeamento mais sofisticado, que se calhar não foi obra de um bando de adolescentes aborrecidos? – perguntou Patrik. – Se queriam incendiar uma casa, era muito mais simples fazê-lo na cidade do que ir de barco até Valö. E, como dissemos, o Martin está a investigar se podemos estar perante uma tentativa de defraudar a seguradora. Depois de ouvir o Gösta expor o caso antigo, mais forte é a minha intuição de que o fogo está relacionado com o que aconteceu quando a família desapareceu.
– Você e a sua intuição – disse Mellberg. – Não há nada de concreto que aponte para uma ligação. Sei que já acertou algumas vezes no passado, mas, neste caso, acho que está bastante equivocado. – Mellberg levantou-se, claramente satisfeito por ter partilhado o que considerava ser a verdade do dia.
Patrik encolheu os ombros, desvalorizando completamente as declarações do chefe. Há muito que deixara de levar a opinião de Mellberg em linha de conta. Na verdade, nunca se interessara pelos pontos de vista de Mellberg. Por isso, atribuiu as várias tarefas aos colegas e deu por terminada a reunião.
Quando ia a sair da sala, Martin chamou-o à parte.
– Posso tirar a tarde? Eu sei que é muito em cima da hora, mas...
– Claro, claro que podes, se é importante. O que se passa?
Martin hesitou.
– É um assunto pessoal. Prefiro não falar disso agora. Não levas a mal, pois não?
Havia algo no tom de voz do colega que impediu Patrik de fazer mais perguntas, mas ficou magoado por Martin não confiar nele. Considerava que tinham criado uma relação estreita durante os anos em que trabalharam juntos e que Martin deveria sentir-se à vontade para se abrir com ele acerca dos seus problemas.
– Não posso falar sobre isto – disse Martin, como se lesse o pensamento de Patrik. – Então não há problema se eu sair depois do almoço?
– Claro que não. Não há problema nenhum.
Martin lançou-lhe um leve sorriso e virou-se para sair.
– Mas se precisares de desabafar, eu estou cá para isso – disse Patrik.
– Eu sei. – Martin hesitou, mas depois afastou-se pelo corredor.
Quando descia as escadas, Anna já sabia o que ia ver na cozinha. Dan estaria sentado à mesa, enfiado no seu roupão velho, profundamente embrenhado no jornal da manhã e com uma chávena de café na mão.
Quando a viu entrar na cozinha, o rosto de Dan iluminou-se.
– Bom dia, meu amor. – Dan esticou-se para lhe dar um beijo.
– Bom dia – Anna virou a cabeça. – De manhã tenho um hálito horrível – disse em tom de desculpa, mas o mal já estava feito. Dan levantou-se sem dizer uma palavra dirigiu-se ao lava-louças para pôr a chávena lá dentro.
Porque é que tinha de ser tão difícil? Estava sempre a dizer e a fazer o que não devia. Queria que tudo voltasse ao normal, a ser como era. Queria restabelecer a relação natural que tinham antes do acidente.
Dan começou a lavar a louça do pequeno-almoço e Anna aproximou-se, abraçando-o por trás e encostando-lhe a face às costas. Mas a única coisa que sentiu no corpo tenso do companheiro foi frustração. Uma frustração que a contagiou, fazendo com que o seu desejo de proximidade desaparecesse, pelo menos por enquanto. Era impossível saber se, ou quando se proporcionaria outro momento assim.
Com um suspiro, Anna soltou Dan e sentou-se à mesa da cozinha.
– Preciso de voltar a trabalhar – disse, pegando numa fatia de pão e estendendo a mão para a faca da manteiga.
Dan virou-se e encostou-se à bancada de braços cruzados.
– Que género de trabalho?
Anna hesitou antes de responder:
– Gostava de montar o meu próprio negócio.
– É uma excelente ideia! Que género de negócio? Uma loja? Eu podia ver por aí se há alguma coisa disponível.
Dan lançou-lhe um sorriso rasgado, porém, de alguma forma, aquela reação ansiosa abafou o entusiasmo de Anna. Aquela ideia era dela e não queria partilhá-la, embora não conseguisse explicar porquê.
– Quero fazer isto sozinha – disse Anna, apercebendo-se do tom agudo da sua voz.
A alegria desapareceu instantaneamente do rosto de Dan.
– Claro, força – disse o companheiro, continuando a lavar ruidosamente a loiça.
«Merda, merda, merda.» Anna amaldiçoou-se em silêncio, cerrando os punhos.
– Estava a pensar abrir uma loja. Mas vou ter de a decorar sozinha, ir à procura de antiguidades e coisas assim – as palavras jorravam enquanto tentava recuperar a atenção de Dan. Mas o marido estava a fazer demasiado barulho a lavar os copos e os pratos, e não reagiu. As costas de Dan pareciam rígidas e implacáveis.
Anna pousou a fatia de pão no prato. Tinha perdido o apetite.
– Vou dar uma volta – disse, levantando-se e saindo da cozinha para ir ao andar de cima vestir-se. Dan não disse uma palavra.
– Que bom terem vindo petiscar connosco – disse Pyttan.
– É um prazer vir até cá e ver como vive a outra metade. – Sebastian riu-se e deu uma palmada tão forte nas costas de Percy que este tossiu.
– Bem, tu não estás propriamente na miséria.
Percy sorriu para si mesmo. Pyttan nunca fizera segredo do que pensava da mansão sumptuosa de Sebastian, com as duas piscinas e o campo de ténis. A casa podia ser mais pequena do que Fygelsta, mas era muito mais opulenta. «O dinheiro não consegue comprar o bom gosto», costumava dizer Pyttan sempre que iam lá a casa, torcendo o nariz às molduras douradas reluzentes e aos enormes lustres de cristal. Percy estava inclinado a concordar.
– Vem sentar-te – disse Percy, convidando Sebastian para o terraço onde a mesa já estava posta para o almoço. Naquela época do ano, Fygelsta era imbatível. O belo parque estendia-se até onde o olhar alcançava. Tinha sido meticulosamente cuidado durante várias gerações, mas não demoraria muito para que começasse a ser negligenciado, como acontecera com o palacete. Até Percy conseguir pôr as finanças em ordem, teriam de passar sem jardineiros.
Sebastian sentou-se e recostou-se na cadeira, os óculos de sol puxados para a testa.
– Um pouco de vinho? – Pyttan estendeu uma garrafa de chardonnay de primeira categoria. Por mais que desagradasse a Pyttan a ideia de pedir ajuda a Sebastian, Percy sabia que a mulher faria o possível para apoiá-lo, agora que a decisão fora tomada. Além disso, não tinham alternativa.
Pyttan encheu o copo de Sebastian. Alheio ao facto de que era prerrogativa de Pyttan, como dona da casa, dar início à refeição, Sebastian lançou-se de imediato à entrada. Levou à boca uma grande garfada de salada de camarão com endro e começou a mastigar com a boca aberta. Percy viu a mulher desviar o olhar, repugnada.
– Quer dizer que tens um pequeno problema com os teus impostos, não é verdade?
– Sim, é uma trapalhada. Não sei o que dizer. – Percy abanou a cabeça. – Parece que já não há nada sagrado.
– Tens toda a razão. Não compensa trabalhar neste país – disse Sebastian.
– Pois. Tudo era diferente no tempo do meu pai. – Percy começou a comer, mas não sem antes lançar um olhar inquiridor a Pyttan. – Seria de esperar que as pessoas apreciassem a nossa dedicação a preservar este monumento cultural. É uma parte da História da Suécia e a nossa família tem suportado o peso da conservação, e fazêmo-lo com honra.
– É verdade. Mas os tempos mudaram – afirmou Sebastian, acenando com o garfo. – Os ventos da social-democracia já sopram há muito tempo e o facto de termos um governo conservador não parece ajudar. Não é permitido que alguém tenha mais do que o vizinho. Se isso acontecer, aqueles sacanas tiram-nos tudo o que temos. Eu também já passei por isso tudo. Este ano já paguei uma fortuna em impostos em atraso, mas felizmente apenas sobre o que tenho aqui na Suécia. Temos de ser espertos e depositar os nossos ativos no estrangeiro, onde o fisco não consegue deitar a mão a tudo o que conseguimos por nos termos matado a trabalhar.
Percy assentiu.
– Sim, claro, mas sempre investi grande parte do meu capital no palacete.
Percy não era estúpido. Sabia muito bem que Sebastian o tinha explorado ao longo dos anos. Emprestara-lhe muitas vezes o palacete para reuniões com os clientes, para caçadas ou para receber as inúmeras amantes. Perguntava-se se a mulher de Sebastian suspeitava de alguma coisa, mas isso não lhe dizia respeito. Pyttan mantinha-o com rédea curta e, pessoalmente, nunca se atreveria a tentar algo semelhante. Mas não ia começar a criticar o comportamento dos outros casais.
– Ainda assim, deves ter herdado uma quantia considerável do teu pai – disse Sebastian ao mesmo tempo que erguia o copo de vinho vazio na direção de Pyttan. Sem revelar um indício que fosse do que estava a pensar, ela pegou na garrafa e encheu-lhe o copo até à borda.
– Sim, mas sabes... – Percy mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Tinha uma profunda aversão a falar de dinheiro. – Custa uma fortuna manter Fygelsta em condições e o custo de vida continua a aumentar. É tudo tão caro hoje em dia...
Sebastian fez um sorriso rasgado.
– O custo de vida está definitivamente em ascensão.
Examinava descaradamente Pyttan, dos brincos de diamantes caros aos sapatos de salto alto Louboutin. Depois virou-se para Percy.
– Então, precisas de ajuda com o quê?
– Bem – Percy hesitou, mas depois de lançar um olhar à mulher encheu-se de coragem. Tinha de resolver a situação, caso contrário, teria de começar a investigar outras opções. – Trata-se de um empréstimo a curto prazo.
Seguiu-se um silêncio pesado, mas isso não pareceu incomodar Sebastian. Um pequeno sorriso bailou-lhe nos lábios.
– Tenho uma sugestão – acabou por dizer. – Mas acho que devíamos conversar sobre isso sozinhos, só nós os dois, como antigos colegas.
Pyttan estava prestes a protestar, mas Percy lançou-lhe um olhar severo, o que não era seu costume, pelo que Pyttan se manteve calada. Os olhos de Percy encontraram os de Sebastian e as palavras voaram silenciosamente entre eles.
– Se calhar é o melhor que temos a fazer – disse, baixando os olhos.
Sebastian fez um amplo sorriso e estendeu mais uma vez o copo para Pyttan.
Estava demasiado calor para trabalharem na fachada quando o Sol estava a pino, por isso, depois do almoço, trabalhavam dentro de casa.
– Começamos pelo chão? – perguntou Tobias na sala de jantar.
Ebba puxou um pedaço solto de papel de parede e uma grande tira despegou-se facilmente.
– Não seria melhor tratar primeiro das paredes?
– Não tenho a certeza se o chão vai aguentar-se. Há muitas pranchas a apodrecer. Acho que devíamos corrigir isso antes de fazer qualquer outra coisa. – Tobias calcou uma prancha, que cedeu sob o seu sapato.
– Okay, vamos tratar do chão – disse Ebba, pondo os óculos de proteção. – Como fazemos?
Ebba não tinha medo do trabalho árduo e estava disposta a dedicar-lhe tantas horas como Tobias. Mas o marido é que tinha experiência naquelas coisas e Ebba tinha de confiar na sua perícia.
– Uma marreta e um pé de cabra devem ser suficientes. Eu fico com a marreta e tu podes utilizar o pé de cabra, okay?
– Está bem. – Ebba pegou no pé de cabra que Tobias lhe entregou e começaram a trabalhar.
Podia sentir a adrenalina a fluir e foi com prazer que notou os bíceps a arder cada vez que enfiava o pé de cabra nos espaços entre as pranchas e as puxava. Enquanto levava o corpo ao limite não pensava em Vincent. Quando ficava banhada em suor e o ácido lático lhe preenchia os músculos ficava livre durante algum tempo. Já não era a mãe de Vincent. Era Ebba, que estava a restaurar a propriedade que herdara, que estava a desmantelá-la para depois a remodelar.
Nem pensava no fogo. Se fechasse os olhos, vinha-lhe à memória o pânico, o fumo a picar-lhe os pulmões, o calor que a fez compreender qual seria a sensação de se ser queimado vivo. E lembrou-se do que sentira: a maravilhosa sensação de por fim estar prestes a render-se.
Depois, com os olhos fixos em frente e empregando mais força do que era necessária para soltar os pregos enferrujados das vigas que havia por baixo, Ebba forçou-se a concentrar-se na tarefa que tinha em mãos. Porém, passado algum tempo, os pensamentos começaram a acumular-se. Quem quereria fazer-lhes mal? E porquê? Enquanto trabalhava, as perguntas rodopiavam-lhe constantemente na cabeça, mas não conduziam a lado nenhum. Não conseguia pensar em ninguém. Além deles próprios, não parecia haver ninguém que quisesse prejudicá-los. Tinha pensado muitas vezes que seria melhor se estivesse morta e sabia que Tobias pensara o mesmo sobre ele próprio. Mas as pessoas que conheciam tinham mostrado apenas compaixão. Não havia má vontade, não havia ódio, simplesmente pena pelo que tinham passado. Ao mesmo tempo, não havia como escapar ao facto de alguém se ter aproximado furtivamente no escuro e tentar incendiar a casa com eles lá dentro. Incapaz de expulsar estes pensamentos, Ebba parou para limpar o suor da testa.
– Está demasiado calor aqui – disse Tobias, abatendo a marreta sobre o soalho, fazendo voar pequenos pedaços de madeira em todas as direções. Tinha tirado a T-shirt, que atou ao cinto de carpinteiro.
– Tem cuidado para não te entrar nada para os olhos.
Ebba estudou o corpo de Tobias, banhado pela luz que jorrava pelas janelas sujas. Estava exatamente igual ao que era quando se tinham conhecido. Um corpo seco e vigoroso que, apesar de todo o duro trabalho manual, nunca parecia ganhar músculos. Ebba, por outro lado, nos últimos seis meses perdera as suas curvas femininas. Perdera completamente o apetite e devia ter emagrecido mais de dez quilos. Não sabia ao certo, já que nunca se preocupava em pesar-se.
Trabalharam em silêncio durante algum tempo. Uma mosca zumbia furiosamente contra uma vidraça. Tobias aproximou-se e abriu a janela de par em par. Lá fora não corria uma aragem, por isso não serviu de nada, mas a mosca conseguiu escapar e Ebba e Tobias livraram-se daquele zumbido constante.
Durante todo o tempo em que estiveram a trabalhar, Ebba esteve ciente do que em tempos acontecera. A história da casa estava nas suas paredes. Imaginou todas as crianças que iam passar o verão na colónia, para apanhar ar fresco e são, como dizia um artigo de uma edição antiga do Fjällbacka-Bladet que Ebba encontrou. A casa também teve outros proprietários, incluindo o pai, mas era principalmente nas crianças que Ebba pensava. Que aventura devia ter sido deixarem os pais por uns dias e irem até ali para confraternizar com outras crianças que não conheciam. Dias soalheiros passados a nadar no mar, regras e regulamentos misturados com jogos e muita animação. Podia ouvir o riso, mas também os gritos daquelas crianças. O artigo também mencionava um caso de maus-tratos; por isso, talvez nem tudo tivesse sido assim tão idílico. Às vezes, Ebba perguntava a si própria se os gritos viriam apenas da colónia balnear ou se o que sentia sobre a casa não se teria misturado com outras memórias. Havia algo assustadoramente familiar naqueles gritos, mas Ebba era muito nova quando ali vivera. Aquelas memórias, se era disso que se tratava, deviam ser as que a própria casa encerrava, não as suas.
– Achas que vamos conseguir? – perguntou Tobias, inclinando-se sobre a marreta.
Perdida nos seus pensamentos, Ebba deu um salto ao ouvir a voz ao seu lado. Tobias agarrou a T-shirt que lhe pendia do cinto e serviu-se dela para limpar o rosto. Depois olhou para ela. Ebba não queria olhá-lo nos olhos. Em vez disso, lançou-lhe um olhar furtivo e continuou a trabalhar numa prancha que se recusava a sair. Aparentemente, Tobias referia-se à remodelação, mas Ebba percebeu que a pergunta era muito mais abrangente. E não tinha uma resposta para lhe dar.
Como Ebba não respondeu, Tobias suspirou e voltou a pegar na marreta. Martelou as pranchas, que gemiam a cada golpe. Um grande buraco começava a tomar forma no soalho de madeira à sua frente. Ergueu mais uma vez a marreta. Depois baixou-a.
– Mas que... Ebba, anda ver isto! – disse Tobias, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse.
Ebba ainda estava a tentar soltar a prancha teimosa, mas a curiosidade levou a melhor sobre ela.
– O que é? – perguntou, já junto do marido.
Tobias apontou para o buraco no soalho.
– Que te parece aquilo?
Ebba agachou-se para ver melhor. Franziu a testa. Via-se uma grande mancha escura onde o soalho tinha sido removido. Alcatrão. Foi a primeira coisa em que pensou, mas então apercebeu-se do que podia ser.
– Parece sangue – disse. – Muito sangue.
FJÄLLBACKA, 1919
DAGMAR ERA SUFICIENTEMENTE INTELIGENTE PARA PERCEBER QUE NÃO ERA APENAS POR CAUSA DA SUA HABILIDADE A SERVIR À MESA E PELO SEU BELO ROSTO QUE A CONTRATAVAM PARA TRABALHAR EM FESTAS DADAS PELOS RICOS. AS PESSOAS SUSSURRAVAM E NÃO O FAZIAM COM MUITA DISCRIÇÃO. O CASAL ANFITRIÃO ENCARREGAVA-SE SEMPRE DE FAZER COM QUE TODOS OS CONVIDADOS SOUBESSEM IMEDIATAMENTE QUEM ELA ERA E, NAQUELA FESTA, DAGMAR VOLTOU A SENTIR OS OLHOS DOS QUE PROCURAVAM SENSAÇÕES FORTES CRAVADOS NELA.
«A MÃE DELA... A FAZEDORA DE ANJOS... EXECUTADA...» AS PALAVRAS VOAVAM PELO AR COMO PEQUENAS VESPAS CUJO FERRÃO PICAVA, MAS DAGMAR APRENDERA A MANTER UM SORRISO NO ROSTO E A FINGIR QUE NÃO OUVIA.
AQUELA FESTA NÃO ERA EXCEÇÃO. QUANDO PASSAVA, OS CONVIDADOS JUNTAVAM AS CABEÇAS PARA MURMURAR E PRODUZIAM LEVES ACENOS REVELADORES. UMA DAS MULHERES LEVOU A MÃO À BOCA, ASSUSTADA, E OLHOU ABERTAMENTE PARA DAGMAR, QUE ESTAVA A ENCHER-LHE O COPO DE VINHO. O PILOTO ALEMÃO OBSERVAVA COM ESPANTO ÓBVIO A AGITAÇÃO QUE AQUELA RAPARIGA ESTAVA A PROVOCAR E, PELO CANTO DO OLHO, DAGMAR VIU-O INCLINAR-SE PARA A MULHER SENTADA AO LADO DELE. A MULHER SUSSURROU-LHE ALGO AO OUVIDO. O CORAÇÃO DE DAGMAR BATEU COM MAIS FORÇA. ESPEROU PARA VER A REAÇÃO DO PILOTO. A EXPRESSÃO DO ALEMÃO MUDOU; PORÉM, EM SEGUIDA, OS SEUS OLHOS BRILHARAM. ESTUDOU-A CALMAMENTE POR UM MOMENTO E DEPOIS ERGUEU O COPO NA SUA DIREÇÃO. DAGMAR SORRIU-LHE E SENTIU O CORAÇÃO BATER AINDA MAIS DEPRESSA.
O NÍVEL DE RUÍDO NA GRANDE MESA AO AR LIVRE SUBIA À MEDIDA QUE AS HORAS PASSAVAM. A ESCURIDÃO COMEÇOU A CAIR E, EMBORA A NOITE DE VERÃO AINDA ESTIVESSE QUENTE, ALGUNS DOS CONVIDADOS RETIRARAM-SE PARA OS SALÕES NO INTERIOR, ONDE CONTINUARAM A BEBER. OS SJÖLIN NÃO POUPAVAM NO ÁLCOOL E O PILOTO PARECIA JÁ TER BEBIDO BASTANTE. COM A MÃO A TREMER LIGEIRAMENTE, DAGMAR ENCHERA-LHE O COPO VÁRIAS VEZES. SURPREENDEU-SE COM A SUA PRÓPRIA REAÇÃO. JÁ TINHA CONHECIDO UMA DATA DE HOMENS E MUITOS DELES ERAM BASTANTE BONITOS. MUITOS SABIAM EXATAMENTE O QUE DIZER E COMO TOCAR NUMA MULHER, MAS NENHUM DELES LHE CAUSARA AQUELA SENSAÇÃO DE TER BORBOLETAS NO ESTÔMAGO.
QUANDO VOLTOU A SERVI-LO, A MÃO DO PILOTO ROÇOU NA DELA. NINGUÉM PARECEU REPARAR E ELA DEU O SEU MELHOR PARA PARECER IMPERTURBÁVEL, EMBORA ENDIREITASSE UM POUCO MAIS O PEITO.
– WIE HEISSEN SIE? – PERGUNTOU O PILOTO EM ALEMÃO, OLHANDO PARA ELA COM OS OLHOS BRILHANTES.
DAGMAR LANÇOU-LHE UM OLHAR PERPLEXO. O SUECO ERA O ÚNICO IDIOMA QUE CONHECIA.
– COMO SE CHAMA? – DISSE COM VOZ ARRASTADA O HOMEM SENTADO À FRENTE DO PILOTO. – ELE QUER SABER O SEU NOME. DIGA AO PILOTO COMO SE CHAMA, MINHA LINDA, E DEPOIS TALVEZ QUEIRA VIR SENTAR-SE UM BOCADINHO NO MEU COLO, PARA DESCOBRIR QUAL É A SENSAÇÃO DE ESTAR AO PÉ DE UM HOMEM COMO DEVE SER... – ACRESCENTOU, RINDO-SE MUITO ALTO DA PRÓPRIA PIADA E DANDO UMA PALMADINHA NAS COXAS GORDAS.
DAGMAR FRANZIU O NARIZ COM REPULSA E VOLTOU-SE PARA O PILOTO.
– DAGMAR – DISSE. – CHAMO-ME DAGMAR.
– DAGMAR – REPETIU O ALEMÃO. DEPOIS APONTOU COM UM GESTO EXAGERADO PARA O PRÓPRIO PEITO. – HERMANN – DISSE. – ICH HEISSE HERMANN.
DEPOIS DE UMA BREVE PAUSA, HERMANN ERGUEU A MÃO PARA LHE TOCAR NA CABEÇA E DAGMAR SENTIU OS PELINHOS DOS BRAÇOS ERIÇAREM-SE. O PILOTO DISSE MAIS QUALQUER COISA EM ALEMÃO E DAGMAR VIROU-SE PARA O HOMEM GORDO SENTADO DO OUTRO LADO DA MESA.
– DISSE QUE GOSTAVA SE SABER COMO FICA O SEU CABELO QUANDO ESTÁ SOLTO – O HOMEM RIU-SE OUTRA VEZ MUITO ALTO, COMO SE TIVESSE DITO ALGO EXTREMAMENTE ENGRAÇADO.
DAGMAR LEVOU INSTINTIVAMENTE A MÃO AO CABELO, QUE ESTAVA COMPOSTO NUM COQUE. O CABELO LOURO ERA TÃO ESPESSO QUE NUNCA CONSEGUIA PRENDÊ-LO CORRETAMENTE, E ALGUNS CARACÓIS REBELDES SOLTAVAM-SE CONSTANTEMENTE.
– VAI TER DE CONTINUAR A IMAGINAR. DIGA-LHE ISSO – AFIRMOU DAGMAR, E VIROU-SE PARA SE IR EMBORA.
O HOMEM GORDO DEU UMA GARGALHADA E PROFERIU VÁRIAS FRASES LONGAS EM ALEMÃO. O PILOTO NÃO SE RIU. DAGMAR AINDA ALI ESTAVA, DE COSTAS PARA ELE, E SENTIU A MÃO DE HERMANN A TOCAR-LHE NOVAMENTE NA NUCA. COM UM PUXÃO, O PILOTO ARRANCOU-LHE A TRAVESSA E O CABELO CAIU-LHE EM CASCATA PELAS COSTAS.
HIRTA, VIROU-SE PARA O ENCARAR. POR ALGUNS MOMENTOS, DAGMAR E O PILOTO ALEMÃO OLHARAM UM PARA O OUTRO, AO SOM DAS RUIDOSAS GARGALHADAS DO GORDO. ALCANÇARAM UM ENTENDIMENTO TÁCITO E, COM O CABELO AINDA SOLTO, DAGMAR CAMINHOU EM DIREÇÃO À CASA ONDE OS CACAREJOS E OS UIVOS DOS OUTROS CONVIDADOS QUEBRAVAM A PAZ DA NOITE DE VERÃO.
Patrik estava agachado ao lado do grande buraco no chão. As pranchas estavam velhas e podres, e era óbvio que o soalho precisava de ser substituído. Por isso, o que tinham encontrado por baixo ainda era mais surpreendente. Sentiu um nó a formar-se na boca do estômago.
– Fizeram bem em chamar-nos de imediato – disse sem tirar os olhos do buraco.
– É sangue, não é? – Tobias engoliu em seco. – Não sei que aspeto tem o sangue antigo e também pode ser alcatrão, ou outra coisa qualquer. Mas, tendo em conta...
– Realmente parece ser sangue. Podes ligar aos técnicos forenses, Gösta? Têm de cá vir dar uma vista de olhos a isto. – Patrik levantou-se, fazendo uma careta quando ouviu como as articulações rangiam. Um lembrete de que não estava a ficar mais novo.
Gösta assentiu e afastou-se um pouco enquanto marcava o número no telemóvel.
– Acha que há mais alguma coisa... lá em baixo? – perguntou Ebba com voz trémula.
Patrik apercebeu-se imediatamente do que Ebba estava a insinuar.
– É impossível dizer. Vamos ter de arrancar o resto do soalho para ver o que conseguimos encontrar.
– Por acaso dá-nos jeito alguma ajuda nas obras, mas não era exatamente isso que tinha em mente – disse Tobias com uma risada oca. Mas ninguém mais se riu.
Gösta terminou o telefonema e foi juntar-se a eles.
– Os técnicos só podem vir cá amanhã. Por isso peço-vos que deixem tudo como está até que cheguem. Não devem mexer em nada. Não podem limpar nem arrumar a casa.
– Não vamos mexer em nada. Porque haveríamos de fazer uma coisa dessas? – perguntou Tobias.
– Esta é a minha oportunidade de descobrir o que aconteceu – disse Ebba.
– Talvez possamos sentar-nos em algum lado e conversar um pouco. – Patrik afastou-se da parte do soalho removida, mas o que vira já lhe ficara gravado na memória. Estava convencido de que era sangue. Uma camada espessa de sangue coagulado, já não vermelho mas escurecido com o tempo. Se a sua teoria estivesse certa, o sangue devia ter mais de trinta anos.
– Podemos sentar-nos na cozinha, que é agradável e está arrumada – disse Tobias, fazendo um movimento para mostrar o caminho a Patrik. Ebba ficou onde estava, juntamente com Gösta.
– Vens? – perguntou Tobias, virando-se para a mulher.
– Vão andando. Eu e a Ebba já lá vamos ter – disse Gösta.
Patrik estava prestes a dizer que era principalmente com Ebba que precisavam de conversar. Mas olhou de relance para o rosto pálido da mulher e apercebeu-se de que Gösta tinha razão. Ebba precisava de um momento para si própria e não havia realmente nenhuma pressa.
Descrever a cozinha como agradável e arrumada provou-se um exagero. Havia ferramentas e pincéis espalhados por toda a parte e a bancada estava atulhada com pilhas de pratos sujos e com os restos do pequeno-almoço.
Tobias sentou-se à mesa da cozinha.
– Eu e Ebba somos um bocado maníacos da arrumação. Ou melhor, éramos – corrigiu-se Tobias. – É difícil de acreditar quando se vê as coisas neste estado, não é?
– As remodelações são uma coisa diabólica – disse Patrik, sentando-se numa cadeira depois de sacudir algumas migalhas de pão.
– Já não parece muito importante manter tudo arrumado e limpo. –Tobias olhou para a janela da cozinha. Estava coberta de poeira, como se um véu tivesse descido sobre ela para esconder a vista.
– Quem conhece o passado de Ebba? – perguntou Patrik.
Podia ouvir Gösta e Ebba a conversar na sala de jantar, mas apesar de tentar, não conseguia perceber o que estavam a dizer. O comportamento de Gösta surpreendeu-o. Na esquadra, quando se precipitara para o gabinete do colega para lhe contar o que acontecera, a reação dele parecera-lhe completamente fora do normal. Mas, depois, Gösta tinha-se fechado como uma ostra, permanecendo em silêncio durante toda a viagem até Valö.
– Os meus pais e os pais adotivos da Ebba são bons amigos e o que aconteceu no passado dela nunca foi um segredo. Por isso, sei há muito tempo que a família da Ebba desapareceu sem deixar rasto. Não acho que haja muito mais para saber, pois não?
– Não. A polícia não fez qualquer progresso na investigação, apesar de ter gasto bastante tempo e de se ter empenhado muito. O motivo de terem pura e simplesmente desaparecido continua a ser um mistério.
– Talvez nunca tenham saído daqui. – A voz de Ebba fez com que os dois dessem um salto nas cadeiras.
– Não me parece que estejam ali – disse Gösta, parando à entrada. – Se alguém tivesse danificado o soalho de alguma forma, teríamos reparado. As pranchas estavam intactas e também não havia nenhum vestígio de sangue. Deve ter-se infiltrado por entre as pranchas.
– Pois, mas eu quero ter a certeza absoluta de que não estão lá em baixo – disse Ebba.
– Amanhã, quando chegarem cá, os técnicos vão inspecionar cada milímetro da casa. Pode ter a certeza disso – garantiu Gösta, pondo o braço sobre os ombros de Ebba.
Patrik olhou espantado para aquela cena. Habitualmente, quando estavam em serviço, Gösta esforçava-se muito pouco. E Patrik não conseguia lembrar-se de alguma vez ter visto o colega tocar noutra pessoa.
– Agora precisa de tomar um café forte. – Gösta deu a Ebba uma palmadinha no ombro e foi ligar a máquina de café. Enquanto o café começava a gotejar para dentro do pote, Gösta lavou algumas chávenas no lava-louças da cozinha.
– Porque não nos diz o que sabe sobre o que aconteceu aqui? – Patrik puxou uma cadeira para que Ebba se sentasse.
Ebba assim fez e Patrik ficou impressionado com a magreza da mulher. A T-shirt parecia grande de mais e os ossos notavam-se claramente sob o tecido.
– Não me parece que possa dizer-vos nada que as pessoas destas bandas já não saibam. Só tinha um ano naquela altura, por isso não me lembro. E os meus pais adotivos só sabem que alguém chamou a polícia para informar que algo tinha acontecido. Quando a polícia chegou, a minha família tinha desaparecido e eu estava para aqui sozinha. Desapareceram no sábado de Páscoa. – Ebba sacou o pingente que estava escondido debaixo da T-shirt e começou a repuxá-lo, tal como Patrik a vira fazer no dia anterior. O gesto fazia-a parecer ainda mais frágil.
– Tome. – Gösta pousou uma chávena de café à frente de Ebba e serviu um para si antes de se sentar. Patrik não pôde deixar de sorrir. Ali estava outra vez o velho Gösta de sempre.
– Que tal um café também para nós?
– Tenho cara de empregado de mesa?
Tobias levantou-se.
– Eu trato disso.
– É verdade que ficou sozinha quando a sua família desapareceu? Que não tinha mais parentes vivos? – perguntou Patrik.
Ebba assentiu.
– Sim. A minha mãe não tinha irmãos nem irmãs e a minha avó materna morreu antes de eu completar um ano. O meu pai era muito mais velho, e os pais dele há muito que não eram vivos. A minha única família é a adotiva. E, em certo sentido, tive muita sorte. Berit e Sture sempre me fizeram sentir como se fosse a verdadeira filha deles.
– Alguns rapazes do colégio ficaram por cá durante as férias da Páscoa. Alguma vez entrou em contacto com algum deles?
– Não, porque haveria de fazer uma coisa dessas? – Os olhos de Ebba pareciam enormes no seu rosto magro.
– Não tivemos nada que ver com este sítio até termos decidido mudar-nos para cá – disse Tobias. – A Ebba herdou a casa quando os pais biológicos foram declarados mortos, mas depois foi alugada várias vezes. Mas houve períodos em que ficou vazia. Foi precisamente isso que nos levou a decidir começar a recuperá-la. Não havia ninguém a tratar da casa. Desde que a família da Ebba desapareceu, apenas foram feitas as reparações mais básicas.
– Acho que estávamos destinados a vir cá arrancar o soalho – disse Ebba. – Há uma razão para tudo.
– A sério? – disse Tobias. – Para tudo?
Mas Ebba não respondeu e, quando Tobias seguiu Patrik e Gösta até à porta, ainda permanecia sentada à mesa em silêncio.
Quando se afastavam de Valö, Patrik matutava na mesma pergunta. Que fariam se os técnicos confirmassem que o que se encontrava sob o soalho era sangue? O crime já tinha prescrito. Tinha passado demasiado tempo e não havia garantias de que pudessem ser encontradas respostas tantos anos depois de aquilo ter acontecido. Por isso, para que servia aquela descoberta? Enquanto manobrava o barco de regresso a Fjällbacka, a cabeça de Patrik fervilhava de pensamentos inquietos.
O médico parou de falar e no gabinete fez-se um silêncio absoluto. O único som que Martin ouvia era o bater do próprio coração. Olhou para o médico. Como podia parecer tão pouco afetado pelo que acabara de dizer? Será que dava às pessoas aquele género de notícia várias vezes por semana? E, se assim era, como conseguia suportá-lo?
Martin obrigou-se a continuar a respirar. Parecia que se tinha esquecido de como se fazia. Cada inspiração exigia um ato consciente, uma instrução específica para o cérebro.
– Quanto tempo lhe resta? – acabou por conseguir perguntar.
– Há vários tipos de tratamento e esta especialidade está em constante evolução... – o médico abriu as mãos.
– Mas qual é o prognóstico, estatisticamente falando? – perguntou Martin, tentando manter a calma. Apetecia-lhe lançar-se sobre a mesa, agarrar o médico pelo casaco e abaná-lo até obter a informação que pretendia.
Pia não disse uma palavra e Martin continuava a não conseguir olhar para ela. Se o fizesse, tudo se desmoronaria. Tudo o que podia fazer era concentrar-se nos factos. Em algo tangível, algo que pudesse compreender.
– É difícil ser preciso. Há tantos fatores envolvidos. – A mesma expressão apologética, as mãos erguidas no ar. Martin já detestava aquele gesto.
– Responda-me! – gritou, dando praticamente um salto na cadeira ao ouvir a própria voz.
– Vamos iniciar o tratamento de imediato e depois veremos como a Pia reage. Mas, tendo em conta a forma como o cancro se disseminou e a sua gravidade... Bem, estamos a falar de cerca de seis meses a um ano.
Martin olhou fixamente para o médico. Será que tinha ouvido bem? Tuva ainda não tinha dois anos. Não podia perder a mãe. Isso não podia acontecer. Começou a tremer. O pequeno gabinete estava opressivamente quente, mas Martin tinha tanto frio que os dentes lhe batiam. Pia pôs-lhe a mão no braço.
– Acalma-te, Martin. Temos de manter a calma. Há sempre uma hipótese de o prognóstico estar errado. E eu vou fazer o que for preciso para... – Pia virou-se para o médico. – Dê-me o melhor tratamento que houver. Vou lutar contra isto.
– Vamos interná-la imediatamente. Vá a casa e faça a mala. Vamos já preparar-lhe um quarto.
Martin sentiu-se envergonhado. Pia estava a ser muito forte, ao passo que ele estava à beira do colapso. Imagens de Tuva rodopiavam-lhe na mente, desde o nascimento até ao início daquela manhã, quando a filha se fora enroscar com eles na cama. O cabelo escuro desgrenhado, os olhos divertidos de tanto rir. Será que aquele riso ia ser silenciado? Será que a filha ia perder a sua alegria, a sua fé de que tudo estava bem e de que no dia seguinte estaria ainda melhor?
– Vamos ultrapassar isto. – O rosto de Pia estava pálido, mas havia uma determinação na sua expressão que Martin sabia ser um sinal da sua enorme tenacidade. E Pia precisaria de toda a determinação que conseguisse convocar para a luta mais importante da sua vida.
– Vamos buscar a Tuva a casa da minha mãe e comer qualquer coisa – disse, levantando-se. – Podemos falar com calma depois de a Tuva ter ido para a cama. E eu preciso de fazer as malas. Quanto tempo acha que passarei no hospital?
Martin levantou-se lentamente, mas as pernas pareciam prestes a ceder a qualquer momento. Era tão típico de Pia pensar nos pormenores práticos.
O médico hesitou.
– Prepare uma mala para algum tempo.
Dito isto, despediu-se e saiu para ir examinar o doente seguinte.
Martin e Pia ficaram no corredor por um momento. Em silêncio, esticaram os braços e deram as mãos.
– Tu dás-lhes sumo nos biberões? Não tens medo de que lhes faça mal aos dentes? – Kristina lançou um olhar de reprovação a Anton e a Noel, que estavam sentados no sofá, cada um com um biberão na mão.
Erica suspirou profundamente. A sogra era bem-intencionada e tinha melhorado nos últimos tempos, mas às vezes mexia-lhe mesmo com os nervos.
