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CAPÍTULO 9
Southwaite aguardava a chegada de ambas no parque, permanecendo de pé, onde a sua carruagem parara, em Rotten Row4. Não aparentava ser um homem que estivesse a tentar
seduzir alguém. Emma pensou que ele parecia mais um homem que acabara de ingerir comida estragada. Embora não visse com bons olhos a eventual existência de provas
de que ele a tentava seduzir, o verdadeiro motivo do interesse revelado pelo conde parecia-lhe bem pior.
Cassandra passeou com eles não mais do que, aproximadamente, quinze metros, até ver uma amiga e desviar o seu percurso na direção daquela. Emma continuou a caminhar,
ao lado de Southwaite, dando dois passos por cada uma das passadas gigantes do conde.
– Está na altura de conversarmos sobre o assunto que motivou a minha primeira visita à sua casa, não concorda, Miss Fairbourne? Sempre que levanto a questão, consegue
desviar o rumo da conversa.
Contudo, o futuro da empresa do seu pai tem de ser decidido. Não me dá qualquer prazer desapontá-la, ou frustrar os seus planos cuidadosamente definidos, mas cheguei
à conclusão de que o negócio tem de ser vendido, o mais rapidamente possível, para o seu próprio bem.
Saiu tudo de uma só vez, como se Southwaite tivesse ensaiado o discurso à frente de um espelho, para garantir que transmitia a sua determinação, tanto no tom de
voz como na expressão.
– Para o meu próprio bem? Ousa tentar articular a sua proposta de forma a que soe como se estivesse a fazer-me um favor? Isso é ridículo, Lord Southwaite. É mais
provável estar a tentar vingar-se pelo constrangimento que experienciou, devido às suas presunções.
– Não conseguirá distrair-me com uma discussão, ao referir esse episódio agora. Desta vez, não irá funcionar.
– Penso que devemos esperar até se ter realizado o próximo leilão, para discutirmos o assunto.
– Não se atreva a tratar-me como um tolo, Miss Fairbourne. Sei o que está a tentar fazer. Após esse leilão, irá planear outro e mais outro. Cada um diminuirá, consecutivamente,
o prestígio da Fairbourne’s.
Não acredito que o Riggles consiga gerir o negócio, como a menina afirma.
– Acredito eu. Ele é muito competente.
– Deveras? Parecia incapaz de responder às perguntas mais simples que lhe coloquei sobre a contabilidade e reagiu como se nunca tivesse ouvido falar de Andrea del
Sarto. Não, já tomei a minha decisão final. Começarei imediatamente a procurar um comprador e o assunto ficará resolvido.
E não havia qualquer hipótese de debate, dizia o seu tom de voz. O aristocrata falara.
– Os lucros irão garantir o seu futuro – disse Darius, para realçar os benefícios do plano que traçara.
Miss Fairbourne reagiu mal às palavras, de uma forma que não podia passar despercebida. Frágeis luzes brancas brilharam nos seus olhos azul-claros. Manchas rosadas
inoportunas invadiram-lhe a pele, outrora impecável.
– Pode vender a sua metade, se o quiser fazer – disse ela. – Na verdade, espero que o faça, para o meu próprio bem, porque está a tornar-se uma praga.
Southwaite parou a meio de uma passada, ao ouvir o insulto descarado. Miss Fairbourne apelidá-lo de praga era verdadeiramente ridículo, vindo de uma mulher que provavelmente
passava várias horas, diariamente, a planear exatamente quão cáustica seria no dia seguinte.
– Devia estar grata por alguém se preocupar consigo – disse ele.
– Céus! Não considera ser suficientemente mau querer arruinar-me a vida, destruir todas as minhas recordações e fazer-me pôr em causa o meu dever? Não piore a situação,
fingindo ser meu protetor. Já revelou a sua verdadeira disposição relativamente à minha pessoa. Eu seria uma idiota, se acreditasse que teve o meu bem-estar em consideração.
Southwaite desejou não a ter visto na rua e não ter combinado aquela conversa num local público. A franqueza e a grande emotividade de Emma Fairbourne não eram minimamente
inibidas pelo facto de se encontrar em público e rodeada de outras pessoas. O conde, por outro lado, tinha uma consciência extrema de que não estavam sozinhos no
parque. Não se sentia suficientemente livre para soltar, ou revelar, a sua irritação crescente, independentemente do modo escolhido para o fazer.
Forçou um sorriso e uma postura informal, para que alguém que os observasse pudesse acreditar que aquela era uma conversa amigável.
– Compreendo que, provavelmente, vê a leiloeira como uma encarnação do espírito do seu pai, Miss Fairbourne. No entanto, a fortuna dele era o negócio e o respetivo
património. Se quer recuperar alguma coisa de valor, se quer ter algum rendimento, a empresa tem de ser vendida.
– Nisso está errado. O meu rendimento virá da própria Fairbourne’s. Na verdade, é a única alternativa que me resta para ganhar algum dinheiro. A venda do negócio
não irá garantir o meu futuro, pelo mesmo motivo que a impede de ser realizada, de todo – explicou. – A metade da Fairbourne’s que o senhor conde não possui não
foi legada a mim, mas sim ao filho mais velho do meu pai. Pertence agora ao meu irmão, Robert.
A teimosia dela provinha daquilo? Era inconcebível que mantivesse aquela posição.
– Sei que o seu pai ainda tinha a esperança de que o seu irmão regressasse. Porém, tem de estar ciente de que isso nunca acontecerá.
– Apenas estou ciente do seguinte: o herdeiro do meu pai é o meu irmão e tenho o dever de preservar a herança do meu irmão até que ele regresse.
Darius controlou a raiva que crescia dentro de si, mas tornava-se mais difícil fazê-lo a cada palavra de Emma. Havia solicitado aquele encontro após ter tido um
longo debate consigo próprio. Concluíra que estava na altura de resolver uma questão simples e, com os diabos, estava decidido a tratar do assunto.
– Está determinada a forçar-me a ser cruelmente direto, Miss Fairbourne.
– Nunca me opus a conversas francas. Aprecio-as.
– Então, dê às minhas declarações o valor que lhes é devido. O seu irmão não regressará. Tem de ir a tribunal, pedir que o declarem morto e tem de reclamar a herança.
Em seguida, a leiloeira será vendida.
Aconselho-a a investir os seus lucros em títulos, para que tenha acesso a um rendimento fixo regular. O
meu solicitador irá providenciar a compra e tratará dos aspetos necessários com o banco.
A expressão dura de Emma suavizou-se progressivamente, enquanto ouvia as palavras de Southwaite.
Ainda antes de o conde ter terminado o discurso, assumiu uma aparência triste e vulnerável. Subitamente, o olhar de Emma brilhou e adquiriu novas profundidades.
Aquele olhar corajoso e direto hipnotizou-o por um instante, durante o qual, mais uma vez, perdeu a raiva que sentira e até mesmo os seus próprios pensamentos. Então,
percebeu que o efeito tinha sido causado por lágrimas, que inundavam aqueles charcos azuis.
Com os diabos, ela ia começar a chorar.
Emma recompôs-se, em vez de sucumbir completamente à emoção. Isso impressionou-o e aliviou-o.
Contudo, naquele momento, estava em desvantagem. Novamente.
Southwaite semicerrou os olhos enquanto a observava, tentando perceber se Emma chamara as lágrimas especificamente para assumir o controlo da situação. Conhecia
demasiadas mulheres que estavam habituadas a fazê-lo. Porém, a luta de Miss Fairbourne com a emoção parecia verdadeira.
Amaldiçoou-se por ter falado de um modo tão severo.
Ela fungou.
– O meu pai nunca pediu que o meu irmão fosse declarado como morto e não me cabe a mim fazê-lo agora, revelando tão pouca fé. O Robert está vivo, tenho a certeza
disso. Sinto-o no meu coração. Sempre o senti. Sei que parece irracional. Até a Cassandra é dessa opinião, mas não me importo. Não reivindicarei a parte da Fairbourne’s
que pertence ao Robert.
Darius não apreciava o que estava prestes a dizer, mas Miss Fairbourne claramente não compreendia o quão vulnerável se encontrava. Tentou que a sua expressão fosse
mais amável do que seriam as suas palavras.
– Posso forçar a venda do negócio. Caso o faça, ficará desamparada se os lucros obtidos em troca da metade do seu pai forem colocados de parte para um herdeiro que
não a menina.
Emma virou os seus olhos, azuis e humedecidos, para ele, chocada.
– Seria cruel a ponto de suprimir o sustento de uma mulher sozinha?
Southwaite enfrentou aqueles olhos tristes. Abruptamente, e de um modo que o irritou, perdeu toda a sua determinação.
Teve de lutar contra o desejo de segurar a cabeça de Emma entre as mãos e beijar aquelas lágrimas até desaparecerem.
– Com o seu pai ausente, o negócio não poderá sustentá-la. Mr. Riggles não consegue assumir as funções dele. Ninguém o consegue fazer. Não permitirei a realização
de um leilão que poderia resultar em fraude involuntária. Para além disso, se não tratarmos da venda, a Fairbourne’s perderá todo o valor que possui em menos de
um ano. Nada restará para si, nem para o seu irmão, se ele realmente regressar.
Emma fungou mais algumas vezes. Cada uma delas parecia sublinhar o quão insensíveis haviam sido as palavras do conde.
– Ouvi tudo o que disse, Lord Southwaite. Agradeço e compreendo as suas preocupações. Assim, aceitarei um compromisso. Direi ao Obediah para continuar com os preparativos
do próximo leilão. Dar-lhe-ei instruções para que este seja tão grandioso quanto possível, a fim de provarmos que o senhor conde está errado.
Não acabara de lhe dizer que não permitiria a realização de outro leilão? Será que Emma não ouvira o que ele dissera, ou simplesmente havia escolhido ignorá-lo?
Um homem e uma mulher aproximavam-se, no caminho de terra batida. Os olhos húmidos de Miss Fairbourne seriam visíveis para qualquer pessoa que a observasse de perto.
Southwaite entregou-lhe rapidamente o seu lenço, para evitar que as secções de escândalos aparecessem repletas de referências ao facto de «Lord S» ter despertado
as lágrimas numa mulher desconhecida, no Hyde Park, a meio do dia.
Emma tentou enxugar os olhos, mas não foi muito bem-sucedida. Aquele olhar líquido continuou a fixá
lo, aguardando a reação do conde ao novo plano.
Maldição.
– Quando pensa que o Riggles conseguirá ter o leilão pronto?
– Daqui a três semanas, creio eu.
O rosto de Emma iluminou-se com alegria e alívio.
– Oh, obrigada, Lord Southwaite, por ser tão bondoso e gentil. Verá o quão bem a Fairbourne’s se sairá com o leilão. Tenho imensa fé no Obediah e o senhor conde
também pode ter.
Southwaite não se lembrava de ter sido gentil. Apenas perguntara...
– Agora, tenho de encontrar a Cassandra.
Emma recomeçou a caminhar. Quase alegremente. Nem uma lágrima à vista.
– Ah, ali está ela – observou, quando as carruagens ficaram visíveis. – Ficará extremamente dececionada por ter estado tão equivocada relativamente às suas intenções.
– Como assim?
– A Cassandra não sabe do seu investimento na Fairbourne’s. Obviamente, assumi que desejava que este permanecesse secreto. Assim, ela... vai considerar isto divertido.
Ela pensa que o senhor conde está a tentar seduzir-me.
– Que ideia mirabolante.
– É, não é?
Miss Fairbourne riu-se, enquanto caminhavam na direção das carruagens.
– Ela nem sequer tem conhecimento do «Equívoco Escandaloso» que ocorreu naquele primeiro dia de entrevistas. A imaginação dela criou esta ideia absurda a partir
do nada.
– Espero que lhe tenha explicado o erro.
– É claro que lhe expliquei, mas ela pensa que sou excessivamente ignorante para ver o que está à frente do meu nariz.
– Lady Cassandra é uma mulher conhecida por apreciar intrigas românticas. Possivelmente, acredita que a restante população mundial também preza esse passatempo.
Como já mencionei, se a vossa amizade se tornar pública, algumas pessoas certamente pensarão que também aprecia o mesmo género de atividades.
Recebeu um olhar penetrante como resposta.
– Estou certa de que pensa estar a ajudar-me com os seus conselhos, Lord Southwaite, mas não gosto de ser afastada dos meus amigos. Por favor, não presuma que possui
tamanha autoridade. Não sou sua irmã.
Com que então Lady Cassandra partilhara aquela história sobre Lydia? Bem, não voltaria a repreender a sua companheira de conversa.
Miss Fairbourne estava certa. Não era sua irmã, nem sequer responsabilidade sua. Não tinha a obrigação de a salvar do que quer que fosse, nem mesmo dos escândalos.
Darius entregou Miss Fairbourne a Lady Cassandra, cujos olhos ansiosos pressagiavam o interrogatório que esperava a primeira, quando ficassem sozinhas. Após um aceno
feliz, feito à janela, e um sorriso, apenas ligeiramente presunçoso, Miss Fairbourne afastou-se.
Darius trepou para o interior da sua própria carruagem. A conversa não correra bem. Nem mesmo a sua franqueza severa fora bem-sucedida junto de Emma. Na verdade,
suspeitava que ela o conduzira exatamente até onde queria, não tendo sequer hesitado enquanto o fazia.
Se quisesse avançar com a venda da Fairbourne’s, obviamente teria de mudar de estratégia. Durante a última semana, aprendera uma coisa ou duas sobre aquela mulher.
Estava confiante de que existiam maneiras melhores, para além do raciocínio e da conversação, de conseguir que Emma Fairbourne se rendesse à sua forma de pensar.
4 Amplo caminho de terra batida, localizado na parte sul do Hyde Park, em Londres. Durante os séculos XVIII e XIX, era um lugar muito frequentado pelos membros da
alta sociedade londrina. (N. do T.)
CAPÍTULO 10
Darius reacendeu o seu charuto e deu-lhe três passas profundas, enquanto ouvia Ambury descrever uma aventura recente. Do outro lado da mesa, Kendale reteve o fumo
do seu charuto e bebeu uma quantidade generosa de brandy.
– Isto é nada mais do que tocar violino enquanto Roma arde5 – resmungou Kendale, interrompendo a história de Ambury. Os seus olhos verdes disparavam as faíscas iradas
que tantas vezes marcavam a sua expressão. Com a mão livre penteou o cabelo escuro, num gesto que fazia quando estava irritado, o que parecia ocorrer muito frequentemente
nos últimos tempos.
– Penso que devia pegar no seu cavalo e passar o próximo ano a subir e a descer a costa, certificando-se de que estamos todos seguros, Kendale. Sei que eu iria dormir
melhor se você o fizesse – disse Ambury.
Kendale não estava absorvido nos seus próprios pensamentos a ponto de não conseguir identificar o sarcasmo do companheiro. O seu olhar transmitiu a desaprovação
que sentia relativamente à atitude despreocupada de Ambury, quando tudo apontava para que forças diabólicas tivessem um certo interesse pelo assunto discutido, tendo
andado muito atarefadas ultimamente. Kendale pertencia à esmagadora maioria dos cidadãos que acreditava que os franceses tentariam uma invasão em breve. Ambury estava
menos convencido desse facto. Porém, tal como Darius, pensava que deviam tomar determinadas precauções. Tinham passado os últimos quatro meses a organizar um sistema
de vigilância na costa sudeste, cujo principal objetivo era, não o avistamento de uma frota francesa mas sim a deteção de invasões singulares insidiosas.
Darius interveio na conversa, para que os dois amigos de longa data não iniciassem uma discussão ali mesmo, no Brooks6.
– Kendale, fizemos tudo o que podia ser feito. É demasiado trabalho para um só homem, ou mesmo para três.
Ou quatro, ou cinco. O facto de o grupo ter diminuído, em relação ao seu tamanho de há vários meses, pairou no ar durante um momento, embora não chegasse a ser verbalizado.
Todos os olhares se encontraram, num reconhecimento silencioso da verdade.
– Forjámos uma cadeia repleta de elos fracos. Também não gosto de partilhar a cama com criminosos – disse Kendale. – Ao contrário de algumas pessoas.
Fez questão de não olhar para as « algumas pessoas» que havia mencionado.
– Só vou para a cama com criminosos do sexo feminino. Faço-o muito raramente e pela melhor das razões – afirmou Ambury. – Penso que o seu humor sofreria uma melhoria
considerável, caso partilhasse a cama com quem quer que fosse, Kendale. Se aperfeiçoarmos a sua conduta, poderá alcançar algum sucesso na iniciativa antes das festividades
de São Miguel7.
Kendale praguejou uma obscenidade rude. Perto do grupo, estavam sentados dois cavalheiros, que discutiam sobre a rebelião na Irlanda. Ao ouvirem a exclamação de
Kendale, cessaram a conversa e ergueram as sobrancelhas.
– Olhe, Kendale, não estamos numa messe de oficiais – advertiu um deles.
Kendale chupou as bochechas para dentro.
– É uma pena.
Ambury ignorou-o.
– Como estava a dizer, antes de Kendale começar a ser mal-educado, a minha pequena investigação em nome da senhora foi concluída com sucesso. Agora, ela tem provas
de que o marido era cúmplice do seu administrador, na tentativa de vender as terras que ela tinha herdado.
– Espero que a senhora conheça um bom advogado, com amigos em Chancery8 – proferiu Darius.
– Fiz algumas recomendações relativas a esse aspeto.
– Também espero que tenha sido bem pago, mas de uma forma discreta, para que o seu pai não ouça que anda a vender os seus serviços, como um vulgar comerciante.
– Muito bem pago e muito discretamente. O conde jamais terá conhecimento do sucedido.
– Em moeda, ou em gratidão?
Ambury não respondeu. Kendale riu-se, de um modo sombrio.
– O que usaram para lhe pagar não manterá os oficiais da justiça afastados.
– Temo que tenha razão. No entanto, naquele momento, pareceu-me muito bom negócio.
Darius deixou Ambury entregue às memórias desse negócio, enquanto Kendale se entregava à eterna contemplação do que quer que fosse que o fazia cismar.
Os seus próprios pensamentos vaguearam até à Fairbourne’s, um destino que se tornara mais frequente nos últimos tempos. Não demorou muito para que tais pensamentos
não se debruçassem sobre leilões, nem sobre investimentos imprudentes, nem mesmo sobre contas vagas, mas sim, mais uma vez, sobre uma mulher com um vestido rosa,
sentada na luz empoeirada, rodeada por objetos em prata brilhantes.
– Está preocupado com algo – disse Ambury, enquanto pedia mais brandy.
– Sim, pressuponho que estou – respondeu Darius. – Se quer saber, estou a ponderar um aspeto de etiqueta.
Kendale riu-se, ironicamente.
– Se alguma vez tiver a oportunidade de dizer o que penso ao meu irmão, a propósito de ele ter partido o pescoço naquela queda, deixando-me preso a este título,
os aspetos de etiqueta serão uma componente em destaque nas minhas queixas.
– Pare de reclamar, como se o homem procurasse torná-lo infeliz ao deixar-lhe uma fortuna e um título.
O Exército ainda tem mais etiqueta do que nós. Logo, está a ser ridículo – criticou Ambury.
– Porém, no Exército, a etiqueta não é inflexível.
– Quer dizer que, no campo de batalha, os cavalheiros podem, por vezes, comportar-se como patifes?
Poupe-me os detalhes.
Ambury virou claramente a sua atenção para Darius.
– Southwaite, nunca encontrei um homem que, como você, conseguisse mostrar ao mundo um comportamento tão perfeito, enquanto, em privado, vive como quer. Pensava
que esse talento implicava nunca ter a necessidade de refletir sobre aspeto algum, relativamente a quando seria recomendável ceder à decência e quando seria preferível
ignorá-la.
– O aspeto a que me referi tem que ver com uma mulher.
– Então, Kendale não o poderá auxiliar. Sou a sua única esperança para obter bons conselhos.
Kendale não discordou. Recostou-se na cadeira e continuou a fumar, retirando-se da conversa. Darius colocou a questão a Ambury, mas sentiu-se ridículo ao fazê-lo.
– É apropriado tentar seduzir uma mulher que está de luto? Recentemente, quase beijei uma.
– Luto completo, ou luto parcial?
– Completo. Mas...
Darius sentia a obrigação de esclarecer melhor a situação, para sua própria defesa.
– Tenho bons motivos para considerar que ela já não está prostrada pela dor. Atrevo-me a dizer que é o género de mulher que não perde o discernimento em momento
algum, nem mesmo durante um período desses.
– Pondero que deve agir com cuidado, como já concluiu. Contudo, deixaria que a senhora expressasse a sua opinião. Ela poderia considerar um beijo muito reconfortante.
Kendale decidiu que, afinal, os seus conselhos eram necessários.
– Se não agiu, Southwaite, foi porque sabia que não o devia fazer. Parece-me que está apenas a tentar justificar a hipótese de a seduzir, quando sabe que seria uma
desonra.
Ambury suspirou profundamente, devido à falta de tato do amigo.
– Ele mencionou um simples beijo, Kendale. Sabia que o Exército o iria endurecer um pouco, mas, com franqueza...
– Se o ato de falar abertamente, em vez de proferir disparates espirituosos sem qualquer sentido, me torna rude, que assim seja. Quanto ao simples beijo, quando
foi a última vez em que qualquer um de nós beijou uma mulher sem ter em vista o objetivo de a conquistar? Com os diabos, já não somos rapazes imberbes.
Darius teria objetado, relativamente a alguns desses disparates espirituosos sem qualquer sentido, mas Kendale estava certo. Ironicamente, a rudeza de Kendale derivava
de uma mente que via o mundo com uma nitidez extrema.
– Com os diabos! – resmungou de novo Kendale, endireitando-se na cadeira e desviando, subitamente, a sua atenção, para longe da mesa na qual se encontravam. – Pensava
que o bastardo tinha ido para norte.
Darius virou a cabeça, mas já adivinhara o que havia despoletado novamente as blasfémias de Kendale. Um homem acabara de entrar na divisão, juntando-se a um grupo
que se encontrava perto da porta. Alto, elegante e deliberadamente antiquado, com o seu colete de seda brocado e a sua trança escura, olhou uma vez na direção deles,
cruzou o seu olhar com o de Darius e reagiu apenas o suficiente para reconhecer a existência daquele grupo afastado que observara a sua entrada.
– Penthurst? – perguntou Ambury, sem tentar ver o recém-chegado. Não recebeu qualquer resposta, o que, por si só, já era bastante informativo.
O olhar de Kendale era de tal maneira cortante, que os seus olhos aparentavam ser capazes de lançar punhais.
– Estou a pensar seriamente em...
– Não, não é uma boa ideia – reprovou Ambury. – Reflita melhor sobre o assunto, como Southwaite e eu aprendemos a fazer.
– Foi um duelo, Kendale – disse Darius, energicamente, ouvindo a sua própria voz, que parecia masculina e tolerante, mesmo quando ele próprio ainda nutria outras
emoções. – Fui o padrinho dele e, por isso, sei que tudo decorreu como devia.
– Foi um homicídio.
– O Lakewood é que lançou o desafio.
Ambury quase parecia entediado, como se a necessidade de recordar Kendale, e ele próprio, daquele facto se tivesse tornado cansativa.
– No entanto, foi uma coisa infernal, sem dúvida. Quem imaginaria que o Lakewood morreria num duelo realizado por causa de uma mulher?
Sim, quem imaginaria. O barão Lakewood não fora um homem de quem se esperasse que perdesse rapidamente a cabeça, ou o coração, devido aos encantos de uma mulher,
quanto mais a vida. Contudo, era isso que tinha sucedido. Consequentemente, haviam perdido um bom amigo e desde então o seu círculo nunca mais fora o mesmo.
Na verdade, tinham perdido dois bons amigos.
Darius sentia a presença de Penthurst na outra extremidade da divisão, lançando uma cortina sombria sobre o pequeno grupo que formavam. Deviam tê-lo dissuadido.
As palavras fluíam de forma inaudível, ecoando as únicas que haviam sido trocadas entre Darius e Penthurst, desde aquela trágica manhã.
Sim, deviam tê-lo feito.
– Maldição! – exclamou Ambury, irritado pelo facto de o seu bom humor ter sido estragado. – Com os diabos, sinto a falta dele.
Não ficara claro a que velho amigo desaparecido se referia.
O cocheiro de Emma veiculou a sua opinião de que aquela visita era imprudente. Enquanto a ajudava a sair da carruagem, manteve-se extremamente atento ao que se passava
atrás de si, observando a multidão que se aglomerava naquela rua estreita, perto da muralha de Londres. Contemplou as vestes grosseiras e encolheu-se, devido às
saudações estridentes e aos gritos ruidosos que ecoavam pelo ar.
– Penso que será melhor acompanhá-la, Miss Fairbourne.
Olhou para o cavalo, com pesar. Bateu-lhe suavemente na garupa, como se estivesse a dizer adeus.
– Vou para o edifício que fica já ali mesmo, Mr. Dillon. Aquele que tem a porta azul-escura. Noto a existência de muitas janelas, várias delas abertas. Talvez deva
permanecer aqui com a carruagem e ficar alerta. Chamá-lo-ei se houver algum problema, ou se precisar da sua proteção.
Mr. Dillon continuou cético. Emma assegurou-lhe que não podia dar-se ao luxo de perder o cavalo, da mesma forma que ele não queria perder a sua empregadora. Antes
que Mr. Dillon pudesse protestar mais, Emma percorreu os nove metros que a separavam da porta azul.
Uma mulher corpulenta, envergando um vestido bege simples, uma touca branca e um avental, abriu a porta. Emma explicou-lhe que queria falar com M. J. Lyon.
Sem se dar ao trabalho de aceitar o cartão de visita oferecido por Emma, a mulher rodou sobre os calcanhares e afastou-se. Emma não sabia se aquela atitude havia
sido uma rejeição ou um convite.
Decidindo assumir que a última hipótese era a correta, seguiu a saia antiquada até uma divisão que devia ter sido projetada como a sala de jantar daquela casa.
Um grande número de mesas atulhava o espaço, enquanto pilhas de papéis preenchiam as estantes.
Algumas mulheres debruçavam-se sobre as mesas, mergulhando pincéis e pequenos aglomerados de trapos em tinas que continham tintas coloridas, aplicando-os, de seguida,
nas gravuras colocadas à sua frente.
Os murmúrios enchiam a divisão, à medida que as mulheres falavam umas com as outras. Emma ouviu o suficiente para saber que eram todas francesas. Algumas vestes
e perucas sumptuosas podiam ser avistadas sob os aventais e as toucas. Calculou que fossem todas imigrantes, aristocratas e outras mulheres de boas famílias, que
tinham abandonado uma França que se tornara perigosa para elas e para as suas famílias.
A estranha guia abandonou-a e seguiu caminho, espremendo-se por entre mesas e cadeiras, até à parte de trás da divisão. Em seguida, proferiu algo e apontou para
Emma. Nesse momento, uma mulher, que até então estivera debruçada sobre uma das mesas, conversando com outra das trabalhadoras, ergueu a cabeça. Marielle Lyon, a
mulher que entregara a carroça a Emma, olhou para a sua visitante, que se encontrava na extremidade oposta da sala.
Marielle abriu caminho até ao local onde Emma aguardava.
– Como conseguiu encontrar-me?
Emma abriu a bolsa e retirou do seu interior a meia-tinta enrolada, que Cassandra havia comprado.
– Uma amiga minha adivinhou quem a senhora seria, através da minha descrição. Assim que lhe disse que as suas mãos estavam manchadas de tinta, ela calculou que a
senhora fosse a mulher por detrás do nome que se encontra nesta gravura.
Marielle fez uma careta.
– Não tinha a noção de que o mundo inteiro sabia que este estúdio me pertence. Tenho de inventar outro nome.
– Ela é amiga de alguns dos seus compatriotas. É por essa razão que sabia a sua identidade, e não pelo mundo inteiro ter conhecimento da sua situação.
– Já a conhecem pessoas suficientes. Talvez até demasiadas. Em breve, as lojas que vendem gravuras não aceitarão as imagens feitas por tantas mulheres francesas.
Uma pergunta, proveniente de uma mesa próxima, a respeito da cor, distraiu-a. Marielle aproximou-se, examinou a gravura em questão e abanou a cabeça, apontando para
o papel.
– Plus ici 9.
Em seguida, regressou para junto de Emma.
– Os trapos aplicam a cor de uma maneira uniforme e eficaz – notou Emma. – Não sabia que o processo era realizado desta forma.
– É o nosso método. Chamamos-lhe à la poupée 10 – respondeu Marielle, fazendo uma pausa, para traduzir. – Com a bonequinha.
Os aglomerados de trapos atados pareciam, realmente, pequenas bonecas. Emma observou aquela arte, enquanto as mãos femininas continuavam o seu trabalho. Perguntou
a si mesma se estariam a fazer algumas gravuras satíricas.
– Então, chegou até aqui – disse Marielle. – Se veio questionar-me sobre aquele homem, já falei com ele. Não creio que ele consiga dizer-lhe alguma coisa de útil.
Ele é... como é que se diz...um lacaio. Uma pessoa que segue as ordens de outra.
– Um lacaio. Não conseguiu que ele lhe fornecesse qualquer tipo de informação?
– Rien 11. Disse-lhe que você queria falar com ele e que lhe pagaria bem para o fazer – respondeu, sorrindo com malícia e parecendo subitamente muito mais jovem.
– A sua casa é muito bela. Calculo que não se importará de gastar algumas moedas, se tal for necessário, estou certa?
– Não, de todo.
Emma mergulhou a mão na sua malinha e extraiu alguns xelins, assumindo que a referência às moedas era uma sugestão, bem como um relato.
– Obrigada pelo seu amável auxílio. Por favor, escreva-me, se ele disser que está disposto a encontrar-se comigo. Diga-lhe que preciso de saber os pormenores do
acordo. Diga-lhe também que quero resolver a questão do grande prémio e solicito instruções sobre como fazê-lo.
Marielle aceitou o dinheiro, sem fazer qualquer comentário. Em seguida, virou-se, para regressar ao trabalho.
– Informá-la-ei, se ele concordar. Penso que o verei novamente. Por vezes, vagueia por aqui.
Fez um gesto na direção da rua.
– Também vim até aqui para falar sobre outro assunto – disse Emma, impedindo que Marielle se afastasse.
Emma explicou a sua ideia. Marielle poderia recomendar a alguns dos seus compatriotas que se dirigissem à Fairbourne’s, caso tivessem bons quadros que quisessem
vender.
– Dar-lhe-ei dez por cento da comissão da Fairbourne’s sobre a venda – afirmou.
Marielle ponderou a oferta.
– Quero vinte por cento. Sem mim, nunca ficará na posse dessas pinturas.
Marielle podia afirmar possuir sangue nobre, mas sabia regatear como uma vendedora de rua.
– Sejam vinte por cento, então – anuiu Emma.
– Tem de prometer sigilo absoluto. Muitos deles são pessoas orgulhosas. Não querem que se torne do conhecimento público que são obrigados a vender o seu património
para poderem comer.
– A Fairbourne’s é conhecida pela sua discrição.
– Alguns chegam durante a noite, atravessando o mar. Não terão quaisquer documentos para o que trazem. Como aconteceu com aquela carroça.
A indignação brotou no interior de Emma, mas expressar qualquer sentimento de insulto seria ridículo, sobretudo na presença daquela mulher. A Fairbourne’s aceitara
a carroça, não é verdade? Quem era ela para começar a ser exigente relativamente aos documentos dos quadros contrabandeados por refugiados franceses?
– Os quadros bons normalmente são acompanhados por um registo da sua proveniência – observou Emma. – Precisarei do histórico de todos os proprietários da obra, até
ao proprietário atual. Os melhores colecionadores sabem que devem pedi-lo e que devem suspeitar de obras de mestres antigos que aparecem de repente, sem referências
nem registos.
– Tal como sucede com determinadas pessoas, quer você dizer.
Marielle encolheu ligeiramente os ombros, num gesto típico da sua pessoa.
– Eh, il est compliqué le faire 12, mas verei o que consigo obter.
Emma abandonou o edifício, esperando ter conseguido fazer um bom negócio com aquela jovem, que, segundo Cassandra, aparecera de repente, sem referências e com uma
ascendência duvidosa. Rezou para que a sua mensagem chegasse ao homem da carroça. Também tinha esperança de que Marielle conseguisse obter algumas obras de boa qualidade
junto dos imigrantes.
No entanto, não podia ter a certeza de que qualquer um dos seus desejos viesse a concretizar-se. Na verdade, poderia nunca mais tornar a ver Marielle, nem ouvir
notícias dela. Também precisaria de elevar o leilão de outras formas e em breve.
5 Expressão idiomática que significa permanecer inativo, ou fazer algo trivial, enquanto ocorre um acontecimento catastrófico. É uma referência à lenda segundo a
qual Nero teria assistido impávido ao grande incêndio de Roma, enquanto tocava um instrumento musical. Em algumas versões, o instrumento em questão é um violino,
apesar de historicamente tal ser impossível. (N. do T.) 6 Clube de cavalheiros, situado em St. James’ Street, conhecido por ser um dos mais antigos e mais exclusivos
de Londres. (N. do T.) 7 Celebração que tem lugar a 29 de setembro, dedicada a S. Miguel e aos restantes arcanjos. (N. do T.) 8 Tribunal civil inglês, cujo poder
ultrapassava o dos tribunais comuns, possuindo também regras mais flexíveis do que estes. (N. do T.) 9 «Mais aqui», em tradução livre. Em francês, no original. (N.
do T.) 10 «Com a boneca», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 11 «Nada», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 12 «É complicado
fazê-lo», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.)
CAPÍTULO 11
Emma não conseguiu ir à leiloeira durante dois dias. Em ambas as manhãs, Obediah enviara-lhe uma mensagem, dizendo que Lord Southwaite viera visitar as instalações
e que Emma devia, por esse motivo, permanecer afastada. Obediah acrescentara às duas missivas alguma preocupação, questionando se seria capaz de desempenhar o seu
novo papel, de uma forma convincente, na presença do conde.
Aparentemente, Southwaite adquirira um certo gosto por conversas sobre a autoria e a qualidade das pinturas que, naquele momento, estavam penduradas no salão de
exposições.
Aborrecida com o atraso na preparação do catálogo, Emma começou a pensar noutros problemas, como a possibilidade de incluir o conteúdo da carroça no leilão. Gostaria
de saber mais acerca dos acordos feitos pelo pai, antes de cometer um crime daquele género. Em particular, queria desesperadamente alguma indicação de que a sua
teoria a respeito do «prémio» estava correta. Se não recebesse mais informações, teria de tomar uma decisão difícil.
Se considerasse necessário leiloar o conteúdo da carroça, então necessitaria de encontrar uma maneira de o fazer, sem que Southwaite suspeitasse do que realmente
estava a acontecer. Não podia evitar que ele visse todo o vinho, quando as noites de pré-apresentação estivessem preparadas, mas, até lá, preferia não ser interrogada
sobre o assunto.
Decidida como estava, de que poderia resolver dois problemas de uma só vez, pediu a Maitland que transportasse os livros e os objetos de arte, da carroça para o
interior da habitação. Desse modo, teria a possibilidade de passar aqueles «dias Southwaite», que estavam a tornar-se irritantemente numerosos, a trabalhar em casa,
no que poderia vir a ser uma parte do catálogo.
– Posso ter arranjado um novo cliente para a Fairbourne’s – anunciou Cassandra, na segunda tarde, enquanto fingiam ter a intenção de encomendar chapéus, numa chapelaria.
Naquele momento, nenhuma delas podia dar-se ao luxo de pagar as excelentes mercadorias da loja em questão, mas Cassandra era sempre recebida com um serviço subserviente,
devido à sua posição na sociedade. Emma não se importava de se divertir um pouco, seguindo de perto Cassandra naquele género de expedições.
– Espero que tenha uma boa coleção – disse Emma, enquanto examinava o conteúdo de um cesto, que transbordava com fitas sumptuosas. – Quem é?
Cassandra estudou uma ilustração de moda, que mostrava um turbante exótico.
– O conde Alexis von Kardstadt, da Baviera.
Emma perdeu todo o interesse pelas fitas.
– Está a falar a sério? Conhece-o? Li que o conde planeava enviar a sua coleção para Inglaterra, para que fosse leiloada, uma vez que, hoje em dia, o território
francês não é propriamente hospitaleiro, mas assumi que a Christie’s...
– A Christie’s também o assumiu. Porém, um representante dele visitou a minha tia, pouco tempo após o conde ter desembarcado, e ela, surpreendentemente, recebeu-o.
Há vários meses que não aceitava qualquer visita. Descobri que o mandatário do Alexis se recordava de se ter encontrado comigo, quando eu viajava com a minha tia.
Aproveitei esse contacto previamente estabelecido e sugeri-lhe que considerasse a Fairbourne’s para tratar da venda da coleção.
Olhou para Emma, de soslaio.
– Receberei dez por cento, estou certa?
– É claro que sim.
Cassandra retirou um chapéu, que estivera a experimentar, e atirou-o para o lado. Ajeitou os caracóis negros, olhando-se ao espelho.
– Infelizmente, terei de resgatar uma das joias que planeava consignar. O colar de rubis, com as pérolas pequeninas.
– Tenta distrair-me com a promessa de raridades, enquanto arrebata um bom artigo, Cassandra. Por que razão tenciona resgatar uma das melhores peças?
– A minha tia precisa de reaver a peça em questão. Foi por esse motivo que o representante a visitou e foi também por isso que ela o recebeu. O Alexis pediu-lhe
que devolvesse o colar. Como tal, ela necessita que eu o leve de volta. É uma joia de família, que o conde não deveria ter oferecido.
Pegou num pano de seda crua brilhante, com um padrão azul e vermelho, e começou a tentar formar um turbante, em redor da cabeça. Uma funcionária da loja apressou-se
a ajudá-la.
Emma esperou até que as elaboradas dobras e reviravoltas fossem completadas e a funcionária abandonasse o local.
– Está a querer dizer que a sua tia e o conde eram... bons amigos?
– Aparentemente eram.
– Mas o conde não é muito mais jovem do que a sua tia? Ele só se casou recentemente.
– Hummmmm. As joias de família, oferecidas impetuosamente num momento de paixão, são agora necessárias para uma jovem esposa.
Cassandra virava constantemente a cabeça, enquanto admirava o turbante, visto de vários ângulos, no espelho.
– Pretende fazer um trocadilho indecente?
Cassandra pareceu ficar surpreendida e, em seguida, desatou a rir.
– Mesmo considerando ambas as interpretações, a minha tia compreende a situação do Alexis, e eu não posso recusar os seus desejos, uma vez que é suficientemente
generosa para permitir que habite com ela.
Assim sendo, preciso de resgatar o colar. Tenho a esperança de que conseguirá uma coleção maravilhosa, que irá atrair a nata da sociedade muito mais do que as minhas
joias o fariam.
Tocou na seda vermelha e azul, com carinho.
– Penso que encomendarei este artigo.
– Lembre-se de que não tem posses para o fazer.
– Quando o mandatário do conde visitar a Fairbourne’s, durante o dia de amanhã, e você o convencer a consignar toda a coleção, terei posses para além das que esperava
obter pelas minhas joias.
– Amanhã!
– Disse-lhe que Mr. Riggles se encontraria com ele amanhã de manhã. Decidi que não deveria haver qualquer atraso. Não queremos que ele fale primeiro com Mr. Christie,
não é verdade?
Não, realmente não queriam que isso acontecesse. O único problema era que Mr. Riggles jamais seria capaz de convencer aquele representante a confiar a coleção do
conde à Fairbourne’s e Emma não tinha a certeza de que a sua própria participação pudesse ajudar, ou mesmo de que esta fosse bem recebida pelo homem.
Pela primeira vez, duvidou seriamente que conseguisse manter a Fairbourne’s aberta. A perda dos contactos e da reputação do pai tivera várias repercussões, grandes
e pequenas, que não podia continuar a ignorar. Ele ter-se-ia reunido com o agente do conde, impressionando-o com o seu charme, conhecimento e educação. Teria acolhido
o homem de uma maneira que lhe estava vedada a ela, como mulher.
E também seria impossível que outro homem assumisse o lugar do pai. Esse facto desanimava-a verdadeiramente. No dia seguinte, até mesmo Mr. Nightingale se sentiria
assoberbado. Tal como o jovem Mr. Laughton, caso ela o contratasse e ele aceitasse. Ele pareceria um rapaz imaturo, esforçando-se por aprender uma língua estrangeira,
naquele tipo de negociações.
O coração de Emma ficava cada vez mais pesado, enquanto a sua mente percorria todas as circunstâncias que dificultavam a possibilidade de ser bem-sucedida. Estas
esmagaram a determinação e a confiança que sentira anteriormente. Ela ia falhar, e o património de Robert estaria perdido para sempre, quando isso acontecesse. E
talvez o próprio Robert tivesse o mesmo destino.
Normalmente, Emma abstinha-se de conjeturar o que poderia suceder no futuro, mas, naquele momento, o seu espírito sombrio estimulou a sua mente a seguir nessa direção.
Se a Fairbourne’s fechasse as portas, a desilusão de Robert, ao regressar a casa, seria um espetáculo horrível de ver, especialmente se as suas próprias insuficiências
tivessem sido a causa do fecho. Mesmo que o dinheiro da venda estivesse à espera dele, precisaria de vários anos para reconstruir o negócio.
Será que a ligação profunda existente entre os dois irmãos conseguiria sobreviver àquela provação?
Emma e Robert tinham sido sempre muito próximos, parceiros na brincadeira e no crime, quando crianças, e mutuamente compreensivos relativamente às mágoas da vida,
à medida que cresciam. Robert consolara-a durante o seu primeiro afeto por um homem que nunca se apercebera da sua existência, e Emma, por sua vez, entendera a desilusão
do irmão, quando o pai o proibira de cortejar uma atriz. Robert compreendera a estranheza de manterem um contacto regular com a alta sociedade, sabendo sempre que
esta nunca os aceitaria como iguais. O pai caminhara com desenvoltura nessa estranha fronteira, mas tanto Emma como Robert haviam sentido intensamente o abismo.
Emma ansiava por uma prova de que Robert ainda estava vivo, podendo, um dia, regressar a casa. As imagens dessa reunião torturavam-na com a sua esperança impossível
de felicidade. Odiava não ter a certeza de que estava correta e temia dar um passo em falso, no caminho perigoso que percorria. Naquele momento, perante a possibilidade
de ser bem-sucedida, pelo menos numa parte do seu plano, sentia um receio extremo de que aquela oportunidade desaparecesse, por não ser capaz de esconder que a Fairbourne’s
sobrevivia apenas como uma sombra do que já fora.
A menos que...
Uma solução possível surgiu-lhe na mente. Transformou-se numa chama ténue, que iluminou a escuridão do seu humor. Tremeluzia, enquanto observava a funcionária da
loja, que fixava o tecido do turbante com alfinetes, ajustando-o à cabeça de Cassandra.
A ideia era bizarra. Nunca iria funcionar. Contudo, não tinha outra alternativa a não ser tentar.
Meu senhor, Escrevo-lhe para informá-lo sobre um assunto de interesse mútuo e alguma urgência, uma vez que é coproprietário da casa de leilões do meu irmão. Tenho
razões para acreditar que Herr Ludwig Werner, um representante do conde Alexis von Kardstadt, visitará a Fairbourne’s amanhã de manhã. Virá discutir a possibilidade
de consignar parte da coleção do conde, para ser vendida no próximo leilão.
Uma coleção deste tipo proporcionará ao evento em questão muita fama e atenção, realçando consideravelmente os artigos nele incluídos.
Mr. Riggles informou-me de que tem visitado frequentemente as instalações da leiloeira, nos últimos tempos. Seria porventura estranho, se realizasse uma dessas visitas
amanhã de manhã.
Embora a presença de um homem do seu estatuto impressionasse o agente do conde, estou certa de que iria considerar o regateio, que provavelmente ocorrerá, de mau
gosto e uma demonstração pública do seu investimento em tais negócios seria, sem dúvida, humilhante.
Estou convicta de que deve obedecer às minhas instruções relativamente a este assunto, ausentando-se, para que evitemos qualquer mexerico ou dificuldade acrescida.
Tenciono estar presente para dar as boas-vindas ao representante, em nome do meu pai. Não me esquecerei de o informar acerca do resultado das negociações.
Tenho a honra de permanecer, meu senhor, uma fiel serva de Vossa Senhoria, Emma Fairbourne A carta chegou na entrega da noite, juntamente com várias missivas provenientes
da costa, que Darius esperava. Colocou-a de parte, para ser lida em último lugar, e dedicou-se aos relatórios de vigilância.
Por fim, quebrou o selo e leu as «instruções» de Miss Fairbourne.
Após ter percorrido o conteúdo, examinou a caligrafia. A mulher que escrevera aquela mensagem possuía uma mão franca, banindo a maioria dos floreados e artificialismos
das suas linhas. As letras fluíam de forma clara, até mesmo elegante, mas não se inclinavam muito. Em vez disso, havia uma tendência para os «h» e os «t» permanecerem
completamente eretos, obrigando as letras que os rodeavam a assumirem também uma posição vertical.
Era exatamente o tipo de caligrafia que seria expectável de Miss Fairbourne.
Como era inesperadamente atencioso da parte dela avisá-lo para se manter afastado, de modo a que o seu investimento na Fairbourne’s permanecesse secreto. Referia,
com toda a razão, que participar no atendimento da leiloeira a um potencial cliente não era algo que um conde devesse ser visto a fazer.
No entanto, a ansiedade de Emma era também inusitada. Caso se preocupasse verdadeiramente com a sobrevivência da casa de leilões, devia implorar para que ele comparecesse
na manhã seguinte, independentemente do comportamento que um conde devesse demonstrar em público. Devia querer que ele ajudasse Riggles a persuadir o mandatário
do conde Von Kardstadt a entregar-lhes toda a coleção, ostentando o interesse de outro aristocrata pela empresa.
Quanto mais pensava no assunto, mais a carta lhe parecia suspeita.
Talvez alguém, que não o representante de um conde, fosse visitar a Fairbourne’s, alguém que não se pudesse cruzar com o sócio do pai dela, de forma alguma. Southwaite
preferiria não ter de desconfiar de Emma, juntamente com o pai, mas se mercadorias ilícitas já haviam transitado pela Fairbourne’s no passado, também o poderiam
fazer no futuro.
Também ignoraria por completo aquela ordem para «obedecer» às instruções. Fiel serva, com os diabos. Miss Fairbourne conseguia ser mais do que ousada. Por vezes,
chegava mesmo a ser imprudente.
Que ela não tivesse consciência da sua própria posição, não o preocupava muito. Contudo, qualquer incompreensão relativamente à posição dele precisava de ser corrigida.
Ainda não decidira como iria proceder, quando pediu que lhe trouxessem o cavalo, na manhã seguinte.
Porém, uma vez na sela, virou na direção da Albemarle Street.
Fê-lo, em parte, porque tinha algum interesse em ver se o agente de um conde realmente pensava consignar uma coleção à Fairbourne’s, nesse mesmo dia. Se o compromisso
não tivesse lugar, precisava de descobrir o que mais Mr. Riggles e Miss Fairbourne conspiravam, que exigia a sua ausência.
Admitia, porém, que seguira aquele rumo principalmente porque não gostava das implicações da carta.
Miss Fairbourne parecia acreditar que, se pretendesse que um certo conde obedecesse às suas ordens, precisava apenas de o comandar.
Os quadros pendurados no grande salão da Fairbourne’s estavam dispostos de um modo diferente, quando Darius chegou, às onze horas. Pelo suor presente nas testas
dos trabalhadores, calculou que a maioria das alterações tivesse acabado de ser feita.
A nova disposição fazia com que o pouco que ali estava parecesse muito. As pinturas não se encontravam penduradas tão alto, nem tão baixo, nem tão perto umas das
outras, como anteriormente e, por essa razão, preenchiam o centro das paredes imponentes de uma forma mais completa. Fora uma solução astuta, que ele poderia não
ter notado, se não tivesse visto os buracos óbvios, há poucos dias.
Riggles pareceu ficar consternado ao ver Darius.
– Senhor conde, não o esperava. Miss Fairbourne informou-me de que hoje não deveríamos receber uma visita sua.
– Decidi passar por aqui, quando estava a caminho de outro lugar. Espero que a minha presença não seja inoportuna.
O sorriso gelado e o silêncio forçado de Riggles sugeriam o contrário.
– Poderei sair do caminho, se estiver a atrapalhar – disse Darius, calmamente. – Fechar-me-ei no escritório e continuarei a analisar os registos da contabilidade.
– Senhor conde, lamento, mas o escritório será necessário muito em breve.
– Então, investigarei o armazém. Quero ver se receberam algum artigo que valha a pena licitar, para adicionar à minha própria coleção.
– Infelizmente, o armazém está demasiado cheio para permitir uma visualização confortável das obras que lá se encontram.
Nesse momento, a porta de acesso ao armazém abriu-se e Miss Fairbourne emergiu. Naquele dia, envergava roupas de luto, de excelente qualidade. O cabelo, comprido
e livre, seguindo a moda da época, caía-lhe em pequenos caracóis e ondas, até aos seios. Estacou, por um instante, ao vê-lo a conversar com Riggles, na divisão ampla,
e, em seguida, juntou-se a eles.
– Penso que está tudo pronto, tanto quanto poderia estar, Obediah – referiu ela.
– Exceto, talvez, a minha pessoa, Miss Fairbourne – mencionou Riggles, mexendo-se com desconforto visível.
Miss Fairbourne riu-se um pouco.
– Continua a ser um homem extremamente modesto, Mr. Riggles. É verdade que esta pode ser uma coleção das mais ilustres que já tivemos, propriedade de um homem famoso
e nobre, mas, em última análise, trata-se do mesmo negócio no qual se tem destacado há vários anos.
Riggles corou e assentiu com a cabeça, sem qualquer firmeza. Parecia envelhecer e encolher a cada momento. Darius duvidava que o mandatário de um conde ficasse impressionado
com ele.
O leiloeiro afastou-se, provavelmente para reunir as suas capacidades persuasivas. Miss Fairbourne inspecionou a nova disposição dos quadros na parede.
– Vejo que escolheu visitar-nos hoje. Assim sendo, é necessário decidir, de imediato, como acomodaremos a sua interferência.
Não existia qualquer ressentimento no seu tom de voz, mas os olhos transmitiam alguma exasperação e a palavra interferência quase pedia uma discussão.
– Quer que o apresentemos como um cliente frequente? Podemos fingir que, por mero acaso, decidiu passar por aqui, esta manhã?
– Penso que essa poderá ser a melhor alternativa.
– Contudo, será enganoso da nossa parte. Penso que seria melhor informá-lo de que o senhor conde é um dos proprietários.
– Isso dificilmente seria melhor do que a sua sugestão inicial.
Emma aproximou-se da parede e endireitou um dos quadros.
– No entanto, considere a hipótese. Se formos honestos, poderá ser mais direto na sua intervenção.
Southwaite aproximou-se de Emma, junto à parede.
– Não vim até aqui para assumir o lugar do seu pai. Esse é o dever de Mr. Riggles e, segundo o que a menina afirma, é também uma tarefa na qual ele tem bastante
experiência.
– Ele raramente negociava sozinho. Mr. Nightingale ajudava-o a lidar com os clientes que desejavam consignar artigos e com os colecionadores que pretendiam licitar.
– Talvez devesse substituir Mr. Nightingale, empregando outro homem.
– Tentei fazê-lo. Lembra-se? Um tal de Mr. Laughton parecia um bom candidato para o lugar, mas, infelizmente, alguém o advertiu e comprou o seu afastamento.
– Laughton era um rapaz simplório. Nunca conseguiria estar à altura do representante de um conde, em termos de perspicácia.
– Porém, o senhor conde certamente consegue.
Emma olhou por cima do ombro, para a entrada. Uma carruagem parava no exterior.
– Por favor, mostre-se impressionado com o nosso conhecimento e a nossa experiência. O leilão será realizado com ou sem esta coleção, cuja consignação ele vem discutir,
por isso é do seu interesse, bem como do interesse do seu investimento, que a Fairbourne’s a consiga obter.
Southwaite começou a explicar que, na verdade, nunca concordara com a realização daquele leilão.
Contudo, Emma não ouviu uma única palavra, porque, entretanto, a porta se abriu e o agente do conde entrou na leiloeira.
Herr Werner não era alto, nem possuía ombros largos, mas a sua arrogância dotava-o de uma estatura considerável. Colocou-se sob o vão da porta, como um homem que
tinha uma noção desmesurada do seu valor. Com caracóis louros, impecavelmente vestido e envergando um casaco enfeitado com galões e botões, inspirava o ar como se
estivesse a avaliar os presentes recorrendo apenas ao olfato.
Os olhos azul-pálidos varreram a divisão e acabaram por pousar em Darius, que foi escrutinado de todas as formas imagináveis. Riggles apareceu do nada, avançou na
direção do visitante e apresentou-se.
O olhar de Herr Werner nunca abandonou Southwaite.
Riggles conduziu o recém-chegado até ao conde.
– Permita-me que o apresente a um dos clientes mais estimados da Fairbourne’s, o conde de Southwaite.
CAPÍTULO 12
Emma tentou distrair-se um pouco, no jardim situado nas traseiras da Fairbourne’s. Deambulou pelos seus caminhos, enquanto tomava nota de tudo o que precisava de
ser feito antes de realizarem a grandiosa noite de pré-apresentação.
Esforçou-se por não imaginar a conversa que estava a ter lugar no escritório do pai. Rezou para que, entre Riggles, fingindo ser o gerente que não era na realidade,
e o conde, desempenhando o papel de cliente desinteressado, o que também não correspondia definitivamente à verdade, conseguissem persuadir Herr Werner a consignar
a coleção.
Sentia-se atormentada pela sensação de que deveria ter permanecido com eles, a fim de participar na discussão. No entanto, Herr Werner mal se tinha dignado a reconhecer
a presença de Emma. Assim que fora apresentado a Southwaite, toda a sua atenção se concentrara no aristocrata e não na vulgar filha de Maurice Fairbourne, a qual,
sendo uma simples mulher, não conseguiria compreender minimamente as preocupações financeiras e artísticas de um conde.
O maior perigo, do seu ponto de vista, era a possibilidade de Southwaite poder ser demasiado honesto, referindo que, naquele momento, tinham poucos artigos com prestígio
suficiente para apoiarem a coleção do conde, se esta fosse vendida no próximo leilão. Ele até poderia desencorajar abertamente Herr Werner. Afinal, Southwaite queria
acabar com a Fairbourne’s e preferiria que o leilão não pudesse realizar-se.
Todos aqueles pensamentos lhe causavam uma agitação considerável no coração. A espera parecia nunca mais ter fim.
Este estado absorto fez com que se sobressaltasse, quando, ao desviar o olhar de alguns arbustos, viu Southwaite, de pé, a menos de seis metros de distância.
As costas do conde descansavam contra o tronco de uma árvore. Ele observava-a, de braços cruzados.
Aquela aparição súbita apanhou-a de surpresa, assim como a expressão de Southwaite, de tal forma que permaneceu estática, apesar de o seu coração começar a bater
fortemente devido à emoção causada pela esperança de que ele trouxesse boas notícias.
Não, essa não era a única explicação para o modo como o coração lhe saltitava no peito. O olhar do conde parecia-lhe invasivo, tal como lhe parecera no armazém,
há alguns dias. Emma não estava habituada a ser observada daquele modo por pessoa alguma, muito menos por um homem belo. Isso assustava-a, mas era também muito excitante.
O tempo passava com uma sensação de estranheza, resultante do silêncio de Southwaite. Emma recompôs-se e forçou os pés a moverem-se. Um rubor aqueceu-a, à medida
que se aproximava do conde.
Rezou para que não fizesse algo revelador do quão insensatas eram as suas reações.
– Para que é que está a olhar? Para o triste estado dos arbustos, ou da sebe de rosas? – Emma espreitou por cima do ombro, como se tentasse adivinhar que parte negligenciada
do jardim era alvo da vigilância de Southwaite.
– Estou a olhar para si. Não finja ignorar a minha atenção.
– Não consigo evocar qualquer motivo para o senhor conde fazer tal coisa, por isso ignoro, de todo, a sua atenção.
O conde acomodou-se mais confortavelmente contra a árvore.
– Existem diversos motivos para o fazer e creio que a menina também os conhece. Porém, neste momento, o meu principal objetivo é decidir se, realmente, é tão astuta
como julgo que seja.
– Nunca fui classificada como astuta. Logo, as suas suspeitas são infundadas.
– Ai são?
Southwaite afastou-se da árvore e avançou até ao sítio onde Emma se encontrava. Olhou para ela, um pouco divertido, mas não totalmente.
– Penso que enviou aquela carta, aconselhando-me a não vir até aqui esta manhã, porque calculou que, na verdade, essa seria a melhor maneira de garantir a minha
presença.
– Sinto-me lisonjeada pelo facto de o senhor conde pensar que sou assim tão esperta.
– Oh, a menina é muito esperta, Miss Fairbourne. Isso ficou claro há já algum tempo.
– Suficientemente esperta para prever que as suas ações seriam deliberadamente contrárias aos meus conselhos? Eu mal o conheço, Lord Southwaite, por isso dificilmente
conseguiria prever tal desfecho.
– Talvez me conheça o bastante, para adivinhar a minha reação, ou conheça suficientemente bem os homens, para supor que as suas instruções não seriam encaradas favoravelmente.
Emma olhou para o edifício.
– Espero que os meus piores receios não se tenham concretizado e tenha conseguido manter o seu investimento secreto?
– Herr Werner só queria a minha opinião sincera acerca da Fairbourne’s, do ponto de vista de um colecionador, e crê que foi isso que recebeu.
Southwaite deslocou-se, de modo a posicionar-se ao lado de Emma, e passearam ambos pelo jardim.
– Ainda bem que vim até aqui, independentemente das suas verdadeiras intenções. O desempenho do Riggles foi tão fraco, que pergunto a mim próprio se ele alguma vez
terá participado numa reunião deste género.
A suspeita pairou no ar, aguardando uma resposta. Emma decidiu ignorá-la.
– A coleção é tão valiosa como dizem?
– É excelente. Um grande Ticiano. Rubens, Poussin, Veronese. Se a qualidade for tão boa como afirmam, será um leilão notável.
– Algum Rafael?
– Não.
Era uma pena. Rafael era muito popular entre os colecionadores.
– Ele reparou que os quadros pendurados na vossa parede não são do calibre dos que ele possui – disse Southwaite. – Iniciou as negociações com Riggles numa comissão
relativamente baixa. Calculou que precisassem muito mais dele do que ele precisa de vós.
Emma realizou alguns cálculos rápidos, para averiguar o rendimento que arrecadariam, potencialmente, se Herr Werner pagasse menos do que o habitual. Também teria
de ceder a Cassandra dez por cento da comissão recebida. O lucro da Fairbourne’s não seria o que ela havia esperado.
– Disse-lhe que aguardávamos a chegada de mais pinturas? – questionou Emma.
– Esperam receber mais quadros?
– Sim.
Emma tomou uma decisão, que evitara até aquele momento.
– Entre outros, esperamos um Rafael. Um de qualidade muito boa, com excelentes registos.
– Riggles não mencionou um Rafael. É curioso.
Uma ligeira pressão sobre o seu braço atraiu a atenção de Emma. Contemplou os elegantes dedos masculinos que nele tocavam, impedindo-a de continuar a caminhar. Em
seguida, o seu olhar subiu até às íris escuras, que a observavam atentamente.
– Será necessário procederem à autenticação da coleção, caso o conde decida consigná-la – disse Southwaite. – Cada lote terá de ser examinado por alguém que saiba
distinguir um Ticiano verdadeiro de uma falsificação. Recuso-me a participar numa fraude.
– Como é óbvio. O Obediah irá analisar cuidadosamente...
– Não, o Obediah não o fará, porque não tem capacidades para tal.
Southwaite libertou-a, mas travou qualquer possibilidade de avanço no caminho, bloqueando-o com o corpo.
– Admiro a sua inteligência, mas recomendo-lhe que, na situação atual, não a use em excesso.
Não se sentindo inteligente, de todo, naquele momento, Emma manteve-se calada. A cabeça de Southwaite aproximou-se da sua.
– Responda-me com clareza, Miss Fairbourne. Existe alguém associado à leiloeira que possua, presentemente, o conhecimento necessário para substituir o seu pai?
Southwaite encontrava-se indevidamente próximo dela. Esse pensamento atravessou a mente de Emma, enquanto o seu nariz estremecia, ao absorver o cheiro do conde.
Esse aroma, masculino, singular e limpo, com vestígios de couro, cavalo e lã, cercou-a como uma manifestação da presença dele, invadindo-lhe os sentidos.
– Sim.
A afirmação saiu, simplesmente, da sua boca, sem ter pensado muito sobre o assunto. Aquela atenção exaustiva não deixava margem alguma para mentiras. De qualquer
forma, Emma já não estava suficientemente lúcida para conseguir enganar, com sucesso, quem quer que fosse.
A cabeça de Southwaite aproximou-se ainda mais e o seu escrutínio sombrio penetrou-a mais profundamente.
– Mas não é Mr. Riggles, presumo.
– Não, não é Mr. Riggles.
– Então, é a menina.
Nem sequer era uma pergunta.
Emma mal conseguiu assentir com a cabeça. Naquele momento, falar estava para além das suas capacidades. Um estranho peso encheu-lhe o peito e a garganta, enquanto
um formigueiro extremamente ativo lhe invadia o rosto.
– Não gosto que me mintam.
Southwaite não parecia irado. Em vez disso, a sua declaração tranquila envolveu-a, como se tivesse sido transportada por uma brisa suave e cálida.
– Eu... isto é, não era realmente uma...
Um dedo pousou nos lábios de Emma, silenciando-a.
– O seu estratagema foi descoberto. Não tente camuflar uma mentira com outra.
O olhar de Southwaite não refletia muito interesse pelo que Emma pudesse afirmar, ou tentar fazer. O
dedo permanecia, quente e firme, sobre a sua boca, fazendo com que os seus lábios tremessem. Em seguida, movimentou-se, numa pequena carícia.
As suas reações surpreenderam-na. Assustaram-na. O seu corpo e a sua essência tornaram-se dolorosamente conscientes da presença dele e daquela carícia. Os arrepios
desceram por ela abaixo, num turbilhão sensual. Aquilo era muito mais poderoso do que as sensações que a haviam confundido anteriormente.
«Ele vai beijar-te.» O pensamento surgiu na mente de Emma um segundo antes do dedo de Southwaite abandonar os lábios dela.
Então, ele beijou-a, como se tal pensamento tivesse sido um pedido.
O beijo encantou-a. Nem sequer pensou em resistir, durante o que lhe pareceu um longo período de tempo. Em seguida, as mãos do conde seguraram a sua cabeça e o beijo
tornou-se mais profundo, fazendo com que uma cascata de maravilhas derrotasse qualquer tentativa de proferir palavras de rejeição.
Southwaite puxou-a para um abraço e uma parte ínfima da mente de Emma soube que ela cometera um erro ao manter-se em silêncio. Devia afastar-se agora, mas, oh, o
calor, o toque humano, assim como a força e o aroma masculinos, persuadiram-na a aceitar a submissão. Os prazeres que fluíam através do corpo de Emma eram suficientemente
intensos para a enlouquecerem, mas a intimidade pungente era o que realmente fazia o seu coração suspirar.
Naquele abraço, não tinha de permanecer sozinha, nem de ser forte. Não havia lugar para tristezas, preocupações ou cálculos, enquanto aqueles beijos pressionavam
os seus lábios, o rosto e o pescoço.
Não existia, de todo, qualquer pensamento, apenas o prazer de sensações novas e estimulantes, idênticas ao calor da primeira brisa primaveril, após um inverno rigoroso.
Emma não lhe devolveu o beijo, nem lhe retribuiu o abraço. Simplesmente aceitou-os, maravilhada pela forma como ele transformara o seu mundo, por alguns instantes.
Somente quando as mãos de Southwaite se movimentaram, transformando o abraço em carícias, é que Emma recuperou a razão. Então, teve consciência de que havia sido
demasiado tolerante e de que aquele homem assumira uma maior concordância do que ela lhe pensara ter dado.
