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Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)
CONTINUA
Maio de 1798
O último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de vista dos colecionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca importância e dificilmente dignas da reputação de seletividade que Maurice Fairbourne havia construído para o seu negócio.
De qualquer forma, a sociedade compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver, agora que Maurice já não o guardava.
Estes últimos podiam ser vistos a perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários.
Se uma das obras de arte fosse incorretamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/O_PLANO_DE_MISS_FAIRBOURNE.jpg
Darius Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um colecionador, não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorretamente classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras e as respetivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s podia ser afetada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores.
Também perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio alto e
estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação, na qual
atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo de uma só
vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo quando a licitação
parasse.
Considerando as ofertas insignificantes e o custo de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não realizar a festa. Já o facto de
não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão somente através dos anúncios
nos jornais.
O núcleo da multidão não se concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro
da sua atenção tornou-se visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas
condolências.
O negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua característica
fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam fixar o objeto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante.
Concentravam-se tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na proximidade.
– É um pouco estranho que ela esteja aqui – disse Yates Elliston, o visconde Ambury.
Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o tempo gasto no local.
Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e, naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa.
– Ela é a única Fairbourne que resta – disse Darius. – Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar.
O tamanho e a qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a personalidade que definem um negócio destes desaparecem.
– Presumo que já tenham sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter
vinte e poucos anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e este negócio prosperava.
– Sim, já fomos apresentados.
O primeiro encontro tivera lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia
sido apresentado à filha deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro, até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida por um pai expansivo e extravagante.
– Embora... – Ambury olhou fixamente na direção de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas.
– Não é uma grande beleza, mas há algo nela... É difícil dizer o que é...
Sim, havia algo nela. Darius surpreendeu-se por Ambury o detetar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius
estas eram, na maioria das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise, desconcertantes.
– Reconheço-a – disse Ambury, enquanto se virava para examinar uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. – Vi-a na cidade, acompanhada pela irmã
de Barrowmore, Lady Cassandra.
Talvez Miss Fairbourne seja solteira por preferir a independência, como a amiga.
Com Lady Cassandra? Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito mais complexa do que ele assumira anteriormente.
Apercebeu-se de como ela tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse pessoalmente, ela iria fingir que Darius não
estava presente. Certamente, não iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela.
Ambury percorria as folhas do catálogo do leilão, que lhe havia sido entregue pelo gerente do salão de exposições.
– Não tenho a pretensão de saber tanto sobre arte como você sabe, Southwaite, mas existem muitas referências a «escola de» e «estúdio de» na descrição destas pinturas.
Lembra-me a arte oferecida por aqueles vendedores de quadros em Itália, durante a minha viagem pela Europa.
– Os funcionários não têm o conhecimento que Maurice possuía e, em seu benefício, têm sido conservadores nas classificações, quando a proveniência, que documenta
o historial de proprietários e apoia a autenticidade, não está acima de qualquer dúvida.
Darius apontou para a paisagem acima da cabeça de Ambury.
– Se ele ainda estivesse vivo, este quadro poderia ser vendido como um « Van Ruisdael», não como um « discípulo de Van Ruisdael», e o mundo aceitaria a sua opinião.
Há pouco, Penthurst estava a examiná-lo muito atentamente e, possivelmente, irá licitá-lo por um valor alto, na esperança de que a ambiguidade penda a favor de «
Van Ruisdael».
– Se era Penthurst, espero que o quadro tenha sido pintado apressadamente por um falsificador, há duas semanas, e que ele desperdice um balúrdio.
Ambury voltou de novo a sua atenção para Miss Fairbourne.
– Não foi um serviço fúnebre mau, se pensarmos no assunto. Estão aqui celebridades da esfera social que provavelmente não compareceram ao funeral.
Darius tinha assistido ao funeral, realizado há um mês. Era o único aristocrata presente, apesar de Maurice Fairbourne aconselhar muitos membros da nobreza relativamente
às suas coleções. A alta sociedade não iria ao funeral de um comerciante, muito menos no início da temporada, pelo que Ambury estava certo. Para os clientes da Fairbourne’s,
o leilão assumiria o papel de serviço fúnebre, à falta de melhor.
– Presumo que todos irão licitar valores altos – disse Ambury. Tanto o seu tom de voz como o leve sorriso refletiam a sua conduta amável, que, por vezes, o deixava
em apuros. – Para a ajudar, agora que está sozinha no mundo.
– A compaixão irá desempenhar o seu papel, na medida em que incentivará licitações altas, mas a verdadeira razão encontra-se de pé, ao lado da tribuna, neste mesmo
instante.
– Refere-se àquele sujeito pequeno, de cabelo branco? Dificilmente parece ser o tipo de pessoa capaz de me animar a ponto de licitar cinquenta libras, quando planeara
pagar vinte e cinco.
– Ele é mesmo pouco impressionante, não é? Também é modesto, delicado e invariavelmente cortês – mencionou Darius. – E, inexplicavelmente, tudo isso funciona a seu
favor. Quando Maurice Fairbourne percebeu o que tinha naquele pequeno homem, nunca mais conduziu um leilão nesta leiloeira, deixando essa tarefa para Obediah Riggles.
– E eu que pensava que o leiloeiro era aquele sujeito ali. O que me deu este papel com a listagem das obras para venda.
Ambury referia-se ao homem jovem e belo, que, naquele momento, encaminhava os convidados em direção às cadeiras.
– Esse é Mr. Nightingale. Ele gere o salão de exposições. Recebe os visitantes, senta-os, garante que estão confortáveis e responde a perguntas sobre os lotes. Também
irá vê-lo junto a cada obra, quando esta é leiloada, como um poste de sinalização humano.
Moreno, alto e extremamente meticuloso com o seu vestuário elegante, Mr. Nightingale deslizava mais do que caminhava, ao deslocar-se pela divisão, conduzindo e incentivando,
encantando e seduzindo. Ao mesmo tempo, enchia as cadeiras e assegurava que as mulheres tinham leques amplos, com os quais pudessem sinalizar uma licitação.
– Ele parece ser bastante bom no que faz, seja qual for a sua função – observou Ambury.
– Sim.
– As senhoras parecem gostar dele. Suponho que um pouco de lisonja contribuirá para uma melhoria substancial do fluxo de licitações.
– Presumo que sim.
Ambury observou Nightingale durante mais um minuto.
– Alguns cavalheiros também parecem dar-lhe bastante atenção.
– É claro que não poderia deixar de o mencionar.
Ambury riu-se.
– Calculo que isso lhe cause algum constrangimento. Afinal, a função dele é incentivá-los a regressar, não é verdade? Como conseguirá incentivar e desencorajar,
simultaneamente?
Darius não estava convicto de que o gerente do salão de exposições desencorajasse os cavalheiros.
Nightingale era extremamente ambicioso.
– Deixarei que empregue os seus famosos poderes de observação e me informe depois como consegue ele fazê-lo. Isso dar-lhe-á algo com que se ocupar e, talvez assim,
pare de reclamar que hoje o arrastei para cá.
– A questão não é o onde, mas sim o como. O caro amigo enganou-me. Quando mencionou «um leilão», presumi que se tratava de um leilão de cavalos, como você sabia
que eu faria. É mais divertido vê-lo gastar uma pequena fortuna num garanhão do que numa pintura.
Lentamente, a multidão encontrou os seus lugares e os sons diminuíram. Riggles subiu para o cimo de um pequeno banco, de modo a dominar o pódio da tribuna. Mr. Nightingale
deslocou-se até ao lugar onde o primeiro lote estava pendurado na parede. A sua fisionomia perfeita provavelmente atraía mais a atenção de alguns clientes do que
a pintura a óleo obscura para a qual apontava.
Emma Fairbourne permaneceu discretamente afastada da ação, mas bem à vista de todos. Licitem muito e licitem alto, parecia implorar a sua simples presença. Pela
memória dele e pelo meu futuro, perfaçam um total melhor do que deveria ser.
Emma mantinha o olhar fixo em Obediah, mas sentia as pessoas a olharem para ela. Em particular, sentia uma pessoa a olhar para ela.
Southwaite viera. Só com muita sorte ele teria saído da cidade. No entanto, ela rezara por isso.
Segundo contara a sua amiga Cassandra, ele ia frequentemente para a propriedade que possuía no Kent. O
ideal seria tê-lo feito esta semana.
Ele permanecia de pé, para lá das cadeiras, vestido para montar a cavalo, como se houvesse planeado dirigir-se à sua propriedade rural, mas, após ler o jornal, tivesse
mudado de ideias e decidido deslocar-se antes à leiloeira. Erguia-se imponente, atrás da multidão, sendo impossível passar despercebido. Pelo canto do olho, ela
vislumbrava-o a observá-la. O seu rosto, de uma beleza severa, estava ligeiramente franzido, numa expressão de desaprovação. O seu companheiro parecia muito mais
amigável, possuindo uns extraordinários olhos azuis, dotados de uma luminosidade alegre, contrastante com a intensidade sombria do conde.
Emma presumiu então que ele considerava que devia ter sido informado. Ele devia pensar que era da sua conta tudo o que se passava na Fairbourne’s. Aparentemente,
iria querer tornar-se um incómodo. Pois bem, ela não consentiria que tal acontecesse.
Obediah começou a leiloar o primeiro lote. A licitação não foi entusiástica, mas isso não a preocupou.
Os leilões começavam sempre lentamente e ela escolhera cuidadosamente o lote a sacrificar naquela fase inicial, dando tempo aos clientes para se acomodarem e ganharem
entusiasmo.
Obediah conduzia a licitação de maneira suave e tranquila. Sorria, gentilmente, para as senhoras de mais idade que erguiam os seus leques e acrescentava um «Muito
bem, caro senhor», quando um jovem cavalheiro aumentava consideravelmente a licitação. A impressão era a de uma conversa elegante, não a de uma competição barulhenta.
Não havia lugar para dramas nos leilões da Fairbourne’s. Os clientes não eram persuadidos a licitar mais e não existiam insinuações astutas sobre valores ocultos.
Obediah era o leiloeiro menos dramático de Inglaterra, mas os lotes eram vendidos por valores surpreendentemente elevados, quando ele fazia soar o seu martelo. Os
licitantes confiavam nele e esqueciam a sua prudência natural. Certa vez, o pai de Emma comentara que Obediah lembrava, aos homens, o seu criado particular e, às
mulheres, o seu querido tio Bertie.
Ela não abandonava a posição perto da parede, nem mesmo quando Mr. Nightingale direcionava a atenção da multidão para os quadros e outros objetos de arte localizados
na sua proximidade. Algumas das pessoas presentes recordar-se-iam que o seu pai havia permanecido naquele lugar durante os leilões.
Precisamente no mesmo local onde ela agora se encontrava.
À medida que os lotes finais se aproximavam, Mr. Nightingale recuava da sua posição, para se colocar ao lado de Emma. Ela estranhava a atitude, mas ele fora extremamente
solícito naquele dia, em todos os sentidos. Até poderia pensar-se que fora o seu próprio pai a sofrer uma queda fatal, pela forma como ele aceitara as condolências
dos clientes durante a pré-apresentação das obras, quase perdendo, por diversas vezes, a compostura.
Assim que o martelo assinalou a venda do último lote, Emma soltou um suspiro de alívio. O leilão correra muito melhor do que ousara esperar. Conseguira mais algum
tempo.
O ruído encheu a divisão de teto alto, à medida que as conversas começavam e as cadeiras raspavam o chão de madeira. Do lugar que ocupava, ao lado de Emma, Mr. Nightingale
despediu-se das matriarcas da alta sociedade, que o presenteavam com sorrisos sedutores, e de alguns cavalheiros, que condescendiam em demonstrar-lhe familiaridade.
– Miss Fairbourne – proferiu ele, enquanto agraciava, com o seu sorriso encantador, as pessoas que passavam. – Se não estiver demasiado cansada, gostaria de ter
uma conversa breve consigo, em particular, depois de todos terem saído.
O ânimo de Emma cedeu. Ele ia deixar o seu posto de trabalho. Mr. Nightingale era um jovem ambicioso, que já não via um futuro para si naquela empresa. Sem dúvida,
assumira que iriam simplesmente fechar as portas após aquele dia. Mesmo se não o fizessem, ele não quereria permanecer na leiloeira, sem os contactos que o pai dela
lhe proporcionara.
O olhar de Emma desviou-se para a tribuna, onde Obediah descia do pequeno banco. Perder Mr.
Nightingale seria um duro golpe. Contudo, se Obediah Riggles os abandonasse, a Fairbourne’s deixaria certamente de existir.
– Com certeza, Mr. Nightingale. Podemos dirigir-nos agora mesmo ao armazém, se considerar adequado.
Ela caminhou em direção ao armazém, com Mr. Nightingale ao seu lado. Parou durante um instante, para elogiar Obediah, que corou discretamente.
– Obediah, poderá ter a bondade de se reunir comigo amanhã, aqui? Gostaria que me aconselhasse relativamente a certas questões da maior importância – acrescentou
Emma.
O rosto de Obediah revelou um profundo desapontamento. Porventura assumira que pretendia conselhos relativos ao encerramento da Fairbourne’s, presumiu Emma.
– Certamente, Miss Fairbourne. Às onze, será boa hora para si?
– É perfeito. Encontrar-nos-emos então às onze.
Enquanto falava, reparou que dois homens ainda não haviam abandonado o salão de exposições.
Southwaite e o seu companheiro permaneciam nos seus lugares, observando os funcionários que retiravam os quadros das paredes, a fim de os entregarem aos licitantes
vencedores.
Southwaite fitou-a. A expressão do conde ordenava-lhe que se mantivesse onde estava. Ele avançou na sua direção. Emma fingiu não reparar, apressando a progressão
de Mr. Nightingale, para se poder refugiar no armazém.
CAPÍTULO 2
– Com o trágico falecimento do seu pai, a situação mudou bastante, penso que concordará comigo – proferiu Mr. Nightingale.
Ele permanecia de pé, diante dela, envergando uma sobrecasaca e um lenço impecáveis. Tinha sempre o mesmo aspeto. Alto, esbelto, moreno e perfeito. Emma imaginou
as horas que ele devia gastar diariamente a preparar-se com tal precisão.
Nunca gostara muito dele. Mr. Nightingale pertencia ao grande número de pessoas que usavam uma máscara falsa perante o resto do mundo. Tudo nele era calculado, sendo
excessivamente suave, excessivamente polido e excessivamente ensaiado. Ao imitar os seus superiores, assumira as piores características destes.
Encontravam-se na ampla divisão das traseiras, destinada ao armazenamento dos itens consignados, enquanto estes eram objeto de catalogação e estudo, antes do respetivo
leilão. O espaço continha caixas para quadros, numa das extremidades, bem como prateleiras e mesas amplas para colocar outros objetos.
Existia também uma secretária, onde Emma se encontrava sentada neste momento. Mr. Nightingale posicionara-se ao seu lado, privando-a do distanciamento proporcionado
pelo tampo, que ela teria certamente preferido.
Obviamente, Emma concordou com a sua opinião, de que a situação mudara muito. Era uma daquelas afirmações tão verdadeiras que não precisavam de ser constatadas.
Ela não gostava que as pessoas a abordassem daquela forma, explicando-lhe o óbvio. Notara que os homens, em particular, tinham esse hábito.
Emma apenas assentiu com a cabeça e esperou que ele continuasse. Também desejou que se despachasse. Aqueles preliminares eram todos irrelevantes para o assunto principal,
que era o abandono do cargo, e alguma franqueza seria bem-vinda.
Pior ainda, Emma estava a sentir dificuldade até mesmo em prestar atenção ao que ele dizia. A sua mente divagara novamente para o salão de exposições, pensando no
que Southwaite estaria a fazer e se continuaria por lá, quando ela saísse do armazém.
– Agora está sozinha. Desprotegida. A Fairbourne’s perdeu o seu dono. Embora os nossos clientes tenham sido amáveis hoje, perderão rapidamente a confiança nos leilões,
se continuar a realizá-los.
A afirmação atraiu a atenção de Emma. Mr. Nightingale sempre lhe parecera uma ilustração de moda ambulante. Apenas superficialidade e artifício. Sem o mínimo de
profundidade.
Naquele momento, ele revelara uma perspicácia inesperada, ao presumir que Emma ponderava continuar com os leilões da Fairbourne’s.
– Os clientes conhecem-me bem – continuou. – Respeitam-me. O meu olho para a arte tem sido demonstrado repetidamente, durante as apresentações.
– No entanto, não é um olho como o do meu pai.
Nem como o dela própria, quis acrescentar.
– Sem dúvida alguma. Mas é suficientemente bom.
Na situação em que se encontravam, não era suficientemente bom, infelizmente.
– Sempre a admirei, Miss Fairbourne.
Mr. Nightingale exibiu o seu sorriso encantador. Nunca o usara com ela, anteriormente. Emma achou-o consideravelmente menos atraente quando dirigido a si própria,
do que quando era usado para persuadir uma matriarca da alta sociedade a considerar um quadro que fora negligenciado.
Contudo, ele era um homem muito belo. Quase anormalmente belo. E era óbvio que ele o sabia. Um homem não podia ter aquele aspeto e não saber o quão perfeito era
o seu rosto. Excessivamente perfeito, como se um pintor de retratos tivesse pegado num rosto naturalmente belo e o tivesse aperfeiçoado em demasia, ao ponto de perder
a diferenciação e as características básicas humanas.
– Temos muito em comum – prosseguiu. – A Fairbourne’s. O seu pai. A nossa origem e o nosso estatuto social não diferem significativamente. Acredito que faríamos
um bom casal. Espero que encare favoravelmente a minha proposta de casamento.
Emma olhou-o, espantada. Aquela não era a conversa que esperara. Não fazia ideia de como responder.
Ele respirou fundo, como se estivesse a preparar-se para uma tarefa desagradável.
– Vejo que está surpreendida. Pensou que eu não havia reparado na sua beleza, durante estes últimos anos? Talvez tenha sido excessivamente subtil na comunicação
do meu interesse. Isso deveu-se ao meu respeito por si e pelo seu pai. Contudo, a menina roubou o meu coração. Sonho, há vários meses, com a possibilidade de um
dia poder ser minha. Sempre acreditei que tínhamos uma ligação especial e, dadas as circunstâncias, sou agora livre para...
– Mr. Nightingale, por favor, discutamos este assunto com honestidade, se houver mesmo necessidade de o discutirmos. Em primeiro lugar, ambos sabemos que não sou
bela. Em segundo lugar, eu e o senhor jamais tivemos qualquer ligação secreta. Na verdade, raramente mantivemos uma conversa informal. Em terceiro lugar, não foi
excessivamente subtil na comunicação dos seus sentimentos, porque nunca teve tais sentimentos. Há pouco, quase se engasgou com as suas palavras de amor. Começou
por fazer uma proposta pragmática. Talvez devesse continuar nessa linha, em vez de tentar convencer-me do seu amor secreto de longa data.
Emma deixou-o sem palavras, mas somente por um momento, não mais.
– Sempre foi uma mulher muito direta, Miss Fairbourne – disse com severidade. – É uma das suas qualidades mais... notáveis. Se preza tanto a honestidade e o pragmatismo,
que assim seja. O seu pai deixou-lhe este negócio, que até pode sobreviver, mas somente se, aos olhos do mundo, o seu proprietário e gerente for um homem. Ninguém
será cliente da Fairbourne’s, se a autoridade responsável for uma mulher. Proponho que nos casemos e que eu ocupe o lugar do seu pai. Continuará a ter a vida confortável
que a Fairbourne’s lhe tem proporcionado, permanecendo segura e protegida.
Emma fingiu pensar sobre o assunto, para evitar insultá-lo em demasia.
– É muito amável da sua parte tentar ajudar-me, Mr. Nightingale. Infelizmente, penso que não faríamos, de todo, um bom casal.
Emma tentou levantar-se. Ele não se moveu. Mr. Nightingale já não parecia encantador, ao olhá-la fixamente, da sua posição altaneira. Nada encantador.
– A sua decisão é ousada e imprudente. Qual será a vantagem de herdar a Fairbourne’s, se não a mantiver em funcionamento? O lucro de hoje dificilmente irá sustentá-la
durante muito tempo. Quanto a outra proposta de casamento, uma que a menina considere mais adequada, duvido que tal oferta venha a surgir, se não surgiu até agora.
– Talvez já tenha surgido uma.
– Conforme pediu, sejamos pragmáticos e honestos. Como já admitiu, não possui uma grande beleza.
Tem uma conduta que é pouco propícia aos interesses românticos de um homem, com toda a franqueza. É
teimosa e, por vezes, rabugenta. Em suma, a menina está na prateleira por uma razão. Várias, na verdade.
Estou disposto a esquecer tudo isso. Não tenho uma grande fortuna, mas possuo capacidades que podem manter a Fairbourne’s de portas abertas. Para o melhor, ou para
o pior, o destino junta-nos, Miss Fairbourne, mesmo que o amor não o faça.
Emma sentiu o rosto a aquecer. Podia admitir que a apelidassem de teimosa, mas apelidarem-na de rabugenta era ir longe demais.
– Dificilmente posso rebater a sua descrição incrivelmente completa da minha falta de atrativos, senhor. Ouso dizer que deveria mesmo estar grata por se encontrar
disposto a aceitar-me. Porém, temo que os seus cálculos estejam errados num ponto de grande importância, e que a sua disponibilidade para se sacrificar será, em
grande parte, comprometida, quando eu esclarecer a situação, uma vez que afeta o único aspeto a meu favor. Assume que sou a herdeira do meu pai. Na verdade, não
sou. O herdeiro é, obviamente, o meu irmão. Se se casar comigo, não será o dono da Fairbourne’s, como pensa. Pelo menos, no futuro próximo.
Nightingale teve a audácia de murmurar, exasperado: – Um homem morto não pode herdar.
– Ele não está morto.
– Zeus, o seu pai nutria esperanças irrealistas, mas é inconcebível que a menina também o faça. Ele afogou-se, quando o navio afundou. Está morto, seguramente.
– O corpo nunca foi encontrado.
– Porque o maldito navio se afundou no meio do maldito mar. – Recompôs-se e baixou a voz. – Consultei um solicitador. Em tais casos, não é necessário esperar qualquer
período de tempo para declarar uma pessoa como morta. Só é preciso ir a tribunal e...
Aquele homem pretensioso ousara investigar como Emma poderia reclamar a fortuna que ele tanto queria desposar. Esperava que ela negasse a certeza do seu próprio
coração de que Robert ainda estava vivo, a fim de satisfazer a sua avareza.
– Não. Não o farei. Se a Fairbourne’s sobreviver, de todo, será do Robert, quando ele voltar.
Nightingale ergueu-se, alto e direito.
– Então, morrerá de fome – entoou. – Porque, se não sair daqui com uma resposta positiva à minha oferta, não regressarei para manter este negócio em funcionamento
para si, e muito menos para ele.
Olhou, zangado, para Emma, convencido de que ela não aceitaria o desafio. Emma devolveu-lhe o olhar irado, enquanto ponderava, rapidamente, que problemas o afastamento
de Mr. Nightingale iria criar.