– Tentei dar-lhes água, mas eles recusam-se a beber. E precisam de fluidos por causa deste calor. Mas diluí bastante o sumo.
– Bem, tu é que sabes – disse Kristina, fungando. – Só te dei a minha opinião. O Patrik e a Lotta só bebiam água e nunca houve nenhum problema. Não tiveram uma única cárie antes de saírem de casa e o dentista sempre me elogiou por causa dos belos dentes que tinham.
Erica estava na cozinha a fazer limpezas bem longe do olhar de Kristina e mordeu a língua. A sogra era tolerável em pequenas doses e era extraordinária para os filhos, mas aquelas visitas de várias horas levavam a paciência de Erica até ao limite.
– Acho que vou pôr uma máquina a lavar, Erica – disse Kristina em voz alta, continuando depois a falar, como que para si própria: – É mais fácil se fores lavando a roupa, assim não se acumula. As coisas devem estar sempre no seu lugar. Deves arrumar tudo aquilo de que já não precisas e a Maja já é suficientemente crescida para arrumar as suas coisas. Senão acaba por ficar uma adolescente mimada que nunca sai de casa e que está sempre à espera que lhe façam tudo. Conheces a minha amiga, Berit? Bem, o filho tem quase quarenta anos, mas nunca...
Erica enfiou os dedos nos ouvidos e encostou a testa a um dos armários da cozinha. Bateu devagar com a cabeça na superfície de madeira fresca, pedindo paciência a Deus. Um toque firme no ombro fê-la dar um salto.
– Que estás a fazer? – Kristina estava ao lado dela, com um cesto cheio de roupa aos pés. – Estava a falar contigo, mas não respondeste.
Com os dedos ainda enfiados nos ouvidos, Erica tentou encontrar uma explicação plausível.
– É a... pressão. – Erica apertou o nariz e soprou com força. – Há uns dias que ando a sentir isto.
– Ah – disse Kristina. – Não se pode brincar com essas coisas. Já foste ao médico ver se é uma infeção no ouvido? Quando andam no infantário, as crianças estão sempre a trazer doenças para casa. Sempre disse que os infantários não são a melhor solução. Eu fiquei em casa com o Patrik e com a Lotta até eles irem para a primária. Não precisaram de ir para o infantário nem de ficar com uma ama um único dia. E nunca adoeceram. O nosso médico estava sempre a elogiar-me por eles serem...
Erica cortou-lhe o pio.
– Há semanas que os miúdos não vão lá, por isso acho que a culpa não é do infantário.
– Se tu o dizes – retorquiu Kristina com ar magoado. – Mas pelo menos já ficaste a saber o que penso acerca disso. Afinal de contas, a quem é que telefonam sempre que as crianças estão doentes e vocês têm de trabalhar? Eu é que me chego sempre à frente. – Kristina abanou a cabeça, pegou no cesto de roupa suja e saiu da cozinha.
Erica contou lentamente até dez. Não podia negar que recorriam muitas vezes a Kristina, mas sem dúvida que pagavam um preço muito alto por isso.
Os pais de Josef já passavam dos quarenta quando a mãe recebeu a notícia completamente inesperada de que estava grávida. Depois de há muito se terem conformado com o facto de que nunca teriam filhos, organizaram a vida em conformidade, dedicando todo o tempo à pequena alfaiataria em Fjällbacka. A chegada de Josef mudou tudo. Embora tenham sentido grande alegria com a perspetiva de ter um filho e um herdeiro, também sentiram um grande peso por causa da responsabilidade de lhe transmitir a sua herança.
Josef contemplou carinhosamente a fotografia dos pais numa sólida moldura de prata que tinha em cima da secretária. Por detrás havia outras fotografias emolduradas, de Rebecka e dos filhos. Sempre fora o centro da vida dos pais e eles sempre estariam no centro da sua vida. Isso era algo que a sua família tinha de aceitar.
– O jantar está quase pronto – anunciou Rebecka quando entrou cautelosamente no estúdio de Josef.
– Não tenho fome. Jantem vocês – respondeu Josef sem olhar para cima. Tinha coisas muito mais importantes para fazer do que comer.
– Não vens jantar connosco? Logo hoje que os miúdos vieram visitar-nos?
Josef olhou para Rebecka com surpresa. Habitualmente, a mulher nunca insistia em relação a nada. A irritação cresceu dentro dele, mas então respirou fundo. Rebecka tinha razão. Os filhos quase já não iam lá a casa.
– Está bem. Já vou ter convosco – disse com um suspiro e fechando o bloco de notas. Estava cheio de ideias sobre como dar forma ao projeto e o bloco andava sempre com ele, para o caso de a inspiração surgir.
– Obrigada – disse Rebecka, que se virou e saiu do estúdio.
Josef seguiu-a. Na sala de jantar, a mesa já fora posta. Reparou que a mulher tinha utilizado o melhor serviço. Rebecka tinha uma ligeira tendência para ser ostensiva e parecia-lhe absurdo ir tão longe só por causa dos filhos, mas não fez nenhum comentário.
– Olá, pai – disse Judith, beijando-o no rosto.
Daniel levantou-se para lhe dar um abraço. Por um momento, o coração de Josef encheu-se de orgulho e desejou que o seu próprio pai pudesse ter visto os netos crescerem.
– Vamos sentar-nos antes que a comida arrefeça – disse Josef, tomando o seu lugar à cabeceira da mesa.
Rebecka preparara o prato preferido de Judith: frango assado com puré de batata. De repente, Josef apercebeu-se de que estava esfomeado e ocorreu-lhe que se esquecera de almoçar. Depois de dar graças a Deus num murmúrio, Rebecka serviu a refeição e começaram a comer em silêncio. Quando já se sentia saciado, Josef pousou os talheres.
– Como estão a correr as aulas?
Daniel assentiu.
– Tive notas excelentes a todas as disciplinas durante o curso de verão. Agora é uma questão de conseguir um bom estágio no outono.
– E eu adoro o meu trabalho de verão – interrompeu Judith. Os olhos brilhavam-lhe de entusiasmo. – Devias ver como aquelas crianças são corajosas, mãe. Têm de suportar todas aquelas operações complicadas, os tratamentos com radiações e tudo o que se possa imaginar, mas nunca protestam e nunca desistem. São incríveis.
Josef respirou fundo. O sucesso dos filhos não contribuía minimamente para acabar com a inquietação que o acompanhava constantemente. Sabia que havia sempre um pouco mais que podiam dar, que podiam chegar um pouco mais longe. Tinham tantas metas para alcançar, tanto que vingar, e era seu dever certificar-se de que faziam tudo o que podiam para o conseguir.
– E a tua pesquisa? Ainda tens tempo para isso? – Josef fixou Judith com um olhar penetrante e viu como o entusiasmo se extinguia nos olhos da filha. Judith queria que o pai reconhecesse o seu valor e lhe oferecesse algumas palavras elogiosas, mas se Josef desse aos filhos a impressão de que o que estavam a fazer era suficiente, então deixariam de se esforçar. E Josef não podia deixar que isso acontecesse.
Não esperou pela resposta de Judith e virou-se para Daniel.
– Conversei com o diretor do curso a semana passada e ele disse-me que faltaste dois dias às aulas. Porquê?
– Estava com uma gastrenterite – disse Daniel. – Não me parece que gostassem muito que eu estivesse sentado na sala a vomitar para um saco de papel.
– Estás a tentar ser engraçado?
– Não. Estou a responder-te com toda a franqueza.
– Sabes que posso facilmente descobrir se estás a mentir – disse Josef. O garfo e a faca ainda estavam pousados no prato. Tinha perdido o apetite. Detestava já não ter controlo sobre os filhos como acontecia quando viviam lá em casa.
– Estava com uma gastrenterite – repetiu Daniel, baixando os olhos. Também parecia ter perdido o apetite.
Josef levantou-se rapidamente.
– Tenho de continuar o meu trabalho.
A caminho do estúdio, pensou que o mais certo era ficarem satisfeitos por se livrarem da sua presença. Através da porta, podia ouvir as vozes e o barulho dos pratos e dos talheres. Então Judith riu-se, uma gargalhada alta e despreocupada que soou com tanta clareza como se a mulher estivesse sentada ao lado dele. De repente, Josef apercebeu-se de que o riso dos filhos, a sua alegria, esmorecia sempre quando entrava na sala. Judith deu nova gargalhada, que Josef sentiu como uma faca a ser revirada no seu coração. Judith nunca se ria assim ao pé dele e Josef perguntou a si próprio se as coisas poderiam ter sido diferentes. Ao mesmo tempo, não fazia ideia de como o poderiam ter conseguido. O amor que sentia por eles era tão grande que lhe provocava dor física, mas nunca poderia ser o pai que desejavam. Apenas podia ser o pai que a vida lhe ensinara a ser; apenas podia amá-los à sua maneira, transmitindo-lhes a sua herança.
Gösta olhava fixamente para o ecrã da televisão, que tremeluzia. Via as pessoas a aparecerem e a desaparecerem e, uma vez que estava a assistir a um episódio de Midsummer Murders4, sem dúvida que alguém ia ser assassinado. Mas perdera o interesse no enredo há algum tempo. Os pensamentos estavam noutro lugar completamente diferente.
Na mesa de café à sua frente havia um prato com duas sanduíches abertas. Pão de centeio skogaholm com manteiga e salame. Normalmente era apenas isso que comia em casa. Dava demasiado trabalho e era demasiado deprimente cozinhar para uma única pessoa.
O sofá em que se sentava começava a ficar velho, mas Gösta não tinha coragem de se livrar dele. Lembrava-se da expressão de orgulho de Maj-Britt quando o levaram lá para casa. Dera com ela várias vezes a passar a mão nos estofos suaves com motivos florais, como se estivesse a acariciar um gatinho. Mal o deixava sentar-se nele durante esse primeiro ano. Mas a miúda tinha saltado e brincado nele. Rindo-se, Maj-Britt segurava-lhe as mãos enquanto a menina saltava cada vez mais alto sobre as molas que gemiam.
Agora os estofos estavam completamente gastos e tinham grandes buracos. Junto ao braço direito despontava uma mola. Mas Gösta sentava-se sempre do lado esquerdo. Esse era o seu lugar; o outro lado tinha pertencido a Maj-Britt. À noite, durante aquele verão, a miúda tinha estado sentada entre eles. Nunca vira uma televisão, por isso gritava de satisfação sempre que o aparelho estava ligado. O seu programa preferido era a série infantil Drutten e Gena. Nunca conseguia ficar quieta quando via aquelas marionetas; contorcia-se de puro prazer.
Há muito que ninguém saltava no sofá. Depois de a miúda ter desaparecido, era como se tivesse levado parte da alegria com ela, e seguiram-se muitas noites silenciosas. Nem Gösta nem Maj-Britt poderiam ter imaginado que o arrependimento magoava tanto. Pensavam estar a tomar a atitude mais acertada e, quando se aperceberam de que haviam tomado a decisão errada, era demasiado tarde.
Gösta olhava sem verdadeiramente ver o inspetor Barnaby, que acabara de descobrir mais um cadáver. Pegou numa das sanduíches de salame e deu-lhe uma dentada. Era uma noite como tantas outras e muitas mais se lhe seguiriam.
4 Série policial britânica estreada em 1997. (N. do T.)
FJÄLLBACKA, 1919
NÃO PODIAM SER VISTOS NOS QUARTOS DOS CRIADOS, DE MODO QUE DAGMAR ESPEROU POR UM SINAL DE HERMANN PARA IR ATÉ AO QUARTO DO PILOTO. JÁ TINHA FEITO A CAMA E ARRUMADO O QUARTO, SEM SABER QUE MAIS TARDE VIRIA A TER MUITAS SAUDADES DE SE ENFIAR DEBAIXO DAQUELES MARAVILHOSOS LENÇÓIS DE ALGODÃO.
A FESTA AINDA ESTAVA NO AUGE QUANDO RECEBEU O SINAL DE QUE ESTAVA À ESPERA. HERMANN CAMBALEAVA LIGEIRAMENTE, TINHA O CABELO LOURO DESGRENHADO E OS OLHOS VIDRADOS DA BEBIDA. MAS NÃO ESTAVA TÃO EMBRIAGADO QUE NÃO CONSEGUISSE ENTREGAR-LHE DISFARÇADAMENTE A CHAVE DO QUARTO. O BREVE TOQUE DA MÃO DELE FEZ COM QUE O CORAÇÃO DE DAGMAR SE ACELERASSE. SEM O OLHAR NOS OLHOS, ESCONDEU A CHAVE NO BOLSO DO AVENTAL. ANIMADA COMO ESTAVA A FESTA, NINGUÉM REPARARIA SE DESAPARECESSE. OS ANFITRIÕES E OS CONVIDADOS ESTAVAM TODOS DEMASIADO BÊBADOS PARA SE PREOCUPAREM COM O QUE QUER QUE FOSSE A NÃO SER VOLTAREM A ENCHER OS COPOS E HAVIA MUITOS OUTROS CRIADOS PARA O FAZER.
TODAVIA, DAGMAR PAROU PARA OLHAR EM REDOR ANTES DE ABRIR A PORTA DO GRANDE QUARTO DE HÓSPEDES E, QUANDO ENTROU, PAROU DE COSTAS PARA A PORTA E RESPIROU FUNDO VÁRIAS VEZES. A SIMPLES VISÃO DA CAMA COM OS LENÇÓIS BRANCOS E A ELEGANTE COLCHA FÊ-LA FICAR TODA ARREPIADA. HERMANN PODIA CHEGAR A QUALQUER MOMENTO; POR ISSO, DAGMAR PRECIPITOU-SE PARA A PEQUENA CASA DE BANHO. APRESSOU-SE A ALISAR O CABELO, DESPIU AS ROUPAS DE CRIADA E LAVOU-SE DEBAIXO DOS BRAÇOS. DEPOIS MORDEU OS LÁBIOS E BELISCOU AS BOCHECHAS PARA AS TORNAR MAIS ROSADAS, UMA VEZ QUE ISSO ERA MODA ENTRE AS RAPARIGAS DA CIDADE.
QUANDO OUVIU A MAÇANETA RODAR, APRESSOU-SE A VOLTAR PARA O QUARTO E SENTOU-SE NA CAMA, APENAS EM COMBINAÇÃO. DEIXOU O CABELO CAIR SOBRE OS OMBROS, PLENAMENTE CONSCIENTE DE BRILHAR À LUZ PÁLIDA DA NOITE DE VERÃO QUE ENTRAVA PELA JANELA.
NÃO FICOU DECECIONADA. QUANDO HERMANN A VIU, ABRIU MUITO OS OLHOS E FECHOU RAPIDAMENTE A PORTA ATRÁS DE SI. ESTUDOU-A POR UM MOMENTO ANTES DE SE APROXIMAR DA CAMA E PÔR-LHE A MÃO SOB O QUEIXO, LEVANTANDO-LHE O ROSTO. DEPOIS INCLINOU-SE E OS LÁBIOS ENCONTRARAM-SE NUM BEIJO. CAUTELOSAMENTE, COMO SE QUISESSE PROVOCÁ-LA, HERMANN FEZ DESLIZAR A PONTA DA LÍNGUA ENTRE OS LÁBIOS ENTREABERTOS DE DAGMAR.
DAGMAR RESPONDEU APAIXONADAMENTE AOS SEUS BEIJOS. NUNCA TINHA VIVIDO UMA COISA DAQUELAS. ERA COMO SE AQUELE HOMEM TIVESSE SIDO ENVIADO POR UMA FORÇA DIVINA PARA SE UNIR A ELA E COMPLETÁ-LA. POR UM BREVE MOMENTO, TUDO FICOU ESCURO DIANTE DOS SEUS OLHOS E DAGMAR RELEMBROU MENTALMENTE IMAGENS DO PASSADO. AS CRIANÇAS COLOCADAS NUMA BACIA COM UM PESO EM CIMA ATÉ PARAREM DE SE MEXER. OS POLÍCIAS QUE ENTRARAM DE ROMPANTE E PRENDERAM A MÃE E O PAI. OS PEQUENOS CADÁVERES QUE FORAM DESENTERRADOS NA CAVE. A BRUXA E O PAI ADOTIVO. OS HOMENS QUE TINHAM GEMIDO EM CIMA DELA COM O SEU HÁLITO NOJENTO A ÁLCOOL E A CHARUTOS. TODA A GENTE QUE A TINHA USADO E RIDICULARIZADO – AGORA SERIAM FORÇADOS A CURVAR-SE DIANTE DELA E A PEDIR-LHE PERDÃO. QUANDO A VISSEM A CAMINHAR AO LADO DAQUELE HERÓI LOURO IAM ARREPENDER-SE DE CADA PALAVRA QUE TINHAM SUSSURRADO NAS SUAS COSTAS.
LENTAMENTE, HERMANN FEZ DESLIZAR A COMBINAÇÃO E DAGMAR ERGUEU OS BRAÇOS POR CIMA DA CABEÇA PARA AJUDÁ-LO A TIRAR-LHA. SÓ QUERIA SENTIR A PELE DE HERMANN CONTRA A SUA. COMEÇOU A DESAPERTAR-LHE OS BOTÕES DA CAMISA UM A UM, MAS HERMANN ACABOU POR ARRANCÁ-LA. QUANDO AS ROUPAS DE AMBOS JAZIAM TODAS NUM MONTE NO CHÃO, O PILOTO DEITOU-SE EM CIMA DELA. JÁ NADA OS SEPARARIA.
QUANDO OS DOIS CORPOS SE UNIRAM, DAGMAR FECHOU OS OLHOS. NAQUELE MOMENTO, JÁ NÃO ERA A FILHA DA FAZEDORA DE ANJOS. ERA UMA MULHER A QUEM O DESTINO TINHA FINALMENTE ABENÇOADO.
Andava a preparar-se há semanas. Tinha sido difícil conseguir uma entrevista com John Holm em Estocolmo, mas como o político ia passar as férias a Fjällbacka, Kjell conseguira convencê-lo a abdicar de uma hora do seu tempo em troca de um perfil a ser publicado no Bohusläningen5.
Kjell estava certo de que Holm conhecia o pai, Frans Ringholm, que fora um dos fundadores dos Amigos da Suécia, o partido que Holm agora liderava. O facto de Frans ser um simpatizante nazi foi um dos motivos pelos quais Kjell se distanciara do pai. Pouco antes de Frans morrer, Kjell tinha-se reconciliado em parte com ele, mas nunca partilharia os pontos de vista do pai. Assim como nunca respeitaria os Amigos da Suécia nem apreciava o sucesso que o partido voltara a ter.
Concordaram reunir-se na cabana de pesca de Holm. A viagem de Uddevalla a Fjällbacka demorou quase uma hora por causa do trânsito de verão. Com dez minutos de atraso, Kjell estacionou no cascalho à frente da cabana, esperando que o tempo não fosse descontado aos sessenta minutos de entrevista que lhe haviam sido prometidos.
– Tira algumas fotos enquanto estamos a conversar, porque depois pode não haver tempo – disse Kjell ao colega quando saíram do carro. Sabia que isso não seria um problema. Stefan era o fotógrafo mais experiente do jornal e nunca falhava, fossem quais fossem as circunstâncias.
– Bem-vindos! – disse Holm indo ao encontro dos dois jornalistas.
– Obrigado – disse Kjell. Teve de esforçar-se bastante para apertar a mão a Holm. Além de os seus pontos de vista serem repulsivos, Holm era também um dos homens mais perigosos da Suécia.
Holm conduziu-os até ao cais, atravessando a pequena cabana de pesca.
– Nunca conheci o seu pai. Mas sei que era um homem que impunha respeito.
– Bem, passar uma data de anos na prisão tem esse efeito.
– Não deve ter sido fácil para si, crescer nessas condições – disse Holm, sentando-se numa cadeira do pátio ao lado de uma cerca que oferecia alguma proteção contra o vento.
Por um momento, Kjell foi tomado pela inveja. Parecia tão injusto que um homem como John Holm possuísse uma propriedade tão bonita, com vista para o porto e o arquipélago... Para esconder a sua antipatia, Kjell sentou-se à frente do político e começou a remexer no gravador. Estava plenamente consciente de que a vida era injusta e, pelas pesquisas que tinha feito, sabia que Holm nascera em berço de ouro.
Ligou o gravador. Parecia estar a funcionar corretamente e Kjell começou a entrevista.
– Porque acha que conseguiu garantir um lugar no Riksdag6?
Era sempre boa ideia começar com cautela. Kjell também sabia que era uma sorte apanhar Holm sozinho. Em Estocolmo, o assessor de imprensa e outras pessoas teriam estado presentes, mas naquele momento tinha Holm só para si e esperava que o líder do partido estivesse descontraído por estar de férias e no seu território.
– Acho que o povo sueco amadureceu. Tornámo-nos mais conscientes do resto do mundo e de como isso nos afeta. Fomos demasiado crédulos durante muito tempo, mas agora estamos a começar a acordar e os Amigos da Suécia têm o privilégio de representar a voz da razão durante este despertar – respondeu Holm com um sorriso.
Kjell conseguia compreender porque é que as pessoas se sentiam atraídas por aquele homem. Tinha um carisma e uma autoconfiança que fazia com que os outros estivessem dispostos a acreditar no que dizia. Mas Kjell já era suficientemente calejado para não se apaixonar por aquele género de encanto e ficava com os pelos eriçados ao ouvir Holm dizer «nós» quando se referia a si próprio e ao povo sueco. John Holm não representava a maioria dos suecos. Nem de perto nem de longe.
Kjell continuou com as perguntas inocentes: Qual foi a sensação de entrar no parlamento como deputado? Como foi recebido? O que pensava das políticas que estavam a ser desenvolvidas em Estocolmo? Stefan circulava constantemente em torno deles com a sua máquina fotográfica e Kjell já podia imaginar as imagens: John Holm sentado no seu cais privado com o mar a brilhar ao fundo. Era completamente diferente das fotografias formais que costumavam aparecer nos jornais, mostrando-o de fato e gravata.
Kjell lançou uma olhadela fugaz ao relógio. Estava a entrevistar Holm há vinte minutos e a atmosfera que criara era agradável, embora não propriamente calorosa. Estava na altura de começar a fazer as perguntas incómodas. Durante as semanas que mediaram a aceitação do pedido da entrevista, Kjell lera inúmeros artigos sobre Holm e vira vários vídeos de debates televisivos. Muitos jornalistas tinham feito um mau trabalho, mal arranhando a superfície. Nas raras ocasiões em que conseguiam fazer uma pergunta mais atrevida eram invariavelmente iludidos por uma resposta autoconfiante, repleta de dados estatísticos errados e de mentiras descaradas que nunca conseguiram aprofundar. Aquele trabalho mal-amanhado fazia com que Kjell se envergonhasse de ser jornalista, porém, ao contrário dos colegas, tinha feito os trabalhos de casa.
– O seu orçamento é baseado na grande poupança que, de acordo com o seu partido, o país vai conseguir levar a cabo se a imigração for travada. Uma poupança de setenta e oito mil milhões de coroas suecas. Como chegou a este número?
Holm sobressaltou-se. Apareceu-lhe um sulco entre as sobrancelhas, sinalizando um ligeiro incómodo, mas rapidamente desapareceu, sendo substituído pelo seu sorriso habitual.
– Os números foram cuidadosamente fundamentados.
– Tem a certeza disso? Porque algumas pessoas têm referido que os seus cálculos estão errados. Deixe-me dar-lhe um exemplo. O senhor afirma que apenas dez por cento das pessoas que imigram para a Suécia conseguem emprego.
– Sim, está correto. Há uma elevada taxa de desemprego entre as pessoas que permitimos que imigrem para a Suécia e isso implica um custo enorme para a nossa sociedade.
– Mas, de acordo com estatísticas a que tive acesso, sessenta e cinco por cento de todos os imigrantes na Suécia entre os vinte e os sessenta e quatro anos têm emprego.
Holm não disse nada e Kjell quase podia ver o seu cérebro a trabalhar a cem à hora.
– Pelo que sei são dez por cento – acabou por dizer.
– Mas não sabe como chegaram a essa percentagem, pois não?
– Não.
Kjell estava a começar a apreciar a situação.
– De acordo com seus cálculos, o país também pouparia se a imigração fosse travada porque a Segurança Social gastaria menos. Mas um estudo centrado entre 1980 e 1990 mostra que as receitas fiscais do trabalho dos imigrantes excedem em muito as despesas do Estado em termos de imigração.
– Isso não me parece minimamente credível – disse Holm com um sorriso irónico. – O povo sueco já não se deixa enganar por esses estudos fraudulentos. É do conhecimento geral que os imigrantes tiram proveito do sistema de Segurança Social.
– Tenho aqui uma cópia do estudo. Pode ficar com ela e consultá-la à vontade. – Kjell tirou um maço de papéis da pasta e colocou-os à frente de Holm.
O deputado nem sequer olhou para eles.
– Tenho pessoas que tratam desse tipo de coisas.
– Tenho a certeza disso, mas essas pessoas não parecem ler muito bem – disse Kjell. – Vamos considerar quanto custaria implementar as suas propostas. Por exemplo, o serviço militar obrigatório que quer reinstituir... quanto custaria? Será que pode pormenorizar todos os custos para que possamos ficar com uma ideia? – Kjell aproximou um bloco e uma caneta de Holm, que os olhou com repulsa.
– Todos os números estão na nossa proposta de orçamento. Pode consultá-la.
– Quer dizer que não os sabe de cor? Apesar de a sua proposta de orçamento ser o núcleo da vossa política?
– Claro que conheço perfeitamente os números em questão. – Holm empurrou o bloco-notas na direção de Kjell. – Mas não tenciono de todo pôr-me aqui a debitá-los.
– Muito bem, por agora vamos esquecer os números do orçamento. Talvez tenhamos oportunidade de voltar a eles mais tarde. – Kjell remexeu na sua pasta e tirou outro documento, uma lista que tinha compilado.
– Além de uma política de imigração mais rigorosa, pretende tentar instituir penas mais severas para os criminosos.
Holm esticou-se, como que para aliviar os músculos das costas.
– Sim. É escandalosa a forma como somos condescendentes na Suécia. De acordo com as nossas propostas, os criminosos deixarão de poder escapar com um mero puxão de orelhas. Dentro do próprio partido também estabelecemos limites severos, sobretudo porque estamos plenamente conscientes de que, historicamente, estivemos associados a uma série de... Enfim, elementos indesejáveis.
«Elementos indesejáveis.» Sim, era uma forma de expressar o que tinha acontecido, pensou Kjell, embora optasse propositadamente por não comentar. Parecia estar prestes a pôr Holm exatamente onde o queria.
– Livrámo-nos de todos os elementos criminosos da nossa lista eleitoral e estamos a pôr em prática uma política de tolerância zero. Por exemplo, todos os candidatos têm de assinar um juramento de ética e todas as condenações, por mais antigas que sejam, devem ser reveladas. Ninguém com um passado criminoso pode representar os Amigos da Suécia. – Holm recostou-se, cruzando as pernas.
Kjell deixou-o sentir-se seguro por mais alguns segundos antes de pousar a lista na mesa.
– Porque é que não exige o mesmo às pessoas que trabalham na sede e nas delegações do partido? Nada mais, nada menos do que cinco colaboradores vossos têm antecedentes criminais. Estamos a falar de condenações por violência doméstica, intimidação, roubo e agressões a funcionários públicos. Por exemplo, em 2001, o seu assessor de imprensa foi condenado por agredir violentamente a pontapé um cidadão da Etiópia no mercado de Ludvika. – Kjell empurrou um pouco mais a lista, que ficou mesmo à frente de Holm. Um rubor de irritação era agora visível no pescoço do líder dos Amigos da Suécia.
– Não participo nas entrevistas de emprego nem controlo as operações da sede ou das delegações do partido, portanto não posso comentar esta questão.
– Mas, uma vez que, em última instância, o senhor é o responsável pelo pessoal contratado pelo partido, este assunto não deveria acabar em cima da sua mesa, independentemente de controlar ou não os aspetos práticos?
– Toda a gente tem direito a uma segunda oportunidade. Estamos sobretudo a falar de deslizes cometidos na juventude.
– Uma segunda oportunidade, diz o senhor? Porque é que os seus funcionários devem merecer uma segunda oportunidade se o mesmo não se aplica aos imigrantes que cometem um crime? De acordo com o seu partido, os imigrantes que cometem um crime deviam ser deportados assim que fossem condenados.
Holm cerrou os maxilares, o que lhe conferiu ao rosto um ar ainda mais empedernido.
– Como eu disse, não estou envolvido no processo de contratação. Vou ter de falar consigo mais tarde acerca disso.
Por alguns segundos, Kjell ponderou pressionar mais Holm sobre aquele ponto, mas o tempo estava a esgotar-se. O deputado podia decidir a qualquer momento que estava farto e dar por terminada a entrevista.
– Também tenho algumas perguntas pessoais – disse Kjell, consultando as notas. Na verdade, tinha memorizado todas as perguntas que queria fazer, mas sabia por experiência própria que, se parecesse ter tudo por escrito, isso exercia um efeito perturbador na pessoa que estava a entrevistar. A palavra impressa infundia um certo respeito.
– Há tempos declarou que o seu envolvimento em questões de imigração começou quando tinha vinte anos e dois estudantes africanos o atacaram e agrediram. Frequentavam o seu curso na Universidade de Gotemburgo. Comunicou o incidente à polícia, mas a investigação foi abandonada e o senhor viu-se obrigado a partilhar as salas de aula com os alunos em questão durante os restantes anos que passou na universidade. Os alunos estavam constantemente a provocá-lo e, consequentemente, a zombar da sociedade sueca como um todo. Esta última frase foi dita por si numa entrevista que deu ao Svenska Dagbladet7 na primavera passada.
Holm assentiu solenemente.
– Sim, esse foi um episódio que teve grande impacto em mim e que moldou a minha visão do mundo. Foi uma clara demonstração de como a sociedade funciona e de como os suecos foram rebaixados a cidadãos de segunda classe enquanto as pessoas de todo o mundo que tivemos a ingenuidade de acolher no nosso país são tratadas com indulgência.
– Interessante – Kjell inclinou a cabeça. – Verifiquei esse incidente e há várias coisas que são um pouco... estranhas.
– Que quer dizer com isso?
– Em primeiro lugar, não existe nenhuma denúncia no arquivo da polícia. Além disso, não havia estudantes africanos matriculados no mesmo curso que o senhor frequentou. Na verdade, não havia quaisquer estudantes africanos na Universidade de Gotemburgo quando o senhor lá estudou.
Kjell observou como a maçã de Adão de Holm subia e descia.
– Está enganado. Recordo-me muito claramente de tudo o que aconteceu.
– Não é mais provável que os seus pontos de vista decorram do ambiente familiar onde cresceu? Tenho informações que indicam que o seu pai era um fervoroso simpatizante do nazismo.
– Não posso pronunciar-me sobre as possíveis opiniões do meu pai.
Uma olhadela ao relógio mostrou a Kjell que lhe restavam apenas cinco minutos. Sentiu um misto de irritação e satisfação. A entrevista não produzira resultados concretos, mas tinha sido um prazer desestabilizar Holm. E Kjell não fazia tenção de desistir. Aquele fora apenas um round do combate. Ia continuar a escavar até encontrar algo que pudesse derrubar John Holm. Poderia precisar de se encontrar novamente com ele, por isso seria melhor terminar a entrevista com uma pergunta que não tinha nada que ver com política. Kjell sorriu.
– Ouvi dizer que foi aluno do colégio interno de Valö quando aquela família desapareceu. O que terá acontecido?
Holm fulminou-o com o olhar e depois levantou-se repentinamente.
– Acabou o tempo e tenho uma data de assuntos em mãos. Presumo que não seja necessário acompanhar-vos à saída.
Os instintos jornalísticos de Kjell nunca o tinham deixado ficar mal e a reação inesperada de Holm pôs-lhe o cérebro a trabalhar a todo o vapor. Havia algo em relação àquele assunto que Holm não queria que ele soubesse. Kjell estava ansioso por voltar para a redação e começar a vasculhar para descobrir o que poderia ser.
– Onde está o Martin? – Patrik olhou para os colegas sentados à mesa da cozinha da esquadra.
– Telefonou a dizer que está doente – informou Annika com ar evasivo. – Mas tenho o relatório que elaborou sobre as finanças e os seguros de Ebba e de Tobias.
Patrik olhou de relance para a secretária mas não fez nenhuma pergunta. Se Annika não queria dizer-lhe o que sabia, só recorrendo à tortura conseguiria sacar-lhe o que quer que fosse.
– E eu tenho aqui o processo da investigação levada a cabo quando a família desapareceu – disse Gösta, apontando para várias grossas pastas de papel pardo sobre a mesa.
– Foi rápido – disse Mellberg. – Costuma demorar séculos a encontrar alguma coisa no arquivo.
Houve uma longa pausa antes de Gösta voltar a falar.
– Tinha-os em casa.
– Guardas processos do arquivo em tua casa? Estás maluco? – Mellberg deu um salto na cadeira e Ernst, que estava deitado a seus pés, sentou-se com as orelhas em pé. Ladrou algumas vezes, mas depois decidiu que tudo parecia suficientemente calmo e voltou a deitar-se.
– De vez em quando revejo os processos e dava demasiado trabalho andar a correr constantemente para o arquivo. Além disso, ainda bem que já o tinha tirado de lá, senão não o poderíamos consultar tão depressa.
– Que estupidez do caraças! – exclamou Mellberg.
Patrik apercebeu-se de que estava na altura de intervir.
– Sente-se, Bertil. O importante é termos acesso ao dossiê. Podemos discutir eventuais medidas disciplinares mais tarde.
Mellberg resmungou alguma coisa, mas concordou relutantemente.
– Os técnicos já começaram a trabalhar?
Patrik assentiu.
– Estão a arrancar todo o soalho e a recolher amostras. Torbjörn prometeu entrar em contacto connosco assim que souber alguma coisa.
– Alguém é capaz de me dizer porque é que estamos a desperdiçar tempo e recursos num caso que já prescreveu? – perguntou Mellberg.
Gösta olhou com irritação para o superintendente.
– Já te esqueceste de que alguém tentou pegar fogo à casa?
– Não, claro que não. Mas não vejo nenhuma razão para crer que um caso esteja ligado ao outro. – Mellberg pronunciou cada palavra com lentidão exagerada, como se estivesse a tentar provocar Gösta.
Patrik suspirou novamente. Estavam ambos a agir como crianças.
– Cabe-lhe a si decidir, Bertil, mas acho que seria um erro não examinar com mais pormenor o que os Stark descobriram ontem.
– Sei muito bem qual é a sua opinião sobre o assunto, mas não é você que terá de responder perante os superiores quando eles quiserem saber porque estamos a desperdiçar os nossos escassos recursos num caso que já prescreveu.
– Se estiver relacionado com o incêndio, como Hedström pensa, então, o desaparecimento da família é relevante – insistiu teimosamente Gösta.
Por um momento, Mellberg ficou em silêncio.
– Okay, vamos lá então perder algumas horas com isso. – Mellberg fez um gesto a Patrik a indicar-lhe que prosseguisse.
Patrik respirou fundo.
– Muito bem. Vamos começar por saber o que o Martin descobriu.
Annika pôs os óculos de leitura e olhou para o relatório.
– O Martin não encontrou quaisquer discrepâncias. A colónia balnear não tem um seguro muito abrangente, antes pelo contrário. Como tal, os Stark não receberiam grande coisa em caso de incêndio. Em relação às suas finanças pessoais, têm bastante dinheiro no banco proveniente da venda da casa de Gotemburgo. Presumo que esse dinheiro vá ser utilizado na recuperação da casa e nas despesas do dia a dia até a pousada estar a funcionar em pleno. Além disso, Ebba tem uma empresa registada em seu nome. Chama-se My Angel. Parece que faz anjos de prata e vende as peças online, mas os lucros são insignificantes.
– Ótimo. Não vamos deixar cair completamente esse aspeto da investigação, mas pelo menos parece que podemos descartar a hipótese de fraude à seguradora. E depois temos a descoberta de ontem – acrescentou Patrik, virando-se para Gösta. – Podes contar-nos como estava a casa quando a polícia a revistou depois de a família ter desaparecido?
– Claro. E podem ver com os vossos próprios olhos; tenho aqui as fotografias originais – disse Gösta, abrindo uma das pastas. Pegou num maço de fotografias amarelecidas e passou-as aos colegas. Patrik ficou surpreendido. Apesar de serem antigas, as fotografias do local do crime eram de excelente qualidade.
– Na sala de jantar não havia pistas sobre o que aconteceu – explicou Gösta. – A família tinha começado o seu almoço de Páscoa, mas não havia o mais pequeno indício de ter ocorrido uma luta. Não havia nada partido e o chão estava limpo. Se não acreditam em mim, vejam.
Patrik fez o que o colega disse, estudando cuidadosamente as fotografias. Gösta tinha razão. Era como se a família se tivesse simplesmente levantado a meio do almoço e saído. Estremeceu. A mesa, ainda com comida nos pratos, e as cadeiras impecavelmente arrumadas em seu redor tinha algo de fantasmagórico. A única coisa que faltava eram as pessoas. E a descoberta sob o soalho lançava uma nova luz sobre a cena. Agora compreendia porque é que Erica dedicara tantas horas a tentar descobrir o que estava por detrás do misterioso desaparecimento da família Elvander.
– Se for sangue, podemos determinar se pertencia à família? – perguntou Annika.
Patrik abanou a cabeça.
– Não sou especialista nisso, mas duvido. Calculo que seja sangue demasiado antigo para fazer esse género de análise. Talvez o melhor que podemos esperar é a confirmação de ser ou não sangue humano. Além disso, não temos nada com que o comparar.
– Ebba ainda é viva – disse Gösta. – Se o sangue é de Rune ou de Inez, talvez os técnicos consigam um perfil de ADN para ver se corresponde ao de Ebba.