Ainda assim, Emma não conseguia travá-lo. Na verdade, não o queria fazer. As mãos de Southwaite não a chocavam. Em vez disso, provocavam-lhe sensações prodigiosas.
Necessárias. A sua pressão firme criava ligação atrás de ligação, despertando impulsos poderosos, quase frenéticos, dentro dela, especialmente em locais muito profundos
e muito baixos, onde um peso repleto de uma deliciosa expectativa se acentuava cada vez mais.
Southwaite puxou-a para fora do caminho, mas Emma não se apercebeu de como tal sucedera. Apenas reparou nas folhas que pairavam sobre a sua cabeça e no facto de
desfrutarem agora da privacidade oferecida pelos arbustos e pelas árvores. A maioria dos sentidos de Emma estava concentrada nos beijos surpreendentemente íntimos,
nas mãos que vagueavam pelo seu corpo e na maneira como ambos a levavam, novamente, à beira da loucura.
Mais um abraço, que a envolvia. Mais um beijo, que lhe queimava o pescoço. Mais uma carícia, que começava na barriga, para depois subir, lateralmente, até atingir
o peito. Então, ficou verdadeiramente perto do delírio. Sucumbiu, quando Southwaite intensificou o prazer com toques hábeis, que a fizeram ofegar. Rendeu-se a uma
sensualidade voluptuosa, cheia de emoção, de carência e de uma paixão cada vez mais profunda.
Emma pensou que poderia permanecer ali para sempre. Esperava que aquelas sensações nunca terminassem, nem mudassem, mas, quando aceitou esse facto, os impulsos aumentaram,
estimulando-a e exigindo mais. Uma dor opressiva começou a transformar o prazer que sentia numa fome primitiva e carnal.
Emma pressentiu o perigo, mas, ainda assim, não foi ela quem pôs fim à situação. Foi uma voz que o fez, em vez dela, ao chamar o seu nome. O som do chamamento penetrou
o torpor que a dominava.
Reconheceu a voz de Obediah, que a procurava. Southwaite também a ouviu. Aquela voz funcionou como uma bofetada forte, que forçou ambos a recuperarem algum controlo.
Após um último beijo doce, o conde separou-se de Emma, libertando-a. Fitou-a profundamente nos olhos e depois desceu o seu campo visual, para conseguir observar
o corpo. Então, os ângulos do rosto de Southwaite endureceram.
Os dedos do conde tocaram levemente nos folhos pretos que circundavam a gola do vestido negro.
A excitação gloriosa de Emma ainda não desaparecera, mas ela afastou-se, porque, obviamente, tinha de o fazer. Caminhou em direção à luz do sol e procurou o rosto
de Obediah nas janelas visíveis.
– Estou aqui – chamou. – Tem de me contar tudo o que Herr Werner disse.
«Que diabo se passa comigo?» A pergunta invadiu a mente de Darius, enquanto seguia Emma até ao interior do edifício, e continuou presente, enquanto Riggles fazia
um relatório da reunião e respondia às várias questões colocadas por Miss Fairbourne.
O desejo frustrado não era bem aceite pela sua personalidade. Ouviu muito pouco do que Emma dizia a Obediah, em resposta, e teve de fazer um grande esforço para
manter os olhos afastados dela.
«Tenho sido extremamente insensato em relação a ela e, agora, estou a ser um completo imbecil.» Não havia jurado a si mesmo, várias vezes, que iria fechar a Fairbourne’s?
As suas longas deliberações não tinham sempre levado à conclusão de que o devia fazer, ou mesmo de que precisaria de o fazer? Em vez disso, naquele dia, desempenhara
o papel de cavaleiro andante, perante a dama em perigo. Só lhe faltara subornar Herr Werner, para que consignasse aqueles malditos quadros à leiloeira. E, em vez
de estabelecer algumas regras, quando a encontrou no jardim, quase a seduzira. Ainda desejava que Riggles os tivesse deixado sozinhos.
A excitação conduzia os seus pensamentos até lugares que, naquele momento, não precisava certamente de visitar, se é que alguma vez viria a precisar. Também não
podia evitar refletir que ela não parecera muito experiente. E isso era uma má notícia, sob vários aspetos. Por um lado, indicava que um pedido de desculpas era
recomendável, quando não se sentia minimamente inclinado para o fazer. Por outro, sugeria que devia sentir culpa, quando não a sentia, de todo.
O que se passava com ele? Até mesmo naquele momento, em que a conversa entre Riggles e Emma começava a penetrar no seu cérebro, a maior parte da sua mente estava
de novo sob as árvores, ouvindo os arquejos surpresos de prazer que ela soltara e sentindo o calor flexível de Emma contra o seu próprio corpo.
– Escrever-lhe-á – ordenou Miss Fairbourne a Riggles. – Diga-lhe que, após ter pensado melhor sobre o assunto, está disposto a aceitar uma comissão menor sobre a
venda da coleção. Deixe bem claro que conta com a discrição dele relativamente a essa questão. Não podemos permitir que divulgue amplamente o valor que acordámos.
Os outros colecionadores quereriam as mesmas condições, o que nos levaria à ruína.
Emma já não fingia que Riggles geria o negócio, agora que o seu segredo havia sido descoberto. Se o próprio Riggles estranhava aquela mudança de atitude, não o demonstrava.
Assentiu respeitosamente e foi para o escritório, a fim de redigir a carta.
Miss Fairbourne, por sua vez, dirigiu-se para o armazém. Darius seguiu-a, pois existiam palavras que, aparentemente, lhe devia dizer. Contudo, uma porção do seu
ser, desonrada, insaciável e predominante, ponderava como continuar o que havia começado no jardim.
Emma pegou num avental, que estava pendurado num gancho fixado na parede, e colocou-o.
– Confesso que me sinto quase feliz por lhe ter revelado a verdade, Lord Southwaite. Tenho muito que fazer durante as próximas semanas e tem sido bastante inconveniente
sentir-me obrigada a fugir de si, durante as suas visitas.
– O que é que fazia aqui, exatamente, quando o seu pai era vivo?
A pergunta foi colocada pelo seu lado melhor, o que não imaginava aquela mulher despojada das roupas de luto que envergava e deitada, nua, sobre a superfície da
secretária, com os olhos azuis velados pelo êxtase provindo de um prazer intenso, como haviam estado há uns meros minutos.
– Ajudava a preparar o catálogo dos grandes leilões. Lidava principalmente com a prata e os objetos de arte. No entanto, em relação às pinturas, eu consultava-o
sempre. Ele não descartava as minhas opiniões, caso considere a possibilidade de estar a engrandecer as minhas capacidades.
– E a gestão? A contabilidade e as consignações? Também ajudava nessas áreas?
– Não, essas funções eram asseguradas exclusivamente pelo meu pai. Especialmente as consignações.
Eram uma atividade demasiado pública, para que eu pudesse participar – disse Emma, encarando-o com uma expressão severa e exasperada. – Enganei- o, porque preciso
de enganar todo o mundo. Sabe perfeitamente bem que ninguém irá admitir que os meus conhecimentos são suficientemente bons.
Ninguém irá negociar com a Fairbourne’s, se souberem que é a mente de uma mulher a responsável pelas decisões tomadas em todos os domínios da leiloeira, sobretudo
no que diz respeito à autenticidade das obras.
Southwaite sentiu-se satisfeito por Emma não ter estado envolvida nas consignações feitas no passado, dado ter a certeza de que alguns desses lotes haviam sido suspeitos,
na melhor das hipóteses, relativamente à proveniência dos bens.
– Não existe qualquer lei que diga que uma mulher não pode ter bom olho para a arte.
Emma colocou algumas peças de prata sobre a mesa e puxou para fora o maço de papéis que permanecera escondido debaixo da bandeja.
– Oh, balelas. Se lhe tivesse contado a verdade durante a nossa primeira conversa, nunca teria conseguido convencê-lo a não vender o negócio de imediato e a permitir
a realização deste leilão.
– Não recordo que me tenha convencido a permitir coisa alguma. Disse-lhe que decidiria sobre esse assunto após determinar se Riggles conseguia assegurar a gestão
da empresa.
Emma deteve-se e olhou para ele.
– E agora já chegou à conclusão de que ele não é capaz de o fazer. Pois bem, eu sou.
O desespero invadiu os olhos de Emma. Se Southwaite não a tivesse beijado há menos de uma hora, aquelas palavras poderiam não o ter tocado como tocaram. Mas, como
efetivamente a beijara, sentiu-se varrido por um impulso para a tranquilizar, que quase fez com que lhe prometesse tudo o que ela queria ouvir.
O conde fingiu o interesse de um especialista pelos objetos empilhados no armazém, mas, na verdade, apenas via Emma e somente sentia a presença dela. Só queria possuí-la.
– Disse que receberão um Rafael.
A expressão de Emma suavizou-se, devido ao alívio, de uma forma extremamente bela.
– Sim. Um de excelente qualidade.
– Da coleção de um estimado cavalheiro, presumo.
– Muito estimado.
O sorriso conspiratório de Emma iluminou a divisão e o maldito sangue de Southwaite começou novamente a aquecer. O conde estendeu a mão na direção da porta, para
alcançar o trinco, evitando desse modo alcançar Emma, em lugar deste.
– Talvez compre o quadro, se for tão bom como diz.
Southwaite abandonou finalmente a leiloeira, com a sensação de ter prolongado excessivamente a visita. Já estava montado no seu cavalo, quando se lembrou de que
havia permanecido mais tempo com Emma para lhe pedir desculpa pelo que acontecera no jardim, mas esquecera-se de proferir as palavras necessárias.
Ainda bem. Não se opunha a dizer as coisas certas, pelos motivos certos. Porém, desta vez, se tivesse expressado arrependimento, não teria soado honesto, de todo.
Qualquer garantia de se comportar melhor no futuro teria parecido vazia, definitivamente, pois já persistia a dúvida de que conseguisse cumprir tal promessa.
CAPÍTULO 13
– Penso conseguir obter a coleção do conde – confidenciou Emma a Cassandra.
– E marcou um encontro às nove da manhã para me dizer isso? Num parque húmido? Não me atrevo a sair deste caminho, corro o risco de o orvalho estragar a minha saia.
Emma mantinha-as na proximidade da margem do Serpentine13. Cassandra fora, sem dúvida, amável ao concordar com aquele passeio e tinha o direito de estar aborrecida
com a hora marcada. Se tivesse a possibilidade de escolher, Emma teria feito as coisas de um modo diferente.
Caminhavam por um trilho deserto, no Hyde Park. Mesmo enquanto conversava com Cassandra, o olhar de Emma percorria as paisagens que as rodeavam. Àquela hora, podiam
avistar-se muito poucos visitantes e todos pareciam ser homens. A maioria andava a cavalo, aproveitando os espaços abertos para exercitar os seus animais. Perto
dos castanheiros, agrupavam-se vários homens de uniformize, provavelmente preparando-se para o espetáculo da inspeção das unidades voluntárias previsto para o meio-dia.
Próximo do início de Rotten Row, um pequeno grupo de cavaleiros reunia-se para o que parecia ser uma corrida improvisada.
Um deles, montado num grande cavalo branco, atraiu a sua atenção. Seria Southwaite? Emma pensou que o homem assumia uma postura muito semelhante à do conde. Não
conseguia ter a certeza da identidade do cavaleiro, devido à grande distância que os separava, mas a mera possibilidade de se tratar de Southwaite quase a fez tropeçar.
Era muito irritante que não conseguisse sequer pensar nele sem ficar perturbada. Provavelmente também corara, e esperava que Cassandra considerasse que aquele rubor
fora causado pela brisa agreste e pelo exercício. O problema era o facto de que pensar sobre o conde implicava pensar acerca do que acontecera no jardim e isso só
a confundia ainda mais.
Não tinha progredido muito nos seus esforços para analisar o ocorrido e o porquê daqueles acontecimentos. Este último aspeto era o maior enigma. Não podia negar
que apreciara cada beijo, mas não estava confiante de que Southwaite também tivesse sido arrebatado pelo prazer e pela paixão. Ele não era inexperiente, pois não?
Então, não era provável que ficasse hipnotizado pela simples novidade de todo aquele calor e sensações provocados por outro ser humano. Emma suspeitava de que, quando
finalmente conseguisse arranjar a coragem necessária para estudar o motivo por detrás daqueles beijos, não iria gostar muito das conclusões alcançadas.
Entretanto, preferia não o ver.
– Peço desculpa, Emma. Devia alegrar-me com as suas novidades e não estar a reclamar pelo modo como o ar me arrepia. Sempre tive esperança de que fosse bem-sucedida
com Herr Werner. No entanto, confesso que considerei improvável que Mr. Riggles o conseguisse convencer – disse Cassandra.
– Mr. Riggles teve alguma ajuda.
Cassandra baixou a cabeça e olhou para Emma, através das suas pestanas escuras.
– Pensei que tencionava manter em segredo o facto de ser a atual gerente do negócio.
– Não fui eu quem o ajudou. O Southwaite estava a visitar a leiloeira, quando o representante do Alexis apareceu. Creio que a presença de um cliente tão ilustre
tranquilizou Herr Werner.
– Tenho a certeza de que Herr Werner não ousaria permanecer indiferente, se o Southwaite exigisse que ficasse impressionado.
O tom e as palavras de Cassandra nunca falavam bem de Southwaite. Emma ansiava por poder confidenciar-lhe mais sobre o dia em que Herr Werner os visitara, mas seria
embaraçoso descrever como sucumbira, sem um murmúrio de protesto, a um homem de quem não tinha sequer a certeza de gostar. Pior ainda, Cassandra poderia querer começar
a planear o castigo de Southwaite.
– Você realmente não gosta do conde, de todo – disse Emma.
– Devia seguir a minha deixa. O Southwaite é um hipócrita, tal como a maioria dos homens. Por exemplo, todos sabem que tem tido uma série de amantes, mas o conde
certifica-se de que os seus casos amorosos nunca alimentam mais do que rumores vagos. Logo, sente-se livre para criticar os restantes mortais, pelos respetivos escândalos,
quando, na verdade, não é melhor do que eles.
Emma presumiu que Cassandra se referia aos seus próprios escândalos. Cassandra recusara-se a casar-se com um homem que a havia comprometido, quando era apenas uma
jovem. Posteriormente, a alta sociedade registara cada um dos seus desvios, relativamente ao caminho virtuoso que deveria ter seguido durante a vida.
Emma não podia deixar de concordar com aquela avaliação do conde, feita pela sua amiga, mesmo que inexplicavelmente o quisesse defender.
Southwaite afirmara ser um mestre, no que tocava a garantir a discrição e a evitar o escândalo. Não lhe dissera que não fazia coisas escandalosas. Na verdade, tinha
mesmo persuadido Emma a manifestar um comportamento insensato. Ainda assim, arqueara uma sobrancelha ao considerar a amizade existente entre Emma e Cassandra.
– Parece irritada, Cassandra. Alguém foi cruel para si, recentemente? Sabe que tem apenas de regressar à casa do seu irmão para evitar tais dissabores. Tudo será
perdoado, quando ele a aceitar de volta.
– Não conseguiria suportar ser a irmã pródiga. Ele e a esposa iriam vigiar-me como falcões, caso regressasse, e dar-me-iam a compreender que estava dependente deles
para recuperar a minha reputação, bem como para aceder à minha alimentação. Provavelmente, ele quereria que eu desposasse um homem aborrecido, de modo a dissipar
todos os mexericos. Não. Enquanto a minha tia aceitar acolher-me, permanecerei com ela.
Porém, uma parte da notoriedade de Cassandra derivava daquele acordo habitacional. A tia de Cassandra colecionara alguns escândalos próprios. O facto de, presentemente,
viver como uma reclusa, significava que Cassandra possuía demasiada independência.
– Ele é um radical, por isso seria de esperar dele menor rigidez, no que diz respeito às regras sociais – disse Cassandra, após terem caminhado mais um pouco. –
Estou a falar do Southwaite. Ele é um Whig 14
e argumentou a favor da reforma, no passado. Agora, com a guerra, já ninguém o faz. Todos têm receio de ser vistos como simpatizantes dos revolucionários franceses.
– Talvez esteja à espera do momento apropriado.
Emma gostou bastante de ouvir que o conde defendera a reforma, mesmo que já não se atrevesse a fazê
lo. Isso sugeria que Southwaite não era um escravo das linhas de pensamento conservadoras, embora obedecesse às suas diretrizes relativas ao comportamento.
– Ou talvez tenha mudado de ideias. Mais recentemente, a voz do conde tem exigido uma vigilância melhor da nossa costa. O Southwaite tem importunado o almirantado
com esse pedido. Suponho que, ao possuir terras no Kent, saiba muito bem o quão vulnerável a costa pode estar.
Aquela referência ao Kent fez com que a mente de Emma se voltasse para a propriedade do pai, localizada nessa região, e para o conteúdo desta. Teria de a visitar,
muito em breve.
Esse pensamento conduziu a outros, sobre o leilão. Esperava que os seus planos para aquele dia estivessem a progredir bem. Durante a manhã, uma certa carroça iria
ser deslocada da sua casa para um determinado edifício na Albemarle Street. Ao meio-dia, o conteúdo da carroça já deveria estar misturado com os restantes artigos.
O vinho ficaria escondido no armazém.
Um movimento mais à frente, no caminho, apanhou-a desprevenida e interrompeu a sua reflexão. Uma figura aparecera, como que por magia, no trilho que Emma e Cassandra
seguiam. Envolta num tecido castanho, e àquela distância, a silhueta parecia fundir-se com o que a rodeava, mas Emma reconheceu a forma graciosa.
– Quem é? – indagou Cassandra.
Aproximaram-se, mas a figura não se mexeu.
– É a Marielle Lyon – disse Emma. – Penso que talvez queira falar comigo.
– Que estranho ela ter adivinhado que você estaria aqui – provocou Cassandra. – Vá ter com ela e veja o que lhe arranjou para o leilão. Oxalá compense a constipação
que ambas arriscámos com este encontro.
Eu espero aqui, com inveja de uma mulher que, mesmo envergando um aborrecido vestido sem cintura que esteve na moda há uma vintena de anos, consegue parecer tão
elegante.
Marielle aguardava na sombra de uma árvore que pendia sobre o trilho.
– Sempre veio – disse, quando Emma a alcançou. Lançou um olhar breve, mas penetrante, a Cassandra e, logo de seguida, ignorou a sua presença. – Encontrei alguns
artigos para o leilão. Um grande rolo de desenhos. Coisas velhas. O proprietário afirma que são de artistas apreciados em Inglaterra. Disse-lhe que você queria pinturas,
mas ele respondeu que você reconheceria o valor dos desenhos, se percebesse alguma coisa do assunto.
– Onde estão esses desenhos? Preciso de os ver, para poder avaliar se são autênticos e suficientemente bons para o leilão.
– Primeiro, ele queria saber se estava interessada. Se for esse o caso, ele trá-los até si – disse Marielle, enquanto remexia, com o sapato, a terra que ladeava
o caminho. – Tinha dito vinte por cento.
– Sim, receberá o que lhe é devido, após o leilão, se estiver tudo em ordem. Diga a esse homem que estou interessada nos desenhos, se forem tão bons como ele afirma.
Peça-lhe para os levar até à minha morada, amanhã de manhã.
Estando bastante consciente de que Cassandra as observava com um interesse pouco prudente, Emma começou a caminhar na direção da amiga.
– Não está interessada no resto? – inquiriu Marielle.
– Há mais? Também são desenhos?
– Não me refiro a arte. Aquele homem, o que trouxe a carroça. Aceitou encontrar-se consigo.
O coração de Emma saltou. Olhou, furtivamente, para Cassandra, que não tinha conhecimento da existência da carroça.
– Quando?
– Ele disse quinta-feira à tarde. Na entrada leste de Catedral de São Paulo. Deve levar algum dinheiro.
Prometi-lhe uma boa recompensa.
O lembrete não passou despercebido a Emma. Retirou dois xelins da mala de mão.
– Lá estarei. Obrigada.
Marielle guardou as moedas. O seu olhar intenso concentrou-se no trilho, atrás de Emma. Estalou a língua, aborrecida.
– Agora tenho de ir embora. Fui seguida e não quererá que interpretem erradamente o motivo pelo qual nos encontrámos.
Emma olhou por cima do ombro. Um cavalo aproximava-se do local onde Cassandra se encontrava, numa passada lenta. O homem que o montava não parecia interessado nelas,
nem em qualquer outra coisa que não fosse a magnificência daquele dia.
Marielle riu-se.
– É divertido. Os ingleses pensam que espio para os franceses e alguns dos franceses pensam que espio para os ingleses. Na verdade, só espio para si e mais ninguém.
Em seguida, afastou-se fundindo-se com as sombras salpicadas visíveis sob as árvores mais próximas.
Darius visitou a leiloeira na manhã que se seguiu à aparição de Herr Werner. Também a inspecionou na tarde do dia seguinte. A sua análise detalhada dos registos
e das contas não estava a produzir qualquer informação relevante. A natureza vaga dos documentos derrotava todos os seus esforços para descobrir o que Maurice Fairbourne
andara a fazer nos últimos anos.
Emma não estivera presente nas instalações da Fairbourne’s em qualquer um dos dias. Southwaite considerava esse comportamento estranho. Ela já não precisava de fingir
que não estava a escrever o catálogo e dissera que tinha muito trabalho para fazer.
Perguntou a si mesmo se Miss Fairbourne estaria a evitar o local, a fim de evitar um encontro com ele.
Uma vez que assombrava aquele lugar, em parte, para a ver, tal atitude não era aceitável, de todo.
No terceiro dia, após sair da casa de leilões, dirigiu-se para leste, em direção à Compton Street.
Maitland conduziu-o até à sala de jantar. Miss Fairbourne encontrava-se perto da mesa, manuseando folhas de papel. Quando se aproximou, Darius viu que ela examinava
uma pilha de desenhos.
– Trouxeram-mos hoje – explicou Emma. – São muito melhores do que eu ousara esperar. Tenho a certeza de que este é um Leonardo. Também aceito a afirmação de que
este retrato a ponta de prata é da autoria de Dürer. Concorda comigo?
Southwaite admirou os desenhos, assim como o entusiasmo que estes despertavam em Emma. Naquele momento, estava bastante animada, até mesmo resplandecente. Envergava
um vestido moderno amarelo-pálido, parecendo muito fresca e bela nele.
– Estes desenhos também devem ser do proprietário que consignou os outros novos artigos que chegaram – refletiu Darius, enquanto se inclinava, para conseguir observar
melhor os pormenores do Dürer.
Seria apenas fruto da imaginação dele, ou Emma realmente ficara rígida? Pelo menos, tinha permanecido imóvel, durante alguns instantes.
– Vejo que visitou novamente o armazém – disse Emma. – Espero que não tenha mudado de sítio os artigos que lá se encontravam. Organizei-os de uma determinada maneira,
para que não houvesse o perigo de deixar obras de fora, à medida que completo o catálogo.
Southwaite endireitou-se.
– Não toquei em coisa alguma. Porém, a divisão está tão cheia que pergunto a mim próprio como consegue alcançar a secretária.
– Disse-lhe que receberíamos mais artigos e estão a chegar. Agora, só preciso de ter notícias da parte de Herr Werner.
Emma voltou mais duas folhas, revelando um grande desenho, executado com tinta e água.
– Apesar de todos os outros grandes nomes associados a estes desenhos, creio que encontrei o vencedor do grupo. É um magnífico Tiepolo, um estudo para uma pintura
de teto. Devia informar os seus amigos de que esta obra será vendida. Qualquer bom colecionador gostaria de o saber.
– Está a sugerir que eu promova o seu leilão, Miss Fairbourne?
– Nunca lhe pediria tal coisa. Contudo, se expressasse o seu interesse pelo evento, quando frequentasse festas e jantares, descrevendo algumas das raridades que,
segundo ouviu dizer, serão leiloadas, isso contribuiria para o sucesso da minha iniciativa.
– Se não for cuidadoso, colocar-me-á na pele de Mr. Nightingale, recebendo a multidão, quando esta chegar à leiloeira, na noite de pré-apresentação.
Emma começou a enrolar, cuidadosamente, a pilha de desenhos.
– Bem, alguém tem de o fazer. Atou uma fita espessa em torno do rolo. O rubor ainda não lhe abandonara o rosto e os seus dedos tremiam enquanto realizavam a tarefa.
– Hoje não esteve na leiloeira. Nem ontem.
Emma não olhou para ele.
– Tinha de tratar de outros assuntos.
– E amanhã?
– Tenho de tratar de mais assuntos. Outros.
– Eventualmente, terá de se dedicar à preparação do catálogo.
– Terminá-lo-ei a tempo. E o senhor, Lord Southwaite? Já finalizou a inspeção dos registos e contas da empresa?
– Quase.
Na realidade, tinha completado a análise há muito. Devia contar-lhe a verdade e reencontrá-la somente no leilão.
– Manteve-se afastada, por recear que eu lá estivesse? O que aconteceu no jardim fez com que se escondesse de mim?
– Tive efetivamente de tratar de outros assuntos. No entanto...
O olhar de Emma cruzou-se com o do conde, transmitindo toda aquela franqueza que o conseguia transtornar tão facilmente.
– Escolhi não pensar demasiado sobre essa tarde. Temo que, se o fizer, acabe apenas por me culpar pelo que aconteceu e por culpá-lo, a si, pelo motivo subjacente.
– Permita-me que assuma a culpa por ambos. Devia ter-lhe pedido desculpa, no próprio dia.
– Contudo, não o fez. Porque não sou uma dama aristocrata?
– A sua ascendência não teve qualquer relação com o sucedido. Não lhe pedi desculpa por não me sentir verdadeiramente arrependido.
Mentiras e mais mentiras. Enganos e omissões. Não pedira desculpa porque o seu lado mais sombrio ansiava por uma recompensa maior e a ascendência de Emma provavelmente
estava mais relacionada com aquele desejo do que Darius queria admitir.
– Está arrependido agora?
– Não, mas não sou o género de homem que se aproveite de uma mulher.
Mais mentiras. Mentiras malditas.
– Não há razão alguma para ter medo de mim.
– Não tenho medo de si.
Com os diabos, que não tinha. A cautela era visível nos olhos dela. Southwaite também vislumbrava outras coisas no interior daqueles olhos. Vulnerabilidade, como
se Emma esperasse que aquela conversa resultasse num insulto à sua pessoa, antes de terminar.
– Talvez o seu autodomínio funcione melhor na presença de damas nobres, por ter mais prática com esse tipo de mulheres. Duvido que tenha tido muita experiência com
mulheres comuns, relativamente a estas questões – argumentou ela.
– Percebeu tudo ao contrário. Para mim, a menina não é comum, de todo. É até extremamente invulgar, em relação ao que já experienciei, e poderá ter sido esse o motivo
de ter vacilado no meu autodomínio.
Finalmente, alguma verdade. Porém, um elogio, articulado por razões egoístas.
– Que estranho deve ser o mundo em que vive, Lord Southwaite. Tão repleto de falsidade, que a minha falta de sofisticação se torna intrigante, por comparação.
Emma segurava o rolo de desenhos à sua frente, como um escudo, mas não desviava o seu olhar intenso, focado no conde.
– Falemos a verdade que conhecemos, sempre que tivermos a possibilidade de o fazer, senhor conde.
Quaisquer que tenham sido as suas motivações, ou impulsos, o senhor conde aproveitou-se da minha surpresa, mas nada mais. Não fingirei que me comportei bem, pelo
que estamos ambos cientes de que a culpa não é inteiramente sua. Contudo, espero que saiba que, de futuro, nunca mais voltarei a ficar tão perplexa. Jamais.
Com que então nunca mais seria apanhada de surpresa? Maldição. Viera até ali com o intuito de fazerem as pazes, mas Emma parecia estar a preparar-se para combater
novamente e acabara de lhe lançar um desafio.
Aquilo despertou o demónio que vivia no interior de Southwaite e a criatura ficou bastante contente por poder esticar as suas asas negras.
– Está a dizer que, se a tentar beijar de novo, terá a força de vontade necessária para me rejeitar?
Darius não tencionava ameaçá-la e Emma não encarou aquelas palavras como uma ameaça. No entanto, estas anunciavam a possibilidade de mais beijos e de outras coisas.
Emma também tinha consciência disso. Dificilmente poderia ignorar como haviam alterado o ar que os rodeava, forjando uma ligação invisível entre os dois.
– Embora possua muita fé na minha força de vontade, pensei ter ficado bem claro que pressupunha que o senhor conde não tentaria beijar-me novamente.
– Que suposição tão ingénua e tão pouco prática da sua parte.
– O senhor conde pediu desculpa. Eu tinha todas as razões para o pressupor.
– Se alguma vez o pedido de desculpas de um homem revelou a verdadeira natureza dos seus pensamentos, o meu fê-lo.
– Então, permita-me que fale mais claramente. Não pressuponho, nem espero, que o senhor conde resista a tais impulsos. Exijo-o. Na verdade, gostaria que me desse
a sua palavra de honra nesse sentido.
Afinal, Emma não planeava uma batalha. Em vez disso, queria uma vitória diplomática. Infelizmente para o sucesso de tal estratégia, Southwaite descobrira que Emma
Fairbourne mergulhada em prazer era muito mais fácil de manipular do que Emma Fairbourne em plena posse das suas faculdades.
– Nunca dou a minha palavra de honra, quando sei que provavelmente irei quebrá-la, Miss Fairbourne.
Gentilmente, Darius retirou o rolo de desenhos dos braços de Emma, colocando-o de parte.
– E sei, desde que abandonei aquele jardim, que iria tentar beijá-la outra vez.
Com as mãos em concha, o conde segurou o rosto de Emma. Ela sobressaltou-se, mas não se afastou. A pele de Emma parecia veludo sedoso sob a palma das suas mãos.
Um rubor invadiu-a e o ardor resultante passou para ele, juntando-se ao seu próprio calor. Os olhos de Emma arregalaram-se, expressando assombro perante a reação
e a excitação desencadeadas por aquele simples contacto. Revelavam o mesmo espanto que Darius testemunhara no jardim.
Assim que os lábios do conde tocaram os de Emma, ele soube que iria pagar caro pelo beijo. Como Kendale mencionara, estava longe de ser um rapaz imberbe. Emma era
extraordinariamente cativante e adoravelmente natural. Apesar da declaração que acabara de fazer, ainda parecia estar muito surpreendida com a forma como um beijo
a conseguia afetar. A luxúria do conde incitava-o a tentar obter ainda mais, argumentando vigorosamente para que o fizesse.
Darius devorou a boca de Emma, mas conseguiu manter as mãos longe do corpo dela. Quando a situação se tornou insuportável, libertou-a e afastou-se. «Não aqui. Não
agora. Não na casa dela, com os criados por perto.»
Pareceu que ficaram ali durante uma eternidade, com a paixão e o desejo a uni-los. A atraí-los. Podia ser uma doce tortura, mas apenas se, no final, terminasse do
modo certo.
Southwaite ponderou que Emma conseguia perceber as suas intenções, tal como ele conseguia ver as suspeitas de Emma acerca do «porquê» e o seu receio acerca de «o
que» ele queria.
Emma efetuou uma vénia demorada e meticulosa. O conde fez a mesura indispensável e retirou-se.
13 Grande lago artificial existente no Hyde Park. Foi construído no séc. XVIII, para fins recreativos. (N. do T.) 14 Referência ao partido liberal que disputou o
poder com o partido conservador entre o final do séc. XVII e meados do séc. XIX. Os Whigs defendiam a monarquia constitucional e a tolerância para com os protestantes.
(N. do T.)
CAPÍTULO 14
Emma contornou a esquina da fachada ocidental da Catedral de São Paulo, dirigindo-se para a área que ficava mais a leste. Vestira-se de preto, na esperança de que
o homem a identificasse pelo luto, se ainda não conhecesse o rosto dela.
A visita de Southwaite, que ocorrera no dia anterior, era continuamente revisitada pelos seus pensamentos, enquanto examinava as pessoas pelas quais passava, procurando
qualquer sinal de que uma delas fosse o indivíduo misterioso.
Southwaite pedira desculpa sem o género de embaraço que seria de esperar, dadas as circunstâncias. O conde extremamente correto havia dito as indispensáveis palavras
extremamente corretas, com o tom certo e a autorrecriminação apropriada, se bem que muito pouco sincera. Agira como se tivesse lido um pequeno panfleto que servia
de guia para tais situações.
Presumia que as palavras por ele proferidas, acerca de ela própria não ser comum, constituíam um gesto bondoso. Tinha questionado as motivações do conde, não tinha?
Dera a entender que ele a tratava com menos respeito do que o reservado para as mulheres de melhores famílias. Seria ultrajante para Southwaite ter de admitir uma
conduta desse tipo. O que poderia alegar em sua defesa? Que as regras não se aplicavam à interação entre um nobre e uma mulher como ela, mas somente ao comportamento
desse mesmo nobre perante as filhas de aristocratas e cavalheiros?
Contudo, seria estúpido ficar zangada pelo facto de Southwaite ter mentido com o intuito de evitar insultá-la. E, afinal de contas, ela também mentira, ao dizer
que não tinha medo dele. O conde sempre a intimidara e, presentemente, a desvantagem de Emma era ainda maior do que no passado. Não estava confiante relativamente
à sua capacidade para demonstrar «força de vontade», caso Southwaite a beijasse de novo. Agora que ele o tinha feito, sucumbira mais uma vez, como uma... uma quê?
Uma mulher devassa? Uma meretriz?
Quase desejava que aquelas palavras condenatórias se aplicassem a ela. Tinha plena consciência dos seus erros. Sucumbira como uma mulher ignorante, de idade madura,
que sabia pouco acerca dos homens e menos ainda acerca da sua própria sensualidade. Talvez devesse perguntar a Cassandra quanto tempo era necessário para uma mulher
aprender a dominar as reações do seu próprio corpo, a ponto de conseguir desfrutar, ou rejeitar, o prazer, de acordo com um raciocínio objetivo.
Por outro lado, Emma tinha a certeza de que a sua presença não intimidava o conde. Logo, a desculpa que Southwaite apresentara para aqueles beijos no jardim não
lhe parecia verdadeira. O último beijo não havia sido, certamente, o ato de um homem desfeito pela paixão. O conde anunciara-o primeiro, pelo amor de Deus. Um homem
na posse das faculdades mentais necessárias para traçar o seu caminho e lançar os devidos alertas, como era óbvio, também tinha autodomínio suficiente para encetar
um percurso completamente distinto, se assim o desejasse.
Emma temia que a verdadeira razão para todos aqueles beijos fosse muito menos agradável do que uma paixão poética. Southwaite deixara bem claro, no dia em que interrompera
as entrevistas, que procurava uma nova amante e pensava que ela poderia ser adequada para a função, pelo menos durante algum tempo. Nessa altura, Emma suspeitara
que o conde provavelmente conseguia garantir a discrição dos seus casos amorosos escolhendo mulheres de ascendência menos nobre, com quem a alta sociedade não se
preocuparia minimamente.
Também era óbvio que Southwaite ainda queria convencê-la a vender a leiloeira. Naturalmente, tivera a ideia de recorrer aos prazeres sensuais para a tornar mais
manipulável, quando observara todas aquelas agitações e centelhas estúpidas que Emma exibira. Existiam muitas maneiras de obrigar uma pessoa a seguir uma dada ordem.
Que é como quem diz, de fazer com que uma mulher se submetesse a certas vontades.
O olhar de Emma saltava de pessoa em pessoa, percorrendo todos os que se demoravam no terreiro da catedral. Finalmente, pousou num homem que permanecia de pé, ao
lado da entrada oriental. Parecia mediano em todos os sentidos, exceto na forma como examinava igualmente as pessoas que por ele passavam. Casacos escuros, um velho
chapéu, puxado para baixo, de modo a tapar a testa, e calças mal ajustadas. Em suma, tinha a aparência de um comerciante muito pouco próspero.
Os seus olhos semicerrados viraram-se para Emma. Após trocarem um olhar de reconhecimento mútuo, Emma caminhou até ao local onde ele se encontrava.
– Podemos entrar p’rá igreja, se quiser – sugeriu o homem.
– Isso seria desrespeitoso, uma vez que iremos falar sobre iniciativas criminosas.
A franqueza de Emma apanhou-o de surpresa.
– Olhe, só me pagam p’ra entregar uma coisinha ou outra. Não sou criminoso.
Emma não tencionava discutir sobre a moral daquele tipo de atividades.
– Necessito de falar com o homem que lhe pagou para assegurar o transporte da carroça até à minha casa. Tenho perguntas que precisam de ser respondidas.
Ele mudou de posição e mordeu o lábio, direcionando o olhar para o terreiro.
– Pode ser qu’eu tenha as respostas. Não entrego só carroças.
– Está a dizer que tem uma mensagem para mim?
Ele encolheu os ombros.
– Depende do que fazemos aqui.
– É esperado algo da minha parte, em termos de pagamento. Não sei quanto é. Os lucros obtidos com a venda daqueles bens? Nada mais? Não tenho conhecimento do acordo
feito com o meu pai. Ele nunca me falou sobre tal pacto. Também pretendo resolver a questão definitivamente. Diga ao seu chefe que quero saber o que tenho de fazer
para garantir que ganho o prémio.
– Ganhar o prémio? Não há prémio p’ra ganhar.
– A mulher que me trouxe a carroça disse...
– É p’ra resgatar o prémio, foi o que mandei a mulher dizer, não é p’ra ganhar. Estrangeira estúpida. A sorte não é p’ra aqui chamada, se m’entende. P’lo que sei,
só o tem se o pagar.
O coração de Emma batia tão fortemente que lhe causava dor. Naquele momento, mal conseguia conter a esperança que sentia.
– Sabe o que é o prémio?
– Pode ser qu’eu saiba. Você não sabe?
– Não. Tenho de descobrir o que está em risco, ou atirarei a carroça para o rio, juntamente com o seu conteúdo. Por isso, responda-me, de imediato. O prémio é uma
pessoa?
O homem respondeu-lhe piscando um dos olhos, de uma forma bem visível.
Emma teve de se afastar, para conseguir manter a compostura. Fechou os olhos com força, de modo a que as lágrimas não caíssem. «Oh, pai, porque não me contou tudo
isto? Porque não me preparou, para que eu soubesse o que fazer?» No seu coração, conhecia a resposta àquelas perguntas. Ele não a informara, porque não tinha a certeza
de alguma vez ser bem-sucedido. Ele não a tinha preparado, porque nunca esperara morrer tão cedo.
Emma regressou para junto do seu mensageiro.
– Tenho de o resgatar.
– O meu patrão parece que adivinhou o que você queria, porque mandou dizer aquilo que a senhora quer saber. Ele mandou dizer que tem de dar cem libras, por conta,
p’ra garantir que o prémio fica seguro, mais o que der a venda do que está na carroça. Ou, por três mil libras, arruma-se o negócio e fica já com ele.
– Três mil libras!
A quantia elevada chocou-a. Onde poderia arranjar aquele valor? Nunca conseguiria pagá-lo. Até mesmo as cem libras iriam representar uma proporção considerável das
receitas derivadas do leilão.
Percebeu que era esse o objetivo dos raptores. O resgate era demasiado alto para o pai, ou ela própria, poderem liquidá-lo. Porque libertariam Robert, quando mantê-lo
em cativeiro assegurava um fluxo interminável de pagamentos, assim como uma forma segura de vender mercadorias de contrabando?
– É demasiado dinheiro – afirmou Emma. – Diga-lhe isso. Também não serei eternamente alvo de extorsão, se é essa a intenção dele. Para além disso, quero provas de
que o meu irmão está vivo e bem de saúde. Não sou suficientemente idiota para acreditar na palavra de um patife.
– Ora, ora, ele não vai gostar que lhe chame isso. Você tem língua afiada. É melhor pensar no que vai dizer, porque há mais p’ra lhe contar e é coisa boa.
Emma acalmou a sua língua afiada, para que o «mais» fosse revelado.
– Também me mandaram dizer que o resgate é três mil libras, mas pode ser metade disso, se fizer um pequeno favor.
– Que favor?
– Isso, não disseram. Mas você vai saber em breve, é tudo o que tenho p’ra lhe contar.
Provavelmente, o favor consistiria em leiloar mais bens ilícitos. Receberia uma vintena de carroças repletas de mercadorias ilegais, após ter pago o resgate, para
um final em grande.
– Há algo mais que me queira dizer?
O homem anuiu.
– Há um fidalgo que vai àquele sítio que a senhora tem. Mandaram-me avisá-la de que não deve contar-lhe estas coisas – afirmou o homem, inclinando a cabeça e piscando-lhe
o olho, em jeito de cumplicidade. – O meu patrão foi muito firme nisso. Acho que as visitas do fidalgo fizeram o patrão desconfiar de si. Talvez você faça jogo duplo,
é isso? Ele disse qu’esse fidalgo, de há uns tempos p’ra cá, tem-se intrometido com o comércio livre na costa. A sua relação com uma pessoa dessa laia traz preocupação.
A advertência causou um formigueiro no pescoço de Emma. O raptor vigiava-a, espiando também a Fairbourne’s? Aquela ideia fez com que se sentisse muito desconfortável,
como se olhos invisíveis a observassem, mesmo naquele preciso momento.
Pior: o aviso sugeria que Southwaite se preocupava mais com a questão do contrabando do que Emma originalmente calculara. Talvez fizesse parte do seu interesse pela
vulnerabilidade da costa, que Cassandra mencionara. Independentemente das motivações do conde, uma nova razão para este ter revelado tanto interesse pela Fairbourne’s
e por ela própria surgiu, de forma súbita, na mente de Emma.
Talvez Southwaite tivesse estado mais atento ao que se passava no negócio do que Emma imaginara.
Talvez o conde tivesse até adivinhado a existência dos lotes especiais, que chegavam à casa do proprietário da leiloeira, escondidos sob as lonas.
Southwaite poderia não ser apenas um investidor, que procurava garantir a disposição eficiente do negócio. Em vez disso, poderia estar a investigar a Fairbourne’s,
o seu pai e, presentemente, ela própria.
O conde passara horas, mesmo dias, a examinar a contabilidade da empresa, não passara?
Estes pensamentos entristeceram-na, por motivos que não tinha tempo para decifrar naquele momento.
Emma recompôs-se e tentou parecer temível. Fitou diretamente o mensageiro, colocando-o no seu devido lugar.
– Quero saber onde se encontra com esse homem, aquele que o instruiu sobre o que dizer.
Ele recuou, franzindo a testa.
– Eu seria estúpido se dissesse, não seria? S’eu lhe contasse, ninguém me ia querer como mensageiro, é assim qu’eu vejo as coisas.
Emma mergulhou a mão na carteira e retirou alguns xelins.
– Poderia ser o meu mensageiro.
O homem aceitou as moedas com bastante rapidez, mas sorriu presunçosamente, enquanto as guardava.
– Acho que não vai ter muito com que pagar, daqui a nada. Talvez o fidalgo fale contra si e faça com que você vá p’rá prisão, não tarda. É muita gentileza sua, mas
acho que fico com o que tenho agora.
Ganho o suficiente p’ró que preciso.
O homem afastou-se, a assobiar. Enquanto isso, Emma regressou à sua carruagem.
Três mil libras. Se Herr Werner consignasse a coleção do conde e se Marielle encontrasse mais alguns imigrantes com bons artigos, a comissão da Fairbourne’s sobre
o leilão poderia angariar, na melhor das hipóteses, metade da quantia em questão. Contudo, não podia ter a certeza de que os licitantes subissem os preços até aos
seus níveis máximos. Precisava de algo mais, para assegurar que conseguia, pelo menos, as mil e quinhentas libras que lhe seriam pedidas, após ter executado o tal
favor.
O Rafael, propriedade da família, certamente faria pender a balança a favor dela. A totalidade do montante recebido aquando da venda seria para Emma, que não teria
de se contentar apenas com uma comissão. Vendê-lo iria partir-lhe o coração, mas Emma teria de o adicionar ao catálogo.
Contudo, naquele momento, estava mais interessada nas explicações do mensageiro a respeito do seu empregador. Aparentemente, conversavam um com o outro. Talvez o
indivíduo misterioso, que enviara as mensagens, estivesse por perto. O mesmo poderia suceder com Robert.
Apesar de toda a angústia que sentia, essa hipótese entusiasmava-a. Imaginava-se a abrir a porta de uma masmorra, ou de uma cave subterrânea, e a contemplar o espanto
e a alegria do irmão, ao perceber que estava a ser salvo. Imaginava ainda que o traria para casa e lhe mostraria quão bem se saíra na tarefa de preservar o legado
familiar. Finalmente, Robert assumiria o seu papel. Envergando os melhores casacos que possuía, ocuparia o local onde o pai tinha permanecido durante os leilões.
Emma precisava de descobrir se Robert estava praticamente debaixo do seu nariz. Recusava-se a obedecer cegamente ao raptor misterioso, ou às suas exigências de pagamentos
e favores. Não tinha qualquer motivo para confiar nele. Não iria ficar inativa, enquanto o seu irmão era vítima de tal perpetrador.
As emoções agitaram-se dentro de Emma, durante todo o percurso até à sua casa. Entusiasmo misturado com um medo muito real. Desejou poder entregar o assunto a alguém
numa posição de autoridade, que utilizasse mais meios para encontrar Robert, do que ela alguma vez poderia reunir. O rapto era um crime grave. Certamente, se Emma
falasse com um magistrado, explicando o que sabia, alguma ajuda seria mobilizada.
O problema residia no facto de Emma não saber muito acerca do que se passava. Nem sequer sabia a razão pela qual alguém originalmente decidira raptar Robert. Não
devia ignorar a possibilidade de não ter sido uma escolha aleatória.
Robert também poderia ter estado envolvido em atividades ilegais. Se, de alguma forma, ele participara no contrabando que, presentemente, contaminava a Fairbourne’s,
seria mais ajuizado Emma não procurar ajuda. Não podia confiar que outra pessoa fechasse os olhos aos crimes que poderiam estar por trás de tudo aquilo. Seria uma
catástrofe, se Robert fosse libertado de uma prisão só para ser enfiado noutra.
Não, teria de ser ela própria a lançar mãos à obra, se quisesse averiguar a presença de Robert em Inglaterra, ou descobrir a identidade de quem o mantinha cativo.
Pelo menos, devia tentar fazê-lo.
Emma sentiu-se muito melhor após ter tomado essa decisão. Menos indefesa, menos como um peão de pessoas desconhecidas. O medo acalmou, mas isso só lhe permitiu reconhecer
outra emoção que se instalara no seu coração, fazendo com que ficasse ligeiramente nauseada. Pensou em Southwaite e as náuseas pioraram.
Também não podia confiar nele. Com toda a certeza, não devia pedir- lhe qualquer ajuda. Na realidade, Emma teria de rezar para que o conde nunca fizesse perguntas
sobre alguns dos lotes do próximo leilão.
CAPÍTULO 15
– Para onde vamos? – inquiriu Ambury, em voz alta, com irritação.
Dirigira a questão às costas de Kendale.
Kendale não respondeu, continuando a liderar o grupo enquanto caminhavam, a cavalo, pelas ruas apinhadas que ficavam a leste da Hanover Square. No entanto, a sua
postura rígida falava eloquentemente. Aquela jornada tinha um «Objetivo Importante».
– Em breve, tudo será revelado – disse Darius a Ambury. – Espero eu.
– Não sei por que razão tem ele de ser misterioso – resmungou Ambury. – É incomodativo, quando se comporta desta maneira. Não sou um soldado sob o seu comando e
não aprecio mensagens enigmáticas, ordenando-me que compareça às cinco da manhã para ser passado em revista.
Kendale ouviu as queixas. Girou o seu cavalo, até que o focinho deste encarou as cabeças das restantes montadas.
– Não estou a ser misterioso. Qualquer conversa seria difícil, mesmo que caminhássemos os três lado a lado.
– Não seria difícil antes de montarmos – salientou Ambury. – Nem será difícil agora. Antes de você assumir novamente a liderança, exijo saber para onde vamos e porquê.
O humor espinhoso de Ambury surpreendeu Kendale, que olhou para Darius de forma inquiridora.
Darius pensou, e não pela primeira vez, que a obstinação de Kendale provavelmente o tornara um excelente oficial, mas fazia com que fosse, por vezes, um amigo difícil
de tolerar.
– Ele tem a esperança de se encontrar com uma certa pessoa no parque, durante o dia de hoje – disse Darius, tentando justificar a irritabilidade de Ambury.
– Quer dizer que estou a impedir a realização de um encontro romântico? Maldição, Ambury, porque não me disse do que se tratava? Detestaria atrasar os assuntos frívolos
com os quais ocupa a sua vida durante a temporada, ao desviá-lo para uma missão que poderá ser de extrema importância.
– Não me importo com o atraso nos meus planos. Apenas pretendo obter uma pequena indicação de que a missão na qual participamos seja sequer de alguma importância.
Assim sendo, perguntarei mais uma vez para onde vamos, com os diabos?
Kendale fez avançar o seu cavalo, para que este flanqueasse o de Ambury, de modo a poder falar com o amigo de uma forma confidencial. Infelizmente, esse movimento
colocou os três cavaleiros lado a lado, fazendo com que bloqueassem a rua. Darius manteve-se atento, tentando captar a explicação de Kendale, que também seria bem-vinda
para ele próprio. Contudo, em simultâneo, começou a ser atacado por gritos e maldições cada vez mais insistentes, provenientes de cocheiros e carroceiros, que não
conseguiam contornar o grupo a fim de continuarem o seu trajeto.
– Tenho andado a investigar um rumor e creio que descobri algo alarmante – confidenciou Kendale. – Já ouviram falar de uma mulher chamada Marielle Lyon?
– Sim, já ouvi falar dela – respondeu Darius. – É francesa. Uma refugiada que veio para Inglaterra há alguns anos, fugindo do Terror. É sobrinha do conde de Beaulieu.
– Quais são os rumores que circulam sobre essa personagem? – perguntou Ambury, que, naquele momento, já parecia interessado na conversa. As imprecações dos homens
que conduziam os veículos bloqueados começaram a subir de tom.
– Algumas pessoas dizem que é uma charlatã e que não é quem afirma ser – esclareceu Darius. – Isso não será propriamente uma novidade, Kendale. E também é muito
provável que os rumores sejam falsos.
Já procuraram desmascará-la várias vezes, mas todas as tentativas falharam, o que sugere que talvez não exista qualquer máscara para ser removida.
– O facto de os rumores terem origem na própria comunidade de imigrantes franceses interessou-me – explicou Kendale. – Por isso, tenho vigiado essa mulher esporadicamente.
– Isso parece-me injusto – disse Ambury. – Não gosto de pensar que alguém me poderia espiar devido a um simples rumor.
– Não faço tudo isto para satisfazer a minha curiosidade ociosa, nem para brincar aos detetives, como você por vezes brinca, Ambury. Se uma mulher vive em Inglaterra
como refugiada, afirmando ser a sobrinha de um conde, quando, na verdade, é outra pessoa, isso configura uma situação demasiado suspeita para ser simplesmente ignorada.
Como poderiam esconder melhor um espião do que deixando a pessoa em questão à vista de todos, mas com uma identidade falsa, que apelaria à compaixão? – indagou Kendale.
– Se um rumor desse género estivesse associado a si, garanto que também seria alvo de vigilância.
– Graças a Deus que a Inglaterra pode contar consigo, Kendale. Estou seguro de que os nossos ministros rezam pela sua alma todas as manhãs – respondeu Ambury. –
Esta missão foi-lhe atribuída por um deles, ou decidiu cumpri-la por iniciativa própria?
– Sabemos a resposta a essa pergunta e, tendo em conta as nossas próprias atividades não autorizadas, dificilmente poderá objetar com base nesse aspeto, Ambury –
arguiu Darius. – Para além disso, as suspeitas de Kendale são partilhadas por outras pessoas. Alguns membros do governo demonstram uma certa desconfiança em relação
a essa mulher. É possível que não sejamos os únicos a vigiá-la.
– Não detetei outros vigilantes. O que é um descuido – disse Kendale. – Tenho a certeza de que ninguém estava por perto quando ela realizou uma reunião de manhã
cedo, no parque, há alguns dias.
Encontrou-se com a filha daquele homem que sofreu uma queda suspeita, enquanto passeava por um caminho costeiro, no Kent.
Darius olhou para Kendale, com surpresa. Vislumbrava agora para onde a mente do amigo se dirigira nos últimos dias. Naquele momento, a sua própria mente corria,
tentando manter-se a par, e até ultrapassar, a do amigo.
– Então vamos prendê-la por se atrever a falar com outra mulher num parque? – questionou Ambury.
O sarcasmo não produziu qualquer efeito em Kendale.
– Ainda não sabemos o suficiente para legitimar uma ação desse género. Vamos até à residência da outra mulher, para que possam ajudar-me. Temos de patrulhar a propriedade
e a rua, e avaliar qual a melhor maneira de o fazer. Recentemente, tenho vindo a recorrer a alguns serventes de confiança para me auxiliarem nesta missão, uma vez
que não consigo dar conta sozinho de todas as pessoas suspeitas incluídas na minha lista. Porém, mesmo assim, somos poucos para a tarefa.
– Envolveu os seus criados neste assunto? – perguntou Darius. – Está louco? Satisfazer a sua própria curiosidade é uma coisa, mas criar uma rede de justiceiros é
outra, completamente diferente.
– É claro que ele está louco – disse Ambury. – Não pode confiar na discrição dos seus servidores, Kendale. A qualquer momento poderão chegar aos ouvidos de Pitt15
informações acerca das suas iniciativas. Diria mesmo que bem pode esperar uma reunião desagradável com o Secretário de Estado para os Assuntos Internos, durante
a próxima semana.
– Os meus criados são de confiança, mesmo que os vossos não sejam. A minha casa é mais disciplinada do que uma unidade dos Horse Guards16. Mas se qualquer um de
vós for capaz de identificar um só servente com a lealdade necessária, também pode considerar usá-lo, pois é impossível que um ou dois homens assegurem sozinhos
a vigilância de uma pessoa.
Ignorando completamente a reprimenda dos companheiros, Kendale virou o seu cavalo e continuou a avançar. Darius e Ambury seguiram-no, caminhando lado a lado. Os
cocheiros que tinham estado bloqueados começaram a contornar o grupo, lançando as últimas pragas, enquanto os ultrapassavam.
Darius sentiu vontade de estrangular Kendale. O indivíduo agia como se apenas ele fosse capaz de salvar o reino. Aquela investigação, em particular, prometia criar
complicações constrangedoras.
Era inevitável que alguém acabasse por se questionar sobre o acidente de Maurice Fairbourne e a razão pela qual ele estivera no trilho costeiro, à noite. No entanto,
Darius nunca esperara que essas dúvidas fossem levantadas por um dos seus amigos.
– Ele vai fazer com que eu comece a beber – disse Ambury, calmamente. – Ficou afetado pelo facto de ter sido obrigado a vender o seu posto militar e estava excessivamente
ansioso para ajudar a montar a rede de observadores ao longo da costa. O Kendale gosta disto muito mais do que eu. Se não travarmos este último excesso, não tardará
a colocar alguns dos tais servidores de confiança a espiar-nos.
– Penso que ele encontrou uma desculpa para evitar as expectativas sociais associadas ao título que possui, ocupando-se com questões mais sérias.
– Se lhe arranjássemos uma mulher, ele não se importaria tanto com as expectativas sociais. Temos de nos empenhar nessa tarefa, e rapidamente.
Kendale ergueu uma mão, parando a pequena marcha no final da Compton Street. Deslocou o seu cavalo, para poder visualizar os companheiros.
– É a quarta porta a seguir ao próximo cruzamento. Atualmente, a mulher vive lá sozinha, acompanhada apenas pelos criados. Quando ela regressar, seria útil que a
conseguissem manter debaixo de olho, para vermos se ocorrem mais encontros com a Lyon ou com qualquer outra pessoa suspeita.
– Quando ela regressar?
O olhar de Darius desviou-se bruscamente da porta familiar para encarar Kendale.
– A carruagem não se encontra na cocheira desde a madrugada. O anexo esteve vazio durante todo o dia. Espreitei para o seu interior mais uma vez, mesmo antes de
ir ao vosso encontro. Creio que ela fez uma viagem e amaldiçoo-me por não vos ter convocado antes para esta missão, pois assim saberíamos onde ela foi.
– Com certeza foi apenas visitar um amigo, algures na cidade – sugeriu Darius. – Obviamente, deve possuir alguns contactos sociais.
– É possível. Contudo, estive a ponderar se ela não terá ido à propriedade do pai, no Kent. Se assim for, bem, reflitam sobre a situação. Ela encontra-se com a Lyon
e, somente dois dias mais tarde, viaja até à costa – disse Kendale, cuja expressão assumiu uma gravidade bastante militar. – Penso que estas duas mulheres andam
a dedicar-se a atividades pouco recomendáveis.
– Na minha opinião, está a fazer uma tempestade num copo de água e a aborrecer-me enquanto o faz – disse Ambury. – É tudo extremamente vago.
– Não nego que seja vago, mas tem de admitir que também é uma grande coincidência, e muito peculiar.
– Só se realmente aconteceu. Não existe qualquer prova de tal ocorrência, a não ser na sua imaginação – replicou Ambury.
– Por acaso, conhecia o Maurice Fairbourne, o homem que caiu da falésia, enquanto passeava – disse Darius. – Frequentava a leiloeira dele. A propriedade que ele
possuía no Kent não era muito afastada da minha, por isso tínhamos mais um motivo para travarmos conhecimento.
Ambury, que, evidentemente, não fizera a ligação entre a tal outra mulher e Emma Fairbourne, até àquele momento, voltou a sua atenção para Darius, com uma curiosidade
descarada.
– Também conhece a filha dele? – indagou Kendale.
– Já fomos apresentados.
Kendale considerou o que acabara de ouvir, enquanto Ambury lançou a Darius um olhar vagaroso e sub-reptício.
– Presumo que a mulher ainda esteja de luto, Kendale?
Outro olhar malicioso permitiu que Darius soubesse que um dos seus amigos não esquecera as suas inquietações sobre beijar e seduzir uma mulher de luto.
– Sim, está. É por essa razão que esta longa ausência, durante o dia de hoje, me preocupa. Não é muito provável que ela possua uma agenda social preenchida, após
a morte do pai. Até é conveniente, para os nossos planos, que já se tenha encontrado com ela e que tenha também conhecido o pai dela, Southwaite.
Assim, poderá vigiá-la, sem que as suas intenções sejam demasiado óbvias.
– Ora, isso é mesmo conveniente – resmungou Ambury, em voz baixa.
– Concentrarei a minha atenção nela, se insistir, Kendale, embora acredite que as suas suspeitas são o fruto da mente de um guerreiro à procura de uma batalha.
Kendale franziu a testa.
– Se considera que seria errado... ignóbil, por ter uma ligação social prévia com a pessoa em questão, presumo que Ambury poderia...
– Não, é melhor ser eu a tratar do assunto. Estarei menos propenso a interpretar mal os factos, uma vez que já conheço a senhora. Dedicar-me-ei à tarefa de imediato.
Começarei por descobrir se a ausência da carruagem significa que ela decidiu fazer uma viagem. Se for esse o caso, averiguarei para onde foi – ajuizou Darius, enquanto
avançava com o seu cavalo.
– Como fará isso? – perguntou Kendale. – É muito difícil seguir o rasto de uma carruagem desaparecida.
– Só se estiver realmente desaparecida – salientou Ambury, exasperado.
– Não tenha receio, Kendale. Tenho cá os meus métodos – replicou Darius.
O seu primeiro método era o mais fácil. Ia interrogar Maitland, o mordomo. Sem dúvida, receberia garantias de que Miss Fairbourne não estava a fazer algo mais suspeito
do que passar o serão com Lady Cassandra e a sua tia.
15 Referência a William Pitt, um membro do partido conservador, que foi o primeiro-ministro de Inglaterra, de 1783 a 1801, e de 1804 a 1806. (N. do T.) 16 Referência
aos Royal Horse Guards, um regimento da cavalaria britânica, fundado em meados do séc. XVII. No final do séc. XVIII, este regimento participou nos conflitos militares
derivados da Revolução Francesa. (N. do T.)
CAPÍTULO 16
A casa estivera fechada durante mais de um mês. Continha um odor característico a mofo, que implicava ausência e poeira. Quando chegou, Emma abriu imediatamente
algumas janelas, contente por ter algo para fazer, a fim de não sucumbir às suas emoções.
Há quase um ano que não vinha ao Kent. A propriedade abraçava a costa, a meio caminho entre Deal e Dover, onde os Downs17 davam lugar ao Estreito18. Aquela habitação
havia sido o refúgio do pai e não uma residência familiar. Emma nem sequer visitara o local após o falecimento do pai. Em vez disso, o corpo tinha sido levado de
volta para Londres, de modo a realizarem um enterro apropriado, ao lado da sua mãe. Naquele momento, a brisa marítima invadia a cozinha, transportando consigo memórias
das poucas vezes em que acompanhara o pai até ali.
– Vou lavar estas cortinas – disse Mrs. Norriston, enquanto segurava uma delas junto ao nariz. – Quis fazer isso quando o seu pai esteve aqui pela última vez, mas
ele...
Subitamente, calou-se, corou e olhou para Emma, arrependida por ter dito o que não devia.
Mrs. Norriston vivia na povoação vizinha de Ringswold. Assumia, ocasionalmente, o papel de governanta da família, quando o pai de Emma decidia passar algum tempo
na propriedade rural. No caminho, Emma parara na aldeia, para a ir buscar e trazê-la consigo. Na verdade, não precisava de uma criada para a breve visita que tinha
em mente. Queria a companhia de Mrs. Norriston por outros motivos, que começaria agora a abordar.
– Vim até cá numa missão, Mrs. Norriston. Espero que me possa ajudar a ser bem-sucedida.
– Não devo poder ajudar alguém como a menina, Miss Fairbourne. Sou uma mulher simples. Se precisa de mim p’ra cozinhar e limpar, muito bem. Mas uma missão parece
ser coisa de muita importância.
– Certa vez, o meu pai contou-me que a senhora viveu nesta região durante toda a sua vida. É
precisamente uma pessoa como a senhora que me pode ajudar. É que eu pretendo falar com alguns dos contrabandistas que atuam nesta zona da costa, está a compreender?
Pensei que talvez conhecesse alguém que os conseguisse contactar e lhes pudesse transmitir a mensagem de que tenho urgência em falar com eles.
Mrs. Norriston abanou a cabeça, rapidamente.
– Ninguém sabe quem são. E eles preferem que seja assim, entende? É do interesse deles não serem vistos, nem conhecidos.
– Alguns deles são bem conhecidos e os seus rostos são vistos por quem os ajuda. Não sou um oficial de justiça. Não pretendo prendê-los. Tenho a certeza de que existem
pessoas na aldeia que me podem auxiliar. Afinal, quando visitei Ringswold, no ano passado, havia um homem que vendia sabão francês, sentado numa carroça estacionada
na área verde comum.
Pesada e robusta, envergando uma grande touca branca que lhe cobria a maior parte do cabelo grisalho, Mrs. Norriston atarefou-se pela cozinha guardando o queijo,
o pernil e o pão que Emma comprara no caminho. Verificou a despensa, avaliando a existência dos ingredientes essenciais para a sua atividade culinária e cheirou
o conteúdo do frasco que continha as gorduras dos assados.
Emma esperou uns bons cinco minutos, aguardando que Mrs. Norriston dissesse algo. Quando se tornou óbvio que a governanta preferira ignorar o seu pedido de ajuda,
Emma mudou de assunto.
– Sabe a que distância fica a propriedade do conde de Southwaite? É perto de Folkstone, segundo creio.
Mrs. Norriston bateu levemente no queixo, enquanto refletia.
– A uns dez ou onze quilómetros para sul, acho eu. Tem a fama de ser duro, esse homem. Sorri muito, mas só até ficar zangado, p’lo que ouvi dizer – confidenciou
a governanta, pegando depois numa frigideira. – Vou aquecer o pernil para o jantar. O seu cocheiro vai ficar contente por ter um prato de comida quente, acho eu.
Primeiro trato dele e depois chamo-a, quando tiver tudo preparado p’ra si.