Teve de admitir que, potencialmente, seriam muitos.
– Obediah determinará o que lhe devemos. Uma vez feitos os pagamentos relativos ao dia de hoje, o seu salário ser-lhe-á enviado. Tenha um bom dia, Mr. Nightingale.
Mr. Nightingale girou sobre os calcanhares e marchou para fora da divisão. Emma apoiou a cabeça nas mãos. O sucesso do leilão daquele dia abrira uma porta para os
seus planos futuros, mas outra porta acabara de se fechar, com a perda do gerente do salão de exposições.
O cansaço queria dominá-la por completo, assim como a humilhação causada pela descrição audaz que Mr. Nightingale fizera das suas imperfeições. Ele falara como se
pretendesse enumerar defeitos ainda piores, mas tivesse pensado que limitá-los aos referidos resultaria num exemplo adequado de circunspeção.
Está na prateleira por uma razão. A afirmação era, seguramente, verdadeira. Estava na prateleira, sobretudo, porque todas as propostas haviam sido, de uma forma
ou de outra, semelhantes à daquele dia.
Seria preferível que os pretendentes dissessem apenas: «Casar- -me consigo não me interessa, de todo, mas o facto de herdar a Fairbourne’s fará com que o casamento
seja mais fácil de tolerar.»
Não previra sentir-se irritada com a situação. Provavelmente, não deveria sentir-se assim. Porém, não conseguia evitá-lo.
O som de alguém a bater levemente na porta chamou a atenção de Emma. A porta abriu-se ligeiramente e a cabeça de Obediah espreitou para dentro.
– Tem uma visita, Miss Fairbourne.
Antes de conseguir perguntar quem era o visitante, a porta abriu-se de par em par. O conde de Southwaite entrou na divisão, com uma nuvem cinzenta invisível pairando-lhe
sobre a cabeça escura.
Saíra um homem belo e pretensioso, para entrar outro. Southwaite necessitava de confirmar, pessoalmente, que ela não pretendia recebê-lo. Tinha sido um dia árduo
e cansativo. Naquele momento, ela não estava com disposição para se debater contra a perspicácia do aristocrata.
Emma suprimiu o impulso de resmungar. Levantou-se e fez uma pequena vénia, forçando um sorriso.
Tentou que a sua voz soasse melodiosa, ao invés de entorpecida.
– Bom dia, Lord Southwaite. É uma honra, para nós, que tenha vindo hoje à Fairbourne’s.
Emma Fairbourne não parecia minimamente consternada por ter, finalmente, de o cumprimentar.
Sentada atrás da grande secretária do armazém, sorria de forma resplandecente. Agia como se ele tivesse acabado de chegar e de se apear do cavalo, há poucos minutos.
– Sente-se honrada, deveras? Não tenho por costume ser ignorado por quem se sente honrado pela minha presença, Miss Fairbourne.
– Ficou, porventura, com a impressão de que o ignorei, senhor conde? Peço desculpa. Se esteve presente no leilão, não o vi. Os votos de felicidade e as condolências
dos clientes absorveram todo o meu tempo e atenção – argumentou Emma, inclinando-se mais sobre a secretária. – Contudo, não deveria existir uma ligação social, para
poder considerar que o ignorei? Mesmo não o tendo cumprimentado, por negligência, não compreendo porque imagina que o quis ignorar, visto não possuirmos qualquer
laço social.
Southwaite ergueu uma das mãos, para que Emma parasse de falar.
– Pouco importa se me viu ou não. Certamente, vê-me agora.
– Seguramente que sim, pois não estou cega.
– Durante o nosso último encontro, informei-a especificamente de que iria estudar o futuro da Fairbourne’s e me encontraria consigo no prazo de um mês, a fim de
explicar os meus planos para a alienação do negócio.
– Creio que poderá ter dito algo nesse sentido. Não consigo recordar com toda a certeza. Nessa altura, estava um pouco alterada.
– O que é compreensível.
À data do encontro, ela estava extremamente alterada. Encontrava-se tão irada, que parecera estar prestes a assassiná-lo. Esse estado emocional havia sido a razão
pela qual ele decidira adiar a conversa.
O que foi claramente um erro.
– Duvido que compreenda verdadeiramente, senhor conde. Mas, por favor, continue. Creio que se preparava para iniciar um sermão, ou uma reprimenda. Por enquanto,
é difícil saber qual das duas opções está correta.
Maldição, ela era uma mulher irritante. Permanecia sentada, suspeitamente serena. Pelo modo tempestuoso como Nightingale saíra da divisão, era de calcular que já
desfrutara de uma boa discussão com um opositor masculino, estando, naquele momento, à procura de outra.
– Não se seguirá um sermão, nem uma reprimenda. Procuro apenas esclarecer o que, talvez, não tenha ouvido naquele dia, no escritório do solicitador.
– Ouvi as partes importantes. Tenho de admitir que foi um choque descobrir que o meu pai lhe vendera metade da Fairbourne’s, há três anos. No entanto, já aceitei
esse facto, não sendo necessário qualquer esclarecimento.
O conde andava para trás e para a frente, diante da secretária, tentando avaliar quais eram, realmente, os sentimentos e pensamentos de Emma. Um acervo de quadros,
todos encostados a uma parede, impedia que continuasse numa direção, enquanto uma mesa com artigos em prata o impedia de prosseguir na outra, tornando o circuito
curto e insatisfatório. O negro do traje dela dominava, continuamente, o seu campo de visão. Obviamente, ainda estava de luto. E esse facto acalmava-lhe a raiva
latente, mais do que tudo o resto.
Bem, não inteiramente mais do que tudo o resto. Ambury acertara ao comentar que Emma Fairbourne, embora não possuísse uma grande beleza, tinha um certo encanto sedutor.
Tornara-se evidente no escritório do solicitador, sendo também percetível naquele momento, naquele armazém. O conde presumiu que a franqueza dela contribuía, em
grande parte, para esse encanto. A forma como evitava todos os artifícios criava uma... intimidade peculiar.
– Não me informou acerca da realização do leilão de hoje – retorquiu ele. – E não considero que tenha sido por descuido. No entanto, durante o nosso último encontro,
disse-lhe que esperava ser informado de todas as atividades da leiloeira.
– Apresento-lhe as minhas desculpas. Quando decidimos não enviar convites, uma vez que não iria haver uma pré-apresentação aparatosa, não me ocorreu tomar medidas
especiais para si, um dos nossos clientes mais ilustres.
– Não sou apenas um dos clientes. Sou um dos proprietários.
– Presumi não ser do seu interesse divulgar tal facto. Ser um dos proprietários associa-o ao comércio.
Se eu tivesse permitido a exceção e, dessa forma, chamado a atenção dos funcionários para a sua pessoa... bem, ponderei que preferiria que não o fizesse.
Southwaite teve de admitir que fazia um certo sentido. Maldição, ela tinha um raciocínio rápido.
– No futuro, por favor, não se preocupe em ser tão discreta, Miss Fairbourne. Naturalmente, deixou de haver motivo para tal, agora que o último leilão foi realizado,
ainda que sem a minha autorização.
Emma piscou os olhos duas vezes, quando ouviu a palavra autorização, mas não houve qualquer outra reação da sua parte.
– Aparentemente, correu tudo bem – disse ele, parando de caminhar e tentando soar menos severo. – Presumo que o lucro seja suficiente para viver confortavelmente
até o negócio ser vendido. A equipa fez um trabalho louvável com o catálogo. Não encontrei erros óbvios na atribuição das obras. Presumo que isso se tenha devido
à contribuição de Mr. Nightingale.
A expressão de Emma alterou-se visivelmente, ficando mais suave e triste. O mesmo aconteceu com a sua voz.
– Foi a contribuição do Obediah, não tanto a de Mr. Nightingale. O Obediah ajudava muitas vezes o meu pai com o catálogo e muito, muito mais. Tem um excelente olho
para a arte. Embora, na verdade, a maior parte do catálogo tenha sido concluída antes da morte do meu pai. Este leilão estava pendente, quase totalmente preparado
e pronto para acontecer.
Emma fitou-o diretamente. Tão diretamente, que pareceu tocar-lhe na mente. Por um momento, que pareceu durar mais tempo do que o relógio assinalava, os seus pensamentos
dispersaram sob aquele olhar.
Southwaite começou a reparar em pormenores que a sua perceção absorvera anteriormente apenas de um modo fugaz. Na maneira como a luz proveniente da janela fazia
a pele dela parecer porcelana mate, e quão perfeita essa pele realmente era. Como existiam diversas camadas na tonalidade dos seus olhos, tantas que parecia, eventualmente,
ser possível ver-lhe a alma. Como aquele vestido preto de linhas tão simples conseguia, com a sua cintura alta e a fita larga sob os seios, sugerir formas que eram
extremamente femininas e...
– Pensei que não fazia qualquer sentido devolver todos aqueles artigos consignados, quando era apenas uma questão de abrir as portas e deixar que o Obediah fizesse
o que ele faz tão bem – argumentou Emma.
– Obviamente – Southwaite ouviu-se a balbuciar. – É compreensível.
– Sinto-me tão aliviada ao ouvi-lo dizer isso, Lord Southwaite. Quando aqui entrou parecia zangado.
Receava que estivesse muito descontente com algo.
– Não, não muito. Não estava zangado, de todo. Não verdadeiramente.
– Oh, apraz-me tanto sabê-lo.
Darius fez um certo esforço para regressar à normalidade. Quando os seus pensamentos acalmaram, despediu-se de Miss Fairbourne.
– Vou para fora da cidade – disse ele. – Quando voltar, encontrar-me-ei consigo, para discutirmos... o outro assunto.
O conde ainda sentia alguma dificuldade em recordar que outro assunto era esse, exatamente.
– Com certeza, senhor conde.
Southwaite regressou ao salão de exposições. Ambury juntou-se a ele e caminharam lado a lado.
– Estamos finalmente prontos para partir? – perguntou Ambury. – Temos, pelo menos, uma hora de atraso em relação ao combinado com Kendale. E sabe como ele pode ser.
– Sim, vamos a caminho.
Com os diabos, sim.
– Conseguiu chegar a um entendimento com a senhora, como disse ser necessário?
Darius lembrava-se vagamente de vociferar algo desse género, antes de invadir o armazém. A sua mente, já totalmente sob o seu controlo de novo, tentava organizar
o que realmente acontecera após esse instante.
– Claro que consegui, Ambury. Se uma pessoa for firme, consegue sempre chegar a um entendimento, especialmente com as mulheres.
Porém, enquanto montava o seu cavalo, Darius admitiu a verdade a si mesmo. De algum modo, Miss Fairbourne virara o feitiço contra o feiticeiro. Ele tinha entrado
a rugir como um leão e saíra a balir como um cordeiro.
Detestava admiti-lo, mas aquela mulher tinha levado a melhor sobre ele.
CAPÍTULO 3
– Não estaremos a mentir, Obediah, mas tão-somente a permitir que as pessoas assumam o que, de qualquer forma, teriam propensão para assumirem. Não o consigo fazer
sem a sua colaboração.
Possui uma licença de leiloeiro. As autoridades jamais me concederão uma.
Obediah só parecia firme e competente quando se encontrava na tribuna. Assim que o martelo abandonava a sua mão, transformava-se num pequeno homem pálido, com modos
humildes e dois grandes olhos, que o faziam parecer perpetuamente abismado. Naquele momento, esses olhos também comunicavam desconforto em relação à pequena fraude
que Emma acabara de lhe explicar.
O silêncio prolongou-se. Enquanto Obediah tentava ultrapassar o choque perante aquele pedido invulgar, Emma ergueu uma pequena pintura a óleo emoldurada, que estivera
encostada contra a parede do armazém.
– O proprietário afirma que este quadro é um estudo da autoria de Angelica Kauffman – comentou, inclinando a obra, de modo a voltar a superfície para a luz. – Estou
disposta a aceitar essa atribuição, tal como o meu pai estava. A qualidade é suficientemente boa e o estilo condiz com o dela. Concorda com a nossa opinião?
– Não possuo o olho necessário para concordar ou não, Miss Fairbourne. Essa é a razão pela qual a sua ideia não irá funcionar. Eu não seria capaz de distinguir entre
um Ticiano e um Rembrandt, mesmo que me apontassem uma arma de fogo à têmpora, quanto mais reconhecer um quadro da autoria dessa mulher.
– Mas eu sou capaz. Quanto a estes quadros, que já estavam armazenados, o meu pai tratou de toda a documentação, por isso não nos trarão quaisquer problemas.
Expressão de alarme. Perplexidade total.
– Tenciona colocar estes quadros à venda, num novo leilão? Presumi que tinha retirado as melhores pinturas apenas para que as mais fracas não influenciassem negativamente
o seu valor. Preparava-me para as devolver aos proprietários.
– Guardei-as porque tenciono construir um leilão magnífico em torno delas. Se tivermos de fechar as portas, quero fazê-lo de forma brilhante, não com obras de terceira
categoria, como as do leilão de ontem.
Com Obediah seguindo os seus passos, Emma saiu para o salão de exposições. As paredes estavam agora vazias. Os quadros vendidos iam a caminho dos seus novos proprietários.
– Será muito estranho. Todos pensaram que o leilão de ontem seria o último. Agora, haverá outro último leilão – murmurou Obediah.
– Não será outro leilão. Na verdade, será a segunda parte do leilão de ontem, pois muitas das obras que nele incluiremos foram recebidas aproximadamente na mesma
altura das que vendemos ontem.
– Portanto, será a última parte do último leilão?
Obediah não era um homem complicado, tendo ficado extremamente intrigado com a noção confusa de um «último leilão» poder não ser assim tão derradeiro.
Na realidade, se Emma conseguisse executar o seu plano com sucesso, poderia não haver um «último leilão», de todo, durante os próximos anos. Havia decidido que a
Fairbourne’s sobreviveria para, um dia, ser do irmão, e também pela memória do pai. Apercebendo-se da confusão de Obediah, decidiu não o sobrecarregar com tais pormenores,
naquele momento.
– Miss Fairbourne, sei como dirigir um leilão, seja de quadros, ou de porcos, mas é tudo quanto sei fazer. Era o seu pai quem obtinha os artigos consignados e procedia
à sua autenticação. Ele também geria as questões de ordem financeira e os registos. Não consigo assumir o lugar dele nessas tarefas, como me está a pedir.
– Mas consigo eu, Obediah. Auxiliei o meu pai mais do que pensa. Aprendi, trabalhando lado a lado com ele. Fui sua aprendiza, tal como o Robert.
Emma experimentou um momento de pânico, pois, pela primeira vez, Obediah estava a ser teimoso.
– Eu consigo levar o negócio avante, mas só se o Obediah assumir o papel de líder da empresa perante o resto do mundo. Proponho apenas um pequeno estratagema, pois
ninguém irá confiar na gestão de uma mulher. – A sua voz adquiriu um tom de súplica. – Tenho a certeza de que o meu pai desejaria que a Fairbourne’s continuasse
a funcionar, pelo menos durante mais algum tempo.
Apontou para o teto, para as paredes e para tudo o que fora construído pelo seu pai. Seria horrível se tudo aquilo acabasse num piscar de olhos. A simples noção
dessa possibilidade deprimia-a profundamente. Temia, acima de tudo, que o seu irmão Robert regressasse a casa, para descobrir tão-somente que a parte mais importante
do seu legado desaparecera. Também não podia suportar a ideia de perder o negócio cuja criação havia sido o grande feito do seu pai.
Com a compra daquele imóvel, três anos antes, o pai anunciara o sucesso da Fairbourne’s. A localização do edifício, muito próximo da Piccadilly Street, facilitava
a frequência, por parte da alta sociedade, das pré-apresentações grandiosas e dos leilões. O grandioso salão de exposições exibia um esplendor digno das suas proporções
e decoração, possuindo janelas altas e amplas, voltadas para norte.
A mudança para aquele local levara à obtenção de obras melhores, licitações mais altas e um prestígio considerável.
Emma recordava-se da emoção que partilhara com o irmão, ao assistirem à remoção do segundo andar do edifício, para que o teto pudesse atingir a altura pretendida.
Robert trazia-a de carruagem, quase todas as noites, para acompanharem o progresso da obra. Nessas viagens, ele deliciava-a com os seus projetos para a Fairbourne’s.
O pai, por vezes, ainda realizava pequenos leilões, como o que tivera lugar na véspera, ou aqueles em que leiloavam bibliotecas, ou objetos de baixo valor. Os planos
de Robert eram mais ambiciosos. Queria que a Fairbourne’s fizesse concorrência à Christie’s, em todos os aspetos.
Num curto período de tempo, conseguiram que o negócio evoluísse consideravelmente. O primeiro ano instalados naquele local, antes do desaparecimento de Robert, fora
o melhor ano de que se recordava, cheio de otimismo, boas notícias e um rol de consignações impressionantes.
Na sua mente, conseguia ver o pai e o irmão naquela grande divisão, tão claramente como se realmente estivessem presentes. De repente, apercebeu-se de que essa devia
ter sido a razão pela qual o pai vendera parte da empresa a Southwaite. O dinheiro fora usado para construir aquelas instalações. Não conseguira ver a ligação até
àquele momento.
Emma sentira-se irritada com o pai, desde que descobrira a existência da sociedade, ao falar com o solicitador. Agora que as memórias daquele ano glorioso lhe enchiam
o coração de emoções doces e dolorosas, compreendia melhor.
Decidiu enfrentar Obediah.
– Que me diz, velho amigo? Ou avançamos juntos, ou a Fairbourne’s morre, com o derradeiro lamento de ontem.
Os olhos humedecidos de Obediah sugeriam que também ele andara a deambular pelo passado.
– Parece-me que, pelo menos, poderíamos tentar, se estiver determinada – disse. – Foi o seu pai quem pagou a minha licença, não foi? Penso que sou a melhor pessoa
para dirigir a última parte do último leilão. – Sorriu suavemente. – Farei o meu melhor para aparentar ser um homem mais conhecedor do que sou. Mas serei certamente
descoberto, se alguém me quiser desmascarar.
– Ninguém tentará fazê-lo, Obediah. Por que razão se dariam a esse trabalho?
Ele não pareceu convencido, porém, não argumentou mais.
– Presumo então que deverei desembrulhar aquelas pratas que pôs de lado, para procedermos ao inventário.
Afastou-se, caminhando na direção do armazém.
Emma preparou-se para regressar a casa. Estava aliviada por Obediah não se ir embora e ter aceitado o novo papel que idealizara para ele. Ninguém iria questionar
as suas capacidades. Afinal de contas, ele dirigira os leilões. Na verdade, ninguém sabia como a Fairbourne’s funcionava, nem quem possuía os conhecimentos em determinada
área.
Bem, de facto, havia uma pessoa que porventura saberia, admitiu com pesar. Southwaite poderia estar ciente de quem sabia o quê, entre os funcionários da empresa.
Também possuía, ele próprio, conhecimentos suficientes para detetar um charlatão a fazer-se passar por especialista.
Teria de evitar que ele visitasse a Fairbourne’s novamente, se tal fosse possível. Com alguma sorte, permaneceria suficientemente ocupado, com o que quer que fosse
que fazia no Kent, para se preocupar em demasia com os negócios da leiloeira.
– Ele pediu-me em casamento – disse Emma, nessa mesma tarde, concluindo a descrição do encontro desagradável que tivera com Mr. Nightingale, após o leilão.
Os olhos azuis de Cassandra arregalaram-se. As pestanas muito escuras que os delineavam conferiam um toque ainda mais dramático à sua surpresa. O mesmo acontecia
com o ligeiro afastamento dos seus voluptuosos lábios vermelhos.
Emma havia visto o efeito que as expressões de espanto de Cassandra tinham sobre os homens.
Perguntava a si mesma se eles reagiriam assim por ela parecer uma rapariga inocente perplexa, quando, na verdade, não o era há já alguns anos.
– Ele professou amor?
Cassandra aproximou-se, com um interesse renovado na história.
– Tentou. Imagine uma voz monótona como o zumbido de uma mosca, dizendo as palavras previsíveis, com o entusiasmo habitualmente reservado para aulas que foram memorizadas.
Parei-o e insisti que não fingíssemos ter mais sentimentos do que qualquer um de nós alguma vez tivera.
Emma ergueu um dos colares que estavam dispostos em panos de veludo, na mesa da sala de jantar, examinando-o, enquanto terminava a história.
– Tudo o que restou depois disso foi a oferta mais melancólica e pragmática que se possa imaginar.
Para resumir, ameaçou abandonar o seu posto de trabalho na Fairbourne’s, se eu não me casasse com ele.
A compaixão suavizou o olhar de Cassandra.
– Mr. Nightingale é muito belo. Possui uma boa figura e lida facilmente com a alta sociedade.
Provavelmente, pensou que a sua proposta seria bem-vinda.
– Bem-vinda? Está a subestimar a presunção dele. Assumiu que eu desfaleceria perante a sua excelente oferta e que me podia considerar uma solteirona sortuda, embora
nunca lhe tenha dado motivos para pensar que o favorecia, de todo.
– Fala como se nada disso tivesse qualquer importância. Porém, o seu rosto ficou corado – mencionou Cassandra. – Pondero que a oferta de Mr. Nightingale a tenha
irritado por motivos alheios às presunções dele.
Emma fez rodar, entre os seus dedos, as pequenas peças da delicada corrente.
– Ele também assumiu que eu reclamaria o património do meu pai – admitiu. – Pensava que iria casar-se com uma herdeira rica. Quando o informei de que estava enganado,
tentou convencer-me da morte do meu irmão, falando sobre o assunto de uma forma dura e cruel.
Cassandra cerrou os lábios, um contra o outro, fechando a boca como se estivesse a engolir palavras.
Como Cassandra não possuía uma boca pequena e encurvada, era impossível que o efeito passasse despercebido.
– Quer dizer alguma coisa? Não se contenha por minha causa – argumentou Emma.
– Nada tenho a proferir. Embora, se o fizesse, fosse num tom de ligeira reprimenda. Não é justo censurar um homem por pensar que alguém que se encontrava num navio,
dado como afundado, não sobreviveu. Há uma lógica inegável por detrás de tal ponto de vista.
– Expliquei a Mr. Nightingale, tal como lhe expliquei tantas vezes a si, que, neste caso, a pessoa em questão sobreviveu.
– Acalme-se, Emma. Por favor, continue com o relato do desfecho da proposta de Mr. Nightingale.
– Depois disso, tudo terminou com uma rapidez misericordiosa. Ele abandonou a leiloeira sem emprego e sem uma noiva rica, e eu fiquei sem um futuro marido e sem
um gerente para o salão de exposições. Esta última perda será intensamente sentida.
Cassandra não pareceu muito compreensiva.
– Emma, não poderia tê-lo convencido a ficar, pelo menos até ter realizado o próximo leilão? Não poderia, por exemplo, ter adiado a decisão sobre a proposta de casamento?
– Se não poderia tê-lo deixado pendurado, quer a Cassandra dizer.
– Quero dizer, se não poderia tê-lo deixado com alguma esperança, enquanto avaliava as suas próprias emoções.