– Possivelmente. Mas acho que o sangue se decompõe muito depressa e já passaram muitos anos. Independentemente dos resultados da análise ao sangue, precisamos de descobrir o que aconteceu naquele fim de semana de Páscoa. Precisamos de recuar no tempo. – Patrik pousou as fotografias na mesa. – Vamos ter de ler todas as transcrições das declarações das pessoas ligadas ao colégio e depois ter outra conversa com elas. A verdade está por aí algures. Uma família inteira não pode simplesmente desaparecer. E se se confirmar que se trata de sangue humano, então temos de supor que foi cometido um crime naquela divisão.
Patrik olhou para Gösta, que assentiu.
– Sim, tens razão. Precisamos de recuar no tempo.
Algumas pessoas poderiam achar estranho haver tantas fotografias em exposição num quarto de hotel, mas se assim fosse nunca ninguém lho tinha dito. Essa era a vantagem de viver numa suíte. Toda a gente assumia que alguém com tanto dinheiro tinha forçosamente de ser um pouco excêntrica. E a sua aparência dava-lhe a oportunidade de fazer o que quisesse sem se importar com o que os outros pensavam dele.
As fotografias eram importantes para ele. Estavam sempre em exposição e isso era uma das poucas coisas em que Ia não era autorizada a intrometer-se. Quanto a tudo o resto, era refém da mulher e sabia-o. Mas o que fora em tempos e o que tinha alcançado eram coisas que Ia nunca poderia tirar-lhe.
Leon deslocou a cadeira de rodas até à cómoda onde se encontravam as fotografias. Fechou os olhos e, por um breve momento, deixou-se levar até aos locais exibidos nas fotos. Imaginou o vento do deserto a queimar-lhe o rosto e como o frio extremo lhe fazia doer os dedos. Adorara a dor. «Não se ganha nada sem dor», fora sempre o seu lema. Agora, ironicamente, vivia com a dor a cada segundo de cada dia. Sem ganhar o que quer que fosse em troca.
O rosto que lhe sorriu das fotos era lindo – ou melhor, bonito. Dizer que era lindo implicava ser um rosto feminino, o que era enganoso. Aquele rosto irradiava virilidade e força. Um temerário, sedento de sentir a adrenalina a percorrer-lhe o corpo.
Estendeu a mão esquerda, que ao contrário da direita estava intacta, e pegou na sua fotografia preferida, tirada no topo do monte Evereste. Tinha sido uma subida árdua e vários membros da expedição viram-se forçados a abandoná-la em várias estações. Alguns haviam desistido antes de começar. Aquele tipo de fraqueza era incompreensível. Desistir não era uma opção para Leon. Muitos tinham abanado a cabeça perante a sua tentativa de chegar ao cume sem oxigénio. Aqueles que sabiam o que isso envolvia disseram que nunca conseguiria. Até mesmo o líder da expedição lhe implorara que utilizasse oxigénio, mas Leon sabia que podia fazê-lo. Reinhold Messner e Peter Habeler tinham-no feito em 1978. Naquela época também era considerado impossível; nem mesmo os alpinistas nepaleses nativos o tinham conseguido. Mas Leon chegou ao cume do Evereste à primeira tentativa – sem oxigénio. Na fotografia exibia um sorriso rasgado, segurando a bandeira sueca numa das mãos, as bandeiras coloridas de oração por detrás dele. Nesse momento estava no topo do mundo. Parecia forte. Feliz.
Leon pousou cuidadosamente a fotografia e pegou na seguinte. O Paris-Dakar. De moto, claro. Ainda o incomodava não ter ganho. Em vez disso, teve de contentar-se em ficar entre os dez primeiros. Sabia que era um feito incrível, mas o primeiro lugar era a única coisa que contava. Sempre fora assim. Queria ficar no primeiro lugar do pódio, fosse qual fosse o desafio. Correu o polegar sobre o vidro que cobria a fotografia emoldurada, contendo um sorriso. Se sorrisse, um lado do rosto ficava desagradavelmente repuxado e Leon detestava essa sensação.
Ia ficara muito assustada. Um dos concorrentes tinha morrido logo no início da corrida e a mulher insistiu com ele para que desistisse. Mas o acidente só aumentou a sua motivação. Era a sensação de perigo que o conduzia, a perceção de que a vida poderia ser-lhe tirada a qualquer momento. O perigo fazia-o adorar o que era bom na vida ainda mais intensamente. O champanhe sabia melhor, as mulheres pareciam mais bonitas, os lençóis de seda pareciam mais suaves contra a sua pele. A riqueza era mais valiosa se corresse o risco de perdê-la. Ia, por outro lado, tinha medo de perder tudo. Detestava o modo como Leon se ria da morte e apostava enormes quantias nos casinos do Mónaco, Saint-Tropez e Cannes. Não compreendia a descarga de adrenalina que Leon sentia sempre que perdia em grande, só para recuperar tudo na noite seguinte. Nessas noites, Ia não conseguia dormir. Dava voltas e mais voltas na cama enquanto Leon fumava pacificamente um charuto na varanda.
No fundo, Leon desfrutava a angústia dela. Sabia que Ia adorava a vida que lhe oferecia. Não a adorava apenas, precisava dela e exigia-a. Era isso que tornava tão emocionante ver a expressão dela sempre que a bola da roleta parava no compartimento errado. Via-a morder a bochecha, tentando não gritar bem alto quando Leon apostava tudo no preto e a bola parava no vermelho.
Leon ouviu uma chave rodar na fechadura. Gentilmente voltou a pôr a fotografia na cómoda. O homem da moto lançou-lhe um sorriso rasgado.
5 Diário regional de tendência liberal fundado em 1878 e sediado em Uddevalla. (N. do T.)
6 Parlamento sueco. (N. do T.)
7 Diário de tendência conservadora fundado em 1884. (N. do T.)
FJÄLLBACKA, 1919
ERA UM DIA MARAVILHOSO PARA SE DESPERTAR E DAGMAR ESTICOU OS MEMBROS COMO UM GATO. TUDO IA SER DIFERENTE. CONHECERA FINALMENTE ALGUÉM QUE IA SILENCIAR TODA A CONVERSA E FAZER COM QUE O RISO FICASSE ENTALADO NAS GARGANTAS DE TODOS AQUELES COSCUVILHEIROS. A FILHA DA FAZEDORA DE ANJOS E O HEROICO PILOTO – ERA CERTO QUE AQUILO TAMBÉM LHES DARIA MUITO QUE FALAR. MAS JÁ NÃO TERIA QUALQUER EFEITO SOBRE ELA, PORQUE IAM PARTIR JUNTOS. DAGMAR NÃO SABIA PARA ONDE, MAS ISSO NÃO ERA VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE.
NA NOITE ANTERIOR, HERMANN ACARICIARA-A COMO NUNCA NINGUÉM A ACARICIARA ANTES. SUSSURRARA-LHE TANTAS PALAVRAS AOS OUVIDOS, PALAVRAS QUE NÃO PODIA ENTENDER, MAS QUE NO FUNDO DO CORAÇÃO SABIA SEREM PROMESSAS SOBRE O FUTURO PARTILHADO DE AMBOS. OS SUSPIROS APAIXONADOS DE HERMANN TINHAM FEITO COM QUE O DESEJO SE LHE PROPAGASSE A TODO O CORPO E DAGMAR TINHA-LHE DADO TUDO O QUE POSSUÍA.
SENTOU-SE LENTAMENTE NA BEIRA DA CAMA. NUA, FOI ATÉ À JANELA E ABRIU-A DE PAR EM PAR. LÁ FORA, OS PÁSSAROS CANTAVAM E O SOL ACABARA DE ERGUER-SE. ONDE ESTARIA HERMANN? TER-LHES-IA IDO BUSCAR O PEQUENO-ALMOÇO?
NA CASA DE BANHO, DAGMAR FEZ CUIDADOSAMENTE AS SUAS ABLUÇÕES MATINAIS. TERIA PREFERIDO MANTER O CHEIRO DELE NO CORPO, MAS AO MESMO TEMPO QUERIA ESTAR TÃO PERFUMADA COMO A MAIS BELA ROSA QUANDO HERMANN REGRESSASSE. E NÃO TARDARIA A VOLTAR A SENTIR O CHEIRO DELE. TINHA UMA VIDA INTEIRA PARA INSPIRAR O CHEIRO DELE.
QUANDO ACABOU DE SE LAVAR, DEITOU-SE NA CAMA PARA ESPERAR, MAS HERMANN DEMORAVA-SE E DAGMAR E SENTIU A IMPACIÊNCIA CRESCER. O SOL SUBIRA MAIS ALTO NO CÉU E O CHILREAR DOS PÁSSAROS COMEÇAVA A PARECER-LHE IRRITANTEMENTE ALTO. ONDE TERIA IDO HERMANN? NÃO SABIA QUE ELA ESTAVA À SUA ESPERA?
POR FIM, LEVANTOU-SE, VESTIU-SE E SAIU DO QUARTO DE CABEÇA ERGUIDA. PORQUE HAVERIA DE IMPORTAR-SE QUE ALGUÉM A VISSE? AS INTENÇÕES DE HERMANN SERIAM REVELADAS EM BREVE.
A CASA ESTAVA MUITO TRANQUILA. TODA A GENTE ESTAVA DEITADA, A DORMIR, E SEM DÚVIDA QUE ASSIM PERMANECERIA POR MAIS ALGUMAS HORAS. NORMALMENTE, OS CONVIDADOS NÃO APARECIAM ANTES DAS ONZE. MAS HAVIA RUÍDOS PROVENIENTES DA COZINHA. O PESSOAL LEVANTAVA-SE CEDO PARA PREPARAR O PEQUENO-ALMOÇO. OS FOLIÕES TINHAM SEMPRE UM APETITE VORAZ QUANDO FINALMENTE ACORDAVAM, POR ISSO OS OVOS TINHAM DE ESTAR COZIDOS E O CAFÉ PREPARADO. ENFIOU A CABEÇA PELA PORTA DA COZINHA. NÃO, HERMANN NÃO ESTAVA LÁ. UMA DAS COZINHEIRAS VIU-A E FRANZIU A TESTA, MAS DAGMAR RETIROU A CABEÇA E FECHOU A PORTA.
DEPOIS DE PROCURAR POR TODA A CASA, FOI ATÉ AO CAIS. ESTARIA A DAR UM MERGULHO MATINAL? HERMANN ERA TÃO ATLÉTICO. PROVAVELMENTE FORA DAR UMAS BRAÇADAS REVIGORANTES.
CAMINHOU APRESSADAMENTE E DEPOIS COMEÇOU A CORRER ATÉ À MARGEM. OS PÉS PARECIAM VOAR SOBRE A RELVA E, QUANDO CHEGOU AO CAIS, SORRIU QUANDO CONTEMPLOU O MAR. MAS A SUA EXPRESSÃO LOGO SE TORNOU SÉRIA. HERMANN NÃO ESTAVA ALI. DEU MAIS UMA OLHADELA EM REDOR, MAS HERMANN NÃO ESTAVA NA ÁGUA, E NÃO HAVIA ROUPAS ATIRADAS PARA O CAIS. UM DOS RAPAZES QUE TRABALHAVA PARA OS SJÖLIN CAMINHAVA NA SUA DIREÇÃO.
– POSSO AJUDÁ-LA, MENINA? – PERGUNTOU, SEMICERRANDO OS OLHOS POR CAUSA DO SOL. QUANDO ESTAVA MAIS PERTO E VIU QUEM ELA ERA, RIU-SE. – ORA, ORA, BONS OLHOS TE VEJAM, DAGMAR. QUE ESTÁS AQUI A FAZER A ESTA HORA? OUVI DIZER QUE NÃO DORMISTE COM AS OUTRAS CRIADAS ONTEM À NOITE PORQUE ESTAVAS A DIVERTIR-TE NOUTRO LADO.
– CALA A BOCA, EDVIN – DISSE DAGMAR. – ESTOU À PROCURA DO PILOTO ALEMÃO. JÁ O VISTE?
EDVIN ENFIOU AS MÃOS NOS BOLSOS DAS CALÇAS.
– O PILOTO? ERA COM ELE QUE ESTAVAS? – O RAPAZ FEZ NOVAMENTE UM RISO DESDENHOSO. – SERÁ QUE SABIA QUE ESTAVA A IR PARA A CAMA COM A FILHA DE UMA ASSASSINA? TALVEZ OS ESTRANGEIROS COMO ELE ACHEM ISSO EMOCIONANTE.
– CALA-TE! RESPONDE À MINHA PERGUNTA. JÁ O VISTE ESTA MANHÃ?
EDVIN FEZ UMA GRANDE PAUSA ANTES DE RESPONDER. FITOU DAGMAR, OLHANDO-A DE ALTO A BAIXO.
– TALVEZ DEVÊSSEMOS DAR UMA VOLTINHA JUNTOS, EU E TU – DISSE POR FIM, DANDO MAIS UM PASSO NA DIREÇÃO DELA. – NUNCA TIVEMOS OPORTUNIDADE DE NOS CONHECERMOS UM AO OUTRO.
DAGMAR FULMINOU-O COM O OLHAR. OH, COMO DESPREZAVA AQUELES HOMENS ODIOSOS, SEM CLASSE NEM SOFISTICAÇÃO. NÃO TINHAM O DIREITO DE TOCÁ-LA COM AS SUAS MÃOS SUJAS. MERECIA MELHOR. MERECIA UMA BOA VIDA, TAL COMO OS PAIS LHE TINHAM DITO.
– ENTÃO? – INSISTIU. – OUVISTE BEM A PERGUNTA.
EDVIN CUSPIU PARA O CHÃO E DEPOIS OLHOU-A NOS OLHOS, INCAPAZ DE ESCONDER A SATISFAÇÃO AO DIZER:
– FOI-SE EMBORA.
– QUE ESTÁS PARA AÍ A DIZER? PARA ONDE É QUE FOI?
– RECEBEU UM TELEGRAMA ESTA MANHÃ POR CAUSA DE UM TRABALHO. PARTIU DE BARCO HÁ DUAS HORAS.
DAGMAR ARFOU EM BUSCA DE AR.
– ESTÁS A MENTIR! – TINHA VONTADE DE DAR UM SOCO NO ROSTO SARCÁSTICO DE EDVIN.
– NÃO TENS DE ACREDITAR EM MIM – DISSE O RAPAZ, VIRANDO-SE. – MAS A VERDADE É QUE SE FOI MESMO EMBORA.
DAGMAR OLHOU PARA O MAR, PARA A DIREÇÃO QUE HERMANN DEVIA TER TOMADO E JUROU QUE IA ENCONTRÁ-LO. SERIA SEU, DEMORASSE O TEMPO QUE DEMORASSE. PORQUE ESTAVAM DESTINADOS A FICAR JUNTOS.
Erica sentiu uma pontada de culpa, embora não tivesse verdadeiramente mentido a Patrik, apenas não lhe dissera toda a verdade. Na noite anterior quisera falar com o marido acerca dos seus planos, mas não conseguira encontrar o momento certo. Além disso, Patrik não estava de muito bom humor. Quando lhe perguntou como lhe tinha corrido o dia, Patrik evitou dizer-lhe o que quer que fosse e acabaram por passar a noite em silêncio à frente da televisão. Por isso teria de preocupar-se com aquilo mais tarde, quando tivesse de explicar-lhe onde tinha estado.
Erica acelerou e virou o barco para bombordo. Pensou com gratidão no pai, Tore, que tinha ensinado as filhas a conduzir um barco. Tore sempre dissera que era uma obrigação para uma pessoa que vivia perto do mar saber manobrar um barco. Em boa verdade, Erica era melhor do que Patrik a atracar um barco, mas deixava que fosse o marido a fazê-lo, a bem da harmonia familiar. Os homens tinham egos muito frágeis.
Acenou a um dos barcos da Guarda Costeira que se dirigia a Fjällbacka. Parecia vir de Valö e Erica perguntou a si própria porque teria lá ido. Mas rapidamente descartou aquele pensamento, pois concentrava-se agora em atracar o barco, fazendo-o deslizar elegantemente até ao cais. Para sua surpresa, começava a sentir-se nervosa. Depois de dedicar tanto tempo à história, era um pouco estranho estar prestes a encontrar-se com uma das personagens principais em carne e osso. Pegou na mala e saltou para terra.
Há muito tempo que não ia a Valö. Como a maioria dos habitantes de Fjällbacka, Erica associava a ilha a acampamentos e passeios escolares. Quase podia sentir o cheiro das salsichas grelhadas no espeto enquanto caminhava por entre as árvores.
Quando se aproximou da casa, parou, surpreendida com a atividade febril que ali reinava. Nos degraus estava uma figura familiar que gesticulava. Erica começou a andar na sua direção, estugando o passo e quase correndo os últimos metros.
– Olá, Torbjörn! – Erica acenou e acabou por conseguir chamar a atenção do chefe dos técnicos forenses. – Que estão aqui a fazer?
Torbjörn olhou para ela com espanto.
– Erica? Eu podia fazer-lhe a mesma pergunta. O Patrik sabe que está aqui?
– Julgo que não. Mas diga-me o que estão a fazer.
Torbjörn parecia estar a ponderar o que podia dizer-lhe.
– Ontem, os proprietários fizeram uma descoberta dentro da casa, durante as obras de remodelação – disse por fim.
– Uma descoberta? Será que encontraram a família que desapareceu? Onde?
Torbjörn abanou a cabeça.
– Receio não poder dizer-lhe mais nada.
– Será que posso entrar e dar uma vista de olhos? – Erica começou a subir os degraus.
– Peço desculpa, mas não pode. Não posso deixar ninguém entrar. Não podemos ter pessoas estranhas ao serviço a andar por aí enquanto estamos a trabalhar – Torbjörn sorriu. – Suponho que tenha vindo visitar o casal que mora aqui. Estão no quintal, nas traseiras.
Erica recuou.
– Okay – disse, incapaz de esconder o desapontamento.
Avançou contornando a casa e, quando dobrou a esquina, viu um homem e uma mulher que pareciam ter mais ou menos a sua idade. Olhavam para a casa com ar sombrio. Sem falar um com o outro.
Erica parou por um momento. Estava tão curiosa e entusiasmada que não pensara em nenhuma explicação para o propósito da sua visita. Mas a hesitação durou apenas alguns segundos. Afinal de contas, aquilo fazia parte do seu trabalho, fazer perguntas indiscretas e vasculhar os segredos e as tragédias de outras pessoas. Há muito que superara as próprias dúvidas e sabia que muitos familiares das vítimas sobre as quais escrevia apreciavam os seus livros depois de publicados. Além disso, era sempre mais fácil quando o incidente, como era o caso, ocorrera num passado longínquo. Normalmente, tanto tempo depois, as feridas já tinham sarado e as tragédias já haviam começado a transformar-se em história.
– Olá! – disse Erica, e o casal virou-se para olhar para ela. Então, a mulher sorriu-lhe, mostrando que a reconhecera.
– Eu conheço-a. É Erica Falck. Li os seus livros todos e adoro-os – disse. Depois calou-se, como se tivesse vergonha de ter sido tão espontânea.
– Olá. Ebba, certo? – Erica apertou-lhe a mão. Parecia muito pequena na sua, mas os calos na palma testemunhavam o empenho na recuperação da casa. – Fico muito contente por gostar dos meus livros.
Ainda um pouco timidamente, Ebba apresentou-lhe o marido, e Erica também lhe deu um aperto de mão.
– Que sentido de oportunidade perfeito – disse Ebba, que voltou a sentar-se e esperou que Erica também ocupasse uma cadeira.
– Como assim?
– Bem, calculo que queira escrever sobre o desaparecimento da minha família. Se assim for, veio no dia certo.
– Ouvi dizer que encontraram qualquer coisa na vossa casa – disse Erica.
– Sim, descobrimos aquilo quando levantámos o soalho da sala de jantar – disse Tobias. – Não sabíamos o que era, mas parecia sangue. A polícia apareceu, deu uma vista de olhos e decidiu investigar mais pormenorizadamente. É por isso que está cá esta gente toda.
Erica começou a compreender porque é que Patrik tinha sido tão evasivo quando lhe perguntou o que tinha acontecido. Perguntou a si própria o que pensaria o marido de tudo aquilo, se suspeitaria que a família fora assassinada na sala de jantar, tendo depois os cadáveres sido levados. Queria perguntar ao casal se tinha encontrado algo mais além do sangue, mas conteve-se.
– Deve ser terrivelmente perturbador para si. Não posso negar que o caso me tem interessado, mas para si, Ebba, é tão pessoal...
Ebba abanou a cabeça.
– Eu era muito nova naquela altura e não me lembro da minha família. Não posso chorar por pessoas das quais não me recordo. Não é como... – Ebba calou-se e desviou o olhar.
– O meu marido, o Patrik Hedström, foi um dos agentes que estiveram cá. E também foi ele que veio falar consigo no sábado. Ouvi dizer que foram vítimas de um incidente desagradável.
– Sim, pode chamar-lhe incidente. E foi sem dúvida desagradável. Não consigo perceber porque é que alguém quereria fazer-nos mal. – Tobias abriu as mãos.
– O Patrik acha que pode ter alguma coisa que ver com o que aconteceu aqui em 1974 – afirmou Erica sem conseguir conter-se. Praguejou de modo inaudível, sabendo como Patrik ficaria furioso se a sua revelação pudesse vir a ter algum impacto sobre a investigação.
– Como é que as coisas podem estar relacionadas? O desaparecimento aconteceu há tanto tempo... – Ebba virou-se para contemplar a casa. De onde estavam sentados não podiam ver o que estava a acontecer, mas podiam ouvir o ruído de madeira a rachar, sinal de que as pranchas do soalho estavam a ser arrancadas.
– Se não se importar, gostava de fazer-lhe algumas perguntas sobre o desaparecimento – disse Erica.
Ebba assentiu.
– Claro. Como eu disse ao seu marido, julgo que não tenho muito a dizer, mas tudo bem, pergunte.
– Não se importa que grave a nossa conversa? – perguntou Erica enquanto tirava um gravador da mala.
Tobias lançou um olhar inquiridor a Ebba, que encolheu os ombros.
– Não, não me importo.
Quando a fita começou a rodar, Erica sentiu um formigueiro no estômago, tal era a expetativa. Não fora ter com Ebba quando ela morava em Gotemburgo, embora muitas vezes tivesse pensado em fazê-lo. Mas agora Ebba estava ali e talvez Erica pudesse descobrir algum pormenor que lhe permitisse avançar na sua própria pesquisa.
– Guardou alguma coisa que fosse pertença dos seus pais? Alguma coisa que tenha levado daqui?
– Não, nada. Os meus pais adotivos disseram-me que eu tinha apenas uma pequena mala cheia de roupa quando cheguei a casa deles. E não me parece que a tenha levado daqui. Pelo que a minha mãe me disse, foram umas senhoras simpáticas que me tricotaram as roupas e gravaram as minhas iniciais nelas. Ainda tenho essas roupas. A minha mãe guardou-mas para o caso de eu ter uma filha.
– Nenhuma carta? Nenhuma fotografia? – perguntou Erica.
– Não. Nunca vi nenhuma.
– Os seus pais tinham algum parente que possa ter guardado essas coisas?
– Nenhum. Também já disse isso ao seu marido. Pelo que sei, os meus avós maternos e paternos já tinham morrido e parece que os meus pais não tinham irmãos. Se há parentes distantes, nunca tentaram entrar em contacto comigo. E ninguém quis acolher-me.
Aquilo era incrivelmente triste e Erica lançou-lhe um olhar de compaixão, mas Ebba sorriu.
– Não precisa de ter pena de mim. Tenho uma mãe e um pai que me adoram e dois irmãos maravilhosos. Nunca me faltou nada.
Erica voltou a sorrir.
– Não há muitas pessoas que possam dizer o mesmo.
Estava a começar a gostar daquela mulher baixa e magra sentada à sua frente.
– Sabe muita coisa sobre os seus pais biológicos?
– Não. Acho que nunca me interessei muito por descobrir. Claro que sempre quis saber o que aconteceu, mas suponho que não queria deixar que nada disso interferisse na minha vida. Talvez receasse que, se mostrasse interesse nos meus pais biológicos, a minha mãe e o meu pai sentissem que não eram suficientemente bons pais.
– Pensa que estaria mais interessada em descobrir as suas raízes se tivessem filhos? – perguntou cautelosamente Erica. Não sabia muito sobre Ebba e Tobias, e aquela podia ser uma questão sensível.
– Nós tivemos um filho – disse Ebba.
Erica encolheu-se como se tivesse levado uma bofetada. Aquela não era a resposta de que estava à espera. Queria fazer mais perguntas, mas a linguagem corporal de Ebba mostrava claramente que não tinha intenção de falar daquele assunto.
– Pode-se dizer que termos vindo para cá foi uma maneira de a Ebba procurar as suas raízes – disse Tobias.
Depois mudou nervosamente de posição no banco e Erica apercebeu-se de que ambos se tinham afastado um do outro inconscientemente, como se não pudessem suportar a proximidade. De repente, o ambiente tornou-se tenso e Erica sentiu-se uma intrusa a testemunhar algo muito privado.
– Tenho pesquisado a história da sua família e descobri muita coisa. Se estiver interessada em saber o que encontrei, diga-me. Tenho todas as minhas notas em casa – disse Erica.
– É muito simpático da sua parte – afirmou Ebba sem entusiasmo, como se toda a energia tivesse sido drenada do seu corpo.
Compreendendo que não adiantava continuar a conversa, Erica levantou-se.
– Obrigada pelo tempo que me dispensaram. Depois digo qualquer coisa. Mas podem ligar-me quando quiserem. – Erica sacou o bloco para anotar o seu número de telemóvel e o e-mail. Depois arrancou a folha e entregou-a ao casal. Desligou o gravador e voltou a guardá-lo na mala.
– Sabe onde encontrar-nos. Não fazemos mais nada além de trabalhar na casa vinte e quatro horas por dia – disse Tobias.
– Sim, já tinha ouvido dizer. Conseguem fazer as obras todas sozinhos?
– A ideia era essa. Pelo menos, tudo o que conseguirmos.
– Se conhecer por aí alguém com queda para a decoração, diga-nos qualquer coisa – interrompeu Ebba. – Eu e Tobias não temos jeito nenhum para essas coisas.
Erica estava prestes a dizer que não conhecia ninguém quando teve uma ideia.
– Conheço uma pessoa fantástica; tenho a certeza de que vai ser capaz de vos ajudar. Quando conseguir falar com ela telefono-vos.
Erica despediu-se e contornou a casa. Torbjörn estava junto à entrada a dar instruções a dois membros da sua equipa.
– Que tal está a correr? – perguntou Erica em voz alta, tentando sobrepor a voz aos lamentos de uma motosserra.
– Não é da sua conta – gritou Torbjörn. – Daqui a umas horas telefono ao seu marido para lhe resumir o meu relatório. Por isso, logo à noite pode perguntar-lhe.
Erica riu-se e acenou-lhe. Ao avançar para o cais, a sua expressão tornou-se séria. Que teria acontecido aos pertences da família Elvander? Porque é que Ebba e Tobias se comportavam de modo estranho um com o outro? Que aconteceu ao filho deles? E, acima de tudo, será que estavam a dizer a verdade quando afirmaram que não faziam ideia de quem tinha tentado incendiar a casa? A conversa com Ebba podia não ter sido tão produtiva quanto Erica esperara, mas o seu cérebro era um turbilhão de atividade quando subiu para o barco e se dirigiu a Fjällbacka.
Gösta estava a murmurar para si próprio. As críticas de Mellberg não o incomodavam, mas pareceram-lhe desnecessários aqueles protestos por ter levado para casa o processo de uma investigação. Não seria mais importante ter poupado uma data de tempo a todos? Era difícil encontrar as informações que tinham compilado naqueles tempos em que os computadores ainda não eram de uso comum e tinha-lhes poupado o trabalho de vasculhar os arquivos em busca do processo.
Pôs folhas e uma caneta ao seu lado e abriu a primeira pasta. Quantas horas da sua vida tinha já passado a estudar aquelas fotografias, a rever as transcrições das declarações e os relatórios da inspeção ao local do crime? No entanto, se queriam fazer aquilo corretamente, tinha de ser o mais metódico possível. Patrik atribuíra-lhe a tarefa de fazer uma lista das pessoas com quem tinham falado na investigação original e referir aquelas com quem era prioritário voltarem a conversar. Não podiam falar com toda a gente ao mesmo tempo, por isso era importante começarem pelas testemunhas-chave.
Gösta ia-se afundando cada vez mais na cadeira à medida que revia aqueles depoimentos que pouco adiantavam. Como já os tinha lido inúmeras vezes, sabia que não se podia retirar nada de concreto deles. Era uma questão de se focar nas nuances e ler nas entrelinhas. Mas Gösta estava com dificuldade em concentrar-se. O cérebro traía-o e estava constantemente a pensar na miúda, que agora era uma mulher. Fora muito estranho voltar a vê-la e ter uma imagem em carne e osso para acrescentar à que visualizava na sua mente.
Mudou de posição na cadeira, impaciente. Há anos que não mostrava qualquer interesse pelo trabalho e, por mais que quisesse fazer aquilo como devia ser, o cérebro não queria obedecer às novas instruções que tentava enviar-lhe. Pôs os relatórios de lado e dedicou-se antes a examinar lentamente as fotografias, entre as quais a de um dos rapazes que tinham ficado no colégio durante as férias. Gösta fechou os olhos e voltou a pensar naquele sábado de Páscoa de 1974, um dia ensolarado, embora gélido. Ele e o já falecido colega, Henry Ljung, tinham subido até à grande casa branca. Estava tudo tão silencioso, quase assustadoramente tranquilo, ou talvez essa sensação fosse produto da sua imaginação, passados todos estes anos. Mas recordava-se perfeitamente de tremer de frio enquanto se dirigiam para a casa. Tinham trocado olhares, sem saberem o que iriam encontrar após o estranho telefonema para a esquadra. O chefe da polícia daquela época tinha-os destacado para investigar a ocorrência. «O mais certo é serem miúdos a querer pregar-nos uma partida», disse o chefe, mas depois mandou-os ir a Valö – sobretudo para não poder ser acusado de negligência se, contra todas as probabilidades, aquilo acabasse por revelar-se mais do que uma brincadeira levada a cabo por um grupo de rapazes ricos entediados. A polícia enfrentara muitos problemas no início das aulas, mas depois de o chefe da polícia ter telefonado a Rune Elvander, os ânimos tinham serenado. Gösta não sabia como o diretor o conseguira, mas o que quer que tenha feito resultara. Até àquele dia.
Gösta e Henry pararam à entrada do colégio. Não se ouvia o mais pequeno ruído no interior. Em seguida, os gritos agudos de uma criança quebraram o silêncio e despertaram-nos da inércia momentânea que parecia ter-se apoderado deles. Bateram uma vez e depois entraram. «Está cá alguém?», perguntara Gösta em voz alta. Sentado à secretária, todos aqueles anos depois, Gösta perguntava a si próprio como conseguia lembrar-se de tudo com tantos pormenores. Ninguém respondeu, mas os gritos da criança subiram de tom. Precipitaram-se em direção ao ruído e depois pararam abruptamente quando entraram na sala de jantar onde se encontrava uma bebé sozinha a gritar a plenos pulmões. Instintivamente, Gösta aproximou-se dela e pegou-lhe ao colo.
– Onde está o resto da família? – perguntou Henry, olhando em redor. – Está cá alguém? – gritou, voltando depois ao vestíbulo.
Nenhuma resposta.
– Vou ver lá em cima – disse Henry, e Gösta assentiu, completamente empenhado na tentativa de acalmar a bebé.
Nunca tinha pegado numa criança, por isso não sabia ao certo o que devia fazer para que ela parasse de chorar. Abanou-a atabalhoadamente nos braços, acariciando-lhe as costas e cantarolando uma melodia. Para sua surpresa, resultou. Os gritos da criança diminuíram, transformando-se em soluços. Gösta podia sentir-lhe o peito a subir e a descer quando lhe apoiou a cabeça no ombro. Continuou a embalá-la enquanto cantarolava, repleto de emoções que não conseguia verbalizar.
Henry regressou à sala de jantar e abanou a cabeça.
– Também não há ninguém lá em cima.
– Para onde terão ido? Como foram capazes de deixar uma bebé tão pequena sozinha? Podia ter-lhe acontecido uma desgraça.
– Realmente. E quem raio fez aquele telefonema? – Henry tirou o boné e coçou a cabeça.
– Achas que saíram para dar um passeio pela ilha? – Gösta lançou um olhar cético à mesa com a refeição de Páscoa parcialmente comida. – Mas a meio do almoço? Só pessoas muito estranhas fariam uma coisa dessas.
– Sem dúvida. – Henry voltou a pôr o boné. – E o que será que esta miúda tão engraçada está aqui a fazer sozinha? – perguntou com voz melodiosa, aproximando-se da criança que estava nos braços de Gösta.
A menina começou imediatamente a chorar, agarrando-se com tanta força ao pescoço de Gösta que ele mal conseguia respirar.
– Deixa-a em paz – disse, dando um passo atrás. Sentiu uma agradável satisfação preencher-lhe o peito e perguntou a si próprio como teria sido se o rapaz tivesse sobrevivido – o filho que ele e Maj-Britt tinham tido. Afastou rapidamente aquele pensamento. Tinha-se decidido a não pensar em como tudo poderia ter sido. – O barco deles estava lá em baixo? – perguntou passado um momento, quando a criança parou de chorar.
Henry fez uma careta.
– Havia um barco atracado no cais, mas eles não têm dois? Penso que compraram o barco de Sten-Ivar o ano passado e só vi o barco de fibra de vidro. Mas será que realmente saíram no barco e deixaram a bebé para trás? Apesar de serem gente da cidade, de certeza que não são assim tão malucos.
– Inez é daqui – corrigiu automaticamente Gösta. – A família dela é de Fjällbacka e é bastante antiga.
Henry suspirou.
– Bem, é mesmo muito estranho. Julgo que vamos ter de levar a criança connosco para o continente e depois esperar que alguém apareça – disse, virando-se para sair.
– A mesa está posta para seis pessoas – afirmou Gösta.
– Sim, mas estamos nas férias da Páscoa, portanto, quase de certeza que só está cá a família.
– Achas que devemos deixar isto assim? – A situação era no mínimo estranha e aquele desvio da rotina inquietava Gösta. Fez uma pausa para pensar. – Okay, vamos fazer o que sugeriste e levar a bebé connosco. Se ninguém disser nada, amanhã voltamos cá. Se entretanto não tiverem regressado, vamos ter de assumir que lhes aconteceu alguma coisa. E, nesse caso, isto será um local de crime.
Ainda sem terem a certeza de estar a fazer o mais acertado, saíram, fechando a porta atrás deles. Caminharam em direção ao cais e, quando estavam apenas a uma curta distância, viram um barco a aproximar-se.
– Olha, é o barco de Sten-Ivar – disse Henry, apontando para a embarcação.
– Vejo várias pessoas. Talvez seja o resto da família.
– Se for, vou dizer-lhes das boas. Como é que foram capazes de deixar esta menina para aqui sozinha? Mereciam era levar uma boa tareia!
Henry caminhou em grandes passadas até ao cais. Gösta teve de correr para o acompanhar, mas não se atrevia a ir mais depressa com medo de tropeçar e deixar cair a criança. O barco acostou e um rapaz que parecia ter quinze anos saltou para fora dele. Tinha o cabelo muito preto e fulminava-os com o olhar.
– Porque é que a Ebba está convosco? – rosnou.
– E quem é você? – perguntou Henry quando o rapaz se pôs à sua frente com as mãos nas ancas.
Mais quatro rapazes saíram do barco e aproximaram-se de Henry e de Gösta, que já tinha alcançado o colega.
– Onde estão a Inez e o Rune? – perguntou o rapaz do cabelo preto. Os outros estavam por detrás dele, esperando em silêncio. Era obviamente o líder do grupo.
– Isso também nós gostávamos de saber – disse Gösta. – Alguém telefonou para a esquadra a dizer que tinha acontecido aqui alguma coisa e, quando chegámos, encontrámos a bebé sozinha em casa.
O rapaz olhou para Gösta com surpresa.
– A Ebba estava sozinha?
«Com que então chama-se Ebba», pensou Gösta. A menina cujo coração, agora encostado ao seu, batia aceleradamente.
– São alunos do Rune? – perguntou Henry com voz autoritária. Mas o rapaz não pareceu intimidado. Fitou calmamente o agente e respondeu educadamente:
– Somos alunos do colégio. Ficámos cá nas férias.
– Onde estiveram? – Gösta lançou-lhes um olhar severo.
– Saímos de barco ao princípio da manhã. A família ia fazer um almoço de Páscoa, mas não fomos convidados. Por isso resolvemos ir pescar, «formar o caráter».
– Pescaram alguma coisa? – O tom de voz de Henry mostrava que não acreditava na história do rapaz.
– Apanhámos uma carrada de peixe – respondeu, apontando para o barco.
Gösta olhou para a embarcação e viu um cabo, cuja outra extremidade estava dentro de água, firmemente amarrado à popa.
– Têm de vir connosco até à esquadra. Temos de descobrir o que está a acontecer – disse Henry, começando a caminhar para o seu próprio barco.
– Não podemos lavar-nos primeiro? Estamos nojentos e tresandamos a peixe – disse um dos rapazes com ar alarmado.
– Façam o que diz o agente – disse em tom irritado o rapaz que parecia liderar o grupo. – Claro que vamos convosco. Peço desculpa se fomos mal-educados. Ficámos perturbados por ver a Ebba com estranhos. Chamo-me Leon Kreutz – disse, e estendeu a mão para cumprimentar Gösta.
Henry já tinha embarcado e estava à espera deles. Segurando Ebba nos braços, Gösta seguiu os rapazes. Lançou um último olhar à casa. Onde raio estava aquela família? Que tinha acontecido ali?