Percebendo que havia sido dispensada, Emma abandonou a cozinha e subiu as escadas que conduziam ao piso superior. Reparou, à medida que o fazia, que os seus passos
soavam bastante ruidosos e que as sombras pareciam agitar-se, quando se aproximava.
Emma visitara aquela casa poucas vezes, por isso esta não lhe transmitia a sensação de um lar. No entanto, era impossível ignorar que toda a residência lhe lembrava
a antecâmara dos aposentos do pai, em Londres. A presença de Maurice parecia ter deixado uma impressão naquele lugar, de uma forma que o tempo ainda não apagara.
Talvez o facto de se ter refugiado e isolado ali fizesse com que uma parte dele, algo quase palpável, permanecesse dentro das quatro paredes.
Ao abrir a porta que dava acesso ao quarto que o pai utilizava, sentiu-se invadida por um sentimento de maior proximidade a ele, mais do que alguma vez tivera desde
a sua morte. A emoção não a assustou, nem a fez sentir desconfortável, mas infiltrou-se na alma de Emma exigindo ser reconhecida.
Um pequeno quadro enfeitava a parede norte da divisão e, após ter lá entrado, o olhar de Emma dirigiu-se de imediato para ele. As suas cores vivas não conseguiam
ser obscurecidas pelas sombras que se apoderavam do quarto. Brilhavam, devido à iluminação artística: os vermelhos, como rubis, e o azul, tão puro, como o lápis-lazúli
a partir do qual o pigmento havia sido fabricado.
Emma podia discernir o tema muito claramente. São Jorge, envergando uma armadura da Renascença, matava um dragão de aspeto fantasioso com a sua lança, numa paisagem
montanhosa. Uma mulher bela, usando um vestido antiquado, permanecia afastada observando o seu protetor com amor e gratidão. Não era a única obra de Rafael sobre
o assunto, mas o pai de Emma sempre insistira que era a melhor.
Emma desviou o olhar da pintura, para observar a cama e a cadeira, assim como a pilha de livros existente sobre uma mesa. Sentiu o peito a ficar dolorosamente pesado,
até parecer que uma massa de chumbo se alojara por cima do seu coração. Caminhou até ao quadro e retirou-o da parede. Estava prestes a transportá-lo para fora da
divisão, quando a realidade que a circundava capturou novamente a sua atenção.
Onde estavam os restantes quadros?
Costumavam existir mais duas obras naquele quarto, uma pequena cena mitológica de Botticelli e o retrato de um cardeal, pintado por Sebastiano. O pai vendera a maior
parte da sua coleção, com o intuito de obter os fundos necessários para a deslocação do negócio para a Albemarle Street. Porém, mantivera aqueles dois quadros em
sua posse, porque eram as suas pinturas favoritas.
Emma pousou o Rafael. Espreitou para debaixo da cama e dentro do guarda-roupa, mas não havia qualquer sinal das obras desaparecidas. Desceu até à sala de estar,
para verificar se não teriam sido ali reposicionadas, mas também não as conseguiu encontrar. Na realidade, as paredes estavam completamente nuas.
Não podiam ter sido roubadas, uma vez que o Rafael permanecia no quarto. Ladrão algum levaria os outros dois quadros, deixando para trás o bem mais valioso. Como
tal, o pai devia ter vendido todas as pinturas que possuía, com a exceção daquela.
Emma regressou ao piso superior, para ir buscar o Rafael. Tinha agora a certeza de que o pai tentara ajudar Robert. Talvez a exigência do pagamento para manter Robert
seguro tivesse chegado numa altura em que as cem libras não estariam disponíveis de outra forma. Quanto à obra que restara, Emma sabia por que razão havia sido poupada.
O pai não a vendera porque acreditava que não era verdadeiramente sua. Comprara-a para a mãe de Emma, que, por sua vez, pedira que esta ficasse para a filha, quando
o marido falecesse.
Já no seu próprio quarto, Emma embrulhou o pequeno painel num longo pano de linho e colocou-o no fundo da sua mala. De seguida, passou o serão a decidir como poderia
organizar uma reunião com homens que eram peritos em nunca serem vistos.
Nessa noite, Emma dormiu sozinha na casa. A presença de Mr. Dillon, na cocheira, que ficava próxima, dissipava quaisquer receios, mas não conseguia afastar os fantasmas.
Recordações do pai e do irmão assombravam-lhe continuamente os pensamentos.
Lembrou-se da última vez em que haviam estado ali todos juntos, não muito antes de Robert partir para a viagem da qual nunca regressara. No entanto, agora que pensava
nisso, recordava-se da ocorrência de uma pequena altercação verbal, entre pai e filho. Emma encontrava-se no jardim, quando esta sucedera, mas conseguira ouvir as
vozes exaltadas. No dia seguinte, Robert confidenciara-lhe que, em breve, encetaria uma viagem ao continente, para adquirir a sua primeira coleção por conta própria,
que seria depois vendida na Fairbourne’s.
No entanto, aparentemente, nunca chegara ao seu destino. Nem tentara regressar de Itália, naquele navio que afundara.
Onde teria ido Robert? Será que abandonara sequer Inglaterra? Era isso que Emma queria descobrir.
Amanhã, iria até à povoação e encontraria uma maneira de falar com alguém que pudesse saber a verdade, mesmo que tivesse de recorrer a subornos.
*
Mrs. Norriston já se encontrava na cozinha, quando Emma desceu as escadas na manhã seguinte. A velha mulher serviu-lhe o pequeno-almoço e, em seguida, posicionou-se
ao lado da mesa, enquanto Emma comia. Franzia a testa e os seus olhos cintilavam com desagrado.
– O seu pai sairá da campa p’ra me castigar, se algo de mau lhe acontecer – disse ela. – Por isso, faça tudo como lhe digo, ouviu bem?
Emma assentiu, em jeito de obediência.
– Amanhã, às onze, na aldeia, vá ter à Prince’s Sword. Não use as roupas de luto, nem vá muito bem vestida. Também nada de carruagem, nem cocheiro, pediram-me para
lhe dizer. Deve apenas ir até lá e esperar.
– Sim. Fá-lo-ei. Precisamente como me está a dizer.
– Só uma conversa, como queria. Nada mais. É melhor levar algum dinheiro. Não sei se vai precisar dele, mas é melhor ir prevenida.
– Levarei o que tenho – proferiu Emma, estendendo a mão para pegar na de Mrs. Norriston e pressionando-a gentilmente. – Agradeço-lhe. Não se preocupe com possíveis
castigos do meu pai. O
encontro será em plena luz do dia e no centro de uma povoação. Nada de mal me acontecerá.
Mrs. Norriston não pareceu convencida. Abanando a cabeça, dirigiu os seus passos pesados de volta para a cozinha.
No dia seguinte, Emma vestiu um velho casaco castanho, por cima do vestido rosa, e cobriu a cabeça com um chapéu de palha simples.
Ambos os artigos haviam sido deixados naquele local aquando de uma visita, realizada há mais de um ano. Enquanto os colocava, Emma recordou os odores e os sons presentes
na casa, da última vez que os usara. As memórias afluíam de uma forma tão vívida, que Emma pensou ouvir os passos do pai, caminhando no soalho da divisão adjacente.
Rangendo os dentes, de modo a conter um dilúvio de emoções, Emma saiu de casa e, afastando-se da costa, caminhou cerca de dois quilómetros até à povoação.
As construções ali existentes exibiam estragos variados, causados pela brisa marítima. Algumas precisavam urgentemente de um novo revestimento de tinta e cal, mas
outras pareciam estar bem mantidas. As casas tinham jardins e eram de pequenas dimensões. A maioria era habitada por famílias de pescadores, mas a aldeia também
possuía uma loja e era suficientemente grande para sustentar o negócio de um comerciante ou dois.
A caminhada de Emma pela rua principal foi alvo de alguma atenção passageira. Também gerou umas quantas saudações, de pessoas que a reconheceram, das ocasiões em
que ali passara aquando das visitas ocasionais que, no passado, fizera ao pai. Emma parou no exterior da taberna Prince’s Sword e observou o interior do estabelecimento,
através da janela. Era demasiado cedo para uma taberna ter muitos clientes. As mesas estavam, na sua maioria, vazias. Um homem, sentado perto da janela, olhou para
Emma, enquanto ela o observava, e, em seguida, perdeu o interesse pela presença da mulher desconhecida.
Emma nunca antes entrara numa taberna. Não era um lugar frequentado por mulheres como ela, independentemente da altura do dia. Desejou que o contrabandista tivesse
marcado a reunião no adro da igreja. Contudo, ele não o fizera e, se quisesse descobrir alguma coisa sobre o irmão, Emma teria de entrar ali.
E foi o que fez. Os poucos clientes mal notaram a sua chegada. O proprietário da taberna apenas olhou na direção dela. Emma escolheu uma mesa tosca, afastada da
janela, sentou-se e aguardou que algo acontecesse.
O cheiro inconfundível da cerveja enchia o ar. Misturava-se com outros odores, de alimentos a serem cozinhados. Algures, num local resguardado, era preparada uma
refeição, talvez para ser vendida juntamente com as bebidas. O nariz de Emma contraiu-se. Parecia carneiro estufado.
Passaram-se dez longos minutos, durante os quais Emma permaneceu sozinha, sentada sob o teto de madeira. Então, a porta que dava acesso à rua abriu-se e um homem
entrou na taberna. Ninguém lhe deu muita atenção. Ele caminhou até à mesa de Emma e sentou-se num banco, procurando ficar de frente para ela.
Nas suas reflexões, Emma esperara encontrar-se com um sujeito velho e grisalho, muito rude e de rosto vermelho, devido aos ventos salgados. Em vez disso, o contrabandista
aparentava ter pouco mais de trinta anos e era magro, de uma forma rija, que denotava alguma força. Parecia quase elegante na sua sobrecasaca castanha comprida e
com o seu lenço branco, atado folgadamente em redor do pescoço. O
único aspeto estranho da sua aparência era a pilosidade facial. Um bigode, cuidadosamente mantido, e uma barba curta escondiam a maior parte do rosto. As sobrancelhas,
escuras e espessas, enquadravam os olhos azuis.
– Está sozinha.
A voz calma do homem fazia com que a frase parecesse, em simultâneo, uma afirmação e uma pergunta.
Esta última impressão foi suficientemente forte para que Emma se sentisse compelida a anuir.
– É insensato da sua parte – continuou o desconhecido.
– Não me deixou outra alternativa. Teria entrado aqui, há pouco, se eu trouxesse uma escolta?
– Não deveria tê-lo feito, de qualquer forma. Porém, uma mulher qualquer expôs o seu caso a um grande amigo meu. Por isso, aqui estou, durante alguns minutos. Não
mais.
Emma encarou aquilo como um convite para falar.
– Preciso da sua palavra de honra em como não irá divulgar o que lhe vou contar. Não posso arriscar que alguém numa posição de autoridade descubra isto tudo e...
– A mulher com quem vim falar, somente como um favor, quer impor condições?
Ele riu-se, com moderação.
– Lamento, mas vejo-me forçada a insistir nesse ponto. Tenho de lhe pedir a sua palavra de honra, como... como cavalheiro.
O homem não se riu perante aquela afirmação. Em vez disso, os seus olhos azuis examinaram-na com curiosidade, antes de assentir com a cabeça.
– Sou a filha de Maurice Fairbourne. Ele possuía a propriedade que fica próxima do...
– Sei quem ele era.
– O meu irmão, Robert, desapareceu há dois anos. Penso que talvez tenha sido raptado por contrabandistas.
– Não pelos que atuam nesta zona da costa.
Subitamente, Emma sentiu-se desanimada. Fora estúpida ao alimentar a esperança de que seria simples salvar o irmão. Pensara que as respostas estariam somente à espera
das suas perguntas.
– Tem a certeza? Poderá haver outros contrabandistas, que não o senhor, em busca de dinheiro fácil, obtido dessa maneira.
Ele olhou para Emma, com alguma exasperação, mas também, ponderou ela, com uma certa compaixão.
– Existem alguns desconhecidos que desembarcam aqui, por vezes. É como funciona o mar. No entanto, tal prática é desencorajada.
Emma perguntou a si mesma como o fariam, mas supôs que não deveria pedir esclarecimentos adicionais.
– Então, já ouviu falar sobre este assunto? Sobre o meu irmão, ou se esses desconhecidos estão a manter um jovem cativo? Espero que compreenda a situação. Todos
pensam que ele faleceu, mas agora tenho a certeza de que ele ainda está vivo e é meu dever tentar...
Um gesto feito por ele, uma mão levantada, foi uma ordem abrupta para que Emma se calasse. A atenção do contrabandista desviou-se para a janela. O homem sentado
perto do vidro também fez um gesto, chamando a atenção dos companheiros, enquanto olhava fixamente na direção dos vidros, esticando o pescoço para ver algo que se
passava na rua. Todas as pessoas presentes na taberna, até mesmo o proprietário, pararam o que faziam, como animais alertados para o perigo.
O homem que se encontrava à janela fez outro gesto, de aspeto tranquilizador, e lançou um olhar rápido na direção deles garantindo que estavam novamente seguros.
O contrabandista relaxou.
– Seria uma ironia infernal, se eu fosse parar à prisão por ter ficado comovido com a sua história – disse ele. – Quanto às perguntas que me fez, não ouvi qualquer
rumor sobre um homem mantido em cativeiro.
– Na sua opinião, teria conhecimento de um caso desses? Os contrabandistas comunicam todos entre si?
– Teria certamente conhecimento da situação, se ocorresse perto daqui. Quanto ao resto da costa sudeste, chegam aos nossos ouvidos apenas mexericos, exatamente como
sucede nas vossas salas de visitas. Um homem bebe e fala demasiado, fazendo com que segredos como esse se tornem conhecidos.
Ou não.
Emma odiava ter de fazer a próxima pergunta. A deslealdade da questão nauseava-a, mas era importante compreender o que realmente enfrentava.
– O senhor alguma vez... Gostaria de saber se o meu pai, ou o meu irmão, alguma vez negociaram consigo, ou com os outros contrabandistas da região?
Emma pensou vislumbrar pena nos olhos do seu interlocutor, e isso foi suficiente para lhe roubar a certeza de que ele seria honesto.
– Não me teria importado de fazer negócios com o seu pai. Chegam às nossas mãos várias mercadorias que seriam vendidas mais eficientemente num estabelecimento como
o dele. Porém, o seu pai não transacionava bens com pessoas como nós. Pelo menos, não comigo, nem com os meus rapazes. No entanto, esta costa é muito extensa. Não
posso assegurar que ele não tenha negociado com um dos outros contrabandistas que nela atuam.
Por fim, conseguira aprender algo e as novas informações deram-lhe alguma coragem. De resto, Emma aceitou, tristemente, que teria muito pouco para mostrar, como
resultado daquela pequena aventura.
– Presumo que estar informada de que o senhor não tem conhecimento do assunto já é saber alguma coisa. Deixarei de perguntar a mim mesma se o Robert estaria facilmente
ao meu alcance, mas a definhar, por falta de esforço da minha parte. Agradeço-lhe a gentileza de se ter encontrado comigo. Assim pude descobrir, pelo menos, o suficiente
para me tranquilizar, relativamente a essa hipótese.
Ela levantou-se para sair e o contrabandista começou também a fazê-lo. Mas foi então que Emma reparou noutro homem que tinha entrado na taberna, provavelmente utilizando
uma porta localizada nas traseiras do edifício, perto do local onde ele agora se encontrava. Emma ficou completamente estupefacta, contemplando o recém-chegado.
O olhar que ele lhe devolveu fê-la ter alguma dificuldade em respirar.
O contrabandista olhou por cima do seu próprio ombro. Não começou a correr, como Emma esperava.
Em vez disso, lançou um olhar intenso aos restantes clientes que estavam na taberna e, em seguida, tornou a sentar-se no banco.
– Southwaite – murmurou ele. – A senhora tem uma relação com ele?
– Não! Nem o trouxe até aqui. Juro que não o fiz – proferiu Emma, sentando-se novamente.
Southwaite caminhou em direção à mesa deles. O seu casaco de montar azul contrastava fortemente com as roupas simples dos outros homens e a arma alojada, visivelmente,
sob a peça de vestuário não podia passar despercebida. Os clientes da taberna ergueram-se, abandonando o local rapidamente. Até mesmo o proprietário decidiu apanhar
um pouco de ar fresco, no exterior.
O conde anunciou a sua presença enfaticamente pela maneira como se colocou, de um modo ameaçador, ao lado da mesa. Olhou para o contrabandista.
– Tarrington.
Tarrington apenas anuiu, num gesto de reconhecimento.
Eles conheciam-se.
– O que está a fazer aqui, Miss Fairbourne? – perguntou Southwaite.
– Estou à espera de que um estufado de carneiro acabe de ser cozinhado.
Tarrington sorriu, perante aquela resposta provocadora. Southwaite não a considerou engraçada, de todo, e voltou o seu olhar inquiridor para ele.
Emma esperava que toda a sua história fosse revelada, de imediato. Naquele momento, Tarrington encontrava-se numa situação bastante má. Se Southwaite o conseguia
reconhecer, era provavelmente um contrabandista célebre. Emma temia que ele sempre fosse parar à prisão, por ter deixado que aquela história triste o comovesse.
Para sua surpresa, Tarrington enfrentou firmemente o olhar de Southwaite e permaneceu calado.
– Vejo que existe honra entre os ladrões – disse Southwaite.
Tarrington sorriu de novo.
– Não existem ladrões aqui. Somente um homem, à procura de cerveja, e uma mulher bonita, à espera de um estufado, que transportará para casa – disse, olhando na
direção da rua. – Penso que devia sair da mesma forma que entrou, com pistola, ou sem pistola, e abstendo-se de me levar consigo. Não gostaria que o grande afeto
que os meus rapazes sentem por mim o colocasse em perigo.
– Não vim aqui para o encontrar – argumentou Southwaite, virando-se depois para Emma. – Se me der a honra, Miss Fairbourne, acompanhá-la-ei no caminho de regresso
a casa.
Emma não queria que Southwaite a acompanhasse até à propriedade. No entanto, apesar de toda a cortesia com que fora proferida, aquela frase não era, de modo algum,
um pedido. Emma permaneceu sentada durante alguns instantes rebeldes, tentando inventar uma forma de sair daquela situação.
Tarrington assistia, divertido, ao que estava a suceder. Ele não iria quebrar a sua palavra de honra e divulgar a conversa que haviam tido, mas também não iria intervir
junto de Southwaite a favor de Emma.
– Transportá-la-ei para fora deste estabelecimento, se tiver de o fazer – avisou Southwaite. – Porém, será tudo muito mais digno, se me obedecer voluntariamente.
Southwaite não tinha o direito de esperar qualquer tipo de obediência da parte dela. Emma quase lhe disse isso. Contudo, o ar ficara pesado devido à raiva do conde
e não era evidente quanto tempo os rapazes de Tarrington permaneceriam na rua.
Emma ergueu-se. Southwaite deu-lhe o braço, apertando-a firmemente. Conduziu-a para as traseiras da taberna e através de uma porta, que dava acesso ao exterior.
O conde obrigou Emma a descer a rua, até ao local onde o seu cavalo aguardava.
– Prefiro caminhar – disse ela, puxando o braço, para que este ficasse livre.
Como resposta, Southwaite levantou-a no ar e colocou-a na sela.
– Não se mexa.
Emma não ousou movimentar-se, porque estava precariamente empoleirada no cavalo, sentada de lado.
De repente, o conde posicionou-se atrás dela, montando fora da sela, com o peito a pressionar o ombro de Emma. Os braços de Southwaite rodearam-na, assim que ele
segurou as rédeas.
– Eu posso andar – reclamou ela. – Pare com isso agora mesmo.
– Quando estivermos fora da aldeia, poderá caminhar à vontade – disse o conde, fazendo com que o cavalo assumisse um trote. – Neste momento, não quero ouvir nem
mais uma palavra de objeção, Emma.
Nem uma só palavra, se souber o que é bom para si.
Emma tentou inclinar-se, de modo a minimizar o contacto.
– Não irei objetar, mas não por causa dos seus avisos. Não o irei fazer porque tenho outras coisas para dizer. O senhor conde continua a revelar-se um interveniente
extremamente incómodo. Agradeço à Providência o facto de ser o único conde que já tive a infelicidade de conhecer, se tais presunções são...
– Também seria prudente da sua parte não me chamar presunçoso, a menos que esteja ansiosa para ver exatamente o quão presunçoso um conde pode ser.
– Então encontrarei outros adjetivos apropriados. Despótico. Convencido. Arrogante...
Emma queimou os ouvidos de Southwaite com todos os descritivos que conseguia evocar, enquanto o cavalo os levava para longe da povoação.
17 Cordilheira de natureza calcária, localizada no sudeste de Inglaterra, que se estende de oeste para leste, desde a fronteira entre Londres e Surrey até às falésias
brancas de Dover. (N. do T.) 18 Referência ao estreito de Dover, o ponto do canal da Mancha em que a distância entre Inglaterra e França é menor. (N. do T.)
CAPÍTULO 17
Southwaite só permitiu que Emma andasse a pé, quando já se encontravam bastante afastados da povoação. No entanto, ela teve de exigir por duas vezes que o conde
o fizesse, antes de conseguir obter qualquer resultado. Finalmente, Southwaite parou o cavalo e ajudou-a a deslizar para fora da sela.
O braço do conde cruzou o corpo e o peito de Emma, com o propósito de apoiá-la, até os seus pés tocarem no chão.
Emma equilibrou-se e tentou esquecer a intimidade esmagadora de ser envolvida por Darius.
– Agora pode seguir o seu caminho, Lord Southwaite. Não há vivalma à vista, por isso estou completamente segura.
Emma avançou pela estrada, esperando que ele a ultrapassasse.
Southwaite não o fez. O cavalo progredia devagar, ao lado de Emma, enquanto o seu dono proporcionava, silenciosamente, a companhia que havia oferecido. Contudo,
o ar permanecia pesado, devido ao humor sombrio do conde e Emma sentia-se mais vulnerável do que protegida.
A caminhada de regresso a casa pareceu-lhe mais longa do que a realizada anteriormente, para atingir a aldeia. A força que pairava atrás dela apenas explicava parcialmente
essa diferença. O ressentimento perante a sua impotência relativamente à situação de Robert alimentava a ira que Emma sentia.
Conquistara muito pouco, mediante a conversa com Tarrington, e este último destruíra a sua secreta esperança de descobrir o paradeiro de Robert.
Uma pequena fantasia, acerca de um salvamento destemido, fora representada na sua mente, durante os últimos dias. Que simplória havia sido, ao acarinhar um sonho
tão infantil. Na verdade, Emma não tinha qualquer alternativa, a não ser obedecer às ordens dos raptores, tentando encontrar o dinheiro necessário para pagar o resgate
e esperando que tudo corresse da melhor forma possível, após o pagamento ser efetuado. O seu bom senso revoltava-se contra o facto de Emma ser apenas um peão naquele
jogo.
Emma parou, nos limites da propriedade do pai, virando-se para Southwaite.
– Obrigada.
Tentou fazer com que a sua voz transmitisse uma dispensa firme. O conde optou por não ouvir essa mensagem. Enquanto Emma caminhava em direção à casa, o cavalo manteve
o ritmo, atrás dela.
O rosto de Mrs. Norriston apareceu na ombreira da porta. O seu olhar saltou de Emma para o cavalo que a seguia e concentrou-se depois no homem que o montava. Com
um rubor profundo, ela correu para Emma, desculpando-se.
– Não sabia como negar a pretensão do fidalgo. Ele disse que, se lhe acontecesse algum mal a si, eu também seria culpada.
– O que o levaria a pensar que poderia acontecer algum mal? Eu poderia ter andado a passear pela minha propriedade e nada mais.
Mrs. Norriston baixou o olhar, até encarar o chão.
– É possível qu’eu tenha dito qu’a menina estava numa reunião. E é possível qu’eu tenha contado qu’a menina queria falar com contrabandistas. Fiquei com medo. Não
consegui pensar em maneiras de não dizer as coisas.
– Com franqueza, Mrs. Norriston, não devia ter divulgado as minhas intenções. Nem devia ter ficado assustada, apenas porque um homem teve a sorte de nascer como
o herdeiro de um importante aristocrata.
Ele só lhe disse que eu estava em perigo com o intuito de obter o que desejava.
Parecendo bastante arrependida, Mrs. Norriston fez uma ligeira vénia, na direção do cavalo, e, em seguida, desapareceu no interior do edifício. Emma seguiu-a, fechando
a porta na cara do conde, que estava a desmontar. Se Southwaite não compreendesse aquela dispensa, era estúpido, para além de arrogante.
Emma entrou na sala de estar. Ainda não tinha sequer desatado a fita do chapéu, quando começou a ouvir as pancadas de Southwaite na porta principal. Ignorou o chamamento.
O conde bateu com mais força, e mais lentamente, num ritmo constante, que refletia a sua insistência, bem como a sua irritação.
Bem, Southwaite podia permanecer lá fora, durante todo o dia, se assim o entendesse. Emma preferia ir para o inferno a deixá-lo entrar. O conde não tinha o direito
de continuar a inter...
Para seu horror, viu que as saias de Mrs. Norriston flutuavam em direção à porta, passando pela sala de estar. Antes que Emma tivesse a oportunidade de proibir qualquer
ação, Mrs. Norriston abriu novamente a porta, cumprimentando o grande senhor, como a boa servente que era.
As botas dirigiram-se para a sala de estar, onde Emma se refugiara. O humor sombrio de Southwaite precedeu-o na entrada para a divisão, como um vento maléfico.
Quando o conde, finalmente, escureceu a ombreira da porta, exibia uma aparência extremamente severa. Também grandiosa, tinha de admitir, embora essa constatação
contribuísse pouco para apaziguar a irritação de Emma, relativamente a Southwaite, ou relativamente a si própria, por sequer notar o quão atraente ele estava. Ainda
assim, reconheceu, com algum ressentimento, que o conde parecia muito belo, no seu casaco de montar e botas de cano alto, e com o cabelo um pouco desalinhado, devido
à brisa.
Southwaite já não olhava para Emma fixamente, mas os seus olhos escuros transmitiam o género de desagrado que apenas os homens pensam ter o direito de sentir.
– Mrs. Norriston cometeu um erro, ao permitir que entrasse, por isso faça o favor de sair – disse Emma.
– Primeiro, tenho de lhe dizer algumas coisas.
– Muitas vezes, o que tem de ser dito fica melhor por dizer. Tenho a certeza de que é esse o caso, com as palavras que se sente compelido a deitar cá para fora.
– É uma bela lição, ainda por cima vinda de si. Pôde fazer o seu discurso irracional, no cavalo. Agora, tenho de insistir para que me deixe fazer o meu.
– Recuso-me a ouvi-lo. Não pedi que interferisse nos meus assuntos particulares. Hoje não me encontrava numa situação perigosa e...
– A menina não tem noção do perigo a que se sujeitou. Nenhuma. Se outro homem tivesse ouvido falar do pedido da sua governanta, relativo à sua pretensão de realizar
aquela reunião, eu poderia ter sido forçado a utilizar esta arma – disse Southwaite, retirando-a e colocando-a sobre uma mesa. – Toda aquela maldita aldeia está
envolvida no comércio ilegal. É do conhecimento geral.
O conde cruzou os braços e observou-a sem qualquer simpatia. Aquela atitude lembrou a Emma a aparência de Southwaite quando o abordara pela primeira vez, antes do
«Equívoco Escandaloso». Ela não tinha ânimo para ouvir o que ele queria dizer, mas sabia que acabaria por fazê-lo. Com um profundo suspiro de resignação, afundou-se
numa cadeira, colocou de parte a desilusão fulminante perante a aventura frustrada e reuniu toda a força que a sua indignação conseguia produzir.
– Porque quis encontrar-se com um vulgar contrabandista, Miss Fairbourne?
– Não sou obrigada a responder ao seu interrogatório. Não tem o direito de...
– Com os diabos que não tenho. Revelou-se demasiado voluntariosa, desde a morte do seu pai, e a minha tolerância excessiva conduziu a esta situação. Pensou que arranjaria
uma consignação especial, da parte dos contrabandistas, para melhorar o seu maldito leilão? Mais um conjunto de lotes com origem no património de um cavalheiro estimado
e discreto?
O coração de Emma doía-lhe, por bater tão violentamente.
– O que está a insinuar? Não deixarei que insulte o meu pai.
Southwaite soltou um suspiro impaciente.
– As contas são incompletas e vagas por um motivo. Planeava esconder-lhe as minhas suspeitas, mas penso que isso deixou de ser necessário. Não concorda comigo?
Emma permaneceu calada. Inclinou a cabeça para a frente, cerrou os dentes e rezou para que Southwaite fosse simplesmente embora.
O conde não o fez. Continuou no mesmo lugar, dominando a divisão e a própria Emma.
– Parece conhecer pelo menos um contrabandista – disse ela. – Logo, mais um do que o meu pai conhecia, segundo sabemos. Se o meu pai negociava com tais pessoas,
talvez o senhor conde tenha sido o responsável pelo início da atividade em questão.
Ter dito aquilo foi um erro. Durante um momento terrível, a fúria de Southwaite crepitou pelo ar. O
conde afastou-se de Emma e manteve-se imóvel, uma figura rígida e alta, exalando poder e intensidade.
Ela preparou-se para as palavras cortantes que, certamente, iriam surgir.
Em vez disso, Southwaite controlou o que acordara no seu interior. Voltou para junto de Emma, com os olhos a lançarem chamas. Ainda estava zangado, mas conseguira
recompor-se.
– Conheço o Tarrington porque faz alguns trabalhos para mim. É o rei dos contrabandistas desta zona e conhece outros monarcas do mesmo tipo, ao longo de toda a costa.
– Disseram-me que o senhor conde está particularmente interessado na costa.
– Eu e outros. A Marinha Real Britânica não tem navios suficientes para patrulhar a totalidade da nossa costa, ou mesmo a maioria da sua extensão. Até as corvetas
pertencentes ao Departamento de Prevenção permanecem junto dos principais portos. A maior parte da frota naval foi colocada em Portsmouth, a fim de estar pronta
para reagir, se os franceses iniciarem uma invasão. Entretanto, eles podem chegar sob outras formas, mais reduzidas do que uma força de combate. Os espiões entram
com impunidade, tão facilmente como o brandy francês, e várias informações deixam o nosso país, da mesma maneira.
– Está a dizer que são ajudados por contrabandistas ingleses?
– Sim, por alguns. Contudo, fazemos melhor uso dos restantes. Vigiam o terreno e relatam quaisquer atividades que pareçam suspeitas. Neste momento, existe uma cadeia,
abrangendo toda a costa sudeste, composta por esses colaboradores, assim como por pescadores e proprietários de terras.
– E nobres?
– Alguns nobres residem, atualmente, nas suas propriedades costeiras, com o propósito de nos auxiliar.
– O que não é o seu caso.
– Eu dedico-me, juntamente com outros cavalheiros, à coordenação da rede de vigilância e asseguro que os vários elos da cadeia não enfraquecem.
Emma calculou que aquilo significava que Southwaite participara na implementação do sistema de monitorização.
– O que recebem os contrabandistas em troca? A possibilidade de fazerem os seus negócios sem serem perturbados pelas autoridades?
– Não recebem qualquer recompensa, a não ser a satisfação de ajudarem Inglaterra. Se o Tarrington, ou outro elemento do grupo, for apanhado, a sua contribuição poderá
ter um efeito positivo, no sentido de obter alguma clemência, mas tal não foi prometido.
– Porque não? Seria bastante justo que o governo o fizesse.
– Não podemos negociar com ladrões. A lealdade comprada com uma promessa desse género poderia rapidamente ser adquirida pela outra parte, mediante um preço mais
elevado.
Emma concordava que o raciocínio fazia sentido. Porém, perguntou a si mesma se o governo não teria feito qualquer promessa simplesmente porque não estava envolvido
na iniciativa, pelo menos do ponto de vista oficial.
O que mais preocupava Emma era o que aquela atitude revelava sobre a personalidade do conde.
Southwaite não seria minimamente misericordioso para com os contrabandistas, caso os apanhasse em flagrante delito, apesar de estes cooperarem na rede de vigilância
que ele mesmo organizara.
Emma ficou ainda mais desanimada, ao perceber quão rígido Southwaite era, em questões de honra.
Sabia que isso pesava a favor do conde. No entanto, indicava que Darius também não seria indulgente para com Robert, nem para com ela própria. Emma pensou no vinho
escondido nas profundezas do armazém da Fairbourne’s, sob camadas dissimuladoras de lona.
– Daqui para a frente, não deverá voltar a fazer qualquer tentativa para se encontrar com contrabandistas – disse Southwaite, com firmeza. – Alguns deles seriam
capazes de a matar apenas pelo dinheiro que transporta. Não deixe que as boas maneiras de Tarrington a enganem. Será melhor que fique totalmente afastada da costa,
agora que já cometeu o grave erro de ser vista na companhia dele. Esta aventura foi imperdoável, independentemente do que esperava alcançar no final.
Emma apercebeu-se da ambiguidade que Southwaite atribuía às suas motivações. Assumiu que o conde pensava o pior dela, acreditando que a Fairbourne’s tinha uma aliança
com Tarrington. Também percebeu que aquele era o tom de um homem que ainda tinha muito para dizer. As nuvens tempestuosas reapareceram nos limites do humor de Southwaite
e aproximavam-se rapidamente. Os seus ventos enchiam-no de raiva. Emma sabia o que vinha a seguir.
Num dia diferente, poderia ter tentado defender-se, ou desviar a reprimenda do conde recorrendo à sua espirituosidade, indignação ou astúcia. Porém, naquele preciso
momento, estava demasiado deprimida por ter falhado de um modo tão espetacular no que planeara para esse dia. Pior ainda, quanto mais tempo permanecia naquela casa,
mais sentia a presença do pai. O seu odor parecia cercá-la e Emma teve a sensação de que o seu espírito a repreendia, tão claramente como Southwaite. As imagens
do pai invadiam, sem parar, a mente de Emma, distraindo-a do sermão proferido pelo conde.
Darius não conseguia conter uma profunda irritação perante as ações de Emma. Um alívio igualmente profundo tentava apaziguar a sua ira, mas o conde não estava habituado
a ficar calado, quando queria dizer algo.
O cérebro de Southwaite havia ensaiado aquele momento, desde que Maitland abrira a porta da residência londrina e explicara que Miss Fairbourne tinha viajado para
a costa. Maitland parecera preocupado com a deslocação, ou talvez com o facto de Darius a ter descoberto. Nem a informação obtida nem a expressão do mordomo encorajavam
uma interpretação inocente do comportamento de Miss Fairbourne.
Durante o seu percurso até à costa, e pela noite dentro, o conde considerara todos os motivos possíveis para aquela expedição inesperada. Sentiu-se atormentado por
visões ridículas de Emma a desenterrar bens roubados, numa praia. Embora duvidasse que fosse tão ousada, tinha a certeza de que ela não andava a planear algo inofensivo.
A única questão era saber se Emma arquitetara uma linha de ação meramente incauta ou se o que pensava fazer era verdadeiramente perigoso.
Maldição. Devia ter-se dirigido à casa logo de madrugada. O meio-dia havia sido, claramente, uma hora demasiado tardia, para uma mulher como aquela. Graças a Deus
que a governanta revelara toda a história, assim que ouvira o seu título. Mrs. Norriston reagira como se fosse a cúmplice de um crime hediondo, sob a ameaça de um
instrumento de tortura.
Southwaite relatou a Emma grande parte desses acontecimentos, ao mesmo tempo que lhe administrava uma reprimenda severa e muito abrangente. Não referiu a sua preocupação
doentia, mas enunciou os restantes elementos da situação. Os seus argumentos demonstravam que Emma era responsável por muitas decisões erradas. Porém, descrever
toda aquela perseguição só fez com que as suas emoções ficassem novamente vívidas e caóticas, alimentando o fogo que ardia dentro da sua cabeça.
Ao reiterar a menção ao perigo que Emma correra, o conde imaginava o trilho costeiro, do qual o pai de Emma havia caído para a morte, as celas fétidas da prisão
de Newgate, onde as criminosas eram alojadas, e o destino a que poderia ser condenada uma mulher, se estivesse à mercê de homens que nada tinham a perder. Esta última
imagem atuou como um ferro quente, queimando-lhe a mente, e fez com que Darius proferisse várias advertências adicionais.
Emma continuava calada. Permanecia sentada, com as mãos unidas sobre o colo e o olhar fixo no tapete, enquanto as palavras de Southwaite choviam sobre ela. Aquele
silêncio apenas serviu para irritar ainda mais o conde. Contudo, passado algum tempo, Darius começou a considerá-lo bastante perturbador.
A reação que presenciava não era típica da Miss Fairbourne que conhecia.
O discurso de Southwaite começou a soar excessivamente enfático, até aos seus próprios ouvidos.
Perguntou a si mesmo se a maneira como caminhava para trás e para a frente estaria a assustar Emma. O
facto de ela não se defender, evitando que tivessem uma discussão minimamente decente, fazia com que Darius se sentisse, cada vez mais, em desvantagem.
– Não tem algo a dizer, de todo? – perguntou o conde, completamente perplexo com a docilidade de Emma. – Nem uma só palavra?
– O senhor conde tinha tantas para dizer, que pensei ser melhor ceder-lhe o palco.
Southwaite teria preferido que ela dissesse aquilo mais energicamente, em vez de ter proferido aquelas palavras com uma voz tranquila e quase abatida. Inclinou-se
um pouco, tentando observar melhor o rosto de Emma. Com os diabos, ela não estava a chorar, ou estava? Pensou ter ouvido uma fungadela.
Darius amaldiçoou-se a si mesmo. Desanimado, ajoelhou-se ao lado de Emma.
– Perdoe-me. A preocupação pela sua segurança quase me conduziu à loucura e, por essa razão, talvez tenha sido demasiado vigoroso, ao expressar...
O quê? A sua ira? Sim, mas não do género habitual. O seu medo? Talvez, mas não por si próprio, nem exclusivamente por Emma. Receava também uma situação que o pudesse
colocar perante uma escolha terrível.
– A minha inquietação.
Emma olhou para ele. O conde viu lágrimas e tristeza, mas muito pouco que indicasse contrição.
– É bondoso ao preocupar-se tanto comigo, especialmente tendo em conta que não sou da sua responsabilidade.
A declaração transmitia uma repreensão por si só. Dizia a mensagem implícita que, como Emma não era da sua responsabilidade, Darius não tinha o direito de a admoestar
daquele modo, nem mesmo de questionar o seu comportamento.
A essência de Southwaite revoltou-se contra aquela asserção. Afinal, Emma ocupara suficientemente os seus pensamentos e o seu tempo durante as últimas semanas, para
que ele possuísse agora alguns direitos sobre ela, raios. Também continuava envolvido na casa de leilões. O plano que Emma concebera, incluía, sem dúvida, a empresa
e, consequentemente, ele próprio. Ela não podia esperar, realmente, que ele não mostrasse qualquer interesse pelas suas reuniões com contrabandistas conhecidos.
Darius começou a explicar o que pensava, mas os olhos e a expressão de Emma prenderam a sua atenção tão completamente que mais palavras pareceram desnecessárias.
O conde teve a certeza de que Emma já sabia tudo o que ele poderia dizer.
Os seus rostos estavam separados por menos de dois palmos de distância. Emma encontrava-se tão próxima, que o seu hálito doce acariciava a pele de Southwaite. Tão
perto que o conde sentiu as sombras que a oprimiam. Algo tenebroso a sobrecarregava naquele preciso momento. A escuridão ocupava a mente de Emma, mais do que qualquer
coisa que ele pudesse argumentar.
Seu imbecil insuportável. Criticando-se mais violentamente do que havia criticado Emma, Darius retirou o lenço do bolso. Enxugou uma lágrima, que iniciava um trajeto
minúsculo, descendo pela bochecha de Emma, e combateu o impulso de fazê-lo com os seus lábios.
Southwaite não lhe perguntou por que razão chorava. Talvez tivesse assumido que aquela reprimenda, longa e dura, fora a causadora das lágrimas. No entanto, quando
estava ajoelhado junto dela, excessivamente perto, mais próximo do que seria prudente, Emma acreditou ver nos olhos dele o conhecimento de que aquelas lágrimas não
caíam devido à descompostura.
O conde pressionou o lenço, para que ficasse na mão de Emma e ergueu-se. Permaneceu imóvel durante um longo momento, em pé, mesmo ao lado dela, antes de se afastar.
E, com a ausência daquela presença próxima, outras forças a dominaram novamente. Os pensamentos sobre o seu pai evocaram manifestações quase palpáveis do falecido.
Emma sabia que o fantasma não se encontrava no interior da casa. Estava dentro dela própria.
– Não passei muito tempo com ele aqui – ouviu-se a dizer. – Penso que ninguém o fez. Esta casa era somente do meu pai. Nada há aqui que dilua a sensação persistente
da sua presença.
Serviu-se do lenço para secar os olhos.
– Em Londres é diferente, exceto nos aposentos dele.
– Já entrou nesses aposentos muitas vezes, desde que recebeu a notícia do acidente fatal?
Emma abanou a cabeça. Raramente lá ia.
– Estava notavelmente serena no funeral – disse Darius. Em menos de um mês, já se encontrava atarefada, tentando reconstruir a sua vida. Talvez não tenha vivido
verdadeiramente o luto.
– De tudo o que disse hoje, essa foi a frase mais cruel.
– É bastante comum, Emma. Não vivi realmente o luto pela morte do meu pai, até terem decorrido dois anos após a data fatídica. Não é uma emoção que possamos controlar.
Por isso, as pessoas que estão habituadas a comandar podem facilmente cair na tentação de a evitarem.
Emma gostaria de poder afirmar que o conde só dizia disparates, sendo óbvio que ela havia vivido verdadeiramente o luto. Porém, apercebia-se agora de que fugira
à parte pior do processo, ocupando-se com diversos afazeres, quando a dor ameaçava despertar dentro de si. Não quisera reconhecer a emoção assustadora que crescia
no seu interior, desde que tinha chegado àquela casa.
– Será que vou enlouquecer?
– Não. Irá apenas aceitar a verdade dos seus sentimentos.
Emma entendeu o que Southwaite queria dizer, de uma forma que não estaria ao seu alcance, se recuasse uma semana no tempo. Compreendia-o suficientemente bem para
considerar, naquele momento, o que teria sido impensável, até mesmo no dia anterior.
– Quero ver o local em que tudo aconteceu. Sabe exatamente onde foi?
O conde hesitou e, em seguida, anuiu.
– Pode levar-me até lá?
– Para alcançar a aceitação, não tem de se torturar com os pormenores do sucedido.
– Mesmo assim, gostaria de ver o lugar.
Darius não concordou de imediato. Talvez as suas tendências protetoras fossem contra aquele passeio.
– Levaremos a sua carruagem – assentiu, por fim. – Irei falar com o seu cocheiro e dar-lhe instruções para a preparar.
CONTINUA
CAPÍTULO 9
Southwaite aguardava a chegada de ambas no parque, permanecendo de pé, onde a sua carruagem parara, em Rotten Row4. Não aparentava ser um homem que estivesse a tentar
seduzir alguém. Emma pensou que ele parecia mais um homem que acabara de ingerir comida estragada. Embora não visse com bons olhos a eventual existência de provas
de que ele a tentava seduzir, o verdadeiro motivo do interesse revelado pelo conde parecia-lhe bem pior.
Cassandra passeou com eles não mais do que, aproximadamente, quinze metros, até ver uma amiga e desviar o seu percurso na direção daquela. Emma continuou a caminhar,
ao lado de Southwaite, dando dois passos por cada uma das passadas gigantes do conde.
– Está na altura de conversarmos sobre o assunto que motivou a minha primeira visita à sua casa, não concorda, Miss Fairbourne? Sempre que levanto a questão, consegue
desviar o rumo da conversa.
Contudo, o futuro da empresa do seu pai tem de ser decidido. Não me dá qualquer prazer desapontá-la, ou frustrar os seus planos cuidadosamente definidos, mas cheguei
à conclusão de que o negócio tem de ser vendido, o mais rapidamente possível, para o seu próprio bem.
Saiu tudo de uma só vez, como se Southwaite tivesse ensaiado o discurso à frente de um espelho, para garantir que transmitia a sua determinação, tanto no tom de
voz como na expressão.
– Para o meu próprio bem? Ousa tentar articular a sua proposta de forma a que soe como se estivesse a fazer-me um favor? Isso é ridículo, Lord Southwaite. É mais
provável estar a tentar vingar-se pelo constrangimento que experienciou, devido às suas presunções.
– Não conseguirá distrair-me com uma discussão, ao referir esse episódio agora. Desta vez, não irá funcionar.
– Penso que devemos esperar até se ter realizado o próximo leilão, para discutirmos o assunto.
– Não se atreva a tratar-me como um tolo, Miss Fairbourne. Sei o que está a tentar fazer. Após esse leilão, irá planear outro e mais outro. Cada um diminuirá, consecutivamente,
o prestígio da Fairbourne’s.
Não acredito que o Riggles consiga gerir o negócio, como a menina afirma.
– Acredito eu. Ele é muito competente.
– Deveras? Parecia incapaz de responder às perguntas mais simples que lhe coloquei sobre a contabilidade e reagiu como se nunca tivesse ouvido falar de Andrea del
Sarto. Não, já tomei a minha decisão final. Começarei imediatamente a procurar um comprador e o assunto ficará resolvido.
E não havia qualquer hipótese de debate, dizia o seu tom de voz. O aristocrata falara.
– Os lucros irão garantir o seu futuro – disse Darius, para realçar os benefícios do plano que traçara.
Miss Fairbourne reagiu mal às palavras, de uma forma que não podia passar despercebida. Frágeis luzes brancas brilharam nos seus olhos azul-claros. Manchas rosadas
inoportunas invadiram-lhe a pele, outrora impecável.
– Pode vender a sua metade, se o quiser fazer – disse ela. – Na verdade, espero que o faça, para o meu próprio bem, porque está a tornar-se uma praga.
Southwaite parou a meio de uma passada, ao ouvir o insulto descarado. Miss Fairbourne apelidá-lo de praga era verdadeiramente ridículo, vindo de uma mulher que provavelmente
passava várias horas, diariamente, a planear exatamente quão cáustica seria no dia seguinte.
– Devia estar grata por alguém se preocupar consigo – disse ele.
– Céus! Não considera ser suficientemente mau querer arruinar-me a vida, destruir todas as minhas recordações e fazer-me pôr em causa o meu dever? Não piore a situação,
fingindo ser meu protetor. Já revelou a sua verdadeira disposição relativamente à minha pessoa. Eu seria uma idiota, se acreditasse que teve o meu bem-estar em consideração.
Southwaite desejou não a ter visto na rua e não ter combinado aquela conversa num local público. A franqueza e a grande emotividade de Emma Fairbourne não eram minimamente
inibidas pelo facto de se encontrar em público e rodeada de outras pessoas. O conde, por outro lado, tinha uma consciência extrema de que não estavam sozinhos no
parque. Não se sentia suficientemente livre para soltar, ou revelar, a sua irritação crescente, independentemente do modo escolhido para o fazer.
Forçou um sorriso e uma postura informal, para que alguém que os observasse pudesse acreditar que aquela era uma conversa amigável.
– Compreendo que, provavelmente, vê a leiloeira como uma encarnação do espírito do seu pai, Miss Fairbourne. No entanto, a fortuna dele era o negócio e o respetivo
património. Se quer recuperar alguma coisa de valor, se quer ter algum rendimento, a empresa tem de ser vendida.
– Nisso está errado. O meu rendimento virá da própria Fairbourne’s. Na verdade, é a única alternativa que me resta para ganhar algum dinheiro. A venda do negócio
não irá garantir o meu futuro, pelo mesmo motivo que a impede de ser realizada, de todo – explicou. – A metade da Fairbourne’s que o senhor conde não possui não
foi legada a mim, mas sim ao filho mais velho do meu pai. Pertence agora ao meu irmão, Robert.
A teimosia dela provinha daquilo? Era inconcebível que mantivesse aquela posição.
– Sei que o seu pai ainda tinha a esperança de que o seu irmão regressasse. Porém, tem de estar ciente de que isso nunca acontecerá.
– Apenas estou ciente do seguinte: o herdeiro do meu pai é o meu irmão e tenho o dever de preservar a herança do meu irmão até que ele regresse.
Darius controlou a raiva que crescia dentro de si, mas tornava-se mais difícil fazê-lo a cada palavra de Emma. Havia solicitado aquele encontro após ter tido um
longo debate consigo próprio. Concluíra que estava na altura de resolver uma questão simples e, com os diabos, estava decidido a tratar do assunto.
– Está determinada a forçar-me a ser cruelmente direto, Miss Fairbourne.
– Nunca me opus a conversas francas. Aprecio-as.
– Então, dê às minhas declarações o valor que lhes é devido. O seu irmão não regressará. Tem de ir a tribunal, pedir que o declarem morto e tem de reclamar a herança.
Em seguida, a leiloeira será vendida.
Aconselho-a a investir os seus lucros em títulos, para que tenha acesso a um rendimento fixo regular. O
meu solicitador irá providenciar a compra e tratará dos aspetos necessários com o banco.
A expressão dura de Emma suavizou-se progressivamente, enquanto ouvia as palavras de Southwaite.
Ainda antes de o conde ter terminado o discurso, assumiu uma aparência triste e vulnerável. Subitamente, o olhar de Emma brilhou e adquiriu novas profundidades.
Aquele olhar corajoso e direto hipnotizou-o por um instante, durante o qual, mais uma vez, perdeu a raiva que sentira e até mesmo os seus próprios pensamentos. Então,
percebeu que o efeito tinha sido causado por lágrimas, que inundavam aqueles charcos azuis.
Com os diabos, ela ia começar a chorar.
Emma recompôs-se, em vez de sucumbir completamente à emoção. Isso impressionou-o e aliviou-o.
Contudo, naquele momento, estava em desvantagem. Novamente.
Southwaite semicerrou os olhos enquanto a observava, tentando perceber se Emma chamara as lágrimas especificamente para assumir o controlo da situação. Conhecia
demasiadas mulheres que estavam habituadas a fazê-lo. Porém, a luta de Miss Fairbourne com a emoção parecia verdadeira.
Amaldiçoou-se por ter falado de um modo tão severo.
Ela fungou.
– O meu pai nunca pediu que o meu irmão fosse declarado como morto e não me cabe a mim fazê-lo agora, revelando tão pouca fé. O Robert está vivo, tenho a certeza
disso. Sinto-o no meu coração. Sempre o senti. Sei que parece irracional. Até a Cassandra é dessa opinião, mas não me importo. Não reivindicarei a parte da Fairbourne’s
que pertence ao Robert.
Darius não apreciava o que estava prestes a dizer, mas Miss Fairbourne claramente não compreendia o quão vulnerável se encontrava. Tentou que a sua expressão fosse
mais amável do que seriam as suas palavras.
– Posso forçar a venda do negócio. Caso o faça, ficará desamparada se os lucros obtidos em troca da metade do seu pai forem colocados de parte para um herdeiro que
não a menina.
Emma virou os seus olhos, azuis e humedecidos, para ele, chocada.
– Seria cruel a ponto de suprimir o sustento de uma mulher sozinha?
Southwaite enfrentou aqueles olhos tristes. Abruptamente, e de um modo que o irritou, perdeu toda a sua determinação.
Teve de lutar contra o desejo de segurar a cabeça de Emma entre as mãos e beijar aquelas lágrimas até desaparecerem.
– Com o seu pai ausente, o negócio não poderá sustentá-la. Mr. Riggles não consegue assumir as funções dele. Ninguém o consegue fazer. Não permitirei a realização
de um leilão que poderia resultar em fraude involuntária. Para além disso, se não tratarmos da venda, a Fairbourne’s perderá todo o valor que possui em menos de
um ano. Nada restará para si, nem para o seu irmão, se ele realmente regressar.
Emma fungou mais algumas vezes. Cada uma delas parecia sublinhar o quão insensíveis haviam sido as palavras do conde.
– Ouvi tudo o que disse, Lord Southwaite. Agradeço e compreendo as suas preocupações. Assim, aceitarei um compromisso. Direi ao Obediah para continuar com os preparativos
do próximo leilão. Dar-lhe-ei instruções para que este seja tão grandioso quanto possível, a fim de provarmos que o senhor conde está errado.
Não acabara de lhe dizer que não permitiria a realização de outro leilão? Será que Emma não ouvira o que ele dissera, ou simplesmente havia escolhido ignorá-lo?
Um homem e uma mulher aproximavam-se, no caminho de terra batida. Os olhos húmidos de Miss Fairbourne seriam visíveis para qualquer pessoa que a observasse de perto.
Southwaite entregou-lhe rapidamente o seu lenço, para evitar que as secções de escândalos aparecessem repletas de referências ao facto de «Lord S» ter despertado
as lágrimas numa mulher desconhecida, no Hyde Park, a meio do dia.
Emma tentou enxugar os olhos, mas não foi muito bem-sucedida. Aquele olhar líquido continuou a fixá
lo, aguardando a reação do conde ao novo plano.
Maldição.
– Quando pensa que o Riggles conseguirá ter o leilão pronto?
– Daqui a três semanas, creio eu.
O rosto de Emma iluminou-se com alegria e alívio.
– Oh, obrigada, Lord Southwaite, por ser tão bondoso e gentil. Verá o quão bem a Fairbourne’s se sairá com o leilão. Tenho imensa fé no Obediah e o senhor conde
também pode ter.
Southwaite não se lembrava de ter sido gentil. Apenas perguntara...
– Agora, tenho de encontrar a Cassandra.
Emma recomeçou a caminhar. Quase alegremente. Nem uma lágrima à vista.
– Ah, ali está ela – observou, quando as carruagens ficaram visíveis. – Ficará extremamente dececionada por ter estado tão equivocada relativamente às suas intenções.
– Como assim?
– A Cassandra não sabe do seu investimento na Fairbourne’s. Obviamente, assumi que desejava que este permanecesse secreto. Assim, ela... vai considerar isto divertido.
Ela pensa que o senhor conde está a tentar seduzir-me.
– Que ideia mirabolante.
– É, não é?
Miss Fairbourne riu-se, enquanto caminhavam na direção das carruagens.
– Ela nem sequer tem conhecimento do «Equívoco Escandaloso» que ocorreu naquele primeiro dia de entrevistas. A imaginação dela criou esta ideia absurda a partir
do nada.
– Espero que lhe tenha explicado o erro.
– É claro que lhe expliquei, mas ela pensa que sou excessivamente ignorante para ver o que está à frente do meu nariz.
– Lady Cassandra é uma mulher conhecida por apreciar intrigas românticas. Possivelmente, acredita que a restante população mundial também preza esse passatempo.
Como já mencionei, se a vossa amizade se tornar pública, algumas pessoas certamente pensarão que também aprecia o mesmo género de atividades.
Recebeu um olhar penetrante como resposta.
– Estou certa de que pensa estar a ajudar-me com os seus conselhos, Lord Southwaite, mas não gosto de ser afastada dos meus amigos. Por favor, não presuma que possui
tamanha autoridade. Não sou sua irmã.
Com que então Lady Cassandra partilhara aquela história sobre Lydia? Bem, não voltaria a repreender a sua companheira de conversa.
Miss Fairbourne estava certa. Não era sua irmã, nem sequer responsabilidade sua. Não tinha a obrigação de a salvar do que quer que fosse, nem mesmo dos escândalos.
Darius entregou Miss Fairbourne a Lady Cassandra, cujos olhos ansiosos pressagiavam o interrogatório que esperava a primeira, quando ficassem sozinhas. Após um aceno
feliz, feito à janela, e um sorriso, apenas ligeiramente presunçoso, Miss Fairbourne afastou-se.
Darius trepou para o interior da sua própria carruagem. A conversa não correra bem. Nem mesmo a sua franqueza severa fora bem-sucedida junto de Emma. Na verdade,
suspeitava que ela o conduzira exatamente até onde queria, não tendo sequer hesitado enquanto o fazia.
Se quisesse avançar com a venda da Fairbourne’s, obviamente teria de mudar de estratégia. Durante a última semana, aprendera uma coisa ou duas sobre aquela mulher.
Estava confiante de que existiam maneiras melhores, para além do raciocínio e da conversação, de conseguir que Emma Fairbourne se rendesse à sua forma de pensar.
4 Amplo caminho de terra batida, localizado na parte sul do Hyde Park, em Londres. Durante os séculos XVIII e XIX, era um lugar muito frequentado pelos membros da
alta sociedade londrina. (N. do T.)
CAPÍTULO 10
Darius reacendeu o seu charuto e deu-lhe três passas profundas, enquanto ouvia Ambury descrever uma aventura recente. Do outro lado da mesa, Kendale reteve o fumo
do seu charuto e bebeu uma quantidade generosa de brandy.
– Isto é nada mais do que tocar violino enquanto Roma arde5 – resmungou Kendale, interrompendo a história de Ambury. Os seus olhos verdes disparavam as faíscas iradas
que tantas vezes marcavam a sua expressão. Com a mão livre penteou o cabelo escuro, num gesto que fazia quando estava irritado, o que parecia ocorrer muito frequentemente
nos últimos tempos.
– Penso que devia pegar no seu cavalo e passar o próximo ano a subir e a descer a costa, certificando-se de que estamos todos seguros, Kendale. Sei que eu iria dormir
melhor se você o fizesse – disse Ambury.
Kendale não estava absorvido nos seus próprios pensamentos a ponto de não conseguir identificar o sarcasmo do companheiro. O seu olhar transmitiu a desaprovação
que sentia relativamente à atitude despreocupada de Ambury, quando tudo apontava para que forças diabólicas tivessem um certo interesse pelo assunto discutido, tendo
andado muito atarefadas ultimamente. Kendale pertencia à esmagadora maioria dos cidadãos que acreditava que os franceses tentariam uma invasão em breve. Ambury estava
menos convencido desse facto. Porém, tal como Darius, pensava que deviam tomar determinadas precauções. Tinham passado os últimos quatro meses a organizar um sistema
de vigilância na costa sudeste, cujo principal objetivo era, não o avistamento de uma frota francesa mas sim a deteção de invasões singulares insidiosas.
Darius interveio na conversa, para que os dois amigos de longa data não iniciassem uma discussão ali mesmo, no Brooks6.
– Kendale, fizemos tudo o que podia ser feito. É demasiado trabalho para um só homem, ou mesmo para três.
Ou quatro, ou cinco. O facto de o grupo ter diminuído, em relação ao seu tamanho de há vários meses, pairou no ar durante um momento, embora não chegasse a ser verbalizado.
Todos os olhares se encontraram, num reconhecimento silencioso da verdade.
– Forjámos uma cadeia repleta de elos fracos. Também não gosto de partilhar a cama com criminosos – disse Kendale. – Ao contrário de algumas pessoas.
Fez questão de não olhar para as « algumas pessoas» que havia mencionado.
– Só vou para a cama com criminosos do sexo feminino. Faço-o muito raramente e pela melhor das razões – afirmou Ambury. – Penso que o seu humor sofreria uma melhoria
considerável, caso partilhasse a cama com quem quer que fosse, Kendale. Se aperfeiçoarmos a sua conduta, poderá alcançar algum sucesso na iniciativa antes das festividades
de São Miguel7.
Kendale praguejou uma obscenidade rude. Perto do grupo, estavam sentados dois cavalheiros, que discutiam sobre a rebelião na Irlanda. Ao ouvirem a exclamação de
Kendale, cessaram a conversa e ergueram as sobrancelhas.
– Olhe, Kendale, não estamos numa messe de oficiais – advertiu um deles.
Kendale chupou as bochechas para dentro.
– É uma pena.
Ambury ignorou-o.
– Como estava a dizer, antes de Kendale começar a ser mal-educado, a minha pequena investigação em nome da senhora foi concluída com sucesso. Agora, ela tem provas
de que o marido era cúmplice do seu administrador, na tentativa de vender as terras que ela tinha herdado.
– Espero que a senhora conheça um bom advogado, com amigos em Chancery8 – proferiu Darius.
– Fiz algumas recomendações relativas a esse aspeto.
– Também espero que tenha sido bem pago, mas de uma forma discreta, para que o seu pai não ouça que anda a vender os seus serviços, como um vulgar comerciante.
– Muito bem pago e muito discretamente. O conde jamais terá conhecimento do sucedido.
– Em moeda, ou em gratidão?
Ambury não respondeu. Kendale riu-se, de um modo sombrio.
– O que usaram para lhe pagar não manterá os oficiais da justiça afastados.
– Temo que tenha razão. No entanto, naquele momento, pareceu-me muito bom negócio.
Darius deixou Ambury entregue às memórias desse negócio, enquanto Kendale se entregava à eterna contemplação do que quer que fosse que o fazia cismar.
Os seus próprios pensamentos vaguearam até à Fairbourne’s, um destino que se tornara mais frequente nos últimos tempos. Não demorou muito para que tais pensamentos
não se debruçassem sobre leilões, nem sobre investimentos imprudentes, nem mesmo sobre contas vagas, mas sim, mais uma vez, sobre uma mulher com um vestido rosa,
sentada na luz empoeirada, rodeada por objetos em prata brilhantes.
– Está preocupado com algo – disse Ambury, enquanto pedia mais brandy.
– Sim, pressuponho que estou – respondeu Darius. – Se quer saber, estou a ponderar um aspeto de etiqueta.
Kendale riu-se, ironicamente.
– Se alguma vez tiver a oportunidade de dizer o que penso ao meu irmão, a propósito de ele ter partido o pescoço naquela queda, deixando-me preso a este título,
os aspetos de etiqueta serão uma componente em destaque nas minhas queixas.
– Pare de reclamar, como se o homem procurasse torná-lo infeliz ao deixar-lhe uma fortuna e um título.
O Exército ainda tem mais etiqueta do que nós. Logo, está a ser ridículo – criticou Ambury.
– Porém, no Exército, a etiqueta não é inflexível.
– Quer dizer que, no campo de batalha, os cavalheiros podem, por vezes, comportar-se como patifes?
Poupe-me os detalhes.
Ambury virou claramente a sua atenção para Darius.
– Southwaite, nunca encontrei um homem que, como você, conseguisse mostrar ao mundo um comportamento tão perfeito, enquanto, em privado, vive como quer. Pensava
que esse talento implicava nunca ter a necessidade de refletir sobre aspeto algum, relativamente a quando seria recomendável ceder à decência e quando seria preferível
ignorá-la.
– O aspeto a que me referi tem que ver com uma mulher.
– Então, Kendale não o poderá auxiliar. Sou a sua única esperança para obter bons conselhos.
Kendale não discordou. Recostou-se na cadeira e continuou a fumar, retirando-se da conversa. Darius colocou a questão a Ambury, mas sentiu-se ridículo ao fazê-lo.
– É apropriado tentar seduzir uma mulher que está de luto? Recentemente, quase beijei uma.
– Luto completo, ou luto parcial?
– Completo. Mas...
Darius sentia a obrigação de esclarecer melhor a situação, para sua própria defesa.
– Tenho bons motivos para considerar que ela já não está prostrada pela dor. Atrevo-me a dizer que é o género de mulher que não perde o discernimento em momento
algum, nem mesmo durante um período desses.
– Pondero que deve agir com cuidado, como já concluiu. Contudo, deixaria que a senhora expressasse a sua opinião. Ela poderia considerar um beijo muito reconfortante.
Kendale decidiu que, afinal, os seus conselhos eram necessários.
– Se não agiu, Southwaite, foi porque sabia que não o devia fazer. Parece-me que está apenas a tentar justificar a hipótese de a seduzir, quando sabe que seria uma
desonra.
Ambury suspirou profundamente, devido à falta de tato do amigo.
– Ele mencionou um simples beijo, Kendale. Sabia que o Exército o iria endurecer um pouco, mas, com franqueza...
– Se o ato de falar abertamente, em vez de proferir disparates espirituosos sem qualquer sentido, me torna rude, que assim seja. Quanto ao simples beijo, quando
foi a última vez em que qualquer um de nós beijou uma mulher sem ter em vista o objetivo de a conquistar? Com os diabos, já não somos rapazes imberbes.
Darius teria objetado, relativamente a alguns desses disparates espirituosos sem qualquer sentido, mas Kendale estava certo. Ironicamente, a rudeza de Kendale derivava
de uma mente que via o mundo com uma nitidez extrema.