– Eu já sabia quais eram as minhas emoções. Seria desonesto permitir que ele pensasse que poderia haver um casamento.
– Suspeito que Mr. Nightingale teria aceitado qualquer réstia de esperança. Até mesmo a possibilidade de conquistar o seu afeto, se não a sua mão, poderia tê-lo
induzido a ficar.
– Espero que não esteja a sugerir que eu deveria tê-lo seduzido.
Cassandra riu-se.
– Di-lo como se fosse um crime. Sei que acredita nos benefícios da franqueza, mas um pouco de sedução não faz qualquer mal. Devia experimentar. Sem dúvida que devia.
Far-lhe-ia bem. Na verdade, Mr. Nightingale tem a reputação de lisonjear das melhores maneiras, nos momentos certos, e um pouco dessa lisonja também poderia ter
tido efeitos positivos.
Emma ainda não dominava a arte de decifrar as insinuações subtis de Cassandra, interpretando-as, por vezes, de forma errada.
– Não se refere a lisonjas verbais, pois não?
– Desde que o amante acredite na admiração expressada, duvido que se preocupe relativamente ao modo como esta é comunicada.
Emma sentiu o seu rosto a aquecer. Cassandra referia-se agora a coisas sobre as quais Emma sabia pouco. Atingira uma idade em que, por vezes, se sentia irritada
com a sua falta de experiência.
– Não tenho qualquer interesse nas lisonjas daquele homem, sejam elas de que tipo forem. Quanto a admiração, ele deixou bem claro que não a possuía. Por favor, poupe-me
à humilhação de descrever os pormenores.
Luzes travessas brilharam nos olhos de Cassandra.
– Então, temos de encontrar outro homem, um que saiba evitar os insultos, quando estiver a cortejá-la.
– Não fará tal coisa, Cassandra. Estarei demasiado ocupada para esse tipo de diversões tolas. Já discutimos suficientemente este assunto. Falemos agora sobre as
suas joias excecionais.
– Se insiste. No entanto, anseio pelo dia em que aprenderá que, relativamente a esse assunto, nada é verdadeiramente suficiente.
– Cassandra!
– Oh, céus. Temo que a tenha chocado. Sim, avancemos para uma conversa aborrecida sobre a minha desgraça financeira e a minha única esperança de corrigir essa catástrofe.
Cassandra olhou para a coleção que trouxera com ela. As joias cobriam a mesa como uma cama de flores brilhantes, com tonalidades profundas.
– Irei chorar quando forem vendidas, mas não tenho escolha, a não ser que queira voltar para casa do meu irmão e levar uma vida lúgubre.
– Sei que algumas destas joias lhe foram oferecidas pela sua tia. Ela não ficará zangada quando descobrir que as vendeu?
– Contei-lhe os meus planos e ela aconselhou-me sobre quais seriam os melhores artigos para consignar. Espero que ainda consiga obter as duas mil libras previstas
pelo seu pai.
– Como permitiu que as guardasse para o próximo leilão, penso que sim. Teriam sido desperdiçadas no leilão de ontem, mas serão uma das peças em destaque no próximo,
devendo render, no mínimo, esse montante.
Cassandra não pareceu convencida.
– Então, tem a certeza absoluta de que irá realizar outro leilão? Mesmo sem Mr. Nightingale?
– Absoluta. O Obediah aceitou permanecer na Fairbourne’s. Começarei a preparar, para exibição, os artigos que possuo e também solicitarei mais consignações. Farei
tudo o que puder para não a desiludir.
Emma falava com honestidade, mas aquela situação servira apenas para lhe lembrar o muito que havia para fazer nas semanas seguintes. Precisava de fortalecer o leilão
com mais consignações e de encontrar algumas raridades que despertassem o interesse dos melhores clientes. Também necessitava que tudo ficasse pronto antes do final
da temporada, para que a alta sociedade ainda estivesse em Londres, quando o leilão se realizasse.
– Quer levar as joias consigo, para casa, e guardá-las até que o leilão esteja mais próximo? – perguntou Emma, enquanto enrolava os panos que protegiam cada artigo.
– Já foi suficientemente difícil trazê-las hoje. Poderei mudar de ideias, se tiver de o fazer novamente.
– Então, venha comigo. Mostrar-lhe-ei como ficarão seguras.
Transportando os pequenos rolos numa caixa, Emma guiou a visitante até aos aposentos do seu pai, localizados no piso superior. Os seus passos abrandaram, à medida
que se aproximava da porta. Não gostava de entrar naquelas divisões, desde que o pai morrera. Sentia a dor a trespassá-la, em cada breve visita, como uma espada
recentemente afiada.
Assim que transpôs a porta, fez uma pausa para se recompor.
Raramente vira o pai no seu quarto, mas visitara-o muitas vezes naquela pequena antecâmara. A parede, repleta de estantes de livros, transformava aquela divisão
numa minúscula biblioteca particular.
O seu pai usara frequentemente o chão para espalhar os grandes fólios, contendo reproduções de pinturas.
Muitas vezes surpreendera-o de gatas, examinando vários livros abertos dessa maneira. Folheava as páginas para trás e para a frente, enquanto procurava algum pedacinho
de informação sobre um artista cujas obras haviam sido consignadas. Mais frequentemente, ocupava a pequena mesa de escrever, na parede oposta à das estantes, onde
redigia, com a sua pena, correspondência destinada aos colecionadores.
Naquela pequena divisão, o pai contara-lhe que o navio de Robert tinha afundado, prometendo-lhe que, apesar da tragédia, Robert regressaria um dia.
Os braços de Cassandra envolveram-na, de um modo suave e delicado, trazendo-lhe à memória o abraço do pai nesse dia triste. Emma aceitou o gesto, mas este tornou-a
mais vulnerável às recordações.
Durante alguns instantes, a dor tocou-a profundamente. Em seguida, recompôs-se e transportou as joias até ao interior do quarto.
O quarto encontrava-se revestido com painéis de madeira, num estilo antiquado e havia uma boa razão para que tivesse permanecido inalterado, perante as novas tendências
decorativas. Dirigindo-se a um dos painéis, Emma encontrou o fecho escondido atrás de um friso, afastando a madeira para revelar um cofre inserido na parede.
A chave estava pendurada numa corrente longa, em torno do seu pescoço. Tirou-a de dentro do corpete, abriu o cofre e depositou as joias no seu interior.
– Como vê, agora estão escondidas e fechadas a sete chaves.
Voltou-se para Cassandra, apanhando a amiga a estudá-la com um interesse especulativo.
– Exibe tanta força e inspira tanta confiança, que é fácil ignorar a difícil tarefa a que se propôs, Emma.
Ainda bem que o Obediah aceitou dirigir os próximos leilões, porque você nunca o poderia fazer. No entanto, embora Mr. Nightingale não fosse essencial, o falecimento
do seu pai tornou-o mais necessário do que anteriormente.
– Penso que exagera a importância dele, tal como ele a exagerou.
– Emma, algumas senhoras iam ver os artigos consignados, apenas com o fito de terem uma desculpa para o verem e serem lisonjeadas, e divertidas, por um homem belo
e razoavelmente educado.
– Espero que, desta vez, esteja a referir-se a lisonja no sentido mais habitual da palavra.
– Digamos apenas que não poderá assumir o lugar dele, da mesma forma que não poderia assumir o lugar do Obediah, na tribuna. Apesar da proposta imprópria, deveria
tê-lo convencido a permanecer no posto de trabalho.
– Não podia permitir que ficasse.
– Então, terá de contratar outro jovem belo e razoavelmente educado, para assumir o lugar dele – insistiu Cassandra. – Vamos para o andar inferior compor um anúncio
destinado à contratação do novo gerente.
Meia hora mais tarde, Emma abandonou a mesa de escrever da biblioteca, levando a primeira versão do anúncio até Cassandra.
– Não quero anunciar publicamente que a Fairbourne’s procura um funcionário. Como tal, apenas posso descrever os requisitos que pretendemos encontrar. Não deve ser
mencionado o nome da empresa, nem mesmo a área de negócio. Assim sendo, isto deve ser suficiente, não lhe parece?
Cassandra leu-o.
– É perfeito, se estiver à procura de um vigário.
Emma arrebatou-o da mão de Cassandra.
– Penso que fiz um bom trabalho.
– Não está à procura de uma pessoa qualquer, para uma posição qualquer, Emma. Tem de tornar o anúncio mais apelativo, para que o tipo de homem que poderia fazer
algo melhor continue a considerá-lo interessante.
Ela ergueu-se, tomou novamente posse do anúncio e dirigiu-se para a mesa de escrever. Sentou-se, atirou os caracóis compridos e negros para trás dos ombros e mergulhou
a caneta na tinta.
– Em primeiro lugar, temos de remover a palavra diligente. Soa a trabalho duro.
– Pensei tão-somente que...
– Eu sei o que pensou. Um dia de trabalho árduo, em troca de um salário.
Cassandra riscou a palavra ofensiva.
– Sóbrio também tem de desaparecer. Tal como modesto. Nenhum homem que valha a pena conhecer se descreve a si próprio como modesto. – Ela estalou a língua. – Ainda
bem que estou aqui para a aconselhar, Emma. Se a deixasse tratar do assunto sozinha, acabaria com um homem zeloso e muito aborrecido, o que não iria resultar, de
todo.
Emma pensou que resultaria muito bem.
– Estou indecisa sobre a referência aos conhecimentos no campo da arte. Deveriam ser incluídos, mas queria evitar a presença de elementos que possam sugerir aos
leitores que o anúncio foi publicado pela Fairbourne’s.
– Porquê?
Porque não queria que um certo conde descobrisse os seus planos, era essa a razão. Não explicou esse facto a Cassandra, pois até mesmo ela desconhecia a sociedade
com Southwaite. Tanto o conde como o seu pai tinham mantido a ligação secreta, provavelmente porque, como ela lembrara incisivamente a Southwaite, no dia anterior,
tal ligação associava-o ao comércio.
Emma ainda não sabia como iria lidar com o conde, se este descobrisse as intenções dela, mas, possivelmente, o desejo de manter a discrição ajudá-la-ia. Era melhor
não destruir o que poderia ser uma vantagem.
– Se descobrirem que o anúncio é da Fairbourne’s virão bater-nos à porta pessoas de todo o género, congestionando as instalações durante semanas – respondeu. – Também
não quero que a concorrência tenha a possibilidade de usar, contra nós, a atual lacuna na nossa gerência.
– Podemos retirar a referência à arte. Só conseguirá perceber se um candidato sabe, verdadeiramente, alguma coisa sobre o assunto, quando conversar com ele.
Cassandra riscou mais uma linha comprida, usando a caneta.
– Agora, temos de deixar bem claro que este não é um emprego comum. Os jovens que sejam adequados para o balcão de uma retrosaria escusam de se candidatar.
Cassandra bateu a pena contra o queixo, começando a rabiscar no papel.
Emma espreitou por cima do ombro da amiga.
– Emprego aprazível?
– Este homem estará presente nas festas de pré-apresentação e lidará com a alta sociedade. Beberá brandy com os cavalheiros e tornar-se-á um amigo íntimo das senhoras.
Se ele...
– Não existe qualquer prova de que haverá, ou alguma vez houve, intimidade – disse Emma, irritada.
– Ele tornar-se-á um confidente das senhoras, se preferir essa palavra. O que quero dizer é que tem de deixar bem claro que este emprego possui os seus prazeres,
se quiser atrair os melhores candidatos disponíveis.
– Começo a perguntar a mim própria porque pagaria eu um salário a tal pessoa. Ele é que deveria pagar-me, se tivermos em conta as oportunidades que o esperam.
Cassandra riu-se e, em seguida, continuou a escrever.
– Já está – disse, pousando a caneta. – Que pensa da minha tentativa?
Emma leu a folha, que passara a conter várias rasuras e adições. Não podia negar que os requisitos resultantes descreviam muito bem um substituto para Mr. Nightingale,
sobretudo porque descreviam o próprio Mr. Nightingale.
– Vou dar-lhe o nome de um solicitador, que atuará como intermediário. Ele irá garantir que os candidatos obviamente inapropriados não aparecerão à sua porta – conluiou
Cassandra.
– Penso que deverá estar presente, quando eu falar com alguém que ele me envie. Talvez Mr. Riggles também deva estar presente.
– Não creio que ele contribua com algo de positivo. Não tencionamos mentir sobre o emprego, Emma, mas temo que Mr. Riggles não transmita o espírito que pretendemos.
– Está a querer dizer que ele poderá não concordar, quando eu descrever o futuro da Fairbourne’s com um otimismo ilimitado?
– Ele também poderá objetar, quando insinuarmos que o gerente terá uma vida de prestígio e riqueza crescentes pela frente.
Emma imaginou Obediah nas entrevistas. Cassandra estava certa. Ele não possuía qualquer talento para a dissimulação e não contribuiria positivamente.
– Tratarei da impressão do anúncio no início da próxima semana. Podemos encontrar-nos neste local, daqui a uma semana, para descobrirmos quem se revê a si mesmo
na descrição?
– Penso que um número razoável de indivíduos o farão – referiu Cassandra. – Espero apenas que um deles se adeque às suas necessidades e também possua o estilo necessário.
– Se adeque às necessidades da Fairbourne’s, quer dizer.
Cassandra enrolou com o dedo um dos seus caracóis longos e negros, distraidamente.
– É claro que quis dizer isso. Sem dúvida alguma.
CAPÍTULO 4
Darius desceu do seu cavalo diante da casa de Compton Street, perto de Soho Square, e aproximou-se da porta. A missão daquele dia não lhe agradava particularmente.
No entanto, não devia adiá-la por mais tempo. Estava na hora de explicar a Emma Fairbourne os motivos pelos quais a leiloeira do pai tinha de ser vendida.
Nem todos os motivos, obviamente. Não via qualquer vantagem em mencionar as suas suspeitas sobre Maurice Fairbourne, suspeitas essas que se haviam cristalizado durante
a sua visita ao litoral do Kent, na semana anterior. Nessa estadia, visitara o local em que ocorrera a queda de Maurice durante o passeio noturno. Após ter examinado
o local e o panorama circundante, concluíra que era apenas uma questão de tempo até que os rumores sobre o acidente, e a razão pela qual Fairbourne se encontrava
naquele caminho, chegassem a Londres.
Não existia qualquer prova da ocorrência de algo sinistro. Se a leiloeira fosse vendida, ou fechada, muito provavelmente nunca existiria. A reputação de Maurice
Fairbourne, bem como a do seu negócio, permaneceria, provavelmente, imaculada. O mesmo aconteceria a quem lhes estivesse associado. Como era o caso do conde de Southwaite.
As recordações do seu último encontro com Miss Fairbourne fizeram com que parasse, por breves instantes, quando se encontrava já próximo da porta. Desta vez, certificar-se-ia
de que ela não o distraía.
No entanto, duvidava que a contundência servisse os seus propósitos. Atuar de modo firme e coerente, mas delicado, poderia funcionar melhor, tal como ao lidar com
um cavalo vivaz. Mesmo assim, esperava resistência da parte dela. Muita resistência. Aproximava-se uma batalha.
Poder-se-ia sentir mais bem preparado, se não tivesse tido certos sonhos ridículos sobre o último encontro de ambos, nos quais a reunião terminava de uma maneira
muito distinta da que ocorrera na realidade, uma semana antes, naquele armazém. Em consequência, algumas imagens muito sugestivas de Miss Fairbourne nua, rendendo-se
totalmente a ele, haviam permanecido na sua mente e, mesmo naquele momento, teimavam em intrometer-se.
O facto de ser atormentado por fantasias eróticas noturnas poderia ser atribuído à sua recente abstinência. Esta última, por sua vez, devera-se ao facto de se ter
apercebido de que as manobras astutas utilizadas pela sua última amante, com vista à obtenção de presentes caros, tinham deixado de ser adoráveis.
Contudo, não havia qualquer explicação para o facto de Miss Fairbourne ser a protagonista daquelas novas fantasias.
Ela não era o tipo de mulher que um homem pudesse assumir como amante, mesmo que o desejasse fazer. Embora já não fosse uma rapariga, também não era uma viúva, nem
o objeto de um escândalo, o que a colocava fora de jogo. Sendo a filha de um comerciante, provavelmente possuiria ideias muito conservadoras sobre a atividade sexual
e esperaria que esta estivesse exclusivamente associada ao matrimónio.
Emma também não se encaixava na sua ideia de uma amante, relativamente a outros aspetos. Não era doce e obsequiosa. Tão-pouco não existia qualquer prova de que possuísse
a sofisticação necessária para tais relações. Aquele tipo de caso amoroso exigia um certo nível de superficialidade emocional, para que fosse divertido, aprazível
e intenso, mas também pouco confuso e, em última análise, finito.
Não, Miss Fairbourne obviamente não poderia ser sua amante, por vários motivos.
Reconheceu, com algum pesar, que havia analisado a maioria desses motivos, de demasiados ângulos e perspetivas, e para todos os fins errados. Felizmente, ficaria
livre dessas racionalizações inúteis dentro de pouco tempo.
Enquanto emergia das suas reflexões acerca de Miss Fairbourne, um jovem, cuja idade não ultrapassaria os vinte e dois anos, desceu a rua a trote, desmontou e prendeu
o seu cavalo junto ao de Darius. Em seguida, subiu as escadas de pedra, escovando, com as mãos, a sobrecasaca castanha bordada. No cimo das escadas parou, com um
dos pés no degrau superior, e dobrou-se para esfregar uma mancha existente na bota de cano alto.
Inspecionou Darius de uma forma rápida mas incisiva e, em seguida, lançou-lhe um sorriso arrogante.
Circundando o conde, deu três pancadas secas na porta, usando o batedor.
Descontente com a intrusão na sua visita, e perguntando a si mesmo quem diabo seria aquele sujeito, Darius esperou, com o rosto do outro visitante pairando na proximidade
do seu ombro.
Não foi Maitland, o mordomo dos Fairbourne, quem abriu a porta. Obediah Riggles, o leiloeiro, assumira esse dever.
Obediah parecia estar tão surpreso por ver Darius, como Darius estava surpreendido por vê-lo.
– O Maitland foi embora? – perguntou Darius, em voz baixa, após Obediah ter recebido o seu chapéu e o seu cartão.
O jovem ocupou-se a compor o cabelo em torno do rosto, certificando-se de que as madeixas artísticas do seu Brutus1 caíam da maneira pretendida.
– Não, senhor conde. Miss Fairbourne pediu que me ocupasse da porta, somente durante o dia de hoje.
Tenho a incumbência de afastar os indivíduos inoportunos.
Presumivelmente existiam aventureiros, e até mesmo ladrões, que estavam cientes de que Miss Fairbourne era agora uma mulher sozinha. Indivíduos inoportunos poderiam
engendrar pretextos para se aproveitarem dela. Era improvável que ela conseguisse identificar quem conhecera o seu pai, querendo oferecer condolências, e quem não
o conhecera.
– Recebi instruções para conduzir os recém-chegados até à sala de visitas, senhor conde – disse Obediah, inclinando a cabeça, para falar em privado com o conde.
– Contudo, penso que poderá ser mais adequado levá- lo para a sala de estar. Direi a Miss Fairbourne que se encontra lá.
– Se ela está a receber as pessoas na sala de visitas, leve-me até lá, Riggles. Não pretendo receber qualquer tratamento especial devido ao meu estatuto. Insisto
que apresente o meu cartão exatamente como apresenta os restantes. Posso pedir uma conversa particular, após os demais visitantes saírem.
Obediah vacilou. O jovem pigarreou, com impaciência.
– A sala de visitas? – solicitou Darius.
Transportando a salva, contendo ambos os cartões, o leiloeiro conduziu os cavalheiros até ao piso superior. Em seguida, abriu as portas da sala de visitas e desviou-se
para o lado.
Darius viu-se confrontado com um cenário muito peculiar. Miss Fairbourne ainda não descera. No entanto, havia já um grande número de visitantes à sua espera. Espalhados
pela divisão, aguardava uma dezena de jovens cavalheiros.
Esse grupo de cavalheiros submeteu os recém-chegados a um exame crítico e, em seguida, voltaram à inatividade. Darius virou-se, a fim de perguntar a Obediah o significado
daquela coleção masculina, mas as portas já estavam fechadas e Obediah regressara ao seu posto.
Darius posicionou-se à frente da lareira e avaliou a sua companhia. Possuíam todos um estilo semelhante – eram jovens, elegantes e belos. Miss Fairbourne era agora
uma herdeira. Talvez aqueles homens fossem pretendentes, fazendo fila para a cortejarem.
Imaginou as súplicas fervorosas que seriam feitas, quando cada um deles defendesse a sua causa.
Considerando as experiências que tivera anteriormente com Miss Fairbourne, aqueles jovens iriam ficar, provavelmente, com as orelhas a arder. Estava um pouco triste
por saber que iria perder o espetáculo.
Caminhou até alcançar um divã e sentou-se ao lado de um pretendente louro e polido, que vestia um colete com riscas vermelhas e azuis, de preço considerável, mas
de gosto duvidoso. O sujeito sorriu amistosamente, mas, simultaneamente, examinou Darius.
– O senhor é um pouco velho, não é? – indagou o jovem.
– Sou uma verdadeira antiguidade – respondeu Darius, com secura.
Presumiu que os seus trinta e três anos poderiam parecer, possivelmente, uma idade avançada para um jovem imberbe, recém-saído da universidade. O mesmo sucedera
consigo, na sua juventude.
O seu novo companheiro considerou a resposta divertida, mas pareceu aperceber-se de que a questão não havia sido bem recebida.
– As minhas desculpas, caro senhor. Quis apenas dizer que considero que ela procura alguém mais jovem. Contudo, posso estar enganado e a sua maturidade revelar-se
uma desvantagem para todos nós. – Inclinou o corpo, a fim de conseguir conversar melhor. – John Laughton, ao seu dispor.
Darius acreditava que as regras de etiqueta existiam por bons motivos, mas orgulhava-se de não ser uma pessoa rigorosa. Deste modo, apresentou-se, por sua vez, ao
jovem.
– Southwaite.
Laughton franziu a testa, perplexo.
– Oh! Ohhhh.
Olhou em seu redor, abarcando a divisão.
– Não está aqui para... isto é, escusado será dizer que não é concorrência. – Laughton riu-se. – Confesso que, para mim, isso é um alívio.
Darius estava prestes a assegurar-lhe que não era, certamente, concorrência, quando se abriu uma porta, na extremidade da sala. Nela, surgiu uma mulher, vinda da
biblioteca adjacente.
Não era Miss Fairbourne, mas sim Lady Cassandra Vernham, a infame irmã do conde de Barrowmore.
Aquela aparição monopolizou, de imediato, a atenção de todos os homens presentes na divisão.
Uma desordem de caracóis negros caía em redor do seu rosto e do seu pescoço, partindo de uma touca branca rendada, colocada no cimo da cabeça. Um tecido diáfano,
de um verde muito pálido, fluía à volta do seu corpo, a partir do ponto em que uma fita branca o fixava, mesmo sob os admiráveis seios. A boca, grande e vermelha,
com os lábios contraídos, parecia surpreendentemente erótica, à medida que Cassandra abria uma agenda e olhava para uma das suas páginas.