Gösta voltou ao presente. As recordações eram tão vivas que quase sentia o calor da menina nos braços. Endireitou-se e retirou uma fotografia do maço. Tinha sido tirada na esquadra, no sábado de Páscoa. Mostrava os cinco rapazes: Leon Kreutz, Sebastian Månsson, John Holm, Percy von Bahrn e Josef Meyer. Tinham o cabelo desgrenhado, as roupas sujas e expressões sombrias. Todos, exceto Leon, que sorria alegremente para a máquina fotográfica e parecia mais velho do que os seus dezasseis anos. Era um rapaz muitíssimo bem-parecido, apercebeu-se Gösta ao olhar fixamente para a velha fotografia. Na altura não tinha pensado muito nisso. Folheou o processo. Leon Kreutz. «Que terá sido feito dele?» Gösta tomou uma nota. Dos cinco rapazes, fora Leon quem lhe deixara uma impressão mais forte na memória. Seria boa ideia começar por ele.
FJÄLLBACKA, 1920
A BEBÉ CHORAVA CONSTANTEMENTE, DIA E NOITE, E MESMO QUE DAGMAR TAPASSE OS OUVIDOS COM AS MÃOS E GRITASSE, NÃO CONSEGUIA ABAFAR O RUÍDO. SÓ OUVIA A CRIANÇA A GRITAR E OS VIZINHOS A BATER NA PAREDE.
NÃO ERA ASSIM QUE AS COISAS DEVIAM ACONTECER. DAGMAR AINDA PODIA SENTIR AS MÃOS DE HERMANN A PERCORRER-LHE O CORPO, VER OS OLHOS DO PILOTO ENQUANTO ESTAVA DEITADA NA CAMA AO LADO DELE, NUA. ESTAVA CONVENCIDA DE QUE HERMANN SENTIA O MESMO POR ELA, PORTANTO, DEVIA TER-LHE ACONTECIDO ALGUMA COISA. CASO CONTRÁRIO NÃO A TERIA DEIXADO ENTREGUE ÀQUELA VIDA DE POBREZA E DEGRADAÇÃO. TALVEZ TIVESSE SIDO FORÇADO A REGRESSAR À ALEMANHA. SEM DÚVIDA QUE PRECISAVAM LÁ DELE. HERMANN ERA UM HERÓI QUE OBEDIENTEMENTE TINHA RESPONDIDO QUANDO O PAÍS O CONVOCARA, INDEPENDENTEMENTE DO DESGOSTO QUE TERIA DE SUPORTAR AO DEIXÁ-LA PARA TRÁS.
ANTES DE SE APERCEBER DE QUE ESTAVA GRÁVIDA, DAGMAR PROCURARA-O POR TODOS OS MEIOS AO SEU ALCANCE. ESCREVERA CARTAS PARA A LEGAÇÃO ALEMÃ EM ESTOCOLMO E PERGUNTARA A TODAS AS PESSOAS QUE CONHECIA SE SABIAM DO HERÓI DE GUERRA HERMANN GÖRING E O QUE LHE TINHA ACONTECIDO. QUANDO HERMANN SOUBESSE QUE DERA À LUZ O SEU FILHO, DE CERTEZA QUE IA REGRESSAR. POR MAIS IMPORTANTE QUE FOSSE O SEU TRABALHO NA ALEMANHA, HERMANN LARGARIA TUDO PARA SALVÁ-LAS, A ELA E A LAURA. NUNCA PERMITIRIA QUE VIVESSEM NAQUELA MISÉRIA, NO MEIO DAQUELAS PESSOAS REPUGNANTES QUE OLHAVAM PARA ELA E SE RECUSAVAM A ACREDITAR NA SUA HISTÓRIA QUANDO LHES DIZIA QUEM ERA O PAI DE LAURA. FICARIAM SURPREENDIDAS QUANDO HERMANN APARECESSE À SUA PORTA, TÃO BONITO NO SEU UNIFORME DE PILOTO, DE BRAÇOS ABERTOS E COM UM AUTOMÓVEL CHIQUE À ESPERA.
A CRIANÇA CHORAVA CADA VEZ MAIS ALTO NO BERÇO E DAGMAR SENTIU A RAIVA CRESCER DENTRO DELA. NÃO TINHA PAZ POR UNS MINUTOS QUE FOSSE. A BEBÉ ESTAVA A FAZER AQUILO DELIBERADAMENTE, ERA ÓBVIO PELA SUA EXPRESSÃO. APESAR DE SER TÃO PEQUENA, MOSTRAVA TANTO DESPREZO POR DAGMAR COMO TODAS AS OUTRAS PESSOAS. ODIAVA-OS A TODOS. ELES QUE ARDESSEM NO INFERNO, TODAS AS COSCUVILHEIRAS E TODOS OS SACANAS LASCIVOS QUE, APESAR DA CHACOTA, IAM TER COM ELA DE NOITE, PAGANDO-LHE UMA NINHARIA PARA O ENFIAR DENTRO DELA. DEITAVAM-SE EM CIMA DELA E GEMIAM E ARFAVAM – PARA ISSO JÁ PARECIA SERVIR.
DAGMAR AFASTOU O COBERTOR E DIRIGIU-SE À COZINHA MINÚSCULA. TODAS AS SUPERFÍCIES ESTAVAM PEJADAS DE PRATOS SUJOS E UM CHEIRO REPUGNANTE ELEVAVA-SE DOS RESTOS DE COMIDA EM DECOMPOSIÇÃO. ABRIU A PORTA DA DESPENSA. ESTAVA VAZIA, À EXCEÇÃO DE UMA GARRAFA DE ÁLCOOL QUE UM FARMACÊUTICO LHE DERA. PEGOU NELA E LEVOU-A ATÉ À CAMA. A FILHA CONTINUAVA A CHORAR E OS VIZINHOS ESTAVAM OUTRA VEZ A BATER NA PAREDE, MAS DAGMAR NÃO SE IMPORTAVA. EXTRAIU A ROLHA, SERVIU-SE DA MANGA DA CAMISA DE DORMIR PARA LIMPAR O GARGALO E DEU UMA GRANDE GOLADA. SE BEBESSE O SUFICIENTE, TODOS AQUELES RUÍDOS PERSISTENTES EM SEU REDOR DESAPARECERIAM.
Com uma enorme expetativa, Josef abriu a porta da sala de trabalho de Sebastian. Na mesa encontravam-se os projetos do edifício que, esperava, albergaria o museu num futuro não muito distante.
– Parabéns! – disse Sebastian, aproximando-se para o cumprimentar. – A Câmara Municipal comprometeu-se a apoiar o projeto – acrescentou, dando-lhe uma palmada nas costas.
– Ótimo – retorquiu Josef. – Na verdade, não esperara outra coisa. Como poderiam dizer que não a uma oportunidade tão incrível? Quando podemos começar?
– Calma! Não me parece que estejas a perceber o trabalho que temos pela frente. Temos de começar a produzir os símbolos da paz, planear a construção, elaborar um orçamento. Acima de tudo, temos de angariar muito dinheiro.
– Mas a viúva Grünewald dá-nos o terreno e tivemos muitas doações. Além disso, uma vez que és o empreiteiro, não és tu a decidir quando começam as obras?
Sebastian riu-se.
– Lá porque a empresa é minha, não significa que podemos construir o museu de borla. Tenho de pagar os salários aos trabalhadores e temos de comprar os materiais de construção. Isto vai sair caro – afirmou, batendo com o dedo nos projetos. – Vou ter de subcontratar uma parte dos serviços e os tipos não vão trabalhar de graça. Não são como eu.
Josef suspirou e sentou-se numa cadeira. O seu ceticismo em relação aos argumentos de Sebastião era mais do que muito.
– Vamos começar pelo granito – disse Sebastian, apoiando os pés na mesa. – Fiz uns esboços porreiros de como os símbolos de paz podiam ficar. Depois temos de montar uma campanha de marketing apelativa e desenvolver uma embalagem atraente, e então podemos começar a vender esta coisada toda – fez um sorriso rasgado quando viu a expressão de Josef.
– Ri-te à vontade. Para ti trata-se apenas de dinheiro. Não compreendes o valor simbólico disto? O granito ia fazer parte do Terceiro Reich, mas em vez disso vai ser um testemunho da derrota dos nazis e da vitória das forças do bem. Podemos fazer qualquer coisa dele e, consequentemente, criar isto. – Josef apontou para os projetos. Estava tão zangado que quase tremia de raiva.
O sorriso de Sebastian tornou-se ainda mais amplo. Abriu as mãos.
– Ninguém te obriga a trabalhar comigo. Podemos rasgar o nosso contrato aqui e agora e podes ir ter com quem quiseres.
O pensamento era tentador e, por um momento, Josef pensou fazer exatamente isso. Mas depois deixou-se cair na cadeira. Precisava de concluir aquele projeto. Até agora não fizera mais do que desperdiçar a sua vida. Não tinha nada para mostrar ao mundo, nada que pudesse honrar a memória dos pais.
– Sabes perfeitamente que és a única pessoa a quem posso recorrer – disse por fim.
– E vamos manter-nos unidos. – Sebastian tirou os pés de cima da mesa e inclinou-se para a frente. – Conhecemo-nos há muito tempo. Somos irmãos e tu sabes como eu sou. Nunca deixo de ajudar um irmão.
– Claro, vamos manter-nos unidos – disse Josef. Lançou a Sebastian um olhar perscrutador. – Ouviste dizer que o Leon regressou?
– Ouvi um rumor vago. Imagina tu, vê-lo por cá outra vez. E a Ia. Nunca pensei que isso fosse acontecer.
– Parece que compraram uma casa que estava à venda por cima de Brandparken.
– Têm dinheiro para isso, não é verdade? Então, porque não haveriam de gastá-lo? Aliás, talvez Leon gostasse de investir no projeto. Já lhe perguntaste?
Josef abanou a cabeça. Faria tudo para acelerar o projeto do museu. Tudo menos aproximar-se de Leon.
– Ontem vi o Percy – disse laconicamente Sebastian.
– Como está ele? – Josef ficou satisfeito por mudar de assunto. – Ainda tem o palacete?
– Sim, tem sorte por ser o fideicomissário de Fygelsta. Se tivesse de repartir a herança com os irmãos, há muito que teria falido. Mas parece que os fundos dele secaram e foi por isso que me contactou. Para pedir uma ajuda temporária, como ele disse – Sebastian esboçou aspas no ar. – Claro que o fisco anda atrás dele e essa gente não se deixa iludir com antepassados nobres e um nome fino.
– Vais ajudá-lo?
– Não faças um ar tão preocupado. Ainda não decidi. Mas, como eu disse, nunca deixo de ajudar um irmão e Percy é tão meu irmão quanto tu. Certo?
– Claro – disse Josef, olhando pela janela para o mar. Eram irmãos para toda a eternidade, unidos pela escuridão. Os olhos regressaram aos projetos. A escuridão seria expulsa pela luz. Fá-lo-ia pelo pai. E por si próprio.
– O que se passa com o Martin? – Patrik estava à entrada do gabinete de Annika. Não gostava de intrometer-se, mas não aguentava mais, era óbvio que havia algum problema.
Annika virou-se para Patrik, juntando as mãos no colo.
– Não posso dizer nada. O Martin conta-te quando estiver preparado.
Patrik suspirou e uma data de pensamentos rodopiavam-lhe na cabeça quando se sentou na cadeira reservada às visitas que havia junto à porta.
– Então, o que achas deste caso?
– Acho que tens razão. – Annika estava claramente aliviada por Patrik ter mudado de assunto. – O incêndio e o desaparecimento estão de alguma forma relacionados. E, tendo em conta o que se descobriu debaixo do soalho, é provável que alguém receasse que a Ebba e o marido o encontrassem ao recuperar a casa.
– A minha querida esposa anda fascinada pela história da família desaparecida há muito tempo.
– E agora estás preocupado que ela meta o seu lindo nariz na investigação – acrescentou Annika.
– Sim, lá isso estou, mas espero que desta vez a Erica seja suficientemente inteligente para não se intrometer.
Annika sorriu e Patrik apercebeu-se de que não acreditava nas suas próprias palavras.
– Como tem tanto jeito para recolher informações, o mais certo é já ter conseguido um monte de material relacionado com o caso. Desde que não interfira na nossa investigação, pode ser que até consiga ajudar-nos – disse Annika.
– O problema é que a Erica não tem muito jeito para não interferir.
– Mas tem jeito para tomar conta dela própria. Então, por onde pensas começar?
– Não tenho a certeza. – Patrik cruzou as pernas e mexeu distraidamente a ponta do sapato. – Temos de falar com todas as pessoas que estiveram envolvidas quando se deu o desaparecimento. O Gösta está a atualizar os contactos de todos os professores e alunos. O mais importante é termos uma conversa com os cinco rapazes que estavam na ilha naquele dia. Pedi ao Gösta para fazer uma lista das pessoas mais importantes com quem temos de falar para decidir por quem havemos de começar. Estava a pensar que tu podias investigar o passado deles, com base no que o Gösta descobrir. Não tenho grande fé na capacidade de organização dele, por isso devia ter-te pedido para trabalhares com ele nessa tarefa. Mas o Gösta é a pessoa que está mais a par do caso.
– Pelo menos parece muito empenhado. Para variar – disse Annika. – E julgo que sei porquê. Ouvi dizer que o Gösta e a mulher acolheram a pequena Elvander durante algum tempo.
– A Ebba viveu com o Gösta?
– Foi o que ouvi dizer.
– Isso explica porque é que estava a agir de modo tão estranho na ilha. – Patrik recordou a maneira como Gösta tinha olhado para Ebba. Como lhe tocara no braço.
– Provavelmente foi por isso que nunca foi capaz de esquecer o caso. Parece que eram muito ligados à miúda. – O olhar de Annika pousou na grande fotografia emoldurada de Leia que tinha em cima da secretária.
– Isso faz sentido – disse Patrik. Havia tanta coisa que não sabia, tanto que precisava de descobrir sobre o que aconteceu naquele tempo em Valö. De repente, a tarefa que tinha pela frente pareceu-lhe assustadora. Seria realmente possível resolver aquele caso passados tantos anos? E qual seria a urgência de o fazer?
– Achas que quem tentou incendiar a casa vai tentar outra vez? – perguntou Annika como se lhe tivesse lido os pensamentos.
Patrik refletiu. Depois assentiu.
– É possível. Não podemos dar-nos ao luxo de correr riscos. Vamos ter de trabalhar depressa para descobrir o que realmente aconteceu naquele sábado de Páscoa. Quem quer que tenha tentado fazer mal à Ebba e ao Tobias deve ser travado antes de voltar a atacar.
Anna estava nua em frente ao espelho e tinha lágrimas nos olhos. Não se reconhecia a si própria. Lentamente, ergueu a mão para tocar no cabelo. Quando voltara a crescer, após o acidente, estava mais escuro e mais fino do que antes e continuava muito mais curto. Uma visita ao cabeleireiro podia resolver o problema, mas a ideia não lhe agradava. Um novo corte de cabelo não ia mudar-lhe o corpo.
Com a mão trémula, Anna acompanhou as cicatrizes que lhe cruzavam a pele, formando como que um mapa. As linhas tinham-se desvanecido um pouco, mas nunca desapareceriam completamente. Beliscou distraidamente o rolo de gordura na cintura. Sempre conseguira manter-se magra sem grande esforço e tinha muito orgulho na sua figura. Agora, olhava com repugnância para a sua carne gorda. Por causa dos ferimentos, não fora capaz de se mexer muito e não se tinha preocupado com o que comia. Anna ergueu a cabeça para estudar o rosto, mal se atrevendo a olhar nos próprios olhos. Graças às crianças e a Dan, tinha conseguido regressar à vida, vinda de uma escuridão que tinha sido pior do que qualquer coisa que alguma vez vivera, pior ainda do que aqueles anos passados com Lucas. A questão agora era saber se tinha valido a pena. Ainda não sabia a resposta.
O som da campainha assustou-a. Estava sozinha em casa, por isso teria de ir ver quem era. Dando uma última olhadela ao corpo, Anna vestiu roupas confortáveis, que estavam amontoadas no chão, e correu escada abaixo. Quando viu Erica do lado de fora da porta ficou aliviada.
– Olá. Que estavas a fazer? – perguntou Erica.
– Nada de especial. Entra. Onde estão os miúdos?
– Em casa. A Kristina está a tomar conta deles. Precisava de fazer umas coisas, por isso pensei em passar por cá antes.
– Boa ideia – disse Anna, dirigindo-se à cozinha para fazer café. Imaginou novamente a carne branca e gorda que vira no espelho, mas afastou a imagem e tirou alguns bolos de chocolate do frigorífico.
– Oh, não, não me atrevo a comer nem um bolo desses – disse Erica, franzindo a testa. No fim de semana passado vesti um biquíni e não foi uma visão agradável.
– Como é que podes dizer isso? Estás ótima – afirmou Anna, incapaz de esconder uma pontinha de amargura. Erica seguiu-a até ao pequeno pátio nas traseiras da casa.
– Estes móveis de jardim são giros. São novos? – perguntou Erica, passando a mão sobre a madeira pintada de branco.
– Sim, encontrámo-los na loja do Paulsson, perto do antigo supermercado Evas Livs. Tu sabes onde é.
– Tens mesmo jeito para encontrar coisas bonitas – disse Erica, sabendo que Anna ia gostar da ideia que tinha tido.
– Obrigada. Então e onde estiveste hoje?
– Na colónia balnear – respondeu Erica. E contou a Anna a visita que fizera a Ebba e a Tobias.
– Que emocionante. Quer dizer que descobriram sangue, mas nenhum cadáver? Bem, mas alguma coisa deve ter acontecido por lá.
– Parece que sim. – Erica esticou o braço para alcançar um bolo. Pegou numa faca para dividi-lo ao meio, mas mudou de ideias e voltou a pousá-la. Deu uma dentada no bolo.
– Sorri – disse Anna, sentindo-se momentaneamente invadida por uma agradável alegria infantil.
Erica percebeu exatamente o que estava a passar pela cabeça da irmã e fez um sorriso rasgado, mostrando os dentes cobertos de chocolate.
– E esta – disse Erica, pegando em duas palhinhas que estavam numa bandeja. Enfiou uma em cada narina, entortou os olhos e sorriu, revelando uma vez mais os dentes castanhos.
Anna não conseguiu conter uma risada. Lembrou-se de como quando eram crianças adorava que a irmã mais velha fizesse de palhaço. Erica era sempre tão adulta e séria, mais como uma mãe do que como uma irmã mais velha.
– Aposto que já não consegues beber pelo nariz como costumavas – disse Erica.
– Claro que consigo – respondeu Anna, sentindo-se insultada. Enfiou uma palhinha em cada narina, inclinou-se para a frente e enfiou-as no copo. Inspirou pelo nariz. Quando o sumo lhe chegou às narinas, começou a tossir e a espirrar incontrolavelmente, e Erica desatou a rir às gargalhadas.
– Mas que maluquice é essa?
Dan entrara sem que tivessem ouvido e, quando viram a sua expressão, as irmãs iam caindo das cadeiras de tanto rir. Apontaram uma para a outra e tentaram explicar, mas estavam a rir tanto que não conseguiam proferir uma única palavra.
– Já vi que não devia ter voltado para casa sem ter avisado. – Dan abanou a cabeça e saiu.
Por fim, as irmãs acalmaram-se e Anna notou que o nó que sentia na boca do estômago diminuíra um pouco. Ao longo dos anos, já tinham tido as suas desavenças, mas ninguém conseguia influenciar Anna tão profundamente como a irmã. Ninguém a irritava como Erica, mas também ninguém a conseguia fazer tão feliz. Estavam ligadas para sempre por um elo invisível e Anna apercebeu-se de quanto precisava da irmã ao vê-la sentada à sua frente a limpar dos olhos as lágrimas de riso.
– Depois de Dan te ter visto assim, é melhor não contares com abraços nem beijos hoje à noite – disse Erica.
Anna resfolegou.
– Duvido que isto faça alguma diferença. Mas vamos mudar de assunto. Parece-me um pouco incestuoso falar da minha vida sexual com a minha irmã se pensar que o meu noivo dormia com ela.
– Meu Deus, isso foi há cem anos. Para ser franca, nem sequer me lembro de como ele é nu.
Anna enfiou teatralmente os dedos nos ouvidos e Erica abanou a cabeça, dando uma gargalhada.
– Okay, é melhor ficar calada. Vamos falar de uma coisa completamente diferente.
Anna tirou os dedos dos ouvidos.
– Conta-me lá como foi em Valö. Como é a filha? Como é que se chama? Ebba?
– Sim, Ebba – disse Erica. – Está a viver lá com o marido, Tobias. Estão a recuperar a casa para abrir uma pousada.
– Achas que isso vai resultar? Temos uma época turística tão curta.
– Não faço a mais pequena ideia, mas suspeito de que não estão a fazer aquilo por dinheiro. O projeto parece ter uma finalidade diferente.
– Bem, talvez resulte. O sítio tem potencial.
– Eu sei. E é aí que tu entras. – Erica apontou para a irmã com um toque de excitação na voz.
– Eu? – perguntou Anna. – Onde é que eu entro nisso tudo?
– Não entras. Pelo menos por enquanto. Mas podias entrar. Tive uma ideia fantástica.
– Sempre tão modesta. – Anna riu-se, mas a sua curiosidade tinha sido despertada.
– Na verdade, Ebba e Tobias é que tocaram no assunto. Têm jeito para fazer as obras de recuperação da casa, o trabalho manual, mas precisam de ajuda com os toques finais, para criar o ambiente certo. E é exatamente de ti que eles precisam: tu tens um dom para a decoração, percebes de antiguidades e tens bom gosto. Portanto, és a pessoa perfeita para o trabalho! – Erica prendeu a respiração e bebericou o seu sumo.
Anna mal podia acreditar no que ouvira. Aquela podia ser uma maneira de descobrir se conseguia trabalhar como decoradora por conta própria. Aquele podia ser o seu primeiro trabalho. Podia sentir um sorriso a formar-se no rosto.
– Que lhes disseste? Achas que querem contratar alguém? E têm posses para isso? Que tipo de estilo pensas que têm em mente? Não precisa necessariamente de custar uma data de dinheiro. Até era mais divertido dar a volta aos leilões de província e descobrir bons móveis e peças de decoração a preços imbatíveis. Acho que, lá na ilha, um estilo romântico algo antiquado resultava melhor e sei onde encontrar uns tecidos lindíssimos, e...
Erica ergueu a mão.
– Ei, acalma-te! A resposta é não, não lhes falei de ti. Tudo o que disse foi que talvez conhecesse alguém que podia ajudar. Não faço ideia de qual é o orçamento deles, mas porque não lhes telefonas? Depois podíamos ir lá as duas e ter uma reunião com eles, se estiverem interessados.
Anna semicerrou os olhos e fitou Erica.
– Só queres uma desculpa para ir lá outra vez bisbilhotar.
– Talvez... Mas continuo a achar que era ótimo para ti se os conhecesses. Ias ser uma mais-valia enorme para o projeto.
– Realmente tenho andado a pensar em criar um negócio qualquer.
– Então vamos a isso! Vou dar-te o número deles para lhes telefonares.
Anna sentiu uma centelha de algo novo a acender-se dentro dela. Entusiasmo. Essa era provavelmente a palavra que melhor descrevia o que sentia. Pela primeira vez em muito tempo sentia-se verdadeiramente entusiasmada.
– Okay, dá-me o número antes que mude de ideias – disse Anna, pegando no telemóvel.
A entrevista continuava a atormentá-lo. Era tão frustrante ter de ficar para ali a ouvi-lo falar sem poder dizer o que pensava. O jornalista com quem tinha falado naquela manhã era um idiota. A maior parte das pessoas eram idiotas. Recusaram-se a ver as coisas como realmente eram, o que fazia com que a sua responsabilidade fosse ainda maior.
– Achas que o partido vai ser prejudicado? – John Holm rodou o copo de vinho nas mãos.
A mulher encolheu os ombros.
– Provavelmente não. O jornal dele não é dos mais importantes. – Liv compôs o cabelo atrás da orelha e pôs os óculos para começar a ler o monte de documentos que tinha à frente.
– Não é preciso muito para uma entrevista ser recuperada por outros jornais. Andam atrás de nós como falcões, sempre alerta, à espera do mais pequeno motivo para atacar.
Liv olhou para o marido por cima dos óculos de leitura.
– Não me digas que estás surpreendido. Sabes muito bem quem controla os média deste país.
Holm assentiu.
– Não precisas de ensinar a missa ao padre.
– Mas, depois das próximas eleições, as coisas vão ser diferentes. As pessoas vão finalmente despertar para o que está a acontecer na nossa sociedade. – Liv lançou-lhe um sorriso triunfante e voltou a folhear os documentos.
– Gostava de ter a tua fé. Às vezes interrogo-me se a opinião pública alguma vez vai compreender. Será que os suecos se tornaram demasiado preguiçosos e estúpidos, demasiado multiculturais e degenerados para compreender que a praga se está a disseminar? Se calhar têm tão pouco sangue puro a correr-lhes nas veias que já não vale a pena continuarmos o nosso trabalho.
Liv parou de ler. Os olhos brilhavam enquanto avaliava o marido.
– Ouve uma coisa, John. Desde que nos conhecemos que tens um objetivo muito claro. Sempre soubeste o que tens de fazer, aquilo para que estás destinado. Se ninguém ouvir... Bem, então tens de falar mais alto. Se alguém questionar os teus pontos de vista, então tens de apresentar-lhes um argumento melhor. Finalmente temos um assento no parlamento e foi o povo, as mesmas pessoas de quem estás agora a duvidar, que achou por bem pôr-nos lá. Esquece esse jornalista insignificante a mandar postas de pescada sobre os números da nossa proposta de orçamento. Sabemos que temos razão e isso é a única coisa que interessa.
Holm sorriu a Liv.
– Quando te conheci na juventude do partido falavas exatamente da mesma maneira. Embora tenha de dizer que ficas melhor com cabelo do que sem – aproximou-se e beijou o topo da cabeça da mulher.
Além do temperamento explosivo e da retórica feroz, não havia nada naquela mulher fria e elegantemente vestida que lhe recordasse a skinhead ataviada com roupas militares por quem se tinha apaixonado. Mas agora amava-a mais do que nunca.
– É só um artigo num jornal local, nada mais. – Liv apertou a mão que John lhe pusera no ombro.
– Se calhar tens razão – disse, embora não conseguisse livrar-se de uma sensação desconfortável. Tinha de levar a cabo o plano que estabelecera para si próprio. A praga tinha de ser erradicada e cabia-lhe fazê-lo. Só gostava de ter mais tempo para o fazer.
A sensação dos azulejos da casa de banho contra a testa era maravilhosa. Ebba fechou os olhos e deixou aquela frescura invadi-la.
– Ainda não vens deitar-te?
Ouviu a voz de Tobias vinda do quarto, mas não respondeu. Não queria ir deitar-se. Sempre que se deitava ao lado de Tobias sentia que estava a trair Vincent. No primeiro mês nem sequer suportava estar na mesma divisão com ele. Não conseguia sequer olhar para Tobias e, se por acaso captasse o olhar dele no espelho, virava a cara. Só conseguia sentir culpa.
Os pais tinham-lhe feito companhia vinte e quatro horas por dia, tomando conta dela como se Ebba fosse um bebé. Tinham conversado com a filha, insistindo desesperadamente que ela e Tobias precisavam um do outro. Por fim, Ebba começou a acreditar neles e optou por ceder, porque assim era tudo mais fácil.
Lenta e relutantemente, Ebba começara a aproximar-se do marido. Voltou para casa. Passaram aquelas primeiras semanas em silêncio, com medo do que podia acontecer se começassem a falar um com o outro e dissessem algo que nunca mais poderia ser retirado. Então começaram a dizer coisas comuns.
«Passas-me a manteiga, se faz favor?»
«Já lavaste a roupa?»
Assuntos inofensivos e inocentes que não podiam provocar quaisquer acusações. Com o passar do tempo, as frases foram ficando maiores e Ebba e Tobias foram encontrando mais temas de conversa seguros. Começaram a falar sobre Valö. Foi Tobias quem sugeriu que deviam mudar-se para lá. Mas Ebba também tinha visto naquilo uma oportunidade de deixar para trás tudo o que lhes fizesse lembrar uma vida diferente. Uma vida que podia não ter sido perfeita, mas que pelo menos tinha sido feliz.
Sentada na casa de banho, de olhos fechados e com a testa pressionada contra os azulejos, Ebba começou pela primeira vez a questionar-se se tinham tomado a atitude certa. A casa tinha sido vendida, a casa onde Vincent tinha vivido toda a sua curta vida. O lugar onde lhe tinham mudado as fraldas, onde tinham passado noites acordados a embalá-lo nos braços, a casa onde o filho aprendera a gatinhar, a andar e a falar. Essa casa já não lhes pertencia e Ebba perguntou a si própria se tinham realmente tomado uma decisão ou se se tinham simplesmente afastado.
E agora estavam ali. Numa casa onde talvez nem sequer estivessem em segurança e onde todo o soalho da sala de jantar tinha sido levantado porque fora ali que a sua família tinha sido eliminada. Aquilo estava a afetá-la mais do que estava disposta a admitir. Quando estava a crescer, Ebba não tinha dedicado muito tempo a especular sobre as suas raízes. Mas não podia continuar a pôr o passado de lado. Ao ver aquela mancha escura que tinha estado escondida sob o soalho, compreendera num instante de terrível clarividência que aquele não era um enigma vago, era algo muito real. Era de presumir que a mãe e o pai tinham morrido precisamente naquele sítio e, por algum motivo estranho, isso parecia mais real do que a noção de que possivelmente alguém os tentara matar aos dois. Ebba não sabia como ia lidar com aquela realidade, como conseguiria viver nela, mas não havia mais nenhum sítio para onde ir.
– Ebba?
Pela voz de Tobias, Ebba percebeu que, se não respondesse, o marido iria à sua procura. Então, ergueu a cabeça e disse na direção da porta:
– Vou já!
Demorou-se a escovar os dentes enquanto se examinava ao espelho. Desta vez não desviou o olhar. Olhou fixamente para aquela mulher com expressão mortiça, para a mãe que já não tinha o seu filho. Então cuspiu para o lavatório e limpou a boca a uma toalha.
– Demoraste tanto! – Tobias tinha um livro aberto nas mãos, mas Ebba reparou que o marido ia na mesma página onde tinha ficado na noite anterior.
Ebba não disse nada, limitando-se a levantar as cobertas e a enfiar-se na cama. Tobias pousou o livro na mesa de cabeceira e desligou a luz. As cortinas que tinham posto quando se mudaram faziam com que o quarto ficasse escuro como breu, mesmo que lá fora nunca escurecesse por completo.
Ebba deixou-se ficar ali, imóvel, a olhar para o teto. Sentiu a mão de Tobias a procurar a sua no escuro. Fingiu não perceber, mas, como sempre, Tobias não retirou a mão. Em vez disso, fê-la deslizar suavemente em direção à sua coxa, sob a T-shirt, para acariciar-lhe a barriga. Ebba sentiu as náuseas a subirem-lhe à garganta enquanto a mão continuava a subir, aflorando-lhe os seios. Os mesmos seios que tinham amamentado Vincent, os mesmos mamilos que a sua boca pequena tinha tão avidamente sugado.
A bílis encheu-lhe a boca e Ebba saltou da cama, correndo para a casa de banho. Mal conseguiu levantar a tampa da sanita antes de despejar o conteúdo do estômago. Quando acabou, deixou-se cair no chão, exausta. Do quarto, ouviu Tobias a chorar.
FJÄLLBACKA, 1925
DAGMAR FITOU O JORNAL NO CHÃO. LAURA ESTAVA PUXAR-LHE A MANGA DA BLUSA, DIZENDO «MAMÃ, MAMû VEZES SEM CONTA, MAS DAGMAR NÃO LHE LIGOU NENHUMA. ESTAVA COMPLETAMENTE FARTA DE OUVIR AQUELA VOZ EXIGENTE E LAMURIENTA, E AQUELA PALAVRA ERA REPETIDA TANTAS VEZES QUE PENSOU QUE IA ENLOUQUECER. LENTAMENTE, INCLINOU-SE E PEGOU NO JORNAL. JÁ ERA TARDE E ESTAVA A TER DIFICULDADE EM VER CLARAMENTE, MAS NÃO HAVIA ABSOLUTAMENTE NENHUMA DÚVIDA. EM LETRAS PRETAS, O TÍTULO ANUNCIAVA: « GÖRING, O ÁS ALEMÃO, REGRESSA À SUÉCIA.»
– MAMÃ, MAMÃ! – LAURA ESTAVA A PUXÁ-LA AINDA COM MAIS FORÇA E DAGMAR DEU-LHE UMA BOFETADA TAL QUE A MENINA CAIU DO BANCO E COMEÇOU A CHORAR.
– PARA DE CHORAMINGAR! – DISSE DAGMAR COM IRRITAÇÃO. DETESTAVA AQUELE CHORO FINGIDO. NÃO FALTAVA NADA ÀQUELA CRIANÇA. TINHA UM TETO SOBRE A CABEÇA, ROUPA PARA VESTIR E NÃO ESTAVA A MORRER DE FOME, APESAR DE ÀS VEZES A COMIDA SER MESMO À JUSTA.
DAGMAR VOLTOU AO ARTIGO DO JORNAL, LENDO-O HESITANTEMENTE. O CORAÇÃO COMEÇOU A MARTELAR-LHE O PEITO. HERMANN TINHA REGRESSADO, ESTAVA NA SUÉCIA E AGORA IA BUSCÁ-LA. ENTÃO, OS OLHOS DE DAGMAR FOCARAM UMA FRASE MAIS ABAIXO: «GÖRING VEM VIVER PARA O NOSSO PAÍS COM A SUA MULHER SUECA, CARIN.» DAGMAR SENTIU A BOCA SECAR. TINHA CASADO COM OUTRA. TINHA-A TRAÍDO! A FÚRIA APODEROU-SE DELA, AGRAVADA PELOS GRITOS ESTRIDENTES DE LAURA, QUE ESTAVAM A FAZER COM QUE OS OUTROS TRANSEUNTES SE VIRASSEM PARA OLHAR PARA ELAS.
– CALA-TE! – DAGMAR DEU UMA BOFETADA A LAURA COM TANTA FORÇA QUE SENTIU PICADAS NA MÃO.
A CRIANÇA CALOU-SE, APERTANDO O ROSTO VERMELHO-FOGO, E OLHOU PARA A MÃE COM OS OLHOS MUITO ABERTOS. DEPOIS COMEÇOU NOVAMENTE A SOLUÇAR, MAIS ALTO DO QUE NUNCA. DAGMAR SENTIA O DESESPERO A INVADI-LA. FIXOU OS OLHOS NO JORNAL, RELEU O ARTIGO ATÉ O NOME CARIN GÖRING LHE FICAR A RESSOAR IMPLACAVELMENTE NO CÉREBRO. O ARTIGO NÃO DIZIA HÁ QUANTO TEMPO ESTAVAM CASADOS, MAS COMO CARIN ERA SUECA, DEVIAM TER-SE CONHECIDO ALI, NA SUÉCIA. DE ALGUMA FORMA, AQUELA MULHER DEVIA TER ENGANADO HERMANN A PONTO DE O FAZER CASAR COM ELA. CARIN DEVIA SER A RESPONSÁVEL POR HERMANN NÃO TER VOLTADO PARA A VIR BUSCAR, POR NÃO ESTAR COM ELA E COM A FILHA, COM A SUA FAMÍLIA.
ACENOU COM A CABEÇA ENQUANTO AMASSAVA O PAPEL E PEGAVA NA GARRAFA POUSADA NO BANCO AO SEU LADO. SÓ RESTAVA UM TRAGO, O QUE A SURPREENDEU, UMA VEZ QUE DE MANHÃ AINDA ESTAVA CHEIA. MAS DAGMAR NÃO QUIS SABER. BEBEU O QUE RESTAVA, SABOREANDO A AGRADÁVEL SENSAÇÃO DE ARDOR NA GARGANTA QUE A BEBIDA ABENÇOADA PROVOCAVA.
A FILHA TINHA PARADO DE UIVAR. ESTAVA SENTADA NO CHÃO, A FUNGAR COM AS PERNAS ENCOLHIDAS E OS BRAÇOS EM TORNO DOS JOELHOS. SEM DÚVIDA COM PENA DE SI PRÓPRIA, COMO ERA COSTUME. AQUELA RAPARIGA SÓ TINHA CINCO ANOS E JÁ ERA ASTUTA COMO UMA RAPOSA. MAS DAGMAR SABIA O QUE TINHA DE SER FEITO. AINDA ERA POSSÍVEL VOLTAR A PÔR TUDO NO LUGAR. QUANDO HERMANN VOLTASSE PARA JUNTO DELAS, ENSINARIA LAURA A COMPORTAR-SE. UM PAI COM MÃO FIRME – ERA EXATAMENTE DISSO QUE AQUELA CRIANÇA PRECISAVA, PORQUE ATÉ AÍ NADA PARECERA RESULTAR, POR MAIS QUE DAGMAR TENTASSE INCUTIR-LHE À FORÇA ALGUM BOM SENSO.
SENTADA NAQUELE BANCO DE BRANDPARKEN, DAGMAR SORRIU. DESCOBRIRA QUAL ERA A FONTE DE TODOS OS SEUS PROBLEMAS E IA TRATAR DE RESOLVER A SUA VIDA E A DE LAURA.
Gösta parou o carro junto à casa de Erica, que suspirou de alívio. Correra o risco de Patrik o ver quando saísse para ir trabalhar.
Abriu a porta antes de Gösta poder tocar à campainha. Por detrás dela, os filhos faziam tanto barulho que o mais certo era Gösta sentir que estava a atravessar uma parede de som.