– Com os diabos! – resmungou de novo Kendale, endireitando-se na cadeira e desviando, subitamente, a sua atenção, para longe da mesa na qual se encontravam. – Pensava
que o bastardo tinha ido para norte.
Darius virou a cabeça, mas já adivinhara o que havia despoletado novamente as blasfémias de Kendale. Um homem acabara de entrar na divisão, juntando-se a um grupo
que se encontrava perto da porta. Alto, elegante e deliberadamente antiquado, com o seu colete de seda brocado e a sua trança escura, olhou uma vez na direção deles,
cruzou o seu olhar com o de Darius e reagiu apenas o suficiente para reconhecer a existência daquele grupo afastado que observara a sua entrada.
– Penthurst? – perguntou Ambury, sem tentar ver o recém-chegado. Não recebeu qualquer resposta, o que, por si só, já era bastante informativo.
O olhar de Kendale era de tal maneira cortante, que os seus olhos aparentavam ser capazes de lançar punhais.
– Estou a pensar seriamente em...
– Não, não é uma boa ideia – reprovou Ambury. – Reflita melhor sobre o assunto, como Southwaite e eu aprendemos a fazer.
– Foi um duelo, Kendale – disse Darius, energicamente, ouvindo a sua própria voz, que parecia masculina e tolerante, mesmo quando ele próprio ainda nutria outras
emoções. – Fui o padrinho dele e, por isso, sei que tudo decorreu como devia.
– Foi um homicídio.
– O Lakewood é que lançou o desafio.
Ambury quase parecia entediado, como se a necessidade de recordar Kendale, e ele próprio, daquele facto se tivesse tornado cansativa.
– No entanto, foi uma coisa infernal, sem dúvida. Quem imaginaria que o Lakewood morreria num duelo realizado por causa de uma mulher?
Sim, quem imaginaria. O barão Lakewood não fora um homem de quem se esperasse que perdesse rapidamente a cabeça, ou o coração, devido aos encantos de uma mulher,
quanto mais a vida. Contudo, era isso que tinha sucedido. Consequentemente, haviam perdido um bom amigo e desde então o seu círculo nunca mais fora o mesmo.
Na verdade, tinham perdido dois bons amigos.
Darius sentia a presença de Penthurst na outra extremidade da divisão, lançando uma cortina sombria sobre o pequeno grupo que formavam. Deviam tê-lo dissuadido.
As palavras fluíam de forma inaudível, ecoando as únicas que haviam sido trocadas entre Darius e Penthurst, desde aquela trágica manhã.
Sim, deviam tê-lo feito.
– Maldição! – exclamou Ambury, irritado pelo facto de o seu bom humor ter sido estragado. – Com os diabos, sinto a falta dele.
Não ficara claro a que velho amigo desaparecido se referia.
O cocheiro de Emma veiculou a sua opinião de que aquela visita era imprudente. Enquanto a ajudava a sair da carruagem, manteve-se extremamente atento ao que se passava
atrás de si, observando a multidão que se aglomerava naquela rua estreita, perto da muralha de Londres. Contemplou as vestes grosseiras e encolheu-se, devido às
saudações estridentes e aos gritos ruidosos que ecoavam pelo ar.
– Penso que será melhor acompanhá-la, Miss Fairbourne.
Olhou para o cavalo, com pesar. Bateu-lhe suavemente na garupa, como se estivesse a dizer adeus.
– Vou para o edifício que fica já ali mesmo, Mr. Dillon. Aquele que tem a porta azul-escura. Noto a existência de muitas janelas, várias delas abertas. Talvez deva
permanecer aqui com a carruagem e ficar alerta. Chamá-lo-ei se houver algum problema, ou se precisar da sua proteção.
Mr. Dillon continuou cético. Emma assegurou-lhe que não podia dar-se ao luxo de perder o cavalo, da mesma forma que ele não queria perder a sua empregadora. Antes
que Mr. Dillon pudesse protestar mais, Emma percorreu os nove metros que a separavam da porta azul.
Uma mulher corpulenta, envergando um vestido bege simples, uma touca branca e um avental, abriu a porta. Emma explicou-lhe que queria falar com M. J. Lyon.
Sem se dar ao trabalho de aceitar o cartão de visita oferecido por Emma, a mulher rodou sobre os calcanhares e afastou-se. Emma não sabia se aquela atitude havia
sido uma rejeição ou um convite.
Decidindo assumir que a última hipótese era a correta, seguiu a saia antiquada até uma divisão que devia ter sido projetada como a sala de jantar daquela casa.
Um grande número de mesas atulhava o espaço, enquanto pilhas de papéis preenchiam as estantes.
Algumas mulheres debruçavam-se sobre as mesas, mergulhando pincéis e pequenos aglomerados de trapos em tinas que continham tintas coloridas, aplicando-os, de seguida,
nas gravuras colocadas à sua frente.
Os murmúrios enchiam a divisão, à medida que as mulheres falavam umas com as outras. Emma ouviu o suficiente para saber que eram todas francesas. Algumas vestes
e perucas sumptuosas podiam ser avistadas sob os aventais e as toucas. Calculou que fossem todas imigrantes, aristocratas e outras mulheres de boas famílias, que
tinham abandonado uma França que se tornara perigosa para elas e para as suas famílias.
A estranha guia abandonou-a e seguiu caminho, espremendo-se por entre mesas e cadeiras, até à parte de trás da divisão. Em seguida, proferiu algo e apontou para
Emma. Nesse momento, uma mulher, que até então estivera debruçada sobre uma das mesas, conversando com outra das trabalhadoras, ergueu a cabeça. Marielle Lyon, a
mulher que entregara a carroça a Emma, olhou para a sua visitante, que se encontrava na extremidade oposta da sala.
Marielle abriu caminho até ao local onde Emma aguardava.
– Como conseguiu encontrar-me?
Emma abriu a bolsa e retirou do seu interior a meia-tinta enrolada, que Cassandra havia comprado.
– Uma amiga minha adivinhou quem a senhora seria, através da minha descrição. Assim que lhe disse que as suas mãos estavam manchadas de tinta, ela calculou que a
senhora fosse a mulher por detrás do nome que se encontra nesta gravura.
Marielle fez uma careta.
– Não tinha a noção de que o mundo inteiro sabia que este estúdio me pertence. Tenho de inventar outro nome.
– Ela é amiga de alguns dos seus compatriotas. É por essa razão que sabia a sua identidade, e não pelo mundo inteiro ter conhecimento da sua situação.
– Já a conhecem pessoas suficientes. Talvez até demasiadas. Em breve, as lojas que vendem gravuras não aceitarão as imagens feitas por tantas mulheres francesas.
Uma pergunta, proveniente de uma mesa próxima, a respeito da cor, distraiu-a. Marielle aproximou-se, examinou a gravura em questão e abanou a cabeça, apontando para
o papel.
– Plus ici 9.
Em seguida, regressou para junto de Emma.
– Os trapos aplicam a cor de uma maneira uniforme e eficaz – notou Emma. – Não sabia que o processo era realizado desta forma.
– É o nosso método. Chamamos-lhe à la poupée 10 – respondeu Marielle, fazendo uma pausa, para traduzir. – Com a bonequinha.
Os aglomerados de trapos atados pareciam, realmente, pequenas bonecas. Emma observou aquela arte, enquanto as mãos femininas continuavam o seu trabalho. Perguntou
a si mesma se estariam a fazer algumas gravuras satíricas.
– Então, chegou até aqui – disse Marielle. – Se veio questionar-me sobre aquele homem, já falei com ele. Não creio que ele consiga dizer-lhe alguma coisa de útil.
Ele é... como é que se diz...um lacaio. Uma pessoa que segue as ordens de outra.
– Um lacaio. Não conseguiu que ele lhe fornecesse qualquer tipo de informação?
– Rien 11. Disse-lhe que você queria falar com ele e que lhe pagaria bem para o fazer – respondeu, sorrindo com malícia e parecendo subitamente muito mais jovem.
– A sua casa é muito bela. Calculo que não se importará de gastar algumas moedas, se tal for necessário, estou certa?
– Não, de todo.
Emma mergulhou a mão na sua malinha e extraiu alguns xelins, assumindo que a referência às moedas era uma sugestão, bem como um relato.
– Obrigada pelo seu amável auxílio. Por favor, escreva-me, se ele disser que está disposto a encontrar-se comigo. Diga-lhe que preciso de saber os pormenores do
acordo. Diga-lhe também que quero resolver a questão do grande prémio e solicito instruções sobre como fazê-lo.
Marielle aceitou o dinheiro, sem fazer qualquer comentário. Em seguida, virou-se, para regressar ao trabalho.
– Informá-la-ei, se ele concordar. Penso que o verei novamente. Por vezes, vagueia por aqui.
Fez um gesto na direção da rua.
– Também vim até aqui para falar sobre outro assunto – disse Emma, impedindo que Marielle se afastasse.
Emma explicou a sua ideia. Marielle poderia recomendar a alguns dos seus compatriotas que se dirigissem à Fairbourne’s, caso tivessem bons quadros que quisessem
vender.
– Dar-lhe-ei dez por cento da comissão da Fairbourne’s sobre a venda – afirmou.
Marielle ponderou a oferta.
– Quero vinte por cento. Sem mim, nunca ficará na posse dessas pinturas.
Marielle podia afirmar possuir sangue nobre, mas sabia regatear como uma vendedora de rua.
– Sejam vinte por cento, então – anuiu Emma.
– Tem de prometer sigilo absoluto. Muitos deles são pessoas orgulhosas. Não querem que se torne do conhecimento público que são obrigados a vender o seu património
para poderem comer.
– A Fairbourne’s é conhecida pela sua discrição.
– Alguns chegam durante a noite, atravessando o mar. Não terão quaisquer documentos para o que trazem. Como aconteceu com aquela carroça.
A indignação brotou no interior de Emma, mas expressar qualquer sentimento de insulto seria ridículo, sobretudo na presença daquela mulher. A Fairbourne’s aceitara
a carroça, não é verdade? Quem era ela para começar a ser exigente relativamente aos documentos dos quadros contrabandeados por refugiados franceses?
– Os quadros bons normalmente são acompanhados por um registo da sua proveniência – observou Emma. – Precisarei do histórico de todos os proprietários da obra, até
ao proprietário atual. Os melhores colecionadores sabem que devem pedi-lo e que devem suspeitar de obras de mestres antigos que aparecem de repente, sem referências
nem registos.
– Tal como sucede com determinadas pessoas, quer você dizer.
Marielle encolheu ligeiramente os ombros, num gesto típico da sua pessoa.
– Eh, il est compliqué le faire 12, mas verei o que consigo obter.
Emma abandonou o edifício, esperando ter conseguido fazer um bom negócio com aquela jovem, que, segundo Cassandra, aparecera de repente, sem referências e com uma
ascendência duvidosa. Rezou para que a sua mensagem chegasse ao homem da carroça. Também tinha esperança de que Marielle conseguisse obter algumas obras de boa qualidade
junto dos imigrantes.
No entanto, não podia ter a certeza de que qualquer um dos seus desejos viesse a concretizar-se. Na verdade, poderia nunca mais tornar a ver Marielle, nem ouvir
notícias dela. Também precisaria de elevar o leilão de outras formas e em breve.
5 Expressão idiomática que significa permanecer inativo, ou fazer algo trivial, enquanto ocorre um acontecimento catastrófico. É uma referência à lenda segundo a
qual Nero teria assistido impávido ao grande incêndio de Roma, enquanto tocava um instrumento musical. Em algumas versões, o instrumento em questão é um violino,
apesar de historicamente tal ser impossível. (N. do T.) 6 Clube de cavalheiros, situado em St. James’ Street, conhecido por ser um dos mais antigos e mais exclusivos
de Londres. (N. do T.) 7 Celebração que tem lugar a 29 de setembro, dedicada a S. Miguel e aos restantes arcanjos. (N. do T.) 8 Tribunal civil inglês, cujo poder
ultrapassava o dos tribunais comuns, possuindo também regras mais flexíveis do que estes. (N. do T.) 9 «Mais aqui», em tradução livre. Em francês, no original. (N.
do T.) 10 «Com a boneca», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 11 «Nada», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 12 «É complicado
fazê-lo», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.)
CAPÍTULO 11
Emma não conseguiu ir à leiloeira durante dois dias. Em ambas as manhãs, Obediah enviara-lhe uma mensagem, dizendo que Lord Southwaite viera visitar as instalações
e que Emma devia, por esse motivo, permanecer afastada. Obediah acrescentara às duas missivas alguma preocupação, questionando se seria capaz de desempenhar o seu
novo papel, de uma forma convincente, na presença do conde.
Aparentemente, Southwaite adquirira um certo gosto por conversas sobre a autoria e a qualidade das pinturas que, naquele momento, estavam penduradas no salão de
exposições.
Aborrecida com o atraso na preparação do catálogo, Emma começou a pensar noutros problemas, como a possibilidade de incluir o conteúdo da carroça no leilão. Gostaria
de saber mais acerca dos acordos feitos pelo pai, antes de cometer um crime daquele género. Em particular, queria desesperadamente alguma indicação de que a sua
teoria a respeito do «prémio» estava correta. Se não recebesse mais informações, teria de tomar uma decisão difícil.
Se considerasse necessário leiloar o conteúdo da carroça, então necessitaria de encontrar uma maneira de o fazer, sem que Southwaite suspeitasse do que realmente
estava a acontecer. Não podia evitar que ele visse todo o vinho, quando as noites de pré-apresentação estivessem preparadas, mas, até lá, preferia não ser interrogada
sobre o assunto.
Decidida como estava, de que poderia resolver dois problemas de uma só vez, pediu a Maitland que transportasse os livros e os objetos de arte, da carroça para o
interior da habitação. Desse modo, teria a possibilidade de passar aqueles «dias Southwaite», que estavam a tornar-se irritantemente numerosos, a trabalhar em casa,
no que poderia vir a ser uma parte do catálogo.
– Posso ter arranjado um novo cliente para a Fairbourne’s – anunciou Cassandra, na segunda tarde, enquanto fingiam ter a intenção de encomendar chapéus, numa chapelaria.
Naquele momento, nenhuma delas podia dar-se ao luxo de pagar as excelentes mercadorias da loja em questão, mas Cassandra era sempre recebida com um serviço subserviente,
devido à sua posição na sociedade. Emma não se importava de se divertir um pouco, seguindo de perto Cassandra naquele género de expedições.
– Espero que tenha uma boa coleção – disse Emma, enquanto examinava o conteúdo de um cesto, que transbordava com fitas sumptuosas. – Quem é?
Cassandra estudou uma ilustração de moda, que mostrava um turbante exótico.
– O conde Alexis von Kardstadt, da Baviera.
Emma perdeu todo o interesse pelas fitas.
– Está a falar a sério? Conhece-o? Li que o conde planeava enviar a sua coleção para Inglaterra, para que fosse leiloada, uma vez que, hoje em dia, o território
francês não é propriamente hospitaleiro, mas assumi que a Christie’s...
– A Christie’s também o assumiu. Porém, um representante dele visitou a minha tia, pouco tempo após o conde ter desembarcado, e ela, surpreendentemente, recebeu-o.
Há vários meses que não aceitava qualquer visita. Descobri que o mandatário do Alexis se recordava de se ter encontrado comigo, quando eu viajava com a minha tia.
Aproveitei esse contacto previamente estabelecido e sugeri-lhe que considerasse a Fairbourne’s para tratar da venda da coleção.
Olhou para Emma, de soslaio.
– Receberei dez por cento, estou certa?
– É claro que sim.
Cassandra retirou um chapéu, que estivera a experimentar, e atirou-o para o lado. Ajeitou os caracóis negros, olhando-se ao espelho.
– Infelizmente, terei de resgatar uma das joias que planeava consignar. O colar de rubis, com as pérolas pequeninas.
– Tenta distrair-me com a promessa de raridades, enquanto arrebata um bom artigo, Cassandra. Por que razão tenciona resgatar uma das melhores peças?
– A minha tia precisa de reaver a peça em questão. Foi por esse motivo que o representante a visitou e foi também por isso que ela o recebeu. O Alexis pediu-lhe
que devolvesse o colar. Como tal, ela necessita que eu o leve de volta. É uma joia de família, que o conde não deveria ter oferecido.
Pegou num pano de seda crua brilhante, com um padrão azul e vermelho, e começou a tentar formar um turbante, em redor da cabeça. Uma funcionária da loja apressou-se
a ajudá-la.
Emma esperou até que as elaboradas dobras e reviravoltas fossem completadas e a funcionária abandonasse o local.
– Está a querer dizer que a sua tia e o conde eram... bons amigos?
– Aparentemente eram.
– Mas o conde não é muito mais jovem do que a sua tia? Ele só se casou recentemente.
– Hummmmm. As joias de família, oferecidas impetuosamente num momento de paixão, são agora necessárias para uma jovem esposa.
Cassandra virava constantemente a cabeça, enquanto admirava o turbante, visto de vários ângulos, no espelho.
– Pretende fazer um trocadilho indecente?
Cassandra pareceu ficar surpreendida e, em seguida, desatou a rir.
– Mesmo considerando ambas as interpretações, a minha tia compreende a situação do Alexis, e eu não posso recusar os seus desejos, uma vez que é suficientemente
generosa para permitir que habite com ela.
Assim sendo, preciso de resgatar o colar. Tenho a esperança de que conseguirá uma coleção maravilhosa, que irá atrair a nata da sociedade muito mais do que as minhas
joias o fariam.
Tocou na seda vermelha e azul, com carinho.
– Penso que encomendarei este artigo.
– Lembre-se de que não tem posses para o fazer.
– Quando o mandatário do conde visitar a Fairbourne’s, durante o dia de amanhã, e você o convencer a consignar toda a coleção, terei posses para além das que esperava
obter pelas minhas joias.
– Amanhã!
– Disse-lhe que Mr. Riggles se encontraria com ele amanhã de manhã. Decidi que não deveria haver qualquer atraso. Não queremos que ele fale primeiro com Mr. Christie,
não é verdade?
Não, realmente não queriam que isso acontecesse. O único problema era que Mr. Riggles jamais seria capaz de convencer aquele representante a confiar a coleção do
conde à Fairbourne’s e Emma não tinha a certeza de que a sua própria participação pudesse ajudar, ou mesmo de que esta fosse bem recebida pelo homem.
Pela primeira vez, duvidou seriamente que conseguisse manter a Fairbourne’s aberta. A perda dos contactos e da reputação do pai tivera várias repercussões, grandes
e pequenas, que não podia continuar a ignorar. Ele ter-se-ia reunido com o agente do conde, impressionando-o com o seu charme, conhecimento e educação. Teria acolhido
o homem de uma maneira que lhe estava vedada a ela, como mulher.
E também seria impossível que outro homem assumisse o lugar do pai. Esse facto desanimava-a verdadeiramente. No dia seguinte, até mesmo Mr. Nightingale se sentiria
assoberbado. Tal como o jovem Mr. Laughton, caso ela o contratasse e ele aceitasse. Ele pareceria um rapaz imaturo, esforçando-se por aprender uma língua estrangeira,
naquele tipo de negociações.
O coração de Emma ficava cada vez mais pesado, enquanto a sua mente percorria todas as circunstâncias que dificultavam a possibilidade de ser bem-sucedida. Estas
esmagaram a determinação e a confiança que sentira anteriormente. Ela ia falhar, e o património de Robert estaria perdido para sempre, quando isso acontecesse. E
talvez o próprio Robert tivesse o mesmo destino.
Normalmente, Emma abstinha-se de conjeturar o que poderia suceder no futuro, mas, naquele momento, o seu espírito sombrio estimulou a sua mente a seguir nessa direção.
Se a Fairbourne’s fechasse as portas, a desilusão de Robert, ao regressar a casa, seria um espetáculo horrível de ver, especialmente se as suas próprias insuficiências
tivessem sido a causa do fecho. Mesmo que o dinheiro da venda estivesse à espera dele, precisaria de vários anos para reconstruir o negócio.
Será que a ligação profunda existente entre os dois irmãos conseguiria sobreviver àquela provação?
Emma e Robert tinham sido sempre muito próximos, parceiros na brincadeira e no crime, quando crianças, e mutuamente compreensivos relativamente às mágoas da vida,
à medida que cresciam. Robert consolara-a durante o seu primeiro afeto por um homem que nunca se apercebera da sua existência, e Emma, por sua vez, entendera a desilusão
do irmão, quando o pai o proibira de cortejar uma atriz. Robert compreendera a estranheza de manterem um contacto regular com a alta sociedade, sabendo sempre que
esta nunca os aceitaria como iguais. O pai caminhara com desenvoltura nessa estranha fronteira, mas tanto Emma como Robert haviam sentido intensamente o abismo.
Emma ansiava por uma prova de que Robert ainda estava vivo, podendo, um dia, regressar a casa. As imagens dessa reunião torturavam-na com a sua esperança impossível
de felicidade. Odiava não ter a certeza de que estava correta e temia dar um passo em falso, no caminho perigoso que percorria. Naquele momento, perante a possibilidade
de ser bem-sucedida, pelo menos numa parte do seu plano, sentia um receio extremo de que aquela oportunidade desaparecesse, por não ser capaz de esconder que a Fairbourne’s
sobrevivia apenas como uma sombra do que já fora.
A menos que...
Uma solução possível surgiu-lhe na mente. Transformou-se numa chama ténue, que iluminou a escuridão do seu humor. Tremeluzia, enquanto observava a funcionária da
loja, que fixava o tecido do turbante com alfinetes, ajustando-o à cabeça de Cassandra.
A ideia era bizarra. Nunca iria funcionar. Contudo, não tinha outra alternativa a não ser tentar.
Meu senhor, Escrevo-lhe para informá-lo sobre um assunto de interesse mútuo e alguma urgência, uma vez que é coproprietário da casa de leilões do meu irmão. Tenho
razões para acreditar que Herr Ludwig Werner, um representante do conde Alexis von Kardstadt, visitará a Fairbourne’s amanhã de manhã. Virá discutir a possibilidade
de consignar parte da coleção do conde, para ser vendida no próximo leilão.
Uma coleção deste tipo proporcionará ao evento em questão muita fama e atenção, realçando consideravelmente os artigos nele incluídos.
Mr. Riggles informou-me de que tem visitado frequentemente as instalações da leiloeira, nos últimos tempos. Seria porventura estranho, se realizasse uma dessas visitas
amanhã de manhã.
Embora a presença de um homem do seu estatuto impressionasse o agente do conde, estou certa de que iria considerar o regateio, que provavelmente ocorrerá, de mau
gosto e uma demonstração pública do seu investimento em tais negócios seria, sem dúvida, humilhante.
Estou convicta de que deve obedecer às minhas instruções relativamente a este assunto, ausentando-se, para que evitemos qualquer mexerico ou dificuldade acrescida.
Tenciono estar presente para dar as boas-vindas ao representante, em nome do meu pai. Não me esquecerei de o informar acerca do resultado das negociações.
Tenho a honra de permanecer, meu senhor, uma fiel serva de Vossa Senhoria, Emma Fairbourne A carta chegou na entrega da noite, juntamente com várias missivas provenientes
da costa, que Darius esperava. Colocou-a de parte, para ser lida em último lugar, e dedicou-se aos relatórios de vigilância.
Por fim, quebrou o selo e leu as «instruções» de Miss Fairbourne.
Após ter percorrido o conteúdo, examinou a caligrafia. A mulher que escrevera aquela mensagem possuía uma mão franca, banindo a maioria dos floreados e artificialismos
das suas linhas. As letras fluíam de forma clara, até mesmo elegante, mas não se inclinavam muito. Em vez disso, havia uma tendência para os «h» e os «t» permanecerem
completamente eretos, obrigando as letras que os rodeavam a assumirem também uma posição vertical.
Era exatamente o tipo de caligrafia que seria expectável de Miss Fairbourne.
Como era inesperadamente atencioso da parte dela avisá-lo para se manter afastado, de modo a que o seu investimento na Fairbourne’s permanecesse secreto. Referia,
com toda a razão, que participar no atendimento da leiloeira a um potencial cliente não era algo que um conde devesse ser visto a fazer.
No entanto, a ansiedade de Emma era também inusitada. Caso se preocupasse verdadeiramente com a sobrevivência da casa de leilões, devia implorar para que ele comparecesse
na manhã seguinte, independentemente do comportamento que um conde devesse demonstrar em público. Devia querer que ele ajudasse Riggles a persuadir o mandatário
do conde Von Kardstadt a entregar-lhes toda a coleção, ostentando o interesse de outro aristocrata pela empresa.
Quanto mais pensava no assunto, mais a carta lhe parecia suspeita.
Talvez alguém, que não o representante de um conde, fosse visitar a Fairbourne’s, alguém que não se pudesse cruzar com o sócio do pai dela, de forma alguma. Southwaite
preferiria não ter de desconfiar de Emma, juntamente com o pai, mas se mercadorias ilícitas já haviam transitado pela Fairbourne’s no passado, também o poderiam
fazer no futuro.
Também ignoraria por completo aquela ordem para «obedecer» às instruções. Fiel serva, com os diabos. Miss Fairbourne conseguia ser mais do que ousada. Por vezes,
chegava mesmo a ser imprudente.
Que ela não tivesse consciência da sua própria posição, não o preocupava muito. Contudo, qualquer incompreensão relativamente à posição dele precisava de ser corrigida.
Ainda não decidira como iria proceder, quando pediu que lhe trouxessem o cavalo, na manhã seguinte.
Porém, uma vez na sela, virou na direção da Albemarle Street.
Fê-lo, em parte, porque tinha algum interesse em ver se o agente de um conde realmente pensava consignar uma coleção à Fairbourne’s, nesse mesmo dia. Se o compromisso
não tivesse lugar, precisava de descobrir o que mais Mr. Riggles e Miss Fairbourne conspiravam, que exigia a sua ausência.
Admitia, porém, que seguira aquele rumo principalmente porque não gostava das implicações da carta.
Miss Fairbourne parecia acreditar que, se pretendesse que um certo conde obedecesse às suas ordens, precisava apenas de o comandar.
Os quadros pendurados no grande salão da Fairbourne’s estavam dispostos de um modo diferente, quando Darius chegou, às onze horas. Pelo suor presente nas testas
dos trabalhadores, calculou que a maioria das alterações tivesse acabado de ser feita.
A nova disposição fazia com que o pouco que ali estava parecesse muito. As pinturas não se encontravam penduradas tão alto, nem tão baixo, nem tão perto umas das
outras, como anteriormente e, por essa razão, preenchiam o centro das paredes imponentes de uma forma mais completa. Fora uma solução astuta, que ele poderia não
ter notado, se não tivesse visto os buracos óbvios, há poucos dias.
Riggles pareceu ficar consternado ao ver Darius.
– Senhor conde, não o esperava. Miss Fairbourne informou-me de que hoje não deveríamos receber uma visita sua.
– Decidi passar por aqui, quando estava a caminho de outro lugar. Espero que a minha presença não seja inoportuna.
O sorriso gelado e o silêncio forçado de Riggles sugeriam o contrário.
– Poderei sair do caminho, se estiver a atrapalhar – disse Darius, calmamente. – Fechar-me-ei no escritório e continuarei a analisar os registos da contabilidade.
– Senhor conde, lamento, mas o escritório será necessário muito em breve.
– Então, investigarei o armazém. Quero ver se receberam algum artigo que valha a pena licitar, para adicionar à minha própria coleção.
– Infelizmente, o armazém está demasiado cheio para permitir uma visualização confortável das obras que lá se encontram.
Nesse momento, a porta de acesso ao armazém abriu-se e Miss Fairbourne emergiu. Naquele dia, envergava roupas de luto, de excelente qualidade. O cabelo, comprido
e livre, seguindo a moda da época, caía-lhe em pequenos caracóis e ondas, até aos seios. Estacou, por um instante, ao vê-lo a conversar com Riggles, na divisão ampla,
e, em seguida, juntou-se a eles.
– Penso que está tudo pronto, tanto quanto poderia estar, Obediah – referiu ela.
– Exceto, talvez, a minha pessoa, Miss Fairbourne – mencionou Riggles, mexendo-se com desconforto visível.
Miss Fairbourne riu-se um pouco.
– Continua a ser um homem extremamente modesto, Mr. Riggles. É verdade que esta pode ser uma coleção das mais ilustres que já tivemos, propriedade de um homem famoso
e nobre, mas, em última análise, trata-se do mesmo negócio no qual se tem destacado há vários anos.
Riggles corou e assentiu com a cabeça, sem qualquer firmeza. Parecia envelhecer e encolher a cada momento. Darius duvidava que o mandatário de um conde ficasse impressionado
com ele.
O leiloeiro afastou-se, provavelmente para reunir as suas capacidades persuasivas. Miss Fairbourne inspecionou a nova disposição dos quadros na parede.
– Vejo que escolheu visitar-nos hoje. Assim sendo, é necessário decidir, de imediato, como acomodaremos a sua interferência.
Não existia qualquer ressentimento no seu tom de voz, mas os olhos transmitiam alguma exasperação e a palavra interferência quase pedia uma discussão.
– Quer que o apresentemos como um cliente frequente? Podemos fingir que, por mero acaso, decidiu passar por aqui, esta manhã?
– Penso que essa poderá ser a melhor alternativa.
– Contudo, será enganoso da nossa parte. Penso que seria melhor informá-lo de que o senhor conde é um dos proprietários.
– Isso dificilmente seria melhor do que a sua sugestão inicial.
Emma aproximou-se da parede e endireitou um dos quadros.
– No entanto, considere a hipótese. Se formos honestos, poderá ser mais direto na sua intervenção.
Southwaite aproximou-se de Emma, junto à parede.
– Não vim até aqui para assumir o lugar do seu pai. Esse é o dever de Mr. Riggles e, segundo o que a menina afirma, é também uma tarefa na qual ele tem bastante
experiência.
– Ele raramente negociava sozinho. Mr. Nightingale ajudava-o a lidar com os clientes que desejavam consignar artigos e com os colecionadores que pretendiam licitar.
– Talvez devesse substituir Mr. Nightingale, empregando outro homem.
– Tentei fazê-lo. Lembra-se? Um tal de Mr. Laughton parecia um bom candidato para o lugar, mas, infelizmente, alguém o advertiu e comprou o seu afastamento.
– Laughton era um rapaz simplório. Nunca conseguiria estar à altura do representante de um conde, em termos de perspicácia.
– Porém, o senhor conde certamente consegue.
Emma olhou por cima do ombro, para a entrada. Uma carruagem parava no exterior.
– Por favor, mostre-se impressionado com o nosso conhecimento e a nossa experiência. O leilão será realizado com ou sem esta coleção, cuja consignação ele vem discutir,
por isso é do seu interesse, bem como do interesse do seu investimento, que a Fairbourne’s a consiga obter.
Southwaite começou a explicar que, na verdade, nunca concordara com a realização daquele leilão.
Contudo, Emma não ouviu uma única palavra, porque, entretanto, a porta se abriu e o agente do conde entrou na leiloeira.
Herr Werner não era alto, nem possuía ombros largos, mas a sua arrogância dotava-o de uma estatura considerável. Colocou-se sob o vão da porta, como um homem que
tinha uma noção desmesurada do seu valor. Com caracóis louros, impecavelmente vestido e envergando um casaco enfeitado com galões e botões, inspirava o ar como se
estivesse a avaliar os presentes recorrendo apenas ao olfato.
Os olhos azul-pálidos varreram a divisão e acabaram por pousar em Darius, que foi escrutinado de todas as formas imagináveis. Riggles apareceu do nada, avançou na
direção do visitante e apresentou-se.
O olhar de Herr Werner nunca abandonou Southwaite.
Riggles conduziu o recém-chegado até ao conde.
– Permita-me que o apresente a um dos clientes mais estimados da Fairbourne’s, o conde de Southwaite.
CAPÍTULO 12
Emma tentou distrair-se um pouco, no jardim situado nas traseiras da Fairbourne’s. Deambulou pelos seus caminhos, enquanto tomava nota de tudo o que precisava de
ser feito antes de realizarem a grandiosa noite de pré-apresentação.
Esforçou-se por não imaginar a conversa que estava a ter lugar no escritório do pai. Rezou para que, entre Riggles, fingindo ser o gerente que não era na realidade,
e o conde, desempenhando o papel de cliente desinteressado, o que também não correspondia definitivamente à verdade, conseguissem persuadir Herr Werner a consignar
a coleção.
Sentia-se atormentada pela sensação de que deveria ter permanecido com eles, a fim de participar na discussão. No entanto, Herr Werner mal se tinha dignado a reconhecer
a presença de Emma. Assim que fora apresentado a Southwaite, toda a sua atenção se concentrara no aristocrata e não na vulgar filha de Maurice Fairbourne, a qual,
sendo uma simples mulher, não conseguiria compreender minimamente as preocupações financeiras e artísticas de um conde.
O maior perigo, do seu ponto de vista, era a possibilidade de Southwaite poder ser demasiado honesto, referindo que, naquele momento, tinham poucos artigos com prestígio
suficiente para apoiarem a coleção do conde, se esta fosse vendida no próximo leilão. Ele até poderia desencorajar abertamente Herr Werner. Afinal, Southwaite queria
acabar com a Fairbourne’s e preferiria que o leilão não pudesse realizar-se.
Todos aqueles pensamentos lhe causavam uma agitação considerável no coração. A espera parecia nunca mais ter fim.
Este estado absorto fez com que se sobressaltasse, quando, ao desviar o olhar de alguns arbustos, viu Southwaite, de pé, a menos de seis metros de distância.
As costas do conde descansavam contra o tronco de uma árvore. Ele observava-a, de braços cruzados.
Aquela aparição súbita apanhou-a de surpresa, assim como a expressão de Southwaite, de tal forma que permaneceu estática, apesar de o seu coração começar a bater
fortemente devido à emoção causada pela esperança de que ele trouxesse boas notícias.
Não, essa não era a única explicação para o modo como o coração lhe saltitava no peito. O olhar do conde parecia-lhe invasivo, tal como lhe parecera no armazém,
há alguns dias. Emma não estava habituada a ser observada daquele modo por pessoa alguma, muito menos por um homem belo. Isso assustava-a, mas era também muito excitante.
O tempo passava com uma sensação de estranheza, resultante do silêncio de Southwaite. Emma recompôs-se e forçou os pés a moverem-se. Um rubor aqueceu-a, à medida
que se aproximava do conde.
Rezou para que não fizesse algo revelador do quão insensatas eram as suas reações.
– Para que é que está a olhar? Para o triste estado dos arbustos, ou da sebe de rosas? – Emma espreitou por cima do ombro, como se tentasse adivinhar que parte negligenciada
do jardim era alvo da vigilância de Southwaite.
– Estou a olhar para si. Não finja ignorar a minha atenção.
– Não consigo evocar qualquer motivo para o senhor conde fazer tal coisa, por isso ignoro, de todo, a sua atenção.
O conde acomodou-se mais confortavelmente contra a árvore.
– Existem diversos motivos para o fazer e creio que a menina também os conhece. Porém, neste momento, o meu principal objetivo é decidir se, realmente, é tão astuta
como julgo que seja.
– Nunca fui classificada como astuta. Logo, as suas suspeitas são infundadas.
– Ai são?
Southwaite afastou-se da árvore e avançou até ao sítio onde Emma se encontrava. Olhou para ela, um pouco divertido, mas não totalmente.
– Penso que enviou aquela carta, aconselhando-me a não vir até aqui esta manhã, porque calculou que, na verdade, essa seria a melhor maneira de garantir a minha
presença.
– Sinto-me lisonjeada pelo facto de o senhor conde pensar que sou assim tão esperta.
– Oh, a menina é muito esperta, Miss Fairbourne. Isso ficou claro há já algum tempo.
– Suficientemente esperta para prever que as suas ações seriam deliberadamente contrárias aos meus conselhos? Eu mal o conheço, Lord Southwaite, por isso dificilmente
conseguiria prever tal desfecho.
– Talvez me conheça o bastante, para adivinhar a minha reação, ou conheça suficientemente bem os homens, para supor que as suas instruções não seriam encaradas favoravelmente.
Emma olhou para o edifício.
– Espero que os meus piores receios não se tenham concretizado e tenha conseguido manter o seu investimento secreto?
– Herr Werner só queria a minha opinião sincera acerca da Fairbourne’s, do ponto de vista de um colecionador, e crê que foi isso que recebeu.
Southwaite deslocou-se, de modo a posicionar-se ao lado de Emma, e passearam ambos pelo jardim.
– Ainda bem que vim até aqui, independentemente das suas verdadeiras intenções. O desempenho do Riggles foi tão fraco, que pergunto a mim próprio se ele alguma vez
terá participado numa reunião deste género.
A suspeita pairou no ar, aguardando uma resposta. Emma decidiu ignorá-la.
– A coleção é tão valiosa como dizem?
– É excelente. Um grande Ticiano. Rubens, Poussin, Veronese. Se a qualidade for tão boa como afirmam, será um leilão notável.
– Algum Rafael?
– Não.
Era uma pena. Rafael era muito popular entre os colecionadores.
– Ele reparou que os quadros pendurados na vossa parede não são do calibre dos que ele possui – disse Southwaite. – Iniciou as negociações com Riggles numa comissão
relativamente baixa. Calculou que precisassem muito mais dele do que ele precisa de vós.
Emma realizou alguns cálculos rápidos, para averiguar o rendimento que arrecadariam, potencialmente, se Herr Werner pagasse menos do que o habitual. Também teria
de ceder a Cassandra dez por cento da comissão recebida. O lucro da Fairbourne’s não seria o que ela havia esperado.
– Disse-lhe que aguardávamos a chegada de mais pinturas? – questionou Emma.
– Esperam receber mais quadros?
– Sim.
Emma tomou uma decisão, que evitara até aquele momento.
– Entre outros, esperamos um Rafael. Um de qualidade muito boa, com excelentes registos.
– Riggles não mencionou um Rafael. É curioso.
Uma ligeira pressão sobre o seu braço atraiu a atenção de Emma. Contemplou os elegantes dedos masculinos que nele tocavam, impedindo-a de continuar a caminhar. Em
seguida, o seu olhar subiu até às íris escuras, que a observavam atentamente.
– Será necessário procederem à autenticação da coleção, caso o conde decida consigná-la – disse Southwaite. – Cada lote terá de ser examinado por alguém que saiba
distinguir um Ticiano verdadeiro de uma falsificação. Recuso-me a participar numa fraude.
– Como é óbvio. O Obediah irá analisar cuidadosamente...
– Não, o Obediah não o fará, porque não tem capacidades para tal.
Southwaite libertou-a, mas travou qualquer possibilidade de avanço no caminho, bloqueando-o com o corpo.
– Admiro a sua inteligência, mas recomendo-lhe que, na situação atual, não a use em excesso.
Não se sentindo inteligente, de todo, naquele momento, Emma manteve-se calada. A cabeça de Southwaite aproximou-se da sua.
– Responda-me com clareza, Miss Fairbourne. Existe alguém associado à leiloeira que possua, presentemente, o conhecimento necessário para substituir o seu pai?
Southwaite encontrava-se indevidamente próximo dela. Esse pensamento atravessou a mente de Emma, enquanto o seu nariz estremecia, ao absorver o cheiro do conde.
Esse aroma, masculino, singular e limpo, com vestígios de couro, cavalo e lã, cercou-a como uma manifestação da presença dele, invadindo-lhe os sentidos.
– Sim.
A afirmação saiu, simplesmente, da sua boca, sem ter pensado muito sobre o assunto. Aquela atenção exaustiva não deixava margem alguma para mentiras. De qualquer
forma, Emma já não estava suficientemente lúcida para conseguir enganar, com sucesso, quem quer que fosse.
A cabeça de Southwaite aproximou-se ainda mais e o seu escrutínio sombrio penetrou-a mais profundamente.
– Mas não é Mr. Riggles, presumo.
– Não, não é Mr. Riggles.
– Então, é a menina.
Nem sequer era uma pergunta.
Emma mal conseguiu assentir com a cabeça. Naquele momento, falar estava para além das suas capacidades. Um estranho peso encheu-lhe o peito e a garganta, enquanto
um formigueiro extremamente ativo lhe invadia o rosto.
– Não gosto que me mintam.
Southwaite não parecia irado. Em vez disso, a sua declaração tranquila envolveu-a, como se tivesse sido transportada por uma brisa suave e cálida.
– Eu... isto é, não era realmente uma...
Um dedo pousou nos lábios de Emma, silenciando-a.
– O seu estratagema foi descoberto. Não tente camuflar uma mentira com outra.
O olhar de Southwaite não refletia muito interesse pelo que Emma pudesse afirmar, ou tentar fazer. O
dedo permanecia, quente e firme, sobre a sua boca, fazendo com que os seus lábios tremessem. Em seguida, movimentou-se, numa pequena carícia.
As suas reações surpreenderam-na. Assustaram-na. O seu corpo e a sua essência tornaram-se dolorosamente conscientes da presença dele e daquela carícia. Os arrepios
desceram por ela abaixo, num turbilhão sensual. Aquilo era muito mais poderoso do que as sensações que a haviam confundido anteriormente.
«Ele vai beijar-te.» O pensamento surgiu na mente de Emma um segundo antes do dedo de Southwaite abandonar os lábios dela.
Então, ele beijou-a, como se tal pensamento tivesse sido um pedido.
O beijo encantou-a. Nem sequer pensou em resistir, durante o que lhe pareceu um longo período de tempo. Em seguida, as mãos do conde seguraram a sua cabeça e o beijo
tornou-se mais profundo, fazendo com que uma cascata de maravilhas derrotasse qualquer tentativa de proferir palavras de rejeição.
Southwaite puxou-a para um abraço e uma parte ínfima da mente de Emma soube que ela cometera um erro ao manter-se em silêncio. Devia afastar-se agora, mas, oh, o
calor, o toque humano, assim como a força e o aroma masculinos, persuadiram-na a aceitar a submissão. Os prazeres que fluíam através do corpo de Emma eram suficientemente
intensos para a enlouquecerem, mas a intimidade pungente era o que realmente fazia o seu coração suspirar.
Naquele abraço, não tinha de permanecer sozinha, nem de ser forte. Não havia lugar para tristezas, preocupações ou cálculos, enquanto aqueles beijos pressionavam
os seus lábios, o rosto e o pescoço.
Não existia, de todo, qualquer pensamento, apenas o prazer de sensações novas e estimulantes, idênticas ao calor da primeira brisa primaveril, após um inverno rigoroso.
Emma não lhe devolveu o beijo, nem lhe retribuiu o abraço. Simplesmente aceitou-os, maravilhada pela forma como ele transformara o seu mundo, por alguns instantes.
Somente quando as mãos de Southwaite se movimentaram, transformando o abraço em carícias, é que Emma recuperou a razão. Então, teve consciência de que havia sido
demasiado tolerante e de que aquele homem assumira uma maior concordância do que ela lhe pensara ter dado.
Ainda assim, Emma não conseguia travá-lo. Na verdade, não o queria fazer. As mãos de Southwaite não a chocavam. Em vez disso, provocavam-lhe sensações prodigiosas.
Necessárias. A sua pressão firme criava ligação atrás de ligação, despertando impulsos poderosos, quase frenéticos, dentro dela, especialmente em locais muito profundos
e muito baixos, onde um peso repleto de uma deliciosa expectativa se acentuava cada vez mais.
Southwaite puxou-a para fora do caminho, mas Emma não se apercebeu de como tal sucedera. Apenas reparou nas folhas que pairavam sobre a sua cabeça e no facto de
desfrutarem agora da privacidade oferecida pelos arbustos e pelas árvores. A maioria dos sentidos de Emma estava concentrada nos beijos surpreendentemente íntimos,
nas mãos que vagueavam pelo seu corpo e na maneira como ambos a levavam, novamente, à beira da loucura.
Mais um abraço, que a envolvia. Mais um beijo, que lhe queimava o pescoço. Mais uma carícia, que começava na barriga, para depois subir, lateralmente, até atingir
o peito. Então, ficou verdadeiramente perto do delírio. Sucumbiu, quando Southwaite intensificou o prazer com toques hábeis, que a fizeram ofegar. Rendeu-se a uma
sensualidade voluptuosa, cheia de emoção, de carência e de uma paixão cada vez mais profunda.
Emma pensou que poderia permanecer ali para sempre. Esperava que aquelas sensações nunca terminassem, nem mudassem, mas, quando aceitou esse facto, os impulsos aumentaram,
estimulando-a e exigindo mais. Uma dor opressiva começou a transformar o prazer que sentia numa fome primitiva e carnal.
Emma pressentiu o perigo, mas, ainda assim, não foi ela quem pôs fim à situação. Foi uma voz que o fez, em vez dela, ao chamar o seu nome. O som do chamamento penetrou
o torpor que a dominava.
Reconheceu a voz de Obediah, que a procurava. Southwaite também a ouviu. Aquela voz funcionou como uma bofetada forte, que forçou ambos a recuperarem algum controlo.
Após um último beijo doce, o conde separou-se de Emma, libertando-a. Fitou-a profundamente nos olhos e depois desceu o seu campo visual, para conseguir observar
o corpo. Então, os ângulos do rosto de Southwaite endureceram.
Os dedos do conde tocaram levemente nos folhos pretos que circundavam a gola do vestido negro.
A excitação gloriosa de Emma ainda não desaparecera, mas ela afastou-se, porque, obviamente, tinha de o fazer. Caminhou em direção à luz do sol e procurou o rosto
de Obediah nas janelas visíveis.
– Estou aqui – chamou. – Tem de me contar tudo o que Herr Werner disse.
«Que diabo se passa comigo?» A pergunta invadiu a mente de Darius, enquanto seguia Emma até ao interior do edifício, e continuou presente, enquanto Riggles fazia
um relatório da reunião e respondia às várias questões colocadas por Miss Fairbourne.
O desejo frustrado não era bem aceite pela sua personalidade. Ouviu muito pouco do que Emma dizia a Obediah, em resposta, e teve de fazer um grande esforço para
manter os olhos afastados dela.
«Tenho sido extremamente insensato em relação a ela e, agora, estou a ser um completo imbecil.» Não havia jurado a si mesmo, várias vezes, que iria fechar a Fairbourne’s?
As suas longas deliberações não tinham sempre levado à conclusão de que o devia fazer, ou mesmo de que precisaria de o fazer? Em vez disso, naquele dia, desempenhara
o papel de cavaleiro andante, perante a dama em perigo. Só lhe faltara subornar Herr Werner, para que consignasse aqueles malditos quadros à leiloeira. E, em vez
de estabelecer algumas regras, quando a encontrou no jardim, quase a seduzira. Ainda desejava que Riggles os tivesse deixado sozinhos.
A excitação conduzia os seus pensamentos até lugares que, naquele momento, não precisava certamente de visitar, se é que alguma vez viria a precisar. Também não
podia evitar refletir que ela não parecera muito experiente. E isso era uma má notícia, sob vários aspetos. Por um lado, indicava que um pedido de desculpas era
recomendável, quando não se sentia minimamente inclinado para o fazer. Por outro, sugeria que devia sentir culpa, quando não a sentia, de todo.
O que se passava com ele? Até mesmo naquele momento, em que a conversa entre Riggles e Emma começava a penetrar no seu cérebro, a maior parte da sua mente estava
de novo sob as árvores, ouvindo os arquejos surpresos de prazer que ela soltara e sentindo o calor flexível de Emma contra o seu próprio corpo.
– Escrever-lhe-á – ordenou Miss Fairbourne a Riggles. – Diga-lhe que, após ter pensado melhor sobre o assunto, está disposto a aceitar uma comissão menor sobre a
venda da coleção. Deixe bem claro que conta com a discrição dele relativamente a essa questão. Não podemos permitir que divulgue amplamente o valor que acordámos.
Os outros colecionadores quereriam as mesmas condições, o que nos levaria à ruína.
Emma já não fingia que Riggles geria o negócio, agora que o seu segredo havia sido descoberto. Se o próprio Riggles estranhava aquela mudança de atitude, não o demonstrava.
Assentiu respeitosamente e foi para o escritório, a fim de redigir a carta.
Miss Fairbourne, por sua vez, dirigiu-se para o armazém. Darius seguiu-a, pois existiam palavras que, aparentemente, lhe devia dizer. Contudo, uma porção do seu
ser, desonrada, insaciável e predominante, ponderava como continuar o que havia começado no jardim.
Emma pegou num avental, que estava pendurado num gancho fixado na parede, e colocou-o.
– Confesso que me sinto quase feliz por lhe ter revelado a verdade, Lord Southwaite. Tenho muito que fazer durante as próximas semanas e tem sido bastante inconveniente
sentir-me obrigada a fugir de si, durante as suas visitas.
– O que é que fazia aqui, exatamente, quando o seu pai era vivo?
A pergunta foi colocada pelo seu lado melhor, o que não imaginava aquela mulher despojada das roupas de luto que envergava e deitada, nua, sobre a superfície da
secretária, com os olhos azuis velados pelo êxtase provindo de um prazer intenso, como haviam estado há uns meros minutos.
– Ajudava a preparar o catálogo dos grandes leilões. Lidava principalmente com a prata e os objetos de arte. No entanto, em relação às pinturas, eu consultava-o
sempre. Ele não descartava as minhas opiniões, caso considere a possibilidade de estar a engrandecer as minhas capacidades.
– E a gestão? A contabilidade e as consignações? Também ajudava nessas áreas?
– Não, essas funções eram asseguradas exclusivamente pelo meu pai. Especialmente as consignações.
Eram uma atividade demasiado pública, para que eu pudesse participar – disse Emma, encarando-o com uma expressão severa e exasperada. – Enganei- o, porque preciso
de enganar todo o mundo. Sabe perfeitamente bem que ninguém irá admitir que os meus conhecimentos são suficientemente bons.
Ninguém irá negociar com a Fairbourne’s, se souberem que é a mente de uma mulher a responsável pelas decisões tomadas em todos os domínios da leiloeira, sobretudo
no que diz respeito à autenticidade das obras.
Southwaite sentiu-se satisfeito por Emma não ter estado envolvida nas consignações feitas no passado, dado ter a certeza de que alguns desses lotes haviam sido suspeitos,
na melhor das hipóteses, relativamente à proveniência dos bens.
– Não existe qualquer lei que diga que uma mulher não pode ter bom olho para a arte.
Emma colocou algumas peças de prata sobre a mesa e puxou para fora o maço de papéis que permanecera escondido debaixo da bandeja.
– Oh, balelas. Se lhe tivesse contado a verdade durante a nossa primeira conversa, nunca teria conseguido convencê-lo a não vender o negócio de imediato e a permitir
a realização deste leilão.
– Não recordo que me tenha convencido a permitir coisa alguma. Disse-lhe que decidiria sobre esse assunto após determinar se Riggles conseguia assegurar a gestão
da empresa.
Emma deteve-se e olhou para ele.
– E agora já chegou à conclusão de que ele não é capaz de o fazer. Pois bem, eu sou.
O desespero invadiu os olhos de Emma. Se Southwaite não a tivesse beijado há menos de uma hora, aquelas palavras poderiam não o ter tocado como tocaram. Mas, como
efetivamente a beijara, sentiu-se varrido por um impulso para a tranquilizar, que quase fez com que lhe prometesse tudo o que ela queria ouvir.
O conde fingiu o interesse de um especialista pelos objetos empilhados no armazém, mas, na verdade, apenas via Emma e somente sentia a presença dela. Só queria possuí-la.
– Disse que receberão um Rafael.
A expressão de Emma suavizou-se, devido ao alívio, de uma forma extremamente bela.
– Sim. Um de excelente qualidade.
– Da coleção de um estimado cavalheiro, presumo.
– Muito estimado.
O sorriso conspiratório de Emma iluminou a divisão e o maldito sangue de Southwaite começou novamente a aquecer. O conde estendeu a mão na direção da porta, para
alcançar o trinco, evitando desse modo alcançar Emma, em lugar deste.
– Talvez compre o quadro, se for tão bom como diz.
Southwaite abandonou finalmente a leiloeira, com a sensação de ter prolongado excessivamente a visita. Já estava montado no seu cavalo, quando se lembrou de que
havia permanecido mais tempo com Emma para lhe pedir desculpa pelo que acontecera no jardim, mas esquecera-se de proferir as palavras necessárias.
Ainda bem. Não se opunha a dizer as coisas certas, pelos motivos certos. Porém, desta vez, se tivesse expressado arrependimento, não teria soado honesto, de todo.
Qualquer garantia de se comportar melhor no futuro teria parecido vazia, definitivamente, pois já persistia a dúvida de que conseguisse cumprir tal promessa.
CAPÍTULO 13
– Penso conseguir obter a coleção do conde – confidenciou Emma a Cassandra.
– E marcou um encontro às nove da manhã para me dizer isso? Num parque húmido? Não me atrevo a sair deste caminho, corro o risco de o orvalho estragar a minha saia.
Emma mantinha-as na proximidade da margem do Serpentine13. Cassandra fora, sem dúvida, amável ao concordar com aquele passeio e tinha o direito de estar aborrecida
com a hora marcada. Se tivesse a possibilidade de escolher, Emma teria feito as coisas de um modo diferente.
Caminhavam por um trilho deserto, no Hyde Park. Mesmo enquanto conversava com Cassandra, o olhar de Emma percorria as paisagens que as rodeavam. Àquela hora, podiam
avistar-se muito poucos visitantes e todos pareciam ser homens. A maioria andava a cavalo, aproveitando os espaços abertos para exercitar os seus animais. Perto
dos castanheiros, agrupavam-se vários homens de uniformize, provavelmente preparando-se para o espetáculo da inspeção das unidades voluntárias previsto para o meio-dia.
Próximo do início de Rotten Row, um pequeno grupo de cavaleiros reunia-se para o que parecia ser uma corrida improvisada.
Um deles, montado num grande cavalo branco, atraiu a sua atenção. Seria Southwaite? Emma pensou que o homem assumia uma postura muito semelhante à do conde. Não
conseguia ter a certeza da identidade do cavaleiro, devido à grande distância que os separava, mas a mera possibilidade de se tratar de Southwaite quase a fez tropeçar.
Era muito irritante que não conseguisse sequer pensar nele sem ficar perturbada. Provavelmente também corara, e esperava que Cassandra considerasse que aquele rubor
fora causado pela brisa agreste e pelo exercício. O problema era o facto de que pensar sobre o conde implicava pensar acerca do que acontecera no jardim e isso só
a confundia ainda mais.
Não tinha progredido muito nos seus esforços para analisar o ocorrido e o porquê daqueles acontecimentos. Este último aspeto era o maior enigma. Não podia negar
que apreciara cada beijo, mas não estava confiante de que Southwaite também tivesse sido arrebatado pelo prazer e pela paixão. Ele não era inexperiente, pois não?
Então, não era provável que ficasse hipnotizado pela simples novidade de todo aquele calor e sensações provocados por outro ser humano. Emma suspeitava de que, quando
finalmente conseguisse arranjar a coragem necessária para estudar o motivo por detrás daqueles beijos, não iria gostar muito das conclusões alcançadas.
Entretanto, preferia não o ver.
– Peço desculpa, Emma. Devia alegrar-me com as suas novidades e não estar a reclamar pelo modo como o ar me arrepia. Sempre tive esperança de que fosse bem-sucedida
com Herr Werner. No entanto, confesso que considerei improvável que Mr. Riggles o conseguisse convencer – disse Cassandra.
– Mr. Riggles teve alguma ajuda.
Cassandra baixou a cabeça e olhou para Emma, através das suas pestanas escuras.
– Pensei que tencionava manter em segredo o facto de ser a atual gerente do negócio.
– Não fui eu quem o ajudou. O Southwaite estava a visitar a leiloeira, quando o representante do Alexis apareceu. Creio que a presença de um cliente tão ilustre
tranquilizou Herr Werner.
– Tenho a certeza de que Herr Werner não ousaria permanecer indiferente, se o Southwaite exigisse que ficasse impressionado.
O tom e as palavras de Cassandra nunca falavam bem de Southwaite. Emma ansiava por poder confidenciar-lhe mais sobre o dia em que Herr Werner os visitara, mas seria
embaraçoso descrever como sucumbira, sem um murmúrio de protesto, a um homem de quem não tinha sequer a certeza de gostar. Pior ainda, Cassandra poderia querer começar
a planear o castigo de Southwaite.
– Você realmente não gosta do conde, de todo – disse Emma.
– Devia seguir a minha deixa. O Southwaite é um hipócrita, tal como a maioria dos homens. Por exemplo, todos sabem que tem tido uma série de amantes, mas o conde
certifica-se de que os seus casos amorosos nunca alimentam mais do que rumores vagos. Logo, sente-se livre para criticar os restantes mortais, pelos respetivos escândalos,
quando, na verdade, não é melhor do que eles.
Emma presumiu que Cassandra se referia aos seus próprios escândalos. Cassandra recusara-se a casar-se com um homem que a havia comprometido, quando era apenas uma
jovem. Posteriormente, a alta sociedade registara cada um dos seus desvios, relativamente ao caminho virtuoso que deveria ter seguido durante a vida.
Emma não podia deixar de concordar com aquela avaliação do conde, feita pela sua amiga, mesmo que inexplicavelmente o quisesse defender.
Southwaite afirmara ser um mestre, no que tocava a garantir a discrição e a evitar o escândalo. Não lhe dissera que não fazia coisas escandalosas. Na verdade, tinha
mesmo persuadido Emma a manifestar um comportamento insensato. Ainda assim, arqueara uma sobrancelha ao considerar a amizade existente entre Emma e Cassandra.
– Parece irritada, Cassandra. Alguém foi cruel para si, recentemente? Sabe que tem apenas de regressar à casa do seu irmão para evitar tais dissabores. Tudo será
perdoado, quando ele a aceitar de volta.
– Não conseguiria suportar ser a irmã pródiga. Ele e a esposa iriam vigiar-me como falcões, caso regressasse, e dar-me-iam a compreender que estava dependente deles
para recuperar a minha reputação, bem como para aceder à minha alimentação. Provavelmente, ele quereria que eu desposasse um homem aborrecido, de modo a dissipar
todos os mexericos. Não. Enquanto a minha tia aceitar acolher-me, permanecerei com ela.
Porém, uma parte da notoriedade de Cassandra derivava daquele acordo habitacional. A tia de Cassandra colecionara alguns escândalos próprios. O facto de, presentemente,
viver como uma reclusa, significava que Cassandra possuía demasiada independência.
– Ele é um radical, por isso seria de esperar dele menor rigidez, no que diz respeito às regras sociais – disse Cassandra, após terem caminhado mais um pouco. –
Estou a falar do Southwaite. Ele é um Whig 14
e argumentou a favor da reforma, no passado. Agora, com a guerra, já ninguém o faz. Todos têm receio de ser vistos como simpatizantes dos revolucionários franceses.
– Talvez esteja à espera do momento apropriado.
Emma gostou bastante de ouvir que o conde defendera a reforma, mesmo que já não se atrevesse a fazê
lo. Isso sugeria que Southwaite não era um escravo das linhas de pensamento conservadoras, embora obedecesse às suas diretrizes relativas ao comportamento.
– Ou talvez tenha mudado de ideias. Mais recentemente, a voz do conde tem exigido uma vigilância melhor da nossa costa. O Southwaite tem importunado o almirantado
com esse pedido. Suponho que, ao possuir terras no Kent, saiba muito bem o quão vulnerável a costa pode estar.
Aquela referência ao Kent fez com que a mente de Emma se voltasse para a propriedade do pai, localizada nessa região, e para o conteúdo desta. Teria de a visitar,
muito em breve.
Esse pensamento conduziu a outros, sobre o leilão. Esperava que os seus planos para aquele dia estivessem a progredir bem. Durante a manhã, uma certa carroça iria
ser deslocada da sua casa para um determinado edifício na Albemarle Street. Ao meio-dia, o conteúdo da carroça já deveria estar misturado com os restantes artigos.
O vinho ficaria escondido no armazém.
Um movimento mais à frente, no caminho, apanhou-a desprevenida e interrompeu a sua reflexão. Uma figura aparecera, como que por magia, no trilho que Emma e Cassandra
seguiam. Envolta num tecido castanho, e àquela distância, a silhueta parecia fundir-se com o que a rodeava, mas Emma reconheceu a forma graciosa.
– Quem é? – indagou Cassandra.
Aproximaram-se, mas a figura não se mexeu.
– É a Marielle Lyon – disse Emma. – Penso que talvez queira falar comigo.
– Que estranho ela ter adivinhado que você estaria aqui – provocou Cassandra. – Vá ter com ela e veja o que lhe arranjou para o leilão. Oxalá compense a constipação
que ambas arriscámos com este encontro.
Eu espero aqui, com inveja de uma mulher que, mesmo envergando um aborrecido vestido sem cintura que esteve na moda há uma vintena de anos, consegue parecer tão
elegante.
Marielle aguardava na sombra de uma árvore que pendia sobre o trilho.
– Sempre veio – disse, quando Emma a alcançou. Lançou um olhar breve, mas penetrante, a Cassandra e, logo de seguida, ignorou a sua presença. – Encontrei alguns
artigos para o leilão. Um grande rolo de desenhos. Coisas velhas. O proprietário afirma que são de artistas apreciados em Inglaterra. Disse-lhe que você queria pinturas,
mas ele respondeu que você reconheceria o valor dos desenhos, se percebesse alguma coisa do assunto.
– Onde estão esses desenhos? Preciso de os ver, para poder avaliar se são autênticos e suficientemente bons para o leilão.
– Primeiro, ele queria saber se estava interessada. Se for esse o caso, ele trá-los até si – disse Marielle, enquanto remexia, com o sapato, a terra que ladeava
o caminho. – Tinha dito vinte por cento.
– Sim, receberá o que lhe é devido, após o leilão, se estiver tudo em ordem. Diga a esse homem que estou interessada nos desenhos, se forem tão bons como ele afirma.
Peça-lhe para os levar até à minha morada, amanhã de manhã.
Estando bastante consciente de que Cassandra as observava com um interesse pouco prudente, Emma começou a caminhar na direção da amiga.
– Não está interessada no resto? – inquiriu Marielle.
– Há mais? Também são desenhos?
– Não me refiro a arte. Aquele homem, o que trouxe a carroça. Aceitou encontrar-se consigo.
O coração de Emma saltou. Olhou, furtivamente, para Cassandra, que não tinha conhecimento da existência da carroça.
– Quando?
– Ele disse quinta-feira à tarde. Na entrada leste de Catedral de São Paulo. Deve levar algum dinheiro.
Prometi-lhe uma boa recompensa.
O lembrete não passou despercebido a Emma. Retirou dois xelins da mala de mão.
– Lá estarei. Obrigada.
Marielle guardou as moedas. O seu olhar intenso concentrou-se no trilho, atrás de Emma. Estalou a língua, aborrecida.
– Agora tenho de ir embora. Fui seguida e não quererá que interpretem erradamente o motivo pelo qual nos encontrámos.
Emma olhou por cima do ombro. Um cavalo aproximava-se do local onde Cassandra se encontrava, numa passada lenta. O homem que o montava não parecia interessado nelas,
nem em qualquer outra coisa que não fosse a magnificência daquele dia.
Marielle riu-se.
– É divertido. Os ingleses pensam que espio para os franceses e alguns dos franceses pensam que espio para os ingleses. Na verdade, só espio para si e mais ninguém.
Em seguida, afastou-se fundindo-se com as sombras salpicadas visíveis sob as árvores mais próximas.
Darius visitou a leiloeira na manhã que se seguiu à aparição de Herr Werner. Também a inspecionou na tarde do dia seguinte. A sua análise detalhada dos registos
e das contas não estava a produzir qualquer informação relevante. A natureza vaga dos documentos derrotava todos os seus esforços para descobrir o que Maurice Fairbourne
andara a fazer nos últimos anos.
Emma não estivera presente nas instalações da Fairbourne’s em qualquer um dos dias. Southwaite considerava esse comportamento estranho. Ela já não precisava de fingir
que não estava a escrever o catálogo e dissera que tinha muito trabalho para fazer.
Perguntou a si mesmo se Miss Fairbourne estaria a evitar o local, a fim de evitar um encontro com ele.
Uma vez que assombrava aquele lugar, em parte, para a ver, tal atitude não era aceitável, de todo.