– Mr. Laughton.
Laughton ergueu-se, alisou o casaco e seguiu Cassandra para o interior da biblioteca. Após terem entrado na divisão adjacente, a porta fechou-se.
Laughton deixara para trás um jornal. Darius reparou que a página cimeira se encontrava marcada.
Pegou nele e leu o anúncio que merecera a atenção de John Laughton.
Procura-se: Para um emprego muito especial e extremamente aprazível, um jovem bem-parecido, com um temperamento agradável, uma perspicácia notável, excelentes maneiras,
educação avançada e uma discrição inquestionável. Tem de possuir uma aparência elegante, uma constituição forte, apetência para o entretenimento de companhia feminina
e um encanto indiscutível. Informe-se no escritório de Mr. Weatherby, na Green Street.
Era um anúncio estranho e um pouco desconcertante. Alguém procurava, claramente, algo distinto de um criado, ou de um secretário.
Darius observou aqueles jovens, extremamente amáveis e elegantes, que aguardavam na sala de visitas.
Presumivelmente, todos tinham sido enviados para aquele local, aquando da sua visita a Mr. Weatherby.
Miss Fairbourne era, obviamente, bem mais complexa do que ele presumira. Contudo, o seu discernimento deixava muito a desejar. O que passara pela cabeça daquela
mulher? Maurice devia estar a revirar-se no túmulo.
Saiu da sala de visitas, para tentar encontrar Riggles. Ao atravessar o patamar das escadas, um som fê
lo deter-se. Conseguia ouvir, claramente, duas mulheres a conversarem, ao virar da esquina do corredor.
– Até ao momento, ele é o melhor de todos, definitivamente. E é nossa obrigação garantir que passa em todas as provas de seleção, Emma.
– Podemos fazê-lo, desde que ele permaneça vestido.
– Só lhe pedi que retirasse os casacos, para que a sua constituição corporal ficasse visível. Muitas coisas podem ser disfarçadas por casacos. Ombros aparentemente
fortes podem tornar-se bastante estreitos, quando um homem fica em mangas de camisa e nada mais.
– Ele usará sempre casacos, logo, esse argumento não se aplica ao caso.
Seguiu-se um período de silêncio, suficientemente longo para Darius assumir que as senhoras haviam regressado à biblioteca.
– Emma, temo que não compreenda os aspetos práticos desta situação – argumentou Cassandra Vernham. – Pensa, verdadeiramente, que os homens não se separam dos seus
casacos, enquanto exercem o seu charme e a lisonja na medida esperada?
Darius girou sobre os calcanhares e voltou para a sala de visitas. Parado na ombreira da porta, olhou para os jovens que aguardavam a sua vez de impressionar Miss
Fairbourne, com todo o encanto que possuíam.
– Penso que deve contratar Mr. Laughton. Diremos aos outros para irem embora – aconselhou Cassandra. – Ele foi o melhor, até agora.
– Foi o melhor, não foi? Obviamente, isso não é o mesmo que dizer que foi excelente. Não fazia ideia de que viviam em Londres tantos jovens pretensiosos, egocêntricos
e um pouco estúpidos. Nunca imaginei que o meu anúncio seria tão bem-sucedido, no que diz respeito à quantidade de candidatos, mas tão dececionante em matéria de
qualidade.
Até aquele momento, a maioria dos candidatos que Emma entrevistara possuía uma aparência adequada ao posto. Porém, quando abriam a boca, revelavam não ter o que
era necessário. Aparentemente, eram incapazes de conversar sobre qualquer assunto, exceto acerca deles próprios, ainda que ela e Cassandra o solicitassem.
Também haviam revelado uma tendência desconcertante para o namorico. Presumiu, então, que os homens, ao serem confrontados com empregadores do sexo feminino, ponderavam
ser benéfico um pouco de sedução. Pelo menos, Mr. Laughton tinha sido mais subtil nesse aspeto e também demonstrara um ou outro conhecimento sobre arte. Os restantes
não estavam familiarizados com a área, nem mesmo com os mestres antigos mais famosos.
– Gostaria de poder culpar a juventude, ou a classe social, Emma. Lamento informá-la de que a maioria dos homens da alta sociedade não é mais impressionante. Talvez
até seja menos, uma vez que muitos filhos mais novos não possuem qualquer propósito. E as pessoas ainda me perguntam por que razão não tenho pressa em casar-me.
Cassandra cruzou os braços.
– Então, Mr. Laughton servirá para a função?
Emma ponderou a sua decisão.
– Dou-lhe algum crédito. Admito que até tirou os casacos com um certo aprumo e escondeu adequadamente o seu embaraço.
– Isso sucedeu porque não estava envergonhado. Ele considerou a situação divertida.
Cassandra também reagira desse modo, fazendo com que sobrasse, na biblioteca, somente uma pessoa envergonhada com a situação. Ela própria.
Mr. Laughton nem sequer tinha considerado o pedido estranho. Talvez os potenciais empregadores exigissem, regularmente, que os candidatos tirassem a roupa, para
poderem avaliar o seu estado de saúde.
– Creio que devo entrevistar todos os que respondam ao anúncio, hoje ou amanhã. Se, após concluído esse processo, Mr. Laughton ainda for o melhor e o Obediah o considerar
aceitável, terá de bastar para a função.
– Muito bem – disse Cassandra. – Cinco minutos para cada um. Não mais, a não ser que um deles nos pareça, de imediato, potencialmente mais adequado para o cargo
do que Mr. Laughton.
Cassandra pegou na sua agenda, onde registara os nomes dos cartões de visita que Obediah empilhara continuamente numa mesa, situada na proximidade do acesso ao corredor
dos criados. Em seguida, abriu a porta da biblioteca.
Fechou-a, novamente, de imediato. O seu rosto ficou corado e parecia surpreendida.
– Foram todos embora – disse ela.
– Foram embora?
– Desapareceram. Quando trouxe Mr. Laughton para a biblioteca, estava pelo menos uma dezena de candidatos na sala e, agora, não há qualquer sinal deles.
– A sala de visitas está vazia?
– Um homem espera para ser recebido, mas não é um candidato ao posto.
– Como pode ter a certeza? O Obediah pode ter-se esquecido de nos trazer o cartão dele.
Cassandra marchou até à mesa, próxima da porta lateral, onde alguns cartões ainda aguardavam o registo na sua lista.
– O cartão dele está aqui. Pelo amor de Deus, Mr. Riggles devia ter-nos avisado, em vez de se limitar a misturar o cartão com os outros. Teria sido melhor recorrermos
ao Maitland, durante o dia de hoje. Ele nunca seria tão descuidado.
– Queria que o Obediah visse, pelo menos, estes jovens, para poder discutir a seleção final connosco.
Concordámos que não daria um contributo positivo se estivesse presente na entrevista. Colocá-lo na porta foi uma alternativa.
Emma estendeu a mão, para receber o cartão.
– De quem se trata?
Cassandra entregou-lhe o cartão. Emma leu o nome que nele constava.
– O conde de Southwaite? A visita mais incómoda e inconveniente que poderia bater à minha porta, sobretudo hoje.
– Não sabia que o conhecia.
– O meu pai conhecia-o. Ele tem revelado um interesse considerável pelo meu bem-estar.
– Parece um pouco... tempestuoso.
– Provavelmente porque o fiz esperar. Não devo adiar mais a nossa conversa, embora gostasse de o fazer.
Emma alisou o vestido preto e escovou algumas fibras que nele se haviam fixado.
– Vem comigo? Provavelmente, conhece-o melhor do que eu, já que mal o conheço.
– Se não se importar, sairei, tentando passar despercebida – respondeu Cassandra. – Southwaite e eu não nos damos bem. A minha presença não irá melhorar o humor
dele.
– Então ele é um santo, que a vê como uma pecadora? – gracejou Emma.
– Ele não é um santo, de todo. E também não creio que se preocupe com os meus pecados. No entanto, não lhe agrada a forma como a sociedade especula sobre mim. Sou
demasiado infame para o gosto dele e ele é demasiado arrogante para o meu gosto.
Deu um beijo a Emma, pegou na mala de mão e caminhou em direção à porta lateral.
– Regressarei amanhã de manhã, para podermos dar seguimento ao nosso grande projeto.
1 Corte de cabelo masculino, inspirado no classicismo greco-romano, que se tornou bastante popular no início do século XIX. O cabelo assumia um aspeto desordenado,
com bastante volume no cimo da cabeça, não havendo bigode, ou barba. (N. do T.)
CAPÍTULO 5
A sala de visitas reduzia a maioria dos homens a um estado de insignificância. Contudo, o conde de Southwaite tinha o privilégio de ser favorecido pelas proporções
dessa divisão. Era um homem alto, com ombros que não pareciam suscetíveis de estreitar significativamente, após retirar os casacos.
Dominava a sala de visitas, como se esta tivesse sido construída para se adaptar às medidas da sua constituição forte e esguia.
Parecia realmente tempestuoso, ponderou Emma, enquanto avançava em direção ao conde. Uma carranca desfigurava-lhe a testa, por cima dos olhos profundos, ao olhar
para um quadro da autoria de Hendrick ter Brugghen, pendurado na parede. Mantinha-se de pé, perto da lareira, com os braços cruzados, o queixo erguido e um perfil
cinzelado severo, parecendo muito altivo. Desde o seu cabelo escuro, com um corte curto e desgrenhado, à sua sobrecasaca azul impecável, calças castanho-claras e
botas de cano alto, Southwaite exalava o género de confiança própria que somente uma ascendência nobre podia conferir a um homem.
Ele não descruzou os braços de imediato, quando viu Emma a aproximar-se. Ela sentiu-se como uma rapariga travessa, chamada à atenção pela sua educadora irada, até
que, finalmente, os braços dele se descruzaram.
O conde fez uma vénia, ao mesmo tempo que a cumprimentava, mas os seus olhos escuros nunca abandonaram o rosto dela e a sua expressão parecia desaprovar algo. O
atraso? O cabelo de Emma, que se encontrava descoberto, apesar do luto? Talvez sofresse apenas de má digestão e aquela expressão não estivesse relacionada com ela,
de todo.
– É generoso da sua parte dignar-se a visitar-me – disse Emma.
Ela sentou-se numa cadeira e ele acomodou-se no divã que se encontrava próximo.
Emma reparou que um dos potenciais substitutos de Mr. Nightingale deixara o seu jornal sobre uma mesa, perto do braço de Lord Southwaite. O olhar do conde seguiu
o dela, até pousar no jornal dobrado.
Uma das sobrancelhas do aristocrata arqueou-se um pouco mais.
– Aparenta estar a lidar muito bem com a sua perda – respondeu ele. – Primeiro o leilão, e agora... uma tentativa de seguir em frente com a sua vida.
Se tinham, verdadeiramente, existido tempestades, ele banira-as, ou, pelo menos, banira a sua visibilidade. Falava calmamente, num tom tranquilo de barítono, tão
apaziguador como água morna.
– Torna-se mais fácil, a cada dia que passa, como é costume suceder neste género de situações.
– Em tais alturas, todos tentamos encontrar conforto, da maneira que nos é possível. E sendo uma mulher madura e familiarizada com o mundo, obviamente necessitará
de menos conselhos sobre como o fazer, do que uma rapariga jovem e inexperiente.
O conde sorriu. Tinha um sorriso bastante agradável, embora não fosse grande. Era apenas uma atraente e ligeira elevação dos cantos da boca. Emma considerou-o verdadeiramente
mais aprazível do que o de Mr. Nightingale. Talvez assim fosse porque os olhos de Lord Southwaite possuíam um certo calor e uma centelha de familiaridade quase íntima,
como se as suas conversas anteriores houvessem criado uma ligação de compreensão mútua.
Aquele sorriso animou-a, de uma forma extremamente agradável. Parecia eliminar todo o género de distâncias existentes entre ambos, as de classe social e de intuito,
e até mesmo o espaço físico. A alteração favorável na disposição do conde fez com que Emma se expressasse mais abertamente do que ponderara.
– Quando chegou, encontrou outros visitantes nesta divisão, senhor conde?
– Sim, encontrei. Uma verdadeira coleção.
– Permite-me questionar por que motivo está a sala vazia, de momento?
– Sugeri-lhes que fossem embora.
– Peço desculpa pelo facto de Mr. Riggles não me ter alertado relativamente à sua presença, para que o pudesse receber de imediato.
– Insisti que Mr. Riggles não me tratasse de maneira distinta, por isso não o culpe. Informei-o de que deveria apresentar o meu cartão exatamente como apresentara
os restantes. Obviamente, quando lhe transmiti tais palavras, não sabia que a sua sala de visitas estaria a extravasar de jovens cavalheiros.
Ergueu o jornal, que se encontrava em cima da mesa, e lançou-lhe uma boa olhadela.
– Não consegui descortinar quem eram, nem por que motivo aqui estavam, até ver este anúncio marcado.
Emma sentiu-se desanimada. Desejou que um dos seus visitantes não tivesse deixado aquele jornal para trás. O conde adivinhara que ela estava a tentar contratar alguém.
Emma tivera a esperança de conseguir avançar bastante nos preparativos do novo leilão, antes que Southwaite se apercebesse dos seus planos, mas a tentativa de contratar
funcionários expunha claramente as suas intenções.
– Presumo que não aprova as minhas ações – disse ela.
– Ainda não decidi o que penso sobre o assunto, exceto no que concerne a ponderar que existem formas melhores e mais discretas de lidar com este tipo de situações.
Ele parecia subtilmente divertido com o anúncio e, tendo em conta a última conversa que haviam tido, esse facto encorajava-a.
– Tento apenas ser pragmática – argumentou Emma, apontando para o jornal. – Sei que existem maneiras melhores de preencher um lugar deste género, mas nenhuma delas
é tão rápida, nem me permite ter tantas possibilidades de escolha. Desejo avançar rapidamente.
Southwaite pousou o braço na extremidade enrolada do divã e o queixo no punho, olhando então na direção de Emma.
– Pondero que seja compreensível. Como já disse, todos tentamos encontrar conforto, de uma forma muito própria, quando somos tocados pela dor.
– É muito amável da sua parte, demonstrar tal compreensão. Sinto realmente algum conforto, ao tratar deste assunto. Penso que me sentirei melhor, à medida que avançar.
Até mesmo o planeamento tem sido uma distração bem-vinda.
Ficou aliviada por ele não reclamar, nem contestar, o seu plano para manter a Fairbourne’s em funcionamento.
– Uma vez que compreende tão bem a situação, não entendo por que razão sugeriu a saída de todos os candidatos.
Southwaite não respondeu prontamente. Pelo contrário, submeteu-a a um olhar penetrante e pensativo.
Quase se podia ouvir a sua mente a funcionar, enquanto produzia a resposta.
À medida que a pausa se alongava, Emma ficava cada vez mais desconfortável. Não sentia raiva da parte dele, mas sim algo diferente e igualmente poderoso. A atenção
de que era alvo fez com que, subitamente, a divisão em que se encontravam parecesse bastante pequena. Exigia algo da sua parte, que ela não conseguia identificar.
A sensação de algo pendente não era desagradável, era até mesmo emocionante, mas tornava o silêncio constrangedor.
– Sugeri que saíssem, porque não eram adequados para o cargo que propõe. Eram todos demasiado imberbes.
– Como é generoso da sua parte preocupar-se comigo. No entanto, gostaria que não tivesse assumido essa responsabilidade. Sou capaz de tomar as minhas próprias decisões
e também tive a ajuda de uma prezada amiga.
– Ah, sim, Lady Cassandra. Ela possui experiência comprovada na matéria em questão – disse ele, com ironia. – O envolvimento dela explica muito do sucedido.
Emma não entendeu o que quis ele dizer com tais palavras, mas o tom utilizado indicava desaprovação.
Cassandra estava certa. Southwaite não gostava dela.
– Talvez também os tenha afugentado por estar, eu próprio, interessado no cargo – continuou, num tom de voz meditativo, como se ainda não tivesse realmente decidido
a razão subjacente à sua conduta.
– Certamente que não. Agora, está a divertir-se à minha custa.
– De modo algum. O apelo é inexplicável, mas não posso negar a verdade da sua existência.
Que situação mais estranha. Os cavalheiros da alta sociedade não faziam aquele tipo de trabalho.
Consideravam-no indigno para pessoas do seu estatuto. Porém, ele tinha investido na leiloeira e colecionava a melhor arte. Talvez pensasse que assumir o lugar de
Mr. Nightingale seria divertido? Um pouco como aqueles grandes senhores que despiam os casacos, para ajudarem a tosquiar as ovelhas, nas suas propriedades rurais?
Contudo, tê-lo na Fairbourne’s criaria diversas complicações. O conde provavelmente tentaria assumir o controlo de todos os aspetos do negócio. Seria um obstáculo
no caminho dela. Poderia até tentar desmascarar Obediah e possuía os conhecimentos necessários para o fazer.
– Lord Southwaite, embora talvez pondere, neste momento, que iria considerar a situação divertida, durante algum tempo, ambos sabemos que, em última análise, não
poderá assumir a função em questão.
Seria escandaloso e humilhante.
– A discrição é bastante eficiente, no que concerne a evitar os escândalos, Miss Fairbourne, e asseguro-lhe que sou um mestre nesse domínio. Obviamente, não receberia
qualquer pagamento. Não seria um subordinado, como no seu plano original. Logo, não haveria qualquer humilhação.
– Então o seu ponto de vista é muito diferente do meu e essa diferença não pode ser sancionada por mim. Se não for um subordinado, facilmente esquecerá o seu lugar.
Não permitirei que ponha e disponha, conforme a sua vontade, senhor conde. Tenciono gerir tudo à minha maneira. E a discrição não será possível, se pensar bem no
assunto.
– Deixe que eu me preocupe com a discrição e o escândalo. Quanto à sua maneira de gerir as coisas, creio que a posso convencer, se me permitir, de que as nossas
mentes estão em perfeita sintonia. Como tal, ambos comandaremos as tropas, em harmonia.
– Penso que esse cenário é improvável.
– Porque tem menos experiência a comandar? Prometo não sabotar os seus esforços.
Emma riu-se um pouco, como se ele tivesse contado uma piada.
– Temo que realmente não se adeque à função, de todo, Lord Southwaite.
Ele pareceu surpreendido. Talvez até mesmo ofendido.
– Está a dizer que não cumpro os seus requisitos? Sou demasiado velho? Não sou suficientemente belo?
– Dificilmente poderá ser classificado como velho, e a sua aparência é... aceitável.
Na verdade, se não fosse um aristocrata, ele seria perfeito para o cargo. Até possuía conhecimentos sobre arte.
– Então, por que razão não sou adequado? Pensava ser obviamente preferível aos rapazes que a esperavam aqui.
Naquele momento, Emma já não tinha sequer a certeza de que ele estivesse a provocá-la. A conversa havia-se tornado simplesmente estranha.
– Espero que não me peça para despir os casacos, a fim de provar que satisfaço o requisito relativo à constituição física – verbalizou o conde. – Acharia tal situação
indigna.
Oh, céus. Ele devia ter ouvido Cassandra.
– Claro. Por favor, não precisa de... isto é, tenho a certeza de que... A sua força é indiscutível. Ninguém poderia duvidar dela. Não é necessária qualquer demonstração.
– Fico aliviado por ouvi-la proferir tais palavras. Asseguro-lhe que também não preciso de qualquer prova dos seus atributos físicos. Pelo menos, por agora.
Que ideia tão bizarra e chocante.
Emma olhou para ele, pasmada. Southwaite sorriu-lhe. Calorosamente.
Miss Fairbourne parecia estar extremamente surpreendida. Ainda bem. Darius acreditava que ela finalmente compreendera a insensatez daquele anúncio, agora que um
homem havia realmente aceitado a oferta.
Podia pensar que conseguiria controlar a situação, assumindo o papel de empregadora, em vez do papel de amante. Contudo, ao ser o elemento feminino do caso amoroso,
acabaria por ficar, em última análise, vulnerável, das piores formas possíveis, independentemente de quem pagava a quem. Se a simples noção de tirar a roupa perante
um cavalheiro a deixava boquiaberta, não teria sido bem-sucedida com um daqueles secretários inexperientes, que haviam esperado na sala de visitas, especialmente
quando a porta do quarto se fechasse.
Quando ficava atordoada, Miss Fairbourne parecia bastante vulnerável. Muito doce, na verdade. Tal como parecera naqueles sonhos inconvenientes. Obviamente, ele só
estava a ensinar-lhe uma lição, protegendo, simultaneamente, a reputação da Fairbourne’s. No entanto, uma pequena parte dele, uma parte totalmente física, queria
ver se seria capaz de conquistar o lugar.
Assim falavam as vozes sombrias do desejo.
O conde não conseguia resistir a ensinar-lhe muito bem aquela lição, dado que, finalmente, ela estava em desvantagem.
– Compreendo que não sou quem esperava, quando criou este anúncio. Nem a menina é, como já disse a mim mesmo várias vezes, o que normalmente procuro para tais situações.
Porém, penso que faremos um bom par. A sua ousadia adequa-se às minhas preferências. Sugere que os prazeres por si oferecidos não serão apenas os previsíveis.
Ela permaneceu em silêncio. A sua expressão revelou ainda mais espanto, para satisfação de Darius.
– Pensa que a mudança nos seus planos poderá colocá-la em desvantagem, Miss Fairbourne? Que, não podendo comandar sozinha, não poderá comandar, de todo? Ou que,
devido à diferença de estatuto social e devido à sua intenção original de pagar pelos serviços, serei mesquinho nas minhas atenções, ou no meu apreço? Prometo que
não terá qualquer razão de queixa. E, se tiver, corrigirei a situação de imediato. Assim como tenho a certeza de que lidará eficazmente com qualquer eventual reclamação
da minha parte.
Emma semicerrou os olhos e franziu as sobrancelhas.
– Lord Southwaite, de que está a falar?
Naquele momento, ela parecia verdadeiramente perplexa, mais do que surpreendida, ou assustada. Isso fê-lo parar um pouco, para pensar. Em seguida, pegou no jornal.
– Obviamente, estou a falar disto, apenas com algumas alterações, necessárias para tornar o assunto menos ordinário.
Emma esticou o braço, para receber o jornal, e leu cuidadosamente o anúncio marcado.
– Não é a primeira mulher de idade madura a decidir procurar um amante deste modo, Miss Fairbourne. A descrição publicada é menos obscena do que a maioria, mas é
suficientemente clara para ser entendida. Ouso dizer que toda a cidade de Londres está a apreciar a franqueza elegante com que descreve as suas necessidades.
Um rubor profundo cobriu repentinamente o rosto de Emma, que tapou a boca com as mãos e olhou fixamente para o conde. Em seguida, voltou a olhar para o jornal, mas
Southwaite conseguiu vislumbrar o fogo que ardia no interior dos olhos dela.
– As suas presunções são inaceitáveis, senhor conde.
– Pensa que estou a ser presunçoso?