– Desculpe toda esta agitação. Qualquer dia, as autoridades vêm cá dizer que este não é um local de trabalho adequado. – Erica virou-se para impedir que Noel perseguisse Anton, que chorava.
– Não se preocupe. Estou habituado a que o Mellberg grite connosco – disse Gösta, agachando-se. – Olá, pequenotes. Que grandes malandros vocês me saíram!
Anton e Noel estacaram, mostrando-se subitamente tímidos, mas Maja avançou corajosamente.
– Olá, velhote. Chamo-me Maja.
– Maja! Não digas essas coisas – disse Erica à filha com um olhar severo.
– Não faz mal. – Gösta deu uma gargalhada e levantou-se. – Da boca das crianças e dos loucos só sai a verdade. E não há dúvida de que sou um velhote. Não é, Maja?
A menina assentiu e fulminou a mãe com o olhar antes de se ir embora dali com ar triunfante. Os gémeos continuavam sem se atrever a avançar. Em vez disso, afastaram-se lentamente em direção à sala de estar sem tirar os olhos de Gösta.
– Aqueles dois não são propriamente muito calorosos com os desconhecidos, pois não? – perguntou Gösta enquanto seguia Erica até à cozinha.
– O Anton sempre foi tímido. O Noel, por outro lado, é habitualmente bastante extrovertido, mas parece estar numa fase em que fica com medo dos desconhecidos.
– Não considero que isso seja necessariamente mau – disse Gösta quando se sentou numa cadeira da cozinha, olhando nervosamente em redor. – Tem a certeza de que o Patrik não volta cá?
– O Patrik saiu para a esquadra há meia hora, por isso já deve lá estar.
– Não sei se isto é muito boa ideia. – Gösta passou o dedo sobre o padrão da toalha da mesa.
– Acho que é uma ótima ideia – disse Erica. – Não há necessidade de envolver o Patrik. Ele nem sempre aprecia a minha ajuda.
– E com razão. Às vezes, a Erica tem tendência para meter-se onde não deve.
– Mas no fim tudo acaba bem.
Erica recusava-se a ser dissuadida. Achava que a ideia que tivera na noite anterior era um golpe de génio e mal esperara para telefonar a Gösta às escondidas de Patrik. E agora ali estava ele, embora tivesse sido necessário recorrer à persuasão para que não dissesse nada a Patrik.
– O Gösta e eu temos um interesse comum – disse Erica, sentando-se à frente do colega de Patrik. – Estamos ambos a tentar desesperadamente descobrir o que aconteceu em Valö durante aquelas férias da Páscoa.
– Sim, mas agora a Polícia está a trabalhar no caso.
– E isso é positivo. Mas o Gösta sabe como as investigações podem demorar por causa de todas as regras e procedimentos oficiais que os agentes têm de seguir. Eu, por outro lado, sou livre para utilizar métodos alternativos.
Gösta ainda estava cético.
– Talvez seja assim, mas o Patrik não ficará satisfeito se descobrir e não tenho a certeza se quero...
– É exatamente por isso que o Patrik não vai descobrir – interrompeu Erica. Tudo o que o Gösta tem de assegurar é que eu consiga começar a estudar os arquivos do caso em segredo e depois eu digo-lhe tudo o que conseguir desenterrar. Assim que encontrar alguma coisa, comunico-lha imediatamente. O Gösta apresenta-a ao Patrik e será o herói do dia. Depois de o caso estar encerrado, eu utilizo as informações num dos meus livros. Toda a gente fica a ganhar, sobretudo o Patrik. O meu marido quer solucionar este caso e apanhar quem pegou fogo à casa da Ebba e do Tobias. Não vai fazer-lhe perguntas embaraçosas. Vai apenas ficar muito agradecido por quaisquer informações que consiga obter. Além disso, com o Martin doente e a Paula de férias, estão com falta de pessoal na esquadra, por isso, mal não fará terem uma pessoa extra a trabalhar no caso.
– Pois, lá isso é verdade. – A expressão de Gösta suavizou-se e Erica calculou que o agente simpatizasse com a ideia de ser o herói do dia. – E pensa mesmo que o Patrik não vai suspeitar?
– De maneira nenhuma. O Patrik sabe como o Gösta está envolvido neste caso; vá por mim, o Patrik não vai suspeitar de nada.
Parecia que um motim tinha rebentado na sala de estar. Erica levantou-se e saiu apressadamente para ir ver o que se passava. Depois de dirigir algumas palavras de advertência a Noel para que deixasse Anton em paz e de pôr um DVD da Pippi das Meias Altas no leitor, as coisas acalmaram e Erica pôde regressar à cozinha.
– Portanto, agora a pergunta é a seguinte: Por onde começamos? Já soube mais alguma coisa sobre o sangue?
Gösta abanou a cabeça.
– Ainda não, mas o Torbjörn e a equipa dele ainda estão a trabalhar na ilha, a tentar encontrar alguma coisa. Mais logo, não se sabe ao certo a que horas, contamos receber um relatório que nos dirá se o que a Ebba e o Tobias descobriram é ou não sangue humano. De momento, apenas temos um relatório preliminar sobre o incêndio, que o Patrik recebeu ontem antes de eu sair da esquadra.
– Já começaram a falar com as pessoas? – Erica estava tão ansiosa que mal conseguia manter-se quieta. Não tencionava desistir até ter feito tudo o que podia para ajudar a resolver o mistério. O facto de aquilo poder vir a fornecer material para um livro fantástico era um bónus adicional.
– Ontem compilei uma lista dos indivíduos com quem julgo que devemos falar primeiro e depois comecei a tentar encontrar os contactos deles. Mas não é uma tarefa fácil, uma vez que já passou muito tempo. Pode ser difícil localizar as pessoas e as suas recordações podem já ser muito vagas. Resta-nos esperar para ver o que sai das conversas.
– Pensa que os rapazes podem ter estado envolvidos?
Gösta percebeu imediatamente quais os rapazes a que Erica se referia.
– Claro que isso me ocorreu, mas não sei mesmo. Prestaram declarações várias vezes e as histórias deles bateram sempre certo umas com as outras. Além disso, não encontrámos qualquer prova física a indicar que...
– Chegaram a encontrar alguma prova física? – perguntou Erica.
– Não. Não havia muito por onde pegar. Depois de eu e o Henry, o meu colega, termos encontrado a Ebba sozinha em casa, voltámos para o cais. Foi então que encontrei os rapazes que estavam a chegar no outro barco, e parecia mesmo que tinham estado a pescar.
– Revistaram o barco? Não é de descartar que os cadáveres possam ter sido deitados ao mar.
– O barco foi meticulosamente revistado, mas não havia vestígios de sangue nem de nada do que haveria se os rapazes tivessem transportado cinco cadáveres no barco. E interrogo-me se teriam sido capazes de arrastar os corpos até ao barco. Eram rapazes muito delgados. Além disso, os cadáveres normalmente emergem. Alguns dos membros da família acabariam por dar à costa, mais cedo ou mais tarde, a menos que os rapazes se lembrassem de pôr pesos nos cadáveres, o que exigiria objetos pesados que podiam não estar facilmente à mão no calor do momento.
– Conversaram com outros alunos do colégio?
– Sim, mas alguns dos pais mostravam-se relutantes em deixar-nos falar com os filhos. Suponho que se consideravam demasiado finos e que não queriam correr o risco de um escândalo.
– E então, descobriram alguma coisa interessante?
Gösta resfolegou.
– Não, só conversa fiada dos pais, que achavam tudo aquilo um horror. Disseram-nos que os filhos não tinham nada a dizer sobre a vida na escola. Era tudo excelente. Rune era excecional, os professores eram excecionais e não havia conflitos nem brigas. E os alunos limitaram-se a repetir o que os pais nos disseram.
– E os professores?
– Claro que falámos com os dois. A princípio suspeitámos de Ove Linder. Mas mais tarde descobriu-se que tinha um álibi – Gösta ficou em silêncio por um momento. – Não tínhamos nenhum suspeito. Nem sequer podíamos provar que tinha sido cometido um crime. Mas...
Erica apoiou os braços na mesa e inclinou-se para a frente.
– Mas o quê?
Gösta hesitou.
– Não sei. O seu marido está sempre a falar dos pressentimentos dele e nós costumamos gozar com isso, mas tenho de admitir que, naquele tempo, tive a sensação de que estava a escapar-nos alguma coisa. Demos o nosso melhor, mas não conseguimos chegar a lado nenhum.
– Por isso vamos tentar novamente. Muita coisa mudou desde 1974.
– Pela experiência que tenho, algumas coisas nunca mudam. Esses finórios estão e estarão sempre muito protegidos.
– Vamos tentar de novo – disse pacientemente Erica. – Acabe de fazer a lista com os nomes de todos os alunos e professores e depois envie-me uma cópia para podermos trabalhar em duas frentes ao mesmo tempo.
– Mas por favor não diga...
– O Patrik não vai saber de nada. E eu mantenho-o a par de tudo o que descobrir. Esse era o nosso acordo, certo?
– Sim. – Uma expressão preocupada surgiu no rosto magro de Gösta.
– É verdade, ontem fui a Valö conversar com a Ebba e com o marido.
Gösta olhou para Erica.
– Como está ela? Ficou perturbada com o que aconteceu? Como...
Erica riu-se.
– Calma. Uma pergunta de cada vez – depois ficou séria. – Diria que estava um bocado apagada, mas serena. Dizem que não sabem quem poderá ter tentado incendiar a casa e não sei dizer se estão a mentir ou não.
– Julgo que deviam ir para outro sítio. – Era óbvio que Gösta estava extremamente preocupado. – Pelo menos até termos solucionado o caso. A ilha não lhes oferece nenhuma segurança e foi uma sorte terem conseguido sair da casa a tempo.
– Não me parece que desistam facilmente.
– A Ebba é teimosa – disse Gösta com orgulho evidente.
Erica olhou para o agente com surpresa, mas não fez nenhuma pergunta. Sabia por experiência própria quanto se envolvia pessoalmente nas vidas das pessoas sobre quem escrevia. Se calhar acontecia o mesmo com os polícias, uma vez que se enredavam nos destinos de tantas pessoas ao longo das suas carreiras.
– Quando conheci a Ebba, houve uma coisa que me fez pensar e que achei um pouco estranha.
– O quê? – perguntou Gösta, mas um grito fez Erica saltar da cadeira e correr até à sala para ver se alguém se tinha magoado. Demorou alguns minutos a regressar à cozinha e a retomar a conversa.
– Onde é que íamos? Ah, pois. Achei estranho a Ebba não ter nenhum dos pertences que a família deixou quando desapareceu. A casa não era apenas um colégio, era o lar daquela família, por isso devia haver uma data de objetos pessoais. Deduzi que esses objetos tinham sido entregues a Ebba, mas ela não faz ideia do que aconteceu a todas essas coisas.
– Bem visto. – Gösta coçou o queixo. – Tenho de verificar se se fez algum inventário. Não me recordo de ver nenhuma lista.
– Pensei que talvez valesse a pena olhar para esses pertences com novos olhos.
– Não é má ideia. Vou ver o que consigo encontrar. – Gösta olhou para o relógio e, em seguida, levantou-se repentinamente. – Jesus, o tempo voou. O Hedström deve estar admirado por eu ainda não ter aparecido.
Erica pôs-lhe a mão no braço para tranquilizá-lo.
– O Gösta vai arranjar uma boa desculpa. Diga que não conseguiu acordar a horas ou uma coisa do género. Prometo que o Patrik não vai suspeitar de nada.
– É fácil para si dizer isso – retorquiu Gösta, dirigindo-se ao vestíbulo para calçar os sapatos.
– Não se esqueça do que combinámos. Preciso dos contactos de todas as pessoas envolvidas e o Gösta vai descobrir para onde foram os pertences da família Elvander.
Erica inclinou-se para a frente e impulsivamente deu um abraço a Gösta, que lho retribuiu desajeitadamente.
– Bem, vou mas é pôr-me a andar. Prometo começar a trabalhar em tudo isso assim que puder.
– O Gösta é um rochedo – disse Erica, piscando-lhe o olho.
– Certo. Bem, agora é melhor ir ver dos seus filhos. Assim que tiver alguma coisa, contacto-a.
Erica fechou a porta atrás de Gösta e fez exatamente o que o agente lhe sugerira. Sentou-se no sofá e, depois de os três filhos terem subido para reivindicar o melhor lugar ao colo, assistiu distraidamente ao desenrolar das aventuras da Pippi das Meias Altas na televisão.
Reinava a tranquilidade na esquadra. Para variar, Mellberg tinha saído do seu gabinete para ir sentar-se na cozinha. Ernst, que nunca se afastava mais do que um metro do dono, instalara-se debaixo da mesa, na esperança de, mais cedo ou mais tarde, receber alguma guloseima.
– Que maldito idiota! – rosnou Mellberg, apontando para a última edição do Bohusläningen, à sua frente, em cima da mesa. O jornal publicara a entrevista a John Holm como artigo de fundo.
– Não compreendo como é que as pessoas elegem tipos destes para o Riksdag. Na minha opinião, esse é o outro lado da moeda da democracia – Patrik sentou-se à frente de Mellberg. – Por acaso precisamos de ter uma conversa com ele. Parece que o Holm era um dos rapazes que estavam em Valö durante aquelas férias da Páscoa.
– Nesse caso é melhor apressarmo-nos. Diz aqui que o Holm só vai estar cá uma semana e que depois regressa a Estocolmo.
– Sim, eu também li a entrevista. Estou a pensar ir falar com ele esta manhã. Se calhar levo o Gösta comigo. – Patrik virou-se para olhar para o corredor por cima do ombro. – Mas onde é que ele se meteu? Sabes alguma coisa do Gösta, Annika?
– Nada. Talvez se tenha deixado dormir – respondeu Annika da receção.
– Eu podia ir consigo – disse Mellberg, fechando o jornal.
– Ah, não há necessidade. Eu espero pelo Gösta. Deve estar a chegar não tarda nada. Tenho a certeza de que o Bertil tem coisas mais importantes para fazer. – Patrik podia sentir o pânico a crescer. Levar Mellberg em trabalho era sempre sinónimo de desastre.
Mellberg estalou os dedos algumas vezes e Patrik tentou arduamente encontrar um argumento para dissuadi-lo de ir.
– Talvez devêssemos telefonar ao Holm a marcar uma hora.
Mellberg resfolegou.
– Mais vale apanhar um tipo como esse... Qual é a expressão... – Mellberg voltou a estalar os dedos novamente. – En garde.
– Off guard – corrigiu Patrik. – O Bertil quis dizer «desprevenido».
Poucos depois já estavam no carro a caminho de Fjällbacka. Mellberg assobiava baixinho. Tinha insistido em ser ele a conduzir, mas nisso Patrik não cedera.
– As pessoas como o Holm são muito tacanhas e mesquinhas. Não têm nenhum respeito por outras culturas ou pela diversidade humana. – Mellberg acenou com a cabeça perante as suas próprias declarações.
Patrik estava mortinho por lhe recordar quão tacanho tinha sido, tecendo comentários que os Amigos da Suécia sem dúvida aprovariam. Porém, em defesa do chefe, tinha de reconhecer que Mellberg se livrara de todos os preconceitos quando se apaixonara por Rita.
– Aquela é a cabana de pesca, certo? – Patrik virou para a pequena área coberta com gravilha à frente de uma das antigas cabanas de pesca vermelhas de Hamngatan. Tinham concordado em arriscar; esperavam que Holm estivesse ali e não na casa que tinha em Mörhult.
– Pelo menos parece que há alguém sentado no cais. – Mellberg esticou o pescoço para olhar por cima da cerca.
A gravilha rangia sob os sapatos dos dois polícias à medida que se aproximavam. Patrik não tinha a certeza se devia bater, mas isso parecia disparatado, portanto, limitou-se a abrir o portão.
Reconheceu de imediato John Holm. O fotógrafo do Bohusläningen capturara as suas feições suecas quase estereotipadas, fazendo ao mesmo tempo com que as fotografias do homem com um sorriso rasgado parecessem perturbadoramente ameaçadoras. Naquele momento, Holm estava a sorrir, mas os seus olhos azuis espelhavam perplexidade quando se aproximou para os cumprimentar.
– Bom dia. Somos da polícia de Tanum – explicou Patrik, apresentando-se a si próprio e a Mellberg.
– Ah, sim? – a expressão de Holm tornou-se cautelosa. – Aconteceu alguma coisa?
– Depende do ponto de vista. Estamos aqui para falar consigo sobre algo que aconteceu há muito tempo, mas que infelizmente está outra vez no centro das atenções.
– Valö – disse Holm. Já não era possível decifrar a sua expressão.
– Sim, exatamente – disse Mellberg, assumindo um tom agressivo. – Estamos aqui por causa de Valö.
Patrik respirou fundo algumas vezes para manter a calma.
– Podemos sentar-nos e conversar um pouco? – perguntou.
Holm assentiu.
– Claro. Sentem-se. O sol está muito forte aqui fora. Eu gosto, mas se acharem que está demasiado calor posso abrir o chapéu-de-sol.
– Não, está ótimo – disse Patrik fazendo um gesto com a mão a enfatizar a sua concordância. Queria acabar com aquilo o mais depressa possível, antes de Mellberg começar a atrapalhar tudo.
– Já vi que esteve a ler o Bohusläningen. – Mellberg fez um gesto em direção ao jornal, que estava aberto sobre a mesa.
Holm encolheu os ombros
– O jornalismo de má qualidade é sempre tão cansativo. Fui citado e mal interpretado. O artigo está repleto de insinuações.
Mellberg repuxou o colarinho da camisa. Já tinha começado a ficar com o rosto vermelho.
– Eu acho que o artigo está bem escrito.
– O jornal foi claramente parcial; porém, quando estamos na política, temos de aturar estes ataques.
– Tudo o que o jornalista questiona está chapado no vosso programa eleitoral. Por exemplo, aquele absurdo de um imigrante que comete um crime dever ser deportado, independentemente de ter ou não autorização de residência. Como é que se podia fazer uma coisa dessas? Então uma pessoa que vive na Suécia há anos e que já criou raízes era recambiada para o país onde nasceu só por ter roubado uma bicicleta? – Mellberg tinha levantado a voz e enquanto falava salpicava o seu interlocutor com saliva.
Patrik parecia paralisado. Era como assistir a um acidente de viação prestes a acontecer. Mesmo que concordasse com o que Bertil estava a dizer, aquela não era a ocasião adequada para discutir política.
Imperturbável, Holm respondeu a Mellberg:
– Essa é uma questão que os nossos adversários decidiram interpretar de modo completamente errado. Podia dar-lhe uma explicação pormenorizada, mas presumo que não seja por isso que estão aqui.
– Não, como eu disse, estamos aqui para falar sobre os acontecimentos ocorridos em Valö em 1974. Certo, Bertil? – apressou-se a dizer Patrik. Cravou os olhos em Mellberg, que não disse nada durante alguns segundos, mas depois assentiu com relutância.
– Ouvi rumores de que aconteceu qualquer coisa na ilha – disse Holm. – Encontraram a família?
– Não propriamente – disse evasivamente Patrik. – Mas alguém tentou incendiar a casa. E, se tivessem conseguido, a filha e o marido podiam ter sido queimados vivos.
Holm endireitou-se na cadeira.
– A filha?
– Sim, Ebba Elvander – disse Patrik. – Ou Ebba Stark, como agora se chama. Ebba e o marido ficaram com a casa e estão a recuperá-la.
– Deve precisar mesmo de ser recuperada. Pelo que tenho ouvido, está praticamente abandonada. – Holm virou-se para olhar para Valö, que ficava do outro lado das águas reluzentes junto às quais estavam sentados.
– Mas o senhor não vai lá há muito tempo, pois não?
– Não vou lá desde que o colégio interno foi encerrado.
– Porque não?
Holm abriu as mãos.
– Simplesmente porque nunca houve nenhum motivo para lá voltar.
– Na sua opinião, o que aconteceu à família?
– Suponho que o meu palpite é tão bom como outro qualquer, mas realmente não faço ideia.
– Mas o senhor está mais familiarizado com a situação do que a maioria das pessoas – persistiu Patrik. – Viveu com a família e estava lá quando os cinco desapareceram.
– Isso não é rigorosamente verdade. Eu e os outros alunos tínhamos ido à pesca. Ficámos chocados quando chegámos a terra e nos deparámos com dois polícias. O Leon ficou furioso. Pensava que eram estranhos a tentar raptar a Ebba.
– Quer dizer que não tem nenhuma teoria? Deve ter pensado sobre isso ao longo dos anos. – Mellberg parecia cético.
John Holm não lhe prestou atenção. Em vez disso, virou-se para Patrik e disse:
– Só para esclarecer: nós não vivíamos com a família. Frequentávamos o colégio, mas havia uma separação rígida entre os alunos e a família Elvander. Por exemplo, não fomos convidados para o almoço de Páscoa. Rune tinha o máximo cuidado em manter-nos afastados e geria o colégio como um quartel. Por isso é que os nossos pais gostavam tanto daquilo e nós odiávamos.
– Os alunos davam-se bem ou havia conflitos?
– Havia bastantes discussões, mas teria sido estranho se não houvesse, uma vez que o colégio estava cheio de adolescentes. Mas eram sempre coisas sem importância.
– E os professores? Que pensavam do diretor?
– Aqueles cobardes tinham tanto medo dele que provavelmente nem se atreviam a ter uma opinião. Pelo menos nunca os ouvimos dizer nada sobre o Rune.
– Os filhos do Rune tinham aproximadamente a vossa idade. Passavam algum tempo com eles?
Holm abanou a cabeça.
– O Rune nunca o teria permitido. Embora víssemos frequentemente o filho mais velho, porque era uma espécie de assistente. Um idiota do pior.
– Parece que tinha sentimentos bastante fortes em relação a alguns dos membros da família.
– Detestava-os. Todos os rapazes do colégio os detestavam. Mas não o suficiente a ponto de os matarmos, se é isso que está a pensar. A revolta contra a autoridade faz parte da adolescência.
– Então e os outros filhos do Rune Elvander?
– Metiam-se na sua vida, senão ficariam em apuros. E com a Inez passava-se a mesma coisa. Era responsável pelas limpezas, pelas roupas e pela cozinha. A filha do Rune, Annelie, também ajudava muito. Mas, como eu disse, não estávamos autorizados a comunicar com eles e podia haver uma razão para isso. Muitos dos rapazes eram verdadeiros idiotas que foram estragados com mimos desde que nasceram. Suponho que foi por isso que foram parar àquele colégio. Os pais acabaram por perceber que os filhos se tinham tornado preguiçosos, indivíduos inúteis, por isso tentaram retificar o problema entregando-os nas mãos do Rune.
– Os seus pais não estavam propriamente na miséria.
– Os meus pais tinham dinheiro – afirmou Holm, enfatizando a palavra «tinham». Depois ficou em silêncio para mostrar que não pretendia falar sobre aquele assunto. Patrik não insistiu, mas tomou mentalmente nota para não se esquecer de investigar o passado da família de Holm.
– Como é que ela está? – perguntou de repente Holm.
Patrik demorou um segundo para compreender o que o deputado queria dizer.
– A Ebba? Pareceu-me estar bem. Como eu disse, está a recuperar a casa.
Holm olhou novamente para Valö. Patrik desejou poder ler os pensamentos daquele homem.
– Bem, obrigado pelo tempo que nos dispensou – disse Patrik, levantando-se. Era evidente que, de momento, não extrairiam mais nada de Holm, mas o que o deputado dissera tinha sido o suficiente para fazer com que Patrik ficasse mais curioso do que nunca sobre o que acontecera no colégio interno.
– Sim, obrigado. Sei que é uma pessoa muito ocupada – disse Mellberg. – A propósito, a minha companheira manda-lhe cumprimentos. É chilena. Emigrou para cá nos anos 70.
Patrik puxou o braço de Mellberg para o obrigar a sair. Com um sorriso forçado, Holm fechou o portão por detrás deles.
Gösta queria entrar na esquadra despercebidamente, mas foi logo descoberto à entrada.
– Deixaste-te dormir? Isso nem parece teu – disse Annika.
– O despertador não tocou – disse Gösta, sem se atrever a olhar Annika nos olhos. A secretária da esquadra detetava as mentiras e Gösta não se sentia à vontade para lhe esconder nada. – Onde é que se meteram todos?
Do corredor não vinha um único som e Annika parecia estar sozinha na esquadra. Só Ernst apareceu à entrada ao ouvir a voz de Gösta.
– O Patrik e o Mellberg saíram para ter uma conversa com o John Holm, por isso, Ernst e eu ficámos a tomar conta do forte. Não é verdade, meu velho? – disse a secretária, coçando a orelha do cão enorme. – Patrik queria saber onde estavas. Por isso é melhor praticares melhor essa história do despertador antes de ele voltar.
Annika olhou-o demoradamente.
– Talvez se me contares o que estiveste a fazer eu te possa ajudar a não seres apanhado.
– Não faço ideia do que estás para aí a dizer – afirmou Gösta, mas sabia que tinha sido derrotado. – Okay, tudo bem, mas primeiro preciso de uma chávena de café.
Dirigiu-se à cozinha e Annika seguiu-o.
– Então conta lá – disse Annika, quando já estavam ambos sentados.
Relutantemente, Gösta contou-lhe o acordo que fizera com Erica. Annika riu-se.
– Desta vez é que te meteste mesmo numa boa alhada. Sabes como é a Erica: dás lhe um dedo e fica-te logo com o braço! O Patrik vai ficar furioso quando descobrir.
– Eu sei – disse Gösta, contorcendo-se na cadeira. Sabia que Annika tinha razão, mas ao mesmo tempo aquilo era importante para ele. E era suficientemente inteligente para perceber porquê. Era por causa dela que estava a esforçar-se tanto, por causa da rapariga que ele e Maj-Britt não tinham conseguido ajudar.
Annika tinha parado de rir e estava a examiná-lo com uma expressão séria.
– Isto significa muito para ti, não é?
– Sim, muito. E a Erica pode ajudar. Tem um faro apuradíssimo. Sei que o Patrik não vai aprovar que a tenha metido no caso, mas o trabalho dela é desenterrar coisas do passado e é exatamente dessa capacidade que estamos a precisar.
Annika não disse nada por um momento. Depois respirou fundo.
– Okay. Eu não vou dizer nada ao Patrik. Com uma condição.
– Qual é?
– Que me mantenhas informada sobre o que vocês os dois forem descobrindo e que eu possa ajudar no que puder. Também tenho algum jeito para desenterrar coisas do passado.
Gösta olhou para Annika com surpresa. Não estava à espera daquilo.
– De acordo. Mas, como disseste, se o Patrik descobre é o meu fim.
– Quando chegarmos a essa ponte atravessamo-la. Então, o que é que já conseguiste? E o que é que eu posso fazer?
Aliviado, Gösta contou-lhe a conversa que tivera com Erica naquela manhã.
– Precisamos dos contactos de todos os alunos e professores do colégio interno. Eu tenho uma lista antiga, mas muitos contactos já estão desatualizados. De qualquer maneira, podemos servir-nos deles como ponto de partida. E alguns dos indivíduos tinham apelidos pouco comuns, por isso é possível que alguém nas moradas antigas saiba onde encontrá-los.
Annika ergueu as sobrancelhas.
– Que dizer que não tens os números dos cartões de cidadão deles?
Gösta olhou fixamente para Annika, sentindo-se um perfeito idiota por não ter pensado naquilo.
– Devo entender pela tua expressão que tens os números? Então, ótimo. Consigo dar-te uma lista atualizada ao fim do dia ou amanhã de manhã, o mais tardar. Serve?
Annika sorriu e Gösta disse:
– Isso seria ótimo. Estava a pensar ir com o Patrik falar com o Leon Kreutz.
– Porquê começar pelo Leon?
– Não há nenhum motivo específico, mas o Leon era um dos rapazes de que me lembro melhor. Fiquei com a impressão de que era o líder do grupo. Além disso, ouvi dizer que o Leon e a mulher acabam de comprar aquela casa grande no topo da colina. Em Fjällbacka, estás a ver onde é?
– A vivenda branca? Estavam a pedir dez milhões de coroas por ela! – disse Annika.
Os preços das casas com vista para o mar provocavam um fascínio permanente nos habitantes da região, que estavam sempre de olho nos preços pedidos e nos valores a que as propriedades acabavam efetivamente por ser vendidas. Mas dez milhões era o suficiente para impressionar mesmo os observadores mais experientes.
– Pelo que sei, os Kreutz têm dinheiro para isso. – Gösta pensou no rapaz bonito de olhos escuros. Mesmo naquela época irradiava prosperidade e algo mais que Gösta não conseguia definir. Uma espécie de autoconfiança inata era a melhor descrição que conseguia encontrar.
– Muito bem, ao trabalho – afirmou Annika. Pôs a chávena de café na máquina de lavar e, depois de lançar uma olhadela a Gösta, este seguiu-lhe o exemplo. – É verdade, já me ia esquecendo, tiveste uma consulta no dentista esta manhã.
– Uma consulta no dentista? Mas eu não... – Gösta calou-se bruscamente e sorriu. – Ah, certo. Ontem disse-te que tinha de ir ao dentista. Vê: zero cáries. – Gösta apontou para a boca e piscou-lhe o olho.
– Não compliques uma boa mentira acrescentando muitos pormenores – advertiu Annika, abanando o dedo em tom de censura antes de regressar ao seu computador.
ESTOCOLMO, 1925
QUASE TINHAM SIDO EXPULSOS DO COMBOIO. O REVISOR ARRANCOU A GARRAFA DAS MÃOS DE DAGMAR E GRITOU-LHE QUE ESTAVA DEMASIADO BÊBADA PARA VIAJAR. CLARO QUE NÃO ESTAVA. SÓ PRECISAVA DE UM GOLINHO DE VEZ EM QUANDO PARA SER CAPAZ DE ANDAR COM A VIDA PARA A FRENTE, QUALQUER PESSOA DEVIA ENTENDER ISSO. ERA CONSTANTEMENTE FORÇADA A MENDIGAR E A FAZER AS TAREFAS MAIS DEGRADANTES QUE LHE APARECIAM PELA FRENTE, POR CARIDADE E «POR CAUSA DA MENINA», E NORMALMENTE ACABAVA POR TER DE ATURAR AS VISITAS NOTURNAS DAQUELES HIPÓCRITAS OFEGANTES E DEVASSOS.
FOI POR CAUSA DA CRIANÇA QUE O REVISOR TEVE PENA DELA E LHE PERMITIU CONTINUAR NO COMBOIO ATÉ ESTOCOLMO. E FOI UMA SORTE, PORQUE SE AS TIVESSE POSTO FORA A MEIO DO CAMINHO, DAGMAR NÃO SABERIA COMO VOLTAR PARA CASA. DEMORARA DOIS MESES A POUPAR O DINHEIRO PARA O BILHETE SÓ DE IDA PARA ESTOCOLMO E AGORA NÃO TINHA UM TOSTÃO. MAS ISSO NÃO IMPORTAVA, PORQUE ASSIM QUE LÁ CHEGASSEM E TIVESSE OPORTUNIDADE DE CONVERSAR COM HERMANN, NUNCA MAIS PRECISARIA DE SE PREOCUPAR COM DINHEIRO. HERMANN TOMARIA CONTA DELAS. QUANDO SE REENCONTRASSEM E HERMANN SOUBESSE O QUE DAGMAR TINHA PASSADO, DEIXARIA IMEDIATAMENTE AQUELA MENTIROSA COM QUEM TINHA CASADO.
DAGMAR PAROU À FRENTE DE UMA MONTRA PARA ESTUDAR O REFLEXO NO VIDRO. ERA VERDADE QUE ENVELHECERA UM POUCO DESDE ÚLTIMA VEZ QUE SE TINHAM VISTO. O CABELO JÁ NÃO ERA TÃO ESPESSO E, AGORA QUE PENSAVA NISSO, JÁ NÃO O LAVAVA HÁ UNS TEMPOS. O VESTIDO, QUE ROUBARA DE UMA CORDA DE ESTENDER ROUPA ANTES DE PARTIREM, PENDIA-LHE DO CORPO MAGRO COMO UM SACO. SEMPRE QUE TINHA DINHEIRO, PREFERIA COMPRAR ÁLCOOL EM VEZ DE COMIDA, MAS ISSO NÃO VOLTARIA A ACONTECER. EM BREVE TERIA O ASPETO QUE EM TEMPOS TIVERA. HERMANN SENTIRIA UMA TERNURA IMENSA POR ELA QUANDO SOUBESSE COMO A VIDA TINHA SIDO DIFÍCIL DEPOIS DE A TER DEIXADO.
PEGOU NA MÃO DE LAURA E COMEÇOU NOVAMENTE A ANDAR. A FILHA RESISTIU TANTO QUE DAGMAR TEVE DE ARRASTÁ-LA.
– MEXE-TE! – ROSNOU. «PORQUE É QUE AQUELA CRIANÇA TINHA DE SER SEMPRE TÃO LENTA?»
TINHAM DE PARAR FREQUENTEMENTE PARA PERGUNTAR O CAMINHO, MAS ACABARAM POR ENCONTRAR A PORTA CERTA. DESCOBRIR A MORADA DE HERMANN ACABARA POR SER FÁCIL, PORQUE O NOME DO PILOTO VINHA NA LISTA TELEFÓNICA: ODENGATAN, NÚMERO 23. O PRÉDIO ERA TÃO GRANDE E IMPRESSIONANTE COMO DAGMAR IMAGINARA. RODOU A MAÇANETA, MAS A PORTA ESTAVA TRANCADA. FRANZIU A TESTA, MAS UM HOMEM APROXIMOU-SE, PEGOU NUMA CHAVE E ABRIU A PORTA.
– COM QUEM DESEJA FALAR?
DAGMAR RECOMPÔS-SE E ANUNCIOU COM ORGULHO:
– COM OS GÖRING.
– AH, SIM, ESTOU A VER QUE PRECISAM DE AJUDA – DISSE O HOMEM, DEIXANDO-AS ENTRAR NO PRÉDIO.
POR UM MOMENTO, DAGMAR PERGUNTOU-SE O QUE QUERERIA O HOMEM DIZER COM AQUILO, MAS DEPOIS DISSE A SI MESMA QUE NÃO TINHA IMPORTÂNCIA. AGORA JÁ ALI ESTAVAM. CONSULTOU OS NOMES GRAVADOS NA PLACA QUE HAVIA NO HALL, TOMOU MENTALMENTE NOTA DO ANDAR EM QUE OS GÖRING MORAVAM E COMEÇOU A ARRASTAR LAURA ESCADAS ACIMA. COM A MÃO TRÉMULA, DAGMAR TOCOU À CAMPAINHA. EM BREVE ESTARIAM NOVAMENTE JUNTOS. ELA, HERMANN E LAURA. A SUA FILHA.
Era incrível como era tão fácil, pensou Anna enquanto manobrava a cana do leme do barco que tinha comprado com Dan. Quando telefonara, Tobias sugerira-lhe que fosse a Valö assim que tivesse tempo e desde então não conseguira pensar em mais nada. Toda a família tinha reparado que a sua disposição melhorara e, na noite anterior, a esperança invadira a casa.
Porém, na realidade não era assim tão fácil. Aquele era o seu primeiro passo rumo a uma nova independência. Passara a vida a depender dos outros. Quando era pequena, apoiara-se em Erica. Depois passou a ser dependente de Lucas, o que conduzira à catástrofe que ainda a atormentava a ela e aos filhos. Depois aparecera Dan. O carinhoso e seguro Dan, que tinha acolhido aqueles três seres profundamente magoados debaixo da sua asa protetora. Fora maravilhoso poder sentir-se novamente como uma criança e saber que alguém se encarregaria de resolver todos os problemas.
Mas o acidente ensinara-lhe que nem mesmo Dan era capaz de resolver tudo. Para ser franca, fora provavelmente isso o que mais a afetara. Perder o bebé provocara-lhe uma tristeza infinita, mas a sensação de solidão e de vulnerabilidade quase fora pior.
Se iam continuar a viver juntos, precisava de aprender a desenvencilhar-se sozinha. Apesar de já ser um pouco tarde para começar a ser uma mulher independente, no fundo sabia que tinha a força necessária para o fazer. Conseguir aquele trabalho como decoradora marcaria um novo começo na sua vida. Ainda estava para ver se tinha o talento necessário; o primeiro obstáculo seria promover-se suficientemente bem de modo a que os Elvander a aceitassem.
Com o coração a martelar-lhe o peito, Anna bateu à porta. Ouviu passos a aproximarem-se e a porta abriu-se. Um homem que devia ter a sua idade apareceu, vestido como um carpinteiro e com óculos de proteção puxados para a testa. O rosto amigável assumiu uma expressão inquiridora, porém, por um momento, Anna limitou-se a ficar para ali especada, sem palavras.
– Olá – disse por fim. – Chamo-me Anna. Falámos ontem ao telefone.
– Anna, claro! Desculpe a minha reação. Embrenho-me tanto no trabalho que me esqueço de tudo o resto. Por favor, entre. Bem-vinda ao nosso caos.
O homem afastou-se para o lado para deixá-la entrar. Tinha razão acerca do caos que reinava no interior, mas Anna viu de imediato o potencial. Sempre tivera esse dom; era como se tivesse uns óculos mágicos que lhe permitiam prever o resultado final.
Tobias seguiu-lhe o olhar.
– Como pode ver, temos algum trabalho pela frente.
Anna estava prestes a responder quando uma mulher loura e magra desceu as escadas.
– Olá, sou a Ebba – disse, limpando os dedos a um trapo. Tinha as mãos e a roupa manchadas de tinta branca, assim como minúsculas manchas de tinta no rosto e no cabelo. O forte cheiro a terebintina fez com que Anna lacrimejasse. – Desculpe aparecer-lhe neste estado – acrescentou Ebba, erguendo as mãos. – É melhor esquecermos o aperto de mão.