No terceiro dia, após sair da casa de leilões, dirigiu-se para leste, em direção à Compton Street.
Maitland conduziu-o até à sala de jantar. Miss Fairbourne encontrava-se perto da mesa, manuseando folhas de papel. Quando se aproximou, Darius viu que ela examinava
uma pilha de desenhos.
– Trouxeram-mos hoje – explicou Emma. – São muito melhores do que eu ousara esperar. Tenho a certeza de que este é um Leonardo. Também aceito a afirmação de que
este retrato a ponta de prata é da autoria de Dürer. Concorda comigo?
Southwaite admirou os desenhos, assim como o entusiasmo que estes despertavam em Emma. Naquele momento, estava bastante animada, até mesmo resplandecente. Envergava
um vestido moderno amarelo-pálido, parecendo muito fresca e bela nele.
– Estes desenhos também devem ser do proprietário que consignou os outros novos artigos que chegaram – refletiu Darius, enquanto se inclinava, para conseguir observar
melhor os pormenores do Dürer.
Seria apenas fruto da imaginação dele, ou Emma realmente ficara rígida? Pelo menos, tinha permanecido imóvel, durante alguns instantes.
– Vejo que visitou novamente o armazém – disse Emma. – Espero que não tenha mudado de sítio os artigos que lá se encontravam. Organizei-os de uma determinada maneira,
para que não houvesse o perigo de deixar obras de fora, à medida que completo o catálogo.
Southwaite endireitou-se.
– Não toquei em coisa alguma. Porém, a divisão está tão cheia que pergunto a mim próprio como consegue alcançar a secretária.
– Disse-lhe que receberíamos mais artigos e estão a chegar. Agora, só preciso de ter notícias da parte de Herr Werner.
Emma voltou mais duas folhas, revelando um grande desenho, executado com tinta e água.
– Apesar de todos os outros grandes nomes associados a estes desenhos, creio que encontrei o vencedor do grupo. É um magnífico Tiepolo, um estudo para uma pintura
de teto. Devia informar os seus amigos de que esta obra será vendida. Qualquer bom colecionador gostaria de o saber.
– Está a sugerir que eu promova o seu leilão, Miss Fairbourne?
– Nunca lhe pediria tal coisa. Contudo, se expressasse o seu interesse pelo evento, quando frequentasse festas e jantares, descrevendo algumas das raridades que,
segundo ouviu dizer, serão leiloadas, isso contribuiria para o sucesso da minha iniciativa.
– Se não for cuidadoso, colocar-me-á na pele de Mr. Nightingale, recebendo a multidão, quando esta chegar à leiloeira, na noite de pré-apresentação.
Emma começou a enrolar, cuidadosamente, a pilha de desenhos.
– Bem, alguém tem de o fazer. Atou uma fita espessa em torno do rolo. O rubor ainda não lhe abandonara o rosto e os seus dedos tremiam enquanto realizavam a tarefa.
– Hoje não esteve na leiloeira. Nem ontem.
Emma não olhou para ele.
– Tinha de tratar de outros assuntos.
– E amanhã?
– Tenho de tratar de mais assuntos. Outros.
– Eventualmente, terá de se dedicar à preparação do catálogo.
– Terminá-lo-ei a tempo. E o senhor, Lord Southwaite? Já finalizou a inspeção dos registos e contas da empresa?
– Quase.
Na realidade, tinha completado a análise há muito. Devia contar-lhe a verdade e reencontrá-la somente no leilão.
– Manteve-se afastada, por recear que eu lá estivesse? O que aconteceu no jardim fez com que se escondesse de mim?
– Tive efetivamente de tratar de outros assuntos. No entanto...
O olhar de Emma cruzou-se com o do conde, transmitindo toda aquela franqueza que o conseguia transtornar tão facilmente.
– Escolhi não pensar demasiado sobre essa tarde. Temo que, se o fizer, acabe apenas por me culpar pelo que aconteceu e por culpá-lo, a si, pelo motivo subjacente.
– Permita-me que assuma a culpa por ambos. Devia ter-lhe pedido desculpa, no próprio dia.
– Contudo, não o fez. Porque não sou uma dama aristocrata?
– A sua ascendência não teve qualquer relação com o sucedido. Não lhe pedi desculpa por não me sentir verdadeiramente arrependido.
Mentiras e mais mentiras. Enganos e omissões. Não pedira desculpa porque o seu lado mais sombrio ansiava por uma recompensa maior e a ascendência de Emma provavelmente
estava mais relacionada com aquele desejo do que Darius queria admitir.
– Está arrependido agora?
– Não, mas não sou o género de homem que se aproveite de uma mulher.
Mais mentiras. Mentiras malditas.
– Não há razão alguma para ter medo de mim.
– Não tenho medo de si.
Com os diabos, que não tinha. A cautela era visível nos olhos dela. Southwaite também vislumbrava outras coisas no interior daqueles olhos. Vulnerabilidade, como
se Emma esperasse que aquela conversa resultasse num insulto à sua pessoa, antes de terminar.
– Talvez o seu autodomínio funcione melhor na presença de damas nobres, por ter mais prática com esse tipo de mulheres. Duvido que tenha tido muita experiência com
mulheres comuns, relativamente a estas questões – argumentou ela.
– Percebeu tudo ao contrário. Para mim, a menina não é comum, de todo. É até extremamente invulgar, em relação ao que já experienciei, e poderá ter sido esse o motivo
de ter vacilado no meu autodomínio.
Finalmente, alguma verdade. Porém, um elogio, articulado por razões egoístas.
– Que estranho deve ser o mundo em que vive, Lord Southwaite. Tão repleto de falsidade, que a minha falta de sofisticação se torna intrigante, por comparação.
Emma segurava o rolo de desenhos à sua frente, como um escudo, mas não desviava o seu olhar intenso, focado no conde.
– Falemos a verdade que conhecemos, sempre que tivermos a possibilidade de o fazer, senhor conde.
Quaisquer que tenham sido as suas motivações, ou impulsos, o senhor conde aproveitou-se da minha surpresa, mas nada mais. Não fingirei que me comportei bem, pelo
que estamos ambos cientes de que a culpa não é inteiramente sua. Contudo, espero que saiba que, de futuro, nunca mais voltarei a ficar tão perplexa. Jamais.
Com que então nunca mais seria apanhada de surpresa? Maldição. Viera até ali com o intuito de fazerem as pazes, mas Emma parecia estar a preparar-se para combater
novamente e acabara de lhe lançar um desafio.
Aquilo despertou o demónio que vivia no interior de Southwaite e a criatura ficou bastante contente por poder esticar as suas asas negras.
– Está a dizer que, se a tentar beijar de novo, terá a força de vontade necessária para me rejeitar?
Darius não tencionava ameaçá-la e Emma não encarou aquelas palavras como uma ameaça. No entanto, estas anunciavam a possibilidade de mais beijos e de outras coisas.
Emma também tinha consciência disso. Dificilmente poderia ignorar como haviam alterado o ar que os rodeava, forjando uma ligação invisível entre os dois.
– Embora possua muita fé na minha força de vontade, pensei ter ficado bem claro que pressupunha que o senhor conde não tentaria beijar-me novamente.
– Que suposição tão ingénua e tão pouco prática da sua parte.
– O senhor conde pediu desculpa. Eu tinha todas as razões para o pressupor.
– Se alguma vez o pedido de desculpas de um homem revelou a verdadeira natureza dos seus pensamentos, o meu fê-lo.
– Então, permita-me que fale mais claramente. Não pressuponho, nem espero, que o senhor conde resista a tais impulsos. Exijo-o. Na verdade, gostaria que me desse
a sua palavra de honra nesse sentido.
Afinal, Emma não planeava uma batalha. Em vez disso, queria uma vitória diplomática. Infelizmente para o sucesso de tal estratégia, Southwaite descobrira que Emma
Fairbourne mergulhada em prazer era muito mais fácil de manipular do que Emma Fairbourne em plena posse das suas faculdades.
– Nunca dou a minha palavra de honra, quando sei que provavelmente irei quebrá-la, Miss Fairbourne.
Gentilmente, Darius retirou o rolo de desenhos dos braços de Emma, colocando-o de parte.
– E sei, desde que abandonei aquele jardim, que iria tentar beijá-la outra vez.
Com as mãos em concha, o conde segurou o rosto de Emma. Ela sobressaltou-se, mas não se afastou. A pele de Emma parecia veludo sedoso sob a palma das suas mãos.
Um rubor invadiu-a e o ardor resultante passou para ele, juntando-se ao seu próprio calor. Os olhos de Emma arregalaram-se, expressando assombro perante a reação
e a excitação desencadeadas por aquele simples contacto. Revelavam o mesmo espanto que Darius testemunhara no jardim.
Assim que os lábios do conde tocaram os de Emma, ele soube que iria pagar caro pelo beijo. Como Kendale mencionara, estava longe de ser um rapaz imberbe. Emma era
extraordinariamente cativante e adoravelmente natural. Apesar da declaração que acabara de fazer, ainda parecia estar muito surpreendida com a forma como um beijo
a conseguia afetar. A luxúria do conde incitava-o a tentar obter ainda mais, argumentando vigorosamente para que o fizesse.
Darius devorou a boca de Emma, mas conseguiu manter as mãos longe do corpo dela. Quando a situação se tornou insuportável, libertou-a e afastou-se. «Não aqui. Não
agora. Não na casa dela, com os criados por perto.»
Pareceu que ficaram ali durante uma eternidade, com a paixão e o desejo a uni-los. A atraí-los. Podia ser uma doce tortura, mas apenas se, no final, terminasse do
modo certo.
Southwaite ponderou que Emma conseguia perceber as suas intenções, tal como ele conseguia ver as suspeitas de Emma acerca do «porquê» e o seu receio acerca de «o
que» ele queria.
Emma efetuou uma vénia demorada e meticulosa. O conde fez a mesura indispensável e retirou-se.
13 Grande lago artificial existente no Hyde Park. Foi construído no séc. XVIII, para fins recreativos. (N. do T.) 14 Referência ao partido liberal que disputou o
poder com o partido conservador entre o final do séc. XVII e meados do séc. XIX. Os Whigs defendiam a monarquia constitucional e a tolerância para com os protestantes.
(N. do T.)
CAPÍTULO 14
Emma contornou a esquina da fachada ocidental da Catedral de São Paulo, dirigindo-se para a área que ficava mais a leste. Vestira-se de preto, na esperança de que
o homem a identificasse pelo luto, se ainda não conhecesse o rosto dela.
A visita de Southwaite, que ocorrera no dia anterior, era continuamente revisitada pelos seus pensamentos, enquanto examinava as pessoas pelas quais passava, procurando
qualquer sinal de que uma delas fosse o indivíduo misterioso.
Southwaite pedira desculpa sem o género de embaraço que seria de esperar, dadas as circunstâncias. O conde extremamente correto havia dito as indispensáveis palavras
extremamente corretas, com o tom certo e a autorrecriminação apropriada, se bem que muito pouco sincera. Agira como se tivesse lido um pequeno panfleto que servia
de guia para tais situações.
Presumia que as palavras por ele proferidas, acerca de ela própria não ser comum, constituíam um gesto bondoso. Tinha questionado as motivações do conde, não tinha?
Dera a entender que ele a tratava com menos respeito do que o reservado para as mulheres de melhores famílias. Seria ultrajante para Southwaite ter de admitir uma
conduta desse tipo. O que poderia alegar em sua defesa? Que as regras não se aplicavam à interação entre um nobre e uma mulher como ela, mas somente ao comportamento
desse mesmo nobre perante as filhas de aristocratas e cavalheiros?
Contudo, seria estúpido ficar zangada pelo facto de Southwaite ter mentido com o intuito de evitar insultá-la. E, afinal de contas, ela também mentira, ao dizer
que não tinha medo dele. O conde sempre a intimidara e, presentemente, a desvantagem de Emma era ainda maior do que no passado. Não estava confiante relativamente
à sua capacidade para demonstrar «força de vontade», caso Southwaite a beijasse de novo. Agora que ele o tinha feito, sucumbira mais uma vez, como uma... uma quê?
Uma mulher devassa? Uma meretriz?
Quase desejava que aquelas palavras condenatórias se aplicassem a ela. Tinha plena consciência dos seus erros. Sucumbira como uma mulher ignorante, de idade madura,
que sabia pouco acerca dos homens e menos ainda acerca da sua própria sensualidade. Talvez devesse perguntar a Cassandra quanto tempo era necessário para uma mulher
aprender a dominar as reações do seu próprio corpo, a ponto de conseguir desfrutar, ou rejeitar, o prazer, de acordo com um raciocínio objetivo.
Por outro lado, Emma tinha a certeza de que a sua presença não intimidava o conde. Logo, a desculpa que Southwaite apresentara para aqueles beijos no jardim não
lhe parecia verdadeira. O último beijo não havia sido, certamente, o ato de um homem desfeito pela paixão. O conde anunciara-o primeiro, pelo amor de Deus. Um homem
na posse das faculdades mentais necessárias para traçar o seu caminho e lançar os devidos alertas, como era óbvio, também tinha autodomínio suficiente para encetar
um percurso completamente distinto, se assim o desejasse.
Emma temia que a verdadeira razão para todos aqueles beijos fosse muito menos agradável do que uma paixão poética. Southwaite deixara bem claro, no dia em que interrompera
as entrevistas, que procurava uma nova amante e pensava que ela poderia ser adequada para a função, pelo menos durante algum tempo. Nessa altura, Emma suspeitara
que o conde provavelmente conseguia garantir a discrição dos seus casos amorosos escolhendo mulheres de ascendência menos nobre, com quem a alta sociedade não se
preocuparia minimamente.
Também era óbvio que Southwaite ainda queria convencê-la a vender a leiloeira. Naturalmente, tivera a ideia de recorrer aos prazeres sensuais para a tornar mais
manipulável, quando observara todas aquelas agitações e centelhas estúpidas que Emma exibira. Existiam muitas maneiras de obrigar uma pessoa a seguir uma dada ordem.
Que é como quem diz, de fazer com que uma mulher se submetesse a certas vontades.
O olhar de Emma saltava de pessoa em pessoa, percorrendo todos os que se demoravam no terreiro da catedral. Finalmente, pousou num homem que permanecia de pé, ao
lado da entrada oriental. Parecia mediano em todos os sentidos, exceto na forma como examinava igualmente as pessoas que por ele passavam. Casacos escuros, um velho
chapéu, puxado para baixo, de modo a tapar a testa, e calças mal ajustadas. Em suma, tinha a aparência de um comerciante muito pouco próspero.
Os seus olhos semicerrados viraram-se para Emma. Após trocarem um olhar de reconhecimento mútuo, Emma caminhou até ao local onde ele se encontrava.
– Podemos entrar p’rá igreja, se quiser – sugeriu o homem.
– Isso seria desrespeitoso, uma vez que iremos falar sobre iniciativas criminosas.
A franqueza de Emma apanhou-o de surpresa.
– Olhe, só me pagam p’ra entregar uma coisinha ou outra. Não sou criminoso.
Emma não tencionava discutir sobre a moral daquele tipo de atividades.
– Necessito de falar com o homem que lhe pagou para assegurar o transporte da carroça até à minha casa. Tenho perguntas que precisam de ser respondidas.
Ele mudou de posição e mordeu o lábio, direcionando o olhar para o terreiro.
– Pode ser qu’eu tenha as respostas. Não entrego só carroças.
– Está a dizer que tem uma mensagem para mim?
Ele encolheu os ombros.
– Depende do que fazemos aqui.
– É esperado algo da minha parte, em termos de pagamento. Não sei quanto é. Os lucros obtidos com a venda daqueles bens? Nada mais? Não tenho conhecimento do acordo
feito com o meu pai. Ele nunca me falou sobre tal pacto. Também pretendo resolver a questão definitivamente. Diga ao seu chefe que quero saber o que tenho de fazer
para garantir que ganho o prémio.
– Ganhar o prémio? Não há prémio p’ra ganhar.
– A mulher que me trouxe a carroça disse...
– É p’ra resgatar o prémio, foi o que mandei a mulher dizer, não é p’ra ganhar. Estrangeira estúpida. A sorte não é p’ra aqui chamada, se m’entende. P’lo que sei,
só o tem se o pagar.
O coração de Emma batia tão fortemente que lhe causava dor. Naquele momento, mal conseguia conter a esperança que sentia.
– Sabe o que é o prémio?
– Pode ser qu’eu saiba. Você não sabe?
– Não. Tenho de descobrir o que está em risco, ou atirarei a carroça para o rio, juntamente com o seu conteúdo. Por isso, responda-me, de imediato. O prémio é uma
pessoa?
O homem respondeu-lhe piscando um dos olhos, de uma forma bem visível.
Emma teve de se afastar, para conseguir manter a compostura. Fechou os olhos com força, de modo a que as lágrimas não caíssem. «Oh, pai, porque não me contou tudo
isto? Porque não me preparou, para que eu soubesse o que fazer?» No seu coração, conhecia a resposta àquelas perguntas. Ele não a informara, porque não tinha a certeza
de alguma vez ser bem-sucedido. Ele não a tinha preparado, porque nunca esperara morrer tão cedo.
Emma regressou para junto do seu mensageiro.
– Tenho de o resgatar.
– O meu patrão parece que adivinhou o que você queria, porque mandou dizer aquilo que a senhora quer saber. Ele mandou dizer que tem de dar cem libras, por conta,
p’ra garantir que o prémio fica seguro, mais o que der a venda do que está na carroça. Ou, por três mil libras, arruma-se o negócio e fica já com ele.
– Três mil libras!
A quantia elevada chocou-a. Onde poderia arranjar aquele valor? Nunca conseguiria pagá-lo. Até mesmo as cem libras iriam representar uma proporção considerável das
receitas derivadas do leilão.
Percebeu que era esse o objetivo dos raptores. O resgate era demasiado alto para o pai, ou ela própria, poderem liquidá-lo. Porque libertariam Robert, quando mantê-lo
em cativeiro assegurava um fluxo interminável de pagamentos, assim como uma forma segura de vender mercadorias de contrabando?
– É demasiado dinheiro – afirmou Emma. – Diga-lhe isso. Também não serei eternamente alvo de extorsão, se é essa a intenção dele. Para além disso, quero provas de
que o meu irmão está vivo e bem de saúde. Não sou suficientemente idiota para acreditar na palavra de um patife.
– Ora, ora, ele não vai gostar que lhe chame isso. Você tem língua afiada. É melhor pensar no que vai dizer, porque há mais p’ra lhe contar e é coisa boa.
Emma acalmou a sua língua afiada, para que o «mais» fosse revelado.
– Também me mandaram dizer que o resgate é três mil libras, mas pode ser metade disso, se fizer um pequeno favor.
– Que favor?
– Isso, não disseram. Mas você vai saber em breve, é tudo o que tenho p’ra lhe contar.
Provavelmente, o favor consistiria em leiloar mais bens ilícitos. Receberia uma vintena de carroças repletas de mercadorias ilegais, após ter pago o resgate, para
um final em grande.
– Há algo mais que me queira dizer?
O homem anuiu.
– Há um fidalgo que vai àquele sítio que a senhora tem. Mandaram-me avisá-la de que não deve contar-lhe estas coisas – afirmou o homem, inclinando a cabeça e piscando-lhe
o olho, em jeito de cumplicidade. – O meu patrão foi muito firme nisso. Acho que as visitas do fidalgo fizeram o patrão desconfiar de si. Talvez você faça jogo duplo,
é isso? Ele disse qu’esse fidalgo, de há uns tempos p’ra cá, tem-se intrometido com o comércio livre na costa. A sua relação com uma pessoa dessa laia traz preocupação.
A advertência causou um formigueiro no pescoço de Emma. O raptor vigiava-a, espiando também a Fairbourne’s? Aquela ideia fez com que se sentisse muito desconfortável,
como se olhos invisíveis a observassem, mesmo naquele preciso momento.
Pior: o aviso sugeria que Southwaite se preocupava mais com a questão do contrabando do que Emma originalmente calculara. Talvez fizesse parte do seu interesse pela
vulnerabilidade da costa, que Cassandra mencionara. Independentemente das motivações do conde, uma nova razão para este ter revelado tanto interesse pela Fairbourne’s
e por ela própria surgiu, de forma súbita, na mente de Emma.
Talvez Southwaite tivesse estado mais atento ao que se passava no negócio do que Emma imaginara.
Talvez o conde tivesse até adivinhado a existência dos lotes especiais, que chegavam à casa do proprietário da leiloeira, escondidos sob as lonas.
Southwaite poderia não ser apenas um investidor, que procurava garantir a disposição eficiente do negócio. Em vez disso, poderia estar a investigar a Fairbourne’s,
o seu pai e, presentemente, ela própria.
O conde passara horas, mesmo dias, a examinar a contabilidade da empresa, não passara?
Estes pensamentos entristeceram-na, por motivos que não tinha tempo para decifrar naquele momento.
Emma recompôs-se e tentou parecer temível. Fitou diretamente o mensageiro, colocando-o no seu devido lugar.
– Quero saber onde se encontra com esse homem, aquele que o instruiu sobre o que dizer.
Ele recuou, franzindo a testa.
– Eu seria estúpido se dissesse, não seria? S’eu lhe contasse, ninguém me ia querer como mensageiro, é assim qu’eu vejo as coisas.
Emma mergulhou a mão na carteira e retirou alguns xelins.
– Poderia ser o meu mensageiro.
O homem aceitou as moedas com bastante rapidez, mas sorriu presunçosamente, enquanto as guardava.
– Acho que não vai ter muito com que pagar, daqui a nada. Talvez o fidalgo fale contra si e faça com que você vá p’rá prisão, não tarda. É muita gentileza sua, mas
acho que fico com o que tenho agora.
Ganho o suficiente p’ró que preciso.
O homem afastou-se, a assobiar. Enquanto isso, Emma regressou à sua carruagem.
Três mil libras. Se Herr Werner consignasse a coleção do conde e se Marielle encontrasse mais alguns imigrantes com bons artigos, a comissão da Fairbourne’s sobre
o leilão poderia angariar, na melhor das hipóteses, metade da quantia em questão. Contudo, não podia ter a certeza de que os licitantes subissem os preços até aos
seus níveis máximos. Precisava de algo mais, para assegurar que conseguia, pelo menos, as mil e quinhentas libras que lhe seriam pedidas, após ter executado o tal
favor.
O Rafael, propriedade da família, certamente faria pender a balança a favor dela. A totalidade do montante recebido aquando da venda seria para Emma, que não teria
de se contentar apenas com uma comissão. Vendê-lo iria partir-lhe o coração, mas Emma teria de o adicionar ao catálogo.
Contudo, naquele momento, estava mais interessada nas explicações do mensageiro a respeito do seu empregador. Aparentemente, conversavam um com o outro. Talvez o
indivíduo misterioso, que enviara as mensagens, estivesse por perto. O mesmo poderia suceder com Robert.
Apesar de toda a angústia que sentia, essa hipótese entusiasmava-a. Imaginava-se a abrir a porta de uma masmorra, ou de uma cave subterrânea, e a contemplar o espanto
e a alegria do irmão, ao perceber que estava a ser salvo. Imaginava ainda que o traria para casa e lhe mostraria quão bem se saíra na tarefa de preservar o legado
familiar. Finalmente, Robert assumiria o seu papel. Envergando os melhores casacos que possuía, ocuparia o local onde o pai tinha permanecido durante os leilões.
Emma precisava de descobrir se Robert estava praticamente debaixo do seu nariz. Recusava-se a obedecer cegamente ao raptor misterioso, ou às suas exigências de pagamentos
e favores. Não tinha qualquer motivo para confiar nele. Não iria ficar inativa, enquanto o seu irmão era vítima de tal perpetrador.
As emoções agitaram-se dentro de Emma, durante todo o percurso até à sua casa. Entusiasmo misturado com um medo muito real. Desejou poder entregar o assunto a alguém
numa posição de autoridade, que utilizasse mais meios para encontrar Robert, do que ela alguma vez poderia reunir. O rapto era um crime grave. Certamente, se Emma
falasse com um magistrado, explicando o que sabia, alguma ajuda seria mobilizada.
O problema residia no facto de Emma não saber muito acerca do que se passava. Nem sequer sabia a razão pela qual alguém originalmente decidira raptar Robert. Não
devia ignorar a possibilidade de não ter sido uma escolha aleatória.
Robert também poderia ter estado envolvido em atividades ilegais. Se, de alguma forma, ele participara no contrabando que, presentemente, contaminava a Fairbourne’s,
seria mais ajuizado Emma não procurar ajuda. Não podia confiar que outra pessoa fechasse os olhos aos crimes que poderiam estar por trás de tudo aquilo. Seria uma
catástrofe, se Robert fosse libertado de uma prisão só para ser enfiado noutra.
Não, teria de ser ela própria a lançar mãos à obra, se quisesse averiguar a presença de Robert em Inglaterra, ou descobrir a identidade de quem o mantinha cativo.
Pelo menos, devia tentar fazê-lo.
Emma sentiu-se muito melhor após ter tomado essa decisão. Menos indefesa, menos como um peão de pessoas desconhecidas. O medo acalmou, mas isso só lhe permitiu reconhecer
outra emoção que se instalara no seu coração, fazendo com que ficasse ligeiramente nauseada. Pensou em Southwaite e as náuseas pioraram.
Também não podia confiar nele. Com toda a certeza, não devia pedir- lhe qualquer ajuda. Na realidade, Emma teria de rezar para que o conde nunca fizesse perguntas
sobre alguns dos lotes do próximo leilão.
CAPÍTULO 15
– Para onde vamos? – inquiriu Ambury, em voz alta, com irritação.
Dirigira a questão às costas de Kendale.
Kendale não respondeu, continuando a liderar o grupo enquanto caminhavam, a cavalo, pelas ruas apinhadas que ficavam a leste da Hanover Square. No entanto, a sua
postura rígida falava eloquentemente. Aquela jornada tinha um «Objetivo Importante».
– Em breve, tudo será revelado – disse Darius a Ambury. – Espero eu.
– Não sei por que razão tem ele de ser misterioso – resmungou Ambury. – É incomodativo, quando se comporta desta maneira. Não sou um soldado sob o seu comando e
não aprecio mensagens enigmáticas, ordenando-me que compareça às cinco da manhã para ser passado em revista.
Kendale ouviu as queixas. Girou o seu cavalo, até que o focinho deste encarou as cabeças das restantes montadas.
– Não estou a ser misterioso. Qualquer conversa seria difícil, mesmo que caminhássemos os três lado a lado.
– Não seria difícil antes de montarmos – salientou Ambury. – Nem será difícil agora. Antes de você assumir novamente a liderança, exijo saber para onde vamos e porquê.
O humor espinhoso de Ambury surpreendeu Kendale, que olhou para Darius de forma inquiridora.
Darius pensou, e não pela primeira vez, que a obstinação de Kendale provavelmente o tornara um excelente oficial, mas fazia com que fosse, por vezes, um amigo difícil
de tolerar.
– Ele tem a esperança de se encontrar com uma certa pessoa no parque, durante o dia de hoje – disse Darius, tentando justificar a irritabilidade de Ambury.
– Quer dizer que estou a impedir a realização de um encontro romântico? Maldição, Ambury, porque não me disse do que se tratava? Detestaria atrasar os assuntos frívolos
com os quais ocupa a sua vida durante a temporada, ao desviá-lo para uma missão que poderá ser de extrema importância.
– Não me importo com o atraso nos meus planos. Apenas pretendo obter uma pequena indicação de que a missão na qual participamos seja sequer de alguma importância.
Assim sendo, perguntarei mais uma vez para onde vamos, com os diabos?
Kendale fez avançar o seu cavalo, para que este flanqueasse o de Ambury, de modo a poder falar com o amigo de uma forma confidencial. Infelizmente, esse movimento
colocou os três cavaleiros lado a lado, fazendo com que bloqueassem a rua. Darius manteve-se atento, tentando captar a explicação de Kendale, que também seria bem-vinda
para ele próprio. Contudo, em simultâneo, começou a ser atacado por gritos e maldições cada vez mais insistentes, provenientes de cocheiros e carroceiros, que não
conseguiam contornar o grupo a fim de continuarem o seu trajeto.
– Tenho andado a investigar um rumor e creio que descobri algo alarmante – confidenciou Kendale. – Já ouviram falar de uma mulher chamada Marielle Lyon?
– Sim, já ouvi falar dela – respondeu Darius. – É francesa. Uma refugiada que veio para Inglaterra há alguns anos, fugindo do Terror. É sobrinha do conde de Beaulieu.
– Quais são os rumores que circulam sobre essa personagem? – perguntou Ambury, que, naquele momento, já parecia interessado na conversa. As imprecações dos homens
que conduziam os veículos bloqueados começaram a subir de tom.
– Algumas pessoas dizem que é uma charlatã e que não é quem afirma ser – esclareceu Darius. – Isso não será propriamente uma novidade, Kendale. E também é muito
provável que os rumores sejam falsos.
Já procuraram desmascará-la várias vezes, mas todas as tentativas falharam, o que sugere que talvez não exista qualquer máscara para ser removida.
– O facto de os rumores terem origem na própria comunidade de imigrantes franceses interessou-me – explicou Kendale. – Por isso, tenho vigiado essa mulher esporadicamente.
– Isso parece-me injusto – disse Ambury. – Não gosto de pensar que alguém me poderia espiar devido a um simples rumor.
– Não faço tudo isto para satisfazer a minha curiosidade ociosa, nem para brincar aos detetives, como você por vezes brinca, Ambury. Se uma mulher vive em Inglaterra
como refugiada, afirmando ser a sobrinha de um conde, quando, na verdade, é outra pessoa, isso configura uma situação demasiado suspeita para ser simplesmente ignorada.
Como poderiam esconder melhor um espião do que deixando a pessoa em questão à vista de todos, mas com uma identidade falsa, que apelaria à compaixão? – indagou Kendale.
– Se um rumor desse género estivesse associado a si, garanto que também seria alvo de vigilância.
– Graças a Deus que a Inglaterra pode contar consigo, Kendale. Estou seguro de que os nossos ministros rezam pela sua alma todas as manhãs – respondeu Ambury. –
Esta missão foi-lhe atribuída por um deles, ou decidiu cumpri-la por iniciativa própria?
– Sabemos a resposta a essa pergunta e, tendo em conta as nossas próprias atividades não autorizadas, dificilmente poderá objetar com base nesse aspeto, Ambury –
arguiu Darius. – Para além disso, as suspeitas de Kendale são partilhadas por outras pessoas. Alguns membros do governo demonstram uma certa desconfiança em relação
a essa mulher. É possível que não sejamos os únicos a vigiá-la.
– Não detetei outros vigilantes. O que é um descuido – disse Kendale. – Tenho a certeza de que ninguém estava por perto quando ela realizou uma reunião de manhã
cedo, no parque, há alguns dias.
Encontrou-se com a filha daquele homem que sofreu uma queda suspeita, enquanto passeava por um caminho costeiro, no Kent.
Darius olhou para Kendale, com surpresa. Vislumbrava agora para onde a mente do amigo se dirigira nos últimos dias. Naquele momento, a sua própria mente corria,
tentando manter-se a par, e até ultrapassar, a do amigo.
– Então vamos prendê-la por se atrever a falar com outra mulher num parque? – questionou Ambury.
O sarcasmo não produziu qualquer efeito em Kendale.
– Ainda não sabemos o suficiente para legitimar uma ação desse género. Vamos até à residência da outra mulher, para que possam ajudar-me. Temos de patrulhar a propriedade
e a rua, e avaliar qual a melhor maneira de o fazer. Recentemente, tenho vindo a recorrer a alguns serventes de confiança para me auxiliarem nesta missão, uma vez
que não consigo dar conta sozinho de todas as pessoas suspeitas incluídas na minha lista. Porém, mesmo assim, somos poucos para a tarefa.
– Envolveu os seus criados neste assunto? – perguntou Darius. – Está louco? Satisfazer a sua própria curiosidade é uma coisa, mas criar uma rede de justiceiros é
outra, completamente diferente.
– É claro que ele está louco – disse Ambury. – Não pode confiar na discrição dos seus servidores, Kendale. A qualquer momento poderão chegar aos ouvidos de Pitt15
informações acerca das suas iniciativas. Diria mesmo que bem pode esperar uma reunião desagradável com o Secretário de Estado para os Assuntos Internos, durante
a próxima semana.
– Os meus criados são de confiança, mesmo que os vossos não sejam. A minha casa é mais disciplinada do que uma unidade dos Horse Guards16. Mas se qualquer um de
vós for capaz de identificar um só servente com a lealdade necessária, também pode considerar usá-lo, pois é impossível que um ou dois homens assegurem sozinhos
a vigilância de uma pessoa.
Ignorando completamente a reprimenda dos companheiros, Kendale virou o seu cavalo e continuou a avançar. Darius e Ambury seguiram-no, caminhando lado a lado. Os
cocheiros que tinham estado bloqueados começaram a contornar o grupo, lançando as últimas pragas, enquanto os ultrapassavam.
Darius sentiu vontade de estrangular Kendale. O indivíduo agia como se apenas ele fosse capaz de salvar o reino. Aquela investigação, em particular, prometia criar
complicações constrangedoras.
Era inevitável que alguém acabasse por se questionar sobre o acidente de Maurice Fairbourne e a razão pela qual ele estivera no trilho costeiro, à noite. No entanto,
Darius nunca esperara que essas dúvidas fossem levantadas por um dos seus amigos.
– Ele vai fazer com que eu comece a beber – disse Ambury, calmamente. – Ficou afetado pelo facto de ter sido obrigado a vender o seu posto militar e estava excessivamente
ansioso para ajudar a montar a rede de observadores ao longo da costa. O Kendale gosta disto muito mais do que eu. Se não travarmos este último excesso, não tardará
a colocar alguns dos tais servidores de confiança a espiar-nos.
– Penso que ele encontrou uma desculpa para evitar as expectativas sociais associadas ao título que possui, ocupando-se com questões mais sérias.
– Se lhe arranjássemos uma mulher, ele não se importaria tanto com as expectativas sociais. Temos de nos empenhar nessa tarefa, e rapidamente.
Kendale ergueu uma mão, parando a pequena marcha no final da Compton Street. Deslocou o seu cavalo, para poder visualizar os companheiros.
– É a quarta porta a seguir ao próximo cruzamento. Atualmente, a mulher vive lá sozinha, acompanhada apenas pelos criados. Quando ela regressar, seria útil que a
conseguissem manter debaixo de olho, para vermos se ocorrem mais encontros com a Lyon ou com qualquer outra pessoa suspeita.
– Quando ela regressar?
O olhar de Darius desviou-se bruscamente da porta familiar para encarar Kendale.
– A carruagem não se encontra na cocheira desde a madrugada. O anexo esteve vazio durante todo o dia. Espreitei para o seu interior mais uma vez, mesmo antes de
ir ao vosso encontro. Creio que ela fez uma viagem e amaldiçoo-me por não vos ter convocado antes para esta missão, pois assim saberíamos onde ela foi.
– Com certeza foi apenas visitar um amigo, algures na cidade – sugeriu Darius. – Obviamente, deve possuir alguns contactos sociais.
– É possível. Contudo, estive a ponderar se ela não terá ido à propriedade do pai, no Kent. Se assim for, bem, reflitam sobre a situação. Ela encontra-se com a Lyon
e, somente dois dias mais tarde, viaja até à costa – disse Kendale, cuja expressão assumiu uma gravidade bastante militar. – Penso que estas duas mulheres andam
a dedicar-se a atividades pouco recomendáveis.
– Na minha opinião, está a fazer uma tempestade num copo de água e a aborrecer-me enquanto o faz – disse Ambury. – É tudo extremamente vago.
– Não nego que seja vago, mas tem de admitir que também é uma grande coincidência, e muito peculiar.
– Só se realmente aconteceu. Não existe qualquer prova de tal ocorrência, a não ser na sua imaginação – replicou Ambury.
– Por acaso, conhecia o Maurice Fairbourne, o homem que caiu da falésia, enquanto passeava – disse Darius. – Frequentava a leiloeira dele. A propriedade que ele
possuía no Kent não era muito afastada da minha, por isso tínhamos mais um motivo para travarmos conhecimento.
Ambury, que, evidentemente, não fizera a ligação entre a tal outra mulher e Emma Fairbourne, até àquele momento, voltou a sua atenção para Darius, com uma curiosidade
descarada.
– Também conhece a filha dele? – indagou Kendale.
– Já fomos apresentados.
Kendale considerou o que acabara de ouvir, enquanto Ambury lançou a Darius um olhar vagaroso e sub-reptício.
– Presumo que a mulher ainda esteja de luto, Kendale?
Outro olhar malicioso permitiu que Darius soubesse que um dos seus amigos não esquecera as suas inquietações sobre beijar e seduzir uma mulher de luto.
– Sim, está. É por essa razão que esta longa ausência, durante o dia de hoje, me preocupa. Não é muito provável que ela possua uma agenda social preenchida, após
a morte do pai. Até é conveniente, para os nossos planos, que já se tenha encontrado com ela e que tenha também conhecido o pai dela, Southwaite.
Assim, poderá vigiá-la, sem que as suas intenções sejam demasiado óbvias.
– Ora, isso é mesmo conveniente – resmungou Ambury, em voz baixa.
– Concentrarei a minha atenção nela, se insistir, Kendale, embora acredite que as suas suspeitas são o fruto da mente de um guerreiro à procura de uma batalha.
Kendale franziu a testa.
– Se considera que seria errado... ignóbil, por ter uma ligação social prévia com a pessoa em questão, presumo que Ambury poderia...
– Não, é melhor ser eu a tratar do assunto. Estarei menos propenso a interpretar mal os factos, uma vez que já conheço a senhora. Dedicar-me-ei à tarefa de imediato.
Começarei por descobrir se a ausência da carruagem significa que ela decidiu fazer uma viagem. Se for esse o caso, averiguarei para onde foi – ajuizou Darius, enquanto
avançava com o seu cavalo.
– Como fará isso? – perguntou Kendale. – É muito difícil seguir o rasto de uma carruagem desaparecida.
– Só se estiver realmente desaparecida – salientou Ambury, exasperado.
– Não tenha receio, Kendale. Tenho cá os meus métodos – replicou Darius.
O seu primeiro método era o mais fácil. Ia interrogar Maitland, o mordomo. Sem dúvida, receberia garantias de que Miss Fairbourne não estava a fazer algo mais suspeito
do que passar o serão com Lady Cassandra e a sua tia.
15 Referência a William Pitt, um membro do partido conservador, que foi o primeiro-ministro de Inglaterra, de 1783 a 1801, e de 1804 a 1806. (N. do T.) 16 Referência
aos Royal Horse Guards, um regimento da cavalaria britânica, fundado em meados do séc. XVII. No final do séc. XVIII, este regimento participou nos conflitos militares
derivados da Revolução Francesa. (N. do T.)
CAPÍTULO 16
A casa estivera fechada durante mais de um mês. Continha um odor característico a mofo, que implicava ausência e poeira. Quando chegou, Emma abriu imediatamente
algumas janelas, contente por ter algo para fazer, a fim de não sucumbir às suas emoções.
Há quase um ano que não vinha ao Kent. A propriedade abraçava a costa, a meio caminho entre Deal e Dover, onde os Downs17 davam lugar ao Estreito18. Aquela habitação
havia sido o refúgio do pai e não uma residência familiar. Emma nem sequer visitara o local após o falecimento do pai. Em vez disso, o corpo tinha sido levado de
volta para Londres, de modo a realizarem um enterro apropriado, ao lado da sua mãe. Naquele momento, a brisa marítima invadia a cozinha, transportando consigo memórias
das poucas vezes em que acompanhara o pai até ali.
– Vou lavar estas cortinas – disse Mrs. Norriston, enquanto segurava uma delas junto ao nariz. – Quis fazer isso quando o seu pai esteve aqui pela última vez, mas
ele...
Subitamente, calou-se, corou e olhou para Emma, arrependida por ter dito o que não devia.
Mrs. Norriston vivia na povoação vizinha de Ringswold. Assumia, ocasionalmente, o papel de governanta da família, quando o pai de Emma decidia passar algum tempo
na propriedade rural. No caminho, Emma parara na aldeia, para a ir buscar e trazê-la consigo. Na verdade, não precisava de uma criada para a breve visita que tinha
em mente. Queria a companhia de Mrs. Norriston por outros motivos, que começaria agora a abordar.
– Vim até cá numa missão, Mrs. Norriston. Espero que me possa ajudar a ser bem-sucedida.
– Não devo poder ajudar alguém como a menina, Miss Fairbourne. Sou uma mulher simples. Se precisa de mim p’ra cozinhar e limpar, muito bem. Mas uma missão parece
ser coisa de muita importância.
– Certa vez, o meu pai contou-me que a senhora viveu nesta região durante toda a sua vida. É
precisamente uma pessoa como a senhora que me pode ajudar. É que eu pretendo falar com alguns dos contrabandistas que atuam nesta zona da costa, está a compreender?
Pensei que talvez conhecesse alguém que os conseguisse contactar e lhes pudesse transmitir a mensagem de que tenho urgência em falar com eles.
Mrs. Norriston abanou a cabeça, rapidamente.
– Ninguém sabe quem são. E eles preferem que seja assim, entende? É do interesse deles não serem vistos, nem conhecidos.
– Alguns deles são bem conhecidos e os seus rostos são vistos por quem os ajuda. Não sou um oficial de justiça. Não pretendo prendê-los. Tenho a certeza de que existem
pessoas na aldeia que me podem auxiliar. Afinal, quando visitei Ringswold, no ano passado, havia um homem que vendia sabão francês, sentado numa carroça estacionada
na área verde comum.
Pesada e robusta, envergando uma grande touca branca que lhe cobria a maior parte do cabelo grisalho, Mrs. Norriston atarefou-se pela cozinha guardando o queijo,
o pernil e o pão que Emma comprara no caminho. Verificou a despensa, avaliando a existência dos ingredientes essenciais para a sua atividade culinária e cheirou
o conteúdo do frasco que continha as gorduras dos assados.
Emma esperou uns bons cinco minutos, aguardando que Mrs. Norriston dissesse algo. Quando se tornou óbvio que a governanta preferira ignorar o seu pedido de ajuda,
Emma mudou de assunto.
– Sabe a que distância fica a propriedade do conde de Southwaite? É perto de Folkstone, segundo creio.
Mrs. Norriston bateu levemente no queixo, enquanto refletia.
– A uns dez ou onze quilómetros para sul, acho eu. Tem a fama de ser duro, esse homem. Sorri muito, mas só até ficar zangado, p’lo que ouvi dizer – confidenciou
a governanta, pegando depois numa frigideira. – Vou aquecer o pernil para o jantar. O seu cocheiro vai ficar contente por ter um prato de comida quente, acho eu.
Primeiro trato dele e depois chamo-a, quando tiver tudo preparado p’ra si.
Percebendo que havia sido dispensada, Emma abandonou a cozinha e subiu as escadas que conduziam ao piso superior. Reparou, à medida que o fazia, que os seus passos
soavam bastante ruidosos e que as sombras pareciam agitar-se, quando se aproximava.
Emma visitara aquela casa poucas vezes, por isso esta não lhe transmitia a sensação de um lar. No entanto, era impossível ignorar que toda a residência lhe lembrava
a antecâmara dos aposentos do pai, em Londres. A presença de Maurice parecia ter deixado uma impressão naquele lugar, de uma forma que o tempo ainda não apagara.
Talvez o facto de se ter refugiado e isolado ali fizesse com que uma parte dele, algo quase palpável, permanecesse dentro das quatro paredes.
Ao abrir a porta que dava acesso ao quarto que o pai utilizava, sentiu-se invadida por um sentimento de maior proximidade a ele, mais do que alguma vez tivera desde
a sua morte. A emoção não a assustou, nem a fez sentir desconfortável, mas infiltrou-se na alma de Emma exigindo ser reconhecida.
Um pequeno quadro enfeitava a parede norte da divisão e, após ter lá entrado, o olhar de Emma dirigiu-se de imediato para ele. As suas cores vivas não conseguiam
ser obscurecidas pelas sombras que se apoderavam do quarto. Brilhavam, devido à iluminação artística: os vermelhos, como rubis, e o azul, tão puro, como o lápis-lazúli
a partir do qual o pigmento havia sido fabricado.
Emma podia discernir o tema muito claramente. São Jorge, envergando uma armadura da Renascença, matava um dragão de aspeto fantasioso com a sua lança, numa paisagem
montanhosa. Uma mulher bela, usando um vestido antiquado, permanecia afastada observando o seu protetor com amor e gratidão. Não era a única obra de Rafael sobre
o assunto, mas o pai de Emma sempre insistira que era a melhor.
Emma desviou o olhar da pintura, para observar a cama e a cadeira, assim como a pilha de livros existente sobre uma mesa. Sentiu o peito a ficar dolorosamente pesado,
até parecer que uma massa de chumbo se alojara por cima do seu coração. Caminhou até ao quadro e retirou-o da parede. Estava prestes a transportá-lo para fora da
divisão, quando a realidade que a circundava capturou novamente a sua atenção.
Onde estavam os restantes quadros?
Costumavam existir mais duas obras naquele quarto, uma pequena cena mitológica de Botticelli e o retrato de um cardeal, pintado por Sebastiano. O pai vendera a maior
parte da sua coleção, com o intuito de obter os fundos necessários para a deslocação do negócio para a Albemarle Street. Porém, mantivera aqueles dois quadros em
sua posse, porque eram as suas pinturas favoritas.
Emma pousou o Rafael. Espreitou para debaixo da cama e dentro do guarda-roupa, mas não havia qualquer sinal das obras desaparecidas. Desceu até à sala de estar,
para verificar se não teriam sido ali reposicionadas, mas também não as conseguiu encontrar. Na realidade, as paredes estavam completamente nuas.
Não podiam ter sido roubadas, uma vez que o Rafael permanecia no quarto. Ladrão algum levaria os outros dois quadros, deixando para trás o bem mais valioso. Como
tal, o pai devia ter vendido todas as pinturas que possuía, com a exceção daquela.
Emma regressou ao piso superior, para ir buscar o Rafael. Tinha agora a certeza de que o pai tentara ajudar Robert. Talvez a exigência do pagamento para manter Robert
seguro tivesse chegado numa altura em que as cem libras não estariam disponíveis de outra forma. Quanto à obra que restara, Emma sabia por que razão havia sido poupada.
O pai não a vendera porque acreditava que não era verdadeiramente sua. Comprara-a para a mãe de Emma, que, por sua vez, pedira que esta ficasse para a filha, quando
o marido falecesse.
Já no seu próprio quarto, Emma embrulhou o pequeno painel num longo pano de linho e colocou-o no fundo da sua mala. De seguida, passou o serão a decidir como poderia
organizar uma reunião com homens que eram peritos em nunca serem vistos.
Nessa noite, Emma dormiu sozinha na casa. A presença de Mr. Dillon, na cocheira, que ficava próxima, dissipava quaisquer receios, mas não conseguia afastar os fantasmas.
Recordações do pai e do irmão assombravam-lhe continuamente os pensamentos.
Lembrou-se da última vez em que haviam estado ali todos juntos, não muito antes de Robert partir para a viagem da qual nunca regressara. No entanto, agora que pensava
nisso, recordava-se da ocorrência de uma pequena altercação verbal, entre pai e filho. Emma encontrava-se no jardim, quando esta sucedera, mas conseguira ouvir as
vozes exaltadas. No dia seguinte, Robert confidenciara-lhe que, em breve, encetaria uma viagem ao continente, para adquirir a sua primeira coleção por conta própria,
que seria depois vendida na Fairbourne’s.
No entanto, aparentemente, nunca chegara ao seu destino. Nem tentara regressar de Itália, naquele navio que afundara.
Onde teria ido Robert? Será que abandonara sequer Inglaterra? Era isso que Emma queria descobrir.
Amanhã, iria até à povoação e encontraria uma maneira de falar com alguém que pudesse saber a verdade, mesmo que tivesse de recorrer a subornos.
*
Mrs. Norriston já se encontrava na cozinha, quando Emma desceu as escadas na manhã seguinte. A velha mulher serviu-lhe o pequeno-almoço e, em seguida, posicionou-se
ao lado da mesa, enquanto Emma comia. Franzia a testa e os seus olhos cintilavam com desagrado.
– O seu pai sairá da campa p’ra me castigar, se algo de mau lhe acontecer – disse ela. – Por isso, faça tudo como lhe digo, ouviu bem?
Emma assentiu, em jeito de obediência.
– Amanhã, às onze, na aldeia, vá ter à Prince’s Sword. Não use as roupas de luto, nem vá muito bem vestida. Também nada de carruagem, nem cocheiro, pediram-me para
lhe dizer. Deve apenas ir até lá e esperar.
– Sim. Fá-lo-ei. Precisamente como me está a dizer.
– Só uma conversa, como queria. Nada mais. É melhor levar algum dinheiro. Não sei se vai precisar dele, mas é melhor ir prevenida.
– Levarei o que tenho – proferiu Emma, estendendo a mão para pegar na de Mrs. Norriston e pressionando-a gentilmente. – Agradeço-lhe. Não se preocupe com possíveis
castigos do meu pai. O
encontro será em plena luz do dia e no centro de uma povoação. Nada de mal me acontecerá.
Mrs. Norriston não pareceu convencida. Abanando a cabeça, dirigiu os seus passos pesados de volta para a cozinha.
No dia seguinte, Emma vestiu um velho casaco castanho, por cima do vestido rosa, e cobriu a cabeça com um chapéu de palha simples.
Ambos os artigos haviam sido deixados naquele local aquando de uma visita, realizada há mais de um ano. Enquanto os colocava, Emma recordou os odores e os sons presentes
na casa, da última vez que os usara. As memórias afluíam de uma forma tão vívida, que Emma pensou ouvir os passos do pai, caminhando no soalho da divisão adjacente.
Rangendo os dentes, de modo a conter um dilúvio de emoções, Emma saiu de casa e, afastando-se da costa, caminhou cerca de dois quilómetros até à povoação.
As construções ali existentes exibiam estragos variados, causados pela brisa marítima. Algumas precisavam urgentemente de um novo revestimento de tinta e cal, mas
outras pareciam estar bem mantidas. As casas tinham jardins e eram de pequenas dimensões. A maioria era habitada por famílias de pescadores, mas a aldeia também
possuía uma loja e era suficientemente grande para sustentar o negócio de um comerciante ou dois.
A caminhada de Emma pela rua principal foi alvo de alguma atenção passageira. Também gerou umas quantas saudações, de pessoas que a reconheceram, das ocasiões em
que ali passara aquando das visitas ocasionais que, no passado, fizera ao pai. Emma parou no exterior da taberna Prince’s Sword e observou o interior do estabelecimento,
através da janela. Era demasiado cedo para uma taberna ter muitos clientes. As mesas estavam, na sua maioria, vazias. Um homem, sentado perto da janela, olhou para
Emma, enquanto ela o observava, e, em seguida, perdeu o interesse pela presença da mulher desconhecida.
Emma nunca antes entrara numa taberna. Não era um lugar frequentado por mulheres como ela, independentemente da altura do dia. Desejou que o contrabandista tivesse
marcado a reunião no adro da igreja. Contudo, ele não o fizera e, se quisesse descobrir alguma coisa sobre o irmão, Emma teria de entrar ali.
E foi o que fez. Os poucos clientes mal notaram a sua chegada. O proprietário da taberna apenas olhou na direção dela. Emma escolheu uma mesa tosca, afastada da
janela, sentou-se e aguardou que algo acontecesse.
O cheiro inconfundível da cerveja enchia o ar. Misturava-se com outros odores, de alimentos a serem cozinhados. Algures, num local resguardado, era preparada uma
refeição, talvez para ser vendida juntamente com as bebidas. O nariz de Emma contraiu-se. Parecia carneiro estufado.
Passaram-se dez longos minutos, durante os quais Emma permaneceu sozinha, sentada sob o teto de madeira. Então, a porta que dava acesso à rua abriu-se e um homem
entrou na taberna. Ninguém lhe deu muita atenção. Ele caminhou até à mesa de Emma e sentou-se num banco, procurando ficar de frente para ela.
Nas suas reflexões, Emma esperara encontrar-se com um sujeito velho e grisalho, muito rude e de rosto vermelho, devido aos ventos salgados. Em vez disso, o contrabandista
aparentava ter pouco mais de trinta anos e era magro, de uma forma rija, que denotava alguma força. Parecia quase elegante na sua sobrecasaca castanha comprida e
com o seu lenço branco, atado folgadamente em redor do pescoço. O
único aspeto estranho da sua aparência era a pilosidade facial. Um bigode, cuidadosamente mantido, e uma barba curta escondiam a maior parte do rosto. As sobrancelhas,
escuras e espessas, enquadravam os olhos azuis.
– Está sozinha.
A voz calma do homem fazia com que a frase parecesse, em simultâneo, uma afirmação e uma pergunta.
Esta última impressão foi suficientemente forte para que Emma se sentisse compelida a anuir.
– É insensato da sua parte – continuou o desconhecido.
– Não me deixou outra alternativa. Teria entrado aqui, há pouco, se eu trouxesse uma escolta?
– Não deveria tê-lo feito, de qualquer forma. Porém, uma mulher qualquer expôs o seu caso a um grande amigo meu. Por isso, aqui estou, durante alguns minutos. Não
mais.
Emma encarou aquilo como um convite para falar.
– Preciso da sua palavra de honra em como não irá divulgar o que lhe vou contar. Não posso arriscar que alguém numa posição de autoridade descubra isto tudo e...
– A mulher com quem vim falar, somente como um favor, quer impor condições?
Ele riu-se, com moderação.
– Lamento, mas vejo-me forçada a insistir nesse ponto. Tenho de lhe pedir a sua palavra de honra, como... como cavalheiro.
O homem não se riu perante aquela afirmação. Em vez disso, os seus olhos azuis examinaram-na com curiosidade, antes de assentir com a cabeça.
– Sou a filha de Maurice Fairbourne. Ele possuía a propriedade que fica próxima do...
– Sei quem ele era.
– O meu irmão, Robert, desapareceu há dois anos. Penso que talvez tenha sido raptado por contrabandistas.
– Não pelos que atuam nesta zona da costa.
Subitamente, Emma sentiu-se desanimada. Fora estúpida ao alimentar a esperança de que seria simples salvar o irmão. Pensara que as respostas estariam somente à espera
das suas perguntas.
– Tem a certeza? Poderá haver outros contrabandistas, que não o senhor, em busca de dinheiro fácil, obtido dessa maneira.
Ele olhou para Emma, com alguma exasperação, mas também, ponderou ela, com uma certa compaixão.
– Existem alguns desconhecidos que desembarcam aqui, por vezes. É como funciona o mar. No entanto, tal prática é desencorajada.
Emma perguntou a si mesma como o fariam, mas supôs que não deveria pedir esclarecimentos adicionais.
– Então, já ouviu falar sobre este assunto? Sobre o meu irmão, ou se esses desconhecidos estão a manter um jovem cativo? Espero que compreenda a situação. Todos
pensam que ele faleceu, mas agora tenho a certeza de que ele ainda está vivo e é meu dever tentar...
Um gesto feito por ele, uma mão levantada, foi uma ordem abrupta para que Emma se calasse. A atenção do contrabandista desviou-se para a janela. O homem sentado
perto do vidro também fez um gesto, chamando a atenção dos companheiros, enquanto olhava fixamente na direção dos vidros, esticando o pescoço para ver algo que se
passava na rua. Todas as pessoas presentes na taberna, até mesmo o proprietário, pararam o que faziam, como animais alertados para o perigo.
O homem que se encontrava à janela fez outro gesto, de aspeto tranquilizador, e lançou um olhar rápido na direção deles garantindo que estavam novamente seguros.
O contrabandista relaxou.
– Seria uma ironia infernal, se eu fosse parar à prisão por ter ficado comovido com a sua história – disse ele. – Quanto às perguntas que me fez, não ouvi qualquer
rumor sobre um homem mantido em cativeiro.
– Na sua opinião, teria conhecimento de um caso desses? Os contrabandistas comunicam todos entre si?
– Teria certamente conhecimento da situação, se ocorresse perto daqui. Quanto ao resto da costa sudeste, chegam aos nossos ouvidos apenas mexericos, exatamente como
sucede nas vossas salas de visitas. Um homem bebe e fala demasiado, fazendo com que segredos como esse se tornem conhecidos.
Ou não.
Emma odiava ter de fazer a próxima pergunta. A deslealdade da questão nauseava-a, mas era importante compreender o que realmente enfrentava.
– O senhor alguma vez... Gostaria de saber se o meu pai, ou o meu irmão, alguma vez negociaram consigo, ou com os outros contrabandistas da região?
Emma pensou vislumbrar pena nos olhos do seu interlocutor, e isso foi suficiente para lhe roubar a certeza de que ele seria honesto.
– Não me teria importado de fazer negócios com o seu pai. Chegam às nossas mãos várias mercadorias que seriam vendidas mais eficientemente num estabelecimento como
o dele. Porém, o seu pai não transacionava bens com pessoas como nós. Pelo menos, não comigo, nem com os meus rapazes. No entanto, esta costa é muito extensa. Não
posso assegurar que ele não tenha negociado com um dos outros contrabandistas que nela atuam.
Por fim, conseguira aprender algo e as novas informações deram-lhe alguma coragem. De resto, Emma aceitou, tristemente, que teria muito pouco para mostrar, como
resultado daquela pequena aventura.
– Presumo que estar informada de que o senhor não tem conhecimento do assunto já é saber alguma coisa. Deixarei de perguntar a mim mesma se o Robert estaria facilmente
ao meu alcance, mas a definhar, por falta de esforço da minha parte. Agradeço-lhe a gentileza de se ter encontrado comigo. Assim pude descobrir, pelo menos, o suficiente
para me tranquilizar, relativamente a essa hipótese.
Ela levantou-se para sair e o contrabandista começou também a fazê-lo. Mas foi então que Emma reparou noutro homem que tinha entrado na taberna, provavelmente utilizando
uma porta localizada nas traseiras do edifício, perto do local onde ele agora se encontrava. Emma ficou completamente estupefacta, contemplando o recém-chegado.
O olhar que ele lhe devolveu fê-la ter alguma dificuldade em respirar.
O contrabandista olhou por cima do seu próprio ombro. Não começou a correr, como Emma esperava.
Em vez disso, lançou um olhar intenso aos restantes clientes que estavam na taberna e, em seguida, tornou a sentar-se no banco.
– Southwaite – murmurou ele. – A senhora tem uma relação com ele?
– Não! Nem o trouxe até aqui. Juro que não o fiz – proferiu Emma, sentando-se novamente.
Southwaite caminhou em direção à mesa deles. O seu casaco de montar azul contrastava fortemente com as roupas simples dos outros homens e a arma alojada, visivelmente,
sob a peça de vestuário não podia passar despercebida. Os clientes da taberna ergueram-se, abandonando o local rapidamente. Até mesmo o proprietário decidiu apanhar
um pouco de ar fresco, no exterior.
O conde anunciou a sua presença enfaticamente pela maneira como se colocou, de um modo ameaçador, ao lado da mesa. Olhou para o contrabandista.
– Tarrington.
Tarrington apenas anuiu, num gesto de reconhecimento.
Eles conheciam-se.
– O que está a fazer aqui, Miss Fairbourne? – perguntou Southwaite.
– Estou à espera de que um estufado de carneiro acabe de ser cozinhado.
Tarrington sorriu, perante aquela resposta provocadora. Southwaite não a considerou engraçada, de todo, e voltou o seu olhar inquiridor para ele.
Emma esperava que toda a sua história fosse revelada, de imediato. Naquele momento, Tarrington encontrava-se numa situação bastante má. Se Southwaite o conseguia
reconhecer, era provavelmente um contrabandista célebre. Emma temia que ele sempre fosse parar à prisão, por ter deixado que aquela história triste o comovesse.
Para sua surpresa, Tarrington enfrentou firmemente o olhar de Southwaite e permaneceu calado.
– Vejo que existe honra entre os ladrões – disse Southwaite.
Tarrington sorriu de novo.
– Não existem ladrões aqui. Somente um homem, à procura de cerveja, e uma mulher bonita, à espera de um estufado, que transportará para casa – disse, olhando na
direção da rua. – Penso que devia sair da mesma forma que entrou, com pistola, ou sem pistola, e abstendo-se de me levar consigo. Não gostaria que o grande afeto
que os meus rapazes sentem por mim o colocasse em perigo.
– Não vim aqui para o encontrar – argumentou Southwaite, virando-se depois para Emma. – Se me der a honra, Miss Fairbourne, acompanhá-la-ei no caminho de regresso
a casa.
Emma não queria que Southwaite a acompanhasse até à propriedade. No entanto, apesar de toda a cortesia com que fora proferida, aquela frase não era, de modo algum,
um pedido. Emma permaneceu sentada durante alguns instantes rebeldes, tentando inventar uma forma de sair daquela situação.
Tarrington assistia, divertido, ao que estava a suceder. Ele não iria quebrar a sua palavra de honra e divulgar a conversa que haviam tido, mas também não iria intervir
junto de Southwaite a favor de Emma.
– Transportá-la-ei para fora deste estabelecimento, se tiver de o fazer – avisou Southwaite. – Porém, será tudo muito mais digno, se me obedecer voluntariamente.
Southwaite não tinha o direito de esperar qualquer tipo de obediência da parte dela. Emma quase lhe disse isso. Contudo, o ar ficara pesado devido à raiva do conde
e não era evidente quanto tempo os rapazes de Tarrington permaneceriam na rua.
Emma ergueu-se. Southwaite deu-lhe o braço, apertando-a firmemente. Conduziu-a para as traseiras da taberna e através de uma porta, que dava acesso ao exterior.
O conde obrigou Emma a descer a rua, até ao local onde o seu cavalo aguardava.
– Prefiro caminhar – disse ela, puxando o braço, para que este ficasse livre.
Como resposta, Southwaite levantou-a no ar e colocou-a na sela.
– Não se mexa.
Emma não ousou movimentar-se, porque estava precariamente empoleirada no cavalo, sentada de lado.
De repente, o conde posicionou-se atrás dela, montando fora da sela, com o peito a pressionar o ombro de Emma. Os braços de Southwaite rodearam-na, assim que ele
segurou as rédeas.
– Eu posso andar – reclamou ela. – Pare com isso agora mesmo.
– Quando estivermos fora da aldeia, poderá caminhar à vontade – disse o conde, fazendo com que o cavalo assumisse um trote. – Neste momento, não quero ouvir nem
mais uma palavra de objeção, Emma.
Nem uma só palavra, se souber o que é bom para si.
Emma tentou inclinar-se, de modo a minimizar o contacto.
– Não irei objetar, mas não por causa dos seus avisos. Não o irei fazer porque tenho outras coisas para dizer. O senhor conde continua a revelar-se um interveniente
extremamente incómodo. Agradeço à Providência o facto de ser o único conde que já tive a infelicidade de conhecer, se tais presunções são...
– Também seria prudente da sua parte não me chamar presunçoso, a menos que esteja ansiosa para ver exatamente o quão presunçoso um conde pode ser.
– Então encontrarei outros adjetivos apropriados. Despótico. Convencido. Arrogante...
Emma queimou os ouvidos de Southwaite com todos os descritivos que conseguia evocar, enquanto o cavalo os levava para longe da povoação.
17 Cordilheira de natureza calcária, localizada no sudeste de Inglaterra, que se estende de oeste para leste, desde a fronteira entre Londres e Surrey até às falésias
brancas de Dover. (N. do T.) 18 Referência ao estreito de Dover, o ponto do canal da Mancha em que a distância entre Inglaterra e França é menor. (N. do T.)
CAPÍTULO 17
Southwaite só permitiu que Emma andasse a pé, quando já se encontravam bastante afastados da povoação. No entanto, ela teve de exigir por duas vezes que o conde
o fizesse, antes de conseguir obter qualquer resultado. Finalmente, Southwaite parou o cavalo e ajudou-a a deslizar para fora da sela.
O braço do conde cruzou o corpo e o peito de Emma, com o propósito de apoiá-la, até os seus pés tocarem no chão.
Emma equilibrou-se e tentou esquecer a intimidade esmagadora de ser envolvida por Darius.
– Agora pode seguir o seu caminho, Lord Southwaite. Não há vivalma à vista, por isso estou completamente segura.