Não era um adjetivo que aceitasse bem, especialmente quando provinha da filha de um comerciante, que certamente convidara a especulações, se não a presunções.
– De um modo imperdoável – respondeu Emma.
– Pois, eu considero que estou a ser indevidamente magnânimo.
Estava a ser verdadeiramente altruísta, com os diabos. Afinal de contas, ela estava disposta a contentar-se com a compra de um prostituto e ele oferecera-lhe a generosidade
de um conde. Aquela lição poderia ter sido ensinada de uma forma muito mais rude.
– Tenho a certeza de que essa é, verdadeiramente, a sua opinião. E creio também que não faz ideia de quão ultrajante é a sua presunção.
– Irá esclarecer-me, sem dúvida, pois raramente consegue ficar calada, mesmo nas ocasiões em que seria aconselhável fazê-lo.
O conde acreditava que Emma escutaria o seu aviso. Ela parecia estar prestes a examinar minuciosamente o insulto, independentemente do quão desaconselhável seria
fazê-lo. Era claro que iria fazê-lo. O que lhe passara pela cabeça, ao ter a preocupação de a tentar poupar às indignidades que ela própria havia convidado?
– Em primeiro lugar – arguiu Emma –, é presunçoso ao assumir que uma mulher à procura de um amante aceitaria um homem que não cumpre os requisitos anunciados, sendo
o primeiro dos quais a sujeição à condição de mero funcionário, e nada mais.
– Na realidade, presumi que uma mulher à procura de um amante preferiria um homem com alguma experiência, delicadeza, educação e passível de lhe oferecer dádivas,
em vez de um rapaz inexperiente, que só pensa nas suas próprias necessidades e, no final, exige pagamento – retorquiu Darius. – Contudo, perdoe-me por não ver os
benefícios, para tal mulher, de uma escolha mais dispendiosa, mais indecorosa e menos gratificante.
– Em segundo lugar – entoou Emma, ignorando o que Southwaite dissera –, é presunçoso ao pensar, sem qualquer encorajamento da minha parte, que estaria disposta a
aceitá- lo como o amante em questão, independentemente dos pormenores do acordo.
Emma levantou-se. O rubor da sua face acentuara-se e os seus olhos soltavam relâmpagos. O conde não se surpreenderia se aparecesse uma lança na mão de Emma e ela
soltasse um grito de guerra céltico.
– Por último, é insuportavelmente presunçoso ao pensar sequer que sabe o significado deste anúncio.
A função descrita nestas linhas não era a de meu amante, Lord Southwaite.
Ela atirou-lhe o jornal, para realçar o que lhe dissera.
Darius apanhou-o e ergueu-se, olhando fixamente para o anúncio.
– Com os diabos que não era!
A possibilidade de uma vergonha profunda surgiu repentinamente. Maldição. Ele odiava esse sentimento e aquela mulher irritante quase fizera com que o experienciasse.
– Asseguro-lhe que a sua interpretação está totalmente errada.
– Se é esse o caso, foi extremamente descuidada ao escrever o anúncio. Imperdoavelmente descuidada.
Qualquer pessoa que o leia presumirá o que eu presumi.
– Somente as pessoas que possuam uma mente muito lasciva.
Emma teve a audácia de proferir estas palavras de maneira empertigada. Southwaite não podia negar, por mais que o quisesse, que ela parecia verdadeiramente ofendida
e importunada.
Com os diabos. Examinou novamente o texto. Mesmo sob a luz da recente revelação, ainda o interpretava como o anúncio de uma mulher à procura de um admirador profissional.
Tinha a certeza de que o embaraço não afetara o seu discernimento relativamente ao assunto em questão.
A estranheza da presente situação era evidente. Mesmo se tentasse explicar que, na realidade, não tencionara fazer um acordo sexual, não conseguiria corrigir o atual
constrangimento. Duvidava que o intuito de lhe ensinar uma lição fosse recebido com maior benevolência do que o intuito de a tornar sua amante.
– Obviamente, devo-lhe um pedido de desculpas. No entanto, tenho a obrigação de lhe dizer que, se pensei que o significado do anúncio era esse, aqueles jovens também
o pensaram. A presença de Lady Cassandra dificilmente ajudou, pois as alusões a ela nas secções de escândalos sociais são do conhecimento geral.
Enfurecia-o que a falta de discernimento revelada por Miss Fairbourne o obrigasse agora a desculpar-se e a sentir-se um idiota.
– Se ocorreu alguma troca de palavras imprópria naquela divisão, agora já sabe o motivo.
Emma hesitou por um breve momento. Durante esse instante, um véu de pensamentos cobriu-lhe os olhos. Em seguida, uma forte indignação dominou-a novamente.
– Não ocorreu qualquer troca de palavras imprópria. Todos, à exceção do senhor conde, perceberam que a função anunciada era outra... e não essa.
– Com os diabos que perceberam. E, se não é essa a função anunciada, qual é a função? Este emprego especial e aprazível requer uma lista interessante de qualificações.
Outra pausa curta. Emma transformara-se num pilar de orgulho.
– Estava a ajudar o Obediah com a contratação de um novo gerente para o salão de exposições. Mr.
Nightingale abandonou o posto e a Fairbourne’s precisa de um homem apresentável, para acolher os clientes e demais visitantes. Essa é a razão pela qual o Obediah
também esteve aqui hoje.
Ela apontou para o jornal.
– Verá que o anúncio descreve perfeitamente o género de pessoa necessário para a função.
A irritação do conde alterou abruptamente o seu rumo, focando-se na nova informação. Esta enfurecia-o ainda mais, mas, pelo menos, não o fazia sentir-se como um
perfeito idiota.
– Não será preciso contratar um novo gerente, como é do seu conhecimento, Miss Fairbourne.
Emma sentou-se e olhou para ele ousadamente.
– Não sei a que se refere, Lord Southwaite.
– Mr. Nightingale abandonou o cargo porque presumiu que a empresa iria encerrar as portas. Sem o seu pai, o negócio não possui qualquer futuro, logo, não será preciso
substituir Nightingale.
– Pode ter investido neste negócio, mas, claramente, ignora o modo como a Fairbourne’s era gerida. O
Obediah ocupava-se dos assuntos financeiros e do catálogo. Também está devidamente licenciado.
Enquanto ele permanecer na empresa, a Fairbourne’s poderá prosperar. Na verdade, ele já avançou bastante com a preparação do próximo leilão.
Era típico de Emma decidir ter aquela conversa naquele momento, precisamente quando Southwaite desejava despedir-se e abandonar o local.
– O seu pai nunca mencionou que Riggles possuía tamanha autoridade.
– Não tinha qualquer interesse em revelar essa dependência, muito menos a si. O Obediah possui conhecimentos ao nível dos do meu pai e um olho soberbo para a atribuição
de obras ao respetivo autor.
Ouso dizer que, se Obediah possuísse o dinheiro necessário, o meu pai teria vendido metade do negócio a ele, não a si.
– Contudo, ele vendeu-a a mim e eu não concedi autorização para a realização de outro leilão. Muito pelo contrário.
– A sua autorização não era requerida, uma vez que se trata da segunda parte do último leilão, e não de um leilão completamente novo. O Obediah decidiu guardar as
melhores obras para outra ocasião.
O recuo rápido de Emma para um estado sereno piorou a irritação do conde, tal como sucedera no dia do leilão. Recordou essa última conversa, em que andara para trás
e para diante no armazém, quase incapaz de se mover por causa dos quadros e da mesa com os artigos em prata.
Emma provocara-o de tal forma com a sua conduta, que ele nem sequer se questionara por que razão tais coisas estavam armazenadas numa casa de leilões que acabara
de realizar o seu último leilão. Agora, a presença daqueles artigos no armazém da leiloeira assumia um papel de destaque na sua memória.
Obviamente, eram os artigos guardados para o próximo leilão. Emma havia passado a última semana a desobedecer-lhe deliberadamente, continuando a traçar um percurso
que sabia que ele não aprovaria.
Southwaite viera visitá-la para lhe dizer que a leiloeira seria vendida. Ainda precisava de o fazer.
Infelizmente, o mal-entendido ridículo originado pelo anúncio significava que teria de combater uma oposição redobrada, na batalha que, inevitavelmente, ocorreria.
Enquanto pensava num comentário de despedida que salvasse parte da sua dignidade, o olhar dele foi distraído pela luz proveniente da janela oeste, e pelo modo como
esta revelava um sem-número de tonalidades nos caracóis castanhos do cabelo de Emma. Algumas porções do cabelo pareciam quase douradas. Isso também fazia com que
reparasse no modo como a luz favorecia a sua bela pele, de forma extremamente atrativa.
Da posição em que se encontrava, também conseguia ver a tez pálida a estender-se graciosamente para baixo, até ao decote do vestido preto simples, que lhe cobria
os seios de dimensões admiráveis. A cintura alta do vestido, assim como a perspetiva do conde, sugeriam que ela pareceria bastante sedutora, se aqueles seios estivessem
visíveis. Seriam muito pálidos e perfeitos, como a pele exposta, e firmes e redondos, pontuados com o rosa dos...
Definitivamente, estava na altura de ir embora.
– Esta foi uma tarde de mal-entendidos, Miss Fairbourne. Penso que será melhor regressar noutro dia, para discutirmos os nossos negócios, a fim de planearmos a conclusão
dos mesmos. Informarei Mr.
Riggles de que visitarei, ocasionalmente, a Fairbourne’s, para poder decidir qual é exatamente o estado da empresa, à luz destas novas informações.
– Concordo que o mais sensato, provavelmente, será adiarmos qualquer discussão, Lord Southwaite.
No entanto, quero deixar bem claro, agora mesmo, que a Fairbourne’s não deverá ser vendida.
Os ombros de Emma endireitaram-se e o seu queixo ergueu-se.
– Não pode ser vendida. Não será vendida.
Darius não estava habituado a que as mulheres falassem com ele usando o tom de voz que ela acabara de usar. Nem aceitou bem o facto de ser o objeto da impertinência
furiosa presente nos olhos dela. A atitude de desafio era inconfundível e o seu sangue incitava-o a responder.
Em vez disso, puxou o relógio de bolso e olhou para ele.
– Lamento não ter tempo para explicar os seus erros relativamente a esse tópico, neste preciso momento.
– Não preciso de mais tempo, nem de mais conversas. Apenas pensei que seria melhor explicar claramente o que pretendo fazer no comando das operações.
Vieram-lhe à mente diversas respostas indelicadas, incluindo como ela iria obedecer cegamente às suas ordens, antes que ele acabasse de lhe tratar da saúde.
– Anseio por ouvir mais pormenores, numa outra ocasião – proferiu ele, fazendo uma vénia, em seguida. – Deixá-la-ei, de momento. Mais uma vez, apresento as minhas
desculpas pelo mal-entendido de hoje.
– Nunca mais falaremos sobre o tema, Lord Southwaite. Pela manhã, será como se nunca tivesse acontecido e iremos esquecê-lo por completo.
CAPÍTULO 6
Na manhã seguinte, Emma encontrava-se na pequena divisão que usava como sala de estar matinal, a tomar o pequeno-almoço com Cassandra, sentada numa mesa perto de
uma janela das traseiras do edifício, com vista para o jardim. Um pequeno relógio estava pousado sobre a mesa, entre os pratos e os talheres, revelando que eram
9h30. Mr. Weatherby começaria a enviar os candidatos para o cargo na Fairbourne’s às 10h00.
Cassandra havia colocado aquele relógio na mesa. Sempre que Emma o via, pensava no anúncio. O que, por sua vez, conduzia-lhe a memória até à reunião da véspera,
com Southwaite. Ela apelidara toda a catástrofe de o «Equívoco Escandaloso».
Cassandra pousou o garfo e exigiu a sua atenção.
– Tem estado demasiado calada. Penso que está a provocar-me deliberadamente com o seu silêncio.
Sabe que estou curiosa relativamente ao seu visitante de ontem. Afinal, o que queria Southwaite?
– Foi uma visita social, simples e breve. Ele não queria algo.
– Espero que o tenha repreendido por mandar embora os seus jovens.
– Sim, fi-lo, de uma forma educada, mas com firmeza. Porém, eles não eram os meus jovens e ficaria agradecida se não os designasse dessa maneira. Sou apenas a representante
da Fairbourne’s. O anúncio não está relacionado, de forma alguma, comigo.
– Meu Deus, hoje está muito irritadiça. Espero que a sua disposição melhore, antes de começarmos as reuniões na biblioteca. Não será vantajoso apresentar-se como
uma pessoa rabugenta e antipática.
– E porque não? Não estou propriamente à procura de um jovem para ficar ao meu serviço, fazendo tudo o que lhe peça – retorquiu Emma, lançando um olhar crítico a
Cassandra. – Espero que não haja a possibilidade de surgirem mal-entendidos acerca disso. Tenho perguntado a mim própria se a inclusão do requisito da apetência
para o entretenimento de companhia feminina terá sido uma boa ideia. Pareceu-me que a maioria dos candidatos de ontem foi demasiado ousada nas suas tentativas de
sedução.
Cassandra encolheu os ombros.
– Não os achei excessivamente ousados. Creio que apenas esperavam conseguir provar que possuíam o encanto necessário.
– A inclusão desse requisito também pode ter sido uma má ideia.
– Uma vez que ambos foram adicionados por mim, está agora a criticar os meus conselhos? Noto que hoje se encontra aborrecida, mas, por favor, não direcione o seu
mau humor para mim.
Emma baixou a cabeça e tentou melhorar o seu estado de espírito. Não era justo culpar Cassandra pela vergonha do «Equívoco Escandaloso». Com toda a certeza, Cassandra
não escrevera deliberadamente o anúncio com a intenção de que fosse interpretado daquela forma chocante.
Ou escrevera? Os comentários de Cassandra, acerca de a sedução e a lisonja serem benéficas para Emma, vieram-lhe à mente. Tal como a sugestão de lhe arranjarem um
homem.
Não, certamente que não. As acusações e presunções de Lord Southwaite estavam a torná-la excessivamente desconfiada.
Emma gostaria de ter esquecido completamente, pela manhã, a humilhação sofrida, como dissera a Southwaite que faria. Em vez disso, passara a noite inteira a matutar
no assunto. Tentara refletir, de forma justa e honesta, sobre o mal-entendido que estivera na origem do episódio.
Em retrospetiva, tinha de admitir que a interpretação do anúncio feita por Southwaite não fora totalmente implausível. A conversa que tiveram, a qual configurara
uma comédia de má interpretação, poderia mesmo ter-lhe dado razões para pensar que ela aceitaria docilmente a sua proposta escandalosa.
No entanto, como cavalheiro, deveria ter-se certificado de que ela não se importava de ser abordada, antes de assumir que concordaria com a sua oferta. Tal ousadia
não podia ser desculpada.
Como a noite era longa e os seus pensamentos eram profundos, ponderara inevitavelmente por que razão um conde estaria, de todo, interessado nela, Emma Fairbourne,
como pessoa, quanto mais como amante. Realmente, não fazia qualquer sentido, a não ser que Southwaite preferisse mulheres de um estatuto social muito inferior ao
dele e não se importasse de aproveitar uma situação em que uma mulher desse tipo caísse no seu colo. Quanto menos prestigiada fosse a ascendência da amante, mais
grata ela ficaria, sem dúvida. Quanto mais vulgar fosse a mulher, maior seria a sua admiração por ele. Quanto menos rica, mais barato seria impressioná-la.
Aquele interesse não abonava a favor dele, nem a favor dela. E, por essa razão, quando os seus pensamentos sonolentos divagaram, conduzindo a especulações de como
seria assumir o papel de amante de um homem daquele género, ela conseguiu, em grande parte, detê-los, antes que alcançassem as componentes físicas de tais acordos.
Mas, sem querer, um dos seus pensamentos ousou escapar para tais domínios, chocando-a, ao causar titilações preguiçosas, que a excitaram, sorrateiramente, antes
de se aperceber do que estava a acontecer.
A memória do que ocorrera fazia-a sentir-se ridícula, à luz do novo dia. Na verdade, todos os acontecimentos do «Equívoco Escandaloso» tinham esse efeito sobre ela.
O único aspeto positivo que retirara daquele episódio perturbador fora ter ganho algum tempo, mais uma vez.
Emma tinha a certeza quase absoluta de que Southwaite a visitara para exigir que a Fairbourne’s fosse vendida. Eventualmente, regressaria, para abordar de novo essa
questão. Mas esperava que ele estivesse suficientemente envergonhado, devido ao «Equívoco Escandaloso», para se abster de defender a sua causa durante, pelo menos,
alguns dias.
– Cassandra, sei que pensa que seduzir é tão normal como respirar e que é parte do encanto de um homem, quando ele possui algum. Porém, não é da opinião que... na
noite passada, comecei a perguntar a mim mesma se o anúncio poderia ser mal interpretado por alguns dos jovens candidatos.
– Mal interpretado? Como assim?
– Seria possível que alguns deles acreditassem que o emprego não só era especial e aprazível, mas também de natureza pessoal? Muito pessoal.
Cassandra achou a ideia extremamente engraçada. Respondeu, entre risadas.
– Presumo que seria possível, se assumissem que você estava desesperada. Ou que eu estava desesperada, agora que penso nisso. Afinal de contas, poderia ter estado
a ajudar-me na procura, em vez do inverso.
Ela sorriu, enquanto batia levemente na mão de Emma.
– Acredite, quando as mulheres escrevem anúncios do tipo a que se refere, não há qualquer subtileza nas palavras escolhidas. Somente um idiota pensaria que a sua
oferta envolve nada mais do que intimidades privadas – afirmou, pegando depois no relógio. – Devíamos preparar-nos. Temo que vá ser um longo dia.
Enquanto subiam juntas para o quarto de Emma, Cassandra presenteou a amiga com histórias de anúncios que lera, nos quais as autoras afirmavam procurar criados, ou
trabalhadores, com costas fortes, mãos quentes e vários outros atributos, que garantiriam o cumprimento de uma função muito íntima.
Tendo em conta que o seu próprio anúncio exigia uma constituição forte, Emma não ficou tão divertida como Cassandra esperara.
Suspeitava que Cassandra quisera realmente incentivar os jovens a assumirem tais prazeres privados, se não com Emma Fairbourne, então com as senhoras que frequentavam
a leiloeira. O novo funcionário não deveria esperar que o seu cargo consistisse em algo mais do que o óbvio, mas Cassandra concluíra que esse tipo de serviços havia
contribuído para o sucesso de Mr. Nightingale. Assim, fizera com que tais deveres ficassem implícitos, aquando da revisão do anúncio. Emma sentiu-se muito estúpida
por, mais uma vez, não ter interpretado corretamente as insinuações de Cassandra.
Se estivesse certa, então o «Equívoco Escandaloso» não havia sido tão escandaloso como ela pensara originalmente.
Porém, Emma jamais o admitiria ao conde de Southwaite.
Nesse mesmo dia, às duas da tarde, Emma pediu que lhe preparassem a sua carruagem. Calçou as luvas pretas, colocou o chapéu preto, pegou na sombrinha preta e desceu
as escadas de sua casa. No segundo andar, olhou para o interior da sala de visitas. Estava completamente vazia.
Naquele dia, Mr. Weatherby não enviara um único candidato à posição anunciada. Ela e Cassandra tinham esperado em vão, durante toda a manhã, para verificarem se
Mr. Laughton poderia ser ultrapassado por algum elemento do lote mais recente de jovens promissores.
Meia hora mais tarde, Emma entrou no escritório de Mr. Weatherby, localizado na Green Street. Após um breve período de espera, Mr. Weatherby recebeu-a.
Emma explicou a sua surpresa relativamente à escassez de candidatos, naquele dia, para o cargo que anunciara.
– Não apareceu qualquer candidato, de todo?
Mr. Weatherby, um solicitador que complementava os seus honorários legais por intermédio da oferta de serviços como o que, presentemente, prestava a Emma, era um
homem baixo e magro, composto por vários pontos, o mais proeminente dos quais correspondia ao seu nariz. As orelhas e as sobrancelhas pontiagudas estavam em harmonia
com o resto da imagem e, dada a natureza desta, até as extremidades do colarinho da sua camisa pareciam perfeitamente enquadradas.
Ele respondeu suavemente.
– Por vezes, isso sucede. A maioria dos candidatos responde logo no primeiro dia em que o anúncio aparece no jornal.
– A maioria, diz o senhor. Neste caso, foi a totalidade.
– Não sou responsável pelo sucesso dos anúncios, Miss Fairbourne. Não consigo perceber o que espera de mim, mas tenho a certeza de que não poderei ajudá-la.
O seu nariz apontou para baixo, na direção de um papel que se encontrava sobre a secretária.
– O meu escriturário irá acompanhá-la até à saída.
Mr. Weatherby estava a despedir-se rudemente, sem ter sequer a cortesia de prestar uma explicação adequada.
Emma permaneceu firmemente na cadeira, enquanto o solicitador parecia optar por ignorar a sua presença. Finalmente, levantou-se. Com o tampo da secretária a separá-los,
bateu ruidosamente nele com a sombrinha, usando toda a força que possuía.
O tinteiro saltou. Mr. Weatherby também. Em seguida, recuou na sua cadeira, com os olhos arregalados e a boca aberta, horrorizado com a proximidade daquela sombrinha
em relação à sua cabeça, que estivera inclinada para a frente.
– Mr. Weatherby, o senhor foi mais do que solícito, no dia em que me vendeu os seus serviços.
Certamente, também conseguirá ser cortês hoje, quando lhe pergunto por que razão os seus préstimos cessaram com tamanha brusquidão. Não sou suficientemente estúpida
para acreditar que todos os habitantes da cidade de Londres adequados para a função em questão, mesmo que apenas ligeiramente, tenham vindo até aqui no mesmo dia.
O solicitador olhava fixamente para ela e para a sombrinha, com espanto. Emma colocou a sombrinha em pé, sobre a secretária, e segurou-a pelo cabo.
– Apareceu aqui algum homem, durante o dia de hoje, em resposta ao anúncio?
Mr. Weatherby assentiu com a cabeça.
– Quantos?
Estupefacto, ele ergueu cinco dedos.
– Porque não os enviou à minha morada?
Mr. Weatherby hesitou. Emma reajustou a mão em redor do cabo da sombrinha. O solicitador pigarreou, encontrando o tom de voz que desejava, e explicou o porquê das
suas ações.
– Penso que chegámos, Miss Fairbourne – informou Mr. Dillon, o cocheiro de Emma. – Esta é a casa que o sujeito do White Swan descreveu.
Emma olhou para a fachada pálida da enorme residência urbana, cuja porta principal abria para a St.
James Square. Sem dúvida, parecia suficientemente grande para ser o lar de um conde. Teria de acreditar que o indivíduo do White Swan não se enganara.
Após ter descido da carruagem, parou, por alguns instantes, para procurar um cartão de visita, no interior da bolsa. Puxou vigorosamente o rebordo do chapéu, a fim
de garantir que este se encontrava direito. Aproximou-se da porta, lembrando a si própria a fúria intensa que a trouxera até aquele lugar e engolindo as dúvidas
que, subitamente, a assaltavam.