– Não se preocupe. Sei que estão em plena remodelação. Estou mais preocupada... Bem, sobre o que estão a passar neste momento.
– Quer dizer que a Erica lhe contou o que aconteceu?! – perguntou Ebba, embora fosse mais uma afirmação do que uma pergunta.
– Soube do incêndio. E da outra coisa – respondeu Anna. Encontrar sangue sob o soalho da própria casa parecia uma descoberta tão absurda que nem teve coragem de dizer aquilo em voz alta.
– Na medida do possível, estamos a tentar continuar o trabalho – disse Tobias. – Não podemos dar-nos ao luxo de parar.
De dentro da casa veio o ruído de vozes e de madeira a rachar.
– Os técnicos forenses ainda cá estão – explicou Ebba. – Estão a levantar todo o soalho da sala de jantar.
– Têm a certeza de que é seguro ficarem aqui? – Anna apercebeu-se de que aquilo não era da sua conta, mas havia algo naquele casal que lhe despertava instintos maternais.
– Nós estamos bem – disse Tobias com pouca convicção. Estendeu a mão para abraçar Ebba, porém, como que antecipando o movimento, a mulher afastou-se e o braço de Tobias pendeu para um lado.
– Portanto, estão a precisar de uma ajudinha, não é verdade? – perguntou Anna, mortinha por se desviar daquele tema de conversa. A atmosfera era tão opressiva que começava a ter dificuldade em respirar.
Tobias parecia ter ficado grato por Anna ter mudado de assunto.
– Como eu disse ao telefone, não sabemos de todo o que fazer quando as obras principais estiverem terminadas. A decoração não é o nosso forte.
– Admiro o que estão a fazer. É uma trabalheira. Mas julgo que a casa vai ficar maravilhosa. Já consigo imaginar, um estilo rústico a dar para o antigo, com móveis decapados e pintados de branco e em tons pastel, uns rosas românticos, tecidos de linho bonitos, estanho e pequenos objetos de decoração para criar ambiente – as imagens giravam-lhe na cabeça enquanto falava. – Julgo que aqui não ficavam bem antiguidades caras, é preferível optar por uma mistura de objetos usados e móveis novos que podemos trabalhar até parecerem antigos. Só precisamos de palha de aço e de umas correntes, e...
Tobias deu uma gargalhada e o rosto iluminou-se. Anna deu por si a pensar que aquele homem era bastante atraente.
– Sem dúvida que sabe o que quer. Mas continue a falar. Acho que nos está a soar bem.
Ebba assentiu.
– Era exatamente assim que imaginava tudo. Só não fazia a mais pequena ideia de como concretizá-lo – disse, mas logo a seguir franziu a testa. – Quase não temos orçamento e suponho que a Anna esteja habituada a gastar muito dinheiro e a cobrar bastante pelo...
Anna interrompeu-a.
– Compreendo a vossa situação. – Tobias já tinha explicado. – Mas vocês seriam os meus primeiros clientes, por isso, se ficassem satisfeitos com o meu trabalho, podiam ser a minha referência. Tenho a certeza de que podemos chegar a acordo sobre um preço que esteja dentro do vosso orçamento. Quanto à decoração, a ideia é fazer com que tudo pareça ter sido herdado ou comprado em segunda mão. Fazer com que fique o mais barato possível vai ser o meu desafio.
Terminada a sua apresentação comercial, Anna prendeu a respiração e esperou pela resposta do casal. Queria mesmo muito aquele trabalho e o que acabara de dizer a Ebba e a Tobias era verdade. Darem-lhe luz verde para transformar a antiga colónia balnear na joia do arquipélago seria a maneira perfeita de lançar o seu novo negócio.
– Eu também tenho o meu próprio negócio, por isso percebo perfeitamente o que a Anna quer dizer. O passa palavra é a melhor forma de publicidade – Ebba mencionara o seu negócio de modo quase tímido.
– Trabalha em quê? – perguntou Anna.
– Joias. Faço colares de prata com anjos.
– Deve ser maravilhoso. Como é que teve a ideia de começar a fazer isso?
Era como se as persianas tivessem sido descidas: Ebba baixou os olhos e virou a cara. Envergonhado, Tobias começou a falar para quebrar o silêncio.
– Não sabemos quando vamos acabar as obras. A investigação policial e os danos no vestíbulo atrasaram tudo, por isso é difícil calcular daqui a quanto tempo a Anna poderá começar.
– Isso não tem importância, posso começar a trabalhar quando vos der jeito – disse Anna, ainda intrigada com a reação de Ebba à sua pergunta. – Talvez possamos começar a falar de opções de cores para as paredes e essas coisas. E depois podia fazer-vos uns esboços e começar a sondar os leilões da região para ver se consigo encontrar alguma coisa.
– Parece-me perfeito – disse Tobias. – Esperamos poder abrir a pousada com alguns quartos na Páscoa do ano que vem e começar em pleno no verão.
– Então temos tempo de sobra. Não se importam que eu dê uma volta pela casa para tomar algumas notas antes de me ir embora, pois não?
– Claro, fique à vontade – disse Tobias. Depois refletiu e disse: – Mas é melhor não ir à sala de jantar.
– Tudo bem. Posso voltar cá mais tarde para ver a sala.
Ebba e Tobias saíram para retomar o que estavam a fazer quando Anna chegara e deixaram-na observar a casa à vontade. Anna tomou muitas notas, sentindo o entusiasmo a borbulhar dentro dela. Aquele sítio podia ficar fantástico. Podia ser o início da sua nova vida.
A mão de Percy tremia enquanto se preparava para assinar os documentos. Respirou fundo para se acalmar. Buhrman, o advogado, franziu a testa.
– Tem a certeza absoluta de que quer fazer isto, Percy? O seu pai não teria aprovado.
– O meu pai já morreu! – retorquiu Percy, mas rapidamente murmurou um pedido de desculpa e, em seguida, prosseguiu: – Pode parecer uma medida drástica, mas é isto ou vender Fygelsta.
– Então e porque não um empréstimo bancário? – perguntou Buhrman, que também fora advogado do pai de Percy. Quantos anos teria?, interrogou-se Percy. Graças a todas as horas que passava no campo de golfe perto da sua casa em Palma de Maiorca, o homem parecia uma múmia; o corpo de Buhrman estava em tal estado que poderia ser exposto num museu.
– Por quem me toma? Claro que já falei com o banco. – Percy teve uma vez mais de forçar-se a baixar a voz e a falar com calma. Burhman tinha tendência para falar-lhe com se ele ainda fosse um rapaz. Parecia esquecer-se de que Percy era agora o conde von Bahrn. – Deixaram muito claro que já não pretendem ajudar-me.
Buhrman ergueu uma sobrancelha, surpreendido.
– Mas nós tivemos sempre uma relação tão boa com o Svenska Banken! O seu pai e o antigo diretor estudaram ambos no Lundsberg Gymnasium. Tem a certeza de que falou com a pessoa certa? Quer que marque uma reunião? De certeza que eles...
– O antigo diretor já saiu do banco há muito tempo – interrompeu Percy. Estava à beira de perder a paciência com Burhman. – Na verdade, já deixou este mundo há tanto tempo que, provavelmente, os ossos são tudo o que resta dele. Agora vivemos num mundo diferente. O banco está cheio de contabilistas picuinhas e jovens arrogantes da Faculdade de Economia. Não fazem ideia de como se devem comportar. Estamos a falar do género de pessoas que descalçam os sapatos dentro de casa! – Zangado, Percy assinou o último documento e empurrou-o por cima da mesa na direção do advogado, que estava a abanar a cabeça, completamente perplexo.
– Bem, mas continuo a achar estranho – disse Burhman. – Quando menos esperarmos, vão tentar abolir as leis que regem os fideicomissos, de modo a que as propriedades possam ser divididas de qualquer maneira. Por falar nisso, não podia falar com os seus irmãos sobre esta situação? Mary casou com um homem rico e julgo saber que Charles está a fazer uma fortuna com os restaurantes. Talvez estivessem dispostos a ajudar. Afinal de contas, o Percy é da família.
Percy olhou fixamente para o advogado. O velho estava louco. Será que já se tinha esquecido das discussões acaloradas e dos processos judiciais que se seguiram à morte do pai, há quinze anos? Os irmãos de Percy tinham sido tolos ao ponto de desafiar a lei que lhe conferia o direito, como filho mais velho, de herdar a propriedade na sua totalidade. Felizmente, a lei era muito clara. Era ele, e apenas ele, o herdeiro de Fygelsta. Teria sido de bom-tom partilhar parte da propriedade com os irmãos, mas depois da tentativa deliberada de lhe tirarem o que lhe pertencia por lei, Percy não se sentiu particularmente generoso. Por isso, os irmãos tinham ficado de mãos a abanar e, para cúmulo, ainda tiveram de assumir as custas judiciais de Percy. Como Buhrman disse, nenhum dos irmãos tinha problemas financeiros e era nesse ponto que Percy buscava consolo sempre que sentia uma pontada de culpa. Mas de maneira nenhuma os ia agora abordar a pedir esmola.
– Esta é a minha única opção – disse, apontando para os documentos. – Tenho a sorte de ter bons amigos que estão dispostos a intervir e vou pagar-lhes tudo assim que esta infeliz situação esteja resolvida junto da Autoridade Tributária.
– Bem, faça como entender, mas está a pôr muita coisa em risco.
– Eu confio em Sebastian – afirmou Percy. Só desejava estar tão confiante como parecia.
Kjell bateu com o telefone com tanta força no descanso que o golpe se propagou pelo braço acima. A dor apenas lhe aumentou a fúria e Kjell praguejou enquanto massajava o cotovelo, cerrando os punhos para evitar atirar alguma coisa contra a parede.
– O que se passa? – Rolf, o seu melhor amigo e colega, enfiou a cabeça pela porta entreaberta.
– O que te parece? – Kjell passou a mão pelo cabelo escuro, que há alguns anos tinha começado a adquirir, aqui e ali, madeixas grisalhas.
– A Beata? – perguntou Rolf, entrando no gabinete.
– Pois, quem é que havia de ser? Já te tinha dito que à última hora impediu-me de ficar com os meus filhos no fim de semana, apesar de ser a minha vez de ficar com eles. Agora estava para ali ao telefone a berrar que não os deixa ir comigo a Palma de Maiorca. Considera que uma semana é demasiado tempo para estarem longe dela.
– Mas os teus filhos não passaram duas semanas com ela nas Canárias em junho? E ela não marcou a viagem sem te consultar? Porque é que não haveriam de poder passar uma semana com o pai?
– Porque são os filhos «dela». A Beata está constantemente a dizer isso. «Os meus filhos.» Por isso, parece que só estou autorizado a pedi-los emprestados.
Kjell tentou forçar-se a respirar mais devagar. Detestava que a ex-mulher ainda tivesse a capacidade de o perturbar. E que não se importasse com o que era melhor para os filhos. Tudo o que ela queria era tornar-lhe a vida o mais miserável possível.
– Mas vocês não tinham a guarda conjunta? – perguntou Rolf. – Devias poder ficar com os teus filhos com mais frequência, se é isso que queres.
– Pois, eu sei, mas ao mesmo tempo quero que tenham uma vida estável. Não deveria haver uma guerra sempre que me calha ficar com eles. Uma semana de férias! Será que é pedir muito? Eu sou o pai deles e tenho exatamente o mesmo direito de estar com os meus filhos que a Beata.
– Os teus filhos estão a crescer, Kjell. Vão acabar por perceber. Tenta ser uma pessoa melhor, um pai melhor. Eles precisam de tranquilidade. Assegura-te de que a têm quando estão contigo e tudo acabará por se resolver. Mas nunca pares de lutar pelo direito a estar com eles.
– Recuso-me a desistir – disse Kjell com amargura.
– Ótimo – afirmou Rolf. Em seguida, acenou com o jornal que tinha na mão. – Deixa que te diga, escreveste um artigo do caraças. Encostaste o tipo às cordas. Julgo que é o primeiro artigo que leio em que alguém se atreveu a pôr John Holm e o partido dele no lugar. – Rolf sentou-se na cadeira reservada às visitas.
– Não consigo perceber o que se passa com os outros jornalistas – Kjell abanou a cabeça. – Há falhas tão óbvias na retórica vomitada pelos Amigos da Suécia. Não devia ser assim tão difícil.
– Esperemos que haja mais a seguir o teu exemplo – disse Rolf, apontando para o jornal, que estava aberto no artigo de Kjell. – Temos de mostrar aos nossos leitores como é essa gente.
– O pior é que alguns eleitores engolem a propaganda barata deles. Vestem aqueles fatos elegantes, saneiam publicamente alguns membros que se portaram mal e põem-se a falar em cortes orçamentais e em poupança. Por detrás da fachada, continuam a ser os mesmos fascistas de sempre. Só que agora, sempre que fazem a saudação nazi e empunham bandeiras com suásticas, certificam-se de que o fazem às escondidas. E depois vão à televisão lamentar-se de que foram difamados e injustamente atacados.
– Não precisas de tentar convencer-me. Estamos do mesmo lado – riu-se Rolf, erguendo as mãos.
– Tenho a certeza de que ele está a esconder mais qualquer coisa – disse Kjell, massajando a ponta do nariz.
– Quem?
– O John Holm. Está demasiado simpático, demasiado contido. É tudo demasiado perfeito. Nem sequer se preocupou em encobrir o passado como membro do movimento skinhead. Fala disso com toda a descontração quando vai aos programas da manhã da televisão e fica para lá sentado no sofá do estúdio a pedir desculpa e a lamentar ter sido skinhead. Enfim, nada disso é novidade para os eleitores. Não, tenho de continuar a investigar. O Holm não pode ter-se purificado de todos os pecados.
– Concordo. Mas os segredos dele não vão ser fáceis de descobrir. O Holm esforçou-se demasiado para os branquear. – Rolf pôs o jornal de lado.
– Pelo menos tenho de... – Kjell foi interrompido pelo toque do telefone. – Se for outra vez a Beata... – hesitou por um segundo e depois atendeu. – Estou?
Quando ouviu quem era, o seu tom de voz mudou imediatamente. Reparou que Rolf estava a olhar para ele com ar divertido.
– Olá, Erica... Não, não há problema... Claro, claro... O que foi que disseste? Estás a brincar, certo?
Lançou uma olhadela a Rolf e fez um sorriso rasgado. Dois minutos mais tarde, Kjell terminou a conversa. Tinha tomado algumas notas à pressa e, depois de desligar, atirou a caneta para cima da secretária, recostou-se e cruzou as mãos atrás da cabeça.
– Parece que as coisas estão a começar a mexer.
– Que aconteceu? Com quem estavas a falar?
– Com a Erica Falck. Parece que não sou a única pessoa interessada no John Holm. Deu-me os parabéns pelo artigo e perguntou-me se tinha algum material sobre o passado dele que pudesse ver.
– Porque será que a Erica se está a interessar por ele? – perguntou Rolf, abrindo depois muito os olhos. – Será que é por o Holm ter estado em Valö? Erica está a escrever sobre a família que desapareceu?
Kjell assentiu.
– Parece que sim. Mas essa não é a melhor parte. Não vais acreditar nisto.
– Então, Kjell, acaba lá com esse suspense.
Kjell sorriu. Sabia que Rolf ia adorar o que lhe ia dizer.
ESTOCOLMO, 1925
A MULHER QUE ABRIU A PORTA NÃO ERA DE TODO COMO DAGMAR A TINHA IMAGINADO. NÃO ERA BONITA NEM SEDUTORA, ANTES CANSADA E ABATIDA. TAMBÉM PARECIA SER MAIS VELHA DO QUE HERMANN E TUDO NELA EXALAVA UMA SIMPLICIDADE INESPERADA.
DAGMAR FICOU A OLHÁ-LA, BOQUIABERTA. TER-SE-IA ENGANADO NA PORTA? MAS DIZIA «GÖRING» NA PLACA, POR ISSO DECIDIU QUE AQUELA MULHER DEVIA SER EMPREGADA DO CASAL. APERTOU A MÃO DE LAURA COM FIRMEZA.
– VIM VER O HERMANN.
– O HERMANN NÃO ESTÁ EM CASA. – A MULHER OLHOU-A DE ALTO A BAIXO.
– ENTÃO EU ESPERO QUE CHEGUE.
LAURA ESTAVA A TENTAR ESCONDER-SE POR DETRÁS DE DAGMAR E A MULHER LANÇOU-LHE UM SORRISO AMÁVEL ANTES DE DIZER:
– EU SOU A MULHER DE GÖRING. POSSO AJUDÁ-LA EM ALGUMA COISA?
ENTÃO AQUELA ERA MESMO A MULHER QUE DAGMAR ODIAVA. A MULHER QUE ESTAVA NOS SEUS PENSAMENTOS DESDE QUE LERA O SEU NOME NO JORNAL. DAGMAR CONTEMPLOU CARIN GÖRING COM SURPRESA: OS SAPATOS PRÁTICOS E RESISTENTES, A SAIA DE BOM CORTE ATÉ AOS TORNOZELOS, A BLUSA IMPECAVELMENTE ABOTOADA ATÉ AO PESCOÇO E O CABELO APANHADO ATRÁS NUM COQUE. PEQUENAS RUGAS ERAM VISÍVEIS EM TORNO DOS OLHOS E A PELE APRESENTAVA UMA PALIDEZ DOENTIA. DE REPENTE, TUDO ENCAIXOU. CLARO QUE AQUELA ERA A MULHER QUE TINHA ENGANADO O SEU HERMANN. UMA VELHA SOLTEIRONA COMO ELA NUNCA PODERIA TER CONSEGUIDO UM HOMEM COMO O HERMANN SEM ALGUNS TRUQUES PERVERSOS.
– BEM, TEMOS DE TER UMA CONVERSINHA, EU E VOCÊ. – DAGMAR PUXOU LAURA PELA MÃO COM FORÇA E ENTROU.
CARIN AFASTOU-SE SEM FAZER NADA PARA A DETER. LIMITOU-SE A ACENAR COM A CABEÇA À CRIANÇA.
– PODE DAR-ME OS VOSSOS CASACOS? – PERGUNTOU.
DAGMAR OLHOU-A COM DESCONFIANÇA. EM SEGUIDA, SEM ESPERAR SER CONVIDADA, ENTROU DE ROMPANTE NA DIVISÃO MAIS PRÓXIMA DO VESTÍBULO, PARANDO REPENTINAMENTE NO LIMIAR DA GRANDE SALA. O APARTAMENTO ERA TÃO BONITO QUANTO ESPERAVA QUE O LAR DE HERMANN FOSSE: ESPAÇOSO, COM JANELAS ALTAS, UM TETO ALTO E SOALHO EM PARQUÉ RELUZENTE – MAS ESTAVA QUASE VAZIO.
– PORQUE É QUE ELES NÃO TÊM MÓVEIS, MAMÃ? – PERGUNTOU LAURA COM OS OLHOS MUITO ABERTOS ENQUANTO PESQUISAVA EM SEU REDOR.
DAGMAR VIROU-SE PARA CARIN.
– SIM, PORQUE É QUE NÃO TÊM MÓVEIS? PORQUE É QUE O HERMANN VIVE ASSIM?
CARIN FRANZIU A TESTA POR UM MOMENTO, O QUE INDICAVA CONSIDERAR A PERGUNTA IMPERTINENTE, MAS DEPOIS RESPONDEU NUM TOM BASTANTE AMIGÁVEL:
– AS COISAS TÊM SIDO UM POUCO DIFÍCEIS NOS ÚLTIMOS TEMPOS. MAS AGORA TEM DE DIZER-ME QUEM É A SENHORA.
DAGMAR FINGIU NÃO OUVIR O PEDIDO, LIMITANDO-SE A LANÇAR À SR.A GÖRING UM OLHAR DE DESDÉM.
– DIFÍCEIS? MAS O HERMANN É RICO. NÃO PODE ESTAR A VIVER ASSIM.
– OUVIU O QUE EU DISSE? SE NÃO ME DISSER QUEM É E O QUE ESTÁ AQUI A FAZER VOU SER OBRIGADA A CHAMAR A POLÍCIA. PARA O BEM DA CRIANÇA, PREFERIA NÃO O FAZER. – CARIN ACENOU COM A CABEÇA NA DIREÇÃO DE LAURA, QUE FOI MAIS UMA VEZ ESCONDER-SE POR DETRÁS DA MÃE.
DAGMAR AGARROU-LHE O BRAÇO E EMPURROU-A NA DIREÇÃO DE CARIN.
– ESTA É A MINHA FILHA. E DO HERMANN. A PARTIR DE AGORA, O HERMANN VAI MORAR CONNOSCO. JÁ ESTEVE COM ELE TEMPO SUFICIENTE E O HERMANN NÃO A QUER. SERÁ QUE NÃO PERCEBE ISSO?
CARIN GÖRING VACILOU, MAS MANTEVE UMA POSTURA CALMA ENQUANTO, POR UM MOMENTO, ESTUDOU DAGMAR E LAURA EM SILÊNCIO.
– NÃO FAÇO IDEIA DO QUE ESTÁ A DIZER. O HERMANN É O MEU MARIDO. EU SOU A SENHORA GÖRING.
– E EU SOU QUEM O HERMANN AMA. SOU O GRANDE AMOR DA VIDA DELE –DISSE DAGMAR, BATENDO O PÉ. – LAURA É FILHA DELE, MAS VOCÊ ROUBOU-MO ANTES QUE EU PUDESSE DIZER-LHO. SE O HERMANN SOUBESSE DA LAURA, NUNCA TERIA CASADO CONSIGO, INDEPENDENTEMENTE DO QUE TIVESSE FEITO PARA O OBRIGAR. – DAGMAR ESTAVA FORA DE SI DE TANTA RAIVA. LAURA TINHA-SE IDO NOVAMENTE ESCONDER POR DETRÁS DELA.
– ACHO QUE DEVIA SAIR ANTES QUE EU CHAME A POLÍCIA. – A VOZ DE CARIN PERMANECIA CALMA, MAS DAGMAR PODIA VER O MEDO ESTAMPADO NOS SEUS OLHOS.
– ONDE ESTÁ O HERMANN? – INSISTIU.
CARIN APONTOU PARA A PORTA DA FRENTE.
– SAIA! – AINDA A APONTAR, MOVEU-SE RESOLUTAMENTE NA DIREÇÃO DO TELEFONE. O MATRAQUEAR DOS SALTOS ECOOU NO APARTAMENTO VAZIO.
DAGMAR PARECEU ACALMAR-SE QUANDO FEZ UMA PAUSA PARA PENSAR. APERCEBEU-SE DE QUE A SR.A GORING NÃO IA DIZER ONDE ESTAVA O MARIDO, MAS PELO MENOS JÁ SABIA A VERDADE, O QUE LHE DEU GRANDE SATISFAÇÃO. AGORA SÓ TINHA DE ENCONTRAR HERMANN. MESMO QUE ISSO SIGNIFICASSE DORMIR À PORTA DELE, IA ESPERAR ALI ATÉ QUE CHEGASSE A CASA. DEPOIS FICARIAM JUNTOS PARA TODA A ETERNIDADE. AGARRANDO COM FORÇA LAURA PELO COLARINHO, DAGMAR ARRASTOU A CRIANÇA ATÉ À PORTA. COM UM ÚLTIMO OLHAR TRIUNFANTE A CARIN GÖRING, FECHOU A PORTA ATRÁS DE SI.
– Obrigada, querida Anna. – Erica beijou a irmã na face e apressou-se até ao carro depois de acenar aos filhos para se despedir. Sentia uma pontada de culpa por deixá-los uma vez mais; porém, a julgar pelos gritos de felicidade quando a tia Anna entrou, não precisava de todo de sentir remorsos.
Conduziu em direção a Hamburgsund com a mente cheia de perguntas. Estava irritada por não ter conseguido avançar mais na sua pesquisa para descobrir o que acontecera à família Elvander. Estava sempre a ir dar a becos sem saída e não estava mais perto de resolver aquele desaparecimento do que a polícia. Mas não ia desistir. A história da família era fascinante e, quanto mais escavava nos arquivos, mais interessante se tornava. Era como se as mulheres da família de Ebba tivessem uma espécie de maldição a pairar sobre elas.
Erica afastou todas as imagens do passado. Graças a Gösta, tinha finalmente uma pista que valia a pena seguir. Gösta mencionara um nome, e depois de pesquisar um pouco mais, decidira ir ter com uma fonte que teria certamente informações valiosas, motivo pelo qual estava agora sentada no carro. Pesquisar casos antigos era muitas vezes como montar um puzzle gigantesco ao qual faltavam algumas peças vitais. A experiência ensinara-lhe que era melhor ignorar as peças em falta e concentrar-se em colocar todas as outras no lugar; mais cedo ou mais tarde, a imagem acabaria por materializar-se. Aquele caso estava longe de se clarificar, mas Erica esperava que em breve o puzzle adquirisse mais peças e fosse capaz de formar uma ideia do que a imagem queria dizer. Caso contrário, todos os seus esforços seriam em vão.
Quando chegou à estação de serviço de Hansson, parou o carro para pedir indicações. Tinha uma vaga ideia do caminho, mas era uma perda de tempo continuar sem rumo certo. Por detrás do balcão estava Magnus, o dono da estação de serviço, assim como a mulher. Além do irmão, Frank, e da cunhada, Anette, que tinham a salsicharia na praça, ninguém conhecia melhor os habitantes de Hamburgsund do que Magnus.
O homem lançou a Erica um olhar de curiosidade, mas não disse uma palavra enquanto esboçava um mapa pormenorizado num papel. Erica conduzia com um olho na estrada e outro no mapa, até que por fim chegou àquela que devia ser a vivenda que procurava. Só então se deu conta de que era possível que, num dia tão bom, não estivesse ninguém em casa. A maioria das pessoas que tinham o dia livre estaria na praia ou numa ilha qualquer no arquipélago. Mas agora que ali estava, o melhor era tocar à campainha. Quando saiu do carro e ouviu música, ficou mais esperançosa.
Enquanto esperava que alguém lhe abrisse a porta, cantarolou a melodia: «Non, je ne regrette rien», cantada por Edith Piaf. O seu francês era fraco e só sabia o refrão, mas aquela música cativava-a e mal registou a porta a abrir-se.
– Ah, com que então uma admiradora de Piaf! – disse um homem baixo, envergando um robe de seda roxo debruado a dourado. Tinha o rosto maquilhado.
Erica não conseguiu esconder a surpresa.
O homem sorriu.
– Ora bem, minha querida, está a vender alguma coisa ou veio cá por outra razão? Se estiver a vender, eu já tenho tudo o que preciso, senão, convido-a desde já a entrar e a fazer-me companhia no alpendre. O Walter não gosta de sol, por isso estou lá sentado com toda a minha solidão. E não há nada mais triste do que beber um bom rosé sozinho.
– Oh, sim, bem... Há realmente uma razão para a minha visita – conseguiu dizer Erica.
– Excelente! – O homem bateu palmas com prazer e recuou para que Erica pudesse entrar.
Percorreu o vestíbulo com o olhar. Por toda a parte havia dourados, borlas e veludo. Dizer que a decoração daquele lugar era «ostensiva» nem por sombras lhe fazia justiça.
– Eu decorei este piso, ao passo que o Walter pôde fazer o que quis com o andar de cima. Para um casamento durar tanto tempo como o nosso, temos de estar dispostos a fazer concessões. Estamos prestes a celebrar o nosso décimo quinto aniversário; antes, vivemos em pecado durante dez anos – o homem virou-se para as escadas e gritou: – Amor, temos uma visita! Vem cá abaixo tomar uma bebida connosco ao sol em vez de estares para aí a rezingar!
O homem avançou pelo corredor, apontando para cima.
– Devia ver como é lá em cima. Faz-me lembrar um hospital. Completamente estéril. Walter diz que é estilisticamente puro. Adora o chamado design nórdico, que não tem nada de acolhedor. E que também não é propriamente difícil de conseguir. Basta pintar tudo de branco, trazer alguns desses repugnantes móveis de bétula da IKEA e voilà... acaba de criar um lar sueco.
O homem contornou uma poltrona enorme estofada em brocado vermelho e dirigiu-se para as portadas abertas que davam para o alpendre. Havia uma garrafa de rosé num balde de gelo em cima da mesa. Ao lado estava um copo de vinho meio vazio.
– Posso oferecer-lhe um copo? – O homem já estava a esticar o braço para alcançar a garrafa. O robe de seda esvoaçou em torno das pernas finas e pálidas.
– Gostava muito, mas vim a conduzir – disse Erica, pensando em como seria agradável beber um copo de vinho naquele alpendre ensolarado com vista para o estreito e para a ilha de Hamburg.
– Oh, que coisa tão enfadonha. Tem a certeza de que não consigo tentá-la a beber umas gotinhas? – perguntou, acenando sedutoramente com a garrafa depois de a ter retirado do balde de gelo.
Erica não conseguiu conter uma gargalhada.
– O meu marido é agente da polícia, por isso receio que não me atreva, por mais que me apetecesse.
– Aposto que é terrivelmente bonito! Sempre adorei homens de uniforme.
– Eu também – disse Erica, sentando-se numa das cadeiras do alpendre.
O homem afastou-se para baixar o volume do leitor de CD. Serviu a Erica um copo de água e entregou-lho com um sorriso.
– Então, porque é que uma rapariga tão bonita me veio fazer uma visita?
– Chamo-me Erica Falck e sou escritora. Atualmente estou a fazer pesquisas para o meu próximo livro. O senhor é Ove Linder, certo? E foi professor no colégio interno para rapazes de Rune Elvander no princípio dos anos 70.
O sorriso desapareceu do rosto do homem.
– Ove. Isso foi há muito tempo...
– Será que me enganei na casa? – perguntou Erica, apercebendo-se de que podia ter interpretado mal as complicadas indicações de Magnus.
– Não, não, mas já não sou Ove Linder há algum tempo. Pensativo, o homem rodou o copo nas mãos. – Não mudei oficialmente de nome. Se o tivesse feito, a menina não teria sido capaz de me encontrar, mas hoje em dia chamo-me Liza. Ninguém me chama Ove a não ser o Walter, e só se estiver zangado comigo. Escolhi o nome por causa de Liza Minelli, claro, embora eu seja apenas uma pálida imitação – explicou, inclinando a cabeça, aparentemente à espera que Erica protestasse.
– Para de andar à pesca de elogios, Liza.
Erica virou a cabeça. Deduziu que a pessoa que estava à entrada era Walter, o marido.
– Ah, já chegaste. Anda cá cumprimentar a Erica – disse Liza.
Walter entrou no alpendre, pondo-se por detrás de Liza e pousando-lhe ternamente as mãos nos ombros. Liza colocou a mão livre sobre a do marido e apertou-a. Erica deu por si a esperar que ela e Patrik fossem tão ternurentos um com o outro depois de viverem juntos durante vinte e cinco anos.
– Que se passa? – perguntou Walter quando se sentou. Ao contrário do companheiro, teria passado despercebido no meio de uma multidão: estatura média, nem gordo nem magro, uma calvície incipiente e roupas discretas. O género de pessoa que uma testemunha nunca conseguiria recordar se lhe pedissem para a identificar, pensou Erica. Mas tinha um olhar inteligente e parecia simpático. Sem saber muito bem porquê, Erica teve a sensação de que aquele estranho par era perfeitamente compatível.
Aclarou a garganta.
– Como eu disse, estou a tentar descobrir mais coisas sobre o colégio interno de Valö. Era um dos professores, não era?
– Sim, infelizmente – respondeu Liza com um suspiro. – Foram tempos horríveis. Ainda não me tinha assumido e, naquela altura, não era tão aceitável ser gay como hoje em dia. Além disso, o Rune Elvander era um fanático terrível e não tinha medo de mostrar os seus preconceitos. Antes de ter decidido aceitar o meu verdadeiro eu, tentei desesperadamente encaixar naquele ambiente. Nunca tive aquele ar de lenhador, claro, mas fiz um esforço para parecer heterossexual e, como dizem, normal. Tive ocasião de praticar muito na infância e na adolescência.
Liza olhou para a mesa e Walter acariciou-lhe o braço para a consolar.
– Julgo que consegui enganar o Rune, mas tive de aturar uma data de insultos por parte dos alunos. Aquele colégio estava cheio de nulidades que se divertiam a encontrar os pontos fracos das outras pessoas. Só estive lá seis meses e provavelmente não teria aguentado muito mais. Na verdade, não planeava voltar depois das férias de Páscoa, mas não tive de me dar ao trabalho de pedir a demissão.
– Qual foi a sua reação ao desaparecimento da família? Tem alguma teoria? – perguntou Erica.
– Claro que achei pavoroso, independentemente do que pensava deles. Presumo que lhes tenha acontecido alguma coisa horrível.
– Mas tem alguma ideia do que possa ter acontecido?
– Não. Para mim, como para toda a gente, é um mistério – disse Liza.
– Como era o ambiente no colégio? Havia pessoas que não se davam bem?
– Isso é um eufemismo. Aquele sítio era uma panela de pressão.
– Como assim? – Erica sentiu a pulsação acelerar. Pela primeira vez tinha a oportunidade de saber o que se passara nos bastidores. Porque é que não tinha pensado naquilo antes?
– De acordo com o professor, cuja vaga preenchi, os alunos andavam a engalfinhar-se uns com os outros desde o início. Estavam habituados a fazer o que lhes dava na gana, mas também eram muito pressionados em casa para terem sucesso. Era inevitável que isso resultasse em lutas de galos. Quando comecei a trabalhar no colégio, o Rune já tinha feito estalar o chicote e os rapazes andavam na linha, mas podia sentir-se a tensão latente sob a superfície.
– E como era o relacionamento dos rapazes com o Rune?
– Odiavam-no. O Rune era um psicopata sádico – declarou Liza com frieza.
– Não pinta o Rune Elvander com muito boas cores. – Erica lamentou não ter levado o gravador. Ia ter de tentar lembrar-se da conversa o melhor possível.
Liza estremeceu.
– O Rune Elvander era uma das pessoas mais desprezíveis que alguma vez conheci. E acredite em mim... – Liza lançou uma olhadela a Walter –, as pessoas como nós acabam por encontrar uma data de tipos desagradáveis na vida.
– E como era o seu relacionamento com a família?
– Isso depende de que membros da família estamos a falar. Não diria que a Inez fosse feliz. É difícil compreender porque é que casou com o Rune. Era jovem e meiga. Eu suspeitava de que fora a mãe a arranjar-lhe aquele casamento. Mas a velha morreu logo depois de eu ter começado a trabalhar no colégio, o que provavelmente foi um alívio para a Inez, porque aquela mulher era assustadora.
– Então e os filhos do Rune? – prosseguiu Erica. – Como é que encaravam o pai e a madrasta? Não deve ter sido fácil para a Inez tornar-se membro da família. Não tinha só mais uns anos do que o enteado mais velho?
– Sim. Um rapaz horrível, muito parecido com o pai.
– Como se chamava o filho mais velho?
– Claes. – Seguiu-se uma longa pausa. Erica esperou pacientemente. – É dele que me lembro melhor. Fico arrepiado só de pensar nele. E não consigo dizer porquê. O Claes sempre foi educado comigo, mas havia algo nele que me impedia de virar-lhe as costas quando estava presente.
– O Claes e o Rune davam-se bem?
– É difícil dizer. Orbitavam em torno um do outro como dois planetas, sem nunca se chegarem a cruzar – Liza riu-se, envergonhada. – Pareço uma mulher da New Age8 ou uma má poetisa...
– De modo nenhum. Continue, por favor – disse Erica, inclinando-se para a frente. – Compreendo o que quer dizer. Portanto, nunca houve conflitos entre o Rune e o Claes?
– Não, mantinha-se cada um no seu território. O Claes parecia obedecer à mais pequena ordem do Rune, mas o que sentia pelo pai é uma incógnita. No entanto, pelo menos uma coisa tinham em comum: ambos adoravam a Carla – a falecida mulher do Rune e mãe do Claes – e ambos pareciam desprezar a Inez. No caso do Claes, isso até podia ser compreensível, uma vez que ela tomara o lugar da mãe, mas o Rune casara-se com ela.
– Quer dizer que o Rune tratava mal a Inez?
– Sim. Ou, pelo menos, não era um relacionamento amoroso. Estava constantemente a dar-lhe ordens como se a Inez fosse sua subordinada e não a sua mulher. O Claes, por outro lado, era deliberadamente mau e não tinha vergonha do modo como tratava a madrasta. Também não parecia ter qualquer afeição pela Ebba. E com a irmã, Annelie, não era muito melhor.
– O que pensava o Rune do comportamento dos filhos? Será que os incentivava? – Erica bebeu um gole de água. Estava calor no alpendre, mesmo à sombra do grande chapéu-de-sol.
– Aos olhos do Rune, o Claes e a Annelie nunca faziam nada de mal. Também falava com eles com voz de comando, mas era o único que tinha autorização para repreender os filhos. Se outra pessoa qualquer se queixasse deles, o Rune ficava furioso. Eu sei que a Inez tentou uma vez, mas foi a última. Não, o único membro da família que era bom para ela era o Johan, o filho mais novo do Rune. Era atencioso, meigo e muito ligado à Inez. – A expressão de Liza entristeceu. – Que será feito da pequena Ebba?
– Regressou a Valö. Ela e o marido estão a recuperar a casa. E anteontem...
Erica mordeu o lábio. Não sabia quanto se atrevia a revelar, porém, ao mesmo tempo, Liza tinha sido tão franca com ela. Respirou fundo.
– Anteontem, a Ebba e o marido encontraram sangue quando levantavam o soalho da sala de jantar.
Liza e Walter fitaram-na. Ao longe podia ouvir-se o barulho de barcos e pessoas a falar, mas no alpendre reinava o mais absoluto silêncio. Por fim, Walter disse:
– Sempre disseste que o mais certo era terem morrido.