Emma avançou pela estrada, esperando que ele a ultrapassasse.
Southwaite não o fez. O cavalo progredia devagar, ao lado de Emma, enquanto o seu dono proporcionava, silenciosamente, a companhia que havia oferecido. Contudo,
o ar permanecia pesado, devido ao humor sombrio do conde e Emma sentia-se mais vulnerável do que protegida.
A caminhada de regresso a casa pareceu-lhe mais longa do que a realizada anteriormente, para atingir a aldeia. A força que pairava atrás dela apenas explicava parcialmente
essa diferença. O ressentimento perante a sua impotência relativamente à situação de Robert alimentava a ira que Emma sentia.
Conquistara muito pouco, mediante a conversa com Tarrington, e este último destruíra a sua secreta esperança de descobrir o paradeiro de Robert.
Uma pequena fantasia, acerca de um salvamento destemido, fora representada na sua mente, durante os últimos dias. Que simplória havia sido, ao acarinhar um sonho
tão infantil. Na verdade, Emma não tinha qualquer alternativa, a não ser obedecer às ordens dos raptores, tentando encontrar o dinheiro necessário para pagar o resgate
e esperando que tudo corresse da melhor forma possível, após o pagamento ser efetuado. O seu bom senso revoltava-se contra o facto de Emma ser apenas um peão naquele
jogo.
Emma parou, nos limites da propriedade do pai, virando-se para Southwaite.
– Obrigada.
Tentou fazer com que a sua voz transmitisse uma dispensa firme. O conde optou por não ouvir essa mensagem. Enquanto Emma caminhava em direção à casa, o cavalo manteve
o ritmo, atrás dela.
O rosto de Mrs. Norriston apareceu na ombreira da porta. O seu olhar saltou de Emma para o cavalo que a seguia e concentrou-se depois no homem que o montava. Com
um rubor profundo, ela correu para Emma, desculpando-se.
– Não sabia como negar a pretensão do fidalgo. Ele disse que, se lhe acontecesse algum mal a si, eu também seria culpada.
– O que o levaria a pensar que poderia acontecer algum mal? Eu poderia ter andado a passear pela minha propriedade e nada mais.
Mrs. Norriston baixou o olhar, até encarar o chão.
– É possível qu’eu tenha dito qu’a menina estava numa reunião. E é possível qu’eu tenha contado qu’a menina queria falar com contrabandistas. Fiquei com medo. Não
consegui pensar em maneiras de não dizer as coisas.
– Com franqueza, Mrs. Norriston, não devia ter divulgado as minhas intenções. Nem devia ter ficado assustada, apenas porque um homem teve a sorte de nascer como
o herdeiro de um importante aristocrata.
Ele só lhe disse que eu estava em perigo com o intuito de obter o que desejava.
Parecendo bastante arrependida, Mrs. Norriston fez uma ligeira vénia, na direção do cavalo, e, em seguida, desapareceu no interior do edifício. Emma seguiu-a, fechando
a porta na cara do conde, que estava a desmontar. Se Southwaite não compreendesse aquela dispensa, era estúpido, para além de arrogante.
Emma entrou na sala de estar. Ainda não tinha sequer desatado a fita do chapéu, quando começou a ouvir as pancadas de Southwaite na porta principal. Ignorou o chamamento.
O conde bateu com mais força, e mais lentamente, num ritmo constante, que refletia a sua insistência, bem como a sua irritação.
Bem, Southwaite podia permanecer lá fora, durante todo o dia, se assim o entendesse. Emma preferia ir para o inferno a deixá-lo entrar. O conde não tinha o direito
de continuar a inter...
Para seu horror, viu que as saias de Mrs. Norriston flutuavam em direção à porta, passando pela sala de estar. Antes que Emma tivesse a oportunidade de proibir qualquer
ação, Mrs. Norriston abriu novamente a porta, cumprimentando o grande senhor, como a boa servente que era.
As botas dirigiram-se para a sala de estar, onde Emma se refugiara. O humor sombrio de Southwaite precedeu-o na entrada para a divisão, como um vento maléfico.
Quando o conde, finalmente, escureceu a ombreira da porta, exibia uma aparência extremamente severa. Também grandiosa, tinha de admitir, embora essa constatação
contribuísse pouco para apaziguar a irritação de Emma, relativamente a Southwaite, ou relativamente a si própria, por sequer notar o quão atraente ele estava. Ainda
assim, reconheceu, com algum ressentimento, que o conde parecia muito belo, no seu casaco de montar e botas de cano alto, e com o cabelo um pouco desalinhado, devido
à brisa.
Southwaite já não olhava para Emma fixamente, mas os seus olhos escuros transmitiam o género de desagrado que apenas os homens pensam ter o direito de sentir.
– Mrs. Norriston cometeu um erro, ao permitir que entrasse, por isso faça o favor de sair – disse Emma.
– Primeiro, tenho de lhe dizer algumas coisas.
– Muitas vezes, o que tem de ser dito fica melhor por dizer. Tenho a certeza de que é esse o caso, com as palavras que se sente compelido a deitar cá para fora.
– É uma bela lição, ainda por cima vinda de si. Pôde fazer o seu discurso irracional, no cavalo. Agora, tenho de insistir para que me deixe fazer o meu.
– Recuso-me a ouvi-lo. Não pedi que interferisse nos meus assuntos particulares. Hoje não me encontrava numa situação perigosa e...
– A menina não tem noção do perigo a que se sujeitou. Nenhuma. Se outro homem tivesse ouvido falar do pedido da sua governanta, relativo à sua pretensão de realizar
aquela reunião, eu poderia ter sido forçado a utilizar esta arma – disse Southwaite, retirando-a e colocando-a sobre uma mesa. – Toda aquela maldita aldeia está
envolvida no comércio ilegal. É do conhecimento geral.
O conde cruzou os braços e observou-a sem qualquer simpatia. Aquela atitude lembrou a Emma a aparência de Southwaite quando o abordara pela primeira vez, antes do
«Equívoco Escandaloso». Ela não tinha ânimo para ouvir o que ele queria dizer, mas sabia que acabaria por fazê-lo. Com um profundo suspiro de resignação, afundou-se
numa cadeira, colocou de parte a desilusão fulminante perante a aventura frustrada e reuniu toda a força que a sua indignação conseguia produzir.
– Porque quis encontrar-se com um vulgar contrabandista, Miss Fairbourne?
– Não sou obrigada a responder ao seu interrogatório. Não tem o direito de...
– Com os diabos que não tenho. Revelou-se demasiado voluntariosa, desde a morte do seu pai, e a minha tolerância excessiva conduziu a esta situação. Pensou que arranjaria
uma consignação especial, da parte dos contrabandistas, para melhorar o seu maldito leilão? Mais um conjunto de lotes com origem no património de um cavalheiro estimado
e discreto?
O coração de Emma doía-lhe, por bater tão violentamente.
– O que está a insinuar? Não deixarei que insulte o meu pai.
Southwaite soltou um suspiro impaciente.
– As contas são incompletas e vagas por um motivo. Planeava esconder-lhe as minhas suspeitas, mas penso que isso deixou de ser necessário. Não concorda comigo?
Emma permaneceu calada. Inclinou a cabeça para a frente, cerrou os dentes e rezou para que Southwaite fosse simplesmente embora.
O conde não o fez. Continuou no mesmo lugar, dominando a divisão e a própria Emma.
– Parece conhecer pelo menos um contrabandista – disse ela. – Logo, mais um do que o meu pai conhecia, segundo sabemos. Se o meu pai negociava com tais pessoas,
talvez o senhor conde tenha sido o responsável pelo início da atividade em questão.
Ter dito aquilo foi um erro. Durante um momento terrível, a fúria de Southwaite crepitou pelo ar. O
conde afastou-se de Emma e manteve-se imóvel, uma figura rígida e alta, exalando poder e intensidade.
Ela preparou-se para as palavras cortantes que, certamente, iriam surgir.
Em vez disso, Southwaite controlou o que acordara no seu interior. Voltou para junto de Emma, com os olhos a lançarem chamas. Ainda estava zangado, mas conseguira
recompor-se.
– Conheço o Tarrington porque faz alguns trabalhos para mim. É o rei dos contrabandistas desta zona e conhece outros monarcas do mesmo tipo, ao longo de toda a costa.
– Disseram-me que o senhor conde está particularmente interessado na costa.
– Eu e outros. A Marinha Real Britânica não tem navios suficientes para patrulhar a totalidade da nossa costa, ou mesmo a maioria da sua extensão. Até as corvetas
pertencentes ao Departamento de Prevenção permanecem junto dos principais portos. A maior parte da frota naval foi colocada em Portsmouth, a fim de estar pronta
para reagir, se os franceses iniciarem uma invasão. Entretanto, eles podem chegar sob outras formas, mais reduzidas do que uma força de combate. Os espiões entram
com impunidade, tão facilmente como o brandy francês, e várias informações deixam o nosso país, da mesma maneira.
– Está a dizer que são ajudados por contrabandistas ingleses?
– Sim, por alguns. Contudo, fazemos melhor uso dos restantes. Vigiam o terreno e relatam quaisquer atividades que pareçam suspeitas. Neste momento, existe uma cadeia,
abrangendo toda a costa sudeste, composta por esses colaboradores, assim como por pescadores e proprietários de terras.
– E nobres?
– Alguns nobres residem, atualmente, nas suas propriedades costeiras, com o propósito de nos auxiliar.
– O que não é o seu caso.
– Eu dedico-me, juntamente com outros cavalheiros, à coordenação da rede de vigilância e asseguro que os vários elos da cadeia não enfraquecem.
Emma calculou que aquilo significava que Southwaite participara na implementação do sistema de monitorização.
– O que recebem os contrabandistas em troca? A possibilidade de fazerem os seus negócios sem serem perturbados pelas autoridades?
– Não recebem qualquer recompensa, a não ser a satisfação de ajudarem Inglaterra. Se o Tarrington, ou outro elemento do grupo, for apanhado, a sua contribuição poderá
ter um efeito positivo, no sentido de obter alguma clemência, mas tal não foi prometido.
– Porque não? Seria bastante justo que o governo o fizesse.
– Não podemos negociar com ladrões. A lealdade comprada com uma promessa desse género poderia rapidamente ser adquirida pela outra parte, mediante um preço mais
elevado.
Emma concordava que o raciocínio fazia sentido. Porém, perguntou a si mesma se o governo não teria feito qualquer promessa simplesmente porque não estava envolvido
na iniciativa, pelo menos do ponto de vista oficial.
O que mais preocupava Emma era o que aquela atitude revelava sobre a personalidade do conde.
Southwaite não seria minimamente misericordioso para com os contrabandistas, caso os apanhasse em flagrante delito, apesar de estes cooperarem na rede de vigilância
que ele mesmo organizara.
Emma ficou ainda mais desanimada, ao perceber quão rígido Southwaite era, em questões de honra.
Sabia que isso pesava a favor do conde. No entanto, indicava que Darius também não seria indulgente para com Robert, nem para com ela própria. Emma pensou no vinho
escondido nas profundezas do armazém da Fairbourne’s, sob camadas dissimuladoras de lona.
– Daqui para a frente, não deverá voltar a fazer qualquer tentativa para se encontrar com contrabandistas – disse Southwaite, com firmeza. – Alguns deles seriam
capazes de a matar apenas pelo dinheiro que transporta. Não deixe que as boas maneiras de Tarrington a enganem. Será melhor que fique totalmente afastada da costa,
agora que já cometeu o grave erro de ser vista na companhia dele. Esta aventura foi imperdoável, independentemente do que esperava alcançar no final.
Emma apercebeu-se da ambiguidade que Southwaite atribuía às suas motivações. Assumiu que o conde pensava o pior dela, acreditando que a Fairbourne’s tinha uma aliança
com Tarrington. Também percebeu que aquele era o tom de um homem que ainda tinha muito para dizer. As nuvens tempestuosas reapareceram nos limites do humor de Southwaite
e aproximavam-se rapidamente. Os seus ventos enchiam-no de raiva. Emma sabia o que vinha a seguir.
Num dia diferente, poderia ter tentado defender-se, ou desviar a reprimenda do conde recorrendo à sua espirituosidade, indignação ou astúcia. Porém, naquele preciso
momento, estava demasiado deprimida por ter falhado de um modo tão espetacular no que planeara para esse dia. Pior ainda, quanto mais tempo permanecia naquela casa,
mais sentia a presença do pai. O seu odor parecia cercá-la e Emma teve a sensação de que o seu espírito a repreendia, tão claramente como Southwaite. As imagens
do pai invadiam, sem parar, a mente de Emma, distraindo-a do sermão proferido pelo conde.
Darius não conseguia conter uma profunda irritação perante as ações de Emma. Um alívio igualmente profundo tentava apaziguar a sua ira, mas o conde não estava habituado
a ficar calado, quando queria dizer algo.
O cérebro de Southwaite havia ensaiado aquele momento, desde que Maitland abrira a porta da residência londrina e explicara que Miss Fairbourne tinha viajado para
a costa. Maitland parecera preocupado com a deslocação, ou talvez com o facto de Darius a ter descoberto. Nem a informação obtida nem a expressão do mordomo encorajavam
uma interpretação inocente do comportamento de Miss Fairbourne.
Durante o seu percurso até à costa, e pela noite dentro, o conde considerara todos os motivos possíveis para aquela expedição inesperada. Sentiu-se atormentado por
visões ridículas de Emma a desenterrar bens roubados, numa praia. Embora duvidasse que fosse tão ousada, tinha a certeza de que ela não andava a planear algo inofensivo.
A única questão era saber se Emma arquitetara uma linha de ação meramente incauta ou se o que pensava fazer era verdadeiramente perigoso.
Maldição. Devia ter-se dirigido à casa logo de madrugada. O meio-dia havia sido, claramente, uma hora demasiado tardia, para uma mulher como aquela. Graças a Deus
que a governanta revelara toda a história, assim que ouvira o seu título. Mrs. Norriston reagira como se fosse a cúmplice de um crime hediondo, sob a ameaça de um
instrumento de tortura.
Southwaite relatou a Emma grande parte desses acontecimentos, ao mesmo tempo que lhe administrava uma reprimenda severa e muito abrangente. Não referiu a sua preocupação
doentia, mas enunciou os restantes elementos da situação. Os seus argumentos demonstravam que Emma era responsável por muitas decisões erradas. Porém, descrever
toda aquela perseguição só fez com que as suas emoções ficassem novamente vívidas e caóticas, alimentando o fogo que ardia dentro da sua cabeça.
Ao reiterar a menção ao perigo que Emma correra, o conde imaginava o trilho costeiro, do qual o pai de Emma havia caído para a morte, as celas fétidas da prisão
de Newgate, onde as criminosas eram alojadas, e o destino a que poderia ser condenada uma mulher, se estivesse à mercê de homens que nada tinham a perder. Esta última
imagem atuou como um ferro quente, queimando-lhe a mente, e fez com que Darius proferisse várias advertências adicionais.
Emma continuava calada. Permanecia sentada, com as mãos unidas sobre o colo e o olhar fixo no tapete, enquanto as palavras de Southwaite choviam sobre ela. Aquele
silêncio apenas serviu para irritar ainda mais o conde. Contudo, passado algum tempo, Darius começou a considerá-lo bastante perturbador.
A reação que presenciava não era típica da Miss Fairbourne que conhecia.
O discurso de Southwaite começou a soar excessivamente enfático, até aos seus próprios ouvidos.
Perguntou a si mesmo se a maneira como caminhava para trás e para a frente estaria a assustar Emma. O
facto de ela não se defender, evitando que tivessem uma discussão minimamente decente, fazia com que Darius se sentisse, cada vez mais, em desvantagem.
– Não tem algo a dizer, de todo? – perguntou o conde, completamente perplexo com a docilidade de Emma. – Nem uma só palavra?
– O senhor conde tinha tantas para dizer, que pensei ser melhor ceder-lhe o palco.
Southwaite teria preferido que ela dissesse aquilo mais energicamente, em vez de ter proferido aquelas palavras com uma voz tranquila e quase abatida. Inclinou-se
um pouco, tentando observar melhor o rosto de Emma. Com os diabos, ela não estava a chorar, ou estava? Pensou ter ouvido uma fungadela.
Darius amaldiçoou-se a si mesmo. Desanimado, ajoelhou-se ao lado de Emma.
– Perdoe-me. A preocupação pela sua segurança quase me conduziu à loucura e, por essa razão, talvez tenha sido demasiado vigoroso, ao expressar...
O quê? A sua ira? Sim, mas não do género habitual. O seu medo? Talvez, mas não por si próprio, nem exclusivamente por Emma. Receava também uma situação que o pudesse
colocar perante uma escolha terrível.
– A minha inquietação.
Emma olhou para ele. O conde viu lágrimas e tristeza, mas muito pouco que indicasse contrição.
– É bondoso ao preocupar-se tanto comigo, especialmente tendo em conta que não sou da sua responsabilidade.
A declaração transmitia uma repreensão por si só. Dizia a mensagem implícita que, como Emma não era da sua responsabilidade, Darius não tinha o direito de a admoestar
daquele modo, nem mesmo de questionar o seu comportamento.
A essência de Southwaite revoltou-se contra aquela asserção. Afinal, Emma ocupara suficientemente os seus pensamentos e o seu tempo durante as últimas semanas, para
que ele possuísse agora alguns direitos sobre ela, raios. Também continuava envolvido na casa de leilões. O plano que Emma concebera, incluía, sem dúvida, a empresa
e, consequentemente, ele próprio. Ela não podia esperar, realmente, que ele não mostrasse qualquer interesse pelas suas reuniões com contrabandistas conhecidos.
Darius começou a explicar o que pensava, mas os olhos e a expressão de Emma prenderam a sua atenção tão completamente que mais palavras pareceram desnecessárias.
O conde teve a certeza de que Emma já sabia tudo o que ele poderia dizer.
Os seus rostos estavam separados por menos de dois palmos de distância. Emma encontrava-se tão próxima, que o seu hálito doce acariciava a pele de Southwaite. Tão
perto que o conde sentiu as sombras que a oprimiam. Algo tenebroso a sobrecarregava naquele preciso momento. A escuridão ocupava a mente de Emma, mais do que qualquer
coisa que ele pudesse argumentar.
Seu imbecil insuportável. Criticando-se mais violentamente do que havia criticado Emma, Darius retirou o lenço do bolso. Enxugou uma lágrima, que iniciava um trajeto
minúsculo, descendo pela bochecha de Emma, e combateu o impulso de fazê-lo com os seus lábios.
Southwaite não lhe perguntou por que razão chorava. Talvez tivesse assumido que aquela reprimenda, longa e dura, fora a causadora das lágrimas. No entanto, quando
estava ajoelhado junto dela, excessivamente perto, mais próximo do que seria prudente, Emma acreditou ver nos olhos dele o conhecimento de que aquelas lágrimas não
caíam devido à descompostura.
O conde pressionou o lenço, para que ficasse na mão de Emma e ergueu-se. Permaneceu imóvel durante um longo momento, em pé, mesmo ao lado dela, antes de se afastar.
E, com a ausência daquela presença próxima, outras forças a dominaram novamente. Os pensamentos sobre o seu pai evocaram manifestações quase palpáveis do falecido.
Emma sabia que o fantasma não se encontrava no interior da casa. Estava dentro dela própria.
– Não passei muito tempo com ele aqui – ouviu-se a dizer. – Penso que ninguém o fez. Esta casa era somente do meu pai. Nada há aqui que dilua a sensação persistente
da sua presença.
Serviu-se do lenço para secar os olhos.
– Em Londres é diferente, exceto nos aposentos dele.
– Já entrou nesses aposentos muitas vezes, desde que recebeu a notícia do acidente fatal?
Emma abanou a cabeça. Raramente lá ia.
– Estava notavelmente serena no funeral – disse Darius. Em menos de um mês, já se encontrava atarefada, tentando reconstruir a sua vida. Talvez não tenha vivido
verdadeiramente o luto.
– De tudo o que disse hoje, essa foi a frase mais cruel.
– É bastante comum, Emma. Não vivi realmente o luto pela morte do meu pai, até terem decorrido dois anos após a data fatídica. Não é uma emoção que possamos controlar.
Por isso, as pessoas que estão habituadas a comandar podem facilmente cair na tentação de a evitarem.
Emma gostaria de poder afirmar que o conde só dizia disparates, sendo óbvio que ela havia vivido verdadeiramente o luto. Porém, apercebia-se agora de que fugira
à parte pior do processo, ocupando-se com diversos afazeres, quando a dor ameaçava despertar dentro de si. Não quisera reconhecer a emoção assustadora que crescia
no seu interior, desde que tinha chegado àquela casa.
– Será que vou enlouquecer?
– Não. Irá apenas aceitar a verdade dos seus sentimentos.
Emma entendeu o que Southwaite queria dizer, de uma forma que não estaria ao seu alcance, se recuasse uma semana no tempo. Compreendia-o suficientemente bem para
considerar, naquele momento, o que teria sido impensável, até mesmo no dia anterior.
– Quero ver o local em que tudo aconteceu. Sabe exatamente onde foi?
O conde hesitou e, em seguida, anuiu.
– Pode levar-me até lá?
– Para alcançar a aceitação, não tem de se torturar com os pormenores do sucedido.
– Mesmo assim, gostaria de ver o lugar.
Darius não concordou de imediato. Talvez as suas tendências protetoras fossem contra aquele passeio.
– Levaremos a sua carruagem – assentiu, por fim. – Irei falar com o seu cocheiro e dar-lhe instruções para a preparar.
CONTINUA
CAPÍTULO 9
Southwaite aguardava a chegada de ambas no parque, permanecendo de pé, onde a sua carruagem parara, em Rotten Row4. Não aparentava ser um homem que estivesse a tentar
seduzir alguém. Emma pensou que ele parecia mais um homem que acabara de ingerir comida estragada. Embora não visse com bons olhos a eventual existência de provas
de que ele a tentava seduzir, o verdadeiro motivo do interesse revelado pelo conde parecia-lhe bem pior.
Cassandra passeou com eles não mais do que, aproximadamente, quinze metros, até ver uma amiga e desviar o seu percurso na direção daquela. Emma continuou a caminhar,
ao lado de Southwaite, dando dois passos por cada uma das passadas gigantes do conde.
– Está na altura de conversarmos sobre o assunto que motivou a minha primeira visita à sua casa, não concorda, Miss Fairbourne? Sempre que levanto a questão, consegue
desviar o rumo da conversa.
Contudo, o futuro da empresa do seu pai tem de ser decidido. Não me dá qualquer prazer desapontá-la, ou frustrar os seus planos cuidadosamente definidos, mas cheguei
à conclusão de que o negócio tem de ser vendido, o mais rapidamente possível, para o seu próprio bem.
Saiu tudo de uma só vez, como se Southwaite tivesse ensaiado o discurso à frente de um espelho, para garantir que transmitia a sua determinação, tanto no tom de
voz como na expressão.
– Para o meu próprio bem? Ousa tentar articular a sua proposta de forma a que soe como se estivesse a fazer-me um favor? Isso é ridículo, Lord Southwaite. É mais
provável estar a tentar vingar-se pelo constrangimento que experienciou, devido às suas presunções.
– Não conseguirá distrair-me com uma discussão, ao referir esse episódio agora. Desta vez, não irá funcionar.
– Penso que devemos esperar até se ter realizado o próximo leilão, para discutirmos o assunto.
– Não se atreva a tratar-me como um tolo, Miss Fairbourne. Sei o que está a tentar fazer. Após esse leilão, irá planear outro e mais outro. Cada um diminuirá, consecutivamente,
o prestígio da Fairbourne’s.
Não acredito que o Riggles consiga gerir o negócio, como a menina afirma.
– Acredito eu. Ele é muito competente.
– Deveras? Parecia incapaz de responder às perguntas mais simples que lhe coloquei sobre a contabilidade e reagiu como se nunca tivesse ouvido falar de Andrea del
Sarto. Não, já tomei a minha decisão final. Começarei imediatamente a procurar um comprador e o assunto ficará resolvido.
E não havia qualquer hipótese de debate, dizia o seu tom de voz. O aristocrata falara.
– Os lucros irão garantir o seu futuro – disse Darius, para realçar os benefícios do plano que traçara.
Miss Fairbourne reagiu mal às palavras, de uma forma que não podia passar despercebida. Frágeis luzes brancas brilharam nos seus olhos azul-claros. Manchas rosadas
inoportunas invadiram-lhe a pele, outrora impecável.
– Pode vender a sua metade, se o quiser fazer – disse ela. – Na verdade, espero que o faça, para o meu próprio bem, porque está a tornar-se uma praga.
Southwaite parou a meio de uma passada, ao ouvir o insulto descarado. Miss Fairbourne apelidá-lo de praga era verdadeiramente ridículo, vindo de uma mulher que provavelmente
passava várias horas, diariamente, a planear exatamente quão cáustica seria no dia seguinte.
– Devia estar grata por alguém se preocupar consigo – disse ele.
– Céus! Não considera ser suficientemente mau querer arruinar-me a vida, destruir todas as minhas recordações e fazer-me pôr em causa o meu dever? Não piore a situação,
fingindo ser meu protetor. Já revelou a sua verdadeira disposição relativamente à minha pessoa. Eu seria uma idiota, se acreditasse que teve o meu bem-estar em consideração.
Southwaite desejou não a ter visto na rua e não ter combinado aquela conversa num local público. A franqueza e a grande emotividade de Emma Fairbourne não eram minimamente
inibidas pelo facto de se encontrar em público e rodeada de outras pessoas. O conde, por outro lado, tinha uma consciência extrema de que não estavam sozinhos no
parque. Não se sentia suficientemente livre para soltar, ou revelar, a sua irritação crescente, independentemente do modo escolhido para o fazer.
Forçou um sorriso e uma postura informal, para que alguém que os observasse pudesse acreditar que aquela era uma conversa amigável.
– Compreendo que, provavelmente, vê a leiloeira como uma encarnação do espírito do seu pai, Miss Fairbourne. No entanto, a fortuna dele era o negócio e o respetivo
património. Se quer recuperar alguma coisa de valor, se quer ter algum rendimento, a empresa tem de ser vendida.
– Nisso está errado. O meu rendimento virá da própria Fairbourne’s. Na verdade, é a única alternativa que me resta para ganhar algum dinheiro. A venda do negócio
não irá garantir o meu futuro, pelo mesmo motivo que a impede de ser realizada, de todo – explicou. – A metade da Fairbourne’s que o senhor conde não possui não
foi legada a mim, mas sim ao filho mais velho do meu pai. Pertence agora ao meu irmão, Robert.
A teimosia dela provinha daquilo? Era inconcebível que mantivesse aquela posição.
– Sei que o seu pai ainda tinha a esperança de que o seu irmão regressasse. Porém, tem de estar ciente de que isso nunca acontecerá.
– Apenas estou ciente do seguinte: o herdeiro do meu pai é o meu irmão e tenho o dever de preservar a herança do meu irmão até que ele regresse.
Darius controlou a raiva que crescia dentro de si, mas tornava-se mais difícil fazê-lo a cada palavra de Emma. Havia solicitado aquele encontro após ter tido um
longo debate consigo próprio. Concluíra que estava na altura de resolver uma questão simples e, com os diabos, estava decidido a tratar do assunto.
– Está determinada a forçar-me a ser cruelmente direto, Miss Fairbourne.
– Nunca me opus a conversas francas. Aprecio-as.
– Então, dê às minhas declarações o valor que lhes é devido. O seu irmão não regressará. Tem de ir a tribunal, pedir que o declarem morto e tem de reclamar a herança.
Em seguida, a leiloeira será vendida.
Aconselho-a a investir os seus lucros em títulos, para que tenha acesso a um rendimento fixo regular. O
meu solicitador irá providenciar a compra e tratará dos aspetos necessários com o banco.
A expressão dura de Emma suavizou-se progressivamente, enquanto ouvia as palavras de Southwaite.
Ainda antes de o conde ter terminado o discurso, assumiu uma aparência triste e vulnerável. Subitamente, o olhar de Emma brilhou e adquiriu novas profundidades.
Aquele olhar corajoso e direto hipnotizou-o por um instante, durante o qual, mais uma vez, perdeu a raiva que sentira e até mesmo os seus próprios pensamentos. Então,
percebeu que o efeito tinha sido causado por lágrimas, que inundavam aqueles charcos azuis.
Com os diabos, ela ia começar a chorar.
Emma recompôs-se, em vez de sucumbir completamente à emoção. Isso impressionou-o e aliviou-o.
Contudo, naquele momento, estava em desvantagem. Novamente.
Southwaite semicerrou os olhos enquanto a observava, tentando perceber se Emma chamara as lágrimas especificamente para assumir o controlo da situação. Conhecia
demasiadas mulheres que estavam habituadas a fazê-lo. Porém, a luta de Miss Fairbourne com a emoção parecia verdadeira.
Amaldiçoou-se por ter falado de um modo tão severo.
Ela fungou.
– O meu pai nunca pediu que o meu irmão fosse declarado como morto e não me cabe a mim fazê-lo agora, revelando tão pouca fé. O Robert está vivo, tenho a certeza
disso. Sinto-o no meu coração. Sempre o senti. Sei que parece irracional. Até a Cassandra é dessa opinião, mas não me importo. Não reivindicarei a parte da Fairbourne’s
que pertence ao Robert.
Darius não apreciava o que estava prestes a dizer, mas Miss Fairbourne claramente não compreendia o quão vulnerável se encontrava. Tentou que a sua expressão fosse
mais amável do que seriam as suas palavras.
– Posso forçar a venda do negócio. Caso o faça, ficará desamparada se os lucros obtidos em troca da metade do seu pai forem colocados de parte para um herdeiro que
não a menina.
Emma virou os seus olhos, azuis e humedecidos, para ele, chocada.
– Seria cruel a ponto de suprimir o sustento de uma mulher sozinha?
Southwaite enfrentou aqueles olhos tristes. Abruptamente, e de um modo que o irritou, perdeu toda a sua determinação.
Teve de lutar contra o desejo de segurar a cabeça de Emma entre as mãos e beijar aquelas lágrimas até desaparecerem.
– Com o seu pai ausente, o negócio não poderá sustentá-la. Mr. Riggles não consegue assumir as funções dele. Ninguém o consegue fazer. Não permitirei a realização
de um leilão que poderia resultar em fraude involuntária. Para além disso, se não tratarmos da venda, a Fairbourne’s perderá todo o valor que possui em menos de
um ano. Nada restará para si, nem para o seu irmão, se ele realmente regressar.
Emma fungou mais algumas vezes. Cada uma delas parecia sublinhar o quão insensíveis haviam sido as palavras do conde.
– Ouvi tudo o que disse, Lord Southwaite. Agradeço e compreendo as suas preocupações. Assim, aceitarei um compromisso. Direi ao Obediah para continuar com os preparativos
do próximo leilão. Dar-lhe-ei instruções para que este seja tão grandioso quanto possível, a fim de provarmos que o senhor conde está errado.
Não acabara de lhe dizer que não permitiria a realização de outro leilão? Será que Emma não ouvira o que ele dissera, ou simplesmente havia escolhido ignorá-lo?
Um homem e uma mulher aproximavam-se, no caminho de terra batida. Os olhos húmidos de Miss Fairbourne seriam visíveis para qualquer pessoa que a observasse de perto.
Southwaite entregou-lhe rapidamente o seu lenço, para evitar que as secções de escândalos aparecessem repletas de referências ao facto de «Lord S» ter despertado
as lágrimas numa mulher desconhecida, no Hyde Park, a meio do dia.
Emma tentou enxugar os olhos, mas não foi muito bem-sucedida. Aquele olhar líquido continuou a fixá
lo, aguardando a reação do conde ao novo plano.
Maldição.
– Quando pensa que o Riggles conseguirá ter o leilão pronto?
– Daqui a três semanas, creio eu.
O rosto de Emma iluminou-se com alegria e alívio.
– Oh, obrigada, Lord Southwaite, por ser tão bondoso e gentil. Verá o quão bem a Fairbourne’s se sairá com o leilão. Tenho imensa fé no Obediah e o senhor conde
também pode ter.
Southwaite não se lembrava de ter sido gentil. Apenas perguntara...
– Agora, tenho de encontrar a Cassandra.
Emma recomeçou a caminhar. Quase alegremente. Nem uma lágrima à vista.
– Ah, ali está ela – observou, quando as carruagens ficaram visíveis. – Ficará extremamente dececionada por ter estado tão equivocada relativamente às suas intenções.
– Como assim?
– A Cassandra não sabe do seu investimento na Fairbourne’s. Obviamente, assumi que desejava que este permanecesse secreto. Assim, ela... vai considerar isto divertido.
Ela pensa que o senhor conde está a tentar seduzir-me.
– Que ideia mirabolante.
– É, não é?
Miss Fairbourne riu-se, enquanto caminhavam na direção das carruagens.
– Ela nem sequer tem conhecimento do «Equívoco Escandaloso» que ocorreu naquele primeiro dia de entrevistas. A imaginação dela criou esta ideia absurda a partir
do nada.
– Espero que lhe tenha explicado o erro.
– É claro que lhe expliquei, mas ela pensa que sou excessivamente ignorante para ver o que está à frente do meu nariz.
– Lady Cassandra é uma mulher conhecida por apreciar intrigas românticas. Possivelmente, acredita que a restante população mundial também preza esse passatempo.
Como já mencionei, se a vossa amizade se tornar pública, algumas pessoas certamente pensarão que também aprecia o mesmo género de atividades.
Recebeu um olhar penetrante como resposta.
– Estou certa de que pensa estar a ajudar-me com os seus conselhos, Lord Southwaite, mas não gosto de ser afastada dos meus amigos. Por favor, não presuma que possui
tamanha autoridade. Não sou sua irmã.
Com que então Lady Cassandra partilhara aquela história sobre Lydia? Bem, não voltaria a repreender a sua companheira de conversa.
Miss Fairbourne estava certa. Não era sua irmã, nem sequer responsabilidade sua. Não tinha a obrigação de a salvar do que quer que fosse, nem mesmo dos escândalos.
Darius entregou Miss Fairbourne a Lady Cassandra, cujos olhos ansiosos pressagiavam o interrogatório que esperava a primeira, quando ficassem sozinhas. Após um aceno
feliz, feito à janela, e um sorriso, apenas ligeiramente presunçoso, Miss Fairbourne afastou-se.
Darius trepou para o interior da sua própria carruagem. A conversa não correra bem. Nem mesmo a sua franqueza severa fora bem-sucedida junto de Emma. Na verdade,
suspeitava que ela o conduzira exatamente até onde queria, não tendo sequer hesitado enquanto o fazia.
Se quisesse avançar com a venda da Fairbourne’s, obviamente teria de mudar de estratégia. Durante a última semana, aprendera uma coisa ou duas sobre aquela mulher.
Estava confiante de que existiam maneiras melhores, para além do raciocínio e da conversação, de conseguir que Emma Fairbourne se rendesse à sua forma de pensar.
4 Amplo caminho de terra batida, localizado na parte sul do Hyde Park, em Londres. Durante os séculos XVIII e XIX, era um lugar muito frequentado pelos membros da
alta sociedade londrina. (N. do T.)
CAPÍTULO 10
Darius reacendeu o seu charuto e deu-lhe três passas profundas, enquanto ouvia Ambury descrever uma aventura recente. Do outro lado da mesa, Kendale reteve o fumo
do seu charuto e bebeu uma quantidade generosa de brandy.
– Isto é nada mais do que tocar violino enquanto Roma arde5 – resmungou Kendale, interrompendo a história de Ambury. Os seus olhos verdes disparavam as faíscas iradas
que tantas vezes marcavam a sua expressão. Com a mão livre penteou o cabelo escuro, num gesto que fazia quando estava irritado, o que parecia ocorrer muito frequentemente
nos últimos tempos.
– Penso que devia pegar no seu cavalo e passar o próximo ano a subir e a descer a costa, certificando-se de que estamos todos seguros, Kendale. Sei que eu iria dormir
melhor se você o fizesse – disse Ambury.
Kendale não estava absorvido nos seus próprios pensamentos a ponto de não conseguir identificar o sarcasmo do companheiro. O seu olhar transmitiu a desaprovação
que sentia relativamente à atitude despreocupada de Ambury, quando tudo apontava para que forças diabólicas tivessem um certo interesse pelo assunto discutido, tendo
andado muito atarefadas ultimamente. Kendale pertencia à esmagadora maioria dos cidadãos que acreditava que os franceses tentariam uma invasão em breve. Ambury estava
menos convencido desse facto. Porém, tal como Darius, pensava que deviam tomar determinadas precauções. Tinham passado os últimos quatro meses a organizar um sistema
de vigilância na costa sudeste, cujo principal objetivo era, não o avistamento de uma frota francesa mas sim a deteção de invasões singulares insidiosas.
Darius interveio na conversa, para que os dois amigos de longa data não iniciassem uma discussão ali mesmo, no Brooks6.
– Kendale, fizemos tudo o que podia ser feito. É demasiado trabalho para um só homem, ou mesmo para três.
Ou quatro, ou cinco. O facto de o grupo ter diminuído, em relação ao seu tamanho de há vários meses, pairou no ar durante um momento, embora não chegasse a ser verbalizado.
Todos os olhares se encontraram, num reconhecimento silencioso da verdade.
– Forjámos uma cadeia repleta de elos fracos. Também não gosto de partilhar a cama com criminosos – disse Kendale. – Ao contrário de algumas pessoas.
Fez questão de não olhar para as « algumas pessoas» que havia mencionado.
– Só vou para a cama com criminosos do sexo feminino. Faço-o muito raramente e pela melhor das razões – afirmou Ambury. – Penso que o seu humor sofreria uma melhoria
considerável, caso partilhasse a cama com quem quer que fosse, Kendale. Se aperfeiçoarmos a sua conduta, poderá alcançar algum sucesso na iniciativa antes das festividades
de São Miguel7.
Kendale praguejou uma obscenidade rude. Perto do grupo, estavam sentados dois cavalheiros, que discutiam sobre a rebelião na Irlanda. Ao ouvirem a exclamação de
Kendale, cessaram a conversa e ergueram as sobrancelhas.
– Olhe, Kendale, não estamos numa messe de oficiais – advertiu um deles.
Kendale chupou as bochechas para dentro.
– É uma pena.
Ambury ignorou-o.
– Como estava a dizer, antes de Kendale começar a ser mal-educado, a minha pequena investigação em nome da senhora foi concluída com sucesso. Agora, ela tem provas
de que o marido era cúmplice do seu administrador, na tentativa de vender as terras que ela tinha herdado.
– Espero que a senhora conheça um bom advogado, com amigos em Chancery8 – proferiu Darius.
– Fiz algumas recomendações relativas a esse aspeto.
– Também espero que tenha sido bem pago, mas de uma forma discreta, para que o seu pai não ouça que anda a vender os seus serviços, como um vulgar comerciante.
– Muito bem pago e muito discretamente. O conde jamais terá conhecimento do sucedido.
– Em moeda, ou em gratidão?
Ambury não respondeu. Kendale riu-se, de um modo sombrio.
– O que usaram para lhe pagar não manterá os oficiais da justiça afastados.
– Temo que tenha razão. No entanto, naquele momento, pareceu-me muito bom negócio.
Darius deixou Ambury entregue às memórias desse negócio, enquanto Kendale se entregava à eterna contemplação do que quer que fosse que o fazia cismar.
Os seus próprios pensamentos vaguearam até à Fairbourne’s, um destino que se tornara mais frequente nos últimos tempos. Não demorou muito para que tais pensamentos
não se debruçassem sobre leilões, nem sobre investimentos imprudentes, nem mesmo sobre contas vagas, mas sim, mais uma vez, sobre uma mulher com um vestido rosa,
sentada na luz empoeirada, rodeada por objetos em prata brilhantes.
– Está preocupado com algo – disse Ambury, enquanto pedia mais brandy.
– Sim, pressuponho que estou – respondeu Darius. – Se quer saber, estou a ponderar um aspeto de etiqueta.
Kendale riu-se, ironicamente.
– Se alguma vez tiver a oportunidade de dizer o que penso ao meu irmão, a propósito de ele ter partido o pescoço naquela queda, deixando-me preso a este título,
os aspetos de etiqueta serão uma componente em destaque nas minhas queixas.
– Pare de reclamar, como se o homem procurasse torná-lo infeliz ao deixar-lhe uma fortuna e um título.
O Exército ainda tem mais etiqueta do que nós. Logo, está a ser ridículo – criticou Ambury.
– Porém, no Exército, a etiqueta não é inflexível.
– Quer dizer que, no campo de batalha, os cavalheiros podem, por vezes, comportar-se como patifes?
Poupe-me os detalhes.
Ambury virou claramente a sua atenção para Darius.
– Southwaite, nunca encontrei um homem que, como você, conseguisse mostrar ao mundo um comportamento tão perfeito, enquanto, em privado, vive como quer. Pensava
que esse talento implicava nunca ter a necessidade de refletir sobre aspeto algum, relativamente a quando seria recomendável ceder à decência e quando seria preferível
ignorá-la.
– O aspeto a que me referi tem que ver com uma mulher.
– Então, Kendale não o poderá auxiliar. Sou a sua única esperança para obter bons conselhos.
Kendale não discordou. Recostou-se na cadeira e continuou a fumar, retirando-se da conversa. Darius colocou a questão a Ambury, mas sentiu-se ridículo ao fazê-lo.
– É apropriado tentar seduzir uma mulher que está de luto? Recentemente, quase beijei uma.
– Luto completo, ou luto parcial?
– Completo. Mas...
Darius sentia a obrigação de esclarecer melhor a situação, para sua própria defesa.
– Tenho bons motivos para considerar que ela já não está prostrada pela dor. Atrevo-me a dizer que é o género de mulher que não perde o discernimento em momento
algum, nem mesmo durante um período desses.
– Pondero que deve agir com cuidado, como já concluiu. Contudo, deixaria que a senhora expressasse a sua opinião. Ela poderia considerar um beijo muito reconfortante.
Kendale decidiu que, afinal, os seus conselhos eram necessários.
– Se não agiu, Southwaite, foi porque sabia que não o devia fazer. Parece-me que está apenas a tentar justificar a hipótese de a seduzir, quando sabe que seria uma
desonra.
Ambury suspirou profundamente, devido à falta de tato do amigo.
– Ele mencionou um simples beijo, Kendale. Sabia que o Exército o iria endurecer um pouco, mas, com franqueza...
– Se o ato de falar abertamente, em vez de proferir disparates espirituosos sem qualquer sentido, me torna rude, que assim seja. Quanto ao simples beijo, quando
foi a última vez em que qualquer um de nós beijou uma mulher sem ter em vista o objetivo de a conquistar? Com os diabos, já não somos rapazes imberbes.
Darius teria objetado, relativamente a alguns desses disparates espirituosos sem qualquer sentido, mas Kendale estava certo. Ironicamente, a rudeza de Kendale derivava
de uma mente que via o mundo com uma nitidez extrema.
– Com os diabos! – resmungou de novo Kendale, endireitando-se na cadeira e desviando, subitamente, a sua atenção, para longe da mesa na qual se encontravam. – Pensava
que o bastardo tinha ido para norte.
Darius virou a cabeça, mas já adivinhara o que havia despoletado novamente as blasfémias de Kendale. Um homem acabara de entrar na divisão, juntando-se a um grupo
que se encontrava perto da porta. Alto, elegante e deliberadamente antiquado, com o seu colete de seda brocado e a sua trança escura, olhou uma vez na direção deles,
cruzou o seu olhar com o de Darius e reagiu apenas o suficiente para reconhecer a existência daquele grupo afastado que observara a sua entrada.
– Penthurst? – perguntou Ambury, sem tentar ver o recém-chegado. Não recebeu qualquer resposta, o que, por si só, já era bastante informativo.
O olhar de Kendale era de tal maneira cortante, que os seus olhos aparentavam ser capazes de lançar punhais.
– Estou a pensar seriamente em...
– Não, não é uma boa ideia – reprovou Ambury. – Reflita melhor sobre o assunto, como Southwaite e eu aprendemos a fazer.
– Foi um duelo, Kendale – disse Darius, energicamente, ouvindo a sua própria voz, que parecia masculina e tolerante, mesmo quando ele próprio ainda nutria outras
emoções. – Fui o padrinho dele e, por isso, sei que tudo decorreu como devia.
– Foi um homicídio.
– O Lakewood é que lançou o desafio.
Ambury quase parecia entediado, como se a necessidade de recordar Kendale, e ele próprio, daquele facto se tivesse tornado cansativa.
– No entanto, foi uma coisa infernal, sem dúvida. Quem imaginaria que o Lakewood morreria num duelo realizado por causa de uma mulher?
Sim, quem imaginaria. O barão Lakewood não fora um homem de quem se esperasse que perdesse rapidamente a cabeça, ou o coração, devido aos encantos de uma mulher,
quanto mais a vida. Contudo, era isso que tinha sucedido. Consequentemente, haviam perdido um bom amigo e desde então o seu círculo nunca mais fora o mesmo.
Na verdade, tinham perdido dois bons amigos.
Darius sentia a presença de Penthurst na outra extremidade da divisão, lançando uma cortina sombria sobre o pequeno grupo que formavam. Deviam tê-lo dissuadido.
As palavras fluíam de forma inaudível, ecoando as únicas que haviam sido trocadas entre Darius e Penthurst, desde aquela trágica manhã.
Sim, deviam tê-lo feito.
– Maldição! – exclamou Ambury, irritado pelo facto de o seu bom humor ter sido estragado. – Com os diabos, sinto a falta dele.
Não ficara claro a que velho amigo desaparecido se referia.
O cocheiro de Emma veiculou a sua opinião de que aquela visita era imprudente. Enquanto a ajudava a sair da carruagem, manteve-se extremamente atento ao que se passava
atrás de si, observando a multidão que se aglomerava naquela rua estreita, perto da muralha de Londres. Contemplou as vestes grosseiras e encolheu-se, devido às
saudações estridentes e aos gritos ruidosos que ecoavam pelo ar.
– Penso que será melhor acompanhá-la, Miss Fairbourne.
Olhou para o cavalo, com pesar. Bateu-lhe suavemente na garupa, como se estivesse a dizer adeus.
– Vou para o edifício que fica já ali mesmo, Mr. Dillon. Aquele que tem a porta azul-escura. Noto a existência de muitas janelas, várias delas abertas. Talvez deva
permanecer aqui com a carruagem e ficar alerta. Chamá-lo-ei se houver algum problema, ou se precisar da sua proteção.
Mr. Dillon continuou cético. Emma assegurou-lhe que não podia dar-se ao luxo de perder o cavalo, da mesma forma que ele não queria perder a sua empregadora. Antes
que Mr. Dillon pudesse protestar mais, Emma percorreu os nove metros que a separavam da porta azul.
Uma mulher corpulenta, envergando um vestido bege simples, uma touca branca e um avental, abriu a porta. Emma explicou-lhe que queria falar com M. J. Lyon.
Sem se dar ao trabalho de aceitar o cartão de visita oferecido por Emma, a mulher rodou sobre os calcanhares e afastou-se. Emma não sabia se aquela atitude havia
sido uma rejeição ou um convite.
Decidindo assumir que a última hipótese era a correta, seguiu a saia antiquada até uma divisão que devia ter sido projetada como a sala de jantar daquela casa.
Um grande número de mesas atulhava o espaço, enquanto pilhas de papéis preenchiam as estantes.
Algumas mulheres debruçavam-se sobre as mesas, mergulhando pincéis e pequenos aglomerados de trapos em tinas que continham tintas coloridas, aplicando-os, de seguida,
nas gravuras colocadas à sua frente.
Os murmúrios enchiam a divisão, à medida que as mulheres falavam umas com as outras. Emma ouviu o suficiente para saber que eram todas francesas. Algumas vestes
e perucas sumptuosas podiam ser avistadas sob os aventais e as toucas. Calculou que fossem todas imigrantes, aristocratas e outras mulheres de boas famílias, que
tinham abandonado uma França que se tornara perigosa para elas e para as suas famílias.
A estranha guia abandonou-a e seguiu caminho, espremendo-se por entre mesas e cadeiras, até à parte de trás da divisão. Em seguida, proferiu algo e apontou para
Emma. Nesse momento, uma mulher, que até então estivera debruçada sobre uma das mesas, conversando com outra das trabalhadoras, ergueu a cabeça. Marielle Lyon, a
mulher que entregara a carroça a Emma, olhou para a sua visitante, que se encontrava na extremidade oposta da sala.
Marielle abriu caminho até ao local onde Emma aguardava.
– Como conseguiu encontrar-me?
Emma abriu a bolsa e retirou do seu interior a meia-tinta enrolada, que Cassandra havia comprado.
– Uma amiga minha adivinhou quem a senhora seria, através da minha descrição. Assim que lhe disse que as suas mãos estavam manchadas de tinta, ela calculou que a
senhora fosse a mulher por detrás do nome que se encontra nesta gravura.
Marielle fez uma careta.
– Não tinha a noção de que o mundo inteiro sabia que este estúdio me pertence. Tenho de inventar outro nome.
– Ela é amiga de alguns dos seus compatriotas. É por essa razão que sabia a sua identidade, e não pelo mundo inteiro ter conhecimento da sua situação.
– Já a conhecem pessoas suficientes. Talvez até demasiadas. Em breve, as lojas que vendem gravuras não aceitarão as imagens feitas por tantas mulheres francesas.
Uma pergunta, proveniente de uma mesa próxima, a respeito da cor, distraiu-a. Marielle aproximou-se, examinou a gravura em questão e abanou a cabeça, apontando para
o papel.
– Plus ici 9.
Em seguida, regressou para junto de Emma.
– Os trapos aplicam a cor de uma maneira uniforme e eficaz – notou Emma. – Não sabia que o processo era realizado desta forma.
– É o nosso método. Chamamos-lhe à la poupée 10 – respondeu Marielle, fazendo uma pausa, para traduzir. – Com a bonequinha.
Os aglomerados de trapos atados pareciam, realmente, pequenas bonecas. Emma observou aquela arte, enquanto as mãos femininas continuavam o seu trabalho. Perguntou
a si mesma se estariam a fazer algumas gravuras satíricas.
– Então, chegou até aqui – disse Marielle. – Se veio questionar-me sobre aquele homem, já falei com ele. Não creio que ele consiga dizer-lhe alguma coisa de útil.
Ele é... como é que se diz...um lacaio. Uma pessoa que segue as ordens de outra.
– Um lacaio. Não conseguiu que ele lhe fornecesse qualquer tipo de informação?
– Rien 11. Disse-lhe que você queria falar com ele e que lhe pagaria bem para o fazer – respondeu, sorrindo com malícia e parecendo subitamente muito mais jovem.
– A sua casa é muito bela. Calculo que não se importará de gastar algumas moedas, se tal for necessário, estou certa?
– Não, de todo.
Emma mergulhou a mão na sua malinha e extraiu alguns xelins, assumindo que a referência às moedas era uma sugestão, bem como um relato.
– Obrigada pelo seu amável auxílio. Por favor, escreva-me, se ele disser que está disposto a encontrar-se comigo. Diga-lhe que preciso de saber os pormenores do
acordo. Diga-lhe também que quero resolver a questão do grande prémio e solicito instruções sobre como fazê-lo.
Marielle aceitou o dinheiro, sem fazer qualquer comentário. Em seguida, virou-se, para regressar ao trabalho.
– Informá-la-ei, se ele concordar. Penso que o verei novamente. Por vezes, vagueia por aqui.
Fez um gesto na direção da rua.
– Também vim até aqui para falar sobre outro assunto – disse Emma, impedindo que Marielle se afastasse.
Emma explicou a sua ideia. Marielle poderia recomendar a alguns dos seus compatriotas que se dirigissem à Fairbourne’s, caso tivessem bons quadros que quisessem
vender.
– Dar-lhe-ei dez por cento da comissão da Fairbourne’s sobre a venda – afirmou.
Marielle ponderou a oferta.
– Quero vinte por cento. Sem mim, nunca ficará na posse dessas pinturas.
Marielle podia afirmar possuir sangue nobre, mas sabia regatear como uma vendedora de rua.
– Sejam vinte por cento, então – anuiu Emma.
– Tem de prometer sigilo absoluto. Muitos deles são pessoas orgulhosas. Não querem que se torne do conhecimento público que são obrigados a vender o seu património
para poderem comer.
– A Fairbourne’s é conhecida pela sua discrição.
– Alguns chegam durante a noite, atravessando o mar. Não terão quaisquer documentos para o que trazem. Como aconteceu com aquela carroça.
A indignação brotou no interior de Emma, mas expressar qualquer sentimento de insulto seria ridículo, sobretudo na presença daquela mulher. A Fairbourne’s aceitara
a carroça, não é verdade? Quem era ela para começar a ser exigente relativamente aos documentos dos quadros contrabandeados por refugiados franceses?
– Os quadros bons normalmente são acompanhados por um registo da sua proveniência – observou Emma. – Precisarei do histórico de todos os proprietários da obra, até
ao proprietário atual. Os melhores colecionadores sabem que devem pedi-lo e que devem suspeitar de obras de mestres antigos que aparecem de repente, sem referências
nem registos.
– Tal como sucede com determinadas pessoas, quer você dizer.
Marielle encolheu ligeiramente os ombros, num gesto típico da sua pessoa.
– Eh, il est compliqué le faire 12, mas verei o que consigo obter.
Emma abandonou o edifício, esperando ter conseguido fazer um bom negócio com aquela jovem, que, segundo Cassandra, aparecera de repente, sem referências e com uma
ascendência duvidosa. Rezou para que a sua mensagem chegasse ao homem da carroça. Também tinha esperança de que Marielle conseguisse obter algumas obras de boa qualidade
junto dos imigrantes.
No entanto, não podia ter a certeza de que qualquer um dos seus desejos viesse a concretizar-se. Na verdade, poderia nunca mais tornar a ver Marielle, nem ouvir
notícias dela. Também precisaria de elevar o leilão de outras formas e em breve.
5 Expressão idiomática que significa permanecer inativo, ou fazer algo trivial, enquanto ocorre um acontecimento catastrófico. É uma referência à lenda segundo a
qual Nero teria assistido impávido ao grande incêndio de Roma, enquanto tocava um instrumento musical. Em algumas versões, o instrumento em questão é um violino,
apesar de historicamente tal ser impossível. (N. do T.) 6 Clube de cavalheiros, situado em St. James’ Street, conhecido por ser um dos mais antigos e mais exclusivos
de Londres. (N. do T.) 7 Celebração que tem lugar a 29 de setembro, dedicada a S. Miguel e aos restantes arcanjos. (N. do T.) 8 Tribunal civil inglês, cujo poder
ultrapassava o dos tribunais comuns, possuindo também regras mais flexíveis do que estes. (N. do T.) 9 «Mais aqui», em tradução livre. Em francês, no original. (N.
do T.) 10 «Com a boneca», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 11 «Nada», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.) 12 «É complicado
fazê-lo», em tradução livre. Em francês, no original. (N. do T.)
CAPÍTULO 11
Emma não conseguiu ir à leiloeira durante dois dias. Em ambas as manhãs, Obediah enviara-lhe uma mensagem, dizendo que Lord Southwaite viera visitar as instalações
e que Emma devia, por esse motivo, permanecer afastada. Obediah acrescentara às duas missivas alguma preocupação, questionando se seria capaz de desempenhar o seu
novo papel, de uma forma convincente, na presença do conde.
Aparentemente, Southwaite adquirira um certo gosto por conversas sobre a autoria e a qualidade das pinturas que, naquele momento, estavam penduradas no salão de
exposições.
Aborrecida com o atraso na preparação do catálogo, Emma começou a pensar noutros problemas, como a possibilidade de incluir o conteúdo da carroça no leilão. Gostaria
de saber mais acerca dos acordos feitos pelo pai, antes de cometer um crime daquele género. Em particular, queria desesperadamente alguma indicação de que a sua
teoria a respeito do «prémio» estava correta. Se não recebesse mais informações, teria de tomar uma decisão difícil.
Se considerasse necessário leiloar o conteúdo da carroça, então necessitaria de encontrar uma maneira de o fazer, sem que Southwaite suspeitasse do que realmente
estava a acontecer. Não podia evitar que ele visse todo o vinho, quando as noites de pré-apresentação estivessem preparadas, mas, até lá, preferia não ser interrogada
sobre o assunto.
Decidida como estava, de que poderia resolver dois problemas de uma só vez, pediu a Maitland que transportasse os livros e os objetos de arte, da carroça para o
interior da habitação. Desse modo, teria a possibilidade de passar aqueles «dias Southwaite», que estavam a tornar-se irritantemente numerosos, a trabalhar em casa,
no que poderia vir a ser uma parte do catálogo.
– Posso ter arranjado um novo cliente para a Fairbourne’s – anunciou Cassandra, na segunda tarde, enquanto fingiam ter a intenção de encomendar chapéus, numa chapelaria.
Naquele momento, nenhuma delas podia dar-se ao luxo de pagar as excelentes mercadorias da loja em questão, mas Cassandra era sempre recebida com um serviço subserviente,
devido à sua posição na sociedade. Emma não se importava de se divertir um pouco, seguindo de perto Cassandra naquele género de expedições.
– Espero que tenha uma boa coleção – disse Emma, enquanto examinava o conteúdo de um cesto, que transbordava com fitas sumptuosas. – Quem é?
Cassandra estudou uma ilustração de moda, que mostrava um turbante exótico.
– O conde Alexis von Kardstadt, da Baviera.
Emma perdeu todo o interesse pelas fitas.
– Está a falar a sério? Conhece-o? Li que o conde planeava enviar a sua coleção para Inglaterra, para que fosse leiloada, uma vez que, hoje em dia, o território
francês não é propriamente hospitaleiro, mas assumi que a Christie’s...
– A Christie’s também o assumiu. Porém, um representante dele visitou a minha tia, pouco tempo após o conde ter desembarcado, e ela, surpreendentemente, recebeu-o.
Há vários meses que não aceitava qualquer visita. Descobri que o mandatário do Alexis se recordava de se ter encontrado comigo, quando eu viajava com a minha tia.
Aproveitei esse contacto previamente estabelecido e sugeri-lhe que considerasse a Fairbourne’s para tratar da venda da coleção.
Olhou para Emma, de soslaio.
– Receberei dez por cento, estou certa?
– É claro que sim.
Cassandra retirou um chapéu, que estivera a experimentar, e atirou-o para o lado. Ajeitou os caracóis negros, olhando-se ao espelho.
– Infelizmente, terei de resgatar uma das joias que planeava consignar. O colar de rubis, com as pérolas pequeninas.
– Tenta distrair-me com a promessa de raridades, enquanto arrebata um bom artigo, Cassandra. Por que razão tenciona resgatar uma das melhores peças?
– A minha tia precisa de reaver a peça em questão. Foi por esse motivo que o representante a visitou e foi também por isso que ela o recebeu. O Alexis pediu-lhe
que devolvesse o colar. Como tal, ela necessita que eu o leve de volta. É uma joia de família, que o conde não deveria ter oferecido.
Pegou num pano de seda crua brilhante, com um padrão azul e vermelho, e começou a tentar formar um turbante, em redor da cabeça. Uma funcionária da loja apressou-se
a ajudá-la.
Emma esperou até que as elaboradas dobras e reviravoltas fossem completadas e a funcionária abandonasse o local.
– Está a querer dizer que a sua tia e o conde eram... bons amigos?
– Aparentemente eram.
– Mas o conde não é muito mais jovem do que a sua tia? Ele só se casou recentemente.
– Hummmmm. As joias de família, oferecidas impetuosamente num momento de paixão, são agora necessárias para uma jovem esposa.
Cassandra virava constantemente a cabeça, enquanto admirava o turbante, visto de vários ângulos, no espelho.
– Pretende fazer um trocadilho indecente?
Cassandra pareceu ficar surpreendida e, em seguida, desatou a rir.
– Mesmo considerando ambas as interpretações, a minha tia compreende a situação do Alexis, e eu não posso recusar os seus desejos, uma vez que é suficientemente
generosa para permitir que habite com ela.
Assim sendo, preciso de resgatar o colar. Tenho a esperança de que conseguirá uma coleção maravilhosa, que irá atrair a nata da sociedade muito mais do que as minhas
joias o fariam.
Tocou na seda vermelha e azul, com carinho.
– Penso que encomendarei este artigo.
– Lembre-se de que não tem posses para o fazer.
– Quando o mandatário do conde visitar a Fairbourne’s, durante o dia de amanhã, e você o convencer a consignar toda a coleção, terei posses para além das que esperava
obter pelas minhas joias.
– Amanhã!
– Disse-lhe que Mr. Riggles se encontraria com ele amanhã de manhã. Decidi que não deveria haver qualquer atraso. Não queremos que ele fale primeiro com Mr. Christie,
não é verdade?
Não, realmente não queriam que isso acontecesse. O único problema era que Mr. Riggles jamais seria capaz de convencer aquele representante a confiar a coleção do
conde à Fairbourne’s e Emma não tinha a certeza de que a sua própria participação pudesse ajudar, ou mesmo de que esta fosse bem recebida pelo homem.
Pela primeira vez, duvidou seriamente que conseguisse manter a Fairbourne’s aberta. A perda dos contactos e da reputação do pai tivera várias repercussões, grandes
e pequenas, que não podia continuar a ignorar. Ele ter-se-ia reunido com o agente do conde, impressionando-o com o seu charme, conhecimento e educação. Teria acolhido
o homem de uma maneira que lhe estava vedada a ela, como mulher.
E também seria impossível que outro homem assumisse o lugar do pai. Esse facto desanimava-a verdadeiramente. No dia seguinte, até mesmo Mr. Nightingale se sentiria
assoberbado. Tal como o jovem Mr. Laughton, caso ela o contratasse e ele aceitasse. Ele pareceria um rapaz imaturo, esforçando-se por aprender uma língua estrangeira,
naquele tipo de negociações.
O coração de Emma ficava cada vez mais pesado, enquanto a sua mente percorria todas as circunstâncias que dificultavam a possibilidade de ser bem-sucedida. Estas
esmagaram a determinação e a confiança que sentira anteriormente. Ela ia falhar, e o património de Robert estaria perdido para sempre, quando isso acontecesse. E
talvez o próprio Robert tivesse o mesmo destino.
Normalmente, Emma abstinha-se de conjeturar o que poderia suceder no futuro, mas, naquele momento, o seu espírito sombrio estimulou a sua mente a seguir nessa direção.
Se a Fairbourne’s fechasse as portas, a desilusão de Robert, ao regressar a casa, seria um espetáculo horrível de ver, especialmente se as suas próprias insuficiências
tivessem sido a causa do fecho. Mesmo que o dinheiro da venda estivesse à espera dele, precisaria de vários anos para reconstruir o negócio.
Será que a ligação profunda existente entre os dois irmãos conseguiria sobreviver àquela provação?
Emma e Robert tinham sido sempre muito próximos, parceiros na brincadeira e no crime, quando crianças, e mutuamente compreensivos relativamente às mágoas da vida,
à medida que cresciam. Robert consolara-a durante o seu primeiro afeto por um homem que nunca se apercebera da sua existência, e Emma, por sua vez, entendera a desilusão
do irmão, quando o pai o proibira de cortejar uma atriz. Robert compreendera a estranheza de manterem um contacto regular com a alta sociedade, sabendo sempre que
esta nunca os aceitaria como iguais. O pai caminhara com desenvoltura nessa estranha fronteira, mas tanto Emma como Robert haviam sentido intensamente o abismo.
Emma ansiava por uma prova de que Robert ainda estava vivo, podendo, um dia, regressar a casa. As imagens dessa reunião torturavam-na com a sua esperança impossível
de felicidade. Odiava não ter a certeza de que estava correta e temia dar um passo em falso, no caminho perigoso que percorria. Naquele momento, perante a possibilidade
de ser bem-sucedida, pelo menos numa parte do seu plano, sentia um receio extremo de que aquela oportunidade desaparecesse, por não ser capaz de esconder que a Fairbourne’s
sobrevivia apenas como uma sombra do que já fora.
A menos que...
Uma solução possível surgiu-lhe na mente. Transformou-se numa chama ténue, que iluminou a escuridão do seu humor. Tremeluzia, enquanto observava a funcionária da
loja, que fixava o tecido do turbante com alfinetes, ajustando-o à cabeça de Cassandra.