Embora obscurecido na sua memória por pensamentos relacionados com o «Equívoco Escandaloso», o último comentário de Southwaite, sobre as eventuais visitas à leiloeira,
também a preocupara durante toda a noite. Implicava uma interferência maior do que ela esperara, ou do que poderia dar-se ao luxo de ter. Southwaite não acreditara
nas suas afirmações sobre Obediah. Por esse motivo, a possibilidade de o conde vaguear livremente pelo salão de exposições era absolutamente inaceitável. Se isso
acontecesse, ela não poderia estar presente na leiloeira e assumir os deveres cuja execução atribuíra a Obediah.
Pela manhã, convencera-se de que Southwaite provavelmente visitaria as instalações uma ou duas vezes, no máximo, e de que as palavras proferidas pelo conde não anunciavam
a chegada dos problemas que ela receava.
Agora, sabia que estava enganada.
Conduziram-na até uma sala de visitas, com o triplo do tamanho da sua. Existiam quadros pendurados nas paredes e Emma reconheceu vários que haviam sido adquiridos
em leilões da Fairbourne’s. De resto, era uma divisão muito clara, o que destacava as pinturas de uma forma bastante agradável.
O mobiliário parecia delicado, à exceção de uma poltrona estofada, de dimensões consideráveis, que se encontrava perto da lareira. Possuía dois grifos dourados,
que a flanqueavam lateralmente. As pernas das criaturas formavam a base da poltrona, enquanto as cabeças serviam de apoio aos braços.
Emma não teve de esperar muito até o conde chegar. Southwaite entrou na divisão com um criado, que transportava uma bandeja. Vestira-se informalmente, como se estivesse
na sua propriedade rural e acabasse de regressar de um passeio a cavalo. Os membros do seu círculo social certamente saberiam quais eram os dias em que habitualmente
recebia visitas. Aparentemente, aquele não era um deles.
– Miss Fairbourne, fico feliz por vê-la. Por obséquio, sente-se aqui comigo. – O braço do conde encaminhou-a, com determinação, na direção pretendida.
Foi conduzida até à lareira, onde se sentou num elegante banco acolchoado. Southwaite acomodou-se na grande poltrona. Emma percebeu que esta se destinava, exclusivamente,
ao dono da casa. O conde ficaria desconfortável em algo que fosse significativamente menor.
Southwaite permanecia sentado como um rei no seu trono, com uma das botas de excelente qualidade esticada para a frente e os braços apoiados nas cabeças dos grifos.
Se Emma desse importância a tais coisas, o que não acontecia, teria de admitir que, naquele momento, ele parecia muito belo e nobre.
– Chegou precisamente quando me preparava para tomar o meu café da tarde. Por favor, faça-me companhia e beba também um pouco – convidou o conde.
Emma tinha muito para dizer àquele homem e tencionava falar com bastante firmeza, mas esperava conseguir evitar outra discussão. Manteve-se silenciosa até o café
acabar de ser servido e a bandeja ter sido colocada de parte.
Enquanto Emma bebia um pouco de café, o conde iniciou a conversa.
– Como já referi, folgo a sua decisão de me visitar. A nossa conversa de ontem terminou de um modo peculiar e não existe qualquer razão para sermos adversários.
Parece-me uma mulher sensata, com alguma inteligência. Estou confiante de que podemos cooperar, em vez de estarmos sempre a discutir.
– Sinto-me lisonjeada por ter detetado em mim alguma inteligência. Tenho a certeza de que se trata de um elogio raro.
– Não é assim tão raro. Já conheci outras mulheres inteligentes. Existem homens que pensam que essas duas coisas nunca se conjugam, mulheres e inteligência, mas
não sou um deles.
– Quão esclarecido demonstra ser. A verdade, contudo, é que vim hoje até cá por considerar que a conversa que tivemos ontem não foi tão-somente peculiar. Ficou também
por concluir.
– Concordo consigo, ficou por concluir em diversas vertentes. A falha principal foi não ter chegado a aceitar o meu pedido de desculpas pelo mal-entendido. Espero
que o aceite agora.
– Sim, aceito-o. Obrigada. Já esqueci esse assunto.
– Obviamente, ficou também por concluir relativamente à disposição da Fairbourne’s. Posso assumir que foi esse o aspeto que a trouxe aqui hoje? Sabia que perceberia
o que tem de ser feito, quando pensasse bem sobre o tema. Prometo-lhe que tratarei de todo o processo.
– Não vim até aqui para discutir a disposição da Fairbourne’s, Lord Southwaite. Esse tópico já foi decidido. A venda da empresa ainda está fora de questão.
Southwaite desviou o olhar, mas Emma conseguiu vislumbrar uma exasperação tremeluzente nos seus olhos. Em seguida, a atenção do conde regressou a si. Um sorriso
tenso formou-se num rosto que se tornara menos amigável.
– Então, em que posso ajudá-la, Miss Fairbourne? Que outra parte da nossa conversa ficou por completar? Ah, sim, é verdade...não terminei a minha proposta romântica
com a discussão dos pormenores habituais. Veio até aqui para falarmos sobre isso?
Emma não podia acreditar que ele fizera aquela referência ao «Equívoco Escandaloso». Tinha acabado de pedir desculpa pela segunda vez, não tinha? Deviam estar a
fingir que o episódio nunca acontecera.
Em vez disso, só faltara convidá-la novamente para ser sua amante, desta vez sem qualquer mal-entendido como pretexto.
Southwaite fitava-a, com um humor sombrio. Não estava a tentar seduzi-la. Certamente que não. No entanto, observava-a de uma maneira extremamente específica, como
se estivesse verdadeiramente interessado na sua reação. Emma não conseguia dissipar a ideia de que ele aguardava a resposta, com o intuito de a ver perturbada com
aquela referência, como se tal constituísse algum tipo de vitória.
Conseguiu ocultar a sua surpresa. Contudo, reagiu ao olhar e à insinuação, e não com a indignação que seria de esperar. Em vez de repugnância, ou de raiva, foi afetada
por uma emoção muito diferente. Uma sensação arrebatadora esvoaçou-lhe até à garganta, descendo depois, em espiral, através do seu corpo, causando-lhe uma agitação
extrema. Faíscas invisíveis dançaram-lhe na pele e uma risadinha disparatada borbulhou no seu cérebro. Era uma sensação muito parecida com o prazer proibido que
provara na noite anterior, só que bastante menos lânguida.
Ficou consternada pelo facto de a sua própria feminilidade conspirar contra ela, ao torná-la suscetível àquele homem, daquela forma, naquele momento. Era incrivelmente
injusto.
Recordou a si própria que Southwaite queria destruir a Fairbourne’s. Procurou refúgio na cólera que sentira, mas foi incapaz de convocar novamente toda a sua força.
Também não conseguia suprimir uma consciência nova e inquietante da masculinidade de Southwaite, que saturava o ar existente entre os dois e a deixava nervosa.
– Hoje falei com Mr. Weatherby. – Fez com que a sua voz soasse tão nítida e inabalável quanto lhe era possível. – Sei que o visitou ontem, após ter deixado a minha
casa, e lhe disse para parar de me enviar candidatos.
Southwaite bebeu calmamente um pouco de café, assumindo, de seguida, uma expressão completamente impassível.
– Sim, fi-lo. Tinha acabado de provar que o anúncio podia originar equívocos sobre a posição nele descrita. Não podia permitir que Mr. Weatherby encaminhasse candidatos
para a sua morada, durante toda a semana, e arriscar que o mundo soubesse que a filha de Maurice Fairbourne tinha escrito o aviso em questão.
– Procurava preservar a minha reputação?
– Sim, da melhor forma possível, dadas as lamentáveis circunstâncias.
– Não pensa que isso é, no mínimo, irónico, Lord Southwaite?
Ele pensou durante um momento, abanando, de seguida, a cabeça.
– Não vejo qualquer ironia. Mesmo que ontem tivéssemos chegado a um acordo, teria usado todo o meu poder para evitar que fosse afetada por qualquer tipo de escândalo.
Southwaite estava a abordar novamente o assunto!
– Certamente ficará aliviada por saber que também paguei uma certa quantia aos homens presentes em sua casa, aquando da minha chegada, fazendo-os prometer que não
divulgariam para onde Mr. Weatherby os enviara – continuou. – Resta-nos a esperança de que os candidatos entrevistados antes de eu ter chegado sejam discretos. Se
não o forem, só posso rezar para que não tenha pedido a qualquer um deles para despir os casacos.
Ele estava a repreendê-la. Não o fazia diretamente, mas continuava a ser uma reprimenda. Pior, presumia-se no direito de o fazer.
– Lord Southwaite, vim hoje até aqui para lhe explicar que a Fairbourne’s não necessita da sua interferência, nem a vê com bons olhos, somente para ficar a saber
que interferiu muito mais do que eu pensava. Não tinha o direito de mandar embora aqueles homens, de todo. Agora, descubro que comprou o silêncio deles, como se
eu tivesse cometido um crime que precisasse de ser ocultado.
– Não era culpada de um crime, Miss Fairbourne. Tratou-se apenas de falta de discernimento.
– Perdoe-me a franqueza, mas...
– Se não a perdoar, serei poupado ao seu discurso? Não? Pois, bem me pareceu – disse ele, suspirando e assumindo uma atitude paciente. – Por favor, continue.
Não era fácil prosseguir após o conde ter proferido tal comentário. Ainda assim, Emma conseguiu transmitir a mensagem que viera entregar.
– A sua intromissão não é desejada. A sua ajuda não é necessária. Foi um investidor invisível durante vários anos e assim deverá permanecer.
– Miss Fairbourne, com o falecimento do seu pai, a situação mudou muito. Somos as duas metades de um todo financeiro e a sua metade é, atualmente, problemática para
a minha. Irei interferir conforme eu considerar necessário e adequado.
Southwaite falara como o aristocrata que era, sem qualquer sinal de arrependimento ou hesitação. A mente de Emma formou críticas contundentes ao comportamento arrogante
assumido pelo conde. Outra parte dela, a parte feminina e estúpida, fonte de problemas inesperados naquele dia, estava maravilhada com a presença dominadora e a
confiança extrema do seu interlocutor.
Lentamente, um sorriso surgiu no rosto incrivelmente belo de Southwaite. Era um sorriso deslumbrante, aparentemente calculado para apaziguar a Emma furiosa e trazer
ao de cima a Emma estúpida, como se ele soubesse que ambas existiam e estavam em conflito naquele momento. Para surpresa de Emma, aquele sorriso cativou-a de um
modo que não conseguiu controlar. Quase de imediato, os vestígios da raiva que sentira começaram a escorregar para fora do seu alcance. Era difícil desviar o olhar.
– Não exijo qualquer comportamento específico da sua parte, Miss Fairbourne. Não sou assim tão hipócrita – explicou o conde, tentando persuadi-la a compreender a
sua lógica. – Apenas exijo discrição, idêntica à que pratico. Se o mundo descobrir esta parceria, as nossas reputações começarão a influenciar-se mutuamente. Preferiria
não ser prejudicado, caso tal suceda.
Esboçou, novamente, aquele sorriso.
– Tenho a certeza de que entende a minha situação.
– As suas preocupações são descabidas. Sou demasiado banal e desconhecida para afetar a sua reputação, independentemente das minhas ações. Sou demasiado insignificante
para gerar mexericos ou escândalos e não estou habituada a ter o tipo de comportamento passível de os incitar. Sim, porque até recusei a proposta de um conde que
queria tornar-me sua amante, segundo um acordo perfeitamente discreto.
Southwaite segurou o queixo com a mão em concha e olhou para Emma.
– A má interpretação desse conde é motivo suficiente para ter cautela, não concorda? Por exemplo, ele poderá ter feito determinadas suposições devido à sua amizade
com Lady Cassandra. Também aí seria aconselhável uma maior discrição, na minha opinião.
Emma estava tão fascinada pelo aspeto magnífico do conde naquela poltrona, pela beleza que ele revelava, quando não estava tempestuoso, e deliciada com a sua própria
resposta física, que quase não o ouviu. Quando o fez, exibiu uma expressão carrancuda, mas esta era um subterfúgio, uma mera tentativa de mostrar a indignação que
deveria estar a sentir, em vez daquela estimulação insensata e agradável, que lhe provocava um formigueiro por todo o corpo.
– Não irei insultar a minha amiga mais querida, para satisfazer o seu conceito estranhamente seletivo de decência. Quanto ao resto, se não interferir no funcionamento
da Fairbourne’s, ninguém saberá do seu investimento, desaparecendo assim a razão original pela qual afirma precisar de interferir. Tenho a certeza de que o senhor
conde compreende isso.
Emma ergueu-se, para conseguir fugir, antes que fizesse algo revelador de como uma parte oculta dela própria havia perdido qualquer noção de bom senso, ou força
de vontade.
– Tenha um bom dia, Lord Southwaite. Estou-lhe extremamente grata por me receber e por me facultar a oportunidade de esclarecer a minha posição.
– Podemos seguir caminho, finalmente?
A pergunta, lançada com uma impaciência extrema, fez com que Darius abandonasse a sua reflexão sobre Miss Fairbourne, assim que abriu a porta da biblioteca.
O seu amigo Gavin Norwood, visconde Kendale, não esperou por uma resposta. Já estava a endireitar-se e a levantar-se para sair.
– Cinco minutos, disse você – resmungou Kendale, penteando o seu cabelo escuro com os dedos, enquanto pegava nas luvas com a outra mão. – Nesta altura, já podia
estar a meio caminho da costa.
– A missão da minha visitante não era tão amigável como eu esperara – argumentou Darius. – Foi preciso algum tempo para chegar a um entendimento com a senhora.
Não que tivessem chegado a um entendimento, admitiu a si mesmo. Adiara aquela viagem com Kendale e escolhera receber Miss Fairbourne, tão-somente porque assumira
que ela viera para se render. Em vez disso, descobriu que aparecera para o criticar.
Ninguém fazia isso. As mulheres que se atreviam a tal coisa, não permaneciam certamente incólumes, nem mesmo as amantes que tentavam fazê-lo recorrendo a beicinhos,
ou, o que era ainda mais irritante, a carícias.
Pelo menos, desta vez não estivera em desvantagem, mesmo tendo dito ela tudo o que tinha a dizer.
Também aprendera algo sobre Emma Fairbourne. Um sorriso conseguia perturbá-la mais rapidamente do que uma reprimenda e uma ordem sua conseguia terminar qualquer
discussão com maior certeza do que uma ameaça.
Southwaite não se teria importado de explorar, com exatidão, os limites a que Emma se deixaria levar com mais ordens e mais sorrisos. A ousadia extrema que Emma
revelara durante aquele dia dificilmente incentivava a indiferença que havia jurado relativamente a ela. Como resposta, o conde sentira o impulso de exigir que ela
se curvasse perante a sua vontade. Diversas formas de atingir esse objetivo, a maioria das quais envolvendo a subjugação erótica de Emma, haviam passado pela mente
de Southwaite, de um modo vívido, enquanto conversavam. Os resquícios dessas imagens ainda o distraíam. Também tinham existido certos sinais da parte dela. Um rubor
aqui e um gaguejo acolá, e a maneira como o seu olhar intenso nunca abandonava o dele. Esses sinais sugeriam que a rendição de Miss Fairbourne não estava fora de
questão.
– Senhora? – perguntou Kendale, detendo-se a caminho da porta, ao ouvir a palavra, quando esta finalmente penetrou a tormenta do seu temperamento. – Adiou o nosso
dever por causa de uma mulher?
Você atrasou um assunto de extrema importância para o reino, com o intuito de galantear uma das suas amantes?
Praguejou, irritado.
– Tinha dito que Tarrington queria encontrar-se connosco durante a manhã.
– E nós iremos encontrar-nos com ele durante a manhã. Roubei não mais do que trinta minutos, o que não nos causa qualquer problema. A mulher em questão também não
é minha amante, por isso faça-me o favor de não lançar rumores.
– Nem sei o nome dela. Como posso lançar um rumor? Quanto aos trinta minutos, já vi homens morrerem devido a um atraso muito menor.
Darius abriu a porta para encorajar Kendale a retomar o seu percurso, em direção aos cavalos, que se encontravam no exterior. Os planos para a manhã do dia seguinte
eram importantes, mas não tão significativos como Kendale esperava. Era a reunião programada para a noite do dia seguinte que revelaria se as estratégias há muito
implementadas haviam dado frutos suficientes para serem consideradas bem-sucedidas.
Darius compreendia a preferência de Kendale para a ação, em detrimento da negociação. Afinal de contas, Kendale estivera no exército. Contudo, dessas opções, somente
a segunda poderia garantir o sucesso dos seus esforços a longo prazo.
– A nossa iniciativa é apenas uma vigilância independente, relativa aos movimentos na costa, Kendale.
Não é uma manobra militar. Ninguém irá morrer, mesmo se chegarmos com dois dias de atraso, quanto mais meia hora.
Kendale passou por ele, com a testa franzida e um olhar intenso, direcionado fixamente para a frente.
– Sabe muito sobre manobras, militares ou não, e sobre os pequenos erros que causam a morte de alguns homens nelas envolvidos.
CAPÍTULO 7
Após ter mentido a Southwaite, ao afirmar que Obediah assumira a chefia da Fairbourne’s, Emma teve de recorrer a maquinações complicadas para poder cumprir os seus
deveres na leiloeira. Não se atrevia a entrar simplesmente pela porta adentro, porque o conde poderia lá estar, para sondar o seu investimento.
Apesar da sua atitude confiante, Emma sabia que, na última reunião que haviam tido, não conseguira obter a concordância de Southwaite, relativamente ao seu pedido
de que o conde não interferisse no funcionamento da Fairbourne’s. Antes pelo contrário, podia ter ocorrido exatamente o oposto do que pretendera conseguir. Receava
tê-lo desafiado a fazer algo que ele poderia não se sentir inclinado a encetar de outra forma.
Pior, suspeitava que Southwaite se apercebera das suas faíscas e vibrações interiores. Quanto mais recordava aquele sorriso preguiçoso e aquela voz aduladora e quanto
mais imaginava a forma como ele a olhara, mais forte se tornava essa suspeita.
Para conseguir avançar com o catálogo, concebeu um sistema de comunicação com Obediah. Ao fazê
lo, viu-se obrigada a partilhar a notícia da parceria com o conde. Obediah aceitou muito bem a novidade, pois, afinal de contas, o acordo não delapidara metade do
negócio de família dele, não era verdade?
Nas três manhãs seguintes, enviou uma mensagem para a Fairbourne’s, através de um criado, indagando se Lord Southwaite aparecera nas instalações. Se Obediah respondesse
negativamente, como fez todos esses dias, ela deslocar-se-ia até à leiloeira, na sua carruagem. Porém, antes de entrar, verificava a janela da frente. Obediah concordara
em deixar a obra de Angelica Kauffman nesse local, se Southwaite ainda estivesse ausente.
Conseguiu avançar bastante com a catalogação da prata, enquanto os funcionários realizavam as limpezas necessárias e começavam a pendurar os quadros que ela guardara.
Os clientes que passassem pela leiloeira observariam todas aquelas operações, podendo assim assistir ao nascimento do próximo leilão. Tinha a esperança de que isso
lhes estimulasse o apetite. No mínimo, toda aquela atividade anunciava que a Fairbourne’s não iria fechar as portas, como todos haviam assumido.
Preocupava-se com o reforço das obras disponíveis para venda, chegando mesmo a considerar recorrer às coleções da sua própria família, tendo avaliado o que poderia
ser sacrificado, se tal se tornasse necessário. Infelizmente, as melhores obras de arte não estavam em Londres. O pai transportara os quadros mais valorizados para
a sua casa de campo na costa, onde se refugiava quando queria ter privacidade e recuperar as forças. Se fosse obrigada a vender qualquer um desses quadros, teria
de o transportar para Londres, o que implicaria uma viagem que preferia não ter de fazer.
Quando regressou a casa, na terceira tarde, Maitland pediu de imediato para falar com ela em particular. O mordomo era alto, possuindo uma constituição pesada e
cabelo preto. A estatura de Maitland inspirava uma sensação de segurança naquela casa, agora que vivia ali sozinha. Até mesmo o seu rosto fortemente sulcado desencorajaria
qualquer visitante com intenções duvidosas.
– Chegou uma pessoa, que está à sua espera – disse ele. – Não entregou qualquer cartão.
– Deu algum nome?
– Não, também não deu qualquer nome, Miss Fairbourne.
– Se não foi entregue qualquer cartão, nem mencionado qualquer nome, porque permitiu que a pessoa em questão aguardasse a minha chegada?
– Pensei que deveria fazê-lo, Miss Fairbourne. Ela disse que trazia alguns artigos que desejava consignar para o próximo leilão.
– Se é esse o motivo da visita, não esteve errado ao pensar dessa forma. Por vezes, as pessoas, especialmente as mulheres, não querem que se saiba que tentam vender,
em leilão, as suas posses. Assim, procuram chegar a um acordo através de conversas particulares.
Habitualmente, mantinham em segredo a identidade de tais clientes, mencionando no catálogo do leilão que o artigo era a propriedade de um estimado cavalheiro ou
de um benfeitor discreto.
– Onde está ela?
– No jardim, Miss Fairbourne. Disse que preferia ficar lá fora.
Emma caminhou até à sala de estar matinal, dirigindo-se às portas francesas que davam acesso ao pátio das traseiras. Apesar da distorção causada pelos vidros, conseguia
distinguir a sua visitante, sentada num banco de pedra, perto do muro baixo que delimitava o pátio.
A mulher usava um vestido solto, de mangas compridas, com uma tonalidade cinzenta suave, fixado por uma ampla faixa vermelha, sob os seus seios. Um xaile, que possuía
um padrão cinzento e vermelho, cobria-lhe os ombros. O cabelo, comprido e de cor ruiva acastanhada, caía livremente, seguindo o estilo atual. Um turbante cinzento
e vermelho havia sido atado de modo a envolver-lhe completamente a cabeça, de uma forma despreocupada.
Emma invejou a elegância com que aquela estranha usava o turbante. Tentara várias vezes fazer com que um turbante daquele género parecesse exótico e artístico na
sua própria cabeça. Mas conseguira apenas parecer alguém que se preparava para subir ao palco envergando um traje pateta.
Quando abriu a porta envidraçada, a imagem da sua visitante tornou-se mais nítida. O rosto sob o turbante virou-se para ela, revelando a sua beleza delicada e os
seus olhos castanho-escuros cativantes.
Emma cumprimentou a jovem o melhor que pôde, tendo em conta que não sabia o nome dela.
– Disseram-me que trouxe alguns artigos para consignar. Porque não os retira da sua bolsa, para que eu possa ver o que são e avaliar quanto lhe poderão render?
– Não se encontram na minha bolsa.
A mulher falava devagar e cuidadosamente, como se tivesse de ponderar cada palavra. Emma detetou um sotaque persistente, indicativo de que a sua adorável visitante
era francesa, mas, provavelmente, estaria longe de ser uma recém-chegada. Sem dúvida, era uma imigrante vinda de França, uma refugiada da Revolução. Viera hoje até
ali para vender objetos de valor que conseguira trazer consigo aquando da sua fuga.