Liza assentiu.
– Sim, parecia o mais provável. Além disso...
– Além disso o quê? – perguntou Erica.
– Ah, é um disparate. – Liza abanou a mão, fazendo flutuar a manga do robe de seda. – Na altura nunca falei disso a ninguém.
– Nada é demasiado insignificante nem demasiado disparatado. Conte-me.
– Não foi nada de especial, mas tive a sensação de que as coisas estavam prestes a piorar. E ouvi... – Liza abanou a cabeça. – Não, é demasiado absurdo.
– Conte lá – disse Erica, resistindo ao impulso de se inclinar sobre a mesa e abanar Liza até que desembuchasse.
Liza bebeu um grande gole de vinho e, em seguida, olhou-a nos olhos.
– Havia barulhos à noite.
– Barulhos?
– Sim. Passos, portas a abrir, uma voz distante. Mas quando me levantava para ir ver o que era, não estava lá ninguém.
– Como se fossem fantasmas? – aventou Erica.
– Eu não acredito em fantasmas – afirmou Liza com ar sombrio. – A única coisa que posso dizer é que ouvia barulhos e tinha a sensação de que algo terrível estava prestes a acontecer. Por isso não fiquei surpreendida quando soube do desaparecimento da família.
Walter assentiu.
– Sempre tiveste um sexto sentido.
– Oh, os disparates que estou para aqui a dizer – afirmou Liza. – O ambiente está a ficar demasiado triste nesta mesa. A Erica vai pensar que somos um par de profetas da desgraça. – De repente, o brilho estava de volta aos olhos de Liza, que fez um sorriso rasgado.
– De modo nenhum. Quero agradecer-vos por me terem acolhido e por me terem deixado falar convosco. Deram-me muito em que pensar, mas agora é melhor ir para casa – disse Erica, levantando-se.
– Mande cumprimentos meus à pequena Ebba – disse Liza.
– Serão entregues.
Liza e Walter fizeram menção de se levantar para a acompanhar até à porta, mas Erica fez-lhes sinal para continuarem sentados.
– Deixem-se estar. Eu consigo sair sozinha.
Quando passou pelo mar de ouro, de borlas e de almofadas de veludo, ouviu atrás de si Edith Piaf a cantar sobre o seu coração partido.
– Onde raio é que estiveste hoje de manhã? – perguntou Patrik, entrando no gabinete de Gösta. – Queria que fosses comigo falar com o John Holm.
Gösta ergueu os olhos.
– A Annika não te disse? Tive de ir ao dentista.
– Ao dentista? – Patrik sentou-se e lançou-lhe um olhar penetrante. – Não tens cáries, espero?
– Não. Nem uma cárie.
– Como está a correr a lista? – Patrik indicou a pilha de documentos pousados sobre a secretária à frente de Gösta.
– Bem, já compilei a maior parte das moradas atuais dos antigos alunos.
– Foi rápido.
– Os números dos cartões de cidadão... – disse Gösta, apontando para a antiga lista de alunos. – Basta usarmos o cérebro – acrescentou, e entregou um papel a Patrik. – Como correu com o líder nazi?
– Não me parece que o Holm apreciasse muito essa descrição – disse Patrik, começando a consultar a lista.
– Bem, mas é isso que ele é. Já não rapam as cabeças, mas não mudaram. O Mellberg portou-se bem?
– O que te parece? – disse Patrik, pousando a lista no colo. – Pode dizer-se que, durante a conversa, a polícia de Tanum não mostrou propriamente a sua melhor cara.
– Ao menos descobriram alguma coisa nova?
Patrik abanou a cabeça.
– Nem por isso. O John Holm não sabe nada sobre o desaparecimento. E não aconteceu nada no colégio que possa explicá-lo. Não havia nada a assinalar, além das tensões que seriam expectáveis entre um grupo de adolescentes e um diretor muito rigoroso, etc.
– Já soubeste alguma coisa do Torbjörn? – perguntou Gösta.
– Não. Prometeu despachar-se, mas uma vez que não descobrimos cadáveres para apresentar, provavelmente o caso não é considerado de prioridade elevada. Além disso, mesmo que se venha a constatar que a família foi assassinada, o crime já prescreveu.
– Mas o relatório sobre as análises ao sangue pode dar-nos algumas pistas relevantes para a nossa investigação sobre o fogo posto. Esqueceste-te de que naquela noite alguém tentou incendiar a casa com Ebba e Tobias lá dentro? Tu é que estavas plenamente convencido de que o fogo e o desaparecimento da família estavam relacionados. E a Ebba? Não tem o direito de saber o que aconteceu à família?
Patrik ergueu as mãos.
– Eu sei, eu sei. Mas por enquanto ainda não encontrei nada de interesse no processo sobre o desaparecimento da família e isto começa a parecer uma busca desesperada que não vai levar a lado nenhum.
– Há alguma coisa por onde pegar no relatório do Torbjörn sobre o incêndio?
– Não. Foi utilizada gasolina normalíssima e um fósforo normalíssimo. Não temos mais nada em concreto.
– Então temos de tentar na outra extremidade do puzzle. – Gösta virou-se e acenou para uma fotografia afixada na parede. – Acho que temos de pressionar um pouco mais os rapazes. Sabem mais do que nos disseram em 1974.
Patrik levantou-se e foi examinar a fotografia dos cinco rapazes.
– Talvez tenhas razão. Vi na lista que achas que devemos começar por falar com Leon Kreutz. Porque não vamos ter uma conversa com ele agora mesmo?
– Infelizmente, não sei onde o Leon está. Tem o telemóvel desligado e do hotel disseram-me que ele e a mulher já tinham feito o checkout. Parece que estão a instalar-se na casa nova. Esperamos até amanhã, para lhes dar tempo de desfazer as malas? Assim podemos falar com eles em paz e sossego.
– Okay. Nesse caso, porque não vamos antes falar com Sebastian Månsson e com Josef Meyer? Ambos vivem aqui perto.
– Claro. Mas primeiro tenho de dar uma arrumadela a isto.
– E não nos devemos esquecer de verificar esse misterioso «G».
– G?
– Sim, a pessoa que todos os anos envia postais de aniversário à Ebba.
– Achas que é mesmo necessário? – Gösta começou a remexer os papéis que tinha em cima da secretária.
– Nunca se sabe. Como acabaste de dizer: temos de encontrar um fio e depois segui-lo.
– Se puxarmos muitos fios ao mesmo tempo, ainda acabamos emaranhados – murmurou Gösta. – Não me parece relevante.
– Discordo – disse Patrik, batendo-lhe no ombro. – Sugiro que...
O telemóvel tocou e Patrik olhou para o ecrã.
– Tenho de atender esta chamada – disse, e saiu do gabinete de Gösta.
Alguns minutos mais tarde, Patrik regressou com uma expressão triunfante no rosto.
– Parece que temos finalmente a pista de que estávamos à espera. Era Torbjörn ao telefone. Não havia mais sangue sob o soalho da sala de jantar, mas encontraram outra coisa ainda melhor.
– O quê?
– Enfiada nas pranchas do soalho estava uma bala. Portanto, parece que foi disparado um tiro na sala onde a família estava reunida antes de ter desaparecido.
Patrik e Gösta trocaram olhares sombrios. Um momento antes estavam completamente desanimados e, de repente, a investigação tinha ganho um novo fôlego.
Erica planeara seguir diretamente para casa para render Anna, mas a curiosidade foi mais forte. Passou por Fjällbacka e continuou até Mörhult. Depois de hesitar se devia ou não virar à esquerda no campo de minigolfe e ir até às cabanas de pesca, decidiu tentar a sua sorte e ver se estavam em casa. Entretanto entardecera.
A porta estava aberta, presa por um tamanco de madeira decorado com flores. Erica enfiou a cabeça pela fresta.
– Está alguém? – perguntou.
Ouviu barulho no interior e, um momento depois, John Holm apareceu com um pano de cozinha na mão.
– Peço desculpa se venho interromper o seu jantar – disse Erica.
Holm olhou para o pano.
– Não, claro que não. Estava a lavar as mãos. Posso ajudá-la?
– Chamo-me Erica Falck e estou atualmente a trabalhar num livro.
– Ah, então é a famosa escritora de Fjällbacka? Venha fazer-me companhia na cozinha. Quer uma chávena de café? – perguntou o deputado, dirigindo-lhe um sorriso caloroso. – Então, o que a traz por cá?
Sentaram-se à mesa da cozinha.
– Estou a pensar escrever um livro sobre o que aconteceu em Valö. – Erica julgou ter captado um ligeiro mal-estar nos olhos azuis de Holm, mas desapareceu tão rapidamente que talvez apenas o tivesse imaginado.
– É estranho de repente toda a gente parecer tão interessada em Valö. Se interpretei corretamente os coscuvilheiros destas bandas, foi com o seu marido que falei esta manhã.
– Sim, o meu marido é polícia. Patrik Hedström.
– Havia mais uma pessoa com ele que era muito... interessante.
Não demorou muito para Erica perceber a quem Holm se referia.
– Já vi que teve a honra de conhecer o Bertil Mellberg, o homem, o mito, a lenda!
Holm riu-se e Erica sentiu-se fascinada pelo charme do líder dos Amigos da Suécia. E isso incomodava-a. Detestava tudo o que Holm e o seu partido defendiam, porém, de momento o deputado parecia inofensivo. E bastante interessante, na verdade.
– Não é a primeira vez que me cruzo com alguém como ele. O seu marido, por outro lado, pareceu-me bastante competente.
– Eu sou parcial, claro, mas o Patrik é um bom polícia. Não para de escavar até descobrir o que quer saber. Tal como eu.
– Devem formar uma equipa perigosa. – Holm sorriu de novo, mostrando duas covinhas perfeitas.
– Acho que sim. Mas às vezes encalhamos. Há anos que faço pesquisas sobre aquele desaparecimento e agora decidi voltar a pegar na história.
– E vai escrever um livro sobre isso? – estas palavras foram acompanhadas por outro lampejo de ansiedade nos olhos de Holm.
– É esse o plano. Importava-se se eu lhe fizesse algumas perguntas? – Erica pegou num bloco e numa caneta.
Por um momento, John Holm pareceu hesitar.
– Pode ser – disse por fim. – Mas como já expliquei ao seu marido e ao colega dele, não tenho realmente muito a acrescentar.
– Julgo saber que havia certos conflitos entre os membros da família Elvander.
– Conflitos?
– Sim. Parece que os filhos do Rune não gostavam muito da madrasta.
– Como alunos, nós não nos envolvíamos na dinâmica familiar deles.
– Mas era um colégio tão pequeno... Deve ter reparado no que se passava no seio da família.
– Não nos interessava. Não queríamos ter nada que ver com eles. Já era suficientemente mau ter de lidar com o Rune. – Holm parecia arrependido por ter concordado em responder às perguntas de Erica. Encolhia os ombros e retorcia-se na cadeira, o que só aumentou a determinação de Erica em pressioná-lo. Aparentemente, havia algo naquela linha de investigação que deixava John Holm pouco à vontade.
– Então e a Annelie? Uma rapariga de dezasseis anos no meio de uma data de rapazes adolescentes. Como é que as coisas se passavam?
Holm resfolegou.
– A Annelie era completamente doida por rapazes, mas nenhum de nós alguma vez a incentivou. Há certas raparigas das quais aprendemos a manter a distância e a Annelie era uma delas. Além disso, o Rune ter-nos-ia assassinado se tocássemos com um dedo que fosse na filha.
– O que quer dizer quando afirma que a Annelie era o género de rapariga de quem se aprende a manter a distância?
– Estava sempre a correr atrás de nós e a agir de modo estranho, e julgo que teria adorado meter-nos em sarilhos. Uma vez estendeu-se mesmo por baixo da nossa janela a tomar banhos de sol em topless, mas o Leon foi o único que se atreveu a olhar para ela. Já naquela altura gostava de desafiar a morte.
– O que aconteceu? O pai apanhou-a? – Erica sentiu que estava a ser arrastada para um mundo completamente diferente.
– O Claes, o irmão, costumava protegê-la. Naquela ocasião, viu-a e levou-a dali. Foi tão brusco que pensei que ia arrancar-lhe o braço.
– A Annelie tinha uma queda por algum dos rapazes?
– Claro que sim. Por quem acha que estava apaixonada? – perguntou Holm, mas depois percebeu que Erica não fazia ideia do que quisera dizer. – Pelo Leon, claro. Era o rapaz perfeito. A família era podre de rica, era bonito e tinha uma autoconfiança com que nós nem sequer sonhávamos.
– Mas o Leon não estava interessado nela?
– Como eu disse, a Annelie era o género de rapariga que causava problemas e o Leon era demasiado inteligente para se envolver com ela – um telemóvel começou a tocar na sala e Holm levantou-se de um salto. – Desculpe, importa-se que atenda?
Sem esperar por uma resposta, o deputado saiu da cozinha e Erica ouviu-o falar em voz baixa. Não parecia estar mais ninguém em casa. Percorreu a sala com os olhos enquanto esperava. Uma série de documentos empilhados numa cadeira da cozinha chamou-lhe a atenção. Lançando um rápido olhar por cima do ombro, começou a folhear as páginas. Pareciam ser apenas atas de trabalhos parlamentares e relatórios de reuniões, mas depois teve um sobressalto. Entre duas folhas impressas encontrou um papel coberto de rabiscos que não conseguia decifrar. Da sala de estar ouviu Holm dizer adeus e retirou rapidamente o papel do maço de documentos, guardando-o na mala. Quando Holm regressou à cozinha, Erica lançou-lhe um sorriso inocente.
– Está tudo bem?
Holm assentiu e voltou a sentar-se.
– Esta é a desvantagem do meu trabalho. Nunca estou de folga, nem mesmo durante as férias.
Com um murmúrio, Erica disse que compreendia. Não queria entrar num debate sobre as atividades políticas de Holm. Não seria capaz de ocultar os seus pontos de vista e corria o risco de transformar a conversa numa discussão. E assim não teria oportunidade de descobrir mais nada sobre Valö.
Erica pegou na caneta.
– Então, como era a Inez com os alunos?
– A Inez? – Holm desviou o olhar. – Não a víamos muito. Estava ocupada a cuidar da casa e da filha pequena.
– Mas certamente que tinham algum tipo de relacionamento com ela? Conheço a casa e não é particularmente grande, por isso deviam cruzar-se com bastante frequência.
– Claro que víamos a Inez. Mas era uma mulher calada e taciturna. Não nos ligava muito e nós fazíamos o mesmo.
– Parece que o marido também não morria de amores por ela.
– Não. Era incompreensível que um homem como o Rune tenha conseguido procriar quatro filhos. Especulávamos que só podiam ter sido nascimentos virginais. – Holm lançou-lhe um sorriso irónico.
– Qual era a sua opinião dos dois professores do colégio?
– Eram os dois umas belas peças. Excelentes professores, mas Per-Arne tinha sido militar e era ainda mais rígido do que o Rune, se é que isso era possível.
– E o outro professor?
– O Ove? Hum... Havia nele algo de suspeito. Um homossexual encapotado. Essa era a teoria predominante. Será que alguma vez se terá assumido?
Erica teve de conter-se para não desatar a rir. Imaginou Liza, com as suas pestanas postiças e o seu bonito robe de seda.
– Quem sabe... – disse com um sorriso.
Holm lançou-lhe um olhar intrigado, mas Erica nada adiantou. Não lhe cabia informar Holm sobre a vida de Liza, além disso, estava bem consciente da posição dos Amigos da Suécia em relação aos homossexuais.
– Não se recorda de nada de especial sobre os professores?
– Não, nada. Havia fronteiras bem definidas entre os alunos, os professores e a família. Toda a gente tinha de saber qual era o seu lugar. Os grupos eram estanques.
«Um pouco como as tuas políticas», pensou Erica que teve de morder a língua para não o verbalizar. Sentia que Holm começava a ficar impaciente, por isso fez uma última pergunta:
– Segundo uma pessoa com quem conversei, havia alguns barulhos estranhos na casa durante a noite. Lembra-se disso?
Holm sobressaltou-se.
– Quem é que lhe disse isso?
– Isso não é importante.
– Parvoíces! – disse Holm, levantando-se.
– Quer dizer que não tem conhecimento desses barulhos?
– Claro que não. E agora receio que tenha de fazer alguns telefonemas.
Erica apercebeu-se de que não ia descobrir mais nada, pelo menos por enquanto.
– Obrigada pelo tempo que me dispensou – disse, recolhendo os seus pertences.
– O prazer foi todo meu. – Holm irradiava novamente charme, mas conduziu-a tão depressa à porta que os pés de Erica mal tocaram o chão.
Ia desceu as cuecas e as calças de Leon e ajudou-o a mudar-se da cadeira de rodas para a sanita.
– Pronto, já podes parar de fazer caretas – disse Ia.
– Não percebo porque é que não podemos contratar uma enfermeira para fazer estas coisas – disse Leon.
– Quero ser eu a cuidar de ti.
– O teu coração transborda de bondade – disse ironicamente Leon. – Se continuares assim vais dar cabo das costas. Precisamos de alguém para te ajudar.
– É bom saber que te preocupas com as minhas costas, mas eu sou muito forte e não quero cá mais ninguém. Só ia estorvar. Estamos bem só os dois. Até que a morte nos separe. – Tentou acariciar o lado ileso do rosto de Leon, mas o marido encolheu-se perante o toque e Ia retirou a mão.
Ele manobrou a cadeira de rodas para longe dela e Ia foi sentar-se no sofá. Tinham comprado a casa completamente mobilada e, finalmente, nesse dia tinham sido autorizados a mudar-se, depois de o banco no Mónaco ter aprovado o levantamento. Tinham pago tudo em dinheiro. Da janela abarcavam Fjällbacka na sua totalidade e Ia estava a apreciar aquela vista incrível mais do que imaginara. Ouviu Leon a praguejar na cozinha. Nada tinha sido adaptado para o acesso da cadeira de rodas, de modo que era difícil para Leon alcançar as coisas e estava constantemente a chocar com os cantos e com os armários.
– Já vou – gritou Ia, embora não se tenha levantado de imediato. Às vezes era bom fazê-lo esperar um pouco. Assim não tomava a ajuda dela como um dado adquirido. Da mesma forma que tinha encarado o seu amor como um dado adquirido.
Ia olhou para as mãos. Tinham tantas cicatrizes como as de Leon. Quando saía, usava sempre luvas para esconder as cicatrizes dos olhares curiosos, mas ali em casa queria que Leon visse os ferimentos que tinha sofrido quando o puxara para fora do carro em chamas. Gratidão era o que exigia. Desistira de toda a esperança de receber amor. Já não tinha a certeza de Leon ser capaz de amar outra pessoa. Em tempos pensara que sim. Nessa altura, o amor dele era a única coisa que importava. Quando é que esse amor se transformara em ódio? Não sabia. Passara muitos anos a tentar reconhecer os seus defeitos, a esforçar-se ao máximo para corrigir o que Leon criticava, a dar o seu melhor para lhe oferecer o que parecia desejar. Mas Leon tinha continuado a atormentá-la, como se tentasse deliberadamente magoá-la. As montanhas, o mar, os desertos, as mulheres. Isso é que era importante. Eram as suas amantes. E os longos períodos em que esperara que o marido regressasse a casa tinham sido insuportáveis.
Ia tocou na cara. A pele era suave e o rosto não tinha expressão. De repente lembrou-se das dores das operações. Leon nunca estava lá para lhe pegar na mão quando acordava da anestesia. Nunca estava lá quando voltava para casa. A convalescença pareceu durar uma eternidade. Agora já não se reconhecia quando se via ao espelho. Mas já não tinha de se esforçar. Não havia montanhas para Leon subir, desertos para percorrer, mulheres por quem trocá-la. Leon era dela e só dela.
Tobias franziu a testa quando se esticou. Tinha o corpo dorido do trabalho manual interminável e quase se esquecera de como era não sentir dores. Sabia que Ebba pensava o mesmo. Quando julgava que não a estava a ver, costumava massajar os ombros e as articulações, fazendo a mesma careta de dor que ele fazia.
Mas a dor que sentiam no coração era pior. Viviam com ela dia e noite e a sensação de perda era tão grande que era impossível ver onde começava ou acabava. Mas não era só de Vincent que tinha saudades; também sentia a falta de Ebba. E tudo piorara quando a perda se misturava com a raiva e a culpa às quais não podiam escapar.
Sentou-se nos degraus com uma caneca de chá na mão, olhando para lá do mar, para Fjällbacka. A vista era mais bonita à luz dourada do sol da tarde. De alguma forma, sempre soubera que acabariam por ir parar à ilha. Mesmo que acreditasse em Ebba quando ela lhe dissera que tinha tido uma boa infância, às vezes sentia que a mulher carregava uma pergunta que não desapareceria até que ela, pelo menos, tentasse encontrar a resposta. Tobias tinha a certeza de que se tivesse abordado o assunto antes de tudo se ter desmoronado, Ebba teria negado. Mesmo assim, Tobias continuara convencido de que um dia iriam para ali, para o sítio onde tudo começou.
Quando as circunstâncias os forçaram finalmente a fugir – para algo que era ao mesmo tempo familiar e desconhecido, para uma vida em que Vincent nunca tinha existido –, Tobias albergara uma certa esperança. A esperança de que encontrariam o caminho de volta um para o outro e de que conseguiriam pôr a raiva e a culpa para trás das costas. Mas Ebba tinha-o excluído e rejeitava todas as suas tentativas de intimidade. Será que tinha o direito de o fazer? A dor e o sofrimento não eram só dela, também os sentia. Certamente merecia que Ebba estivesse pelo menos disposta a tentar.
Tobias agarrou a caneca com mais força enquanto contemplava o horizonte. Imaginou Vincent. O filho era tão parecido com ele. Deram-se conta disso logo na maternidade e tinham achado graça às parecenças. Recém-nascido e enrolado numa manta, no seu carrinho de bebé, Vincent era como uma pequena caricatura de Tobias. As semelhanças tinham-se acentuado e Vincent adorava o pai. Aos três anos, seguia Tobias como um cachorrinho e era sempre pelo seu papá que chamava primeiro. De vez em quando, Ebba queixava-se, afirmando que aquilo era uma ingratidão da parte de Vincent depois de o ter carregado durante nove meses e de ter tido um parto doloroso. Mas falava da boca para fora. Ficava contente por ver como Vincent e Tobias eram cada vez mais chegados e contentava-se em assumir o segundo lugar.
As lágrimas inundaram os olhos de Tobias, que as limpou com a mão. Já não aguentava mais chorar, além disso não servia para nada. A única coisa que queria era que Ebba voltasse para ele. Nunca iria desistir. Continuaria a tentar até que Ebba percebesse que precisavam um do outro.
Tobias levantou-se e entrou em casa. Subiu as escadas, tentando ouvir Ebba, embora já soubesse onde a mulher estava. Sempre que não estavam atarefados com as obras, Ebba ia sentar-se à sua mesa de trabalho e concentrava-se a fazer um novo colar que algum cliente encomendara. Tobias entrou no quarto e foi pôr-se por detrás dela.
– Recebeste uma nova encomenda?
Ebba sobressaltou-se.
– Sim – respondeu, continuando a moldar a prata.
– Quem é o cliente? – A raiva pela indiferença da mulher cresceu dentro dele e teve de conter-se para não perder as estribeiras.
– Chama-se Linda. O filho morreu quando tinha apenas quatro meses. De síndrome de morte súbita infantil. Era o primeiro filho dela.
– Estou a ver – disse Tobias, virando-se. Não conseguia compreender como é que Ebba podia suportar ouvir aquelas histórias, todo aquele sofrimento de pais desconhecidos. A própria tristeza que sentia não era suficiente? Não precisava de olhar para saber que ela estava a usar o colar. Foi o primeiro que fez e usava-o sempre. Tinha «Vincent» gravado na parte de trás. Havia momentos em que tinha vontade de arrancar-lhe aquele colar, e achava que Ebba não era digna de usar o nome do filho ao pescoço. Mas também havia momentos em que só queria que a mulher tivesse Vincent perto do coração. Porque é que tinha de ser tão difícil? O que aconteceria se desistisse de tudo, aceitasse o que tinha acontecido e reconhecesse que eram ambos culpados?
Tobias pousou a caneca numa prateleira e deu um passo em direção a Ebba. Hesitou por um momento, mas depois pôs-lhe as mãos nos ombros. Sentiu o corpo da mulher ficar hirto. Delicadamente, Tobias começou a massajar os músculos, sentindo que Ebba estava tão tensa como ele. Ebba não disse uma palavra, limitando-se a olhar fixamente em frente. As mãos, que tinham estado a trabalhar no anjo de prata, tombaram sobre a mesa e o único som que se ouvia era a respiração de ambos. Tobias sentiu um rasgo de esperança. Estava a tocar-lhe, a sentir o corpo de Ebba sob as suas mãos. Se calhar sempre havia uma saída.
Abruptamente, Ebba levantou-se. Sem dizer nada, saiu do quarto e Tobias ficou para ali, com as mãos no ar. Por um momento, fitou a mesa de trabalho da mulher, pejada de tralha. Então, como que por vontade própria, os braços moveram-se num grande arco e arremessaram tudo ao chão. No silêncio que se seguiu, Tobias apercebeu-se de que só havia um caminho a tomar. Teria de arriscar tudo.
8 Ou Nova Era. Movimento espiritual surgido no final dos anos 60 do século XX no contexto da cultura hippie. Propunha um novo modelo de consciência moral, psicológica e social, a integração com a natureza e o universo e o repúdio do conservadorismo das religiões tradicionais. (N. do T.)
ESTOCOLMO, 1925
– TENHO FRIO, MAMÃ. – LAURA CHORAMINGAVA, TRISTÍSSIMA, MAS DAGMAR NÃO LHE LIGAVA NENHUMA. IAM ESPERAR ALI ATÉ HERMANN VOLTAR PARA CASA. MAIS CEDO OU MAIS TARDE ACABARIA POR REGRESSAR E FICARIA TÃO CONTENTE AO VÊ-LA... DAGMAR ANSIAVA POR VER OS OLHOS DELE A ILUMINARAM-SE, POR VER O DESEJO E O AMOR QUE DEVIAM TER-SE FORTALECIDO DEPOIS DE TODOS AQUELES ANOS À ESPERA. – MAMÃ... – LAURA ESTAVA A TREMER TANTO QUE OS DENTES BATIAM.
– CALA-TE! – DISSE REPENTINAMENTE DAGMAR. AQUELA CRIANÇA ESTAVA SEMPRE A ESTRAGAR TUDO. SERÁ QUE NÃO QUERIA QUE FOSSEM FELIZES? DAGMAR NÃO PÔDE MAIS CONTER A RAIVA DENTRO DELA E ERGUEU A MÃO PARA BATER A LAURA.
– SE FOSSE A SI NÃO FARIA ISSO. – UMA MÃO FORTE AGARROU-LHE O PULSO E DAGMAR VIROU-SE, ASSUSTADA. POR DETRÁS DELA ESTAVA UM CAVALHEIRO ELEGANTE DE SOBRETUDO ESCURO, CALÇAS ESCURAS E CHAPÉU.
DAGMAR ERGUEU A CABEÇA COM ALTIVEZ.
– O SENHOR NÃO TEM O DIREITO DE INTERFERIR NO MODO COMO EU EDUCO A MINHA FILHA.
– SE LHE BATER, EU BATO-LHE A SI COM A MESMA FORÇA. ASSIM VERÁ COMO DÓI – DISSE CALMAMENTE O HOMEM, CUJO TOM DE VOZ INDICAVA QUE NÃO ADMITIA OBJEÇÕES.
DAGMAR PONDEROU DIZER-LHE O QUE ACHAVA DAS PESSOAS QUE METIAM O NARIZ EM ASSUNTOS QUE NÃO LHES DIZIAM RESPEITO, MAS APERCEBEU-SE DE QUE TAL ATITUDE NÃO A AJUDARIA EM NADA.
– PEÇO PERDÃO – DISSE. – A MINHA FILHA TEM ESTADO IMPOSSÍVEL O DIA TODO. NÃO É FÁCIL SER MÃE E, ÀS VEZES... – DAGMAR ENCOLHEU OS OMBROS COMO QUE A PEDIR DESCULPA E OLHOU PARA O CHÃO PARA QUE O HOMEM NÃO LHE VISSE A FÚRIA ESTAMPADA NO ROSTO.
LENTAMENTE, O HOMEM SOLTOU-LHE O PULSO E DEU UM PASSO ATRÁS.
– QUE ESTÁ AQUI A FAZER À MINHA PORTA?
– ESTAMOS À ESPERA DO MEU PAPÁ – DISSE LAURA, LANÇANDO AO DESCONHECIDO UM OLHAR SUPLICANTE. NÃO ESTAVA HABITUADA A QUE ALGUÉM SE ATREVESSE A DESAFIAR A MÃE.
– E O TEU PAPÁ MORA AQUI? – O HOMEM EXAMINOU DAGMAR.
– ESTAMOS À ESPERA DO CAPITÃO GÖRING – EXPLICOU, PUXANDO LAURA PARA JUNTO DELA.
– BEM, ENTÃO VÃO TER MUITO QUE ESPERAR – DISSE O HOMEM, CONTINUANDO A ESTUDÁ-LAS COM INTERESSE.
DAGMAR SENTIU O CORAÇÃO COMEÇAR A MARTELAR-LHE O PEITO. TERIA ACONTECIDO ALGUMA COISA A HERMANN? PORQUE É QUE AQUELA DESGRAÇADA NÃO LHE TINHA DITO NADA?
– COMO ASSIM? – EXIGIU SABER DAGMAR.
O HOMEM CRUZOU OS BRAÇOS.
– UMA AMBULÂNCIA VEIO BUSCÁ-LO. LEVARAM-NO NUMA CAMISA-DE-FORÇAS.
– NÃO COMPREENDO.
– O HERMANN ESTÁ NO HOSPITAL DE LÅNGBR. – O HOMEM DO SOBRETUDO ELEGANTE APROXIMOU-SE DA PORTA, APARENTEMENTE DESEJOSO DE PÔR UM PONTO FINAL NAQUELA CONVERSA. DAGMAR AGARROU-LHE O BRAÇO, MAS O HOMEM AFASTOU-O COM UMA CARETA.
– POR FAVOR, SENHOR, PODE DIZER-ME COMO ENCONTRO ESSE HOSPITAL? TENHO DE VER O HERMANN!
O ROSTO DO DESCONHECIDO IRRADIAVA REPUGNÂNCIA. ABRIU A PORTA E ENTROU, SEM RESPONDER. QUANDO A PESADA PORTA SE FECHOU POR DETRÁS DELE, DAGMAR DEIXOU-SE CAIR NO CHÃO. E AGORA, O QUE IA FAZER?
COM A CABEÇA APOIADA NOS JOELHOS, DAGMAR CHOROU COMO SE O CORAÇÃO SE FOSSE PARTIR EM MIL PEDAÇOS. LAURA PUXOU A MÃE, TENTANDO FAZER COM QUE SE VOLTASSE A LEVANTAR. DAGMAR SACUDIU O BRAÇO DA FILHA. PORQUE É QUE AQUELA CRIANÇA NÃO PODIA DEIXÁ-LA EM PAZ E DESAPARECER? QUE IA FAZER SE NÃO CONSEGUISSE ENCONTRAR HERMANN? LAURA NÃO ERA SÓ SUA FILHA. ERA FILHA DE AMBOS.
Patrik correu para a esquadra, parando abruptamente na receção. Annika estava profundamente embrenhada em alguma coisa e não ergueu logo os olhos. Quando reparou que Patrik ali estava, sorriu e olhou novamente para baixo.
– O Martin ainda está doente? – perguntou Patrik.
– Sim – respondeu Annika, os olhos fixos no ecrã do computador.
Patrik lançou-lhe uma olhadela intrigada e, em seguida, virou-se. Só havia uma coisa a fazer.
– Tenho de ir tratar de um assunto – disse, e voltou a sair da esquadra. Viu Annika abrir a boca, mas não ouviu o que ela disse.
Patrik olhou para o relógio. Passava pouco das nove da manhã. Ainda era demasiado cedo para aparecer à porta da casa de alguém, mas já estava tão preocupado que não se importava se ia acordá-los ou não.
Demorou apenas alguns minutos de carro atá ao prédio onde Martin vivia com a família. Quando estava à frente da porta do colega, hesitou. Talvez não houvesse nenhum problema, talvez Martin estivesse mesmo doente e de cama e o fosse acordar sem motivo. Podia até sentir-se insultado, pensando que Patrik tinha ido confirmar se estava mesmo doente.
Mas o seu instinto disse-lhe o contrário. Martin já lhe devia ter telefonado, independentemente de estar ou não muito doente. Patrik tocou à campainha.
Esperou bastante tempo e esteve para tocar novamente, mas sabia que o apartamento não era muito grande, por isso deviam-no ter ouvido à primeira. Por fim, Patrik ouviu passos a aproximar-se.
Quando a porta se abriu, Patrik teve um choque. Não havia dúvida de que Martin parecia doente. Estava com a barba por fazer, tinha o cabelo desgrenhado e cheirava levemente a suor, mas o pior de tudo era a expressão vaga nos olhos do colega. Patrik quase não o reconheceu.
– Que estás aqui a fazer? – perguntou Martin.
– Posso entrar?
Martin encolheu os ombros, virou-se e arrastou-se para dentro do apartamento.
– A Pia está a trabalhar? – perguntou Patrik, olhando em redor.
– Não. – Martin parou perto da porta que dava para a varanda na sala de estar e olhou pela janela.
Patrik fez uma careta.
– Estás doente?
– Liguei para o escritório a dizer que não ia. A Annika não te disse? – Martin parecia zangado quando se virou. – Talvez queiras um atestado médico ou alguma justificação? Vieste cá para teres a certeza de que estou a dizer a verdade e não a tomar banhos de sol?
Normalmente, Martin era uma pessoa extremamente simpática. Patrik nunca tinha visto o colega sucumbir a uma explosão daquelas e sentiu-se ainda mais preocupado. Algo estava muito mal.
– Porque não nos sentamos? – perguntou, apontando para a cozinha.
A ira de Martin desapareceu tão rapidamente como aparecera e o olhar mortiço voltou-lhe aos olhos. Assentiu com indiferença e seguiu o colega. Sentaram-se à mesa da cozinha e Patrik examinou Martin com extrema preocupação.
– O que está a acontecer aqui?
Por um momento, Martin não disse nada.
– A Pia está a morrer – disse Martin, fixando depois o tampo da mesa.
Aquelas palavras não faziam sentido e Patrik recusou-se a acreditar que as ouvira.
– Como assim?
– A Pia começou anteontem o tratamento. Foi uma sorte ter conseguido uma vaga tão depressa.
– Tratamento para quê? – Patrik abanou a cabeça. Cruzara-se com Pia e com Martin no fim de semana e parecia estar tudo bem.
– A menos que haja algum tipo de milagre, os médicos dizem que podem restar-lhe apenas seis meses.
– Seis meses de tratamento?
Lentamente, Martin levantou a cabeça e olhou para o colega nos olhos. A extrema dor da sua expressão quase fez Patrik recuar.
– Seis meses de vida. E, depois, Tuva deixará de ter mãe.
– O quê?... Como... Quando é que tu... – Patrik deu por si a gaguejar, mas não conseguia encontrar nada sensato para dizer.
Martin não respondeu. Em vez disso, pousou a cabeça na mesa e desatou a soluçar tanto que todo o corpo começou a tremer. Patrik levantou-se e foi abraçá-lo. Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado, mas finalmente Martin parou de chorar e o corpo relaxou.
– Onde está a Tuva? – perguntou, ainda a abraçar Martin.
– Com a mãe da Pia. Eu não consigo... Neste momento não consigo. – Martin começou a chorar, as lágrimas corriam-lhe silenciosamente pelo rosto.
Patrik acariciou-lhe as costas.
– Está tudo bem, desabafa à vontade.
Aquilo era um clichê e Patrik sentiu-se um pouco idiota, mas o que mais se podia dizer numa situação daquelas? Haveria alguma coisa certa ou errada? Na verdade, o conteúdo das suas palavras não importava; além disso, Patrik também não tinha a certeza se Martin estava a ouvir alguma coisa.
– Já comeste?
Martin fungou, limpou o nariz à manga do roupão de banho e depois abanou a cabeça.
– Não tenho fome.
– Isso não interessa. Tens de comer. – Patrik foi até ao frigorífico para ver o que conseguia encontrar. Havia muita comida, mas sabia que não era o momento certo para cozinhar uma refeição completa, por isso tirou simplesmente um pouco de manteiga e de queijo. Depois torrou algumas fatias de baguete que encontrou no congelador e fez duas sanduíches abertas. Achava que era tudo o que Martin conseguiria comer de momento. Em seguida, Patrik fez outra sanduíche para si próprio. Calculou que seria mais fácil Martin comer se tivesse companhia.
– Agora conta-me tudo – disse depois de Martin ter terminado a primeira sanduíche e um pouco de cor lhe ter voltado ao rosto.
Hesitante, Martin disse a Patrik tudo o que sabia sobre o cancro de Pia e contou-lhe o choque que sofreram. Num momento estava tudo bem e no momento a seguir descobriram que Pia tinha de ser internada no hospital e ia passar por um rigoroso processo terapêutico que talvez não servisse para nada.
– Quando começa a poder vir para casa?
– Para a semana, penso. Não tenho bem a certeza. Ainda não... – A mão de Martin tremeu quando levantou a sanduíche. Parecia envergonhado.
– Não falaste com eles? Tens ido visitar a Pia desde que foi internada? – Patrik estava a dar o seu melhor para não parecer reprobatório. Essa era a última coisa de que Martin precisava naquele momento e, por estranho que pudesse parecer, compreendia a reação do colega. Tinha visto um número suficiente de pessoas em estado de choque para reconhecer aquele olhar vago e aqueles movimentos pesados.