A ideia era bizarra. Nunca iria funcionar. Contudo, não tinha outra alternativa a não ser tentar.
Meu senhor, Escrevo-lhe para informá-lo sobre um assunto de interesse mútuo e alguma urgência, uma vez que é coproprietário da casa de leilões do meu irmão. Tenho
razões para acreditar que Herr Ludwig Werner, um representante do conde Alexis von Kardstadt, visitará a Fairbourne’s amanhã de manhã. Virá discutir a possibilidade
de consignar parte da coleção do conde, para ser vendida no próximo leilão.
Uma coleção deste tipo proporcionará ao evento em questão muita fama e atenção, realçando consideravelmente os artigos nele incluídos.
Mr. Riggles informou-me de que tem visitado frequentemente as instalações da leiloeira, nos últimos tempos. Seria porventura estranho, se realizasse uma dessas visitas
amanhã de manhã.
Embora a presença de um homem do seu estatuto impressionasse o agente do conde, estou certa de que iria considerar o regateio, que provavelmente ocorrerá, de mau
gosto e uma demonstração pública do seu investimento em tais negócios seria, sem dúvida, humilhante.
Estou convicta de que deve obedecer às minhas instruções relativamente a este assunto, ausentando-se, para que evitemos qualquer mexerico ou dificuldade acrescida.
Tenciono estar presente para dar as boas-vindas ao representante, em nome do meu pai. Não me esquecerei de o informar acerca do resultado das negociações.
Tenho a honra de permanecer, meu senhor, uma fiel serva de Vossa Senhoria, Emma Fairbourne A carta chegou na entrega da noite, juntamente com várias missivas provenientes
da costa, que Darius esperava. Colocou-a de parte, para ser lida em último lugar, e dedicou-se aos relatórios de vigilância.
Por fim, quebrou o selo e leu as «instruções» de Miss Fairbourne.
Após ter percorrido o conteúdo, examinou a caligrafia. A mulher que escrevera aquela mensagem possuía uma mão franca, banindo a maioria dos floreados e artificialismos
das suas linhas. As letras fluíam de forma clara, até mesmo elegante, mas não se inclinavam muito. Em vez disso, havia uma tendência para os «h» e os «t» permanecerem
completamente eretos, obrigando as letras que os rodeavam a assumirem também uma posição vertical.
Era exatamente o tipo de caligrafia que seria expectável de Miss Fairbourne.
Como era inesperadamente atencioso da parte dela avisá-lo para se manter afastado, de modo a que o seu investimento na Fairbourne’s permanecesse secreto. Referia,
com toda a razão, que participar no atendimento da leiloeira a um potencial cliente não era algo que um conde devesse ser visto a fazer.
No entanto, a ansiedade de Emma era também inusitada. Caso se preocupasse verdadeiramente com a sobrevivência da casa de leilões, devia implorar para que ele comparecesse
na manhã seguinte, independentemente do comportamento que um conde devesse demonstrar em público. Devia querer que ele ajudasse Riggles a persuadir o mandatário
do conde Von Kardstadt a entregar-lhes toda a coleção, ostentando o interesse de outro aristocrata pela empresa.
Quanto mais pensava no assunto, mais a carta lhe parecia suspeita.
Talvez alguém, que não o representante de um conde, fosse visitar a Fairbourne’s, alguém que não se pudesse cruzar com o sócio do pai dela, de forma alguma. Southwaite
preferiria não ter de desconfiar de Emma, juntamente com o pai, mas se mercadorias ilícitas já haviam transitado pela Fairbourne’s no passado, também o poderiam
fazer no futuro.
Também ignoraria por completo aquela ordem para «obedecer» às instruções. Fiel serva, com os diabos. Miss Fairbourne conseguia ser mais do que ousada. Por vezes,
chegava mesmo a ser imprudente.
Que ela não tivesse consciência da sua própria posição, não o preocupava muito. Contudo, qualquer incompreensão relativamente à posição dele precisava de ser corrigida.
Ainda não decidira como iria proceder, quando pediu que lhe trouxessem o cavalo, na manhã seguinte.
Porém, uma vez na sela, virou na direção da Albemarle Street.
Fê-lo, em parte, porque tinha algum interesse em ver se o agente de um conde realmente pensava consignar uma coleção à Fairbourne’s, nesse mesmo dia. Se o compromisso
não tivesse lugar, precisava de descobrir o que mais Mr. Riggles e Miss Fairbourne conspiravam, que exigia a sua ausência.
Admitia, porém, que seguira aquele rumo principalmente porque não gostava das implicações da carta.
Miss Fairbourne parecia acreditar que, se pretendesse que um certo conde obedecesse às suas ordens, precisava apenas de o comandar.
Os quadros pendurados no grande salão da Fairbourne’s estavam dispostos de um modo diferente, quando Darius chegou, às onze horas. Pelo suor presente nas testas
dos trabalhadores, calculou que a maioria das alterações tivesse acabado de ser feita.
A nova disposição fazia com que o pouco que ali estava parecesse muito. As pinturas não se encontravam penduradas tão alto, nem tão baixo, nem tão perto umas das
outras, como anteriormente e, por essa razão, preenchiam o centro das paredes imponentes de uma forma mais completa. Fora uma solução astuta, que ele poderia não
ter notado, se não tivesse visto os buracos óbvios, há poucos dias.
Riggles pareceu ficar consternado ao ver Darius.
– Senhor conde, não o esperava. Miss Fairbourne informou-me de que hoje não deveríamos receber uma visita sua.
– Decidi passar por aqui, quando estava a caminho de outro lugar. Espero que a minha presença não seja inoportuna.
O sorriso gelado e o silêncio forçado de Riggles sugeriam o contrário.
– Poderei sair do caminho, se estiver a atrapalhar – disse Darius, calmamente. – Fechar-me-ei no escritório e continuarei a analisar os registos da contabilidade.
– Senhor conde, lamento, mas o escritório será necessário muito em breve.
– Então, investigarei o armazém. Quero ver se receberam algum artigo que valha a pena licitar, para adicionar à minha própria coleção.
– Infelizmente, o armazém está demasiado cheio para permitir uma visualização confortável das obras que lá se encontram.
Nesse momento, a porta de acesso ao armazém abriu-se e Miss Fairbourne emergiu. Naquele dia, envergava roupas de luto, de excelente qualidade. O cabelo, comprido
e livre, seguindo a moda da época, caía-lhe em pequenos caracóis e ondas, até aos seios. Estacou, por um instante, ao vê-lo a conversar com Riggles, na divisão ampla,
e, em seguida, juntou-se a eles.
– Penso que está tudo pronto, tanto quanto poderia estar, Obediah – referiu ela.
– Exceto, talvez, a minha pessoa, Miss Fairbourne – mencionou Riggles, mexendo-se com desconforto visível.
Miss Fairbourne riu-se um pouco.
– Continua a ser um homem extremamente modesto, Mr. Riggles. É verdade que esta pode ser uma coleção das mais ilustres que já tivemos, propriedade de um homem famoso
e nobre, mas, em última análise, trata-se do mesmo negócio no qual se tem destacado há vários anos.
Riggles corou e assentiu com a cabeça, sem qualquer firmeza. Parecia envelhecer e encolher a cada momento. Darius duvidava que o mandatário de um conde ficasse impressionado
com ele.
O leiloeiro afastou-se, provavelmente para reunir as suas capacidades persuasivas. Miss Fairbourne inspecionou a nova disposição dos quadros na parede.
– Vejo que escolheu visitar-nos hoje. Assim sendo, é necessário decidir, de imediato, como acomodaremos a sua interferência.
Não existia qualquer ressentimento no seu tom de voz, mas os olhos transmitiam alguma exasperação e a palavra interferência quase pedia uma discussão.
– Quer que o apresentemos como um cliente frequente? Podemos fingir que, por mero acaso, decidiu passar por aqui, esta manhã?
– Penso que essa poderá ser a melhor alternativa.
– Contudo, será enganoso da nossa parte. Penso que seria melhor informá-lo de que o senhor conde é um dos proprietários.
– Isso dificilmente seria melhor do que a sua sugestão inicial.
Emma aproximou-se da parede e endireitou um dos quadros.
– No entanto, considere a hipótese. Se formos honestos, poderá ser mais direto na sua intervenção.
Southwaite aproximou-se de Emma, junto à parede.
– Não vim até aqui para assumir o lugar do seu pai. Esse é o dever de Mr. Riggles e, segundo o que a menina afirma, é também uma tarefa na qual ele tem bastante
experiência.
– Ele raramente negociava sozinho. Mr. Nightingale ajudava-o a lidar com os clientes que desejavam consignar artigos e com os colecionadores que pretendiam licitar.
– Talvez devesse substituir Mr. Nightingale, empregando outro homem.
– Tentei fazê-lo. Lembra-se? Um tal de Mr. Laughton parecia um bom candidato para o lugar, mas, infelizmente, alguém o advertiu e comprou o seu afastamento.
– Laughton era um rapaz simplório. Nunca conseguiria estar à altura do representante de um conde, em termos de perspicácia.
– Porém, o senhor conde certamente consegue.
Emma olhou por cima do ombro, para a entrada. Uma carruagem parava no exterior.
– Por favor, mostre-se impressionado com o nosso conhecimento e a nossa experiência. O leilão será realizado com ou sem esta coleção, cuja consignação ele vem discutir,
por isso é do seu interesse, bem como do interesse do seu investimento, que a Fairbourne’s a consiga obter.
Southwaite começou a explicar que, na verdade, nunca concordara com a realização daquele leilão.
Contudo, Emma não ouviu uma única palavra, porque, entretanto, a porta se abriu e o agente do conde entrou na leiloeira.
Herr Werner não era alto, nem possuía ombros largos, mas a sua arrogância dotava-o de uma estatura considerável. Colocou-se sob o vão da porta, como um homem que
tinha uma noção desmesurada do seu valor. Com caracóis louros, impecavelmente vestido e envergando um casaco enfeitado com galões e botões, inspirava o ar como se
estivesse a avaliar os presentes recorrendo apenas ao olfato.
Os olhos azul-pálidos varreram a divisão e acabaram por pousar em Darius, que foi escrutinado de todas as formas imagináveis. Riggles apareceu do nada, avançou na
direção do visitante e apresentou-se.
O olhar de Herr Werner nunca abandonou Southwaite.
Riggles conduziu o recém-chegado até ao conde.
– Permita-me que o apresente a um dos clientes mais estimados da Fairbourne’s, o conde de Southwaite.
CAPÍTULO 12
Emma tentou distrair-se um pouco, no jardim situado nas traseiras da Fairbourne’s. Deambulou pelos seus caminhos, enquanto tomava nota de tudo o que precisava de
ser feito antes de realizarem a grandiosa noite de pré-apresentação.
Esforçou-se por não imaginar a conversa que estava a ter lugar no escritório do pai. Rezou para que, entre Riggles, fingindo ser o gerente que não era na realidade,
e o conde, desempenhando o papel de cliente desinteressado, o que também não correspondia definitivamente à verdade, conseguissem persuadir Herr Werner a consignar
a coleção.
Sentia-se atormentada pela sensação de que deveria ter permanecido com eles, a fim de participar na discussão. No entanto, Herr Werner mal se tinha dignado a reconhecer
a presença de Emma. Assim que fora apresentado a Southwaite, toda a sua atenção se concentrara no aristocrata e não na vulgar filha de Maurice Fairbourne, a qual,
sendo uma simples mulher, não conseguiria compreender minimamente as preocupações financeiras e artísticas de um conde.
O maior perigo, do seu ponto de vista, era a possibilidade de Southwaite poder ser demasiado honesto, referindo que, naquele momento, tinham poucos artigos com prestígio
suficiente para apoiarem a coleção do conde, se esta fosse vendida no próximo leilão. Ele até poderia desencorajar abertamente Herr Werner. Afinal, Southwaite queria
acabar com a Fairbourne’s e preferiria que o leilão não pudesse realizar-se.
Todos aqueles pensamentos lhe causavam uma agitação considerável no coração. A espera parecia nunca mais ter fim.
Este estado absorto fez com que se sobressaltasse, quando, ao desviar o olhar de alguns arbustos, viu Southwaite, de pé, a menos de seis metros de distância.
As costas do conde descansavam contra o tronco de uma árvore. Ele observava-a, de braços cruzados.
Aquela aparição súbita apanhou-a de surpresa, assim como a expressão de Southwaite, de tal forma que permaneceu estática, apesar de o seu coração começar a bater
fortemente devido à emoção causada pela esperança de que ele trouxesse boas notícias.
Não, essa não era a única explicação para o modo como o coração lhe saltitava no peito. O olhar do conde parecia-lhe invasivo, tal como lhe parecera no armazém,
há alguns dias. Emma não estava habituada a ser observada daquele modo por pessoa alguma, muito menos por um homem belo. Isso assustava-a, mas era também muito excitante.
O tempo passava com uma sensação de estranheza, resultante do silêncio de Southwaite. Emma recompôs-se e forçou os pés a moverem-se. Um rubor aqueceu-a, à medida
que se aproximava do conde.
Rezou para que não fizesse algo revelador do quão insensatas eram as suas reações.
– Para que é que está a olhar? Para o triste estado dos arbustos, ou da sebe de rosas? – Emma espreitou por cima do ombro, como se tentasse adivinhar que parte negligenciada
do jardim era alvo da vigilância de Southwaite.
– Estou a olhar para si. Não finja ignorar a minha atenção.
– Não consigo evocar qualquer motivo para o senhor conde fazer tal coisa, por isso ignoro, de todo, a sua atenção.
O conde acomodou-se mais confortavelmente contra a árvore.
– Existem diversos motivos para o fazer e creio que a menina também os conhece. Porém, neste momento, o meu principal objetivo é decidir se, realmente, é tão astuta
como julgo que seja.
– Nunca fui classificada como astuta. Logo, as suas suspeitas são infundadas.
– Ai são?
Southwaite afastou-se da árvore e avançou até ao sítio onde Emma se encontrava. Olhou para ela, um pouco divertido, mas não totalmente.
– Penso que enviou aquela carta, aconselhando-me a não vir até aqui esta manhã, porque calculou que, na verdade, essa seria a melhor maneira de garantir a minha
presença.
– Sinto-me lisonjeada pelo facto de o senhor conde pensar que sou assim tão esperta.
– Oh, a menina é muito esperta, Miss Fairbourne. Isso ficou claro há já algum tempo.
– Suficientemente esperta para prever que as suas ações seriam deliberadamente contrárias aos meus conselhos? Eu mal o conheço, Lord Southwaite, por isso dificilmente
conseguiria prever tal desfecho.
– Talvez me conheça o bastante, para adivinhar a minha reação, ou conheça suficientemente bem os homens, para supor que as suas instruções não seriam encaradas favoravelmente.
Emma olhou para o edifício.
– Espero que os meus piores receios não se tenham concretizado e tenha conseguido manter o seu investimento secreto?
– Herr Werner só queria a minha opinião sincera acerca da Fairbourne’s, do ponto de vista de um colecionador, e crê que foi isso que recebeu.
Southwaite deslocou-se, de modo a posicionar-se ao lado de Emma, e passearam ambos pelo jardim.
– Ainda bem que vim até aqui, independentemente das suas verdadeiras intenções. O desempenho do Riggles foi tão fraco, que pergunto a mim próprio se ele alguma vez
terá participado numa reunião deste género.
A suspeita pairou no ar, aguardando uma resposta. Emma decidiu ignorá-la.
– A coleção é tão valiosa como dizem?
– É excelente. Um grande Ticiano. Rubens, Poussin, Veronese. Se a qualidade for tão boa como afirmam, será um leilão notável.
– Algum Rafael?
– Não.
Era uma pena. Rafael era muito popular entre os colecionadores.
– Ele reparou que os quadros pendurados na vossa parede não são do calibre dos que ele possui – disse Southwaite. – Iniciou as negociações com Riggles numa comissão
relativamente baixa. Calculou que precisassem muito mais dele do que ele precisa de vós.
Emma realizou alguns cálculos rápidos, para averiguar o rendimento que arrecadariam, potencialmente, se Herr Werner pagasse menos do que o habitual. Também teria
de ceder a Cassandra dez por cento da comissão recebida. O lucro da Fairbourne’s não seria o que ela havia esperado.
– Disse-lhe que aguardávamos a chegada de mais pinturas? – questionou Emma.
– Esperam receber mais quadros?
– Sim.
Emma tomou uma decisão, que evitara até aquele momento.
– Entre outros, esperamos um Rafael. Um de qualidade muito boa, com excelentes registos.
– Riggles não mencionou um Rafael. É curioso.
Uma ligeira pressão sobre o seu braço atraiu a atenção de Emma. Contemplou os elegantes dedos masculinos que nele tocavam, impedindo-a de continuar a caminhar. Em
seguida, o seu olhar subiu até às íris escuras, que a observavam atentamente.
– Será necessário procederem à autenticação da coleção, caso o conde decida consigná-la – disse Southwaite. – Cada lote terá de ser examinado por alguém que saiba
distinguir um Ticiano verdadeiro de uma falsificação. Recuso-me a participar numa fraude.
– Como é óbvio. O Obediah irá analisar cuidadosamente...
– Não, o Obediah não o fará, porque não tem capacidades para tal.
Southwaite libertou-a, mas travou qualquer possibilidade de avanço no caminho, bloqueando-o com o corpo.
– Admiro a sua inteligência, mas recomendo-lhe que, na situação atual, não a use em excesso.
Não se sentindo inteligente, de todo, naquele momento, Emma manteve-se calada. A cabeça de Southwaite aproximou-se da sua.
– Responda-me com clareza, Miss Fairbourne. Existe alguém associado à leiloeira que possua, presentemente, o conhecimento necessário para substituir o seu pai?
Southwaite encontrava-se indevidamente próximo dela. Esse pensamento atravessou a mente de Emma, enquanto o seu nariz estremecia, ao absorver o cheiro do conde.
Esse aroma, masculino, singular e limpo, com vestígios de couro, cavalo e lã, cercou-a como uma manifestação da presença dele, invadindo-lhe os sentidos.
– Sim.
A afirmação saiu, simplesmente, da sua boca, sem ter pensado muito sobre o assunto. Aquela atenção exaustiva não deixava margem alguma para mentiras. De qualquer
forma, Emma já não estava suficientemente lúcida para conseguir enganar, com sucesso, quem quer que fosse.
A cabeça de Southwaite aproximou-se ainda mais e o seu escrutínio sombrio penetrou-a mais profundamente.
– Mas não é Mr. Riggles, presumo.
– Não, não é Mr. Riggles.
– Então, é a menina.
Nem sequer era uma pergunta.
Emma mal conseguiu assentir com a cabeça. Naquele momento, falar estava para além das suas capacidades. Um estranho peso encheu-lhe o peito e a garganta, enquanto
um formigueiro extremamente ativo lhe invadia o rosto.
– Não gosto que me mintam.
Southwaite não parecia irado. Em vez disso, a sua declaração tranquila envolveu-a, como se tivesse sido transportada por uma brisa suave e cálida.
– Eu... isto é, não era realmente uma...
Um dedo pousou nos lábios de Emma, silenciando-a.
– O seu estratagema foi descoberto. Não tente camuflar uma mentira com outra.
O olhar de Southwaite não refletia muito interesse pelo que Emma pudesse afirmar, ou tentar fazer. O
dedo permanecia, quente e firme, sobre a sua boca, fazendo com que os seus lábios tremessem. Em seguida, movimentou-se, numa pequena carícia.
As suas reações surpreenderam-na. Assustaram-na. O seu corpo e a sua essência tornaram-se dolorosamente conscientes da presença dele e daquela carícia. Os arrepios
desceram por ela abaixo, num turbilhão sensual. Aquilo era muito mais poderoso do que as sensações que a haviam confundido anteriormente.
«Ele vai beijar-te.» O pensamento surgiu na mente de Emma um segundo antes do dedo de Southwaite abandonar os lábios dela.
Então, ele beijou-a, como se tal pensamento tivesse sido um pedido.
O beijo encantou-a. Nem sequer pensou em resistir, durante o que lhe pareceu um longo período de tempo. Em seguida, as mãos do conde seguraram a sua cabeça e o beijo
tornou-se mais profundo, fazendo com que uma cascata de maravilhas derrotasse qualquer tentativa de proferir palavras de rejeição.
Southwaite puxou-a para um abraço e uma parte ínfima da mente de Emma soube que ela cometera um erro ao manter-se em silêncio. Devia afastar-se agora, mas, oh, o
calor, o toque humano, assim como a força e o aroma masculinos, persuadiram-na a aceitar a submissão. Os prazeres que fluíam através do corpo de Emma eram suficientemente
intensos para a enlouquecerem, mas a intimidade pungente era o que realmente fazia o seu coração suspirar.
Naquele abraço, não tinha de permanecer sozinha, nem de ser forte. Não havia lugar para tristezas, preocupações ou cálculos, enquanto aqueles beijos pressionavam
os seus lábios, o rosto e o pescoço.
Não existia, de todo, qualquer pensamento, apenas o prazer de sensações novas e estimulantes, idênticas ao calor da primeira brisa primaveril, após um inverno rigoroso.
Emma não lhe devolveu o beijo, nem lhe retribuiu o abraço. Simplesmente aceitou-os, maravilhada pela forma como ele transformara o seu mundo, por alguns instantes.
Somente quando as mãos de Southwaite se movimentaram, transformando o abraço em carícias, é que Emma recuperou a razão. Então, teve consciência de que havia sido
demasiado tolerante e de que aquele homem assumira uma maior concordância do que ela lhe pensara ter dado.
Ainda assim, Emma não conseguia travá-lo. Na verdade, não o queria fazer. As mãos de Southwaite não a chocavam. Em vez disso, provocavam-lhe sensações prodigiosas.
Necessárias. A sua pressão firme criava ligação atrás de ligação, despertando impulsos poderosos, quase frenéticos, dentro dela, especialmente em locais muito profundos
e muito baixos, onde um peso repleto de uma deliciosa expectativa se acentuava cada vez mais.
Southwaite puxou-a para fora do caminho, mas Emma não se apercebeu de como tal sucedera. Apenas reparou nas folhas que pairavam sobre a sua cabeça e no facto de
desfrutarem agora da privacidade oferecida pelos arbustos e pelas árvores. A maioria dos sentidos de Emma estava concentrada nos beijos surpreendentemente íntimos,
nas mãos que vagueavam pelo seu corpo e na maneira como ambos a levavam, novamente, à beira da loucura.
Mais um abraço, que a envolvia. Mais um beijo, que lhe queimava o pescoço. Mais uma carícia, que começava na barriga, para depois subir, lateralmente, até atingir
o peito. Então, ficou verdadeiramente perto do delírio. Sucumbiu, quando Southwaite intensificou o prazer com toques hábeis, que a fizeram ofegar. Rendeu-se a uma
sensualidade voluptuosa, cheia de emoção, de carência e de uma paixão cada vez mais profunda.
Emma pensou que poderia permanecer ali para sempre. Esperava que aquelas sensações nunca terminassem, nem mudassem, mas, quando aceitou esse facto, os impulsos aumentaram,
estimulando-a e exigindo mais. Uma dor opressiva começou a transformar o prazer que sentia numa fome primitiva e carnal.
Emma pressentiu o perigo, mas, ainda assim, não foi ela quem pôs fim à situação. Foi uma voz que o fez, em vez dela, ao chamar o seu nome. O som do chamamento penetrou
o torpor que a dominava.
Reconheceu a voz de Obediah, que a procurava. Southwaite também a ouviu. Aquela voz funcionou como uma bofetada forte, que forçou ambos a recuperarem algum controlo.
Após um último beijo doce, o conde separou-se de Emma, libertando-a. Fitou-a profundamente nos olhos e depois desceu o seu campo visual, para conseguir observar
o corpo. Então, os ângulos do rosto de Southwaite endureceram.
Os dedos do conde tocaram levemente nos folhos pretos que circundavam a gola do vestido negro.
A excitação gloriosa de Emma ainda não desaparecera, mas ela afastou-se, porque, obviamente, tinha de o fazer. Caminhou em direção à luz do sol e procurou o rosto
de Obediah nas janelas visíveis.
– Estou aqui – chamou. – Tem de me contar tudo o que Herr Werner disse.
«Que diabo se passa comigo?» A pergunta invadiu a mente de Darius, enquanto seguia Emma até ao interior do edifício, e continuou presente, enquanto Riggles fazia
um relatório da reunião e respondia às várias questões colocadas por Miss Fairbourne.
O desejo frustrado não era bem aceite pela sua personalidade. Ouviu muito pouco do que Emma dizia a Obediah, em resposta, e teve de fazer um grande esforço para
manter os olhos afastados dela.
«Tenho sido extremamente insensato em relação a ela e, agora, estou a ser um completo imbecil.» Não havia jurado a si mesmo, várias vezes, que iria fechar a Fairbourne’s?
As suas longas deliberações não tinham sempre levado à conclusão de que o devia fazer, ou mesmo de que precisaria de o fazer? Em vez disso, naquele dia, desempenhara
o papel de cavaleiro andante, perante a dama em perigo. Só lhe faltara subornar Herr Werner, para que consignasse aqueles malditos quadros à leiloeira. E, em vez
de estabelecer algumas regras, quando a encontrou no jardim, quase a seduzira. Ainda desejava que Riggles os tivesse deixado sozinhos.
A excitação conduzia os seus pensamentos até lugares que, naquele momento, não precisava certamente de visitar, se é que alguma vez viria a precisar. Também não
podia evitar refletir que ela não parecera muito experiente. E isso era uma má notícia, sob vários aspetos. Por um lado, indicava que um pedido de desculpas era
recomendável, quando não se sentia minimamente inclinado para o fazer. Por outro, sugeria que devia sentir culpa, quando não a sentia, de todo.
O que se passava com ele? Até mesmo naquele momento, em que a conversa entre Riggles e Emma começava a penetrar no seu cérebro, a maior parte da sua mente estava
de novo sob as árvores, ouvindo os arquejos surpresos de prazer que ela soltara e sentindo o calor flexível de Emma contra o seu próprio corpo.
– Escrever-lhe-á – ordenou Miss Fairbourne a Riggles. – Diga-lhe que, após ter pensado melhor sobre o assunto, está disposto a aceitar uma comissão menor sobre a
venda da coleção. Deixe bem claro que conta com a discrição dele relativamente a essa questão. Não podemos permitir que divulgue amplamente o valor que acordámos.
Os outros colecionadores quereriam as mesmas condições, o que nos levaria à ruína.
Emma já não fingia que Riggles geria o negócio, agora que o seu segredo havia sido descoberto. Se o próprio Riggles estranhava aquela mudança de atitude, não o demonstrava.
Assentiu respeitosamente e foi para o escritório, a fim de redigir a carta.
Miss Fairbourne, por sua vez, dirigiu-se para o armazém. Darius seguiu-a, pois existiam palavras que, aparentemente, lhe devia dizer. Contudo, uma porção do seu
ser, desonrada, insaciável e predominante, ponderava como continuar o que havia começado no jardim.
Emma pegou num avental, que estava pendurado num gancho fixado na parede, e colocou-o.
– Confesso que me sinto quase feliz por lhe ter revelado a verdade, Lord Southwaite. Tenho muito que fazer durante as próximas semanas e tem sido bastante inconveniente
sentir-me obrigada a fugir de si, durante as suas visitas.
– O que é que fazia aqui, exatamente, quando o seu pai era vivo?
A pergunta foi colocada pelo seu lado melhor, o que não imaginava aquela mulher despojada das roupas de luto que envergava e deitada, nua, sobre a superfície da
secretária, com os olhos azuis velados pelo êxtase provindo de um prazer intenso, como haviam estado há uns meros minutos.
– Ajudava a preparar o catálogo dos grandes leilões. Lidava principalmente com a prata e os objetos de arte. No entanto, em relação às pinturas, eu consultava-o
sempre. Ele não descartava as minhas opiniões, caso considere a possibilidade de estar a engrandecer as minhas capacidades.
– E a gestão? A contabilidade e as consignações? Também ajudava nessas áreas?
– Não, essas funções eram asseguradas exclusivamente pelo meu pai. Especialmente as consignações.
Eram uma atividade demasiado pública, para que eu pudesse participar – disse Emma, encarando-o com uma expressão severa e exasperada. – Enganei- o, porque preciso
de enganar todo o mundo. Sabe perfeitamente bem que ninguém irá admitir que os meus conhecimentos são suficientemente bons.
Ninguém irá negociar com a Fairbourne’s, se souberem que é a mente de uma mulher a responsável pelas decisões tomadas em todos os domínios da leiloeira, sobretudo
no que diz respeito à autenticidade das obras.
Southwaite sentiu-se satisfeito por Emma não ter estado envolvida nas consignações feitas no passado, dado ter a certeza de que alguns desses lotes haviam sido suspeitos,
na melhor das hipóteses, relativamente à proveniência dos bens.
– Não existe qualquer lei que diga que uma mulher não pode ter bom olho para a arte.
Emma colocou algumas peças de prata sobre a mesa e puxou para fora o maço de papéis que permanecera escondido debaixo da bandeja.
– Oh, balelas. Se lhe tivesse contado a verdade durante a nossa primeira conversa, nunca teria conseguido convencê-lo a não vender o negócio de imediato e a permitir
a realização deste leilão.
– Não recordo que me tenha convencido a permitir coisa alguma. Disse-lhe que decidiria sobre esse assunto após determinar se Riggles conseguia assegurar a gestão
da empresa.
Emma deteve-se e olhou para ele.
– E agora já chegou à conclusão de que ele não é capaz de o fazer. Pois bem, eu sou.
O desespero invadiu os olhos de Emma. Se Southwaite não a tivesse beijado há menos de uma hora, aquelas palavras poderiam não o ter tocado como tocaram. Mas, como
efetivamente a beijara, sentiu-se varrido por um impulso para a tranquilizar, que quase fez com que lhe prometesse tudo o que ela queria ouvir.
O conde fingiu o interesse de um especialista pelos objetos empilhados no armazém, mas, na verdade, apenas via Emma e somente sentia a presença dela. Só queria possuí-la.
– Disse que receberão um Rafael.
A expressão de Emma suavizou-se, devido ao alívio, de uma forma extremamente bela.
– Sim. Um de excelente qualidade.
– Da coleção de um estimado cavalheiro, presumo.
– Muito estimado.
O sorriso conspiratório de Emma iluminou a divisão e o maldito sangue de Southwaite começou novamente a aquecer. O conde estendeu a mão na direção da porta, para
alcançar o trinco, evitando desse modo alcançar Emma, em lugar deste.
– Talvez compre o quadro, se for tão bom como diz.
Southwaite abandonou finalmente a leiloeira, com a sensação de ter prolongado excessivamente a visita. Já estava montado no seu cavalo, quando se lembrou de que
havia permanecido mais tempo com Emma para lhe pedir desculpa pelo que acontecera no jardim, mas esquecera-se de proferir as palavras necessárias.
Ainda bem. Não se opunha a dizer as coisas certas, pelos motivos certos. Porém, desta vez, se tivesse expressado arrependimento, não teria soado honesto, de todo.
Qualquer garantia de se comportar melhor no futuro teria parecido vazia, definitivamente, pois já persistia a dúvida de que conseguisse cumprir tal promessa.
CAPÍTULO 13
– Penso conseguir obter a coleção do conde – confidenciou Emma a Cassandra.
– E marcou um encontro às nove da manhã para me dizer isso? Num parque húmido? Não me atrevo a sair deste caminho, corro o risco de o orvalho estragar a minha saia.
Emma mantinha-as na proximidade da margem do Serpentine13. Cassandra fora, sem dúvida, amável ao concordar com aquele passeio e tinha o direito de estar aborrecida
com a hora marcada. Se tivesse a possibilidade de escolher, Emma teria feito as coisas de um modo diferente.
Caminhavam por um trilho deserto, no Hyde Park. Mesmo enquanto conversava com Cassandra, o olhar de Emma percorria as paisagens que as rodeavam. Àquela hora, podiam
avistar-se muito poucos visitantes e todos pareciam ser homens. A maioria andava a cavalo, aproveitando os espaços abertos para exercitar os seus animais. Perto
dos castanheiros, agrupavam-se vários homens de uniformize, provavelmente preparando-se para o espetáculo da inspeção das unidades voluntárias previsto para o meio-dia.
Próximo do início de Rotten Row, um pequeno grupo de cavaleiros reunia-se para o que parecia ser uma corrida improvisada.
Um deles, montado num grande cavalo branco, atraiu a sua atenção. Seria Southwaite? Emma pensou que o homem assumia uma postura muito semelhante à do conde. Não
conseguia ter a certeza da identidade do cavaleiro, devido à grande distância que os separava, mas a mera possibilidade de se tratar de Southwaite quase a fez tropeçar.
Era muito irritante que não conseguisse sequer pensar nele sem ficar perturbada. Provavelmente também corara, e esperava que Cassandra considerasse que aquele rubor
fora causado pela brisa agreste e pelo exercício. O problema era o facto de que pensar sobre o conde implicava pensar acerca do que acontecera no jardim e isso só
a confundia ainda mais.
Não tinha progredido muito nos seus esforços para analisar o ocorrido e o porquê daqueles acontecimentos. Este último aspeto era o maior enigma. Não podia negar
que apreciara cada beijo, mas não estava confiante de que Southwaite também tivesse sido arrebatado pelo prazer e pela paixão. Ele não era inexperiente, pois não?
Então, não era provável que ficasse hipnotizado pela simples novidade de todo aquele calor e sensações provocados por outro ser humano. Emma suspeitava de que, quando
finalmente conseguisse arranjar a coragem necessária para estudar o motivo por detrás daqueles beijos, não iria gostar muito das conclusões alcançadas.
Entretanto, preferia não o ver.
– Peço desculpa, Emma. Devia alegrar-me com as suas novidades e não estar a reclamar pelo modo como o ar me arrepia. Sempre tive esperança de que fosse bem-sucedida
com Herr Werner. No entanto, confesso que considerei improvável que Mr. Riggles o conseguisse convencer – disse Cassandra.
– Mr. Riggles teve alguma ajuda.
Cassandra baixou a cabeça e olhou para Emma, através das suas pestanas escuras.
– Pensei que tencionava manter em segredo o facto de ser a atual gerente do negócio.
– Não fui eu quem o ajudou. O Southwaite estava a visitar a leiloeira, quando o representante do Alexis apareceu. Creio que a presença de um cliente tão ilustre
tranquilizou Herr Werner.
– Tenho a certeza de que Herr Werner não ousaria permanecer indiferente, se o Southwaite exigisse que ficasse impressionado.
O tom e as palavras de Cassandra nunca falavam bem de Southwaite. Emma ansiava por poder confidenciar-lhe mais sobre o dia em que Herr Werner os visitara, mas seria
embaraçoso descrever como sucumbira, sem um murmúrio de protesto, a um homem de quem não tinha sequer a certeza de gostar. Pior ainda, Cassandra poderia querer começar
a planear o castigo de Southwaite.
– Você realmente não gosta do conde, de todo – disse Emma.
– Devia seguir a minha deixa. O Southwaite é um hipócrita, tal como a maioria dos homens. Por exemplo, todos sabem que tem tido uma série de amantes, mas o conde
certifica-se de que os seus casos amorosos nunca alimentam mais do que rumores vagos. Logo, sente-se livre para criticar os restantes mortais, pelos respetivos escândalos,
quando, na verdade, não é melhor do que eles.
Emma presumiu que Cassandra se referia aos seus próprios escândalos. Cassandra recusara-se a casar-se com um homem que a havia comprometido, quando era apenas uma
jovem. Posteriormente, a alta sociedade registara cada um dos seus desvios, relativamente ao caminho virtuoso que deveria ter seguido durante a vida.
Emma não podia deixar de concordar com aquela avaliação do conde, feita pela sua amiga, mesmo que inexplicavelmente o quisesse defender.
Southwaite afirmara ser um mestre, no que tocava a garantir a discrição e a evitar o escândalo. Não lhe dissera que não fazia coisas escandalosas. Na verdade, tinha
mesmo persuadido Emma a manifestar um comportamento insensato. Ainda assim, arqueara uma sobrancelha ao considerar a amizade existente entre Emma e Cassandra.
– Parece irritada, Cassandra. Alguém foi cruel para si, recentemente? Sabe que tem apenas de regressar à casa do seu irmão para evitar tais dissabores. Tudo será
perdoado, quando ele a aceitar de volta.
– Não conseguiria suportar ser a irmã pródiga. Ele e a esposa iriam vigiar-me como falcões, caso regressasse, e dar-me-iam a compreender que estava dependente deles
para recuperar a minha reputação, bem como para aceder à minha alimentação. Provavelmente, ele quereria que eu desposasse um homem aborrecido, de modo a dissipar
todos os mexericos. Não. Enquanto a minha tia aceitar acolher-me, permanecerei com ela.
Porém, uma parte da notoriedade de Cassandra derivava daquele acordo habitacional. A tia de Cassandra colecionara alguns escândalos próprios. O facto de, presentemente,
viver como uma reclusa, significava que Cassandra possuía demasiada independência.
– Ele é um radical, por isso seria de esperar dele menor rigidez, no que diz respeito às regras sociais – disse Cassandra, após terem caminhado mais um pouco. –
Estou a falar do Southwaite. Ele é um Whig 14
e argumentou a favor da reforma, no passado. Agora, com a guerra, já ninguém o faz. Todos têm receio de ser vistos como simpatizantes dos revolucionários franceses.
– Talvez esteja à espera do momento apropriado.
Emma gostou bastante de ouvir que o conde defendera a reforma, mesmo que já não se atrevesse a fazê
lo. Isso sugeria que Southwaite não era um escravo das linhas de pensamento conservadoras, embora obedecesse às suas diretrizes relativas ao comportamento.
– Ou talvez tenha mudado de ideias. Mais recentemente, a voz do conde tem exigido uma vigilância melhor da nossa costa. O Southwaite tem importunado o almirantado
com esse pedido. Suponho que, ao possuir terras no Kent, saiba muito bem o quão vulnerável a costa pode estar.
Aquela referência ao Kent fez com que a mente de Emma se voltasse para a propriedade do pai, localizada nessa região, e para o conteúdo desta. Teria de a visitar,
muito em breve.
Esse pensamento conduziu a outros, sobre o leilão. Esperava que os seus planos para aquele dia estivessem a progredir bem. Durante a manhã, uma certa carroça iria
ser deslocada da sua casa para um determinado edifício na Albemarle Street. Ao meio-dia, o conteúdo da carroça já deveria estar misturado com os restantes artigos.
O vinho ficaria escondido no armazém.
Um movimento mais à frente, no caminho, apanhou-a desprevenida e interrompeu a sua reflexão. Uma figura aparecera, como que por magia, no trilho que Emma e Cassandra
seguiam. Envolta num tecido castanho, e àquela distância, a silhueta parecia fundir-se com o que a rodeava, mas Emma reconheceu a forma graciosa.
– Quem é? – indagou Cassandra.
Aproximaram-se, mas a figura não se mexeu.
– É a Marielle Lyon – disse Emma. – Penso que talvez queira falar comigo.
– Que estranho ela ter adivinhado que você estaria aqui – provocou Cassandra. – Vá ter com ela e veja o que lhe arranjou para o leilão. Oxalá compense a constipação
que ambas arriscámos com este encontro.
Eu espero aqui, com inveja de uma mulher que, mesmo envergando um aborrecido vestido sem cintura que esteve na moda há uma vintena de anos, consegue parecer tão
elegante.
Marielle aguardava na sombra de uma árvore que pendia sobre o trilho.
– Sempre veio – disse, quando Emma a alcançou. Lançou um olhar breve, mas penetrante, a Cassandra e, logo de seguida, ignorou a sua presença. – Encontrei alguns
artigos para o leilão. Um grande rolo de desenhos. Coisas velhas. O proprietário afirma que são de artistas apreciados em Inglaterra. Disse-lhe que você queria pinturas,
mas ele respondeu que você reconheceria o valor dos desenhos, se percebesse alguma coisa do assunto.
– Onde estão esses desenhos? Preciso de os ver, para poder avaliar se são autênticos e suficientemente bons para o leilão.
– Primeiro, ele queria saber se estava interessada. Se for esse o caso, ele trá-los até si – disse Marielle, enquanto remexia, com o sapato, a terra que ladeava
o caminho. – Tinha dito vinte por cento.
– Sim, receberá o que lhe é devido, após o leilão, se estiver tudo em ordem. Diga a esse homem que estou interessada nos desenhos, se forem tão bons como ele afirma.
Peça-lhe para os levar até à minha morada, amanhã de manhã.
Estando bastante consciente de que Cassandra as observava com um interesse pouco prudente, Emma começou a caminhar na direção da amiga.
– Não está interessada no resto? – inquiriu Marielle.
– Há mais? Também são desenhos?
– Não me refiro a arte. Aquele homem, o que trouxe a carroça. Aceitou encontrar-se consigo.
O coração de Emma saltou. Olhou, furtivamente, para Cassandra, que não tinha conhecimento da existência da carroça.
– Quando?
– Ele disse quinta-feira à tarde. Na entrada leste de Catedral de São Paulo. Deve levar algum dinheiro.
Prometi-lhe uma boa recompensa.
O lembrete não passou despercebido a Emma. Retirou dois xelins da mala de mão.
– Lá estarei. Obrigada.
Marielle guardou as moedas. O seu olhar intenso concentrou-se no trilho, atrás de Emma. Estalou a língua, aborrecida.
– Agora tenho de ir embora. Fui seguida e não quererá que interpretem erradamente o motivo pelo qual nos encontrámos.
Emma olhou por cima do ombro. Um cavalo aproximava-se do local onde Cassandra se encontrava, numa passada lenta. O homem que o montava não parecia interessado nelas,
nem em qualquer outra coisa que não fosse a magnificência daquele dia.
Marielle riu-se.
– É divertido. Os ingleses pensam que espio para os franceses e alguns dos franceses pensam que espio para os ingleses. Na verdade, só espio para si e mais ninguém.
Em seguida, afastou-se fundindo-se com as sombras salpicadas visíveis sob as árvores mais próximas.
Darius visitou a leiloeira na manhã que se seguiu à aparição de Herr Werner. Também a inspecionou na tarde do dia seguinte. A sua análise detalhada dos registos
e das contas não estava a produzir qualquer informação relevante. A natureza vaga dos documentos derrotava todos os seus esforços para descobrir o que Maurice Fairbourne
andara a fazer nos últimos anos.
Emma não estivera presente nas instalações da Fairbourne’s em qualquer um dos dias. Southwaite considerava esse comportamento estranho. Ela já não precisava de fingir
que não estava a escrever o catálogo e dissera que tinha muito trabalho para fazer.
Perguntou a si mesmo se Miss Fairbourne estaria a evitar o local, a fim de evitar um encontro com ele.
Uma vez que assombrava aquele lugar, em parte, para a ver, tal atitude não era aceitável, de todo.
No terceiro dia, após sair da casa de leilões, dirigiu-se para leste, em direção à Compton Street.
Maitland conduziu-o até à sala de jantar. Miss Fairbourne encontrava-se perto da mesa, manuseando folhas de papel. Quando se aproximou, Darius viu que ela examinava
uma pilha de desenhos.
– Trouxeram-mos hoje – explicou Emma. – São muito melhores do que eu ousara esperar. Tenho a certeza de que este é um Leonardo. Também aceito a afirmação de que
este retrato a ponta de prata é da autoria de Dürer. Concorda comigo?
Southwaite admirou os desenhos, assim como o entusiasmo que estes despertavam em Emma. Naquele momento, estava bastante animada, até mesmo resplandecente. Envergava
um vestido moderno amarelo-pálido, parecendo muito fresca e bela nele.
– Estes desenhos também devem ser do proprietário que consignou os outros novos artigos que chegaram – refletiu Darius, enquanto se inclinava, para conseguir observar
melhor os pormenores do Dürer.
Seria apenas fruto da imaginação dele, ou Emma realmente ficara rígida? Pelo menos, tinha permanecido imóvel, durante alguns instantes.
– Vejo que visitou novamente o armazém – disse Emma. – Espero que não tenha mudado de sítio os artigos que lá se encontravam. Organizei-os de uma determinada maneira,
para que não houvesse o perigo de deixar obras de fora, à medida que completo o catálogo.
Southwaite endireitou-se.
– Não toquei em coisa alguma. Porém, a divisão está tão cheia que pergunto a mim próprio como consegue alcançar a secretária.
– Disse-lhe que receberíamos mais artigos e estão a chegar. Agora, só preciso de ter notícias da parte de Herr Werner.
Emma voltou mais duas folhas, revelando um grande desenho, executado com tinta e água.
– Apesar de todos os outros grandes nomes associados a estes desenhos, creio que encontrei o vencedor do grupo. É um magnífico Tiepolo, um estudo para uma pintura
de teto. Devia informar os seus amigos de que esta obra será vendida. Qualquer bom colecionador gostaria de o saber.
– Está a sugerir que eu promova o seu leilão, Miss Fairbourne?
– Nunca lhe pediria tal coisa. Contudo, se expressasse o seu interesse pelo evento, quando frequentasse festas e jantares, descrevendo algumas das raridades que,
segundo ouviu dizer, serão leiloadas, isso contribuiria para o sucesso da minha iniciativa.
– Se não for cuidadoso, colocar-me-á na pele de Mr. Nightingale, recebendo a multidão, quando esta chegar à leiloeira, na noite de pré-apresentação.
Emma começou a enrolar, cuidadosamente, a pilha de desenhos.
– Bem, alguém tem de o fazer. Atou uma fita espessa em torno do rolo. O rubor ainda não lhe abandonara o rosto e os seus dedos tremiam enquanto realizavam a tarefa.
– Hoje não esteve na leiloeira. Nem ontem.
Emma não olhou para ele.
– Tinha de tratar de outros assuntos.
– E amanhã?
– Tenho de tratar de mais assuntos. Outros.
– Eventualmente, terá de se dedicar à preparação do catálogo.
– Terminá-lo-ei a tempo. E o senhor, Lord Southwaite? Já finalizou a inspeção dos registos e contas da empresa?
– Quase.
Na realidade, tinha completado a análise há muito. Devia contar-lhe a verdade e reencontrá-la somente no leilão.
– Manteve-se afastada, por recear que eu lá estivesse? O que aconteceu no jardim fez com que se escondesse de mim?
– Tive efetivamente de tratar de outros assuntos. No entanto...
O olhar de Emma cruzou-se com o do conde, transmitindo toda aquela franqueza que o conseguia transtornar tão facilmente.
– Escolhi não pensar demasiado sobre essa tarde. Temo que, se o fizer, acabe apenas por me culpar pelo que aconteceu e por culpá-lo, a si, pelo motivo subjacente.
– Permita-me que assuma a culpa por ambos. Devia ter-lhe pedido desculpa, no próprio dia.
– Contudo, não o fez. Porque não sou uma dama aristocrata?
– A sua ascendência não teve qualquer relação com o sucedido. Não lhe pedi desculpa por não me sentir verdadeiramente arrependido.
Mentiras e mais mentiras. Enganos e omissões. Não pedira desculpa porque o seu lado mais sombrio ansiava por uma recompensa maior e a ascendência de Emma provavelmente
estava mais relacionada com aquele desejo do que Darius queria admitir.
– Está arrependido agora?
– Não, mas não sou o género de homem que se aproveite de uma mulher.
Mais mentiras. Mentiras malditas.
– Não há razão alguma para ter medo de mim.
– Não tenho medo de si.
Com os diabos, que não tinha. A cautela era visível nos olhos dela. Southwaite também vislumbrava outras coisas no interior daqueles olhos. Vulnerabilidade, como
se Emma esperasse que aquela conversa resultasse num insulto à sua pessoa, antes de terminar.
– Talvez o seu autodomínio funcione melhor na presença de damas nobres, por ter mais prática com esse tipo de mulheres. Duvido que tenha tido muita experiência com
mulheres comuns, relativamente a estas questões – argumentou ela.
– Percebeu tudo ao contrário. Para mim, a menina não é comum, de todo. É até extremamente invulgar, em relação ao que já experienciei, e poderá ter sido esse o motivo
de ter vacilado no meu autodomínio.
Finalmente, alguma verdade. Porém, um elogio, articulado por razões egoístas.
– Que estranho deve ser o mundo em que vive, Lord Southwaite. Tão repleto de falsidade, que a minha falta de sofisticação se torna intrigante, por comparação.
Emma segurava o rolo de desenhos à sua frente, como um escudo, mas não desviava o seu olhar intenso, focado no conde.
– Falemos a verdade que conhecemos, sempre que tivermos a possibilidade de o fazer, senhor conde.
Quaisquer que tenham sido as suas motivações, ou impulsos, o senhor conde aproveitou-se da minha surpresa, mas nada mais. Não fingirei que me comportei bem, pelo
que estamos ambos cientes de que a culpa não é inteiramente sua. Contudo, espero que saiba que, de futuro, nunca mais voltarei a ficar tão perplexa. Jamais.
Com que então nunca mais seria apanhada de surpresa? Maldição. Viera até ali com o intuito de fazerem as pazes, mas Emma parecia estar a preparar-se para combater
novamente e acabara de lhe lançar um desafio.
Aquilo despertou o demónio que vivia no interior de Southwaite e a criatura ficou bastante contente por poder esticar as suas asas negras.
– Está a dizer que, se a tentar beijar de novo, terá a força de vontade necessária para me rejeitar?
Darius não tencionava ameaçá-la e Emma não encarou aquelas palavras como uma ameaça. No entanto, estas anunciavam a possibilidade de mais beijos e de outras coisas.
Emma também tinha consciência disso. Dificilmente poderia ignorar como haviam alterado o ar que os rodeava, forjando uma ligação invisível entre os dois.
– Embora possua muita fé na minha força de vontade, pensei ter ficado bem claro que pressupunha que o senhor conde não tentaria beijar-me novamente.
– Que suposição tão ingénua e tão pouco prática da sua parte.
– O senhor conde pediu desculpa. Eu tinha todas as razões para o pressupor.
– Se alguma vez o pedido de desculpas de um homem revelou a verdadeira natureza dos seus pensamentos, o meu fê-lo.
– Então, permita-me que fale mais claramente. Não pressuponho, nem espero, que o senhor conde resista a tais impulsos. Exijo-o. Na verdade, gostaria que me desse
a sua palavra de honra nesse sentido.
Afinal, Emma não planeava uma batalha. Em vez disso, queria uma vitória diplomática. Infelizmente para o sucesso de tal estratégia, Southwaite descobrira que Emma
Fairbourne mergulhada em prazer era muito mais fácil de manipular do que Emma Fairbourne em plena posse das suas faculdades.
– Nunca dou a minha palavra de honra, quando sei que provavelmente irei quebrá-la, Miss Fairbourne.
Gentilmente, Darius retirou o rolo de desenhos dos braços de Emma, colocando-o de parte.
– E sei, desde que abandonei aquele jardim, que iria tentar beijá-la outra vez.
Com as mãos em concha, o conde segurou o rosto de Emma. Ela sobressaltou-se, mas não se afastou. A pele de Emma parecia veludo sedoso sob a palma das suas mãos.
Um rubor invadiu-a e o ardor resultante passou para ele, juntando-se ao seu próprio calor. Os olhos de Emma arregalaram-se, expressando assombro perante a reação
e a excitação desencadeadas por aquele simples contacto. Revelavam o mesmo espanto que Darius testemunhara no jardim.
Assim que os lábios do conde tocaram os de Emma, ele soube que iria pagar caro pelo beijo. Como Kendale mencionara, estava longe de ser um rapaz imberbe. Emma era
extraordinariamente cativante e adoravelmente natural. Apesar da declaração que acabara de fazer, ainda parecia estar muito surpreendida com a forma como um beijo
a conseguia afetar. A luxúria do conde incitava-o a tentar obter ainda mais, argumentando vigorosamente para que o fizesse.
Darius devorou a boca de Emma, mas conseguiu manter as mãos longe do corpo dela. Quando a situação se tornou insuportável, libertou-a e afastou-se. «Não aqui. Não
agora. Não na casa dela, com os criados por perto.»
Pareceu que ficaram ali durante uma eternidade, com a paixão e o desejo a uni-los. A atraí-los. Podia ser uma doce tortura, mas apenas se, no final, terminasse do
modo certo.
Southwaite ponderou que Emma conseguia perceber as suas intenções, tal como ele conseguia ver as suspeitas de Emma acerca do «porquê» e o seu receio acerca de «o
que» ele queria.
Emma efetuou uma vénia demorada e meticulosa. O conde fez a mesura indispensável e retirou-se.
13 Grande lago artificial existente no Hyde Park. Foi construído no séc. XVIII, para fins recreativos. (N. do T.) 14 Referência ao partido liberal que disputou o
poder com o partido conservador entre o final do séc. XVII e meados do séc. XIX. Os Whigs defendiam a monarquia constitucional e a tolerância para com os protestantes.
(N. do T.)
CAPÍTULO 14
Emma contornou a esquina da fachada ocidental da Catedral de São Paulo, dirigindo-se para a área que ficava mais a leste. Vestira-se de preto, na esperança de que
o homem a identificasse pelo luto, se ainda não conhecesse o rosto dela.
A visita de Southwaite, que ocorrera no dia anterior, era continuamente revisitada pelos seus pensamentos, enquanto examinava as pessoas pelas quais passava, procurando
qualquer sinal de que uma delas fosse o indivíduo misterioso.
Southwaite pedira desculpa sem o género de embaraço que seria de esperar, dadas as circunstâncias. O conde extremamente correto havia dito as indispensáveis palavras
extremamente corretas, com o tom certo e a autorrecriminação apropriada, se bem que muito pouco sincera. Agira como se tivesse lido um pequeno panfleto que servia
de guia para tais situações.
Presumia que as palavras por ele proferidas, acerca de ela própria não ser comum, constituíam um gesto bondoso. Tinha questionado as motivações do conde, não tinha?
Dera a entender que ele a tratava com menos respeito do que o reservado para as mulheres de melhores famílias. Seria ultrajante para Southwaite ter de admitir uma
conduta desse tipo. O que poderia alegar em sua defesa? Que as regras não se aplicavam à interação entre um nobre e uma mulher como ela, mas somente ao comportamento
desse mesmo nobre perante as filhas de aristocratas e cavalheiros?
Contudo, seria estúpido ficar zangada pelo facto de Southwaite ter mentido com o intuito de evitar insultá-la. E, afinal de contas, ela também mentira, ao dizer
que não tinha medo dele. O conde sempre a intimidara e, presentemente, a desvantagem de Emma era ainda maior do que no passado. Não estava confiante relativamente
à sua capacidade para demonstrar «força de vontade», caso Southwaite a beijasse de novo. Agora que ele o tinha feito, sucumbira mais uma vez, como uma... uma quê?
Uma mulher devassa? Uma meretriz?
Quase desejava que aquelas palavras condenatórias se aplicassem a ela. Tinha plena consciência dos seus erros. Sucumbira como uma mulher ignorante, de idade madura,
que sabia pouco acerca dos homens e menos ainda acerca da sua própria sensualidade. Talvez devesse perguntar a Cassandra quanto tempo era necessário para uma mulher
aprender a dominar as reações do seu próprio corpo, a ponto de conseguir desfrutar, ou rejeitar, o prazer, de acordo com um raciocínio objetivo.
Por outro lado, Emma tinha a certeza de que a sua presença não intimidava o conde. Logo, a desculpa que Southwaite apresentara para aqueles beijos no jardim não
lhe parecia verdadeira. O último beijo não havia sido, certamente, o ato de um homem desfeito pela paixão. O conde anunciara-o primeiro, pelo amor de Deus. Um homem
na posse das faculdades mentais necessárias para traçar o seu caminho e lançar os devidos alertas, como era óbvio, também tinha autodomínio suficiente para encetar
um percurso completamente distinto, se assim o desejasse.
Emma temia que a verdadeira razão para todos aqueles beijos fosse muito menos agradável do que uma paixão poética. Southwaite deixara bem claro, no dia em que interrompera
as entrevistas, que procurava uma nova amante e pensava que ela poderia ser adequada para a função, pelo menos durante algum tempo. Nessa altura, Emma suspeitara
que o conde provavelmente conseguia garantir a discrição dos seus casos amorosos escolhendo mulheres de ascendência menos nobre, com quem a alta sociedade não se
preocuparia minimamente.
Também era óbvio que Southwaite ainda queria convencê-la a vender a leiloeira. Naturalmente, tivera a ideia de recorrer aos prazeres sensuais para a tornar mais
manipulável, quando observara todas aquelas agitações e centelhas estúpidas que Emma exibira. Existiam muitas maneiras de obrigar uma pessoa a seguir uma dada ordem.
Que é como quem diz, de fazer com que uma mulher se submetesse a certas vontades.
O olhar de Emma saltava de pessoa em pessoa, percorrendo todos os que se demoravam no terreiro da catedral. Finalmente, pousou num homem que permanecia de pé, ao
lado da entrada oriental. Parecia mediano em todos os sentidos, exceto na forma como examinava igualmente as pessoas que por ele passavam. Casacos escuros, um velho
chapéu, puxado para baixo, de modo a tapar a testa, e calças mal ajustadas. Em suma, tinha a aparência de um comerciante muito pouco próspero.
Os seus olhos semicerrados viraram-se para Emma. Após trocarem um olhar de reconhecimento mútuo, Emma caminhou até ao local onde ele se encontrava.
– Podemos entrar p’rá igreja, se quiser – sugeriu o homem.
– Isso seria desrespeitoso, uma vez que iremos falar sobre iniciativas criminosas.
A franqueza de Emma apanhou-o de surpresa.
– Olhe, só me pagam p’ra entregar uma coisinha ou outra. Não sou criminoso.
Emma não tencionava discutir sobre a moral daquele tipo de atividades.
– Necessito de falar com o homem que lhe pagou para assegurar o transporte da carroça até à minha casa. Tenho perguntas que precisam de ser respondidas.
Ele mudou de posição e mordeu o lábio, direcionando o olhar para o terreiro.
– Pode ser qu’eu tenha as respostas. Não entrego só carroças.
– Está a dizer que tem uma mensagem para mim?
Ele encolheu os ombros.
– Depende do que fazemos aqui.
– É esperado algo da minha parte, em termos de pagamento. Não sei quanto é. Os lucros obtidos com a venda daqueles bens? Nada mais? Não tenho conhecimento do acordo
feito com o meu pai. Ele nunca me falou sobre tal pacto. Também pretendo resolver a questão definitivamente. Diga ao seu chefe que quero saber o que tenho de fazer
para garantir que ganho o prémio.
– Ganhar o prémio? Não há prémio p’ra ganhar.
– A mulher que me trouxe a carroça disse...
– É p’ra resgatar o prémio, foi o que mandei a mulher dizer, não é p’ra ganhar. Estrangeira estúpida. A sorte não é p’ra aqui chamada, se m’entende. P’lo que sei,
só o tem se o pagar.
O coração de Emma batia tão fortemente que lhe causava dor. Naquele momento, mal conseguia conter a esperança que sentia.
– Sabe o que é o prémio?
– Pode ser qu’eu saiba. Você não sabe?
– Não. Tenho de descobrir o que está em risco, ou atirarei a carroça para o rio, juntamente com o seu conteúdo. Por isso, responda-me, de imediato. O prémio é uma
pessoa?
O homem respondeu-lhe piscando um dos olhos, de uma forma bem visível.
Emma teve de se afastar, para conseguir manter a compostura. Fechou os olhos com força, de modo a que as lágrimas não caíssem. «Oh, pai, porque não me contou tudo
isto? Porque não me preparou, para que eu soubesse o que fazer?» No seu coração, conhecia a resposta àquelas perguntas. Ele não a informara, porque não tinha a certeza
de alguma vez ser bem-sucedido. Ele não a tinha preparado, porque nunca esperara morrer tão cedo.
Emma regressou para junto do seu mensageiro.
– Tenho de o resgatar.
– O meu patrão parece que adivinhou o que você queria, porque mandou dizer aquilo que a senhora quer saber. Ele mandou dizer que tem de dar cem libras, por conta,
p’ra garantir que o prémio fica seguro, mais o que der a venda do que está na carroça. Ou, por três mil libras, arruma-se o negócio e fica já com ele.
– Três mil libras!
A quantia elevada chocou-a. Onde poderia arranjar aquele valor? Nunca conseguiria pagá-lo. Até mesmo as cem libras iriam representar uma proporção considerável das
receitas derivadas do leilão.
Percebeu que era esse o objetivo dos raptores. O resgate era demasiado alto para o pai, ou ela própria, poderem liquidá-lo. Porque libertariam Robert, quando mantê-lo
em cativeiro assegurava um fluxo interminável de pagamentos, assim como uma forma segura de vender mercadorias de contrabando?
– É demasiado dinheiro – afirmou Emma. – Diga-lhe isso. Também não serei eternamente alvo de extorsão, se é essa a intenção dele. Para além disso, quero provas de
que o meu irmão está vivo e bem de saúde. Não sou suficientemente idiota para acreditar na palavra de um patife.
– Ora, ora, ele não vai gostar que lhe chame isso. Você tem língua afiada. É melhor pensar no que vai dizer, porque há mais p’ra lhe contar e é coisa boa.
Emma acalmou a sua língua afiada, para que o «mais» fosse revelado.
– Também me mandaram dizer que o resgate é três mil libras, mas pode ser metade disso, se fizer um pequeno favor.
– Que favor?
– Isso, não disseram. Mas você vai saber em breve, é tudo o que tenho p’ra lhe contar.
Provavelmente, o favor consistiria em leiloar mais bens ilícitos. Receberia uma vintena de carroças repletas de mercadorias ilegais, após ter pago o resgate, para
um final em grande.
– Há algo mais que me queira dizer?
O homem anuiu.
– Há um fidalgo que vai àquele sítio que a senhora tem. Mandaram-me avisá-la de que não deve contar-lhe estas coisas – afirmou o homem, inclinando a cabeça e piscando-lhe
o olho, em jeito de cumplicidade. – O meu patrão foi muito firme nisso. Acho que as visitas do fidalgo fizeram o patrão desconfiar de si. Talvez você faça jogo duplo,
é isso? Ele disse qu’esse fidalgo, de há uns tempos p’ra cá, tem-se intrometido com o comércio livre na costa. A sua relação com uma pessoa dessa laia traz preocupação.
A advertência causou um formigueiro no pescoço de Emma. O raptor vigiava-a, espiando também a Fairbourne’s? Aquela ideia fez com que se sentisse muito desconfortável,
como se olhos invisíveis a observassem, mesmo naquele preciso momento.
Pior: o aviso sugeria que Southwaite se preocupava mais com a questão do contrabando do que Emma originalmente calculara. Talvez fizesse parte do seu interesse pela
vulnerabilidade da costa, que Cassandra mencionara. Independentemente das motivações do conde, uma nova razão para este ter revelado tanto interesse pela Fairbourne’s
e por ela própria surgiu, de forma súbita, na mente de Emma.
Talvez Southwaite tivesse estado mais atento ao que se passava no negócio do que Emma imaginara.
Talvez o conde tivesse até adivinhado a existência dos lotes especiais, que chegavam à casa do proprietário da leiloeira, escondidos sob as lonas.
Southwaite poderia não ser apenas um investidor, que procurava garantir a disposição eficiente do negócio. Em vez disso, poderia estar a investigar a Fairbourne’s,
o seu pai e, presentemente, ela própria.
O conde passara horas, mesmo dias, a examinar a contabilidade da empresa, não passara?
Estes pensamentos entristeceram-na, por motivos que não tinha tempo para decifrar naquele momento.
Emma recompôs-se e tentou parecer temível. Fitou diretamente o mensageiro, colocando-o no seu devido lugar.
– Quero saber onde se encontra com esse homem, aquele que o instruiu sobre o que dizer.
Ele recuou, franzindo a testa.
– Eu seria estúpido se dissesse, não seria? S’eu lhe contasse, ninguém me ia querer como mensageiro, é assim qu’eu vejo as coisas.
Emma mergulhou a mão na carteira e retirou alguns xelins.
– Poderia ser o meu mensageiro.
O homem aceitou as moedas com bastante rapidez, mas sorriu presunçosamente, enquanto as guardava.