– Estão ali.
A mulher apontou, com um dedo esguio e elegante, na direção do fundo do jardim. Não usava luvas e Emma viu algumas manchas escuras na mão dela, que estragavam o
seu aspeto limpo.
A visitante misteriosa começou a caminhar na direção para a qual apontara.
Emma seguiu-a, perplexa, observando novamente a graciosidade flexível daquela mulher. Contudo, também reparou, pela primeira vez, noutros aspetos. O vestido, embora
apresentável, revelava alguns remendos, quando olhava atentamente para a sua bainha. O xaile também possuía uma mancha, quase totalmente disfarçada pelo padrão.
A mulher usava calçado antiquado, em vez dos chinelos normalmente utilizados na época.
Caminharam até ao portão do jardim das traseiras. Quando alcançaram a pequena ruela que passava por trás da propriedade, a mulher apontou languidamente para uma
carroça parada ao lado da cocheira, com a mão manchada a flutuar para cima e para baixo.
Emma soltou a lona que cobria o conteúdo da carroça. Olhou para o interior desta e, em seguida, voltou a colocar a lona na posição original, com um movimento brusco.
Os livros antigos e até mesmo a prata que estavam na carroça eram o tipo de coisas que um imigrante poderia facilmente ter trazido do outro lado do canal. No entanto,
aquela potencial consignação não incluía apenas bens domésticos. Era composta, maioritariamente, por vinho, e ela vira imediatamente que as caixas não tinham qualquer
carimbo aduaneiro.
– Leve tudo isto daqui para fora. Na Fairbourne’s não aceitamos mercadoria contrabandeada.
– Não posso movimentar a carroça. Não tenho um burro.
O dedo manchado flutuou na direção do arnês vazio.
– Ele levou-o.
– Quem o levou?
– O homem que me pagou para vir até aqui com ele. Deu-me quatro xelins para vir a esta casa e avisar que a carroça estava aqui. Ele disse que a senhora entenderia
a situação e compreenderia a importância da carroça para conseguir ganhar o prémio. Mas talvez estivesse errado?
Encolheu os ombros. A aparente confusão não tinha qualquer interesse para ela. Puxou o xaile mais para cima, sobre os ombros, e começou a descer a ruela.
– Pare. Espere – ordenou Emma. – Não compreendo a importância da carroça. Nem sequer sei o que é o prémio. Como se chamava esse homem? Onde é que ele está?
– Não posso ajudá-la mais. Só vim até aqui na carroça, e disse-lhe agora onde ela estava, como prometi que faria. Foi um pedido estranho, mas quatro xelins são um
bom ganho por algumas horas de trabalho. Agora, tenho de ir.
– Mas eu quero falar com esse homem.
– Não o conheço. Lamento profundamente.
– Era inglês, ou francês?
– Inglês.
Ela virou-se, mais uma vez, para abandonar o local.
– Por favor, pare. Se o vir novamente, diga-lhe que preciso de falar com ele. Pode fazer isso por mim?
A mulher considerou o pedido.
– Se o vir, dar-lhe-ei o seu recado.
Emma viu o vestido cinzento ficar cada vez mais pequeno, à medida que a sua visitante se afastava. Em seguida, regressou à carroça e levantou o bordo da lona pela
segunda vez. Examinou a prata, os livros e o vinho. Especialmente o vinho. Contou quinze caixas. Com a mão, tentou explorar o conteúdo de um grande baú. Os seus
dedos deslizaram sobre cetim e renda.
Seguramente, aquele vinho tinha sido contrabandeado para Inglaterra. Provavelmente, o mesmo acontecera com os tecidos. Essa era a razão pela qual a mercadoria fora
transportada até àquele lugar de modo clandestino. Aparentemente, alguém assumira que a Fairbourne’s estaria disposta a aceitar o conteúdo da carroça.
Emma não queria imaginar por que motivo faria alguém tal suposição. De qualquer modo, as conclusões desanimadoras dominaram-lhe a mente, evocando uma desilusão pungente
que contaminava recordações acarinhadas pelo seu coração.
Quantas das consignações descritas, ao longo dos anos, como «pertencente ao espólio de um cavalheiro» tinham, na verdade, chegado assim, de forma anónima e muito
discreta?
Atou a tela, para que o conteúdo da carroça ficasse protegido e também invisível. De seguida, regressou a casa e procurou Maitland.
– Maitland, aquela mulher que apareceu hoje... já tinham ocorrido antes outras visitas desse género?
Desconhecidos como ela, que vinham até à porta do jardim e pediam para falar com o meu pai, deixando carroças perto da cocheira?
– Apareceram alguns, nos últimos anos. Não muitos.
Fez uma pausa, acrescentando, em seguida, com um tom de arrependimento sincero: – Mr. Fairbourne parecia saber quando apareceriam. Pensei que também o soubesse.
Se as minhas ações a afligiram, estou profundamente arrependido.
– Não precisa de se desculpar. Foi sensato da minha parte recebê-la.
Emma refugiou-se no quarto, antes que fizesse algo revelador da sua surpresa e desilusão. Se Maitland sabia o que se passara, provavelmente todos os criados tinham
conhecimento da situação. Ela era a única pessoa naquela casa que não adivinhara que o sucesso da Fairbourne’s se devera, em parte, ao facto de Maurice Fairbourne
negociar com mercadorias de contrabando.
Darius percorreu a fila de algarismos com o dedo, olhando depois para Obediah Riggles, que se encontrava do outro lado da secretária. O homem mais velho tentou disfarçar
o seu desconforto por ser submetido àquele interrogatório, mas a maneira como piscava repetidamente os olhos denunciava-o.
– Tenho deveres a cumprir, Lord Southwaite, se já me puder dispensar.
– Ainda não, Riggles.
Não era claro o que Riggles pensava que poderiam ser os seus deveres atuais. Porém, era inegável que resistira a ser arrastado de volta àquele escritório e tentara
escapar-se diversas vezes.
– De há vários anos para cá, existem artigos consignados sem qualquer registo referente ao nome do proprietário original – disse Darius. – Essa discrição estende-se
à contabilidade, se um indivíduo pedir anonimato?
O rosto de Obediah ruborizou-se.
– Sim, por vezes. Isto é, era Mr. Fairbourne quem tomava esse tipo de decisões, como pode imaginar.
– Contudo, Miss Fairbourne disseme que era você o responsável pela contabilidade. Então, o Maurice instruía-o para deixar de fora os nomes?
A cabeça de Obediah mergulhou, no que parecia ser um sinal de assentimento.
Darius encontrou o último pagamento feito a si próprio, na qualidade de sócio. O seu nome também estava ausente. Reconheceu-o somente devido à quantia registada.
Recostou-se e examinou minuciosamente Riggles. O sujeito aparentava ser um homem incapaz de enganar, mesmo se o quisesse. Isso provavelmente explicava por que motivo
o confronto com as vastas ambiguidades naquelas contas lhe causava tamanha inquietação. No seu rosto pálido, um sorriso formava-se e desaparecia, repetidamente.
Contudo, mesmo quando tal sorriso atingia o seu expoente máximo, não conseguia esconder a cautela presente nos olhos de Riggles.
– Quanto espera lucrar com o próximo leilão? – indagou Darius.
Riggles endireitou-se na sua cadeira, assustado.
– O próximo leilão, senhor conde?
– Miss Fairbourne disseme que haverá outro leilão.
– Ai disse?
– Os quadros que estão a ser pendurados nas paredes também o sugerem.
– Oh. Sim, depreendo que tal facto pode tornar a situação óbvia. Presumo que tendo sido informado...
Temos a esperança de lucrar vários milhares de libras e devemos conseguir atingir esse objetivo, se forem incluídas as joias.
– Joias?
– As joias de Lady Cassandra Vernham. Mr. Fairbourne estimou... isto é, Mr. Fairbourne e eu estimámos que renderiam aproximadamente duas mil libras.
Darius fechou o livro da contabilidade e ergueu-se. Obediah levantou-se com um salto.
– Espero que tenha encontrado a informação que procurava, Lord Southwaite – disse, com seriedade.
– Nem por isso.
No entanto, Darius encontrara o que receara descobrir. Os registos financeiros eram suficientemente vagos e, possivelmente, suficientemente incompletos, para que
todo o género de artigos pudessem ter passado pela Fairbourne’s com pouca documentação. Que os ganhos totais pudessem ter sido subestimados, o mesmo acontecendo
com a sua própria parte, como resultado, não o preocupava. Que a casa de leilões pudesse ter estado envolvida em atividades ilegais, isso, sim, causava-lhe alguma
inquietação.
Seria uma situação infernal, se um aristocrata, que criticara publicamente a vulnerabilidade da costa desprotegida durante aquela guerra com a França, fosse acusado
de ter lucrado com essa mesma vulnerabilidade. A ironia pairara sobre a sua mente, nos últimos três dias que passara no Kent. Durante esse período, ele próprio,
Ambury e Kendale, tinham-se reunido com os líderes das unidades de cidadãos voluntários, concentradas perto de Dover, para treinos.
Voltara mesmo a visitar o trilho a partir do qual Maurice Fairbourne mergulhara para a queda fatal.
Não existia qualquer aspeto que recomendasse aquela zona árida, que acompanhava a orla do penhasco, para além das vistas excecionais das praias e do mar, disponíveis
em todas as direções. Daquele ponto, um homem poderia facilmente sinalizar aos contrabandistas que o «caminho estava livre» das poucas embarcações da Administração
Alfandegária que não haviam sido requisitadas pelos serviços navais.
Darius saiu para o salão de exposições, com Obediah seguindo-lhe os passos. Observou os quadros a serem pendurados em longas filas verticais, nas paredes altas e
cinzentas. Um dos funcionários chamou a atenção de Obediah e fez um gesto estranho.
Darius apontou para uma pintura a óleo, que atraíra a sua atenção, ao entrar na Fairbourne’s.
– Andrea del Sarto?
Riggles piscou os olhos.
– Senhor conde?
– Parece-me que o quadro é da autoria de del Sarto. É essa a vossa atribuição?
– Hum... sim, precisamente.
– Os santos posicionados lateralmente parecem um pouco fracos em comparação com a Madonna – referiu, curvando-se e observando de perto a obra. – Outra mão em ação,
talvez?
Riggles inclinou-se e examinou também o quadro.
– Foi exatamente o que pensei, senhor conde.
Darius voltou a sua atenção para o resto da parede.
– Parece um pouco vazia. Estão à espera de mais obras?
– Oh, sim. Sim, estamos – balbuciou Obediah. – Muito em breve. Muito em breve.
– De quem, Mr. Riggles?
Obediah olhou para a janela da frente, antes de se aperceber de que o conde colocara outra questão.
– Senhor conde?
– Se esperam que mais quadros cheguem em breve, quem são os proprietários dispostos a consigná
los?
Obediah fez uma breve pausa.
– Bem, cavalheiros, senhor conde.
Darius duvidava que surgissem mais consignações. Quem assumiria um risco desse tipo, com Maurice Fairbourne ausente do negócio? Miss Fairbourne dissera que, na realidade,
Obediah era o gestor daquela leiloeira, mas, mesmo que tal fosse verídico, ninguém tinha conhecimento da situação. O mundo assumira que aquele navio tinha perdido
o seu comandante.
Devia ter agido no sentido de vender o negócio imediatamente, antes que outro leilão provasse o decréscimo do valor da empresa, ou alguém levantasse suspeitas sobre
o propósito da última caminhada de Maurice Fairbourne, naquele penhasco.
O nome Fairbourne’s representava algo. Nem um leilão medíocre, nem rumores de contrabando, contribuiriam para melhorar a sua reputação, ou o seu valor.
– Que mais têm, para além destas pinturas, Riggles?
– Para quê, senhor conde?
– Para o próximo leilão! Certamente, incluirá mais artigos.
– Os tipos habituais de lotes, senhor conde. Objetos de arte variados. Prata. Alguns desenhos. E, obviamente, as joias. Estas últimas estão guardadas num local seguro.
Os restantes artigos estão armazenados aqui, enquanto procedemos à catalogação.
Darius caminhou em direção a uma porta, localizada no fundo da divisão. Riggles apressou-se, tentando alcançá-lo.
– Senhor conde! Não penso que seja... isto é, o armazém está organizado com extremo cuidado e os visitantes não estão autorizados a...
– Eu não sou um visitante, Riggles, e já estive no armazém. Quero ver exatamente o quão digno de acontecimento será este segundo leilão final.
A prata não conseguia prender a atenção de Emma. Por mais que ela tentasse concentrar-se nas marcas dos ourives e nas suas próprias notas, a chegada daquela carroça,
durante o dia anterior, assaltava repetidamente os seus pensamentos.
Refletira, durante toda a noite, sobre a referência a um prémio. Levantara-se antes do amanhecer e sentara-se à janela do quarto, para assistir ao nascer do dia.
Naquele silêncio prateado, uma ideia surgira na sua mente. Agora, não conseguia tirá-la da cabeça.
E se o pai tivesse aceitado aquelas carroças, por não ter outra opção? Isso explicaria por que motivo tivera, em teoria, um comportamento que abominava e que sempre
acreditara que arruinaria a Fairbourne’s, caso se tornasse uma prática comum.
Se as suas conjeturas estivessem certas, o que poderiam ter usado para a coagir? Emma só conseguia pensar numa possibilidade. Ele faria tudo para proteger aquilo
que lhe era mais querido, mais ainda do que a Fairbourne’s, ou do que o seu próprio bom- -nome.
Ele faria tudo para a proteger a ela, Emma.
Ou para proteger Robert, o seu irmão.
Emma olhou para o seu reflexo fluido, numa bandeja de prata polida, que se encontrava à sua frente, sobre a secretária. O pai sempre declarara, com grande convicção,
que Robert regressaria. Ele estivera tão seguro desse facto, que Emma não havia ousado duvidar do regresso iminente, embora todos pensassem que eram ambos loucos
por acreditarem nesse desfecho. O navio afundara-se no meio do mar, mas o pai sempre afirmara, com toda a certeza, que Robert não estava morto.
Seria possível ele falar com tamanha convicção, por saber que, na realidade, o que dizia era verídico?
Poderia Robert ser o prémio que tinha a ganhar?
Aquela hipótese ocupara a mente de Emma durante toda a manhã. Sentira-se aliviada por Obediah não se encontrar no salão de exposições, aquando da sua chegada à leiloeira,
porque queria estar sozinha, para pensar novamente sobre o assunto. Tentara, repetidamente, rejeitar aquela ideia, como uma especulação ridícula. Contudo, encaixava-se
bastante bem no pouco que sabia.
Uma emoção assustadora encheu o coração de Emma. Era a esperança a querer libertar-se. Não ousava permitir que isso acontecesse. Porém, mesmo reprimido, aquele sentimento
fazia com que estivesse prestes a chorar de alegria. Era incapaz de ignorar o apelo interior ao reconhecimento da possibilidade de tal ideia estar certa. Robert
podia estar vivo, mas na posse de pessoas que exigiam que a Fairbourne’s encaminhasse os seus bens ilícitos.
Sendo esse o caso, há quanto tempo estaria o pai a tentar protegê-lo? Possivelmente, desde o dia em que Emma vira Robert pela última vez. O naufrágio daquele navio
podia ter sido apenas uma trágica coincidência, permitindo que o pai criasse uma história falsa, sobre uma viagem fictícia, para explicar a todos a ausência de Robert.
Emma tentou refletir racionalmente sobre a vertente criminal daquela ideia. Dadas as circunstâncias, que pai se recusaria a incluir alguns lotes de origem duvidosa
nos seus leilões? O contrabando não era uma atividade nova, nem invulgar. O litoral do Kent era um covil de contrabandistas há já várias gerações e todos sabiam
disso. Metade da população daquela região certamente estaria envolvida no contrabando, quer no transporte das mercadorias até à costa quer na sua distribuição para
Londres e para outras cidades.
Poder-se-ia mesmo dizer que o aspeto mais surpreendente, fora o seu pai não ter fundado a Fairbourne’s especificamente para enriquecer desse modo.
Contudo, Emma sabia que tal não correspondia à verdade. O pai orgulhara-se de ser um homem justo e honesto. Ambas as qualidades tinham diferenciado os seus leilões,
bem como a sua índole. Certamente, teria ficado nauseado por ser obrigado a rebaixar-se, mesmo pelo motivo mais válido deste mundo.
Emma também ficaria nauseada se tivesse de o fazer. No entanto, se houvesse uma hipótese de reaver o irmão, de ele voltar para ela e para a Fairbourne’s, assumindo
o lugar do pai, e de ela poder rir de novo com ele, mesmo que fosse apenas mais uma vez, também tomaria a mesma decisão.
Emma saíra de casa, durante a manhã, a fim de examinar melhor o conteúdo da carroça. Tudo aquilo, até mesmo o vinho, podia ser vendido como se o proprietário original
fosse alguém em solo inglês. O
mais certo era conseguir um bom preço. Porém, Emma não sabia a quem, supostamente, deveria dar os rendimentos.
Ponderou a opção de trazer a carroça para a leiloeira e a história que contaria a Obediah, se o fizesse.
Estava a conceber um plano, quando, de repente, alguém abriu a porta, quebrando a sua privacidade.
Subitamente, Southwaite estava à sua frente, olhando-a com surpresa. A cabeça de Obediah espreitou por detrás do ombro do conde.
Emma conseguiu lançar um olhar semicerrado a Obediah, por não ter retirado o Kauffman da janela.
Em seguida, cumprimentou Southwaite, com a expressão mais resplandecente que conseguia assumir naquele momento.
– Como é bondoso da sua parte visitar-nos, senhor conde. Estava de passagem por esta zona e decidiu presentear-nos com uma visita social muito breve?
– Já estou aqui há algumas horas e o meu propósito não é social.
– Então, decidiu interferir, apesar do que lhe disse na nossa última reunião.
– Decidi avaliar a situação da leiloeira, conforme o meu desígnio. Já lho tinha explicado nesse mesmo encontro.
Ele entrou na divisão e olhou para as prateleiras profundas, que continham samovares e porcelana antiga. Aproveitando a distração do conde, Emma escondeu as suas
notas para o catálogo sob a bandeja de prata.
– Lord Southwaite chegou cedo e dirigiu-se, imediatamente, ao escritório do seu pai, Miss Fairbourne.
– A expressão de Obediah, invisível para Southwaite, comunicava alarme e aflição. – Insistiu em que o acompanhasse, de imediato, para o elucidar sobre determinados
aspetos, que poderiam exigir esclarecimentos adicionais.
Essa fora a razão pela qual o Kauffman não havia sido removido da janela. No entanto, outros enigmas lamentáveis continuavam por resolver.
– Aspetos? – perguntou Emma, inclinando a cabeça para cima, de modo a conseguir sorrir para o conde.
Southwaite ignorou a deixa. Olhou para a secretária onde Emma se encontrava sentada.
– Tem uma predileção por prata?
– Sim, tenho. Nutro uma paixão inabalável por este metal. Venho sempre para aqui, antes dos leilões, com o intuito de admirar os objetos de prata.
Soava-lhe estúpido, mas fora ele que sugerira a possibilidade.
A mão direita de Southwaite movimentou-se para o lado, num gesto preguiçoso. Obediah compreendeu devidamente que fora dispensado e saiu da divisão.
Southwaite aproximou-se da secretária, enquanto o seu olhar examinava a superfície desta.
– Algumas peças são belas – disse, erguendo um candelabro pesado e virando-o, para observar as marcações existentes na base. – Há mais, ou está aqui tudo?
– Por agora, isto é o que possuímos. O Obediah disseme que espera o equivalente a mais uma dezena de lotes, na próxima semana.
O conde pousou a peça. De seguida, para surpresa de Emma, sentou-se no bordo do tampo. A anca e a coxa, cobertas por calças de pele, apoiaram-se na extremidade da
secretária, enquanto o resto do corpo era suportado pela outra perna. Aquela posição informal fazia com que ficasse assustadoramente perto dela.
– Uma dezena de lotes irá ajudar, mas o leilão precisa de outro tipo de artigos, para além da prata. As perspetivas não são boas, Miss Fairbourne. É melhor recuar
e ser lembrado como excelente, do que deixar o mundo assistir à queda.
– Tenho a certeza de que receberemos mais artigos, incluindo quadros. Também haverá livros, creio eu. E caixas de vinho muito velho, de qualidade bastante boa.
As mentiras gotejavam com uma facilidade aflitiva. Aquele leilão tinha de ser realizado. Poderia estar em jogo algo mais importante do que o orgulho e as memórias.
– Vinho?
– Sim, segundo me foi dado a conhecer. Do património de um cavalheiro – proferiu Emma, na esperança de ter parecido indiferente. – Um cavalheiro que necessita de
pagar aos seus credores.
Southwaite examinou-lhe o rosto, tentando perceber se ela desejava simplesmente repeli-lo. Emma esperava conseguir manter a sua expressão inocente. Porém, a atenção
do conde originou uma série de tremores, que lhe percorreram o corpo. Rezou para que não corasse, perante a evidência física de que as reações exibidas durante aquele
último encontro a haviam deixado, aparentemente, vulnerável a Southwaite, de formas completamente novas.
O olhar do conde tornou-se mais caloroso e ainda mais direto. Conseguia ver a emoção secreta de Emma. Ela tinha a certeza disso. Os olhos dele transmitiam uma nova
intimidade que lhe causava arrepios internos alarmantes. Emma temia que ele o fizesse deliberadamente, para a distrair e a tornar mais dócil. Talvez também para
provar que sabia que o «Equívoco Escandaloso» se tornava menos presunçoso a cada novo contacto entre os dois.
– Hoje não está de luto.
A avaliação do conde desceu pelo corpo dela, antes de subir novamente, para encontrar os seus olhos.
Southwaite modulava a voz de um modo profundo e tranquilo. Possuía uma voz maravilhosa. Esse som afetava o sangue de Emma, mesmo quando ele a irritava. Naquele momento,
estava indefesa relativamente aos seus efeitos.
Tocou, timidamente, na musselina de tonalidade rosa-pálida que estava perto do seu ombro.
– Não vou aparecer em público. Não tenciono receber visitantes. Hoje ninguém irá ver-me.
– Eu estou a vê-la.
Estava, certamente, a vê-la. A atenção do conde oprimia-a. O mesmo acontecia com a forma como se apoiava na secretária, que o fazia pairar sobre ela como um gigante,
demasiado perto e demasiado presente.
– Está a repreender-me por usar roupa pouco apropriada para a ocasião?
Queria soar altiva, mas falou com um nervosismo esbaforido.
Um sorriso. Aquele sorriso desarmante. Era muito masculino. Oh, sim, Southwaite sabia o efeito que estava a provocar nela.
– Longe de mim repreendê-la por usar um tom que favorece tanto a cor da sua pele. Como disse, ninguém irá vê-la, a não ser eu. Estamos num local bastante resguardado.
Extremamente resguardado. Obediah deixara a porta ligeiramente entreaberta, mas não muito. Os funcionários pareciam estar a trabalhar a uma grande distância.