– Vou fazer um chá – disse antes que Martin pudesse responder. – Ou preferes um café?
– Café – respondeu Martin. Não parava de mastigar, mas parecia estar com dificuldade em engolir.
Patrik encheu um copo com água.
– Toma. Bebe um pouco de água para ajudar a engolir. O café está quase pronto.
– Não tenho ido vê-la – disse Martin quando acabou de mastigar.
– Isso não é assim tão estranho. Estás em estado de choque – disse Patrik enquanto punha colheradas de café moído no filtro.
– Eu desiludi-a. A Pia precisa tanto de mim agora e eu desiludi-a. E a Tuva. Não via a hora de levá-la para casa da mãe da Pia. Como se isto também não estivesse a ser difícil para ela. Afinal de contas, a Pia é filha dela. – Martin parecia novamente à beira das lágrimas, mas respirou fundo e, em seguida, fez um esforço para acalmar a respiração. – Não faço a mais pequena ideia onde a Pia vai buscar aquela força toda. Ligou-me várias vezes e está preocupada comigo. Que loucura é esta? Está a fazer radioterapia, quimioterapia e sabe-se lá que raio mais. Deve estar a morrer de medo e a sentir-se realmente doente. Mas é comigo que está preocupada!
– Isso também não é assim tão estranho – disse Patrik. – Bem, vamos fazer o seguinte: vais tomar um duche e fazer a barba e, quando acabares, o café estará pronto.
– Não, eu... – começou a dizer Martin, mas Patrik ergueu a mão.
– Ou vais imediatamente tomar um duche ou eu levo-te para a casa de banho à força e dou-te uma boa esfregadela. E, como isso não é algo que aprecie particularmente, espero que o faças sozinho.
Martin não pôde deixar de rir-se.
– Não penses que te aproximas sequer de mim com uma toalha. Eu tomo duche sozinho.
– Ótimo – disse Patrik, e virou-se para procurar canecas nos armários. Ouviu Martin levantar-se e ir para a casa de o banho.
Dez minutos mais tarde, quando regressou à cozinha, Martin era um homem novo.
– Já te pareces mais contigo – disse Patrik, despejando café fumegante na caneca do colega.
– Sinto-me melhor. Obrigado – disse Martin, sentando-se. O rosto ainda estava abatido e pálido, mas havia mais vida nos seus olhos verdes. O cabelo ruivo húmido estava em pé. Parecia uma versão mais velha do Kalle Blomkvist das histórias de Astrid Lindgren9.
– Tenho uma sugestão – disse Patrik, que refletira sobre aquilo tudo enquanto Martin estava no duche. – Tens de apoiar a Pia o mais possível. E também tens de te responsabilizar pela Tuva. Por isso, porque não tiras umas férias a partir de agora e depois vemos como as coisas correm e de quanto mais tempo vais precisar.
– Já só tenho três semanas de férias.
– Nós resolvemos isso – disse Patrik. – Por agora não te preocupes com os pormenores práticos.
Martin lançou-lhe um olhar confuso e assentiu. Patrik recordou-se subitamente de Erica e do acidente de viação em que esteve envolvida. Podia ser ele a estar ali sentado. Por pouco não tinha perdido tudo.
Tinha passado a noite inteira a dar voltas na cama e a pensar. Depois de Patrik ter saído para ir trabalhar, sentou-se no alpendre, em paz e sossego, a pôr as ideias em ordem. Para variar, os filhos estavam a brincar sozinhos. Adorava a vista para o arquipélago de Fjällbacka e estava imensamente grata por ter conseguido salvar a casa onde ela e Anna tinham crescido. Agora, os filhos também podiam crescer ali. Não era fácil de manter. O vento e a água salgada iam deteriorando as paredes de madeira e a casa precisava de reparações e de manutenção constantes.
De momento não tinham grandes problemas financeiros. Tinham sido anos de muito trabalho, mas atualmente ganhava bastante bem com os livros. Não tinha alterado particularmente a sua rotina, mas era bom saber que não precisava de preocupar-se em fazer malabarismos com o orçamento familiar se precisasse de uma panela nova ou se tivessem de fazer obras em casa.
Estava plenamente consciente de que havia muitas pessoas que não desfrutavam da mesma segurança financeira. Quando não havia dinheiro ou o desemprego batia à porta, era fácil procurar um bode expiatório. Em parte era isso que fazia com que os Amigos da Suécia tivessem tanto sucesso. Desde o encontro com John Holm, Erica não conseguia parar de pensar naquele homem e no que ele representava. Esperara encontrar uma pessoa desagradável que exibisse orgulhosamente as suas ideias injuriosas. Em vez disso tinha encontrado algo muito mais perigoso. Uma pessoa eloquente, que inspirava confiança, e conseguia dar respostas simples. Alguém que conseguia ajudar os eleitores a identificar um bode expiatório e que depois prometia fazê-lo desaparecer.
Erica estremeceu. Estava convencida de que Holm escondia alguma coisa. Estava para se ver se haveria alguma ligação com o que aconteceu em Valö, mas sabia com quem ia falar a seguir.
– Meninos, vamos dar um passeio de carro! – gritou, virando-se para a sala de estar. As palavras provocaram gritos de júbilo por parte dos filhos, que adoravam passeios de carro.
– A mamã só tem de fazer um telefonema. Maja, calça-te que eu já vou para dentro ajudar o Anton e o Noel.
– Eu consigo ajudá-los – disse Maja, dando as mãos aos irmãos e conduzindo-os até ao vestíbulo. Erica sorriu. Maja estava cada vez mais a tornar-se uma pequena mãe para os irmãos.
Um quarto de hora mais tarde estavam todos no carro a caminho de Uddevalla. Telefonara para ter a certeza de que Kjell estava no jornal. Não queria fazer uma viagem com os filhos para nada. Inicialmente, Erica pensara explicar tudo ao telefone, mas depois concluiu que Kjell devia ver a nota com os próprios olhos.
Cantaram canções infantis durante toda a viagem até Uddevalla, por isso, Erica tinha a voz rouca quando anunciou a sua presença à rececionista. Passado um momento, Kjell apareceu para cumprimentá-los.
– Ena, trouxeste a equipa toda? – disse o jornalista, olhando para os três filhos que estavam timidamente a olhar para ele.
Kjell deu um abraço a Erica, e a barba do jornalista arranhou-lhe o rosto. Erica sorriu. Estava contente por vê-lo. Tinham-se conhecido há alguns anos, quando a investigação de um homicídio revelou que Elsy, a falecida mãe de Erica, e o pai de Kjell tinham sido amigos durante a Segunda Guerra Mundial. Tanto ela como Patrik gostavam de Kjell e Erica tinha imenso respeito pelo seu trabalho como jornalista.
– Hoje sou eu a babysitter – explicou Erica.
– Tudo bem. Gosto de vos ver a todos – disse Kjell, lançando um sorriso amigável às crianças. – Acho que tenho alguns brinquedos num cesto e podem entreter-se com eles enquanto eu converso com a vossa mãe.
– Brinquedos? – A timidez das crianças evaporou-se e Maja apressou-se a seguir Kjell, ansiosa por ver o cesto prometido.
– Aqui está. Praticamente só tenho folhas e lápis de cera – disse Kjell, despejando o conteúdo no chão.
– Devo avisar-te de que te sujeitas a ficar com o tapete todo manchado – disse Erica. – É que eles não escrevem só nas folhas.
– Achas realmente que umas manchitas vão fazer a diferença neste tapete? – perguntou, sentando-se à secretária.
Vendo o estado do tapete, Erica percebeu que o jornalista tinha razão.
– Ontem conheci o John Holm – disse Erica, sentando-se na cadeira reservada às visitas.
Kjell lançou-lhe um olhar penetrante.
– Com que impressão ficaste?
– É uma pessoa encantadora. Mas muito perigosa.
– Isso resume bastante bem as coisas. Quando era novo, o Holm pertencia a um dos piores grupos do movimento skinhead. Também foi lá que conheceu a mulher.
– Custa-me um bocado imaginá-lo com a cabeça rapada. – Erica virou-se para ver o que as crianças estavam a fazer, mas constatou que, pelo menos por enquanto, estavam a portar-se bem.
– Pois, o Holm realmente trabalhou a sua imagem. Mas, na minha opinião, esses tipos não mudam. Só ficam mais espertos com os anos e aprendem a comportar-se.
– O Holm tem cadastro?
– Não. Nunca foi acusado de nada, embora tivesse andado lá perto quando era mais novo. Ao mesmo tempo, não acredito por um minuto que seja que as ideias de Holm tenham mudado alguma coisa desde os tempos em que participava nas manifestações anuais de skinheads em Lund no dia 30 de novembro10. Por outro lado, posso afirmar com cem por cento de certeza que é por causa dele que o partido tem agora um assento no Riksdag.
– Porquê?
– A primeira ideia brilhante que o Holm teve foi explorar a divisão que surgiu entre os vários grupos neonazis suecos depois do incêndio na escola de Uppsala.
– Quando aqueles três neonazis foram condenados pelo incêndio? – perguntou Erica, recordando as manchetes que tinham aparecido nos jornais há vários anos.
– Exatamente. Além das divisões dentro dos grupos, e entre eles, os média começaram subitamente a interessar-se pelos neonazis e a polícia começou a ter a extrema-direita debaixo de olho. Foi aí que o John Holm entrou em cena. Juntou os melhores cérebros dos diferentes grupos e sugeriu uma colaboração. Como resultado, os Amigos da Suécia tornaram-se o principal partido. Desde então, Holm tem passado anos a peneirar os fiéis do partido, pelo menos à superfície, e a fazer passar a mensagem de que as suas propostas políticas têm grande apoio popular. Posicionaram-se como partido dos trabalhadores, a voz do homem comum.
– Mas não é difícil manter um partido como esse coeso? Deve haver uma data de extremistas entre os membros.
Kjell assentiu.
– E há. Algumas pessoas têm-no abandonado por julgarem que as medidas que o Holm propõe são demasiado leves e tem sido acusado de trair os antigos ideais. Parece que há uma regra tácita que proíbe a discussão aberta das políticas de imigração. Há demasiadas opiniões diferentes, o que significa que o partido corre o risco de cindir-se. Alguns são da opinião de que todos os imigrantes deviam ser enfiados no primeiro avião disponível e enviados de volta para os países de origem, ao passo que, no outro extremo do espectro, há quem argumente que deviam ser impostas à chegada restrições mais rigorosas a todos os estrangeiros que queiram vir para cá viver.
– A que categoria pertence o John Holm? – perguntou Erica, virando-se para acalmar os gémeos, que estavam a ficar barulhentos.
– Oficialmente, ao último grupo, mas oficiosamente... Eu não ficaria surpreendido se o Holm tivesse um uniforme nazi pendurado no guarda-fatos.
– Como é que o Holm foi parar a esses círculos?
– Depois de ontem me teres telefonado, fui investigar mais aprofundadamente o passado dele. Já sabia que a família do Holm era extremamente rica; o pai fundou uma empresa de exportações durante os anos 40 e, depois da guerra, continuou a expandir-se. O negócio foi de vento em popa até 1976... – Kjell fez uma pausa dramática e Erica endireitou-se na cadeira.
– Sim? – disse.
– Houve um escândalo que abalou a alta sociedade de Estocolmo. A mãe do John, Greta, trocou o pai, Otto, por um executivo libanês com quem o Otto tinha negociado. Também se soube que Ibrahim Jaber – era que assim que se chamava o libanês – tinha enganado o Otto e lhe ficara com grande parte da fortuna. No final de julho de 1976, sozinho e falido, o Otto sentou-se à secretária e suicidou-se com um tiro.
– Que aconteceu a Greta e ao John?
– A morte do Otto não foi o fim da tragédia. Descobriu-se que o Jaber já tinha mulher e filhos, e nunca tivera qualquer intenção de casar com Greta. Ficou simplesmente com o dinheiro e abandonou-a. Alguns meses depois, o nome de John Holm aparece pela primeira vez ligado aos neonazis.
– E o ódio dele não diminuiu – disse Erica, estendendo a mão para a mala. Pegou na nota e entregou-a a Kjell. – Ontem encontrei isto em casa do Holm. Não consigo perceber o que diz, mas talvez seja importante.
Kjell riu-se.
– Define encontrar.
– Agora parecias o Patrik a falar – disse Erica, sorrindo. – Isso estava para lá. Tenho a certeza de que é só uma nota rabiscada que não vai fazer falta a ninguém.
– Deixa-me cá ver. – Kjell pôs os óculos de leitura que tinha empurrado para a testa. – Gimle – leu em voz alta, franzindo a testa.
– Sim. Que significa isso? Nunca vi essa palavra. Será alguma abreviatura?
Kjell abanou a cabeça.
– Gimle é o que vem depois de Ragnarok, o fim do mundo na mitologia nórdica. Uma espécie de céu ou paraíso. É um conceito bem conhecido e utilizado frequentemente nos círculos neonazis. É também o nome de uma associação cultural. Afirmam não estar filiados em nenhum partido político, mas tenho as minhas dúvidas a esse respeito. Uma coisa é certa: são populares entre os Amigos da Suécia e o Partido do Povo Dinamarquês.
– E o que é que fazem?
– De acordo com as brochuras, o objetivo é reavivar os sentimentos nacionalistas e partilhar uma identidade fazendo reviver velhas tradições suecas, danças folclóricas e poesia antiga, relíquias da antiguidade e assim por diante. Tudo isto está em sintonia com o objetivo dos Amigos da Suécia de promover as tradições do nosso país.
– Quer dizer que Gimle também pode ser uma referência a essa associação? – Erica apontou para o papel.
– É impossível saber. Pode significar qualquer coisa. E é difícil saber o que estes números significam: 1920211851612114. E depois: 5 08 1400.
Erica encolheu os ombros.
– Não faço a mais pequena ideia. Pensei que pudessem ter sido anotados à pressa, como se faz quando se está ao telefone.
– É possível – disse Kjell agitando o papel no ar. – Posso ficar com isto?
– Sim, claro. Vou só tirar-lhe uma foto com o meu telemóvel, para o caso de ter uma inspiração repentina e conseguir decifrar o código.
– Boa ideia. – Kjell passou-lhe o papel e Erica fotografou-o. Em seguida, ajoelhou-se no tapete e começou a arrumar tudo o que os filhos tinham utilizado.
– Tens alguma ideia do que vais fazer com isso?
– Não, realmente não sei. Talvez comece por explorar alguns arquivos para ver se consigo encontrar mais informações.
– Portanto, achas que isso é mais do que um rabisco feito ao telefone? – perguntou Erica.
– Pode ser. Em todo o caso, vale a pena verificar.
– Vai-me mantendo a par. Eu telefono-te se descobrir mais alguma coisa. – Erica começou a conduzir os filhos para o corredor.
– Claro. Vamos falando – disse Kjell, pegando no telefone.
Era sempre a mesma coisa. Se ele chegasse tarde era o fim do mundo, ao passo que Patrik podia estar fora metade da manhã que ninguém levantava uma sobrancelha. Erica telefonara-lhe na noite anterior a reportar as visitas a Ove Linder e a John Holm. Agora, Gösta esperava impacientemente que Patrik chegasse para poderem ir falar com Leon. Suspirando por causa das injustiças da vida, voltou a estudar a lista que tinha em cima da secretária.
Um segundo mais tarde, o telefone tocou e Gösta pegou no auscultador.
– Estou. Fala Flygare.
– Gösta – disse Annika. – O Torbjörn está ao telefone. Os resultados das análises ao sangue já chegaram. Queria falar com o Patrik, mas como ele não está importas-te de ser tu a atender?
– Claro que não.
Gösta ouviu atentamente enquanto tomava notas pormenorizadas, embora soubesse que Torbjörn enviaria uma cópia do relatório por fax. Mas a linguagem dos relatórios oficiais era normalmente tão complicada que as informações eram mais fáceis de entender quando Torbjörn as transmitia.
Assim que Gösta desligou o telefone, alguém bateu na porta entreaberta do gabinete.
– A Annika disse-me que o Torbjörn ligou. O que foi que ele disse? – Patrik parecia ansioso por ouvir as novidades, apesar da expressão sombria.
– Há algum problema? – perguntou Gösta sem responder à pergunta.
Patrik sentou-se pesadamente numa cadeira.
– Fui ver como estava o Martin.
– Como é que ele está?
– Vai meter uns dias de baixa. Para começar, três semanas. Depois logo se vê como as coisas evoluem.
– Porquê? – Gösta sentiu a preocupação aumentar. Embora às vezes se metesse com o jovem colega, gostava de Martin Molin. Toda a gente gostava de Martin.
Quando Patrik lhe disse o que sabia sobre o estado de saúde de Pia, Gösta engoliu em seco. Pobre rapaz. E a menina, que só tinha dois anos, ia ficar sem mãe. Engoliu novamente em seco e virou a cara, pestanejando freneticamente. Não podia pôr-se para ali a choramingar no gabinete.
– O melhor que podemos fazer por ele é continuar com o nosso trabalho – concluiu Patrik. – Que disse o Torbjörn?
Gösta limpou discretamente os olhos e aclarou a garganta antes de se virar para as notas que tomara.
– O laboratório forense confirmou que é sangue humano. Mas é tão antigo que os técnicos não foram capazes de obter nenhum perfil de ADN para ser comparado com o ADN de Ebba. E não é claro se o sangue pertence a mais do que um indivíduo.
– Certo. Era praticamente o que eu esperava. E a bala?
– O Torbjörn enviou-a ontem para um especialista em armas. Foi feita uma análise rápida, mas infelizmente não corresponde a nenhuma bala utilizada em outros crimes.
– Bem, valeu a pena tentar – disse Patrik.
– Claro. Apenas se conseguiu confirmar que é uma bala de nove milímetros.
– Nove milímetros? Isso não nos diz propriamente muito sobre o tipo de arma que foi utilizada. – Patrik afundou-se na cadeira.
– Não, mas o Torbjörn disse que havia ranhuras claras na bala, por isso o tal especialista vai examiná-la mais pormenorizadamente para ver se consegue determinar o tipo de arma utilizada. E se encontrarmos a arma, podemos depois compará-la com a bala.
– Mas primeiro há esse pormenor de encontrar a arma – Patrik olhou para Gösta. – Vocês revistaram cuidadosamente a casa e os arredores?
– Referes-te a 1974?
Patrik assentiu.
– Fizemos o melhor que podíamos – respondeu Gösta. – Estávamos com falta de pessoal, mas passámos a ilha a pente fino. Se alguém tivesse atirado uma arma para algum lado, tê-la-íamos encontrado.
– O mais provável é estar no fundo do mar – comentou Patrik.
– Se calhar tens razão. É verdade, comecei a telefonar aos ex-alunos do colégio, mas ainda não obtive nenhum resultado. Alguns não atenderam o telefone, mas isso não é muito surpreendente, uma vez que estamos no verão.
– Já foi muito bom teres começado – disse Patrik, passando a mão pelo cabelo. – Toma nota caso haja algum que justifique mais atenção; talvez possamos ir falar pessoalmente com eles.
– Os tipos estão espalhados por toda a Suécia – disse Gösta. – Se fôssemos falar com eles um a um íamos ter de andar de carro até cair para o lado.
– Resolvemos isso quando soubermos de quantas pessoas estamos a falar. – Patrik levantou-se e dirigiu-se à porta. – Que tal darmos um salto a casa de Leon Kreutz depois do almoço? É uma sorte morar tão perto.
– Claro. Espero que consigamos saber mais do que na conversa de ontem. Josef foi tão parco em palavras como em 1974.
– Foi como tirar sangue a uma pedra. E aquele Sebastian saiu-nos uma bela enguia – disse Patrik ao sair do gabinete.
A mão de Gösta pairou sobre o telefone, preparando-se para marcar mais um número. Detestava falar ao telefone e, se não fosse por Ebba, teria tentado livrar-se daquela tarefa. Pelo menos não seria preciso correr toda a lista, uma vez que Erica prometera ajudá-lo.
– Gösta? Podes chegar aqui? – a voz de Patrik interrompeu-lhe os pensamentos.
No corredor encontrava-se Tobias Stark. Tinha uma expressão sombria e segurava um saco de plástico contendo o que parecia ser um postal.
– Tobias tem uma coisa para nos mostrar – disse Patrik.
– Enfiei-o no saco assim que me lembrei – disse Tobias. – Mas mexi-lhe, por isso talvez tenha destruído alguma impressão digital.
– Não tem importância – disse Patrik, tentando tranquilizá-lo.
Gösta examinou o postal através do plástico. Era um postal normalíssimo com um gatinho amarelo. Abriu-o e leu a mensagem breve.
– Mas que raio?! – exclamou.
– Parece que «G» está a começar a revelar as suas verdadeiras intenções – disse Patrik. – Isto só pode ser interpretado como uma ameaça.
9 Escritora sueca de livros infantis (1907-2002) e criadora de Pippi das Meias Altas. (N. do T.)
10 Aniversário da morte do rei Carlos XII da Suécia (1682-1718), um monarca autocrata e guerreiro que viveu durante algum tempo em Lund, fazendo com que a cidade se tornasse a capital do país durante dois anos. A partir de 1853, a data passou a ser simbólica para os nacionalistas suecos e mais tarde para os grupos de extrema-direita. (N. do T.)
HOSPITAL DE LÅNGBRO, 1925
DEVIA TER HAVIDO ALGUM MAL-ENTENDIDO, OU ENTÃO A CULPA ERA DAQUELA MULHER HORRÍVEL. MAS DAGMAR PODIA AJUDÁ-LO. INDEPENDENTEMENTE DO QUE TIVESSE ACONTECIDO, TUDO IRIA FICAR BEM QUANDO VOLTASSEM A ESTAR JUNTOS.
DEIXARA A MENINA NUMA PASTELARIA DA CIDADE. FICARIA BEM. SE ALGUÉM PERGUNTASSE PORQUE ESTAVA SOZINHA, LAURA DEVIA DIZER QUE A MÃE TINHA IDO À CASA DE BANHO.
DAGMAR CONTEMPLOU O EDIFÍCIO. NÃO TINHA SIDO DIFÍCIL DAR COM ELE. DEPOIS DE PEDIR INDICAÇÕES A ALGUNS TRANSEUNTES, ACABOU POR ENCONTRAR UMA MULHER QUE LHE DISSE COMO CHEGAR AO HOSPITAL DE LÅNGBRO. AGORA, A SUA MAIOR PREOCUPAÇÃO ERA DESCOBRIR COMO ENTRAR. HAVIA DEMASIADOS FUNCIONÁRIOS DE SERVIÇO NA ENTRADA PRINCIPAL PARA ENTRAR SEM QUE DESSEM POR ELA. PENSARA APRESENTAR-SE COMO A SR.A GÖRING, MAS SE CARIN JÁ ALI TIVESSE ESTADO PARA VISITAR O MARIDO, OS FUNCIONÁRIOS PERCEBERIAM O ESTRATAGEMA E DEPOIS NÃO TERIA OUTRA OPORTUNIDADE.
CAUTELOSAMENTE, DE MODO A NÃO SER VISTA POR ALGUÉM QUE ESTIVESSE A OLHAR POR UMA JANELA, DAGMAR AVANÇOU FURTIVAMENTE ATÉ ÀS TRASEIRAS DO HOSPITAL. AÍ, ENCONTROU O QUE PARECIA SER UMA ENTRADA PARA FUNCIONÁRIOS. OBSERVOU DURANTE ALGUM TEMPO MULHERES DE VÁRIAS IDADES A ENTRAREM E A SAÍREM, TODAS ELAS VESTINDO UNIFORMES ENGOMADOS. ALGUMAS DETINHAM-SE JUNTO DE UM CARRINHO DO LADO DIREITO DA PORTA E DEPOSITAVAM ROUPA SUJA LÁ DENTRO. ISSO DEU A DAGMAR UMA IDEIA. APROXIMOU-SE SUB-REPTICIAMENTE DO CARRINHO DA LAVANDARIA, CONTINUANDO DE OLHO NA PORTA, NÃO FOSSE SAIR ALGUÉM. MAS A PORTA PERMANECEU FECHADA E DAGMAR VASCULHOU RAPIDAMENTE O CONTEÚDO DO CARRINHO. HAVIA SOBRETUDO LENÇÓIS E TOALHAS DE MESA, MAS NO FUNDO HAVIA UM UNIFORME IDÊNTICO AOS QUE AS ENFERMEIRAS USAVAM. DAGMAR PUXOU-O PARA FORA E DOBROU A ESQUINA DO HOSPITAL PARA O VESTIR.
QUANDO ESTAVA PRONTA, ENDIREITOU AS COSTAS E ENFIOU O CABELO SOB O CHAPÉU. A BAINHA DO UNIFORME ESTAVA UM POUCO SUJA, MAS PARECIA APRESENTÁVEL. COM SORTE, O HOSPITAL ERA SUFICIENTEMENTE GRANDE PARA QUE AS ENFERMEIRAS NÃO REPARASSEM QUE, DE REPENTE, HAVIA UMA DESCONHECIDA ENTRE ELAS.
DAGMAR ABRIU A PORTA E ESPREITOU PARA DENTRO DO QUE PARECIA SER UM VESTIÁRIO PARA OS FUNCIONÁRIOS. ESTAVA VAZIO, POR ISSO CONTINUOU A AVANÇAR PELO CORREDOR, CONSTANTEMENTE À PROCURA DE UMA PISTA DO PARADEIRO DE HERMANN. SEMPRE COLADA À PAREDE, DAGMAR PASSOU POR UMA LONGA FILA DE PORTAS FECHADAS. NÃO HAVIA PLACAS DE IDENTIFICAÇÃO E COMEÇOU A TEMER NUNCA O CONSEGUIR ENCONTRAR. ESTAVA CADA VEZ MAIS DESESPERADA E PÔS A MÃO SOBRE A BOCA PARA EVITAR QUE UM GEMIDO DE FRUSTRAÇÃO ESCAPASSE. AINDA NÃO ESTAVA DISPOSTA A DESISTIR.
DUAS JOVENS ENFERMEIRAS VINHAM NA SUA DIREÇÃO. CONVERSAVAM EM VOZ BAIXA, PORÉM, À MEDIDA QUE SE APROXIMAVAM, DAGMAR AGUÇOU OS OUVIDOS. TERIAM ACABADO DE DIZER «GÖRING»? CAMINHOU MAIS DEVAGAR, TENTANDO ESCUTAR. UMA DAS ENFERMEIRAS TRANSPORTAVA UM TABULEIRO E PARECIA ESTAR A QUEIXAR-SE À COLEGA.
– DA ÚLTIMA VEZ ATIROU-ME A COMIDA TODA PARA CIMA – DISSE, ABANANDO A CABEÇA.
– POR ISSO É QUE A ENFERMEIRA-CHEFE DISSE QUE A PARTIR DE AGORA DEVEMOS IR SEMPRE AOS PARES AO QUARTO DE GÖRING – AFIRMOU A COLEGA. TAMBÉM PARECIA UM POUCO ASSUSTADA.
PARARAM DIANTE DE UMA PORTA E AMBAS HESITARAM. PERCEBENDO QUE TINHA DE APROVEITAR AQUELA OPORTUNIDADE, DAGMAR ACLAROU A GARGANTA E FEZ UMA VOZ AUTORITÁRIA.
– MANDARAM-ME IR DAR O ALMOÇO A GÖRING, POR ISSO NÃO PRECISAM DE PREOCUPAR-SE – DISSE, ESTENDENDO A MÃO PARA O TABULEIRO.
– AH, SIM? – PERGUNTOU UMA DAS ENFERMEIRAS. PARECIA SURPREENDIDA, MAS A EXPRESSÃO DE ALÍVIO ERA ÓBVIA.
– SEI COMO LIDAR COM DOENTES COMO O GÖRING. PORTANTO, AS MENINAS PODEM IR ANDANDO. EU TRATO DISTO. MAS PRIMEIRO ABRAM-ME A PORTA.
– OBRIGADA – DISSERAM AS JOVENS ENFERMEIRAS, FAZENDO UMA PEQUENA REVERÊNCIA. UMA DELAS SACOU UM GRANDE CHAVEIRO E INSERIU UMA DAS CHAVES NA FECHADURA. ABRIU A PORTA E, MAL DAGMAR ENTROU, AS DUAS AFASTARAM-SE APRESSADAMENTE, CONTENTES POR TEREM SIDO DISPENSADAS DE UMA TAREFA TÃO DESAGRADÁVEL.
DAGMAR SENTIU O CORAÇÃO MARTELAR-LHE O PEITO. LÁ ESTAVA ELE, O SEU HERMANN, ENROSCADO NUMA CAMA, DE COSTAS PARA ELA.
– VAI FICAR TUDO BEM, HERMANN – DISSE DAGMAR, POUSANDO O TABULEIRO NO CHÃO. – AGORA JÁ CÁ ESTOU.
O PILOTO NÃO SE MOVEU. DAGMAR CONTEMPLOU-LHE AS COSTAS E ESTREMECEU DE PRAZER POR ESTAR FINALMENTE TÃO PERTO DELE.
– HERMANN – DISSE, PONDO-LHE A MÃO NO OMBRO.
GÖRING AFASTOU O CORPO E, NUM MOVIMENTO RÁPIDO, VIROU-SE E SENTOU-SE NA BEIRA DA CAMA.
– O QUE É QUE QUERES? – BERROU.
DAGMAR RECUOU. AQUELE ERA MESMO HERMANN? O ATRAENTE PILOTO QUE TINHA FEITO TODO O SEU CORPO ESTREMECER DE PRAZER? AQUELE HOMEM DE COSTAS DIREITAS E DE OMBROS LARGOS CUJO CABELO BRILHARA COMO OURO AO SOL? NÃO PODIA SER ELE.
– DÁ-ME O MEU REMÉDIO, CABRA. PRECISO DELE! NÃO SABES QUEM SOU? SOU HERMANN GÖRING E PRECISO DO MEU REMÉDIO – DISSE EM SUECO COM UM FORTE SOTAQUE ALEMÃO, FAZENDO UMA PAUSA ENTRE CADA PALAVRA, COMO SE ESTIVESSE A TRADUZIR MENTALMENTE.
A GARGANTA DE DAGMAR PARECEU FECHAR-SE. AQUELE HOMEM QUE ESTAVA A URRAR COMO UM LOUCO ERA GORDO E A PELE APRESENTAVA UMA PALIDEZ DOENTIA. O CABELO FINO ESTAVA COLADO AO COURO CABELUDO. O SUOR ESCORRIA-LHE PELO ROSTO.
DAGMAR RESPIROU FUNDO E FORÇOU-SE A FALAR.
– HERMANN. SOU EU. DAGMAR – DISSE, MANTENDO A DISTÂNCIA, COM MEDO DE QUE O HOMEM PUDESSE ATACÁ-LA A QUALQUER MOMENTO.
OS VASOS SANGUÍNEOS NA TESTA DE GÖRING ESTAVAM SALIENTES E A PELE PÁLIDA ASSUMIU UM TOM VERMELHO-VIVO QUE SE ESPALHOU A PARTIR DO PESCOÇO.
– DAGMAR? QUERO LÁ SABER OS VOSSOS NOMES, GRANDES CABRAS. DÁ-ME O MEU REMÉDIO. OS JUDEUS TRANCARAM-ME AQUI, MAS TENHO DE SAIR. O HITLER PRECISA DE MIM. ONDE ESTÁ O MEU REMÉDIO?
HERMANN ESTAVA TÃO AGITADO QUE PULVERIZOU O ROSTO DE DAGMAR COM SALIVA. ATERRORIZADA, TENTOU NOVAMENTE.
– NÃO TE LEMBRAS DE MIM? CONHECEMO-NOS NUMA FESTA DADA PELO DOUTOR SJÖLIN. EM FJÄLLBACKA.
GÖRING PAROU ABRUPTAMENTE DE GRITAR E FRANZIU A TESTA ENQUANTO OLHAVA PARA ELA COM ESPANTO.
– EM FJÄLLBACKA?
– SIM, NA FESTA DO DOUTOR SJÖLIN – REPETIU DAGMAR. – PASSÁMOS A NOITE JUNTOS.
OS OLHOS DO PILOTO BRILHARAM E DAGMAR PERCEBEU QUE HERMANN SE LEMBRAVA DELA. FINALMENTE. AGORA, TUDO IA FICAR BEM. IA RESOLVER TUDO E HERMANN VOLTARIA A SER O SEU BELO CAPITÃO.
– ÉS A CRIADA – DISSE, LIMPANDO O SUOR DA TESTA.
– CHAMO-ME DAGMAR – DECLAROU. COMEÇOU A SENTIR UM NÓ NO ESTÔMAGO. PORQUE NÃO SE TINHA LEVANTADO DE REPENTE PARA A ABRAÇAR, COMO DAGMAR SEMPRE IMAGINARA NOS SEUS SONHOS?
EM SEGUIDA, HERMANN COMEÇOU A RIR-SE, O QUE FEZ COM QUE A BARRIGA GORDA ESTREMECESSE.
– DAGMAR. EXATAMENTE. – HERMANN RIU-SE DE NOVO E DAGMAR CERROU OS PUNHOS.
– TEMOS UMA FILHA. LAURA.
– UMA FILHA? – HERMANN SEMICERROU OS OLHOS. – NÃO ÉS A PRIMEIRA A TENTAR ESSE TRUQUE! NUNCA PODERÁ SER PROVADO. AINDA POR CIMA DE UMA CRIADA.
PRONUNCIOU AS ÚLTIMAS PALAVRAS COM TAL DESPREZO QUE DAGMAR VOLTOU A SENTIR A FÚRIA AUMENTAR. NAQUELE QUARTO BRANCO E ESTÉRIL, ONDE AS JANELAS NÃO DEIXAVAM ENTRAR O MAIS PEQUENO RAIO DE SOL, TODOS OS SEUS SONHOS E ESPERANÇAS TINHAM ACABADO DE SER DESTRUÍDOS. TUDO O QUE JULGARA SABER SOBRE A SUA VIDA TINHA-SE REVELADO UMA MENTIRA. PASSARA ANOS E ANOS CHEIA DE SAUDADES, OBCECADA E A ATURAR AQUELA CRIANÇA QUE TANTO GRITAVA E QUE ERA TÃO EXIGENTE, A FILHA DELE, MAS TUDO FORA EM VÃO.
DETERMINADA A MAGOÁ-LO O MAIS POSSÍVEL, DAGMAR ATIROU-SE A HERMANN, OS DEDOS COMO GARRAS. SONS GUTURAIS SAÍAM-LHE DA GARGANTA ENQUANTO OS DEDOS SE CRAVAVAM NA PELE E LHE ARRANHAVAM A CARA. COMO QUE AO LONGE, OUVIU-O GRITAR EM ALEMÃO. A PORTA ABRIU-SE E DAGMAR SENTIU-OS A PUXAREM-NA, A APARTAREM-NA DO HOMEM QUE AMARA DURANTE TANTO TEMPO.
DEPOIS, TUDO FICOU ESCURO.
Foi o pai que lhe ensinou a fazer um bom negócio. Lars-Åke «Lovart» Månsson era uma lenda e, na sua infância e adolescência, Sebastian reverenciava-o. A alcunha do pai, que significava «barlavento» em sueco, tinha-lhe sido dada porque conseguia sempre desenvencilhar-se, mesmo nos maiores apertos. Dizia-se que Lars-Åke tinha tanto sucesso na vida que, se cuspisse contra o vento, nem uma gota de saliva lhe cairia no rosto.
Lovart descobrira que era de facto muito simples levar as pessoas a fazerem o que queria. O princípio básico era o mesmo que no boxe: identificar o ponto fraco do oponente e depois atacá-lo sem parar até chegar o momento de erguer vitoriosamente os braços. Ou, no caso de Lovart, o momento de levar o saque para casa. A sua forma de fazer negócios não lhe granjeara nem popularidade nem respeito, porém, como muitas vezes dizia: «O respeito nunca pôs comida na boca de um homem com fome.»
Esse tornara-se igualmente o lema de Sebastian. Tinha plena consciência de que era detestado e temido pela maior parte das pessoas, mas quando se sentava junto à piscina com uma cerveja gelada na mão, sabia que nada disso tinha a mais pequena importância. Não estava interessado em fazer amigos. Ter amigos significaria compromisso e ceder um pouco do seu poder.
– Pai? Eu e o pessoal estávamos a pensar ir até Strömstad, mas não tenho dinheiro – disse Jon, aproximando-se do pai em calções de banho e com uma expressão de súplica.
Sebastian protegeu os olhos do sol enquanto estudava o filho de vinte anos. Às vezes, Elisabeth resmungava que ele estragava com mimos Jon e Josan, a irmã, dois anos mais nova, mas ele não queria saber. Não queria que os filhos tivessem uma infância difícil, cheia de regras e limites. Uma vida de privilégios mostrar-lhes-ia o que o mundo tinha para oferecer e como obterem tudo o que quisessem. Haveria tempo de sobra para levar Jon para a empresa e ensinar-lhe tudo o que Lovart lhe ensinara. Até lá, o rapaz poderia fazer o que lhe apetecesse.
– Leva o meu cartão gold. Está na minha carteira, à entrada.
– Fixe. Obrigado, pai! – Jon correu para dentro de casa como se tivesse medo de que Sebastian pudesse mudar de ideias.
Na semana anterior, quando fora jogar ténis em Båstad, levara o cartão gold do pai e gastara setenta mil coroas11. Mas isso era uma ninharia. O mais importante é que ajudara Jon a manter o estatuto entre os amigos que fizera em Lundsberg. Aí, os rumores da riqueza do pai rapidamente tinham atraído um grupo de pessoas que no futuro seriam homens influentes.
Claro que Lovart tinha ensinado a Sebastian a importância de cultivar os contactos certos. Eram muito mais valiosos do que os amigos. Por isso é que...
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