– Acho que não vai ter muito com que pagar, daqui a nada. Talvez o fidalgo fale contra si e faça com que você vá p’rá prisão, não tarda. É muita gentileza sua, mas
acho que fico com o que tenho agora.
Ganho o suficiente p’ró que preciso.
O homem afastou-se, a assobiar. Enquanto isso, Emma regressou à sua carruagem.
Três mil libras. Se Herr Werner consignasse a coleção do conde e se Marielle encontrasse mais alguns imigrantes com bons artigos, a comissão da Fairbourne’s sobre
o leilão poderia angariar, na melhor das hipóteses, metade da quantia em questão. Contudo, não podia ter a certeza de que os licitantes subissem os preços até aos
seus níveis máximos. Precisava de algo mais, para assegurar que conseguia, pelo menos, as mil e quinhentas libras que lhe seriam pedidas, após ter executado o tal
favor.
O Rafael, propriedade da família, certamente faria pender a balança a favor dela. A totalidade do montante recebido aquando da venda seria para Emma, que não teria
de se contentar apenas com uma comissão. Vendê-lo iria partir-lhe o coração, mas Emma teria de o adicionar ao catálogo.
Contudo, naquele momento, estava mais interessada nas explicações do mensageiro a respeito do seu empregador. Aparentemente, conversavam um com o outro. Talvez o
indivíduo misterioso, que enviara as mensagens, estivesse por perto. O mesmo poderia suceder com Robert.
Apesar de toda a angústia que sentia, essa hipótese entusiasmava-a. Imaginava-se a abrir a porta de uma masmorra, ou de uma cave subterrânea, e a contemplar o espanto
e a alegria do irmão, ao perceber que estava a ser salvo. Imaginava ainda que o traria para casa e lhe mostraria quão bem se saíra na tarefa de preservar o legado
familiar. Finalmente, Robert assumiria o seu papel. Envergando os melhores casacos que possuía, ocuparia o local onde o pai tinha permanecido durante os leilões.
Emma precisava de descobrir se Robert estava praticamente debaixo do seu nariz. Recusava-se a obedecer cegamente ao raptor misterioso, ou às suas exigências de pagamentos
e favores. Não tinha qualquer motivo para confiar nele. Não iria ficar inativa, enquanto o seu irmão era vítima de tal perpetrador.
As emoções agitaram-se dentro de Emma, durante todo o percurso até à sua casa. Entusiasmo misturado com um medo muito real. Desejou poder entregar o assunto a alguém
numa posição de autoridade, que utilizasse mais meios para encontrar Robert, do que ela alguma vez poderia reunir. O rapto era um crime grave. Certamente, se Emma
falasse com um magistrado, explicando o que sabia, alguma ajuda seria mobilizada.
O problema residia no facto de Emma não saber muito acerca do que se passava. Nem sequer sabia a razão pela qual alguém originalmente decidira raptar Robert. Não
devia ignorar a possibilidade de não ter sido uma escolha aleatória.
Robert também poderia ter estado envolvido em atividades ilegais. Se, de alguma forma, ele participara no contrabando que, presentemente, contaminava a Fairbourne’s,
seria mais ajuizado Emma não procurar ajuda. Não podia confiar que outra pessoa fechasse os olhos aos crimes que poderiam estar por trás de tudo aquilo. Seria uma
catástrofe, se Robert fosse libertado de uma prisão só para ser enfiado noutra.
Não, teria de ser ela própria a lançar mãos à obra, se quisesse averiguar a presença de Robert em Inglaterra, ou descobrir a identidade de quem o mantinha cativo.
Pelo menos, devia tentar fazê-lo.
Emma sentiu-se muito melhor após ter tomado essa decisão. Menos indefesa, menos como um peão de pessoas desconhecidas. O medo acalmou, mas isso só lhe permitiu reconhecer
outra emoção que se instalara no seu coração, fazendo com que ficasse ligeiramente nauseada. Pensou em Southwaite e as náuseas pioraram.
Também não podia confiar nele. Com toda a certeza, não devia pedir- lhe qualquer ajuda. Na realidade, Emma teria de rezar para que o conde nunca fizesse perguntas
sobre alguns dos lotes do próximo leilão.
CAPÍTULO 15
– Para onde vamos? – inquiriu Ambury, em voz alta, com irritação.
Dirigira a questão às costas de Kendale.
Kendale não respondeu, continuando a liderar o grupo enquanto caminhavam, a cavalo, pelas ruas apinhadas que ficavam a leste da Hanover Square. No entanto, a sua
postura rígida falava eloquentemente. Aquela jornada tinha um «Objetivo Importante».
– Em breve, tudo será revelado – disse Darius a Ambury. – Espero eu.
– Não sei por que razão tem ele de ser misterioso – resmungou Ambury. – É incomodativo, quando se comporta desta maneira. Não sou um soldado sob o seu comando e
não aprecio mensagens enigmáticas, ordenando-me que compareça às cinco da manhã para ser passado em revista.
Kendale ouviu as queixas. Girou o seu cavalo, até que o focinho deste encarou as cabeças das restantes montadas.
– Não estou a ser misterioso. Qualquer conversa seria difícil, mesmo que caminhássemos os três lado a lado.
– Não seria difícil antes de montarmos – salientou Ambury. – Nem será difícil agora. Antes de você assumir novamente a liderança, exijo saber para onde vamos e porquê.
O humor espinhoso de Ambury surpreendeu Kendale, que olhou para Darius de forma inquiridora.
Darius pensou, e não pela primeira vez, que a obstinação de Kendale provavelmente o tornara um excelente oficial, mas fazia com que fosse, por vezes, um amigo difícil
de tolerar.
– Ele tem a esperança de se encontrar com uma certa pessoa no parque, durante o dia de hoje – disse Darius, tentando justificar a irritabilidade de Ambury.
– Quer dizer que estou a impedir a realização de um encontro romântico? Maldição, Ambury, porque não me disse do que se tratava? Detestaria atrasar os assuntos frívolos
com os quais ocupa a sua vida durante a temporada, ao desviá-lo para uma missão que poderá ser de extrema importância.
– Não me importo com o atraso nos meus planos. Apenas pretendo obter uma pequena indicação de que a missão na qual participamos seja sequer de alguma importância.
Assim sendo, perguntarei mais uma vez para onde vamos, com os diabos?
Kendale fez avançar o seu cavalo, para que este flanqueasse o de Ambury, de modo a poder falar com o amigo de uma forma confidencial. Infelizmente, esse movimento
colocou os três cavaleiros lado a lado, fazendo com que bloqueassem a rua. Darius manteve-se atento, tentando captar a explicação de Kendale, que também seria bem-vinda
para ele próprio. Contudo, em simultâneo, começou a ser atacado por gritos e maldições cada vez mais insistentes, provenientes de cocheiros e carroceiros, que não
conseguiam contornar o grupo a fim de continuarem o seu trajeto.
– Tenho andado a investigar um rumor e creio que descobri algo alarmante – confidenciou Kendale. – Já ouviram falar de uma mulher chamada Marielle Lyon?
– Sim, já ouvi falar dela – respondeu Darius. – É francesa. Uma refugiada que veio para Inglaterra há alguns anos, fugindo do Terror. É sobrinha do conde de Beaulieu.
– Quais são os rumores que circulam sobre essa personagem? – perguntou Ambury, que, naquele momento, já parecia interessado na conversa. As imprecações dos homens
que conduziam os veículos bloqueados começaram a subir de tom.
– Algumas pessoas dizem que é uma charlatã e que não é quem afirma ser – esclareceu Darius. – Isso não será propriamente uma novidade, Kendale. E também é muito
provável que os rumores sejam falsos.
Já procuraram desmascará-la várias vezes, mas todas as tentativas falharam, o que sugere que talvez não exista qualquer máscara para ser removida.
– O facto de os rumores terem origem na própria comunidade de imigrantes franceses interessou-me – explicou Kendale. – Por isso, tenho vigiado essa mulher esporadicamente.
– Isso parece-me injusto – disse Ambury. – Não gosto de pensar que alguém me poderia espiar devido a um simples rumor.
– Não faço tudo isto para satisfazer a minha curiosidade ociosa, nem para brincar aos detetives, como você por vezes brinca, Ambury. Se uma mulher vive em Inglaterra
como refugiada, afirmando ser a sobrinha de um conde, quando, na verdade, é outra pessoa, isso configura uma situação demasiado suspeita para ser simplesmente ignorada.
Como poderiam esconder melhor um espião do que deixando a pessoa em questão à vista de todos, mas com uma identidade falsa, que apelaria à compaixão? – indagou Kendale.
– Se um rumor desse género estivesse associado a si, garanto que também seria alvo de vigilância.
– Graças a Deus que a Inglaterra pode contar consigo, Kendale. Estou seguro de que os nossos ministros rezam pela sua alma todas as manhãs – respondeu Ambury. –
Esta missão foi-lhe atribuída por um deles, ou decidiu cumpri-la por iniciativa própria?
– Sabemos a resposta a essa pergunta e, tendo em conta as nossas próprias atividades não autorizadas, dificilmente poderá objetar com base nesse aspeto, Ambury –
arguiu Darius. – Para além disso, as suspeitas de Kendale são partilhadas por outras pessoas. Alguns membros do governo demonstram uma certa desconfiança em relação
a essa mulher. É possível que não sejamos os únicos a vigiá-la.
– Não detetei outros vigilantes. O que é um descuido – disse Kendale. – Tenho a certeza de que ninguém estava por perto quando ela realizou uma reunião de manhã
cedo, no parque, há alguns dias.
Encontrou-se com a filha daquele homem que sofreu uma queda suspeita, enquanto passeava por um caminho costeiro, no Kent.
Darius olhou para Kendale, com surpresa. Vislumbrava agora para onde a mente do amigo se dirigira nos últimos dias. Naquele momento, a sua própria mente corria,
tentando manter-se a par, e até ultrapassar, a do amigo.
– Então vamos prendê-la por se atrever a falar com outra mulher num parque? – questionou Ambury.
O sarcasmo não produziu qualquer efeito em Kendale.
– Ainda não sabemos o suficiente para legitimar uma ação desse género. Vamos até à residência da outra mulher, para que possam ajudar-me. Temos de patrulhar a propriedade
e a rua, e avaliar qual a melhor maneira de o fazer. Recentemente, tenho vindo a recorrer a alguns serventes de confiança para me auxiliarem nesta missão, uma vez
que não consigo dar conta sozinho de todas as pessoas suspeitas incluídas na minha lista. Porém, mesmo assim, somos poucos para a tarefa.
– Envolveu os seus criados neste assunto? – perguntou Darius. – Está louco? Satisfazer a sua própria curiosidade é uma coisa, mas criar uma rede de justiceiros é
outra, completamente diferente.
– É claro que ele está louco – disse Ambury. – Não pode confiar na discrição dos seus servidores, Kendale. A qualquer momento poderão chegar aos ouvidos de Pitt15
informações acerca das suas iniciativas. Diria mesmo que bem pode esperar uma reunião desagradável com o Secretário de Estado para os Assuntos Internos, durante
a próxima semana.
– Os meus criados são de confiança, mesmo que os vossos não sejam. A minha casa é mais disciplinada do que uma unidade dos Horse Guards16. Mas se qualquer um de
vós for capaz de identificar um só servente com a lealdade necessária, também pode considerar usá-lo, pois é impossível que um ou dois homens assegurem sozinhos
a vigilância de uma pessoa.
Ignorando completamente a reprimenda dos companheiros, Kendale virou o seu cavalo e continuou a avançar. Darius e Ambury seguiram-no, caminhando lado a lado. Os
cocheiros que tinham estado bloqueados começaram a contornar o grupo, lançando as últimas pragas, enquanto os ultrapassavam.
Darius sentiu vontade de estrangular Kendale. O indivíduo agia como se apenas ele fosse capaz de salvar o reino. Aquela investigação, em particular, prometia criar
complicações constrangedoras.
Era inevitável que alguém acabasse por se questionar sobre o acidente de Maurice Fairbourne e a razão pela qual ele estivera no trilho costeiro, à noite. No entanto,
Darius nunca esperara que essas dúvidas fossem levantadas por um dos seus amigos.
– Ele vai fazer com que eu comece a beber – disse Ambury, calmamente. – Ficou afetado pelo facto de ter sido obrigado a vender o seu posto militar e estava excessivamente
ansioso para ajudar a montar a rede de observadores ao longo da costa. O Kendale gosta disto muito mais do que eu. Se não travarmos este último excesso, não tardará
a colocar alguns dos tais servidores de confiança a espiar-nos.
– Penso que ele encontrou uma desculpa para evitar as expectativas sociais associadas ao título que possui, ocupando-se com questões mais sérias.
– Se lhe arranjássemos uma mulher, ele não se importaria tanto com as expectativas sociais. Temos de nos empenhar nessa tarefa, e rapidamente.
Kendale ergueu uma mão, parando a pequena marcha no final da Compton Street. Deslocou o seu cavalo, para poder visualizar os companheiros.
– É a quarta porta a seguir ao próximo cruzamento. Atualmente, a mulher vive lá sozinha, acompanhada apenas pelos criados. Quando ela regressar, seria útil que a
conseguissem manter debaixo de olho, para vermos se ocorrem mais encontros com a Lyon ou com qualquer outra pessoa suspeita.
– Quando ela regressar?
O olhar de Darius desviou-se bruscamente da porta familiar para encarar Kendale.
– A carruagem não se encontra na cocheira desde a madrugada. O anexo esteve vazio durante todo o dia. Espreitei para o seu interior mais uma vez, mesmo antes de
ir ao vosso encontro. Creio que ela fez uma viagem e amaldiçoo-me por não vos ter convocado antes para esta missão, pois assim saberíamos onde ela foi.
– Com certeza foi apenas visitar um amigo, algures na cidade – sugeriu Darius. – Obviamente, deve possuir alguns contactos sociais.
– É possível. Contudo, estive a ponderar se ela não terá ido à propriedade do pai, no Kent. Se assim for, bem, reflitam sobre a situação. Ela encontra-se com a Lyon
e, somente dois dias mais tarde, viaja até à costa – disse Kendale, cuja expressão assumiu uma gravidade bastante militar. – Penso que estas duas mulheres andam
a dedicar-se a atividades pouco recomendáveis.
– Na minha opinião, está a fazer uma tempestade num copo de água e a aborrecer-me enquanto o faz – disse Ambury. – É tudo extremamente vago.
– Não nego que seja vago, mas tem de admitir que também é uma grande coincidência, e muito peculiar.
– Só se realmente aconteceu. Não existe qualquer prova de tal ocorrência, a não ser na sua imaginação – replicou Ambury.
– Por acaso, conhecia o Maurice Fairbourne, o homem que caiu da falésia, enquanto passeava – disse Darius. – Frequentava a leiloeira dele. A propriedade que ele
possuía no Kent não era muito afastada da minha, por isso tínhamos mais um motivo para travarmos conhecimento.
Ambury, que, evidentemente, não fizera a ligação entre a tal outra mulher e Emma Fairbourne, até àquele momento, voltou a sua atenção para Darius, com uma curiosidade
descarada.
– Também conhece a filha dele? – indagou Kendale.
– Já fomos apresentados.
Kendale considerou o que acabara de ouvir, enquanto Ambury lançou a Darius um olhar vagaroso e sub-reptício.
– Presumo que a mulher ainda esteja de luto, Kendale?
Outro olhar malicioso permitiu que Darius soubesse que um dos seus amigos não esquecera as suas inquietações sobre beijar e seduzir uma mulher de luto.
– Sim, está. É por essa razão que esta longa ausência, durante o dia de hoje, me preocupa. Não é muito provável que ela possua uma agenda social preenchida, após
a morte do pai. Até é conveniente, para os nossos planos, que já se tenha encontrado com ela e que tenha também conhecido o pai dela, Southwaite.
Assim, poderá vigiá-la, sem que as suas intenções sejam demasiado óbvias.
– Ora, isso é mesmo conveniente – resmungou Ambury, em voz baixa.
– Concentrarei a minha atenção nela, se insistir, Kendale, embora acredite que as suas suspeitas são o fruto da mente de um guerreiro à procura de uma batalha.
Kendale franziu a testa.
– Se considera que seria errado... ignóbil, por ter uma ligação social prévia com a pessoa em questão, presumo que Ambury poderia...
– Não, é melhor ser eu a tratar do assunto. Estarei menos propenso a interpretar mal os factos, uma vez que já conheço a senhora. Dedicar-me-ei à tarefa de imediato.
Começarei por descobrir se a ausência da carruagem significa que ela decidiu fazer uma viagem. Se for esse o caso, averiguarei para onde foi – ajuizou Darius, enquanto
avançava com o seu cavalo.
– Como fará isso? – perguntou Kendale. – É muito difícil seguir o rasto de uma carruagem desaparecida.
– Só se estiver realmente desaparecida – salientou Ambury, exasperado.
– Não tenha receio, Kendale. Tenho cá os meus métodos – replicou Darius.
O seu primeiro método era o mais fácil. Ia interrogar Maitland, o mordomo. Sem dúvida, receberia garantias de que Miss Fairbourne não estava a fazer algo mais suspeito
do que passar o serão com Lady Cassandra e a sua tia.
15 Referência a William Pitt, um membro do partido conservador, que foi o primeiro-ministro de Inglaterra, de 1783 a 1801, e de 1804 a 1806. (N. do T.) 16 Referência
aos Royal Horse Guards, um regimento da cavalaria britânica, fundado em meados do séc. XVII. No final do séc. XVIII, este regimento participou nos conflitos militares
derivados da Revolução Francesa. (N. do T.)
CAPÍTULO 16
A casa estivera fechada durante mais de um mês. Continha um odor característico a mofo, que implicava ausência e poeira. Quando chegou, Emma abriu imediatamente
algumas janelas, contente por ter algo para fazer, a fim de não sucumbir às suas emoções.
Há quase um ano que não vinha ao Kent. A propriedade abraçava a costa, a meio caminho entre Deal e Dover, onde os Downs17 davam lugar ao Estreito18. Aquela habitação
havia sido o refúgio do pai e não uma residência familiar. Emma nem sequer visitara o local após o falecimento do pai. Em vez disso, o corpo tinha sido levado de
volta para Londres, de modo a realizarem um enterro apropriado, ao lado da sua mãe. Naquele momento, a brisa marítima invadia a cozinha, transportando consigo memórias
das poucas vezes em que acompanhara o pai até ali.
– Vou lavar estas cortinas – disse Mrs. Norriston, enquanto segurava uma delas junto ao nariz. – Quis fazer isso quando o seu pai esteve aqui pela última vez, mas
ele...
Subitamente, calou-se, corou e olhou para Emma, arrependida por ter dito o que não devia.
Mrs. Norriston vivia na povoação vizinha de Ringswold. Assumia, ocasionalmente, o papel de governanta da família, quando o pai de Emma decidia passar algum tempo
na propriedade rural. No caminho, Emma parara na aldeia, para a ir buscar e trazê-la consigo. Na verdade, não precisava de uma criada para a breve visita que tinha
em mente. Queria a companhia de Mrs. Norriston por outros motivos, que começaria agora a abordar.
– Vim até cá numa missão, Mrs. Norriston. Espero que me possa ajudar a ser bem-sucedida.
– Não devo poder ajudar alguém como a menina, Miss Fairbourne. Sou uma mulher simples. Se precisa de mim p’ra cozinhar e limpar, muito bem. Mas uma missão parece
ser coisa de muita importância.
– Certa vez, o meu pai contou-me que a senhora viveu nesta região durante toda a sua vida. É
precisamente uma pessoa como a senhora que me pode ajudar. É que eu pretendo falar com alguns dos contrabandistas que atuam nesta zona da costa, está a compreender?
Pensei que talvez conhecesse alguém que os conseguisse contactar e lhes pudesse transmitir a mensagem de que tenho urgência em falar com eles.
Mrs. Norriston abanou a cabeça, rapidamente.
– Ninguém sabe quem são. E eles preferem que seja assim, entende? É do interesse deles não serem vistos, nem conhecidos.
– Alguns deles são bem conhecidos e os seus rostos são vistos por quem os ajuda. Não sou um oficial de justiça. Não pretendo prendê-los. Tenho a certeza de que existem
pessoas na aldeia que me podem auxiliar. Afinal, quando visitei Ringswold, no ano passado, havia um homem que vendia sabão francês, sentado numa carroça estacionada
na área verde comum.
Pesada e robusta, envergando uma grande touca branca que lhe cobria a maior parte do cabelo grisalho, Mrs. Norriston atarefou-se pela cozinha guardando o queijo,
o pernil e o pão que Emma comprara no caminho. Verificou a despensa, avaliando a existência dos ingredientes essenciais para a sua atividade culinária e cheirou
o conteúdo do frasco que continha as gorduras dos assados.
Emma esperou uns bons cinco minutos, aguardando que Mrs. Norriston dissesse algo. Quando se tornou óbvio que a governanta preferira ignorar o seu pedido de ajuda,
Emma mudou de assunto.
– Sabe a que distância fica a propriedade do conde de Southwaite? É perto de Folkstone, segundo creio.
Mrs. Norriston bateu levemente no queixo, enquanto refletia.
– A uns dez ou onze quilómetros para sul, acho eu. Tem a fama de ser duro, esse homem. Sorri muito, mas só até ficar zangado, p’lo que ouvi dizer – confidenciou
a governanta, pegando depois numa frigideira. – Vou aquecer o pernil para o jantar. O seu cocheiro vai ficar contente por ter um prato de comida quente, acho eu.
Primeiro trato dele e depois chamo-a, quando tiver tudo preparado p’ra si.
Percebendo que havia sido dispensada, Emma abandonou a cozinha e subiu as escadas que conduziam ao piso superior. Reparou, à medida que o fazia, que os seus passos
soavam bastante ruidosos e que as sombras pareciam agitar-se, quando se aproximava.
Emma visitara aquela casa poucas vezes, por isso esta não lhe transmitia a sensação de um lar. No entanto, era impossível ignorar que toda a residência lhe lembrava
a antecâmara dos aposentos do pai, em Londres. A presença de Maurice parecia ter deixado uma impressão naquele lugar, de uma forma que o tempo ainda não apagara.
Talvez o facto de se ter refugiado e isolado ali fizesse com que uma parte dele, algo quase palpável, permanecesse dentro das quatro paredes.
Ao abrir a porta que dava acesso ao quarto que o pai utilizava, sentiu-se invadida por um sentimento de maior proximidade a ele, mais do que alguma vez tivera desde
a sua morte. A emoção não a assustou, nem a fez sentir desconfortável, mas infiltrou-se na alma de Emma exigindo ser reconhecida.
Um pequeno quadro enfeitava a parede norte da divisão e, após ter lá entrado, o olhar de Emma dirigiu-se de imediato para ele. As suas cores vivas não conseguiam
ser obscurecidas pelas sombras que se apoderavam do quarto. Brilhavam, devido à iluminação artística: os vermelhos, como rubis, e o azul, tão puro, como o lápis-lazúli
a partir do qual o pigmento havia sido fabricado.
Emma podia discernir o tema muito claramente. São Jorge, envergando uma armadura da Renascença, matava um dragão de aspeto fantasioso com a sua lança, numa paisagem
montanhosa. Uma mulher bela, usando um vestido antiquado, permanecia afastada observando o seu protetor com amor e gratidão. Não era a única obra de Rafael sobre
o assunto, mas o pai de Emma sempre insistira que era a melhor.
Emma desviou o olhar da pintura, para observar a cama e a cadeira, assim como a pilha de livros existente sobre uma mesa. Sentiu o peito a ficar dolorosamente pesado,
até parecer que uma massa de chumbo se alojara por cima do seu coração. Caminhou até ao quadro e retirou-o da parede. Estava prestes a transportá-lo para fora da
divisão, quando a realidade que a circundava capturou novamente a sua atenção.
Onde estavam os restantes quadros?
Costumavam existir mais duas obras naquele quarto, uma pequena cena mitológica de Botticelli e o retrato de um cardeal, pintado por Sebastiano. O pai vendera a maior
parte da sua coleção, com o intuito de obter os fundos necessários para a deslocação do negócio para a Albemarle Street. Porém, mantivera aqueles dois quadros em
sua posse, porque eram as suas pinturas favoritas.
Emma pousou o Rafael. Espreitou para debaixo da cama e dentro do guarda-roupa, mas não havia qualquer sinal das obras desaparecidas. Desceu até à sala de estar,
para verificar se não teriam sido ali reposicionadas, mas também não as conseguiu encontrar. Na realidade, as paredes estavam completamente nuas.
Não podiam ter sido roubadas, uma vez que o Rafael permanecia no quarto. Ladrão algum levaria os outros dois quadros, deixando para trás o bem mais valioso. Como
tal, o pai devia ter vendido todas as pinturas que possuía, com a exceção daquela.
Emma regressou ao piso superior, para ir buscar o Rafael. Tinha agora a certeza de que o pai tentara ajudar Robert. Talvez a exigência do pagamento para manter Robert
seguro tivesse chegado numa altura em que as cem libras não estariam disponíveis de outra forma. Quanto à obra que restara, Emma sabia por que razão havia sido poupada.
O pai não a vendera porque acreditava que não era verdadeiramente sua. Comprara-a para a mãe de Emma, que, por sua vez, pedira que esta ficasse para a filha, quando
o marido falecesse.
Já no seu próprio quarto, Emma embrulhou o pequeno painel num longo pano de linho e colocou-o no fundo da sua mala. De seguida, passou o serão a decidir como poderia
organizar uma reunião com homens que eram peritos em nunca serem vistos.
Nessa noite, Emma dormiu sozinha na casa. A presença de Mr. Dillon, na cocheira, que ficava próxima, dissipava quaisquer receios, mas não conseguia afastar os fantasmas.
Recordações do pai e do irmão assombravam-lhe continuamente os pensamentos.
Lembrou-se da última vez em que haviam estado ali todos juntos, não muito antes de Robert partir para a viagem da qual nunca regressara. No entanto, agora que pensava
nisso, recordava-se da ocorrência de uma pequena altercação verbal, entre pai e filho. Emma encontrava-se no jardim, quando esta sucedera, mas conseguira ouvir as
vozes exaltadas. No dia seguinte, Robert confidenciara-lhe que, em breve, encetaria uma viagem ao continente, para adquirir a sua primeira coleção por conta própria,
que seria depois vendida na Fairbourne’s.
No entanto, aparentemente, nunca chegara ao seu destino. Nem tentara regressar de Itália, naquele navio que afundara.
Onde teria ido Robert? Será que abandonara sequer Inglaterra? Era isso que Emma queria descobrir.
Amanhã, iria até à povoação e encontraria uma maneira de falar com alguém que pudesse saber a verdade, mesmo que tivesse de recorrer a subornos.
*
Mrs. Norriston já se encontrava na cozinha, quando Emma desceu as escadas na manhã seguinte. A velha mulher serviu-lhe o pequeno-almoço e, em seguida, posicionou-se
ao lado da mesa, enquanto Emma comia. Franzia a testa e os seus olhos cintilavam com desagrado.
– O seu pai sairá da campa p’ra me castigar, se algo de mau lhe acontecer – disse ela. – Por isso, faça tudo como lhe digo, ouviu bem?
Emma assentiu, em jeito de obediência.
– Amanhã, às onze, na aldeia, vá ter à Prince’s Sword. Não use as roupas de luto, nem vá muito bem vestida. Também nada de carruagem, nem cocheiro, pediram-me para
lhe dizer. Deve apenas ir até lá e esperar.
– Sim. Fá-lo-ei. Precisamente como me está a dizer.
– Só uma conversa, como queria. Nada mais. É melhor levar algum dinheiro. Não sei se vai precisar dele, mas é melhor ir prevenida.
– Levarei o que tenho – proferiu Emma, estendendo a mão para pegar na de Mrs. Norriston e pressionando-a gentilmente. – Agradeço-lhe. Não se preocupe com possíveis
castigos do meu pai. O
encontro será em plena luz do dia e no centro de uma povoação. Nada de mal me acontecerá.
Mrs. Norriston não pareceu convencida. Abanando a cabeça, dirigiu os seus passos pesados de volta para a cozinha.
No dia seguinte, Emma vestiu um velho casaco castanho, por cima do vestido rosa, e cobriu a cabeça com um chapéu de palha simples.
Ambos os artigos haviam sido deixados naquele local aquando de uma visita, realizada há mais de um ano. Enquanto os colocava, Emma recordou os odores e os sons presentes
na casa, da última vez que os usara. As memórias afluíam de uma forma tão vívida, que Emma pensou ouvir os passos do pai, caminhando no soalho da divisão adjacente.
Rangendo os dentes, de modo a conter um dilúvio de emoções, Emma saiu de casa e, afastando-se da costa, caminhou cerca de dois quilómetros até à povoação.
As construções ali existentes exibiam estragos variados, causados pela brisa marítima. Algumas precisavam urgentemente de um novo revestimento de tinta e cal, mas
outras pareciam estar bem mantidas. As casas tinham jardins e eram de pequenas dimensões. A maioria era habitada por famílias de pescadores, mas a aldeia também
possuía uma loja e era suficientemente grande para sustentar o negócio de um comerciante ou dois.
A caminhada de Emma pela rua principal foi alvo de alguma atenção passageira. Também gerou umas quantas saudações, de pessoas que a reconheceram, das ocasiões em
que ali passara aquando das visitas ocasionais que, no passado, fizera ao pai. Emma parou no exterior da taberna Prince’s Sword e observou o interior do estabelecimento,
através da janela. Era demasiado cedo para uma taberna ter muitos clientes. As mesas estavam, na sua maioria, vazias. Um homem, sentado perto da janela, olhou para
Emma, enquanto ela o observava, e, em seguida, perdeu o interesse pela presença da mulher desconhecida.
Emma nunca antes entrara numa taberna. Não era um lugar frequentado por mulheres como ela, independentemente da altura do dia. Desejou que o contrabandista tivesse
marcado a reunião no adro da igreja. Contudo, ele não o fizera e, se quisesse descobrir alguma coisa sobre o irmão, Emma teria de entrar ali.
E foi o que fez. Os poucos clientes mal notaram a sua chegada. O proprietário da taberna apenas olhou na direção dela. Emma escolheu uma mesa tosca, afastada da
janela, sentou-se e aguardou que algo acontecesse.
O cheiro inconfundível da cerveja enchia o ar. Misturava-se com outros odores, de alimentos a serem cozinhados. Algures, num local resguardado, era preparada uma
refeição, talvez para ser vendida juntamente com as bebidas. O nariz de Emma contraiu-se. Parecia carneiro estufado.
Passaram-se dez longos minutos, durante os quais Emma permaneceu sozinha, sentada sob o teto de madeira. Então, a porta que dava acesso à rua abriu-se e um homem
entrou na taberna. Ninguém lhe deu muita atenção. Ele caminhou até à mesa de Emma e sentou-se num banco, procurando ficar de frente para ela.
Nas suas reflexões, Emma esperara encontrar-se com um sujeito velho e grisalho, muito rude e de rosto vermelho, devido aos ventos salgados. Em vez disso, o contrabandista
aparentava ter pouco mais de trinta anos e era magro, de uma forma rija, que denotava alguma força. Parecia quase elegante na sua sobrecasaca castanha comprida e
com o seu lenço branco, atado folgadamente em redor do pescoço. O
único aspeto estranho da sua aparência era a pilosidade facial. Um bigode, cuidadosamente mantido, e uma barba curta escondiam a maior parte do rosto. As sobrancelhas,
escuras e espessas, enquadravam os olhos azuis.
– Está sozinha.
A voz calma do homem fazia com que a frase parecesse, em simultâneo, uma afirmação e uma pergunta.
Esta última impressão foi suficientemente forte para que Emma se sentisse compelida a anuir.
– É insensato da sua parte – continuou o desconhecido.
– Não me deixou outra alternativa. Teria entrado aqui, há pouco, se eu trouxesse uma escolta?
– Não deveria tê-lo feito, de qualquer forma. Porém, uma mulher qualquer expôs o seu caso a um grande amigo meu. Por isso, aqui estou, durante alguns minutos. Não
mais.
Emma encarou aquilo como um convite para falar.
– Preciso da sua palavra de honra em como não irá divulgar o que lhe vou contar. Não posso arriscar que alguém numa posição de autoridade descubra isto tudo e...
– A mulher com quem vim falar, somente como um favor, quer impor condições?
Ele riu-se, com moderação.
– Lamento, mas vejo-me forçada a insistir nesse ponto. Tenho de lhe pedir a sua palavra de honra, como... como cavalheiro.
O homem não se riu perante aquela afirmação. Em vez disso, os seus olhos azuis examinaram-na com curiosidade, antes de assentir com a cabeça.
– Sou a filha de Maurice Fairbourne. Ele possuía a propriedade que fica próxima do...
– Sei quem ele era.
– O meu irmão, Robert, desapareceu há dois anos. Penso que talvez tenha sido raptado por contrabandistas.
– Não pelos que atuam nesta zona da costa.
Subitamente, Emma sentiu-se desanimada. Fora estúpida ao alimentar a esperança de que seria simples salvar o irmão. Pensara que as respostas estariam somente à espera
das suas perguntas.
– Tem a certeza? Poderá haver outros contrabandistas, que não o senhor, em busca de dinheiro fácil, obtido dessa maneira.
Ele olhou para Emma, com alguma exasperação, mas também, ponderou ela, com uma certa compaixão.
– Existem alguns desconhecidos que desembarcam aqui, por vezes. É como funciona o mar. No entanto, tal prática é desencorajada.
Emma perguntou a si mesma como o fariam, mas supôs que não deveria pedir esclarecimentos adicionais.
– Então, já ouviu falar sobre este assunto? Sobre o meu irmão, ou se esses desconhecidos estão a manter um jovem cativo? Espero que compreenda a situação. Todos
pensam que ele faleceu, mas agora tenho a certeza de que ele ainda está vivo e é meu dever tentar...
Um gesto feito por ele, uma mão levantada, foi uma ordem abrupta para que Emma se calasse. A atenção do contrabandista desviou-se para a janela. O homem sentado
perto do vidro também fez um gesto, chamando a atenção dos companheiros, enquanto olhava fixamente na direção dos vidros, esticando o pescoço para ver algo que se
passava na rua. Todas as pessoas presentes na taberna, até mesmo o proprietário, pararam o que faziam, como animais alertados para o perigo.
O homem que se encontrava à janela fez outro gesto, de aspeto tranquilizador, e lançou um olhar rápido na direção deles garantindo que estavam novamente seguros.
O contrabandista relaxou.
– Seria uma ironia infernal, se eu fosse parar à prisão por ter ficado comovido com a sua história – disse ele. – Quanto às perguntas que me fez, não ouvi qualquer
rumor sobre um homem mantido em cativeiro.
– Na sua opinião, teria conhecimento de um caso desses? Os contrabandistas comunicam todos entre si?
– Teria certamente conhecimento da situação, se ocorresse perto daqui. Quanto ao resto da costa sudeste, chegam aos nossos ouvidos apenas mexericos, exatamente como
sucede nas vossas salas de visitas. Um homem bebe e fala demasiado, fazendo com que segredos como esse se tornem conhecidos.
Ou não.
Emma odiava ter de fazer a próxima pergunta. A deslealdade da questão nauseava-a, mas era importante compreender o que realmente enfrentava.
– O senhor alguma vez... Gostaria de saber se o meu pai, ou o meu irmão, alguma vez negociaram consigo, ou com os outros contrabandistas da região?
Emma pensou vislumbrar pena nos olhos do seu interlocutor, e isso foi suficiente para lhe roubar a certeza de que ele seria honesto.
– Não me teria importado de fazer negócios com o seu pai. Chegam às nossas mãos várias mercadorias que seriam vendidas mais eficientemente num estabelecimento como
o dele. Porém, o seu pai não transacionava bens com pessoas como nós. Pelo menos, não comigo, nem com os meus rapazes. No entanto, esta costa é muito extensa. Não
posso assegurar que ele não tenha negociado com um dos outros contrabandistas que nela atuam.
Por fim, conseguira aprender algo e as novas informações deram-lhe alguma coragem. De resto, Emma aceitou, tristemente, que teria muito pouco para mostrar, como
resultado daquela pequena aventura.
– Presumo que estar informada de que o senhor não tem conhecimento do assunto já é saber alguma coisa. Deixarei de perguntar a mim mesma se o Robert estaria facilmente
ao meu alcance, mas a definhar, por falta de esforço da minha parte. Agradeço-lhe a gentileza de se ter encontrado comigo. Assim pude descobrir, pelo menos, o suficiente
para me tranquilizar, relativamente a essa hipótese.
Ela levantou-se para sair e o contrabandista começou também a fazê-lo. Mas foi então que Emma reparou noutro homem que tinha entrado na taberna, provavelmente utilizando
uma porta localizada nas traseiras do edifício, perto do local onde ele agora se encontrava. Emma ficou completamente estupefacta, contemplando o recém-chegado.
O olhar que ele lhe devolveu fê-la ter alguma dificuldade em respirar.
O contrabandista olhou por cima do seu próprio ombro. Não começou a correr, como Emma esperava.
Em vez disso, lançou um olhar intenso aos restantes clientes que estavam na taberna e, em seguida, tornou a sentar-se no banco.
– Southwaite – murmurou ele. – A senhora tem uma relação com ele?
– Não! Nem o trouxe até aqui. Juro que não o fiz – proferiu Emma, sentando-se novamente.
Southwaite caminhou em direção à mesa deles. O seu casaco de montar azul contrastava fortemente com as roupas simples dos outros homens e a arma alojada, visivelmente,
sob a peça de vestuário não podia passar despercebida. Os clientes da taberna ergueram-se, abandonando o local rapidamente. Até mesmo o proprietário decidiu apanhar
um pouco de ar fresco, no exterior.
O conde anunciou a sua presença enfaticamente pela maneira como se colocou, de um modo ameaçador, ao lado da mesa. Olhou para o contrabandista.
– Tarrington.
Tarrington apenas anuiu, num gesto de reconhecimento.
Eles conheciam-se.
– O que está a fazer aqui, Miss Fairbourne? – perguntou Southwaite.
– Estou à espera de que um estufado de carneiro acabe de ser cozinhado.
Tarrington sorriu, perante aquela resposta provocadora. Southwaite não a considerou engraçada, de todo, e voltou o seu olhar inquiridor para ele.
Emma esperava que toda a sua história fosse revelada, de imediato. Naquele momento, Tarrington encontrava-se numa situação bastante má. Se Southwaite o conseguia
reconhecer, era provavelmente um contrabandista célebre. Emma temia que ele sempre fosse parar à prisão, por ter deixado que aquela história triste o comovesse.
Para sua surpresa, Tarrington enfrentou firmemente o olhar de Southwaite e permaneceu calado.
– Vejo que existe honra entre os ladrões – disse Southwaite.
Tarrington sorriu de novo.
– Não existem ladrões aqui. Somente um homem, à procura de cerveja, e uma mulher bonita, à espera de um estufado, que transportará para casa – disse, olhando na
direção da rua. – Penso que devia sair da mesma forma que entrou, com pistola, ou sem pistola, e abstendo-se de me levar consigo. Não gostaria que o grande afeto
que os meus rapazes sentem por mim o colocasse em perigo.
– Não vim aqui para o encontrar – argumentou Southwaite, virando-se depois para Emma. – Se me der a honra, Miss Fairbourne, acompanhá-la-ei no caminho de regresso
a casa.
Emma não queria que Southwaite a acompanhasse até à propriedade. No entanto, apesar de toda a cortesia com que fora proferida, aquela frase não era, de modo algum,
um pedido. Emma permaneceu sentada durante alguns instantes rebeldes, tentando inventar uma forma de sair daquela situação.
Tarrington assistia, divertido, ao que estava a suceder. Ele não iria quebrar a sua palavra de honra e divulgar a conversa que haviam tido, mas também não iria intervir
junto de Southwaite a favor de Emma.
– Transportá-la-ei para fora deste estabelecimento, se tiver de o fazer – avisou Southwaite. – Porém, será tudo muito mais digno, se me obedecer voluntariamente.
Southwaite não tinha o direito de esperar qualquer tipo de obediência da parte dela. Emma quase lhe disse isso. Contudo, o ar ficara pesado devido à raiva do conde
e não era evidente quanto tempo os rapazes de Tarrington permaneceriam na rua.
Emma ergueu-se. Southwaite deu-lhe o braço, apertando-a firmemente. Conduziu-a para as traseiras da taberna e através de uma porta, que dava acesso ao exterior.
O conde obrigou Emma a descer a rua, até ao local onde o seu cavalo aguardava.
– Prefiro caminhar – disse ela, puxando o braço, para que este ficasse livre.
Como resposta, Southwaite levantou-a no ar e colocou-a na sela.
– Não se mexa.
Emma não ousou movimentar-se, porque estava precariamente empoleirada no cavalo, sentada de lado.
De repente, o conde posicionou-se atrás dela, montando fora da sela, com o peito a pressionar o ombro de Emma. Os braços de Southwaite rodearam-na, assim que ele
segurou as rédeas.
– Eu posso andar – reclamou ela. – Pare com isso agora mesmo.
– Quando estivermos fora da aldeia, poderá caminhar à vontade – disse o conde, fazendo com que o cavalo assumisse um trote. – Neste momento, não quero ouvir nem
mais uma palavra de objeção, Emma.
Nem uma só palavra, se souber o que é bom para si.
Emma tentou inclinar-se, de modo a minimizar o contacto.
– Não irei objetar, mas não por causa dos seus avisos. Não o irei fazer porque tenho outras coisas para dizer. O senhor conde continua a revelar-se um interveniente
extremamente incómodo. Agradeço à Providência o facto de ser o único conde que já tive a infelicidade de conhecer, se tais presunções são...
– Também seria prudente da sua parte não me chamar presunçoso, a menos que esteja ansiosa para ver exatamente o quão presunçoso um conde pode ser.
– Então encontrarei outros adjetivos apropriados. Despótico. Convencido. Arrogante...
Emma queimou os ouvidos de Southwaite com todos os descritivos que conseguia evocar, enquanto o cavalo os levava para longe da povoação.
17 Cordilheira de natureza calcária, localizada no sudeste de Inglaterra, que se estende de oeste para leste, desde a fronteira entre Londres e Surrey até às falésias
brancas de Dover. (N. do T.) 18 Referência ao estreito de Dover, o ponto do canal da Mancha em que a distância entre Inglaterra e França é menor. (N. do T.)
CAPÍTULO 17
Southwaite só permitiu que Emma andasse a pé, quando já se encontravam bastante afastados da povoação. No entanto, ela teve de exigir por duas vezes que o conde
o fizesse, antes de conseguir obter qualquer resultado. Finalmente, Southwaite parou o cavalo e ajudou-a a deslizar para fora da sela.
O braço do conde cruzou o corpo e o peito de Emma, com o propósito de apoiá-la, até os seus pés tocarem no chão.
Emma equilibrou-se e tentou esquecer a intimidade esmagadora de ser envolvida por Darius.
– Agora pode seguir o seu caminho, Lord Southwaite. Não há vivalma à vista, por isso estou completamente segura.
Emma avançou pela estrada, esperando que ele a ultrapassasse.
Southwaite não o fez. O cavalo progredia devagar, ao lado de Emma, enquanto o seu dono proporcionava, silenciosamente, a companhia que havia oferecido. Contudo,
o ar permanecia pesado, devido ao humor sombrio do conde e Emma sentia-se mais vulnerável do que protegida.
A caminhada de regresso a casa pareceu-lhe mais longa do que a realizada anteriormente, para atingir a aldeia. A força que pairava atrás dela apenas explicava parcialmente
essa diferença. O ressentimento perante a sua impotência relativamente à situação de Robert alimentava a ira que Emma sentia.
Conquistara muito pouco, mediante a conversa com Tarrington, e este último destruíra a sua secreta esperança de descobrir o paradeiro de Robert.
Uma pequena fantasia, acerca de um salvamento destemido, fora representada na sua mente, durante os últimos dias. Que simplória havia sido, ao acarinhar um sonho
tão infantil. Na verdade, Emma não tinha qualquer alternativa, a não ser obedecer às ordens dos raptores, tentando encontrar o dinheiro necessário para pagar o resgate
e esperando que tudo corresse da melhor forma possível, após o pagamento ser efetuado. O seu bom senso revoltava-se contra o facto de Emma ser apenas um peão naquele
jogo.
Emma parou, nos limites da propriedade do pai, virando-se para Southwaite.
– Obrigada.
Tentou fazer com que a sua voz transmitisse uma dispensa firme. O conde optou por não ouvir essa mensagem. Enquanto Emma caminhava em direção à casa, o cavalo manteve
o ritmo, atrás dela.
O rosto de Mrs. Norriston apareceu na ombreira da porta. O seu olhar saltou de Emma para o cavalo que a seguia e concentrou-se depois no homem que o montava. Com
um rubor profundo, ela correu para Emma, desculpando-se.
– Não sabia como negar a pretensão do fidalgo. Ele disse que, se lhe acontecesse algum mal a si, eu também seria culpada.
– O que o levaria a pensar que poderia acontecer algum mal? Eu poderia ter andado a passear pela minha propriedade e nada mais.
Mrs. Norriston baixou o olhar, até encarar o chão.
– É possível qu’eu tenha dito qu’a menina estava numa reunião. E é possível qu’eu tenha contado qu’a menina queria falar com contrabandistas. Fiquei com medo. Não
consegui pensar em maneiras de não dizer as coisas.
– Com franqueza, Mrs. Norriston, não devia ter divulgado as minhas intenções. Nem devia ter ficado assustada, apenas porque um homem teve a sorte de nascer como
o herdeiro de um importante aristocrata.
Ele só lhe disse que eu estava em perigo com o intuito de obter o que desejava.
Parecendo bastante arrependida, Mrs. Norriston fez uma ligeira vénia, na direção do cavalo, e, em seguida, desapareceu no interior do edifício. Emma seguiu-a, fechando
a porta na cara do conde, que estava a desmontar. Se Southwaite não compreendesse aquela dispensa, era estúpido, para além de arrogante.
Emma entrou na sala de estar. Ainda não tinha sequer desatado a fita do chapéu, quando começou a ouvir as pancadas de Southwaite na porta principal. Ignorou o chamamento.
O conde bateu com mais força, e mais lentamente, num ritmo constante, que refletia a sua insistência, bem como a sua irritação.
Bem, Southwaite podia permanecer lá fora, durante todo o dia, se assim o entendesse. Emma preferia ir para o inferno a deixá-lo entrar. O conde não tinha o direito
de continuar a inter...
Para seu horror, viu que as saias de Mrs. Norriston flutuavam em direção à porta, passando pela sala de estar. Antes que Emma tivesse a oportunidade de proibir qualquer
ação, Mrs. Norriston abriu novamente a porta, cumprimentando o grande senhor, como a boa servente que era.
As botas dirigiram-se para a sala de estar, onde Emma se refugiara. O humor sombrio de Southwaite precedeu-o na entrada para a divisão, como um vento maléfico.
Quando o conde, finalmente, escureceu a ombreira da porta, exibia uma aparência extremamente severa. Também grandiosa, tinha de admitir, embora essa constatação
contribuísse pouco para apaziguar a irritação de Emma, relativamente a Southwaite, ou relativamente a si própria, por sequer notar o quão atraente ele estava. Ainda
assim, reconheceu, com algum ressentimento, que o conde parecia muito belo, no seu casaco de montar e botas de cano alto, e com o cabelo um pouco desalinhado, devido
à brisa.
Southwaite já não olhava para Emma fixamente, mas os seus olhos escuros transmitiam o género de desagrado que apenas os homens pensam ter o direito de sentir.
– Mrs. Norriston cometeu um erro, ao permitir que entrasse, por isso faça o favor de sair – disse Emma.
– Primeiro, tenho de lhe dizer algumas coisas.
– Muitas vezes, o que tem de ser dito fica melhor por dizer. Tenho a certeza de que é esse o caso, com as palavras que se sente compelido a deitar cá para fora.
– É uma bela lição, ainda por cima vinda de si. Pôde fazer o seu discurso irracional, no cavalo. Agora, tenho de insistir para que me deixe fazer o meu.
– Recuso-me a ouvi-lo. Não pedi que interferisse nos meus assuntos particulares. Hoje não me encontrava numa situação perigosa e...
– A menina não tem noção do perigo a que se sujeitou. Nenhuma. Se outro homem tivesse ouvido falar do pedido da sua governanta, relativo à sua pretensão de realizar
aquela reunião, eu poderia ter sido forçado a utilizar esta arma – disse Southwaite, retirando-a e colocando-a sobre uma mesa. – Toda aquela maldita aldeia está
envolvida no comércio ilegal. É do conhecimento geral.
O conde cruzou os braços e observou-a sem qualquer simpatia. Aquela atitude lembrou a Emma a aparência de Southwaite quando o abordara pela primeira vez, antes do
«Equívoco Escandaloso». Ela não tinha ânimo para ouvir o que ele queria dizer, mas sabia que acabaria por fazê-lo. Com um profundo suspiro de resignação, afundou-se
numa cadeira, colocou de parte a desilusão fulminante perante a aventura frustrada e reuniu toda a força que a sua indignação conseguia produzir.
– Porque quis encontrar-se com um vulgar contrabandista, Miss Fairbourne?
– Não sou obrigada a responder ao seu interrogatório. Não tem o direito de...
– Com os diabos que não tenho. Revelou-se demasiado voluntariosa, desde a morte do seu pai, e a minha tolerância excessiva conduziu a esta situação. Pensou que arranjaria
uma consignação especial, da parte dos contrabandistas, para melhorar o seu maldito leilão? Mais um conjunto de lotes com origem no património de um cavalheiro estimado
e discreto?
O coração de Emma doía-lhe, por bater tão violentamente.
– O que está a insinuar? Não deixarei que insulte o meu pai.
Southwaite soltou um suspiro impaciente.
– As contas são incompletas e vagas por um motivo. Planeava esconder-lhe as minhas suspeitas, mas penso que isso deixou de ser necessário. Não concorda comigo?
Emma permaneceu calada. Inclinou a cabeça para a frente, cerrou os dentes e rezou para que Southwaite fosse simplesmente embora.
O conde não o fez. Continuou no mesmo lugar, dominando a divisão e a própria Emma.
– Parece conhecer pelo menos um contrabandista – disse ela. – Logo, mais um do que o meu pai conhecia, segundo sabemos. Se o meu pai negociava com tais pessoas,
talvez o senhor conde tenha sido o responsável pelo início da atividade em questão.
Ter dito aquilo foi um erro. Durante um momento terrível, a fúria de Southwaite crepitou pelo ar. O
conde afastou-se de Emma e manteve-se imóvel, uma figura rígida e alta, exalando poder e intensidade.
Ela preparou-se para as palavras cortantes que, certamente, iriam surgir.
Em vez disso, Southwaite controlou o que acordara no seu interior. Voltou para junto de Emma, com os olhos a lançarem chamas. Ainda estava zangado, mas conseguira
recompor-se.
– Conheço o Tarrington porque faz alguns trabalhos para mim. É o rei dos contrabandistas desta zona e conhece outros monarcas do mesmo tipo, ao longo de toda a costa.
– Disseram-me que o senhor conde está particularmente interessado na costa.
– Eu e outros. A Marinha Real Britânica não tem navios suficientes para patrulhar a totalidade da nossa costa, ou mesmo a maioria da sua extensão. Até as corvetas
pertencentes ao Departamento de Prevenção permanecem junto dos principais portos. A maior parte da frota naval foi colocada em Portsmouth, a fim de estar pronta
para reagir, se os franceses iniciarem uma invasão. Entretanto, eles podem chegar sob outras formas, mais reduzidas do que uma força de combate. Os espiões entram
com impunidade, tão facilmente como o brandy francês, e várias informações deixam o nosso país, da mesma maneira.
– Está a dizer que são ajudados por contrabandistas ingleses?
– Sim, por alguns. Contudo, fazemos melhor uso dos restantes. Vigiam o terreno e relatam quaisquer atividades que pareçam suspeitas. Neste momento, existe uma cadeia,
abrangendo toda a costa sudeste, composta por esses colaboradores, assim como por pescadores e proprietários de terras.
– E nobres?
– Alguns nobres residem, atualmente, nas suas propriedades costeiras, com o propósito de nos auxiliar.
– O que não é o seu caso.
– Eu dedico-me, juntamente com outros cavalheiros, à coordenação da rede de vigilância e asseguro que os vários elos da cadeia não enfraquecem.
Emma calculou que aquilo significava que Southwaite participara na implementação do sistema de monitorização.
– O que recebem os contrabandistas em troca? A possibilidade de fazerem os seus negócios sem serem perturbados pelas autoridades?
– Não recebem qualquer recompensa, a não ser a satisfação de ajudarem Inglaterra. Se o Tarrington, ou outro elemento do grupo, for apanhado, a sua contribuição poderá
ter um efeito positivo, no sentido de obter alguma clemência, mas tal não foi prometido.
– Porque não? Seria bastante justo que o governo o fizesse.
– Não podemos negociar com ladrões. A lealdade comprada com uma promessa desse género poderia rapidamente ser adquirida pela outra parte, mediante um preço mais
elevado.
Emma concordava que o raciocínio fazia sentido. Porém, perguntou a si mesma se o governo não teria feito qualquer promessa simplesmente porque não estava envolvido
na iniciativa, pelo menos do ponto de vista oficial.
O que mais preocupava Emma era o que aquela atitude revelava sobre a personalidade do conde.
Southwaite não seria minimamente misericordioso para com os contrabandistas, caso os apanhasse em flagrante delito, apesar de estes cooperarem na rede de vigilância
que ele mesmo organizara.
Emma ficou ainda mais desanimada, ao perceber quão rígido Southwaite era, em questões de honra.
Sabia que isso pesava a favor do conde. No entanto, indicava que Darius também não seria indulgente para com Robert, nem para com ela própria. Emma pensou no vinho
escondido nas profundezas do armazém da Fairbourne’s, sob camadas dissimuladoras de lona.
– Daqui para a frente, não deverá voltar a fazer qualquer tentativa para se encontrar com contrabandistas – disse Southwaite, com firmeza. – Alguns deles seriam
capazes de a matar apenas pelo dinheiro que transporta. Não deixe que as boas maneiras de Tarrington a enganem. Será melhor que fique totalmente afastada da costa,
agora que já cometeu o grave erro de ser vista na companhia dele. Esta aventura foi imperdoável, independentemente do que esperava alcançar no final.
Emma apercebeu-se da ambiguidade que Southwaite atribuía às suas motivações. Assumiu que o conde pensava o pior dela, acreditando que a Fairbourne’s tinha uma aliança
com Tarrington. Também percebeu que aquele era o tom de um homem que ainda tinha muito para dizer. As nuvens tempestuosas reapareceram nos limites do humor de Southwaite
e aproximavam-se rapidamente. Os seus ventos enchiam-no de raiva. Emma sabia o que vinha a seguir.
Num dia diferente, poderia ter tentado defender-se, ou desviar a reprimenda do conde recorrendo à sua espirituosidade, indignação ou astúcia. Porém, naquele preciso
momento, estava demasiado deprimida por ter falhado de um modo tão espetacular no que planeara para esse dia. Pior ainda, quanto mais tempo permanecia naquela casa,
mais sentia a presença do pai. O seu odor parecia cercá-la e Emma teve a sensação de que o seu espírito a repreendia, tão claramente como Southwaite. As imagens
do pai invadiam, sem parar, a mente de Emma, distraindo-a do sermão proferido pelo conde.
Darius não conseguia conter uma profunda irritação perante as ações de Emma. Um alívio igualmente profundo tentava apaziguar a sua ira, mas o conde não estava habituado
a ficar calado, quando queria dizer algo.
O cérebro de Southwaite havia ensaiado aquele momento, desde que Maitland abrira a porta da residência londrina e explicara que Miss Fairbourne tinha viajado para
a costa. Maitland parecera preocupado com a deslocação, ou talvez com o facto de Darius a ter descoberto. Nem a informação obtida nem a expressão do mordomo encorajavam
uma interpretação inocente do comportamento de Miss Fairbourne.
Durante o seu percurso até à costa, e pela noite dentro, o conde considerara todos os motivos possíveis para aquela expedição inesperada. Sentiu-se atormentado por
visões ridículas de Emma a desenterrar bens roubados, numa praia. Embora duvidasse que fosse tão ousada, tinha a certeza de que ela não andava a planear algo inofensivo.
A única questão era saber se Emma arquitetara uma linha de ação meramente incauta ou se o que pensava fazer era verdadeiramente perigoso.
Maldição. Devia ter-se dirigido à casa logo de madrugada. O meio-dia havia sido, claramente, uma hora demasiado tardia, para uma mulher como aquela. Graças a Deus
que a governanta revelara toda a história, assim que ouvira o seu título. Mrs. Norriston reagira como se fosse a cúmplice de um crime hediondo, sob a ameaça de um
instrumento de tortura.
Southwaite relatou a Emma grande parte desses acontecimentos, ao mesmo tempo que lhe administrava uma reprimenda severa e muito abrangente. Não referiu a sua preocupação
doentia, mas enunciou os restantes elementos da situação. Os seus argumentos demonstravam que Emma era responsável por muitas decisões erradas. Porém, descrever
toda aquela perseguição só fez com que as suas emoções ficassem novamente vívidas e caóticas, alimentando o fogo que ardia dentro da sua cabeça.
Ao reiterar a menção ao perigo que Emma correra, o conde imaginava o trilho costeiro, do qual o pai de Emma havia caído para a morte, as celas fétidas da prisão
de Newgate, onde as criminosas eram alojadas, e o destino a que poderia ser condenada uma mulher, se estivesse à mercê de homens que nada tinham a perder. Esta última
imagem atuou como um ferro quente, queimando-lhe a mente, e fez com que Darius proferisse várias advertências adicionais.
Emma continuava calada. Permanecia sentada, com as mãos unidas sobre o colo e o olhar fixo no tapete, enquanto as palavras de Southwaite choviam sobre ela. Aquele
silêncio apenas serviu para irritar ainda mais o conde. Contudo, passado algum tempo, Darius começou a considerá-lo bastante perturbador.
A reação que presenciava não era típica da Miss Fairbourne que conhecia.
O discurso de Southwaite começou a soar excessivamente enfático, até aos seus próprios ouvidos.
Perguntou a si mesmo se a maneira como caminhava para trás e para a frente estaria a assustar Emma. O
facto de ela não se defender, evitando que tivessem uma discussão minimamente decente, fazia com que Darius se sentisse, cada vez mais, em desvantagem.
– Não tem algo a dizer, de todo? – perguntou o conde, completamente perplexo com a docilidade de Emma. – Nem uma só palavra?
– O senhor conde tinha tantas para dizer, que pensei ser melhor ceder-lhe o palco.
Southwaite teria preferido que ela dissesse aquilo mais energicamente, em vez de ter proferido aquelas palavras com uma voz tranquila e quase abatida. Inclinou-se
um pouco, tentando observar melhor o rosto de Emma. Com os diabos, ela não estava a chorar, ou estava? Pensou ter ouvido uma fungadela.
Darius amaldiçoou-se a si mesmo. Desanimado, ajoelhou-se ao lado de Emma.
– Perdoe-me. A preocupação pela sua segurança quase me conduziu à loucura e, por essa razão, talvez tenha sido demasiado vigoroso, ao expressar...
O quê? A sua ira? Sim, mas não do género habitual. O seu medo? Talvez, mas não por si próprio, nem exclusivamente por Emma. Receava também uma situação que o pudesse
colocar perante uma escolha terrível.
– A minha inquietação.
Emma olhou para ele. O conde viu lágrimas e tristeza, mas muito pouco que indicasse contrição.
– É bondoso ao preocupar-se tanto comigo, especialmente tendo em conta que não sou da sua responsabilidade.
A declaração transmitia uma repreensão por si só. Dizia a mensagem implícita que, como Emma não era da sua responsabilidade, Darius não tinha o direito de a admoestar
daquele modo, nem mesmo de questionar o seu comportamento.
A essência de Southwaite revoltou-se contra aquela asserção. Afinal, Emma ocupara suficientemente os seus pensamentos e o seu tempo durante as últimas semanas, para
que ele possuísse agora alguns direitos sobre ela, raios. Também continuava envolvido na casa de leilões. O plano que Emma concebera, incluía, sem dúvida, a empresa
e, consequentemente, ele próprio. Ela não podia esperar, realmente, que ele não mostrasse qualquer interesse pelas suas reuniões com contrabandistas conhecidos.
Darius começou a explicar o que pensava, mas os olhos e a expressão de Emma prenderam a sua atenção tão completamente que mais palavras pareceram desnecessárias.
O conde teve a certeza de que Emma já sabia tudo o que ele poderia dizer.
Os seus rostos estavam separados por menos de dois palmos de distância. Emma encontrava-se tão próxima, que o seu hálito doce acariciava a pele de Southwaite. Tão
perto que o conde sentiu as sombras que a oprimiam. Algo tenebroso a sobrecarregava naquele preciso momento. A escuridão ocupava a mente de Emma, mais do que qualquer
coisa que ele pudesse argumentar.
Seu imbecil insuportável. Criticando-se mais violentamente do que havia criticado Emma, Darius retirou o lenço do bolso. Enxugou uma lágrima, que iniciava um trajeto
minúsculo, descendo pela bochecha de Emma, e combateu o impulso de fazê-lo com os seus lábios.
Southwaite não lhe perguntou por que razão chorava. Talvez tivesse assumido que aquela reprimenda, longa e dura, fora a causadora das lágrimas. No entanto, quando
estava ajoelhado junto dela, excessivamente perto, mais próximo do que seria prudente, Emma acreditou ver nos olhos dele o conhecimento de que aquelas lágrimas não
caíam devido à descompostura.
O conde pressionou o lenço, para que ficasse na mão de Emma e ergueu-se. Permaneceu imóvel durante um longo momento, em pé, mesmo ao lado dela, antes de se afastar.
E, com a ausência daquela presença próxima, outras forças a dominaram novamente. Os pensamentos sobre o seu pai evocaram manifestações quase palpáveis do falecido.
Emma sabia que o fantasma não se encontrava no interior da casa. Estava dentro dela própria.
– Não passei muito tempo com ele aqui – ouviu-se a dizer. – Penso que ninguém o fez. Esta casa era somente do meu pai. Nada há aqui que dilua a sensação persistente
da sua presença.
Serviu-se do lenço para secar os olhos.
– Em Londres é diferente, exceto nos aposentos dele.
– Já entrou nesses aposentos muitas vezes, desde que recebeu a notícia do acidente fatal?
Emma abanou a cabeça. Raramente lá ia.
– Estava notavelmente serena no funeral – disse Darius. Em menos de um mês, já se encontrava atarefada, tentando reconstruir a sua vida. Talvez não tenha vivido
verdadeiramente o luto.
– De tudo o que disse hoje, essa foi a frase mais cruel.
– É bastante comum, Emma. Não vivi realmente o luto pela morte do meu pai, até terem decorrido dois anos após a data fatídica. Não é uma emoção que possamos controlar.
Por isso, as pessoas que estão habituadas a comandar podem facilmente cair na tentação de a evitarem.
Emma gostaria de poder afirmar que o conde só dizia disparates, sendo óbvio que ela havia vivido verdadeiramente o luto. Porém, apercebia-se agora de que fugira
à parte pior do processo, ocupando-se com diversos afazeres, quando a dor ameaçava despertar dentro de si. Não quisera reconhecer a emoção assustadora que crescia
no seu interior, desde que tinha chegado àquela casa.
– Será que vou enlouquecer?
– Não. Irá apenas aceitar a verdade dos seus sentimentos.
Emma entendeu o que Southwaite queria dizer, de uma forma que não estaria ao seu alcance, se recuasse uma semana no tempo. Compreendia-o suficientemente bem para
considerar, naquele momento, o que teria sido impensável, até mesmo no dia anterior.
– Quero ver o local em que tudo aconteceu. Sabe exatamente onde foi?
O conde hesitou e, em seguida, anuiu.
– Pode levar-me até lá?
– Para alcançar a aceitação, não tem de se torturar com os pormenores do sucedido.
– Mesmo assim, gostaria de v
er o lugar.
Darius não concordou de imediato. Talvez as suas tendências protetoras fossem contra aquele passeio.
– Levaremos a sua carruagem – assentiu, por fim. – Irei falar com o seu cocheiro e dar-lhe instruções para a preparar.