– Vai permanecer na cidade, Lord Southwaite? Ouvi dizer que prefere, frequentemente, ficar na sua propriedade rural, mesmo durante a temporada.
Falava para preencher o silêncio. Talvez o som a ajudasse a escapar ao feitiço que ele lhe lançava.
– Acabei de lá passar vários dias. Penso que permanecerei na cidade durante algum tempo.
Aquela não era uma boa notícia.
– Espero que tudo esteja bem no Kent.
– Pelo menos, está tudo normal. As unidades de voluntários vestem as suas cores e treinam, tal como fazem aqui em Londres. As marés ainda sobem e os contrabandistas
ainda atuam livremente. Com a Marinha mobilizada para deter os franceses, se nos tentarem invadir, neste momento há muito pouco que impeça o comércio livre na costa.
Foi necessário fazer um grande esforço para não reagir a esta mudança inoportuna do tema da conversa.
– Bem, eles não são uma ameaça real, ao contrário dos franceses.
– Se tudo o que atravessasse o canal fosse vinho e rendas, isso seria verdade. No entanto, também entram espiões e saem informações.
Tinha uma expressão apreensiva, como se a mente dele, na realidade, não prestasse muita atenção às suas próprias palavras.
Por outro lado, a mente de Emma ficara cada vez mais alarmada. Vinho e rendas. Até parecia que Southwaite sabia tudo sobre a carroça.
Emma esperou que ele dissesse algo mais, ou que se deslocasse. Mas nada disso aconteceu. Continuou ali sentado, a observá-la, com algumas considerações de âmbito
privado aparentes nos seus olhos.
A excitação dançava no peito de Emma. O ritmo do seu batimento cardíaco aumentava a cada momento que os olhares de ambos permaneciam ligados. Disse a si mesma que
estava a reagir como uma tola, mas isso não deteve a sensação.
Emma teve a impressão de que o conde estava prestes a mover-se. Conseguia senti-lo no ar, mais do que no corpo dele, embora a mão pousada sobre o tampo começasse
a erguer-se. Quase tão rapidamente como o iniciara, parou o movimento. Mais um olhar. Então, quebrou o feitiço que viera a exercer sobre ela, tão seguramente como
se tivesse fechado uma porta para a sua alma.
Emma sentiu-se de novo livre e na posse de si própria, mas não verdadeiramente feliz por estar assim.
Procurou uma linha de pensamento que afastasse o que acabara de acontecer.
– Segundo o Obediah, tentou obter esclarecimentos sobre alguns aspetos do negócio – disse, recordando a maneira como o rosto de Obediah se havia contorcido, num
aviso mudo, antes de ter abandonado o local.
– Pensei que devia examinar a contabilidade. Já a viu?
– O Obediah é o responsável por esses assuntos. O que sei eu sobre contabilidade?
– As contas não são difíceis de compreender, se forem bem feitas. As da leiloeira não são muito detalhadas, lamento dizer-lhe. Existem poucos nomes associados aos
ganhos e aos gastos.
Emma sabia do que ele falava. Tentara entender as contas, mas acabara por desistir. Existia uma grande variedade de explicações possíveis para a manutenção de registos
contabilísticos tão incompletos e ela suspeitava de que o conde ponderava todas essas hipóteses. Tendo em conta o que aprendera recentemente sobre os negócios do
pai, Emma não pretendia que o conde refletisse demasiado sobre o assunto.
– Sei que alguns proprietários queriam privacidade – tentou.
– Tantos?
– O meu pai tinha uma excelente memória. O resto da informação estaria, provavelmente, na cabeça dele.
– Sem dúvida – disse, empurrando a secretária e endireitando o casaco. – Espero, com algum esforço, conseguir entender os registos, mesmo sem a memória do seu pai
para me guiar.
– Talvez deva levar a contabilidade consigo, para poder analisá-la quando for oportuno.
Southwaite ponderou a sugestão, mas acabou por recusá-la, esboçando, com a mão, um gesto de afastamento.
– Fá-lo-ei aqui. Assim terei oportunidade de ver como Riggles melhora o leilão e se este deve sequer ser realizado.
Nessa altura, despediu-se. Quando o fez, os seus olhares cruzaram-se mais uma vez, muito fugazmente.
Durante aqueles breves segundos, Emma voltou a não conseguir desviar o olhar, ou movimentar-se, ou até mesmo respirar com facilidade.
– Está a ler, Southwaite? Incomodo-o?
Darius levantou os olhos do livro que segurava. Não estava a ler. Os seus pensamentos tinham estado entretidos com um Obediah Riggles extremamente nervoso, registos
de contabilidade suspeitosamente vagos e uma mulher bonita, num vestido cor-de-rosa, rodeada por prata antiga maravilhosamente trabalhada.
Naquele dia, quase beijara Emma Fairbourne. Gostaria de afirmar que tinha sido um impulso louco.
Contudo, ele nunca fora vítima de tais caprichos. Nesse dia, na divisão das traseiras, a decisão de a beijar havia sido precisamente isso: uma decisão, tomada com
muita tranquilidade. Não fora impulsiva, de todo. Pelo contrário, tinha sido totalmente premeditada.
O seu bom senso impedira-o de avançar. Presumia estar contente por isso. Em grande parte.
Provavelmente. O facto de, na verdade, não estar, impunha tão-somente a conclusão de que precisava de acabar com aquela aliança. Iria fazê-lo muito em breve.
– Não está a perturbar-me, Lydia – disse, colocando o livro de lado, enquanto a irmã se sentava numa cadeira próxima. – É bonito o vestido que traz.
Ela remexeu, com indiferença, o tecido que tinha no colo e encolheu os ombros. A criada penteara o cabelo escuro de Lydia segundo o mais simples dos estilos, um
carrapito na nuca. Este fora escolha de Lydia, não da subordinada.
Por motivos que não compreendia, a irmã não se preocupava com a sua beleza, nem com qualquer outra coisa. Durante o último ano ficara tão silenciosa, tão indefinida
e isolada do mundo, que, muitas vezes, temia pela saúde dela.
Perguntou a si mesmo se a irmã lhe pareceria ainda mais vaga e desprovida de calor naquele dia, por ele ter estado com uma mulher repleta de alma e humanidade vigorosa.
Quando olhava para os olhos de Emma Fairbourne, via uma mente ativa e uma natureza franca, com camadas de reflexão e de experiência.
Quando olhava para os olhos de Lydia, via... nada.
– Foi ao Kent – disse ela. – Não me levou consigo, como tinha prometido.
A voz de Lydia assumira um tom de acusação. O conde ficou contente por ouvir algo que refletia um pouco de emoção.
– Fui com alguns amigos. Não teria sido apropriado ir connosco.
Ela não discordou. Nunca o fazia. Apenas olhava para ele, com olhos pouco profundos e opacos.
– Quero ir viver para lá.
– Não.
Era uma velha discussão entre ambos. Aquela demanda incansável por isolamento preocupava-o, bem como tantos outros aspetos da personalidade da irmã.
– Encontrarei uma acompanhante, para não ficar sozinha.
– Não.
– Não entendo por que razão recusa o meu pedido, obrigando-me a permanecer na cidade.
– Não tem de compreender os motivos da minha decisão. Apenas tem de me obedecer.
Falou num tom exasperado, não devido à rebeldia de Lydia, mas sim por aquela conversa ser a única que ainda tinham um com o outro. Engoliu o seu ressentimento pela
situação e prosseguiu num tom mais calmo:
– Afastou-se da sociedade, dos seus amigos, dos seus parentes... – « de mim», pensou para consigo. – Não permitirei que dê o passo final, afastando-se até mesmo
da observação da atividade humana normal.
O olhar de Lydia fixou-se num ponto, localizado no tapete distante. Southwaite gostaria que ela se revoltasse verdadeiramente e iniciasse uma discussão. Qualquer
prova de emoção seria maravilhosa. Em vez disso, Lydia assumira o género de atitude que uma mulher poderia utilizar para uma noite formal, entre estranhos. Era como
se, um dia, tivesse coberto o rosto com uma máscara e se tivesse esquecido de como a tirar, após o regresso a casa.
Aquela ideia perturbava-o. Se colocasse a irmã na mesa certa, com as pessoas certas, a sua suavidade tranquila não pareceria invulgar, de todo. A peculiaridade,
que estava na origem da sua preocupação, era o facto de a máscara nunca ser removida, até mesmo com ele próprio. Especialmente com ele próprio.
– Se eu fosse um homem, você permitiria que eu fizesse tudo aquilo que sentisse a necessidade de fazer.
Lydia disse-o tranquilamente. Categoricamente. Em seguida, abandonou a biblioteca.
A divisão estremeceu durante um momento, devido à sua ausência súbita. No entanto, a impressão superficial que deixara no espaço desapareceu rapidamente.
Nenhuma divisão ousaria obliterar a presença de Emma Fairbourne daquela forma. Mas, afinal de contas, o espírito de Emma não sussurrava num tom monótono, não era
verdade?
CAPÍTULO 8
– Será apenas um jantar, com um grupo muito pequeno de convidados, Emma. Mrs. Markus pediu-me especificamente para a trazer – disse Cassandra, enquanto caminhava
com Emma pela Bond Street, na tarde seguinte.
– Quão pequeno?
– Não mais do que vinte pessoas, creio eu.
– Neste momento, seria impróprio da minha parte comparecer.
Fez um gesto abrangente, que abarcou o seu vestido cinzento suave e a ausência de qualquer ornamento, as provas do seu estado de luto.
– Mrs. Markus, obviamente, não pensa que tais restrições sejam necessárias para um evento social de pequena dimensão. Concordo plenamente e estou convicta de que
a mesma opinião é partilhada pelos restantes convidados. Aceitarei a sua escolha, se tiver de o fazer, mas tenciono planear-lhe uma agenda social preenchida, assim
que for aceitável.
Emma preferiria que Cassandra não o fizesse. Já acompanhara Cassandra a algumas festas e jantares.
Nunca se sentira confortável nessas ocasiões. Estava tão claramente fora do seu elemento, que era um milagre os outros convidados não se limitarem a tratá-la em
conformidade. « O tempo tem estado excecionalmente quente, não concorda, Miss Quem Quer Que Você Seja?» Ou « Cara Amiga Nova-Rica de Lady Cassandra, já decidiu como
irá sobreviver, agora que o negócio do seu pai foi posto em causa pela morte dele?»
Até mesmo a amizade de Cassandra era mais um feliz acidente do que uma aliança normal. Haviam-se conhecido dois anos antes, enquanto permaneciam ambas de pé, em
frente a um quadro, na exposição da Royal Academy of Arts. Emma murmurara para si mesma que o modo como o artista manipulava a forma era extravagante, mas fraco,
e Cassandra sentira-se despeitada pela observação, porque o artista era um amigo dela. Tinham discutido durante quinze minutos e conversado durante mais uma hora,
antes de Emma descobrir que a sua nova amiga era a irmã de um conde.
– Estarei demasiado ocupada para cumprir uma agenda social, qualquer que ela seja – argumentou Emma. – Tenho uma casa de leilões para gerir. Lembra-se?
– Espero que não se vá tornar alguém semelhante àqueles homens que só pensam em negócios e mais nada. Senão, com quem brincarei? Sei por que motivo evita os meus
convites, Emma. Prometo que, de futuro, só a convidarei para festas frequentadas pelas mentes mais democráticas e artísticas. Radicais e poetas jamais a colocarão
de parte. Não seria de bom gosto fazer tal coisa nos círculos sociais em questão.
– Tenho a certeza de que eles condescenderiam a conviver com uma pessoa como eu. Porém, continuarei a estar fora do meu elemento. O facto de você pensar que vinte
pessoas formam um pequeno grupo só confirma como os nossos mundos são tão diferentes e jamais se encontrarão.
Fizeram uma pausa, para admirar alguns tecidos italianos, na montra de um comerciante.
– Quanto a dedicar-me, exclusivamente, aos negócios, tentarei não ficar obcecada. Contudo, neste momento, quase não consigo pensar sobre outros assuntos. Felizmente,
recebi uma visitante ontem. Creio que poderá trazer-me mais consignações, aliviando-me de uma preocupação.
– Era alguém que eu conheça?
Continuaram a caminhar.
– Possivelmente. Era francesa, embora o seu inglês fosse bastante bom e nem sequer tivesse um sotaque carregado. Parecia pobre, mas possuía uma boa dose de estilo.
– Se era francesa, é pouco provável que a conheça. Os meus contactos com a comunidade de imigrantes cessaram quando o meu interesse pelo Jacques teve um destino
semelhante.
– Seguramente, as suas memórias não desapareceram.
– Tenho feito progressos, no sentido de encorajar o seu desaparecimento, muito obrigada.
– Penso que poderá ser uma artista – disse Emma. – Tinha manchas nas mãos, que pareciam ser de tintas, ou de outra substância que demorasse algum tempo a remover,
uma vez que ela não havia tratado do assunto.
Cassandra virou a cabeça para Emma, interessada.
– Poderiam ser manchas de tinta preta?
– Possivelmente. Sim, isso faz sentido, agora que as revejo na minha memória, mas eram maiores do que as expectáveis por escrever uma carta de forma descuidada.
– Então, poderei realmente saber quem ela é, embora nunca a tenha visto. Creio que recebeu uma visita da misteriosa Marielle Lyon. O que queria ela?
– Ela tinha algumas dúvidas sobre a consignação de artigos, para venda em leilão.
Não era uma mentira, embora fosse, definitivamente, outra falsidade.
– Preciso de mais lotes. Pensei que, se a conseguisse encontrar, lhe poderia oferecer uma comissão e ela encaminharia alguns dos seus compatriotas em direção à Fairbourne’s.
– Dizem que é sobrinha de um conde que sucumbiu à guilhotina. Desconhece-se o destino do resto da família. Ela fugiu sozinha, durante o Terror2.
– Que horrível.
– Hum. Contudo, alguns dos seus conterrâneos não acreditam nessa história e sussurram que ela é uma fraude. Jacques acreditava que ela era filha de um comerciante,
tendo assumido o passado de outra pessoa.
– Não é de admirar que a apelidasse de misteriosa. Suspeitam todos dela?
– Apenas alguns. Outros tratam-na como uma princesa. Tenho a certeza de que ela conhece alguns imigrantes que procuram converter tesouros em moeda.
Era essa a esperança de Emma. Porém, havia outras razões para querer encontrar aquela mulher misteriosa.
– Sabe onde ela mora?
– Não, mas talvez possa mostrar-lhe como encontrá-la.
Pouco tempo depois, Cassandra puxava uma grande meia-tinta3 para fora da caixa, numa loja que vendia gravuras. Apontou para a inscrição, na extremidade inferior
da imagem.
– Foi feita no estúdio dela. M. J. Lyon. É assim que ela esconde o facto de ser uma mulher.
Emma examinou a meia-tinta. Mostrava uma vista bastante desinteressante do Tamisa, perto de Richmond, e continha o nome e a morada do responsável pela impressão,
M. J. Lyon.
– Pressuponho que as manchas nas mãos dela poderiam ser das tintas utilizadas na impressão. Pelo menos encontrou uma forma de se sustentar, sem ter de realizar outro
tipo de serviços.
– Dizem que ela faz outras reproduções, nas quais coloca um nome fictício, que são menos... formais.
Cassandra transportou a gravura até ao proprietário da loja, e abriu a sua bolsa, para retirar algumas moedas.
– Escandalosas? – sussurrou Emma.
Sabia que existiam imagens muito perversas à venda, embora nunca as tivesse visto.
Cassandra recebeu a gravura enrolada e entregou-a a Emma.
– Engraçadas. Imagens humorísticas que atacam as fraquezas e hipocrisias da sociedade. Sátiras de líderes do governo. Jacques disseme que as vira e sabia que tinham
sido impressas por ela. Porém, não revelou o nome falso que ela usa.
– Porque não?
– Aparentemente, uma dessas sátiras tinha como objeto o meu irmão, usando as orelhas e a cauda de um burro. Que estúpido foi o Jacques, ao pensar que eu me importaria
com a brincadeira.
Cassandra deu o braço a Emma e guiou-a para o exterior da loja.
– Agora, conte-me tudo sobre essa ideia de oferecer comissões, se alguém trouxer proprietários até si.
Sinto-me insultada por não ter pensado em mim, se queria recrutar tais agentes, em vez de considerar uma mulher cujo nome nem sequer sabia.
Antes que Emma tivesse a hipótese de responder, foram interrompidas por uma carruagem imponente, que se deteve no meio da rua, próximo do local onde se encontravam.
As rodas ainda não haviam parado por completo, quando a porta se abriu de par em par e Lord Southwaite saiu, bloqueando o percurso delas e fazendo uma vénia.
– Miss Fairbourne, que acaso tão feliz vê-la quando estava de passagem. Ia a caminho da sua casa, para a visitar – proferiu, fazendo então nova vénia, na direção
de Cassandra. – Lady Cassandra.
Cassandra presenteou-o com um sorriso extremamente forçado.
– É sempre uma alegria vê-lo, Southwaite. Posso perguntar como vai a sua irmã?
Com uma expressão amável, mas de olhos semicerrados, o conde manteve a falsa aparência de amizade.
– Vai muito bem. Diria mesmo que prospera. E a sua tia, Lady Cassandra? Tem saído de casa ultimamente?
– Hoje em dia, a minha tia sente que o conforto da sua própria casa ultrapassa o da residência de qualquer outra pessoa.
– Tenho a certeza de que a sua companhia é um grande consolo para ela.
– Gosto de pensar que assim é.
Emma quase gemeu. Não gostava de ser obrigada a ouvir aquelas saudações vazias, quando estava com Cassandra. Nenhuma das pessoas envolvidas se preocupava com a outra.
Fora perverso da parte de Southwaite dar-se ao trabalho de iniciar uma conversa tão inútil.
– Lady Cassandra, espero que não se importe que lhe roube Miss Fairbourne – disse Southwaite, ainda delicado e educadamente brando. – Preciso de ter uma conversa
com ela, que não deve ser adiada.
Cassandra olhou com curiosidade para Emma, que, naquele momento, tentava parecer tão indiferente como os seus dois companheiros. Encolheu ligeiramente os ombros,
para que o gesto fosse visto somente por Cassandra.
– Diz respeito ao património do seu pai – explicou Southwaite a Emma.
– Oh! – exclamou Cassandra. – Não sabia que tinha um papel na resolução desse assunto, Southwaite.
Olhou para Emma, francamente interessada e parecendo também um pouco magoada.
– Tenho a certeza de que o assunto de Lord Southwaite poderá esperar até amanhã – disse Emma.
– Na verdade, devia ter lugar hoje – corrigiu ele, abrindo, de seguida, a porta da carruagem.
As sobrancelhas de Cassandra ergueram-se um pouco.
– Southwaite, entrego-lhe a minha amiga, para que ela fique sob a sua proteção e não para que a exponha a qualquer tipo de escândalo. O senhor conde, melhor do que
ninguém, devia saber como se comportar.
Southwaite corou, não tanto devido à raiva como ao embaraço. Emma questionou-se se alguma vez voltaria a observar aquele fenómeno.
– Tem de permanecer connosco, Cassandra – disse Emma.
– Os instintos de Southwaite, relativamente à discrição, estão a dizer-lhe que isso seria pior. Não é verdade, caro conde?
– Então, teremos de adiar a conversa para amanhã – disse Emma, triunfante.
– Não, de todo – disse Southwaite. – Lady Cassandra, talvez pudesse acompanhar Miss Fairbourne até ao parque. Seguirei o mesmo caminho. Uma vez lá, poderemos passear
por onde quisermos e ter as conversas que forem necessárias.
Cassandra ponderou bem a ideia. Resmungou, dizendo que tal passeio não estava incluído nos seus planos e que preferiria não ser desviada destes. No entanto, por
entre muitos murmúrios descontentes sobre a teimosia de certos cavalheiros, que pensam que o mundo inteiro deve aceder aos seus pedidos, acabou por concordar com
o plano sugerido.
Emma dirigiu-lhe palavras fortes, após terem regressado à carruagem.
– Podia ter-me ajudado a sair desta situação. Quase o fez.
Cassandra virou os seus grandes olhos azuis para ela.
– Isso teria sido mau para si, Emma. Seja o que for que o conde lhe quer dizer, poderia ser dito em qualquer outro dia. Poderia até ser dito pelo solicitador dele,
se bem pensar sobre o assunto.
– Tem toda a razão. É por isso que não devia tê-lo deixado montar esta armadilha e muito menos ter-se tornado sua cúmplice.
– Querida, não me preocupo minimamente com Southwaite, mas ele é um conde. E quando um conde se dá a um certo trabalho para passar tempo com uma mulher, esta deveria,
pelo menos, descobrir porquê.
Emma sabia o porquê das ações de Southwaite. Queria ter a conversa sobre a leiloeira que ela conseguira, até ao momento, evitar.
– Se quer a minha opinião – refletiu Cassandra –, penso que Southwaite está a tentar seduzi-la.
– Que ideia mais absurda. Como acabou de referir, ele é um conde.
– Neste momento, ele não possui qualquer amante. Dispensou a última há um mês. Logo, tem de tentar seduzir alguém. Porque não você?
Emma pensava que a resposta a essa pergunta era óbvia. Não estava disposta a enumerar as várias razões pelas quais os homens, e, especialmente, os condes, não a
tentavam seduzir.
– Que bom seria, se estivesse certa – disse Cassandra. – Espero que seja esse o caso. Tenho a certeza de que será incapaz de o tolerar, Emma, por isso a tentativa
será em vão. Não me importaria de vê-lo receber o castigo que merece. Porém, penso que devia praticar as suas artes da sedução, antes de o rejeitar por completo.
Como não gostará muito do conde, não haverá qualquer perigo, mas a frustração dele será ainda maior.
Emma teve de banir da sua mente todas as recordações dos seus encontros com Southwaite, para evitar corar. Só o conseguiu fazer mudando o assunto da conversa.
– Penso que subestimou a situação, quando disse que não se davam bem.
– Ele nunca me perdoou por me ter tornado amiga da sua irmã. Ela é uma jovem muito querida, mas algo peculiar. Como também eu sou algo peculiar, dávamo-nos bastante
bem. Por isso, Southwaite proibiu a amizade – justificou Cassandra, fazendo uma careta. – E, como tal, atualmente, a pobre Lydia não tem amigos, de todo.
– Que cruel da parte dele.
– Acredito que, quanto mais o conhecer, menos gostará dele. Prevejo esse resultado com um prazer confiante.
– Ficará dececionada. Ele não está a tentar seduzir-me.
Cassandra riu-se e acariciou a mão de Emma, num gesto maternal de condescendência.
2 O Terror foi a fase mais violenta e radical da Revolução Francesa. Liderada pelos jacobinos (pequenos comerciantes e profissionais liberais), e com uma grande participação das camadas mais pobres da população, durou de 1792 a 1794. Durante este período, milhares de pessoas foram guilhotinadas. (N. do T.) 3 Tipo de gravura em que é utilizada uma matriz metálica, inventada no séc. XVII. Possibilita a obtenção de tonalidades intermédias, originando imagens de elevada qualidade. (N. do T.)